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CINTIA ROBERTA RIBEIRO HOFFMANN
UNUS MUNDUS:
os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e
suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da
totalidade quaternária, segundo C. G. Jung
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2006
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CINTIA ROBERTA RIBEIRO HOFFMANN
UNUS MUNDUS:
os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e
suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da
totalidade quaternária, segundo C. G. Jung
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo
Rodrigues da Cruz.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2006
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________
__________________________________
__________________________________
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família que ofereceu todo apoio moral, afetivo e
financeiro para que esta dissertação pudesse ser realizada. Agradeço ao prof. e diretor de
Teologia do Mackenzie Antônio Máspoli de Araújo Gomes, que na faculdade de Psicologia,
foi o único professor que aceitou o encargo de me orientar na monografia sob o título, "O Self
e a Pedra Filosofal", resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia.
Além disso, o prof. Máspoli foi a pessoa que incentivou a minha jornada neste mestrado,
indicando para isto, o programa de Ciências da Religião da Puc de São Paulo. Agradeço
também à todos os professores que tive o privilégio de encontrar no programa, em especial,
Enio da Costa Brito, Denise Gimenez Ramos e Amâncio César Santos Friaça. E, por fim,
agradeço ao meu orientador Eduardo Rodrigues da Cruz, pelos apontamentos, correções e,
principalmente, pela confiança no projeto inicial desta dissertação.
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................7
I - Unus Mundus: Um registro da influência do alquimista Dorneus na visão completa do mundo natural de C. G. Jung
I. 1. - Introdução ao universo da alquimia, e sua importância para a Psicologia Analítica....................................................... .14
I. 2. Os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus...................................................................................................28
I. 3. Sobre a influência de Dorneus nas correspondências Jung-Pauli........................................................................................30
II Esboço Teórico-Espiritual da alquimia................................................................................................................................38
II. 1. - A Alquimia Asiática.........................................................................................................................................................41
II. 2. - Alquimia Alexandrina......................................................................................................................................................48
II. 3. - A alquimia Árabe.............................................................................................................................................................60
III As fases alquímicas e suas realções com os graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, analisados à luz da Psicologia
Profunda de C. G. Jung
III. 1. O Opus Alchymicum e seus estágios................................................................................................................................67
III. 2. A fase alquímica nigredo, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.............................................................74
III. 3. A Solutio na fase alquímica nigredo..............................................................................................................................81
III. 4. A Separatio e a Mortificatio na fase alquímica nigredo.................................................................................................95
III. 5. A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de Gerardus Dorneus............................110
IV A fase alquímica Albedo à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung
IV. 1 - A subida e a descida do volátil na fase alquímica albedo.............................................................................................121
IV. 2 A subida e da descida do volátil do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum.................................................131
IV. 3 – O processo alquímico da Circulatio do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum..........................................136
IV. 4. A tensão dos opostos na alquimia do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum............................................152
IV. 5. A fase alquímica albedo e sua relação com a produção da Quintessência de Gerardus Dorneus...............................167
IV. 6. Sobre o axioma de Maria Prophetissa...........................................................................................................................180
V Unus Mundus e o símbolo quaternário:Uma contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico.....................184
V. 1. – Paul Tillich e Carl Jung.………………………………………………………………………………………………190
VI Conclusão..........................................................................................................................................................................203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................................................................213
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RESUMO
Em Mysterium Coniunctionis, Jung encontrou nos três graus da conjunção do
alquimista Gerardus Dorneus um terreno seguro para explicar a seqüência dos processos
psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no processo de individuação e,
demonstrou que a conjunção alquímica na verdade ocorrem em três estágios. Apoiado no
estudo do procedimento alquímico, com maior profundidade nos três graus da Coniunctio,
nota-se ainda que, assim como para o alquimista Dorneus eram necessários a realização de
três graus ou estágios para a Conjunção, assim também na Alquimia, o Opus alchymicum, em
toda sua extensão, poderia ser descrito, pela maioria dos alquimistas, em três fases conhecidas
e necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo e a rubedo. Sendo assim, esta dissertação
busca defender sob a óptica junguiana, a hipótese de que os graus da Coniunctio do alquimista
Gerardus Dorneus necessários à uma Coniunctio Final, na vivência religiosa do Unus
Mundus, possuem estreita relação, em seus aspectos psíquicos, com as principais fases
alquímicas, a nigredo, a albedo e a rubedo. Mantendo-se em um campo factível, que é o da
investigação simbólica dos processos alquímicos, tanto através da análise dos graus da
Coniunctio do alquimista Dorneus, quanto das fases alquímicas, esta dissertação encontra um
maior entendimento dos processos psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a
Conjunção final, confirmando ser o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da
totalidade quaternária. Entretanto a contribuição da presente tese não se encerra aqui. Esta
pesquisa poderá enriquecer neste sentido a análise e, a constatação junguiana de que, se
entendermos a Trindade como um processo em três etapas, este processo deveria prolongar-se
até chegar à totalidade absoluta, isto é, no símbolo quaternário. Descobrir de que modo estes
processos se apresentam no simbolismo alquímico é uma contribuição para qualquer
indivíduo que se ocupa em estudar a experiência religiosa no processo de individuação,
segundo C. G. Jung.
6
ABSTRACT
In Mysterium Coniunctionis, Jung encountered, on the three degrees of the conjunction
of the alchemist Gerardus Dorneus, safe ground to explain the sequence of psychic processes
that occur on the “retorta”, in search of the center the individualization processes, and
demonstrated that the alchemic conjunction actually occurs in three stages. Based on the
study of the alchemic procedure, with bigger depth in the three degrees of the Coniunctio, one
still notices that, as well as it was necessary for the Dorneus alchemist the accomplishment of
three degrees or stages for the Conjunction, in Alchemy the Opus alchymicum, in all its
extension, could be described, by the majority of the alchemists, in three known and
necessarily consecutive phases: nigredo, albedo and rubedo. Thus, this dissertation seeks to
defend, under Jungian perspective, the hypothesis that the necessary degrees of the
Coniunctio of the alchemist Gerard Dorneus for a Coniunctio Final, in the religious
experience of the Unus Mundus, possess a strict relationship, on its psychic aspects, with the
main alchemic phases: nigredo, albedo and rubedo. Staying in a feasible ground, that of the
symbolic investigation of the alchemic processes, as much through the analysis of the degrees
of the Coniunctio of the Dorneus alchemist, as of the alchemic phases, this dissertation finds a
broader understanding of the psychic processes that unfold during the opus alchymicum until
the final Conjunction, confirming to be the ternary rhythm of the psychic processes in search
of the quaternary totality. However, the contribution of this thesis does not end here. This
search will be able to enrich, in this sense, the analysis and the jungian acknowledgement that,
if we understand the Trinity as a process with three phases, such process should continue until
reaching the absolute totality, the quaternary symbol. Find out how these processes present
themselves in the alchemic symbolism is a contribution to any individual who is concerned
with the study of the religious experience in the individualization process, according to C. G.
Jung.
7
INTRODUÇÃO
A alquimia sempre exerceu grande fascínio sobre mim, desde a época em que dediquei
maior atenção ao estudo das obras de Carl Gustav Jung, resultando daí o desejo em apenas
concluir o curso de Comunicação e Artes que estava desenvolvendo e, ingressar em outra área
de trabalho. Na Faculdade de Psicologia, desenvolvi, "O Self e a Pedra Filosofal", uma
monografia resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia. Neste
trabalho, realizo uma análise dos três graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus
sob a perspectiva junguiana, orientada pelo professor e diretor de Teologia do Mackenzie
Antônio Máspoli de Araújo Gomes. Aconselhada por este, me dirigi ao programa de Ciências
da Religião da PUC de São Paulo.
Carl Gustav Jung passou o final de sua vida estudando a alquimia e descobriu que o
processo alquímico em busca do "ouro" correspondia à um processo psíquico, ou seja,
enquanto faziam suas experiências químicas, os alquimistas passavam por determinadas
experiências psíquicas que lhes pareciam ser o comportamento particular do processo
químico. Na verdade, como se tratava de uma projeção, o alquimista vivenciava estas
vivências psíquicas como uma propriedade da matéria, embora algum deles tenham
pressentido a simbólica aí existente e souberam do parestesco de tais imagens com sua própria
estrutura psíquica.
O ponto culminante do procedimento alquímico, a criação da Pedra Filosofal, continua
sendo a etapa mais misteriosa e complicada. Em um sentido mais direto, tanto o processo de
individuação quanto o simbolismo alquímico concentram seus esforços últimos no momento
da Coniunctio (Conjunção), ou seja, concomitantemente, no encontro consciente do ego com
o Self e, na produção final da Pedra Filosofal. Assim, a operação alquímica da Coniunctio
seria o objetivo último, onde o alquimista esperava atingir a meta da obra, o verdadeiro ouro,
a Pedra Filosofal. Desta maneira, todo o Opus Alchymicum correspondia, numa perspectiva
junguiana, aos esforços do homem para alcançar o centro do processo de individuação.
Em Mysterium Coniunctionis, Jung dedicou longa atenção ao alquimista Gerardus
Dorneus. A Coniunctio em especial, foi descrita por este alquimista e subdividida em três
graus. Jung encontrou nos três graus da conjunção de Dorneus um terreno seguro para
explicar a seqüência dos processos psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no
processo de individuação. Sob a ótica junguiana, ao descrever e subdividir em três graus o
processo alquímico da Coniunctio, Dorneus, está descrevendo as implicações psíquicas de
um encontro do ego com o Self. Edward F. Edinger é da mesma opinião ao afirmar em sua
8
obra intitulada, The Mystery of the Coniunctio, que Jung "demonstrou que a conjunção
alquímica na verdade ocorrem em três estágios"
1
e assim, dedicou uma boa parte da sua
última obra na análise minuciosa destes:
Em todo caso deve-se mencionar desde agora que no século XVI já GERARDUS
DORNEUS reconheceu o aspecto psicológico do casamento alquímico e o entendeu
claramente como aquilo que hoje concebemos como o processo de individuação
(JUNG, 1990, p.223, § 334).
Apoiado no estudo concreto do procedimento alquímico, com maior profundidade nos
três graus da Coniunctio, nota-se ainda que, assim como para o alquimista Dorneus eram
necessários a realização de três graus ou estágios para a Conjunção, assim também na
Alquimia geral, o Opus alchymicum, em toda sua extensão, poderia ser descrito, pela maioria
dos alquimistas, em três fases conhecidas e, necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo
e a rubedo. Sendo assim, levanta-se a questão: existe relação entre a nigredo, albedo e a
rubedo, e os estágios da Coniunctio de Dorneus, em seus aspectos psíquicos? Jung foi o
primeiro à apontar uma primeira relação em seus aspectos psíquicos entre o primeiro grau da
Coniunctio de Dorneus e a primeira fase alquímica, nigredo, como se observa neste único
trecho presente em Mysterium Coniunctionis:
Quando, pois, DORNEUS, fala da libertação da alma presa nas cadeias do corpo, está
ele exprimindo, em uma linguagem um pouco diferente, a mesma coisa como
ALBERTO MAGNO, quando ele trata da transformação artificiosa ou da preparação
do argentum vivum. (prata viva, mercúrio) ou quando o rei em sua veste cor de
açafrão se racha ao meio. Em todos os três casos se representa a substância do
arcano. Desse modo a gente entra na escuridão, a nigredo (negrura), pois o Arcanum,
o mistério, é escuro (JUNG, 1990, p. 276, § 396).
Entretanto, esta dissertação busca ir além; o objetivo da dissertação, é defender sob a
óptica junguiana, a hipótese de que os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus
necessários à uma Coniunctio Final, na vivência religiosa do Unus Mundus, possuem estreita
relação, em seus aspectos psíquicos, com as principais fases alquímicas, a nigredo, a albedo e
a rubedo. Se estas relações forem constatadas no decorrer da dissertação, poderemos, tanto
através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases
alquímicas, encontrar um duplo subsídio para promover um maior entendimento dos
principais processos psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a Conjunção final.
1
"With the help of a lot of alchemical texts chiefly those from the alchemist Gerhard Dorn, Jung demonstrates
that the alchemical coniunctio actually takes place in three stages." EDINGER, E. F. The Mystery of the
Coniunctio: Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner City Books, 1994, p. 77.
9
Descobrir de que modo estes processos se apresentam no simbolismo alquímico é uma
contribuição para qualquer indivíduo que se ocupa em estudar a experiência religiosa no
processo de individuação, segundo C. G. Jung.
Tanto a nigredo, quanto a albedo e a rubedo foram estudadas por Jung, à luz da
Psicologia Profunda. Entretanto, não há uma análise do processo destas três fases reunidas e,
consequentemente, o entendimento deste processo alquímico como um todo, visto que os
comentários de Jung sobre estes simbolismos, encontram-se distribuídos em Psicologia e
Alquimia, Estudos Alquímicos, A prática da psicoterapia, Aion e nos três volumes de
Mysterium Coniunctionis, de forma desordenada.
Encontramos alguns estudos que abordam a alquimia no âmbito da psicologia
junguiana. Marie-Louise Von Franz, por exemplo, autora de Alquimia: introdução ao
simbolismo e à psicologia e Alquimia e Imaginação ativa, é certamente uma delas, pela
própria ligação com o Jung. No entanto, muitos textos, inclusive o de Von Franz, apresentam
lacunas para quem está em busca de um entendimento do processo alquímico como um todo,
assim como dos processos inconscientes que se desenvolvem na Opus alchymicum.
Outra obra que promete destacar o processo alquímico em paralelo com os processos
inconscientes análogos é : O Caminho da Transformação, segundo C. G. Jung e a alquimia.
O autor, Etienne Perrot, foi encarregado de conferências sobre alquimia no Instituto C. G.
Jung de Zurique, e neste livro ele reúne algumas de suas palestras proferidas. Na primeira
parte do livro, o autor trata primeiramente dos temas principais da psicologia junguiana; para,
na segunda parte, partir para a analogia com os simbolismos alquímicos. No início o autor
parece seguir um trajeto alquímico correspondente ao processo psíquico junguiano, entretanto
posteriormente, deixou, aleatoriamente, que os temas se oferecessem e se encadeassem, como
o autor mesmo afirma, "evitando o discurso lógico."
2
Definitivamente, entre os autores, um deles se destaca, para quem está em busca de
um estudo que aborde a sucessão dos processos inconscientes que se desenvolvem no
processo alquímico: Edward F. Edinger
O analista junguiano Edward F. Edinger, professor no C. G. Jung Institute de Los
Angeles, realizou em seu livro Anatomia da psique, uma primeira tentativa de organizar e
analisar os procedimentos alquímicos como a solutio, a calcinatio, a coagulatio, a sublimatio,
a mortificatio, a separatio, e a coniunctio, à luz da psicologia junguiana. Entretanto estes
procedimentos alquímicos foram estudados isoladamente. Além disso, especificamente as
2
PERROT, E. O caminho da transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 404.
10
principais fases alquimícas como a nigredo, albedo e a rubedo, que podem ser produzidas por
uma combinação de procedimentos alquímicos, como por exemplo a nigredo, através da
solutio, da separatio, e da mortificatio, não foram estudadas e analisadas nestes termos.
Posteriomente, há uma outra obra de Edinger, citada acima, The Mystery of The
Coniunctio: alchemical image of individuation, cujo o material deste livro foi primeiro
apresentado pelo autor em forma de palestras no C. G. Jung Institute of San Francisco. Nesta
obra, Edinger aborda a coniunctio e os escritos junguianos sobre este tema em dois ensaios. O
primeiro, "Introduction to Jung´s Mysterium Coniunctionis", é um breve ensaio, onde Edinger
busca promover um maior entendimento do "mistério da conjunção", no entanto, como o
autor mesmo assume, seria mais uma tentativa de encorajar outros suficientemente à fazer um
esforço similar.
3
No segundo ensaio, Edinger se ocupa da série de dez figuras do texto
alquímico Rosarium philosophorum, o qual Jung estudou profundamente no seu trabalho A
Psicologia da Transferência. Edinger faz uma interpretação psicológica junguiana das dez
figuras alquímicas e promove um maior entendimento do processo alquímico como um todo
assim como da seqüência dos processos inconscientes que se desenvolvem na Opus
alchymicum. Entretanto Edinger apenas comenta suscitamente os três estágios da conjunção
alquímica de Dorneus e as três fases alquímicas mal são citadas e, muito menos relacionadas
com os estágios do alquimista Dorneus. Sendo assim, uma compreensão suscinta dos três
processos gerais psíquicos necessários à união final e à unificação do homem, não se
encontrada nesta obra.
Uma última obra de Edinger, na qual ele se ocupa da problemática alquímica sob o
prisma junguiano é "The Mysterium Lectures: a journey throught C. G. Jung`s Mysterium
Coniunctionis". Neste livro, Edinger aborda, novamente a obra de Jung Mysterium
Coniunctionis, parágrafo por parágrafo, elucidando tanto os símbolos alquímicos quanto a
interpretação junguiana deles. Edinger busca uma maior amplificação da última maior obra
junguiana, devido o seu grau de dificuldade. Muitos símbolos alquímicos são estudados
profundamente. Os três estágios do alquimista Dorneus analisados por Jung também passam
pelo prisma do autor, porém Edinger não relaciona estes com as três principais fases
alquímicas.
A alquimia, ao atribuir fases aos processos alquímicos, demonstra à Psicologia
Analítica, que formas simbólicas se sucedem nestas. Consequentemente, um estudo das três
3
"...I hope that what I have to say tonight will open it up for you sufficiently to encourage you to make a similar
effort." EDINGER, E. F. The Mystery of the Coniunctio: Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner
City Books, 1994, p. 7.
11
principais fases alquímicas reunidas, as quais obedecem a seqüência nigredo, albedo e
rubedo, que promova um entendimento do processo alquímico como um todo e,
paralelamente, a relação que estes estabelecem com os três graus da Coniunctio de Dorneus,
ainda se encontra em vias de se realizar. Sendo assim, conforme o axioma alquímico "Non
fieri transitum nisi per medium" (Não ocorre a passagem a não ser por um meio), a presente
dissertação, mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos
processos alquímicos, se concentrará nos processos e implicações desta passagem, buscando
encontrar, desta maneira, um maior entendimento dos processos psíquicos que se desenrolam
no Opus alchymicum até a Conjunção final.
No primeiro capítulo, a dissertação fará uma introdução ao universo da alquimia, e
sua importância para a Psicologia Analítica. Desta maneira, a dissertação buscará retomar a
teoria junguiana em seus pressupostos mais básicos ao indicar a influência do alquimista
Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e o físico Wolfgang Pauli, em busca de uma visão
completa do mundo natural.
No segundo capítulo, tendo em vista que qualquer um que se dedique ao estudo da
alquimia, mergulha numa massa caótica de símbolos e alegorias alquímicas; a dissertação, no
intuito de evitar uma sobrecarga no próprio objeto de estudo, esboçará algumas linhas de
orientação que contribuíram para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na
Idade Média, percorrendo a alquimia chinesa-hindu, alexandrina e a árabe. Desta maneira, se
preparará assim o próprio terreno simbólico para o objeto de estudo em questão.
No terceiro capítulo, a dissertação indicará que os textos alquímicos obedeciam uma
sucessão de operações e procedimentos alquímicos descritos, pela maioria dos alquimistas,
em três fases conhecidas e necessariamente sequênciais: a nigredo, a albedo e a rubedo.
Posteriormente, a dissertação analisará, sob a ótica junguiana, os simbolismos alquímicos
relacionados com primeira fase alquímica, com o intuito de, assim, relacioná-los com o
primeiro grau da Coniunctio de Dorneus. Sendo assim, a dissertação indicará que o primeiro
grau da Coniunctio de Dorneus, em seus aspectos psíquicos, estabelece equivalência com
tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “negra”: segundo a tese,
uma unio mentallis (união mental), ou seja, um estado de superação em relação os afluxos do
corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do
inconsciente.
No quarto capítulo, a dissertação analisará, sob a ótica junguiana, os simbolismos
alquímicos relacionados com fase alquímica albedo, com o intuito de, assim, relacioná-los
com a produção da Quintessência de Dorneus. Sendo assim, a dissertação indicará que a
12
produção da Quintessência de Dorneus estabelece equivalência com tudo aquilo que culmina,
produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: segundo a tese, uma união dos opostos.
Sabe-se que a união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e
mudados em quintessência; assim também Gerardus Dorneus considera a produção da
quintessência necessária para a realização da união da unio mentalis com o corpo. Análogo
ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade
da substancia e, promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo,
esta dissertação indicará que a terceira fase, a rubedo, do ponto de vista psicológico,
corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real do indivíduo; fato este que
somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos opostos.
Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados alquímicos
concomintantemente juntas; a feminina alba e o servo rubedo formam o par tradicional do
Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do masculino. Na
concepção junguiana, o objetivo final da alquimia, a união dos contrários, na pedra,
“corresponde à individuação, à unificação do homem. Diríamos que a pedra é uma projeção
do si-mesmo unificado" (JUNG,1988, p. 161, § 264).
No quinto capítulo, a dissertação analisará a terceira etapa da Coniunctio de Dorneus,
a união com o Unus Mundus, que se tornou também objeto das representações figurativas,
como no estilo da Assunção e coroação de Maria. Mediante as representações da coroação de
Maria a alquimia prepara o caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino
da terra, do corpo e da matéria à sua Trindade física. Desta maneira, o capítulo indicará de
que forma essa discussão em torno do símbolo da quaternidade alquímica traz uma
contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico, enriquecendo neste sentido a
análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um processo em
três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta, isto é no
símbolo quaternário. Além disso, o capítulo também buscará estabelecer um paralelo para o
pensamento junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial
primordial expresso no dinamismo da vida trinitária, estabelecendo neste ponto, não só as
semelhanças nas versões que Jung e Tillich, compartilham da experiência ligadas à
integração dos opostos, como também as diferenças. Chegando assim, ao final das
considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como ápice do processo alquímico, esta
dissertação buscará contribuir para o estudo do religioso no campo simbólico, à luz da
Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.
13
Entretanto, faz-se necessário acrescentar, que esta dissertação não teve oportunidade
de acesso aos originais de Dorneus, tendo que se fiar nas citações reproduzidas nas obras de
Jung. Mesmo assim, acredita-se que este fato não chegou à oferecer impecilho, visto que,
diferentemente da unio mentalis (conjunção do espírito mais a alma) e da unio corporis
(reunião da unio mentalis com o corpo), o único trecho rico em detalhes e, por isso, mais
relevante para a compreensão dos graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, ou seja, a
produção da Quintessência, foi transcrito, quase que em sua totalidade, por Jung em
Mysterium Coniunctionis.
14
I - UNUS MUNDUS: UM REGISTRO DA INFLUÊNCIA DO ALQUIMISTA
DORNEUS NA VISÃO COMPLETA DO MUNDO NATURAL DE C. G. JUNG
I. 1 - Introdução ao universo da alquimia, e sua importância para a Psicologia Analítica
"O conceito de processo de individuação por um lado,
e a alquimia por outro, parecem muito distantes entre si e
é quase impossível para a imaginação
conceber uma ponte que os ligue"
1
Jung
Chega a parecer impossível estabelecer uma relação entre processo de individuação e
alquimia. Entretanto Carl Gustav Jung descobriu essa ligação. A frase acima no início do seu
livro Psicologia e Alquimia faz sutilmente uma confissão à sua genialidade.
2
Jung dava grande valor a todos os caminhos não racionais que, no passado, o homem
tentou explorar o mistério do inconsciente. É essa a razão do seu interesse, por exemplo, pelo
I Ching e outros jogos de tentativa de adivinhação do invisível e do futuro, como o Tarô e a
astrologia. Como cientista devoto que era, ele permanecia tempo suficiente com determinada
fase do seu trabalho, a fim de estabelecer-lhe validade empírica. Feito isso, ele era compelido
a novos estudos e a novas descobertas.
Porém, com relação à alquimia foi diferente. Jung passou seus últimos dez anos de
vida dedicando-se ao estudo desta arte "espagírica"
3
. Na alquimia ele tinha achado um campo
que valia a pena penetrar até o fundo, "ele praticamente exumou do monturo do passado, pois
era um campo esquecido e desprezado de investigação que foi assim, subitamente
ressuscitado" (VON-FRANZ, 1980, p.3) para o estudo da psique.
Von-Franz em seu livro Alquimia, assegura que o próprio Jung descobriu a alquimia
de uma forma totalmente empírica:
1
JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 17, § 1.
2
Embora a obra junguiana seja a que tenha abordado o simbolismo alquímico, do ponto de vista psicológico, à
fundo, ela não foi a pioneira neste assunto. A obra Probleme der Mystik und ihrer Symbolik (1914) escrito pelo
psicanalista Herbert Silbert (1881-1923) foi o primeiro grande estudo psicanalítico da alquimia
(HANEGRAAFF, 1998, p. 512). Com razão também H. SILBERER denominou a conjunção a “idéia central” do
processo alquímico. Segundo Jung, “este autor reconheceu corretamente o caráter simbólico por excelência da
alquimia” (JUNG, 1990, p. 210, § 320).
3
A palavra " espagírica" é formada pela união de dois radicais grecos: “spao”= separar e “ageiro”= reunir, pois
"que separa e reune".
15
... disse-me certa vez que, com freqüência deparava-se com certos temas nos sonhos
de seus pacientes que não era capaz de entender e foi, então, que um dia resolveu
consultar velhos livros sobre alquimia e percebeu uma ligação. Por exemplo, certa
paciente sonhou que uma águia estava, a princípio, voando alto no céu mas, depois,
de repente, virou a cabeça, começou a comer as próprias asas e despencou por terra.
(...) Então, um dia, ele descobriu o Manuscrito de Ripley, que dá uma série de
ilustrações do processo alquímico - publicadas, em parte, em Psicologia e Alquimia -
e onde há uma águia com cabeça de rei, que vira para trás e come as próprias asas
(VON-FRANZ, 1980, p.3).
