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UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FFC – FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
ANDERSON DEO
A FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO
DE SÃO PAULO E AS NOVAS INFLEXÕES DO
CAPITAL NA DÉCADA DE 1990
Marília
Março de 2005
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II
ANDERSON DEO
A FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
E AS INFLEXÕES DO CAPITAL NA DÉCADA DE 1990
Dissertação apresentada à Faculdade
de Filosofia e Ciências da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Campus Marília, para obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais.
Orientador:
Prof. Dr. Antonio Carlos Mazzeo
Marília
Março de 2005
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III
ANDERSON DEO
A FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO E AS
INFLEXÕES DO CAPITAL NA DÉCADA DE 1990
Comissão Julgadora
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DE TÍTULO DE MESTRE
Profº. Dr. Antonio Carlos Mazzeo (orientador)
..........................................................................................
Profº. Dr. Marcos Del Royo (Universidade Estadual Paulista)
...........................................................................................
Dr. Paulo Douglas Barsotti (Fundação Santo André/Fundação Getúlio Vargas)
............................................................................................
Profº. Dr. Osvaldo Coggiola (Universidade de São Paulo – Suplente)
............................................................................................
Dr. Giovanni Alves (Universidade Estadual Paulista – Suplente)
............................................................................................
Marília, de de 2005.
IV
“Naquela mesa tá faltando ele(s)
A saudade dele(s)
Ta doendo em mim
(Sérgio Bittencourt)
À memória de Amélio Franchi e
Agenor Deo,
“Avohai, avô e pai”
(Zé Ramalho)
V
AGRADECIMENTOS
Mais do que mera formalidade, esta seção é dedicada àqueles que, de
alguma forma, contribuíram para a elaboração deste trabalho.
Sendo assim, agradeço inicialmente a Terezinha Ferrari, Carlos César
Almendra e Antonio Macário de Moura, que com suas observações, críticas e
correções, participaram da elaboração do projeto inicial deste trabalho. A este último,
agradeço pela leitura – mesmo que parcial – e posteriores críticas e sugestões do
texto final a ser apresentado no exame de qualificação.
Aos camaradas de luta teórico-prática do Grupo de Santo André, Rubens,
Andréia e Viviani que, juntamente com o Macário o César e a Terezinha,
contribuíram com reflexões e debates fundamentais para o amadurecimento teórico
que agora apresento nessa dissertação.
Ao Profº. Dr. Antonio Carlos Mazzeo por ter aceito a orientação deste
trabalho, o que fez com grande eficiência intelectual. Tal orientação foi marcada por
muitos debates e discussões, sem nenhum tipo de restrição intelectual, observando
inclusive meus limites teóricos, cujos frutos, além do trabalho em si, são a amizade e
o respeito de um verdadeiro camarada.
Agradeço também aos professores que compuseram as bancas de
qualificação e defesa dessa dissertação, respectivamente, Dr. Francisco Luiz Corsi,
Dr. João Ildebrando Bocchi, Dr. Paulo Douglas Barsotti e Profº. Dr. Marcos Del
Royo. Pela cuidadosa leitura, críticas e sugestões de grande valia para composição
final do texto.
VI
A Regiani Zornetta e Valéria Pilão, além da companhia, das discussões e da
militância, foram elas quem me acolheram em Marília nos primeiros meses de
mestrado.
A Silvia Helena de Oliveira, a Ellen Camila e Maria Izabel Lagoa, pelo
companheirismo e pelos bons momentos em Marília. A essa última um
agradecimento especial, pelos momentos de angústias que dividimos juntos, seja no
debate teórico, seja nos conflitos cotidianos.
Agradeço também a Juliana Carvalho, jovem trabalhadora, cuja convivência
nos dá forças para enfrentarmos a opressora rotina do Capital.
A família de Maria Dilza Gonçalves de Oliveira, por terem me “adotado” nessa
cidade, até então pouco conhecida. A convivência com estes fez, muitas vezes, com
que a solidão se dissipasse.
A Rúbia Martins, amiga e amante, com quem passei a dividir durante o último
ano a minha vida. Sua inteligência, sensibilidade, generosidade e respeito, fizeram-
me acreditar que a vida a dois é possível, mesmo num mundo onde as relações
entre os homens são marcadas pelo estranhamento. Obrigado minha companheira!
A Robson Antonio Deo que, além de irmão, é um camarada como poucos,
cuja honestidade pessoal é exemplar. O apoio deste foi fundamental para a minha
vinda e estada em Marília.
E por fim, mas não menos importante, gostaria de agradecer a Neuza Oliver
Franqui e Romil Delfino dos Reis, minha mãe e meu padrasto. Mesmo que hoje
nossas posições políticas sejam divergentes, foram eles os responsáveis pelo
despertar de uma sensibilidade revolucionária em minha vida, mostrando que um
outro mundo, onde não existam explorados e exploradores é possível, e que lutar
para que este venha a acontecer vale a pena.
VII
“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece
como uma ‘imensa coleção de mercadorias’” Karl Marx
“Os problemas brasileiros de hoje, os fundamentais, pode-se dizer que já
estavam definidos e postos em equação há 150 anos. E é da solução de muitos
deles, para que nem sempre atentamos devidamente, que depende a de outros em
que hoje nos esforçamos inutilmente” Caio Prado Junior.
“Com a toga comprida de Fausto / Vai-te e despreza o gênio e a ciência,/ Do
ser humano a máxima potência! / Deixa que em cega e feiticeira gira / Te embale o
demo da mentira,/ E já te prendo em meu enlace” Mefistófeles, em Fausto, Goethe.
“Hoje, dentro da classe empresarial, há poucas vozes que discordam da tese
de que o Brasil precisa se modernizar – abrindo-se mais para o exterior, alterando o
papel do Estado na economia e promovendo reformas que aumentem seu grau de
eficiência” Mário Amato.
VIII
RESUMO
O presente trabalho analise o projeto econômico-social da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), bem como sua prática política, diante do
processo de reestruturação econômica e redimensionamento do Estado Nacional
brasileiro, ocorridos durante a década de 1990.
Como parte de um todo articulado, tal processo está inserido numa nova fase
de internacionalização da economia capitalista, denominada Mundialização do
Capital, onde a burguesia internamente instalada passa a defender seu projeto, com
vistas à inserção do Brasil nesse momento da Divisão Internacional do Trabalho.
O projeto desenvolvido e defendido pela FIESP tem como característica
principal a revitalização da posição subordinada da economia brasileira, em relação
aos pólos centrais do imperialismo. Historicamente constituída e consolidada, tal
característica imprime no conjunto das classes sociais brasileiras a sua marca. No
que diz respeito à fração industrial da burguesia do principal pólo econômico do
país, a forma particular de entificação/objetivação do capitalismo no Brasil dá origem
a uma classe cuja incompletude histórica e debilidade política sempre foram
presentes.
O desenvolvimento histórico da entidade, bem como sua atuação no referido
período, demonstram que tais contornos ontologicamente adquiridos não foram
modificados, pelo contrário, são reafirmados como única forma possível de
desenvolvimento econômico-político para o país. Tais aspectos são próprios de
economias que se inserem de forma hipertardia no modo de produção social do
Capital.
IX
ABSTRACT
The present work analyse the social-economic project of São Paulo State’s
Industry Federation (FIESP) as well as its political practice, in front of the economic
restructuration process and re-definition of the brazilian National State, ocurred over
the 1990 decade.
As part of a totality well founded, that process is placed among a new fase of
capitalistic economy internalisation, named as Capital Mundialization, where the
bourgeois settled internally stand by its project with a view to insert Brazil in this
moment of Labor’s International Division.
The project developed and stood up for the FIESP has as its principal
characteristic the revitalization of the subordinated position from brazilian economy in
regard to the imperialism central poles. Historically composed and consolidated, this
characteristic prints in the entirety brazilian social classes its mark. In regard to the
industrial fraccion of the bourgeois from the principal economic pole in the country,
the particular form of Brazil’s capitalistic objectivation gives origin to a class whose
historical un conpleted and political debilitation were always presents.
The entity historical development as well as its actuation in the cited period
shows its contours ontologically acquired were never changed by the contrary they
are remaintained as the only possible form of political-economic development for the
country. These aspects are pertaining to economies that gets insert in a “hiper-late”
Capital’s mode of production.
X
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS..................................................................................... 11
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 13
CAPÍTULO I: DA MISÉRIA ALEMÃ À INDIGÊNCIA BRASILEIRA:
NECESSIDADE E ATUALIDADE DE UMA DISCUSSÃO....................................... 27
I. I - Da relação entre o universal, o particular e o singular - notas
introdutórias.................................................................................................. 27
I. II – As vias nacionais de entificação/objetivação capitalistas:
“clássica”, “prussiana” e “prussiano-colonial”........................................ 30
I. II. I – O capitalismo nos países de “via clássica”......................................... 33
I. II. II – O capitalismo nos países de “via prussiana”..................................... 35
I. II. III – A entificação/objetivação do capitalismo na processualidade
histórica brasileira: o caminho “prussiano-colonial”........................................ 39
CAPÍTULO II: INFLEXÕES DO CAPITAL E FIESP NOS ANOS 1990: NOVAS
PARTICULARIDADES DE UM MESMO PROCESSO............................................. 72
II. I – Velhas respostas para antigos problemas........................................ 74
II. II – Uma nova etapa no processo de expansão e internacionalização
do Capital...................................................................................................... 82
II. III – FIESP: forma de ser de uma entidade burguesa de caráter
prussiano-colonial........................................................................................ 90
CAPÍTULO III: FIESP: DA CONCEPÇÃO A DECREPITUDE DE UM SER.......... 115
III. I – A concepção..................................................................................... 117
III. II – A gestação....................................................................................... 126
III. III – O nascimento.................................................................................. 133
III. IV – Os primeiros passos...................................................................... 142
III. V – A adolescência................................................................................ 150
III. VI – A juventude..................................................................................... 156
III. VII – A maturidade.................................................................................. 165
CONSIDERAÇÕES FINAIS: “O PACTO COM MEFISTÓFELES”........................ 178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 187
11
Lista de Abreviaturas
ABDIB – Associação Brasileira da Indústria de Base
ABIF – Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica
Abimaq – Associação Brasileira da Indústria de Máquinas
Abinee – Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica
ACRJ – Associação Comercial do Rio de Janeiro
ACSP – Associação Comercial de São Paulo
ADEP – Ação Democrática Popular
AIB – Ação Integralista Brasileira
AL – Aliança Liberal
ANL – Aliança Nacional Libertadora
ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CBP – Consórcio Brasileiro de Produtividade
CEPAL – Comissão Econômica Para América Latina e Caribe
CIB – Centro Industrial do Brasil
CIESP – Centro das Indústrias do Estado de São Paulo
CIRJ – Centro das Indústrias do Rio de Janeiro
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNI – Confederação Nacional da Indústria
COCIN – Conselho de Coordenação Interdepartamental
Conclap – Conferência das Classes Produtoras
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional
12
ECE – Empresa de Capital Estrangeiro
ESG – Escola Superior de Guerra
FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FIMJ – Federação das Indústrias de Minas Gerais
FIRJ – Federação das Indústrias do Rio de Janeiro
FIP – Federação Paulista das Indústrias
FMI – Fundo Monetário Internacional
GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IED – Investimento Externo Direto
IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Econômicos
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OGU – Orçamento Geral da União
OMC – Organização Mundial do Comércio
Paeg – Plano de Ação Econômica do Governo
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PIB – Produto Interno Bruto
PNB – Produto Nacional Bruto
PNBE – Pensamento Nacional das Bases Empresariais
PRP – Partido Republicano Paulista
PD – Partido Democrático
SAIN – Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional
13
INTRODUÇÃO
Nossa pesquisa pretende investigar o posicionamento, e respectiva
relevância, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP – no
processo de abertura e reestruturação da economia brasileira que vem se efetivando
no decorrer da última década (1990-2000).
Esta abertura possui características distintas de processos anteriores, posto
que arrima-se nas privatizações das indústrias de base e do setor financeiro estatais,
na abertura total e irrestrita do mercado brasileiro aos capitais transnacionais
1
, na
desregulamentação da economia – bem como da relação entre Capital e Trabalho –
e na redefinição do papel do Estado brasileiro.
1
Ver fundamentalmente: MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Rumo a uma teoria da transição.
São Paulo: Editora da Unicamp/Boitempo, 2002. Especialmente a Parte I, capítulo 5 – A ativação dos
limites absolutos do capital – ao discutir a relação entre os Estados nacionais e as empresas
capitalistas, Mészáros argumenta (trilhando percurso já iniciado por Harry Magdoff) que as
corporações dependem da “proteção” e das benesses dos Estados nacionais e de suas respectivas
legislações, pois mesmo sendo um sistema mundial, a produção/reprodução do Capital ocorre no
espaço geográfico das fronteiras nacionais. Não existe, segundo esses autores, um caráter
“multinacional”. Apesar de se inserirem no espaço do Estado-nação, essas corporações extrapolam
tais fronteiras, à medida que as taxas de lucros obtidas não respeitam a mesma ocupação territorial,
circulando o “mundo à fora”, em busca de mercados mais rentáveis e seguros, vistos da perspectiva
capitalista. Segundo Mészáros: “A expressão ‘multinacional’ é freqüentemente utilizada de modo
completamente equivocado, ocultando a verdadeira questão do domínio das empresas capitalista de
uma nação mais poderosa sobre as economias locais – em perfeita sintonia com as determinações e
os antagonismos mais profundos do sistema do capital global”. Mészáros, op.cit., p. 229.
14
A FIESP, enquanto entidade representativa da fração dominante da burguesia
brasileira vinha, desde a era Vargas, interferindo e influenciando, sobremaneira, na
implantação dos projetos sócio-econômicos dos respectivos governos brasileiros.
Desde meados da década de 1960, este papel passa a sofrer abalos e
alterações fundamentais decorrentes das mudanças estruturais competitivas do
capital transnacional, promovendo uma nova composição orgânica das classes
dominantes brasileiras.
A configuração econômica do capitalismo internacional apresentou algumas
mudanças e transformações de significativa importância no passado recente. O
modelo iniciado no pós-guerra começa a demonstrar seus limites já na década de
70, tendo como momento de maior expressão, a crise generalizada da economia
mundial, que foi denominada Crise do Petróleo
2
. Não se tratou de crise em um setor
específico (petróleo), mas sim, do esgotamento de um padrão de acumulação
capitalista, que sustentava-se na intervenção direta do Estado em todos os setores
das economias nacionais, o chamado Welfare State e/ou Estado de bem-estar
social.
A partir de então, as economias centrais vão resgatar antigos pressupostos
liberais como forma alternativa à crise. Segundo Reinaldo Gonçalves, “A
revitalização das idéias e políticas liberais é um marco importante, principalmente
nos Estados Unidos e no Reino Unido, com as vitórias dos governos conservadores
de Reagan (1981) e Thatcher (1979), que ficam no poder por toda a década”
3
.
2
Ver fundamentalmente: MANDEL, Ernest. A crise do capital. Os fatos e sua interpretação marxista.
São Paulo: Ensaio/Editora da Unicamp, 1990, capítulo I (todo).
3
GONÇALVES, Reinaldo. Ô Abre-Alas – A Nova Inserção do Brasil na Economia Mundial, Rio de
Janeiro, Relume-Dumará, 1994, p. 20.
15
Nesse sentido, medidas como reforma fiscal, desregulamentação da
economia, privatizações de estatais e redução de gastos públicos, serão
implementadas como forma inevitável de saneamento da crise. Durante a década de
80 “(...) nota-se uma influência crescente das idéias e políticas neoliberais nos
países em desenvolvimento. O liberalismo surge, então, como o deus ex-machina
que apresentava as soluções de saída para a crise econômica, política e social que
a maioria destes países enfrentava desde meados dos anos 70”
4
. Instala-se um
debate generalizado, do qual o Brasil não escapará. Segundo Gonçalves,
internamente o debate será intermediado pela “síndrome da dualidade”, que em
outras palavras pode ser traduzida em abrir ou não, irrestritamente, a economia
brasileira ao capital internacional.
Da direita, aos na esquerda parecia haver um consenso de que era
impossível manter por várias décadas privilégios a setores e grupos econômicos.
Por outro lado, qual seria a melhor maneira de eliminar estes privilégios?
A discussão se estende por toda a década de 80, quando a economia
brasileira experimentou um receituário com resultados sociais nada agradáveis. Os
ingredientes dessa receita combinavam inflação alta, recessão econômica, arrocho
salarial, contenção do crédito e todas as mazelas daí decorrentes, o que valeu ao
período o título de a Década Perdida.
Com a eleição de Fernando Collor de Mello em 1989, o Brasil entraria na
assim chamada Era da Modernidade. Em seus discursos de campanha, Collor
atribuía ao gigantismo estatal brasileiro, os principais fatores causadores da crise.
Amplamente apoiado pela mídia, defendia que o grande elefante branco estatal e
todos os marajás que dele se aproveitavam deveriam ser expurgados da nação.
4
Ibidem, p. 21.
16
Ao assumir o governo, Collor inicia as propugnadas reformas modernizantes:
privatizações, demissões de funcionários públicos e dois atabalhoados planos
econômicos que iniciam o processo de abertura da economia brasileira ao mercado
mundial, marcaram seu curto mandato. Com o impeachment do presidente, assume
o vice, Itamar Franco, que tinha como principal desafio restabelecer a credibilidade
nas instituições governamentais, além de preparar o quadro sucessório de 1994.
Itamar Franco tinha um papel importante a desenvolver: atenuar os conflitos
herdados da “República das Alagoas”, verificar seus impactos e desdobramentos, e
acima de tudo, preparar o terreno para a próxima sucessão, para só então retomar o
itinerário da modernidade traçado por Collor.
No decorrer do mandato de Itamar, setores da burguesia brasileira não
pouparam críticas ao novo presidente, classificando-o de “fraco”, “populista” e pouco
afeito às reformas iniciadas por Collor. O novo governo compõe-se com
representantes dos mais variados setores sociais. Procura aproximar-se dos
sindicatos – principalmente da CUT – ao negociar saídas para greves (petroleiros-
1994), reduz as taxas de juros com vistas a aumentar a produtividade interna e
convida políticos de partidos na esquerda para compor seu governo (Luiza Erundina
do Partido dos Trabalhadores, por exemplo). Junte-se a isso, a implementação do
Plano Real que, tendo à frente Fernando Henrique Cardoso, alcança relativa
estabilização financeira para o país.
O resultado desse processo de “transição” é a eleição, em 1994, do candidato
governista, Fernando Henrique Cardoso. Acalmados os ânimos, o Brasil estava
pronto para retomar o projeto iniciado por Collor, que não havia sido descartado,
mas apenas sofrera uma breve interrupção. Este fazia parte da estratégia de
reposição das forças conservadoras – composta pela burguesia internamente
17
instalada, representada nas esferas político-institucionais por partidos como o
Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), Partido da Frente Liberal (PFL), Partido
do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), entre outros de menor notoriedade
política – que, por um rápido espaço de tempo, tropeçara nas suas próprias
articulações políticas, e precisavam ser retomadas. Segundo Jorge Mattoso:
O primeiro governo FHC (1995-98) apostou todas suas fichas na
modernidade supostamente virtuosa da desregulação da
concorrência e da globalização financeira internacional. Para FHC e
seu governo, esta modernidade geraria uma nova dinâmica na
economia internacional, favorecendo o surgimento de um novo
Renascimento, com uma nova era de avanços da razão e da
técnica, sem ganhadores ou perdedores, de per se benéfica ao
país
5
.
O Brasil inserir-se-ia nos novos padrões de concorrência e acumulação
mundialmente estabelecidos. O debate que ocorria no país a respeito dessa
inserção, resumia-se na discussão acerca da abertura comercial e financeira
indiscriminada, tudo em nome de “não perder o bonde da história”. Sendo assim, as
medidas tomadas eram necessárias, pois seriam os pressupostos da modernidade,
sendo que toda e qualquer proposta que levasse em consideração a perspectiva da
produção ou do nível de emprego interno seria considerada como coisa do passado,
postura essa – segundo o governo – reacionária e corporativista. A esse respeito,
novamente argumenta Mattoso: “Por um lado, acreditavam que, para serem
absolutamente modernos, bastava integrar o país rapidamente a esta economia
internacional. Para tanto, consolidaram a abertura comercial e financeira
indiscriminada iniciada por Collor e dispensaram a constituição de um projeto de
desenvolvimento ou de políticas setoriais de defesa da produção e do emprego
nacionais. Como absolutamente modernos, caracterizam quaisquer políticas de
5
MATTOSO, Jorge. Produção e emprego: renascer das cinzas. In: LESBAUPIN, Ivo (org.). O
desmonte da nação – balanço do governo FHC. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 115.
18
defesa da produção e do emprego nacionais como corporativas ou inflacionistas”
6
.
Na mesma direção argumentativa encontramos Paulo Nogueira Batista que tece as
seguintes considerações: “Em favor da abertura a importações de mercadorias
invoca-se a ineficiência do protecionismo como alocador de recursos, como
obstáculo aos interesses do consumidor nacional e como fator comprometedor das
chances de uma inserção competitiva na economia mundial, vista como única forma
de promover o desenvolvimento”
7
.
O governo brasileiro passaria a municiar a abertura econômica iniciada por
Collor sem criar mecanismos protetores da indústria interna. Durante toda a história
do desenvolvimento industrial moderno do Brasil ocorreram definições de políticas
governamentais para o atendimento aos interesses da burguesia industrial instalada
internamente. Assim foi desde o primeiro governo Vargas com a criação das
pioneiras indústrias de base, sendo mantidas posteriormente pelo
desenvolvimentismo de JK – ainda que este tenha privilegiando a entrada de
empresas transnacionais. Após 64, esta definição deu-se através da construção de
mecanismos institucionais que viabilizaram a superexploração da força de trabalho
pelos capitais privados – internos, externos e estatais -, graças a criação e
fortalecimento, no caso destas últimas, da ditadura militar. Segundo Rui Mauro
Marini:
A reorganização dos sistemas de produção latino-americanos, no
quadro da integração imperialista e frente ao recrudescimento das
lutas de classe na região, levou à implantação de regimes militares,
de corte essencialmente tecnocrático. Sua tarefa é dupla: por um
lado, promover os ajustes estruturais necessários e pôr em marcha a
nova ordem econômica que a nova ordem imperialista requer; por
outro lado, reprimir tanto as aspirações de progresso material como
os movimentos de reformulação política produzidos pela ação das
massas. Reproduzindo em escala mundial a cooperação antagônica
6
Ibidem, p. 115.
7
BATISTA, Paulo N. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-
americanos. In: VÁRIOS. Em defesa do interesse nacional. Desinformação e alienação do patrimônio
público. São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 123.
19
levada a cabo no interior do país, tais regimes estabelecem uma
relação de estreita dependência com seu centro hegemônico; os
Estados Unidos, ao mesmo tempo que esbarram continuamente com
este, em seu desejo de tirar maiores vantagens do processo de
reorganização em que se encontram empenhados. Vista em sua
perspectiva histórica mais ampla, uma América Latina integrada ao
imperialismo é a condição de sobrevivência do sistema imperialista. A
superexploração do trabalho em que se funda o imperialismo, sob
cujo signo se pretende integrar os países da região, estabelece um
descompasso entre a evolução das forças produtivas e as relações
de produção que só pode resultar na derrocada do sistema em seu
conjunto, com tudo o que ele representa em exploração, destruição e
degradação.
8
Na verdade, o projeto iniciado por Collor e efetivado por FHC, não teve como
prioridade o desenvolvimento de políticas que favorecessem a produção interna ou
qualquer outro aspecto social que dela pudesse decorrer. Pelo contrário, tanto
Fernando Henrique, como a aliança política que o sustentava formavam a
composição político-institucional melhor acabada que o capital transnacional
encontrara para “enquadrar” o Brasil nos novos padrões de acumulação capitalista.
José Luís Fiori nos fornece a seguinte constatação: “O Plano Real não foi concebido
para eleger FHC; FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de
poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do
FMI, e viabilidade política ao que falta(va) ser feito das reformas preconizadas do
Banco Mundial”
9
.
Vale ainda ressaltar que esta postura político-econômica encarnada pela
aliança vitoriosa em 1994 reafirmava a tendência proposta e inaugurada pelo
Consenso de Washington, onde as economias latino-americanas, para conseguirem
uma inserção completa nos novos padrões de acumulação mundiais, deveriam abrir
suas economias à concorrência do capital internacional, pelas quais os governos
8
MARINI, Ruy Mauro. “Subdesenvolvimento e Revolução”, in: BARSOTTI, P. E PERICÁS, L. B.
América Latina: história, idéias e revolução, São Paulo, Xamã-NET, 1998, p. 125.
9
FIORI, José L. Os moedeiros falsos. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 14.
20
nacionais deveriam eliminar toda e qualquer barreira protecionista de seus
respectivos mercados. Como bem mostra, também, Nogueira Batista ao relatar que:
O Consenso de Washington documenta o escancaramento das
economias latino-americanas, mediante processo em que acabou
se usando muito mais a persuasão do que a pressão econômica
direta, embora esta constituísse todo o tempo o competentíssimo
trabalho de convencimento. Certamente, uma versão mais
sofisticada e sutil das antigas políticas colonialistas de open-door
nas quais se apelava, sem maiores constrangimentos, à força das
canhoneiras para ‘abrir os portos de países amigos’. Por serem
menos ostensivas, as pressões atuais são mais difíceis de
combater
10
.
Para os setores nacionalistas mais desinformados de nossa sociedade, essa
postura pode soar como um descalabro. No entanto, em toda a história do nosso
jovem país, as demandas capitalistas internacionais ditam as regras e dão o tom da
sinfonia a ser regida na economia nacional, - regência esta a cargo dos principais
agentes do capital mundial – guardados os devidos contextos históricos e as
particularidades de cada período.
Assim foi no modelo agro-exportador – inaugurado no período colonial –
estendendo-se até a década de 30 do século XX; continua sendo assim no período
do pós Segunda Guerra, quando as transnacionais vão encontrar solo fértil para
aqui se instalarem e ampliar seus índices de extração de mais-valia.
Verificamos em toda história brasileira um caráter de subordinação de nossa
economia aos pólos centrais do capitalismo mundial, em que os membros
representativos de nossa burguesia assim também se posicionarão.
Fazendo referências a essa classe dominante da sociedade brasileira,
Antonio Carlos Mazzeo escreverá:
O Brasil após 1945 passará por grandes e profundas alterações em
seu parque produtivo e, conseqüentemente, na composição de seu
tecido social. No entanto, essas transformações modernizadoras
não significarão uma ruptura com a subordinação do país aos pólos
centrais do capitalismo. Ao contrário, o redimensionamento de sua
10
BATISTA, 1994, p. 130.
21
estrutura sócio-produtiva, que reintegrou o país no conjunto de uma
economia mundial reordenada no pós-guerra, reinsere a sociedade
brasileira nos quadros da economia mundial, nos moldes de sua
subordinação estrutural. Reafirma-se, assim, o caminho colonial
das formas de sociabilidade do capitalismo brasileiro, que, desde
suas origens, organizou-se como uma economia complementar dos
centros econômicos ativos ocidentais, tendo sido, num primeiro
momento, forma econômico-social – de caráter histórico-particular
de impulsionamento do processo de acumulação primitiva de
capitais, no período mercantil-escravista e, posteriormente,
exportador de matérias-primas para a produção industrial dos
centros desenvolvidos do capitalismo, ao longo da primeira metade
do século XX
11
.
Ao analisarmos o discurso dos governos brasileiros na década de 90,
podemos constatar claros indícios da subordinação acima referida. Isso fica claro
quando observamos a incondicional aceitação das proposituras defendidas no
Consenso de Washington. Proposituras estas que tinham como prioridade, entre
outras questões, a reestruturação da economia brasileira e a redefinição do papel
regulador do Estado Nacional, cujo posicionamento da FIESP é foco desta pesquisa.
No que diz respeito às privatizações, estas começam a ser levadas a cabo na
gestão Collor. Critérios confusos, valores questionáveis e processos nada
transparentes marcam esse primeiro momento. O processo de venda das estatais
teria uma breve interrupção durante o governo Itamar. Após a posse de FHC, esse
processo seria retomado com toda força, pois, como assinala o economista Reinaldo
Gonçalves, “(...) em um período de três anos (1996-1998) o Brasil experimentou a
intromissão do capital estrangeiro no aparelho produtivo nacional como nunca antes
em toda a sua história”
12
. Sobre o assunto das privatizações, Aloysio Biondi
11
MAZZEO, Antonio C. Sinfonia Inacabada. A política dos comunistas no Brasil. São Paulo:
Boitempo/Unesp Marília Publicações, 1999, p. 107.
12
GONÇALVES, Reinaldo. Globalização e Desnacionalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 14.
22
argumenta que o governo brasileiro privilegiou as empresas estrangeiras, em claro
detrimento dos interesses nacionais
13
.
Fica claro, portanto, que a política econômica do governo brasileiro durante a
década de 1990 estava totalmente subordinada aos padrões de acumulação do
capital internacional.
O primeiro capítulo de nossa pesquisa se destina à análise do processo
histórico da formação econômica do Brasil. Sem nenhuma pretensão de introduzir
novas questões ao debate, procuramos evidenciar como o processo de organização
da economia brasileira deu origem a todo um complexo societário, cujo caráter
subordinado e hiper-tardio de entificação/objetivação do capitalismo origina a forma
de ser e ir sendo do processo sociometabólico no país. Em outras palavras, a
compreensão ontogenética de nossa formação econômica, nos permite perceber
que a debilidade, subordinação e a incompletude da burguesia brasileira – e a
FIESP principalmente – é o produto de relações econômico-sociais historicamente
determinadas.
Para compreendermos, portanto, o processo de nossa formação industrial,
bem como a postura da principal entidade representativa da fração de classe
burguesa que dela se apropria – a FIESP – é preciso, antes de mais nada,
analisarmos a forma como o capitalismo se desenvolve no país.
13
Diz ele que: “Numa sexta-feira, cinco dias antes do leilão de ‘privatização’ da Cemig, (...) o
presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto revolucionário. Por ele, o BNDES ficou
‘autorizado’ a – leia-se ‘recebeu ordens para’ – conceder empréstimos também a grupos
estrangeiros”. Como sabemos, o BNDES foi criado para dar apoio ao desenvolvimento nacional.
Concentrando-se inicialmente ao financiamento de projetos de infra-estrutura e, posteriormente,
como instrumento de política industrial, recebeu a incumbência de criar condições de competição
para grupos nacionais. Porém, esse decreto presidencial “(...) escancarou os cofres do BNDES às
multinacionais, para que comprassem estatais (...). A submissão do governo brasileiro aos interesses
de outros países culminou com esse ‘arrombamento’ do BNDES pelas multinacionais”. BIONDI,
Aloysio. O Brasil Privatizado – Um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 1999, p. 38.
23
O que nos interessa saber é a postura tomada pela burguesia internamente
representada pela FIESP neste processo, prioritariamente, durante a década de
1990.
Não se trata da burguesia brasileira como um todo, mas sim daqueles setores
representados por aquela que é, sem dúvida, a maior instituição representativa
dessa classe no Brasil, a saber, a FIESP.
No segundo capítulo, procuramos analisar o projeto econômico-político que a
entidade propõe ao país na década de 1990. Através da análise de documentos
internos, de declarações veiculadas pela grande imprensa e, principalmente, a partir
de uma leitura imanente do documento Livres para crescer – publicado sob a
responsabilidade da entidade paulista – procuraremos desvendar os nexos de tais
discursos, a lógica que o mesmo obedece e indica como a necessária para a
inserção do país numa nova fase, denominada pelos mesmos – mas não só – como
o “Brasil Moderno”. Importante salientar que tal proposta nasce num contexto
histórico mundial marcado pela revitalização dos pressupostos liberais clássicos –
neoliberalismo – e pelo auge de uma nova fase de internacionalização do capital –
sobretudo do capital financeiro – qual seja, a Mundialização do Capital.
A FIESP congrega atualmente 127 sindicatos – representando,
aproximadamente, 130 mil empresas – e atua como interlocutora junto aos poderes
públicos e à própria sociedade. Administrando um orçamento anual de,
aproximadamente, R$ 918 milhões (2003/04) essa entidade se constituiu ao longo
dos últimos 70 anos, como a principal entidade representativa da burguesia
industrial internamente instalada. Além de ser um “canal de voz” interno, a FIESP se
faz ouvir também em outros países, principalmente nos “parceiros” econômicos do
Brasil no Mercado Comum do Sul – MERCOSUL. Tal relevância deriva, sem dúvida,
24
do fato de a entidade representar a burguesia industrial do mais importante pólo
econômico-social da Federação, o Estado de São Paulo. Com um PIB de US$ 231,
2 bilhões, São Paulo é responsável por 35,5% do Produto Interno Bruto brasileiro e
27% do PIB do MERCOSUL.
Desde sua constituição (1931), a FIESP sempre esteve presente nos
principais acontecimentos da história brasileira. A título de ilustração podemos citar,
já em 1932, a participação na revolta paulista, e do respectivo “contra-Golpe” dos
cafeicultores, em oposição a Vargas. Fez-se presente também – agora do lado do
governo – no Golpe de 1937. Teve presença marcante na organização, e respectiva
participação dos empresários industriais, no Golpe de 1964.
O terceiro capítulo de nossa pesquisa procura refazer o percurso histórico da
FIESP, dando ênfase à presença dessa entidade nos principais embates
econômicos, sociais e políticos, que marcaram a recente história brasileira.
Em outros períodos, como os mencionados acima, mesmo com uma
economia subordinada aos principais centros capitalistas, podemos observar o papel
preponderante que esta instituição desempenhava na definição das diretrizes
econômicas do país, haja vista as décadas de 1950/60, quando da participação de
membros ligados direta ou indiretamente a FIESP, nos principais escritórios de
consultorias e agências estatais. Ao longo da última década, a FIESP, parece vir
lutando, de todas as formas, para angariar algum tipo de benefício, seja ele fiscal ou
de incentivo financeiro. Importante observar que este tipo de reivindicação, marca a
trajetória industrial da entidade desde a sua gênese. Esse aspecto nos fica claro ao
analisarmos declarações de dirigentes dessa entidade, que mais parecem estar
“esperneando” por algum tipo de “proteção” governamental.
25
Já no início do Plano Real, podemos observar que esta tendência é
novamente retomada: “Moreira Ferreira disse que os primeiros 30 dias da nova
moeda revelaram aspectos positivos, mas também alguns equivocados,
especialmente as taxas de juros”. E complementa: “Continuamos achando que a
taxa de juros é elevada, e, apesar da tendência declinante, ainda está em um nível
que pesa muito na atividade produtiva”
14
. São vários os artigos em que as taxas de
juros são questionadas. Em outros momentos reclamam da restrição ao crédito. Em
artigo da Folha de São Paulo, de 29 de novembro de 1995, o então presidente da
FIESP, Carlos Eduardo Moreira Ferreira declara: “Não queremos maracutaia ou
dinheiro público, mas vamos reclamar da manutenção dessa política de restrição ao
crédito e de juros altos por um período mais longo”
15
.
Algumas notícias nos dão uma noção exata do “desespero” de alguns setores
representados por essa entidade. A Folha de São Paulo de 8 de maio de 1996, nos
informa que: “A maioria (61%) dos empresários paulistas apóia uma paralisação
simbólica no país a favor da retomada do crescimento, do combate ao desemprego
e das reformas da Constituição”
16
. Ironia ou não, o fato é que esse setor da nossa
frágil burguesia apela até para práticas que negam a sua própria condição de
classe.
Outra reivindicação da FIESP ao longo dessa década esteve em torno das
reformas constitucionais, mais especificamente da reforma tributária. “Estamos
entrando em um ano eleitoral e provavelmente a reforma tributária seja votada
somente em 1999, com implantação no ano 2000. Essa reforma tem que ser feita
já”, é o que reclama o então presidente da entidade, Horácio Lafer Piva
17
.
14
Folha de São Paulo, 02/agosto/1994.
15
Folha de São Paulo, 29/novembro/1995.
16
Folha de São Paulo, 08/maio/1996.
17
Folha de São Paulo, 02/julho/1997.
26
Do seu lado, o governo sempre se defendeu atacando, dizendo que “(...)
certos setores industriais sempre pleitearam proteção tarifária e favores fiscais e de
crédito para compensar a ‘defasagem cambial’”. Estas palavras são de Gustavo
Franco, então presidente do Banco Central, que completa dizendo que esta “(...)
forma atrasada de produzir riqueza”, sempre foi a prática da FIESP, “’verdadeiro
monumento ao custo Brasil’”
18
.
Entendemos que seja necessário o estudo aprofundado de como o setor da
burguesia internamente instalada representado pela FIESP – a saber, a burguesia
industrial do principal pólo econômico do nosso país – se insere no chamado projeto
modernizador, que se inicia com Collor e é levado a cabo por Fernando Henrique
Cardoso.
O posicionamento que essa fração de classe passa a tomar com o advento
da abertura comercial e financeira de nossa economia, reafirma o caráter incompleto
e débil da burguesia brasileira, posição esta sempre presente na forma de ser dessa
classe no desenvolvimento da processualidade histórica brasileira. Ao apoiar
incondicionalmente o processo de reestruturação implementado na década de 1990,
concluímos que a FIESP atualiza historicamente a subordinação da classe que esta
representa aos pólos centrais do capital, abrindo mão total e definitivamente, de
qualquer possibilidade de desenvolvimento de um capitalismo autônomo, pautado
num possível projeto democrático-nacional.
18
O Estado de São Paulo, 10/março/1999.
27
CAPÍTULO I
DA MISÉRIA ALEMÃ À INDIGÊNCIA BRASILEIRA
1
– NECESSIDADE E
ATUALIDADE DE UMA DISCUSSÃO
I. I - Da relação entre o universal, o particular e o singular - notas introdutórias
A discussão sobre o desenvolvimento econômico e social do Brasil não é algo
novo. A tradição historiográfica brasileira nos oferece várias análises sobre o tema.
O debate sobre o desenvolvimento da processualidade histórica brasileira percorreu
todo o século XX, sendo que muitas divergências originadas de tal debate estão, até
hoje, na ordem do dia. Não temos a pretensão, de forma alguma, de introduzir novas
questões a este debate. No entanto, entendemos ser necessário a devida apreensão
dos processos particulares do desenvolvimento histórico brasileiro, pois este origina
1
Definição utilizada por J. Chasin na década de 1970 para precisar a via particular de objetivação do
capitalismo no Brasil.
28
uma forma sociometabólica
2
específica, sendo que essa especificidade se coloca
como o condicionante do complexo de complexos particular da teia social de nosso
país.
Orientamos nosso trabalho nessa direção por entendermos que, por mais rico
que tenha sido o debate acima mencionado muitas das análises carecem de
validade real/concreta, pois na ausência de um instrumental teórico que as
conduzissem, criaram “pressupostos ideais” (modelos de análise de tipo Weberiano)
que não deram e não dão conta da real completude da particularidade brasileira.
Sobre a relação entre universalidade, particularidade e singularidade Georg
Lukács faz o seguinte alerta: “Se não distinguirmos, pelo menos em certa medida,
essas categorias, se não as delimitarmos reciprocamente e não adquirirmos certo
conhecimento da mútua superação de uma na outra, ser-nos-á impossível
orientarmo-nos na realidade, ser-nos-á impossível uma praxis, mesmo no sentido
mais cotidiano da palavra”
3
, ou seja, a devida apreensão, em nível lógico abstrato,
dessas três dimensões do real, pode nos proporcionar uma melhor compreensão
dos processos históricos concretos, pressuposto esse essencial para uma atuação
política (individual/coletiva) revolucionária.
Essa discussão é sem dúvida, uma das questões centrais de nosso trabalho.
Compreender a real dimensão da totalidade brasileira, bem como a particularidade e
as singularidades que as formas capitalistas assumem em sua constituição, pode
nos isentar de equívocos teóricos que outras análises cometeram ao tentarem
compreender a realidade econômico-política de nosso país.
2
Entendido como uma forma específica de organização material e espiritual da objetividade histórica,
cujo caráter dinâmico cria e recria, simultaneamente, tal realidade, obedecendo a características
próprias e imanentes, que devem ser – necessariamente – levadas em conta na análise do sistema
social do capital. Ver fundamentalmente: MÉSZÁROS, 2002.
3
LUKÁCS, Georg. Introdução a uma Estética Marxista - Sobre a particularidade como categoria da
estética, 2ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 5.
29
Segundo Caio Prado Júnior, em A Revolução Brasileira
4
, a teoria da
revolução brasileira desenvolvida pelos marxistas estaria fadada ao fracasso desde
sua criação, justamente pela incapacidade e insuficiência da análise sobre o real
desenvolvimento histórico em nosso país. As propostas da esquerda brasileira que
resultam de tais análises, se basearam em abstrações, em modelos e conceitos
formulados a priori, como verdadeiras construções mentais, desconexas da
realidade, sendo que essa – a realidade concreta – é inserida posteriormente ao
processo, de forma comparativa, muito mais próxima das análises weberianas do
que do arcabouço teórico do próprio Marx. O autor ainda afirma que as práticas
políticas que resultaram dessa orientação teórica equivocada, bem como o peso
negativo de tais formulações, podem ser observadas até o momento em que tal texto
fora publicado - 1966, como apontado no rodapé
5
.
José Chasin, seguindo o mesmo diapasão de Caio Prado, aponta para dois
tipos de erro; de um lado aqueles que, por não compreenderem o que vem a ser o
caráter universal do capitalismo, criam um “aglomerado de leis gerais” facilmente
aplicáveis a qualquer processualidade histórica; de outro, aqueles que privilegiam as
singularidades, sem conectá-las com a totalidade, criando assim uma análise
empírica e simplificadora de tais processos. Essas categorias, em ambas as
análises, não se relacionam reciprocamente, ou simplesmente não existem. O
“vácuo” criado entre universal e singular nunca poderá ser preenchido por tais
análises, pois lhes falta a real dimensão da particularidade ontogeneticamente
constituída do caso brasileiro, “(...) o problema fundamental de colher, à maneira
4
PRADO JR, Caio. A Revolução Brasileira. 2ª edição, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1966, p. 33, 34.
5
PRADO JR., 1966, p. 33-35. “Mas até hoje pesa ainda consideravelmente na maneira como se
interpreta a realidade econômica, social e política brasileira. Pesam negativamente, embaraçando
qualquer tentaiva de verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração científica. (...) A teoria da revolução
brasileira (...) se transmitiu assim com todas suas grandes falhas e sem nenhuma revisão radical que
se fazia tão necessária.” Ousaríamos dizer, mesmo correndo o risco a que toda simplificação está
sujeita, que tais observações são extremamente atuais, mesmo depois de passados quase quarenta
anos.
30
dialética, a entificação do capitalismo no Brasil diz respeito à questão dos
particulares (...)”
6
.
Toda essa discussão nos remete a problemática das “vias nacionais” de
desenvolvimento capitalista.
I.II – As vias nacionais de entificação/objetivação capitalistas: “clássica”,
“prussiana” e “prussiano-colonial”
As sumárias observações acerca da relação entre o universal, o particular e o
singular que tecemos acima nos permite constatar e afirmar alguns pressupostos
que devem orientar nossa análise no estudo da FIESP.
