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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO
LAURO STOCCO II
Preconceito, branqueamento e anti-racialismo:
porque e como utilizar a categoria negro nas
políticas de ação afirmativa
Rio de Janeiro
2006
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II
LAURO STOCCO II
Preconceito, branqueamento e anti-racialismo:
porque e como utilizar a categoria negro nas
políticas de ação afirmativa
Dissertação apresentada ao Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Ciência Política.
Rio de Janeiro
2006
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III
LAURO STOCCO II
Preconceito, branqueamento e anti-racialismo:
porque e como utilizar a categoria negro nas
políticas de ação afirmativa
Dissertação apresentada ao Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Ciência Política.
BANCA EXAMINADORA
__________________________
João Feres Júnior (Orientador)
__________________________
Letícia Helena Medeiros Veloso
__________________________
Rosana Rodrigues Heringer
Rio de Janeiro
2006
IV
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço à CAPES pela concessão da bolsa que me deu a
tranqüilidade necessária para o desenvolvimento de meus estudos nos dois anos em que
estive no Rio de Janeiro.
Da mesma forma, sou grato ao IUPERJ por todo auxílio que me foi prestado durante
o período que estive vinculado à instituição. Seu corpo de funcionários, aqui representados
por Lia, Valéria e Simone, sempre me tratou com muita cortesia e eficiência, motivo pelo
qual não posso deixar de expressar meu apreço por todos eles. Também sou grato aos
professores do IUPERJ, que com a profundidade e seriedade de suas aulas me estimularam
em meus estudos e mais gosto me deram pelas Ciências Sociais.
De forma especial, agradeço ao professor João Feres Júnior, meu orientador, que ao
me incorporar a um de seus projetos de pesquisa me apresentou uma área de estudos que
esteve ausente em minha formação básica, na graduação. Desse envolvimento com a
temática das políticas de ação afirmativa, e posteriormente com a temática das relações
raciais, não surgiu apenas uma dissertação de mestrado, mas todo um projeto pessoal de
melhor compreensão da realidade social brasileira dando a devida importância à raça na
formação histórica e social de nosso país.
Muitos foram os amigos que estiveram ao meu lado durante o período que estive
estudando no Rio de Janeiro e depois no processo de finalização de meu trabalho, o qual
ocorreu em Brasília. Sou grato a Fernanda Joffily, Gabriela Tarouco, Luzia Costa, Teresa
Cristina Vale, Monique Menezes, Vitor Peixoto, Marcos Mesquita, Beatris Duqueviz,
Cleber Julião, Natália Sátyro, Eduardo Lopes, Pedro Ivo Teixeirense, Diana Barbosa,
Danielle Valverde, Adailton Silva, Waldemir Rosa, Luciana de Oliveira, Ana Carolina
Querino, Alexandre Ciconello, Michel Neil, Frederico Gromwell, Ticiana Egg, Vanessa
Viana, Elaine Bortolanza, Maria Falcão, Sylvain Levy e Barbara Duqueviz. Como muitos
de vocês sabem, não fiquei satisfeito com meu trabalho, não acho que consegui fazer o
queria e achava que era importante ser feito. Mas, a cada momento, estou me convencendo
que fiz o que era possível e que nos próximos trabalhos resolverei as pendências desse. De
qualquer forma, quero agradecê-los de coração por terem participado desse processo, cada
qual a sua época e a sua maneira.
Por fim, faço um agradecimento especial e emocionado a toda minha família. Sem a
confiança e apoio irrestrito de meus pais, Lauro e Dora, dificilmente eu teria chegado até
essa etapa de minha vida acadêmica. A meus irmãos, Leandro e Lucas, sou grato por todas
as nossas enriquecedoras conversas e discussões mesmo sem serem das Ciências Sociais,
a dedicação aos estudos e a erudição de cada um deles os tornou estimulantes
interlocutores. Minha mulher, Daniele, sempre ao meu lado, com toda sua compreensão,
paciência e incentivo, com toda a certeza, tornou a finalização desse trabalho possível. E é
para ela, meu amor, que dedico esse trabalho.
V
RESUMO
O presente trabalho procura mostrar a importância da ideologia racial brasileira,
mais especificamente de três de seus elementos o preconceito, o branqueamento e o anti-
racialismo –, para a nomeação dos beneficiários das políticas de ação afirmativa no Brasil.
O preconceito e a discriminação contra o negro ocorrem no Brasil desde 1500 e se
baseiam em um ideal de superioridade branca que está presente em todas as esferas do
convívio social brasileiro, até hoje. O branqueamento é um fenômeno social nascido da
união entre miscigenação e aquele ideal de superioridade branca. Em ambientes de grande
mestiçagem, nos quais o ideal de superioridade branca não é discutido e criticado, a
tendência da população mestiça é buscar o branqueamento – cultural, social e mesmo
fenotípico –; que, em fins do século XIX, é transformado em política estatal no Brasil. O
anti-racialismo caracteriza-se pela negação em se reconhecer e discutir o importante
componente racial que as relações e desigualdades sociais brasileiras possuem.
Colaboraram para isso o banimento da raça do discurso científico após o final da II Guerra
Mundial e a afirmação pelo pensamento social brasileiro de que não havia raças no Brasil,
mas indivíduos de diferentes cores, que não tinham sua integração à sociedade afetada por
isso. Mas cor não é um conceito que retrata uma realidade objetiva, e sim um conceito
racializado, pois ele próprio e suas categorias baseiam-se na idéia de raça.
Ao se formular uma política pública, várias são as etapas que devem ser
consideradas. Dentre elas, destacam-se: seu princípio, seus objetivos, suas atividades, e os
resultados e impactos sobre a população. Logo, antes de tudo, é primordial se definir e
enunciar o princípio que orienta as políticas de ação afirmativa no Brasil. Comumente
tratadas como políticas racialmente orientadas, tais políticas parecem ter como princípio o
reconhecimento de que estrutura e as relações sociais no Brasil são, na prática, racializadas.
Sendo assim, é preciso se adotar conceitos e categorias que possam desnudar o racialismo
real que o anti-racialismo formal e discursivo esconde. Portanto, as políticas de ação
afirmativa no Brasil, pela natureza racial presente na realidade social brasileira e pelo
princípio que as orienta, precisa incluir na nomeação de seus beneficiários a categoria
negro, embora sua operacionalização deva ser feita pelas categorias nativas de cor
reconhecidas e registradas pelo Estado brasileiro há pelo menos um século: pardo e preto.
PALAVRAS-CHAVE
Preconceito e discriminação contra o negro; branqueamento; Estado brasileiro; anti-
racialismo; superioridade branca; mestiçagem; raça; cor; políticas de ação
afirmativa.
VI
SUMÁRIO
Apresentação
1
1 Antecedentes do preconceito e da discriminação contra o negro no Brasil
4
2 O ideal do branqueamento
20
3 Discussão racial nas Ciências Sociais do Brasil
34
4 A categorização racial construída pelo Estado brasileiro: o quesito “cor ou
raça” no Censo Nacional
50
5 Porque e como utilizar a categoria negro nas políticas de ação afirmativa
63
Considerações finais
84
Bibliografia
90
1
Apresentação
A partir de 2003, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
passou a reservar uma parte de suas vagas de graduação para estudantes que se declarassem
negros ou pardos, o debate acerca da possibilidade de classificação da população brasileira
segundo sua cor ou raça passou a ter contornos nacionais dada a real possibilidade de
adoção de tal política por outras instituições públicas de ensino superior. A indagação feita
por expressiva parte da grande mídia nacional, então, foi: em um país de população
miscigenada, há como implementar políticas para os negros? Quem é negro no Brasil?
Para alguns intelectuais que criticam as políticas focalizadas na população negra,
estas estariam erradas em suas premissas, o que tornaria sua implementação problemática.
Afinal, tal política necessitaria de “uma clara definição de quem tem e de quem não tem
direito aos seus programas”, de quem é negro e de quem não o é. Para esses intelectuais,
entretanto, não haveria no Brasil regras claras de classificação racial, pois as “identidades
raciais” se formariam a partir da união entre a aparência e o contexto em que os indivíduos
estão inseridos, de forma que, para a implementação dessas políticas, “mulatos, morenos
claros e escuros, cafuzos etc.” seriam obrigados a se inserir na taxonomia oficial (Fry e
Maggie, 2004, p. 157).
A despeito de todo estardalhaço provocado pela grande mídia nacional e por setores
da academia em torno da impossibilidade de classificação racial dos brasileiros, este
procedimento não é estranho nem à sociedade nem ao Estado. Apesar de miscigenada, a
população brasileira não é homogênea, e o pensamento intelectual brasileiro mostra, desde
o século XIX, pelo menos, que a sociedade sabe identificar discriminar brancos, negros
e mestiços. O Estado brasileiro, por sua vez, classifica sua população em relação à cor ou
raça desde 1872, data do primeiro Censo Nacional.
O objetivo desse trabalho, então, é mostrar que as políticas afirmativas para a
população negra dispõem de elementos suficientes para identificar seus beneficiários. Tais
elementos podem ser observados tanto na produção intelectual acerca da forma e do sentido
das relações raciais no Brasil quanto pela análise dos procedimentos empregados pelo
Estado brasileiro para classificar racialmente sua população.
2
O capítulo 1 mostra, brevemente, como o negro tem sido alvo de preconceito e
discriminação ao longo de toda a história brasileira, sejam eles de natureza religiosa,
cultural ou somática. Apesar desse não ser um trabalho sobre a história social do negro e do
mestiço livres, tão pouco estudados pela historiografia nacional, julgo importante tal
incursão, pois acredito que a situação social passada, com suas idéias, valores e práticas
modificadas ao longo do tempo –, moldou uma certa memória social, que segue
condicionando, de alguma maneira, o comportamento social na atualidade.
O capítulo 2 analisa o ideal do branqueamento na sociedade brasileira, fenômeno
resultante da combinação de miscigenação com o ideário de superioridade branca. Ambos
elementos presentes no Brasil desde a chegada dos primeiros portugueses a estas terras.
Mas foi a partir do século XIX que o Estado brasileiro, inspirado em doutrinas racistas
científicas daquele período, transformou a miscigenação em ferramenta de branqueamento
da população brasileira. Com esse intuito, entre o final do século XIX e o começo do XX, o
Estado brasileiro promoveu a importação subsidiada de europeus para a colonização de
áreas devolutas do Sul do país e para o trabalho direto nas lavouras de café, ao mesmo
tempo que proibiu a entrada no país de imigrantes originários da África e da Ásia.
O capítulo 3 apresenta diferentes interpretações acerca das relações raciais no
Brasil, desenvolvidas pelo pensamento intelectual a partir dos anos de 1930. Seu principal
intuito é mostrar como o pensamento intelectual brasileiro interpretou a transformação
sofrida pelo significado nativo cotidiano da categoria raça ao longo do século XX.
Nesse período, a raça é substituída pela cor como a principal categoria de representação da
diversidade da população do Brasil, deixando de ser uma categoria estruturadora das
relações sociais cotidianas para se tornar uma idéia aparentemente descolada da realidade
social.
Até os anos de 1940, a intelectualidade brasileira interpretou isso como um sinal da
inexistência de discriminação racial no Brasil, uma vez que o povo brasileiro não seria
constituído por indivíduos de diferentes raças, mas sim por mestiços, que apesar de suas
diferentes cores, possuiriam uma origem comum a união das raças que chegaram ao
território brasileiro. Mas a partir de meados de 1950, novas interpretações das relações
raciais no Brasil afirmam que as construções feitas pelos indivíduos sobre as diferentes
cores do povo brasileiro são, na verdade, orientadas pela idéia de raça, sendo a cor apenas
3
um fator sintético do conjunto de características fenotípicas que determinam a aparência
racial.
O capítulo 4 se utiliza dessas interpretações sobre as relações raciais no Brasil
desenvolvidas a partir de 1950 para verificar como o Estado brasileiro procedeu quanto à
codificação das diferenças raciais de sua população.
O capítulo 5 apresenta os debates travados em duas arenas distintas sobre a
possibilidade de se identificar os beneficiários dos programas de ação afirmativa: a grande
imprensa nacional representada por um jornalista do Estado de S. Paulo, um colunista da
Folha de S. Paulo e o diretor executivo da Central Globo de Jornalismo e a academia,
locus de disputa de diferentes projetos de nação, um ancorado na ideologia da mestiçagem,
tal com ela se apresenta atualmente, e outro que procura “revelar o racialismo real que o
não-racialismo formal e discursivo esconde” (Guimarães, 2002, p. 75).
Por fim, a segunda parte desse capítulo realiza uma análise da forma empregada por
três universidades públicas brasileiras para identificar os beneficiários de seus programas
afirmativos para negros. Análise essa que pretende evidenciar a existência de um grupo
social no Brasil que reúne um conjunto de características fenotípicas que os identifica como
negros, embora a melhor forma de operacionalizar essa categoria seja por meio do conceito
nativo de cor, tal como tem sido feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) desde a primeira edição do Censo Nacional.
4
1 Antecedentes do preconceito e da discriminação contra o negro no Brasil
O contato com a literatura mais atual sobre relações raciais no Brasil pode deixar
seus leitores com a impressão de que o preconceito e a discriminação contra o negro são
fenômenos iniciados na segunda metade do século XIX, obra de um conjunto de idéias que
ficou conhecido como racismo científico. Tal impressão, no entanto, deve ser atribuída
antes ao primor acadêmico na utilização dos conceitos do que a defesas deliberadas da
ausência de preconceito e discriminação. Seja como for, o fato é que o negro livre,
considerado como tal ou mestiço, é discriminado em nossa sociedade desde seus
primórdios.
E para que esse elemento da formação social brasileira não seja esquecido, ou dado
como irrelevante para a compreensão das relações entre brancos e negros nos dias de hoje
1
,
é fundamental se fazer algumas considerações a seu respeito, mesmo não sendo este um
trabalho sobre a história social do negro livre
2
. Afinal, quase quatro séculos de reprodução
de um determinado comportamento social não pode ter seu impacto desconsiderado.
O africano negro foi trazido ao Brasil logo no começo da colonização das terras
portuguesas de além-mar, nas primeiras décadas do século XVI. Homens, mulheres e
crianças foram capturados em suas antigas terras e, como mercadorias, transportados para
as colônias portuguesas para serem escravizados. Embora não seja objetivo dessa seção a
realização de uma discussão sobre a escravidão
3
, não como se falar da história do negro
no Brasil sem que se esclareça a condição de sua chegada a esse território: o africano negro
(assim como seus descendentes) foi subjugado e fisicamente dominado pelo branco
europeu e por seus descendentes para ser transformado no trabalhador de mais baixo status
no sistema social da época, o escravo. E tanto a estratificação social do período da
1
Vale esclarecer, contudo, que este capítulo não pretende determinar, ou explicar, em que medida o
comportamento social atual é influenciado pelas idéias, valores e normas passadas, ou pela ação social
desenvolvida naquele contexto. Esse seria um esforço hercúleo, necessariamente desenvolvido em um
estudo próprio para isso.
2
Ao longo deste texto, chamo de negro livre aquele que não está em cativeiro, seja porque já nasceu livre
ou porque foi libertado. Tradicionalmente, entretanto, a historiografia os diferencia, chamando o primeiro
caso de livre e o segundo de liberto.
3
A escravidão foi, e ainda é, uma temática profícua na historiografia nacional. A história social do negro
livre, contudo, especialmente no período em que a escravidão ainda estava vigente, não recebeu a mesma
atenção dos historiadores. Para algumas questões relacionadas a esse segundo ponto, ver Skidmore (1993).
5
escravidão quanto as idéias que justificavam esse sistema tiveram influencia sobre a
ideologia racial que se formou no Brasil.
Não foi apenas de grilhões e chicotes que se fez a escravidão no Brasil. As idéias
que a justificaram tiveram um papel central para sua manutenção assim como para o
padrão de sociabilidade entre brancos e negros que se desenvolveu no Brasil. A
inferiorização dos negros, nos lembra Feres (2004, 17), “não foi inventada durante a
segunda metade do século XIX”. A história intelectual européia está repleta de exemplos
disso, “vide a representação do negro nos autores da Legenda Negra, em Montesquieu, na
Encyclopedie, em Kant e Hegel etc.”
No que se refere à escravidão, um importante exemplo da postura intelectual
européia são os debates teológicos do século XVI sobre a humanidade dos povos indígenas
do chamado novo mundo. As discussões chegaram a tal ponto de intensidade e confusão
que, em 1537, o Papa Paulo III emitiu a bula Sublimis Dei, que assegurava que os indígenas
eram portadores de almas o que, por conseguinte, reconhecia seu caráter humano e
pedia para que eles não fossem escravizados (Sant´Ana, 2005, p. 45; Santos, 2002, p. 282).
Isso, contudo, não foi suficiente para debelar a controvérsia.
Entre 1550 e 1551 ocorreu uma famosa polêmica entre o teólogo jurista da Corte de
Espanha Juan Ginés Sepúlveda e o frei dominicano Bartolomeu de Las Casas
4
(Sant´Ana,
2005; Santos, 2002; Petruccelli, 2005; Ianni, 2004a; Ianni, 2004b). Sepúlveda defendia a
legitimidade da conquista dos indígenas pela guerra, pois eles seriam “brutos, sem alma e
correspondentes aos escravos naturais descritos por Aristóteles em sua Política (seres que
poderiam ser úteis através da eterna escravidão)”. Las Casas, por sua vez, tinha um
posicionamento considerado, na época, favorável aos indígenas
5
. Ele os considerava
inocentes e defendia a tolerância dos europeus em relação aos nativos da América, não
4
Disponível em: http://www.pime.org.br/pimemissio/pimemcursos5.htm e
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bartolomeu_de_Las_Casas. Acessos em: 13 de setembro de 2006.
5
A simpatia de Las Casas pelos indígenas não significava que ele os enxergasse como iguais aos europeus,
e, por conseqüência, defendesse um mesmo tratamento a europeus e ameríndios. Segundo Feres (2002, pp.
565-566), Bartolomeu de Las Casas foi um dos pioneiros do movimento de secularização da diferença
temporal entre os povos. Em seu esquema interpretativo, a diferença cultural entre os povos era pensada
por meio de uma escala temporal de desenvolvimento, onde a “cristandade católica européia” ocupava seu
ápice. “Culturas extra-européias são, dessa maneira, identificadas com povos europeus do passado,
criando a possibilidade de se pensar diferença cultural em termos de primitivismo, atraso ou retardamento,
isto é, em termos de diferença temporal”.
6
aceitando que eles fossem escravizados e afirmando que sua evangelização deveria se dar
de forma pacífica (Santos, 2002, p. 282).
Nem a Igreja Católica nem Las Casas mostraram, contudo, a mesma benevolência
com os africanos negros. De acordo com Santos, apesar dos europeus invadirem a América,
e de causarem a destruição de muitos povos indígenas, havia entre eles, ao menos, um
debate sobre a justiça ou a injustiça no tratamento aos ameríndios. O Vaticano, inclusive,
publicou mais de uma bula papal favorável aos nativos americanos. Os africanos negros, no
entanto, não foram objeto das mesmas disputas intelectuais entre os clérigos europeus, “não
documento conhecido que revele uma oposição séria à escravização do negro no século
XVI” (Hanke, 1962, p. 26 apud Santos, 2002, p. 282).
Naquele momento, não parece haver dúvidas entre os europeus sobre a condição
não humana dos negros. Como afirma Petruccelli (2005, p. 19), a disputa travada entre Juan
Ginés Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas sobre a legitimidade ou não da escravização
dos “nativos do Nuevo Mundo” excluía qualquer dúvida sobre a possibilidade dos africanos
serem escravizados. Segundo Sant´Ana, mesmo Las Casas, o defensor da não escravização
dos indígenas, não se levanta contra a escravização dos negros, chegando, aliás, a propor “a
substituição [daqueles] pelos negros, afirmando serem estes mais fortes e adaptáveis ao
trabalho duro” (Sant´Ana, 2005, p. 45).
Ora, não se pode esquecer que neste momento da história européia incluindo aqui
suas colônias americanas – os valores e normas presentes no cotidiano das populações eram
influenciados de maneira decisiva pelas idéias, diretrizes e práticas da Igreja Católica. E a
mensagem, neste caso, era clara: naquela época, o negro era “sinônimo de ser primitivo,
inferior, dotado de uma mentalidade pré-lógica” (Munanga, 1986, p. 9 apud Sant´Ana,
2005, p. 46). Isso não apenas autorizava os europeus a escravizarem os africanos negros
como também os autorizava a tratá-los como coisas ou, na melhor das hipóteses, como
animais –, não como seres humanos.
Pode-se, assim, perceber que o preconceito contra o negro no Brasil é condizente
com nosso processo histórico. Suas origens, ou pelo menos parte delas, devem sim ser
buscadas em terras distantes das nossas, mas que, ao contrário do que pensam alguns,
possuíam grande afinidade com a cultura que foi estabelecida nas colônias portuguesas de
7
forma dominante
6
. Como se pode depreender da discussão acima, não foi preciso se
recorrer a idéias extra-ibéricas para se justificar a dominação, a exploração e os maus-tratos
à população negra, o pensamento ibérico do século XVI podia ser utilizado para esse
intuito. E essas idéias, presentes na expansão européia sobre a América, apresentam um
indício acerca do tratamento que, durante os séculos seguintes, será dispensado aos negros
pelos descendentes dos europeus – os brancos do Novo Mundo
7
.
Segundo Skidmore, a large free coloured class foi criada no Brasil ainda antes da
abolição graças, principalmente, à escassez de mão-de-obra européia no início da
colonização do quinhão português da América (Skidmore, 1993, p. 383). De acordo com os
dados mais antigos disponibilizados pelo IBGE, aproximadamente 15 anos antes da
abolição da escravatura, entre 1872 e 1874, os negros livres (pardos e pretos)
representavam aproximadamente 46% da população brasileira, enquanto que a proporção
de negros escravizados era de aproximadamente 16% da população brasileira e a proporção
de brancos era de 38%. Considerando apenas a população negra do Brasil, no período em
questão, aproximadamente 75% dela era formada por negros livres, enquanto os outros
25% restantes ainda estavam escravizados (IBGE, 2000).
6
No Brasil, é comum a atribuição do preconceito racial aos povos de origem anglo-saxã. O brasileiro, por
sua vez, estaria imune a ele, ou pelo menos, isso seria um traço secundário e diminuto de nossa cultura
nacional. Caminho semelhante a esse também foi seguido, guardadas as devidas proporções, por correntes
do pensamento social brasileiro. Para estas correntes, a tolerância racial e a mistura cultural e carnal entre
brancos e negros seriam valorizadas pelo brasileiro em virtude de sua herança cultural ibérica. A longa
convivência dos ibéricos com povos de pele mais escura dada a dominação moura sobre a Península
Ibérica e os contatos daqueles com o norte da África teria tornado portugueses e espanhóis mais
tolerantes à diferença racial. Aqui, não se nega que essa experiência histórica dos ibéricos, distinta
daquelas vivenciadas por outros povos europeus, tenha influenciado seu comportamento social de alguma
maneira. Mas a afirmação de que essa experiência os tenha tornado mais tolerantes com o outro racial
carece de comprovação histórica, seja por meio das práticas de portugueses e espanhóis em relação aos
negros como também por meio das idéias desenvolvidas na Península Ibérica acerca do africano negro
tal como se pode perceber acima.
7
No final do século XVII, mais de 100 anos após a divulgação das idéias de Las Casas, sua influência
parece ainda importante sobre o pensamento colonial conforme se pode notar em sermão de 1680 do
padre jesuíta Antônio Vieira. Assim como o frei espanhol, Vieira era contrário à escravização dos
indígenas, mas, para resolver os problemas de mão-de-obra do Maranhão, recomendou a escravização de
africanos. Em seu esforço de compatibilização dos valores católicos com a escravidão, Vieira apontava
esta como um passo para que os escravos se libertassem do pecado, “o cativeiro da alma, decorrente do
pecado, era muito pior que o cativeiro do corpo”. Assim, mesmo condenando a crueldade dos senhores
contra seus escravos, ele não hesita em afirmar que “os escravos deviam obedecer aos seus senhores,
como os homens livres obedeciam a Deus” (Carvalho, 1998 e Viotti, 1998 apud Alves, 2003, pp. 14-15).
8
Esse grande contingente de negros livres, entretanto, não conseguiu ascender
socialmente nem no período colonial nem no período que se inaugura com a independência
política frente a Portugal.
Oracy Nogueira, em seu seminal estudo sobre as relações raciais no município de
Itapetininga
8
, mostra que no século XVIII a competição pela vida” entre brancos e negros
livres é geralmente desvantajosa para estes. Na estrutura social do município, havia
posições que eram ocupadas exclusivamente por proprietários brancos, sendo as de mais
alto status preenchidas por reinóis e por alguns “elementos arraigados na Colônia pela
tradição”. Esta pequena camada, que não congregava mais que 5% da população, recrutava
“parte da população masculina livre de sua própria cor” para ocupar as funções públicas
auxiliares; enquanto uma “outra parte dos homens brancos se ocupa do comércio de
mercadorias” (Nogueira, 1998, pp. 63-64).
O restante dos homens brancos, todavia, competia com os “mulatos livres”. Mas
estes negros mestiços
9
, que no final do século XVIII correspondiam a quase metade de
todos os habitantes da vila
10
, não recebiam o mesmo tratamento que aqueles brancos,
apesar de pertencerem ao mesmo grupo socioeconômico que eles.
no século XVIII, competem os pardos com os brancos pelo exercício dos ofícios. Tal
como estes, porém, em sua maioria, limitam-se às atividades próprias de uma lavoura de
subsistência, seja na qualidade de posseiros seja na de agregados dos senhores mais
abastados. Distribuem-se, enfim, por quase todas as ocupações ou condições econômicas de
nível médio para baixo, ou seja, pelos ofícios (ferreiros, carpinteiros, curtidores etc.), pela
lavoura de subsistência, na mineração, entre os que ganham de viagens, entre os soldados
rasos de milícias e entre os mendigos, havendo, ainda, entre as mulheres, as que vivem de
costuras. Não conseguem, porém, galgar postos, quer nas companhias de ordenança,
quer nas de milicianos, nem infiltrar-se entre os negociantes de animais, de molhados e
de fazendas secas ou exercer atividades como as de sacerdócio, do tabelionato e outras de
igual nível (Nogueira, 1998, p. 64, grifo meu).
8
Este trabalho de Nogueira, realizado em um pequeno município do Estado de São Paulo nos anos de 1950,
merece ser citado e reutilizado não apenas por suas primorosas e profícuas análises, mas também pela
própria maneira sob a qual seu estudo é construído e conduzido. Além de utilizar diferentes técnicas de
análise, unindo diferentes abordagens, como a pesquisa histórica, a quantitativa e a qualitativa, seu rigor
metodológico o fez escolher um município onde, naquele momento, “esrepresentada toda a gama de
condições e posições sociais que se podem encontrar no Brasil (Nogueira, 1998, p. 31)”.
9
Ora chamados por Nogueira de mulatos ora chamados de pardos.
10
Segundo Nogueira, a situação demográfica da vila ao longo do século XVIII variou da seguinte maneira:
os proprietários brancos não chegaram a mais de 5% dos habitantes; os demais brancos somaram até 40%
da população; enquanto os pardos livres chegaram a aproximadamente 50%; pretos livres variaram entre 2
e 3%; e a população escrava de 10 a 20% (Nogueira, 1998, pp. 41 e 63).