Assim, Jung dedicou longa atenção à alquimia, pois para a Psicologia Analítica, o
simbolismo alquímico estaria mais próximo do produto inconsciente que qualquer outro
material. À favor desta idéia, Von-Franz alega que a maioria dos materiais transmitidos pelas
gerações através dos mitos, contos de fadas, e muitos outros, sofrem o crivo crítico de nossas
consciências, ou seja, o “simbolismo transmitido pela tradição, é em certa medida,
racionalizado e expurgado das grosserias do inconsciente, os pequenos detalhes que o
inconsciente lhe apõe, por vezes contradições e obscenidades" (Ibidem, p. 5). Nesta
constatação, Von-Franz oferece o exemplo de São Nicolau von der Flüe, o santo suíço que
teve a visão de uma figura peregrina e divina que avançou para ele, ostentando um manto de
pele de urso e cantando uma música de três palavras. O relato original se perdeu e apenas se
conhecia a versão de seus biógrafos, que omitiu o detalhe do manto de pele de urso. As três
palavras seriam a Trindade, o peregrino divino seria Cristo, mas quanto a pele de urso, este
detalhe foi abandonado e, só com a casual redescoberta do relato original é que passou a ser
incluído. Ao relatar este fato, instintivamente uma pergunta vem à mente: afinal de contas,
qual o significado da pele do urso? Não obtendo uma resposta, uma primeira reação seria
optar por excluir este dado, o que, ironicamente, comprovaria a tese abaixo de Von-Franz:
É isso o que acontece a experiências originais que são transmitidas a gerações
seguintes, pois é feita uma seleção e o que se ajusta ou coincide com o que já é
conhecido passa adiante, ao passo que outros detalhes tendem a ser abandonados,
porque parecem estranhos e não se sabe como lidar com eles (Ibidem, p.5).
Neste sentido, Jung encontrou na alquimia um campo no qual valia a pena se dedicar.
Ele resolveu ir à fundo nesta "arte" e descobriu que o alquimista ao se debruçar nas
experiências químicas, projetava o inconsciente na escuridão da matéria; o que ele atribuia
ser o comportamento particular do processo químico, era na verdade do seu próprio
inconsciente:
16
... Na minha opinião, o praticante tinha certas vivências psíquicas enquanto praticava
as experiências químicas no laboratório; no entanto, essas vivências se lhe
afiguravam comportamentos específicos no processo químico. Como se tratava de
projeções, naturalmente ele não sabia, no nível da consciência que a vivência nada
tinha a ver com a matéria propriamente dita (isto é, tal como hoje a conhecemos). O
alquimista vivenciava a sua projeção como uma propriedade da matéria; mas o que
vivenciava na realidade era o seu inconsciente (JUNG, 1991 [A], p.256-257, § 346).
Assim, Jung observou que o processo alquímico tomado como um todo, oferecia uma
espécie de mapa do processo de individuação, ou seja, pelo menos em sua forma e estrutura,
o conjunto de imagens e tratados alquímicos fornecia o material necessário ao estudo do
processo de individuação:
... A alquimia me prestou, pois um serviço incalculavelmente grande, ao oferecer seu
material, em cuja extensão minha experiência encontra o espaço suficiente e assim
me possibilitou descrever o processo de individuação em seus aspectos mais
importantes (JUNG, 1990, p.312, § 447).
É bastante compreensível que a alquimia tenha prestado o serviço de fornecer o
"material" necessário ao estudo do processo de individuação, partindo do princípio que a
Psicologia é uma ciência, que comparada à outras, carece de uma base fora de seu objeto.
Contra essa opinião, temos o preconceito materialista da Neuro-ciência que considera a
psique apenas um epifenômeno do processo orgânico do cérebro. Ainda que exista uma
inegável conexão entre a psique e o cérebro, para a Psicologia Profunda, este ponto de vista
não pode apresentar uma verdade exclusiva. Por exemplo, com relação aos complexos, estes
se comportam como personalidades fragmentárias inconscientes, isto é, separados da
consciência. Toda vez que estes são acionados, mudanças físicas também acontecem. Sobre
este aspecto, comenta Von-Franz, em seu livro Psique e Matéria:
... Aqui foi mostrado que Jung fez bem em não se precipitar na confirmação de
conexões com o processo cerebral , pois mais tarde se tornou claro que estes
complexos afetavam toda a esfera corpórea do que apenas o cérebro. Hoje isto é
adotado como condição. Nós podemos falar de aspectos psicossomáticos de neuroses
cardíacas, e assim por diante. Há neuroses que tipicamente afetam o funcionamento
do coração, complexos neuróticos que tipicamente afetam o funcionamento digestivo,
o funcionamento do fígado, o funcionamento da vesícula biliar. Se a psique
inconsciente parece estar conectada com o corpo, então é natural pensar que ela está
conectada com todo o corpo e não apenas especialmente com os processos no
cérebro. Em propostas mais recentes, o cérebro parece ser apenas um de uma
17
quantidade de sofisticados instrumentos, o qual é especializado em ordenar nossas
percepções do mundo exterior.
4
Embora seja bastante forte a crença de que a psique seja apenas um sistema intelectual
de conceitos lógicos; para Jung, uma vez que só temos alguma noção da matéria através de
imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos, a psique é a própria existência. Em outras
palavras, o indivíduo só estuda a psique através de seus próprios processos psíquicos.
Primeiro, em épocas remotas, a parte fundamental da vida psíquica aparentemente se situava
fora, nos objetos humanos e não humanos, achava-se projetada, por assim dizer. Com a
retirada das projeções, desenvolveu-se lentamente um conhecimento consciente. Com o
processo histórico da “des-animação” do mundo, tudo quanto se acha fora, ou seja, de caráter
divino ou demoníaco, para Jung, deve retornar à alma, ao interior do homem desconhecido,
ou seja, no confronto dialético do consciente e do inconsciente. Justamente a conciliação dos
opostos (conjunção) é um dos problemas que mais se ocupou a alquimia. Neste sentido, o
simbolismo alquímico se destaca para o psicólogo, na medida em que "há muita pouca
manifestação imediata do inconsciente, seja na história ou em qualquer lugar" (VON-
FRANZ, 1980, p.7).
É um tanto irônico que em pleno século XXI, ainda existam aqueles que apoiam a
teoria de que o inconsciente não tem base científica. Esta afirmativa se encontra no texto de
José Rodriguez Guerrero, em Exame de uma amálgama problemática: Psicologia Analítica e
Alquimia (2001), no qual o autor faz uma crítica da perspectiva junguiana em relação à
alquimia:
Como resultado, o inconsciente do indivíduo, conceito postulado originalmente por
Freud e aqui chamado “inconsciente ordinário”, dependeria para Jung, não das linhas
freudianas, senão de um elemento de grau superior: o inconsciente coletivo. Nem um
nem outro tem base científica. (...) Com respeito ao intitulado “coletivo” se trata de
um fator supostamente originado à margem do mundo sensível, supraindividual,
transcultural, não submetido a um plano espaço-temporal. Tanto este como seus
componentes virtuais, os Arquétipos, resultam assim totalmente inverificáveis.
5
4
“… Here it was shown that Jung had done well not to rush into establishing connections with processes in the
brain, for it later became clear that these complexes affect the whole bodily sphere rather than just the brain.
Today this is taken for granted. We might speak of the psychosomatic aspect of heart neuroses, and so on. There
are neuroses that typically affect the functioning of the heart, neurotic complexes that typically affect the
digestive function, the liver function, the gallbladder function. If the unconscious psyche appears to be
connected with the body, then it is natural to think that it is connect with the whole body and not just especially
with processes in the brain. In more recent views, the brain appears to be just one of a number of sophisticated
apparatuses, which is specialized in ordering our perception of external world”. VON FRANZ, Marie-Louise
Psyche and matter. Massachusetts: Ed. Shamhala Publications, 1992, p. 3.
5
“Como resultado, lo inconsciente del individuo, concepto postulado originalmente por Freud y aquí llamado
"inconsciente ordinario", dependería para Jung, no de las pautas feudianas, sino de un elemento de grado
18
O autor reitera insistentemente a tese de que a teoria junguiana se apoia em
pressupostos não demonstráveis e, se esconde por trás de uma carga subjetiva que domina
diversos procedimentos propostos. Sob tais pressupostos junguianos não demonstráveis, o
autor assegura que não existem procedimentos sistemáticos e estáveis de verificacão e
controle, como podem ser os dados concludentes no âmbito científico. Ora, essa maneira de
abordar a Psicologia nos remete à uma época, onde os fenômenos da natureza só precisavam
ser desvelados em seus movimentos "perfeitos" passíveis de mensuração e cálculo. Tendo em
vista que Jung, como cientista, sempre privou pela postura experimental de observação para
comprovar se estas podiam ser corretamente verificadas em um marco de um estudo
científico, a consideração de que o inconsciente coletivo e seus componentes “virtuais” são
totalmente inverificáveis, apresenta-se um tanto injusta. Entretanto, para quem aborda a
psique, partindo de pressupostos recionalistas e intelectualistas, não percebe que sua forma de
abordagem é desproporcional em relação ao objeto de que se ocupa.
Um argumento de Guerrero, aparentemente mais sólido, contra a concepção junguiana
com relação à alquimia, é a de que toda a essência de uma etapa básica da história das
ciências se encontra reduzida à um “simples” ato inconsciente, regido por uma série de
“utópicos” simbolos universais e intemporais. Para este argumento, Guerrero defende a idéia
de que a alquimia, como uma disciplina completa e técnica, necessita de um correto estudo e
uma especialização por parte do investigador, visto que os tratados pertencem à diferentes
períodos históricos, determinados por um esquema cultural local e não transcultural, como
supõe o sistema proposto das imagens arquetípicas. Para Guerrero, Jung, nesse sentido, estaria
se utilizando de um método anti-histórico:
De igual modo se manifesta a necessidade de abordar o estudo dos alquimistas e de
suas obras desde os modelos filosóficos que conheceram, assim como em um
contexto histórico, religioso, social e cultural dos quais surgiram. A excessiva
generalização nas conclusões é reconhecida como causa habitual de erro e, como
resposta, se adverte a importância enorme de ter presente a identidade própria de
cada texto e de cada alquimista na hora de estudá-lo, em vista da importante condição
autodidata que a aquisição do conhecimento alquímico tem tido no desenvolvimento
da história.
6
superior: el inconsciente colectivo. Ni uno ni otro tienen base científica. Del inconsciente en el individuo ya
hablamos al tratar a Freud. Respecto al tildado como "colectivo" se trata de un factor supuestamente originado al
margen del mundo sensible, supraindividual, transcultural, no sometido a un plano espacio-temporal. Tanto él
como sus componentes virtuales, los Arquetipos, resultan así totalmente inverificables.” GUERRERO, José
Rodriguez. Examén de una amalgama problemática: psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não
paginado. Texto disponível na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm.
6
“De igual modo se manifiesta la necesidad de abordar el estudio de los alquimistas y de sus obras desde los
modelos filosóficos que conocieron, así como en el contexto histórico, religioso, social y cultural del cual
surgieron. La excesiva generalización en las conclusiones es reconocida como causa habitual de error y, como
19
Refutar a afirmação acima, seria quase o mesmo que retomar toda a teoria junguiana
em seus pressupostos mais básicos; algo que inevitalmente será realizado neste capítulo ao
indicar a influência do alquimista Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e o físico
Wolfgang Pauli, em busca de uma visão completa do mundo natural. Porém, inicialmente,
nota-se que para o leigo, que não tem a possibilidade de observar de que maneira se
comportam os complexos autônomos, em geral se inclina a atribuir, em consonância com a
tendência mais comum, a origem dos conteúdos psíquicos ao mundo ambiente.
Pode-se considerar, por exemplo, como um dos maiores méritos de Jung, o de haver
reconhecido, como conteúdos arquetípicos da alma, as representações primordiais coletivas
que estão na base das diversas formas de religião. Sobre este aspecto, considera Jung:
...O ponto de vista religioso coloca obviamente a ênfase naquilo que imprime, o
impressor, ao passo que a psicologia ciêntífica enfatiza o tipo (...), o impresso, o qual
é a única coisa que ela pode apreender. O ponto de vista religioso interpreta o tipo
como algo decorrente da ação do impressor; o ponto de vista científico [da
psicologia] o interpreta como símbolo de um conteúdo desconhecido e inapreensível.
Uma vez que o tipo é menos definido, mais complexo e multifacetado do que os
pressupostos religiosos, a psicologia, com seu material empírico, é é obrigada a
expressar a forma mediante uma terminologia que independe de tempo, lugar e meio
(JUNG, 1991 [A], p.29, § 20).
Nesse sentido, na linguagem científica, o termo Si-mesmo não se refere nem a Cristo,
nem a Buda, mas à totalidade das formas que representam, e cada uma dessas formas é um
símbolo do Si-mesmo. Por mais obscuro que pareça o núcleo histórico dos fenômenos, às
exigências modernas de exatidão em relação aos fatos, não deixa de ser verdadeiro que os
efeitos psíquicos grandiosos que se prolongam através dos séculos, não surgiram sem uma
causa aparente. Contra essa concepção Jung, assegura a necessidade do distanciamento para
chegar-se à um desdobramento e à uma formulação dos conteúdos “revelados”. O
conhecimento dos fundamentos arquetípicos universais permite uma comprensao mais
profunda das representações primordiais coletivas. Segundo Jung, é muito provável que a
semelhança universal entre os processos psíquicos “se deva à uma regularidade igualmente
universal, da mesma forma pela qual o instinto que se manifesta nos indivíduos representa a
expressão parcial de uma base instintiva universal” (JUNG, 1988, p. 5, §12). O fato é que
respuesta, se advierte la importancia enorme de tener presente la identidad propia de cada texto y de cada
alquimista a la hora de estudiarlo en vista de la importante condición autodidacta que la adquisición del
conocimiento alquímico ha tenido a lo largo de la historia.” GUERRERO, José Rodriguez. Examén de una
amalgama problemática: psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não paginado. Texto disponível
na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm.
20
certas idéias ocorrem quase em toda a parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um
todo espontâneo, independente da migração e da tradição:
…Os temas arquetípicos provêm, provavelmente, daquelas criações do espírito
humano transmitidas não só por tradição e migração como também por herança. Esta
última hipótese é absolutamente necessária, pois tais imagens arquetípicas complexas
podem ser reproduzidas espontaneamente, sem qualquer possibilidade de tradição
direta (JUNG,1999 [B], p.56, § 88).
A qualidade herdada é a possibilidade formal de produzir as mesmas idéias, ou pelo
menos, idéias semelhantes. Enquanto para um historiador, o raciocínio instintivo seria
argumentar que, para realizar uma pesquisa comparativa, seria preciso entender como foram
escritos os textos, a psicologia analítica foca a atenção no que foi impresso, nas
representações primordiais coletivas que independem de tempo, lugar e meio. No entanto,
parece que estes conceitos básicos da teoria junguiana não estão claros até mesmo para
analistas junguianos. Este é o caso do alemão Wolfgang Giegerich, que publicou um artigo
referente à ontogenia e à filogenia sob o título Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da
Psicologia Analítica de Erich Neumann.
Erich Neumann, discípulo e colaborador de C. G. Jung, em sua obra mais famosa
História da origem da consciência, apresenta um grande esquema do desenvolvimento
psíquico, da humanidade e do indivíduo, baseado na relação entre a psicologia e a mitologia,
cujo o próprio prefácio foi elaborado de maneira extremamente positiva pelo próprio Jung.
Este chega admitir que as conclusões e percepções de Neumann “estão entre as mais
importantes já alcançadas nesse domínio” (JUNG, p. 11. In: NEUNMANN, 2003).
Com relação ao artigo, a questão fundamental, que diretamente deprecia a obra de
Neumann é: “há na história cultural uma ‘seqüência regular’ de estágios desenvolvimento da
consciencia?”
7
Segundo o autor, com algum grau de certeza, a história necessariamente e, de
forma não ambígua, não conduziu do matriarcado ao patriarcado, do uroboros através da
separação dos pais primal e do esforço do herói à transformação.
A confusão do autor está no fato de desprezar que, para a Psicologia Analítica, o que
se transmite de geração a geração desde os primórdios é a tendência da psique em formar
representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico, mas extremamente
variáveis em seus detalhes. Esse fenômeno origina um inesgotável universo de formas míticas
7
“Is there in cultural history a "regular sequence" [3] of developmental stages of consciousness?” GIEGERICH,
Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975).
Acesso em: http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm .Versão original GIEGERICH, Wolfgang. SPRING - um
anuário da psicologia arquetípica e do Pensamento Junguiano. Dallas: Spring Publications,1975, p.110-129.
21
fundadas sobre umas poucas configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie
humana. Isso explica, ironicamente, o argumento usado por Giegerich, ou seja, ser possível
encontrar desenvolvido um mito do sol-herói, integrado inteiramente na vida ritual entre as
culturas antigas e primitivas. Inversamente, todos os períodos posteriores no desenvolvimento
cultural de civilizações individuais e da humanidade têm naturalmente seus mitos de criação
8
.
O fato é que os mitos da criação não estão presentes somente nas culturas supostamente de
idades antigas, mas podem estar presentes no tema de um sonho do homem do século XXI.
Como o próprio Jung assegura no prefácio de sua obra mais importante Mysterium
Coniunctionis:
... Propriamente qualquer um estranhará com razão na primeira vez quando certas
formas simbólicas do antigo Egito são colocadas em íntimo relacionamento com
conteúdos modernos da religião popular da Índia e também com o material onírico
tirado de sonhos de um europeu que nada suspeita. O que parece difícil para um
historiador e o filólogo não representa obstáculo para o médico. (...) Se ele for
psiquiatra, então nem se admirará com a semelhança fundamental dos conteúdos
psicóticos, quer provenham da Idade Média ou da Contemporânea, da Europa ou da
Austrália, dos indianos ou dos americanos. Os processos fundamentais são de
natureza instintiva, e por isso universais e extremamente conservativos. O pássaro
tecelão constrói o ninho de sua maneira característiva, pouco importanto onde se
encontre; e, como não há razão para supor-se que há 3.000 anos tenha construído
ninho diferente, também não há nenhuma probabilidadede que ele altere seu estilo
nos próximos milênios (JUNG, 1997, p.XVII).
Da mesma forma, os mitos não apareceram na história precedidos e seguidos por
outros mitos, estabelecendo uma seqüência exata de imagens míticas análogas aos estágios
arquetípicos da consciência. Por isso, novamente, podemos citar Giegerich quando afirma,
embora de modo depreciativo, que Neumann não mostra que o mito da criação precede o mito
do herói ou, que o último, está seguido pelo mito da transformação; ou seja, “historicamente
falando, qualquer mito pode ocorrer em qualquer altura.”
9
A razão profunda dessa
“desordem” é sem dúvida “a ‘intemporalidade’ do inconsciente, uma vez que a ordem
sequencial consciente é coexistência e simultaneidade no inconsciente”
10
.
8
“For how then would it be possible to find, even among primitives (among whom according to Neumann "the
earliest stages of man's psychology" prevail), full-fledged hero-myths, that is to say myths presupposing a
considerably developed consciousness, according to the System in question? (...) Conversely, all late periods in
the cultural development both of individual civilizations and of mankind naturally have their creation myths,
which allegedly correspond to early ages.” GIEGERICH, Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica
fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975). Acesso em:
http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm.
9
“Neumann does not show that the creation myth precedes the hero myth or that the latter is followed by the
transformation myth.(…), historically speaking, any mytheme may occur at any time” Loc. cit.
10
JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p.124,§ 468, nota
10.
22
A psicologia enquanto ciência empírica não vai além da possibilidade de constatar, à
base de uma pesquisa comparativa, a produção espontânea do inconsciente e,
consequentemente, a existência de certos símbolos psíquicos e, em última instância, de
padrões arquetípicos. O fato de diferentes arquétipos poderem ser identificados pela
psicologia do inconsciente, demonstra que existe um processo de desenvolvimento da
consciência, que de modo algum é linear. Mesmo o processo de individuação, só pode
estabelecer um esquema típico da sequência de fases, de modo genérico. A experiência é
constituída, na prática, de numerosos casos individuais que representam todas as variantes
possíveis, do mesmo tema fundamental. Sendo assim, constata-se uma ordem totalmente
arbitrária no que diz respeito à sucessão dos diversos estados, apesar de uma concordância
geral acerca dos princípios fundamentais. Por isso, uma descrição condensada deste só é
possível de maneira esquemática. Como Edinger assegura:
... o processo de alternância entre a união ego-Si-mesmo e a separação ego-Simesmo
parece ocorrer de forma contínua ao longo da vida do indivíduo, tanto na infância
quanto na maturidade. Na verdade esta fórmula cíclica (ou melhor, em forma de
espiral) parece exprimir o processo básico de desenvolvimento psicológico do
nascimento à morte (EDINGER, 2000, p. 24).
Trata-se do sistema de auto-regulação da psique humana. Logicamente uma redução
deste sistema à dados históricos e personalisticos é cientificamente impossível. Desta maneira
novamente, podemos citar Giegerich quando afirma que “a consciência matriarcal e patriarcal
não pode ser mostrada sucedendo na história com o regularidade de uma lei”
11
. Mas,
inadvertidamente, Giegerich peca quando faz a afirmação logo abaixo:
... se a fase uroborica, a separação dos pais do mundo, etc., são significados como
estritamente simbólicos, isto também significaria que as fases e os estágios em si
mesmos, e certamente a noção inteira da evolução e a filogenia no geral, deve do
mesmo modo ser tomados simbolicamente e não como uma passagem remetendo aos
processos históricos.
12
Um dos tipos mais comuns de falácia, trata-se de alterar convenientemente o
argumento a ser combatido, de forma a torná-lo tão indesejável ou, ilógico, quanto possível. O
autor faz nesta afirmação uma confusão com relação à maneira científica da Psicologia
11
“So, too, matriarchal and patriarchal consciousness cannot be shown to ensue in history with the regularity of a
law.” Loc. cit.
12
“Moreover, if the uroboric phase, matriarchy, the separation of the world parents, etc., are meant as strictly
symbolic, this would also mean that the phases and stages themselves, indeed the entire notion of evolution and
phylogeny in general, are likewise to be taken symbolically and not as in any way referring to historical
processes.” Loc. cit.
23
exercer sua função. Sabe-se que nada há de espantoso no fato de o inconsciente aparecer
projetado e simbolizado, pois, de outra forma, nem poderia ele ser percebido. Sendo assim,
somente através da identificação e análise do simbolo, que a Psicologia tem condição de
identificar em que direção aponta a libido. Posteriormente, tal tipo poderá comprovadamente
ser um tendência da psique (libido-energia psíquica) à formar específicas representações
simbólicas; identificando-se aí o padrão arquétipico por detrás destas. Somente, neste sentido,
o psicólogo tem condições de identificar diferentes tendências psíquicas. Tais tendências não
são simbólicas. Podemos descrevê-lo em linguagem racional e científica, mas nem de longe
exprimiríamos seu caráter vital. Pelo contrário, são a mais alta voz da natureza no homem. O
fato é que se subestima tanto a dependência da consciência ao inconsciente que se chega à
considerar a influência deste como apenas “simbólica”. De qualquer forma, Giegerich
considera que “a mera tentativa de procurar na história por correspondências aos padrões
mitológicos que Neumann estabelece, pode já ser considerada redutível”
13
. Claramente ao
qualificar o método de Neumann como “redutivo”, o autor remete ao "reducionismo", que
nas últimas décadas, adquiriu o status de termo de baixo calão, em certos meios acadêmicos.
Entretanto, o reducionismo é analítico e, reciprocamente, qualquer análise que mereça este
nome é uma instância do reducionismo. Na prática, utilizamos este método para quase tudo,
não somente nos domínios do intelecto. O próprio sentido humano da visão funciona por
reducionismo. A imagem é processada em diversas camadas de células, de tal forma, que
diversos aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Também o sentido humano da
audição baseia-se em uma decomposição espectral, que decompõe (analisa) os sons em suas
diversas freqüências. De maneira semelhante, este é o modo pelo qual a Psicologia Analítica
funciona. Como é humanamente impossível obter uma imagem completa da psique, visto que
o único instrumento que dispomos para analizar o objeto é a própria psique, tratamos de
decompôr e analisar as suas projeções, isto é, a aparência de objeto, de tal forma que diversos
aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Isso possibilita a constatação da tendência
da psique em formar representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico e,
consequentemente, o estabelecimento de padrões arquetípicos no desenvolvimento da
consciência. Nesse sentido, a Psicologia Analítica, à medida em que amplia o seu
conhecimento científico em relação à psique, acrescentando uma ampliação psicológica de
13
“…the mere attempt to search history for correspondences to the mythological patterns Neumann establishes
might already be considered reductive.” Loc. cit.
24
âmbito maior em relação às ampliações simbólicas, produz, simultaneamente, a ampliação da
consciência da própria humanidade em relação à uma única e abrangente psique.
Por outro lado, afirmar que Giegerich possa estar sendo reducionista, na citação acima,
se configura bastante acertado. Giegerich reduz o conceito de arquétipo à um padrão
mitológico, enquanto que, as representações simbólicas que afloram na psique não se reduzem
apenas aos mitos. Além disso, certamente, as imagens arquetípicas que afloram com tanta
frequência nos produtos do inconsciente, tem seus predecessores na História, sendo possível
assim identificar as configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie humana.
Entretanto, os simbolos que afloram nestes processos históricos remetem à transições
psicológicas e não à transições simbólicas, como assegura Giegerich. Esta é a razão de Jung,
por exemplo, escrever sua obra AION, estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Nesta obra,
Jung procura ilustrar a transformação da situação psíquica operada no interior do “éon
cristão”, recorrendo aos símbolos cristãos, gnósticos e alquimistas do Si-mesmo.
De qualquer maneira esta discussão se mostra necessária na presente tese, visto que
esta dissertação analisa, sob a ótica junguiana, simbolismos alquímicos presentes nas fases
alquímicas. Certamente, a alquimia, ao atribuir fases aos processos alquímicos, demonstra à
Psicologia Analítica, que formas simbólicas se sucedem nestas fases, estabelecendo um
modelo, tanto para os processos alquímicos, como para os processos psicológicos necessários
à uma Coniunctio. O Rosarium philosophorum
14
, por exemplo, por causa do seu
entrelaçamento físico-espiritual, era do interesse particular de Jung. Aliás, Jung talvez tenha
citado este em seus escritos sobre a alquimia mais do que qualquer outro texto. Especialmente
em sua obra Psicologia da Transferência, Jung analisa o conteúdo simbólico presente na série
das gravuras do Rosarium philosophorum e demonstra de que maneira estes simbolismos
alquímicos remetem à processos psíquicos no processo de individuação. Jung, entretanto,
chama a atenção para o fato de que o leitor possa cair no erro de achar que o desenvolvimento
do processo, tal como é descrito na obra, represente o esquema geral do fenômeno. Sendo
14
O Rosarium philosophorum foi imprimido originalmente como a parte II do De Alchemia Opuscula complura
veterum philosophorum...Frankfurt, 1550. Também foi publicado no segundo volume da coleção de textos
alquímicos de diversos autores Artis Auriferae (1593). O Rosarium contém uma série de 20 gravuras: “O texto é
dividido nas seções associadas com estas vinte ilustrações. Estas seções introduzem as idéias que surgem do
conteúdo simbólico das gravuras, as quais tecem estas observações com várias citações de sábias autoridades na
alquimia, frequentemente usando trechos longos de outros escritores da alquimia. Assim o Rosarium é um
recolhimento do material dentro de uma determinada estrutura, ao invés de ser inteiramente um enunciado
original de idéias da alquimia” (MCLEAN, Adam. A Commentary on the Rosarium philosophorum. Texto
disponível na internet: http://www.alchemywebsite.com/roscom.html). O Rosarium, por causa do seu
entrelaçamento físico-espiritual, era do interesse particular de Jung, Entretanto, em Psicologia da Transferência
Jung mostra somente 11 das 20 ilustrações.Talvez Jung não tenha tido acesso à uma edição completa do livro,
pois como frequentemente ocorre no decorrer dos séculos, algumas destas ilustrações podem ter sido removidas
na sua cópia.