Ao salientarmos a necessidade da real compreensão da particularidade
histórica brasileira, estamos afirmado, antes de mais nada, que a forma pela qual o
modo de produção capitalista
7
se desenvolve no Brasil possui características
6
CHASIN, J. “A ‘Politização’ da Totalidade: Oposição e Discurso Econômico”, in Temas, v. 2, São
Paulo, Grijalbo, 1977, p. 151 e 152. “De uma parte, o insatisfatório entendimento do que venha a ser
o caráter universal do fenômeno capitalista, conduziu a refletir simplesmente com atributos e leis
genéricas, e a ‘constatar’ a ocorrência necessária destes a qualquer custo, no interior das fronterias
nacionais. Assim, preservaram-se universais, mas não na condição de universais concretos, e, muitas
vezes, singularidades reais foram perdidas. De outra parte, uma forma de incorreção mais recente
tem hiper-acentuado as singularidades, mas, tomando-as simplesmente como dados empíricos, isto
é, despojadas por inteiro de qualquer espessura ontológica (espessura que, sob feição avariada e
debilitada, não importa, restava, ainda assim, no caso anterior), faz com que a universalidade
concreta seja completamente diluída. E a relação entre universal e singular, aí, se mostra como uma
relação entre categorias exteriores uma a outra, como a subsunção de um amontoado de notas
empíricas a um princípio geral”. Sendo assim, conclui que, “(...) enquanto a primeira forma de
incorreção acentua o universal e tende a perder o singular, a segunda acentua o que tema pela
singularidade e perde completamente o universal. Observa-se, pois, que a lógica destes dois casos
manobra na polaridade entre universal e singular, entre os quais habita puramente o vácuo. Numa
linguagem lukacsiana, dir-se-ia estar face a teorias fetichizadas, na medida que lidam exclusivamente
com as categorias de universalidade e singularidade, eliminando ou não reconhecendo exatamente a
categoria da particularidade (...)”. Ainda sobre a relação Universal/Particular/Singular cf. MAZZEO,
1999, p. 108 e 109.
7
“Tudo considerado, não se está, em face do conceito de modo de produção, como diante de um
quadro sinótico, rígido na sua unidirecionalidade achatada de uma só dimensão, mas diante de uma
31
específicas, particularidades próprias, que na sua relação com a totalidade do
processo histórico, engendrará uma forma específica de ser (singular) de
sociabildade em nosso país, tanto na esfera econômica, como na esfera político-
social
8
.
Essa totalidade não pode ser tomada como pressuposto que se impõe
abstratamente; não deve de forma alguma ser desvinculada do mundo real/concreto
dos seres humanos, bem como das conseqüências de suas ações, nas palavras de
A. C. Mazzeo: “A totalidade, é muito mais que um devir arbitrário”. Ou seja, ela - a
totalidade - é produto/produtor da ação concreta dos Homens, no mundo concreto,
ou ainda síntese de múltiplas determinações. Citando Lucáks, Mazzeo ainda nos
oferece a seguinte contribuição:
(...) é uma sucessão de encadeamentos ordenados, de
determinações que contêm equilíbrios estruturais, regulados pela
temporalidade e dinâmica que a história engendra, regida por leis
próprias que indicam as grandes tendências gerais das
transformações. Por essa razão, para apreendê-la da maneira mais
global, devemos remontar às suas determinações fundamentais.
Marx, ao propor o estudo de uma formação social, e, como exemplo,
o fez tomando por base sua população, mostrou que devemos partir
‘(...) dos elementos abstratos lentamente obtidos para voltar a fazer
a viagem de modo inverso, chegando novamente à população, mas
dessa vez não como uma representação caótica do todo, porém
como uma rica totalidade de determinações e relações diversas.
Desse modo, é a própria essência da totalidade econômica que
prescreve o caminho a seguir para conhecê-la.’ (...)
9
.
Portanto, para chegarmos às determinações fundamentais da
processualidade histórica brasileira é preciso, antes de mais nada, percorrer em
totalidade anatonicamente ordenada e em processo, apta e obrigada a colher o particular concreto”.
CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado - Forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio.
São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1978,p. 621.
8
Sobre a anatomia política e a atuação do Estado no desenvolvimento do capitalismo das economias
nacionais cf. MÉSZÁROS, 2002, Parte I – A sombra da incontrolabilidade – (toda). NETTO, José P.
Notas sobre democracia e transição socialista, in: NETTO, José P. Democracia e Transição Socialista
- Escritos de teoria política, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990, p. 72/74.
9
LUKÁCS, G. Ontologia dell’essere sociale. Roma, Ed. Riuniti, 1976, vol. 1, p. 285. Apud, MAZZEO,
Antonio C. Estado e Burguesia no Brasil - Origens da autocracia burguesa. Belo Horizonte, Oficina de
Livros, 1989, p. 73.
32
retrospectiva o caminho (via) que a sociedade brasileira percorreu rumo a entificação
capitalista, bem como, estabelecer as devidas distinções entre o caso brasileiro e os
casos de via clássica e de via prussiana. Contextualizada historicamente, a forma
específica do desenvolvimento capitalista em nosso país criou uma forma de
sociabilidade também específica, que possui uma “legalidade imanente”, com
contornos ontológicos de processos particulares, “socialmente determinados, (...)
como totalidade articulada por infinitas complexidades, levando em conta que os
complexos sociais possuem legalidades objetivas, na qual seus elementos
constitutivos, enquanto essências ontológicas próprias, conformam-se em outros
processos que são as categorias (...)”
10
.
O Capitalismo, enquanto modo de produção historicamente determinado,
possui características gerais próprias, uma determinada “legalidade imanente”, se
constituindo como “totalidade articulada por infinitas complexidades”. Porém, no
espaço das fronteiras nacionais, este se consolida de maneira específica, o que nos
obriga a apontar as diferentes formas de entificação do mesmo
11
.
Dessa forma, seguindo a orientação teórica iniciada com Karl Marx e Friedrich
Engels, podemos apontar para três tipos particulares de vias de
entificação/objetivação do capitalismo: a “via clássica”, a “via prussiana” e a “via
prussiano-colonial”
12
.
10
MAZZEO, 1999, p. 109.
11
“(...) compreender os diferentes movimentos nacionais pressupõe analisar as diferentes vias de
objetivação do capitalismo.”. RODRIGUES, M. A. Borges. Particularidade e Objetivação do
Capitalismo. in: Nova Escrita Ensaio, nº 7 , São Paulo: Ed. e Livraria Escrita, 1980, p. 70. Ver também
MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha, in: Obras Escolhidas - vol. 2, São Paulo, Alfa Ômega, p.
221, quando esse afirma: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista (...) mais ou menos
modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país (...) o ‘Estado atual’ se
modifica com as fronteiras de cada país”.
12
A conceituação acerca da forma particular de desenvolvimento do capitalismo no Brasil vai ganhar
contornos acadêmicos a partir da década de 1940 com Caio Prado Júnior. Autores como Carlos
Nelson Coutinho, José Paulo Netto e José Chasin vão contribuir de maneira decisiva - principalmente
33
I. II. I – O capitalismo nos países de “via clássica”
Iniciemos, pois, com os casos de “via clássica”. Encontramos essa forma de
desenvolvimento do capitalismo em três países: Inglaterra, Estados Unidos e
França. A denominação “via clássica” não está condicionada a fatores temporais, ou
seja, não diz respeito à ordem cronológica dos acontecimentos. Como nos aponta J.
Chasin “(...) clássicos, acima de tudo, porque mais coerentes, mais congruentes ou
consetâneos, a nível de sua própria totalidade, enquanto totalidade capitalista, na
qual as diferentes partes fundamentais imbricam entre si e em relação ao todo de
forma mais amplamente orgânica, de maneira que o real se mostra como racional, a
nível da máxima racionalidade historicamente possível”
13
. Trata-se na verdade,
daqueles casos onde as antigas estruturas sociometabólicas do feudalismo foram
superadas através de processos históricos democrático-revolucionários, onde a
supremacia do modo de produção capitalista é consolidada de maneira radical,
tendo a burguesia como principal agente de tais processos. Marx e Engels já na
primeira parte do Manifesto do Partido Comunista, destacam esses processos:
Cada etapa do desenvolvimento da burguesia foi acompanhado de
um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo
despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria
na comuna; aqui, república urbana independente (...), ali, terceiro
estado, tributário da monarquia (...); depois, no período
manufatureiro, servindo à monarquia semifeudal ou absoluta como
contrapeso da nobreza e, de fato, como pedra angular das grandes
monarquias em geral, a burguesia, desde o estabelecimento da
na década de 1970 - para esse debate, cabendo a este último a definição do conceito de “Via
Colonial”, como categorização da particularidade brasileira. No entanto, em fins dos anos 1980,
Antonio Carlos Mazzeo nos apresenta uma contribuição também importante quando observa
precisamente que, assim como os outros países da América, o Brasil também se constitui como
colônia na fase mercantil-capitalista, porém, a forma como as relações econômico-políticas se
desenvolvem em nosso país, não são idênticas aos dos outros países americanos. Sendo assim,
acrescenta (e como veremos à frente não se trata apenas de mudar o léxico) ao conceito de via
colonial o termo prussiano.
13
CHASIN, 1977, p. 154. Grifos do autor.
34
grande indústria e do mercado mundial, conquistou finalmente a
soberania política exclusiva no Estado representativo moderno
14
.
Observamos então nos países da “via clássica” que as proposituras
econômico-políticas da burguesia - que nesse momento possuía um caráter
extremamente revolucionário - se colocam como o historicamente novo em
contraposição às antigas estruturas feudais; essa contraposição será levada a
termos finais pela burguesia, ou seja, como classe revolucionária, esta se apoiará na
força de outras classes expropriadas (trabalhadores em geral, pequenos
proprietários de terras etc) e conduzirá – principalmente através de movimentos
nacionais – a superação/supressão do historicamente velho.
Importante ressaltar que, nos países onde esses movimentos ocorreram, a
participação popular é direta e de grande valia para que os objetivos da burguesia
sejam alcançados
15
. Nesses países, os interesses da burguesia industrial – o
verdadeiro capitalismo segundo Marx – vão predominar num primeiro momento.
Interesses estes que irão resultar no grande avanço da indústria em seus
respectivos territórios, observados principalmente nos século XVIII e XIX.
14
MARX & ENGELS, “O Manifesto Comunista”, in: Cartas Filosóficas e Outros Escritos, São Paulo,
Grijalbo, 1977, p. 86, Apud, in, op. cit. Rodrigues, 1980, p. 71.
15
Toda a discussão sobre o processo revolucionário em Inglaterra, França e Estados Unidos, pode
ser encontrado em ENGELS, F. “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, in: Marx e Engels -
Obras Escolhidas - vol. 2, São Paulo, Alfa-Omega, s/d. HILL, C. A Revolução Inglesa de 1640.
Lisboa, Presença, 1977. MARX, K. O 18 Brumário, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997,principalmente
o prefácio de Engels a 3ª edição alemã quando ao se referir à luta de classes na França, afirma que
este “(...) é o país onde, mais do que em qualquer outro lugar, as lutas de classe foram sempre
levadas à decisão final, e onde, por conseguinte, as formas políticas mutáveis nas quais se
processam estas lutas e nas quais se condensam seus resultados tomam os contornos mais nítidos”,
op. cit. Marx, 1997, p. 17/18. MARX, K. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel -
Introdução. Edições 70, Lisboa, 1975, p. 90. LÊNIN, V. I. “El Programa Agrário de la
Socialdemocracia en la Primera Revolucion Rusa de 1905-1907”, in: Obras Completas. Moscou:
Editora Progreso, 1983, tomo XVI, p. 263-267. LÊNIN, V. I. “Las Tres Fuentes y las Tres Partes
Integrantes del Marxismo”, in: Obras Completas. Moscou: Editora Progresso, 1984, tomo XXIII, p.
16,17. LÊNIN, V. I. “La Revolucion Socialista y el Derecho de las Naciones a la Autodeterminacion”,
in: Obras Completas. Moscou: Editora Progresso, 1984, tomo XXV, p. 163,164. RODRIGUES, 1980,
p. 70-72.
35
I. II. II – O capitalismo nos países de “via prussiana”
Nos países de “via prussiana”
16
, a entificação/objetivação capitalista se dá de
maneira bem distinta. Nestes países – e o principal exemplo é o caso alemão – a
industrialização ocorre tardiamente; a inexistência de uma burguesia revolucionária
se faz perceber explicitamente, pois esta se concilia com o historicamente velho;
além de se conciliar com o “atraso”, o faz através de um reformismo “pelo alto” o que
imprime ao processo seu caráter “retardatário”, “retardado” e “reacionário”; esse
“conchavo” deve ser explicado a partir da fragilidade da burguesia alemã, pois esta,
impossibiltada de levar à frente seu projeto de maneira autônoma se associa
subordinadamente aos junkers (antigos proprietários de terra). Nesse processo, as
classes expropriadas – principalmente o proletariado – são excluídas, e toda vez
que, de alguma forma, tentam participar do processo político, sofrem as
consequências repressoras da ação policialesca que o Estado passa a assumir
17
.
Já afirmamos anteriormente que as especificidades não se condicionam ao
plano da temporalidade histórica, portanto há toda uma processualidade que faz
com que essas singularidades assumam tais contornos particulares, ou dito de outra
forma, as expressões “capitalismo tardio”, postura burguesa “retardatária” ou
“incompletude” histórica, expressam formas de ser específicas, que constituem toda
16
Nunca é demais lembrar que devemos essa conceituação a Lênin, que também a caracteriza como
a “segunda época do capitalismo”.
17
Segundo CHASIN, 1978, p. 619, é próprio da “via priussiana, (...) a conciliação entre o
historicamente velho e o historicamente novo, de tal forma que o novo paga pesado tributo ao velho,
no seu processo de emerção e vigência, o confronto entre as componentes agrária e industrial do
modo de produção capitalista, (...) teria forçosamente que assumir modalidade específica; digamos
assim, formas abrandadas e veladas”.
36
a malha do complexo de complexos da particularidade dos países de “via prussiana”,
em específico aqui o caso alemão.
A seguir procuraremos destacar os aspectos decisivos que constituem
ontologicamente a “via prussiana” na particularidade alemã. Enquanto nos países de
“via clássica” o capitalismo já se encontra plenamente constituído, engendrando e
explicitando todo tipo de contradições entre o proletariado e a burguesia; enquanto
esta mesma classe social esgota todo seu potencial revolucionário - pois alcança
seu limite histórico de classe burguesa, e suprerá-lo significaria superar sua própria
condição de classe - adotando uma posição política de conservação dos seus
interesses (de classe); enquanto toda a Europa serve de “palco” a uma nova fase de
luta entre classes sociais distintas e antagônicas, luta essa que anunciou o
“desabrochar” de novas flores que dariam início a uma nova “primavera” - a
Primavera dos Povos; enquanto os gritos e os tiros dos comunardos parisienses faz
ecoar a voz e a luta do proletariado por todo o ocidente; enquanto isso, os alemães
lutam por sua unificação nacional.
18
Não se trata aqui de desqualificarmos qualquer tipo de luta empreendida
pelos trabalhadores daquele país. No entanto, os desdobramentos de tal processo,
vão indicar para a constituição de uma classe burguesa extremamente “fragilizada”,
bem como, para sua “incompletude”. Incompletude essa que lhe permite realizar
“apenas as tarefas econômicas”, sendo que as “tarefas políticas” ficaram à cargo dos
antigos proprietários de terra, que na época da unificação da Alemanha mantinham
relações de caráter feudal em suas propriedades.
18
Todo essa processualidade histórica é conceitualizada por Georg Lukács como Miséria Alemã, que
segundo José Chasin, “foi o autor que mais se ocupou, nesse século (XX), do estudo da
particularidade alemã”. Os conceitos que aqui utilizamos para explicitar o caso alemão são de autoria,
quase que em sua totalidade, desse autor, sendo que algumas de suas contribuições para o caso
alemão podem ser encontradas em: LUKÁCS, G. Goethe Y Su Epoca. Barcelona: Grijalbo, 1968, p.
54-68, e principalmente: LUKÁCS, G. El Asalto a la Razon. Barcelona: Grijalbo, 1968, p. 29-74.
37
As observações de Engels acerca de As Guerras Camponesas na Alemanha,
nos oferecem grandes esclarecimentos nesse sentido:
O ano de 1866 não modificou (em) quase nada as condições sociais
da Alemanha. As escassas reformas burguesas - o sistema único de
pesos e medidas, a liberdade de residência, a liberdade de
(instalação da) indústria, etc -, todas elas limitadas aos marcos
assinalados pela burocracia, não chegam ao alcançado desde há
muito tempo pela burguesia de outros países da Europa ocidental e
deixam intacto o mal principal: o sistema de tutela burocrática. Além
do mais, a prática policialesca em uso tornou completamente
ilusórias para o proletariado todas essas leis sobre a liberdade de
residência, o direito a cidadania, a supressão dos passaportes, etc
19
.
Engels ainda argumenta que na Alemanha - assim como em outros países - a
burguesia percebe a movimentação e a força revolucionárias do proletariado. Nesse
momento, alia-se aos antigos proprietários de terra, remanescentes do período
feudal, que controlavam toda a burocracia estatal. Quando falamos em “pagar alto
tributo ao historicamente velho”, estamos nos referindo a esse tipo de articulação
política, pois ao se “vender” politicamente à ação policialesca do Estado, a burguesia
assume uma postura de conservadorismo e até retrocesso, pois fica subordinada e
atada às amarras que tal estrutura político-institucional estabelece. Nos dizeres do
próprio Engels:
(...) E a partir desse momento cai embotado o fio da ação política da
burguesia alemã. Esta se empenhou em buscar aliados e a vender-
se por qualquer preço; e a partir de então não tem avançado um só
passo. Todos esses aliados são essencialmente reacionários: o
Poder real, com seu exército e sua burocracia; a grande nobreza
feudal; os junkers provincianos (...) e, finalmente, os curas. (...) até
que, por último, não lhe sobrou já nada com que (possa) negociar
20
.
Portanto, podemos concluir que nos países caracterizados pela “via
prussiana” de entificação/objetivação capitalista não há, inicialmente, nenhum tipo
de ruptura entre o historicamente novo e o historicamente velho, sendo que o novo
19
ENGELS, F. Las Guerras Campesinas en Alemania - Prólogo a la Segunda Edición, 1870, I.
Editorial Andes, Buenos Aires, 1970, p. 22.
20
ENGELS, 1970, p. 24.
38
não rompe, pelo contrário, permanece subordinado politicamente ao velho, como
forma de garantia de seus interesses econômicos.
A forma pela qual o liberalismo se expressará na Alemanha assume, assim,
contornos conservadores, pois a aliança conciliatória entre a frágil e incompleta
burguesia alemã e a antiga nobreza proprietária de terras, permitirá um
desenvolvimento industrial tardio, levado a cabo durante o século XIX –
desenvolvimento este que permite, inclusive, a posterior superação da condição
subordinada desta burguesia.
No entanto, o caráter conservador do liberalismo se faz presente quando se
leva em conta que, nos países de “via clássica” a ideologia liberal expressa uma
forma de ser totalmente nova e revolucionária de uma classe, levando inclusive a
libertação do “camponês das cadeias da servidão feudal”; já na Alemanha, essa
mesma forma de ser assume outros contornos, determinados pelas contingências
históricas do período, quais sejam, a do esgotamento – também histórico – das
proposituras liberais, haja vista os já mencionados movimentos revolucionários
desencadeados, principalmente na França durante o século supra-citado, o que leva
não a superação, mas sim a transformação da servidão feudal em “grilhões
capitalistas”.
Não se trata, porém, de tomarmos o liberalismo como uma ideologia de
manipulação, utilizada pela burguesia de acordo com seus interesses. O caráter
multifacetário do liberalismo, expressa sua ambigüidade de acordo com a
concretude do momento histórico analisado: “Localizando-o em sua historicidade
concreta é que percebemos por que o liberalismo apresentou-se como
revolucionário e conservador, subversivo e conformista”
21
.
21
MAZZEO, 1989, p. 110-113.
39
I. II. III – A entificação/objetivação do capitalismo na processualidade histórica
brasileira: o caminho “prussiano-colonial”
Passemos agora ao caso brasileiro. O Brasil “surge” para o mundo ocidental
no último ano do século XV, quando os portugueses anunciam a ocupação e a
posse do território. Durante as três primeiras décadas do século seguinte, a
colonização se restringiu ao reconhecimento da costa e ao estabelecimento de
algumas feitorias ao longo do litoral brasileiro; estas foram criadas para armazenar o
Pau-brasil e os produtos nativos - os chamados produtos tropicais - que eram
extraídos pelos índios em troca das mais variadas quinquilharias.
A partir do terceiro decênio do século XVI surge a real necessidade de ocupar
as terras brasileiras, decorrência da ameaça de “invasão” do território por outros
povos, tais como franceses e ingleses, e da crise econômica que a coroa portuguesa
passa a enfrentar devido à progressiva perda do monopólio comercial com o oriente
Índias Orientais. A questão que se coloca é a da forma de ocupação. Como ocupar
de maneira economicamente rentável um litoral tão extenso? Para todos os efeitos o
interior do território ainda não era conhecido.
A saída encontrada para tal problema se encontrava no modelo de ocupação
implantado em outras colônias portuguesas (Madeira e Cabo Verde). Dividiu-se a
costa brasileira em “doze setores lineares com extensões que variavam entre 30 e
60 léguas”. Esses setores - chamados capitanias - foram doados a titulares que
“gozarão de grandes regalias e poderes soberanos”, os donatários.
40
A produção agrícola se pautou na exploração monocultora da cana-de-
açúcar, cultivada em grandes plantações, os latifúndios. Além do clima e do solo
favorecerem esse tipo de gênero agrícola, outro fator era preponderante: a grande
rentabilidade que se exigia da produção colonial. Como nos aponta Caio Prado
Junior,
A grande propriedade será acompanhada no Brasil pela monocultura;
os dois elementos são correlatos e derivam das mesmas causas. A
agricultura tropical tem por objetivo único a produção de certos
gêneros de grande valor comercial, e por isso altamente lucrativos.
(...) É fatal portanto que todos os esforços sejam canalizados para
aquela produção; mesmo porque o sistema da grande propriedade
trabalhada por mão-de-obra inferior (escrava), como é a regra nos
trópicos, e será o caso no Brasil, não pode ser empregada numa
exploração diversificada e de alto nível técnico
22
.
Para completar tal quadro de colonização, a mão-de-obra indígena foi,
gradativamente, sendo substituída pela mão-de-obra do negro africano. Os índios
passam a se tornar arredios à divisão do trabalho sistematizado, imposto pelo
colonizador branco. Mesmo com sua “natureza nômade”, conseguiram se adaptar a
extração esporádica do pau-brasil; no entanto, não suportaram a “disciplina, o
método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a agricultura”
23
.
A postura do colonizador diante da resistência foi a escravização do indígena, que
de fato aconteceu em algumas regiões até o final do período colonial, porém, não
sem uma forte resistência dos nativos. Diante dessa dificuldade de obtenção da
mão-de-obra internamente, buscou-se a saída na escravização de populações de
estrangeiros, no caso, o negro africano
24
.
Estavam criados então, os pilares da ocupação e da colonização do território
brasileiro: uma ocupação baseada na exploração monocultora dos latifúndios, que
utiliza a mão-de-obra escrava (seja ela indígena, seja ela negra) na produção de
22
PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense, 1994, 41ª ed, p.
31/37. Os itálicos e o parêntese são nossos.
23
Ibidem, p. 35.
24
Ibidem, p. 37.
41
gêneros agrícolas de alta rentabilidade - inicialmente a cana-de-açúcar - que,
invariavelmente, eram destinados aos grandes centros econômicos do período, o
mercado europeu
25
.
No que diz respeito à organização política do território, esta ficará sob a
responsabilidade dos donatários. Esses recebiam a posse das capitanias através de
documentos (Cartas de Doação) que lhes davam o direito de distribuir e legislar seus
respectivos territórios (Foral). Importante salientar que essa classe de proprietários
que se estrutura na colônia assume, desde a origem, feições capitalistas, haja vista
que toda a produção colonial estava inserida no contexto de exploração comercial,
cujo centro propulsor era a economia européia. Desde sua gênese, portanto, se
constitui como uma burguesia agrária ligada diretamente à atividade mercantil
mundial.
Essa breve descrição do período inicial da colonização do território brasileiro
já nos dá algumas indicações da forma pela qual o Brasil se insere no contexto da
divisão internacional do trabalho do século XVI, qual seja, a de apêndice produtor
integrado de forma subordinada aos grandes centros da economia mundial, com a
função exclusiva de fornecedor de gêneros tropicais e agrícolas de alto valor
comercial.
É importante observar que, nessa fase do desenvolvimento do Capital, a
forma universal capitalista ainda não se manifesta hegemonicamente, porém já
começa a subordinar as antigas formas de produção – agricultura, manufatura, mão
de obra e comércio – lhes imprimindo, progressivamente, um novo caráter. Mas o
que isso significa propriamente?
25
Vale acrescentar que os recursos financeiros para tais investimentos agrícolas nessa primeira fase,
eram vultuosos, e foram levantados principalmente em Portugal e na Holanda (principalmente
banqueiros judeus). Ibidem, p. 32.
42
Esse é o momento de desagregação de uma forma sociometabólica
específica, o modo de produção feudal. É da crise desse sistema, e das
contradições que essa engendra, que irão ser criadas as bases econômicas e
sociais de uma nova particularidade – o capitalismo industrial. Essa fase
corresponde ao momento da acumulação primitiva de capitais, que serviria,
posteriormente, como arrimo econômico da burguesia para suas investidas
revolucionárias, e correspondente tomada do poder político, nos países de “via
clássica”.
Todas as formas produtivas nesse período não se constituem como formas
capitalistas. Porém, o processo de valorização das mercadorias (inclusive da
mercadoria força-de-trabalho) converte-se em instrumento do próprio processo de
valorização e auto-valorização do capital, ou como nos aponta Karl Marx: “O
processo de trabalho converte-se em instrumento do processo de valorização, do
processo de autovalorização do capital – da fabricação da mais-valia. O processo de
trabalho é subsumido ao capital (é seu próprio processo), e o capitalista se enquadra
nele como dirigente, condutor; para este, é ao mesmo tempo, de imediato, um
processo de exploração de trabalho alheio”
26
. Essa é uma característica essencial
dessa fase de desenvolvimento do Capital, a qual Marx vai denominar subsunção
formal do trabalho ao capital.
Nessa processualidade todas as formas produtivas pré-existentes e não
específicas ao capitalismo, são subsumidas (ou subordinadas) ao Capital. A partir de
então a força de trabalho é separada, progressivamente, de seus meios de trabalho;
o antigo camponês passa a ser desvinculado da terra e de suas ferramentas, o
artesão passa a possuir apenas sua mão-de-obra para, “livremente”, vende-la à
26
MARX, Karl. O Capital – Livro I – Capítulo VI (inédito). São Paulo: Livraria Editora Ciências
Humanas Ltda, 1978, p. 51.
43
burguesia, esta agora proprietária privada dos meios de produção e circulação –
terras, oficinas artesanais, comércio, etc – numa clara oposição entre aqueles que
produzem e aqueles que se apropriam – de forma privada – do produto do trabalho
alheio
27
.
É nesse contexto que se insere o processo de colonização do Brasil. Toda a
estruturação da empresa colonial aqui instalada só pode ser entendida se levarmos
em conta os “mecanismos” dessa fase de subsunção formal do trabalho ao capital.
Só assim podemos entender o porque da divisão do território em grandes
propriedades de terras; o porque da utilização da mão-de-obra escrava (reativando
uma antiga forma de força-de-trabalho). O trabalho escravo, nesse contexto, é força
de trabalho que “valoriza e auto valoriza” o processo de produção do próprio capital.
Isso ocorre devido à necessidade que o próprio processo de produção do
capital possui de se assentar em formas de trabalho preexistentes – sejam elas
quais forem. Ou seja, o Capital como uma nova forma sociometabólica, inserida num
determinado processo particular de constituição histórica, se assenta e se sustenta
em formas econômicas e sociais já existentes, ou até mesmo “reinventa” formas
extintas, que não são as formas particulares do capitalismo. O novo elemento que se
coloca agora, é o fato de essas formas antigas estarem a “serviço” e subsumidas ao
processo de valorização do capital. Nos dizeres do próprio Marx:
(...) Pelo contrário, faz parte da natureza da questão o fato de que a
subsunção do processo de trabalho ao capital se opere à base de
um processo de trabalho preexistente, anterior a essa subsunção ao
capital, e que se configurou à base de diferentes processos de
produção anteriores e de outras condições de produção; o capital se
subsume a determinado processo de trabalho existente, como, por
exemplo, o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura
27
“Quando o camponês, antes independente e que produzia para si mesmo, se torna diarista e
trabalha para um agricultor; quando a estrutura hierárquica característica do modo de produção
corporativo desaparece ante a simples oposição de um capitalista que faz trabalhar para si os
artesãos convertidos em assalariados; quando o escravista de outrora emprega seus ex-escravos
como assalariados etc, temos então que processos de produção determinados socialmente de outro
modo se transformaram no processo de produção do capital” (Ibidem, p. 51).
44
correspondente à pequena economia camponesa autônoma. Se
nesses processos de trabalho tradicionais, que ficaram sob a
direção do capital, se operam modificações, estas só podem ser
conseqüências paulatinas da subsunção de determinados processos
de trabalho tradicionais ao capital
28
.
Compreendemos, portanto, como o Capital, no seu processo de constituição,
engendra-se a partir de formas preexistentes de produção e, no seu ciclo de auto
valorização, subordina essas formas anteriores ao seu próprio processo. A esse
respeito Mazzeo afirma que: “O caráter universal da produção de amoldar-se as
diversas situações concretas é ressaltado por Marx, quando afirma que a produção
não é somente particular. Ao contrário, é sempre um organismo social determinado,
um sujeito social que atua em um conjunto mais ou menos grande, mais ou menos
pobre de ramos de produção, quer dizer, a produção socialmente dada articula-se
com formas particulares socialmente dadas de produção. A produção capitalista, ao
reproduzir sua própria existência de forma contínua, desintegra, reintegra ou cria
novas realidades (particularidades) para se auto-repor”
29
.
A economia brasileira se estrutura, portanto, inserida nesse processo de
subsunção formal do trabalho ao capital
30
. Nunca é demais lembrar que, a posição
que o país ocupa no interior da divisão internacional do trabalho no período da
28
MARX, 1978, p. 54.
29
MAZZEO, 1989, p. 72.
30
Toda a contextualização histórica da constituição da economia colonial brasileira se faz necessária
justamente para não incorrermos em equívocos analíticos já apontados por outros autores, entre eles
Caio Prado. Ao criticar a teoria da revolução brasileira, Prado chega a afirmar que não há nada mais
estranho à teoria de Marx, do que a idéia evolucionista na qual se baseava a esquerda brasileira.
Essa análise – equivocada – do caso brasileiro seria o pressuposto para teorias que defendiam – e
ainda defendem - a idéia de estruturas feudais no Brasil, que precisariam ser superadas por uma
revolução de caráter burguês, para somente então, se iniciar uma luta proletária pelo poder
. PRADO
JR., 1994, p. 42-44. A tese da revolução por etapas foi defendida pelo PCB até 1992. Além de Prado,
o debate sobre o “modo de produção escravista colonial” no Brasil, conta com a importante análise de
Mazzeo que, a partir do diálogo intelectual com Décio Saes, Jacob Gorender e Flamarion Cardoso,
analisa a particularidade histórica brasileira, demonstrando os equívocos de se inserir o Brasil num
modo de produção específico – o escravista colonial. MAZZEO, op. cit., todo o capítulo II: A formação
social colonial como particularidade histórica, p. 55-85.
45
acumulação primitiva de capitais é a de economia subordinada e atuando como
apêndice complementar às economias centrais européias.
Pois bem, essa forma particular de constituição econômico-social engendrará
uma forma também particular de organização política. O processo de constituição do
Estado nacional brasileiro só pode ser entendido se levado em conta tais
particularidades. Os movimentos nacionais pela emancipação política do Brasil,
configuram-se no interior e inseridos no processo específico de entificação do
capitalismo em nosso país, qual seja, uma forma particular cuja característica
principal é o seu caráter de extração colonial.
Para elucidarmos o anteriormente afirmado se faz necessário, antes de mais
nada, uma breve descrição dos fatos.
A transferência da Corte Portuguesa em 1808 para o Brasil inaugura um novo
momento na vida política do país. As contingências históricas européias – Invasões
Napoleônicas – vão fazer com que a família real portuguesa passe a governar todos
os seus territórios do interior de uma de suas colônias. Importante notar que o fato
de o Brasil ter sido transformado na sede da monarquia portuguesa não foi
ocasional. Desde o século XVIII a economia brasileira havia se transformado no
principal sustentáculo do Império Português, que se encontrava em plena crise,
sendo esta reflexo não só das arcaicas estruturas políticas portuguesas, mas
também determinada pela respectiva crise do sistema colonial e consecutiva
subordinação e dependência em relação aos ingleses.
É nesse século (XVIII), entretanto, que a mineração provocará algumas
mudanças no interior da colônia. Não só o centro econômico de nossa economia
migra do nordeste para a região sudeste. Internamente a administração política
46
também é deslocada, acompanhando o mesmo eixo territorial. É importante observar
que, com o advento da mineração, o país passa por um pequeno, mas sensível
crescimento urbano. As cidades vão nascendo e crescendo de acordo com o ritmo
exigido pela nova atividade econômica. No seu interior uma “camada média”, cujo
caráter urbano - já mencionado acima - é flagrante, também passa a existir no país.
Entretanto, quem continuará a dominar a cena político-econômica é a mesma
burguesia agrário exportadora, estruturada a partir do latifúndio e do escravismo.
Voltemos aos fatos. Várias medidas de caráter econômico-político foram
implantadas pelo então regente de Portugal Dom João VI, logo na sua chegada ao
Brasil. No que diz respeito à administração pública era necessário criar uma
estrutura político-administrativa para que se pudesse governar todo o Império a partir
de uma colônia. A corte se estabelece na cidade do Rio de Janeiro; D. João criou
ministérios, o Banco do Brasil, um Tribunal Superior (Casa da Suplicação), a
Imprensa Régia, entre outras repartições. Vale lembrar que em 1815 o Brasil, até
então uma colônia (vice reino), foi elevado à condição de Reino, através de um
decreto do príncipe regente. Já na economia a principal medida foi a imediata
“Abertura dos Portos do Brasil”, pois agora todo o comércio exterior de Portugal
deveria ser controlado do interior de nosso território
31
. A esse respeito, Caio Prado
afirma que:
(...) Estabelecendo no Brasil a sede da monarquia, o Regente aboliu
ipso facto o regime de colônia em que o país até então vivera.
Todos os caracteres de tal regime desaparecem, restando apenas a
circunstância de continuar à sua frente um governo estranho. São
abolidas, uma atrás da outra, as velhas engrenagens da
administração colonial, e substituídas por outras já de uma nação
soberana. Caem as restrições econômicas e passam para um
primeiro plano das cogitações políticas do governo os interesses do
31
Cabe lembrar que os grandes beneficiados com tal medida foram os ingleses, pois os tratados
assinados entre os dois países, concediam vários privilégios à essa nação. Como exemplo podemos
citar os Tratados de 1810, ou Acordos de Strangford, onde, entre outras coisas, ficou estabelecido
que os produtos ingleses seriam taxados em 15% sobre seu valor nominal, enquanto os demais
países pagavam 24%.
47
país. São estes os efeitos diretos e imediatos da chegada da
Corte
32
.
Em 1818, com a morte de D. Maria – então rainha de Portugal que não
governava por problemas de sanidade mental –, D. João VI é aclamado rei. Na
Europa, Napoleão havia sido derrotado em 1815, e as idéias liberais avançavam
sobre todo o continente. Nesse contexto irrompe em 1820, a Revolução Liberal e
Constitucional do Porto (Portugal). Após a derrota de Napoleão, o país havia ficado
sob o controle dos ingleses, que governavam o país através de uma ditadura militar
(marechal Beresford). Além disso, o fim da exclusividade do comércio brasileiro,
levou a burguesia mercantil portuguesa a uma grande crise econômica e
conseqüente bancarrota. O movimento de 1820 conseguiu expulsar os ingleses e
passou a exigir o retorno do rei a Portugal, o que ocorreu no ano seguinte.
A partir de então o governo português passa a tomar várias medidas com o
claro intuito de reconduzir o Brasil à antiga condição colonial. As províncias
brasileiras foram declaradas independentes do Rio de Janeiro e passaram a ser
subordinadas diretamente à coroa portuguesa; outra medida foi a invalidação das
decisões dos tribunais brasileiros, anulando assim a autonomia jurídica do Reino. O
passo seguinte seria levar de volta a Portugal o Príncipe regente D. Pedro.
É nesse contexto que a burguesia agroexpotadora brasileira passa a se
articular com vistas à emancipação política do país. Na verdade, estes já não
queriam abrir mão da riqueza produzida internamente, pois no regime de
exclusividade comercial a maior parte da renda real aqui produzida refluía à
metrópole. São estes interesses que determinarão a dinâmica do processo de
independência política do Brasil; o que de fato ocorre é que os grandes proprietários
de terras, que viviam da exportação de suas mercadorias, percebem a ameaça que
32
PRADO JR, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Editora Brasiliense,
1957, p. 44, 45.
48
o retorno ao “Exclusivo Colonial” representava as possibilidades de aumento de seus
lucros. Segundo Mazzeo:
A perspectiva de liberdade comercial, proporcionada pela
decadência portuguesa – que materializava o surgimento da
maturidade capitalista -, reforçada a partir de 1808, levará essa
burguesia a não mais querer que a maior parte da renda aqui
produzida reflua à metrópole. Tais interesses específicos
determinarão o rompimento dos terratenetes brasileiros com
Portugal, isto é, com as correntes do “Exclusivo Colonial” português
que amordaçavam as possibilidades de maiores lucros dos
poderosos do Brasil. Esse é o “móvel” da emancipação política
brasileira, conduzida por competentes membros dessa burguesia
“anômala”, determinada muito mais pela crise do sistema colonial
mundial e por suas conseqüências imediatas, do que por uma
proposta de mudança econômico-social que visasse um
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção
em moldes plenamente burgueses. A condução política do “Partido
Brasileiro”, capitaneado pelos donos de terras e de escravos, não
terá assim, em seu conteúdo, nenhuma perspectiva de real ruptura
com a estrutura colonial da economia brasileira.
33
.
Percebemos, portanto, que um dos aspectos que marcam a formação do
Estado nacional brasileiro é justamente a inexistência de um projeto político-
econômico revolucionário, que rompesse com as determinações estruturais de
nossa economia colonial. Dito de outra forma, o que a burguesia agroexportadora
brasileira defendia, enquanto projeto econômico, era a continuidade da forma
colonial de exploração do território - o que de fato ocorreu -, forma esta pautada na
mão-de-obra escrava, no latifúndio e na produção de gêneros agrícolas de grande
valor comercial destinados ao mercado externo.
Com relação ao processo de emancipação política, este se dá na forma de
uma transição pelo alto, lenta e segura – característica que viria a ser uma das
marcas de todos os processos de transformações de nossa estrutura política -, sem
qualquer participação das “classes médias” urbanas, e muito menos das camadas
populares. É importante lembrar que alguns destes setores, com propostas mais
33
MAZZEO, 1989, p. 90. As aspas são do autor.
49
radicais, chegaram a se manifestar, porém sem lograr grandes êxitos. Faltavam-lhes
o arrimo social necessário à todo e qualquer movimento que se propõe
transformador, por isso foram facilmente derrotados e severamente punidos. Já por
parte dos grandes proprietários de terras, a habilidade se caracteriza por
vislumbrarem na figura de D. Pedro o instrumento político que possibilitaria a
emancipação do território brasileiro em relação a Portugal. Outro fator muito
importante é que essa estratégia descartaria definitivamente qualquer interesse de
cunho democrático, afastando de vez a possibilidade da participação popular e
confirmando a não existência de grandes divergências entre as frações burguesas
que compunham o processo, quando se trata de excluir – de maneira segura – todo
e qualquer seguimento que pudesse vir a ameaçar de alguma forma sua hegemonia
econômico-política.
Nesse sentido é importante salientar que os elementos político-ideológicos,
bem como a estrutura econômica que constituirão os contornos e conteúdos dos
Estado nacional brasileiro, são próprios de formações sociais capitalistas de
extração colonial. Segundo Mazzeo, “(...) Desde a sua formação, o Estado nacional
brasileiro trará em seu âmago dois aspectos que comporão sua superestrutura: de
um lado, elementos ideológicos comuns às formações sociais que vivenciaram
situações tardias – ou hiper-tardias – de desenvolvimento capitalista (onde insere-se
Portugal); de outro, aspectos específicos inerentes à situação de particularidade
escravista e latifundiária”
34
. Mazzeo chama a atenção para o fato de que algumas
análises, ao entenderem os latifundiários como meros manipuladores das idéias
liberais, reduzem e simplificam a questão. Assim como todo o complexo de
complexos do tecido sócio-econômico brasileiro, a forma pela qual o liberalismo se
34
MAZZEO, 1989, p. 91,92. O hífen é nosso.
50
manifestou no país traz em sua gênese a particularidade da via colonial, ou seja, a
“absorção colonial” do liberalismo é “(...)concretamente, engendrada pela
organização produtiva agroexportadora e escravista(...)
35
.
A problemática levantada por Mazzeo é de extrema relevância, pois essa
revela que a particularidade histórica de Portugal será o elemento norteador da
forma como o liberalismo se manifestará em suas colônias, e particularmente no
Brasil.
Durante o século XVIII, enquanto a Europa passava por um processo de
expansão do capitalismo industrial e do ideário liberal, Portugal ainda sustenta sua
economia no então decadente modelo mercantilista. Para completar o quadro de
desenvolvimento de um capitalismo tardio no caso português, este país se
encontrava num enraizado processo de subordinação estrutural de sua economia
em relação à Inglaterra, processo esse que se iniciaria com os Navigation Act de
1651 e seria reforçado com o Tratado de Methuem, em 1703.
A postura da metrópole portuguesa em relação às suas colônias é a de
reforçar os mecanismos da política econômica do mercantilismo, principalmente
através das sobretaxas de impostos para os produtos de exportação e importação e
da proibição do livre comércio no interior da colônia, bem como, da instalação de
manufaturas, posições estas reafirmadas a partir das Reformas Pombalinas
36
.
Portugal produz assim, uma espécie de “mercantilismo ilustrado”, que é estendido à
burguesia agroexportadora brasileira. Este seria uma adequação do pensamento
revolucionário burguês ao atraso estrutural da metrópole portuguesa e,
conseqüentemente, de suas colônias. Essas “idéias adequadoras” são na verdade,
35
Ibidem, p. 92.
36
Um bom exemplo desse enrijecimento administrativo-fiscal que a metrópole portuguesa exerceu
sobre o Brasil, pode ser tomado se analisarmos a estruturação da exploração mineral em nosso país.
Cf. PRADO JR, 1994, p. 56-65.