9
Fosse para o sucesso no exercício de ofícios ou fosse para o ingresso nas variadas
modalidades de comércio ou em funções públicas, esses negros livres o possuíam uma
condição necessária para que o indivíduo fosse “aceito em de igualdade pelo grupo
dominante”: a “cor branca” (Nogueira, 1998, pp. 64-67). A importância da brancura da
pele, da vantagem de ser branco na sociedade daquela época, pode ser mais bem
compreendida com a leitura do trecho abaixo:
Em 24 de novembro de 1808, José Gabriel Moreira, oficial de ordenanças da vila de
Itapeva, ao sul de Itapetininga, onde eram idênticas as condições de vida, comunicou-se
com o governador da capitania, dizendo-lhe, entre outras coisas, que “o Ajudante deste
Corpo Franco. Fera. de Albuquerque he homem branco, porem doente, innutil, e de
nenhuma serventia pa. o Servo. de o S.A.R.” (Departamento de Arquivo do Estado, tempo
da Colônia, Maço 52, pasta 1 Documento 114). É como se dissesse: Ele tem uma das
qualidades essenciais, isto é, a cor branca, porém, não tem as outras, para ocupar o referido
posto” (Nogueira, 1998, p. 69).
E as condições da população negra livre no município paulista de Itapetininga em
fins do século XVIII não parecem muito distintas daquelas encontradas, no mesmo período,
na Bahia, tanto em sua capital, Salvador
11
, quanto em seu interior o que é, no mínimo,
intrigante. Segundo Castro de Araújo (2004, pp. 253-254), a cidade de Salvador, nesse
momento, está “abarrotada de gente”, de brancos originários da metrópole, a “africanos
trazidos pelo intenso tráfico de escravos que se fazia nesta cidade”, passando,
evidentemente, pela população nascida no Brasil, constituída de indivíduos das mais
variadas matizes de cor.
O status social e as expectativas desses grupos, entretanto, diferiam bastante. Os
brancos portugueses com grande representação demográfica na sociedade soteropolitana
daquele período vinham ao Brasil com o intuito de mudar sua condição social, contando
para isso tanto com a brancura de sua pele quanto com sua condição de reinol. Era
principalmente esta característica do português, sua origem geográfica, que o favorecia na
competição por empregos geralmente públicos, mas também “no mui seleto corpo
11
E Salvador, nesse período, não é nenhuma cidade de importância menor, como o era a cidade de São
Paulo, por exemplo. Salvador era considerada uma metrópole colonial e foi, até 1763, a capital da colônia.
Em 1808, será a primeira cidade onde a família real portuguesa em fuga das tropas napoleônicas
aportará e onde D. João VI assinará seus primeiros documentos em terras brasileiras.
10
comercial da cidade” e no “acesso à propriedade da terra através de uma sesmaria”. Os
“brancos da terra”, por sua vez, tinham seu acesso à burocracia estatal dificultada. Apenas
as famílias mais ricas obtinham êxito em colocar seus varões nas “altas posições civis,
militares e eclesiásticas” da cidade (Castro de Araújo, 2004, pp. 254-255).
Aos brancos da terra pobres poucas eram as alternativas. Impedidos de ocupar as
altas posições da sociedade, eles concentraram seus esforços na “desobstrução dos entraves
nacionais” ao ingresso e à ascensão nas carreiras públicas, o que os pôs em “conflito
aberto” com os reinóis, ocupantes preferenciais destes postos. A pressão desses brancos da
terra sobre o “aparelho do Estado” se constituiu quase que em sua única saída de inserção
social, dado sua recusa a exercer qualquer tipo de trabalho manual identificado como
“trabalho de negro” –, pois isso acarretaria em “rebaixamento social” (Castro de Araújo,
2004, pp. 254-255).
A grande maioria da população urbana de Salvador, no entanto, era constituída por
“descendentes de africanos, 37,3% escravos e 41,8% livres de cor” (Mattoso, 1986, p. 99
apud Castro de Araújo, 2004, p. 255). Diferentemente dos africanos, escravos ou libertos
12
,
essa massa de descendentes de africanos cuja ligação cultural mais forte com a África se
perdeu através das várias gerações nascidas no Brasil – dirigia suas “expectativas para a sua
inclusão na demos ou polis colonial”. Contudo, os variados critérios de exclusão existentes
naquela sociedade como “a condição jurídica (livres, liberto, escravo), a cor da pele
(branco, mulato, preto), a origem nacional (europeu, filho da terra, africano), o exercício
profissional (trabalhador mecânico ou burocrata)” não permitiam que esses descendentes
de africanos conseguissem outras ocupações que não nos ofícios e artes menos qualificadas
e prestigiadas. Isso fazia com que eles, não importando a cor de sua pele “(crioulos, cabras,
mulatos e pardos)”, de fato, estivessem em uma condição muito próxima a do trabalhador
escravo da cidade, pois era com ele que conviviam e competiam
13
(Castro de Araújo, 2004,
pp. 255-256).
12
Os indivíduos provenientes da África eram considerados pela população da colônia “os mais ferozes dos
bárbaros”, e “foram colocados no escalão mais baixo da sociedade urbana”. Isso contribuiu para o
estreitamento de seus laços e para o desenvolvimento de uma identidade africana, “unificada no exílio”
(Castro de Araújo, 2004, p. 255).
13
Observação semelhante para o caso de Itapetininga é feita por Nogueira (1998, p. 66).
11
A exclusão vivenciada pelo negro livre na cidade de Salvador também se repetia
pelo interior da Bahia. Segundo Castro de Araújo (2004, pp. 256-257), era comum que
esses negros livres da cidade de Salvador fossem recrutados, muitas vezes à força, para o
serviço militar. Mas as precárias condições materiais das tropas e a dura disciplina aplicada
aos soldados, que utilizava, inclusive, castigos físicos, faziam com que a deserção de
negros e de brancos fossem fenômenos rotineiros – mas não idênticos.
Nestas condições cotidianas de sobrevivência, a deserção torna-se uma regra geral. A
diferença de cor desempenha um papel muito importante na dinâmica das deserções. Para o
branco pobre, a deserção abre as portas de uma vida nova no interior da Capitania, onde ele
é absorvido pelas populações locais como um igual, constituindo-se assim a deserção em
um importante mecanismo de regular o povoamento dos sertões, ao fim de contas bem visto
pelo Estado. Para o soldado preto ou mulato, a deserção funciona mais como uma prática de
rebeldia. O desertor negro ou mulato era fortemente rejeitado pelas populações interioranas,
sendo forçado a perambular pelos sertões em grupos de salteadores e bandidos, mais
conhecidos como facinorosos, ou se reintegrar à tropa, transformando em desertor
contumaz (Castro de Araújo, 2004, p. 257).
Situações de discriminação do negro livre ao longo do século XVIII, como as
apresentadas acima
14
, assim como aquelas enfrentadas por esse grupo social durante o
século XIX
15
, não devem ser compreendidas apenas como produtos de idéias religiosas dos
séculos XVI e XVII. Essas idéias certamente não foram as únicas a influenciar o
comportamento social da população do Brasil durante o período colonial e do Império. E
dentre estas outras idéias, o pensamento racional desenvolvido na Europa a partir do século
XVIII merece um lugar de destaque.
É nesse século que pensadores europeus de diversas áreas começam a contestar o
monopólio da Igreja Católica sobre os conhecimentos e as explicações acerca do
funcionamento mundo. No século das luzes como ficou conhecido –, os filósofos se
afastaram da explicação cíclica da história da humanidade e passaram a compreendê-la de
14
Como afirmado anteriormente, é no mínimo intrigante que comunidades tão distantes em termos de
localização geográfica e de formação histórica, como Itapetininga e Salvador, apresentem um padrão tão
próximo de exclusão dos negros, mestiços ou não, das ocupações que não sejam as mais degradantes de
ambas as sociedades.
15
De acordo com Guimarães (2005, pp. 58-59), “João Reis (1993) insiste na discriminação a que estavam
sujeitos os africanos, libertos ou não, na Bahia de meados do século [XIX]”. Na época, as autoridades
tentaram enviá-los para os engenhos, se escravos, ou de volta para a África, se libertos.
12
forma linear e cumulativa, se utilizando, para isso, de um modelo de explicação baseado na
“razão transparente e universal” e não mais na fé religiosa (Munanga, 2004a, p. 18).
Segundo Schwarcz (1993, pp. 43-47), duas perspectivas se destacavam no contexto
intelectual do século XVIII: uma, herdeira do humanismo, “naturalizava a igualdade
humana”, enquanto a outra refletia sobre as diferenças existentes entre os homens. A
primeira, considerada pela autora a mais fecunda naquele século, constrói seu modelo de
reflexão a partir da idéia de “uma humanidade una”, e tem em Rousseau seu principal
expoente. A segunda perspectiva mira o Novo Mundo com outros olhos. Os pensadores
filiados a ela, a despeito de suas diferentes abordagens chamadas pela autora de
“vertentes mais negativas de interpretação [da natureza humana]”
16
–, são unânimes em
considerar o homem americano inferior ao homem europeu.
Schwarcz (1993), entretanto, considera que no culo XVIII a recepção das idéias
dessa última corrente foi tímida, e que sua influência se torna expressiva apenas a partir do
século seguinte. Mas isso não é claro. Não é claro qual foi a real influência desse tipo de
pensamento sobre a maneira das pessoas comuns – que não estavam imersas na vida
intelectual pensarem e agirem. Não restam grandes dúvidas, contudo, em relação aos
círculos intelectuais; não como se contestar que esse eurocentrismo hierarquizante, já no
século XVIII, estava presente em várias áreas do pensamento europeu, não apenas na
filosofia social. O que deve ser dito e reiterado é que o pensamento racional que começa a
se tornar hegemônico na Europa no século XVIII, e que é considerado a base da ciência
ocidental atual, seja na área de humanidades, de ciências exatas ou das ciências biológicas,
desde seu princípio hierarquizou grupos de seres humanos em virtude de suas diferenças
físicas visíveis.
Mesmo a filosofia iluminista, comumente identificada com ideais de liberdade e
igualdade, não esteve imune a essa hierarquização
17
, chegando, inclusive, a identificar
“algumas diferenças irredutíveis entre brancos e negros, [tanto] no plano das aptidões
físicas [quanto] da moralidade”. Imoralidade, cios, incapacidade para o trabalho eram
16
Para Schwarcz (1993, p. 46), dentre os autores do século XVIII que comungam desse “tipo de visão mais
negativa da América”, dois merecem mais atenção: o naturalista francês George Louis Leclerc de Buffon,
com sua tese sobre a “infantilidade do continente”, e o jurista Cornelius de Pauw, com sua teoria da
“degeneração americana”.
17
Locke, Montesquieu e Rousseau, por exemplo, a despeito de defenderem a liberdade como um direito
natural, ora condenavam ora justificavam a escravidão (Alves, 2003, p. 3).
13
consideradas características próprias da natureza dos negros, tanto na tradição iluminista
européia quanto no pensamento social desenvolvido no Brasil (Alves, 2003, pp. 17-26 e 58-
89).
Negros, índios e orientais foram integrados à humanidade conhecida como raças
diferentes. O estudo dessa diversidade humana ensejo ao aparecimento de uma nova
disciplina, chamada história natural da humanidade que posteriormente se transformou
em biologia e antropologia física. Como em qualquer outro processo de classificação, essa
separação da humanidade em diferenças raças teve que se basear em critérios que
marcassem a diferença e semelhança entre os distintos grupos estudados. “No século XVIII,
a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor de águas entre as
diferentes raças” (Munanga, 2004a, pp. 18-19).
O principal problema desse processo, contudo, não foi a classificação em si, mas
que ela veio acompanhada de uma hierarquização das chamadas raças em uma escala de
valores, que decretava que os indivíduos da “raça branca” eram coletivamente superiores
aos da “raça negra” e da “raça amarela”. Isso foi feito erigindo-se “uma relação intrínseca
entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais,
intelectuais e culturais” (Munanga, 2004a, p. 21).
Carl von Linné é um importante exemplo dessa forma de entendimento da
diversidade humana pela filosofia natural do culo XVIII. Mais conhecido no Brasil por
Lineu, ele se tornou famoso ao elaborar em 1758 o Systema Naturae, uma grande obra de
classificação dos seres vivos que até hoje é ensinada em nossos bancos escolares. Foi em
seu sistema que os seres humanos foram classificados como homo sapiens. Mas algo pouco
comentado é que no trabalho do naturalista sueco estavam presentes a noção de espécie
com suas correspondências na morfologia e o conceito de raça” (Schwarcz, 1993, p.
255), e que os seres humanos foram separados em diferentes grupos, aos quais ele atribuiu
uma série de valores em função da cor de sua pele que sugerem uma hierarquização.
Segundo Munanga (2004a, pp. 25-26), “na sua classificação da diversidade humana, Lineu
divide o Homo Sapiens em quatro raças”:
americano: o próprio classificador descreve como moreno, colérico, cabeçudo, amante
da liberdade, governado pelo hábito, tem corpo pintado;
14
asiático: amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos, usa roupas
largas;
africano: negro, fleumático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade
de seus chefes (despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva
pendente e quando amamenta seus seios se tornam moles e alongados;
europeu: branco, sangüíneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis,
usa roupas apertadas.
Para se tentar entender como ocorreu a chegada desse pensamento intelectual às
massas pouco esclarecidas, tanto na Europa quanto no Brasil, é importante se saber que
filósofos renomados do século XVIII também atuavam como formadores de opinião não
necessariamente dessas massas, mas de indivíduos que direta ou indiretamente entrariam
em contato com elas. Nesse período, conhecer as idéias de “escritores da moda era uma
marca importante de distinção social”. Textos e opiniões desses escritores eram
selecionados e reunidos em revistas para serem citados “por homens de estado e outros
filósofos” (Alves, 2003, pp. 22-23). Ademais, foi nesse ambiente onde tanto a filosofia
social quanto a filosofia natural estavam impregnadas de idéias que sustentavam a
superioridade européia em relação aos ameríndios, aos asiáticos amarelos e os africanos
negros – que os jovens brasileiros do século XVIII receberam sua formação acadêmica
18
.
Esta brevíssima discussão sobre como o europeu e seus descendentes, em diferentes
momentos, enxergaram e representaram o negro, e sobre a situação social do próprio negro
nessa terra onde ele, inicialmente, não escolheu viver, serve para uma constatação que não
é nenhuma novidade nas Ciências Sociais: assim como outros fenômenos sociais, o
preconceito e a discriminação contra o negro são fenômenos multicausais.
Ao longo dos séculos, diferentes foram as maneiras de se exercer a superioridade
dos europeus e seus descendentes, brancos, sobre os negros no Brasil. A resistência do
pensamento católico dos séculos XVI e XVII em condenar a escravidão dos negros, pondo-
os, claramente, em uma situação de inferioridade frente aos europeus; a identificação deles
com o elemento de mais baixo status na estrutura social da época, o escravo; e a afirmação
pelo pensamento racional do século XVIII da superioridade do europeu branco sobre todas
18
Dado que durante quase todo o período colonial era proibida a instalação de centros de ensino superior no
Brasil.
15
as outras “raças” humanas são fatores fundamentais para a compreensão do porquê do
déficit de ascensão social da população negra livre no período colonial e do Império.
Mas esses elementos, apenas, não seriam suficientes para se entender o preconceito
e a discriminação vivenciados pelos negros no Brasil a partir da segunda metade do século
XIX. É nesse momento que o eurocentrismo hierarquizante iniciado ainda no século XVIII
toma sua forma mais dura, que passou a ser conhecida como racismo científico ou como
teorias raciais do século XIX ou raciologia. A novidade dessa linha de pensamento foi a
introdução de uma série de técnicas e procedimentos experimentais para se estudar a
diversidade da espécie humana ou melhor, para chancelar, provar, as idéias de
hierarquização dos grupos humanos que estavam presentes no pensamento europeu
tempos.
Se até o século XVII o pensamento europeu ainda é dominado por uma visão de
mundo eminentemente cristã, da qual ele se liberta ao longo do século XVIII, quando as
interpretações racionais para os fenômenos sociais e naturais começam a se tornar
hegemônicas, no século XIX, para que um conhecimento fosse considerado confiável, e
merecesse status de verdade, era necessário que ele fosse gerado por meio de técnicas e
procedimentos ditos científicos. Com a mudança dos tempos, novas maneiras de se ver e
entender o mundo são inauguradas. No século XIX, é o método científico que impera em
todos os ramos do conhecimento, inclusive no pensamento social, vide, por exemplo, as
pretensões da teoria marxista e da nascente economia neoclássica.
Mas mesmo com todas essas mudanças, a condição de inferioridade do negro – seja
ele considerado africano, como no começo das grandes navegações, ou crioulo, como no
começo da história de seus descendentes na colônia americana de Portugal – não foi
contestada, apenas reinterpretada. No século XIX, por meio da “ciência”, a classificação da
diversidade humana é aperfeiçoada, com o acréscimo de novos critérios morfológicos
como “a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, o ângulo facial etc.” ao critério
da cor da pele (Munanga, 2004a, p. 20). É nesse contexto que se consolida, no pensamento
europeu, o termo raça para se indicar a “idéia da existência de heranças físicas permanentes
entre os vários grupos humanos” (Schwarcz, 1993, p. 47)
19
.
19
Vale esclarecer que o tratamento dado pela autora a esse ponto é distinto do adotado nesse trabalho.
16
Nos oitocentos, o antigo debate sobre as origens da humanidade” é dominado por
esse pensamento que é pautado, eminentemente, pela idéia de raça. No desafio de se
pensar a origem – ou as origens – dos seres humanos, duas vertentes se destacam: a
monogenista e a poligenista.
[A] visão monogenista, dominante até meados do século XIX, congregou a maior parte dos
pensadores que, conforme às escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una. O
homem, segundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum, sendo os diferentes
tipos humanos apenas um produto “da maior degeneração ou perfeição do Éden”
(Schwarcz, 1993, p. 48).
A segunda vertente, a poligenista, partia do princípio da existência de “vários
centros de criação, que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais observadas”. A
partir da segunda metade do século XIX, com a sofisticação da biologia, essa vertente passa
a empregá-la para a análise dos comportamentos sociais, sendo estes entendidos como
resultados de “leis biológicas e naturais”. Com isso, nascem a frenologia e a antropometria,
teorias que se propõem a estudar a capacidade humana em função do tamanho e da
proporção do “cérebro dos diferentes povos” (Schwarcz, 1993, pp. 48-49).
Essa contenda possui reflexos diretos sobre duas disciplinas que desabrochavam no
início daquele século: a antropologia e a etnografia. Aquela, com sua origem ligada ao
poligenismo, utiliza-se das ciências físicas e biológicas para analisar o comportamento
humano, o que faz, primordialmente, por meio da medição craniométrica, “material
considerado privilegiado para a análise dos povos e de sua contribuição”. A etnologia, por
sua vez, vincula-se “a uma orientação humanista e de tradição monogenista”. Enquanto os
antropólogos, nesse momento, pregavam a noção de “imutabilidade dos tipos humanos”, os
etnólogos “mantinham-se fiéis à hipótese do ‘aprimoramento evolutivo das raças’”
(Schwarcz, 1993, pp. 53-54).
O embate entre monogenistas e poligenistas ou entre etnólogos e antropólogos
ameniza-se apenas por volta de 1859, com a publicação de A origem das espécies, de
Charles Darwin. O impacto dessa obra sobre o pensamento europeu da época foi de tal
Schwarcz (1993, p. 47) considera que o termo raça é introduzido no pensamento europeu no século
XIX, por Georges Cuvier. Mas como foi mostrado acima e também consta no trabalho da citada autora
(p. 255) o termo raça havia sido empregado como uma subdivisão hierarquizada da espécie humana
em 1758, nos trabalhos do influente naturalista sueco Carl von Linné.
17
proporção que ambos os grupos esforçaram-se em remodelar suas teorias em função do
postulado da seleção natural – ou da evolução – das espécies (Schwarcz, 1993, p. 54).
A etnografia ou antropologia cultural ou evolucionismo social adaptou suas
idéias monogenistas (que apesar de defenderem uma origem única para a humanidade,
hierarquizavam “raças e povos em função de seus diferentes níveis mentais e morais”) aos
novos postulados evolucionistas. Para esses evolucionistas sociais, em todas as partes do
mundo a cultura teria se desenvolvido em estágios sucessivos, que seguiam sempre um
sentido determinado, indo “do mais simples ao mais complexo e diferenciado”, até
atingirem o progresso e a civilização dos europeus modelos universais para todos os
outros povos do mundo (Schwarcz, 1993, pp. 55-58).
A antropologia agora chamada de darwinismo social também sofre
transformações em virtude dos postulados de Darwin. Seu primeiro esforço é em diminuir a
importância da origem comum dos diferentes tipos humanos, destacando que isso havia
sido muito tempo, o suficiente para o estabelecimento de “heranças e aptidões diversas”
entre eles. O que ganha relevância em seu discurso são as máximas deterministas presentes
na obra de Darwin – “que apontavam para a importância das leis e regularidades da
natureza”. Nessa perspectiva, as raças seriam fenômenos finais do processo de evolução,
imutáveis, e que possuíam ligadas a elas determinadas características morais, ou seja, eram
esperados determinados comportamentos dos indivíduos em função de suas características
físicas. Além disso, a mistura entre raças era condenada com veemência, significando não
apenas degeneração racial, mas também social (Schwarcz, 1993, pp. 54-60)
20
.
No Brasil, essas teorias gozaram de grande popularidade, apesar de sua chegada ao
país ter ocorrido tardiamente por volta de 1870 –, quando elas já começavam a ser
desacreditadas na Europa. Sua apropriação, contudo, não se deu pela mera aplicação direta
dessas teorias tal como elas haviam sido geradas no contexto europeu, mas sim por sua
adaptação pelos pensadores brasileiros em função das características demográficas da
população e dos interesses e projetos das elites nacionais
21
(Schwarcz, 1993, pp. 18-41).
20
“A novidade estava, dessa forma, não no fato de as duas interpretações assumirem o modelo
evolucionista como em atribuírem ao conceito de raça uma conotação bastante original, que escapa da
biologia para adentrar questões de cunho político e cultural” (Schwarcz, 1993, p. 55).
21
Interessante notar que inserção de tais teorias no contexto brasileiro não foi resultado de sua imposição por
nenhum grupo em particular. Pelo contrário. Elas foram divulgadas (e bem acolhidas pelas elites
18
Como a intensa miscigenação da população era um fato da realidade brasileira
descrita por viajantes europeus desde os tempos coloniais –, o darwinismo social, modelo
de análise social que encantou as elites da época, teve que ser aproveitado de maneira
seletiva, para que não houvesse comprometimento de nenhum projeto de desenvolvimento
de uma nação que estava em vias de transformação
22
. Dele, ficaram os princípios de
“diferença entre as raças e sua natural hierarquia”, e foram ignoradas as implicações
negativas da mistura racial elemento fundamental da teoria em seu formato original. Do
evolucionismo social, por sua vez, “sublinhou-se a noção de que as raças humanas não
permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e ‘aperfeiçoamento’, obliterando-se
a idéia de que a humanidade era uma” (Schwarcz, 1993, p. 18).
Esse modelo racial, que combinava o darwinismo social ao evolucionismo
monogenista, logo saiu dos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa do país (das
áreas de direito, medicina, ciências naturais e história) para o “domínio das relações
pessoais e das vivências cotidianas”. Sua penetração nos romances da época e em jornais de
circulação diária serviu para que seus argumentos científicos fossem traduzidos para
termos populares, o que tornou freqüente seu uso nos discursos do dia-a-dia e na
representação popular (Schwarcz, 1993, pp. 245-247).
Esse modelo racial, brasileiro
23
, conseguia justificar as diferenças e hierarquias
presentes na estrutura social sem impedir a “viabilidade de uma nação mestiça” (Schwarcz,
1993, p. 65). Pensado em fins do século XIX, ele permitia que as elites nacionais
sonhassem com um futuro no qual a população da nação brasileira seria formada por
indivíduos racialmente homogêneos, e brancos; o que seria possível graças à superioridade
dos genes da raça branca e à constante evolução das raças humanas. Um aumento do
nacionais) por indivíduos que representavam diferentes grupos econômicos, regionais e profissionais
(Schwarcz, 1993, p. 37).
22
A lei Eusébio de Queirós, de 1850, que proibia o tráfico de negros africanos para o Brasil, é um
importante ponto no lento processo de derrocada do sistema de produção escravista. Mas é a partir da
década de 1870 que essa mudança na organização social brasileira se torna mais evidente, tanto por conta
da promulgação da lei do ventre livre, de 1871, como pelo crescimento e pela maior atuação do
movimento abolicionista. Logo, a nova configuração social que se apresentava, demandava um novo papel
social para esses indivíduos que não eram brancos já que eles não mais poderiam ser pensados como
figuras fora do lugar, ou seja, da escravidão, pois ela logo não existiria mais.
23
Suas idéias serviam perfeitamente para o fortalecimento dos ideais de superioridade branca européia
vigentes em nosso território desde o início de sua colonização; a diferença é que agora esses ideais eram
justificados por um outro tipo de conhecimento, a ciência – que representava o que havia de mais
confiável no pensamento da época.
19
contingente de brancos na população brasileira e, consequentemente, uma diminuição,
quando não um impedimento, do influxo de negros no país e sua miscigenação com os
negros – mestiços ou não – ocasionaria um progressivo branqueamento da população.
Estava dada a solução ao problema racial brasileiro. Agora era preciso que essas
reflexões intelectuais fossem transformadas em ações estatais.
20
2 O ideal do branqueamento
Paradoxalmente, é justo na mistura racial que as elites nacionais do final do século
XIX e início do XX vêem uma alternativa para o impasse criado pelas teorias raciais ao
desenvolvimento do Brasil. Em suas versões originais, essas teorias abominavam a mistura
racial, advogando que com sua ocorrência eram gerados grupos de indivíduos degenerados,
desequilibrados e decadentes (Schwarcz, 1993). Tal diagnóstico causava profundo mal-
estar na alta sociedade da época, pois comprometia a viabilidade de uma nação como o
Brasil, formada por uma população essencialmente mestiça e negra. É nesse momento que
as elites brasileiras, auxiliadas por uma parcela da comunidade científica, decidem retificar
esse quadro, transformando a miscigenação em ferramenta de branqueamento da população
brasileira. Nesse processo, negros e mestiços seriam progressivamente eliminados da
população brasileira por meio da miscigenação que ocorreria entre eles e os imigrantes
europeus (e seus descendentes) que seriam atraídos ao país (Telles, 2003, pp. 62-63).
Apesar de miscigenação e branqueamento serem, hoje, fenômenos intrinsecamente
conectados, eles não são idênticos, e não devem ser tomados um pelo outro. Enquanto
miscigenação se refere ao encontro sexual ou melhor, ao produto dele de indivíduos
entendidos como racialmente diferentes, branqueamento se refere à escolha, ou à imputação
a outrem, de uma identidade racial que se aproxima mais do pólo branco, ou mesmo se
identifica completamente com ele, a despeito desse indivíduo possuir ascendência negra.
Da mesma forma, nem um nem outro devem ser compreendidos como fenômenos
específicos da passagem do século XIX para o XX. Muito antes de serem usados pelo
Estado brasileiro como instrumentos de “aperfeiçoamento” racial de nossa população, esses
fenômenos estavam presentes no comportamento social dos habitantes das terras
brasileiras.
A miscigenação nesse território que veio a ser chamado de Brasil começou
provavelmente quando os primeiros portugueses que aqui aportaram fizeram contato com
as populações indígenas do território recém descoberto ou recém apossado. Mesmo que a
cordialidade tenha imperado nesses primeiros contatos, logo os portugueses impuseram aos
indígenas um outro tipo de relação, baseada em sua submissão incondicional, e que, se não
respeitada, poderia causar seu extermínio. Relação semelhante foi imposta ao africano
21
negro, trazido à colônia algumas cadas depois da chegada dos portugueses e que, com o
tempo, se tornaria o principal grupo a ser escravizado por eles.
Além de uma relação de poder extremamente desigual entre os dominadores
portugueses e seus subordinados, indígenas e, principalmente, africanos
24
, o período
colonial também foi marcado por um “desequilíbrio acentuado na composição por sexo do
grupo dominante (predomínio numérico de homens)” (Silva, Hasenbalg e Barcelos, 1992,
p. 65). A maneira como foi organizada a colonização portuguesa na América favorecia esse
desequilíbrio, pois privilegiava o acúmulo de riquezas e não povoamento do território.