25
assim, Jung alerta para que o empreendimento deva ser considerado como uma simples
tentativa, o qual ele próprio não gostaria de conferir caráter conclusivo:
Nós nos movemos aqui no campo de singularidades individuais, que não se prestam à
comparação. O que podemos, sem dúvida, é por um pouco de ordem nesse processo,
mediante a ajuda de certas categorias suficientemente amplas. Podemos descrevê-lo
ou pelo menos esboçá-lo por meio de analogias apropriadas; sua essência profunda,
porém é a singularidade da experiência individual, que ninguém pode captar de fora,
mas na qual está envolvido aquele que a experiencia. A série de gravuras que nos
serviu de fio de Ariadne é uma dentre muitas. (...) Mas nenhum desses esquemas
seria capaz de exprimir totalmente a multiplicidade infinita das variações individuais,
que, todas, têm a sua razão de ser. (...) A importância prática do fenômeno, porém, é
de tal ordem, que a tentativa se justifica, por mais que sua imperfeição possa dar
margem a desentendimentos [sem grifo no original] (JUNG, 1999[C], p.186, § 538).
Sendo assim, o estabelecimento de uma ordem lógica, ou mesmo a simples
possibilidade de ordenação, não nos diz que uma coisa seja assim ou assim; apenas ilustra um
determinado modo de observação. Este dado é particularmente importante com relação à
alquimia, a medida que, o que se atribuía à transformação misteriosa da matéria, se tratava na
realidade de projeções psíquicas. Como se sabe, não é o sujeito que projeta, mas o
inconsciente. Sendo assim, há anteriormente um fator ordenador para tais projeções, que são
arquetípicas. Claro que então, como é evidente, só se pode conceber uma causa no espaço e
no tempo e, por falta de uma causa demonstrável, caimos na tentação de postular uma causa
transcendental. Entretanto, segundo Jung:
... uma “causa” só pode ser uma entidade demonstrável. Uma causa “transcendental”
é uma contradictio in adiecto [uma contradição nos termos], porque o que é
trancendental por definição não pode ser demonstrado. (JUNG, 2002 [A], p. 23, §
856).
Se associarmos os arquétipos ao contingente, este último assume o aspecto específico
de uma modalidade que, segundo Jung, “tem o significado funcional de um fator constitutivo
de mundo. O arquétipo representa a probabilidade psíquica, porque retrata os acontecimentos
ordinários e instintivos em uma espécie de tipos” (JUNG, 2002 [A], p.80, § 954). O problema,
uma vez que os arquétipos constelam-se na psique, poder-se-ia pensá-los apenas em termos
psíquicos. Esta questão, fundamental da teoria junguiana, remete à série de correspondências
entre Jung e o físico Wolfgang Pauli, algo que inevitalmente será realizado neste capítulo ao
indicar a influência do alquimista Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e Pauli, em busca
de uma visão completa do mundo natural.
26
Inicialmente, entretanto, pode-se considerar que, o fato de se poder identificar uma
modificação na consciência e, um conseqüente desenvolvimento da consciência pela
psicologia do inconsciente, demonstra que existe um processo intencional de diferenciação
psicológica, que tem como fim o afastamento do indivíduo da base coletiva. Isso de modo
algum estabelece uma meta para o desenvolvimento psíquico; os processos podem possuir um
caráter proposital, sem ter a ver com uma meta pré-concebida. A teoria junguiana considera
que a libido, como energia vital num sentido amplo, tem como finalidade principal o
desenvolvimento da vida, nos seus aspectos mais fundamentais, como a sobrevivência e a
reprodução. Mas, quando tais exigências básicas estão satisfeitas, a energia em excesso pode
ser reinvestida em outras atividades, como as produtivas e culturais. Esta transposição da
energia da libido não é realizada simplesmente, por meio de um ato de vontade e livre arbítrio
do eu, mas à autonomia das projeções arquetípicas:
... São fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e por isso podemos
atribuir-lhes uma certa autonomia. Pela mesma razão, devemos considerá-los não só
como objetos em si, mas como sujeitos dotados de leis próprias. Podemos,
naturalmente descrevê-los e até certo ponto interpretá-los como objetos, sob o ponto
de vista da consciência (...).Entretanto, se levarmos em conta esta autonomia, as
representações a que nos referimos devem ser tratadas como sujeitos, ou seja,
devemos reconhecer seu caráter espontâneo e também a sua intencionalidade, i. É,
uma espécie de consciência e de “liber arbitrum” [livre arbítrio] (JUNG, 2001, p. 5, §
557).
Depois de uma fase de gestação, produz-se, ao nível do inconsciente, um símbolo que
é capaz de atrair a libido, desviando-a da sua direção própria. Primeiro, em épocas remotas, a
parte fundamental da vida psíquica aparentemente se situava fora, nos objetos humanos e não
humanos, achava-se projetada, por assim dizer. Ao longo da historia, a atividade ritual
conseguiu deslocar uma parte da energia vital do seu caminho instintivo, afastando assim o
homem do estado animal e, desenvolvendo as dimensões que conhecemos como consciência e
vontade. O posicionamento consciente e superior à esfera turbulenta do corpo corresponde ao
processo em si positivo da emancipação da consciência diante da supremacia do inconsciente.
Mas isto apenas representa, alertou Jung, um sucesso precário, sendo estas faculdades muito
menos potentes do que costumamos pensar: os seres humanos continuam a ter uma grande
necessidade do poder transformador do símbolo:
... Uma das tarefas mais importantes da higiene mental consiste em prestar
continuamente uma certa atenção à sintomatologia dos conteúdos e processos
inconscientes, uma vez que a consciência está continuamente exposta ao risco da
27
unilateridade (...). Quanto mais civilizado, mais consciente e complicado for o
homem, tanto menos ele será capaz de obedecer aos instintos. As complicadas
situações de sua vida e as influências do meio ambiente se fazem sentir de maneira
tão forte, que abafam a débil voz da natureza. Esta é substituída então por opiniões e
crenças, teorias, e tendências coletivas que reforçam os desvios da consciência. Em
tais casos é necessário que a atenção se volte, intencionalmente, para o inconsciente.
Por isso é de particular importância que não se pense nos arquétipos como imagens
fantásticas que passam rápidas e fugidias, mas como fatores permanentes e
autônomos, coisas que o são na realidade (JUNG, 1988, p. 18-19, § 40).
Uma vez que a consciência está continuamente exposta ao risco da unilateridade, a
função complementar ou compensadora do inconsciente faz, porém, com que estes perigos
possam ser evitados até certo ponto. Aparentemente, no entanto um movimento capaz de
alterar o processo e deslocar uma parte da energia vital em direção às necessidades instintivas
e inconscientes, se configura um dilema para o homem moderno. Destituídos da psique
primitiva, já não se percebe qualquer vestígio de uma certa magia em nada que se diz respeito
ao seu dia a dia. Entretanto, esta postura, comparada à do passado antigo, proporcionou uma
maneira produtiva e eficaz de lidar com a realidade. O homem primitivo nunca buscou refletir
a respeito de seus atos, “a verdade é que os homens do passado não pensavam nos seus
símbolos. Viviam-nos, e eram inconscientemente estimulados pelo seu significado” (JUNG,
1964, p. 81). Sendo assim, ganha-se ou perde-se em relação ao passado?
A resposta é que, com relação ao tratamento da realidade externa, é completamente
errôneo aplicar esse modo primitivo; mas é a abordagem correta para lidar com o
inconsciente. Para Edinger:
...precisamos aprender a incorporar categorias primitivas da experiência à nossa visão
de mundo sem negar ou prejudicar as categorias conscientes, de carácter científico,
de espaço, tempo e causalidade. Devemos aprender a aplicar os modos primitivos de
experiência de forma psicológica, ao mundo interno, e não fisicamente, em nossas
relações com o mundo externo. A atitude primitiva em nossa relação com o mundo
externo é sinônimo de superstição, mas ser primitivo com relação ao mundo interno é
sinônimo de sabedoria (EDINGER, 2000, p. 147).
Com o processo histórico da “des-animação” do mundo, tudo quanto se acha fora, ou
seja, de caráter divino ou demoníaco, para Jung, deve retornar à alma, ao interior do homem
desconhecido, ou seja, no confronto dialético do consciente e do inconsciente. Justamente a
conciliação dos opostos (conjunção) é um dos problemas que mais se ocupou a alquimia.
Sobre este aspecto, considera Jung:
28
... A imagem da “coniunctio” deve sem dúvida ser contemplada sob este aspecto: a
união no plano biológico, como símbolo da “unio oppositorum” (união dos opostos)
em seu sentido mais elevado. É o mesmo que declarar, por um lado, que a união dos
opostos é tão essencial para a arte régia, quanto a coabitação para a razão comum, e
por outro, que o “opus” é uma analogia da natureza, o que faz com que a energia do
instinto se desloque, pelo menos em parte para uma atividade simbólica. A criação de
tais analogias libera o instinto e toda a esfera biológica da pressão de conteúdos
inconscientes. A ausência do símbolo, porém, sobrecarrega a esfera do instinto
(JUNG, 1999[C], p. 118, § 460).
Alguns alquimistas pressentiram que o que estavam em busca era algo mais que o
"ouro vulgar". O alquimista Gerardus Dorneus, que será especificamente abordado neste
trabalho, era um deles. Dorneus foi um alquimista paracelsiano do final do século XVI, que
exclamava: "Transformai-vos de pedras mortas em pedras filosofais vivas"
15
, exprimindo,
segundo Jung, "claramente a identidade daquilo que está no homem com aquilo que está
escondido na matéria" (JUNG, 1991[A], p.281, § 378). O Alquimista Gerardus Dorneus foi
daqueles que mais se ocupou com a problemática da Conjunção. Para este alquimista no
tratado intitulado A Filosofia meditativa, a Conjunção Alquímica, em especial, foi descrita e
subdividida em três graus, que podem ser entendidos como três etapas necessárias à uma
"Conjunção perfeita".
I. 2. Os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus
Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da Coniunctio: espírito, alma e
corpo. Resumidamente no primeiro grau da Coniunctio, tem-se a unio mentalis, que
corresponde a união (conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir
a unio mentalis com o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio ocorre a conjunção
completa, a saber, a união com o unus mundus (mundo uno).
Inicialmente é necessário advertir que os conceitos espírito, nous (espírito do universo)
e pneuma são utilizados de maneira promíscua no sincretismo. O significado mais antigo de
pneuma é vento, sopro, logo um fenômeno aéreo; daí a equivalência do ar e pneuma
16
.
Segundo Jung:
15
DORNEUS, Gerardus. Theatrum Chemicum, I, 1602, p.267. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio
de Janeiro: Vozes, 1991, p.281, § 378.
16
Anaxímenes de Mileto, terceiro e último filósofo da escola jônica antiga, propõe o ar como elemento
fundamental da natureza, a partir de cuja a complexificação se formam todas as coisas. Embora pouco se saiba
sobre a sua vida, ele é contudo citado com frequência para dizer que foi sua a proposição do ar como elemento
básico na formação de tudo.
29
...Pneuma, como também spiritus, significa originariamente "ar em movimento"
(vento), por isso a designação como "ar" parece arcaica ou então intencionalmente
física. Mas na realidade pneuma deve ser tomado na significação de espírito (...)
(JUNG, 1997, p.131, § 156).
O termo "nous" foi usado pelos primeiros Filósofos. Anaxágoras (c. 500 - 428 a.C.),
nativo de Clazomene, filósofo grego pré-socrático da escola jônica nova, caracterizou-se por
ter concebido todas as coisas da natureza por um número indefinido de pequenas partículas
homogêneas invariáveis, a que chamou espermas. Dotou uma destas partículas de
inteligência (Nous) a qual é ordenadora de tudo. O Nous, na filosofia de Anaxágoras ainda
que signifique Inteligência, é também força motriz, todavia com ação racional.
Dadas as circunstâncias em que Nous foi usado, tem-se preferido não traduzir o
termo, citando-o simplesmente no original grego.O nous para designar a mente superior é
facilmente confundido com a função intelectual, de modo que se faz necessário esclarecer
que se trata antes do spiritus rector, o espírito que rege e orienta. Entretanto alerta Jung:
Em muitas passagens é incerto se spiritus (ou esprit, tal como BERTHELOT traduziu
do árabe) significa espírito no sentido abstrato da palavra. Isto ocorre com alguma
certeza em DORNEO (séc. XVI), pois este diz que Mercurius possui em si mesmo a
qualidade de um espírito incorruptível, semelhante à alma; por sua incorruptibilidade
é designado intellectualis (pertencente portanto ao mundo intelligibilis!) (JUNG,
2003, p. 210, § 264).
Dorneus entende por espírito todas as capacidades morais mais elevadas, como
inteligência, conhecimento e decisão moral. Para Dorneus, o espírito confere à alma certo
influxo divino e o conhecimento de uma ordem superior do mundo.
Alma (anima) como corpo sutil significa algo de imaterial ou “mais sutil” do que o ar.
Sua qualidade essencial é a de vivificar e de ser viva. Por isso é apreciável sua representação
como princípio de vida. Segundo Jung, este fato:
…corresponde a uma distinção que se fazia, na Idade Média, entre “corpus” (corpo) e
“spiramen” (respiração); o que se entendia por “spiramen” Era muito mais que um
simples “sopro”. O que se designava desse modo era a anima, que é uma espécie de
sopro (…). Tal sopro é, antes de mais nada, uma atividade do corpo, entendida porém
como realidade autônoma, e constituindo uma substância (ou hipóstase) paralela ao
corpo. Com isto se queria dizer que o corpo vive, sendo a vida representada como
uma entidade autônoma associada, ou seja, como uma alma independente do corpo
(JUNG, 1999 [A], p. 20, § 197).
A oposição entre espírito e a alma provêm da subtilidade material desta última. Ela
está mais próxima do corpo (physis) e é mais densa e grosseira do que o espírito:
30
Conforme antiga tradição, a alma anima o corpo, como ela por sua parte é animada
pelo espírito. Ela tende para o corpo e para tudo o que é corpóreo, sensível
emocional. Ela está aprisionada "nas cadeias" da Physis (natureza) e almeja "praeter
physicam necessitatem", isto é, para além da necessidade física (JUNG, 1990, p.228,
§ 338).
Muito também se tem confundido as acepções em torno do conceito de alma.
Considerem alma, anima e psique sinônimos, característico da visão magico-alquímica na
concepção junguiana. Neste sentido, muitas são as associações em torno do objeto primeiro
da psicologia, alguns aproximam o termo alma ao espírito (como ocorreu com as primeiras
interpretações de Platão) ou outros, influenciados pela psicologia que valoriza cérebro como
o principal instrumento, atribuem à alma mais uma conotação materialista (como ocorreu
com as interpretações do trabalho de Aristóteles). Sobre esta segunda vertente, critica Jung:
A história impiedosamente recuperou o que o compromisso alquímico havia deixado
sem terminar: inesperadamente o homem físico passou para o primeiro plano e se
apossou da natureza em uma medida imprevisível. Juntamente com ele também a sua
alma empírica se tornou consciente, ao ter-se libertado do cerco do espírito e ao ter
tomado uma forma de tal modo concreta que os traços individuais dela até se tornam
objeto de observação clínica. Há muito tempo ela já não é um princípio vital ou
qualquer outra abstração filosófica, mas até se tornou suspeita de ser apenas um
epifenômeno da química cerebral. Também já não é o espírito que lhe dá vida, antes
até se suspeita que o espírito deva sua existência essencialmente à atividade psíquica
( JUNG, 1990, p.301, § 430).
Aproximados, assim, as categorias de espírito, e alma das suas acepções,
respectivamente, nous, pneuma e anima, psique; passamos para a última categoria: corpo.
Por corpo compreende-se physis, elemento, substância, ou seja, relacionado à natureza.
I. 3 Sobre a influência de Dorneus nas correspondências Jung-Pauli
Em Mysterium Coniunctionis, os "três graus" da conjunção na visão de Dorneus são
minuciosamente estudados por Jung. Paralelamente à esta fase, Jung estava envolto em uma
série de correspondências com o físico Wolfgang Pauli. Estas correspondências se
estenderam de 1932 a 1953, as quais estão atualmente documentadas e editadas em
"Wolfgang Pauli y Carl G. Jung : un intercambio epistolar - 1932- 1958"( Carl A. Meir).
17
17
C. A. Meier (1905-1995), psiquiatra e psicoterapeuta, conheceu na intimidade os intercâmbios ocorridos entre
Pauli e Jung, tendo também participado ativamente com a elaboração de seus próprios trabalhos e reflexões a
respeito. Foi co-fundado do Instituto C. G. Jung, em Zurique, e também ocupou a cadeira, na qualidade de
sucessor de Jung, de Profesor Honorário de Psicologia no Instituto Federal Suiço. A obra em questão foi
31
Pauli e Jung buscavam uma visão mais completa do mundo natural, que fosse
proporcionada por um alargamento dos horizontes epistemológicos. Assim, defendia-se uma
mudança na linha demarcatória entre o que deve estar ao alcance do nosso conhecimento
(físico, concreto, apreensível) e o que não está ao nosso alcance (metafísico, irrepresentável).
Segundo César Rey Xavier, autor da dissertação de mestrado (2001) "Encontros e permutas
entre dois pensadores- um estudo sobre as correspondências entre Wolfgang Pauli e Carl
Gustav Jung", na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
18
:
... Muitos são os indicadores de que os estudos e pesquisas que Jung vinha
efetuando, especialmente na confecção de seu de seu “Mysterium Coniunctionis”,
paralelamente àquela fase das cartas, tenham-lhe dado um forte respaldo para suas
novas, e, de início, desconcertantes assertivas para a psique. (XAVIER, 2001, p.175)
Coincidentemente, neste período, o estudo dos tratados alquímicos estava por detrás
dos bastidores daquelas discussões. Neste universo alquímico abordava-se incessantemente o
valor anímico nos mistérios da matéria. Escreve Jung:
... O "espírito do mundo" (...) para a Alquimia da primeira metade do século XVII
porquanto, ao que sabemos, a expressão usada preferencialmente era a "anima
mundi" (...) o espírito do mundo, constitui uma projeção do inconsciente, porque não
se encontra um método ou uma aparelhagem capazes de proporcionar uma
experiência objetiva deste gênero, e consequentemente, de oferecer uma prova da
existência objetiva de uma animação do mundo [sem grifo no original] (JUNG,1988,
p.133, § 219).
Nestas novas considerações sobre a visão completa do mundo natural, as três
categorias da Coniunctio de Dorneus reaparecem, quando em meio à díade física-psicologia
(matéria-psique) nas cartas de 50 entre Pauli e Jung, ocorre a inclusão, de um terceiro fator, a
saber, o espírito:
MATÉRIA PSIQUE ESPÍRITO
A psique enquanto representante da Psicologia no esquema interdisciplinar
psicofísico, que até então ocupava uma posição de "igual para igual" perante a matéria, ou
seja, eram, ambas, pólos extremos de um único eixo, a partir daí então ocuparia uma posição
publicada primeiramente em alemão, no ano de 1992, pela Springer-Verlag. Em 1996, a Alianza Editorial
publicou a compilação de Carl A. Meier traduzindo-a para o espanhol.
18
Esta dissertação foi publicada sob o título “A permuta dos sábios: estudo entre as correspondências entre Jung
e Pauli” pela editora Annablume no ano de 2003.
32
de mediadora entre matéria e espírito, estes sim passando a representar uma legítima
oposição. Para Xavier, “a situação da psique como mediadora reproduz fielmente o
significado que esta ambivalência tinha para muitos alquimistas, entre eles o já citado
Dorneus” (XAVIER, 2001, p. 175). No trecho abaixo Jung discorre sobre o elemento
espiritual em posição de "igual para igual" perante a matéria:
Quanto ao espírito (pneuma), gostaria de dizer que espírito e matéria são um par de
conceitos opostos que designa apenas o aspecto bipolar da observação no tempo e no
espaço. Nada sabemos de sua substância. O espírito é tão ideal quanto a matéria. São
meros postulados da razão. Por isso falo de conteúdos psíquicos dos quais são
rotulados de espirituais (pneumáticos) e outros de "materiais". (JUNG, 2002 [B],
p.25)
Para Jung, não sabemos realmente a ontologia dos reinos material e espiritual, a partir
do momento que o único instrumento que dispomos (psique) transforma tudo em psíquico:
Todas essas afirmações concernentes ao aspecto material, ou bem espiritual, da
psique, ou à existência própria dos objetos possuem um importante valor heurístico
que eu de nenhum modo menosprezo. A psique é certamente nosso único instrumento
de conhecimento e, portanto, indispensável para qualquer concreção. Porém, os
objetos de seu conhecimento são psíquicos somente em uma parcela ínfima.
Representa-se, de fato, todos os objetos em e por meio da psique, se bem que aqueles
não são integrados substancialmente nesta e assim preservam sua existência (JUNG,
p.162. In: MEIER, 1996)
A medida que os reinos material e espiritual só possuem sua existência na
representabilidade de nossa psique, e por isso essa representabilidade é convertida em algo
psíquico, significa que a real substância destes reinos nos é desconhecida. Deste modo, a
ontologia dos reinos material e espiritual pertenceria ao reino não concretável,
irrepresentável.:
...devemos verificar que matéria e espírito são dois conceitos diferentes que designam
coisas antagônicas e que, enquanto sejam representações de distinta procedência, são
psíquicos [...] Porquanto a psique represente às duas entidades metafísica , quer dizer,
não diretamente concretáveis, como conceitos, une a estas duas entidades antagônicas
ao dotá-las de uma forma de existência psíquica e elevá-las deste modo à consciência
(JUNG, p.160 In: MEIER, 1996)
Neste sentido, a ontologia dos reinos material e espiritual faria parte do reino não
concretável. Este reino não concretável, irrepresentável, segundo as próprias denominações
transcorridas entre Jung e Pauli, apenas poderia ser apreendido pela psique, visto que ela se
33
caracteriza como o único instrumento legítimo de conhecimento através da consciência, ou
seja, através da sua capacidade de representar ou tornar concretáveis as coisas dos reinos
material e espiritual:
... A experiência psíquica tem duas fontes: o mundo externo e o inconsciente. Toda
experiência direta é psíquica. Há experiência fisicamente transmitida (mundo
exterior) e a experiência interiormente transmitida (espiritual). Uma é tão válida
quanto a outra. (JUNG, 2002 [B], p.180)
Para Jung, o fato de que tudo passa pelo psíquico, confere à psique aquela situação
mediadora em meio ao espírito e à matéria; é nela que os reinos se encontram, ou seja, é
através da psique que se tornam possíveis as representações dos reinos espiritual e material,
pois, caso contrário, suas ontologias não teriam qualquer efeito sobre nosso conhecimento,
uma vez que não teriam como se expressar:
Para mim a psique é um fenômeno quase infinito. Não tenho a mínima idéia do que
ela é em si, e sei apenas muito vagamente o que ela não é. Também só sei em grau
limitado o que é individual e o que é geral na psique. Parece-me um sistema de
relações que, por assim dizer, abrange tudo, sendo "material" e "espiritual" em
primeiro lugar designações de possibilidades que transcendem a consciência. Não
posso afirmar que nada seja "apenas psíquico", pois tudo na minha experiência direta
é psíquico em primeiro lugar. Eu vivo num mundo perceptual, mas não num mundo
subsistente por si. Este último é real o bastante, mas só temos informações indiretas
sobre ele. Isto vale tanto das coisas externas quanto as "internas", ou seja, das
existências materiais e dos fatores arquetípicos (...) Não importa sobre o que eu fale
, os dois fatores se interpenetram de uma forma ou de outra. Isto é inevitável, pois
nossa linguagem é um reflexo fiel do fenômeno psíquico com seu duplo aspecto
"perceptual"e "imaginary". (JUNG, 2002[B], p.244-245)
Relembrando que Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da
Coniunctio, ou seja, espírito, alma e corpo, há fortes indícios que Jung tenha se inspirado em
Dorneus ao atribuir à psique a qualidade de mediadora entre a matéria e o espírito. Segundo
Xavier, "tudo indica que Jung tenha emprestado esta noção do pensamento alquímico,
especialmente de Gerardus Dorneus (...), a cuja a obra vinha se dedicando assiduamente por
aquela época” (XAVIER, 2001, p.159).
Entretanto, Jung abominava o fato de considerarem-no "metafísico", pois tinha plena
consciência da limitação imposta ao aparelho psíquico, e mesmo aos aparelhos
experimentais. Sendo assim, no que concerne à observação daquelas camadas
ontologicamente distantes e inacessíveis às nossas capacidades, ele considera:
34
Naturalmente não podemos tirar daí a conclusão metafísica de que no mundo das
coisas "em si" não há espaço nem tempo, e que, consequentemente, a mente humana
se acha implicada na categoria espaço-tempo como em uma ilusão nebulosa. Pelo
contrário, verifica-se que o espaço e o tempo são não apenas as certezas mais
imediatas e mais primitivas em nós, como são empiricamente observáveis, porque
tudo o que é "perceptível” acontece como se estivesse no tempo e no espaço (JUNG,
1998 [B] p.434).
Neste sentido, naturalmente a função representativa da psique não pode ser estendida
pata além de suas possibilidades. Assim, a psique não é capaz de apreender conscientemente
a maior parte da real procedência ontológica destes, já que são partes do inconsciente.