51
propostas de transformações que não rompem com o historicamente velho, pois
mantém os mesmos mecanismos de produção da riqueza. Na verdade, na maioria
das vezes, tais proposituras de modernização assumem contornos conservadores e
até reacionários. Isso explica, por exemplo, a manutenção da mão-de-obra escrava
mesmo depois do processo de independência do país. Apesar de longa, a citação a
seguir, sedimenta de forma segura o anteriormente afirmado:
As adequações do pensamento revolucionário burguês ao atraso do
reino português originaram, então, um tipo de “mercantilismo
ilustrado”. Essas “idéias adequadoras” estenderam-se também à
“elite” brasileira. Apareciam então como duas faces de uma mesma
moeda, quer dizer, o Império Português. Diferenciavam-se no
entanto, no que se refere aos aspectos ligados a interesses das
atividades econômicas específicas, atividades essas, umbilicalmente
interligadas. Alterações de caráter revolucionário que pudessem, de
alguma forma, pôr em risco a base das relações de produção
existentes, eram temidas tanto pela burguesia metropolitana como
pela colonial. Para a primeira, seria o rompimento com a estrutura
metropolitana do mercantilismo, com uma desastrosa conseqüência
de perda do controle colonial, levando a economia do Império à
bancarrota absoluta; para a burguesia colonial brasileira, seria o fim
da estrutura latifundiária e escravista e o fim do seu poderio político
e econômico no Brasil. (...) Vemos, assim, que tanto em Portugal
como no Brasil, as idéias reformistas surgem como determinação de
um processo de modernização refreadora de mudanças
fundamentais na estrutura social e produtiva. Portugueses e luso-
brasileiros valem-se das “novas” teorias adequadoras da ilustração à
“reação conservadora”, que já se delineava na Europa, indicando a
transformação do liberalismo revolucionário em liberalismo
conservador e prenunciando a decomposição do pensamento
revolucionário burguês
37
.
Verificamos, portanto, que o complexo de complexos que compõe a
processualidade histórica, na constituição do Estado nacional brasileiro, expressa
especificidades determinadas e determinantes – num verdadeiro movimento de
reflexo – da via particular de entificação/objetivação capitalista no Brasil. Vimos que
o movimento pela emancipação do país não rompe com a forma de organização
produtiva, mantendo praticamente intacta a estrutura econômica agroexportadora
escravista do período colonial. A classe que estará à frente de tal processo – a
37
MAZZEO, 1989, p. 99.
52
burguesia agrária que vive da exportação de seus produtos aos pólos centrais do
capitalismo – assumirá uma formulação extremamente conservadora e, em muitas
vezes reacionária. Preocupada apenas em se apropriar de uma maior parte da renda
produzida internamente, essa se articulará de maneira engenhosa para garantir seus
interesses, promovendo a independência política do país, sem, no entanto, sofrer
qualquer tipo de ameaça popular, excluindo de seu projeto a grande massa de
miseráveis, historicamente característica de nossa composição social.
O exposto acima nos permite traçar uma primeira síntese comparativa entre
os caminhos de “via prussiana” – como é o caso da Alemanha – e os de via
“prussiano-colonial” – cujo itinerário se insere a particularidade brasileira.
Numa primeira aproximação podemos perceber muitas semelhanças entre as
formas de entificação/objetivação do capitalismo alemão e brasileiro. A primeira
delas diz respeito a serem formas distintas das formas clássicas, ou seja, se incluem
no universal das formas “não clássicas” de constituição capitalista. A grande
propriedade rural, bem como a classe social que nesta se sustenta, são decisivas e
possuem um papel de grande relevância nos dois processos; serão os principais
elementos sociais na estratégia de “reformismo pelo alto” implementado no plano
político imediato, onde os processos revolucionários serão eficazmente
abortados/excluídos. Outra aproximação possível diz respeito ao processo de
desenvolvimento das forças produtivas, pois em ambos os casos, diferentemente
das formas clássicas, a industrialização se dará de forma lenta, retardatária, tardia,
e, no caso brasileiro, hiper-tardia. No entanto, as aproximações param por aí.
Não podemos nos esquecer que toda essa estruturação categorial
desenvolvida pelo pensamento marxiano e pelos marxistas que a herdam, não se
constituem como construtos mentais, previamente estabelecidos. São na verdade,
53
abstrações razoáveis da realidade concreta e que, portanto, expressam uma
determinada forma de ser; determinação esta condicionada por processualidades
históricas específicas e particulares, que se diferenciam em sua ontogênese. Não
são, portanto, modelos nos e dos quais se abstrai a realidade, para depois serem
“encaixados” na mesma.
Apesar de pertencerem ao universal das formas “não clássicas” de
entificação/objetivação capitalista, a “via prussiana” e a via “prussiano-colonial” se
diferenciam na medida em que se constituem como processualidades históricas
particulares. Enquanto na Alemanha a propriedade da terra – bem como a classe
proprietária que essa origina – derivam das antigas formas feudais de produção, no
caso brasileiro a estrutura fundiária se assenta no interior das relações capitalistas
de produção, no momento da subsunção formal do trabalho ao capital, como já
descrevemos anteriormente.
Outra diferença a ser levada em conta diz respeito à conciliação entre o
historicamente velho e o historicamente novo. Nos países cuja formação podemos
caracterizar como de “via prussiana” a burguesia se articula com os antigos
proprietários de terras (junkers) de forma subordinada, pois depende da ação
repressora do Estado para que seu projeto econômico alcance êxito. Nesses casos,
a burguesia é responsável pelo desenvolvimento das forças produtivas rumo à
industrialização – verdadeiro capitalismo. A aliança pelo alto se faz necessária na
medida em que, devido ao caráter tardio de tal processo – últimas décadas do
século XIX -, os trabalhadores já se encontrarem organizados politicamente e suas
reivindicações se tornam um entrave às pretensões da burguesia.
Já no caso brasileiro é preciso atentar para o fato de a burguesia que aqui se
forma ser geneticamente vinculada à estrutura fundiária do país. Enquanto na
54
Alemanha a burguesia, apesar de antidemocrática, se constitui como uma classe
autônoma, no Brasil essa mesma classe tem como origem a estrutura agrário
mercantil escravista, estrutura esta totalmente subordinada aos pólos centrais do
capitalismo. Esse fator determinará inclusive a natureza não apenas tardia, mas
hiper-tardia de nossa industrialização
38
.
Para entendermos o caráter hiper-tardio da industrialização brasileira é
preciso antes de mais nada, caracterizar sua formação ontogenética, o que nos
esclarecerá outra distinção entre a “via prussiana” e a “via prussiano-colonial”.
O processo de acumulação e concentração de capitais necessários ao
desenvolvimento industrial dar-se-á no Brasil através do campo. Ou seja, os
recursos derivados da exportação agrícola foram os responsáveis pela “acumulação
primitiva de capitais” que, posteriormente, foram investidos no processo industrial.
Importante salientar que esse processo se deu de forma lenta a partir de meados do
século XVIII, permeado por grandes variações, próprias de nossa condição de
colônia subordinada a uma metrópole em franca decadência econômica. Nesse
momento, presenciamos uma verdadeira retomada da produção agrícola no país –
pressionada pela crise da mineração –, proporcionando uma “certa diversificação” de
nossa produção, pois além da cana-de-açúcar, o algodão, o arroz e a pecuária
ganharam espaço em diversos Estados brasileiros
39
. Entre 1796 e 1807 a balança
comercial brasileira apresentou saldos bastante favoráveis à economia do país
40
.
Também é nesse momento que o café passa a ser introduzido na região Sudeste. A
38
“Desse modo, se aos dois casos convém o predicado abstrato de que neles a grande propriedade
rural é presença decisiva, somente principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se
objetiva em cada uma das entidades sociais, isto é, no momento em que se determina que, no caso
alemão, se está indicando uma grande propriedade rural proveniente da característica propriedade
feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente de outra
gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela
empresa colonial” (CHASIN, 1978, p. 628-629).
39
PRADO JR, 1995, p. 31-40.
40
Cf. MAZZEO, 1989, p. 117.
55
futura produção de tal gênero agrícola e respectiva acumulação/concentração de
capitais oriundas dessa atividade, constituir-se-iam na mola propulsora de nossa
industrialização.
Segundo João Manuel Cardoso de Mello, a estrutura econômica sustentada
na produção cafeeira engendrará as condições básicas e necessárias ao
nascimento do capital industrial e da grande indústria. Isso só foi possível devido ao
fato de essa estrutura já se basear em relações capitalistas de produção, tais como:
o trabalho assalariado estruturado nas fazendas de café – a partir da introdução da
mão-de-obra imigrante; promover o desenvolvimento de um mercado interno de
proporções consideráveis; e gerar uma “acumulação primitiva” de capitais,
concentrada nas mãos de uma determinada classe social, passível de se
transformar em capital produtivo industrial.
Poderíamos nos alongar aqui com uma minuciosa descrição do processo de
conversão dos capitais acumulados com a produção cafeeira em capitais industriais
– o que por sinal Cardoso de Mello faz de maneira precisa
41
. No entanto,
41
MELLO, João Manuel Cardoso de Mello. O capitalismo tardio. 8ª edição. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1991. “(...) Como não poderia deixar de ser, a burguesia cafeeira foi a matriz social da
burguesia industrial. Ou em outras palavras: o capital industrial nasceu como desdobramento do
capital cafeeiro empregado, tanto no núcleo produtivo do complexo exportador (produção e
beneficiamento do café), quanto em seu segmento urbano (atividades comerciais, inclusive as de
exportação, serviços financeiros e de transportes). Ademais, a grande indústria não atraiu capitais do
complexo cafeeiro num momento de crise, porque lhes remunerasse melhor, mas, pelo contrário, num
momento de auge exportador, em que a rentabilidade do capital cafeeiro há de ter alcançado níveis
verdadeiramente extraordinários. Ocorreu que, entre 1890 e 1894, a taxa de acumulação financeira
sobrepassou, em muito, a taxa de acumulação produtiva. Era suficiente, portanto, que os projetos
industriais assegurassem, simplesmente, uma taxa de rentabilidade esperada positiva para que se
transformassem em decisões de investir. Não se pode negar, além do mais, que o movimento do
capital cafeeiro ao capital industrial beneficiou-se de condições bastante favoráveis de financiamento,
decorrentes da Política Econômica do Estado. Tendo em mente não só o crédito farto, mas, em
especial, os instrumentos destinados a mobilizar e concentrar capitais, como a faculdade concedida
aos bancos de se transformarem em empreendedores industriais, a reforma da Lei de Sociedades
Anônimas e o impulso dado às Bolsas de Valores. (...) A existência de trabalhadores livres à
disposição do capital industrial deveu-se à imigração em massa, que supriu as necessidades do
núcleo produtivo e do segmento urbano do complexo exportador e, ainda, ‘depositou’nas cidades um
contingente de força de trabalho redundante (em relação às necessidades da economia cafeeira). A
reprodução da força de trabalho industrial exigiria, por outro lado, a existência prévia de alimentos e
wage goods manufaturados. Tanto os alimentos quanto os bens de consumo assalariado teriam de
ser importados: os alimentos, pois que não se verificou uma transformação anterior da agricultura,
56
entendemos que o exposto acima já é o suficiente para apontarmos algumas
questões.
Como dissemos, os capitais provenientes da atividade agrícola mercantil se
constituirão no elemento-chave do inicial processo de industrialização no Brasil.
Porém, um fator nos parece preponderante para entendermos a gênese de nossa
indústria, bem como da fração de classe que dela se origina. Esse diz respeito ao
fato de, no Brasil, não haver distinções sócio-econômicas entre burguesia e grandes
proprietários de terras. Pelo contrário, em muitas das vezes são, inclusive, as
mesmas pessoas. Ou seja, se constituem como indivíduos sociais pertencentes a
uma mesma classe econômica, fracionada em setores produtivos específicos: a
burguesia. Como nos bem adverte Caio Prado:
Nada há, em conclusão, nos grandes proprietários brasileiros, e isso
tanto mais acentuadamente quanto seu nível financeiro é mais
elevado, que os distinga e caracterize como categoria econômica e
social à parte. E assim nada autoriza separar, e muito menos
extremar e isolar na estrutura sócio-econômica brasileira, uma
classe característica e bem diferenciada de “latifundiários”
contrastantes com a burguesia e ligada a relações de produção de
natureza distinta e específica. Trata-se num e noutro caso de igual
categoria social, e no mais das vezes até nos mesmos indivíduos,
homens de negócio que aplicam seus recursos e iniciativas tanto em
empreendimentos agropecuários como em outros setores, ao sabor
unicamente das oportunidades ensejadas e da lucratividade
esperada
42
.
Esse fato, além de reafirmar o caráter capitalista de nossa produção colonial,
aponta para outras características que a burguesia industrial que se formou no Brasil
com a criação de uma vigorosa agricultura mercantil de alimentos, capitalista ou não; os bens de
consumo assalariado, porque não existia quer a pequena produção mercantil, quer a manufatura
deste componente do custo de reprodução da força de trabalho. Finalmente, a transformação do
capital monetário em meios de produção, estaria, do mesmo modo, atrelada à geração de divisas
pelo complexo exportador cafeeiro, direta ou indiretamente, ao promover entrada líquida de capitais
externos. Em suma, o complexo exportador cafeeiro, ao acumular, gerou o capital-dinheiro que se
transformou em capital industrial e criou as condições necessárias a essa transformação: uma oferta
abundante no mercado de trabalho e uma capacidade para importar alimentos, meios de produção e
bens de consumo e capitais, o que só foi possível porque se estava atravessando um auge
exportador”. Os grifos são do autor.
42
PRADO JR, 1966, p. 168.
57
vai herdar de (e no) seu processo de constituição, qual seja, sua condição de
subordinação estrutural às economias centrais do capitalismo mundial, decorrência
de sua incompletude e incapacidade históricas – caráter anômalo – de se constituir
como classe essencialmente revolucionária, impulsionadora de processos de
transformações sociais.
Nesse sentido, dois aspectos assumem contornos de extrema relevância. O
primeiro – já discutido anteriormente – é a forma como o ideário liberal será
absorvido e colocado em prática no Brasil. O segundo diz respeito à forma como
nossa economia, a medida em que passa por um progressivo processo de
industrialização, se insere no contexto do capitalismo mundial.
Para não repetirmos o que já foi dito anteriormente, sintetizaremos a
discussão sob a forma como o liberalismo se expressa no Brasil. O processo de
formação do Estado nacional brasileiro se insere no contexto de transformações
pelas quais a então metrópole portuguesa passava. Todas as determinantes
históricas que engendraram a Revolução do Porto não permitem a constituição de
uma burguesia revolucionária em Portugal, sendo que no Brasil essa característica
se agrava, pois a escravidão se constituiu como o maior entrave para o
desenvolvimento das proposituras liberais. Nesse sentido, esse arcabouço teórico-
prático, que havia se constituído como o arrimo ideológico dos movimentos
revolucionários do século XVIII, revela seus limites históricos ao apresentar seu
caráter conservador e reacionário em países de formação “não clássicas”.
No caso do Brasil, durante os processos de emancipação política e respectiva
consolidação do Estado nacional, o liberalismo atingiu parcialmente a economia,
pois seu itinerário era percorrido apenas no que diz respeito ao direito do livre
comércio e produção, se restringindo à produção agrícola – não podemos nos
58
esquecer que quem está à frente do processo de independência política é a
burguesia agrário-mercantil escravista. Em nível político, o liberalismo será factível
somente àquelas classes – ou classe – que possuem terras, escravos e algumas
quantias em riquezas acumuladas na forma monetária, haja vista o regime eleitoral
predominante durante todo o período Imperial e da República Velha, cujo critério
tanto para elegibilidade quanto para disputa de cargos eletivos, era a equivalência
em terras que o indivíduo possuía em dinheiros e ou bens – voto censitário.
Portanto, a base real/material da formação social brasileira se caracteriza pela
sua incompatibilidade com o ideário liberal, bem como com os processos
revolucionários que este engendra – como os ocorridos nas formas “clássicas”
43
.
O segundo aspecto a ser tratado diz respeito às transformações pelas quais a
economia brasileira passará durante todo o século XIX e início do século XX.
Como já afirmamos, a economia brasileira colonial é estruturada a partir do
século XVI como um apêndice dos grandes centros produtores do período. Sua
“função” era fornecer gêneros agrícolas e produtos tropicais à Europa para que
fossem manufaturados e comercializados mundialmente. Observadas as devidas
particularidades históricas, esse aspecto não muda durante todo o período colonial,
diversificando-se apenas no que diz respeito à mercadoria a ser fornecida.
Reafirmamos assim o caráter eminentemente exportador de nossa economia, pois
este setor se caracterizou como o sustentáculo da produção da riqueza social
brasileira.
A partir do século XIX essa estrutura passa por algumas alterações.
Gradativamente, o complexo econômico brasileiro começa a se diversificar; a
economia passa por alterações internas com a abolição da escravatura e com a
43
Cf. MAZZEO, 1989, p. 123-127. Ver também, PRADO JR, Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 277-306.
59
migração de grandes contingentes de mão de obra oriundas da Europa;
conseqüentemente as demandas internas no que se refere ao consumo também
aumentarão. Além disso, nossa economia será atingida diretamente pela grande
crise do sistema capitalista mundial, na última metade do mesmo século. Não
podemos nos esquecer que a economia brasileira era (como ainda o é)
extremamente vulnerável as oscilações do mercado internacional, posto que nossa
base econômica se assentava no setor agrário-exportador. A crise mencionada
acima se manifestará no Brasil através de um grande desequilíbrio de nossas contas
públicas, de uma constante instabilidade cambial e a conseqüente depreciação da
moeda brasileira. A diversificação da produção interna se faz mister, e a
industrialização se apresenta como uma necessidade primordial. Porém, as medidas
tomadas pelo governo visavam restabelecer a produtividade da atividade
cafeicultora, em detrimento do setor industrial – ainda em fase embrionária. O
projeto de industrialização, portanto, não era uma prioridade da fração burguesa
dominante no país, e mais uma vez seria adiado, sendo que poucas foram as
fábricas que conseguiram se estruturar
44
.
No entanto, é preciso chamar a atenção para o contexto histórico que essa
incipiente diversificação produtiva está inserida. O desenvolvimento do capitalismo
mundial explicita de maneira vertiginosa o caráter essencialmente monopolista
dessa forma de organização sociometabólica. A forma Imperialista de
desenvolvimento do Capital é imposta ao mundo como a solução para a crise, sendo
que, mais uma vez, o Brasil não passará incólume aos efeitos de tal
processualidade. Ao contrário, a diversificação produtiva – e conseqüente
industrialização – da economia de nosso país, seguirá o ritmo ditado, novamente,
44
Para a descrição desse momento de criação das primeiras fábricas no Brasil, ver o capítulo 3 desse
trabalho.
60
pelos interesses do capital transnacional, transfigurado agora em grandes trustes e
cartéis.
Nessa etapa de internacionalização do capital, os pólos industrializados
passaram a “exportar” suas fábricas para os antigos núcleos coloniais, de economia
predominantemente agrária. Os novos contornos que a Divisão Internacional do
Trabalho adquire serão marcados pela expansão das empresas transnacionais em
direção a América Latina, África e Ásia, onde desfrutarão de grandes benefícios, tais
como baixo valor da matéria-prima, facilidades concedidas pelos governos nacionais
para que as empresas instalem suas plantas fabris, potenciais mercados
consumidores a serem explorados e, o fator preponderante, o baixo preço da mão-
de-obra. Todos esses fatores conjugados foram decisivos para a extração de mais-
valia e, conseqüentemente, para um aumento considerável na taxa de lucros médios
das empresas, o que possibilitou um novo ciclo – curto é verdade – de crescimento
da economia capitalista mundial.
O que podemos observar com relação ao Brasil é que os antigos
fornecedores não perderam seus clientes, pois passam a produzir internamente,
com grandes vantagens – diga-se de passagem –, o que antes exportavam para o
país
45
. Além disso, o agente dinamizador do processo de industrialização no país foi
o Estado, ou seja, toda a substituição de importações que passamos a observar será
iniciada a partir de medidas político-econômicas (reajustes cambial e fiscal) que
possibilitaram a entrada no país dos bens de capital necessários para o início do
45
“Particularmente a industrialização será nesses últimos tempos, em proporção considerável que se
pode avaliar grosseiramente em pelo menos 40%, fruto da implantação no país de subsidiárias e
associadas de grandes trustes internacionais interessados em nosso mercado” (PRADO JR, 1966, p.
135). Alguns autores afirmam que Caio Prado comete um equívoco em sua análise desse momento
específico do desenvolvimento econômico do país, pois o autor teria atribuído um excessivo valor no
papel das demandas de mercado, no processo de industrialização. Para um melhor esclarecimento
ver COUTINHO, Carlos N. Uma via “não-clássica” para o capitalismo. In: D’INCAO, Maria A (org.).
História e ideal – ensaios sobre Caio Prado Junior. São Paulo: Editora da Unesp/Secretaria de
Estrado da Cultura/ Editora Brasiliense, 1989.
61
processo industrial, além de a própria União passar a investir diretamente no setor.
Esta se constitui em mais uma característica da nossa forma particular de inserção
na fase industrial do capitalismo, fato que reforça o caráter incompleto e débil da
burguesia brasileira.
Contraditoriamente, o que deveria ser o pressuposto e condição fundamental
para o desenvolvimento autônomo do capitalismo no Brasil, rompendo com o antigo
sistema de produção colonial, se constitui como um elemento de reafirmação e
renovação do mesmo, assentado agora sobre novas bases históricas. O sentido
original de nossa economia não é rompido. Pelo contrário, os novos elementos da
dinâmica econômica interna – principalmente a industrialização – vão estar inseridos
numa processualidade histórica que produzirá um novo tipo de contradição, porém, o
caráter de subordinação da economia brasileira aos centros hegemônicos do
capitalismo mundial permanecerá praticamente intacto.
O que muda é a forma como essa subordinação se consubstancia
historicamente, bem como as novas contradições engendradas por esse processo.
Os interesses imperialistas serão o norteador do nosso desenvolvimento industrial.
As normas, o ritmo e os limites desse desenvolvimento serão estabelecidos pelos
trustes e cartéis internamente instalados no país. Mas como isso se dá?
A resposta a esta questão está na capacidade que a economia brasileira
possui de remuneração do capital transnacional aqui instalado. Somente através dos
saldos oriundos de nossa balança comercial é que podemos liquidar os lucros
auferidos pelos investimentos imperialistas no país. Portanto, temos a reafirmação
do caráter exportador de nossa economia como elemento essencial e determinante
da dinâmica do desenvolvimento interno. É bem verdade que esse setor – de
exportação – vai gradativamente se diversificando; no entanto a exportação de
62
produtos primários continua a ser o principal elemento na constituição de nossa
balança comercial. A esse respeito, Caio Prado nos oferece a seguinte contribuição:
De fato, o lucro auferido pelos empreendimentos imperialistas no
Brasil somente se podem liquidar (e somente então constituirão para
eles verdadeiros lucros) com os saldos de nosso comércio exterior,
uma vez que é da exportação que provêm nossos recursos normais
em moeda internacional. Descontada a parte desses recursos que
se destina a pagar as importações, é do saldo restante, e somente
dele que poderá sair o lucro dos empreendimentos aqui instalados
pelos trustes. Na base do previsível para esse saldo, portanto,
fixarão os trustes o limite de suas atividades; e portanto, em
conseqüência, o do desenvolvimento brasileiro que no sistema
vigente é por eles enquadrado.
Observamos aqui muito bem a ligação do imperialismo com nosso
sistema colonial, fundado na exportação de produtos primários, pois
é dessa exportação que provêm os recursos com que o imperialismo
conta para realizar os lucros que são a razão de ser de sua
existência
46
.
Sendo assim, os empreendimentos imperialistas trazem consigo “um novo e
poderoso fator de desequilíbrio”, pois a tendência que se apresenta é a de as
transações financeiras com o mercado externo se saudarem com déficit. Esse nos
parece ser um outro elemento de extrema atualidade, presente em nossa dinâmica
econômica interna. Como essa tendência tende a se agravar, a saída encontrada é
a exportação, pois, à medida que a balança comercial se apresenta deficitária, os
empréstimos internacionais se apresentam como a única saída possível; como estes
não podem ser permanentes, a necessidade de vender ao mercado externo é cada
vez maior. É através dos recursos provenientes desse “esforço exportador” que os
governos tentam dar cobertura cambial às remessas de capitais cada vez maiores
46
PRADO JR., 1966, p.136. Guardadas as devidas características dos diferentes períodos históricos,
este nos parece ser, ainda nos dias atuais, um dos elementos essenciais de nossa estruturação
econômica. Haja vista todo o esforço do governo de Fernando Henrique Cardoso, principalmente no
segundo mandato (1998-2002) de alavancar as exportações brasileiras. Para tanto este governo
lançou mão de incentivos e isenções fiscais para o setor. Os resultados de tal esforço puderam ser
auferidos somente no atual governo Lula que, dando continuidade de forma “exemplar” às propostas
do antigo presidente, pôde contabilizar durante o ano de 2004 a soma de, aproximadamente, 95
bilhões de dólares em exportações. Para maiores detalhes do processo de expansão das
exportações em 2004 cf.: Agronegócio & Exportação. In: Revista Veja, Edição Especial nº 36, outubro
de 2004.
63
que os empreendimentos imperialistas enviam ao exterior. Quando esse necessário
superávit não se confirma, abrem-se períodos de crise econômica e os governos
novamente recorrem aos empréstimos junto às instituições financeiras
internacionais
47
.
Conclusivamente, podemos perceber os elementos que impossibilitam o
desenvolvimento de uma política econômica autônoma para o país. Toda
processualidade histórica do sistema colonial, qual seja a estrutura agrário-
exportadora, bem como as contradições que a movem, se configuram como o
elemento de gênese no desequilíbrio de nossas finanças externas, gerando como
conseqüências vários momentos de instabiliadade financeira, bem como o processo
inflacionário que os acompanha, abrindo longos e devastadores processos de crise
interna.
O aspecto periférico e subordinado da economia brasileira se mantêm mesmo
com o “progresso” e as transformações introduzidas com o advento da indústria, pois
“(...) a diversificação da produção para o atendimento das necessidades próprias do
país e de sua população, e a libertação com isso do exclusivismo de atividades
econômicas voltadas para exportação, se realizam paradoxalmente por um processo
em que a função exportadora conserva de fato sua primazia, e retém assim a
economia brasileira dentro de seu velho e aparentemente ultrapassado
enquadramento colonial (...)”, some-se a isso o fato de “(...) a liderança naquelas
transformações que deveriam significar a libertação da economia brasileira de suas
47
Aliás, atualmente os empréstimos angariados junto às instituições como o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial, só são liberados mediante a garantia que o governo ofereça de
cumprir vários pacotes de “ajustes”. Para tanto, um conjunto de reformas passam a ser
implementadas. Só assim podemos entender a “necessidade” de o governo – no caso brasileiro –
elaborar as reformas fiscal e tributária, da previdência, bem como o “enxugamento” e a “diminuição”
do tamanho do Estado, tendo como elemento primordial desse processo a privatização das empresas
estatais. As conseqüências de tais medidas são sentidas principalmente pela classe trabalhadora,
que padece, a cada dia que passa, diante do desemprego, do arrocho salarial e da “carestia”,
elementos estes agravados em nossos dias.
64
contingências coloniais, se vem concentrando cada vez mais (...) nas mão de
empreendimentos imperialistas e suas iniciativas (...).”
48
.
São mantidos, portanto, os elementos essenciais do processo histórico
colonial. Aquilo que Caio Prado denominou como Sentido da Colonização,
permanece intacto.
Após analisarmos o desenvolvimento da particularidade econômica brasileira
no momento em que essa passa a se industrializar, passemos à discussão da
constituição ontogenética da fração de classe industrial que daí se origina, e o papel
que esta desempenha na constituição da FIESP.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo nasce no exato momento
em que a economia brasileira inicia o processo de diversificação produtiva descrito
acima. Resulta da necessidade – e não poderia ser diferente – de representação
política que a fração de classe industrial passa a ter nesse contexto.
No entanto, traz consigo todos os aspectos e elementos estruturais da forma
particular de nosso desenvolvimento industrial. Uma das principais características
dessa burguesia é seu caráter incompleto e a conseqüente incapacidade histórica
de realizar suas “tarefas” políticas e econômicas. Diferentemente dos países de “via
clássica”, sua própria formação histórica, a impossibilita de romper de forma
revolucionária com seu passado, pois faze-lo significaria negar sua própria forma de
ser.
Mesmo quando comparada com a fração de classe burguesa dos países de
“via prussiana”, a burguesia brasileira novamente expõe seu caráter incompleto, pois
aquela – apesar de necessitar da ação policialesca e repressora do Estado para
48
PRADO JR., 1966, p. 141.
65
levar seu projeto econômico à frente, sem a interferência do proletariado – foi capaz
de superar sua condição tardia de industrialização; já a débil burguesia aqui gerada
– bem como sua fração industrial – necessitará da ação do Estado também para
realizar seu projeto de industrialização. Porém, aqui reside uma outra característica
que nos diferencia dos casos de “via prussiana”, qual seja, além do capital
imperialista que aqui se instala desde o nosso processo inicial de industrialização,
esse setor – a burguesia industrial – sempre necessitará e reivindicará a tutela e a
“proteção” do Estado para o seu desenvolvimento, sendo este mais um aspecto da
forma como o ideário liberal é aqui absorvido e colocado em prática.
Todos esses fatores ontogeneticamente conjugados deram a forma e traçam
os contornos particulares da burguesia internamente gerada, cujas características
principais se fazem perceber pela sua debilidade e incompletude históricas, aspectos
estes fundamentais para entendermos a formação anômala dessa classe social no
Brasil.
A fração industrial da burguesia, cuja processualidade histórica brasileira
projetará a FIESP como entidade representativa de maior significado político-social,
comporta em sua gênese as características descritas acima.
No quarto capítulo procuraremos descrever o processo de constituição da
FIESP, bem como a luta política que esta procura travar para ver os interesses de
seus representados serem satisfeitos.
Quando pensamos nas reivindicações econômicas que a FIESP encampa,
temos de apontar duas fases distintas: uma primeira fase que se inicia antes mesmo
de sua criação e que vai até, aproximadamente, o início da década de 1940, cuja
principal característica é o debate interno, em torno do modelo industrial a ser
implantado no país. Nesse momento, apesar de “roucas”, encontramos algumas
66
vozes que falam em nome de uma possível indústria nacional autônoma. Vários são
os setores da sociedade que se manifestam dessa forma, porém seus interlocutores
mais importantes são Serzedelo Correia – este antes mesmo da fundação da FIESP
–, Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi. No entanto, essa propositura, com vestígios de
nacionalismo, cairá por terra juntamente com seus defensores. A partir de meados
da década de 1940, os agentes do capital imperialista passam a ocupar as cadeiras
diretivas da entidade, e como tais procuram defender os interesses das empresas
que representam; era a “Geração dos Cadetes” que não faria qualquer tipo de
restrição à entrada do Capital transnacional no país, pelo contrário, participará e
patrocinará – inclusive Golpes de Estado – ativamente da vida política nacional.
Entretanto, mesmo apontando para essas duas fases que qualificamos como
distintas – principalmente pela presença daquilo que chamamos como vestígios de
nacionalismo
49
-, em momento algum a fração industrial da burguesia representada
pela FIESP abriu mão da tutela e dos benefícios concedidos pelo Estado nacional
brasileiro. Pelo contrário, desde o início de sua estruturação, os industriais
reivindicam privilégios e benefícios que podem ser traduzidos através de suas lutas
por tarifas protecionistas, por políticas cambiais, por investimentos em infra-
estrutura, ou por uma maior liberação de recursos – com baixas taxas de juros.
Vários são os exemplos a esse respeito. A discussão acerca da questão
tarifária tem sua origem ainda no período imperial; a utilização da política cambial
como instrumento de proteção à indústria também se configurará como uma das
principais reivindicações dos industriais
50
. No entanto, o que mais nos chama a
49
A polêmica em torno do debate sobre a existência ou não de uma burguesia essencialmente de
caráter nacional no Brasil, será por nós deixada de lado, pelas contingências que o nosso tema nos
impõe, mesmo sabendo das possíveis lacunas que tal ausência poderá trazer para os resultados
finais desse trabalho. Pretendemos aborda-la numa possível discussão posterior.
50
A discussão detalhada de tal processo de definição de tarifas, bem como da regulamentação da
política cambial no país até meados da década de 1950, pode ser encontrada em LEOPOLDI, Maria
67
atenção, são as reivindicações e recomendações acerca do investimento e
participação estatal no estímulo e desenvolvimento interno. Para ilustrar a postura
dos industrias frente a essa questão mencionaremos dois documentos que
entendemos de extrema importância: o relatório final do Congresso Brasileiro da
Indústria (1944) e a Carta Econômica de Teresópolis (1945)
51
. Os dois documentos
expressam de maneira clara os interesses defendidos pela burguesia industrial
internamente instalada. Além disso, explicitam o caráter incompleto desta classe, à
medida que reivindicam o patrocínio da União no processo de industrialização do
país. A reprodução na íntegra de alguns trechos nos dará a real dimensão de tais
proposituras:
O Congresso Brasileiro da Indústria
Recomenda
(...) b) – Quanto à energia e aos combustíveis
144) – Que se promova a revisão dos códigos e leis e dispositivos
sobre a utilização de energia e de combustíveis, visando-se o
desenvolvimento de empresas produtoras de energia elétrica e
combustíveis minerais e vegetais, sólidos, líquidos e gasosos,
proibindo-se quaisquer monopólio e privilégios que afetem a
soberania nacional.
145) – Que se providencie o barateamento das tarifas de energia
elétrica nas regiões que apresentem condições propícias à
expansão industrial, sem prejuízos para as empresas particulares,
devidamente aparelhadas, que se dediquem a essa atividade.
146) – Que se difundam ensinamentos quanto aos melhores
métodos de fabrico do carvão vegetal e de seus derivados, e se
estimule o reflorestamento com espécies apropriadas.
147) – Que se realizem estudos sobre os meios de se dar ao álcool
de cana, de mandioca e de outros vegetais, melhor aplicação como
combustível.
148) – Que se promova a expansão da indústria de combustíveis de
óleos vegetais e de piro-betume.
149) – Que se desenvolva a produção de álcool-motor em todas as
regiões sacrificadas pela falta de carburante, aproveitando-se a
capacidade das destilarias existentes e estimulando-se a instalação
de outras.
150) – Que a aguardente destinada à produção de álcool seja
isenta de impostos e tabelada a preços correspondentes aos do
álcool carburante.
(...) g) – Quanto aos gravames fiscais
A. P. Política e interesse na industrialização brasileira: As associações industriais, a política
econômica e o Estado. São Paulo: Paz e Terra, 2000, Seção II (toda).
51
CARONE, E. O pensamento industrial no Brasil (1880-1945). São Paulo: Difel, 1977, p. 362-378.
68
172) – A racionalização do sistema tributário, tendo-se em vista
condicionar os tributos as possibilidades e as necessidades da
expansão industrial
52
.
É importante notar que várias recomendações sugeridas pelo documento são
de responsabilidade do Estado, tais como os itens 144, 145 e 172, sendo que os
outros, apesar de não serem necessariamente responsabilidade estatal, acabaram
sendo colocados em práticas por empresas e programas criados pelo governo ao
longo de nossa história, tais como a Petrobrás.
a Carta Econômica de Teresópolis é mais enfática:
(...) IV – Produção Industrial e Mineral
1 – Declaram as Classes produtoras sua convicção de estarem o
progresso e a estabilidade econômica nacional intimamente ligados
à industrialização do país, pois esta, além de permitir o aumento da
renda nacional, assegura a diversificação da produção, elemento
indispensável a essa estabilidade e progresso. (...) Recomendam,
pois, que o Estado estimule e oriente a industrialização do país,
baseado nos estudos dos fatores fundamentais – mercados, mão de
obra, matéria prima, transporte e energia.
2 – Sugerem, para critério orientador da ação do Estado, a
distinção preliminar entre as indústrias-chave e estratégicas de um
lado, e as demais de outro. As primeiras deverão ficar mais
diretamente à ação estatal, - fiscalizadora, auxiliadora, e mesmo
criadora onde a iniciativa particular se mostre omissa ou
incapaz. Às demais indústrias, fora desse primeiro grupo,
preconizam a concessão de assistência especial, mas somente
quando solicitada, limitando-se, de resto, a ingerência estatal ao
resguardo do bem comum.
3 – Para favorecerem, entretanto, a implantação, a consolidação e o
aperfeiçoamento de todas as indústrias, (...) sugerem que o Estado
ofereça, dentro de sua esfera de ação, amplo apoio à iniciativa
privada. Esse apoio se traduzirá no fomento das pesquisas para o
aperfeiçoamento técnico, na elaboração de normas técnicas
nacionais, na padronização dimensional das máquinas, ferramentas
e peças em geral e, bem assim, na padronização das matérias
primas e dos produtos acabados.
(...) 12 – Recomendam a criação do Ministério das Minas e da
Energia (...).
(...) V – Política de Investimentos
1 – Consideram as Classe produtoras, em vista da carência de
capitais necessários ao desenvolvimento do país, que deve ser
respeitada e estimulada a formação de capitais particulares
(nacionais ou transnacionais) (...).
52
CARONE, 1977, p. 369,370 e 374. Os negritos são nossos.
69
(...) 3 – Deve, ainda, o Estado prestigiar a concessão de crédito a
longo prazo, permitir a emissão de debêntures até o total do capital
e reservas (...).
4 – Recomendam facilidades e estímulo ao ingresso de capitais
estrangeiros com objetivos econômicos e sociais, dando-se-lhes
para isso as necessárias garantias e tratamento eqüitativo,
ressalvados os interesses fundamentais do país. O capital
estrangeiro já incorporado à vida brasileira merece ter tratamento
idêntico ao dispensado ao nacional (...).
53
Os trechos acima demonstram claramente a incapacidade econômica da
burguesia industrial brasileira. Note-se ainda – e esse é um fator presente desde o
início do processo de industrialização – que os investimentos transnacionais serão
sempre muito bem vindos, mesmo porque a dinâmica interna da economia vai
permitir a associação entre estes e os capitais nacionais. No entanto a parcela
nacional desse capital se associa de forma subordinada ao investimento
transnacional.
Sendo assim, o processo de industrialização será não só patrocinado, como
também implementado a partir e através da ação do Estado nacional brasileiro.
Esse fator fica muito evidente quando analisamos as características
essências dos governos brasileiros no período, sobretudo as gestões de Getúlio
Vargas, de Juscelino Kubitschek e, posteriormente, o governo dos militares,
estabelecido a partir do Golpe de 1964.
Em todos esses períodos o governo nacional esteve à frente de processos
econômico-políticos que favoreceram o desenvolvimento da indústria e, de alguma
forma, atenderam direta ou indiretamente às reivindicações e “recomendações” de
nossa débil burguesia industrial. Seja através da criação de empresas estatais no
setor de bens de produção – Petrobrás, Companhia Vale do Rio Doce, Companhia
Siderúrgica Nacional – característica principal do governo Vargas, seja através do
53
CARONE, 1977, p. 378-383. Os negritos e os parênteses são nossos.
70
desenvolvimento planejado de JK – Plano de Metas -, viabilizando e facilitando, com
enormes vantagens fiscais, a entrada de capitais transnacionais, ou ainda, a ação
dos governantes saídos das casernas que além da repressão sobre a mão-de-obra
– o que a tornou extremamente barata – baseou o desenvolvimento interno na
construção da infra-estrutura que faltava para a complexificação do parque industrial
brasileiro. Às custas de um enorme e insuportável endividamento externo, o Estado
brasileiro desempenhou a função econômica que nos países tanto de “via clássica”
como de “via prussiana”, fora desempenhado pela burguesia.
Através da discussão das vias particulares de entificação/objetivação do
capitalismo, procuramos nesse capítulo destacar os aspectos fundamentais, bem
como o conjunto de categorias e a forma como estas se manifestam no real, que
diferenciam e distinguem os casos de “via clássica”, “via prussiana” e “via prussiano-
colonial”.
Ao final dessa discussão, percebemos que a forma como o capitalismo se
desenvolve no Brasil desde o momento inicial de sua estruturação econômico-social,
ainda no período colonial, produzirá uma série de características que serão mantidos
durante toda sua “evolução” histórica. Respeitados os patamares de
desenvolvimento e os respectivos contextos históricos – bem como as contradições
que estes engendram – percebemos que os Sentidos originais de nossa
Colonização se mantém, qual seja, o Brasil, desde o período colonial, estrutura-se
economicamente como um apêndice sócio-subordinado aos pólos centrais do
Capital mundial. Portanto, a nossa frágil burguesia – que possui sua ontogênese no
processo – foi incapaz de romper com tal processualidade, pois é ao mesmo tempo,
71
resultado e resultante desta, o que lhe imprime um caráter extremamente débil,
incompleto e, portanto, anômalo.
Passaremos agora ao objeto central de nosso trabalho, qual seja, a análise do
projeto econômico-social, bem como da postura política da Fiesp durante o processo
de inflexão do capitalismo brasileiro na década de 1990.
72
Capítulo II
INFLEXÕES DO CAPITAL E FIESP NOS ANOS 1990: NOVAS
PARTICULARIDADES DE UM MESMO PROCESSO
A década de 1990 foi sem dúvida alguma, um momento de grandes
mudanças no contexto internacional, tanto em seus aspectos econômicos, como nos
aspectos político-sociais.
Depois de mais de 70 anos, fracassara a primeira tentativa histórica de
constituição de uma forma de sociabilidade cujo itinerário econômico-político – ainda
que inicialmente – pautava-se na emancipação do Trabalho Humano, e não na
lógica da mercadoria. A derrubada do Muro de Berlim e a posterior abertura do Leste
Europeu marcam o fim dessa que foi a primeira grande experiência do ciclo de lutas
do movimento operário internacional.
No plano econômico, o Liberalismo Clássico é revitalizado e recontextualizado
como “verdade absoluta e única” diante dos processos de crise que se engendraram
desde os anos de 1970. A financeirização e monetarização da economia mundial fez
73
com que os fluxos de capitais se internacionalizassem em escalas nunca alcançadas
até então. O mundo capitalista vivia mais uma etapa de um processo já antigo, que
remonta aos primórdios do processo de produção de mercadorias: A Mundialização
do Capital.
Diante de tais mudanças, alguns intelectuais chegam a declarar a “vitória
final” do capitalismo, dizendo que a História da Humanidade “havia chegado ao fim”,
e as transformações só se dariam na esfera do cotidiano dos indivíduos
1
. Tais teses
passam a ser divulgadas persistentemente e com grande otimismo pelos porta-
vozes do Capital.
O Brasil se insere em tal processualidade histórica a partir da posse Fernando
Collor de Mello, em 1990. Como veremos à frente, durante o governo de Collor o
país inicia um processo de inflexão econômico-política que recolocará o país em
sintonia com o capitalismo imperialista mundial. Esse processo – de reestruturação –
foi interrompido momentaneamente entre 1992 e 1994, quando então, O “Príncipe
da Sociologia” brasileira, Fernando Henrique Cardoso, assume o posto de chefe
máximo da nação, ali permanecendo por dois mandatos (oito anos). Durante seu
governo, Fernando Henrique retoma tal processo com grande competência e
eficácia, remodelando a economia brasileira de acordo com os pressupostos liberais,
que como já afirmamos, vinham sendo retomados no plano internacional.
O propósito desse capítulo é a análise da postura e respectiva prática político-
econômica da FIESP diante do processo de reestruturação da economia brasileira
ocorrida na década de 1990, foco central de nosso trabalho, como afirmado em
nossa introdução.
1
Estamos nos referindo a FUKUYAMA, Fancis. O fim da história e o último homem. São Paulo:
Rocco, 1992. Não foi preciso mais que uma década para que a realidade histórica colocasse a baixo
a tese central dessa verdadeira insanidade intelectual.
74
No entanto, a inflexão econômico-política a que nos referimos, bem como
seus determinantes sociais, estão inseridos num processo ainda maior, que
sumariamente, procuramos descrever acima.
Para compreendermos a particularidade brasileira nesse processo é preciso,
antes de mais nada, apreendermos a totalidade em que esta se insere, bem como
os nexos causais e as relações entre as partes constituintes desse complexo de
complexos. É o que procuraremos fazer a partir de agora.