Enquanto os homens portugueses se dirigiam à colônia do novo mundo em busca de
riquezas, as mulheres eram frequentemente proibidas de emigrarem (Telles, 2003, p. 42).
Logo, mais do que “resultado da libido, lubricidade ou caráter nacional dos
membros de um desses grupos”, os contatos sexuais entre homens portugueses e mulheres
indígenas e africanas parecem ter ocorrido em virtude da (a) profunda desigualdade de
poder entre dominadores e dominados e do (b) déficit de mulheres brancas na colônia
(Silva, Hasenbalg e Barcelos, 1992, p. 65). Vista por muitos fora e dentro da academia
como prova da tolerância e integração entre os diferentes grupos raciais que formaram a
população brasileira, a mestiçagem ocorrida no Brasil “não foi um processo natural, e sim
determinado pela violência e exploração do português de ultramar contra o africano sob o
cativeiro” (Carone, 2002, p. 14). Dito de maneira direta, o que é raramente feito, a
miscigenação racial brasileira tem sua origem no estupro das mulheres indígenas e
africanas pelos homens portugueses.
Foi sob essas condições, portanto, presentes principalmente no começo do período
colonial, que se iniciou a formação da população mestiça brasileira. Com o passar do
tempo, a coabitação – ou o matrimônio – entre brancos, mestiços, indígenas e negros
consolida a mistura racial como um forte traço da população brasileira. Segundo Telles
(2003, p. 42 e 64), a partir de 1755, D. José, rei de Portugal
25
, preocupado com a proteção
das fronteiras da colônia, começa a encorajar a união matrimonial entre os súditos da coroa
24
Uma importante desvantagem do africano em relação ao indígena na resistência contra a escravidão foi
seu desconhecimento do território onde ele era mantido cativo; o que, por conseqüência, tornava mais
difícil o sucesso de suas fugas.
25
O estímulo de uniões inter-raciais pelo Estado português continuou pelo menos por mais 22 anos, tempo
em o Marquês de Pombal ocupou o posto de primeiro ministro português (Telles, 2003, p. 42).
22
e os nativos do novo mundo
26
. A coroa portuguesa, entretanto, não estimulava a união entre
os colonizadores brancos e os negros, mestiços ou não.
“[A] freqüência relativa das diferentes formas de miscigenação” ocorridas no Brasil,
todavia, não pode ser definida com segurança a partir dos registros históricos disponíveis.
Mas ao contrário do que prega o senso comum, as poucas evidências demográficas
existentes sobre o grau e a extensão do processo de miscigenação no país apontam para a
prevalência de padrões endogâmicos nos casamentos inter-raciais. Mais ainda. Quando se
aventuravam em relacionamentos formais com indivíduos de cores de pele distintas das
suas, os brasileiros buscavam com maior freqüência parceiros de cor de pele intermediária,
sendo raros os casos de união entre brancos e pretos. O Censo de 1872, por exemplo,
mostra que apenas “5,1% dos casamentos no Distrito Federal do Rio de Janeiro foram entre
brancos e mulatos e 0,8% entre brancos e pretos”
27
(Telles, 2003, 43).
Passado o período de maior violência sexual contra as mulheres negras e indígenas
mais comuns durante a escravidão –, os contatos sexuais entre brasileiros de diferentes
cores de pele parecem ter sido mais freqüentes em relacionamentos extra-conjugais (Telles,
2003, p. 137) e entre aqueles de compleição mais similar como entre brancos e mestiços
claros, mestiços claros e mestiços escuros e entre mestiços escuros e pretos.
Essa posição dos mestiços de elo de ligação entre brancos e negros, contudo, não
parece obedecer a normas e práticas sociais aleatórias, mas sim a um conjunto determinado
delas, que implica em “hierarquia e valorização negativa de negros e índios”. Embora se
contraponha a ideais de “separação e pureza vigentes em outros sistemas raciais”, a
miscigenação que muito acontece no Brasil baseia-se em “uma estética branca racista
que desvaloriza o extremo negro do espectro e condiciona atitudes e comportamentos” dos
brasileiros. (Hasenbalg, 1996, pp. 235-237).
Mais do que entender a mistura racial por seu componente biológico, é necessário
entender o sentido sociológico dessas interações raciais. A ocorrência de miscigenação
26
Nascida da violência sexual dos dominadores portugueses contra as mulheres indígenas e africanas, a
miscigenação parece ter servido a diversos projetos políticos para o Brasil, desde a proteção da fronteiras
da colônia até a formação de um povo brasileiro, constituído por indivíduos “morenos”, dos anos de 1930
aos anos de 1980, passando, evidentemente, pelo projeto de branqueamento da população, do início do
século XX.
27
Para análises sobre casamentos inter-raciais no Brasil baseadas em dados atuais, ver Telles (2003, pp. 137-
159); Petruccelli (2001b); Silva, Hasenbalg e Barcelos (1992).
23
entre indivíduos de diferentes grupos raciais ou de diferentes cores em um ambiente
onde não foi discutida e contestada a premissa da superioridade branca teve como
resultado uma “versão hierárquica e discriminatória da mistura racial”, que ficou conhecida
por branqueamento (Hasenbalg, 1996, p. 235). Esse fenômeno oferece ao negro e ao
mestiço a possibilidade de inclusão e ascensão social por meio de seu afastamento de todos
os elementos culturais, sociais e mesmo fenotípicos que o identifiquem ao seu grupo
racial.
Os fundamentos do branqueamento podem ser encontrados no funcionamento do
sistema colonial português. Caracterizado pela “ausência de distinções raciais dicotômicas
e regras de hipodescendência racial
28
”, esse sistema favoreceu a ascensão paulatina de um
certo número de negros e mestiços em uma “sociedade altamente hierárquica e
pigmentocrática”. O primeiro passo “dessa longa trajetória” era livrar-se da condição de
escravo, fosse pela alforria ou pela fuga; e o último, possível apenas para alguns mestiços
claros, era viabilizar sua aceitação no grupo dominante (Hasenbalg, 1996, p. 236).
“O branqueamento através das gerações, pela repetida introdução de caracteres do
grupo dominante entre os mestiços, se não corresponde a uma promoção de classe é, pelo
menos, uma condição que a possibilita” (Nogueira, 1998, pp. 66-67). Desde o período
colonial, o deslocamento (lento) ao longo do contínuo de cor é, então, uma estratégia de
inclusão e ascensão social praticada por negros e mestiços, especialmente os mais claros.
Na falta de dados para todo o território brasileiro sobre a composição por raça ou cor da
população durante o período colonial, recorro ao clássico trabalho de Nogueira (1998),
realizado no município de Itapetininga nos anos de 1950
29
, para mostrar o impacto do
processo de miscigenação em uma sociedade guiada pelo ideal superioridade branca tal
como também o é a sociedade brasileira.
De acordo com Nogueira (1998, pp. 41-45), em 1806, a população de Itapetininga
era constituída por 33,6% de brancos, 57,2% de mestiços e 9,2% de pretos. Pouco menos de
10 anos depois, em 1815, essas proporções passaram para 40,3; 52,9; e 6,8. E em 1832, o
Mapa dos Habitantes da Vila de Itapetininga, documento do Departamento do Arquivo do
28
Regras de descendência que ligam o indivíduo ao grupo subalternizado se ele tiver uma determinada
proporção de seu sangue, não importando, por exemplo, se o indivíduo em questão tiver a aparência dos
dominadores. Em geral, sistemas que adotam essas regras condenam a mistura racial.
29
Ver nota 8.
24
Estado, indica que a localidade possuía entre seus moradores 60,6% de brancos, 29,0 de
mestiços e 10,4% de pretos. O autor indica que o aumento na quantidade de pretos, que
geralmente eram escravos
30
, de 1815 a 1832 foi motivado pelo período de prosperidade que
a lavoura de cana trouxe à região. O caso dos brancos, contudo, que em um intervalo de 26
anos quase duplicaram em quantidade, não pode ser explicado como “efeito exclusivo de
movimentos migratórios, mas, principalmente, pela incorporação, ao grupo branco, dos
mestiços mais claros”.
Nas palavras de Saint-Hilaire, conhecido naturalista da época, que esteve na região
nos anos de 1820, os mestiços mais claros “foram considerados, por uma geração mais
indulgente, indivíduos de nossa raça”, o que contribuiu para o espantoso aumento da
população branca na localidade em tão pouco tempo. Segundo ele, essa hipótese parece
corroborada pelo não menos espantoso declínio da população mestiça no mesmo período,
indo, entre 1806 e 1832, de 57,2% para 29,0% da população (Nogueira, 1998, pp. 44-45).
O branqueamento, portanto, parece ser um fenômeno presente no Brasil e no
comportamento de seus habitante muito mais tempo do que normalmente se afirma. Ele
não é o produto direto do modelo racial que se construiu no Brasil entre o final do século
XIX e começo do XX. A novidade desse período, todavia, foi instituição do branqueamento
como um projeto nacional. Segundo Guimarães (2004, p. 11), as doutrinas raciais que
chegam ao país dão origem a diferentes versões do branqueamento, “desde as políticas de
imigração, que pretendiam a substituição pura e simples da mão-de-obra negra por
imigrantes europeus, até as teorias de miscigenação que pregavam a lenta mais contínua
fixação pela população brasileira de caracteres mentais, somáticos, psicológicos e culturais
da raça branca”.
As primeiras experiências do Estado brasileiro com a atração e assentamento de
imigrantes europeus ocorreram ainda no Império. Nesse período, o principal objetivo da
promoção da imigração européia era o de provocar “uma inversão da pirâmide
30
Em todos os dados apresentados por Nogueira sobre a condição civil da população de Itapetininga entre o
final do século XVIII e o início do XIX, chama atenção a situação diametralmente oposta de mestiços – ou
mulatos ou pardos, segundo o autor e pretos. Aqueles em quase sua totalidade são livres, enquanto estes
quase sempre são cativos, chegando ao ponto de haver um momento na história da localidade que nenhum
preto encontrava-se em liberdade. Isso pode ter sido causado, segundo o autor, por uma tendência em
classificar como pardos os pretos livres (e mesmo os escravos crioulos, ou seja, aqueles nascidos no
Brasil), uma vez que eles estariam mais “assimilados à cultura luso-brasileira” (Nogueira, 1998, p. 44).
25
populacional”, o que seria obtido com a adição de imigrantes europeus à população branca
existente, fazendo com esta superasse em quantidade a população negra do país (Ramos,
1996, p.79). Além disso, outra preocupação candente daquele período era a colonização e o
povoamento da região Sul do país, pois ela ainda era objeto de disputas territoriais com a
Argentina e o Uruguai (Seyferth, 1996, 44).
O que emergiu dessas preocupações foi um modelo de ocupação das terras
devolutas do Sul por imigrantes europeus, que, em virtude das circunstâncias e de crenças
sobre a superioridade branca, privilegiava a pequena propriedade familiar e o “trabalho
livre”. As dificuldades enfrentadas na atração de imigrantes europeus fizeram com que a
Lei 601, de 1850, conhecida como lei das terras, facilitasse a concessão de terras públicas
para estrangeiros. O “trabalho livre”, por sua vez, era associado aos imigrantes europeus,
povos civilizados cuja introdução no país seria a única opção de transformação do Brasil
em uma nação moderna
31
. Na prática, esse modelo de colonização excluía os “nacionais”
em sua maioria negros e mestiços do acesso às pequenas propriedades que foram
constituídas em terras públicas (Seyferth, 1996, pp. 44-45).
As parcelas da elite defensoras da imigração européia apontavam a escravidão como
um impedimento à instituição do “trabalho livre” e ao desenvolvimento econômico do país.
Mas apesar de condenarem a escravidão, deixando claro que “a colonização não deve ser
apenas a substituição do odioso tráfico de africanos” (Carvalho, 1874, p. 189 apud
Seyferth, 1996, p. 46), elas não esboçaram grandes preocupações com o destino da
população escrava, ou com os mestiços livres. “[O] significado mais imediato de ‘trabalho
livre’ é a desqualificação dos negros e mestiços para o trabalho independente”, feita ora por
critérios de natureza moral ora pela suposta incapacidade deles de produzir em um “sistema
de livre iniciativa” (Seyferth, 1996, p. 46).
O final do século XIX, entretanto, marca uma mudança de postura do Estado
brasileiro em relação à função primordial da imigração européia, com esta deixando de ser
entendida apenas como um meio de colonização das áreas inabitadas do Sul do país por
brancos e passando a ser um importante instrumento para o branqueamento da população,
31
“Os pressupostos de inferioridade e hierarquização baseadas em elementos de natureza racial (como
determinantes de ‘capacidades’) são mais que óbvios quando está em jogo a idéia de ‘progresso’
orientadora das políticas de colonização” (Seyferth, 1996, p. 48).
26
ou seja, para a constituição de um tipo ou raça ou povo nacional (Ramos, 1996, pp. 79-
80).
Esse projeto de concepção de um tipo nacional embranquecido e civilizado tinha
suas bases em uma ciência das raças própria, desenvolvida pelo pensamento brasileiro para
solucionar o problema da inferioridade de nossa gente. Gestada em círculos intelectuais
europeus, a ciência das raças que chega ao Brasil na década de 1860 tinha como premissas
a desigualdade entre as diferentes raças humanas, a hierarquização delas, com a “raça
branca” sendo posicionada como superior a todas as outras, e o prejuízo da mestiçagem.
Por aqui, entretanto, ela sofre modificações que objetivavam contornar essa visão negativa
sobre a mistura racial sendo seus outros elementos, todavia, mantidos sem contestação.
Assim nasce no pensamento social brasileiro a tese do branqueamento” (Seyferth, 1996,
pp. 48-49).
“[O] branqueamento da raça era visualizado como um processo seletivo de
miscigenação que, dentro de um certo tempo (três gerações), produziria uma população de
fenótipo branco” e temperada com o elemento civilizador dos europeus, mas sem que
houvesse com isso a destruição das bases da nacionalidade brasileira, a cultura latina e a
língua portuguesa
32
. Amparado na “concepção de seleção natural e social” do darwinismo
social, esse pensamento “presumia que os mestiços mais bem dotados (classificados como
superiores) procurariam cônjuges de pele mais clara; para os mestiços inferiores e as raças
inferiores (índios e negros) foi vaticinado o desaparecimento progressivo no contexto de
uma civilização em progresso” (Seyferth, 1996, pp. 49 e 54-55).
A obra de João Batista Lacerda é exemplar desse tipo de pensamento, dominante
nos meios intelectuais brasileiros até os anos de 1920, pelo menos. Médico e antropólogo
de destaque, Lacerda, “então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro”, foi ao I
32
O forte sentimento nacionalista experimentado pelo país no começo do período republicano também
interferiu na política imigratória do Brasil. Assim, ganham força nesse debate os posicionamentos que
defendiam a entrada no país de povos que fossem mais suscetíveis à assimilação cultural, como os
italianos, os portugueses e os espanhóis. Os alemães, imigrantes preferenciais do período imperial, foram
identificados como “inassimiláveis” em virtude da homogeneidade de suas colônias no Sul (Seyferth,
1996, pp. 48-49 e 51-55), tendo sua entrada bastante diminuída quando comparada à de outras
nacionalidades (IBGE, 2000). No período republicano, os imigrantes teriam não apenas que contribuir
para branqueamento da população do país, mas também que “submergir na cultura brasileira através de
um processo de assimilação” (Seyferth, 1996, pp. 48-49 e 55).
27
Congresso Internacional das Raças
33
(Schwarcz, 1993, p. 11) como representante do
governo brasileiro (Seyferth, 1996, p. 49; Santos e Maio, 2004, p. 62).
A tese apresentada era contundente: “o Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectivas, saída e solução” (Lacerda, 1911 apud
Schwarcz, 1993, p. 11). Segundo Lacerda, o acelerado processo de miscigenação que o país
estava vivenciando geraria uma população majoritariamente branca e sem nenhum negro.
Suas previsões sustentavam que dentro de um século logo, aproximadamente no período
atual a “população brasileira seria composta por 80% de brancos, 3% de mestiços, 17%
de índios e nenhum negro”
34
(Skidmore, 1974, p. 67 apud Telles, 2003, p. 46).
O trabalho apresentado por Lacerda ao Congresso trazia, em sua abertura, uma
imagem que resumiria o processo de branqueamento pelo qual o Brasil estava passando.
Era uma reprodução do quadro A Redenção de Can, de Modesto Brocos y Gómez
35
(Santos
e Maio, 2004, p. 62), artista da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, que estava
acompanhada da seguinte legenda: Le nègre passant au blanc, à la troisième génération,
par l´effet du croisement des races
36
(Schwarcz, 1993, p. 11).
[Nela, estavam representados quatro personagens], tendo ao fundo uma parede de barro
(pau-a-pique), comum em regiões pobres do Brasil. De pé, à esquerda, vê-se uma velha
negra, que olha para o alto com os braços parcialmente levantados, como que agradecendo
aos céus por uma graça alcançada. No outro extremo, sentado e parcialmente de costas para
os demais está um homem de seus 30-35 anos. De tez branca, sua aparência lembra a de um
migrante ibérico ou mediterrâneo. O centro do quadro é ocupado por um par mãe-filho: a
mãe (fenotipicamente mulata) lembra uma Madona renascentista com o menino Jesus (de
pele branca) em seu colo. Brocos y Gómez pintou o quadro em 1895, menos de dez anos
depois de assinada a chamada Lei Áurea (1888), que aboliu a escravidão no Brasil. A
Redenção de Can é usualmente interpretada como expressando o ideal do ‘branqueamento’:
a velha negra agradece por sua filha, mulata clara (portanto, já parcialmente ‘branqueada’),
ter se casado com um imigrante branco e gerado uma criança de tez branca (Seyferth, 1985
apud Santos e Maio, 2004, p. 62).
33
Tal congresso aconteceu em 1911, em Londres. Seyferth (1996, p. 49), entretanto, o chama de “Congresso
Universal das Raças”, assim como também o faz Skidmore (1976, p. 81). E Santos e Maio (2004, p. 62) de
“I Congresso Mundial das Raças”.
34
Tais estimativas foram feitas por Edgar Roquete Pinto, professor de antropologia do Museu Nacional, e
divulgas por Lacerda em 1912, em um “panfleto” organizado para comentar as críticas que seu trabalho de
1911 havia recebido – como, por exemplo, no caso do tempo necessário para o desaparecimento do negro,
100 anos, ser longo demais (Skidmore, 1976, pp. 83-84).
35
Reproduções dessa pintura podem ser vistas em Schwarcz (1993, p. 11) e Maio e Santos (1996).
36
“O negro passando a branco, na terceira geração, pelo efeito do cruzamento das raças” (Schwarcz, 1993,
p. 11, tradução minha).
28
A face mais visível desse projeto nacional de branqueamento da população
brasileira enunciado pelo representante do governo brasileiro no I Congresso
Internacional das Raças, realizado em Londres se encontra nas políticas de promoção e
subsídio à imigração européia e na legislação republicana que proibiu a imigração de
africanos e asiáticos (Hasenbalg, 1996, p. 235). Foram essas ações estatais que garantiram o
formato, europeu, da imigração de massa experimentado pelo Brasil entre as cadas de
1880 e 1930
37
.
Tratava-se aí de ver na mistura dos imigrantes brancos com os mestiços brasileiros a
operação por meio da qual se daria a regeneração da raça, produzindo-se um povo
homogêneo. A entrada de sangue branco e a conseqüente depuração do sangue negro pela
mestiçagem garantiriam, assim, a ‘correção’ dos componentes étnicos que fundaram o
Brasil, produzindo um ‘tipo’ racial brasileiro mais eugênico, porque possuidor de maior
quantidade de sangue branco (Ramos, 1996, p. 61).
O formato legal desse projeto nacional de branqueamento da população foi
estabelecido nos primeiros meses do período republicano, antes mesmo da promulgação da
primeira Constituição, em 1891. Um decreto do governo provisório, de 28 de junho de
1890, dispunha: “É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos
válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos a ação criminal do seu país”.
Esse amplo universo de possíveis imigrantes, entretanto, é logo reduzido por uma das
cláusulas do decreto, que estipula: “Excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que
somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo
com as condições estipuladas”
38
(Skidmore, 1976, p. 155).
No mesmo decreto, a República brasileira deixava claro quem eram os indivíduos
que possuíam a entrada livre no Brasil. Ao se pronunciar sobre a instalação de
trabalhadores imigrantes no país, a norma republicana afirmava que todos os fazendeiros
37
Evidentemente, a saída desses imigrantes de seus países de origem foi possível, inicialmente, porque a
Europa atravessa um momento particular, com uma transição demográfica que produziu grande
quantidade de mão-de-obra excedente (Telles, 2003, p. 46).
38
Em 1907, um novo decreto com dispositivos sobre imigração – e sobre colonização agrícola – é publicado.
Mas dessa vez não a introdução de nenhuma barreira racial, como foi o caso, no decreto anterior, do
continente de origem. Ao que parece, a ausência dessa barreira se deveu à percepção pelos congressistas
de que era remota a possibilidade de que imigrantes negros se dirigissem ao Brasil em grande mero
(Skidmore, 1976, pp. 155-156 e 215).
29
que se prontificassem a instalar europeus em suas propriedades receberiam “incentivos
especiais garantidos por lei” (Skidmore, 1976, p. 155). Como se pode ver por esse decreto,
há muito tempo o Brasil tem a preocupação em não ser caracterizado como um país racista,
mesmo quando a predileção pelos brancos imigrantes europeus é feita de maneira
explícita. Afinal, o decreto todo é uma construção que primeiramente afirma a igualdade de
todos perante a lei, para em um momento posterior limitá-la. O passo seguinte e derradeiro
é a indicação de quais indivíduos eram realmente bem vindos: os imigrantes europeus.
Nessa mesma época, o Estado brasileiro passa de divulgador das vantagens da
imigração européia aos fazendeiros e de fiador de suas ações para executor de uma política
imigratória subvencionada. A crença das elites nacionais na promoção do desenvolvimento
econômico do país através da mão-de-obra importada da Europa
39
fez com que um grupo
de importantes fazendeiros de São Paulo fundasse, em 1886, a Sociedade Promotora da
Imigração
40
. Sua atuação consistia em recrutar trabalhadores na Europa sendo a maioria
proveniente da Itália –, pagar suas passagens para a província de São Paulo e “providenciar
trabalho para eles nas plantações”. Apesar de ser uma organização privada, a Sociedade
contava com polpudo subsídio do tesouro da província de São Paulo. A rigor, era o governo
de São Paulo que financiava a imigração européia para a província, sendo a Sociedade, na
verdade, uma administradora desses recursos públicos (Skidmore, 1976, pp. 156-157).
Em 1889, o governo do Estado de São Paulo começou a assumir as funções da
Sociedade Promotora da Imigração, responsabilizando-se, gradualmente, pelo “maciço
programa de imigração subvencionada”
41
. Recursos inteiramente públicos foram utilizados
para o pagamento de passagens até São Paulo, para a construção e manutenção na
capital do estado de um centro de recepção aos imigrantes e para os custos
administrativos de sua alocação nos empregos. Em 1895, a transição do programa de
39
Com isso, São Paulo, a região do país com a economia mais pujante naquele período, prefere buscar sua
força de trabalho no exterior ao invés de aproveitar a mão-de-obra excedente de outras regiões do país.
40
No final do Império, também é fundada, no Rio de Janeiro, a Sociedade Central de Imigração, cujo
principal patrocinador era D. Pedro II. Sem os mesmos recursos que a Sociedade Promotora da Imigração,
a Sociedade Central de Imigração teve uma atuação sem o mesmo destaque que sua congênere paulista.
Ambas, contudo, eram unânimes sobre a necessidade de recrutamento de mão-de-obra européia, julgada
superior aos brasileiros natos (Skidmore, 1976, p. 158).
41
Mais da metade dos imigrantes europeus que se dirigiram ao Brasil entre 1887 e 1914 ficou em São Paulo,
onde o café estava em plena expansão. O maior grupo nacional era dos italianos, seguidos por portugueses
e espanhóis, estando o quarto grupo, os alemães, a uma distância considerável do terceiro grupo, o que
reforça a característica latina da imigração de massa brasileira (Skidmore, 1976, p. 162).
30
imigração para o Estado de São Paulo se completou e a Sociedade se dissolveu (Skidmore,
1976, p. 157).
Em 1902, o programa de imigração enfrentou sérias dificuldades em função da
proibição pelo governo italiano da imigração subvencionada ao Brasil, após chegarem a seu
conhecimento acusações de maus-tratos contra imigrantes. O fluxo de imigrantes, todavia,
foi compensado por imigrantes de outros países e mesmo por italianos não subvencionados
que em muitos casos, ao chegarem a São Paulo, conseguiram o ressarcimento de suas
passagens –, e em 1904 o fluxo de italianos subvencionados foi restabelecido. “O programa
de subsídios do governo de São Paulo durou até 1928” (Skidmore, 1976, p. 157).
Durante todo o período de imigração de massa, o Brasil disputou com os outros
países da América o aliciamento de imigrantes europeus. Destino preferencial de grande
parte desses imigrantes, os Estados Unidos, em virtude de seu vigoroso crescimento
econômico, era visto por eles como uma terra de grandes oportunidades. A Argentina, o
mais bem sucedido país latino-americano na atração de imigrantes europeus, os cortejada
pela promoção de uma imagem de República branca condição que, segundo Skidmore
(1976, p. 158), ela havia atingido por volta da década de 1880.
Para incentivar esse influxo de europeus, o Estado brasileiro se apropriou de uma
certa imagem do país que, evidentemente, deveria ser atrativa a esses migrantes e
esforçou-se em divulgá-la no exterior, especialmente na Europa mas também, em menor
medida, nos Estados Unidos. Esse retrato positivo do país foi construído em torno de suas
“riquezas naturais”, fontes inesgotáveis de oportunidades para todos os que aqui se
instalassem, e da idéia da inexistência de conflitos sociais ou raciais no Brasil. Para esse
último caso, a justificativa residia na forma de colonização que fora desenvolvida pelos
portugueses, caracterizada pela ausência de preconceitos raciais o que podia ser
comprovado pela grande miscigenação da população brasileira
42
(Ramos, 1996, p. 59).
Essa propaganda foi um dos instrumentos utilizados pelo Estado brasileiro para a
captação no exterior de trabalhadores supostamente mais aptos que os nacionais para o
regime de trabalho livre. Vivendo em seus países de origem situações de perseguição
42
Longe de ser um mero artigo de exportação, tal imagem parece ter sido partilhada por membros das elites
do Império e da Primeira República, tendo sua gênese em comparações explícitas ou implícitas entre as
situações raciais do Brasil e dos Estados Unidos daquela época (Hasenbalg, 1996, p. 235).
31
religiosa, étnica ou política, ou ainda em condições de extrema destituição material, “tais
pessoas eram atraídas pela perspectiva de refazer a vida fora da Europa” (Ramos, 1996, p.
59).
Mas as populações européias não foram as únicas a serem atraídas por promessas de
trabalho e paz. Nas primeiras décadas do século XX, a imagem construída e exportada de
que o Brasil era uma terra de harmonia e tolerância racial alcançou alguns jornais e
intelectuais negros nos Estados Unidos. Em 1921, essa imagem, agregada a “benefícios
legais relacionados à posse da terra” que o Estado do Mato Grosso oferecia, levou um
grupo de negros estadunidenses a organizar uma companhia de colonização e entrar em
negociação com o então presidente do estado (Ramos, 1996, pp. 59-60).
Essa história começa com a divulgação em jornais estadunidenses de propagandas
do governo brasileiro sobre os atrativos que o país oferecia aos imigrantes. Sem a anuência
das agências oficiais brasileiras, essas propagandas são reproduzidas por jornais dirigidos
ao público negro dos Estados Unidos. Segundo Meade e Pírio (1988, p. 87 apud Ramos,
1996, p. 63, grifo meu):
Independente de esforços oficiais do governo brasileiro, o Baltimore Afro-American
publicou em 1920 os detalhes de uma oferta do Ministério de Agricultura brasileiro em que
eram prometidos passagens, acomodações e crédito de longo prazo para trabalhadores
americanos fisicamente aptos e agricultores que desejassem se estabelecer no Brasil.