Entretanto ela busca expandir-se e tornar concretáveis o máximo que puder daqueles
conteúdos irrepresentáveis a priori. Jung estava convencido de que a substância
irrepresentável que habitava a ontologia da matéria e do espírito poderia ser a mesma da
própria psique. A psique estaria em posição destacada, como único instrumento (meio) de
decodificar as manifestações do arquétipo, e em ultima instância decodificar o reino o qual
ele pertence, o irrepresentável. Neste sentido, a parcela de sua substância que é inapreensível,
seria da mesma natureza que a dos dois outros reinos, daí serem possíveis fenômenos como a
sincronicidade quando um único arquétipo pode estar atuando como fator ordenador dos
reinos da matéria e do psíquico. O problema era que, uma vez que os arquétipos constelam-se
na psique, poderia pensá-los apenas em termos psíquicos:
Os arquétipos só se manifestam através da observação e experiência, ou seja,
mediante a constatação de sua capacidade de organizar idéias e representações, o que
se dá mediante um processo que não se pode ser detectado senão posteriormente.
Eles assimilam material representativo cuja procedência a partir do mundo dos
fenômenos não pode ser contestada, e com isto se tornam visíveis e psíquicos (JUNG,
1998 [B], p.235).
Portanto, a questão gira em torno de compreender que o arquétipo, em si, não é
psíquico, embora se manifeste no psíquico. Porém se este possuía a propriedade de permear
tanto um processo físico externo com um processo psíquico, demostrava que o arquétipo
pertencia à um reino "diferente". Sobre esta qualidade dos arquétipos, escreve Jung:
Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo
inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente
variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza
por certos limites formais e determinados significados fundamentais, os quais
entretanto só podem ser apreendidos de maneira aproximativa (JUNG, 1998 , p.218).
35
Jung estava disposto a mostrar a Pauli o fato de que, aquilo que estavam procurando,
ou seja, a linguagem neutra, perpassava a ambivalência da própria psique, ambivalência esta
capaz de acessar e ser acessada por representações de ontologias de reinos distintos ao seu,
como os da matéria e do espírito. Tal ambivalência do fator psíquico implicava numa psique
que representa e uma psique, que em si mesma, é um dado não concretável:
"Eu não estendo o conceito de psíquico até o não concretável. Aí necessito do
conceito especulativo de psicóide, o qual representa uma aproximação à linguagem
neutra na medida em que alude à existência de uma entidade não psíquica...." [sem
grifo no original] (JUNG, p.160. In: MEIR, 1996).
Neste sentido, embora a Psique seja o trono de qualquer subjetividade, pois tudo na
minha experiência direta é psíquico em primeiro lugar, ela também é perpassada por
elementos objetivos, neutros, irrepresentáveis, visto que ela em si mesma também é
"irrepresentável".
A preocupação de Jung pairava na necessidade de tornar clara e bem definida a
ambivalência psíquica apontando para duas formas de mediação, simultânea e paradoxal: em
uma delas a psique é o ponto de encontro das representações possíveis, isto é, a psique nos
permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de procedência material
ou espiritual. Seria a vivência psíquica propriamente dita, onde a psique une os elementos
distintos através da capacidade de representá-los na consciência. Em outra, a psique através
de seu componente psicóide (irrepresentável) é o ponto de encontro metafísico das
irrepresentabilidades, (ou das não concretabilidades), isto é, esta sua componente psicóide
reúne objetivamente as ontologias de procedência material ou espiritual, pois paradoxalmente
a própria psique já seria formada a partir da união dos outros dois, a matéria e o espírito, visto
que, em seu substrato mais profundo, é de uma mesma procedência transcendental.
Em suma, Jung alude à capacidade da psique de representar a matéria e o espírito,
dotando-os de conceitos, ou seja, subjetivando-os, conscientizando-os, capacidade esta que
não deixa de ser uma forma de ligar ou unir os reinos da matéria e do espírito. E
concomitantemente, Jung também se refere à substância metafísica própria da psique que,
como tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito.
Assim, na carta de maio de 1953, Jung apresentaria o seguinte esquema quaternário
como esboço para o esquema interdisciplinar:
36
Transcedental (Psicóide)
Matéria Espírito
Psique
Neste sentido, o reino transcendental (psicóide) corresponde uma ponte conceitual
entre os distintos reinos ( matéria, psique, espírito). Habita uma esfera transcendental e
portanto de unicidade, trazendo à tona o conceito metafísico do alquimista Dorneus, o "Unus
Mundus". Segundo Xavier:
O conceito metafísico do alquimista Dorneus, (...), o "Unus Mundus" (...); este é o
análogo ao conceito junguiano de psicóide; é o tal "substrato", a "linguagem neutra"
que vinham tentando estabelecer e, principalmente, uma "referência histórica de
base", ou seja, um conceito antigo, de um tempo em que aquilo que Pauli chamava
"pensamento quantitativo" e "pensamento qualitativo" ainda caminhavam juntos na
mente e na retorta dos artífices da Opus (XAVIER, 2001, p.176).
Com o quaternário acima e com o conceito de "Unus Mundus" atingimos o ápice da
evolução na interface dos esquemas interdisciplinares no encontro Pauli-Jung, encontrando
no conceito de Unus Mundus um correspondente ao reino transcendental postulado nas cartas
de Pauli/ Jung. A carta de 24 de outubro de 1953, explicita a presença de Dorneus, em meio
as trocas epistolares do encontro Pauli-Jung::
... precisamente durante os 10 últimos anos estive ocupado quase exclusivamente
deste tema [refere-se à coniunctio] Consegui encontrar uma alquimista do século
XVI que havia enfrentado esta questão de uma forma particularmente interessante.
Trata-se de GERARDUS DORNEUS, notável também em outros aspectos. Ele vê a
finalidade da Opus alquímica por um lado no conhecimento de si mesmo, que é ao
mesmo tempo conhecimento de Deus, e por outro lado na união do corpo físico com
a denominada unio mentallis, a qual está formada por alma[psique] e por espírito e se
produz através do conhecimento de si mesmo. A partir deste (terceiro) nível da Opus
se produz, como ele explica, o unus mundus, o único mundo, um pré-mundo ou
mundo primogênio platônico, que é por sua vez o mundo futuro, ou seja, o mundo
eterno (JUNG, p.182.In: Meier, 1996).
Assim é possível testemunhar, durante as trocas epistolares entre Jung e Pauli, como
as três categorias da Coniunctio de Dorneus influenciaram o desenrolar das trocas epistolares
37
entre Jung e Pauli e a visão completa do mundo natural. Análogo ao conceito junguiano de
psicóide; o "Unus Mundus" é a "linguagem neutra" que vinham tentando estabelecer.
38
II ESBOÇO TEÓRICO-ESPIRITUAL DA ALQUIMIA
Qualquer um que se dedique à estudar a alquimia, se deparará com um fenômeno
histórico extremamente complexo e obscuro. Para alguns estudiosos, a alquimia apresenta-se
como uma ciência sem raiz aparente, que se manifesta de súbito no momento da queda do
Império romano e se desenvolve durante toda a Idade Média, no meio dos mistérios e dos
símbolos, sem sair do estado de doutrina oculta e perseguida. Porém, a medida que, pouco a
pouco se vai mergulhando nesta massa obscura, que se apresenta a lendária gênese da
alquimia, notamos o quanto esta ciência é uma mina inesgotável de investigações de toda
espécie e, o quanto é precipitado assegurar sua origem temporal.
Mircea Eliade, em seu livro Ferreiros e Alquimistas, ao seguir o desenvolvimento de
alguns símbolos da metalurgia e das alquimia asiáticas e orientais e, das mitologias próprias
dessas técnicas arcaicas, defende a idéia de que, pelo menos uma parte da "pré-história" da
alquimia deva ser procurada, não nas tradições eruditas da Mesopotâmia, mas nas mitologias
arcaicas. Sendo assim, ele faz o seguinte alerta:
...Querer confinar uma disciplina que, durante 2000 anos, assombrou o mundo
ocidental aos esforços para contrafazer o ouro, é esquecer o extraordinário
conhecimento que os antigos possuíam dos metais e das ligas metálicas, é também
subestimar as suas qualidades intelectuais e espirituais (ELIADE, 1987, p.116-117).
Segundo Eliade, foi provavelmente a concepção arcaica da embriologia dos minerais,
a idéia de que os minerais "crescem" no seio da mina, concepção já atestada na Antiguidade,
que "...cristalizou a fé numa transmutação artificial, isto é, operada em laboratório"(Ibidem,
p. 118). Isso significa que é nas concepções primitivas referentes à Terra-Mãe, aos minerais e
metais, e nas experiências do homem arcaico empenhado nos trabalhos metalúrgicos, que
devemos procurar uma das principais fontes da alquimia. Não, evidentemente, da alquimia
clássica, cheia de cadinhos e alambiques e tratados secretos, mas do espírito alquímico, como
fundamento e justificação do Opus Alchymicum.
Ana Maria Afonso-Goldfarb, que em seu livro Da alquimia à quimica, oferece um
importante estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanicismo,
também realiza uma importante tentativa de localizar históricamente a prática da metalurgia.
A autora assegura que, desde a formação das sociedades agrícolas, vem a concepção da mãe
terra, como deusa, em cujo o ventre germinavam as sementes:
39
...Antes da descoberta da fusão dos metais, houve, contudo, um longo período,
durante o qual a metalurgia se imbuiu do espírito, ainda vigente, das sociedades
agrícolas e caçadoras. Desta forma, a sociedade que irá se desenvolver ao redor da
mineração e da metalurgia herdará a visão vitalista e sagrada do universo
(GOLDFARB, 2001, p.43).
Essas concepções primitivas, veiculadas e valorizadas pela mitologia dos tempos
líticos, atestam a crença numa finalidade da natureza: as substâncias minerais e os embriões
metálicos, participam da sacralidade da Terra-mãe e "crescem" no seu ventre, como
sementes. O ouro, um dos raros elementos metálicos a ocorrer na natureza em forma pura,
sem combinar com outros elementos, era considerado a finalidade da Natureza; puro e
incorruptível, sinal duradouro de tudo o que fosse perfeito. Aos mineiros, cabia a difícil
missão de conseguir a permissão da divindade terrena, para poder nela penetrar e arrancar-lhe
os minerais:
Tratava-se de um verdadeiro processo obstétrico, desde a retirada dos embriões
minerais, até sua transformação em metais no forno do metalurgista. Junto a esse
forno, todo um novo ritual deveria ser cumprido, pois o mineral continuava
guardando as características de um ser vivo (...) (Ibidem, p.44).
Neste sentido, o mineiro e o metalúrgico apresentam-se como aqueles que intervêm
no desenvolvimento ctoniano, precipitando o ritmo do crescimento dos minerais. Neste
panorama, o homem sente-se capaz de colaborar com a obra da natureza, capaz de ajudar os
processos de crescimento que ocorrem no centro da terra. O homem favorece e promove o
ritmo destas maturações.
A alquimia apresenta a mesma extensão espiritual: o alquimista se vê diante de uma
tarefa sagrada: deve se dispor ao papel de redentor e enfrentar o caos da matéria, a fim de
libertá-la. Em outras palavras o alquimista intervêm e aperfeiçoa a obra da natureza. O ouro,
como símbolo, é a sua perfeita "maturação". Neste sentido, o athanor, forno do Adepto,
passa a ser uma nova matriz, artificial, onde os minerais terminam a sua gestação; segundo
Eliade “é a conclusão de sua progenitura - mineral, animal ou humana - até a maturidade
suprema, isto é, até a imortalidade e liberdade absoluta. (sendo o ouro o símbolo da soberania
e da autonomia)" (ELIADE, 1987, p.43-44).
Assim, é no encontro com o número infinito de mitos, ritos e técnicas que
acompanham os trabalhos metalúrgicos como a fusão e fundição dos metais, que sobressai a
idéia de uma colaboração ativa do homem com a Natureza. Essas técnicas eram ao mesmo
tempo mistérios, pois implicavam, por um lado, a sacralidade do Cosmos, e, por outro lado,
40
transmitiam-se através de numerosas gerações, protegidas zelosamente como segredos de
ofício. Os trabalhos mineiros e metalúrgicos, colocavam, assim, o homem arcaico num
Universo saturado de sacralidade, onde as substâncias minerais participavam da sacralidade
da Terra-Mãe. Mais que isso, o homem participava de uma comunhão com toda espécie de
“substância”. Neste sentido, destaca Eliade:
...foi sobretudo a descoberta experimental da Substancia viva, tal como era sentida
pelos artesãos, que deve Ter desempenhado o papel decisivo. Com efeito, é a
concepção de uma Vida complexa e dramática da Matéria que constituiu a
originalidade da alquimia em relação à ciência grega clássica (Ibidem, p. 118).
Longe de querer abarcar a história da Alquimia, que merecia um volume inteiro para
não ser levianamente tratado, esta questão envolvendo a concepção primitiva de um Cosmos
sacralizado, no qual a natureza, o psíquico e o sagrado constituem uma só substância, vai de
encontro com objetivo deste capítulo. Este capítulo procurará esboçar algumas linhas de
orientação que contribuíram para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na
Idade Média, percorrendo a alquimia asiática, alexandrina e a árabe. Para tal incumbência, é
necessário que se leve em conta, primeiramente, a distância que separa a experiência religiosa
arcaica da experiência moderna dos “fenômenos naturais”. Em outras palavras:
...é evidente que um pensamento dominado pelo simbolismo cosmológico criava
"uma experiência do mundo" diferente daquela que possui o homem moderno. Para
o pensamento simbólico, o mundo não só está "vivo", como também "aberto": um
objeto nunca é simplesmente ele próprio (como considera a consciência moderna), é
ainda sinal ou receptáculo de qualquer coisa mais, de uma realidade que transcende o
plano do ser do objecto (Ibidem, p.114).
Neste sentido, o que se destaca é a capacidade do homem arcaico de experienciar o
sagrado na relações com a matéria. Tal como o mineiro e o fundidor, o alquimista trabalha
com uma matéria simultaneamente viva e sagrada; o seu trabalho visa a transformação da
matéria, o seu aperfeiçoamento e a sua "transmutação", mas, segundo Eliade, é a experiência
da morte e da ressurreição que é projetada na matéria, onde as substâncias minerais
“sofrem”e “renascem” como outro modo de ser, isto é, são transmutadas:
...convencidos de trabalhar com o concurso de Deus, os alquimistas consideravam a
sua obra como um aperfeiçoamento da Natureza tolerado, senão encorajado, por
Deus. Por mais afastados que estivessem dos antigos metalúrgicos e ferreiros,
prolongavam, apesar disso, a sua atitude face à Natureza: para o mineiro arcaico
assim como para o alquimista ocidental, a Natureza é uma hierofania: não só viva
como também divina; tem pelo menos uma dimensão divina. É, aliás, graças a essa
sacralidade da Natureza - revelada no aspecto "subtil" das substâncias - que o
41
alquimista pensava poder obter a Pedra Filosofal, agente de transmutação, assim
como o seu Elixir de Imortalidade (Ibidem, p. 135).
Observando outras fontes históricas propriamente ditas, a transmutação dos metais foi
praticada por chineses, indianos, egípcios, gregos e árabes. Todos eles contribuíram para dar
a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na Idade Média.
II. 1. - A Alquimia Asiática
A China, por exemplo, não conheceu uma ruptura entre a mística metalúrgica e a
alquimia. Desde os tempos imemoriais, havia na China, as técnicas dos mineiros e das
fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica, à procura de uma droga da longevidade.
Arnold Waldstein, autor francês do livro Os segredos da Alquimia, assegura que na "...China,
a antiga metalurgia sagrada se transformou muito cedo numa mística servida por uma prática"
(WALDSTEIN,1979, p.40). Entretanto, não são todos os estudiosos que concordam com este
ponto de vista. Contrária à idéia de uma continuidade das técnicas arcaicas mágico-
ritualísticas dos mineiros e ferreiros, Goldfarb, com relação à origem da alquimia chinesa,
assegura que esta só poderia instituir-se como tal, a partir do estabelecimento da sabedoria
chinesa. Para a autora, foi no taoísmo, doutrina atibuída a Lao-Tzé (por volta de 600 a.C.)
que, principalmente, a partir do século III a.C., originou as investigações desta ordem.:
A alquimia chinesa não parece estar diretamente vinculada à metalurgia, suposição
baseada na escassez de material mineral quanto no lento avanço das práticas
metalúrgicas. Isto não significa, contudo, que o alquimista chinês ignorasse a mágica
ritualística de seus ancestrais metalurgistas. Antes de qualquer coisa, as pessoas
ligadas à alquimia, na antiga China, eram letrados taoístas, que buscavam nas
origens das tradições o caminho par a sua própria superação, visando obter o
equilíbrio de si mesmos com o “todo" (GOLDFARB, 2001, p. 64-65).
Entretanto, como foi visto anteriormente, Eliade assegura uma continuidade de um
esquema mítico-ritual arcaico nas origens da alquimia. Para o autor, é evidente que os fins da
demanda alquimista, a saúde e a longevidade, a transmutação de metais vis em ouro, a
fabricação do elixir da imortalidade, tem por trás uma longa préhistória que revela de forma
significativa uma estrutura mítico-religiosa. Neste sentido, com relação à alquimia chinesa, o
autor assegura:
42
Podemos afirmar que os alquimistas taoístas, apesar de inevitáveis inovações,
retomavam e prolongavam uma tradição proto-histórica. As suas idéias sobre a
longevidade e a imortalidade pertencem à esfera das mitologias e dos folclores quase
universais. As noções de "erva da eternidade", de substâncias animais ou vegetais
carregadas de "vitalidade" e contendo o elixir da juventude, assim como os mitos das
regiões inacessíveis habitadas por Imortais, fazem parte de uma ideologia arcaica que
ultrapassa os confins da China (ELIADE, 1987, p.88).
Na tradição alquímica chinesa, em particular, as plantas e os frutos específicos
desempenham um papel importante na arte de prolongar a vida e de redescobrir a juventude
eterna. Isto se deve ao fato desta trazer como tônica a busca da imortalidade e a "medicina
universal". Ela marca o encontro dos princípios cosmológicos tradicionais, os mitos
relacionados com o elixir da imortalidade e as técnicas que visam o prolongamento da vida.
O “ouro alquímico”, por exemplo, goza da mais elevada estima em toda a literatura
chinesa. Os chineses não procuravam o ouro para o enriquecimento. A busca da
“transmutação” de metais em ouro era uma busca de perfeição; bastava uma pouca quantidade
para transformá-lo em um liquido, no qual ele alcançaria a imortalidade. Neste sentido, surge
a noção de um “elixir”, ou seja, os chineses acreditavam que o ouro produzido pelo
procedimento da transformutação alquímica era dotado de uma vitalidade, de uma qualidade
transcedental, que permitia promover a espiritiualização do corpo. Assim incluíam em sua
dieta “o pó dourado”, para que os cabelos brancos tornassem a ser negros, pois aquele cuja a
forma se alterava e escapava dos perigos da vida, merecia o titulo glorioso de Homem
Verdadeiro.
Mas na China, um outro material que o ouro, teve desde os tempos pré-históricos
muita importância: o divino cinábrio, uma substância talismânica e enormemente apreciada
pelas suas qualidades “doadoras de vida”. A sua cor vermelha ("o sulfeto natural de mercúrio
vermelho") era rica em virtudes vitais, visto ser o emblema do sangue, o princípio da vida,
ajustando-se à associação de uma equivalência entre o interno e o externo no universo
alquímico. Jean-Michel Varenne, autor francês do livro A alquimia, considera que o conjunto
das técnicas psíquicas ou físicas empregadas para prolongar a vida e obter a beatitude ou a
iluminação “consiste essencialmente em alimentar o espírito e o corpo graças à meditação e à
confecção do ´divino cinábrio`"(VARENNE, 1998, p.40). Mas não era apenas a sua cor que
fazia o cinábrio um veículo para a imortalidade. Havia igualmente o fato de que, quando
colocado no fogo, produzia o mercúrio, o “metal vivo”. Sendo assim, o cinábrio, desde os
tempos pré-históricos, era utilizado pelos chineses nos túmulos dos aristocratas ricos, a fim
de promover a imortalidade.
43
É certo que os alquimistas contribuíram, de fato, para o desenvolvimento das ciências
naturais, mas fizeram-no de uma forma indireta e, apenas em virtude do seu interesse pelas
substâncias minerais e pela matéria viva. Contudo a sua propensão para a “experimentação”
não se limitava ao mundo natural. As experiências dos alquimistas sobre as substâncias
minerais ou vegetais tinham um objetivo mais grandioso: modificar o seu próprio modo de
ser. Os alquimistas sempre souberam que o próprio homem em sua substância imortal é a
Unidade Imutável, por isso, dentro da chamada religião chinesa, a experiência humana
sempre coube um papel de destaque. Quando o adepto em sua obra experimenta a si mesmo,
então se lhe apresenta em forma nova e imediata a analogia do "verdadeiro homem", Sobre
este aspecto também considera Varenne:
De nada serve - na perspectiva hermética - correr ao laboratório para tratar as
matérias "vis", se não se for capaz de sentir e experimentar na própria carne e na
consciência a unidade fundamental de todas as coisas, a começar pela identificação
do microcosmo e do macrocosmo (VARENNE, 1998, p.62).
O ouro, o cinábrio, todas essas substâncias não se limitavam a conferir ao homem a
longevidade e a saúde perfeita. Ajudavam-no a entrar em harmonia com o próprio princípio
que simbolizavam, a estar organicamente “em paz” com o cosmos inteiro, passando deste
modo a fluir com a perfeição própria daqueles que comungam diretamente com as regras:
... A função de assimilação destas substâncias através de emblemas, pela
alimentação, pelos ritos era muito complexa. A alquimia não pode ser entendida se
o tivermos em conta esta função tão específica da mentalidade chinesa por
intermédio da qual o indivíduo se esforça incessantemente por alcançar a comunhão
com os princípios e a harmonia com as normas, de modo que a vida nele flua sem
encontrar nenhum obstáculo (ELIADE, 2000, p. 39-40).
Nada será compreendido da alquimia chinesa, se não a integrar nas suas concepções
fundamentais sobre o mundo. O pensamento chinês faz sua a correspondência tradicional
entre o microcosmo e o macrocosmo, tão familiar na teoria alquímica - " o que está acima é
como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está acima", diz a A Tábua da
Esmeralda de Hermes Trismegisto.
1
De acordo com a crença chinesa, todas as substâncias que podem ser encontradas na
terra e no cosmos estão infundidas de um dos dois elementos essenciais, o yin, feminino e
passivo e o yang, masculino e ativo. Nota-se que no estudo das duas principais tradições
1
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23. (Cf. mais
sobre este alquimista, no sub-capítulo Alquimia Alexandrina).
44
religiosas/filosóficas da China o Confucionismo e o Taoísmo, ambas podem ser
compreendidas a partir destes princípios. São duas metades de um mesmo todo; contrárias,
porém complementares; e mesmo diferentes, cada qual possui, em menor escala, alguns
elementos da outra. Mas ambos são atuantes somente no domínio do fenômeno, pois tem sua
origem comum no Uno sem dualidade.
Mesmo o Confucionismo, tradição religiosa/filosófica atribuída à Confúcio (551-479
a.C), não repudiou as principais linhas da cosmovisão de sua época, composta de Céu e
Terra, o divino par criador. Pelo contrário, a alusão ao céu como poder ordenador,
manifestando-se no ritmo anual da natureza, corresponde às idéias antigas, já expressas no
Livro das Transformações (I Ching, o livro das Mutações), no sentido de uma ordem cíclica
do mundo, cujo impulso criador tem sua origem na oposição Yang e Yin, a luz e as trevas.
Por isso compete aos homens reconhecer a dinâmica do cosmos, no seu curso rítmico, e
adequar os seus atos em consonância com ela.
No taoísmo, tradição religiosa atribuída à Lao-tzé ou Lao Tzu, um contemporâneo
mais velho de Confúcio, nascido por volta de 604 a.C, há a idéia de um princípio que está por
trás da realidade aparente (Tao) e que dá vida aos os seres humanos, mantendo-se dentro
deles numa porção menor. No Tao Te King, livro tido como a base do pensamento taoísta, o
conteúdo da grande Vida provém inteiramente do Tao. O Tao gera todas as coisas. Ao
formular seu pensamento, Lao-tzé também parte de algumas idéias propostas no I Ching, o
livro das Mutações.
Não é pois, de estranhar que essas duas vertentes da filosofia chinesa, o
Confucionismo e o Taoísmo, tenham suas raízes comuns no I Ching. Esse livro propõe o
mundo como não-estático e em constante transformação/alternância. Toda a mutação do
mundo, assim como a totalidade desse, é vista como conseqüência da relação entre energias
contrárias, porém complementares o positivo e o negativo, a luz e a sombra, o masculino e
o feminino, o criativo e o receptivo. Transcendendo toda a dualidade, estaria a grande
unidade, chamada Tai Chi. E regendo todas as transformações, estaria o Tao, uma
ordem/caminho que atua tanto no quanto na Terra.
A idéia desse algo que origina todas as coisa, o princípio Uno no interior do múltiplo
remete ao pano de fundo teórico-espiritual da alquimia: "Tudo procede do Um e volta ao Um
e para o Um". Desta forma também se expressa o símbolo do Ouroboros
2
(a serpente ou
dragão que morde a própria cauda), o eloqüente símbolo do Um Eterno e Infinito, que
2
Cf. mais sobre o símbolo do ouroboros no sub-capítulo Alquimia Alexandrina.
45
representa perfeitamente o grande Ciclo do Universo, assim como seu reflexo, o Magnum
Opus. A serpente abrangente reforça a idéia da unidade cósmica, na qual o mundo acima
banha o mundo abaixo e toda a matéria é intercambiável.
Experimentar a ordem cósmica na vida humana pode possibilitar, no entendimento da
tradição chinesa, desde a sabedoria até a transcendência, harmonia, rompimento das barreiras
do espaço-tempo e a imortalidade. Ora, toda a tradição alquímica invoca a seu favor o
testemunho da experimentação:
...Uma vez que os processos alquímicos se desenvolvem no próprio corpo do adepto,
a "perfeição" e a transmutação dos metais correspondem, na realidade, à perfeição e à
transmutação do homem. Esta aplicação prática da alquimia esotérica encontrava-se
aliás subentendida no sistema tradicional chinês de correspondência Homem-
Universo: trabalhando a um certo nível, obtêm-se resultados correspondentes a todos
os níveis (ELIADE, 1987, p. 97).