II. I – Velhas respostas para antigos problemas
O capitalismo mundial passou por um processo (ainda em curso) de
significativas transformações no decorrer dos últimos trinta anos. A história recente
engendrou uma série de reestruturações na forma de organização do Capital, cujo
eixo central a partir do final da Segunda Grande Guerra baseava-se nas teorias
keynesianas de gerenciamento do Estado-nação, bem como, no modelo de Estado
de Bem-Estar Social por este criado, cuja versão norte-americana denominou-se
Welfare State.
Esse modelo de condução da política econômica nasceu como resposta às
contingências históricas da Crise de 1929, bem como do processo de reconstrução
européia no pós-1945. Pautava-se, grosso modo, na intervenção direta da
administração estatal em todas as esferas da economia, como forma de regular os
mercados, corrigir distorções e canalizar recursos financeiros para as áreas sociais,
tais como criação de empregos, habitação, saúde, educação, etc. Uma dessas
75
formas de participação direta do Estado nas economias nacionais concretizou-se
historicamente através da criação de empresas estatais em setores estratégicos.
Assim, o Estado passa a assumir a função de “empresário”, atuando diretamente na
criação de empresas e todo o desenvolvimento econômico-social que estas
pudessem gerar.
2
Parametrados por tais pressupostos econômicos, os pólos centrais do
capitalismo mundial à época (EUA e alguns países da Europa Ocidental,
principalmente Grã-Bretanha e França) alcançaram níveis de recuperação produtiva
exorbitantes, aumentando a atividade industrial em mais de 50% entre o período de
recuperação do Crash de 1929 e o início da Segunda Guerra (1939). Guardadas as
devidas particularidades históricas, os reflexos dessa “fase de ouro” do capitalismo
mundial se fizeram sentir também nos países periféricos, como é o caso do Brasil na
década de 1950.
Apesar de não ser uma unanimidade
3
, os pressupostos do economista
britânico John Maynard Keynes inaugurou um ciclo de recuperação da economia
mundial que duraria até os primeiros anos da década de 1970.
Já em meados da década de 1960, esse processo de revigoramento e
desenvolvimento da economia mundial passa a dar claros sinais de arrefecimento. O
“fôlego” das economias imperialistas centrais se esgotara, e os limites de tal ciclo
econômico passam a ser visíveis. Abria-se então um novo ciclo, agora de crises.
2
Ver fundamentalmente: KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda.
Col. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
3
Mesmo diante da crise gestada a partir de 1929, os pressupostos do liberalismo clássico não
haviam sido deixados de lado por alguns setores da intelectualidade. Prova disso é a publicação em
1944 de O Caminho da Servidão, obra de Friedrich Hayek, onde o autor resgata antigos princípios do
liberalismo econômico, além de tecer uma crítica contumaz ao modelo keynesiano. Como
desdobramento dessa reação liberal, foi fundada em 1947 a Sociedade Mont Pèlerin, cujas
discussões e contribuições dariam origem ao que hoje é denominado modelo neoliberal. Voltaremos a
essa discussão mais à frente.
76
Marcada por um grave e profundo processo de recessão, onde os níveis de
produção despencaram em escala vertiginosa, com respectivas quedas nas taxas
médias de lucro, essa seria a mais grave crise do período do pós-guerra, pois
aplacaria de uma só vez todos os pólos econômicos do imperialismo mundial.
Em contextos anteriores, mesmo no período de recuperação mundial do
capitalismo, algumas nações passaram por queda no seu PNB (Produto Nacional
Bruto). É o caso dos Estados Unidos em 1960, da Alemanha Ocidental em 1966/67
e do Japão em 1965. No entanto, estas eram crises isoladas, que foram sanadas
através de fluxos de exportações para os países que não passavam pelo mesmo
processo. Essa dessincronização do ciclo industrial, segundo Ernest Mandel
4
, havia
minimizado os impactos e a amplitude das recessões. Porém, o processo que
passou a ser observado a partir da década de 1970, gerando o colapso das
economias mundiais entre 1974/75, possuiu uma característica de sincronia.
Segundo Mandel “(...) em 1974/75 (...) a sincronização dos movimentos conjunturais
nos principais países imperialistas ampliou o movimento de retração da atividade
econômica”, gerando assim a primeira e mais ampla “recessão generalizada da
economia capitalista mundial desde a segunda guerra”
5
.
O autor nos alerta para o fato de essa não ser uma crise ocasional, ou de um
setor em específico (Crise do Petróleo, por exemplo), mas sim o resultado de um
processo de “transformações econômicas profundas”, geridas durante a fase de
expansão econômica do pós-guerra, sendo de certo modo uma “conseqüência
inelutável” de tal processo de expansão, pois expressa as contradições estruturais
da forma capitalista de organização sóciometabólica
6
.
4
MANDEL, 1990, p. 10.
5
Ibidem, p. 11.
6
Ao tratar das causas dessa crise, Mandel aponta para o fato de que, isoladamente, os países
passaram durante o período 1945-1974 por momentos de crise, e encontraram saídas na expansão
77
A resposta à crise passa a ser gestada e implementada, como não poderia
deixar de ser, a partir dos pólos mais avançados do capitalismo imperialista,
particularmente Inglaterra e Estados Unidos. Diante da crise, o governo destes
do crédito e na expansão monetária. Contudo, como toda crise de superprodução, essa teria se
expandido de tal forma, a ponto de afetar todas os principais pólos da produção mundial: “A sincronia
internacional do ciclo industrial não é, contudo, nada fortuita. Resulta de transformações econômicas
mais profundas, que se produziram no curso do longo período de expansão que a precedeu; é de
certo modo sua conseqüência inelutável. (...) Essa expansão tinha dado um impulso poderoso a um
novo avanço das forças produtivas, a uma nova revolução tecnológica. Propiciou um novo salto para
a concentração de capitais e a internacionalização da produção, as forças produtivas ultrapassando
cada vez mais os limites do estado burguês nacional (tendência que começou a se manifestar desde
o início do século, mas que se ampliou consideravelmente desde 1948). A divisão internacional do
trabalho no seio do conjunto dos países imperialistas progrediu fortemente. Do ponto de vista da
organização do capital – o que Marx chama de ‘o capital funcionando’ –, isso se traduz pelo
desenvolvimento das empresas multinacionais, cada uma delas produzindo mais-valia
simultaneamente em vários países. (...) A internacionalização da produção, que, no regime capitalista,
toma necessariamente a forma de uma concentração e de uma centralização internacionais do capital
sempre mais avançada, resiste cada vez mais às tentativas de os estados imperialistas nacionais
aplicarem com sucesso uma política anticíclica, cujo alcance continua limitado, no essencial, às
fronteiras nacionais. (...) A técnica principal utilizada pelos governos burgueses para tentar ‘controlar’
o ciclo depois de 1945 foi a política de expansão e controle sucessivos do crédito, isto é da moeda
escritural e da massa monetária no seu conjunto (da ‘demanda global’). Assim, para frear a amplitude
das crises periódicas contínuas de superprodução que vinham ocorrendo havia 25 anos, aplicaram a
expansão do crédito e a expansão monetária (trata-se, bem entendido, de esforços para reduzir a
amplitude das crises, não para impedir seu desencadeamento, para o que houve tanta incapacidade
quanto no passado). A característica principal da longa fase do pós-guerra, (...) foi, portanto, o
aparecimento de ciclos de crédito parcialmente autônomos com relação ao ciclo industrial, que
procuravam ‘compensá-lo’. Mas, como o Estado, o Banco Central e a moeda capitalista continuam
nacionais, esses ciclos de créditos também foram nacionais, e bastante dessincronizados no plano
internacional. Cada governo imperialista pôde aplicar ‘sua’ política de crédito, ligada de modo ‘flexível’
às flutuações do mercado mundial através das flutuações dos balanços de pagamento nacionais. (...)
Entretanto, as técnicas anticrise eram e continuam fundamentalmente inflacionárias. A longo prazo, a
aplicação repetida de uma política de expansão monetária a cada cinco ou seis anos deveria conduzir
a uma aceleração mundial da inflação. A partir do momento em que a inflação se acelerou em todos
os países imperialistas e levou ao desmoronamento do sistema monetário internacional – simbolizado
pela proclamação da inconversibilidade do dólar em ouro –, todos os governos imperialistas foram
obrigados a aplicar simultaneamente uma política antiinflacionária, mesmo que apenas pela pressão
da concorrência. Daí um novo impulso à sincronização internacional do ciclo industrial. (...)
Finalmente, na medida em que a longa fase de expansão do pós-guerra chegava a seu fim, em que
os principais motores da expansão começaram a se esgotar, em que o crescimento da produção a
longo prazo devia diminuir, as contradições da economia capitalista se mostraram mais graves, tanto
para cada país imperialista quanto entre eles, assim como entre eles e os países semicoloniais ou
dependentes. As fases de boom estavam condenadas a ficar mais curtas (a de 1972/73 foi em larga
medida especulativa), enquanto as fases de estagnação, ou mesmo de recessão, se alongavam.
Isso, evidentemente, facilita a sincronização internacional do ciclo – recessões que só duram seis
meses se encavalarão menos facilmente em muitos países do que recessões que duram dois anos.
(...) A recessão generalizada (...), é uma crise social do conjunto da sociedade burguesa, uma crise
das relações de produção capitalistas e de todas as relações sociais burguesas, que se imbrica com
a diminuição durável do crescimento econômico capitalista, acentua e agrava os efeitos das
flutuações conjunturais da economia, e recebe por sua vez novos estímulos dessas flutuações”.
Ibidem, p. 11, 12 e13. A partir da citação acima, procuramos descrever a natureza e as causas
fundamentais da crise do Capital na década de 1970. No entanto, o detalhamento de tal processo,
com seus respectivos efeitos sobre todos os setores específicos da economia mundial, podem ser
encontrados no conjunto da obra citada. Para o nosso intento, o trecho acima parece ser o suficiente.
78
países
7
, passam a resgatar antigos postulados liberais, revitalizando tais
pressupostos, ou seja, contextualizando-os historicamente. O “manual” de economia
a ser seguido seria a obra O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, publicada
em 1944, onde o autor tece uma crítica profunda ao modelo keynesiano. Hayek
fundaria ainda, em 1947, a Sociedade Mont Pèlerin. Contando com a colaboração
de importantes intelectuais das Ciências Sociais, essa organização passa a teorizar
e a propor formas alternativas de organização do capitalismo
8
. Perry Anderson
argumenta que esse organismo se caracterizou como:
(...) uma espécie de franco maçonaria neoliberal, altamente
dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois
anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo
reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro
e livres de regras para o futuro (...)
9
.
Em sua obra, Hayek elabora uma poderosa crítica contra toda e qualquer
forma de interferência estatal na economia; aponta que o Estado cria mecanismos
que limitam a ação do mercado – principalmente a livre concorrência – ferindo o
“direito sagrado” da liberdade individual. O título de seu livro faz alusão à servidão
que essa forma de organização político-econômica (o keynesianismo) traria à
humanidade: as sociedades humanas deixariam de ser livres, pois passariam a
servir o Estado, numa espécie de “servidão moderna”.
A longa fase de expansão do pós-guerra fez com que os pressupostos de
Hayek fossem deixados de lado. Entretanto, estes – tal como Fênix – são retomados
7
Margaret Thatcher assume como primeiro-ministro da Inglaterra em 1979 e Ronald Reagan como
presidente dos Estados Unidos em 1980.
8
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo. Pós-
neoliberalismo – As políticas sociais e o Estado democrático. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996. Essa
organização contava com a participação ativa de críticos históricos do New Deal norte-americano e
do Estado de bem-estar europeu. Entre eles destacamos a importante presença de Milton Friedman,
Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e
Salvador de Madariaga. ANDERSON, op. cit., p. 10.
9
Ibidem, p. 10.
79
como a única saída a ser seguida a partir da crise que se generaliza em meados dos
anos de 1970.
Tanto as causas, como as justificativas para a retomada dos pressupostos
liberais
10
, serão apontadas a partir da constatação, e respectiva crítica, que os
autores da Sociedade Mont Pelèrin teceram a respeito da participação do Estado no
mercado. Apontam nesse momento que, os motivos da crise se concentram no fato
de as administrações estatais demandarem uma enorme quantidade de recursos
financeiros para os setores sociais. Segundo Hayek, o poder concedido aos
sindicatos e ao movimento operário em geral, fez com que estes aglutinassem forças
para reivindicar melhores salários e melhoria nas áreas sociais (Estado de bem-
estar). O resultado desse processo era a enorme erosão que a acumulação
capitalista passa a sofrer, pois o aumento dos níveis de remuneração do trabalho fez
com que as taxas médias de lucros das empresas caíssem vertiginosamente. Estas
seriam, segundo Hayek, as verdadeiras causas da crise que se instala nos anos
1970.
Os Estados nacionais deveriam assumir uma outra postura diante da crise,
sem perder, contudo, seu caráter controlador. No entanto, esse controle não deveria
se dar sobre o mercado, mas sim sobre o movimento sindical e a organização dos
trabalhadores em geral. Era necessário esfacelar a capacidade e o poder dos
sindicatos, reduzir drasticamente os gastos com o setor público e diminuir de forma
contundente a participação estatal na economia.
10
Procuraremos não fazer uso da expressão “neoliberal”, a não ser em casos de citações. Essa
terminologia, tal como vem sendo utilizada, nos parece imprecisa, pois está impregnada de um
politicismo partidário e panfletário, não contribuindo com a verdadeira apreensão do processo atual
de desenvolvimento da economia mundial. Na verdade, o que podemos perceber é uma revitalização
e uma retomada de antigos pressupostos do liberalismo clássico – como já afirmamos anteriormente.
O diferencial é o contexto histórico e as particularidades e singularidades que estes assumem. No
nosso entendimento, não há nenhum elemento inovador em tais teorias; pelo contrário, faz parte do
processo de respostas que o capitalismo imperialista oferece à crise que se generaliza na década de
1970.
80
A nova “meta” a ser atingida seria a estabilidade monetária. Para tanto, era
preciso acabar com o Estado de bem-estar e “fortalecer” o exército industrial de
reservas, como forma de pressionar a queda dos níveis salariais e desestruturar o
movimento sindical
11
. Perry Anderson aponta ainda, alguns outros ingredientes
dessa revitalização do receituário liberal:
(...) Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar
os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava
reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as
rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a
dinamizar as economias avançadas (...). O crescimento retornaria
quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais
houvessem sido restituídos.
12
Essa foi a forma pela qual os pólos centrais do imperialismo passaram a
organizar suas economias a partir dos anos 1980. Durante toda essa década
presenciamos a ascensão, e respectiva hegemonia, do programa de reposição do
liberalismo na Europa Ocidental
13
.
No início dos anos de 1990, um novo processo de crise se instala nas
economias centrais. A dívida pública da maioria dos países retoma um nível de
crescimento fabuloso; uma nova recessão se instala em 1991, inclusive nos Estados
Unidos e Inglaterra; o número de desempregados beira a casa dos 40 milhões; e os
“(...) índices de crescimento econômico tornaram-se muito sombrios nos países da
OCDE(...)”
14
.
11
Ou em outras palavras, aumentar o número de desempregados disponíveis no mercado de
trabalho, explorando o desespero humano pela sobrevivência. Essa forma de exploração econômica
da classe trabalhadora, não apresenta nenhum novo aspecto, pelo contrário, é utilizada com grande
eficiência pela burguesia desde os primórdios do capitalismo.
12
ANDERSON, 1996, p. 11.
13
Além da Inglaterra, 1979, e dos Estados Unidos, 1980, temos a então Alemanha Ocidental em
1982, com a eleição de Helmut Khol, a Dinamarca em 1983, com o governo de Schluter, e em
seguida, praticamente todos os países do norte da Europa. Mesmo em nações onde governos de
“centro-esquerda” conseguiram se eleger, as pressões dos mercados financeiros internacionais
fizeram sucumbir qualquer tentativa de resistência ao programa liberal, haja vista o caso do governo
Miterrand, na França, que, apesar do esforço de realizar uma política de deflação e de pleno
emprego, não conseguiram escapar à “onda” que passa a atingir o continente. ANDERSON, 1996, p.
11-13.
14
Ibidem, p. 16.
81
Porém, as propostas liberais não são deixadas de lado, pelo contrário,
conseguem um novo fôlego, ganhando um grande impulso com a queda do Leste
Europeu. Os novos comandantes dos países da Europa Oriental passam a adotar o
programa liberal incondicionalmente. Anderson afirma que “não há liberais mais
intransigentes no mundo do que os ‘reformadores’ do Leste”
15
, referindo-se ao grau
de fidelidade destes com relação ao itinerário econômico-político traçado por Hayek
e seus colaboradores.
Além dos países da Europa Oriental, a década de 1990 será também o
período de abandono e negação do keynesianismo, e da inauguração da retomada
liberal na América Latina. Com exceção do Chile – que já vinha percorrendo tal
itinerário desde 1973, a partir do Golpe Militar e respectivo governo facínora do
general Augusto Pinochet – e da Bolívia – onde, a partir de 1985, esses preceitos
começam a ser aplicados com o objetivo de frear o processo de hiperinflação então
reinante no país – as principais economias latino-americanas passam a se
reestruturar a partir dos “ensinamentos” da Sociedade Mont Pelèrin, no decênio
1990/2000.
A virada continental em direção ao neoliberalismo não começou
antes da presidência de Salinas, no México, em 88, seguida da
chegada ao poder de Menem, na Argentina, em 89, da segunda
presidência de Carlos Andrés Perez, no mesmo ano, na Venezuela,
e da eleição de Fujimori, no Peru, em 90 (...).
16
Apesar de não mencionado por Anderson, não podemos nos esquecer que o
ano de 1990 marcou o início do governo de Fernando Collor de Melo, governo este
15
“(...) gente como Balcerovics na Polônia, Gaidar na Rússia, Klaus, na República Tcheca, eram os
servidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo keynesianismo e pelo
Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo o modelo dominante do capitalismo
ocidental do pós-guerra. Estas lideranças políticas preconizam e realizam privatizações muito mais
amplas e rápidas do que haviam sido feitas no Ocidente (...).” . Para se ter uma idéia da radicalidade
com que estes países passam a adotar os preceitos liberais, o então primeiro-ministro da República
Tcheca, Vaclav Klaus, chegou a fazer ataques de forma pública a Allan Greenspan, presidente,
naquele momento, do Banco Central Norte-Americano (Federal Reserve Bank), “acusando-o de
demonstrar debilidade e frouxidão lamentáveis em sua política monetária”. Ibidem, p. 18.
16
ANDERSON, 1996, p. 20.
82
que daria início ao projeto de reposição das propostas liberais no Brasil. O programa
de reestruturação econômico-política iniciado por Collor, será implementado de
forma estruturada durante toda a década que se segue, nos dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso. Antes de nos debruçarmos sobre esse período e
analisarmos a postura da fração industrial da burguesia brasileira – através do
posicionamento de sua principal entidade, a FIESP –, se faz necessário um relato,
mesmo que breve, de um outro processo que vinha sendo gestado há décadas, e
que está intimamente imbricado com a discussão que fizemos acima da reposição e
revitalização dos preceitos liberais, na reorganização da economia mundial no pós-
crise da década de 1970: trata-se do processo de Mundialização do Capital
17
.
II. II – Uma nova etapa no processo de expansão e internacionalização do
Capital
Uma das características intrínsecas a forma sociometabólica do Capital é a
sua capacidade de “auto-regeneração”. Como forma de organização e controle de
relações materiais e espirituais, possui a necessidade constante de expansão de
suas forças produtivas – o que Marx definiu como um constante processo de “auto-
revolução”. Ocorre que esse conjunto de relações sociais é composto por uma série
de contradições inerentes à sua forma de ser, que se explicitam cotidianamente,
porém, se intensificando em momentos de crise.
17
Utilizaremos o conceito de Mundialização a partir das análises de François Chesnais por
entendermos que esta apreende de forma concreta o processo em discussão.
83
Desde sua gênese – período que Marx denominou de “acumulação primitiva”
–, o Capital, e posteriormente, sua forma capitalista de organização social da
produção, passou por momentos de crises estruturais, que trouxeram à tona e
expuseram à luz do sol, as mais variadas formas de mazelas e deformações que tal
modo de produção engendra, demonstrando claramente que a lógica que este
obedece é a da produção de mercadorias, excluindo qualquer possibilidade de
desenvolvimento das potencialidades humanas em sua totalidade.
Contudo, mesmo diante de tais processos de crise, o Capital encontra saídas
para supera-las a partir das contingências históricas por estas criadas. Supera os
processos de crise imprimindo continuidade e permanência na forma de organização
sociometabolica reinante. A esta capacidade de auto-regeneração que nos referimos
acima.
Não pretendemos de forma alguma nos aprofundar em tal discussão. Essas
observações introdutórias nos serve apenas de ponto de partida para
compreendermos o atual processo de mundialização da economia capitalista. Ou
seja, a devida compreensão desse processo passa pela análise de que, este, é
gerido como forma de resposta aos novos processos de crise que se estabelecem
nos pólos centrais do imperialismo mundial a partir da década de 1990, cuja
discussão a cerca da reposição dos preceitos liberais – elaborada no item anterior –
se insere.
Como vínhamos afirmando, essa “renovação” constante do modo de
produção capitalista faz parte da forma de ser do Capital. Segundo Octavio Ianni,
para ser compreendido “como um processo civilizatório” é preciso reconhecer
algumas “características essenciais” dessa forma de organização social da
84
produção
18
. Estas podem ser sintetizadas em, primeiro: a capacidade e a
necessidade do capitalismo se expandir continuamente, não encontrando fronteiras
(naturais ou sociais) para seu processo de dominação e controle sóciometabólico;
segundo: a partir de sua expansão, o Capital – através de seu principal agente
histórico-político, a burguesia – reorganiza e subordina às formas existentes à sua
forma própria de produção, a produção de mercadorias; e terceiro: à medida que se
expande de forma extensiva e intensiva, em escala mundial, O Capital
simultaneamente se concentra e centraliza, também em escala mundial, dando
origem a formação dos grandes monopólios capitalistas
19
.
Todo o processo das Grandes Navegações e Descobrimentos Marítimos, bem
como a consecutiva exploração colonial, tanto dos séculos XV e XVI, como a
expansão afro-asiática dos séculos XIX e XX, explicitam de forma clara as
características supra citadas. Entretanto, a nova configuração que o capitalismo
assume atualmente, no processo de concentração e monopolização do capital, nos
parece ser o eixo central da análise do processo de Mundialização.
Em termos econômicos, essa nova configuração se manifesta através da
inserção, intensiva e extensiva, do capital financeiro mundial nas economias
nacionais. Outro fator a ser apontado é a total liberdade de ação com que se move
tal fração do capital. Segundo Chesnais:
É na produção que se cria riqueza, a partir da combinação social de
formas de trabalho humano, de diferentes qualificações. Mas é a
esfera financeira que comanda, cada vez mais, a repartição e a
destinação social dessa riqueza. Um dos fenômenos mais
marcantes dos últimos 15 anos tem sido a dinâmica específica da
esfera financeira e seu crescimento, em ritmos qualitativamente
18
IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.53.
19
Na verdade, essas três características foram apontadas – ainda que de forma genérica, como é o
caso da tendência a formação dos grandes monopólios – pelo próprio Marx, sendo que a literatura
marxista tratou de analisar profundamente tais características. A obra Imperialismo, fase superior do
capitalismo, de Lênin, exemplifica perfeitamente o que afirmamos.
85
superiores aos dos índices de crescimento do investimento, ou do
PIB (inclusive nos países da OCDE), ou do comércio exterior.
20
Esses capitais buscam constantemente uma maior liquidez, daí a
necessidade de “viajarem” o mundo em busca de “mercados seguros”. Na linguagem
do capital financeiro, mercado seguro significa a possibilidade de se movimentarem
livremente, altas taxas de rentabilidade (juros), inflação próxima a zero – se é que
isso é possível – e estabilidade política.
É importante salientar que, os investimentos dos grandes grupos imperialistas
– indústria e serviços em geral – passam a ser orientados segundo a lógica da
liquidez; o interesse agora é alcançar os mercados que possam oferecer um
processo de valorização do capital com grande rentabilidade no menor tempo
possível
21
.
Nesse contexto, a relação entre Capital e Trabalho também apresentou
grandes mudanças. Para aumentar os índices de extração de mais-valia dos
trabalhadores e, conseqüentemente, as taxas médias de lucros das empresas, estas
passam a investir maciçamente em capital constante (novas tecnologias),
reestruturam completamente o processo produtivo, adotando novas técnicas de
gerenciamento, aumentando de forma dramática o contingente do exército industrial
de reservas. Junte-se a isso o fato de, no interior dos Estados nacionais – espaço
geográfico real/concreto de tais mudanças –, a burguesia alcançar vitórias políticas
importantes no que diz respeito à desregulamentação das relações de trabalho. O
20
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 15. Ainda segundo o
autor, são dois os mecanismos que alimentam tal dinâmica, sendo o primeiro a “’ inflação do valor dos
ativos’, ou seja, à formação de ‘capital fictício’ (especulativo)”, e o segundo baseia-se “em
transferências efetivas de riqueza para a esfera financeira, sendo o mecanismo mais importante o
serviço da dívida pública e as políticas monetárias associadas a este” (CHESNAIS, op. cit., p. 15). O
parêntese é nosso.
21
“(...) É nesse contexto que devem ser compreendidas as mudanças nas estratégias de
investimentos dos grandes grupos industriais. Sob influência da esfera financeira e da preferência
pela liquidez, o horizonte temporal de valorização do capital industrial tende a reduzir-se cada vez
mais e a alinhar-se, mundialmente, ao que diversos autores norte-americanos caracterizam como
short-termism’”. Ibidem, p. 16.
86
resultado desse processo, até o presente momento, tem sido as constantes derrotas
e respectiva postura defensiva do movimento sindical em nível internacional, bem
como todas as mazelas sociais que o desemprego estrutural e a queda do poder
aquisitivo dos trabalhadores produzem
22
.
Outro fato importante é que, pela primeira vez na História da Humanidade,
uma determinada forma de organização sociometabólica, passa a exercer sua
hegemonia sobre todo globo terrestre. Com a queda do Leste Europeu, o modo de
produção capitalista alcança suas últimas fronteiras, intensificando cada vez mais o
processo de integração internacional dos mercados financeiros. Reafirma-se assim a
tendência a internacionalização do Capital e do capitalismo.
Aqui, no entanto, reside uma questão bastante polêmica, qual seja, a do
Papel do Estado-nação no processo de mundialização. Alguns autores defendem a
tese de que os governos nacionais, diante da reestruturação econômica acima
descrita, passam a exercer um papel praticamente inexpressivo no comando de
suas economias. Estariam os governos nacionais – mesmo os de países centrais da
economia capitalista – totalmente subordinados aos interesses das empresas
transnacionais. Seriam verdadeiras “marionetes” nas mãos dos grandes grupos
imperialistas, sem poder de ação, agindo como meros espectadores, diante de um
processo inevitavelmente irremediável que possui força e autonomia próprias. O eixo
decisório teria se transferido da esfera do poder local para o mercado mundial:
(...) As relações, os processos e as estruturas de dominação e
apropriação, integração e antagonismo, freqüentemente dissolvem
fronteiras, locais de mando, referências. A verdade é que declina o
Estado-Nação, mesmo o metropolitano, dispersando-se os centros
decisórios por diferentes lugares, empresas, corporações,
22
O debate sobre a reestruturação produtiva ocorrida nas décadas de 1980/90, bem como dos seus
efeitos sobre a classe trabalhadora, já conta com enorme bibliografia, apesar de ainda ser um tema
candente e em discussão. No entanto, a título de consulta podemos indicar os recentes trabalhos de
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho – Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho.
São Paulo: Ed. Boitempo, 1999, e ainda ALVES, Giovanni. Trabalho e mundialização do capital.
Londrina: Ed. Práxis, 1999.
87
conglomerados, organizações e agências transnacionais.
Globalizam-se perspectivas e dilemas sociais, políticos, econômicos
e culturais. (...) Põe de modo claro a progressiva subordinação do
Estado-Nação aos movimentos e às articulações do capital. Ou
melhor, a dinâmica do capital revela-se diferente da dinâmica do
Estado-Nação, seja ele dependente, associado ou dominante (...).
23
Tal formulação teórica nos parece profundamente equivocada, pois coloca o
Estado-nação como uma entidade autônoma (superestrutura), que paira acima da
sociedade, à mercê das mais diversas classes sociais que possam vir a comanda-lo.
Essa conceituação está impregnada de um idealismo, já superado por Marx. O
Estado, bem como a organização burocrático-institucional que este assume
historicamente, não está desvinculado do processo econômico enquanto tal.
Vincula-se totalmente a esta. Dessa forma, O Estado se constitui como a esfera
“totalizadora” de comando político do Capital. Importante afirmar que não podemos
incorrer no erro teórico do determinismo. Imaginar que a esfera econômica
determina a estrutura do Estado ou vice-versa, seria uma simplificação grosseira. Há
na verdade uma “co-determinação” entre as várias esferas que compõem um
determinado complexo societário, num determinado contexto histórico.
A partir das análises marxianas a respeito dessa temática, István Mészáros
nos fornece a seguinte contribuição:
(...) Como estrutura de comando político abrangente do sistema do
capital, o Estado não pode ser autônomo, em nenhum sentido, em
relação ao sistema do capital, pois ambos são um só e inseparáveis.
Ao mesmo tempo, o Estado está muito longe de ser redutível às
determinações que emanam diretamente das funções econômicas
do capital. Um Estado historicamente dado contribui de maneira
decisiva para a determinação (no sentido da co-determinação) das
funções econômicas diretas, limitando ou ampliando a viabilidade de
algumas contra as outras.
24
Portanto, a autonomia do Estado-nação frente ao processo de mundialização
capitalista é inexistente. Pelo contrário, “(...) Esses processos, (...) acentuam os
23
IANNI, 1999, p. 89 e 90.
24
MÉSZÁROS, 2002, p.119. O parêntese é nosso.
88
fatores de hierarquização entre os países, ao mesmo tempo que redesenham sua
configuração(...)
25
. Nesse sentido, os governos nacionais exercem papel
fundamental na aplicação de medidas que possam atender aos interesses de classe
que representam, a saber, aos da burguesia.
Os “fatores de hierarquização” se constituem num complexo de relações
engendradas a partir dos contextos históricos em que tais nações estão inseridas.
Isso não elimina, de forma alguma, a relação de dependência e/ou subordinação
que as regiões periféricas do desenvolvimento capitalista mantêm com os núcleos
centrais. Como afirmamos, são as particularidades históricas do Estado-nação,
inseridas nos seus devidos contextos, que poderão indicar a sua posição dentro
dessa hierarquia do Capital.
A partir disso, podemos constatar que o processo de mundialização acentuou
tal hierarquização, pois com a fim da União Soviética, a burguesia norte-americana
passa a exercer a posição hegemônica na geopolítica e no domínio dos mercados
mundiais.
26
Logo em seguida, temos os países que formam a União Européia e o
Japão. Segundo Chesnais, estes seriam os principais núcleos diretivos do Capital na
atualidade. Ditam as regras a serem seguidas pelo comércio e as finanças
internacionais.
Os países que estão na periferia do capitalismo conseguem uma pequena
integração, a partir do cumprimento de acordos econômico-financeiros
estabelecidos, invariavelmente, por agências e instituições do capital financeiro
mundial, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral de
Tarifas e Comércio (GATT), atualmente, Organização Mundial do Comércio (OMC).
25
CHESNAIS, 1996, p. 18.
26
Importante observar que essa hegemonia se dá através da ampliação da área de alcance do
capital financeiro norte-americano, sendo que, qualquer empecilho ou obstáculo deve ser superado a
qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário “criar motivos” para novas guerras. O exemplo
mais recente é a Guerra do Iraque.
89
Como demonstrado anteriormente – quando analisarmos a particularidade histórica
da objetivação do capitalismo no Brasil –, a própria formação histórica desses
países, engendrou as particularidades que imprimem seu caráter de subordinação –
bem como o de suas burguesias – em relação aos pólos centrais do imperialismo
mundial.
27
É exatamente nesse ponto que se insere a discussão da retomada e da
revitalização dos pressupostos liberais nas décadas de 1980/90. A atuação da
burguesia mundial, no interior de seus respectivos Estados nacionais, foi – e
continua sendo – fundamental para que tal projeto político-econômico alcançasse os
objetivos desejados. Foi através da retomada de tal itinerário teórico que o capital
financeiro mundial alcançou a liberdade desejada para realizar seu processo de
expansão mundial. Na esfera política, a burguesia impôs uma série de derrotas ao
movimento operário, o que possibilitou a realização de uma reestruturação produtiva
e a desregulamentação das relações entre Capital e Trabalho, bem como a adoção
de novos mecanismos de regulação econômica.
Na verdade, tanto o advento da Mundialização, como a revitalização dos
preceitos liberais, fazem parte de um mesmo processo, qual seja, de reposição
econômico-político da burguesia mundial diante dos constantes processos de crise
do Capital, geridos a partir da década de 1970. Tal momento histórico só pode ser
apreendido em sua totalidade, se levadas em conta as singularidades e
particularidades que, sumariamente, analisamos acima.
27
“(...) São eles, então (os países centrais), que ditam as regras do comércio e das finanças
internacionais (...) e também dos posicionamentos menos formais que ordenam o relacionamento
interno do oligopólio mundial. Compreende-se o peso que esse fator representa, para a América
Latina em geral e para o México e o Brasil em particular, e como pode condicionar inteiramente a
política externa e interna das camadas dirigentes” (CHESNAIS, 1996, p. 19). Essa afirmação parece
ser de extrema valia para compreendermos o significado do documento produzido pelo governo
norte-americano, em parceria com o FMI, o Banco Mundial e o BID, em 1989, cujo título é O
Consenso de Washington. Analisaremos este documento ao tratarmos da particularidade brasileira ca
década de 1990.
90
Passados sessenta anos desde a publicação de O caminho da servidão, as
idéias de Hayek e seus colaboradores comprovaram ser de grande valia aos
interesses da burguesia, ainda que estes sejam extremamente danosos a
humanidade como um todo.
A nossa análise recai sobre a participação e respectiva relevância da
burguesia industrial brasileira, através da principal entidade representativa dessa
fração de classe no país, a FIESP, no processo particular de inserção da economia
do país nesse contexto de Mundialização e retomada do liberalismo. É o que
faremos a partir de agora.
II. III – FIESP: forma de ser de uma entidade burguesa de caráter prussiano –
colonial
Os anos de 1990 marcam o início da reestruturação econômica do Brasil, que
levaria o país a se inserir no famigerado processo de Mundialização do Capital,
através do resgate dos pressupostos liberais.
Depois de 29 anos, a nação voltaria a escolher, através das eleições diretas
de 1989, o presidente da República. Aquele que fosse eleito herdaria uma economia
estagnada e em frangalhos, submersa num profundo processo recessivo e
inflacionário, cujo endividamento externo se agravara durante toda a década
anterior.
O pleito daquele ano definiu que o responsável pelo comando da nação rumo
à “modernidade” seria Fernando Collor de Melo. Em torno de sua candidatura,
91
reuniram-se os setores mais conservadores e reacionários da sociedade brasileira –
entre eles a FIESP –, cujo projeto político-econômico vinha sendo elaborado a mais
de uma década, sem, no entanto, apresentar qualquer aspecto de originalidade.
Antes de tratarmos do contexto econômico-político brasileiro durante a década de
1990, analisemos diretamente a proposta da FIESP para a sociedade brasileira.
Em agosto de 1990 a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo,
comandada naquele momento pelo empresário Mário Amato, publica um documento
que expõe de forma explícita o ideário da entidade e as propostas concretas que
deveriam ser tomadas rumo à inserção do “Brasil moderno” na “nova ordem
econômica do mundo”: Trata-se do livro intitulado Livres para crescer – proposta
para um Brasil moderno.
28
Elaborado por uma equipe de técnicos e consultores
29
, esse documento
passa a ser a “cartilha política-econômica” da entidade na luta pelas mudanças que
reivindicam como necessárias e essenciais para o país.
Já na Apresentação e na Introdução, a FIESP defende seus princípios
fundamentais, quais sejam, a defesa da propriedade privada e da livre concorrência:
Aqui se faz uma opção: por um Brasil moderno, eficiente e
competitivo, adulto e sem paternalismo; inserido no Primeiro Mundo,
respeitando os valores fundamentais da comunidade internacional,
que também são os nossos; por uma economia que funcione sob o
regime de mercado, reconhecendo a função indelegável do Estado
de coordenar a atividade econômica, mas respeitando as leis de
mercado, a livre iniciativa e a liberdade de preços, tendo como
prioritário o interesse do consumidor. Aqui se faz a opção pelo
estado de direito, em que a lei não se ajusta ao líder político da
ocasião, mas é a expressão dos princípios da sociedade, que só
muda vagarosamente, com a sua transformação.
30
28
FIESP. Livres para crescer – proposta para um Brasil moderno. São Paulo: Cultura Editores
Associados, 1990.
29
O livro teve a coordenação de Maria Helena Zockun, sendo a equipe de consultores formada por
Antonio Evaristo Teixeira Lanzana, Carlo Alberto Longo, Celso Luiz Martone, Eduardo Gianetti da
Fonseca, Guilherme Leite da Silva Dias, José Pastore e Simão David Zilber. Ana Maria Pastore
Gondim exerceu a função de economista-assistente.
30
FIESP, 1990, p. 16.
92
A primeira parte do livro – Diagnóstico da economia brasileira – refaz o
itinerário econômico brasileiro desde o governo de Juscelino Kubitscheck, até àquele
momento (1990), demonstrando os acertos e erros, bem como o esgotamento do
modelo de desenvolvimento liderado pelo Estado.
Argumentam que a economia brasileira necessitou do Estado para planejar e
impulsionar seu desenvolvimento durante o período 1950-1980, intervindo de todas
as formas: proteção ao mercado interno, financiamento externo e crédito ao setor
privado, investimento em infra-estrutura (inclusive as estatais), medidas estas que
possibilitou, durante a década de 1970, a integração da economia brasileira aos
fluxos internacionais de bens e de capital
31
.
Ainda na primeira parte, é tratada a questão da abertura da economia em
relação ao mercado externo. Argumentam que o modelo de uma economia
“fortemente protegida” e fechada às transações do comércio internacional havia se
esgotado, sendo este um dos fatores preponderantes do presente processo de crise.
Decorrem daí, segundo o documento, alguns dos problemas mais graves de nosso
quadro social. Apontam que o modelo desenvolvimentista havia produzido
“distorções” enormes na “distribuição de renda”, aprofundado pela problemática do
desemprego. Versa ainda, sobre o tema do crescimento populacional, bem como
sua relação direta com a questão “distributiva”.
Toda a análise está impregnada pela ideologia liberal. Como é tradição no
Brasil, ao se pronunciarem a respeito das questões sociais mais diversas, a
burguesia internamente instalada imprime em seus discursos um tom paternalista e
de grande benevolência para com a sociedade como um todo. Apesar da jocosidade
de tais ponderações, estas tem uma razão de ser. Representam o projeto político-
31
Ibidem, p. 22 e 23.
93
econômico de uma fração considerável da burguesia brasileira que, diante da
revitalização do liberalismo, refletem e reafirmam a forma como a burguesia
internamente instalada absorveu e colocou em prática tal matriz teórica, trazendo
consigo determinações históricas que apontam para um liberalismo de viés
prussiano.
32
A partir da segunda parte do documento, os consultores da Fiesp passam a
definir aquilo que afirmaram ser Uma nova estratégia de desenvolvimento.
Ao longo de três capítulos, discutem a definição do “novo” papel do Estado, a
necessidade e vantagens da inserção da economia brasileira no mercado externo –
via abertura de nossos mercados – e o contexto internacional que se expunha com a
queda do Leste Europeu, a formação de blocos econômicos e o processo de
Mundialização – que eles denominam “globalização” – da economia capitalista.
Seguindo o ideário da Sociedade Mont Pelèrin, defendem insistentemente, a
menor participação possível do Estado na economia. Inicialmente, argumentam que
seria ingenuidade e mesmo anacronismo, a defesa de um Estado minimalista –
seguindo a ortodoxia do laissez-faire –, sendo que a postura teórica a ser seguida
era a das Teorias Marginais (como se a segunda excluísse a primeira):
(...) convém deixar claro o que se entende por livre iniciativa e quais
suas principais limitações. A livre iniciativa ou sistema de mercado,
quando funciona competitivamente, gera uma distribuição eficiente
de recursos e produtos. A distribuição eficiente de recursos decorre
da equivalência entre a sua produtividade marginal e o seu custo.
Também, numa solução eficiente, é impossível melhorar o bem-
estar de um indivíduo (consumidor) sem penalizar o de outro; nesse
caso, os preços dos produtos são iguais aos seus custos (marginais)
de produção.
33
32
Ver a primeira parte deste trabalho, quando tratamos da forma de entificação/objetivação do
capitalismo no Brasil.
33
FIESP, 1990, p. 106. O negrito é nosso.
94
A função do Estado seria corrigir distorções, através da política fiscal e
monetária, onde o orçamento é peça vital. A administração deveria passar por uma
reestruturação, a começar pela redução drástica do número de funcionários.
Segundo a FIESP, era (e ainda é) preciso adotar um “perfil administrativo” de
empresa privada, no processo de comando da máquina pública. Este “perfil”
resultaria num alto grau de produtividade, baixando sensivelmente os gastos do
governo com as folhas de pagamentos, o que liberaria maiores montantes de
recursos para o investimento em áreas sociais e de infra-estrutura, estas, outras
funções da União, segundo o documento.
Um dos grandes problemas abordados pela FIESP é o da “má distribuição de
renda” que o país enfrenta. Afirmam que tal problemática sempre suscitou “fortes
emoções e muita demagogia populista”, sendo que “as emoções fortes não ajudam
a pensar, e a demagogia não resolve o problema”.
34
Como o crescimento
demográfico está intrinsecamente ligada à questão da “distribuição de renda”,
apontam que a primeira providência a ser tomada é elaborar programas de
planejamento familiar. Outro fator que alegam influir na renda é a má formação da
mão de obra brasileira. O mercado vive da concorrência e respectiva competição
que esta gera; as melhores posições (vagas/empregos) são ocupadas pelos
trabalhadores mais qualificados; automaticamente, com o crescimento da população
e com a depreciação do ensino no país, a força de trabalho nacional perde em
qualidade; somente os qualificados alcançam o mercado de trabalho, contribuindo
assim, para concentrar renda nas mãos de quem está empregado, enquanto a
grande massa de trabalhadores vive com um grave “quadro de privação material”.
A ignorância e a baixa produtividade do trabalho são as principais
causas do quadro de privação material em que vivem há séculos
tantos brasileiros. Se essas causas não forem atacadas desde já –
34
Ibidem, p. 106.
95
com o Estado concentrando esforços na formação de capital
humano na população mais jovem e pobre e implementando uma
política de planejamento familiar adequada –, jamais será quebrado
o ciclo da pobreza e da incompetência.
35
Cabe ao Estado, como afirmado na citação, interferir na sociedade
politicamente (mas não no mercado) para minimizar ou dirimir tais questões. É
próprio do pensamento liberal a tese implícita em tal afirmação: a lógica do mercado
e as classes que constituem tal esfera social, nada tem haver com o nível de
pobreza da população. Pelo contrário, está é uma questão de políticas públicas
(para utilizar a expressão corrente na atualidade), cabendo única e exclusivamente
ao Estado sua responsabilidade.