O interesse desse jornal e de outros que dessa forma também procederam em
divulgar essas informações baseava-se na crença de que o Brasil, sendo um país onde
inexistiam barreiras de raça ou cor, oferecia ilimitadas possibilidades, especialmente
econômicas, para “homens negros instruídos e civilizados”. Tais notícias iam ao encontro
das pretensões emigracionistas que os negros estadunidenses desenvolveram após a
aprovação das leis Jim Crow, que, no final do século XIX, atingiram os direitos civis e
políticos da população negra dos Estados Unidos (Ramos, 1996, p. 63).
Baseado nessas idéias e expectativas, um grupo de negros de Chicago se organizou
para comprar terras no Estado do Mato Grosso a fim de estabelecer uma colônia naquela
região. Para tal, eles fundaram uma companhia de colonização que recebeu o nome de
Brazilian American Colonization Sindicate (BACS) (Ramos, 1996, p. 63).
32
Mas a iniciativa do BACS enfrentou duras resistências no Brasil. A imprensa não
titubeou em denunciar aquilo que foi identificado como um “plano do governo norte-
americano de enviar para o Brasil toda a sua população negra”, fato que, em plena vigência
da ideologia do branqueamento, era muito grave, pois poderia pôr em risco a regeneração
racial da população brasileira que vinha sendo obtida pela introdução do imigrante branco
no país (Ramos, 1996, p. 64). Essa preocupação é assim expressa por Artur Neiva, um
colunista da época: “Por que irá o Brasil, que resolveu tão bem o seu problema de raça,
implantar em seu seio uma questão que não entra em nossas cogitações? Daqui a um
século, a nação será branca” (Skidmore, 1976, p. 212).
O governo do Mato Grosso, por sua vez, ao tomar conhecimento de que os colonos
estadunidenses eram negros, cancelou as concessões que haviam sido feitas ao BACS.
Além disso, o próprio presidente do Estado do Mato Grosso – um bispo católico – tratou de
informar o fato ao ministro das Relações Exteriores (Skidmore, 1976, p. 212). O Itamarati,
então, agiu para garantir que esse “tipo” de imigrante, indesejável, não entrasse no país. O
ministro das Relações Exteriores, José Manoel de Azevedo Marques, enviou mensagens
confidenciais à embaixada de Washington e aos consulados de Chicago, St. Louis, Nova
Iorque, Nova Orleans, Baltimore e São Francisco, ordenando que fossem negados vistos de
entrada no Brasil a quaisquer imigrantes negros dos Estados Unidos que os solicitassem
(Ramos, 1996, p. 64).
As mensagens, entretanto, foram descobertas e questionadas publicamente pelo
BACS. Baseando sua argumentação em acordos de imigração firmados entre o Brasil e os
Estados Unidos que “facultavam aos cidadãos norte-americanos o direito de entrar e se
estabelecer no Brasil, a despeito de raça, etnia ou religião”, a organização negra de Chicago
buscou junto ao governo brasileiro uma revisão de sua atitude. Em vão. Utilizando-se de
um discurso nacionalista, de defesa da soberania nacional, a diplomacia brasileira bradou
que nenhum cidadão, organização ou governo estrangeiro tinha o direito de questionar a
política imigratória brasileira. Mas em nenhum momento a diplomacia brasileira recorreu
ao argumento racial (Ramos, 1996, pp. 63-64).
A tentativa dos negros de Chicago de imigrarem ao Brasil fez com que o Estado
brasileiro ressuscitasse um antigo dispositivo republicano de regulação do processo
imigratório. O decreto de 1890, citado anteriormente, proibia a imigração de indivíduos
33
originários dos continentes africano e asiático e determinava que: “Os agentes diplomáticos
e consulares dos Estados Unidos do Brasil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos
imigrantes daqueles continentes, comunicando imediatamente ao governo federal pelo
telégrafo quando não o puderem evitar” (Skidmore, 1976, p. 155).
Apesar de formalmente esse decreto não fazer mais parte do corpo normativo da
República – dado sua substituição por outro, de 1907, que não mencionava impedimentos à
imigração baseados em critérios raciais
43
–, na prática, quando se tornou iminente o perigo
da imigração ao país de indivíduos de uma raça considerada inferior, a linha de ação
adotada pelo Estado brasileiro foi completamente condizente com o dispositivo do decreto
que disciplinava a atuação da diplomacia brasileira nesses casos.
Além disso, das incongruências entre o que legislação nacional determinava e as
práticas do Estado brasileiro no tratamento às populações negras, o caso relatado acima,
especialmente no processo que se seguiu à negação dos vistos aos cidadãos negros
estadunidenses, é emblemático de uma outra postura que, ao longo de quase todo o século
XX, será característica do Estado e da sociedade brasileira em geral: a ausência do discurso
racial em ações que em si possuem justificativas ou impactos sobre a situação racial
brasileira.
43
Com a repercussão do caso do BACS, a reintrodução de barreiras raciais na legislação imigratória
brasileira foi discutida no Congresso Nacional em 1921 e 1923, mas sem que nenhuma norma fosse
aprovada. Apesar do processo de melhoramento da força de trabalho nacional” ser uma preocupação da
maioria dos parlamentares da época, eles hesitavam em demonstrar publicamente “posições racistas
ostensivas”, resistindo à aprovação de barreiras absolutas baseadas na raça dos imigrantes. Mas em 1934,
a Assembléia Nacional Constituinte aprovou um artigo para regular a imigração baseado no princípio de
cotas nacionais, o que, na realidade, servia como um dispositivo para restringir a entrada no país de
indivíduos de raças indesejadas. Tal dispositivo foi mantido na Constituição de 1937, imposta por Getúlio
Vargas à nação. Em 1945, Vargas assinou um decreto-lei “estipulando que os imigrantes seriam admitidos
de conformidade com ‘a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as
características mais convenientes da sua ascendência européia’” (Skidmore, 1976, pp. 217-219).
34
3 Discussão racial nas Ciências Sociais do Brasil
Em sociedades como a brasileira, que conviveram por séculos com a chamada
escravidão moderna escravidão de povos originários de regiões específicas da África –,
não é de se estranhar que a temática da raça ocupe lugar privilegiado no debate acadêmico.
Apesar de um interregno nos anos de 1970
44
, o debate acerca da raça tem interessado a
intelectuais brasileiros desde pelo menos o fim do século XIX embora seja apenas nos
anos de 1940 que esta questão começa a ser estudada pelas Ciências Sociais
45
.
Após a superação da compreensão biológica da raça corrente dominante nesses
estudos entre o fim do século XIX e o começo do século XX –, os estudos raciais podem
ser divididos em dois períodos, separados pela importância dada à categoria raça como
instrumento analítico fundamental para a explicação do preconceito racial e das
desigualdades sociais. Em um primeiro período, perspectivas como a da existência de uma
democracia racial no Brasil ou a da submissão do preconceito de raça ao preconceito
socioeconômico dominaram o debate intelectual.
Mas a partir de meados dos anos de 1950, surgem no debate acadêmico perspectivas
que começam a destacar a importância da utilização do conceito de raça para a
compreensão tanto do próprio fenômeno racial brasileiro quanto da estrutura das
desigualdades sociais no país. Nessa linha estão os estudos da chamada “escola paulista de
sociologia” e da “sociologia estruturalista” dos anos de 1970, e, mais atualmente, os
trabalhos ancorados no multiculturalismo e na teoria do reconhecimento.
Entretanto, antes da apresentação das principais idéias que caracterizam as
perspectivas acima citadas, é valioso expor brevemente a construção social dos conceitos
de raça e cor no Brasil, feita, principalmente, por Antônio Sérgio Guimarães. Para o autor,
os conceitos sociológicos podem assumir duas formas distintas: a analítica e a nativa.
Um conceito ou categoria analítica é o que permite a análise de um determinado conjunto
de fenômenos, e faz sentido apenas no corpo de uma teoria. Quando falamos de conceito
nativo, ao contrário, é porque estamos trabalhando com uma categoria que tem sentido no
44
Para maiores informações sobre esse período da pesquisa sobre relações raciais no Brasil, ver Bonamino,
Franco e Alves (2005, p. 8) e Hasenbalg (1996, p. 239).
45
Ciências Sociais, nesse caso, entendida como disciplina constituída e vinculada institucionalmente à
universidade.
35
mundo prático, efetivo. Ou seja, possui um sentido histórico, um sentido específico para um
determinado grupo humano (Guimarães, 2003, p. 95).
Com isso, o autor sustenta que um conceito apenas pode ser entendido e aplicado
em seu contexto discursivo, seja este uma teoria específica ou um momento histórico
específico. Mais consistente ainda se o conceito que conseguir articular a uma
determinada teoria uma determinada história, fazendo distinções analíticas para poder
compreender o sentido de um fato concreto. O conceito de raça possui pelo menos dois
sentidos analíticos: um reivindicado pela sociologia e outro pela biologia genética. Além, é
claro, da raça também existir como um conceito nativo (Guimarães, 2003, pp. 95-97).
Segundo Guimarães (2003, pp. 95-96), é a idéia de cultura que funda as Ciências
Sociais, no final do século XIX. Sua explicação da sociedade por meio de fatores
exclusivamente sociais provocou um progressivo abandono das tentativas de explicação do
mundo social por fatores como o clima ou a raça. Entretanto, o termo raça não desapareceu
completamente do discurso científico. A idéia de que a espécie humana poderia ser divida
em subespécies, ou seja, em diferentes raças, foi criada pela biologia e pela antropologia
física, nos séculos XVIII e XIX. O racismo atual baseia-se, principalmente, nessa idéia
“científica” de raça, que dividiu os seres humanos em subespécies e as hierarquizou,
associando às diferenças fenotípicas encontradas entre as pessoas diferenças de
desenvolvimento moral, psíquico e intelectual.
Após a tragédia ocorrida na Segunda Guerra Mundial, cientistas das mais diversas
áreas se uniram para banir do discurso científico o conceito de raça, “desautorizando seu
uso como categoria científica” e acreditando que este seria o primeiro passo para se pôr fim
ao racismo. Para a biologia atual, a não existência de raças humanas deve-se ao fato de que
as diferenças internas entre as pessoas são maiores que suas diferenças externas, o que
torna impossível uma delimitação genética das fronteiras construídas pela “noção vulgar,
nativa, de raça”
46
(Guimarães, 2003, pp. 95-96).
46
Na biologia, o conceito de raça foi substituído pelo útil conceito de população, “para se referir a grupos
razoavelmente isolados, endogâmicos, que concentrassem em si alguns traços genéticos” mas sem as
“implicações psicológicas, morais e intelectuais do antigo termo” (Guimarães, 2003, p. 96).
36
Raça, então, é uma construção social e deve ser estudada por um ramo próprio das
Ciências Sociais, que estuda as identidades sociais. Assim, voltamos ao campo da cultura e
as raças podem ser definidas como
[...] discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de
traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas etc., pelo sangue (conceito
fundamental para se entender raças e certas essências) (Guimarães, 2003, p. 96).
Segundo Guimarães (2003, p. 99), até pelo menos o começo do século XX raça foi
um conceito nativo no Brasil, e por muito tempo serviu como uma categoria de posição
social. Não havia como ser diferente, pois a escravidão ocupou lugar central na formação
da sociedade brasileira, escravidão essa que não era aleatória, mas sim de povos que foram
capturados em regiões específicas da África. Na sociedade brasileira escravocrata, estes
povos foram chamados de negros ou africanos – termos que passaram a designar as
identidades dessas pessoas e receberam lugares específicos na estrutura social, o trabalho
escravo. Nessa sociedade racializada, o termo raça era importante para dar sentido à vida
social, estabelecendo as posições sociais das pessoas.
Contudo, a idéia de raça que fundamentou a escravidão no Brasil e nas Américas
não é a mesma que surge com o “racismo científico”. Este, pretensamente baseado na
ciência, afirmava que a noção de raça desvendava uma “natureza imanente, da qual emana
um caráter, uma determinada psicologia, uma determinada capacidade intelectual”. A
justificativa para a escravidão no período colonialista era teológica, constituindo-se em uma
verdadeira missão civilizatória, que levaria a estes povos o cristianismo (e seu conjunto de
valores) e o valor do trabalho. No Brasil, em sentido nativo, a idéia de raça se articulava
intimamente com a idéia de classe, de maneira que as pessoas comuns se referiam às
relações sociais do período escravocrata como sendo uma divisão de classes, contrapondo
“senhores” e “escravos”, apesar destas relações serem fechadas pela cor negros e
brancos
47
(Guimarães, 2003, pp. 99-100).
Mas esse racialismo da sociedade brasileira escravocrata foi “cedendo lugar aos
poucos a fórmulas muito mais brandas”, possivelmente devido à conquista por homens
47
[...] “que sinalizava seja a idéia de raça, seja a idéia de cultura e civilização, seja a idéia religiosa de uma
descendência divina (Guimarães, 2003, p. 99).”
37
livres pretos, mulatos e pardos de outros lugares na sociedade que não os da escravidão,
forçando essa “racionalização teológica” a ser abrandada. Posteriormente, nos anos de
1930, a substituição da idéia de raça pela de cor sustenta uma das principais ideologias
fundadoras da nação brasileira, a ideologia do anti-racialismo. Nas palavras de Guimarães
(2003, p. 100):
[...] em algum momento da história, possivelmente pressionada pelo avanço social de ex-
libertos e de seus descendentes, a categoria determinante em termos de classificação social
passou a ser ‘cor’ e não ‘raça’. Ganhou esse estatuto de categoria nativa mais importante.
Essa idéia de cor está hoje na base do que se chama de nação brasileira, desse Estado-nação.
Para Guimarães (2003, p. 98), esse conceito de cor é totalmente nativo, nunca
analítico, pelo menos não nas Ciências Sociais. Apesar da existência de informações de que
a “metáfora das cores” para a classificação dos seres humanos remonte à longínqua
antiguidade, o atual conceito de cor é baseado em um discurso classificatório criado a partir
do contato dos povos europeus com outros povos. Nesse contato, os europeus se definiram
e foram definidos como brancos, enquanto os outros povos passaram a ser negros, amarelos
e vermelhos. De todos os discursos classificatórios dos seres humanos, o da cor é o mais
naturalizado, sendo difícil as pessoas pensarem nele como uma categoria artificial e
justamente por isso difícil de submetê-lo a críticas, o que fortalece o caráter tipicamente
nativo do conceito de cor.
Nos anos de 1930, o pensamento intelectual brasileiro segue, justamente, o caminho
da afirmação do conceito de cor em detrimento do conceito de raça, ajudando, assim, na
construção de uma identidade nacional anti-racialista, que se caracteriza pela negação da
raça como categoria estruturadora das relações sociais no Brasil. A miscigenação ocorrida
no país leva Gilberto Freyre a desenvolver a idéia de que o “mundo que o português criou”
teria estabelecido uma relação mais igualitária entre brancos e negros do que a democracia
política anglo-saxã, pois ao se miscigenar os portugueses haviam permitido que os
culturalmente inferiores pudessem se integrar e ser tratados como iguais. Essa idéia de
Freyre origem ao termo democracia racial
48
, que por muito tempo serviu ao discurso
48
Inicialmente, a vinculação do termo democracia racial às idéias de Freyre parece ter sido feita por Roger
Bastide, após uma visita ao intelectual pernambucano em 1944. Ver Guimarães (2002, p. 138).
38
nacional oficial, pois ajudou a caracterizar o Brasil como um país onde o existem raças –
e onde as diferentes cores da população não afetariam a integração dos indivíduos no
Estado-nação (Guimarães, 2003, p. 102-104).
Na sociologia acadêmica, a interpretação da realidade racial brasileira pós-1930
possui duas vertentes, uma iniciada com o trabalho de campo de Donald Pierson, na Bahia,
em 1939, e outra com os estudos da Unesco sobre relações raciais. Para Pierson, “a
sociedade brasileira é uma sociedade multirracial de classes”, sendo as raças, na verdade,
grupos abertos. A idéia de raça não se constituiria, então, em um princípio classificatório
nativo, com as pessoas, na verdade, identificando as cores umas das outras. O princípio
classificatório de cor da sociedade brasileira pouco prejudicaria as oportunidades sociais
dos indivíduos, pois nessa sociedade de classes pessoas de qualquer cor poderiam se mover
pelos diferentes grupos sociais (Guimarães, 2003, p. 101).
Um importante avanço em relação ao trabalho de Pierson é realizado por Oracy
Nogueira, com a apresentação, em 1954, de seu trabalho “Preconceito racial de marca e
preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do
material sobre relações raciais no Brasil”
49
. Nesse trabalho, Nogueira aponta a existência no
Brasil de um tipo de preconceito que atinge as pessoas de cor que não pode ser reduzido ao
preconceito de classe, apesar desse tipo de preconceito ser diferente daquele que opera na
sociedade estadunidense (Cavalcanti, 1996, p. 14).
Em seus primeiros estudos, Nogueira hesita em chamar o preconceito que ele
encontra no Brasil de preconceito de raça, uma vez que o fenômeno brasileiro era formado
por manifestações diferentes daquelas relatadas por pesquisadores estadunidenses como
sendo de preconceito de raça. A solução encontrada pelo autor foi, inicialmente, nomear o
fenômeno brasileiro de preconceito de cor. Segundo Petruccelli, Nogueira afirma ainda que
“a concepção de branco e não-branco, varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem,
de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região” (Nogueira, 1985
apud Petruccelli, 2001a, p. 8).
49
Este trabalho foi apresentado originalmente em 1954, “no Simpósio Etno-Sociológico sobre Comunidades
Humanas no Brasil, que integrou o 31° Congresso Internacional de Americanistas, em São Paulo”, e
publicado “na revista Anhembi de abril de 1955” e republicado em 1985 (Cavalcanti, 1996, p. 14).
39
A classificação social nativa seria o resultado da interação da aparência sica o
fenótipo dos indivíduos – com outros fatores de status social, como, por exemplo, o grau de
instrução e a ocupação dos indivíduos, o que resultaria em uma grande riqueza de
categorias com limites indefinidos. Além disso, no sistema racial brasileiro, aqueles que são
socialmente mais bem sucedidos têm sua cor atenuada e são incorporados ao grupo dos
brancos o que Nogueira chama de “branqueamento”, ou seja, uma “diluição dos traços
africanos via miscigenação” (Cavalcanti, 1996, p. 17-18).
Mas em trabalhos posteriores, Nogueira interpreta a cor como sendo um fator
sintético do conjunto de caracteres fenotípicos que no Brasil determinam a aparência racial
dos indivíduos e define o preconceito racial como sendo “uma disposição desfavorável,
culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população... seja devido à
aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência que se lhes atribui”. O primeiro tipo
de preconceito é chamado pelo autor de preconceito racial de marca, pois é a partir dos
traços físicos dos indivíduos que ele se manifesta, tal como o ocorre no Brasil. O segundo é
chamado de preconceito racial de origem, pois, assim como acontece nos Estados Unidos, é
a ascendência genética que determinará se o indivíduo enfrentará ou não preconceito racial,
mesmo que em seus traços físicos não haja características negróides (Nogueira, 1985 apud
Petruccelli, 2001a, p. 8).
Os trabalhos de Nogueira nos anos de 1950 se inserem no esforço realizado por um
conjunto de pesquisadores, patrocinados pela Unesco, para entender se a raça seria uma
categoria de classificação social no Brasil. Os estudos de Florestan Fernandes e Roger
Bastide (1953) rompem radicalmente com a idéia de que não havia preconceito racial no
país (Guimarães, 2003, p. 102) apesar de atribuírem a existência de discriminação racial
no Brasil a um resquício do passado arcaico e escravocrata do país (Feres, 2004, p. 4).
Para a chamada “escola paulista de sociologia”, em áreas onde existia uma “uma
ordem competitiva, igualitária”, como em “áreas de desenvolvimento capitalista, em São
Paulo”, havia sim uma reação emocional de um grupo racial o branco quando ele se
sentia ameaçado competitivamente por outro grupo o negro. Contudo, esse preconceito
racial era ocultado pela ideologia nacional da democracia racial, que, para Fernandes, era
apenas um discurso de dominação política, que servia para desmobilizar a comunidade
negra (Guimarães, 2003, p. 102).
40
Apesar dos resultados do Projeto Unesco e dos de muitos dos trabalhos
sociológicos que se seguiram a ele terem nos anos de 1950 contestado a divulgada
democracia racial brasileira, a legitimação da raça como categoria sociológica foi dada
pelos resultados dos estudos estruturalistas do final dos anos de 1970, que analisando os
dados do IBGE descobriram que a população brasileira poderia ser dividida em dois
grandes grupos quando se levava em consideração sua situação socioeconômica: brancos e
não-brancos (ora chamados assim, ora chamados de brancos e negros) (Costa, 2002, p. 47).
As análises de Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle Silva (1980) de dados
produzidos pelo IBGE demonstraram a existência de grande desigualdade entre brancos e
negros (indivíduos que se autodeclararam pretos e pardos), mesmo quando estes grupos
raciais eram agregados por renda, ou seja, não se poderia atribuir tal diferença nem a uma
herança do passado escravista nem à pertença de negros e brancos a classes sociais
distintas. Para esses pesquisadores, a desigualdade racial brasileira estaria ligada a
“diferenças de oportunidades de vida e de formas de tratamento peculiares a esses grupos
raciais” (Guimarães, 2003, p. 103).
Assim, Carlos Hasenbalg refuta a tese de Fernandes de que o preconceito e a
discriminação racial são resíduos do passado fadados a desaparecerem com o
desenvolvimento da sociedade capitalista no Brasil. Segundo este autor, para que o
preconceito racial sobreviva é necessário que ele funcione na estrutura social presente,
neste caso, servindo aos “ganhos materiais e simbólicos do grupo superior, os brancos”. Na
sociedade capitalista, então, a função do preconceito racial da inferiorização do negro é
impedir seu acesso a oportunidades de ascensão social (Feres, 2004, pp. 4-5).
Os estudos de Hasenbalg e Silva também serviram para explicitar uma coincidência
estatística que fortaleceu uma argumentação do Movimento Negro naquele momento
50
: era
metodologicamente recomendável a agregação das categorias oficiais do IBGE
51
preto e
pardo em uma terceira categoria chamada negro pelos pesquisadores –, devido à grande
similaridade entre seus indicadores socioeconômicos. Com isso, a categoria negro,
50
O Movimento Negro buscava articular toda a população de origem africana em torno da categoria negro,
rejeitando todos os outro termos, oficiais ou não, que classificavam os mestiços em pardos, mulatos,
morenos etc. (Guimarães, 2003, p. 103) .
51
Os dados do IBGE referentes a cor ou raça são discriminados em termos de cinco categorias: branco,
preto, pardo, amarelo e indígena.
41
empregada pelo Movimento Negro em sua ação política, ganha credibilidade também
dentro do discurso das Ciências Sociais (Guimarães, 2003, p. 103).
Costa (2002, pp. 48-50), entretanto, apesar de reconhecer que a categoria raça se
constitui em um recurso metodológico indispensável para a constatação das desigualdades
raciais, chama a atenção para a necessidade da realização de estudos qualitativos para a
compreensão de como a dinâmica racial funciona no plano das relações sociais, não sendo
possível entendê-la em sua completude apenas com a agregação estatística dos dados
produzidos pelo IBGE. A conseqüência dessa operação sociológica indevida é que
diferentes adscrições sociais negativas como de natureza cultural, étnica e de gênero
acabam sendo tratadas como racismo. Além do mais,
[...] mesmo no caso particular do racismo, ou seja, a adscrição negativa baseada naqueles
traços fenotípicos que o senso comum classifica como raça, parece não se observar uma
dinâmica de segregação fundada na polarização branco/negro. Isto é, quando se considera
ambas as dimensões da discriminação racial – a estrutural e a moral – observa-se que, ainda
que possa haver, no plano material uma dinâmica polarizada de reprodução das
desigualdades, os estudos qualitativos revelam que, no plano moral, o racismo obedece a
regras múltiplas e que variam conforme a esfera social considerada (Costa, 2002, p. 51).
O autor aponta o conceito não biológico de raça como uma contribuição conceitual
legítima para o estudo do “viés racista que marca a produção e a reprodução das
iniqüidades sociais no Brasil”, servindo de maneira melhor que a tese do “continuum de
cores” para se compreender a clivagem racial da estrutura da desigualdade social brasileira
(Costa, 2002, pp. 54-55). Entretanto, ele não poupa críticas aos estudos desenvolvidos a
partir do final dos anos de 1970 que utilizam a categoria raça “como categoria geral de
análise da dinâmica da sociedade brasileira”, pois esses autores não compreenderiam
inteiramente o processo de formação nacional, prejudicando a compreensão de um
fenômeno que é, na verdade, multifacetado. Além do mais, a abordagem desses trabalhos
acabaria por subordinar a cultura à política (Costa, 2002, pp. 40-49).
Segundo Costa (2002, p. 41), Guimarães afirma que o caminho encontrado pela
produção sociológica subseqüente a Gilberto Freyre para manter a idéia de inclusividade da
sociedade brasileira foi chamar o preconceito praticado no Brasil de preconceito de cor e
não de raça, retirando o “caráter estrutural, genético” existente nas relações sociais. O
42
próprio Guimarães (2003, p. 103) realça a característica genética de seu conceito de raça
quando procura explicar a categoria negro pela crítica ao conceito de cor, mostrando que
esta classificação é, na verdade, orientada por uma idéia de raça, ou seja, “que a
classificação das pessoas por cor é orientada por um discurso sobre qualidades, atitudes e
essências transmitidas por sangue, que remontam a uma origem ancestral comum numa das
‘subespécies humanas’”.
A visão de Guimarães do fenômeno racial brasileiro, segundo Costa (2002, p. 47),
seria contestada pelas pesquisas qualitativas que afirmam haver uma gradação cromática
nas adscrições sociais, sendo os indivíduos gradativamente mais claros mais valorizados
socialmente que aqueles mais escuros isto sustentaria a tese de que no Brasil existe um
preconceito de cor, não de raça. No que se refere à identidade racial brasileira, Costa parece
comungar da posição de Bourdieu e Wacquant, para os quais uma interpretação da
sociedade brasileira de acordo com o modelo racial bipolar estadunidense seria uma
“transposição imprópria”, pois
[...] no Brasil, a identidade racial é definida por referência a um continuum de ‘cor’, isto é,
através do uso de um princípio flexível ou difuso que, levando em conta traços físicos,
como a cor da pele, a textura do cabelo e a forma dos lábios e do nariz e a posição de classe
(os rendimentos e a educação notadamente) engendra um grande número de categorias
intermediárias (Boudieu e Wacquant, 1998, p. 112 apud Costa, 2002, p. 38).
Mas para Guimarães (2003, p. 103-104) “’cor’ não é uma categoria objetiva, cor é
uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou
pardos é a idéia de raça que orienta essa forma de classificação”. Raça não é um conceito
sociológico realista, que não exprime algo existente no mundo real, mas sim um
“conceito analítico nominalista”, pois se refere a algo que “orienta e ordena o discurso
sobre a vida social”.
Essa discussão sobre identidade racial no Brasil afeta profundamente a identidade
nacional brasileira e o modelo de sociedade que foi construído ao longo do século XX.
Atualmente, mesmo com as duras críticas à capacidade da democracia racial em se tornar
um compromisso político que possa pôr fim às desigualdades raciais no Brasil, há, na
academia, um movimento de reinterpretação da obra de Gilberto Freyre que procura
destacar que a democracia racial não seria apenas uma falsa ideologia, mas sim um mito,
43
um discurso fundante sobre a origem das coisas, que orienta e dá sentido às relações sociais
cotidianas (Guimarães, 2003, pp. 102-104).