Desta maneira, o homem possui, no seu próprio corpo, todos os elementos que
constituem o Cosmos e todas as energias que asseguram a sua transformação periódica. Um
documento que merece destaque na alquimia chinesa, O Segredo da Flor de Ouro, cuja a data
da primeira impressão é do século XVII, mas acredita-se que seu conteúdo foi transmitido
oralmente desde o seculo VIII, traz como tônica a operação alquímica no próprio corpo do
alquimista. O conteúdo deste foi estudado à fundo pelo próprio Jung, em obra que recebe seu
nome. Porém, de maneira reduzida, pode-se adiantar que, através do movimento circular da
luz e a preservação do centro, o adepto procurava preparar o elixir no próprio corpo,
promovendo desta maneira a perfeição e a imortalidade.
Os pensadores chineses desenvolveram assim uma imagem filosófica do Universo que
sofreria poucas mudanças ao longo de mais de um milênio. Mas a melhor faceta da alquimia
taoísta, baseada nos princípios universais do yin e do yang, iria desabrochar no domínio da
magia sexual e do tantrismo, aproximando-se assim da alquimia hindu, a mais desconhecida.
A Índia conheceu igualmente as investigações alquímicas que constituem uma das
disciplinas ocultas do tantrismo. Para alguns autores, a alquimia seria um ramo do tantrismo;
para outros seria o inverso. Goldfarb defende a idéia de que a alquimia, surge, na India, como
interpretação das práticas míticas arcaicas, envolvendo a agricultura, a metalurgia, a
medicina, todas elas ligadas à magia e neste sentido, foram os sabios budistas, os que se
aproximaram dos mineiros, ferreiros e médicos hindus arcaicos com intuito de interpretar
seus processos na óptica da sabedoria budista. Já Eliade considera ser significativo o fato de a
alquimia hindu ser exclusivamente conhecida e praticada por determinadas seitas ascéticas.
46
Estas seitas, segundo Eliade, “são tântricas, o que quer dizer que pertencem a essa corrente de
síntese mística do início da Idade Média que assimilou todas as técnicas espirituais da India,
incluindo as mais ‘primitivas’”(ELIADE, 2000, p. 60).
Essa questão em torno da realidade das operações alquímicas hindus envolve toda
uma discussão de fundo idealístico. Somente alguém para quem o sentido da alquimia tenha
sido esquecido pode associá-la à uma técnica que visa conhecer e dominar o mundo físico-
químico. Segundo Varenne:
Não existe verdadeiramente uma alquimia indiana -- se nos cingirmos à acepção
tradicional da palavra: operações materiais de transmutação de um sujeito e relações
subtis com um "manipulador" -- e, contudo, as diferentes técnicas físico-espirituais
do ioga, (...), correspondem, pelos seus princípios e a sua perspectiva metafísica, aos
dados fundamentais da alquimia (VARENNE, 1998, p. 41).
O valor cósmico dos metais, o papel redentor das operações alquímicas, a mística
alquímica foi o que interessou os tântricos. Ao procurar o elixir da vida, a alquimia
aproximava-se da mística e de todas as outras técnicas espirituais hindus que se propunham
chegar à imortalidade, e muito particularmente, do tantrismo e do hatha-ioga, que tinham por
objetivo a obtenção de um corpo são e imortal. Na concepção ocidental da alquimia, as
operações sobre as substâncias minerais só eram válidas, a medida em que envolviam,
principalmente, experiências químicas, mas no universo místico, onde se move o alquimista,
como foi visto anteriormente, as experiências às quais o adepto se entrega procedem de uma
visão metafísica do universo. Neste sentido, segundo Eliade:
...é necessário ter em conta não só a finalidade do alquimista e do seu
comportamento, mas também do que podiam ser as "substâncias" aos olhos dos
indianos: não eram inertes, representavam estados da inesgotável manifestação da
matéria primordial (prakti). Já o dissemos: plantas, pedras e metais, assim como os
corpos dos homens, a sua fisiologia e a sua vida psicomental, eram apenas momentos
diversos de um mesmo processo cósmico. (ELIADE, 1987, p. 110)
Tal como na China, a alquimia hindu retoma os rituais arcaicos de "imortalização" e os
métodos de rejuvenescimento com ajuda de ervas e substâncias minerais
3
. Neste sentido, o
ioga tântrico e a alquimia, integraram e renovaram esses mitos, como fizeram na China, o
taoísmo e a alquimia com um número de tradições imemoriais.
3
Fato significativo, somente na China e na Índia eram ingeridos os preparados alquímicos, fossem eles o ouro
alquímico ou um derivado de mercúrio.
47
Os estudiosos não estão de acordo quanto às origens históricas da alquimia hindu. Para
alguns, a alquimia foi introduzida na Índia pelos árabes, para outros, ela precede a influência
árabe em três séculos. A influência provável da alquimia árabe sobre a alquimia hindu tinha
como principal argumento a seu favor o fato de, alegadamente, a existência do mercúrio na
Índia só se verificar depois da invasão muçulmana. Mesmo supondo que a alquimia hindu
tenha nascido com a descoberta e utilização do mercúrio, constata-se que existia, de há longa
data, uma “alquimia específica” que não pode ter sido influenciada pelo Islão e que
desempenhava a mesma função que a alquimia chinesa, isto é, que não se ocupava do mundo
físico-químico, mas do rejuvenescimento e da imortalidade. Segundo Eliade:
... A dependência da alquimia indiana em relação à cultura árabe não é evidente:
encontramos a ideologia e as práticas alquímicas nos meios dos ascetas e iogues, que
serão poucos tocados pela influência islâmica no momento da invasão da Índia pelos
muçulmanos. (...) Mas mesmo supondo que o mercúrio foi introduzido na Índia pelos
alquimistas muçulmanos, constatamos que não se encontra na origem da alquimia
indiana, que, como técnica e ideologia solidárias do ioga tântrico, existia já há muitos
séculos (Ibidem, p. 105).
Na Índia, a “ciencia do mercúrio” é colocada entre os sistemas de filosofia e de
mística. No tantrismo, o mercúrio desempenhou um papel essencial. Em certos tantra, o
mercúrio é considerado o “princípio gerador” e sua eficácia geralmente aumentava de acordo
com o número de “fixações”. Esta fixação tem um sentido químico propriamente dito, ela
significa a calcinação, a coagulação do mercúrio, também conhecida na alquimia européia
sob o nome de fixação. Entretanto, o sentido místico da fixação do mercúrio era a redução da
volatilidade deste metal sagrado a um valor “espiritual”. Assim como os chineses
acreditavam que o cinábrio ou o ouro produzido pelo procedimento da transformutação
alquímica era dotado de uma vitalidade, de uma qualidade transcedental, que permitia
promover a espiritualização do corpo; a fixação do mercúrio, acima mencionada, tinha a
finalidade de transformar o princípio dinâmico, móvel em princípio estático, divino. A
operação alquímica tinha uma função redentora. Este princípio espiritual fixado permitia
promover a espiritiualização do corpo e a atingir a imortalidade. Os metais, de forma
idêntica ao corpo, podiam ser purificados e divinizados pelos preparados mercuriais. A
libertação depende da estabilidade do corpo humano e, é por essa razão que o mercúrio, que
pode fortificar e prolongar a vida, é tambem um meio de libertação. Segundo essa concepção,
o corpo “glorioso”, divino, pode ser realizado pelos próprios homens com a ajuda do
mercúrio.
48
Assim como na alquimia chinesa, o conjunto de técnicas psíquicas e físicas baseiam-se
em prescrições alimentares e ainda em exercícios respiratórios e, principalmente na alquimia
hindu, o corpo e a psique constituem a matéria prima do adepto. Se caracterizando mais como
uma técnica e uma concepção espiritual, solidárias de outros métodos como o ioga tântrico,
que visa transmudar o corpo humano num "corpo de diamante", eterno, o discípulo trabalha
diretamente sobre seu corpo e sobre sua vida para libertar-se das contingências materiais e
libertar o espírito; este trabalho, abrange, evidentemente, a aposta da Grande Obra.
II. 2. - Alquimia Alexandrina
O Egito foi considerado pela grande maioria dos estudiosos como a pátria de origem
da alquimia. Os primeiros manuscritos egípcios conhecidos, escritos, não em hieróglifos, mas
em grego, datam do início do século III da era Cristã até o começo do século VI.
É principalmente em Alexandria, centro cultural e intelectual de muitos gregos,
egípcios e judeus, também conhecida como a "Cidade Rainha do Mediterrâneo", que a
alquimia é praticada durante esse período. Grande porto de trânsito (símbolo da "trialéctica"
egípcia, grega e romana: Thot, Hermes, Mercúrio), Alexandria estava predestinada à realizar
uma prodigiosa síntese das contribuições egípcias, pré-socráticas, platônicas, aristotélicas.
Não há como não ficar perplexo quando se adentra na mescla de influências
históricas-espirituais que se apresenta o universo da alquimia. Os filósofos gregos, por
exemplo, sustentavam que o universo era um todo unificado, então tudo nele devia ser
constituído por uma só substância subjacente (analogamente, os alquimistas atribuíam à
substâncias mais tangíveis a composição básica de toda a matéria). Primeiramente, o grego
Empédocles
4
sustentou no século V a.C. que a água, o ar, o fogo, juntamente com a terra,
eram os elementos básicos, ou "raízes", da matéria. Por vários séculos, esta teoria dos quatro
elementos radicais reinaria suprema; dois dos maiores pensadores do mundo clássico, Platão
e Aristóteles consideraram-na aceitável. Aristóteles utilizou esta hipótese ao desenvolver seu
estudo sistemático dos fenômenos naturais. Porém subjacente à esta idéia, Aristóteles
acreditava que havia um elemento mais básico do que a terra, o ar, a água e o fogo, uma
substância, que séculos mais tarde no universo alquímico, viria a ser conhecida pelo de
matéria original. Sobre este substrato amorfo, considera Goldfarb:
4
Pela indicação das olimpíadas nasceu em 500 a.C. e morreu em 428 a.C.
49
...Seria o “éter” ou “quintessência”: o quinto elemento, o diáfano perfeito, que
constitui os corpos celestes na esfera imutável, e que, ao penetrar na esfera da
natureza, transforma-se na essência das próprias coisas. Poder-se-ia dizer, se existisse
o termo, que Aristóteles “fiscalizou” o mundo: a sua era uma física vitalista, com
todas suas tendências e qualidades (...) (GOLDFARB, 2001, p. 54).
No entanto, assim como a tentativa de “fabricar” o ouro não constitui a motivação
profunda do "método alquímico", seria também apressado atribuir a causa primária deste à
algum tipo de técnica científica grega empreendida para validar o dogma da unidade da
matéria. Sobre este aspecto alerta Eliade:
...A transmutação, finalidade principal da alquimia alexandrina, não era, no estado
contemporâneo da ciência, um absurdo, pois a unidade da matéria era desde há muito
um dogma da filosofia grega. Mas é difícil acreditar que a alquimia tenha surgido das
experiências empreendidas para validar esse dogma, e demonstrar experimentalmente
a unidade da matéria. Encaramos mal uma técnica espiritual e uma soteriologia que
encontrem a sua fonte numa teoria filosófica. (ELIADE, 1987, p. 117)
Entre as outras correntes de pensamento que chegaram em Alexandria e se mesclaram
às idéias dos filósofos clássicos estava a astrologia, importada da Mesopotâmia. Esse sistema
confirmava o primeiro dito da crença hermética: "Abaixo tal como acima". Essa máxima está
no cerne de diversas filosofias antigas. E os mesopotâmios, excelentes trabalhadores de
metais, tinham suas próprias teorias a respeito das relações celestiais. Cada um dos metais
mais importantes, segundo acreditavam, pertencia a um dos sete planetas conhecidos. O
chumbo era associado a Saturno, pesado opaco e lerdo. Marte era o ferro, de coloração
acastanhada e importante na guerra. O mercúrio, escorregadio e rápido, era associado ao
planeta do mesmo nome. A Lua era a prata e o Sol, naturalmente, era o ouro.
Não resta dúvida que a principal influência sobre a alquimia foi exercida pela grande
mescla de credos religiosos que encontravam expressão na cosmopolita Alexandria. Esta
intensa fermentação espiritual, toma o aspecto de um vasto sincretismo que une a arte prática
dos Egípcios e a Filosofia grega, as doutrinas orientais e o misticismo alexandrino, de uma
prodigiosa mistura de elementos orientais, gregos, judeus, cristãos.
Em meio a todas essas contrastantes perspectivas religiosas, as crenças ocultistas
pairavam sobre a cidade como uma névoa teológica. Aparentemente, os alquimistas de
Alexandria, pertencentes às diversas religiões (cristianismo, judaísmo, paganismo) sentiam-se
à vontade para escolher idéias ao acaso nesse sortimento variado de credos
Período confuso e atraente em que todas as doutrinas aspiram ao mesmo tempo à
salvação, à pureza e ao conhecimento pela iluminação; a crença de que esse conhecimento
50
oculto leva a mente à perfeição, desenvolvia-se há séculos em Alexandria. Certos sábios
judeus viam a sabedoria como um meio para elevar as almas a Deus e essa idéia foi
incorporada à uma filosofia religiosa conhecida como a Cabala. No entanto, são sobretudo os
pensamentos dos gnósticos e dos herméticos, agregados a elementos da cosmologia grega que
contribuirão sem dúvida para o nascimento da alquimia alexandrina.
O gnosticismo - de gnosis, palavra grega para "conhecimento" - propunha questões
como a natureza da realidade, a busca do eterno e a batalha perpétua entre o bem e o mal. Sua
meta era libertar a alma dos grilhões perversos do mundo material e levá-la de volta a Deus.
Os alquimistas encontravam um significado profundo nessa linha de pensamento. Para obter
a perfeição do ouro, necessitavam apenas libertar a essência do nobre metal dos materiais vis,
nos quais ele estava aprisionado. No entanto, o gnosticismo foi totalmente aniquilado e seus
restos se acham de tal modo truncados que, para se ter uma idéia de seu significado interior,
torna-se necessário um estudo especializado. O gnosticismo tem alguns elementos em comum
com o sufismo, o budismo e o hinduismo. Para Goldfarb, sua origem é oriental, e daí sua
influência na alquimia alexandrina, que trazia contribuições híbridas da magia oriental, em
uma junção de magia e astrologia. Sobre este aspecto, acrescenta Goldfarb:
A origem dos gnósticos é bastante obscura, mas, é sem dúvida, oriental. Já presentes
no primeiro século antes de Cristo, constituíram não uma escola filosófica, mas um
tipo de sincretismo religioso anterior ao cristianismo. Os detalhes de sua concepção
de mundo são pouco conhecidos mas em linhas gerais, acreditavam nos deuses-
planetas dos caldeus, associando-os, de forma mágica e dual (do tipo bem/mal,
luz/escuridão) aos fenômenos naturais. Esta associação era reproduzida,
principlamente, através dos ritos de redenção, e morte, retirados talvez da antiga
metalurgia do Oriente Médio. Provavelmente por isso tenha o gnosticismo exercido
tanta influência na formação do saber alquímico alexandrino (GOLDFARB, 2001, p.
58).
O Corpus Hermeticum, coleção de tratados, escritos em grego, provavelmente
compostos entre o primeiro e o fim do terceiro século de nossa era, é a base dos documentos
da tradição Hermética. Os escritos Herméticos são tradicionalmente atribuídos a Hermes
Trismegistos
5
, uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus
5
Alguns relatos afirmam que Hermes Trimesgisto era a encarnação de Thoth, deus da sabedoria e escriba do
mundo subterâneo, que veio à terra e reinou como faraó. Thoth foi o inventor da escrita e também deu ao mundo
a matemática, a astronomia, a medicina e a magia. Quando os gregos incorporaram Thoth à sua própria
mitologia, equipararam-no à Hermes, mensageiros dos deuses, patrono dos viajantes e dos mercadores. Seja qual
for sua verdadeira identidade, os alquimistas adotaram Hermes Trismegistus, o “Três-vezes-Grande” (como
Hermes era chamado) como se fosse um deles e o seu ofício tornou-se conhecido como a “Arte
Hermética”.Evidentemente os tratados herméticos não são de alquimia, mas estabelecem uma interpretação
sapiencial das técnicas mágico-míticas egípcias.
51
egípcio Thoth. São revelações divinas da sabedoria divina, nas quais o cosmos constitui uma
unidade, cujas as partes são interdependentes, princípio que se tornou básico na alquimia. O
pensamento hermético, agregado à elementos da cosmologia grega, contribuiu sem dúvida
para o nascimento da alquimia alexandrina. Assim, sob a influência do sincretismo filosófico-
religioso, combinado com os conhecimentos práticos dos metalurgistas, muitos estudiosos
consideram que, foi neste momento histórico, que a visão filosófica que os gregos tinham do
mundo, se voltou para a perícia metalúrgica dos antigos egípcios e, unindo-se às práticas
tradicionais dos ourives, deu a luz à arte da alquimia.
O mais célebre alquimista grego, apelidado "a coroa dos filósofos", foi Zózimo
originário de Panópolis, que viveu em Alexandria no século III. Este alquimista possui um
lugar de destaque na história da alquimia, principalmente no que diz respeito à idéia do
prodigioso Filho dos Filósofos. Ponto crucial da doutrina secreta alquímica, a imagem central
do filius Philosophorum (filho dos filósofos) se fundamenta em uma concepção do Ánthropos
(homem divino) da doutrina gnóstica. A antiga doutrina do Ánthropos ou homem primordial
6
diz que a divindade ou o agente criador do mundo deve ter-se tornado manifesto na forma de
um homem primogênito, quase sempre de grandeza cósmica. Este ser, o qual inquietou a
fantasia especulativa durante mais de dezesseis séculos, segundo Jung:
...aparece junto ao demiurgo, mas é um opositor das esferas planetárias; rompe o
círculo das esferas e se inclina para a terra e a água (isto é, está prestes a projetar-se
nos elementos). Sua sombra cai sobre a terra, mas sua imagem se reflete na água,
incendiando o amor dos elementos. A imagem refletida da beleza divina o embevece
de tal modo, que gostaria de habitar dentro dela. No entanto, mal desce, a Physis o
envolve num abraço apaixonado. Deste abraço surgem os primeiros sete seres
hermafroditas. Estes relacionam-se obviamente com os planetas e portanto com os
metais, os quais se originam do Mercurius Hermaphroditus, segundo a concepção
alquímica (JUNG, 1991 [A], p. 313, § 410).
Zózimo possuía uma espécie de filosofia mística ou gnóstica, cujas idéias centrais ele
projetava na matéria. Daí, sua importância: segundo Jung, a idéia do Ánthropos entrou na
alquimia em primeiro lugar através deste célebre alquimista:
... Os alquimistas, se ainda eram pagãos, tinham uma concepção mística de Deus,
proveniente da Antiguidade tardia e que poderia ser designada como gnóstica, por
exemplo, em Zózimo; se eram cristãos tinham ainda um acréscimo considerável as
concepções mágico-pagãs a respeito de um demônio ou de uma virtus (força) ou de
uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à physis
6
O símbolo do homem primordial, o primeiro ser que emerge com a criação do cosmos, é comum a um número
de tradições religiosas e filosóficas.
52
(natureza) ou nela aprisionada. Imaginava-se esta como sendo aquela parte de Deus
que constitui a quintessência (...) (JUNG, 1990, p.28-29, § 29).
Esta concepção torna-se evidente já nas fontes mais antigas da alquimia,
manifestando-se, porém, só simbolicamente. Na antigüidade, o mundo da matéria era
preenchido pela projeção de um segredo anímico que, desde então, aparecia como o segredo
da matéria, assim permanecendo até a decadência da alquimia no século XVIII. Os
alquimistas insistiam na busca de uma pedra miraculosa que contivesse um "suco secreto",
uma semente metálica, pois ela é o "espírito" que penetrou na pedra. A menção mais antiga
desta essência pneumática ou substância que penetra todos os corpos, encontramos, segundo
Jung, "numa citação de Ostanes, de considerável antiguidade (datá-la antes de Cristo não é
impossível!), a qual diz: ´Vai às correntezas do Nilo e lá encontrarás uma pedra dotada de
espírito`"(JUNG, 2003, p. 210, § 265).
Essa "matéria - espírito" é o Mercúrio Filosófico, tão caro aos alquimistas como
substância arcana de transformação, que se encontra invisivelmente dentro dos minérios e
que deve em primeiro lugar ser expulso a fim de ser recuperado "in substantia".
É perfeitamente clara aqui a tendência a ver o segredo da animação anímica na
matéria. Para nossas mentes imbuídas pelas ciências naturais é quase impossível conceber e
vivenciar o estado de espírito primitivo da participation mystique, da identidade entre
fenômenos subjetivos e objetivos. É que, no nível primitivo, a vida inteira é dominada por
"pressupostos" animistas, isto é, por projeções de conteúdos subjetivos em situações
objetivas. Neste nível, a afirmação alquímica de que uma determinada substância possui
virtudes secretas, de uma pedra dotada de espírito, ou ainda, de uma força criadora do mundo,
inerente à natureza, ou nela aprisionada, torna-se bastante compreensível. Neste sentido,
assegura Jung:
...A concepção do Ánthropos nasce da idéia de que originariamente tudo era dotado
de alma, e é por isso que os antigos mestres interpretavam seu Mercurius como a
anima mundi (alma do mundo); assim como o primeiro era contradiço em toda
matéria, valia o mesmo para a última. Ela estava impressa em todos os corpos como
sua “raison d`être” e como a imagem do demiurgo, que se encarnou em sua criação e
até mesmo ficou prisioneiro dela; com isso se aludia ao mito do homem primordial,
que foi devorado pela Physis (natureza). Nada parecia mais simples do que identificar
essa anima mundi (alma do mundo) com a imago Dei (imagem de Deus) bíblica. Ela
representava a veritas (verdade) revelada ao espírito (JUNG, 1990, p. 282, § 403).
Os pontos de vista posteriores giravam em torno da seguinte idéia central: a anima
mundi (a alma do mundo), o Demiurgo ou o espírito divino que fecundava as águas do caos
53
inicial permaneceu em estado potencial dentro da matéria e, com isto, se conservou também o
estado caótico inicial. Por isso os alquimistas achavam que a prima matéria era uma parte do
caos primordial “gravido” do espírito. O estado de imperfeição assemelha-se a um estado de
dormência; neste estado os corpos encontram-se como que acorrentados e adormecidos na
Physis. Estes são despertados pela substância divina extraída da pedra miraculosa, cheia do
espírito.
Por “espírito” eles entendiam uma espécie de corpo sutil, que também chamavam de
“volátil”, identificando-o quimicamente com óxidos e outros compostos separáveis. Eles
tencionavam extrair o espírito divino primordial do caos: este extrato foi chamado
quintessência, agua eterna, tintura. Como foi visto mais acima, deram ao espírito também o
nome de mercúrio, o qual, ainda que corresponda ao conceito químico de mercúrio, como
Mercurius noster (nosso mercúrio), não era o Hg comum; filosoficamente, designa Hermes, o
deus da revelação que, sob o aspecto de Hermes Trismegisto, era o pai da Alquimia. A "pedra
que tem um espírito", é a panacéia, a medicina universal, o antídoto, a tintura que transforma
o metal vil e imperfeito em ouro e o cascalho sem valor em pedras preciosas. Ela é a
portadora da riqueza, poder e saúde e em nível mais elevado, como um vivus lapis
philosophicus, é um símbolo de redentor, do Ánthropos e da imortalidade.
Como a sabedoria cabalística
7
coincidia com a sabedoria da alquimia, assim também a
figura de Adam Kadmon
8
(homem originário judaico) foi identificada com a do filius
philosophorum. Esta é uma continuação da doutrina gnóstica do Anthropos na alquimia, cuja
forma originária é encontrada nos textos mais tardios atribuídos a Zózimo, os quais se pode
distinguir três domínios de fontes: o judaico, o cristão e o pagão. Lá encontramos o
Ánthropos, o primeiro homem, o homem terreno carnal denominado Adam e o homem
espiritual interior nele é denominado "luz". Segue abaixo um pequeno trecho do texto
atribuído a Zózimo, reproduzido no livro Psicologia e Alquimia, de Jung:
7
Na alquimia mais tardia passa para o plano posterior o elemento do sincretismo pagão, a fim de conceber
maior destaque ao elemento cristão. No século XVI finalmente torna-se de novo muito mais intensamente
perceptível o elemento judaico em consequencia do influxo da cabala, que tinha se tornado acessível a circulos
mais amplos primeiramente por Johanes Reuchlin e também sob a influencia de Marsílio Ficino e Picco Della
Mirandola.
8
Sobre Adam Kadmon não existe clareza total nos escritos cabalísticos. Às vezes ele é concebido como a
totalidade das Sefiroth, outras vezes ele aparece como uma primeira radiação, perante as Sefiroth e elevada
acima delas,pela qual Deus se manifestou e de certo modo se revelou como macrocosmo de toda a criação.
Neste caso, tem-se a impressão como se Adam Kadmon fosse uma primeira manifestação de Deus, intercalada
entre Deus e o mundo, por assim dizer um segundo Deus. O Adam Kadmon é o homo maximus (homem
máximo), que representa o próprio mundo.
54
...Quando o homem-luz totalmente isento de malícia e de ação, vivia no Paraíso,
atravessando pelo sopro do poder do Destino, (os elementos) persuadiram-no a
revestir-se do Adam que nele estava, isto é, do Adam forjado pelos quatro elementos
e pelo poder do Destino (...). Em sua inocência porem (o homem-luz) não se recusou
a eles. Os elementos vangloriavam-se de tê-lo escravizado.
9
Ao que tudo indica, segundo Jung, o filho de Deus, em Zózimo, é um Cristo gnóstico
10
no qual o "homem" ou o "filho do homem" não coincide com a figura cristã e histórica do
salvador. O Filho de Deus é idêntico a Adam, é o Ánthropos, o primeiro homem. A substância
do arcano aparece aqui como o “homem interior”. O homem espiritual interior é semelhante
ao Cristo interior ou Deus que nasceu na alma do homem. Sendo assim, segundo Jung, o
homem-luz preso em Adão em Zózimo "é uma manifestação da doutrina pré-cristã do homem
primordial" (JUNG, 2003, p.133). Neste sentido, a imagem central do filius Philosophorum
(filho dos filósofos) exprime o "verdadeiro homem", o Ánthropos (homem divino) no
indivíduo, ou seja, "o ´homem total` oculto e ainda não manifesto, que é também o homem
mais amplo e futuro" (JUNG, 1991 [A], p.20, § 6).
Mercúrio, a designação preferida para aquele ser que na obra alquímica se transforma
a partir da prima matéria até atingir a pedra filosofal, era simbolizado como um ser vivo de
natureza hermafrodita, pois tratava-se de um espirito ctônico, material, por assim dizer, de
aspecto masculino-espiritual e femininocorporal. De igual, maneira, a natureza dupla do
mercúrio se acha projetada no simbolismo alquímico na figura do andrógino.