36
Sendo assim, é necessário e imprescindível, uma reestruturação do Estado
brasileiro, bem como de sua esfera de atuação, pois este se demonstrou ineficaz ao
longo do processo de desenvolvimento do país. De acordo com a entidade, a
iniciativa estatal ao longo desse processo atuou em três esferas: “a provisão de bens
públicos e semi-públicos, a atividade empresarial e a regulação da atividade
econômica”, sendo que em todas elas, respeitados os devidos contextos históricos,
revelou-se extremamente incapaz.
No que diz respeito aos “bens públicos e semi-públicos”, a constatação é de
que as esferas da justiça e da segurança pública são as únicas de atuação exclusiva
do Estado. As outras como saúde, educação, previdência social, comunicação, etc,
convivem com a participação (direta ou indiretamente) da iniciativa privada. Mais
uma vez, evocam a “função social” do Estado de fornecer os recursos àqueles
contingentes populacionais “menos favorecidos”. Precisamente nesse ponto,
afirmam que a distribuição de renda deve ser feita através da alocação de recursos
35
FIESP, 1990, p. 112.
36
Devemos nos lembrar que definições como “distribuição de renda” não contribuem de forma
alguma para a explicação do problema, pois não explicitam a relação de exploração econômica sobre
a classe trabalhadora, existente na forma de metabolismo social onde impera a lógica do Capital.
96
via impostos: “(...) Essas transferências podem e devem em geral ocorrer, isto é, a
despesa pública deve ter um efeito redistribuidor de renda, sendo direcionada para
os grupos mais carentes da sociedade”.
37
Porém, isto não ocorre no país, segundo a análise do documento, devido ao
fato de a iniciativa estatal não seguir os princípios apontados anteriormente. Apesar
de afirmarem que o Estado deve gerir seus recursos com o objetivo de produzir os
bens necessários às populações mais carentes, criticam a atuação estatal em todas
as esferas sociais que o mesmo atua. Sempre comparando os níveis de
produtividade e lucratividade da iniciativa estatal com o setor privado, passam a
apontar todos os problemas que emperram a educação, as comunicações, os
transportes, a saúde, entre tantos outros serviços públicos no país.
Criticam a criação e a manutenção de monopólios estatais, a gratuidade da
educação e da saúde, o sistema de seguridade social, enfim, praticamente todas as
áreas de atuação estatal.
38
Contudo, ao apontarem as soluções para estes
problemas, deixam claro sua tomada de posição em favor das propostas liberais:
As soluções terão que ser discutidas caso a caso, à luz dos critérios
anunciados, podendo envolver: 1. “Privatização”, no sentido de
participação privada na produção de bens “públicos”, quando viável;
2. Reformulação dos critérios de cobrança pela oferta de bens e
serviços públicos, eliminando onde possível a gratuidade; 3.
Requisito de níveis equivalentes de eficiência entre produção
pública e privada de bens e serviços “públicos”; 4. Descentralização
37
FIESP, 1990, p. 114.
38
“No Brasil, os princípios apresentados acima não têm sido respeitados por várias razões: 1. Em
certos casos, como comunicações, o Estado tem o monopólio da produção do bem ou serviço (...) 2.
o fornecimento gratuito de bem ou serviço também viola o princípio de redistribuição da renda do
gasto público, assim como gera ineficiência ou desperdícios. Os casos da educação gratuita,
principalmente em nível universitário, e da não cobrança de circulação de veículos pelo custo
marginal de ampliar a infra-estrutura, por exemplo, ilustram a ineficiência e o efeito redistributivo
perverso do gasto público. 3. A obrigatoriedade da ‘compra’ do serviço produzido pelo Estado
também leva a efeitos perversos. Por exemplo, a contribuição obrigatória à previdência social oficial,
sem opção por previdência privada (...). 4. São muitos os exemplos em que o setor público não tem
qualquer consideração por produtividade, mesmo quando um parâmetro privado existe. Transporte
urbano, assistência médico-hospitalar, educação primária e secundária são áreas em que o Estado
criou monstros burocratizados, empreguismo e desperdício de recursos, além de qualidade inferior de
serviços. 5. A centralização excessiva e desnecessária de serviços, como educação e saúde, que
seriam mais eficientes providos em nível municipal (...)”. FIESP, 1990, p. 115.
97
de serviços onde possível, aproximando “produtores” e
“consumidores” e incrementando a fiscalização e a cobrança; 5.
Liberdade de escolha do cidadão entre o mesmo serviço produzido
pelo Estado e pela iniciativa privada, sempre que possível.
39
A partir desses princípios, a crítica recai diretamente sobre a atuação
empresarial estatal, ou o “Estado Empresário”.
Partindo da premissa que as empresas estatais são administradas a partir de
critérios políticos, defendem que estas passem a atuar de acordo com as “leis de
mercado”. No entanto, apontam que há impedimentos legais para que isso ocorra. O
primeiro deles é o regime de monopólio que impera no país, nos setores onde estas
empresas atuam
40
. O segundo, que deriva diretamente do primeiro, seriam as
barreiras existentes à entrada de capitais privados em tais setores. Um terceiro fator
seria o fato de estas empresas possuírem linhas de financiamento especiais
(privilégios) junto ao Tesouro Nacional, contribuindo para que estas nunca
“quebrem” ou encerrem suas atividades. Em seguida, assinalam que a política de
preços exercida por estes monopólios não possuem referências no mercado,
estando as tarifas sempre abaixo de seus preços reais, o que, juntamente com os
financiamentos subsidiados, contribuem para os enormes déficits orçamentários
dessas corporações, bem como para o processo inflacionário, pois, segundo o
documento “O monopólio estatal de emissão de moeda primária cria um incentivo
quase irresistível para que o governo se financie com inflação”.
41
Reafirmam a necessidade de reformas institucionais que possibilitem o fim
dos monopólios estatais e abram o caminho para o processo de privatizações. O
39
Ibidem, p. 116. A aspas são do autor.
40
Os setores elencados pelo documento são: “1. Prospecção, produção, refino e distribuição de
petróleo e derivados; 2. Petroquímica e indústria de fertilizantes; 3. Mineração de ferro, bauxita,
manganês, ouro, etc.; 4. Siderurgia e seus derivados; 5. Geração, transmissão e distribuição de
energia elétrica; 6. Pesquisa, prospecção e exploração de minérios radioativos e produção de energia
nuclear e seus equipamentos; 7. Comércio atacadista interno e internacional (tranding companies); 8.
Indústria de material bélico; 9. Serviços de processamento de dados; 10. Indústria bancária e
financeira”. Ibidem, p. 116. Itálicos do autor.
41
FIESP, 1990, p. 304.
98
critério a ser seguido pelo Estado, como já afirmado anteriormente, é o da
rentabilidade do setor privado:
Existem duas linhas complementares de ações para eliminar ou ao
menos reduzir a ineficiência gerada na economia pelas empresas
estatais. A primeira delas consiste em remover as distorções
listadas (...), preservando as empresas como entidades públicas. A
segunda consiste em privatizar, quando possível, ou simplesmente
encerrar suas atividades, quando a privatização for impossível.
42
No que diz respeito ao aspecto macroeconômico, defendem de forma
intransigente a independência do Banco Central, alegando que somente desta feita
seria “(...) possível realizar uma política monetária independente da política fiscal e
das pressões políticas do governo, objetivando tão somente a estabilidade
monetária da economia”.
43
É explícita a posição da FIESP em relação ao processo
inflacionário que, até aquele momento, atingia a economia brasileira. Segundo a
entidade, a estabilidade monetária deve ser uma meta a ser alcançada e mantida,
como pressuposto de qualquer retomada do processo de desenvolvimento
econômico do país.
44
Finalizando essa primeira parte propositiva, o documento define a linha de
atuação que o Estado deve assumir, no que diz respeito ao seu caráter regulador.
Os princípios a serem seguidos, nesse caso, são os seguintes: a regulamentação
por parte da esfera estatal deve se justificar tanto na perspectiva econômica como
social; tal regulamentação deve contribuir para a alocação dos recursos na
economia.
42
Ibidem, p. 118.
43
Ibidem, p. 305.
44
Ibidem, p. 120-127. Afirmam ainda: “Qualquer economia em que o governo mantenha um déficit
crônico ou secular é uma economia sob pressões inflacionárias crônicas. Essa situação é causada
por distorções na política fiscal que precisam ser eliminadas, como o comprometimento
permanente de recursos públicos em programas governamentais que nunca acabam, a
permanência de subsídios e incentivos fiscais muito tempo além da extinção dos motivos que os
justificam, a garantia de preços públicos abaixo do custo de produção para certas atividades, o
sistema de previdência e assistência social cuja eficácia e questionável” (Ibidem, p. 305). Os negritos
são nossos.
99
Mais uma vez, a crítica recai sobre a atuação inibidora da ação reguladora do
Estado brasileiro sobre a economia como um todo. O Estado é o responsável,
segundo a FIESP, pela regulamentação das seguintes áreas da economia: relações
econômicas internacionais (mercadorias, serviços e capitais); relações de trabalho;
mercados financeiros e de capitais; políticas setoriais (indústria e agricultura
principalmente); e preços, salários, taxas de juros e taxas de câmbio.
Apesar de genéricos, os caminhos apontados pelos autores do documento,
levam sempre a questão da abertura do mercado interno à concorrência
internacional, como forma de “modernizar” e inserir a economia brasileira em tal
cenário econômico. Nesse sentido, é importante apontar que a presença do capital
externo é (e sempre foi) muito bem vinda pelos líderes industriais representados pela
entidade paulista.
Quando trata das relações de trabalho, bem como da questão salarial, são
enfáticos ao apontar para a “livre negociação” entre Capital e Trabalho, bem como
para o fim da indexação dos salários, como forma de garantia de aumento de
produtividade e lucratividade para o capital (interno ou externo). Não existe nenhum
pudor (e não haveria de existir – a questão não é moral) ao afirmarem a necessidade
de reestruturação (leia-se precarização) das leis trabalhistas.
45
Antes de continuarmos com a descrição das propostas da FIESP para o Brasil
na década de 1990, faz-se necessário a análise daquilo que foi exposto até agora.
O período por nós analisado será dividido em duas fases: a primeira abrange
o período entre início do governo Collor até o final do mandato de Itamar Franco; a
segunda, refere-se aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso.
45
FIESP, 1990, p. 127-129.
100
Collor assume a presidência da república em 15 de março de 1990. Já no dia
seguinte, a então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, anuncia um pacote
de medidas cujo objetivo principal era o de conter o processo inflacionário instalado
no Brasil a mais de uma década: era o início do famigerado Plano Collor.
Troca de moeda, novas regras para o reajuste dos salários, congelamento de
preços, bloqueios de investimentos (poupança, conta corrente, overnight),
suspensão de subsídios e aumento de impostos, foram as primeiras medidas
encontradas pela nova equipe econômica para estabilizar a economia e introduzir o
país nos caminhos da “modernidade”. Aliás, foi com esse discurso que o então
candidato Collor de Mello havia vencido as eleições; o “personagem” criado pela
grande imprensa (e por todos os que o apoiavam) era o sinônimo do espírito “jovem”
e “varonil” de que o país necessitava; um “verdadeiro herói” que iria “salvar” o povo
brasileiro.
O então “caçador de marajás”, pseudônimo atribuído a Collor durante seu
governo em Alagoas – devido ao desmantelamento de esquemas de funcionários
fantasmas e de corrupção naquele Estado – coloca em prática o projeto político-
econômico que sua candidatura representava: a inserção da economia brasileira no
mercado financeiro internacional, a partir da revitalização dos pressupostos liberais.
Importante ainda salientar que a FIESP fez parte do bloco político que apoiou o
presidente eleito. A participação da entidade, através de suas lideranças foi decisiva.
Basta lembrar que o presidente da FIESP, Mário Amato, chegou a afirmar que se o
candidato da oposição – Luiz Inácio Lula da Silva – ganhasse a eleição, mais de 100
mil empresas deixariam o país, insinuando que esta candidatura possuía vieses
socialistas, e que isso seria um sério risco para a iniciativa privada.
101
No entanto, o projeto que o governo Collor encarnava, orientou-se através de
um documento que serviu de base para a reposição dos princípios do liberalismo
econômico em toda a América Latina – e por isso mais genérico – denominado
“Consenso de Washington”.
Esse documento – cujo título original é “Latin American Adjustment: How
Much Has Happened?” – foi o resultado final de um ciclo de debates realizados em
1989, na capital dos Estados Unidos, onde o tema central era a análise do processo
de reformas econômicas que vinham sendo empreendidas – e que ainda estavam
por ser executadas – na região como um todo. Participaram dessa plenária
funcionários do governo norte-americano e das instituições do capital financeiro
internacional ali instaladas, tais como o FMI, o BID e o Banco Mundial
46
.
Trata-se das diretrizes econômico-políticas que o capital imperialista indica
como sendo essenciais para o saneamento dos processos de crise instalados nas
economias da América Latina. O caminho a ser seguido pelos países da região é o
da retomada dos pressupostos liberais: abertura ao capital internacional,
reestruturação produtiva – para “fazer frente à concorrência externa”, além de
aumentar o exército industrial de reservas – que envolve uma total redefinição do
papel do Estado – as privatizações passam a ser imprescindíveis –, reformas
monetárias e cambiais que possam manter a estabilidade da moeda nacional e atrair
capitais externos, reformas fiscais e tributárias que visem uma menor carga de
impostos e, por fim, mas não menos importante, a desestruturação completa do
46
BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-
americanos. In.: Vários. Em defesa do interesse nacional – desinformação e alienação do patrimônio
público. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
102
movimento sindical, como garantia de estabilidade política e uma maior possibilidade
de extração de mais-trabalho – através de reformas nas leis trabalhistas.
47
É a partir de Collor que tais pressupostos passam a ser colocados em prática,
pois, desde o início, seu governo já acatara tais determinações. Prova disso são as
reformas comerciais liberalizantes, o processo de privatizações das estatais e a
liberdade cambial – cujo valor passa a ser determinado pelas necessidades do
mercado –, incluídas em seu plano econômico.
A FIESP, como já afirmamos, apoiou de forma incondicional a aplicação
dessas diretrizes. Se o Consenso de Washington se refere à totalidade do processo
de reestruturação das economias latino-americanas, Livres para crescer expressa a
forma particular de execução do mesmo no Brasil.
Essa é a verdadeira essência das propostas da FIESP discutidas acima. A
crítica contundente a estrutura do Estado brasileiro, bem como de sua atuação na
economia, estão em plena sintonia com as propostas das instituições financeiras
internacionais. A burguesia brasileira ontogeneticamente subordinada aos pólos
centrais do Capital, acata de forma irrestrita tais propostas. Como estratégia política
– que envolve inclusive todo o marketing, via grande imprensa –, reivindica a autoria
de tal projeto, como sendo a única saída possível às contingências históricas,
impostas pelo imperativo da “modernidade”
48
. É diante dessa constatação que
47
É importante salientar que essas orientações possuem um caráter de “obrigatoriedade”, diante do
contexto de Mundialização, apontado por Chesnais, como discutido anteriormente.
48
Na Parte IV de Livres para crescer, quando trata da “Viabilização da Política Proposta”, o
documento deixa clara a estratégia de marketing a ser utilizada, o que nós podemos denominar de
“medo educativo”. Este consiste num constante processo de crítica a estrutura estatal brasileira ,em
todas as esferas que, pela insistência na repetição, passam a ser tomadas como verdadeiras. Os
grandes responsáveis pela situação de crise no Brasil seriam as estatais – os enormes “elefantes
brancos” – e o funcionalismo público em geral, com seus enormes privilégios. Para que a situação
mudasse era preciso reverter totalmente esse quadro, caso contrário, o país poderia se aprofundar
num processo sem certeza de retorno. Através do medo se conquista popularidade: “(...) No entanto,
precisaremos de muito mais. Isso é difícil de transmitir, mas será necessário enfatizar que todos (os
trabalhadores) terão que trabalhar mais horas. Necessitaremos de uma reforma constitucional no
capítulo dos direitos sociais. Isso só será possível se o medo for bem conscientizado pelo povo e, em
especial, pela classe média (...)”. FIESP, 1990, p. 258. Não podemos nos esquecer que tal estratégia
103
afirmamos que não há originalidade no projeto da aliança liberal que se reafirma no
poder em 1990. Paulo Nogueira Batista contribui de forma precisa para essa
constatação:
Tudo se passaria, portanto, como se as classes dirigentes latino-
americanas (inclusive a Fiesp) se houvessem dado conta,
espontaneamente, de que a gravíssima crise econômica que
enfrentavam não tinha raízes externas (...) e se devia apenas a
fatores internos, às equivocadas políticas nacionalistas que
adotavam e às formas autoritárias de governo que praticavam.
Assim, a solução residiria em reformas “neoliberais” apresentadas
como propostas modernizadoras, contra o anacronismo de nossas
estruturas econômicas e políticas.
49
No entanto, as reformas preconizadas pela FIESP passariam por um curto
processo de arrefecimento. A partir das denúncias de corrupção contra Collor, a
instabilidade passa a reinar no plano político nacional – principalmente com a
instalação do processo de impeachment e com a eclosão do movimento Fora Collor
–, fato este que freia o processo de reformas. O governo de Itamar Franco não
alcançou grandes avanços nesse sentido. A passagem do político mineiro pelo
Planalto Central teve uma outra finalidade: trazer de volta a estabilidade política e
preparar o terreno para a eleição de seu sucessor. Só assim o projeto iniciado por
Collor poderia ser retomado.
Para alcançar tais objetivos, Itamar compõe um governo que contou com os
diversos blocos políticos presentes no país. Participaram dessa composição,
políticos dos vários setores sociais – dos mais à direita aos na esquerda. O grande
feito de seu governo foi a implantação do Plano Real, concebido pela equipe
econômica comandada pelo então Ministro da Fazenda Fernando Henrique
Cardoso.
– próprias de regimes fascistas – teve relevante apoio e participação da grande imprensa nacional.
Uma posição crítica a esse respeito é encontrada em BATISTA, 1994.
49
BATISTA, op. cit., p. 101.
104
O plano de estabilidade econômica surtiu os efeitos desejados na economia.
O histórico processo inflacionário do país foi interrompido, e esse fator já foi o
suficiente para que FHC fosse eleito em 1994, com grande maioria no pleito
presidencial. Estavam criadas as bases sociais e institucionais para a retomada do
projeto iniciado pela gestão Collor. No entanto, a burguesia internamente instalada
conseguiu grandes avanços nesse processo. Além da vitória nas urnas, o comando
da nação estaria nas mãos de um renomado intelectual brasileiro, reconhecido
internacionalmente e que tem no seu curriculum a marca da luta pela democracia. O
país saíra ganhando, pois, ao final de um turbulento período político, perdíamos o
“herói”, mas ganhávamos o “príncipe da sociologia”, o grande responsável pela
reposição do Brasil nos trilhos da “modernidade”.
À frente da presidência, Fernando Henrique foi o responsável pela
reestruturação institucional que abriria definitivamente a economia brasileira ao
capital financeiro internacional. O processo de Revisão Constitucional – previsto na
Carta de 1988 – ganhou grande impulso durante o seu governo. Era preciso acabar
com aquilo que foi denominado pela FIESP como as “restrições legais”, que
mantinham o país dentro de um “corporativismo anacrônico”. A legislação precisava
ser modificada para que o regime de monopólio fosse abolido, possibilitando o
posterior processo de privatizações; a legislação que regia as relações entre Capital
e Trabalho também emperrava o processo, pois se pautava no modelo “varguista” de
desenvolvimento. Outras questões como a propriedade do subsolo brasileiro, a
(ainda discutida) lei de patentes, que versa sobre a propriedade intelectual, as
reservas de mercado em informática, entre tantas outras, estiveram na pauta de
105
votação do Congresso Nacional a partir de 1992, e, em grande medida, foram
aprovadas de acordo com o estabelecido pela aliança política que apoiara FHC.
50
O resultado não poderia ser outro: grandes fluxos de capitais, na forma de
investimento externo direto
51
, passam a penetrar na economia brasileira; o processo
de privatizações se consolida; o movimento operário passa a sofrer derrotas
exemplares em todo o território nacional. Enfim, a FIESP consegue retomar o projeto
iniciado pelo governo Collor com uma grande vantagem, a habilidade política de um
presidente que possuía grande popularidade.
Para se ter uma idéia da penetração do IED na economia brasileira, Reinaldo
Gonçalves demonstra os seguintes argumentos:
O crescimento dos fluxos de investimento externo direto (IED) e o
avanço das empresas de capital estrangeiro (ECE) na economia
brasileira foram inusitados a partir de 1995. (...) Em 1995 o estoque
de investimento externo direto no Brasil era de 43 bilhões de
dólares, segundo o censo de capitais estrangeiros realizado pelo
Banco Central do Brasil (Bacen, 1998), que envolveu 6.322
empresas com a participação estrangeira, sendo que 4.902
empresas com participação majoritária estrangeira. Nos três anos
seguintes, o fluxo líquido acumulado de IED foi da ordem de 45
bilhões de dólares, isto é, o estoque de IED dobrou em três anos.
Esses números significam, na realidade, que a razão estoque de
IED/PIB cresceu de 6,3% em 1993 para 11,2% em 1998, ou seja,
houve um aumento de 80% do grau de “desnacionalização” da
economia brasileira no período 1995-98.
52
Uma parte desses investimentos foram aplicados na economia brasileira
através do processo de privatizações. Como afirmamos na introdução de nosso
trabalho, a polêmica em torno dos valores das vendas das estatais, bem como os
privilégios que os grupos privados, nacionais e estrangeiros, obtiveram no processo,
geraram um intenso debate
53
. Não nos interessa em específico tal polêmica, mas
50
A título de esclarecimento, vale lembrar que a Revisão Constitucional se inicia em 1992, sendo
completada durante o mandato de Fernando Henrique.
51
Chesnais aponta que uma das principais formas de internacionalização do capital, no atual
processo de internacionalização da economia capitalista, é através do investimento externo direto
(IED). Para um aprofundamento da discussão ver: CHESNAIS, 1996, cap. 2.
52
GONÇALVES, 1999, p. 14.
53
Ver a esse respeito BIONDI, 1999.
106
sim a postura que a FIESP assumiu no processo, qual seja, a de apoio inconteste ao
fim do regime de monopólio e à privatização das estatais brasileiras.
Além das diretrizes apontadas pelo documento Livres para crescer, a
entidade desencadeou uma intensa campanha publicitária através de periódicos
próprios (Revista da Indústria e Notícias) e, principalmente, da grande imprensa
escrita (revistas e jornais de grande circulação no país), para defender o projeto
intitulado pelo governo de “desestatização”. Os argumentos utilizados foram os mais
diversos: a inviabilidade econômica para o governo – e, portanto, para o contribuinte
– da manutenção de tais empresas; a possibilidade da livre-concorrência, com o fim
dos monopólios, o que provocaria uma queda de preços e uma melhoria na
prestação de serviços; os privilégios que alguns setores, principalmente do
funcionalismo público, desfrutavam; a comparação com experiências semelhantes
de outros países (Inglaterra, Japão e Chile, principalmente) e os benefícios que
estas poderiam trazer; os bem sucedidos exemplos que já haviam sido colocados
em prática (a CSN, a USIMINAS e o regime de concessões das rodovias paulistas,
são constantemente citados) como forma de intensificar o processo, entre tantos
outros
54
.
54
Entre os periódicos da FIESP destacamos: “O papel do Estado na economia” e “A lógica da
privatização”, in: Revista da Indústria, ANO II – Nº6 – ABR/JUN – 1993. “A privatização anda devagar
e rende pouco”, in: Revista da Indústria, 8 DE JULHO DE 1996. “Tarifas do setor energético exigem
políticas mais realistas”, in: Notícias, 10 DE MAIO DE 1993. “Privatização, instrumento de
racionalidade econômica”, in: Notícias, 17 DE MAIO DE 1993. “Um elogio ao modelo britânico de
privatização”, in: Notícias, 21 DE JUNHO DE 1993. “Monopólio gera atraso nas telecomunicações”, in:
Notícias, 9 DE AGOSTO DE 1993. “Caminho aberto para a privatização”, in: Notícias, 30 DE
AGOSTO DE 1993. “Ineficiência justifica quebra do monopólio do petróleo”, in: Notícias, 16 DE
NOVEMBRO DE 1993. “Privatização do setor de energia é inadiável”, in: Notícias, 16 DE
NOVEMBRO DE 1993. “A questão do petróleo na revisão constitucional”, in: Notícias, 6 DE
DEZEMBRO DE 1993. “Capital privado no petróleo e revisão constitucional”, in: Notícias, 10 DE
JANEIRO DE 1994. “Prática comprova êxito da privatização de estatais”, in: Notícias, 17 DE
JANEIRO DE 1994. “Consumidor de aço aprova privatização de siderúrgicas”, in: Notícias, 28 DE
FEVEREIRO DE 1994. “Empresários mobilizados defendem reformas”, in: Notícias, 28 de março de
1994. “O caminho para a redução dos juros no país”, “Hora de um choque de produção”, “Política de
comércio exterior: uma análise”, in: Notícias, 29 DE MAIO DE 1995. “Privatização à paulista”, “Apoio
unânime entre políticos”, in: Notícias, 23 DE OUTUBRO DE 1995. “Previdência privada do Chile:
modelo imitado”, in: Notícias, 4 DE DEZEMBRO DE 1995. “Quanto valem os quatro grandes grupos
107
Mais uma vez, é importante ressaltar que a FIESP, em momento algum, faz
restrições à entrada de capitais estrangeiros. Pelo contrário, são muito bem vindos.
Essa é uma postura própria da burguesia brasileira, e sempre esteve presente na
entidade paulista, desde seus primórdios.
Com relação ao movimento operário, este já vinha sofrendo duros golpes
desde o final do governo de José Sarney. Apesar de a década de 1980 ter sido
marcada por forte mobilização e relativas vitórias do sindicalismo no Brasil, no final
desse governo os limites da forma legalizada da autocracia burguesa foram
explicitados. Trata-se da greve de 1989 dos trabalhadores da então empresa estatal,
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). A estratégia de atuação do movimento foi a
de ocupar a empresa como forma de pressionar o governo federal a atender suas
reivindicações. Diante dessa postura dos trabalhadores, o presidente Sarney lança
mão das antigas práticas de repressão do período da ditadura das casernas – do
qual sempre foi um fiel signatário. O exército é acionado, invadindo as instalações e
reprimindo duramente os trabalhadores. Além da repressão, que resultou na morte
de um trabalhador, o conflito já assinalara qual seria a postura da burguesia
brasileira diante de qualquer tentativa mais ousada do movimento sindical.
Seguindo o mesmo itinerário, Collor assume atacando frontalmente os
funcionários públicos. Demissões sumárias passam a ser o principal expediente do
novo governo (o caso dos 900 petroleiros demitidos no início do governo é apenas
um de muitos exemplos). A reação dos trabalhadores veio através de novos
movimentos grevistas. Apesar de a Constituição de 1988 garantir o direito de greve,
estatais”, in: Notícias, 15 DE JULHO DE 1996. “Foi o povo quem decidiu no Japão”, in: Notícias, 16
DE SETEMBRO DE 1996. “Industriais apóiam a tese de reeleição”, in: Notícias, 30 DE SETEMBRO
DE 1996. Os industriais também se manifestaram de forma contundente, através da grande imprensa
escrita. Durante toda a década de 1990, os empresários divulgaram “seu” projeto político econômico
em jornais e revistas de grande circulação nacional, tais como O Estado de São Paulo e Folha de São
Paulo. Destaque específico para a entrevista do então presidente da FIESP, Horácio Lafer Piva,
concedida a revista Primeira Leitura, em MARÇO DE 2002.
108
as pendengas entre trabalhadores e governo passam a ser definidas pela justiça
que, invariavelmente, decide em favor destes. Na iniciativa privada, essa lógica se
repõe.
No entanto, outro duro golpe estaria por vir. Trata-se do último grande
movimento grevista organizado pela classe trabalhadora no país, a greve dos
petroleiros de 1995. Por se tratar de uma categoria de funcionários públicos
organizada em nível nacional, num setor estratégico do país, esta greve e seus
respectivos resultados, serviu como um marco nas relações entre o Capital e o
Trabalho organizado. Mais do que as reivindicações econômicas, o movimento
questionava – ainda que com grande viés de espontaneismo político – as veredas
pelas quais o recém empossado governo conduzia a política econômica do país,
qual seja, o projeto de reposição e revitalização do liberalismo – denominado
genericamente pelos movimentos sociais na esquerda de “neoliberalismo”.
Para a burguesia internamente instalada, a vitória do governo era mais do que
necessária, pois significaria a derrota completa do último grande foco de resistência
do movimento sindical organizado. Após 32 dias de paralisações, os petroleiros além
de não alcançar os objetivos desejados, voltaram ao trabalho desmoralizados
politicamente, graças à intensa campanha publicitária desencadeada pelos setores
mais conservadores de nossa sociedade. Essa derrota repercuti de forma negativa
no movimento sindical até os dias de hoje, pois o “corretivo” aplicado sobre a
categoria petroleira serviu (e serve) de exemplo para o conjunto dos trabalhadores.
A partir desse movimento, reafirma-se, mais uma vez, os limites da autocracia
burguesa, em sua forma legalizada, instalada no país. Qualquer movimento de
contestação que ousasse questionar o projeto em andamento seria combatido com
109
todas as forças, inclusiva com baionetas, expediente este também utilizado por FHC
na greve dos petroleiros
55
.
Transposta a última barreira – os trabalhadores e suas organizações sindicais
– a aliança política representada por Fernando Henrique não encontrou nenhum
outro obstáculo que pudesse comprometer a inserção do Brasil na “Era da
Modernidade”.
Contudo, o conjunto de reformas deveria ser mais abrangente. Trata-se da
desregulamentação econômica, através de modificações no sistema fiscal e
monetário e da redefinição das atividades empresariais e reguladoras do Estado.
No que diz respeito à reforma fiscal, o documento da FIESP é claro: a
excessiva carga tributária brasileira é o principal fator de retração da atividade
produtiva. Segundo a entidade, o aumento na cobrança de impostos está
intimamente ligado com as atividades empresariais do Estado. Partindo do
pressuposto que as empresas estatais são deficitárias, e que o funcionalismo público
absorve a maior parte do orçamento da União, argumentam que é preciso inverter
essa lógica, que utiliza os recursos da arrecadação tributária para cobrir os “rombos”
das estatais e remunerar os “privilegiados marajás” que ocupam o aparelho estatal
nacional. Para tanto, indicam as seguintes diretrizes:
1.Descentralização da competência entre as esferas de Governo: a
redistribuição de impostos entre as esferas de governo deve se
pautar não pela desconcentração de receita, mas pela
descentralização da competência de gerar e alocar recursos. (...) 2.
Ampliação e reformulação da base do Imposto de Renda: para
financiar seus gastos, a União deve ampliar e reformular a base do
Imposto de Renda (IR), retendo para si ao menos 85% do produto
de sua arrecadação. (...) 3. Extinção das contribuições parafiscais e
simplificação do sistema tributário (...) 4. Aperfeiçoamento do
processo orçamentário: é necessário consolidar o processo de
55
Aqui se faz necessário um esclarecimento a respeito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. Estes são os únicos que ainda conservam uma crítica contumaz ao chamado “projeto
neoliberal”, e representam hoje, o que há de mais organizado no núcleo da classe trabalhadora. No
entanto, sua prática e atuação durante todos esses anos, não interferiram na postura e
implementação do projeto liberal no país.
110
programação, avaliação e execução orçamentária da União. (...) 5.
Redução das concessões constitucionais: os novos direitos e
remunerações assegurados pela Constituição ao funcionalismo, aos
aposentados e aos previdenciários são incompatíveis com a
disponibilidade financeira da União – é preciso reduzir essas
concessões. 6. Cortes da dependência de outras entidades em
relação às finanças da União: as transferências às estatais teriam
que ser limitadas ou até mesmo extintas (...). Além disso, é preciso
cortar a dependência de bancos oficiais, de Tesouros estaduais e
municipais e até das autoridades monetárias em relação às finanças
da União. Cumpre, por isso rever encargos e obrigações financeiras
dessas entidades, o que implica enxugamento de seus ativos e
passivos para tornar suas contas transparentes e sua administração
descentralizada.
56
Apesar da generalidade de tais propostas, o que a Fiesp reivindica é uma
menor carga tributária, como já afirmado acima, principalmente sobre os setores
industriais que, segundo a entidade, sofrem com os altos impostos sobre a
produção. Propõem ainda, uma ampliação da base tributária do Imposto de Renda,
o que significa estender essa tributação a um maior número de trabalhadores
assalariados, uma ampla reforma da previdência (tanto do setor público, como do
privado) e a descentralização (municipalização) da captação dessas receitas.
Algumas das medidas propostas acima foram implementadas durante o
governo FHC. Dentre elas destacamos a reforma da previdência no setor privado.
Aprovadas pelo Congresso Nacional, as novas regras da aposentadoria
aumentaram os anos de contribuição do trabalhador brasileiro. Com argumentos de
que o “brasileiro trabalha pouco” e se aposenta no “auge” de sua produtividade, o
governou conseguiu mais uma vitória, sem qualquer reação por parte dos
trabalhadores. Novamente, utilizava-se da falácia de um “Brasil moderno”, que não
poderia se pautar numa legislação tão antiga (CLT), e de outro momento histórico.
56
FIESP, 1990, p. 169, 170, 171. Com relação ao item 4: “aperfeiçoamento do processo
orçamentário”, a proposta indica que há um excessivo controle do orçamento por parte da União,
argumentando que: “(...) a Lei de Diretrizes Orçamentárias não tem razão de existir, mesmo porque,
pela Constituição, é pequena a margem de manobra dos parlamentares para mudar o Orçamento
Geral da União (OGU)”. Na verdade o documento propõe que o Executivo deve ter uma participação
mínima na programação do orçamento federal, cabendo ao legislativo a responsabilidade de projeta-
lo.
111
Com relação ao setor público, a reforma da previdência é mais recente, e coube ao
governo Lula ratifica-la. Retomaremos essa discussão em nossa conclusão.
Em momento algum no documento, a Fiesp defende reformas que poderiam
possibilitar um desenvolvimento autônomo – mesmo que relativo – da economia
brasileira. Muito pelo contrário, ao analisarmos as propostas referentes à política
econômica externa e ao setor agrícola brasileiro, a entidade reafirma o papel de
subordinação de nossa economia aos grandes pólos do imperialismo capitalista.
Vejamos alguns exemplos.
Quando o documento trata da Política Econômica para o Setor Externo,
defendem que a abertura do mercado brasileiro é fundamental, pois, com a
concorrência internacional, as empresas instaladas internamente seriam obrigadas a
se modernizar, como forma de garantir sua sobrevivência. No entanto, essa
liberalização deve ter como parâmetro a receptividade do comércio internacional em
relação as nossas exportações, ou, “(...) Em outras palavras, a amplitude da
liberalização será comandada pelo ritmo de crescimento das receitas de exportação
(...)”
57
. Como o principal setor das exportações brasileiras é a agroindústria, o
governo federal deve incentivar a produção através de reduções de impostos,
créditos subsidiados e fim das barreiras à exportação. Reafirma-se portanto, uma
das características sempre presente no desenvolvimento econômico brasileiro: o
setor agro-exportador como um dos pilares do desenvolvimento econômico nacional.
A análise de Batista demonstra bem o caráter de tal postura, da entidade paulista:
A proposta da FIESP inclui, entretanto, algo que o Consenso de
Washington não explicita mas que está claro em documento do
Banco Mundial de 1989, intitulado “Trade Policy in Brazil: the Case
for Reform”. Aí se recomendava que a inserção internacional de
nosso país fosse feita pela revalorização da agricultora de
exportação. Vale dizer, o órgão máximo da indústria paulista
endossa, sem ressalvas, uma sugestão de volta ao passado, de
57
FIESP, 1990, p. 198.
112
inversão do processo nacional de industrialização, como se a
vocação do Brasil, às vésperas do século XXI, pudesse voltar a ser
a de exportador de produtos primários, como foi até 1950 (...)”
58
.
Talvez o único erro cometido por Batista é o excesso da “volta ao passado”,
mesmo porque, como afirmamos acima, o setor exportador – principalmente a
agricultura – sempre desempenhou um expressivo papel na economia interna.
Chamamos a isto não de “volta ao passado”, mas sim de reposição e reafirmação da
via prussiano-colonial de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, onde o Sentido
da Colonização, apontado por Caio Prado, é também reafirmado, sobre um novo
patamar histórico. Esta, não se pauta apenas na exportação de produtos agrícolas –
apesar de estes comporem, aproximadamente, 40% das receitas externas –, cujos
rendimentos serviam para aquisição de produtos manufaturados no exterior. A lógica
está pautada na exportação também de produtos industrializados, dado o grande
grau de complexificação e diversificação que o parque industrial brasileiro alcançou
nos últimos 20 anos. Um dos motivos que nos mantêm dependentes – como no
passado – em relação aos pólos centrais do capitalismo mundial, é o fato de não
produzirmos o conhecimento, a tecnologia necessária ao desenvolvimento industrial,
os chamados bens de capital. É por esse motivo que o capital transnacional sempre
foi muito bem vindo pela FIESP.
Essa característica é reafirmada ao definirem a posição que o capital
estrangeiro deve ocupar no processo de reestruturação econômica:
As empresas multinacionais terão um papel importante a
desempenhar em uma nova fase de crescimento da economia
brasileira: elas representam importante elemento para a difusão
tecnológica na indústria brasileira e um forte estímulo para o
aumento da abertura econômica ao exterior, dado a propensão a
exportar apresentado por essas empresas
59
.
58
BATISTA, 1994, p. 101.
59
FIESP, 1990, p. 206.
113
Importante notar que, as transnacionais internamente instaladas devem,
segundo o documento, participar do “esforço exportador”, tão defendido por FHC, e
levado a cabo pelo governo Lula
60
.
Como já apontado neste trabalho (capítulo 1), os dólares provenientes das
exportações servem para remunerar o capital internamente instalado. Essa
dependência deixa o Brasil extremamente vulnerável, pois qualquer abalo no
mercado internacional pode significar queda nas exportações, desencadeando
processos de crises internas. A saída então são os intermináveis empréstimos junto
às agências internacionais, aumentando a dívida externa. Para agravar ainda mais
tal situação, a posição sócio-subordinada de nossa economia no sistema financeiro
internacional, traz mais problemas. O capital financeiro busca os mercados mais
estáveis e garantia de maior rentabilidade, o que significa maiores taxas de juros e
cotação cambial livre. À medida que o dólar ou os juros aumentam, aumenta
também a dívida. Paga-se um preço muito alto para atrair e manter o capital
financeiro no país. Em momento algum a FIESP e seus representados negam essa
lógica, pelo contrário, reafirmam-na, como condição sine qua non para a retomada
do desenvolvimento
61
.
Ao longo desse capítulo procuramos demonstrar como o Brasil se insere no
atual processo de Mundialização do Capital. Percebemos que a reposição das
propostas liberais no Brasil a partir da década de 1990 faz parte desse contexto
como forma particular de rearticulação do sistema do Capital frente a crise estrutural
que este enfrenta. A Fiesp, como interlocutora de importante fração da burguesia
60
O período que compreende o governo Lula não se inclui em nossa pesquisa. No entanto, com
relação às exportações, durante o último ano (2004) o Brasil bateu seu próprio recorde em valores
exportados, chegando próximo ao valor de 100 bilhões de dólares, apesar desse montante
representar apenas entre 1,0 e 1,5 % das transações comerciais internacionais.
61
FIESP, 1990, p. 206, 207 e 208.
114
internamente instalada, procura viabilizar, através das propostas propugnadas em
Livres para crescer, tal projeto de reestruturação. No Brasil, tal projeto se inicia com
Collor. Após um atabalhoado governo, este é impedido de continuar governando,
sendo que seu vice, Itamar Franco, assume com a missão de recompor as forças
políticas que iriam dar continuidade ao processo de reestruturação liberal no Brasil.
Com a eleição, e os respectivos mandatos de FHC, os pressupostos liberais foram
retomados e implantados com grande sucesso, reafirmando a posição de
subordinação da economia brasileira na atual configuração da divisão internacional
do capital.
O que notamos é que em momento algum, essa entidade procura romper com
a característica ontogenética mais importante da classe que representa: a posição
de “sócia-menor”, de subordinação frente ao capital imperialista.
A partir de agora traçaremos o histórico dessa entidade, buscando os
componentes constitutivos que possibilitarão a compreensão da forma de ser e ir
sendo da FIESP.
115
CAPÍTULO III
FIESP: DA CONCEPÇÃO A DECREPITUDE DE UM SER
A história do desenvolvimento industrial brasileiro não é única. Assim como
outros países de origem colonial, o Brasil se industrializa de maneira hiper-tardia e
retardatária. A herança lusitana do modelo econômico agrário-exportador, sempre
nos manteve como um apêndice dos centros desenvolvidos do capitalismo, deixando
a marca da subordinação no processo de inserção do país em escala econômica
mundial. Sendo assim, o impulso industrializante só será observado em princípios do
século XX, devido à eclosão da 1ª Guerra Mundial e a respectiva necessidade de
substituir importações. É nesse período que a incipente indústria, já instalada desde
meados do século XIX, começa a ganhar força, força esta que vai se concretizar
enquanto projeto político-econômico-social a partir do governo de Getúlio Vargas,
com o Golpe de Estado de 1930 e se consolidar durante os governos de Juscelino
Kubitschek e dos governos militares nas décadas de 1960/70.
116
Como não podia deixar de ser, data desse período inicial a criação das
primeiras entidades representativas de classe da burguesia industrial brasileira,
entre elas a Federação das Industrias do Estado de São Paulo – a FIESP. Por ser o
remate político-ideológico de uma fração da burguesia instalada internamente no
país, com direitos, estruturas e objetivos específicos, é que debruçamos nossa
análise sobre esta instituição.
A FIESP foi fundada no dia 12 de junho de 1931. Porém sua criação é o
resultado de vários anos de debates entre os industriais de São Paulo, na tentativa
de criarem uma entidade congregadora, representante e defensora das indústrias
em seu conjunto, e não de forma setorial, como ocorria até então.
Outro aspecto decisivo para a criação da entidade foi a elaboração do modelo
corporativo de representações, implementado por Vargas. Este modelo, tão
mencionado e pesquisado quando se trata de organizações sindicais de
trabalhadores, serviu durante muito tempo como a “brecha institucional” para a
participação dos representantes das indústrias nas mais diversas esferas político-
institucionais de nosso país.
Iniciamos esse capítulo afirmando que o desenvolvimento do capitalismo
industrial no Brasil não é único. Porém, é necessário afirmar que, apesar de inserido
num contexto de maior amplitude, esse desenvolvimento possui as especificidades
de uma forma singular. Acreditamos ser de grande valia a análise de um destes
aspectos, qual seja, o papel e respectiva relevância desempenhado pela Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo no desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
É sobre esse aspecto que nos debruçaremos a partir de agora.
117
III. I – A concepção
Para entendermos o processo de criação da FIESP é preciso fazer uma breve
retrospectiva – mesmo que de maneira sucinta - dos anos iniciais de nossa formação
industrial, bem como de todo cenário político e social que se instala com a
Proclamação da República em 1889.
No início do século XIX já podemos observar a instalação das primeiras
indústrias no Brasil. Isso ocorreu principalmente a partir da transferência da corte
portuguesa para o país, em 1808
1
. Esse primeiro momento se desdobra na cidade
do Rio de Janeiro, na ocasião centro político-econômico de todo o território. As
primeiras indústrias estavam ligadas principalmente ao setor de vestuário e de
alimentos.