Costa (2002, p. 42) analisa a obra de Freyre exatamente nesse sentido, como um
manifesto de refundação da identidade nacional, onde estariam expostas as bases para a
“constituição de uma comunidade política nacional” que realizaria a unidade da
diversidade, ou seja, efetivaria “uma brasilidade mestiça”. A obra de Freyre não deveria ser
interpretada como uma ideologia racial, mas sim como uma “crença na construção de um
futuro próspero comum como objetivo universal e lugar imaginário no qual todos os
membros da nação, separados pelo passado distinto, se encontrariam”.
Para Costa (2002, p. 41), Guimarães interpreta a obra de Gilberto Freyre entendendo
que este rompe com o racismo biologicista, mas não com a idéia de raça. Freyre defenderia
para o Brasil uma “concepção eurocêntrica de embranquecimento”, que seria a capacidade
da nação de absorver pretos e mestiços, requerendo implicitamente que eles renegassem sua
ancestralidade africana e indígena. Todavia, o autor acredita ser esta uma análise
equivocada da obra de Freyre, que não estaria preocupado em construir uma ideologia
racial, mas justamente o oposto:
[...] uma ideologia nacional não racial, no sentido preciso de que ‘evita’ a raça, enquanto
critério legítimo de adscrição racial a meta-raça a que se refere Freyre ou a professada
‘unidade da raça’ do discurso varguista (Carneiro, 1990: 35) viram uma metáfora da
nacionalidade, não são, portanto, conceitos raciais, mas não-raciais, a despeito de se
valerem da semântica da raça (Costa, 2002, p. 43).
Costa (2002, p. 45), entretanto, reconhece que essa integração nacional baseada na
ideologia da mestiçagem
52
reflete uma integração hierarquizada das diferentes
contribuições étnicas que o país recebeu. Mas, para o autor, não houve um maior prejuízo
aos povos africanos e indígenas em relação à absorção cultural, pois o que ocorreu, na
verdade, foi uma supressão daqueles elementos que seriam desagregadores da nação
52
Apesar do termo “democracia racial” se referir, stricto sensu, à ausência de racismo no Brasil, este termo
pode ser desdobrado em vários elementos, muitas vezes inter-relacionados. Para esta seção, interessa
esclarecer que em algumas passagens o termo “ideologia da mestiçagem”, o importante para o projeto
político de integração nacional do começo do século XX, pode ser usado em substituição ao termo
“democracia racial”, uma vez que aquele é um componente fundamental deste.
44
idealizada, não havendo maior prejuízo – apenas sob tal aspecto – aos africanos e indígenas
do que houve para os demais imigrantes europeus.
Em sua dimensão racial, a ideologia da mestiçagem se caracterizou por banir do
debate público o conceito de raça, o que, por um lado, contribuiu para o enfraquecimento
do racismo biologicista, mas, por outro, manteve intocado o preconceito racial existente nas
estruturas e relações sociais. Além disso, em sua face social, a ideologia da mestiçagem é
realmente aristocrática, não a devida importância aos problemas sociais do país (Costa,
2002, pp. 44-45).
Apesar dos aspectos negativos da ideologia da mestiçagem, não se pode atribuir a
ela nenhum tipo de justificativa moral de base natural ou genética para a explicação das
desigualdades sociais entre os diferentes membros da nação (Costa, 2002, p. 44) o que
não significa que tal ideologia não possa ser submetida a críticas em relação a sua
capacidade de se tornar um projeto político realmente capaz de integrar, sem distinções,
brasileiros de todas as cores e raças.
A democracia racial, no pensamento de Guimarães (2003, pp. 102-104; 2002, pp.
167-168), seria mais um pacto político de um período específico da República do que um
ideal que pode ser atingido, sendo que nos dias atuais o discurso promotor da democracia
racial possui um sério defeito: ele se apega demais à idéia de estrutura, tornando-se quase
um discurso a-histórico, como se fosse algo que não teve início nem terá fim. Como nasceu
a democracia racial? “Quando se transformou em compromisso político?” Não terá esse
compromisso se esgotado?
Mas apesar das crescentes críticas à perspectiva que dominou o entendimento das
relações raciais no Brasil durante boa parte do século XX a perspectiva da democracia
racial –, há um conjunto de intelectuais que resiste fortemente ao reconhecimento da
racialização das relações sociais no Brasil, acusando aqueles que o fazem de estarem
importando uma perspectiva imprópria para a interpretação das relações sociais brasileiras.
Essa recuperação intelectual, no início do século XXI, do anti-racialismo das relações
sociais brasileiras tem em Peter Fry e Yvonne Maggie dois de seus principais expoentes.
Segundo Fry e Maggie (2004, pp. 156-157), muito do que é produzido atualmente
sobre relações raciais no Brasil caracteriza-se pela utilização de conceitos que servem
melhor à explicação da sociedade estadunidense do que à explicação da brasileira,
45
resultando em um “etnocentrismo” acadêmico. É o caso da crença de muitos intelectuais
amparados pela tradição multiculturalista
53
na existência de diferentes “raças” ou
“etnias”
54
na constituição da sociedade brasileira, cada qual com a sua “cultura”. Assim,
quando esta corrente fala em cultura negra, a entender a existência de uma manifestação
cultural praticada “apenas por negros em espaços próprios”.
Em oposição à perspectiva multiculturalista estaria o entendimento inclusive da
maioria da população de que o povo brasileiro é o resultado da mistura, fazendo com que
a “diversidade cultural” esteja em cada um de nós e a “noção de etnias, raças e culturas
separadas no Brasil” seja “uma idéia fora de lugar” (Fry e Maggie, 2004, p. 157).
Mas para Costa (2002, pp. 45-46), que enxerga o Brasil através de uma lente
multiculturalista, o mito da brasilidade inclusiva, construído nos anos de 1930, começa a
ser contestado no final dos anos de 1970, com o florescimento de diferenciados fenômenos
sociais. A pluralidade cultural da sociedade brasileira começa a ser exposta com a
efervescência social do período de redemocratização, que exibe a rearticulação do
Movimento Negro, o fortalecimento do movimento indígena, a tematização pública da
homossexualidade, o crescimento do movimento feminista e a “recuperação de uma
etnicidade híbrida por parte de descendentes de imigrantes”.
Trata-se, portanto, não da afirmação do caráter multirracial do Brasil, como sugerem os
estudos raciais, e da decomposição dos elementos raciais que teriam composto a nação
brancos, negro e índio –, mas de uma desconstrução étnico-cultural e da afirmação do
caráter multicultural em oposição à ideologia da mestiçagem que fundira e ao fazê-lo
apagara – as diferenças (Costa, 2002, p. 46).
53
Embora os autores, nesse caso, se oponham diretamente à perspectiva multiculturalista, muitas de suas
críticas podem ser estendidas às perspectivas que reconhecem uma racialização das relações sociais no
Brasil e que se distanciam da perspectiva de “integração nacional” – que no passado dá origem à ideologia
da democracia racial, mas que atualmente tem reafirmado a mistura da população brasileira, ou, nas
palavras de Costa, a “unidade da diversidade”.
54
Ao contrário da confusão conceitual sugerida por Fry e Maggie, Costa, um representante típico da
perspectiva multiculturalista, não deixa de fazer a distinção entre etnia e raça, enfatizando que o primeiro
termo refere-se a grupos sociais com características culturais comuns e o segundo está relacionado a
grupos sociais que possuem traços fenotípicos semelhantes (Costa, 2002, p. 56). Em uma exposição
conceitual feita em 2003, Guimarães destaca a importância dos “lugares geográficos de origem” para o
conceito de etnia, sendo este um discurso de origem que se refere a lugares, “aquele lugar de onde se veio
e que permite a nossa identificação com um grupo enorme de pessoas”. Quando os discursos sobre origens
tratam de uma maneira particular de fazer certas coisas em oposição ao modo como outros grupos
humanos procedem –, tais discursos podem formar comunidades (Guimarães, 2003, p. 96).
46
A teoria da modernização, entretanto, oferece uma explicação diferente para a
questão racial brasileira, apontando como o principal problema da população negra no
Brasil a identificação dela com o atraso, em oposição a outros grupos sociais que
possuiriam os valores da modernidade bem assimilados. Para essa vertente, segundo Costa,
o contexto de emergência da ideologia da mestiçagem também traz a substituição das idéias
de embranquecimento do começo do século XX, de caráter biológico, pelo “discurso da
modernização, no sentido econômico e social” (Costa, 2002, p. 45).
O preconceito se formaria então pela conjunção da ideologia da mestiçagem com
um nacionalismo modernizante, fazendo com que se reformulem e generalizem “adscrições
sociais negativas de fundo racial e regional”, de maneira que os negros de qualquer região
carreguem o estigma do atraso, do não-moderno, enquanto o nordestino no Sul carrega o
estigma do preconceito, do não-desenvolvimento (Costa, 2002, p. 45).
Feres (2004, p. 2), analisando o trabalho de Jessé Souza, afirma que a tese da
discriminação racial como a negação ao negro dos atributos ideais do indivíduo moderno
está apenas parcialmente correta, uma vez que ela não analisa outros elementos da
discriminação racial como, por exemplo, os conteúdos semânticos envolvidos na prática
da discriminação. Segundo Souza, o processo de modernização brasileira transformou o
preconceito racial; passando o negro, nesse novo contexto, a ser associado ao não moderno.
Nessa nova sociedade, livre, o negro não conseguiu lograr sucesso por não possuir os
“pressupostos sociais e psicossociais” apropriados para agir em um “ambiente
concorrencial” (Feres, 2004, pp. 8-9).
Assim, a causa central da “inadaptação e marginalização” dos negros seria a
reprodução de um habitus precário”. Mais do que um preconceito de cor atuando para
marginalizar negros e mestiços, seria um preconceito de personalidade, que faz a sociedade
brasileira moderna perceber o negro como imprestável para qualquer atividade produtiva
(Feres, 2004, pp. 10-11). O principal problema dessa abordagem, entretanto, é que ela
acaba legitimando políticas públicas excludentes e tornando os “atrasados” culpados por
sua própria situação de miséria (Costa, 2002, p. 45).
Para Feres (2004, pp. 22-23), o preconceito racial no Brasil não pode ser entendido
apenas como produto da desestruturação da família negra ou “formação de um habitus
secundário com capacidade de auto-perpetuação”. A compreensão integral do fenômeno
47
racial brasileiro sepossível com a identificação de seus elementos sociais exógenos,
que, segundo esse autor, podem ser explicitados mediante a análise dos aspectos semânticos
da discriminação racial no Brasil.
A maneira utilizada por Feres (2004, pp. 12-13) para explicitar a peculiaridade das
características do preconceito que opera pela raça é através da utilização de uma “teoria das
formas de preconceito”, esquema analítico herdeiro da teoria do reconhecimento. A
estrutura semântica da negação do reconhecimento é sistematizada pelo autor por meio de
uma “tipologia de oposições semânticas assimétricas, ou seja, de formas de desrespeito”.
As oposições assimétricas definem o “Outro simplesmente como inverso de uma auto-
imagem coletiva”, o que acaba negando a esse Outro “autonomia moral (oposições cultural
e temporal) e humanidade (oposição racial)”, e impedindo que esses indivíduos (os Outros)
atuem nas relações sociais em posição de igualdade.
A oposição assimétrica cultural caracteriza-se por imputar ao Outro “hábitos e
costumes que são em tudo diferentes daqueles do Eu coletivo” desde, por exemplo, a
maneira de se vestir e falar até as instituições políticas e sociais –, fazendo com que a
relação futura entre o Outro e o Eu esteja fadada à manutenção da hierarquia existente
(Feres, 2004, pp. 13-14).
A oposição assimétrica temporal é resultado da acumulação de várias experiências
históricas e difícil de se encontrar em uma forma pura. Mas é com a etnologia comparada
nascida a partir dos encontros no Novo Mundo que os hábitos e costumes passam a ser
hierarquizados de acordo com uma escala temporal, não se trata agora do Outro ser apenas
o culturalmente negativo, mas o atrasado (Feres, 2004, p. 14).
A oposição assimétrica racial introduz um novo elemento na negação do
reconhecimento do Outro, a biologia. Apesar do racismo ser, no ponto de vista do
observador, uma construção cultural, em sua prática social, o discurso racial utiliza-se de
verdades que estariam além da cultura e do tempo, e a inferioridade do Outro “torna-se um
problema d(o) qual ele não pode se livrar”. Essa forma de oposição assimétrica, entretanto,
não é encontrada em sua forma pura, mas sim em conjunto com a oposição cultural e a
temporal, o que ao Outro, além da marca física, também “sinais de inadequação cultural
e primitivismo” (Feres, 2004, pp. 14-15).
O autor, assim, afirma que
48
[...] o mais significativo do preconceito racial não é seu conteúdo cultural (os hábitos e
disposições do indivíduo moderno), mas sim as conseqüências que a inscrição do
argumento biológico traz para o horizonte de expectativas do Outro, o negro, nesse caso.
Pois o estigma, as marcas da inferioridade estão inscritas no corpo da pessoa, e, portanto,
não podem ser eliminados pelas suas ações e escolhas (Feres, 2004, p. 15).
O autor sustenta sua argumentação sobre o preconceito racial por meio de uma
análise histórica e também por uma análise dos significados de algumas expressões
populares. Do ponto de vista histórico, Feres destaca que é a partir da segunda metade do
século XIX que o processo de reeuropeização do Brasil se acentua, quando as teorias
raciais na Europa passaram a compreender as diferenças fenotípicas entre os seres humanos
como produto de um evolucionismo biológico. Assim, no período de 1870 a 1930,
juntamente com os fundamentos liberais de reconhecimento de mérito e igualdade legal,
vieram para o Brasil também valores que atestavam “cientificamente” a inferioridade de
negros e mestiços (Feres, 2004, pp. 16-17).
Se o preconceito racial não pode ser entendido apenas como um mero “resíduo pré-
moderno do passado”, ele também não foi inventado na segunda metade do século XIX. A
história intelectual européia está repleta de exemplos de afirmações acerca da inferioridade
cultural dos negros, que, no período colonial, serviram muitas vezes de justificativa para a
escravização de africanos no Brasil e na América em geral. O surgimento da concepção
biológica de raça em oposição à inferioridade como “um produto do meio ambiente e dos
hábitos” – serviu para alterar o “horizonte de expectativas do racismo”, destruindo a
possibilidade de reeducação dos inferiores (Feres, 2004, p. 17).
O racismo no Brasil
[...] não é só uma estrutura normativa da modernidade, mas sim um complexo de ideologias,
instituições e teorias científicas, muitas delas contraditórias, que vieram se somar as
existentes no Brasil imperial. É desse encontro, e de desenvolvimentos históricos
posteriores que se desenvolve a semântica do preconceito racial no Brasil de hoje
55
(Feres,
2004, p. 17).
55
Segundo Feres (2004, p. 18), a “noção de harmonia racial como fundadora de uma identidade nacional
distinta”, pejorativamente conhecida como ideologia da democracia racial, não “adicionou aspectos
semânticos significativos ao preconceito contra os negros”, pois o que ela faz é suprimir a tematização da
questão, quando muito, negando a existência de preconceito racial.
49
Essa semântica, reprodutora de uma estética dominante caracterizada pela
glorificação da beleza branca e pela suposta fealdade dos negros evidente na linguagem
popular –, torna a pessoa negra insegura em relação a sua própria aparência, tanto aos seus
olhos quanto também à maneira como ela parece aos outros, inclusive aqueles que lhe são
próximos. Isso produz uma “deficiência de amor próprio, de auto-confiança”, e limita a
capacidade de estabelecimento de relacionamentos afetivos (Feres, 2004, pp. 19-21).
Além disso, embora a teoria da modernidade venha explicando a negação de
igualdade legal aos negros que ocorre na prática como um produto de expectativas de
performance pré-moderna - como “falta de aplicação no trabalho, falta de capacidade de
planejamento etc.” –, frases como “serviço de preto” ou “quando não faz na entrada, faz na
saída” também significam “falta de capacidade racional tout court, incapacidade moral,
infantilismo, e primitivismo”, atribuídos, por sua vez, a causas raciais, de “matriz
biológica”. Então, o problema da negação do reconhecimento de direitos iguais aos negros
constitui-se, primordialmente, em considerá-los seres sub-humanos (Feres, 2004, p. 19-22).
Por fim, apesar da baixa correlação entre raça e escolaridade no Brasil contribuir
para a baixa representatividade de negros em posições de destaque na estrutura social, não
se pode deixar de perceber que as negações de reconhecimento citadas acima
especialmente a que lhes atribui déficit de capacidade racional e moral causam rias
dificuldades aos negros na obtenção de “recompensa material satisfatória pelo trabalho
social desempenhado” (Feres, 2004, p. 19-23).
50
4 A categorização racial construída pelo Estado brasileiro: o quesito “cor ou raça” no
Censo Nacional
A possibilidade de se adotar no Brasil políticas de discriminação positiva, aos
moldes das Affirmative Actions (ações afirmativas) estadunidenses, levantou grande debate
acerca de sua viabilidade, “dada a especificidade da identificação segundo a cor no Brasil”
(Petruccelli, 2001a, p. 3). Primordialmente, essa especificidade do sistema de classificação
racial brasileiro é dada pela riqueza de termos existentes no país para a identificação da cor
ou raça das pessoas.
A variedade de termos usados para a nomenclatura de cor ou raça no Brasil
acompanhou o processo de miscigenação da população de seu território, e reflete tanto a
ampla variedade fenotípica resultante quanto as “identidades associadas” construídas
socialmente (Petruccelli, 2001a, p. 7). Os principais termos usados para a classificação
segundo a cor ou raça no Brasil, em sua maioria, possuem uma origem que remonta a, pelo
menos, o início da colonização portuguesa.
O termo pardo é de uso corrente na língua portuguesa desde pelo menos o ano de
1500, com sua utilização servindo, ao que parece, para a descrição de uma característica
fenotípica observada. Na lexicografia, refere-se à cor entre o branco e o preto, uma cor
obscurecida. A população indígena encontrada pelos portugueses quando de sua chegada
foi recorrentemente descrita como parda (Petruccelli, 2001a, pp. 7-8).
O termo mulato é usado no Brasil desde pelo menos o século XVIII e, ao que
parece, era uma maneira pejorativa de se referir aos descendentes miscigenados de
africanos, progênies de “pai branco e mãe preta ou vice-versa”. amplo consenso na
literatura que em sua origem este termo fazia referência ao mulo, relacionando a
mestiçagem à hibridação, ou seja, à infecundidade (Petruccelli, 2001a, pp. 7-8).
O termo mestiço é encontrado na historiografia como uma referência de conotação
biológica aos indivíduos resultantes da “miscigenação dos senhores brancos com as
escravas africanas”. Esse termo aparece no português desde pelo menos o século XIV,
significando “nascido de pais de raças diferentes” (Petruccelli, 2001a, p. 8).
51
O termo moreno significa “que ou aquele que têm cor trigueira”, cor escura
semelhante à cor do trigo maduro
56
(Cunha, 1985 apud Petruccelli, 2001a, p. 9). Originário
do espanhol, este termo era usado para identificar os mouros (moros, no espanhol),
habitantes da Mauritânia, sendo que notícias de seu uso em língua portuguesa apenas a
partir do século XVI (Petruccelli, 2001a, p. 9).
Pesquisas do IBGE que estudaram de maneira mais detalhada as categorias de cor
utilizadas pela população brasileira, como foi o caso da Pesquisa Mensal de Emprego
(PME-IBGE) de 1998
57
, constataram que essas quatro categorias são as mais usadas para a
descrição de progênies miscigenadas entre brancos e negros, correspondendo a
aproximadamente 1/3 de todas as repostas ao quesito aberto de cor
58
. Outros termos
encontrados, especialmente aqueles que designam a mistura com a população indígena
como, por exemplo, bugre, cafuzo e caboclo
59
–, possuem pouca representação estatística
(Petruccelli, 2001a, p. 9).
Da variedade de termos existentes no Brasil para a classificação racial decorre um
argumento contrário às políticas de ação afirmativa muito recorrente, que afirma ser
impossível identificar no país quem teria ou não direito a receber essas políticas, pois
devido a grande mistura da população brasileira, todos haveriam de ter um ancestral negro.
Ou seja, no limite, todo brasileiro poderia ser um beneficiário em potencial (Petruccelli,
2001a, p. 3), o que é muito condizente com a imagem de país com identidade racial híbrida,
construída para o Brasil a partir da década de 1930.
Contudo, “esta argumentação parece se basear mais em idéias preconcebidas de que
em fundamentos empíricos”, pois tanto ao longo da história quanto atualmente a sociedade
brasileira soube discriminar seus habitantes no que se refere à distribuição de benefícios
sociais e econômicos (Petruccelli, 2001a, p. 4). Por que apenas agora, então, quando se trata
56
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
57
A PME-IBGE de 1998 foi aplicada em julho daquele ano em seis regiões metropolitanas e respondida por
pessoas acima de 10 anos de idade. Nessa edição, ela contou com um suplemento com quatro itens sobre a
cor e origem dos entrevistados (Petruccelli, 2001a, pp. 5-6 e 13).
58
Quase todos os outros 2/3 das respostas dadas foram formadas pelas categorias de cor ou raça utilizadas
no Censo Nacional, pelo IBGE, de forma fechada; que obtiveram a seguinte distribuição espontânea:
54,24% das pessoas se disseram espontaneamente brancos; 4,26% pretos; 1,11% amarelos; e 0,13%
indígenas; o que totaliza 59,74% de todas as respostas (Petruccelli, 2001a, pp. 12-14).
59
O termo caboclo significa “indivíduo de cor acobreada e cabelos lisos”, e pode ser tanto usado para o
“índio” quanto para o mestiço de índio com branco (Petruccelli, 2001a, p. 9).
52
de se distribuir benefícios compensatórios às populações que foram obrigadas a ocupar a
base da estrutura social, a sociedade não conseguiria distinguir quem são os seus
estigmatizados?
Apesar da resistência encontrada atualmente para a classificação da população
brasileira segundo sua cor ou raça, este procedimento não é estranho nem à sociedade nem
ao poder público nacional. De acordo com Petruccelli (2001a), a definição da cor das
pessoas no Brasil do início do culo XIX era feita conforme normas legais que não
levavam em consideração “a ordem do perceptivo ou do biológico”. Para ilustrar sua
afirmação, o autor cita o seguinte trecho dos relatos de Rugendas sobre sua viagem ao
Brasil:
Por mais estranha que possa parecer a asserção que vamos emitir, é menos ao sentido da
vista, é menos à fisiologia que à legislação e à administração que corresponde decidir de
que cor é tal ou tal indivíduo; os homens que não são de um preto bem pronunciado,
aqueles que não mostram de uma maneira incontestável e sem mistura os caracteres da raça
africana, não são necessariamente homens de cor; eles podem, de acordo com as
circunstâncias, ser considerados como brancos (Rugendas, 1940 [1835] apud Petruccelli,
2001a, p. 7-8).
Embora Petruccelli pareça preciso a respeito da centralidade da classificação
segundo a cor ou raça no Brasil do início do século XIX, a passagem acima, de Rugendas,
parece ter sua importância mais pelo fenômeno cultural evidenciado do que pela mera
citação da fluidez da legislação em questão. Esse fenômeno é o do embranquecimento,
crucial para a compreensão das relações raciais no Brasil e que, no caso acima, parece estar
influenciando diretamente a legislação.
O próprio Petruccelli (2001a, p. 10), em outro momento, discorre sobre a “tese do
embranquecimento da população”, que seria a criação de uma multiplicidade de termos
tendo como referência a aparência, e que realçasse o elemento mais claro da mistura, para
que com isso fosse obtida uma maior aceitação social. O resultado desse fenômeno é a
resolução da questão racial brasileira por via da eliminação “[dos] pólos geradores míticos
do conflito”, fazendo com que grande parte de sua população fugisse de sua identidade
étnica e se aproximasse do “modelo tido como superior, isto é, o branco”.
53
A ampla aceitação da categoria “moreno” reflete bem o processo descrito acima,
especialmente por representar a existência de uma “cor média”, que não apenas aproxima
os indivíduos de cor dos brancos, mas também anula a polarização do conflito racial no
Brasil. Assim, as práticas discriminatórias da sociedade brasileira fizeram com que os
indivíduos criassem uma estratégia de defesa contra elas, ampliando o universo de
significantes que designam a cor, para que, assim, fosse possível um distanciamento social
relativo à categoria negro. Dessa maneira, à multiplicidade de nuanças fenotípicas foram
atribuídas diferentes categorias, construídas culturalmente (Petruccelli, 2001a, p. 10).
Então, é importante ressaltar que a operação de classificação racial, realizada no
Brasil desde os primórdios da colonização
60
, não é neutra, pois uma assimetria
profunda entre quem classifica e quem é classificado”. Isso faz com que Petruccelli,
utilizando-se da sociologia de Bourdieu, afirme que a classificação da população por sua
cor expressa uma relação de dominação simbólica, em que uma divisão arbitrária se torna
uma construção social naturalizada, que busca se legitimar por meio de pretensas diferenças
biológicas entre as pessoas (Petruccelli, 2001a, p. 4).
A partir do final do século XIX, essa construção social naturalizada, que diferencia
os indivíduos conforme seus traços fenotípicos, torna-se um dos componentes do Censo
Nacional. É importante ressaltar, contudo, que a pesquisa censitária, assim como a
classificação racial cotidiana, também não é neutra; a inclusão ou exclusão de perguntas e a
maneira como elas são indagadas nos censos além dos significados a elas atribuídos
refletem tanto as preocupações e anseios do pensamento social de uma época quanto a dos
atores envolvidos na organização das pesquisas nacionais (Oliveira, 2003, p. 7).
Dessa forma, a representação da população brasileira que pode ser construída a
partir dos vários levantamentos censitários realizados no país é variável, produto de uma
construção social que varia ao longo do tempo, conforme “o que, como e porque é
perguntado” (Oliveira, 2003). Além disso, a categorização realizada pelos recenseamentos
e pesquisas estatísticas contribui para a “formalização do mundo social”, não sendo apenas
um processo de contagem da população, mas também de codificação da “estratificação da
60
Não se afirma neste trabalho que a classificação racial que ocorre no Brasil atualmente opera da mesma
forma que a do início da colonização, mas sim que, como naquela época, hoje também existe um sistema
de classificação racial que diferencia os indivíduos, auferindo a alguns um ônus social, econômico e
político, em função de sua aparência física.
54
sociedade”. O desafio das pesquisas realizadas pelo IBGE é, então, duplo, caracterizado
tanto pela tentativa de compreensão da realidade social, como também sabendo que a
categorização estatística proposta contribui para “moldar e legitimar sua diferenciação
nominal” (Petruccelli, 2001a, p. 4).
O primeiro recenseamento brasileiro foi realizado em 1872, época em que a
escravidão era a principal clivagem que estruturava a sociedade brasileira, dividindo-a entre
homens livres e escravos
61
. Além da “condição civil”, outro critério de diferenciação da
população residente no país foi a cor, fazendo a distinção entre brancos, pretos, pardos e
caboclos. Pode-se notar, assim, que desde seu início as pesquisas oficiais apresentavam
uma ambigüidade na construção do quesito cor, pois ele não conseguia afastar-se
completamente do conceito de raça. Nesse ano, foi categoria caboclo, que englobava toda a
população indígena, que deu o toque racial ao Censo Nacional (Oliveira, 2003, pp. 12-13).
Além disso, embora a categoria pardo conceitualmente abarque todos os mestiços, em 1872
foi dado ênfase em seu uso para os mestiços de brancos com negros (Beltrão e Novellino,
2002, p. 3).
De qualquer modo, porém, fica claro que a classificação de cor proposta pelo censo
reafirmaria, sob um novo ângulo, a hierarquização fundamental da sociedade imperial
brancos x negros herdada dos tempos coloniais, bem como a preocupação suscitada pela
mestiçagem do branco, seja com elementos da raça negra, seja com os da raça indígena
(Oliveira, 2003, p. 13).