Conforme a antiga tradição, da criação e queda do primeiro par humano no ciclo de
lendas judaicas e muçulmanas, Adão era Andrógino, antes da criação de Eva. Não se deve
deixar de considerar que, manifestamente, a partir da doutrina gnóstica do homem primordial
hermafrodito, penetraram no cristianismo certas influências e aí, produziram a concepção que
Adão foi criado como um andrógino. Neste sentido, como um sinônimo bíblico para o
Mercurio alquímico se oferecia sem dificuldade a figura de Adão; primeiro como andrógino
em correspondência ao Mercurio hermafroditua; e segundo, em seu aspecto duplo como
primeiro e segundo Adão. Aí, em Zózimo, Adão já é uma figura dupla, a saber: o homem
carnal e o homem luminoso.
11
9
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. .Paris 1887/88. Apud:
JUNG,C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.378- 381.
10
Na esfera do Gnosticismo cristão, a figura de Cristo constitui uma ilustração do Homem Primordial, Adão.
Da mesma forma que Adão antes da queda, Cristo encarna a imagem divina; o Adão mítico.
11
Segundo as doutrinas cabalísticas, o Adam Kadmon era andrógino.
55
As naturezas opostas do Mercurio Filosófico também são frequentemente chamadas de
mercúrio, no sentido estrito, e enxofre (sulphur), sendo que o primeiro é associado ao
feminino, à Eva e o segundo ao masculino, à Adão.
12
Adão como composição dos quatro elementos é mencionado muitas vezes na literatura
alquímica mais tardia. Em vista de sua composição dos quatro elementos Adão é designado
como microcosmo:
Devemos agora voltar-nos para a questão de como acontece justamente Adão tenha
sido escolhido como símbolo para a prima materia ou respectivamente para a
substância da transformação. Isso certamente se baseia sobretudo no fato de Adão ter
sido formado do lutum (barro), e portanto a partir daquela materia vilis (materia vil)
“espalhada por toda parte”, que axiomaticamente é considerada como prima materia
e que, por isso, é desesperadamente difícil de ser encontrada, anda que esteja diante
dos olhos de todos”. Ela é um pedaço do caos primordial, aquela massa confusa, que
ainda não diferenciado. Dela se pode, pois fazer ainda tudo (JUNG, 1990, p. 138, §
217).
A idéia destes antigos filosofos era de que Deus se revelou em primeiro lugar na
criação dos quatro elementos. A prima matéria, a terra caótica primitiva, mãe de todas as
coisas, era o estado primordial da inimizade dos elementos. Estes elementos não estão unidos
no caos; apenas coexistem lado a lado, devendo por isso, ser unidos mediante o processo
alquímico. O intuito dos alquimistas era transformar a matéria recompondo a unidade na
pedra (ouro) e misticamente, no hermafrodita divino, no segundo Adão, no corpo de
ressureiçao, glotrificado e imortal. O demiurgo, adormecido e oculto, no seio da matéria, é
idêntico ao chamado homo philisophicus, o homem filosófico, o segundo Adão. Este último é
o homem espiritual, superior. Enquanto o primeiro Adão era mortal, por ser composto dos
quatro elementos perecíveis, o segundo é imortal, por ser composto de uma substância pura e
imperecível.
De modo semelhante descreve a alquimia o princípio de transformação do rei, a partir
de um estado imperfeito, para formar um ser intacto, perfeito, íntegro e incorruptível. Tal
figura já se acha presente no tratado de Zózimo, “Verdadeiro livro do Sophe, do egípcio e do
Senhor divino dos hebreus das forças de Sabaoth”. Comentando a citação presente em
Mysterium Coniunctionis, Jung considera, a passagem abaixo, a mais antiga menção do rei na
alquimia:
12
A dualidade enxofre-mercúrio será abordada no sub-capítulo sobra a alquimia árabe, responsável pela
introdução destes no simbolismo alquimico através do alquimista Jabir.
56
... Mas ao pedido de um dom, provém o símbolo químico a partir da criação do
mundo para aqueles que salvam e purificam a alma divina acorrentada nos elementos,
ou antes, o pneuma divino, que está misturado com a carne, assim, por exemplo, o sol
que é a flor do fogo, e o sol celeste que é o olho do mundo, da mesma forma o cobre,
quando se torna flor por meio da purificação, é um sol terrestre, um rei, como o sol
no firmamento.
13
A figura alquímica do rei deu ensejo a longas dissertações principalmente porque
alude ao mito do heroi, incluindo a renovação do rei e de Deus. Como já demonstra, a mística
egípcia do rei indica um processo que consiste no fato de o potador humano do misterio do rei
ser também incluído no processo de encarnação da divindade. Como a teologia da realeza que
apresenta maior desenvolvimento é a do antigo Egito, ao egípcio Zózimo, a mística do rei
parecia ser era ainda familiar. Daí se conclui no trecho acima, que somente se consegue o
ouro pela libertação da alma divina a partir das cadeias da carne e que o “simbolo da química”
e o rei não são outra coisa senão o ouro, o rei dos metais. Neste sentido, assegura Jung:
... Deste modo o ouro filosófico é uma espécie de representação corpórea da psique e
do pneuma, na qual ambos significam algo como “espírito de vida”. Na realidade é
um “aurum non vulgi” (ouro não do vulgo), por assim dizer um ouro vivo, que sob
todos os pontos de vista, corresponde ao Lapis (pedra). Este é de fato um ser vivo,
dotado de corpus, anima e spiritus (corpo, alma e espírito) e por isso capaz de ser
personificado como um homem “excelente”, portanto, por exemplo, como um rei,
que há longo tempo é considerado um deus encarnado (JUNG, 1990, p. 13-14, § 6).
Na alquimia mais tardia aparece o motivo da renovação do rei. A transformação do rei
indica de maneira primitiva a renovação da força vital. Em muitos tratados, a “decadência”
do rei deriva de sua imperfeição ou de de sua doença. O rei deve retornar aquele estado
inicial obscuro, no estado de massa confusa, desagregação, despedaçamento, pois a
dissolução é condição previa de redenção. Por isso, sua forma, nas alegorias alquímicas, deve
ser decomposta e dividida em pedaços:
Os destinos do rei idoso, seu afundar no banho ou no mar, sua dissolução e
decomposição, o extinguir-se da luz em trevas, sua incineração (incineratio) pelo
fogo e sua renovação no estado de caos, -- tudo isso os alquimistas derivavam da
dissolução em áçidos, da ustulação, dos minérios, da expulsão do enxofre, da redução
dos óxidos metálicos, etc (JUNG, 1990, p. 97, § 151).
Através destas representações, a alquimia retratava aquele ser que devia retornar
àquele estado inicial obscuro e padecer através da desagregação, despedaçamento e
13
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris, 1887/88. Apud:
JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.13, § 5 .
57
dissolução simbolizado nos processos alquímicos. Esta concepção se encontra na base do
mito alquimico: trata-se de uma substancia do arcano que padece através de processos
alquímicos; processos estes que a alquimia chamava de divisio, separatio, solutio,
mortificatio e, neste caso, trata-se do rei que morre ou é morto.
Descreve assim a alquimia o princípio da transformação do rei, a partir de um estado
imperfeito para formar um ser intacto, íntegro e incorrutível. Este é o “verdadeiro homem”
que o alquimista experimenta em sua obra. Figuras como o “menino régio”, “filho do rei”
(filius regius), que aparecem nas concepções tardias da alquimia ocidental, são portanto
indênticas ao Mercurio Filosófico. Essas designações curiosas se explicam pelo fato
primordial de o filho representar uma forma rejuvenescida do seu pai, o rei. Neste sentido, o
produto final não é apenas um fortalecimento, rejuvenescimento ou renovação do estado
inicial, mas sim uma mudança para uma natureza superior. Sobre a importância da figura
central do rei na alquimia, asssegura Jung:
... A circunstancia de o rei, durante vários anos, ter representado na alquimia
medieval um papel considerável, demonstra que, a partir de mais ou menos do século
XIII, readquiriram nova importancia aqueles vestígios da renovação do rei, que se
haviam conservado desde a época egípcio-helenística, porque passaram a ter um
novo sentido (JUNG, 1990, p. 60, § 83).
Como o sol significa na alquimia o ouro, o rei evidentemente corresponde ao Sol. Isso
já se faz notavel na própria citação acima de Zózimo, no qual a pedra (no caso, o cobre) é
comparado à um sol terrestre e por isso à um rei, como o sol no firmamento. A propriedade
divina do Sol era consideravelmente viva para o homem pagão e medieval. É quase
impossivel que para um alquimista tenha passado despercebido o fato de que o sol dele
tivesse alguma relação com o homem. Segundo Jung, o sol é simbolo da fonte da vida e da
totalidade última do homem
14
:
De tudo o que já foi dito sobre a substancia ativa do sol, já deve ter ficado esclarecido
que na alquimia “Sol” não indica propriamente uma substância química determinada,
mas sim uma “virtus” ou uma força misteriosa, à qual se atribui um efeito produtor e
transformador (JUNG, 1997, p. 90, § 110).
A imagem da divindade, que dorme escondida na matéria, era aquilo que os
alquimistas chamavam também de peixe redondo do mar, ou ovo, ou simplesmente rotundum
14
Ocasionalmente o enxofre (sulphur) é identificado com o ouro. O sol deriva pois do sulphur.
58
(redondo)
15
. O Rotundum pela forma esférica representa o cosmos e tambem a alma do
mundo, a qual envolve pela parte externa o universo e o sustenta por si mesma. Como filho
do macrocosmo e como primeiro homem, o rei tambem está destinado à rotundidade, isto é, à
totalidade:
... A obtenção do redondo e perfeito significa que o filho (...) agora atinge a sua
perfeição, isto é, que o Rex (rei) atinge a juventude (eterna) e que seu corpo se tornou
incorruptível. Como o quadrado representa o quatérnio (quaternidade, grupo de
quatro) dos elementos, que são inimigos entre si, da mesma forma a figura circular
indica a união deles para formar um. O um formado dos quatro é a quinta essentia
(quintessência) (...) (JUNG, 1990, p. 67, § 100).
Além da mais antiga menção da figura do rei na alquimia, um outro importante
material simbólico deste alquimista são as famosas “Visões de Zózimo”
16
, comentandas e
discutidas detalhadamente por Jung em Estudos Alquímicos e em O símbolo da
Transformação na missa, no qual Jung apresenta neste último um paralelo deste simbolismo
alquímico com o simbolismo do sacrifício e da transformação cristã.
Zózimo fala em diversas passagens de seus tratados a respeito de suas visões oníricas.
A primeira visao se encontra no início do “Tratado do divino Zózimo sobre a Arte”:
...Ouvi a voz daquele que estava sobre o altar, e disse a mim mesmo: vou perguntar-
lhe quem é. E ele me respondeu com voz delicada, dizendo: ‘Eu sou Ion. O sacerdote
dos santuários escondidos e mais interiores, e me submeto a um tormento
insuportável. Com efeito, alguém veio às pressas, de madrugada, subjugou-me e me
transpassou com uma espada e me dividiu em pedaços, mas de tal maneira, que a
disposição de meus membros continua harmoniosamente como antes. E arrancou a
pele de minha cabeça com a espada que ele vibrou com força e recolheu os ossos com
os fragmentos de carne, queimanndo tudo no fogo, com a própria mão, até que
percebi me haver transformado em espírito. Este é o meu tormento insuportável.
Enquanto falava e eu o obrigava a fazê-lo, seus olhos se tornaram de sangue. Eu o vi
transformar-se num homenzinho que perdera uma parte de si mesmo (homenzinho
mutilado e diminuído). E Arrancava pedaços de sua carne com os próprios dentes e
desmaiava.
17
15
“Existe no mar um peixe redondo, desprovido de espinhas e escamas, mas com muita gordura.” Allegoria
super librum Turbam. In: Artis Auriferae, Basiléia, 1593, p. 141. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e religião. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 59, § 92, nota 27.
16
As obras encontram-se no famoso Codex Marcianus, de origem alquímica e publicadas por M. Berthelot em
Collection des Anciens Alchimistes Grecs, em 1887. As visões (ou parte delas) também foram publicadas e
traduzidas para o português pelas edições 70, em Alquimia e Ocultismo, em 1991. Optou-se por citar neste
capítulo o trecho resumido das visões, publicado em O símbolo da transformação na missa de C. G. Jung.
17
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa. Rio de Janeiro:Vozes, 1991 [B], p. 27.
59
Segundo Jung, aparecem aqui pela primeira vez, na literatura, as idéias e conceitos de
um homunculus (homenzinho). Como foi visto mais acima, o tema da divisão em pedaços, do
castigo, da tortura, que a materia prima deve suportar a fim de ser transformada, se insere no
contexto mais vasto do novo nascimento. A serpente, seu sacrifício e desmembramento, o
milagre da transformação do ouro, a dissolução e decomposição dos metais são de fato
representações alquimicas que tratam do tema da transformação de um modo original. A
procura destes processos pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando ligada à
transmutação do próprio alquimista. Enquanto o alquimista incandesce no forno a sua materia,
ele se submete também, por assim dizer, “moralmente” ao tormento pelo fogo e à mesma
purificação e transformação. Por isso, o homem em sua estrutura interior deve incandescer até
o mais alto grau, pois dessa forma a sua impureza é consumida. Assim como o dragão
devorador, enquanto Ouroboros (o todo uno), o homúnculo de Zózimo representa aqui o
uróboro que se autodevora e que dá a luz a si mesmo
18
. Como foi visto anteriormente na
figura do Rei, o despedaçamento é uma condição previa de redenção. Na figura do homúnculo
de Zózimo, o despedaçamento corresponde à ideia de uma transformação e, assim como o rei
renasce rejuvenescido em outras parábolas, na sequência das visões, o homúnculo percorre as
etapas de transformação do cobre passando pela prata até o ouro. Neste sentido, é o homem
interior que está representado nas qualidades paradoxais de um “homenzinho”. Segundo Jung,
“...Tais etapas correspondem a uma gradual valorização” (JUNG, 2003, p. 91, § 118).
Nota-se que o motivo da tortura tão recorrente nos textos alquímicos já se encontrava
nas vizões de Zózimo e neste sentido a importância deste alquimista para toda a alquimia
ulterior. Além disso, foi possivel observar que, tanto a figura do rei, central no simbolismo
alquimico, quanto a figura do homunculo (homenzinho), segundo Jung, devem à Zózimo suas
primeiras aparições. Além disso, justamente Zózimo ofereceu nesse sentido uma imagem
arquetípica sob a forma do Ánthropos (homem) divino, que, naquela época havia alcançado
importância decisiva, tanto do ponto de vista filosófico como religioso
19
. Segundo Jung, "...as
idéias deste autor foram normativas direta e indiretamente para toda a orientação gnóstica-
filosófica posterior da alquimia" (JUNG, 1990, p.14, § 8).
Com o tempo, os escritos dos sábios alexandrinos foram ficando cada vez mais
teóricos e evanescentes. No período de 475 a 700 d. C., os monofisistas e os nestorianos
18
Simbolo pagão muito antigo, que se fundamenta na teologia egípcia: a saber, segundo Jung, na doutrina da
homoousia (igualdade de substancia de deus- pai com o deus filho- faraó). Ouroboros deriva do grego oura
(“cauda”) boros (“devorar”) e signica “o que devora a própria cauda”.
19
Figuras como as de Zózimo e Maria Prophetissa são expoentes máximos da escola alquímica de Alexandria.
Entretanto a égípcia helenizada, Maria, a divina, como era chamada por Zozimo, somente será abordada no
quarto capítulo, devido a sua contribuição na compreensão deste através do “axioma de maria”.
60
levaram-na através da Síria e da Pérsia - de onde, após o auge do Islã, vieram sábios que
traduziram textos e os divulgaram pelo mundo árabe.
II. 3. - A alquimia Árabe
A alquimia greco-egípcia sobreviveu em Alexandria por vários séculos. Porém, no
século VII, o Egito sofreu a invasão árabe e entre as perdas famosas esteve a grandiosa
cidade de Alexandria. Sua universidade foi destruída e seu precioso depósito de manuscritos
capturado como espólio de guerra. Textos foram traduzidos por sábios impregnados de
cultura alexandrina e divulgados pelo mundo árabe. Os árabes estavam em contato direto com
diferentes sabedorias, “de culturas como a persa, a egípcia ou a mesopotâmia, agregadas ao
que restou da antiga dominação greco-romana, será formado o caldeirão de diversidades, de
onde os árabes irão moldar sua própria cultura” (GOLDFARB, 2001, p. 75).
De fato, possuímos um grande número de obras herméticas escritas em árabe.
Traduções árabes, elaborações e comentários de velhos autores gregos e greco-egípcios
recebidos de versões sírias e, finalmente traduzidos para o latim no século XII e XIII, se
tornaram um importante material para a ciência natural. Este foi o caso de Turba
philosophorum, que relata uma espécie de concílio efetuado pelos filósofos para fixar os
termos do vocabulário hermético; Segundo Hutin, em seu livro A alquimia, os interlocutores
desta obra “são Anaxímenes, Empédocles, Sócrates, Xenófanes e outros grandes pensadores
da Grécia, curiosamente arabizados em Ixidimus, Pandolfus, Frictes, Acsabofen” (HUTIN,
1992, p. 35).
Tão completamente os escritos gregos desapareceram do alcance na Idade Média na
Europa, que séculos depois, por vezes, presumiu-se, que foram os árabes, os criadores de
muitos textos gregos e alexandrinos adquiridos.
O papel dos muçulmanos na história da alquimia revela-se também pelo próprio nome
alquimia. Como o prefixo al indica, é arábico. (isto é, al-kimyâ). Porém a origem da palavra
kimya, pré-arábico, é controvertida. Para alguns, a palavra deriva de Chemeia que apresenta
uma etimologia truncada. Para alguns, Chemeia deriva do termo Citem, de origem egípcia,
isto é negro, de "país negro", nome que designa o Egito na Antiguidade; uma alusão ao
dejetos aluviais que nasciam no Nilo e fluíam anualmente para as Terras do Egito. Ou ainda,
o "negro" faria alusão ao primeiro estágio da Grande Obra, a matéria original da
transmutação, isto é, a arte de tratar o “metal negro” para produzir o ouro. Para outros,
Chemeia deriva do verbo Chew, que em grego significa derreter, isto é, a arte de fundir ouro e
61
prata. Ou ainda Chemeia derivaria do grego chumos (sumo), i.é, a arte de extrair o suco ou
propriedades medicinais das plantas.
De qualquer maneira, as descobertas dos adeptos islâmicos deram ao mundo palavras
novas como elixir, arsênico, álcool, alambique, álcali, atanor. A própria noção de elixir,
somou uma nova contribuição árabe neste universo. Este, tal como a pedra filosofal,
transmudaria a matéria vil em ouro, fazendo muitas outras coisas além disso. Já vimos como
as idéias dos alquimistas taoístas retomavam também as noções de "erva da eternidade", do
elixir da "Longa Vida", pertencentes à esfera das mitologias quase universais, como busca da
imortalidade. Porém, como assegura Eliade, foram os árabes que contribuiram para a
associação da noção de elixir à obra alquímica e à Pedra Filosofal:
Os alquimistas árabes foram os primeiros a atribuir virtudes terapêuticas à Pedra e foi
por intermédio da alquimia árabe que o conceito de Elixir Vitae chegou ao
Ocidente.(...) O conceito alquímico do Elixir, chegado ao Ocidente por intermédio
dos autores árabes, substituiu-se ao mito de uma planta maravilhosa ou de uma
bebida de imortalidade, mito atestado, desde a mais alta antiguidade, entre todos os
povos indo-europeus, e cujo arcaismo está fora de dúvida. O Elixir não era, assim,
uma novidade no Ocidente, a não ser na medida em que era identificado à obra
alquímica e à Pedra Filosofal (ELIADE, 1987, p.130-131).
De qualquer forma, a alquimia árabe tem uma peculiaridade. Ela, em si mesma, não
evoluiu de um estado de técnica mágico-mítica, nem é um resultado de uma interpretação
sapiencial de uma técnica preexistente. Ela foi adquirida pelos árabes, por assim dizer, já
pronta. Foi transposta de suas origens alexandrino-caldaicas para o contexto árabe já na forma
de alquimia e não de técnica mágico-mítica. Tanto é assim que é possível que o primeiro livro
árabe de alquimia seja o Livro da Composição Alquímica, escrito pelo conquistador árabe
Omeya Khalid Ibn Yazed ou khalid Ibn Jazid, principe omíada (séc. VII) relatando o que lhe
fora transmitido por um monge romano-egípcio, Morienus. Assim, o Alchimiae de Liber de
compositione ou O livro da Composição da Alquimia acredita-se ter sido o primeiro livro de
alquimia a ser traduzido do árabe para latim. Data-se de 1144 e marca o começo do interesse
europeu com a alquimia que resistiu por quase 900 anos. Com a tradução deste livro, Europa
foi familiarizada ao universo alquímico pela a primeira vez e os nomes de Morienus e de
Khalid tornaram-se conhecidos a todos os alquimistas em Europa.
Por outro lado, os alquimista árabes puderam distinguir nitidamente entre o conteúdo
protoquímico das operações alquímicas e as diferentes interpretações sapienciais projetadas
sobre ele. Isto porque estavam em contato direto com as diferentes sabedorias: as
alexandrinas, com sua origem sincrética greco-egípcio-judaica; os persas e sírios, com sua
62
origem caldaica; e as hindus, com sua origem budista. Percebiam que a interpretação
sapiencial era diferente, mas a técnica subjacente era a mesma. Disto resultou que muitos
destes foram mais protoquímicos experimentais que místicos sapienciais. Daí o grande
desenvolvimento da paleoquímica árabe - a qual realmente formou a base da química
européia. Assim é que o interesse principal da alquimia árabe era o da preparação dos elixires
para a cura das doenças. Formaram eles uma farmacopéia de remédios, à base de sais
minerais, a qual permaneceu em uso até bem próximo de nossos tempos. Entre os
responsáveis por essa farmacopéia estão os dois primeiros grandes alquimistas árabes. O
primeiro é Jabir ibn Hayyan
20
(721-815) considerado o pai da alquimia árabe, que os
ocidentais denominavam Geber. Foi um médico e um grande sábio, que tentou aplicar a
matemática ao estudo do cosmo e descobriu um certo número de corpos químicos novos,
como a aqua rigia (agua régia), uma das poucas substancias suficientemente corrosivas para
dissolver o ouro. A sua obra mais importante, a Summa perfectionis magisterii, só é
conhecida em tradução latina.
No domínio teórico, Jabir desenvolveu as teorias de Aristóteles. Enquanto o grande
filósofo grego ensinava que as "exalações" da terra geravam metais e minerais, Jabir afirmava
que o processo não era tão direto. Segundo ele, os vapores fumarentos transformavam-se
primeiro em enxofre (Sulphur), e os brumosos em mercúrio. Estes, por sua vez, eram blocos
básicos de todos os metais. Impurezas inatas do enxofre e do mercúrio causavam a formação
de metais menores como o ferro e o chumbo. Mas se o alquimista conseguisse tornar essas
substâncias quimicamente puras, o resultado seria o ouro. Jabir distingue dois princípios
geradores dos metais: o enxofre e o mercúrio. O enxofre designa o princípio da fixidez da
matéria, pela secura ígnea do fogo e coagulação da terra, cuja a propriedade sulfurosa é ativa,
ou seja, secativa/coaguladora. O mercúrio designa o princípio da mutabilidade da matéria,
pela umidade fria da água e volatilidade do ar, cuja a propriedade mercurial é passiva, ou
seja, dissolvente/volátil de todos os metais.
A idéia de que os metais eram compostos de enxofre e mercúrio (posteriormente será
incluído um terceiro: o sal ) se configura como a principal contribuição da teoria de Jabir para
a alquimia. Entretanto há controvérsias com relação à este fato. Primeiramente Marcelin
Berthelot acreditava, no século XIX, que a obra latina de Geber, bastante popular na alquimia
do século XIII, nada teria a ver com a figura de Jabir, cujo o trabalho era pouco conhecido
20
Sobre os trabalhos de Jabir confira :STAPLETON, H.E. The antiquity of alchimy, Ambix, vol. V, 1956.Cf.
também em HOLMYARD, E.J. (ed.) The works of Geber, reedição inglesa de 1678, feita por. R. Russel, New
York:E.P.Dutton & Co.,1928.
63
pelos medievais europeus. Além disso, Goldfarb considera que a obra Jabiriana, parte
provavelmente das idéias de Balinus, o qual associam ao nome Apolônio de Tyana, filósofo
itinerante da Capadócia, figura importantíssima na formação da escola neopitagórica. Supõe-
se que sejam seus os originais de Balinus, criador da teoria da dualidade enxofre-mercúrio
que mais marcou a alquimia árabe. Entretanto, Goldfarb também menciona que,
provavelmente, Jabir tivessse conhecimento da teoria chinesa sobre a composição mineral do
ouro alquímico. Os alquimistas chineses imaginavam que o ouro alquímico deveria surgir do
equilíbrio de Yin e Yang. O princípio Yin ficaria a cargo do mercúrio, renascido pela
mortificação do cinábrio, parte feminina e receptora que seria unido ao princípio masculino
Yang, um princípio sulfuroso, ativo e penetrante, e dessa união nasceria o ouro alquímico.
Neste sentido Goldfarb considera:
A obra Jabiriana parte provavelmente das idéias de Balinus (Apolônio de Tyana)
sobre a composição mineral, baseada na teoria do “enxofre” e “mercúrio” em
diferentes proporções, sendo a proporção perfeita, segundo Jabir, a do ouro. Ele sabia
que a mistura de enxofre e mercúrio tinha como produto final o cinábrio, atribuindo,
portanto, ao “mercúrio” e “enxofre” da composição dos metais, qualidades
excepcionais, das quais as substancias comuns com esses nomes seriam meras
aproximações (GOLDFARB, 2001, p. 86).
De qualquer modo, Jabir ficou com o crédito ter sido o responsável pela introdução
destas concepções no universo alquímico. Waldstein, já citado anteriormente, assegura que
"...são numerosos os que lhe atribuem o mérito de ter posto em evidência a dualidade
enxofre-mercúrio, que será a base de toda a alquimia ulterior" (WALDSTEIN, 1990, p.38).