Mesmo contando com algumas vantagens, os investimentos no setor
industrial eram mais do que tímidos. Com o surgimento e respectiva expansão das
plantações de café, toda a economia se voltara à produção e comercialização do
produto, sendo que o empreendimento fabril conjugava em torno de si vários fatores
desfavoráveis, tais como a falta de mão-de-obra especializada e a ausência de um
mercado consumidor interno, este último inviabilizado pelo sistema escravista.
Poucos foram os momentos – lícitos de citação – favoráveis à criação de
fábricas. O que mais se desenvolvia era o setor manufatureiro, principalmente no
tocante a produção de vestuários.
Segundo Maria Antonieta P. Leopoldi, nesse período começamos a observar
a criação do sistema financeiro, onde:
1
Maria A. P. Leopoldi argumenta que vários privilégios, como a isenção no pagamento dos impostos
de importação de máquinas e matéria-prima, foram concedidos aos estabelecimentos industriais que
aqui se instalassem. Cf. LEOPOLDI, 2000, p. 35.
118
(...) a atividade econômica em expansão começava a ser
institucionalizada, destacando-se a criação da Junta de Corretores
(futura Bolsa de Valores do Rio de Janeiro) em 1848, o Código
Comercial (1850), a reorganização do Banco do Brasil (1851) e a Lei
das Sociedades Anônimas (1860).
A autora afirma ainda que um outro momento de pequeno impulso foi o
período pós-Guerra do Paraguai (1864-1870). Para cobrir os gastos com o combate,
o governo brasileiro recorreu a emissão de papel-moeda e a um aumento tributário,
principalmente sobre os produtos importados. Essa certa “proteção” tarifária
2
favoreceu o crescimento fabril no final da década de 1860, pois aliado a este fator
estava uma relativa disponibilidade de capitais oriundos da agricultura
3
.
Entre os anos de 1861 e 1881 podemos observar a instalação de fábricas em
outros setores, principalmente o metalúrgico. Isso se deve principalmente a
expansão da produção cafeeira no sudeste. Com as lavouras de café sendo levadas
até o oeste paulista, o desenvolvimento de uma malha ferroviária que ligasse àquela
região aos portos seria imprescindível. As indústrias de máquinas agrícolas também
começam a ser instaladas, pois com o aumento da produção cresce a demanda por
equipamentos de beneficiamento.
Nesse mesmo período os setores têxtil, de produção de chapéus e de
calçados passam por um processo de reestruturação. Na região Sudeste um grande
número de máquinas a vapor são importadas, demonstrando um significativo
aumento na importação de bens de capital. Podemos observar a partir de então uma
mudança nas plantas produtivas das fábricas. É importante salientar que essa
mudança vai ocorrer nas fábricas que possuíam um maior número de trabalhadores,
maior capital e de produção em larga escala, sendo que as empresas de pequeno
2
É importante frisar que as medidas tomadas pelo governo não foram para beneficiar as indústrias,
mas sim para cobrir o “rombo” causado pela guerra na economia brasileira.
3
LEOPOLDI, 2000, p. 36.
119
porte serão as mais prejudicadas, pois com a crise de meados da década de 1870,
vários destes estabelecimentos vão ser fechados, acarretando num processo de
concentração de capitais e formação de empresas de maior porte.
O final da década de 1880 é marcado por profundas mudanças no país.
Nesse período observamos a assinatura da Lei Áurea, determinando a abolição da
escravatura em 1888, a reforma monetária do último gabinete do Império, – que
daria origem ao período do Encilhamento – a consolidação da lavoura cafeeira em
São Paulo, bem como a afirmação da nascente indústria no centro-sul do país, e por
fim, em 1889, o Golpe Militar que implantou o regime republicano.
Entre 1889 e 1914 verificamos um sensível, porém ainda pequeno,
crescimento no parque industrial brasileiro. Com a reforma monetária de 1888
ocorreram facilidades no crédito, dinamizando a área financeira (Encilhamento), o
que contribuiu para o aumento do investimento industrial
4
. É importante lembrar que
estas medidas não foram tomadas com vistas a estimular o setor industrial. Este
tirou proveito da situação, pois com a emissão de papel-moeda promovida pelo
governo – medida esta tomada para facilitar o crédito aos agricultores e para
subsidiar a vinda de mão-de-obra imigrante para as lavouras de café – observamos
uma grande quantidade de capitais em circulação, e os investidores industriais
souberam tirar proveito.
Concomitante à política do Encilhamento, o parque industrial paulista começa
a se consolidar, já apontando para a supremacia industrial que esse Estado
exerceria no futuro. Em apenas quatro anos, de 1895 a 1899, empresas importantes
4
LEOPOLDI, 2000, p. 41, principalmente nota 82. Ver também o trabalho de W. Suzigan sobre a
origem da indústria brasileira. Cf. SUZIGAN, W. Indústria brasileira, origem e desenvolvimento. São
Paulo: Brasiliense, 1986, p. 144-147.
120
são fundadas em São Paulo
5
. É necessário observar que cerca de 40% do capital
investido fora aplicado por apenas 4 indústrias têxteis de grande porte,
demonstrando, novamente, que a tendência a concentração de capitais esteve
presente em nossa formação industrial desde sua fase embrionária.
O governo federal também contribuía para essa pequena expansão ao criar
programas de obras públicas que envolviam o saneamento e a urbanização dos
grandes centros (principalmente a cidade do Rio de Janeiro
6
), a melhoria dos portos
e a construção de ferrovias
7
.
A tabela a seguir nos apresenta os números desse crescimento, bem como
da crescente concentração industrial na região Sudeste
8
.
Número de estabelecimentos industriais criados entre 1889 e 1919 e
recenseados em 1919, por ano de fundação
(Distrito Federal, São Paulo e Brasil)
Período
Estado
Até 1889
1890-1894
1895-1899
1900-1904
1905-1909
1910-1914
1915-1919
DF
SP
Brasil
139
94
636
47
138
452
47
161
472
87
334
1.080
123
414
1.358
328
1038
3.135
771
1.867
5.936
5
No mesmo período, furam fundados na cidade do Rio de Janeiro 47 estabelecimentos, enquanto
que em São Paulo observamos a criação de 161 novas indústrias. LEOPOLDI, op. cit., p. 46 e 47.
6
Durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906) a cidade do Rio de Janeiro vai passar por um
grande processo de saneamento básico e urbanização. Esta postura foi tomada como uma das
medidas a serem colocadas em prática para se acabar com epidemias como a febre amarela, a peste
bubônica e a varíola. O médico sanitarista Osvaldo Cruz conseguiu que o governo decretasse a
obrigatoriedade da vacina contra a varíola, em 1904. O resultado foi um violento confronto que
envolvia a população – em geral mais pobre e que mais sofria com o processo de urbanização – e as
tropas federais. Esse movimento ficou conhecido como “A Revolta da Vacina”, ver: SANTOS, J. R.
dos. História do Brasil, São Paulo, Marco Editorial, 1979.
7
O papel do governo, como investidor direto em setores estratégicos, é uma característica sempre
presente na evolução capitalista no Brasil.
8
Fonte: Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Diretoria Geral de Estatística.
Recenseamento do Brasil (1920), Agricultura e Indústrias. Rio de Janeiro: Typ. da Estatística, 1924.
v.II, parte 2. Apud, LEOPOLDI, 2000, p. 50.
121
Esses dados nos mostram de maneira empírica aquilo que afirmamos
anteriormente, ou seja, além da concentração no Sudeste – em 1889 a região
possuía cerca de 36,5% das empresas instaladas no país, aumentando esse
percentual para 44,5% em 1919 -, São Paulo passa a ser o grande centro industrial
do território, sendo que essa tendência se consolidaria na década de 1920.
O que mais nos interessa demonstrar nessa sucinta reflexão sobre os
primeiros passos da indústria brasileira, são os aspectos particulares e específicos
de tal processo. Reafirmando-os:
1º - Acentuado processo de concentração regional da indústria no Sudeste;
2º - A formação nesta região de grandes empresas com alto investimento, mão–de-
obra numerosa, máquinas importadas, força motriz significativa – intensificação da
energia elétrica – e elevado valor de produção, apontando, como já afirmamos
anteriormente, uma clara tendência de concentração de capitais;
3º - E por fim, mas não menos importante, a arrancada industrial de São Paulo,
constituindo-se no período como principal centro fabril da federação.
Durante o mesmo período, o Brasil passou por grandes embates políticos e
sociais. O fato de a República ter sido proclamada não logrou estabilidade
econômico-política para o país. Pelo contrário, um grande número de movimentos
sociais contestatórios eclodiram em grande parte do território brasileiro. Os
interesses que deram a tônica do movimento militar de 1889 não eram declarados e
setores importantes da sociedade, tanto no meio urbano – principalmente no Distrito
Federal – como no meio rural, procuravam espaço na nova conjuntura política recém
instalada.
122
Na verdade, o movimento liderado por Deodoro da Fonseca em 1889 tinha
como arrimo social os interesses dos cafeicultores, fração da burguesia rural
brasileira que ganhara importância política inconteste, devido à expansão da cultura
do café no Brasil. Sendo assim, a principal mudança que presenciamos com a
instalação do novo regime se restringe ao campo político, que passa a adotar o
modelo liberal-republicano como forma política de gerenciamento do país,
permanecendo praticamente intacta a estrutura econômica herdada do período
imperial, qual seja, a base produtiva baseada no latifúndio monocultor, fornecedor de
gêneros primários ao mercado externo
9
. A produção açucareira, e seus respectivos
apropriadores, cedem lugar à produção cafeeira, novo carro chefe da economia
agrário-exportadora brasileira.
Porém, com o passar dos anos, estes interesses particulares de classe vão se
tornando cada vez mais visíveis, provocando reações na sociedade como um todo.
O período da República Oligárquica (1889-1930), mais conhecido como República
Velha, presenciou algumas das mais importantes manifestações sociais que a
recente história do Brasil já registrou. Assim sendo, tendo a questão da disputa da
terra – sempre presente em todo o nosso evolver histórico – como foco nodal das
contendas, verificamos conflitos como os suscitados pelos cangaceiros no Nordeste
do país durante todo o período acima citado e se estendendo após o Golpe de 1930.
No mesmo diapasão, entre 1912 e 1916, observamos no Estado de Santa Catarina
a Guerra do Contestado (conflito envolvendo a disputa pela terra, pouco lembrado
pelos compêndios da historiografia e seus interlocutores acadêmicos), e ainda, sem
dúvida o mais importante de todos eles – principalmente pela crítica, involuntária é
9
É verdade que algumas alterações ocorreram durante o final do Império, tal como a abolição do
trabalho escravo. No entanto, o que procuramos demonstrar é que a lógica da produção econômica
permanece a mesma, porém sobre um novo patamar histórico.
123
verdade, à propriedade rural estabelecida – a Guerra de Canudos, ocorrida
entre1893 e 1897 na região norte do Estado da Bahia
10
.
Esses movimentos ocorridos no campo possuíam algumas características em
comum. Para citar apenas uma delas, recorremos ao seu aspecto espontâneo;
lutavam pela imediaticidade que a mísera sobrevivência cotidiana lhes impunha;
careciam de um projeto ideológico-político mediador de suas lutas – característica
esta presente na grande maioria dos movimentos de contestação sociais do período,
dado este que não podia ser diferente, haja vista a imaturidade política dos
trabalhadores tanto na cidade como no campo.
No meio urbano a agitação também se fazia presente. O principal palco de
tais conflitos foi a maior cidade brasileira de então, o município do Rio de Janeiro,
centro das decisões políticas do país. Como grande centro urbano, a cidade recebia
a influência das grandes tendências mundiais, seja na arquitetura, seja nas artes, na
ciência, enfim, em todos os ramos do saber humano. Diante desta “paisagem” a
população, entre os dias 12 e 15 de novembro de 1904, se sublevou contra a
reforma urbana imposta pelo governo, que via esta como uma das medidas
necessárias para erradicar epidemias na cidade (ver nota acima, sobre a Revolta da
Vacina). Na mesma cidade, agora em 1910, os marinheiros se sublevaram contra as
regras estabelecidas nos quartéis. Os aviltantes castigos físicos a eles aplicados
pelos seus comandantes foram os elementos impulsionadores da revolta dos
marinheiros que assumiram o comando dos mais importantes navios da Marinha de
10
Sobre o cangaço ver: DÓRIA, C. A. O cangaço. 3ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1982. Sobre a
Guerra do Contestado: ver TOTA, A. P. Contestado: a guerra do novo mundo. São Paulo, Brasiliense,
1983. Sobre a Guerra de Canudos, o primoroso trabalho do escritor e jornalista Euclides da Cunha,
Os Sertões, CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d.
124
Guerra Nacional. Iniciava-se A Revolta da Chibata
11
. Os movimentos contestatórios
urbanos apresentavam as mesmas debilidades teórico-práticas verificadas nos
movimentos ocorridos no campo, qual seja, a inexistência de um projeto ideológico-
político, bem como, seu aspecto imediatamente restrito e particular.
Na década de 1920, as contendas criadas no meio urbano, possuíam um
caráter mais amplo do ponto de vista econômico-político-ideológico. O assim
chamado Movimento Tenentista deixou isso claro. Basicamente foram três os
movimentos envolvendo os tenentes e capitães do exército: a Revolta dos Dezoito
do Forte, em 1922, no bairro de Copacabana, o movimento de 5 de julho de 1924,
este inicialmente em São Paulo se estendendo para outros Estados como Rio
Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Amazonas e Sergipe, e por fim a Coluna
Prestes, que percorreu entre 1924 e 1927, 25 mil quilômetros de território brasileiro.
Contando com mais de 1,5 mil guerrilheiros em seu momento de auge, o movimento
liderado pelo então tenente Luís Carlos Prestes representava, até aquele momento
de nossa história, o maior esforço militar já feito no Brasil para derrubar um governo.
Estes movimentos se diferenciavam de maneira abismal dos anteriores. Possuíam
um discurso ideologicamente organizado, e suas ações tinham como objetivo a
implementação de tais propostas. Defendiam os ideais nacionalistas e foram
bastante influenciados pelas propostas industrialistas, sobretudo desenvolvidas após
a Primeira Grande Guerra, assunto este que trataremos com maior análise mais à
frente
12
. Nelson Werneck Sodré nos deixa claro que existia uma proposta político-
econômica concreta no movimento tenentista. Diz ele:
11
Sobre a revolta contra a vacina obrigatória ver: SANTOS, op. cit. P. 156. Sobre a Revolta da
Chibata ver: SILVA, M. A. da. Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910. São Paulo,
Brasiliense, 1982.
12
Sobre o tenentismo ver: CARONE, E. O tenentismo. São Paulo, Difel, 1975. Ainda sobre a Coluna
Prestes ver: SODRÉ, N. W. A Coluna Prestes. São Paulo, Editora Civilização Brasileira, 1968.
125
Um dos traços mais característicos dos movimentos em que a
pequena burguesia se destaca como vanguarda (...) consiste em
seu esforço para restituir à burguesia as suas virtudes da fase
ascensional, isto é, em como que purificar a burguesia, em conjugar
nela a teoria com a prática, em forçá-la a ser fiel à ideologia
originária (...). Em amplo sentido, vago por isso mesmo, tudo
poderia ser resumido, no problema, em fazer cumprir os postulados
do que se conheceu, na história do desenvolvimento político, como
liberalismo (...) O Tenentismo não escapou a tal característica: como
vanguarda do processo político de ascensão da burguesia, em
nosso país, conseqüente do alastramento e aprofundamento aqui
das relações capitalistas (...)
13
.
É nesse aspecto, portanto, de “vanguarda do processo político de ascensão
da burguesia”, cujo projeto econômico-político prevê a industrialização do Brasil com
forte discurso nacionalista, que os tenentes se diferenciam dos outros movimentos.
Ainda nos centros urbanos, mas agora não restritamente ao Rio de Janeiro,
mas também em São Paulo, uma recém surgida classe social brasileira começa a se
organizar e a se movimentar: o proletariado.
O pequeno avanço industrial descrito anteriormente, necessitou de mão-de-
obra especializada para sua implementação. O país carecia de força de trabalho
fabril e a saída encontrada pelos industriais foi empregar estrangeiros –
principalmente imigrantes europeus – em suas fábricas. Nesse processo,
importavam-se não só “braços” mas também “idéias” para dentro dos grandes
centros urbanos brasileiros da época. Diante da intensiva e extensiva exploração do
trabalho, a qual eram submetidos os operários, os ideais anarquistas, socialistas e
comunistas começam a ganhar espaço. As décadas de 1910 e 1920 presenciariam,
tanto em São Paulo, como no Rio de Janeiro, os primeiros movimentos de greves
operárias no país.
O ano de 1917 foi especial para o movimento operário internacional. Na
Rússia os bolcheviques, de armas em punho, provaram ser possível uma nova
13
SODRÉ, op. cit., p. 54-55.
126
ordem, um novo mundo, onde a exploração do homem pelo homem, de uma classe
minoritária sobre o conjunto da sociedade, pode ser extinta. Era a Revolução Russa,
que inflamaria as mentes e os corações operários e colocava em pânico a burguesia
mundial. No Brasil os movimentos grevistas se intensificaram nas duas cidades
supracitadas, onde havia maior concentração operária. Exatamente em 1917,
assistia-se a primeira greve geral do país. A repressão e as falsas promessas foram
as armas encontradas pelo governo e pelos donos das fábricas, que não cumpriram
nenhuma das medidas firmadas no acordo que pôs termo à greve
14
.
Assim como o movimento tenentista, as movimentações operárias possuíam
aspectos diversos dos levantes e revoltas mencionados anteriormente. Apesar de
suas reivindicações serem específicas – melhores condições de trabalho, redução
das jornadas, aumento salarial – não podemos analisa-las como de caráter
espontâneo e involuntário. Os operários traziam consigo o germe de um projeto que
propunha o fim do capitalismo, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Prova disso
é a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1922
15
.
III. IIA gestação
É no esteio dos pequenos avanços industriais e intensa movimentação
política, que os proprietários industriais começam a se organizar.
A partir de agora analisaremos a movimentação dos empresários industriais
visando a construção inicial de suas entidades representativas de classe. Para tanto,
14
Sobre as primeiras greves operárias no Brasil ver: CARONE, E. A República Velha: instituições e
classes sociais. 3ª ed. São Paulo, Difel, 1975.
15
Sobre a fundação e a história do PCB ver: MAZZEO, 1999.
127
faz-se necessário tracejar alguns esclarecimentos quanto ao caminho que vamos
percorrer.
Como a ênfase de nosso trabalho recai sobre o papel específico da FIESP no
processo de reestruturação econômica ocorrida no Brasil na década de 1990,
procuraremos fazer uma retrospectiva de sua atuação, e respectiva influência no
governo, – enquanto entidade da principal fração burguesa do país – desde a sua
fundação até o período acima mencionado. Não discutiremos aqui, a atuação da
federação nas contendas entre Capital e Trabalho, a não ser que alguns desses
aspectos possam contribuir para a nossa análise.
Outro ponto a ser esclarecido diz respeito ao modelo de constituição inicial
das entidades representativas da classe industrial. Antes da criação das federações,
as associações da burguesia industrial eram setorizadas, ou seja, formavam-se
organismos segmentados para defender interesses particulares, de determinados
ramos produtivos. Essas agremiações vinculavam-se a centros regionais, sendo que
o grau de importância de cada associação no interior do centro, derivava de sua
participação – e respectiva relevância – para a economia brasileira. O terceiro
aspecto a ser apontado é o fato de, nesse período, a atividade industrial estar muito
ligada ao comércio, o que favorecia a formação de entidades que representassem
os interesses de ambos os setores
16
.
No início de sua organização, essas entidades se concentravam, em sua
maioria, na cidade do Rio de Janeiro. Não podia deixar de ser diferente, afinal de
contas este era o principal centro fabril até meados da década de 1910, como
demonstramos acima. Desse período e na mesma localidade, datam as primeiras
16
LEOPOLDI, 2000, p. 60-65.
128
tentativas de organização com caráter nacional. Entidades como a Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional – SAIN – (1870-1880), a Associação Industrial
(1881) e o Centro Industrial (1890-1892) foram organizadas. Estas tinham como
principal objetivo defender a indústria no sentido de mantê-la viva, e se possível
crescendo, no interior de uma economia agro-exportadora, e que não oferecia
grandes privilégios e vantagens aos segmentos industriais.
Em 1904 é criado o Centro Industrial do Brasil, o CIB. Nascido da fusão de
duas entidades menores – o SAIN e o Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem
do Algodão (1902-1904) – o CIB nasce como a primeira tentativa de organização da
burguesia industrial no sentido de criar uma entidade de caráter permanente e sem
qualquer interferência estatal. O CIB permanece exercendo suas atividades até
1931, quando do advento da nova legislação sindical.
Dois aspectos nos parecem de grande importância nesse período inicial. O
primeiro deles diz respeito às reivindicações dessas entidades. O segundo é o que
trata das suas lideranças.
A atuação dos principais representantes da indústria nesse período vai ser
determinada pela defesa acentuada do protecionismo econômico. Com clara
influência de teóricos como Friedrich List
17
, o discurso das lideranças industriais têm
como fundamento a reivindicação de medidas governamentais que possam
favorecer o desenvolvimento do setor. Nesse sentido a proteção tarifária, a
17
“O sistema protecionista, na medida em que constitui a única maneira de colocar as nações ainda
atrasadas em pé de igualdade com a nação predominante (a qual, aliás, nunca recebeu da Natureza
um direito perpétuo ao monopólio industrial, senão que apenas conseguiu adiantar-se às demais em
termos de tempo), esse sistema protecionista, considerando sob este ponto de vista, apresenta-se
como o meio mais eficaz para fomentar a união final das nações, e, portanto, também para promover
a verdadeira liberdade de comércio”. LIST, G. F. Sistema nacional de economia política, Coleção Os
Economistas, São Paulo, Abril, 1982. Georg Friedrich List, teórico alemão que viveu entre 1789 e
1846. Defensor do nacionalismo, desenvolve uma teoria econômica de caráter evolucionista, onde os
países deveriam, necessariamente, passar por fases de desenvolvimento (primitivas e de
maturidade). Para que as nações que se encontram na fase primitiva de desenvolvimento cheguem à
fase de maturidade, é preciso que o Estado proteja a economia com vistas a impulsionar tal
desenvolvimento e seu conseqüente progresso.
129
viabilização de crédito, a interferência no câmbio – com vistas a aumentá-lo – e o
investimento em infra-estrutura, serão algumas medidas defendidas como a melhor
maneira de proteger a nascente indústria brasileira da “concorrência desleal”,
exercida por empresas e monopólios de países imperialistas
18
.
No que respeita a relação das lideranças empresariais com a movimentação
dos trabalhadores nas primeiras décadas do século XX, essa se mostra incomodada
e, se necessário, disposta a rechaçá-la, dado ser nesse este – como acima
analisado – o período em que os trabalhadores começam a se organizar, reivindicar
melhorias salariais e de condições de trabalho. Ante ao vigor das manifestações –
expresso na movimentação de 1917 – o governo paulatinamente sede a algumas
reivindicações do proletariado fabril, criando mecanismos legais que
institucionalizava tais mudanças. Mais ainda, o governo assinou acordos
internacionais comprometendo-se com a melhoria das condições de trabalho e de
vida da sociedade como um todo
19
. As medidas governamentais provocaram reação
contrária e imediata da burguesia industrial.
Com relação aos movimentos grevistas, estes eram vistos como caso de
segurança pública, – “caso de polícia” - como bem nos mostra o trabalho de Luiz
Werneck Vianna
20
.
18
“Logo, o plano de reorganização financeira deve ter por objetivo: diminuir as despesas do estado,
levantar o cambio, isto é, fazer baixar o preço do ouro, promovendo o equilíbrio do comércio
internacional, levantar a industria sem auxilio direto do tesouro, por meio da proteção ao produto
fabricado, rasgando-lhe o horizonte do mercado consumidor, e finalmente valorizar os títulos
suscetíveis da vida, a fim de facilitar as liquidações das carteiras caucionárias”. Proteção à Indústria
Nacional (1892). Citado em CARONE, E. O pensamento industrial no Brasil (1880-1945). São Paulo,
DIFEL, 1977, p. 28. Grifos do autor. Nessa obra o autor faz um resgate documental de importantes
artigos e manifestos veiculados nos meios de comunicação pelas organizações industriais e seus
interlocutores. Através desses documentos é possível analisar as propostas do setor, como
pretendiam se organizar, como se posicionavam os setores específicos, enfim, qual a forma de
atuação inicial encontrada pela classe produtora em questão.
19
Exemplo desse fato é a assinatura do Tratado de Versalhes, do qual o Brasil corrobora. No tocante
as relações de trabalho o acordo determina que os países envolvidos legislem sobre as condições de
trabalho, principalmente de mulheres e de menores, no sentido de lhes garantirem integridade física,
educação básica, salubridade no ambiente de trabalho etc. CARONE, 1977, p. 427-431.
20
VIANNA, 1976. Ver também CARONE, op. cit. p. 386-389.
130
No que diz respeito aos acordos e as primeiras leis trabalhistas, o
posicionamento dos industriais é no mínimo curioso. Se por um lado a burguesia
industrial defendia a intervenção do Estado no sentido de garantir a proteção e o
incentivo necessários ao desenvolvimento da indústria interna, por outro, quando o
assunto se refere às contendas entre capital e trabalho, estes se movimentam
dentro do campo das formulações liberais. Buscando argumentos que se baseiam
na moral e no paternalismo pequeno-burgês, afirmavam que não existiam setores
mais indicados para tratar da questão do que os patrões e os trabalhadores, e que,
portanto, a interferência estatal em tais debates feria o direito dessas classes, não
contribuindo em nada para a resolução das contendas. Essa postura aparentemente
contraditória – de “dois pesos e duas medidas” – é característica não só da
burguesia industrial brasileira, mas da classe burguesa como um todo, e reflete a
postura e o objetivo dessa classe de explorar o máximo de sobre-trabalho possível
do operariado
21
. Como já afirmado anteriormente, esta é mais uma característica da
forma como o ideário liberal é colocado em prática pela burguesia de países de
extração colonial.
Outra característica importante desse período inicial de constituição das
entidades representativas da burguesia industrial brasileira, diz respeito a suas
principais lideranças. Toda a movimentação, amalgamada nos ideais protecionistas
e no combate sistemático à organização dos trabalhadores, produziu uma primeira
geração de líderes importantes. Atuando na capital federal, industriais mineiros e
cariocas tentavam encontrar lugar ao sol através de publicações que divulgavam
suas idéias. Outra forma de atuação encontrada foi a articulação política. Alguns
21
Para esse assunto ver toda a seção D) Indústria: O movimento operário e as leis sociais, terceira
parte, As questões básicas da afirmação industrial. CARONE, 1977, p. 386-503.
131
parlamentares – poucos, é verdade – se caracterizaram como os principais
interlocutores do pensamento industrial junto ao Congresso
22
.
Um aspecto que nos chama a atenção é o fato de, nesse momento, a
principal voz em defesa da indústria ecoar através de um militar. Serzedelo Correia
(1853-1932) era um engenheiro militar paraense que fazia parte do grupo de
militares positivistas que colaboraram para a queda do Império. Além de atuar no
Congresso Nacional, ocupou pastas ministeriais – inclusive a da Fazenda – no
período imediatamente posterior a Proclamação da República. Presidiu associações
de classe dos industriais e ajudou a fundar o CIB em 1904. Não podemos nos
esquecer que o Golpe de Estado que deu origem à República no Brasil foi
arquitetado e levado a cabo pelos militares, sendo que Serzedelo representava um
elo de ligação perfeito entre os industriais e o governo saído das casernas, recém
inaugurado. Segundo Maria Leopoldi, Correia participou ativamente da comissão
revisora que elaborou a política tarifaria de 1895-96, considerada a primeira tarifa
efetivamente protecionista no Brasil
23
. Percebe-se nesse relato que o interesse
industrial já se faz presente - de maneira bem discreta e através de um líder que não
saiu de suas fileiras, a bem da verdade – na elaboração de propostas monetárias
para o país desde a última década do século XIX. Porém não podemos sobre-
valorizar, em termos políticos, essa atuação.
Fica claro, portanto, que o início do movimento industrialista não contava
exclusivamente com os industriais. Engenheiros, militares, intelectuais e
parlamentares tiveram uma intensa atuação em defesa dos interesses protecionistas
22
“Na década de 1880 e no início da de 1890, destacaram-se Antônio Felício dos Santos (industrial
de tecidos em Minas e no Rio, parlamentar e fundador da Associação Industrial em 1881 e do Centro
Industrial em 1890) e Paulo de Frontin (engenheiro e industrial têxtil, parlamentar por um longo
período, membro do Clube Republicano Carioca e ativo participante das articulações políticas na
Capital Federal). Dois parlamentares destacaram-se no Congresso por sua defesa da indústria nas
décadas de 1890 e 1900: Amaro Cavalcanti e Alcindo Guanabara. Serzedelo Correia e Paulo de
Frontim também atuaram no Legislativo em favor da indústria” (LEOPOLDI, 2000, p.61).
23
LEOPOLDI, 2000, p. 103 e 104.
132
do setor, em nome do desenvolvimento e progresso nacionais - o que explica a
sintonia das reivindicações e ideais do movimento tenentista com o momento
histórico –, revelando sua deficiência congênita e a consecutiva dependência e
subordinação da burguesia industrial brasileira, desde seu nascimento.
Todo o rastreamento digressivo até aqui elaborado, objetiva demonstrar os
aspectos mais importantes da inicial movimentação da burguesia industrial brasileira,
no sentido de se organizar politicamente enquanto classe. Entendemos ser de suma
importância para o nosso intento, reafirmar algumas características das
organizações e de sua atuação política no período.
Em primeiro lugar chamamos a atenção para o discurso e respectiva postura
aparentemente contraditórios dos industriais que oscilavam com posturas ora
protecionistas – quando o interesse era defender o tão almejado “desenvolvimento”
industrial – ora pautados no liberalismo político – quando o assunto se referia aos
conflitos com a classe trabalhadora. É importante salientar que essa contradição é
apenas aparente, pois a lógica de “dois pesos, duas medidas” – como foi apontado
acima – é inerente a especificidade do desenvolvimento industrial brasileiro, fórmula
esta encontrada pelas classes proprietárias para garantir – sempre – níveis
altíssimos de extração de mais-valia dos trabalhadores. Como afirmamos na
primeira parte de nosso trabalho, o ideário liberal assume características particulares
nos países de extração colonial, sendo que essa que acabamos de apontar se
apresenta como uma dessas particularidades, demonstrando assim seu caráter
conservador, e até mesmo reacionário.
Em seguida, temos de apontar sua fragilidade política, resultado direto da
setorialização das organizações, – o que as tornavam em certo sentido efêmeras -
bem como por se tratar dos primeiro passos rumo à sua consolidação. No seu início,
133
as organizações surgiam e desapareciam de acordo com suas reivindicações. Vale
ainda lembrar que muitas das associações desse período representavam os
interesses tanto dos indústrias como dos comerciantes, característica essa derivada
do fato de muitas atividades industriais ainda estarem, nesse momento, vinculadas
ao comércio.
Por último, mas totalmente vinculado ao apontado anteriormente, podemos
verificar a dependência e subordinação da burguesia brasileira junto ao Estado –
bem como à toda contraditória estrutura político-institucional estabelecida com o
advento da República – desde o seu nascimento enquanto classe, refletindo-se no
respectivo caráter que suas organizações vão assumir. Isso fica claro quando
demonstramos que os principais interlocutores dos industrias serão pessoas ligadas
à ordem política estabelecida, bem como a militares e intelectuais que não
necessariamente eram ou possuíam alguma ligação econômica com o setor.
III. III – O nascimento
A partir de agora, vamos discorrer sobre o processo organizativo que originou
o arremate institucional da FIESP, sendo que faremos referências a outras
organizações somente quando estas forem necessárias para compreendermos tal
processo. Sendo assim, devemos iniciar este tópico de nosso trabalho com a
descrição da criação e consolidação do Centro das Indústrias do Estado de São
Paulo: o CIESP.
134
O Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, CIESP, foi fundado em
1928. Sua criação foi resultante de cisões internas dentro de outra associação, a
ACSP (Associação Comercial de São Paulo). Fundada em 1894, a ACSP foi criada
para defender os interesses do comércio e da indústria paulistas. Como já
mencionamos acima, inicialmente esses dois ramos da atividade econômica não
estavam totalmente desvinculados um do outro no Brasil, daí o fato de estas
organizações representarem ambos os setores.
No início do século XX a indústria paulista começa a ganhar força. Capitais
oriundos da cafeicultura, dos grupos importadores e das casas bancárias nacionais e
estrangeiras, foram os responsáveis por tal processo de crescimento
24
. Esse
processo de desenvolvimento começa a ganhar proporções um pouco mais
expressivas na década de 20, sendo que a burguesia começa a angariar os meios e
mecanismos político-institucionais necessários onde pudessem tratar de questões
tarifárias e da regulamentação do trabalho nas fábricas. Nesse momento começam
a surgir as primeiras fissuras na débil organização da ACSP.
Principalmente no que tange a questão das tarifas, o desentendimento se fez
bastante visível. Enquanto os importadores representados pela ACSP reivindicavam
tarifas menores, os industriais – no interior da mesma associação – defendiam
exatamente o contrário, com vistas a proteger a incipiente produção. A pendenga
parecia ser irreconciliável, até que em 1928, quando das eleições para a nova
diretoria, diante dos interesses conflitantes, ambos os setores concordaram em
24
“Não pode subsistir qualquer dúvida de que a economia cafeeira assentada em relações
capitalistas de produção engendrou os pré-requisitos fundamentais ao surgimento do capital industrial
e da grande industria. (...) A economia cafeeira paulista cria, portanto, as condições básicas ao
nascimento do capital e da grande indústria ao: 1) gerar, previamente, uma massa de capital
monetário, concentrada nas mãos de determinada classe, passível de se transformar em capital
produtivo industrial; 2) transformar a própria força de trabalho em mercadoria; e, finalmente, 3)
promover a criação de um mercado interno de proporções consideráveis”. Apesar de não
concordarmos com a ênfase e relevância que o autor atribui aos “determinantes internos” desse
processo, Cardoso de Mello faz uma análise econômica esclarecedora do período mencionado. Cf.
MELLO, João Manuel Cardoso. O Capitalismo Tardio. São Paulo. Editora Brasiliense, 1982.
135
formar uma chapa conciliatória como forma de solucionar, momentaneamente, tal
disputa. Com a criação do CIESP, as separações setoriais no interior da entidade
foram extintas
25
.
No exato momento em que o CIESP foi criado, a indústria têxtil estava
envolvida numa luta por proteção tarifária. Não podemos nos esquecer que já no
ano de 1928 todo o país sentia os reflexos da crise do regime republicano,
estruturado sob a batuta dos grandes proprietários de terras. Junte-se a isso o fato
de o Congresso Nacional começar a formular uma legislação trabalhista. Como se
não bastasse, em 1929, o capital internacional enfrenta sua mais grave crise de
super produção – até então. Podemos observar que os desafios para tal entidade
foram enormes desde o seu nascimento.
Para completar esse quadro de desafios, não podemos nos esquecer do
Golpe de Estado que levou Getúlio Vargas ao poder. O debate sobre o caráter
econômico-político da “Revolução de 1930” se estendeu durante várias décadas nos
meios acadêmicos e sociais brasileiros, sendo que muitos dos nexos de tal
processualidade histórica foram corretamente analisados pela obra homônima de
Boris Fausto.
Segundo o autor, os acontecimentos de outubro de 1930, representaram a
falência do pacto político firmado pelos grandes proprietários de terra, que os
manteve à frente do cenário político nacional por mais de três décadas. Ao
questionar as teorias sociais que pretenderam analisar o episódio
26
, Fausto nos
25
Para uma análise da criação do CIESP, cf. OLIVEIRA, 1969. Cf. também FIESP-CIESP, 1948
FIESP-CIESP. Capítulos dos Anais da Indústria, São Paulo, 1948. Oliveira, 1973: 30-32; e Lima,
1978: 12-23, apud, LEOPOLDI, 2000, p. 72, nota 14.
26
No capítulo I, intitulado Burguesia Industrial e Revolução de 1930, Fausto aponta para os
problemas e as incompletudes das análises produzidas pela sociologia, pelos economistas e pelos
partidos políticos, como o PCB. Recorrendo à análise de Caio Prado, demonstra o equívoco cometido
por esse partido ao transpor experiências históricas distintas – China – para explicar o caso brasileiro.
Ainda no mesmo diapasão tece algumas críticas às análises de autores como Hélio Jaguaribe,
Guerreiro Ramos, Celso Furtado, Nelson W. Sodré, Andrew Gunder Frank, Wanderley Guilherme,
136
afirma que o modelo econômico baseado na exportação de gêneros agrícolas – café
-, não foi rompido; pelo contrário, as medidas iniciais tomadas pelo novo presidente
da república, serviram para sanar as dificuldades financeiras do setor, além de dar
novo impulso à cafeicultura.
É importante observar que, apesar de continuar com uma política de incentivo
a burguesia cafeeira – o que não poderia ser diferente, dado que este era o centro
dinâmico de nossa economia – o movimento de 1930 expressa a necessidade de
ampliação e diversificação da produção nacional, ou em outros termos, era
necessário constituir um mercado interno integrado nacionalmente.
No que diz respeito aos industriais, estes sequer possuíam um projeto
econômico-político alternativo ao modelo agro-exportador para o país
27
. O autor
ainda nos aponta que, a fração de classe da burguesia industrial paulista assume
uma postura extremamente conservadora, tanto nas eleições presidenciais de 1930
– quando estes apóiam a candidatura de Julio Prestes, que representava justamente
a continuidade do poder da burguesia rural – como no movimento de 1930. Após a
consolidação do Golpe os industriais de São Paulo passam a exercer uma oposição
declarada ao governo de Vargas, oposição essa que se consolida e encontra o seu
momento de auge na tentativa de “Contra-Golpe” de 1932
28
.
Vencido o levante paulista, a burguesia industrial de São Paulo passa,
progressivamente, a compor com os elementos políticos do poder central, sendo que
o Estado passa a canalizar recursos da poupança nacional (tributos/empréstimos)
para viabilizar a industrialização no país, o que reafirma, mais uma vez, a debilidade
Ruy Mauro Marini e Rodolfo Stavenhagen. C.f. FAUSTO, B. “A Revolução de 1930 – História e
historiografia”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, p. 12-18.
27
FAUSTO, 1978, p. 23.
28
É importante salientar que, em 1932 a recém criada FIESP vai apoiar incondicionalmente o
movimento constitucionalista.
137
e a incompletude históricas da burguesia brasileira em todas as suas frações de
classe.
O movimento de 1930, portanto, antes de expressar qualquer tentativa de
tomada de poder por parte da burguesia industrial, representou o fim da hegemonia
política da burguesia rural ligada ao setor cafeeiro. Nas palavras de Fausto:
A Revolução de 1930 põe fim à hegemonia da burguesia do café,
desenlace inscrito na própria forma de inserção do Brasil, no
sistema capitalista internacional. Sem ser um produto mecânico da
dependência externa, o episódio revolucionário expressa a
necessidade de reajustar a estrutura do país, cujo funcionamento,
voltado essencialmente para um único gênero de exportação, se
torna cada vez mais precário.
A oposição ao predomínio da burguesia cafeeira não provém,
entretanto, de um setor industrial, supostamente interessado em
expandir o mercado interno. Pelo contrário, dadas as características
da formação social do país, na sua metrópole interna há uma
complementaridade básica entre interesses agrários e industriais,
temperada pelas limitadas fricções
29
.
Muito importante para a compreensão do papel do CIESP nesse momento é o
perfil representativo que a entidade vai assumir. Sua primeira diretoria tinha como
presidente Francisco Matarazzo, proprietário de um dos maiores complexos
industriais da época. Os outros membros eram, da mesma forma, ligados à grande
indústria que reunia as empresas com maior capital e grande nível de concentração
da produção industrial. Percebemos, portanto, que os setores pequeno e médio da
indústria foram excluídos deste processo, forma esta encontrada para se evitar as
reivindicações dos grupos de industriais de menor importância econômica
30
.
Com a ascensão de Vargas ao posto máximo da República em 1930, várias
mudanças tiveram de ser feitas no modelo associativo da burguesia industrial
31
.
29
FAUSTO, 1978, p. 112.
30
LEOPOLDI, 2000, p. 72, 73.
31
Quando Getúlio Vargas chegou ao poder, encontrou os industriais organizados em
associações setoriais e regionais nos principais centros industriais brasileiros: Rio de
Janeiro, São Paulo, Juiz de Fora e Rio Grande do Sul. O modelo associativo que os
industriais haviam adotado supunha: a) uso de entidades privadas; b) intensa colaboração
138
Essa organização inicial teve de passar por reestruturações graças à proposta
de nova legislação sindical a ser implantada por Getúlio. Durante os anos 1930,
essa nova legislação foi criada e colocada em vigor, sendo que o modelo inicial
proposto pelo governo era distinto daquele adotado até então pelas associações da
burguesia industrial, cujos princípios gerais descrevemos na citação anterior. Da
parte do governo, a idéia era implantar um sistema associativo – tanto para os
patrões, como para os trabalhadores – onde a representação seria dividida em
níveis local, estadual e nacional. A proposta do governo Vargas foi implementada
com o decreto 19.770, de 1931, segundo o qual a representação local ficaria a cargo
dos sindicatos. Estes por sua vez, deveriam se fazer representar em nível estadual
através das federações, que se uniriam em confederações, representando assim a
esfera nacional. O decreto determinava ainda que a entidade de classe oficial
ocuparia um lugar no interior do Estado para discutir questões pertinentes a seus
interesses. Vale lembrar que para serem aceitas como “oficiais”, estas entidades
deveriam passar pelo crivo e aprovação do recém-criado Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio
32
.
Foi inserido nesse novo contexto de legislação regulamentadora da atividade
sindical que a FIESP vai ser criada, em 12 de junho de 1931. Os industrias ligados
ao CIESP receberam a nova legislação com muita cautela, pois as novas regras não
condiziam com as associações patronais já criadas. Porém, vislumbrando a
oportunidade de possuírem um “assento” no interior do aparelho burocrático-estatal,
com os poderes públicos; c) estrutura corporativa privada, formada pelas associações
setoriais que, por sua vez, se uniam num centro industrial regional de caráter abrangente e
misto. A representação dos vários setores no centro obedecia ao seu peso econômico”
(Ibidem,
p, 75).
32
Não é de nosso interesse discutir o caráter corporativo e manipulador do modelo de associação
sindical imposto pelo governo Vargas. No entanto é preciso lembrar que esse foi criado num contexto
histórico-social de crise, tanto econômica como política, onde a classe trabalhadora começara a se
organizar com intensas mobilizações e precisava ser – da perspectiva do capital, num contexto de
luta de classes – controlada. Cf. VIANNA, 1976, Cap. 3, 4 e 5.
139
foi a primeira associação industrial a se sindicalizar. Passados três meses após a
promulgação da nova lei, era criada a Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo
33
.
O período 1930-37 foi de grandes dificuldades para a FIESP, haja vista o
desencadear do processo de consolidação da nova entidade. As primeiras medidas
tomadas pelas diretorias iniciais visaram uma intensa campanha para obtenção de
sócios. O argumento mais utilizado lembrava que uma vez oficializados, os
sindicatos receberiam o status de órgão consultivo do governo. Além disso, a jovem
entidade teve de lidar com o movimento Constitucionalista de 1932, que abalou
profundamente a economia do Estado, bem como a sua indústria. Nunca é demais
lembrar que a FIESP esteve ao lado, nesse momento, da burguesia cafeeira
paulista, sendo que a derrota destes implicou em perdas, principalmente no campo
político, para a entidade recém criada. Prova disso é a postura que a burguesia
industrial de São Paulo passa a assumir, qual seja, a de influenciar o governo de
uma maneira periférica, através de deputados e políticos que possuíssem alguma
ligação com o poder central. Para completar o quadro de negatividade desse
período, vale ressaltar, que durante todo o período mencionado, conflitos internos
abalaram a estrutura da entidade que acabava de ser criada. Ao final desse
processo, uma nova geração de líderes havia se estabelecido no comando da
entidade (ver o Mapa abaixo, que corresponde às diretorias da FIESP até o ano de
1966)
34
.