O Censo de 1872 também se preocupou em pesquisar a nacionalidade dos residentes
no país, devido ao aumento constante da imigração ao Brasil a partir da segunda metade do
século XIX. Segundo Oliveira,
[o] freio a ser imposto à entrada de africanos deveria se dar pari passu à adoção de medidas
favorecendo a entrada de europeus e conseqüentemente o povoamento branco (Oliveira,
2003, p. 14).
O Censo de 1890, primeiro da era republicana, é marcado pela tentativa de diluir a
marca da escravidão. Na formulação do quesito cor, a categoria pardo foi alterada para
61
Este quesito no censo de 1872 foi chamado de condição civil, dividindo a população entre livre e escrava
(Oliveira, 2003, p. 12).
55
mestiço, sendo possível agora ser colocado sobre uma mesma rubrica todos os resultados de
cruzamentos de raças, não mais apenas entre brancos e negros, mas também os que
ocorressem com o grupo indígena (Oliveira, 2003, p. 17). Assim, a idéia de mestiçagem da
população brasileira deixa de se referir apenas ao resultado do processo de cruzamento
entre brancos e negros e passa a enfatizar uma idéia de mestiçagem no Brasil como sendo o
resultado do cruzamento das três raças constituintes de nossa população.
Nesses dois primeiros censos, pode-se verificar, então, dois critérios distintos de
categorização da população, um guiado pela cor e outro pela ascendência ou origem racial.
Nos censos de 1900 e 1920, a cor não foi coletada, enquanto o de 1910 não foi realizado
devido às tensões políticas que atingiam o país na época (Petruccelli, 2001a, p. 11).
Em 1900, a pesquisa censitária não investigou a cor da população brasileira devido
às profundas mudanças metodológicas que ela sofreu. A justificativa oficial foi a
necessidade da redução de quesitos a serem pesquisados – o extenso questionário do Censo
de 1890 foi substituído em 1900 por outro que continha apenas 10 variáveis –, pois a ampla
cobertura temática do Censo de 1890 acabou prejudicando sobremaneira sua conclusão
(Oliveira, 2003, p. 20).
O Censo de 1910 não foi realizado em virtude do clima de instabilidade política e
militar que atingiu o país após o rompimento do pacto de alternância de poder que
caracterizava a política do “café-com-leite”. De qualquer maneira, as instruções para a
realização daquela pesquisa previam a manutenção da eliminação do quesito cor (Oliveira,
2003, p. 21).
Em 1920, uma vez mais, a cor não fez parte do esforço oficial de compreensão da
demografia brasileira. Oliveira sugere duas explicações para este fenômeno: a primeira, é
que houve um “esforço republicano de apagar os vestígios deixados pela escravidão”. Em
segundo lugar, a ausência de uma classificação da população brasileira de acordo com sua
cor poderia ser atribuída ao desconforto dos dirigentes e intelectuais da nação com a grande
miscigenação da população, pois as teorias raciais da época apontavam rios limites ao
desenvolvimento e progresso de nações de constituição populacional mestiça
62
(Oliveira,
2003, p. 23).
62
O volume introdutório do “Recenseamento Geral de 1920”, por exemplo, contava com um estudo de
56
Entretanto, a explicação oficial para o não aparecimento do quesito cor na pesquisa
foi a imprecisão de seus resultados. Segundo o documento oficial do Censo de 1920, essa
imprecisão devia-se primordialmente ao comportamento dos mestiços, que eram muito
numerosos e “mais refratários às declarações inerentes à cor originária da raça a que
pertencem” (Recenseamento do Brazil 1920, volume introdutório, pp. 488-489 apud
Oliveira, 2003, p. 23).
Os acontecimentos subseqüentes à revolução de 1930 impediram que o Censo
programado para aquele ano fosse realizado; já o Censo de 1940, ocorrido durante o
governo de Getúlio Vargas, foi marcado por um processo de mudanças que atingiu todo o
Brasil. Nesse período, foi colocado em prática pelo Estado “um projeto de ordenamento e
gestão do território, visando a corrigir a assimetria socioeconômica que marcava o espaço
territorial do país”. A imposição de uma uniformidade lingüística em um país repleto de
imigrantes demonstra a preocupação estatal com a construção de uma nação homogênea,
“onde todos falam a mesma língua, têm a mesma tradição histórica e todos seriam capazes
de se sacrificar pela defesa de seu território” (Getúlio Vargas, in Penha 1993: 57 apud
Oliveira, 2003, p. 27).
É nesse clima de modernização do aparato estatal que o IBGE reinsere no Censo de
1940 a variável cor
63
, sendo ela constituída das seguintes categorias: branco, preto, pardo
(caboclo, mulato e moreno) e amarelo
64
(Oliveira, 2003, p. 27). A partir daí, as categorias
do quesito cor se mantiveram quase inalteradas nos Censos Nacionais. Deve ser ressaltado
ainda que as instruções do Censo de 1940 solicitavam ao pesquisador apenas o
preenchimento das categorias branco, preto e amarelo, marcando com um traço qualquer
outro termo citado. Esse resíduo obtido na coleta dos dados foi nomeado com a categoria
pardo (Petruccelli, 2001a, p. 11), que englobava ainda os indígenas e seus descendentes
(Beltrão e Novellino, 2002, p. 3).
Oliveira Vianna sobre a evolução do povo brasileiro que trazia referências às “raças inferiores” (Oliveira,
2003, p. 24).
63
Embora esse procedimento seja estranho à ideologia de construção de uma identidade nacional
homogênea, o momento de modernização pelo qual o país passava exigia que a pesquisa censitária
oferecesse ao Estado informações detalhadas sobre a população do Brasil.
64
A categoria amarela foi introduzida no censo devido ao substancial aumento da imigração japonesa
(Beltrão e Novellino, 2002, p. 3).
57
Apesar da expressiva diminuição que o questionário do Censo demográfico de 1950
sofreu com a redução de 45 para 25 quesitos, em comparação com o de 1940 –, a
classificação de cor da população foi mantida, utilizando as mesmas categorias de 1940:
branco, preto, amarelo e pardo (que englobou, novamente, os que se declararam mulatos,
caboclos, cafuzos etc., além dos indígenas) (Oliveira, 2003, p. 28 e quadro 2, p. 50; Beltrão
e Novellino, 2002, p. 4). O Censo de 1960, no que se refere à cor, manteve a mesma
estrutura do Censo anterior (Beltrão e Novellino, 2002, p. 4).
No Censo de 1970, não houve levantamento da dimensão cor ou raça da população
brasileira. Nessa época o país era governado por um regime autoritário que havia se
instalado em 1964 e ainda duraria até meados da década de 1980 –, sendo, talvez, esse o
principal motivo para a exclusão desse quesito da pesquisa censitária daquele ano.
Entretanto, na época, a explicação oficial foi que houve grande debate a respeito da
qualidade do dado que seria obtido, não havendo consenso sobre “os critérios de
classificação e (com) os termos referentes a cor que são utilizados” (Costa, 1974: 99 apud
Oliveira, 2003, p. 35).
A partir do Censo de 1980, com a proximidade da transição democrática, a
sociedade civil organizada passou a ser determinante no processo de obtenção de
informações demográficas. A pressão do Movimento Negro e da comunidade acadêmica
foram decisivas para a reintrodução do quesito cor no Censo daquele ano o quesito cor
não constava no censo experimental que foi realizado em Taubaté, município localizado no
Estado de São Paulo. As categorias de cor usadas no Censo de 1980 foram: branco, preto,
pardo (para quem se dissesse mulato, mestiço, mameluco, cafuzo, caboclo ou indígena) e
amarelo (Oliveira, 2003, pp. 40-41).
No Censo de 1991, um conjunto de organizações da sociedade civil do Rio de
Janeiro e de outras cidades lançou a campanha “Não deixe sua cor passar em branco.
Responda com bom c/senso”, visando conscientizar a “população negra e mestiça” da
importância dela se fazer presente nas estatísticas oficiais, pois isto seria um instrumento
básico para a reivindicação de melhores condições de vida. Dessa maneira, vai-se além da
introdução do quesito cor no Censo Nacional e passa-se a problematizar a questão racial no
Brasil (Oliveira, 2003, p. 41), uma vez que
58
[...] o descrédito contemporâneo da noção biológica de raça não diminui seu poder
organizador da percepção comum e estruturante da hierarquia social (Petruccelli, 2001a, p.
4).
Além disso, no Censo desse ano, houve a criação de uma categoria específica para a
população indígena, separando-a da categoria pardo. As opções de repostas para a
dimensão cor agora chamada “cor ou raça” passaram a ser: branco, preto, amarelo
(pessoas de origem japonesa, chinesa, coreana etc.), pardo (mulatos, mestiços, caboclos,
mamelucos, cafuzos etc.) e indígena (esta aplicada tanto às pessoas que vivem dentro das
aldeias quanto as que vivem fora) (Beltrão e Novellino, 2002, p. 4).
Apesar do Censo realizado no ano de 2000 ter mantido as mesmas categorias do
Censo de 1991, ainda existe muita controvérsia sobre o sistema classificatório da cor
utilizado pelo IBGE. Isso porque a identidade racial no Brasil é considerada de caráter
“sutil e fluido”, o que traz importantes preocupações metodológicas sobre como deve ser
feita a mensuração da composição racial brasileira (Petruccelli, 2001a, pp. 11-12).
A grande variedade de categorias empregadas pela população brasileira para se
identificar quanto a sua cor ou raça traria sérias dificuldades para a formalização da
realidade racial brasileira. No entanto, dos 143 termos diferentes que foram respondidos à
pergunta aberta da Pesquisa Mensal de Empregos (PME-IBGE)
65
, apenas alguns deles são
relevantes estatisticamente ou em termos de “significação enquanto identidade de cor”. Do
total de categoria respondidas, 77 delas, ou seja 53,8%, aparece uma vez na amostra
pesquisada. Na lista de termos empregados pelos entrevistados, há ainda,
[...] uma ampla maioria de variações de categorias básicas que podem ser agrupadas sem
temor de impugnar a variabilidade encontrada. O caso, por exemplo, de ‘morena branca’,
‘branca morena’ e ‘branca morena clara’, constitui um bom exemplo da possibilidade de
agrupar estas respostas, e outras similares, dentro de uma mesma categoria que estaria
expressando a mesma identificação enquanto à cor do entrevistado (Petruccelli, 2001a, p.
12).
Assim, uma pequena parcela dos termos empregados corresponde a quase a
totalidade das respostas da pesquisa espontânea de 1998, com os 7 primeiros termos citados
65
Ver nota 57.
59
correspondendo a 97% das respostas
66
e os 10 primeiros correspondendo a 99% das
mesmas
67
. Ainda vale a pena ser ressaltado que metade desses termos representam
“categorias intermediárias de cor”, entre o branco e o preto (Petruccelli, 2001a, p. 13), e
correspondem a pouco mais de um terço de todas as respostas dadas ao questionário aberto.
Na comparação da PME de 1998 com o “suplemento da PNAD de 1976 sobre
Mobilidade e Cor”
68
, nota-se que houve, nas respostas às perguntas abertas, um aumento
relativo da participação das categorias branco e pardo, com a primeira indo de 50% para
54% e a segunda de 8,5% para 10,5. No mesmo período, a categoria moreno teve uma
diminuição sensível, de 25% para 21%, o mesmo ocorrendo com as categorias preto e
escuro, o que, por outro lado, foi compensado por um aumento substancial da categoria
negro, saindo de aproximadamente 0 em 1976 para quase 3% em 1998 (Petruccelli, 2001a,
p. 13).
O cruzamento das respostas das perguntas fechadas com as das abertas da PME de
1998 mostra que as categorias branco e amarelo possuem “uma consistência bem elevada
entre a auto-identificação espontânea e a classificação pré-codificada das categorias de
cor”, pois mais de 90% das pessoas que se identificaram como de cor branca na pergunta
fechada, também o tinha feito na pergunta aberta. Para os amarelos, esta concordância foi
de 84%. Dentre as pessoas que se declararam pretas na pergunta fechada, 44% também o
fizeram na pergunta aberta, enquanto 31% delas haviam se declarado como negras, o que,
no total (75%), mostra uma consistência razoável (Petruccelli, 2001a, p. 19).
A categoria pardo foi a que apresentou as maiores variações, com aproximadamente
34% das pessoas que se classificaram como pardas na pergunta fechada se declarando da
mesma maneira na pergunta aberta, mostrando, ao contrário do que se poderia imaginar,
que sua utilização é significativa. Contudo, 54% dos pardos da pergunta fechada se
66
As respostas ficaram distribuídas dentre essas categorias da seguinte maneira: 1) branca: 54,24%; 2)
morena: 20,89%; 3) parda: 10,40%; 4) preta: 4,26%; 5) negra: 3,14%; 6) morena clara: 2,92%; e 7)
amarela: 1,11% (Petruccelli, 2001a, p. 14).
67
Nesse caso, às categorias anteriores seriam somadas: 8) mulata: 0,81%; 9) clara: 0,78%; e 10) Morena
escura: 0,45% (Petruccelli, 2001a, p. 14).
68
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1976, constou com um suplemento especial
para a investigação da maneira como a população se identificava quanto a sua cor, pois, naquele momento,
discutia-se intensamente o aprimoramento do quesito de classificação da cor utilizado pelo IBGE. No
censo de 1970, por exemplo, a justificativa oficial para a não inclusão do quesito cor na pesquisa foi a não
confiabilidade dos dados obtidos com a categorização proposta, a mesma do censo de 1960.
60
declararam de cor morena quando puderam responder abertamente. Uma mudança do
referencial de análise, passando as respostas abertas a serem estudadas em função das
respostas fechadas, mostra que 77% dos que se declaram de cor morena na questão aberta
se classificam como pardos na questão fechada, enquanto 14% se classificam como brancos
e 6% como pretos (Petruccelli, 2001a, p. 19).
Entretanto, as proporções de coincidência entre as respostas das questões fechadas e
as das abertas, relatadas acima, expressam a média para todo o país, não captando os
“padrões regionais das respostas”. Isto pode ser feito com a análise em separado das
respostas obtidas em cada uma das regiões metropolitanas, sendo então possível uma
“diferenciação geográfica bem clara dos padrões de identificação segundo a cor”
(Petruccelli, 2001a, p. 23).
O estudo dos padrões de respostas em cada uma das seis regiões metropolitanas é
particularmente importante para a compreensão dos diferentes significados que as
categorias intermediárias de cor (como pardo e moreno, por exemplo) possuem nas diversas
regiões do país. Segundo a distribuição dessas categorias em suas populações, as regiões
metropolitanas puderam ser divididas em quatro grupos:
1. Porto Alegre: aproximadamente 10% de sua população se declarou fazer parte
de uma das categorias intermediárias de cor;
2. São Paulo e Rio de Janeiro: aproximadamente 30%;
3. Belo Horizonte: aproximadamente 50%;
4. Salvador e Recife: aproximadamente 60% (Petruccelli, 2001a, p. 24).
Não apenas é possível estabelecer entre as regiões metropolitanas um patamar de
incidência das “cores intermediárias”, como também é possível se verificar a existência de
um padrão regional na utilização dos dois principais termos intermediários de cor: a
categoria parda “parece delinear-se como o correlato inverso do termo moreno, dado que
onde mais ela é utilizada, menos o é este outro”. Assim, nas regiões metropolitanas nas
quais a categoria parda foi mais utilizada Rio de Janeiro e Salvador –, menor foi a
presença da categoria moreno
69
nas declarações espontâneas de suas populações. Por outro
69
Englobando, nesse caso, as respostas: morena, morena clara e morena escura.
61
lado, em Recife e Belo Horizonte, onde a esmagadora maioria de suas populações se
declarou ser de cor morena, foi pífia a incidência do termo pardo (Petruccelli, 2001a, p. 24).
Outra distribuição interessante pode ser observada a partir das respostas dadas às
questões fechadas por aqueles que se declaram morenos nas questões abertas.
Distribuição relativa da categoria morena por cor pré-
codificada e Regiões
Metropolitanas
RM Branca Preta Amarela Parda Indígena Total % Total
Recife 14,4 12,6 0,5 69,0 3,5 100,0 52,0
Salvador 4,6 6,8 0,1 86,9 1,6 100,0 25,7
B H 14,3 7,6 0,3 75,1 2,7 100,0 35,5
R J 14,9 3,5 0,6 77,4 3,7 100,0 14,1
S P 13,6 3,2 0,3 81,2 1,8 100,0 18,4
P A 33,7 15,7 0,7 44,1 5,8 100,0 5,2
Fonte: Petruccelli, 2001a, p. 25.
Com a análise dos dados acima é possível se verificar que embora a categoria pardo
seja a mais escolhida pelos que se auto-identificam como morenos, existe uma grande
variação regional de sua proporção, indo de aproximadamente 90% em Salvador para
aproximadamente 44% em Porto Alegre. Essas regiões metropolitanas também são
extremos opostos no que se refere à proporção de morenos que se classificaram brancos na
questão fechada enquanto por volta de 5% dos morenos de Salvador se disseram brancos
ao serem indagados de forma fechada, aproximadamente 34% dos morenos de Porto Alegre
assim o fizeram (Petruccelli, 2001a, p. 24).
70
A pergunta sobre origem feita pela PME fez com que a ampla maioria dos
entrevistados a interpretasse como um questionamento sobre sua identidade nacional, e
aproximadamente 75% deles responderam ser brasileiros. O cruzamento das respostas
dadas a essa pergunta com aquelas referentes às características de cor da população
70
Apesar do estudo de Petruccelli encontrar uma patente “variação regional nos significados dos termos”
utilizados para as categorias intermediárias de cor, deve ser ressaltado que, em quase todas as regiões
metropolitanas analisadas, a proporção de indivíduos auto-identificados morenos que se classificaram
como brancos na pergunta fechada foi maior do que aqueles que se classificaram como pretos. Isso deixou
evidente que quando os indivíduos auto-identificados morenos não se classificam como pardos, eles
preferem se classificar como brancos – a única exceção, dentre as seis regiões metropolitanas pesquisadas,
foi Salvador.
62
brasileira não apresentou nenhuma associação satisfatória entre os quesitos pesquisados, o
que refletiria a importância de se diferenciar essas duas dimensões, com a cor sendo uma
“categoria socialmente construída” e a origem uma categoria de “ascendência ou
ancestralidade” – que exprime a procedência geográfica dos antepassados dos entrevistados
(Petruccelli, 2001a, pp. 27-29).
Por fim, a análise dos dados referentes à classificação da população brasileira
segundo sua cor, revelou que as categorias utilizadas – tanto as oficiais quanto as populares,
como moreno, por exemplo possuem maior significado quando estudadas dentro de uma
realidade regional específica. A categoria pardo, por exemplo, é mais bem aceita nas
regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e São Paulo. Nas regiões
metropolitanas de Recife e Belo Horizonte, maior identificação com a categoria moreno
e baixa consistência da categoria branco apenas 75% dos que se auto-identificam brancos
respondem da mesma maneira quando se deparam com as alternativas da questão fechada
(Petruccelli, 2001a, p. 30).
63
5 Porque e como utilizar a categoria negro nas políticas de ação afirmativa
Após aproximadamente quatro anos de discussão nacional sobre a implementação
de programas de ação afirmativa para a população negra e a adoção propriamente de
diferentes programas
71
por várias universidades públicas
72
, ainda um caloroso debate
sobre qual o sistema de classificação racial que deve ser usado pelos programas de ação
afirmativa no Brasil. Grande parte dos programas de reserva de vagas ou cotas, como são
popularmente conhecidas – implantados até esse momento em instituições públicas de
ensino superior se utilizou da categoria negro para nomear os seus beneficiários. Mas como
definir quem é negro no Brasil?
Depende. Depende de quem são as pessoas envolvidas nesse debate e da arena onde
elas estão atuando. Na grande imprensa nacional, por exemplo, locus onde, por definição,
deveria imperar a pluralidade de opiniões, o que mais se verifica são posicionamentos
contrários às políticas afirmativas. Articulistas e muitos colunistas são rápidos em suas
respostas: é impossível se distinguir quem é negro e quem é branco em uma sociedade
miscigenada como a do Brasil. De maneira geral, seus argumentos se organizam em torno
de uma visão romantizada do processo de mestiçagem brasileiro e de uma compreensão de
que as relações sociais no Brasil não são racializadas.
Paulo Moreira Leite, repórter de O Estado de S. Paulo, que foi redator chefe de
VEJA e diretor de redação da Época, comunga desse ideário sobre a mestiçagem
71
pelo menos outros dois tipos de programas de ação afirmativa para estudantes negros que vem sendo
utilizados por instituições públicas de ensino: pré-vestibulares para estudantes negros (como ocorre, por
exemplo, na Universidade de São Paulo) e pontuação adicional aos candidatos que se declarem negros
(este é o sistema adotado pela Universidade Estadual de Campinas, que ao invés de reservar vagas para
certos grupos de estudantes, concede uma pontuação adicional a aqueles que se declarem negros na
verdade, é dada uma pontuação mais expressiva aos alunos egressos de escolas públicas, e se os alunos
também se declaram negros, eles recebem uma outra pontuação, mais modesta).
72
Programas de reservas de vagas existem, ou estão em fase de implantação, nas seguintes instituições
públicas de ensino superior: 1) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2) Universidade
Estadual do Norte Fluminense (UENF), 3) Universidade de Brasília (UnB), 4) Universidade Federal do
Paraná (UFPR), 5) Universidade Federal da Bahia (UFBA), 6) Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
7) Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e 8) Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
9) Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), 10) Universidade Estadual do Amazonas (UEA), 11)
Universidade Estadual de Goiás (UEG), 12) Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), 13)
Universidade Estadual de Londrina (UEL) (Observa - Observatório das Ações Afirmativas no Ensino
Superior Brasileiro. Disponível em: http://www.observa.ifcs.ufrj.br/universidades. Acesso em: 24 de
novembro de 2006). também o programa de pontuação adicional no vestibular da 14) Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) e o pré-vestibular da 15) Universidade de São Paulo (USP).
64
brasileira
73
. Em artigo recente, de forma sutil, ele acusa os técnicos do IBGE de
incompetência – ou de possuírem interesses políticos – na manipulação dos dados do
quesito cor ou raça da última pesquisa de Emprego e Renda no país. Sem conhecer os
procedimentos de manipulação de dados quantitativos e assumindo que necessariamente a
“identidade social do negro é uma coisa e a do pardo, outra”, Paulo Moreira Leite gasta sua
tinta tentando demonstrar que os mestiços brasileiros não podem ser igualados aos negros
em nenhuma circunstância, porque, na verdade, eles são produto do encontro sexual o
apenas de brancos e negros, mas também daqueles com os indígenas.
Ao transformar “pretos e pardos” num mundo único, o IBGE iguala desiguais. Desde os
romances de Jorge Amando aprendi que a cultura brasileira louva a mulata, sinal da
miscigenação. Isso não é uma invenção da literatura mas a expressão de determinada
realidade social. Gilberto Freyre falava do português que procriava com mulheres negras e
indígenas (grifo meu).
A Folha de S. Paulo conta entre seus colunistas com Demétrio Magnoli, doutor em
Geografia Humana e pesquisador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e
Desenvolvimento (Nadd) da Universidade de São Paulo
74
. Assim como Leite, Magnoli
aponta a miscigenação da população brasileira ao longo da história como um dado
incontestável da realidade social, que “produziu uma infinidade de tons intermediários de
cor de pele”. Nada é dito, porém, sobre como se iniciou esse processo ou sobre os valores e
regras embutidas nas relações sociais entre brancos, negros, indígenas e mestiços durante o
período da Colônia e do Império.
Para o colunista, a racialização da sociedade brasileira ocorreu apenas em fins do
século XIX, quando as elites imperiais se apropriaram de uma versão do “racismo
científico” europeu para promover o branqueamento de nossa população mestiça. É como
73
LEITE, Paulo Moreira. “IBGE embaralha números e confunde debate sobre brancos e negros”. O Estado
de S. Paulo. 18 de novembro de 2006. Disponível em:
http://blog.estadao.com.br/blog/paulo/?title=ibge_embaralha_numeros_e_confunde_debate&more=1&c=1
&tb=1&pb=1. Acesso em: 23 de novembro de 2006. No mesmo jornal: “Direitos dos negros e privilégios
dos brancos”, 21 de novembro de 2006; e “Quem desconfia da consciência dos negros”, 20 de novembro
de 2006.
74
MAGNOLI, Demétrio. “A cor das idéias”. Folha de S. Paulo. 20 de abril de 2006. No mesmo jornal:
“Ministério da Classificação Racial”, 14 de abril de 2005. Na Revista Pangea Mundo: “A engenharia das
raças”, 02 de maio de 2005. Disponível em:
http://www.clubemundo.com.br/revistapangea/show_news.asp?n=259&ed=1. Acesso em: 23 de
novembro de 2006.
65
se antes disso nenhum negro ou mestiço livre conhecedor de algum ofício da época, como o
de alfaiate, por exemplo, tivesse sido posto em condição de inferioridade e sofrido qualquer
agressão moral ou física por conta de seu pertencimento racial. Sua incompreensão sobre a
história social do negro e do mestiço o faz enaltecer o processo de mestiçagem brasileiro,
que teria resistido “à rotulagem inventada pelo ‘racismo científico’ do século 19” e
conseguido manter o Brasil um país constituído por indivíduos de “meios-tons”, não
cindido entre “brancos e negros”.
Demétrio Magnoli nega que as relações sociais no Brasil atual sejam orientadas por
pressupostos baseados na idéia de raça. Ele acredita, por exemplo, que o sistema judiciário
brasileiro atual inserido que é em nossas regras e valores sociais oferece um tratamento
igual a brancos e negros, sendo competente, inclusive, para aceitar, compreender e julgar
crimes de racismo
75
. O sistema de educação brasileiro, para o colunista, estaria livre de
qualquer viés racial, e iniciativas como as da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir) em capacitar professores para o ensino de “história africana e
afro-brasileira” buscando com isso uma valorização positiva da contribuição do negro à
história do Brasil – seriam, na verdade, obras de “extremistas” que se apoderaram do
Estado para “segregar as pessoas nas categorias ‘brancos’ e ‘negros’”.
Mas de todas as vozes da grande imprensa que exortam as benesses da mestiçagem
brasileira e afirmam que as relações sociais no Brasil são caracterizadas por um anti-
racialismo – ou seja, por um desconhecimento ou rejeição de elementos psicossociais
baseados na idéia raça , a mais ilustre talvez seja a de Ali Kamel, diretor-executivo da
Central Globo de Jornalismo
76
. Em vários artigos veiculados pelo jornal O Globo, do Rio
de Janeiro, o jornalista afirma ser impróprio a sintetização das categorias preto e pardo do
IBGE em uma categoria chamada negro. Isso daria a errônea impressão de a população do
país é bicolor, quando, na verdade, o grupo dos pardos, esmagadora maioria daquilo que
75
Para alguns exemplos da atuação do judiciário brasileiro na questão racial ver Telles (2003, pp. 263-268).
76
KAMEL, Ali. “Combater a pobreza, esquecer as cores”. O Globo. 14 de dezembro de 2004. No mesmo
jornal: “Raças não existem”, 17 de maio de 2005. Recentemente, o jornalista publicou o livro Nós não
somos racistas – uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor, uma espécie de
coletânea dos artigos publicados por ele no jornal O Globo a partir de 2003. O primeiro capítulo de seu
livro está disponível em:
http://www.novafronteira.com.br/_conteudo/capitulos/16_nao_somos_racistas_final.pdf. Acesso: 23 de
novembro de 2006.
66
muitos técnicos chamam de negros, é constituído por “pessoas de cores diferentes”, frutos
de “nossa miscigenação, o maior troféu dos brasileiros contra o racismo”.