Posteriormente, um terceiro elemento foi incluído nesta concepção da dualidade enxofre-
mercúrio: o sal. Ele é o meio de união entre o Enxofre e o Mercúrio. O sal designa o princípio
anímico da matéria, pois é o elemento novo que aparece no mundo. A alma do mundo
penetra tudo, e da mesma forma o sal. Ele está simplesmente em toda a parte, e por isso
preenche a expectativa relativa à substancia do arcano, de que ela deva ser encontrada por
toda a parte. Compete ao sal as qualidades como substancia luminosa e o significado de um
princípio cósmico. Apesar de geralmente a substância do arcano ser identificada como
Mercurio Filosófico, só em época posterior, o Sal adquiriu significação de um princípio e,
entao, apareceu mais claramente como substancia do arcano e figura independente na tríade,
enxofre-mercúrio-sal:
... Não causa nenhuma estranheza se o “sal” se torna uma das designações de
substância do arcano. Parece que essa designação se desenvolveu nos começos da
64
Idade Média por influência árabe. Os véstígios mais antigos dela se encontram na
Turba Philosophorum, onde o sal e a água do mar já sao sinônimos da aqua
permanens (água eterna). (JUNG, 1997, p. 181, § 234).
Esta inclusão do sal na dualidade alquímica do enxofre- mercúrio foi atribuída à Abu
Bakr Muhammad ibn Zakaryya al-Razi (866-925), médico e sucessor de Jabir, conhecido
como al-Razi ou Rahzes. Escreveu 21 livros de alquimia, mas somente alguns são
conhecidos. No Kitab Sirr al-Asrar (Livro do Segredo dos Segredos)
21
, Razi faz uma
exposição minuciosa e classificatória dos equipamentos e das substâncias utilizadas até então
na alquimia. De maneira reduzida, com relação às substâncias, classificava estas como
animal, vegetal e mineral. As minerais podiam ser espíritos, pedras, corpos, vitríolos, boraxes
e sais. Os espíritos podiam ser de quatro variedades: dois voláteis e incombustíveis, o
mercúrio e o sal amoníaco, e dois voláteis e combustíveis, o enxofre e o arsênico.
Os textos de Jabir e al-Razi inclinam-se mais para uma apresentação da alquimia
prática, experimental, deixando de lado a parte mística e filosófica típica de Alexandria.
Assim, embora admitissem a transmutação de metais e a busca de elixires, os principais
alquimistas desta época concentraram-se mais nos aspectos práticos da arte no laboratório.
Esta atitude influenciou não só os alquimistas árabes posteriores como também, séculos mais
tarde, os alquimistas europeus
22
. Por outro lado, os árabes contribuíram substancialmente para
a formulação da teoria da composição das substâncias (teoria enxofre-mercúrio). É
desnecessário comentar que esse triunvirato de ingredientes, mercúrio, sal e enxofre, viveria
por séculos nas tradições da alquimia.
Apesar do Mercúrio Filosofal geralmente constituir a meta do Opus alchymicum, os
filósofos sempre dissimularam o nome vulgar da sua matéria, sob uma infinidade de epítetos.
21
Há um outro livro chamado O secretorum do secretum; é um tratado medieval conhecido também como o
segredo dos segredos, ou o livro do segredo dos segredos. É uma tradução latina do século XII de uma pesquisa
enciclopédia árabe que aborda uma larga escala de tópicos incluindo política, ética, fisionomia, astrologia,
alquimia, e medicina. Acredita-se ser uma recomendação suposta de Aristóteles a Alexandre, durante sua
campanha em Persia Este é um livro completamente diferente e é uma fonte comum de confusão por causa da
semelhança dos nomes, pelo conteúdo similar e, pelo período de tempo. Texto disponível em :
http://www.colourcountry.net/secretum/node2.html
22
Um outro grande filósofo-cientista surgiu na Pérsia no século X, Abu Ali al-Husayn ibn Abd Allah ibn Sina
(980-1037) ou Avicena, seu nome no ocidente. Avicena, um insaciável estudioso, dedicou-se à medicina e à
filosofia tendo sido considerado, pelo seu vasto conhecimento, o principal sábio da Pérsia. É reconhecido no
ocidente como príncipe da medicina. É o primeiro filósofo árabe, do qual se conserva uma biografia e restam
quase todas as obras. Avicena, pressupondo a unidade da filosofia, tentou conciliar as doutrinas de Platão e
Aristóteles. Sua filosofia sintetiza a tradição aristoteliana, as influências Neoplatonicas e da teologia
muçulmana.Embora aceitasse a teoria aristotélica dos elementos, Avicena rejeitava a transmutação de metais.
Reconhecia que o que os alquimistas conseguiam na verdade era fazer imitações colorindo os metais vulgares de
branco (prata), amarelo (ouro) e cor de cobre. Acreditava que estas qualidades eram impingidas aos metais e que
os processos usados, entre os quais a fusão, por exemplo, não podiam afetar a proporção de seus elementos
constituintes. Considerava que a proporção de tais elementos era uma característica de cada metal. Assim como
suas obras as idéias alquímicas de Avicena tiveram grande influência nos séculos posteriores.
65
Em resumo, é exato afirmar que o enxofre e o mercúrio são os únicos parentes da pedra.
Assim, o Mercúrio Filosofal é designado de maneira adequada como duplex, como ativo e
passivo. Sua parte “ascendente”, que se mostra ativa é chamada de Sol (ou enxofre), com
muito acerto e, somente por meio dessa parte, é que se percebe a outra parte, que é passiva.
Esta última recebeu, pois o nome de lua (ou mercúrio no sentido estrito), porque ela toma do
sol a luz que tem.
Entretanto, em algumas variantes da alquimia, ao enxofre se atribui também o poder
de dissolver, matar e reanimar os metais que são propriedades de mercúrio e, neste sentido, se
atribui quase tudo o que se diz do primeiro. Sendo assim, em alguns textos alquímicos, o
sulphur (enxofre) é um dos muitos sinônimos para designar a prima matéria em seu aspecto
duplo, isto é como materia inicial e como produto final. Nestes textos, no começo se acha o
enxofre cru ou vulgar, no fim ele é um produto do processo de sublimação. Sob este aspecto
representa ele, o ouro, ou respectivamente, o Sol. Como foi visto no sub-capítulo anterior
referente à alquimia alexandrina, também o Sol, em alguns tratados, significa a substancia do
arcano, de modo que para retratar a natureza dupla deste, os alquimistas chegaram a inventar
até uma sombra para o sol. Esta concepção já se encontra na Turba Philosophorum um dos
mais importantes tratados árabes: “quem pois tingir o veneno dos sábios com o sol e sua
sombra, chegou ao mais alto mistério”
23
.Também o Sal, por ser a substancia do arcano em
alguns casos, não escapou do caráter paradoxal e a duplicidade de natureza. Desse modo se
diz na Gloria Mundi “que no sal há dois sais”
24
.
Porém, de modo geral o Sol, como ouro é considerado a metade masculina e ativa do
Mercúrio Filosofal e a Lua, como prata, a parte feminina e passiva deste último
25
. Com a
síntese final do mercúrio e do enxofre, o alquimista encontra o mercúrio filosófico, e assim
encerra-se este sub-capítulo.
Sabe-se que os esforços pioneiros de Jabir abriram uma idade de ouro para a alquimia
árabe. Foi principalmente por intermédio dos árabes que a alquimia atingiu o Ocidente
Cristão. É pela Espanha - que durante muitos séculos, ficara sob o domínio dos muçulmanos
na maior parte do território - que se fará a principal penetração, a partir do século X. A
alquimia chegou à Europa através das traduções e adaptações de textos árabes, as quais, por
sua vez, já eram traduções e adaptações de velhos textos helenísticos. Nestes textos originais,
23
Turba Philosophorum. In: RUSKA, Julius. Buch der Alaune and Salve (De speciebus salium). Berlim, 1905, p.
130. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 94, § 114, nota 38.
24
Gloria mundi, alias paradysi tabula. In: Musaeum Hermeticum. Frankfurt, 1678, p. 217s. Apud: JUNG, C. G.
Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 244, §331.
25
De acordo com a autoridade máxima da Tabua de Esmeralda, o sol é o pai de mercúrio e a lua, sua mãe. Cf em
TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.23.
66
a alquimia já tinha adquirido, um estágio final, se bem que diferente da européia; pois que
houve uma reinterpretação cristã ocidental. Tais reinterpretações serão evidentemente
abordadas nos próximos capítulos, ao tratarmos dos estágios do alquimista Gerardus Dorneus.
67
III AS FASES ALQUÍMICAS E SUAS RELAÇÕES COM OS GRAUS DA
CONIUNCTIO DO ALQUIMISTA DORNEUS, ANALISADOS À LUZ DA
PSICOLOGIA PROFUNDA DE CARL GUSTAV JUNG
III. 1. O Opus Alchymicum e seus estágios
Os textos alquímicos obedeciam uma sucessão de operações e procedimentos
alquímicos complexos com o propósito de criar uma substância miraculosa. No que diz
respeito ao curso exato dos processos e seqüência dos estágios alquímicos, a maioria dos
alquimistas concorda com os principais pontos; assim quatro estágios são assinalados
caracterizados pelas cores originárias: o enegrecimento, o embraquecimento, o amarelamento,
e o enrubescimento. A divisão do processo em 4 fases era chamada a Tetrameria da Filosofia.
Mais tarde, entre os séculos XV e XVI, as cores foram reduzidas a três, e a chamada fase
"citrinitas", o estágio do amarelamento, caiu gradualmente em desuso.
Já nas visões oníricas de Zózimo (séc. III), encontram-se referências à sucessão de
mudanças, etapas e cores durante a Opus alchymicum:
E neste sistema, único e de variadas cores, está compreendida uma investigação
múltipla e variada, subordinada à influência da Lua e à medida do tempo, que
determina a finalidade e o progresso que regem a transformação da natureza.
1
Também a egípcia helenizada Maria Prophetissa
2
(ou Maria, a Judia), uma das
mulheres alquimistas mais importantes e um dos alquimistas mais antigos que se tem notícia,
faz referência ao “negro, o branco e ao alaranjado”, em seu tratado “Diálogo de Maria e Aros
sobre o Magistério de Hermes”
3
. A sucessão de cores no procedimento alquímico negro,
branco e alaranjado, fazem alusão à nigredo, albedo e a rubedo durante a Obra:
1
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
26.
2
Tal como aconteceu com a maioria dos primeiros adeptos, a identidade de Maria, perdeu-se na obscuridade. No
passado, os alquimistas achavam que se tratava de Miriam, irmã de Moisés, ou a copta, mas há poucas
evidencias para comprovar tal hipótese. Não é impossivel que esteja relacionada com a Maria da tradição
gnóstica. É mais provavel que ela tenha vivido aproximadamente no século II, em Alexandria e, seja qual for a
sua origem, o certo é que era um gênio para desenhar equipamentos de laboratório e usá-los de maneira original.
Sua principal contribuição foi um aparelho chamado Kerotakis, destinado a esquentar substancias químicas e
coletar seus vapores. Maria, também destaca-se como a inventora do famoso “banhomaria”.
3
O texto original foi impresso em um número de compêndios em latim e em alemão, como por exemplo no
primeiro volume do Artis Auriferae (Da arte aurifera), sob o título Practica Mariae propheyissae in artem
alchimicam (Exercícios práticos da profetisa Maria referentes à arte alquímica). Texto disponível na internet:
http://www.levity.com/alchemy/maryprof.html. O texto integralmente também foi publicado, tal como aparece
68
Conservai os vapores ripostou Maria e não deixeis que nada escape. Fazei o
vosso fogo em proporção com o calor do sol do mês de Junho e Julho. Mantende-vos
junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a
vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo
e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como leite penetrante e
fundente. Este é o segredo escondido.
4
Maria Prophetissa juntamente com Zózimo, formam os expoentes máximos da escola
alquímica de Alexandria. Buscando percorrer o traçado da expansão histórica da alquimia e,
passando da alquimia greco-egípcia para a alquimia árabe, a sucessão de cores também é
anunciada no tratado alquímico, o Livro da Composição Alquímica, que como foi visto
anteriormente grava um diálogo entre o primero adepto islâmico, Omeya Khalid Ibn Yazed ou
khalid Ibn Jazid, principe omíada (séc. VII) e o cristão de Alexandria, Morienus. Lá,
Morienus, discorre sobre a importância do “Mágistério” ser feito de uma única substância e
uma única matéria, e neste sentido, chama a atenção também para a sucessão de etapas e cores
durante o Opus alchymicum :
... E da mesma maneira que o corpo do homem contém os quatro elementos, Deus
criou-os também distintos e separados e unidos e dobrados em Uno, mas repartidos
por todo o corpo, que os contém a todos como se estivessem submergidos nele, e os
retém todos numa coisa só. Mas se cada um deles pode realizar uma operação
particular, e diferente dos demais, ainda que estejam no mesmo corpo, isto não
impedirá que cada um deles tenha a sua cor particular e o seu próprio domínio. Passa-
se exatamente o mesmo no nosso Magistério (porque as cores que dependem cada
uma de um elemento aparecem uma após a outra). Os filósofos disseram muitas
coisas similares sobre este Magistério (...)
5
Durante o diálogo, Khalid parece não compreender se a sucessão de cores durante a Obra,
e suas conversões umas nas outras, ocorrem em uma única operação, ou com duas ou mais.
No trecho a seguir, Morienus trata sobre a necessidade da Obra alquímica seguir uma exata
sequência de fases para atingir o seu fim:
MORIEN A matéria muda com uma só operação, mas quanto mais cores diferentes
recebe do calor do fogo, mais nomes diferentes se lhe dá. (...) Pois da mesma maneira
que o Magistério tem um nome próprio, há também uma disposição ou operação que
lhe é particular, e para a fazer só há um caminho certo. (...)
6
na versão da edição francesa de “Bibiothèque des auteurs chimiques” de 1672, na seleção de textos alquímicos
publicados em Alquimia e Ocultismo, pelas Edições 70, em 1991.
4
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38.
5
DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes
et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 56.
6
Ibidem. p. 58.
69
A sucessão de cores também é anunciada em Jabir ibn Hayyan (séc. VIII), mais
conhecido como Geber no ocidente, já citado anteriormente e, considerado o pai da alquimia
árabe. Destaca-se a seguinte citação presente no comentário da décima quinta gravura do
Rosarium philosophorum (Rosário dos Filósofos):
Geber em seus primeiro livro e vigésimo sexto capítulo: Nós concedemos
concordamos então de acordo com a opinião dos homens antigos que seguiam esta
arte, que os princípios naturais do trabalho da natureza, é um espírito fedorento, que é
o Enxôfre, e a água rápida, o qual nós concordamos também ser nomeada água seca.
Mas nós dividimos o espírito fedorento, porque é branco no segredo, assim como
vermelho e preto no magisterio deste trabalho, mas no manifesto ambos tendem a ser
vermelho.
7
O espírito fedorento é a prima materia, a qual devem todos alquimistas trabalhar.
Nesta primeira matéria da arte, parcela do caos original, todos os elementos convivem em
desarmonia, pois ela contêm em potência todas as qualidades e propriedades das coisas
elementares. As cores preto, branco e vermelho fazem alusão às fases nigredo, albedo e
rubedo, porém, procurando iludir os falsos alquimistas, nesta citação, elas não apresentam
uma ordem definida. O mesmo ocorre em Turba Philosophorum ou Assembléia dos filósofos,
um dos primeiros manuscritos do árabe traduzidos para o latim, que relata uma espécie de
concílio efetuado pelos filósofos para fixar os termos do vocabulário hermético. Destaca-se no
diálogo de “Eximenus”, no “nono dito”, a seguinte citação:
... Eu dar-lhe-ei um axioma fundamental, a menos que você transforme o cobre acima
dito no branco, e faça moedas visíveis e então mais tarde transforme-as outra vez na
vermelhidão, até uma Tintura: resulta que certamente você realiza nada. Queime
conseqüentemente o cobre, quebre-o acima, prive-o de seu negrume, cozinhando,
molhando, e lavando, até o mesmo tornar-se branco. Domine-o então.
8
Nota-se que o negrume, a brancura e a vermelhidão não apresentam uma sequência
clara. Inicialmente fala-se em transformar o cobre em “branco” para posteriormente
transformá-lo na “vermelhidão da Tintura”. Entretanto, tendo dito isso, volta-se novamente
7
“Geber in his First Book and 26th Chapter: We grant therefore unto thee according to the opinion of the ancient
men which were following this art, that the natural principles of the work of nature, are a stinking spirit, that is
Sulphur, and quick water, which we also grant to be named dry water. But we have divided the stinking spirit,
for it is white in secret and both red and black in the magistery of this work, but in manifest both of them tend to
be red.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html.
8
“…I will give you a fundamental axiom, that unless you turn the afore said copper into white, and make visible
coins and then afterwards again it into redness, until a Tincture: results, verily, ye accomplish nothing. Burn
therefore the copper, break it up, deprive it of its blackness by cooking, imbuing, and washing, until the same
becomes white. Then rule it” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/turba.html.
70
para a necessidade de queimar, cozinhar e lavar o cobre até que este seja despojado de sua
“obscuridade”. Entretanto no “décimo dito”, tal sequência de cores é citada detalhadamente:
Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o
corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida
mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que
isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam
derretidas e se transformem águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa.
Misture, cozinhe, e ferva em um fogo delicado até que Brodium esteja produzido,
como a Saginatum. Agite então em sua água de Etheliae até que coagulem, e as
moedas tornem-se diversificadas, que nós chamamos a flor do sal. Cozinhe-a,
conseqüentemente, até que esteja privada do negrume, e a brancura apareça. Então
friccione-a, misture-a com a cola do ouro, e cozinhe até que se transforme Etheliae
vermelho. Use a paciência na trituração a fim de que não você se torne cansado.
Embeba a Ethelia com sua própria água, que precedeu dela, que é também água
permanente, até a mesma tornar-se vermelho.
9
A “água de nosso mar” ou a “água de Etheliae” são todos sinônimos da primeira
matéria da obra, pois, como o próprio texto assegura, são um e a mesma coisa. As moedas
devem ser então reduzidas à “tabuletas finas”, e derretidas nesta água, a fim de que sejam
reduzidas à primeira matéria da obra. Os filósofos herméticos, estavam sempre atentos à
esconder o segredo da sua arte, e usaram de muitos artifícios. Neste sentido, esta matéria
desconhecida, recebe diversos nomes, como na citação acima, Etheliae, Brodium e
Saginatum. Assim, a substância do arcano, ou seja, as “moedas” devem (como no diálogo de
“Eximenus”) ser queimadas, cozidas até que sejam despojadas de sua “obscuridade” (alusão à
nigredo) e a brancura apareça na Flor do Sal (alusão à albedo). Posteriormente, deve-se
embeber a mistura com a sua própria água, o que significa que esta mistura deverá ser
destilada e, por isso, embebida pela própria essencia dela extraída, até que seja elevada ao
grau máximo de pureza pelo movimento circular continuado e por fim, bem fixada “com a
cola do ouro”. Assim, embebendo a Ethelia com sua própria água, (que precedeu dela, que é
também água permanente) ela tornar-se-á avermelhada (alusão à rubedo).
A sucessão de cores não influenciou somente os alquimistas árabes posteriores como
também, séculos mais tarde, os alquimistas europeus. Alberto Magno (1193-1280), monge
9
“Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have
shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is
permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters
or Etheliae, which are one and the same thing. (…). Then stir in its water of Etheliae until it be coagulated, and
the coins become variegated, which we call the Flower of Salt. Cook it, therefore, until it be deprived of
blackness, and the whiteness appear. Then rub it, mix with the Gum of Gold, and cook until it becomes red
Etheliae. Use patience in pounding lest you become weary. Imbue the Ethelia with its own water, which has
preceded from it, which also is Permanent Water, until the same becomes red. (…)”.TURBA Philosophorum.
(s.d). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/turba.html.
71
dominicano considerado “o Grande”, em seu tratado Compositum de Compositis
10
, o
Composto dos Compostos, no quinto capítulo, sobre a “Prática do Mercúrio dos sábios”
considera:
Para cada grau maior de perfeição do Elixir, é o mesmo que para o Elixir branco, até
que, por fim, tinja o Sol de quantidades infinitas de Mercúrio e de Lua. Agora,
possuis um precioso arcano, um tesouro infinito. Por isso, os filósofos dizem: “A
nossa Pedra tem três cores: negra no princípio, branca no meio e vermelha no fim”.
Um filósofo afirma: “O calor, actuando, primeiramente, sobre o húmido, engendra
negrura, a sua acção sobre o seco engendra brancura e, sobre esta, engendra a
vermelhidão. Porque a brancura não é mais que a privação completa de negrura. O
branco fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho.” “Todos
vós, investigadores que trabalhais a Arte - disse outro sábio - Quando vejais aparecer
o branco no vaso, sabei que o vermelho está oculto nesse branco. Falta-vos extraí-lo
dele, e, para isso, é preciso aquecer fortemente, até à aparição do vermelho.
11
Artephius, um grande filósofo hermético, cujo o nome verdadeiro nunca foi
conhecido, diz ter vivido mais que mil anos por meio dos segredos alquímicos. Embora seus
trabalhos fossem realizados sem datas, se sabe que escreveu seu livro secreto no século de
XII. Segue uma importante citação sobre a sucessão de cores durante a obra, presente no
trigésimo oitavo parágrafo do O Livro Secreto de Arthephius:
(38) Pois nossa terra se decompõe e torna-se preta, então ela é decomposta na
elevação ou separação; mais tarde tornando-se seca, sua obscuridade vai se afastando,
e então ela fica embranquecida, e o dominio feminino da escuridão e da umidade
perece; então também o vapor branco penetra através do corpo novo, e os espíritos são
ligados acima ou fixados na secura. E isso que é corrompido, deformado e preto
através da umidade, desaparece se afastando; assim o corpo novo levanta-se outra vez
desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre todos seus inimigos. E
como o calor trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume,
que é a cor principal ou primeira, assim sempre pela decocção mais e mais calor
trabalhando em cima daquele que está seco gera a brancura, que é a segunda cor; e
então trabalhando em cima disso que está puramente e perfeitamente seco, produz o
amarelamento e a vermelhidão, desta forma muitas cores. NÓS devemos saber
conseqüentemente, essa coisa que tem suas cabeças vermelhas e brancas, mas seus pés
branco e mais tarde vermelho; e seus olhos de antemão pretos, essa coisa, eu digo, é a
única matéria do nosso magistério.
12
10
O presente tratado, Compositum de Compositis, encontra-se no tomo IV do Theatrum Chemicum, pg.825, de
onde foi traduzido para francês por Albert Poisson. Texto disponível na Internet:
http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. A tradução portuguesa é de Rubellus Petrinus.
11
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. Acesso em: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-
p.htm.
12
“(38) For our earth putrefies and becomes black, then it is putrefied in lifting up or separation; afterwards
being dried, its blackness goes away from it, and then it is whitened, and the feminine dominion of the darkness
and humidity perisheth; then also the white vapor penetrates through the new body, and the spirits are bound up
or fixed in the dryness. And that which is corrupting, deformed and black through the moisture, vanishes away;
so the new body rises again clear, pure, white and immortal, obtaining the victory over all its enemies. And as
heat working upon that which is moist, causeth or generates blackness, which is the prime or first color, so
72
Obtêm-se-se nesta citação retirada do Livro secreto de Arthephius, uma visão das três
fases condensadas em um só parágrafo
13
. Como na citação presente do Composto dos
compostos, o calor, atuando, primeiramente, sobre o úmido, engendra negrura, a sua ação
sobre o seco engendra brancura; Arthephius também considera, primeiramente, que “o calor
trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume, que é a cor principal ou
primeira”. Neste sentido, o embranquecimento da terra decomposta, só ocorre quando o que é
“corrompido, deformado e preto através da umidade” desaparece e “o domínio feminino da
escuridão e da umidade perece”. Por isso o Livro secreto de Arthephius ressalva à “sempre
pela decocção mais e mais calor trabalhando em cima daquele que está seco”; pois desta
maneira separa-se da mistura a parte mais volátil por evaporação seguida da condensação e “o
corpo novo levanta-se outra vez desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre
todos seus inimigos”. O termo “levanta-se outra vez” denota que está operação é repetida
várias vezes, como na “Ethelia de Arisleus”, que é embebida com sua própria água, até que
“gere a brancura, que é a segunda cor”. Além disso, assim como na citação do Composto dos
Compostos, quando aparece o branco no vaso, sabe-se que o vermelho está oculto nesse
branco; desta maneira, a mistura é elevada ao seu grau máximo de pureza pelo movimento
circular continuado. Isso significa, segundo Arthephius, que “o vapor branco penetra através
do corpo novo, e os espíritos são ligados acima ou fixados na secura”; por isso o branco
fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho, como assegura o Composto
dos Compostos.
A sucessão de cores é também abordada no sexto capítulo do tratado The mirror of
alchemy (O espelho do alquimia), atribuído à Roger Bacon (1214-1294), o qual é intitulado
“Das cores acidentais e essenciais que aparecem no trabalho”. Segue abaixo um trecho deste
capítulo:
always by decoction more and more heat working upon that which is dry begets whiteness, which is the second
color; and then working upon that which is purely and perfectly dry, it produces citrinity and redness, thus much
for colors. WE must know therefore, that thing which has its head red and white, but its feet white and
afterwards red; and its eyes beforehand black, that this thing, I say, is the only matter of our magistery.”
ARTHEPHIUS (s.d.) The Secret Book of Artephius. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/artephiu.html
13
Arthephius nesta citação faz referencia ao estágio do amarelamento, "citrinitas" que gradualmente caiu em
desuso no século XIV e XV. O termo em inglês “citrinity” foi citado em algumas traduções inglesas como o
tratado alquímico Atalanta fugiens do alemão Michael Maier e O livro das figuras hieroglícas do francês
Nicolas Flamel. Neste último, na tradução de Luis Carlos Lisboa, o termo encontra-se traduzido por “alanjado”.
Preferiu-se na presente citação traduzir “citrinity” por “amarelamento”, devido ao termo em inglês “citrine”. Do
Latim, citrina, citrino, é uma variedade de quartzo amarelo que constitui pedra preciosa. No entanto, há também
Citrinus, do latim medieval , que significa da cor da cidra ou do limão.