33
Cabe apontar que este é um período de crise econômica e os industriais, mais do que nunca,
lutavam por medidas protecionistas. Cf. LEOPOLDI, 2000, p. 77.
34
LEOPOLDI, 2000, p. 78-79.
140
141
Apesar de todo esse contexto desfavorável, podemos afirmar que as
entidades patronais conquistaram um discreto avanço nesse período, principalmente
no que diz respeito ao seu modelo associativo. Em 1934, o CIB propôs uma série de
mudanças à legislação sindical criada em 1931. Várias das sugestões apontadas por
essa entidade foram incorporadas no decreto-Lei 24.694 (12/7/1934), sendo que o
aspecto que representou um importante favorecimento aos industriais, foi a
diferenciação que passou a ser feita entre os sindicatos da classe trabalhadora e os
da burguesia. As entidades patronais passam a ser consideradas como órgãos
consultivos e teriam a possibilidade de indicar representantes para os vários
conselhos econômicos, o que lhes garantia um canal de diálogo direto com o
governo.
Outro fato importante foi a definição, através de decreto do governo provisório
(1930-34), que a Assembléia Constituinte a ser instalada no final de 1933 deveria
conter “bancadas classistas”. Essa bancada seria formada por representantes
escolhidos nos sindicatos reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio
35
.
O modelo final, estabelecido pela reformulação de 1934, criou uma legislação
muito característica, que seria extremamente interessante para os sindicatos
burgueses no Brasil. A nova lei estabeleceu o princípio da pluralidade sindical.
Calcados nessa premissa, os diretores da FIESP vão colocar em prática uma idéia
de Roberto Simonsem, que defendia a criação de duas entidades em nível regional.
Trilhando esse caminho, a entidade se desdobrou em duas (março de 1937), criando
a Federação Paulista das Indústrias (FIP), órgão representativo logo reconhecido
pelas instâncias legais. A esse respeito, nos escreve Leopoldi:
35
LEOPOLDI, 2000, p. 80. Ver também CARONE, 1977, p. 562-567.
142
Com esse desdobramento da FIESP, tinha início uma tradição do
nosso sindicalismo industrial: manter simultaneamente uma entidade
privada e uma oficial, com a mesma diretoria. A idéia veio de
Roberto Simonsem, preocupado em manter a entidade privada da
indústria, para garantir representatividade no caso de o governo
decidir terminar com as associações sindicais
36
.
Vemos, portanto, que a FIESP - bem como as demais entidades estaduais –
vai se consolidar a partir de 1934 como uma entidade de caráter privado, não
vinculado à estrutura coorporativa sindical, sendo que este papel será exercido por
uma outra entidade – a FIP. O mais interessante dessa dualidade – que por sinal
permanece até hoje, mesmo após a volta da unidade sindical – é que as duas
instituições eram mantidas e dirigidas pelos mesmos membros, demonstrando
grande habilidade política de parte da burguesia industrial paulista, que para se livrar
do julgo estatal, cria um subterfúgio representativo.
III. IV – Os primeiros passos
Como vimos anteriormente, a fração burguesa industrial paulista consegue se
estruturar e se enquadrar dentro dos padrões legais exigidos pela Carta de 1934,
sem que com isso fosse preciso perder seu caráter autônomo. Porém, o devir da
processualidade histórica traria novos confrontos políticos e econômicos dos quais a
FIESP não poderia se ausentar. Nesse contexto, o final dos anos 1930 foram os
mais intensos.
A humanidade vivia então a expectativa da deflagração de um “novo” conflito
de proporções mundiais. A escalada nazi-fascista na Europa vinha alcançando
36
Ibidem, p. 81.
143
degraus ameaçadores para o imperialismo ocidental de arrimo liberal, e a
consolidação econômico-política da União Soviética fazia irradiar por todos os
continentes a idéia de que a “ameaça vermelha” estava ganhando terreno e que,
portanto, era preciso freia-la.
Internamente, o país também passava por grandes agitações políticas. Com a
legalidade burguesa
37
instaurada - orientada por princípios democrático-liberais -,
setores da sociedade civil começaram a se organizar de forma a pressionar o
governo federal, reivindicando reformas econômicas em muitas das vezes radicais.
Assim foi o caso da Aliança Nacional Libertadora, ANL, frente popular organizada
pela esquerda que tinha como presidente honorário Luís Carlos Prestes – ex-líder
tenentista, comandante da Coluna Prestes e agora membro do PCB. O programa
dessa frente popular tinha um caráter de aguda orientação ideológica nacionalista.
Em seu programa constavam os princípios para se instalar no Brasil um “governo
popular” que fosse realmente “revolucionário e antiimperialista”. Essa frente
conseguiu atuar em vários segmentos da sociedade de classes. Tanto a pequena-
burguesia, quanto oficiais de baixa-patente das Forças Armadas se identificavam
com tal programa. O momento máximo dessa movimentação foi o fracassado
levante de 1935 – comumente chamado “Intentona Comunista”.
38
Porém, não foram somente as classes sociais à esquerda que se
movimentaram. As liberdades democráticas cederam espaço à ação política de
grupos extremamente reacionários. Era o caso da Ação Integralista Brasileira (AIB),
cujo ideário econômico-político postulado, foi apropriadamente caracterizado por
José Chasin como “forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio”
39
. Liderados
por Plínio Salgado, esta frente tinha como principais objetivos o combate ao
37
Cf. MAZZEO, 1999.
38
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 32-42.
39
CHASIN, 1978. Para a atuação dos Integralistas, ver também, SKIDMORE, op. cit.
144
comunismo e a organização de um Estado forte e centralizado, baseado nas
corporações profissionais. Esse movimento chegou a apoiar o Golpe de 1937, no
entanto, é colocado na ilegalidade logo em seguida, o que vai provocar uma revolta
das alas mais radicais da AIB. Contudo, são derrotados, e aqueles que não foram
fuzilados pelas tropas do governo, tiveram o exílio como destino.
Diante do contexto de crise, nacional e internacional, a burguesia brasileira
abre mão da legalidade e apóia incondicionalmente o Golpe de Estado levado a
cabo por Vargas em 1937, corroborando assim com uma das especificidades da
forma de ser e ir sendo do desenvolvimento político no país, qual seja, a forma
autocrática de dominação burguesa, que passa a partir de então a se apresentar na
forma de Estado Bonapartista
40
. Na verdade, o objetivo principal da burguesia
industrial brasileira era o de continuar a trilhar os caminhos que já vinham sendo
traçados desde o início do governo Vargas – principalmente o da industrialização –
sem a ameaça de grandes “abalos” sociais, mesmo que para isso fosse preciso
sacrificar a legalidade política.
O Estado Novo necessitava de uma Constituição que desse feições jurídico-
institucionais à ditadura que se estabelecera. Com a Carta de 1937 novas regras
foram criadas para regulamentar as relações entre sindicatos e Estado. Essas regras
reafirmavam a estrutura corporativista de legislações anteriores. Maria Leopoldi cita
dois artigos que comprovam tal afirmação:
A associação profissional ou sindical é livre. Somente porém o
sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de
representação legal dos que participarem da categoria de produção
para que foi constituído e de defender-lhes os direitos perante o
Estado e as outras associações profissionais. (Artigo 138)
40
Aqui nos utilizamos dos conceitos de Autocracia Burguesa e Estado Bonapartista desenvolvidos
por José Chasin (1978) e de Legalidade Burguesa desenvolvido por Antônio Carlos Mazzeo (1997),
ambos inseridos na discussão da Via Colonial de efetivação do capitalismo brasileiro, esta por sua
vez, inaugurada por Caio Prado Junior, como já apontado neste trabalho.
145
A economia da produção será organizada em corporações, e estas
(...) colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, são órgãos
deste e exercem funções delegadas do poder público. (Artigo 140)
41
.
No mesmo diapasão corporativista, a Constituição de 1937 propunha a
criação do Conselho Econômico Nacional. Esse novo mecanismo institucional seria
o responsável pela formulação da política econômica brasileira, sendo que as
corporações teriam assento em tal conselho.
Os industriais receberam com críticas as novas regras que enquadravam e
reconheciam suas entidades representativas. A maior ameaça, segundo os
industriais, era a possibilidade de essa nova estrutura eliminar a relativa autonomia
que as entidades privadas possuíam em relação ao controle estatal. De 1937 a 1939
os princípios corporativistas da constituição do Estado Novo ficaram aguardando a
regulamentação do governo. Durante esse período, uma campanha comandada pela
FIESP e pela CNI foi desencadeada contra o “enquadramento” dos industriais nos
moldes desejados pelo governo.
O auge da contenda ocorreu quando da discussão do decreto-lei nº1.402 de
5/7/1939. Esse por sua vez, fora redigido com o objetivo de estruturar de forma
corporativa os interesses econômicos. Seus autores pretendiam adaptar o sistema
de representação dos empresários e dos trabalhadores às exigências da nova
Constituição. Cabe lembrar que os industriais paulistas possuíam uma organização
arrimada em duas frentes: uma entidade privada, com grande grau de autonomia (a
FIESP) e outra sindical (a FIP) que se enquadrava na legislação anterior ao Golpe
de 1937. Era justamente essa estrutura que os líderes da burguesia industrial
paulista queriam preservar.
Para se opor à comissão responsável pela matéria, criada pelo Ministério do
Trabalho – esta chefiada por Oliveira Vianna – os líderes da FIESP (Roberto
41
Apud, LEOPOLDI, 2000, p. 81.
146
Simonsen) e da CNI (Euvaldo Lodi) utilizaram-se dos mecanismos institucionais que
suas entidades possuíam. Alegavam, através de documentos divulgados em boletins
internos e na imprensa oficial, que os membros da comissão não tinham o
conhecimento necessário das especificidades do setor industrial brasileiro –
principalmente pelo fato de estes serem exclusivamente do Distrito Federal - e que,
portanto, não teriam condições de deliberar sobre o assunto. Reclamavam ainda que
o decreto não levara em conta as sugestões apresentadas pelas classes patronais
42
.
As principais divergências dos industriais estavam relacionadas à proposta de
organização vertical, por ramos de atividade; ao requisito de dois terços de
representatividade do setor para formação de sindicatos patronais; ao fato de a
regulamentação de 1939 por fim às associações de classe de caráter privado; a
proibição de reeleição dos membros das entidades; e por fim, à classificação das
categorias da indústria criada pelos membros do Ministério do Trabalho.
Quanto à proposta de organização vertical, a FIESP alegava que a exigência
de criação de federações específicas por setores produtivos desmontaria toda a
estrutura já existente, onde as federações reuniam vários setores em um só órgão. É
possível verificar que os líderes industriais percebiam que se tal medida fosse
aprovada, haveria uma fragmentação no interior da organização da burguesia
industrial, o que se configuraria como um retrocesso, pois durante duas décadas,
aproximadamente, as principais lideranças vinham fazendo esforços no sentido
diametralmente oposto, ou seja, no da unificação de tal fração da burguesia
brasileira.
No que diz respeito à representatividade necessária para formação de um
sindicato, a FIESP e a CNI propuseram a proporção de 10%, ao contrário dos dois
42
Maria Leopoldi nos oferece uma bela descrição desse embate. Cf. LEOPOLDI, 2000, p. 82.
147
terços exigidos pelo decreto. Alegavam ser um exagero essa quantificação, plausível
apenas para as entidades de trabalhadores. A preocupação, novamente, está em
unificar e não em fragmentar.
O fim das organizações de caráter privado seria um grande golpe nas
instituições industriais. Fica claro que os industriais temiam e não queriam suas
organizações sobre a tutela e controle do Estado - pelo menos uma parte delas. Se
isso ocorresse perderiam sua capacidade de pressão política através do lobby e do
veto, esse último garantido através dos assentos que a legislação vigente já lhes
garantia em instâncias do governo.
O fato de os líderes das entidades serem contra o fim da reeleição se deve a
uma certa tradição de longevidade, criada no interior destes organismos. Grupos se
fortaleciam e quase se “petrificavam” à frente das federações e associações e
nenhum deles queriam desocupar tais cargos antes de desenvolverem seus projetos
político-pessoais.
A última grande discordância dos industriais, dizia respeito à classificação das
categorias. A burguesia industrial criticava tal classificação alegando que os
membros da comissão não consultaram os principais conhecedores e interessados
no assunto – as associações de classe da burguesia industrial – e, portanto, não
estariam aptos a deliberar sobre a matéria
43
.
Um dos grandes argumentos que parametravam toda essa crítica de Roberto
Simonsen e Euvaldo Lodi ao decreto-lei nº 1.402, residia no princípio de que o
Estado não deveria ter um controle absoluto sobre as entidades representativas dos
industriais, como já apontamos acima. Essa “tutela” teria razão de ser nas entidades
43
LEOPOLDI, 2000, p. 83-84.
148
dos trabalhadores, mas não na dos patrões, haja vista o caráter diferenciado de tais
organismos. O Relatório de 1939 da FIESP nos traz as seguintes afirmações:
(...) Mas, é preciso distinguir, nas classes produtoras, a categoria
dos empregadores e a dos trabalhadores. Não há dúvida que todos
os problemas dos trabalhadores de São Paulo são quase idênticos
aos dos trabalhadores do Amazonas ou do Rio Grande do Sul. Já
não se dá o mesmo com os problemas dos empregadores. (...)
Existindo as empresas, em maioria, elas não podem ter um ponto de
vista profissional e individual exclusivamente. O seu objetivo
principal é econômico. Nada mais natural, portanto, do que se
reunirem e se associarem para debater seus problemas comuns,
para levar ao conhecimento do Governo as suas pretensões e as
suas necessidades, para reclamar Justiça (...)
44
.
Os industriais da FIESP sabiam que sua força política – enquanto fração da
classe burguesa - seria maior se mantivesse o bloco industrial coeso, daí toda a
preocupação em barrar a regulamentação de 1939.
Os termos finais desse embate entre industriais – leia-se, principalmente a
FIESP – e os burocratas do Estado Novo, mostraram-se bastante favoráveis às
reivindicações dos primeiros. A FIESP organizou-se de maneira muito eficiente para
demonstrar que seus argumentos eram coerentes e que, portanto, o decreto-Lei de
1939 feria profundamente os interesses da indústria e de seus representados. Para
isso buscou fazer a crítica à política de sindicalização através de vários pareceres de
juristas de São Paulo, especialistas em Direito do Trabalho. Além disso, contou com
o apoio de várias associações paulistas e de outros Estados, entre elas a
Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação das Indústrias do
Estado de Minas Gerais (FIMG). Coube a Confederação Nacional da Indústria (CNI),
encaminhar toda a crítica formulada pela entidade paulista ao governo federal.
Podemos afirmar que o resultado final do debate foi bastante favorável aos
interesses defendidos pela FIESP. Segundo Maria Leopoldi, uma série de decretos
(em 1940) modificou a legislação de acordo com o que era pretendido pelos
44
CARONE, 1975, p.269.
149
industriais. Atendendo às reivindicações, a nova legislação estabelecia que as
entidades com caráter privado continuariam a existir; as federações regionais
poderiam aglutinar em torno de si os interesses de vários setores; uma nova
categorização dos setores da produção seria estabelecida, atendendo às sugestões
apresentadas pela FIESP e pela CNI; e a proibição da reeleição dos membros da
diretoria das associações de empregadores foi suspensa
45
.
Percebemos, portanto, que a FIESP – a partir do início da década de 1940 -
começava a despontar no cenário econômico-político nacional, como entidade que
passaria a desfrutar de grande influência no governo federal – uma das hipóteses
levantadas pelo nosso trabalho.
No ano seguinte (1941), um decreto presidencial dava à FIESP
(então entidade privada) o caráter de órgão consultivo do poder
público. Pouco depois, o Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ)
ganhava igual regalia (1943). Em 1941, pela primeira vez depois de
1930, um paulista foi designado para a pasta do Trabalho, Indústria
e Comércio. Alexandre Marcondes Filho, o novo ministro, era amigo
de Roberto Simonsen, e sua presença no Ministério do Trabalho
significou para as entidades da indústria facilidade de acesso às
políticas de regulamentação das relações de trabalho, à elaboração
da Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e à consolidação da
estrutura sindical dos industriais. Quando mudou o regime, e o
presidente Dutra foi eleito, o novo ministro do Trabalho, Indústria e
Comércio foi Morvan Dias Figueiredo, líder da FIESP
46
.
O trecho transcrito acima, de Maria Leopoldi, parece não deixar dúvidas a
respeito da preponderância que a entidade paulista passa a assumir. Em 1943, com
a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), toda a legislação
sindical foi sistematizada num só documento. As normas de sindicalização para as
entidades representativas da burguesia industrial foram mantidas, além da
reafirmação dessas entidades como órgãos técnicos consultivos.
45
LEOPOLDI, 2000, p. 85.
46
LEOPOLDI, 2000, p. 86.
150
Dentro desse mesmo diapasão analítico, o período de 1943-45 nos parece
sintomático. A FIESP passa a ocupar o papel de entidade sindical, vinculada ao
governo, sendo que a representação privada caberia agora ao CIESP (ambas
entidades foram presididas por Roberto Simonsen até o ano de 1946)
47
. É nesse
período que os industriais, através de suas entidades de classe – que atuavam tanto
no Poder Executivo como no Poder Legislativo – amadureceram seu projeto de uma
política industrial para o Brasil. Firmando alianças estratégicas com o governo e com
os militares, buscavam claramente uma posição de hegemonia econômica e política
dentro do contexto da luta de classes no país. Esta, por sua vez, nunca seria
alcançada, dado o caráter do nosso processo de formação e constituição histórico-
capitalista, marcado – desde a sua origem – pela incompletude e subordinação.
III. V – A adolescência
A passagem à fase adulta é decisiva na vida de qualquer indivíduo. É nesse
momento de transformação que aspectos do caráter e da personalidade serão
definidos, e as pessoas os levarão consigo para o resto de suas vidas. Com a FIESP
não foi diferente.
Podemos considerar o período que se estende de 1945 até o Golpe Militar de
1964 como um momento de transformações definitivas não só na instituição que
47
A título de esclarecimento, cabe lembrar que originalmente a FIESP se constituíra como entidade
de caráter privado. A FIP, por sua vez, era a entidade sindical. Lembramos ainda que esse tipo de
“divisão” foi idealizada por Roberto Simonsen como forma de atender às leis de sindicalização da
década de 1930, sem que com isso os industriais ficassem sobre a tutela do Estado. Ver primeira
parte deste capítulo (A gestação).
151
privilegiamos em nossa pesquisa, mas em todo o modelo representativo da
burguesia industrial brasileira.
É nesse processo de transformações que a FIESP vai ocupar a posição de
principal representante da burguesia industrial, sobrepondo-se inclusive a CNI. Isso
decorre do fato de essa entidade sofrer com intervenções consecutivas por parte dos
governos Jânio Quadros, João Goulart e, por fim, do governo saído das casernas.
48
Internamente, a FIESP também passa por reformulações, principalmente em
seus quadros. Toda uma geração que tinha na figura de Roberto Simonsen o
expoente máximo passa a ser substituída (Simonsen morre em 1948). Porém, essa
reformulação não é apenas nominal. A nova geração que começa a despontar no
interior da estrutura de comando da FIESP vai representar outros interesses, outras
idéias, e buscará meios político-institucionais para alcançá-los. Trata-se do grupo
conhecido como a “geração dos cadetes”.
Foram se firmando na instituição paulatinamente. Sua composição, em
grande parte, era de diretores de empresas transnacionais e representavam os seus
interesses no interior da FIESP. Alguns dos nomes mais importantes desses
“herdeiros de Simonsen” foram Humberto Reis Costa, Manoel da Costa Santos,
Manoel Garcia Filho, Eduardo Garcia Rossi e Mario Toledo de Morais
49
. Como
veremos mais à frente, essa nova geração vai ocupar cargos de grande importância
no governo federal a partir de 1950, influenciando sobremaneira os caminhos
trilhados por nossa economia e por nossa política nesse período.
48
“Sob o governo Jânio Quadros, um grupo da FIESP (tendo à frente o industrial José Vilella de
Andrade Jr.) se associou à FIRJ e demandou do presidente Quadros uma intervenção na CNI. O
ministro do Trabalho realizou então a primeira intervenção em toda a história da Confederação
Nacional da Indústria e nomeou uma junta para dirigir a Confederação, da qual fazia parte Vilella de
Andrade Jr. Esse foi o começo da decadência da CNI”. LEOPOLDI, 2000, p. 89.
49
LEOPOLDI, 2000, p. 88.
152
Outro fato de grande relevância é a criação de associações industriais
paralelas à existência da FIESP. Com a entrada de grandes volumes de capital
estrangeiro no interior da economia brasileira, houve a necessidade de
investimentos em setores específicos. Como a legislação de 1940 – incorporada a
CLT – permitia a existência de entidades privadas ao lado dos sindicatos oficiais,
essas entidades passam a ser criadas para defenderem seus interesses junto aos
grupos executivos criados no final do segundo governo Vargas e no governo
Kubitschek
50
. Data desse período a criação de entidades como a Associação
Brasileira da Indústria de Base (ABDIB, 1955), a Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea, 1956) , a Associação da Indústria de
Autopeças, 1951, que daria origem em 1953 ao Sindipeças, a Associação Brasileira
da Indústria Farmacêutica (ABIF), a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas
(Abimaq) e a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee,
1963)
51
.
Desde a década de 1940 os Centros Industriais vinham perdendo espaço,
enquanto fóruns representativos da burguesia industrial. O principal motivo do
CIESP e do CIRJ terem sido relegados a um papel secundário, derivava do fato de a
legislação sindical privilegiar os sindicatos oficiais (no caso a FIESP e a FIRJ). No
entanto, a partir de meados dos anos de 1950, estes Centros começam a se
reorganizar. Do ponto de vista da burguesia industrial os governos de Jânio Quadros
e, principalmente, de João Goulart, foram bastante turbulentos. Este último colocou
50
DREIFUSS. R. A. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Ed.
Vozes, 1981, p. 73. Dreifuss denomina essa nova forma de organização de “anéis de poder
burocrático-empresariais”. Inspirado no conceito de “anéis burocráticos” de Fernando Henrique
Cardoso, Dreifuss nos descreve de maneira detalhada e precisa como os grupos transnacionais (o
autor utiliza o termo multinacional) vão se utilizar desse mecanismo institucional para defenderem
seus interesses econômico-políticos junto aos governos brasileiros. Cf., Ibidem, nota 14.
51
LEOPOLDI, 2000, p. 89.
153
em andamento as Reformas de Base, que em muitos de seus aspectos contrariavam
os interesses dos grupos representados pela FIESP.
Afirmavam – a FIESP e seus representados –, equivocadamente, que o Brasil
estava sendo rondado pelo fantasma vermelho – principalmente pela aproximação
de Goulart com o bloco socialista – e que o governo brasileiro começava a fazer coro
(através das reformas) com os comunistas. Durante a década de 1950 os Centros
Industriais começam a se mobilizar através de reuniões empresariais para arrecadar
recursos. Estes foram utilizados para viabilizar políticas no Congresso através de
lobby e financiamento de campanhas eleitorais.
Toda essa movimentação vai preparar e mobilizar as instituições industriais,
bem como a sociedade civil, contra o governo e as reformas de Goulart. Ao se iniciar
os anos de 1960, esses recursos já eram amplamente empregados em campanhas
chamadas “democráticas”. Organizações como o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD), a Ação Democrática Parlamentar (ADEP), o Instituto de
Pesquisas e Estudos Econômicos (IPES) e a Conferência das Classes Produtoras
(Conclap), eram financiadas pelos Centros Industriais como parte de uma estratégia
anti-governista, que possuía em sua base de sustentação uma coalizão formada por
empresários – de vários setores, mas principalmente da indústria, tendo à frente a
FIESP – setores da sociedade civil e militares
52
. Toda essa movimentação
redundaria na deposição do governo Goulart, dando início a um dos períodos mais
sombrios da história brasileira, a mais longa Ditadura Militar no Brasil – 1964/1985.
Mais à frente trataremos de explicitar a participação da FIESP no
financiamento e composição do Golpe de 1964.
52
LEOPOLDI, 2000, p. 89.
154
Os desdobramentos factuais acima descritos nos basta, por hora, para
tecermos algumas conclusões acerca do perfil e caráter assumidos pela FIESP
nesse processo de transformação, a qual denominamos fase adolescente.
Nos parece ser de extrema relevância a constituição de uma nova liderança
no interior da FIESP. A chamada “geração dos cadetes” que, como apontamos
acima, passa a ocupar posições de direção no interior da instituição a partir da
década de 1950, daria uma “certa definição” no perfil da entidade. É preciso
ressaltar que esses novos líderes eram – ou ainda são – diretores, gerentes,
técnicos de empresas transnacionais aqui instaladas, e que, portanto, são estes
interesses que passam a ser defendidos em detrimento, na maioria das vezes, aos
da indústria nacional. Lembramos ainda que a FIESP, como federação oficial das
indústrias, estava vinculada diretamente ao governo através da legislação de 1940.
Possuía assentos e funcionava como órgão consultivo do governo para questões de
caráter econômico-político. Isso significa dizer que além de todas as benesses que o
capital internacional vai receber do governo brasileiro na década de 1950 para aqui
se instalar, muitas das decisões oriundas do Distrito Federal (agora localizado no
Planalto Central) passariam antes pelo “crivo” daqueles grupos.
Para assegurar seu domínio econômico o capital monopolista transnacional
necessitava – e necessita – no interior do espaço Estado-nação, de interferência e
de poder político. Os principais agentes do capital transnacional, instalados no
interior da estrutura governamental eram funcionários públicos que ocupavam altos
cargos estratégicos. Estes acumulavam ainda importantes cargos em companhias
estrangeiras. Nomes como o de Roberto Campos, Ary Frederico Torres, Lucas
Lopes, Golbery do Couto e Silva, entre centenas (gostariamos de frisar, centenas)
de outros, passam a se constituir como peças centrais daquilo que Dreiffus
155
denominou como tecno-burocratas. Os “cadetes” da FIESP vão compor justamente
este quadro.
53
Argumentando ainda que o planejamento econômico passa a ser a tônica da
intelligentsia empresarial no Brasil, Dreifuss afirma:
Além do mais, a necessidade de planejamento foi defendida pelas
classes empresariais naquilo que ela tinha de alocação calculada de
recursos. A implementação de um planejamento indicativo e
alocativo significava a intervenção no processo de acumulação do
potencial dos interesses multinacionais e associados, servindo
principalmente aos propósitos de manter o complexo sistema social
em equilíbrio (política de estabilização) e de canalizar recursos
limitados e poupanças, tanto para potenciais obstáculos na indústria
quanto para situações de crise.(...) Os tecno-empresários foram
então capazes de controlar a “marcha evolutiva do processo”. (...)
Além disso, o planejamento era necessário por ser um recurso
institucional que ocultava do público as relações de interesses(...)
54
.
Aquilo que, no entanto, nos parece ser uma contradição – empresários
brasileiros, bem como funcionários estatais, representando e defendendo os
interesses das empresas transnacionais – nos revela o caráter incompleto e
subordinado da burguesia brasileira, próprio de uma economia de extração colonial,
onde a constituição do modo de produção capitalista se dá também de forma
subordinada e retardatária às economias centrais.
Outro ponto a ser salientado, diz respeito ao enfraquecimento – ante o poder
do capital transnacional – da estrutura representativa da burguesia industrial
brasileira. Todo o modelo piramidal (CNI, federações regionais, sindicatos únicos,
divididos por setores) que conformam o sistema representativo, sofreu grandes
abalos com o progressivo surgimento de associações paralelas, pois estas
passaram a participar da elaboração das políticas industriais do país. Nos parece
que o esforço de toda uma geração de líderes, – principalmente de Roberto
Simonsen e Euvaldo Lodi – na tentativa de preservar esta fração de classe unida em
53
DREIFUSS, 1981, p. 74,75,76 e 77. Ver nota 9.
54
Ibidem, p. 75.
156
torno das mesmas entidades (vide a luta pela reformulação da legislação sindical de
1939, descrita acima) tinha sido desperdiçado, pois com o surgimento dessas novas
organizações, a fragmentação estava dada. Além disso, a CNI perde
representatividade com as intervenções anteriormente descritas.
Se por um lado a CNI perde força, de outro a FIESP passa a ser o principal
centro representativo da burguesia industrial brasileira. Além dos fatores de
constituição historicamente determinados, (concentração do maior parque industrial
na região Sudeste, principalmente no Estado de São Paulo) a FIESP contou com o
enfraquecimento da CNI e a participação por setores no governo, o que facilitou a
inserção de seus membros no interior do aparelho de Estado.
Essa fase de “concessões” não é interrompida, mas mudada de caráter
durante a ditadura militar, sendo que somente com a “redemocratização” na década
de 1980 é que a FIESP passa a reaparecer com maior notoriedade no debate
econômico-político de nosso país. De qualquer forma, o caráter fragmentário da
representação industrial, passa a ser aprofundado, aspectos este presente até os
dias atuais, e que pretendemos demonstrar a partir de agora.
III. VI – A juventude
Talvez seja essa uma das piores fases do desenvolvimento da personalidade
do ser humano. Se por um lado, a adolescência é o período das transformações,
das dúvidas e das definições, por outro, a juventude é o momento de assumir
responsabilidades, defender posturas e idéias próprias e, por isso mesmo, as
157
decepções e derrotas – bem como as vitórias – são sentidas e deixam marcas mais
intensas em nosso desenvolvimento individual.
Se o jovem tem uma postura submissa e dependente, as coisas tendem
sempre a piorar, ou na melhor das hipóteses, a se manterem como estão – ou
sempre como foram – desde o respectivo nascimento. É justamente o que acontece
com a FIESP no período da ditadura militar.
Como apontado anteriormente, a partir da década de 1950, a FIESP passa a
abrigar em seu interior membros representantes dos interesses das empresas
estrangeiras instaladas no Brasil. Esses membros (administradores, gerentes e
técnicos) passam a constituir a rede “tecno-burocrática” (anéis de poder burocrático-
empresarial) que, segundo Dreifuss, constitui-se como um poder de “administração
paralela” durante o governo Juscelino Kubitschek
55
. Essa rede de tecno-burocratas
era formada principalmente por administradores públicos que ocupavam elevados
cargos na hierarquia estatal (o chamado primeiro escalão), por técnicos das
agências e empresas estatais, sendo que estes possuíam ligações dentro do bloco
de poder formado pelas transnacionais e, por fim, por executivos estatais,
responsáveis por assegurar os canais de formulação de diretrizes políticas e
econômicas que atendessem aos interesses daquelas empresas.
A fração da burguesia industrial aqui instalada passa a exercer seu controle e
defender seus interesses, através de uma postura política que envolve dois
pressupostos. O primeiro diz respeito à forma como encarar a questão do
desenvolvimento. Nesse sentido, defendiam a idéia de que era preciso abordar a
problemática desenvolvimentista de uma perspectiva empresarial. Complementando
55
DREIFUSS, 1981, p. 73.
158
essa primeira posição, o segundo pressuposto aponta para a colocação de tais
problemas – e suas possíveis soluções – em termos capitalistas. Segundo Maria
José Trevisan:
(...) A administração é apresentada (por esses grupos) como uma
prática racional, porque concebida como neutra, descomprometida
com interesses e idéias individuais ou de grupos e livres de
quaisquer tipos de injunções e conveniências, ao mesmo tempo em
que conhecedora de todas as necessidades e interesses da
coletividade, tendo portanto condições de optar pela solução mais
eficiente e encaminhar as medidas mais adequadas e produtivas
para o bem comum. Liberta de pressões particulares, a prática
administrativa pôde analisar e solucionar os problemas dando-lhes
um tratamento essencialmente técnico, a partir da coleta e avaliação
objetiva de dados, do que resulta seu caráter de racionalidade,
eficiência, produtividade e neutralidade, requisitos imprescindíveis à
condução dos negócios públicos, tendo em vista o atendimento das
necessidades nacionais
56
.
A autora afirma ainda que este foi o discurso utilizado pelos industriais como
forma de opor-se aos princípios da prática política configurada no espaço das
disputas de interesses particulares. Essa oposição, assumida no discurso do
pensamento empresarial, serviu como estratégica política para que tais grupos
alcançasses seus objetivos, dentre os quais, como veremos adiante, a queda do
governo Goulart.
Antes de darmos continuidade a análise do posicionamento da FIESP diante
das contingências históricas que se erguiam, faz-se necessário uma observação que
leve em conta a totalidade histórica do período. No plano econômico-político
internacional, o mundo vivia então o auge do conflito deliberado entre os dois blocos
de poder hegemônico mundiais constituídos, a “Guerra Fria”. Nesse conflito - que
alguns manuais insistem em afirmar, de maneira equivocada, não haver a
participação beligerante das principais nações envolvidas (EUA e URSS), daí a
caracterização como uma guerra fria – uma das estratégias era a conquista de áreas
56
TREVISAN, Maria J. 50 anos em 5 ... A FIESP e o desenvolvimentismo, Ed Vozes, Rio de Janeiro,
1986, p. 48. Os parênteses são nossos.
159
de influência que deveriam se constituir, invariavelmente, como territórios
subordinados e apêndices dos países centrais dos blocos. Inserida nesse contexto e
calcada em nossa particularidade histórica, a burguesia brasileira responde
positivamente às exigências do ideário do bloco capitalista mundial, comandado
pelos Estados Unidos da América.
Todo discurso elaborado e levado à prática nesse período, servia, antes de
mais nada, como instrumento político de dominação de classe. Dominação de uma
classe sobre a outra; do imperialismo e da burguesia brasileira a ele atrelada e
subordinada sobre a classe trabalhadora e de camadas médias de nosso país, que
passam a defender – mesmo que de maneira inconsistente e confusa – o
desenvolvimento autônomo do capitalismo no Brasil.
Toda essa formulação teórica defendida pela intelligentsia técnica instalada
nos principais níveis hierárquicos do Estado ganhara espaço político durante o
governo de Juscelino Kubitscheck, a partir, principalmente, do seu famigerado
projeto político desenvolvimentista. Nomes como o de Eugênio Gudin, (mentor
intelectual de toda uma geração de economistas político-empresariais) Octávio
Gouveia de Bulhões, Roberto de Oliveira Campos, Mario Henrique Simonsen e
Antônio Delfim Netto passaram a ser referência quando o assunto é o
desenvolvimento e a administração estatais no país.
Segundo esses senhores – verdadeiros agentes do capital transnacional –
toda ênfase deveria ser dada às inovações organizacionais e técnicas que, naquele
período, estavam sendo implementadas pelas corporações transnacionais que aqui
estavam se instalando. Toda essa ideologia passa a ser disseminada entre a
burguesia brasileira através de seminários e conferências que eram organizadas nas
associações comerciais e industriais, clubes sociais de prestígio, centros culturais,
160
organizações de ação que passam a ser criadas com esse intuito e, finalmente, pela
Escola Superior de Guerra (ESG). Nessa última a presença do então Coronel
Golbery do Couto e Silva (árduo defensor do planejamento estatal) não nos deixa
dúvida a respeito do alinhamento e da influência norte-americana junto à classe
burguesa em nosso país
57
.
Para exemplificarmos o que descrevemos acima, nos remeteremos à criação
do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE). O BNDE exerceu papel
preponderante na política econômica de desenvolvimento industrial do governo
Juscelino Kubitschek. Criado para dar apoio financeiro a investidores privados, essa
instituição foi responsável, juntamente com os teóricos da CEPAL e da ESG, pelo
delineamento das diretrizes do “Plano de Metas” do governo JK. Essas diretrizes são
traçadas durante o biênio 1953-1954, período este em que Roberto Campos
ocupava o cargo de diretor econômico (aliás, o primeiro a ser nomeado para o
cargo), sendo que a instituição contava ainda com a participação dos tecno-
empresários Octávio Gouveia de Bulhões, Lucas Lopes, José Luiz Bulhões Pedreira
e Hélio Beltrão ocupando posições chaves dentro deste organismo estatal
58
.
Passemos agora a análise da posição que a FIESP passa a ocupar no interior
desses anéis de poder tecno-burocráticos, que formariam o que Dreiffus denomina
como “novo bloco econômico” na estrutura político-institucional.
57
DREIFUSS, 1981, p. 74. O autor define Golbery do Couto e Silva como “o mais hábil e preparado,
teórica e politicamente, dos ‘guerreiros frios’ que lutavam por um desenvolvimento empresarial seguro
no Brasil. Sobre a influência norte-americana o autor afirma: “Os tecno-empresários multinacionais e
associados não estavam sozinhos em seus esforços ‘racionalizantes’. Segundo Lincoln Gordon,
embaixador americano no Brasil durante a presidência de João Goulart, ‘a partir do famoso “Ponto IV”
do presidente Truman, em 1949 os Estados Unidos empreenderam um programa mais intenso de
assistência técnica. Os conceitos de assistência técnica baseavam-se amplamente na experiência
iniciada na América Latina pelo presidente Franklin D. Roosevelt e por Nelson Rockefeller em 1939’”.
Lincoln GORDON. ESG. Documento n. C-41-62. Apud, ibidem, nota 18.
58
DREIFUSS, 1981, p. 75.
161
Segundo esse autor, as formas básicas de organização através das quais as
empresas transnacionais e a burguesia brasileira a elas associadas expressariam
seus interesses comuns, corresponderam a três distintas estruturas políticas. A
primeira seria os escritórios de consultoria tecno-empresarial, como o Consórcio
Brasileiro de Produtividade – CBP e a CONSULTEC. Estes seriam responsáveis por
prestar serviços de consultoria administrativa nos mais variados níveis da hierarquia
do poder constituído, alcançando grande expressão, a ponto de redigir na íntegra,
Projetos de Leis a serem encaminhados ao Congresso Nacional. A segunda forma
de estrutura política, e a que mais nos interessa em nosso trabalho, corresponde às
associações de classe empresariais, que nesse momento já assumem um caráter
renovado (geração dos cadetes) tais como a FIESP e o CIESP. Dentro dessa
modalidade ainda estão incluídas as American Chambers of Commerce, as
associações que representavam as novas atividades setoriais da burguesia industrial
brasileira (ABDIB) e outras novas associações que são criadas com um propósito
mais abrangente como o Conselho das Classes Produtoras (Conclap). Por fim, a
última forma de estrutura política diz respeito aos grupos de ação que expressavam
os anseios empresariais modernizante-conservadores, tais como o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), onde nomes como os de Carlos Lacerda
figuravam com maior notoriedade.
Antes de nos atermos à descrição do papel da FIESP nesse contexto, vale
uma última observação quanto à eficácia desses grupos. Atuaram de forma decisiva
para o desmantelamento e consecutiva deposição de João Goulart, pois
identificavam no governo que este comandava um obstáculo que deveria ser
transposto – a qualquer preço – se desejassem alcançar seus objetivos econômicos
162
com êxito. A processualidade história não deixou qualquer dúvida quanto à sua
eficiência.
As novas condições econômicas e sociais verificadas durante a década de
1950, proporcionaram – e exigiram – uma rápida expansão e reestruturação das
associações de classe burguesas, principalmente daquelas ligadas diretamente a
indústria. Como dito anteriormente, essas organizações e, no que nos interessa, a
FIESP, passam a abrigar em seus quadros de direção executivos (gerentes e
administradores em geral) das empresas transnacionais aqui instaladas.
Paralelamente, a diversificação do parque industrial brasileiro vai gerar a
necessidade, por parte do empresariado, da criação de entidades setoriais, o que
significou a confirmação de uma tendência à fragmentação da representatividade,
fator este sempre temido pelos antigos líderes industriais do país.
Essas associações passam com isso a exercer um novo papel; o de orientar
seus membros no sentido de lhes oferecer assessoria política em questões mais
amplas. A esse respeito Dreiffus nos oferece a seguinte definição:
(...) A recém-descoberta solidariedade de interesses no interior do
bloco econômico multinacional e associado expressou-se através de
novas ou renovadas associações de classe que orientavam os
empresários sobre assuntos referentes à produção e a
administração. Além disso, essas associações classistas de
empresários e tecno-empresários modernizante-conservadoras
davam assistência a questões políticas mais amplas, funcionando,
na verdade, como agência de lobbying, alcançando sua mais alta
expressão política em suas tentativas de compartilhar do governo
com forças sócio-econômicas tradicionais durante a presidência de
Jânio Quadros em 1961 (...) eles representavam as novas formas de
interesses financeiro-industriais multinacionais e associados. E
mais, a existência de tais associações de classe expressava o alto
nível de consciência coletiva (de classe) atingido pelos interesses
empresariais (...)
59
.
59
DREIFUSS, 1981, p. 93. O parêntese é nosso.
163
Nesse contexto a FIESP passa a exercer papel de grande relevância,
caracterizando-se como um importante foco de pressão política. Já no início da
década de 1960, a entidade se configurava como um dos mais importantes canais
de representação, tanto dos grandes industriais brasileiros - sendo que estes, em
sua maioria, estavam associados de maneira subordinada à empresas
transnacionais – quanto de empresas estrangeiras
60
.
A FIESP e o CIESP – que como descrevemos anteriormente, se constituíram
como organizações idênticas, mudando apenas seu caráter legal, ou seja, enquanto
uma está ligada ao sistema corporativo de representação criado a partir da CLT
(FIESP), a outra atua de forma autônoma (CIESP) em relação à essa legislação –
possuíam dois órgãos executivos: o Fórum Roberto Simonsen e o Conselho de
Coordenação Interdepartamental (COCIN).
O Fórum Roberto Simonsen abrigava em seu interior os nomes de Rafael
Noschese (presidente), o General Macedo Soares e Silva e Luiz Washington Vita
(secretário). Já do COCIN faziam parte Eduardo Garcia Rossi, E. F. Gottschalk,
Mário Amato, Mário Toledo de Moraes, Sérgio Roberto Ugolini e Theobaldo de
Nigris.
É importante observar que estes órgãos serão responsáveis pela fomentação
de um amplo debate entre os seus representados, em torno de questões específicas
– tais como a assistência política, econômica e administrativa através de agências
próprias
61
, a seus assossiados – e também a respeito da conjuntura econômico-
60
DREIFUSS, op. cit., nos fornece uma longa lista com os nomes dos diretores da FIESP/CIESP,
bem como das respectivas empresas que estes representam.
61
DREIFUSS, 1981, p. 95. “Entre elas, o Centro de Produtividade das Federações das Indústrias e a
Assessoria Econômica e Jurídica da Associação Comercial de São Paulo (...). A Federação do
Comércio do Estado de São Paulo estabeleceu o seu próprio Conselho Técnico de Economia,
Sociologia e Política, fórum de debate da organização empresarial”. É importante observar que
nomes como o de Antônio Delfim Netto passam a compor os quadros de direção destas agências.
Como sabemos, esse renomado economista brasileiro assumiu, durante a ditadura militar, cargos de
164
política que o país presenciava. Em 1962, muitos de seus intelectuais e lideranças,
ocupariam cargos nos órgãos políticos estabelecidos (BNDE, por exemplo), atuando
de maneira decisiva em defesa dos interesses dos grupos transnacionais e da
burguesia brasileira a ele associado, e colaborando sobremaneira na articulação do
golpe que derrubaria o governo nacional-reformista de João Goulart.