Mesmo usando grande parte de sua argumentação para mostrar que raças humanas
diferentes são biologicamente inexistentes
77
, sendo toda a humanidade parte de uma única
espécie, Ali Kamel não deixa de se impressionar com a grande mistura genética da
população brasileira. Citando o importante geneticista Sérgio Pena
78
que em seus
trabalhos se baseou em “marcadores moleculares de origem geográfica” para determinar o
patrimônio genético de certos grupos sociais no Brasil –, o jornalista afirma que devido ao
“alto grau de miscigenação” da população brasileira a “cor da pele não determina sequer a
ancestralidade”. “Ou seja, no Brasil, brancos com ancestralidade preponderante africana
e negros com ancestralidade preponderante européia. Somos, graças a Deus, uma mistura
total”.
Afirmando que “o preconceito no Brasil é em relação à pobreza e não à cor da
pele”, Ali Kamel busca alertar os incautos que as políticas racialmente orientadas,
chamadas por ele de políticas racistas, levarão a sociedade brasileira a uma “cisão racial”.
Tais políticas farão nossa sociedade abdicar de seu “gradiente tão variado de cores”, no
qual o indivíduo pode ser “cafuzo, mulato, mameluco, escurinho, moreno, marrom-
bombom”, em favor de um sistema bicolor de classificação racial, o que poderá, como
77
É comum os opositores das políticas afirmativas para o ensino superior – e aqueles que, em geral, rejeitam
a discussão sobre a relevância da inscrição racial nas relações e desigualdades sociais no Brasil –
recorrerem à biologia, mais especificamente à genética, para afirmar que raças humanas não existem. Em
suas formulações, é inapropriado, ou até mesmo errôneo, a formulação e implementação de políticas
públicas racialmente orientadas, pois já está “cientificamente” provado, pela biologia, que “raças não
existem”. Mas a comprovação pela biologia da inexistência de raças humanas não foi, e nem continua
sendo, suficiente para o combate ao preconceito e à discriminação de natureza racial. O conceito de raça
que norteia essas políticas não se baseia na genética, mas sim em uma construção histórica e social que
tradicionalmente hierarquizou os tipos humanos por sua aparência física. Geneticistas, formadores de
opinião da grande impressa e até mesmo cientistas sociais afeitos ao “culto ao DNA” (Oliveira,
18/07/2006) devem ser mais cuidadosos aos expressarem suas opiniões políticas. Teoria e método das
ciências biológicas devem ser empregados para análise de fenômenos biológicos como, por exemplo,
pode ser feito para se compreender os aspectos biológicos da anemia falciforme. A compreensão e análise
do “mundo social”, por sua vez, devem ser feitas com a teoria e o método (ou teorias e métodos) das
Ciências Humanas. Não se trata aqui de negar a mistura biológica (“de ameríndios, europeus e africanos
negros”) do povo brasileiro, a qual Pena indica em seus estudos genéticos, mas de afirmar que a
constatação dessa mistura pouco informa sobre a trajetória de vida de pessoas que vivem em um país onde
a principal regra de classificação e discriminação racial é a aparência (o fenótipo) dos indivíduos.
78
Ver Pena, Carvalho-Silva, Alves-Silva, Prado e Santos (2000) e Pena e Bortolini (2004).
67
conseqüência, comprometer a luta que os brasileiros travaram por séculos contra o racismo,
pois “acreditar que raças existem é a base de todo o racismo”.
É na acadêmica, contudo, que a ideologia brasileira da mestiçagem recebe um
tratamento mais fino
79
. Segundo Maggie (2005, p. 6), o sistema de valores da sociedade
brasileira baseia-se na complementaridade, não na oposição, “no que une e não no que
separa”. Partindo disso, um grupo de intelectuais dos anos de 1920 e 1930 ousou desafiar o
pensamento racista que era hegemônico entre as elites brasileiras naquele momento.
Compartilhando de um “ideário de brasilidade modernista”, Mario e Oswald de Andrade,
Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Di Cavalcanti, Tarsila do
Amaral e Anita Mafalti esforçaram-se em positivar a mestiçagem da população brasileira e
afirmar a viabilidade de uma nação misturada.
Em vez da cisão do país entre brancos e negros, o que se consolida com o
fortalecimento desse ideário é o mito de que a nação brasileira fundou-se na “igualdade
entre as raças”, que criou, com a mistura entre elas, “um gradiente de cor que aproxima os
pólos negro e branco”. A aposta modernista na mestiçagem depois conhecida
popularmente por democracia racial transformou-se no cerne de nossa nacionalidade, a
qual, ancorada na plasticidade dessa mistura, permitiria ao brasileiro ser “índio, branco e
preto ao mesmo tempo” (Maggie, 2005, p. 6-11).
Convicta na força dessa concepção de nação misturada, cuja plasticidade e
ambigüidade na classificação e autoclassificação são “nossa maneira toda particular de
combater o racismo” (Maggie, 2005, p. 11), a autora inicia seu texto Mario de Andrade
ainda vive? descrevendo um jovem aprovado no vestibular da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) em 2003 que se utilizou do sistema de cotas, declarando-se pardo.
Diz a autora:
Sem medo das câmeras, com um sorriso largo e rosto moreno, cabelos cortados rente à
cabeça, o jovem disse ter se declarado pardo na ficha de inscrição do primeiro vestibular
das cotas para negros e pardos, instituídas por força de lei, porque vinha de uma família de
‘origem negra’. Tendo uma bisavó negra, achava que o poderia ser considerado branco e
decidiu declarar-se pardo. Daniel pode ser considerado de aparência típica brasileira,
79
Para contribuições atuais nas Ciências Sociais sobre a centralidade da ideologia da mestiçagem para o
projeto brasileiro de nação, ver Fry (1995), Maggie (1996), Maggie (2001), Grin (2001), Grin (2003),
Santos e Maio (2004), Maggie e Fry (2004) e, é claro, Maggie (2005).
68
um Macunaíma, podendo escolher entre as categorias negro, pardo, preto, indígena ou
mesmo branco e podendo ser visto também da mesma forma pelas outras pessoas
(Maggie, 2005, p. 5, grifo meu).
Há, contudo, dois problemas nas assertivas da autora: um em relação à insinuação
de que o sistema de classificação racial no Brasil caracteriza-se pela completa fluidez e
indefinição e outro em relação a sua idéia sobre a mestiçagem brasileira. De fato, os
estudos sobre identidade racial realizados no Brasil nos anos de 1950 e 1960, especialmente
aqueles conduzidos por Charles Wagley em 1953 e Marvin Harris e Conrad Kotak em
1963, notaram a inexistência de fortes distinções entre as categorias raciais utilizadas pela
população nativa, que utilizava uma multiplicidade de termos raciais, “cada qual referente a
uma combinação fenotípica particular”. O fato mais interessante desse “cálculo racial
brasileiro”, no entanto, não seria a miríade de termos empregados, mas sim a “subjetividade
e dependência contextual de sua aplicação” (Silva, 1999a, pp. 110-111).
Através desses estudos, e de seus desenvolvimentos subseqüentes, percebeu-se que
a identidade racial no Brasil não parecia depender apenas da aparência física das pessoas,
mas também, em alguma medida, da “posição socioeconômica tanto do informante quanto
da pessoa que está sendo classificada”. Não apenas no Brasil, mas na América Latina de
forma geral, raça seria um conceito mais bem definido como “raça social”, pois se referia a
um grupo de pessoas a partir da conjunção de suas características fenotípicas e
socioeconômicas, julgando-as similares em sua “natureza essencial socialmente definida”,
em vez da “definição genética implícita na regra de hipodescendência norte-americana”
(Silva, 1999a, p. 110).
[Raça social] refere-se a um conceito de raça influenciado sobremaneira pelas
características socioeconômicas dos indivíduos, de modo que as percepções e os esquemas
taxonômicos são, em larga medida, permeados pelas relações sociais, chegando a suplantar
o peso de parâmetros biológicos/genéticos. Nesse sentido, a identidade racial resulta de
uma confluência de fatores situacionais e interacionais, que incluem educação, renda, classe
social, linguagem, local de socialização, entre outros (Santos e Maio, 2004, pp. 72-73, grifo
meu).
69
Entretanto, a compreensão da complexidade da construção da identidade racial no
Brasil
80
, especialmente a identidade negra, não pode servir para a subestimação do fenótipo
ou das marcas raciais, nas palavras de Nogueira (1985) na classificação racial, ou
melhor dizendo, de cor das pessoas. Essa, por sua vez, tem como um de seus mais
importantes elementos, tal como nota Nogueira (1998, p. 146), a ideologia do
branqueamento, que acaba por redefinir a classificação de cor dos indivíduos. Assim,
pardos seriam aqueles mestiços mais escuros, cuja identificação é “menos sofismável”, e os
pretos aqueles elementos que não possuem nenhuma mestiçagem aparente. Qualquer
mistura perceptível levaria os indivíduos a se identificarem como pardos, assim como uma
predominância de traços brancos inclinaria esse mestiço claro a se classificar e ser
classificado pela comunidade como branco.
Analisando-se os grupos branco, preto e pardo, locais, pode-se descrever como segue a sua
composição: 1. o grupo branco compreende, em proporções indeterminadas: a. indivíduos
sem nenhuma ascendência negra ou índia; b. indivíduos com remota ascendência negra ou
índia, desconhecida ou inoperante nos traços somáticos; c. indivíduos de ascendência negra
ou índia (especialmente negra) próxima ou conhecida, porém inoperante nos traços
somáticos; d. indivíduos de ascendência negra ou índia, conhecida ou não, porém, cujos
traços ‘não brancos’ são considerados ‘leves’ e, portanto, negligenciados [...]. 2. O grupo
preto compreende: a. indivíduos de exclusiva ascendência africana; b. indivíduos cujos
traços não patenteiam qualquer tendência ao branqueamento, sendo, pois, inoperante a
ascendência branca ou indígena acaso tenham tido. 3. Os mulatos’ (termo mais geralmente
usado para designar os mestiços ainda não incorporados, devido aos traços ‘carregados’, ao
contingente branco) compreendem: a. indivíduos escuros em que é patente o mestiçamento
com o branco ou ascendência índia; b. indivíduos de cor da pele intermediária, em graus
diversos, entre a do branco e a do negro, associadas a outros sinais de ascendência africana
(Nogueira, 1998, p. 146).
Assim, quando se considera apenas o fenótipo das pessoas, o sistema de
classificação racial brasileiro não se caracteriza por uma total indefinição, como afirmam
alguns, mas pela existência de casos de identificação controversa. Ordenadas as categorias
de cor mais usuais naquela comunidade em um continuum “brancos, mulatos claros,
mulatos escuros e pretos”, conforme Nogueira o fez –, a indefinição parece ficar por conta
do limite entre as categorias quando comparadas àquelas de sua cercania imediata, ou seja,
80
Ver Carone e Bento (2002, orgs.) e Sansone (2004).
70
de branco para mulato claro, de mulato claro para mulato escuro e de mulato escuro para
preto.
Não parece haver indefinição entre a população no momento de se diferenciar um
branco de um preto ou de um mestiço escuro, ou seja, um branco de um não-branco. Ainda
considerando apenas as características fenotípicas percebidas, a grande controvérsia parece
pairar sobre os indivíduos que podem – ou não – ser incorporados ao grupo branco, ou seja,
os mestiços claros. A grande ambigüidade no sistema de classificação racial brasileiro
parece estar justamente na operação de distinção entre brancos e mestiços claros,
especialmente aqueles cujos traços não-brancos são considerados leves (Nogueira, 1998,
pp. 147-148).
Além disso, Nogueira (1998, pp. 146-147) notou, assim como Charles Wagley e
Marvin Harris, que a identificação de um indivíduo quanto a sua cor pode ser influenciada
também por elementos de status social. A tendência era de atenuação da cor de “indivíduos
socialmente bem-sucedidos”. Essa “maleabilidade dos critérios” de identificação de cor
influenciada pela grande variedade fenotípica reconhecida pela população e pelas vantagens
conferidas aos indivíduos que gozassem de prestígio social e o pudor gerado pela cor
escura na sociedade brasileira afetavam tanto o comportamento dos mestiços quanto o dos
brancos.
Os mestiços, especialmente os mais claros, relutavam em identificar sua cor e
buscavam uma incorporação ao grupo branco. Mas como essa “maleabilidade dos critérios
de identificação é limitada pelo ‘senso de ridículo’”, e os brancos preocupavam-se em não
desagradar os mestiços de sua deferência “(por amizade ou qualquer outro motivo)”
81
,
ganharam força naquela época expressões “eufêmicas, ambíguas, como o termo ‘moreno’,
que tanto pode ser empregado para designar um mestiço de branco com negro, em
diferentes graus de mestiçamento, como para indicar qualquer pessoa branca que não seja
loira” (Nogueira, 1998, p. 147).
81
Segundo Nogueira (1998, p. 198), na sociedade brasileira uma etiqueta própria para as relações sociais
entre brancos e negros, mestiços ou não, que se caracteriza tanto pelo silêncio em relação aos traços
negróides da pessoa quanto pelo uso de eufemismos. Referências a esses traços quando a pessoa se
encontra no ambiente, “de corpo presente”, ocorrem apenas quando é estritamente necessário ou quando
“se permitem as ‘relações jocosas’ ou, finalmente, para as situações de conflito” (Nogueira, 1998, p. 198).
71
No que se refere à percepção da cor das pessoas, então, enquanto nos Estados
Unidos uma linha de cor baseada na ascendência, que exclui da categoria branco todo
indivíduo que se saiba possuir um ascendente não-branco, no Brasil uma “zona
intermediária”, que flutua, “até certo ponto, ao sabor do observador ou das circunstâncias”,
de maneira que indivíduos com leves traços negróides podem ser incorporados ao grupo
branco, especialmente se portadores de atributos que implicam prestígio social. Uma
situação presumivelmente corriqueira no Brasil pode exemplificar o funcionamento dessa
zona intermediária de ambigüidade. Um casal misto que gere crianças cujas cores variem
do claro ao escuro, possivelmente, assistirá alguns deles serem assimilados ao grupo branco
com facilidade, outros viverem em situação de ambigüidade e, por fim, outros tendo
“sempre contra si o percalço da cor” (Nogueira, 1985, p. 6).
Segundo Nogueira (1985, pp. 20-21), a presença de uma certa ambigüidade no
sistema de classificação racial brasileiro levou Marvin Harris e Conrad Kotak a defenderem
a pouca importância da identificação racial no Brasil em contraste com a força exercida
pela classe sobre as relações sociais nesse país. Os autores estadunidenses chegam a afirmar
que um brasileiro pode mudar sua identificação racial ao longo da vida, assertiva que
também foi feita por muitos outros observadores da situação racial brasileira, especialmente
estrangeiros. Para Nogueira, isso se deve a uma interpretação ao da letra de ditos como
“o dinheiro branqueia” ou “preto rico é branco, branco pobre é negro”.
“[Duvidando] que um brasileiro branco de camada média para cima não faça
diferença entre um pobre preto e outro branco”, Nogueira (1985, pp. 21-22) afirma que o
sentido mais exato de tais expressões é que “o dinheiro compra tudo, até status para um
negro”. Apesar de no Brasil as marcas raciais representarem um dos componentes do
status, sua presença em uma pessoa que goze de outros fatores favoráveis é percebida por
seus pares e será “sempre um fator de incongruência de status
82
.
No discurso daqueles que hoje defendem a ideologia da mestiçagem, que vêem na
“brasilidade mesclada de brancos, negros e índiose na própria idéia de democracia racial
um ideal que “poderia ser a nossa contribuição particular a esta luta pelo fim do racismo”
82
“Deve-se notar que em igualdade de condições, o negro ou a pessoa escura sempre luta com desvantagem.
Não se deve subestimar as dificuldades que o indivíduo escuro (ou negróide) tem de enfrentar, seus
sofrimentos e angústias, seus prejuízos morais e materiais” (Nogueira, 1985, p. 79).
72
(Maggie, 2005, 19), falta algo percebido por Nogueira (1985[1954], p. 84) há mais de meio
século: “ainda que implique uma condenação ostensiva do preconceito, a ideologia
miscigenacionista não é senão uma manifestação deste”. O que a move é o ideal de
branqueamento do povo brasileiro
83
.
Assim, a ideologia brasileira de relações raciais é ostensivamente miscigenacionista e
igualitária
84
, ao mesmo tempo que encobre, sob forma de incentivo ao branqueamento e de
escalonamento dos indivíduos em função de sua aparência racial, um tipo sutil e sub-
reptício de preconceito (Nogueira, 1998, p. 196).
Nos anos de 1930, no entanto, a valorização da mestiçagem foi importante para que
o país se libertasse do modelo de análise social então dominante: “o determinismo racial à
brasileira”, um modelo racial elaborado pelas elites nacionais da época – a partir da
adaptação de paradigmas do racismo científico do século XIX que propunha resolver o
problema racial brasileiro transformando sua população majoritariamente mestiça, e
degenerada, em branca, e civilizada – através de sucessivos cruzamentos desses com
aqueles. A guinada do pensamento social brasileiro ao culturalismo, que esforçou-se em
positivar a mestiçagem nacional, é atribuída a um grande número de pensadores e obras,
mas, sem dúvida, Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, merece um lugar de
destaque (Santos e Maio, 2004, p. 66).
Nesse longo ensaio histórico-sociológico sobre a formação da sociedade brasileira,
Gilberto Freyre apresenta a mestiçagem como um elemento fundamental de nossa formação
nacional, um “símbolo do caráter relativamente democrático e flexível da cultura brasileira”
(Santo e Maio, 2004, p. 66). Ao contrário de ameaça ao projeto de desenvolvimento da
83
“A noção de desejabilidade dos traços ‘causcasóides’, e, consequentemente, a de indesejabilidade dos
traços ‘negróides’, está intimamente ligada à ideologia do ‘branqueamento’, que assinala como
recomendável a miscigenação, por propiciar, ao mesmo tempo, a absorção ou diluição dos caracteres
somáticos africanos e a ascensão social da ascendência através de gerações” (Nogueira, 1998, p. 199).
84
Ainda hoje, como se pode observar na comunidade em estudo, em sessões cívicas, aulas, discursos,
proclamações políticas e outras situações solenes e formais, os nomes de brasileiros ilustres, brancos e de
cor, são invocados, enfaticamente, como demonstração de como uns e outros concorrem para o
‘engrandecimento da Pátria comum’ [...]. No entanto, apesar da sinceridade com que, em geral, se fazem
tais proclamações, qualquer indivíduo de cor poderá citar exemplos sucessivos, não somente remotos, mas
atuais, não apenas singulares ou excepcionais, mas que constituem a regra ou norma, os quais mostram
como a situação de fato não coincide com a situação idealizada, enfim, como a sociedade nacional
restringe a mobilidade social de negros e mulatos e lhes reserva humilhações e dissabores de que os
brancos, em igualdade de condições, estão isentos (Nogueira, 1998, p. 196).
73
nação tal como era vista pelos membros da elite nacional até aquele momento, incluindo
a maioria de seus ilustres intelectuais –, a miscigenação é redimensionada por Freyre,
suas conseqüências são tornadas positivas, “não em termos de relações raciais
harmoniosas e democráticas como também pela riqueza do patrimônio cultural, que
combina a contribuição das três raças fundadoras” (Silva, Hasenbalg e Barcelos, 1992, p.
69).
Essa valorização da mestiçagem
85
, entretanto, não mudou radicalmente os
pressupostos eurocêntricos da sociedade brasileira. Nesse novo discurso reside a idéia de
que as três raças fundadoras do país contribuíram com a nacionalidade brasileira de
maneiras distintas, de acordo com “as suas qualidades e potencial civilizatório”
86
. A própria
definição da nação brasileira como uma extensão da civilização européia, onde estava
emergindo uma nova raça, enriquecida com as contribuições de africanos e indígenas, não
deixa dúvidas sobre a superioridade da contribuição branca a essa nova raça, misturada.
Nesse modelo, culturalista, o mestiço ideal parece ser aquele que mais se aproxime do
europeu. Ou seja, o mestiço ideal parece ser o mestiço “embranquecido” (Guimarães, 2005,
pp. 55-57).
O elogio freyreano do ideal da morenidade para a construção de uma identidade
tipicamente brasileira talvez possa elucidar esse último ponto. Da mesma forma que a
civilização mestiça brasileira tem sua inspiração fundamental na civilização européia, a
definição física da nação brasileira, o mestiço, parece ter como sua matriz o tipo racial
europeu. O resultado final do processo brasileiro de mestiçagem seria a abolição “das
distinções de cor, com a absorção das identidades particulares numa metarraça fluida e
abrangente: os morenos” (Silva, 1999b, p. 88); uma categoria que historicamente foi
empregada para a distinção da diversidade fenotípica do branco europeu.
[...] por morenidade deve-se entender uma transformação semântica, no Brasil, da palavra
moreno que vem correspondendo a uma crescente indiferença, da parte de grande número
de brasileiros, ao que, na sua situação, seja diferença entre descendentes de brancos, de
85
A mestiçagem, em argumentação de Freyre em 1940 e 1962, é o elemento da cultura luso-brasileira que a
torna democrática, em seu sentido social, pois promove a “integração e mobilidade social de pessoas de
diferentes raças e culturas” (Guimarães, 2002, p. 152).
86
“A cor das pessoas assim como seus costumes são, portanto, índices do valor positivo ou negativo dessas
raças” (Guimarães, 2005, p. 56).
74
pretos e de pardos, e a uma crescente tendência para considerar-se moreno não só o branco
moreno, como outrora, mas o pardo, em vários graus de morenidade, da clara à mais escura,
por efeitos de mestiçagem, e o próprio preto. Com esse amorenamento (antropológico e
sociológico), ao qual se tem juntado, nos últimos anos, o de brancos que procuram
amorenar-se ao sol tropical de Copacabana e de outras praias, a morenidade estaria a
afirmar-se, no caso do Homem brasileiro, como uma negação de raça e uma afirmação
de metarraça (Freyre, 1971, p. 120 apud Silva, 1999b, p. 89, grifo de Silva).
Além da positivação da mestiçagem e do reconhecimento da contribuição africana e
indígena à formação da nacionalidade brasileira, esse movimento intelectual dos anos de
1930, seja no pensamento social e político, seja na literatura regionalista, ou ainda na
emergente indústria cultural, investiu ferozmente contra aquele discurso racialista do
período anterior, que, quase sempre, produziu “um racismo perverso e desumano”. Como
resultado disso, emerge na sociedade brasileira um forte movimento anti-racialista, de
negação incondicional da existência diferentes raças humanas. A diversidade fenotípica da
população brasileira passa a ser designada – apenas – pela cor da pele das pessoas,
categorias que expressariam “realidades objetivas, concretas e inquestionáveis”
(Guimarães, 2005, p. 62-65).
Todavia, esse ideário anti-racialista brasileiro logo se uniu a um discurso de negação
do próprio racismo. Entranhados na maneira brasileira de ser, é comum, hoje, “um bom
brasileiro” afirmar que raças não existem e que o que importa no Brasil, “em termos de
oportunidade de vida, é a classe social de alguém”. Esse mesmo brasileiro, que
normalmente acredita de boa nessa ideologia racial que lhe é imposta desde os
primórdios de sua socialização, não consegue perceber que o preconceito e a discriminação
raciais se manifestam sem que os termos raça ou racismo precisem ser enunciados, por uma
série de tropos, como, por exemplo, no caso da cor, que é resultado de uma linguagem
racializada que naturaliza enormes desigualdades (Guimarães, 2005, pp. 36, 40 e 64-65).
[Desenvolvo] a tese de que nosso anti-racialismo não deve ser entendido como anti-
racismo. Pelo contrário, sob os ideais progressistas de negação de raças humanas e de
afirmação de um convívio democrático entre as ‘raças’ vicejam preconceitos e
discriminações que não se apresentam como tais, o que termina por fazer com que esses
ideais e concepções continuem a alimentar as desigualdades sociais entre brancos e negros.
Dada nossa tradição anti-racialista recente, todavia, é mais provável que o reconhecimento
das diferenças e das identidades raciais, implícitas em políticas de ação afirmativa, levasse à
tolerância e não ao conflito racial (Guimarães, 2002, p. 74).
75
A adoção no Brasil de políticas racialmente orientadas que foram antecedidas em
sua implantação por alguns programas de reserva de vagas no serviço público e em algumas
instituições públicas de ensino superior é parte do reconhecimento de que as relações
sociais no país são, na prática, racializadas. várias justificativas para a adoção de tais
políticas. No caso do ensino público superior, levando em consideração os limites e as
possibilidades de programas como esses, a justificativa mais interessante parece ser a de
introdução de alguns poucos jovens negros em espaços tradicionalmente ocupados por
brancos.
Não parece plausível acreditar que esses jovens consigam promover excepcionais
transformações nas relações raciais dos ambientes onde eles trabalharão. Mas parece
extremamente razoável imaginar que sua chegada a esses futuros postos causará silenciosos
choques entre seus novos pares, o que, com sorte, também provocará um tipo de discussão
até então não realizada, a racial. Seja de modo passivo ou ativo, esse jovem, ou melhor,
esse futuro profissional estará colaborando para a transformação da ideologia racial
brasileira, e, por conseguinte, do padrão de relações raciais do país não necessariamente
nessa ordem.
Mas a adoção de políticas afirmativas e o próprio debate sobre elas –, tomada em
seu aspecto ontológico e não individual, poderia ser útil também à transformação da
ideologia racial brasileira? Parece-me que sim. Mas para que esse objetivo possa um dia ser
atingido é necessário se deixar muito claro, hoje, o princípio que norteia essas políticas: o
combate ao racismo à brasileira, ao nosso racismo assimilacionista – que, atualmente,
parece possível apenas através de ações anti-racistas racializadas.
Um futuro profissional beneficiado por algum programa de ação afirmativa que
entre em um ambiente de trabalho se identificando como, digamos, moreno, e se esquive do
debate racial não auxiliará em muito a transformação das relações ou da ideologia racial
daquele local. Da mesma forma, um programa de ação afirmativa que identifique seus
beneficiários apenas e o somente a partir do sistema de classificação racial nativo, que é
baseado em uma ideologia da mestiçagem dominada por modelos de superioridade branca,
pouco estará contribuindo para a transformação da ideologia racial do Brasil, que pouco
valor dá ao ser negro e a sua cultura.
76
Antes de tudo, a utilização da categoria negro nas políticas afirmativas é necessária
para que o problema social a ser enfrentado seja corretamente enunciado, rompendo
definitivamente com nosso anti-racialismo, que até esse momento não se mostrou vitorioso
na luta contra o racismo
87
. O princípio da política precisa ser bem definido. Se as políticas
são racialmente orientadas, é necessário que se explicite a que grupos raciais elas são
determinadas. A operacionalização das políticas, todavia, é um outro assunto, que será
abordado mais adiante.
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) pioneira dentre as
instituições públicas de ensino superior na implantação de programas de ação afirmativa
para a população negra – classificou os beneficiários de seu programa de ação afirmativa de
duas maneiras distintas, uma no vestibular de 2003 e outra no vestibular de 2004. No caso
do vestibular de 2003, a maneira empregada para a classificação dos beneficiários não teve
sua origem em debates travados dentro da própria UERJ, mas sim na imposição, ou melhor,
na aprovação de legislação estadual. Naquele ano, foram a lei nº 3.708 de 2001 e o Decreto
30.766 de 2002 que impuseram à universidade a reserva de “40% (quarenta por cento)
do total de vagas relativas aos seus cursos de graduação para candidatos que se
autodeclararem negros ou pardos, obedecidos aos critérios definidos no art. do referido
Decreto”
88
.
Nessa primeira decisão dos legisladores fluminenses, então, os beneficiários dos
programas de ação afirmativa das universidades estaduais do Rio de Janeiro foram
definidos como aqueles indivíduos que se autodeclarassem negros ou pardos. Nesse
sistema, há uma preocupação em incluir no benefício todos os indivíduos que possam sofrer
discriminação racial em virtude de sua aparência fenótipo
89
–, mas sem que os mesmos
precisem necessariamente se declarar negros. Nessa iniciativa, o termo negro foi tomado
87
Não se propõe aqui a criação de uma sociedade racializada, cindida entre brancos e negros, mas entende-
se que a racialização do debate sobre as relações sociais no país é um passo necessário para se atingir uma
sociedade verdadeiramente color-blind, sem qualquer tipo de hierarquização de base racial.
88
Edital do Exame Discursivo do Vestibular Sade/2003. Disponível em:
http://www.Vestibular.Uerj.Br/Sade2003/Conteudo.Php?Login=&Sessionid=&Referencia=Sade2003&Co
dificacao=020:002.
89
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fenótipo é a manifestação visível ou detectável de
um genótipo”, o que o biologista dinamarquês W. Johannsen chamou de “conjunto de características
observáveis, aparentes, de um indivíduo, de um organismo, devidas a fatores hereditários (genótipo) e às
modificações trazidas pelo meio ambiente”. Por sua vez, o genótipo consiste na “composição genética de
um indivíduo, mais freqüentemente us. a respeito de um gene ou grupo de genes”.
77
como sinônimo do termo preto o qual é uma das categorias utilizadas pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em suas pesquisas para a mensuração da cor
ou raça da população.
O termo pardo, também utilizado pelo IBGE, funcionaria para o reconhecimento da
grande miscigenação ocorrida no Brasil ao longo dos séculos, não apenas entre brancos e
negros, mas também entre eles e os indígenas. A importância da existência de uma
categoria de classificação racial intermediária, entre o branco e o negro, deve-se ao fato de
que nem todo indivíduo “não-branco” no Brasil descende de africanos negros
90
ou até
descende, mas, por variados motivos, não se identifica como negro. Mesmo assim, esses
indivíduos “não-brancos” podem sofrer discriminação racial em virtude de sua aparência
física – fenótipo
91
.
Uma importante razão para a adoção de uma categoria intermediária de
classificação racial é sua relevância estatística. A Pesquisa Mensal de Empregos (PME-
IBGE)
92
, de 1998, constatou que mais de um terço dos brasileiros optam por uma categoria
intermediária de cor ou raça quando podem fazê-lo de forma espontânea. Contudo, a
existência de categorias intermediárias de cor no sistema de classificação racial brasileiro
não faz com que ele seja caracterizado por uma enorme quantidade de termos
estatisticamente relevantes. O tratamento dispensado por Petruccelli (2001a) aos dados
coletados pela PME-IBGE mostra que embora tenham sido respondidos 143 termos à
classificação quanto à cor ou raça, sete termos apenas – correspondiam a 97% de todas as
90
Esse seria o caso, por exemplo, dos indivíduos chamados de caboclos, numerosos no do Estado de São
Paulo, mas que também podem ser encontrados em quantidade expressiva em outras unidades da
federação, especialmente naquelas localizadas na região Norte do país. Uma interessante descrição dessa
categoria racial brasileira pode ser encontrada na obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, quando o autor descreve o personagem Dr. Campos como “[...] alto e gordo, pançudo um pouco,
tinha os olhos castanhos, quase à flor do rosto, uma testa média e reta: o nariz, malfeito. Um tanto
trigueiro, cabelos corridos e grisalhos, era o que se chama por um caboclo, embora seu bigode fosse
crespo” (Barreto, 1997 [1915], p. 107).
91
O destaque ao termo “fenótipo” deve-se à intenção desse trabalho em marcar a diferença entre o sistema
racial brasileiro baseado na aparência dos indivíduos e o estadunidense baseado na ancestralidade.
Nesta sociedade, em geral, a demarcação racial é feita de acordo com a raça dos antepassados dos
indivíduos, de forma que bastaria a um indivíduo de aparência branca ter um avô negro para que ele fosse
classificado como negro. Nos Estados Unidos, em geral, o sistema de classificação racial é baseado em
aspectos genéticos – no “genótipo” das pessoas.
92
Ver nota 57.
78
repostas espontâneas dadas à pergunta sobre cor ou raça, sendo que três deles
correspondiam a categorias intermediárias – moreno, pardo e moreno claro
93
.
Guimarães (2003, pp. 104-105) também trata da importância da utilização de
categorias intermediárias de cor ou raça, no Brasil.
94
. Segundo esse autor, apesar do
aumento da luta ideológica sobre a racialização das relações raciais no país ter tornado a
operacionalização do conceito de raça pouco confiável, quando se trata de transformar o
conceito analítico de raça em algo quantificável, é necessário que isso seja feito por meio
do conceito nativo de cor. Isso é necessário porque o discurso nativo é baseado nas
categorias de cor apesar de ser o conceito analítico de raça que orienta e ordena as
relações sociais –, de forma que a utilização de termos nativos capta de forma mais
significativa a maneira como as pessoas se identificam racialmente.
Segundo o autor, no decorrer de uma pesquisa, a importância de se criar várias
categorias está na possibilidade de melhor aproveitamento e manipulação das informações
encontradas. Dessa forma, o pesquisador pode agregar os dados, posteriormente, conforme
o procedimento de análise mais adequado. O autor, por exemplo, cita a utilização da
categoria “’moreno’, que é o ‘branco’ escuro, muito usado no Nordeste e no litoral” e da
“categoria ‘mulato’, tipo mais negróide, ainda que mais claro do que ‘preto’”, e afirma que
traduzir tais categorias em termos censitários não é difícil, que a maioria dos “‘morenos’
são brancos sociais” (Guimarães, 2003, p. 105).
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no entanto, passou a adotar a
partir do vestibular de 2004 um sistema de classificação dos beneficiários de seu programa
de ação afirmativa que não faz menção a nenhuma categoria racial intermediária.
Novamente, foi a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro que determinou as
regras gerais de funcionamento do sistema de cotas nas universidades públicas do estado
95
.
A nova lei aprovada também instituiu que apenas estudantes carentes terão direito às vagas
93
Ver nota 66.
94
É importante esclarecer que os argumentos de Guimarães reproduzidos nesse parágrafo não são
direcionados especificamente para a classificação racial dos candidatos aos programas de ação afirmativa.
O autor, na verdade, discorre de forma geral sobre a forma como ele trabalha com o conceito de raça em
suas pesquisas.
95
Nesse segundo caso, porém, o legislativo fluminense se beneficiou de um longo debate que houve na
comunidade, no qual o movimento negro teve um importante papel.
79
reservas nos cursos de graduação da UERJ, sendo que uma parte dessas vagas deve ser
preenchida por estudantes carentes negros. A lei nº 4151 estabelece, em seu artigo 5º, que:
[...] nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei deverão as universidades públicas
estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo de
45% (quarenta e cinco por cento), distribuído da seguinte forma:
I - 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;
II - 20% (vinte por cento) para negros; e
III - 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor
e integrantes de minorias étnicas.
No que se refere à determinação pela lei de quem seriam os negros a serem
atendidos pelo sistema de cotas, o texto é lacônico, dizendo apenas, no § do artigo 1º,
que:
[o] edital do processo de seleção, atendido o princípio da igualdade, estabelecerá as
minorias étnicas e as pessoas com deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a
adoção do sistema de auto-declaração para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas,
cabendo à Universidade criar mecanismos de combate à fraude.
Isso foi suficiente para o Relatório Anual do Centro de Justiça Global Direitos
Humanos no Brasil 2003 afirmar que “de acordo com a nova legislação, os pardos não
seriam contemplados” pela política de cotas, o que deixa esta população “sem qualquer tipo
de solução compensatória”. Tal afirmação parece um exagero, uma vez que o sistema não
impede que pardos recebam o benefício, pelo contrário, a idéia é fazer com que os pardos o
recebam ao se declararem como negros maneira, aliás, como os pardos têm sido tratados
por muitas estatísticas oficiais, especialmente as provenientes do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), órgão federal submetido ao Ministério do Planejamento.
Além disso, tal procedimento também pretende combater a fraude no vestibular da UERJ,
pois, segundo o frei Davi Santos, diretor-executivo do Educafro (Educação e Cidadani de
Afrodescendentes e Carentes), no vestibular de 2003, “alunos brancos oportunistas”
roubaram vagas de “negros e pardos de verdade”
96
ou seja, dos negros e mestiços cujas
marcas raciais os fazem ser tratados de acordo com a imagem estereotipada que a sociedade
brasileira possui sobre a aparência dos negros.
96
Ver Capriglione (15/02/2005).
80
A Universidade de Brasília (UnB) adotou uma forma de classificação racial dos
beneficiários de seu programa de ação afirmativa semelhante ao implementado pela UERJ
em seu vestibular de 2004. Entretanto, a decisão da UnB em criar um sistema de cotas
racial para o ingresso em seus cursos de graduação é resultado de quatro anos de discussões
internas sobre a questão, sendo o projeto finalmente aprovado em junho de 2003 em caráter
experimental após um período de dez anos ele será reavaliado. No tocante à classificação
racial dos beneficiários da reserva de vagas da UnB, a universidade optou por chamar,
como a UERJ, seus beneficiário pelo termo negro embora o edital operacionalize este
termo por meio do conceito de cor e, ao contrário da UERJ, faça menção à categoria pardo.
Segundo o edital do 1º vestibular de 2005
97
:
[para] concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato
deverá: declarar-se negro(a), ser de cor preta ou parda e optar pelo Sistema de Cotas para
Negros
98
.
Para Timothy Mulholland, então vice-reitor da Universidade de Brasília e defensor
de um papel ativo da comunidade acadêmica em relação à inclusão de novos setores sociais
na universidade pública, o público alvo da UnB é o “negro aquele brasileiro, que, a
pretexto de sua aparência física, seu fenótipo, é discriminado sistematicamente na
sociedade”. Assim, por meio do Sistema de Cotas para Negros, a Universidade de Brasília
decidiu reservar 20% das vagas de seus cursos de graduação para estudantes que sejam de
cor preta ou parda e se considerem negros, deixando eles livres para participar do
sistema de cotas, para indicar sua cor e para se declararem negros (Mulholland, 2004, p. 2).
A união das categorias preto e pardo utilizadas pelo IBGE em sua classificação da
cor ou raça da população brasileira em uma nova categoria chamada negro possui sua
origem na sociologia estruturalista do final dos anos de 1970, com os trabalhos de Carlos
Hasenbalg e Nelson do Valle Silva. Atualmente, tem sido freqüente órgãos estatais de
pesquisa e planejamento, como o IPEA
99
, trabalharem com a categoria negro – resultado da
97
O Sistema de Cotas para Negros vem sendo utilizado pela UnB desde o vestibular do 2º semestre de 2004.
98
EDITAL N.º 2/2004 – 1.º VEST 2005, DE 6 DE SETEMBRO DE 2004. Disponível em:
http://www.cespe.unb.br/vestibular/arquivos/2005-1/ED_2005_1_VEST_2005_2_ABT.PDF.
99
Exemplos dessa postura do IPEA podem ser visto em Jaccoud e Beghin (2002) e Henriques (2001).
81
agregação de pretos e pardos. O próprio IBGE, que organiza sua coleta de dados em função
das categorias preto e pardo, tem utilizado em suas análises a categoria negro.
Segundo os pesquisadores do IBGE Kaizô Beltrão e Maria Salet Novellino, a
tendência dos estudos que procuram mensurar as desigualdades raciais é agregar pretos e
pardos em uma categoria chamada de negros. duas justificativas para este
procedimento, a primeira é a proximidade da situação socioeconômica entre pretos e
pardos, considerada estatisticamente suficiente para agregá-los em uma categoria. A
segunda justificativa está na possível sub-mensuração da categoria preto, pois a ideologia
do embranquecimento faria com que muitos pretos de autodeclarassem pardos (Beltrão e
Novellino, 2002, p. 51).
A grande novidade, contudo, no Sistema de Cotas para Negros da UnB ficou por
conta do mecanismo adotado para o controle de fraudes: a criação de uma banca de
homologação ou não das inscrições dos candidatos às cotas, decisão tomada com base
em requisição assinada pelo candidato e em fotografia tirada do mesmo no ato da
inscrição
100
. Tal procedimento despertou um acalorado debate na imprensa nacional
101
e foi
mal recebido pelos opositores às ações afirmativas no ensino superior. Segundo Fry e
Maggie (2004, p. 157), a criação de uma comissão para averiguar “a veracidade das auto-
identificações” demonstra a impossibilidade de identificação clara dos beneficiários das
políticas de cotas.
Mas segundo Mulholland (2004, p. 3), a comissão fiscalizadora instituída pela UnB
estabeleceu um eficiente mecanismo de controle dos beneficiários, pois, com a utilização de
fotos e entrevistas, ela supriu a deficiência do uso da autodeclaração como critério único de
inscrição, e evitou que o sistema fosse burlado e desmoralizado. Ainda segundo o então
vice-reitor da UnB, “[se] a discriminação se socialmente, a implementação da ação
afirmativa terá que se dar da mesma maneira”.
A existência de uma comissão de controle dos beneficiários às cotas baseia-se na
necessidade de que eles não apenas se identifiquem como negros, mas também que sejam
100
Ver nota 96.
101
Em geral, a impressa foi muito crítica à adoção pela UnB de uma comissão fiscalizadora das inscrições
dos candidatos às cotas. Exemplo dessa resistência pode ser visto em artigo da Folha de São Paulo de
15/02/2005, assinado por Laura Capriglione, que se refere à comissão da UnB como sendo um “tribunal
de negritude”.
82
reconhecidos assim. Isso porque, segundo Petruccelli (2001a, p. 5), a atribuição de cor ou
raça a um indivíduo é feita de forma relacional, não sendo nem uma característica natural
nem inerente ao mesmo. A percepção de que certos traços físicos de um indivíduo
determinam sua cor possui significado apenas dentro de um “contexto histórico-cultural
específico”, logo é importante que a cor ou raça de um indivíduo seja determinada por sua
auto-percepção e pela “percepção da visão dos outros sobre si”.
Por fim, uma terceira forma de identificação dos beneficiários de programas de ação
afirmativa foi proposta pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), que direcionou seu
sistema de inclusão racial para indivíduos afrodescendentes. Segundo o edital de seleção
2005 da UFPR:
[das] vagas oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão racial, disponibilizadas para
estudantes afro-descendentes, sendo considerados como tais os que se enquadrarem como
pretos ou pardos, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE)
102
.
Assim como a UnB, apesar da UFPR adotar o termo afrodescendente para
identificar quem receberá o benefício, a instituição operacionalizou o termo por meio das
categorias do IBGE, preto e pardo. Essa categoria afrodescendente, contudo, desperta dois
problemas: um relacionado à forma como o conceito de raça opera na sociedade brasileira e
outro de ordem prática, tendo em vista a definição de quem terá direito ao benefício da
cota.
No que se refere ao problema conceitual, a categoria afrodescendente é mais
apropriada para o contexto dos Estados Unidos, onde ela, em geral, designa qualquer
indivíduo que possua pelo menos um antepassado negro. Ou seja, essa categoria é mais
adequada para uma sociedade onde as relações raciais baseiam-se na ascendência dos
indivíduos. Isso introduz o segundo problema, de ordem prática, pois, em um país de
grande miscigenação como o Brasil, mas onde as relações raciais baseiam-se na aparência
das pessoas, muitos são os indivíduos que poderiam alegar ser afrodescendentes sem
possuírem as características fenotípicas que geram preconceito racial. Nesses casos, os
102
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, EDITAL N.º 01/2004 – NC. Disponível em:
http://www.nc.ufpr.br/ps2005/Edital.doc.
83
“morenos”, brancos sociais na visão de Guimarães (2003), poderiam se aproveitar do
benefício das cotas indevidamente, simplesmente alegando que possuem afrodescendência
e se enquadram no termo pardo.
84
Considerações finais
A identificação dos beneficiários dos programas de ação afirmativa para a
população negra não parece tão problemática como tem sido afirmado por alguns de seus
críticos. Nas últimas décadas, o pensamento social brasileiro desenvolveu interpretações
sobre a realidade social do país que possibilitam a compreensão do sentido das relações
sociais entre indivíduos de diferentes características fenotípicas, ou, em termos mais
conhecidos, a compreensão do sentido das relações raciais no Brasil. A compreensão desse
sentido, por sua vez, permite a identificação de quem seriam os indivíduos considerados
negros no Brasil e, conseqüentemente, dos beneficiários dos programas afirmativos
sensíveis à raça.
A realidade social enunciada no parágrafo anterior refere-se à substituição da raça
pela cor como categoria estruturadora das relações sociais cotidianas entre indivíduos de
diferentes aspectos fenotípicos. Segundo Guimarães, a operação dessa mudança se iniciou
no final do século XIX e torna-se quase que irreversível a partir da década de 1930. Não se
tratou aqui de refletir ou investigar as causas desse processo, mas sim de apresentar isso
como um fato consumado e presente na sociedade atual, na qual as pessoas preferem se
dizer brancas, pretas, morenas ou até mesmo pardas, do que se identificarem como brancas
ou negras. O que se discute aqui é o sentido dessa ação social, que idéia orienta e ordena o
discurso social sobre a cor das pessoas?
Inicialmente, o pensamento social brasileiro interpretou a emergência da categoria
cor como conseqüência da constituição no Brasil de uma sociedade propensa à mistura
étnica, cultural e racial. Segundo Gilberto Freyre, a sociedade mestiça criada no Brasil
pelos portugueses seria mais igualitária do que a democracia política anglo-saxã, idéia que,
posteriormente, serviu para outros pensadores sociais, brasileiros e estrangeiros, cunharem
a expressão democracia racial para descrever as relações sociais no país. Essa interpretação
da sociedade, por sua vez, foi muito útil ao Estado brasileiro, empenhado após 1930 na
construção de uma identidade nacional homogênea e no enaltecimento da inclusividade do
novo Estado organizado no país. Assim, o discurso oficial se aproveitou da idéia de
democracia racial para enfatizar que a nação brasileira não seria constituída por indivíduos
85
de diferentes raças, mas sim por indivíduos de diferentes cores, mestiços, o que garantiria a
integração de todos no Estado-nação.
Apesar do pensamento social da década de 1930 ter servido aos interesses e projetos
políticos do Estado brasileiro, isto não significa que os pensadores desse período tenham
afirmado que a sociedade brasileira estava livre do preconceito, mas este, embalado pela
idéia da mestiçagem do povo brasileiro, apenas poderia ser de cor e não de raça. A
sociologia brasileira dos anos de 1950, entretanto, contestou essa visão da sociedade e
ofereceu uma nova interpretação às relações sociais entre indivíduos de “diferentes cores”.
Tendo como referência as relações raciais nos Estados Unidos no período anterior
aos movimentos pelos direitos civis, Oracy Nogueira identifica no Brasil um tipo de
preconceito que é inicialmente chamado por ele de preconceito de cor. Mas com o
desenvolvimento de seus trabalhos, Nogueira percebe que, apesar de distinções em relação
ao que ocorria nos Estados Unidos, o preconceito praticado no Brasil também era de
natureza racial e que a cor atuava, na verdade, como um fator sintético do conjunto de
características fenotípicas que determinam a aparência racial dos indivíduos.
Embora Nogueira reintere que no Brasil a concepção de branco e “não-branco” pode
ser variável, dependendo de uma interação entre aparência física e status social, de forma
geral, a sociedade brasileira trata pretos, mestiços escuros e alguns mestiços claros como
pertencentes a um grupo que possui um mesmo aspecto racial, o do negro africano ou
melhor, um aspecto que a sociedade brasileira considera ser o do negro africano. Trabalhos
como o de Nogueira, realizados na década de 1950, serviram para a reintrodução da raça
como categoria de análise da sociedade brasileira. Esse posicionamento teórico-
metodológico, no entanto, apenas se fortalece na academia brasileira no final dos anos de
1970, com os trabalhos de sociólogos como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva.
Os trabalhos de Hasenbalg e Silva partem do pressuposto, acima destacado, de os
indivíduos classificados pelo IBGE como pardos e aqueles classificados como pretos são
igualmente discriminados na sociedade brasileira, o que, por conseguinte, os poria em uma
mesma situação de destituição socioeconômica. Hipótese essa empiricamente comprovada
pelos autores, que constatam, através de análises de dados demográficos do IBGE, que
pardos e pretos encontram-se em uma posição socioeconômica similar e inferior àquela que
goza os indivíduos brancos.
86
Logo, em termos metodológicos, a junção das categorias de cor pardo e preto em
uma nova categoria seria não apenas recomendável como também necessária. Hasenbalg e
Silva, entretanto, alteram a designação dada a essa categoria, ora a chamando de “não-
branco” ora de negro. O problema da utilização da categoria “não-branco”, entretanto, é
que ela não reflete o caráter racial das relações sociais no Brasil. Sua construção baseia-se
na dificuldade que alguns autores possuem em classificar como negros indivíduos
autodeclarados pardos, pois, admitindo a importância das populações indígenas na
formação da população brasileira, nem todo indivíduo pardo é majoritariamente de
ascendência negra. Por sua vez, também casos de indivíduos pardos que são
classificados e tratados na sociedade como negros, mas que não se identificam como tal.
Essa preocupação leva alguns autores a trabalharem, ao menos no que se refere à
classificação racial, somente com as categorias de cor, deixando assim de destacar o caráter
racial das relações sociais no país.
Esse caráter racial, ou o racialismo, das relações sociais no Brasil é exposto por
Guimarães. Segundo esse autor, cor seria uma categoria nativa, pertencente ao mundo
prático e que serve para orientar e ordenar “o discurso sobre a vida social”. Contudo, cor,
ao contrário do que pode parecer a muitos, não é uma categoria objetiva, mas socialmente
construída e racialista, pois é a idéia de raça que orienta a ação dos indivíduos mesmo
quando seu discurso refere-se à cor. Raça, então, seria a categoria mais apropriada à análise
dos fenômenos sociais que atingem a população tratada pela sociedade como negros, sejam
eles pretos, mulatos, morenos ou pardos. Mas é importante ser destacado que nem todo
pardo é reconhecido pela sociedade como negro, não sendo, por isso, apropriado tratá-los
como tal.
Há, contudo, uma grande parcela de indivíduos autodeclarados pardos que são
tratados como negros, não apenas pela sociedade, mas também pelo Estado brasileiro. O
Censo Nacional é um bom exemplo de como, dependendo da interpretação dada às relações
raciais no Brasil, as categorias de cor podem ser entendidas como categorias condicionadas
pela idéia de raça. O primeiro Censo Nacional, de 1872, coletou a cor da população, mas,
em suas instruções, havia a recomendação para que apenas os indivíduos progênies de
brancos e negros fossem considerados pardos. O Censo Nacional de 1890, por sua vez,
87
suprime a categoria pardo e a substitui por mestiço, o que indica a importância para a
pesquisa censitária daquele ano em retratar a origem racial dos indivíduos.
Nas pesquisas censitárias seguintes, de 1900, 1910 e 1920, não houve a coleta da
cor da população. Em 1910, não houve realização do Censo Nacional, mas em 1900 e 1920
houve uma opção deliberada para a exclusão do quesito cor dos Censos Nacionais. Curioso,
entretanto, é notar a justificativa dada à exclusão da cor no Censo Nacional de 1920, que
teria ocorrido devido ao comportamento dos indivíduos mestiços, muito numerosos e “mais
refratários às declarações inerentes à cor originária da raça a que pertencem”. Nesse trecho,
fica evidente que até aquela época o quesito cor do Censo Nacional possuía um caráter
eminentemente racial, sendo a cor declarada pelas pessoas considerada apenas conforme
afirma Nogueira – um fator sintético do conjunto de características fenotípicas que as
identifica como pertencentes à raça negra.
Entretanto, o Censo Nacional seguinte, realizado em 1940, modifica seus
pressupostos e interpretações acerca do significado do quesito cor. Isso ocorreu porque a
chamada Era Vargas não foi apenas um período de desenvolvimento econômico, mas
também um momento marcado pelo esforço de construção de uma identidade nacional
homogênea. E para isso, o pensamento social de Gilberto Freyre foi de grande serventia,
pois, com o auxílio de suas idéias, o Estado pôde caracterizar a sociedade brasileira do
início do século XX como sendo o resultado da união “física” e cultural de todas as raças, o
que acabou por originar uma população formada por indivíduos mestiços, distintos uns dos
outros apenas pelas diferentes cores de suas peles.
Com isso, é decretado o “início do fim” da utilização do conceito de raça pelas
instituições do Estado brasileiro. No caso do Censo Nacional, entretanto, é importante ser
compreendido as implicações dessa mudança, pois a pesquisa censitária não é um mero
processo de contagem da população, mas também uma forma de codificação da estrutura
social. E, a partir do Censo Nacional de 1940, a categoria pardo deixa de ser interpretada
como uma categoria que reflete a cor de uma determinada raça – a negra – para ser
entendida meramente como a cor da pele de um indivíduo mestiço.
Essa mudança de interpretação do significado da categoria cor, contudo, não fez
com que grande parte dos indivíduos que se definem como pardos deixasse de sofrer um
tipo de discriminação semelhante ao que é imposto aos indivíduos de cor preta. E isso
88
ocorre, segundo Guimarães, porque apesar da cor ser a categoria que está presente no
discurso social, é a idéia de raça que, no Brasil, orienta as ações dos indivíduos, fazendo
com que eles identifiquem tanto pretos quanto a maioria dos pardos como indivíduos
pertencentes a um grupo que possui as mesmas “marcas raciais”, aquelas presentes no
grupo racial negro.
Dessa forma, as políticas de ação afirmativa sensíveis à raça, no Brasil, parecem ter
um público-alvo bem definido, que são os indivíduos tratados pela sociedade como negros,
ou seja, aqueles indivíduos, de cor preta ou parda, reconhecidos e discriminados por serem
portadores de características fenotípicas identificadas como do grupo racial negro. Essa foi
a solução adotada pela Universidade de Brasília para definir quem seriam os beneficiários
de seu programa de ação afirmativa. Nessa instituição, as políticas afirmativas são
direcionadas para os negros, indivíduos que, sejam de cor preta ou parda, são
sistematicamente discriminados por causa de suas características raciais.
Essa forma de identificação dos beneficiários dos programas de ão afirmativa
condiz com o princípio racialista que, na prática, orienta as relações sociais no Brasil e
oferece uma operacionalização apropriada da categoria negro, pois leva em consideração
categorias nativas de identificação racial; além de ser uma interessante barreira à fraude dos
programas. Essa operação, por si só, parece suficiente para o controle de candidaturas de
indivíduos que não se encaixam, no Brasil, no perfil do beneficiário de um programa
racialmente orientado
103
.
O problema da categoria negro, para a efetivação dessas ações, é ela ser uma
categoria de análise dos fenômenos sociais, não fazendo, no caso brasileiro, parte do
discurso social. A concepção nativa do termo negro, aliás, a entende como sinônimo da cor
preta. Logo, uma política de ação afirmativa que utilize apenas a categoria negro para
identificar seus beneficiários pode não atingir indivíduos de cor parda, embora muitos
destes sofram o mesmo tipo de discriminação racial que os indivíduos de cor preta.
103
A adoção de comissões de verificação da autodeclaração dos candidatos, como no caso da Universidade
de Brasília, deve ser vista com ressalvas. Apesar da discriminação racial ocorrer, primordialmente, em
virtude da percepção e classificação que os outros fazem do indivíduo importando menos, para esse
caso, a imagem que ele faz de si mesmo –, a constituição de uma comissão de indivíduos com o poder de
contradizer a autodeclaração feita pelos candidatos às políticas afirmativas parece contrária aos princípios
comumente aceitos de que o Estado brasileiro, hoje, é e deve ser liberal, democrático e de direito.
89
Por outro lado, a necessidade dos indivíduos se identificarem como negros no
momento em que estão declarando sua cor evita que os programas de ação afirmativa sejam
utilizados de maneira inapropriada, seja por indivíduos de ascendência negra que não
possuem características fenotípicas que possam tê-los tornado alvo de discriminação racial
ou por usurpadores que se declaram pardos apenas para terem acesso ao benefício.
90
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