Essa “colaboração” não se restringiu somente as esferas político-
institucionais. O apoio financeiro a grupos que se opunham ao governo Goulart,
também deve ser levado em consideração. Maria Leopoldi argumenta – citando
como fonte o trabalho de Dreiffus – que as Federações e os Centros Industriais
promoveram grandes campanhas para arrecadar recursos que financiariam as ações
de grupos como o IBAD, de políticos da Ação Democrática Parlamentar (ADEP), do
Instituto de Pesquisas e Estudos Econômicos (IPES) e a própria Conclap
62
.
Em suma, o que procuramos analisar nos parágrafos acima é justamente a
forma com que a “geração dos cadetes” da FIESP, bem como os tecno-empresários
brasileiros, se instalam no interior do aparelho estatal e passam a orientar todo o
conjunto de projetos político-econômicos que serão implementados no Brasil.
Buscamos ainda demonstrar a participação efetiva dessa entidade no interior do
complexo social brasileiro, participação está decisiva no processo de constituição do
Golpe de 1964.
Importante salientar que estes representavam os interesses do capital
monopólico transnacional – principalmente norte-americano – que encontrara aqui
durante esse período solo extremamente fértil para extração de mais valia de nossa
força de trabalho. Vale lembrar que, a lógica do planejamento, da racionalização e
grande relevância – como a pasta da Fazenda -, sendo um dos responsáveis diretos da política
econômica traçada para o Brasil durante o regime das casernas.
62
LEOPOLDI, 2000, p. 89.
165
da administração técnica serviu, antes de mais nada, como discurso político –
mesmo negando-o – pois ocultava da opinião pública em geral os verdadeiros
interesses em jogo, contribuindo com isso para a eliminação de todo grupo que a
eles se opunham na cena política
63
.
III. VII – A maturidade
Os anos que marcam aquilo que chamamos “fase adulta” do desenvolvimento
da FIESP guardam consigo dois aspectos muito interessantes. O primeiro diz
respeito ao desenvolvimento econômico-industrial ocorrido no Brasil durante a
ditadura militar: o famigerado período do Milagre Econômico. O segundo aspecto
nos trás informações sobre o papel da FIESP, enquanto entidade representativa da
fração industrial da burguesia – representatividade essa que não se restringe às
indústrias nacionais, mas acima de tudo, como descrito nas páginas anteriores, às
indústrias transnacionais.
Como já observamos, a FIESP, juntamente com outras entidades e
segmentos representativos da burguesia brasileira, apoiaram incondicionalmente o
fatídico Golpe de Estado que deu início ao mais recente – e longo – período em que
o país esteve sob a “tutela e à mercê” dos militares. Essa é uma característica
própria da burguesia brasileira, que traz consigo debilidades genético-estuturais.
Todo o desenvolvimento histórico do país é marcado por governos que assumem a
63
Tal estratégia foi tão eficiente que, anos depois, quando do golpe de 31 de março, raras foram as
manifestações populares que contestaram – pelo menos inicialmente – a investida militar.
166
forma política bonapartista
64
, como meio possível de garantir seu domínio de classe.
Essa particularidade da burguesia brasileira é assim tratada por A. C. Mazzeo:
Historicamente a burguesia brasileira, desde o surgimento do
Estado nacional e determinada por suas debilidades genético-
estuturais, orientou sua ação política, assim como organizou o
aparelho de Estado, de forma autocrática, oscilando entre a forma
política bonapartista e a autocracia institucionalizada. Essa tradição
autocrática da burguesia brasileira aparece como determinação de
sua base material, isto é, como produto da via pela qual o
capitalismo se objetivou no Brasil
65
.
Como demonstrado acima, essa será – sempre – “a carta na manga” que a
burguesia de nosso país lançará mão, quando a luta política, de alguma maneira,
não lhe favorecer. Assim foi em 1889, inaugurando o período republicano, em 1937
com Getúlio Vargas e assim será em 1964, sendo que agora a associação
subordinada ao Capital imperialista – principalmente norte-americano – estará
totalmente consolidada. Inserido num contexto de reorganização da produção
mundial, o Brasil, para poder se integrar à ordem mercadológica do imperialismo,
necessitava de estabilidade política, para que a força de trabalho do operário
brasileiro pudesse ser sugada com grande tranqüilidade e sem imprevistos de
segunda ordem. Essa foi uma iniciativa que aplacaria toda a América Latina, que
assistia em seu território na década de 1960 um grande avanço das esquerdas
organizadas, avanço este desencadeado pela brava luta dos cubanos em 1959.
Segundo Ruy Mauro Marini:
64
O conceito de “bonapartismo” foi desenvolvido por Karl Marx em sua obra O 18 de brumário de Luís
Bonaparte. Nela o autor aponta que uma das características essenciais dessa forma política de
organização do Estado autocrático burguês e a repressão implacável ao movimento operário. Paulo
Barsotti em Engels e o Bonapartismo (in Coggiola, Osvaldo (org.). Marx e Engels na história. São
Paulo, Xamã, 1996), ao discutir a contribuição de Engels no desenvolvimento do conceito de
“bonapartismo” – quando este investiga a Alemanha de Bismarck – nos oferece o seguinte
esclarecimento: “Surgido após o fracasso das revoluções de 1848, da vitória da contra-revolução,
momento de explicitação da moderna luta de classes e dos limites da burguesia representar o
progresso social; o bonapartismo se desenvolve num contexto de acontecimentos extremamente
agudos e contraditórios, de expansão e crises econômicas, de guerras civis, de libertação nacional e
entre nações, marcado sempre pela repressão brutal do Estado ao movimento operário
crescente”. BARSOTTI, op. cit., p. 231.O grifo é nosso.
65
MAZZEO, 1999, p. 118.
167
A reorganização dos sistemas de produção latino-americanos, no
quadro da integração imperialista e frente ao recrudescimento das
lutas de classe na região, levou à implantação de regimes militares,
de corte essencialmente tecnocrático. Sua tarefa é dupla: por um
lado, promover os ajustes estruturais necessários e pôr em marcha
a nova ordem econômica que a nova ordem imperialista requer; por
outro lado, reprimir tanto as aspirações de progresso material como
os movimentos de reformulação política produzidos pela ação das
massas. Reproduzindo em escala mundial a cooperação antagônica
levada a cabo no interior do país, tais regimes estabelecem uma
relação de estreita dependência com seu centro hegemônico; os
Estados Unidos, ao mesmo tempo que esbarram continuamente
com este, em seu desejo de tirar maiores vantagens do processo de
reorganização em que se encontram empenhados. Vista em sua
perspectiva histórica mais ampla, uma América Latina integrada ao
imperialismo é a condição de sobrevivência do sistema imperialista.
A superexploração do trabalho em que se funda o imperialismo, sob
cujo signo se pretende integrar os países da região, estabelece um
descompasso entre a evolução das forças produtivas e as relações
de produção que só pode resultar na derrocada do sistema em seu
conjunto, com tudo o que ele representa em exploração, destruição
e degradação.
66
.
Em nosso país, essa forma foi, sem dúvida alguma, muito eficiente. O
governo das casernas aqui instalado a partir de 1964, traça seus objetivos através
do Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), que em linhas gerais podem ser
resumidos da seguinte forma: levar o país a um maior crescimento econômico;
exercer maior controle sobre a inflação, sobretudo através da contenção de crédito e
dos salários; diminuir as diferenças regionais em termos de desenvolvimento;
diminuir o déficit de nossa balança de pagamentos, através do incentivo as
exportações; atrair capitais estrangeiros, oferecendo-lhes possibilidades de lucros
consideráveis.
Do ponto de vista do crescimento econômico, o país deu um grande salto
qualitativo e quantitativo. Os dados estatísticos do período não nos deixam dúvidas.
Entre 1964 e1980, o “Brasil pulou do qüinquagésimo para o décimo lugar na lista de
nações com o maior Produto Interno Bruto; concentrou mais de um quarto de todo o
66
MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e Revolução. In: BARSOTTI, P. E PERICÁS, L. B.
América Latina: história, idéias e revolução, São Paulo, Xamã-NET, 1998, p. 125.
168
desenvolvimento industrial do Terceiro Mundo; ampliou, diversificou e elevou o nível
técnico da produção nos campos e nas fábricas”
67
; no tocante as exportações
agrícolas, o crescimento mais que dobrou no curto espaço de doze anos: em 1964
esse setor exportava cerca de 9,7% da produção nacional, passando para 22,5% em
1976
68
.
No período áureo do “milagre” (1968 a 1973) a economia brasileira teve um
crescimento médio anual de 11%. Segundo Paul Singer:
Esta inflexão foi o resultado de uma mudança na política econômica:
o combate a inflação foi dado como vitorioso e a acceleração do
crescimento passou a receber máxima prioridade. A partir de 1967,
à construção civil foram destinados créditos abundantes do BNH e,
em 1968, o seu produto cresceu 23% em relação ao ano anterior.
Este foi o início do boom, que logo depois envolveu a indústria
automobilística e outros ramos produtores de bens duráveis de
consumo
69
De fato, os números nos mostram que durante os governos militares o Brasil
deu uma grande arrancada em termos de desenvolvimento econômico. Esse salto
só foi possível graças a uma série de fatores conjugados. A estabilidade política
alcançada pela burguesia brasileira – através do Golpe – criou condições
extremamente favoráveis para uma nova investida do capital imperialista em solo
nacional. O investimento – direto e indireto – do capital estrangeiro foi enorme.
Bernardo Kucinski, tecendo análise do período, afirma que:
67
Retrato do Brasil, n. 1, p. 1. em artigo de Mario Vítor Santos, publicado no jornal Folha de São
Paulo, o autor aponta ainda para o crescimento de outros setores: “A capacidade de geração de
energia subira de 6MW para mais de 40 MW em 84; a rede rodoviária federal pavimentadas se
elevara de pouco mais de 11 mil Km para cerca de 53 mil Km; os telefones instalados, que eram, em
63, 1,2 milhões, chegaram a mais de 10 milhões”. Folha de São Paulo, 27/3/1994.
68
Acrescente a estes dados o fato de o consumo de aparelhos eletrodomésticos alcançar no período
citado, um crescimento vertiginoso.
69
SINGER, Paul. A crise do “milagre”. 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
169
Em 1978, entre as 500 maiores empresas privadas do país, 169
eram estrangeiras: 71 norte-americanas, 22 alemãs, 11 holandesas,
11 italianas, 9 inglesas, etc. Mais ainda, as multinacionais detinham
50% do valor total de venda dessas 50 maiores. Entre as 10
maiores, por valor de vendas, apenas a décima não era
multinacional, e, em termos de faturamento, o quadro não ficava
muito melhor: em 1979, entre as 10 empresas que mais faturavam
no país, apenas 2 eram nacionais – uma delas a Petrobrás
70
.
Outros fatores devem ser mencionados para que possamos entender o
crescimento descrito acima. A situação do mercado internacional era vantajosa, pois
as nossas exportações cresciam e algumas das principais mercadorias importadas,
encontravam-se com preço reduzido (como é o caso do petróleo); as taxas de juros
internacionais também estavam baixas, o que disponibilizava uma maior quantia de
capital a ser emprestado. São esses capitais que vão viabilizar grandes
investimentos estatais, principalmente no setor de infra-estrutura (produção de
energia, construção de rodovias, etc), resultando numa enorme elevação do
montante da dívida externa brasileira. Um último fator – e talvez o mais importante –
diz respeito à mão de obra brasileira. Calada e disciplinada à força, essa classe não
esboçou nenhum tipo de reação ao arrocho salarial imposto pela política econômica
dos militares. O barateamento da mão de obra nacional seria fundamental para que
todo o sistema de produção brasileiro funcionasse em perfeitas condições – era um
de seus pilares de sustentação. Esse quadro só mudaria no final da década de
1970, quando da reorganização do movimento operário e sindical, no ABC Paulista.
Nesse momento de crise do capitalismo internacional, o famigerado “milagre”
agonizou e o “estômago colado à costela do trabalhador” provocou um ruído que
soou por todo o país
71
.
70
KUCINSKI, B. O que são multinacionais. 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 77.
71
Ao discutir o movimento grevista do ABC no final da década de 1970, J. Chasin afirma que a raiz do
arrocho salarial “Evidentemente não é outra do que a própra plataforma econômica do regime
implantado em 64, e que recebeu a indecorosa designação propagandística de ‘milagre econômico
brasileiro’“ CHASIN, J. As máquinas param, germina a democracia. in, Escrita Ensaio, n. 7. São
Paulo, Editora e Livraria Escrita, 1980, p. 110. Cita ainda, um poema de um operário - afixado à
170
Como já apontado acima, desde o governo de Juscelino Kubitschek, a política
econômica do país passou a ser formulada, por uma intelligentsia empresarial sócio-
subordinada ao capital transnacional. Esses tecno-brurocratas passam a intervir e
influenciar sobremaneira nos rumos do desenvolvimento econômico brasileiro. A
FIESP, nesse contexto, vai perdendo espaço político enquanto entidade
representativa da fração industrial da burguesia brasileira, mesmo porque, os seus
principais quadros são formados, agora, por “agentes” do imperialismo –
principalmente norte-americano.
Apesar do incondicional apoio ao Golpe de 1º de Abril, o papel dessa e de
outras entidades industriais do país, vai ser, progressivamente, diminuído.
É verdade que a indústria tirou grande proveito do período descrito como
Milagre Econômico. Porém, suas entidades de classe – que ainda se pautavam no
esquema corporativo – perderam em representatividade. Podemos apontar para dois
fatores como sendo os responsáveis por esse enfraquecimento. O primeiro diz
respeito ao crescente número de entidades setoriais que foram criadas a partir dos
anos J.K. Como analisado nas páginas anteriores, esse processo colocou em
“xeque” todo o esquema de representação piramidal (CNI, federações regionais da
indústria e sindicatos únicos) criado em 1939. Além disso, a presença dos tecno-
burocratas no interior do Estado vai se intensificar – cada vez mais – com os
militares, sendo que não havia espaço para pressões políticas por parte das
entidades – mesmo porque os industriais, até meados dos anos 1970, vão alcançar
grandes vantagens para seus negócios, sendo que só começariam a se manifestar a
partir da crise do milagre:
entrada do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo – para apontar um dos motivos da
greve, o estômago vazio: “Anote senhor secretário / E peça pro escrivão / Remeta ao juiz de plantão /
E diga ao encarregado / Da sindicância que investiga / Que a causa desta paragem / É a nossa
barriga vazia”. Ibidem, p. 115. Também, Cf. SINGER, 1977.
171
(...) O regime militar fragilizou ainda mais as entidades oficiais, quer
pela intervenção feita em 1964 na CNI, quer pelo fato de que a
política econômica passou a ser formulada por tecnocratas em
gabinetes, sem que os industriais tivessem capacidade de
pressionar a equipe econômica. (...) A indústria beneficiou-se com o
período do ‘milagre econômico’, mas as suas entidades de classe
corporativas permaneceram sem representatividade. Enquanto isso,
as associações paralelas, de caráter extracorporativo, continuavam
ativas, evidenciando que o corporativismo das federações unitárias
dera lugar a um pluralismo setorial (...)
72
.
Podemos afirmar, portanto, que o regime militar vai explicitar o esgotamento
do modelo de representatividade corporativo, iniciado nos anos de 1930. As
entidades industriais, e, no que diz respeito, a FIESP, vão dimensionar tal problema,
sendo que a partir de meados dos anos 1970, passam a defender uma atuação
renovada.
Essa nova postura da entidade reflete, além do descrito acima, o momento
histórico pelo qual o país passava, qual seja, o arrefecimento do modelo econômico-
político implementado pelos militares.
Se é verdade que a ditadura conseguiu consolidar o parque industrial
brasileiro, com a estruturação de um parque altamente complexo, diversificado e
integrado, é também verdadeira a afirmação que as conseqüências sociais e
econômicas para o conjunto da classe trabalhadora foram desastrosas. A partir de
meados da década de 1970 os problemas sociais se agravaram; a crescente
concentração de renda, bem como o crescimento da pobreza e das desigualdades
regionais, começavam a criar tensões no interior do regime, que redundariam, como
citado anteriormente, na reorganização dos trabalhadores. Junte-se a estes o fato de
o processo inflacionário retomar ritmos alarmantes e a economia entrar em franca
72
LEOPOLDI, 2000, p. 90.
172
desaceleração. O também crescente endividamento – externo e interno –
completavam o cenário de crise que pôs termo ao milagre
73
.
Nesse mesmo período, o mundo começa a assistir um intensivo e extensivo
processo de reestruturação das economias mundiais. Iniciado pelos governos dos
Estados Unidos e da Inglaterra, tendo à frente o presidente Reagan e a primeiro
ministro Thatcher, respectivamente, esse novo momento do processo de
acumulação capitalista passou a ser denominado – sem, contudo uma grande
circunspeção – neoliberalismo, como demonstrado quando tratamos da década de
1990.
A partir de 1974, passamos a observar uma “certa” guinada na atuação
patronal em relação às diretrizes dos militares para o Brasil. É preciso ponderar que
essa inflexão não foi, de maneira alguma, radical, pois em nenhum momento as
entidades representativas da burguesia industrial – entre elas a FIESP – se
colocaram como inimigas ou opositoras – na acepção política do conceito – ao
regime estabelecido. O que passam a reivindicar é um maior incentivo e proteção
aos seus representados, seja na forma de liberação de créditos ou de benefícios
fiscais, o que só reafirma o historicamente discutido nesse trabalho, ou seja, o
caráter subordinado e incompleto da burguesia brasileira.
Essa nova movimentação passa a ganhar força a partir da campanha
antiestatização de 1974-76. Uma nova geração de líderes empresariais vai ser
formada, sendo que estes passam a defender uma postura com certo grau de
distanciamento do regime militar. Entre os principais líderes estavam os empresários
ligados aos sindicatos que não se enquadravam na estrutura corporativa, sendo eles
73
POCHMANN, Marcio. Sindicalismo Patronal Brasileiro: auge e declínio. In: Revista SÃO PAULO
EM PERSPECTIVA, v.12/ nº.1/. São Paulo: SEADE, Jan-Mar 1998.
173
os responsáveis pela criação de uma base de discussão e reivindicações em torno
da defesa do retorno à forma autocrática legalizada.
Segundo Pochmann, esse distanciamento se precipitou com a saída de
Severo Gomes do governo em 1977, pois este fato teria contribuído “(...) para criar
um ambiente de renovação de lideranças nas entidades tradicionais integradas à
estrutura corporativa(...)”
74
.
As novas lideranças eram ligadas, sobretudo, aos setores que haviam se
desenvolvido recentemente no país – especificamente, em São Paulo. Seus
principais representantes derivavam, das empresas de bens de capital e de
eletroeletrônicos. O grupo renovador desempenhou um papel disruptivo nas
entidades representativas dos industriais, o que possibilitou a projeção de políticos
identificados com as aspirações do empresariado brasileiro, tais como o ministro
Dílson Funaro, que viria a ocupar a pasta da Fazenda durante o governo Sarney
75
.
Na FIESP, tais mudanças puderam ser observadas com a eleição do
empresário Luís Eulálio Bueno Vidigal. Como presidente da instituição, rompe com o
tipo de gestão levada no período 1966-80 por Theobaldo de Nigris, marcada pela
subserviência política à estrutura corporativa. Inicia uma fase de envolvimento com
as esferas sociais e governamentais, estimulando um debate amparado no discurso
da redemocratização política do país, redemocratização esta que devia levar em
conta – impreterivelmente – a posição e a participação dos empresários brasileiros,
a livre iniciativa e as negociações coletivas de trabalho
76
.
Com relação ao recrudescimento do movimento operário e sindical,
Pochmann aponta que os empresários em geral, se dividiram em dois blocos;
74
POCHMANN, 1998, p. 106.
75
Ibidem, p. 106, ver nota 5. Dílson Funaro exerceu atividade industrial em São Paulo, no setor de
brinquedos.
76
POCHMANN, 1998, p. 106.
174
àqueles que apelaram para a estrutura estabelecida pelo regime militar, apoiando a
truculenta repressão policial contra qualquer tipo de manifestação dos trabalhadores
– postura ideológica esta verificada desde o início do processo de industrialização
no país, qual seja, tratar os movimentos sindicais como “caso de polícia”; e um
segundo bloco, que vinha apoiando uma postura inovadora, incentivando a
modernização dos sindicatos, para dar respostas ao movimento do Trabalho
organizado com a criação de novas assessorias jurídicas, políticas, econômicas e
sindicais, que teriam o papel de fornecer os respectivos subsídios para as contendas
entre Capital e Trabalho, no final dos anos 1970. No plano político, este segundo
grupo voltou a lançar mão do lobbie. A maior intensidade desse artifício político pôde
ser verificada junto aos ministérios da Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio,
Agricultura e Trabalho.
A década de 1980 pode ser caracterizada como um período de continuidade
na trajetória trágica da economia brasileira, iniciada na década anterior. As tentativas
por parte do último representante das casernas (o General João Batista de Oliveira
Figueiredo) de saneamento econômico redundaram em fracasso, pois, novamente,
pautou-se no endividamento junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) como
forma de angariar recursos. Essa prática teve como resultado o agravamento da
situação econômica do país, pois para cumprir as metas embutidas nos acordos
assinados com o Fundo, seria necessário continuar com uma política-econômica
recessiva, o que desagradaria os setores empresariais. Mesmo apresentando uma
significativa recuperação a partir de 1985, a economia brasileira se demonstrava
extremamente frágil, pois esse crescimento foi proveniente do bom desempenho de
nossa balança comercial, graças às condições favoráveis do mercado internacional.
175
Quando, a partir do final da década, as exportações brasileiras começam a declinar,
a inflação volta a alcançar índices elevadíssimos
77
.
De sua parte, os empresários passam a se organizar através do Fórum da
Gazeta Mercantil, organização que reunia os mais votados líderes empresariais do
país à época. Porém, a atuação desse fórum foi limitada, pois se restringiu a tecer
pronunciamentos e marcar sua posição contrária à conduta política econômica
adotada pelo governo federal.
Novamente é preciso chamar a atenção para o tipo de oposição – quando
existia – dessa liderança renovada. Enquadrava-se numa postura que acima
denominamos “oposição ponderada”, pois esse posicionamento não os colocava
como opositores ferrenhos do regime. O pragmatismo diplomático herdado das
antigas lideranças, sempre foi uma marca presente das lideranças empresariais,
mesmo nesse novo contexto.
Com o advento da Nova República, em 1986, o país iniciara um novo ciclo de
organização política pautada na forma autocrática legalizada. A expectativa criada
em torno das eleições que definiriam os parlamentares responsáveis pela discussão
e respectiva redação da nova Carta Constitucional, fez com que as várias classes
sociais, através de suas entidades representativas, passassem a atuar com maior
afinco na defesa de seus interesses. No entanto, tanto a burguesia brasileira, como
a classe trabalhadora, não apresentaram nenhum projeto de reordenamento, ou de
rompimento com a lógica de subordinação e a postura de apêndice que a economia
de nosso país sempre manteve – e mantêm – com relação aos impérios centrais do
capitalismo mundial – a primeira por conta de sua incompletude e herança colonial, a
77
Cf. CARNEIRO, R. (org.). Política econômica da Nova República. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986.
176
segunda pela incapacidade de análise da realidade concreta do país e consecutiva
atuação reformista
78
.
Com relação aos empresários em geral, e aos industriais em específico, estes
intensificaram as negociações compartimentalizadas, ou seja, cada vez mais os
setores empresariais vão procurar esferas específicas do governo como forma de
alcançar seus objetivos. Esse fato só veio reforçar uma tendência que nós já
apontamos, qual seja, a acentuada fragmentação da representatividade, fato este,
como veremos a frente, que colocou em cheque toda forma de representatividade
empresarial, pois ao invés de unir em torno dos mesmos interesses, dividia de
acordo com interesses de cada setor
79
. Outra característica do período é o crescente
número de deputados eleitos para a Assembléia Nacional Constituinte que se
identificavam com as propostas empresariais.
No que diz respeito à representatividade sindical, a Constituição Federal de
1988 manteve a antiga estrutura corporativista, o que favoreceu o aumento do
número de sindicatos patronais. Segundo Pochmann,
(...) A manutenção das formas tradicionais de representação
patronal, com acesso restrito às esferas estratégicas do governo
para negociações de interesses setoriais, garantiu as condições
básicas para a formação de novos sindicatos. Talvez por isso, o
aumento continuado do número de sindicatos patronais revele a
constante necessidade de fragmentação da estrutura sindical, como
78
Por esse motivo, Chasin, ao analisar a processualidade histórica que se desenvolvia na década de
1980, bem como o processo de sucessão eleitoral de 1989, qualifica os partidos de oposição como
partidos que possuíam uma postura “na” esquerda e não “de” esquerda. Ao analisar as lutas de
classes no século XIX, Marx vai qualificar como uma posição política “de” esquerda, aquela que
questiona de maneira radical a ordem existente e que propõe em termos reais uma sociedade
pautada em novo modo de produção. Partindo dessa concepção, Chasin apontará que os partidos de
oposição no Brasil contemporâneo, nada mais fazem do que uma oposição – muitas vezes
impregnada com características de um praticismo espontâneo – às alianças políticas que passam a
governar o país, sem acenar com um projeto revolucionário-concreto para o conjunto da socidade
brasileira. CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda, in, Revista Ensaio, nº 17/18. São
Paulo, Editora Ensaio, 1989.
79
Pochmann afirma que, “mesmo com a tentativa inglória da criação de uma entidade que
congregasse todo o setor empresarial (União Brasileira dos Empresários, 1987)”, essa tendência se
manteve. POCHMANN, 1998, p. 107.
177
marca da garantia de uma representação constituída com base na
expressão dos interesses setoriais e localizados
80
.
Contudo, podemos observar durante os anos de 1980, que as entidades
representativas da burguesia brasileira continuaram com sua tendência à renovação,
iniciada na década anterior. Nesse período observamos uma contínua preocupação
com a renovação de seus quadros técnicos, de assessorias e de suas lideranças
sindicais – devido, inclusive, ao avanço do movimento sindical na esquerda. Entre as
ações mais importantes, podemos citar: a criação de centros de informações e de
pesquisas sistemáticas sobre economia e relações de trabalho; a capacitação de
assessores voltados à prática da negociação coletiva e ao ajuizamento de dissídios
coletivos na Justiça do Trabalho; o apoio a políticos que representassem os
interesses patronais, tais como Albano Franco, Guilherme Afif Domingos, Tasso
Jereissati, entre outros; e a criação de entidades de cúpula, que objetivavam a
homogeneização das atuações (União Brasileira dos Empresários, Movimento
Nacional pela Livre Iniciativa, Grupo de Mobilização Permanente e Pensamento
Nacional das Bases Empresariais – PNBE
81
). A forma utilizada para divulgar seus
interesses e posicionamentos econômico-políticos, variava entre os boletins e jornais
das próprias entidades, bem como, através de campanhas na grande mídia
82
.
Essa foi, portanto, a trajetória da FIESP. Procuramos analisar os nexos
causais da processualidade histórica que deram origem a esta entidade, bem como
sua atuação junto à realidade brasileira nos sessenta anos que separam o momento
de sua criação, até o início da década de 1990.
80
Pochmann nos oferece os números desse crescimento.
81
Mesmo com a criação dessas novas formas de organização, a FIESP reivindicava o monopólio da
da representação empresarial. Essa postura se desdobrou através da crítica que a FIESP passa a
fazer ao PNBE, sendo que estes respondem demonstrando toda a fragilidade, ineficácia e
desatualização da estrutura representativa mantida pela entidade paulista. Para maior
aprofundamento sobre a questão Cf. BIANCHI, Álvaro. Hegemonia em construção: a trajetória do
PNBE. São Paulo: Xamã, 2001.
82
POCHMANN, 1998, p. 107-108.
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O “PACTO” COM MEFISTÓFELES
O drama representado por Johann Wolfgang von Goethe em uma de suas
obras de maior envergadura intelectual, Fausto, é sem dúvida, o dilema e a tragédia
da humanidade que passa a viver sob a égide do modo de produção capitalista.
Nessa forma de organização sóciometabólica onde “(...) a riqueza das sociedades
(...) aparece como ‘uma imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual
como sua forma elementar (...)”
1
, esta (a mercadoria) se consubstancia de maneira
independente e autônoma ao sujeito que a produz (o homem), sendo que a lógica da
produção da mesma passa a determinar a lógica das relações humanas, em todas
as suas esferas de organização. Karl Marx, de maneira brilhante e radical (na
acepção mais exata que o termo expressa) nos demonstra que a forma capitalista de
organização social transforma tudo em mercadoria, sendo que isso só foi possível a
partir da ação historicamente revolucionária da burguesia. Essa classe surge,
1
MARX, Karl. O Capital, vol. 1, tomo 1, cap. 1, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p 45.
179
portanto, como vanguarda de um processo histórico de intensas transformações,
pervertendo toda a ordem sociometabolica até então estabelecida, sendo que a
necessidade de expansão – inerente ao novo modo de produção – só vai encontrar
“limites” quando atingir todo o planeta.
Todo tipo de atividade profissional é transmutada à forma de trabalho
assalariado, por mais importante e reverenciada que algumas destas formas
pudessem ser em formas de sociabilidade passadas. As relações de troca reguladas
pelo dinheiro passam a predominar, e para que esta nova forma de organização
sociometabólica possa se perpetuar, é necessário que a burguesia mantenha uma
constante revolução nos meios produtivos necessários à produção do elemento
primordial das sociedades em que “impera o modo de produção capitalista”, a
mercadoria
2
Pois bem, é justamente esse o drama faustiano – e também do prórpio
Goethe: como pode o ser humano se realizar, enquanto tal, em sua plenitude, sendo
que este está inserido dentro de uma lógica de organização social que transforma a
tudo e a todos em mercadorias; onde tudo é mensurável através do seu valor
monetário; onde as relações entre os homens são, antes de mais nada, relações
coisificadas e determinadas pelo “Ter” e não pelo “Ser”; onde o homem “deixa” de
ser a medida de todas as coisas e o Capital – entendido como relação social –
passa a ocupar tal posição; como pode o Homem orientar suas ações mais
2
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista, in Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo, Alfa-Ômega,
p. 24. “A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e
encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus
servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de
família e reduziu-as a simples relações monetárias. A burguesia só pode existir com a condição de
revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de
produção e, com isso, todas as relações sociais. (...) Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que
as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se
esfumaça, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com
serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”.
180
elementares da vida cotidiana através daquilo que Georg Lukács denominou como o
domínio da razão, sendo que aquele está inserido num mundo em que o imperativo
da mercadoria é o que prevalece e determina tais relações?
Não temos a pretensão – e nem é esse o nosso intento nessas palavras
conclusivas de nosso trabalho – de elaborar uma análise literária da obra Fausto, de
Goethe. O que pretendemos é traçar alguns paralelos, de forma metafórica, entre os
dilemas do personagem Fausto e a trajetória histórica da Federação das Indústrias
do Estado de São Paulo.
Em toda a primeira parte da peça o autor descreve o pacto de Fausto com
Mefistófeles, pacto este estabelecido devido à ânsia de saber e pela sede de gozar
os prazeres da vida, que o nosso herói tanto almeja. Este possui a consciência das
limitações – inclusive físicas e de temporalidade – da existência humana; percebe a
já crescente compartimentalização do saber exigida pelas especificidades técnicas
da sociedade capitalista; percebe ainda, a impossibilidade da realização das
potencialidades humanas em sua totalidade, bem como a degeneração e a
fragmentação que o mesmo carrega consigo no mundo moderno. Nas palavras do
próprio Fausto:
Ai de mim! da filosofia, / Medicina, jurisprudência, / E, mísero eu! da
teologia, / O estudo fiz, com máxima insistência. / Pobre simplório,
aqui estou / E sábio como dantes sou! / De doutor tenho o nome e
mestre em artes, / E levo dez anos por estas partes, / Pra cá e lá,
aqui ou acolá / Os meus discípulos pelo nariz. / E vejo-o, não
sabemos nada! / Deixa-me a mente amargurada. (...) / (...) Mas
mata-me o prazer no peito; / Não julgo algo saber direito, / Que leva
aos homens uma luz que seja / Edificante ou benfazeja. / Nem de
ouro e bens sou possuidor, / Ou de terreal fama e esplendor; / Um
cão assim não viveria; (...) / (...) E inda não vês por que, em teu seio,
/ O coração se te comprime? / Por que um inexplicado anseio / Da
vida a flama em ti reprime? / Em vez da viva natureza, / Em que
181
criou Deus os mortais, / De crânios cerca-te a impureza, / De
ossadas de homens e animais. (...)
3
.
Pois bem, é diante desse drama que Fausto faz um acordo com o Diabo
(Mifistófeles). Firma o acordo com o próprio sangue, para que possa alcançar tudo
aquilo que, como reles mortal, não obteria. Mefistófeles representa o que de mais vil
existe na raça humana; valoriza sobremaneira os prazeres dos sentidos, da carne,
em oposição ao domínio da razão. É a afirmação apologética do “reino do irracional”:
MEFISTÓFELES
Daquilo que aos sentidos praz, / Numa hora, mais desfrutarás / Do
que, em geral, num ano inteiro. / Dos meigos gênios os cantares, / Os
lindos quadros que diluem nos ares, / Não são mendaz, mágica folga.
/ O teu olfato se há de deliciar, / Distrai-se, após, teu paladar, / E teu
sentir, enfim, se empolga. / O prólogo sem mais se abstrai, / Estamos
juntos, principai!
4
.
É assim então que Fausto passa a obter tudo aquilo que deseja. Com a ajuda
de Mefistófeles – que não poupa nenhum tipo de artimanha para alcançar seus fins,
mesmo que para isso seja preciso humilhar e até mesmo matar a outros que lhe
cruzem o caminho – seduz Margarida. Porém, após ter um filho com a jovem, a
abandona. Insânia, Margarida sacrifica o filho, tendo como fim trágico de seu
personagem, a morte na prisão, nos braços de Fausto.
Na segunda parte do livro, Goethe desenvolve a trama de forma a afirmar o
imperativo da razão humana. Nesse momento, representa-se a aposta entre Deus e
Mefistófeles, onde o primeiro defende a tese de que Fausto se salvará, ao passo
que o segundo deseja degradar o herói à condição abjeta de uma besta. Fausto vai
ser salvo, pois o que o autor reafirma é a capacidade racional de o ser humano
3
GOETHE, Johann Wolfgang von. FAUSTO. Belo Horizonte – Rio de Janeiro. Villa Rica Editoras
Reunidas Ltda, 1991, p. 41-42.
4
GOETHE, 1991, p. 75.
182
tomar em suas mãos o controle de suas próprias vidas. No prefácio à edição de
1991, Antônio Houaiss nos trás a seguinte colaboração:
Fausto é nela o símbolo da humanidade, que erra enquanto age,
mas que deve agir para atingir o ideal que ela mesma entreviu.
Fausto é salvo porque jamais cessou de tender para um ideal.
Capsularmente, é essa uma síntese mínima e despojadíssima da
ossatura ideológica do poema-drama, sob muitos aspectos sui
generis na literatura universal, seguramente uma das dez obras
basilares da humanidade verbalizada.
5
Cabe agora a indagação central dessa nossa apresentação: de que forma o
desenvolvimento histórico da FIESP pode ser comparado ao drama de Fausto?
A FIESP é criada em 1931. Surge da necessidade econômica e política da
fração industrial burguesa se organizar e se erigir enquanto tal. Toda movimentação
anterior à sua criação possuiu um caráter eminentemente efêmero; instituições
setorizadas que lutavam por interesses específicos e que, geralmente, perdiam sua
importância e influência na medida em que as contendas que estimularam suas
criações eram equacionadas.
Com a instituição paulista o processo é outro. Sua organização se dá no
momento histórico em que a Região Sudeste – e, conseqüentemente, o Estado de
São Paulo – passa a se configurar como principal pólo econômico do país. O Brasil
acabará de passar por um processo de substituição de importações – o que deu um
certo estímulo à atividade industrial interna – e sentia ainda os efeitos da Crise de
1929. Na política, a burguesia rural cedia espaço – à força – para as frações
urbanas dessa classe. O empuxo reformador do Golpe de 1930 acenava para uma
nova era onde a industrialização do país seria a meta a ser alcançada.
No entanto, é preciso observar que todo essa processualidade histórica não
rompe, em aspecto algum, a lógica de organização econômica e política
estabelecida no Brasil, a partir de sua colonização pelos portugueses. Pelo contrário,
5
Ibidem, p. 18.
183
esse “novo” momento, mantém de forma indelével os Sentidos da Colonização.
Nessa lógica, o Brasil enquanto nação surge como país periférico, onde sua
economia está subordinada diretamente aos pólos centrais europeus, obedecendo –
de maneira subordinada – à lógica que no velho continente impera, a saber, a da
acumulação e produção capitalistas. As classes que aqui vão se constituir como
proprietárias serão “sócias-menores” (ou sócias-subordinadas) do capital comercial
europeu. A economia nacional servirá como apêndice dos grandes centros, sendo
que a produção – e, portanto, a lógica que a faz assim – destinar-se-á sempre ao
mercado externo. Segundo Antonio Carlos Mazzeo:
Reafirma-se, assim, o caminho colonial das formas de sociabilidade
do capitalismo brasileiro, que, desde suas origens, organizou-se
como uma economia complementar dos centros econômicos ativos
ocidentais, tendo sido, num primeiro momento, forma econômico-
social – de caráter histórico-particular – de impulsionamento do
processo de acumulação primitiva de capitais, no período mercantil-
escravista e, posteriormente, exportador de matérias-primas para a
produção industrial dos centros desenvolvidos do capitalismo, ao
longo da primeira metade do século XX
6
.
Essa forma específica de objetivação do capitalismo no Brasil deve ser levada
em conta se pretendemos entender os nexos causais que constituem a tecitura
histórico-social brasileira.
No que diz respeito à industrialização no país, essa se completará de forma
hiper-tardia, como a conceituou José Chasin, característica essa derivada da forma
particular de inserção brasileira na fase imperialista de desenvolvimento do Capital.
É nessa conjuntura que a FIESP é criada. Como aspecto particular, essa instituição
trás como “marca de nascença” a fragilidade de uma burguesia industrial que se
desenvolve às custas e através do Estado; dependente, desde sempre, de
6
MAZZEO, 1999, p. 107. Ao elaborar tal análise, Mazzeo descreve o período pós-1945. No entanto, o
escopo teórico desse autor está afinado no mesmo diapasão analítico de Caio Prado Junior, o que
reforça nossa argumentação.
184
mecanismos de proteção legais – tais como as tarifas aduaneiras e as políticas
monetárias – pois se desenvolve, enquanto tal, num contexto de incompletude sócio-
histórica (via não-clássica), onde a iniciativa estatal vai fazer às vezes de agente
propulsor de mudanças econômico-políticas.
As primeiras gerações de líderes da FIESP, se assim podemos dizer,
vislumbram de alguma forma um projeto industrial com relativa autonomia. Os
primeiros presidentes que passaram pela entidade, tais como Roberto Simonsen,
tinham clareza que era preciso manter a representatividade e a coesão de seus
associados, pois só assim, segundo eles, aglutinariam forças para angariar seus
objetivos. Faltavam-lhes a clareza da análise do desenvolvimento sócio-histórico
brasileiro, bem como o ímpeto de uma classe revolucionária, o que gerou uma
interpretação equivocada da realidade que viveram, não podendo assim,
encaminhar propostas, seja de caráter político, seja de caráter econômico, que
movimentassem todo o contexto social no sentido de romper com os Sentidos da
Colonização.
Assim que essa primeira geração foi substituída, o “pacto com o Diabo” se
consubstanciou. A entidade passou a abrigar em seu interior agentes internacionais
do Capital, A Geração dos Cadetes da FIESP. Não podia ser diferente; uma
entidade que foi criada como forma de representatividade da fração industrial da
burguesia do principal centro econômico do país, não podia se ver livre de todas as
vicissitudes e determinantes históricos que a própria forma específica de constituição
dessa classe trazia consigo, desde sua gênese colonial.
Sendo assim, “vender a alma” a Mefistófeles foi só um momento a mais na
luta pela afirmação de uma burguesia de caráter hiper-atrofiado, sócia-subordinada
ao Capital imperialista, confirmando assim a sua incompletude histórica.
185
Porém, como afirmamos acima, o personagem central de Goethe, Fausto, é
salvo pela “luz da Razão”, representada pela figura de Deus no romance. E a FIESP
“foi”, ou “será”, salva por quem? Eis a grande diferença do drama de Fausto para a
tragédia da FIESP. Esta não pode se livrar do “pacto de sangue”, pois a razão de ser
e ir sendo da processualidade histórica brasileira se expressa, até o momento
presente, nos mesmos padrões descritos anteriormente.
O que procuramos demonstrar na análise que empreendemos do projeto
econômico-social da FIESP para o Brasil, através da análise do documento Livres
para crescer – proposta para um Brasil moderno, bem como de todo histórico da
entidade, é que esta, em momento algum rompe com o caráter de subordinação da
burguesia brasileira junto aos pólos centrais do Capital. Muito pelo contrário, a
década de 1990 revela a reafirmação dessa forma de ser.
Todo o processo de reestruturação econômica, bem como as reformas pelas
quais o Estado brasileiro vem passando desde o início da década supra-citada,
processo este avalisado incondicionalmente pela burguesia do país, bem como pela
fração de classe industrial que a FIESP representa, é a reafirmação do Sentido da
Colonização, marca histórica da via particular de entificação/objetivação do
capitalismo no Brasil. Demonstra também os limites da forma legalizada da
autocracia burguesa, negando e impedindo qualquer forma de desenvolvimento
democrático-nacional.
Nesse processo, os grupos mais à esquerda do contexto político no país
foram calados, tanto na iniciativa privada, como no interior do funcionalismo público.
O último grande golpe contra essa organização foi a reforma da previdência do setor
público, esta já sob o comando do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Por possuir
uma identidade histórica vinculada ao movimento dos trabalhadores, o PT ao chegar
186
ao poder contou com o aval das principais centrais sindicais do país, principalmente
a CUT. Tal cooptação vem rendendo grandes frutos para o projeto desse governo,
que em nada se diferencia do governo FHC, pelo contrário, repõe – com maior
eficiência em algumas questões, como a reforma citada acima – a agenda político-
econômica do capital mundializado.
Seja através da crítica voraz das baionetas, seja através de programas de
reestruturação graduais, a burguesia internamente instalada vem mantendo a
hegemonia de seu projeto econômico-social no Brasil. Esse possui novas
particularidades, porém, estas não rompem de nenhuma maneira a lógica do
desenvolvimento capitalista no Brasil que, desde sua ontogênese, assume um papel
de subordinação e dependência, onde a burguesia “nacional”, em todas as suas
frações, reproduz a sua condição de incompletude e debilidade históricas.
O debate sobre a superação de tais características imanentes da burguesia
internamente instalada no país, deve passar, necessariamente, pela superação do
Sentido da Colonização, presentes na via prussiano-colonial de desenvolvimento
econômico-social. Ao analisarmos o complexo de complexos que constituíram e
constituem o histórico particular da FIESP, bem como a totalidade em que esta se
insere, procuramos contribuir para esse debate, pois a compreensão ontológica do
desenvolvimento histórico-social do Brasil se faz mister no processo de reposição e
reestruturação da luta revolucionária em direção à emancipação humana.
187
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Primeira Leitura, ed. Nº 1, MARÇO DE 2002.
Revista Veja, edição especial nº 36, OUTUBRO DE 2004.
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