73
CAPÍTULO VI. Das cores acidentais e essenciais que aparecem no trabalho. A
matéria da pedra assim terminada, você deverá saber a exata maneira de trabalhar,
por qual maneira e regimento, a pedra é mudada frequentemente na decocção em
cores diversas. Portanto se diz, assim muitas cores, assim muitos nomes. De acordo
com as diversas cores que aparecem no trabalho, os nomes do mesmo modo foram
variados pelos filósofos: em cima do qual, na primeira operação de nossa pedra, é
chamada putrefação, e nossa pedra é feita preta: a partir do qual se diz, quando você
encontra isso preto, sabe que no negrume a brancura está escondida, e você deve
extrair a mesma da mais sutil negridão. Mas depois da putrefação desenvolve-se o
vermelho, não com uma vermelhidão verdadeira, da qual se diz: isto é muitas vezes
vermelho, e frequentemente de uma cor do citrino, muitas vezes derrete, e é
frequentemente coagulada, antes da brancura verdadeira. E dissolve-se, coagula-se,
putrifica-se, colore-se, mortifica-se, ressucita-se, se faz preta, se faz branca, se faz
vermelha. (...)
14
Nota-se que, como Arthephius, em seu livro secreto, Bacon nesta citação também
menciona “uma cor do citrino” fazendo referência ao estágio do amarelamento, "citrinitas",
que no século XIII, ainda era bastante mencionada nos tratados.
Essas citações poderiam preencher grossos volumes e estenderem-se até o século XX,
com Fulcanelli, um dos últimos grandes adeptos conhecidos nesta arte, se certamente não
bastasse abrir qualquer livro que se refira, de longe ou de perto à alquimia, para saber que nele
são mencionadas as três cores principais que durante os trabalhos se sucedem: o negro, o
branco e o vermelho. De fato, parece que é esse o aspecto do trabalho que foi melhor descrito
pelos adeptos quando se referiam às fases coloridas da obra. Estas fases gerais poderiam ser
produzidas por uma combinação de diferentes procedimentos químicos-alquimícos, como a
solução (solutio), a calcinação (calcinatio), a coagução (coagulatio), sublimação (sublimatio),
e outras, sendo a Coniunctio (união), necessariamente a última, por representar a unificação
na pedra filosofal.
14
“CHAPTER VI.Of the accidental and essential colours appearing in the work.The matter of the stone thus
ended, you shall know the certain manner of working, by what manner and regiment, the stone is often changed
in decoction into diverse colors. Whereupon one says, So many colors, so many names. According to the diverse
colors appearing in the work, the names likewise were varied by the Philosophers: whereon, in the first operation
of our stone, it is called putrifaction, and our stone is made black: whereof one says, When you find it black,
know that in that blackness whiteness is hidden, and you must extract the same from his most subtle blackness.
But after putrifaction it waxes red, not with a true redness, of which one says: It is often red, and often of a
citrine color, it often melts, and is often coagulated, before true whiteness. And it dissolves itself, it coagulates
itself, it putrifies itself, it colors itself, it mortifies itself, it quickens itself it makes itself black, it makes itself
white, it makes itself red.(…)” BACON, Roger (1597). The mirror of alchemy. Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/mirror.html
74
III. 2. A fase alquímica Nigredo à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung
A obra alquímica começa obrigatoriamente com uma observação longa e paciente,
constantemente maturada nos fenômenos naturais. A natureza é sentida e percebida como um
organismo vivo, inseparável da consciência que a observa. O alquimista comporta-se como
um demiurgo no microcosmo filosofal; ele recria e tenta aperfeiçoar através da arte aquilo que
a natureza deixou inacabado. A sua observação, paciente e escrupulosa, dos fenômenos
naturais, revela-lhe um conjunto de leis misteriosas que regem a coesão invisível da alma e da
matéria que a Grande obra tem como principal tarefa aplicar. O observador nunca é distintinto
ou separado da coisa observada, as substâncias metálicas tratadas. A sua ação não depende de
uma vontade pessoal de realizar uma investigação sistemática, mas tende a provocar um
processo de reciprocidade, cuja a conclusão selará a união do microcosmo e do macrocosmo.
Considerava-se as operações do laboratório como uma empresa demiúrgica: o adepto tenta,
através de todos os meios, reunir o que foi separado, dissolver o que foi agregado. Os textos e
as suas ilustrações simbolizaram muitas vezes estas operações com figuras destinadas a
inspirar e estimular a imaginação do adepto. Sobre este aspecto, salienta Jung:
...Quanto mais antropomórficas, quanto mais teriomórficas as qualificações, mais se
manifesta a participação da fantasia lúdica e, portanto do inconsciente. Por aí também
se vê que o espírito inquiridor do antigo filósofo da natureza estava exposto à
tentação de se desviar do estudo das propriedades da matéria, obscuras para ele, ou
seja, de desviar da questão estritamente química, para sucumbir ao mito da matéria.
Uma vez que não existe ausência absoluta de pressupostos, o pesquisador, por mais
objetivo e imparcial que seja, sempre corre o risco de ser vítima de um pressuposto
inconsciente, toda vez que penetrar numa esfera ainda não esclarecida, por falta de
apoio em coisa conhecida. Isto não é necessariamnte um mal, pois a idéia que lhe
vem para substituir o que não conhece será uma analogia, arcaica sem dúvida, mas
cabível (JUNG, 1999 [C], p.38-39, §353).
O processo alquímico deveria ser feito como um experimento que consistia na
separação e na solução, bem como na composição e na fusão de substâncias, onde o produto
resultante era uma mistura contaminada que deveria ser submetida a novos procedimentos,
visando uma nova transformação. Deste modo, a medida que a Pedra ia sendo preparada,
submetía-se o material à repetidas reversões e transformações no seu oposto.
Consequentemente, este processo devia ser feito até que a matétia contaminada passasse por
uma purificação, a fim de que se produzisse a Pedra Filosofal. Análogo ao procedimento
alquímico, o processo de individuação caracteriza-se por um movimento cíclico, cuja a meta
está no fato de trabalharmos incessantemente sobre o Si-mesmo. O Si-mesmo, como centro
75
interior da psique total, embora cerque a personalidade por todos os lados e assim, abranja
tanto a vida consciente como a inconsciente, sua essência permanece no inconsciente Nesta
concepção junguiana, cada um de nós deve explorar o seu próprio inconsciente. No entanto, a
consciência resiste a tudo que é inconsciente e desconhecido. Neste processo, necessita-se
sempre voltar a trás, continuamente, para restabelecer as relações com o Si-mesmo. Sendo o
Si-mesmo, a meta do desenvolvimento psíquico “a aproximação em direção à este último não
é linear, mas circular, isto é ‘circum-ambulatória’” (JUNG, 1996, p. 174). Consequentemente
a ampliação da consciência se faz por etapas e ciclos, e assim, aos poucos, passa-se a integrar
os conteúdos inconscientes na consciência.
Nos tratados alquímicos, a matéria original muda progressivamente de cor ao longo
das operações e essa sucessão de cores devia ser escrupulosamente respeitada. A Nigredo ou
negrura, era considerado pelos alquimistas o primeiro procedimento alquímico, o estágio
inicial, do enegrecimento. Este estágio era almejado pelos alquimistas como principal ponto
de partida, pois de acordo com os adeptos desta arte, o começo se encontrava no negro. No
entanto, para este procedimento alquímico era necessário encontrar uma matéria
desconhecida, que entre os alquimistas era conhecida como prima materia. À propósito deste
primeiro corpo, parcela do caos original e mercúrio comum dos filósofos, também conhecido
como nossa água, massa confusa, substância universal, virgem sem mácula, dissolvente
universal, etc, o dicionário alquímico de Martin Ruland
15
, o Lexicon alchemiae, publicado
primeiramente em 1612, oferece nada menos, nada mais que cinquenta sinônimos para esta
matéria prima:
... os filósofos tanto admiraram a Criatura de Deus a qual é chamada a matéria
primal, especialmente a respeito de seu eficácia e mistério, que lhe deram muitos
nomes, e quase toda possível descrição, porque não souberam a elogiar
suficientemente.
16
Para ilustrar, serão citadas as cinco primeiras definições da prima materia encontradas
no Lexicon alchemiae :
1. Chamaram-na originalmente Microcosmos, um pequeno mundo, onde céu, terra,
fogo, água, e todos os elementos existem, também nascimento, doença, morte, e
15
A seção sobre a prima materia do dicionário alquímico de Ruland está disponível na internet, transcrito por
John Glenn: http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html.
16
“…The philosophers have so greatly admired the Creature of God which is called the Primal Matter, especially
concerning its efficacy and mystery, that they have given it many names, and almost every possible description,
for they have not known how to sufficiently praise it.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html
76
dissolução, a criação, a resssureição, etc.. 2. Foi chamado mais tarde a pedra
filosófica, porque foi feito de uma coisa. Mesmo no início dela está verdadeiramente
uma pedra. Também porque é seco e duro, e pode ser triturado como uma pedra. Mas
é mais capaz da resistência e mais contínua. Nenhum fogo ou o outro elemento
podem destruí-la. Não é também nenhuma pedra, porque é fluida, pode ser fundida e
derretida. Eles além disso chamam-na a Pedra Águia, porque tem a pedra dentro dela,
de acordo com Rosinus. 3. É chamada também Água da vida, porque faz com que o
rei, que está inoperante, acorde em uma forma melhor de ser e de vida. É a melhor e
mais excelente medicina para a vida da humanidade. 4. O venom, veneno, Chambar,
porque mata e destrói o rei, e não há nenhum veneno mais forte no mundo. 5. Espírito
- porque voa para o céu, ilumina os corpos do Rei, e dos metais, e lhes dá a vida.
17
As citações sobre a matéria do Opus Magnum nesta presente dissertação poderiam ser
infindas, visto que este é o assunto em que os filósofos mais exercitaram sua ciência prática.
Todos que escreveram sobre a arte esconderam o nome verdadeiro desta matéria, como a
chave principal da arte. Tendo potencialmente todas as qualidades e propriedades de coisas
elementares, deram-lhe os nomes de todos os tipos de coisas. É o começo material e fim de
todas as coisas.
Essa “prima materia” há tempos procurada, porém nunca encontrada, está no próprio
homem, como intuíam alguns alquimistas. Na verdade, naturalmente como se tratava de uma
projeção, não viram bem que estavam lidando com um evento psíquico, embora alguns
tenham pressentido de que se tratava de uma própria transformação. Como havia uma
conexão íntima entre o ser humano e o segredo da matéria, os alquimistas exigiam que o
operador estivesse à altura de sua tarefa e, por isso deviam realizar em si mesmos, o processo
que atribuía à matéria. Ao enfrentar o caos da prima materia, este retorno produz um estado
de confusão e escuridão que os alquimistas classificavam como nigredo:
A base da "opus " é a matéria - prima que é um dos segredos mais importantes da
alquimia. Isto não é surpreendente, uma vez que ela representa a substância
desconhecida portadora da projeção do conteúdo psíquico autônomo. Evidentemente
tal substância não era especificada, pois a projeção emana do indivíduo, sendo
portanto diferente em cada caso. Portanto, não é correto afirmar que os alquimistas
nunca definiram a "matéria-prima"; muito pelo contrário, foram tantas as definições
17
“1. They originally called it Microcosmos, a small world, wherein heaven, earth, fire, water, and all elements
exist, also birth, sickness, death, and dissolution, the creation, the resurrection, etc.2. Afterwards it was called the
Philosophical Stone, because it was made of one thing. Even at first it is truly a stone. Also because it is dry and
hard, and can be triturated like a stone. But it is more capable of resistance and more solid. No fire or other
element can destroy it. It is also no stone, because it is fluid, can be smelted and melted. They further call it the
Eagle Stone, because it has stone within it, according to Rosinus.3. It is also called Water of Life, for it causes
the King, who is dead, to awake into a better mode of being and life. It is the best and most excellent medicine
for the life of mankind.4. Venom, Poison, Chambar, because it kills and destroys the King, and there is no
stronger poison in the world.5. Spirit - because it flies heavenward, illuminates the bodies of the King, and of the
metals, and gives them life.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html
77
dadas que estas acabaram por contradizer-se repetidamente (JUNG, 1991 [A], p.329, §
425).
Embora os nomes da matéria do opus alchymicum sejam diversos e múltiplos, a
Grande Obra não é efetuada com a multitude das coisas, pois ela é sempre somente uma coisa
e de uma coisa. A matéria é una, proclamam os alquimistas, mas pode tomar formas diversas
e, sob estas novas formas, combinar-se a si mesma e produzir novos corpos em número
indefinido. Muito longe de querer tornar essa premissa alquímica um senso comum, o
objetivo aqui é relembrar o quanto esta noção permeia todo o pensamento alquímico. Pano de
fundo básico da alquimia, tal noção já encontrava no tratado axiomático "A Tábua esmeralda
de Hermes Trismegisto"
18
que só era conhecido pela sua versão latina, até ser descoberto o
texto árabe num livro de Jabir, pelo francês E. J. Holmyard, só em 1923: "E como todas as
coisas são e provém de UM, pela mediação de UM, assim todas as coisas nasceram desta
coisa única, por adaptação."
19
Neste sentido, os alquimistas ressaltavam que a Pedra Filosofal provinha de uma
"massa confusa", a chamada prima materia que continha em si todos os elementos. Na
concepção junguiana, essa "massa confusa" era um tipo de matéria prima desconhecida, à
qual os alquimistas atribuíam tudo o que se pode atribuir ao inconsciente. Sabe-se que o
inconsciente por definição, não é acessível à observação direta e integrado diretamente, mas
só pode ser “descoberto”. Os conteúdos inconscientes se manifestam sempre, primeiro, de
forma projetada, sobre pessoas e condições sujetivas
20
. Nada há de espantoso no fato de o
inconsciente aparecer projetado e simbolizado, pois de outra forma nem poderia ele ser
percebido. Neste sentido, em uma discussão psicológica do processo alquímico, não é de se
admirar que os alquimistas à tudo comparassem com a "prima matéria", uma vez que esta
“matéria”, pela qual se deva primeiramente trabalhar, encontra-se por toda a parte, projetada.
Este é precisamente o motivo pelo qual é tão difícil encontrar a “pedra”: por ser a mais barata
e encontrar-se por toda a parte; por ter sido jogada fora e encontrada na rua, nas montanhas e
na água. Todos a possuem, embora desconheçam o seu valor. Além disso, assim como a
18
Segundo Goldfarb, em seu livro, Da alquimia à quimica, quando os árabes conquistaram a Persia e o Egito, no
século VII, entraram em contato com essas duas culturas por meio da tradução de seus livros. Entre os livros
gregos, traduzidos, estava O Livro dos Segredos da Criação, atribuído a Apolônio de Tiana. Uma parte deste
livro é a célebre Tabua de Esmeralda. Tal prestígio recebeu este tratado que sua autoria foi atribuída ao próprio
Hermes Trimegisto.
19
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23.
20
Jung acrescenta: “...Nos casos em que ele aparece irromper diretamente, como nas visões, nos sonhos,
iluminações ou psicoses, etc., sempre é possível provar que foram precedidos por condições psíquicas onde a
projeção aparece nitidamente”(JUNG,1999 [C], p. 56, § 383).
78
matéria una e divina pode tomar formas diversas, combinar-se a si mesma e produzir novos
corpos em número indefinido; o inconsciente também gera uma multiplicidade de imagens
primordiais, que são suscetíveis de transformações infinitas, uma vez que fecunda a si mesmo,
concebe dele mesmo e dá à luz a si mesmo:
... Embora a consciência sucumba sempre a ilusão de que se cria a si mesma, o
conhecimento científico sabe que toda a consciência repousa sobre pressupostos
inconscientes, sobre um tipo de matéria prima desconhecida, à qual os alquimistas
atribuíam tudo o que se pode atribuir ao inconsciente ( JUNG, 1991 [A], p. 451,
§516).
Se a psique, como salienta Jung, é o nosso único instrumento de conhecimento,
significa que se aprimorarmos nossa aparelhagem psíquica, então nossa percepção das
representabilidades pode aumentar consideravelmente. Porém como aprimorar nossa
aparelhagem psíquica? Naturalmente a função representativa da psique não pode ser
estendida para além de suas possibilidades:
...“Esvaziar” por completo o inconsciente é impossível, pela simples razão de as suas
forças criativas serem capazes de criar novas formas incessantemente. (...) Por mais
instruídos que estejamos quanto à importância, aos efeitos e às características dos
conteúdos inconscientes, jamais lhes penetraremos a profundidade e as possibilidades
totalmente, pois são suscetíveis de variar ao infinito e sua potência a rigor não pode
ser diminuída. A única maneira possível de tratá-los na prática consiste em assumir
uma atitude consciente que permite a cooperação do inconsciente em vez de sua
oposição (JUNG, 1999[C], p.47, §366).
Assim, a psique não é capaz de apreender conscientemente a maior parte da real
procedência ontológica destes, já que são partes do inconsciente. Entretanto ela busca (ou
deveria buscar) expandir-se e tornar concretáveis o máximo que puder daqueles conteúdos
irrepresentáveis a priori. No entanto, assim como o intuito dos alquimistas era transformar a
matéria recompondo a unidade na pedra (ouro), assim também “...o homem não deve
dissolver-se na multiplicidade contraditória das possibilidades e tendências que o
inconsciente lhe aponta, mas sim tornar-se a unidade que abrange toda essa diversidade
(JUNG, 1999[C], p. 64, § 397). A consciência por mais abrangente que seja, continua sendo
subordinada à um círculo maior, o inconsciente; uma ilha envolvida pelo oceano; e assim
como o mar, o inconsciente também gera uma variedade imensa de conteúdos psíquicos em
constante renovação, cuja a abundância é impossível abranger totalmente.
Não é à toa que a água, na alquimia, era considerada a principal matéria prima da
pedra: “a água é o esperma de todos os metais”, e todos os metais estão resolvidos nele, como
79
foi declarado no Rosário dos Filósofos
21
. A água em todas as suas formas como mar, lago,
rio fonte , etc é uma das caracterizações mais usadas para indicar o inconsciente. Como o
caos, a prima materia se identifica com as águas dos primórdios e, na alquimia também ela
tem “mil nomes”, aqua permanens (água eterna ou água divina), aqua vitae, ou seja, a água
miraculosa, pois ela é o material original da pedra filosofal. A água está na primeira figura do
Rosarium Philosophorum. Jung a intitulou de “A fonte de Mercúrio”:
A fonte de Mercúrio (Rosarium Philosophorum, 1550)
22
Esta gravura representa a unidade original, o fundamento misterioso da obra. O texto
que segue a alegoria, diz: “Nós somos o começo e a primeira natureza dos metais, a arte por
nós cria a principal tintura. Não há nenhuma fonte nem água encontrada como em mim. Eu
curo e ajudo ao rico e aos pobres, mas contudo eu estou cheio do veneno perigoso.”
23
Neste
texto, a água aparece como o começo e a primeira natureza dos metais. Como símbolo do
inconsciente, contêm nela mesma todas as coisas necessárias; e, assim como o último,
fecunda a si mesma, concebe dela mesma e dá à luz a si mesma. Uma vez que esta “matéria”
que pela qual se deva primeiramente trabalhar, encontra-se por toda a parte, projetada, a água
21
“They have also said that our stone is made of one thing and it is true for the whole magistery is done with our
water, for that water is the sperm of all metals, and all metals are resolved into it, as has been declared.” THE
ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html.
22
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
23
“We are the beginning and first nature of metals,Art by us maketh the chief tincture.There is no fountain nor
water found like unto me.I heal and help both the rich and the poor,But yet I am full of hurtful poison.” THE
ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
80
de que e com qual o magisterio é efetuado, é cara e barata, e por isso “ajuda ao rico e aos
pobres”.
Devido ao seu poder de dissolução, a água estava associada à operação alquímica da
solutio (solução). Pela solução filosófica verdadeira, o corpo é transformado em sua primeira
água, a qual tem sido desde o começo um mesmo corpo. Para o alquimista, a solutio significa
o retorno da matéria diferenciada ao seu estado original indiferenciado, à prima materia. Já no
citado tratado “Diálogo de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes”, Maria, a Prophetissa,
faz referência à Solutio:
Reduz tudo isto a água corrente continuou Maria -- e purificai sobre o corpo fixo
esta água verdadeiramente divina tirada dos enxofres, e fazei com que esta
composição se torne líquido pelo segredo das naturezas no vaso da filosofia.
24
Edinger realizou em seu livro Anatomia da psique, uma primeira tentativa de organizar
e analisar os procedimentos químico-alquímicos como a solutio (solução), a calcinatio
(calcinação), a coagulatio (coagulação), a sublimatio (sublimação), a mortificatio
(mortificação), a separatio (separação), a coniunctio (conjunção), à luz da psicologia
junguiana. Entretanto, as principais fases coloridas da obra, nigredo, albedo e rubedo, que
podem ser produzidas por uma combinação de procedimentos químicos-alquímicos, não
foram estudadas e analisadas nestes termos. Com relação específicamente à fase alquímica da
nigredo, assegura Jung :
O negrume ou "nigredo" é um estado inicial, sempre presente no início como uma
qualidade da "prima materia", do “caos" ou da "massa confusa"; pode também ser
produzido pela separação dos elementos (solutio, separatio, divisio, putrefactio)
(JUNG, 1991 [A], p.244, § 334).
Nota-se que as operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a
solutio, a separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo
de dissolução, discriminação e mortificação do composto. Estas operações alquímicas
descritas nas alegorias envolvem uma gama de simbolismos alquímicos, principalmente os
relacionados à nigredo, pois este parece ser o aspecto que os filósofos da arte mais se
debruçaram.
24
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37.
81
III. 3. A Solutio na fase alquímica nigredo
Com relação inicialmente à Solutio, este é um dos principais procedimentos
alquímicos e é, do mesmo modo, extremamente importante psicologicamente. As imagens
básicas que se referem à este sistema de simbolo são a água, o banho, o afogamento, a
dissolução; mas também batismo e rejuvenescimento. A água foi relacionada com o útero, e
entrar na água, (solutio), era retornar ao útero para renascer. Psicologicamente; isto
significava com frequência uma imagem de uma descida no inconsciente que tem o efeito de
dissolver o sólido, estrutura ordenada pelo ego.
Assim também o mar é sinônimo da prima matéria e, uma imagem recorrente na
dissolução filosófica. O mar é um símbolo comum para o inconsciente. Na Turba
Philosophorum, a água do mar já aparece como sinônimo da aqua permanens, como se
observa no trecho abaixo, citado anteriormente:
Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o
corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida
mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que
isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam
derretidas e se transformem em águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa.
25
Com freqüência, realiza-se a solutio sobre um rei. Como foi visto anteriormente, na
alquimia, o rei desempenha um papel central, porque alude ao mito do herói, incluindo a
renovação do rei e de Deus. Por esta razão encontram-se um número de alegorias que
envolvem a transformação de um rei. O tratado alquímico Splendor Solis
26
é um dos mais
bonitos manuscritos alquímicos iluminados. O tratado consiste em uma seqüência de 22
gravuras elaboradas, cujo o processo simbólico mostra a morte e o clássico renascimento
alquímico do rei. Uma gravura em especial mostra no plano de fundo o rei do mar gritando
por socorro:
25
“Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have
shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is
permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters
or Etheliae, which are one and the same thing. (…).” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/turba.html
26
O Splendor Solis foi associado com o legendário Salomon Trismosin, suposto professor de Paracelso. Os
escritos de Trismosin foram publicadas mais tarde com ilustrações da gravura, no Aureum Vellus.Uma tradução
francesa, intitulada La toyson d`or também foi emitida em Paris em 1612.
82
Solutio do rei (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)
27
Os escritos de Trismosin foram publicadas mais tarde com ilustrações da gravura, no
Aureum Vellus. O texto que acompanha a figura, diz:
27
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.
83
...Os antigos viram surgir ao longe um nevoeiro, que encobriu e umedeceu a terra
toda, e viram também a impetuosidade do mar e das ondas de água sobre a face da
terra; e viram que elas se tornaram podres e fedorentas trevas. E viram também o rei
da terra afundar e ouviram que ele gritava com voz ansiosa: Quem me salvar, reinará
comigo e reinará em minha claridade, no meu trono real.
28
O caos e o mar possuem o significado clássico e mitológico de estado inicial do
mundo. A imersao no “mar” é o mesmo que dissolver (solutio) no sentido físico da palavra. É
a volta ao obscuro estágio originário, mas também a matrix universal de todas as criaturas.
Nesse mar solvente, o rei se banha, mergulha ou se afoga. Deste modo, descreve a alquimia o
princípio de transformação do rei, a partir de um estado imperfeito (no plano ao fundo, o rei
em, vias de afogar-se) para formar um ser perfeito e incorruptível, (no primeiro plano, o rei
renascido). Em uma discussão psicológica desta alegoria Jung considera:
... A obscuridade e a profundeza do mar significam apenas o estado inconsciente de
um conteúdo (...) A alegoria alquímica exprime este fato pela imagem do rei gritando
por socorro das profundezas do estado dissociado e inconsciente em que se encontra.
A consciência deveria atender a esse apelo; seria mister prestar o serviço ao rei (...).
No entanto, isto implica a necessidade da descida ao obscuro mundo do inconsciente,
o ritual de uma descida ao antro, a aventura de uma viagem marítima noturna, cuja a
meta e destino é o restabelecimento da vida, a ressurreição e a superação da morte
(JUNG, 1991 [A], p.342, § 436).
Psicologicamente, prestar serviço ao rei, significa que a consciência dominante deve
submeter-se ao inconsciente; deve-se retornar ao estado inicial obscuro, no estado de massa
confusa, em cuja a qual os filósofos da arte prestaram sempre suas homenagens: a prima
materia. Neste sentido, a solutio como uma operação alquímica é uma condição prévia de
redenção.
Jung analisou em sua obra Psicologia e Alquimia, uma série de 50 sonhos, cuja a
identidade do sonhador foi permanecida em sigilo. Hoje, sabe-se pertencer esses sonhos ao
físico Wolfgang Pauli, o qual submeteu-se à terapia com Jung por vários anos. No terceiro
sonho deste conjunto, a impressão visual hipnagógica é descrita: “Praia. O mar invade
inundando tudo. O sonhador está sentado numa ilha solitária” (JUNG, 1991 [A], p. 59, §56).
Aqui o processso de invasão dos conteúdos inconscientes ameaça irromper na consciência.
Jung considera o mar o lugar de predileção para a gênese das visões, isto é, irrupções de
conteúdos inconscientes. O fato é que ao enfrentar o caos da materia, a aparente unidade da
28
Aureum Vellus. Rorschach, 1598. IN: JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990,
p. 82-83, §131.
84
pessoa se desagrega sob o impacto do choque com o inconsciente, o que acarreta no
“obscurescimento da luz”:
... Tais irrupções são ameaçadoras por serem irracionais e inexplicáveis à pessoa em
questão. Elas acusam uma alteração significativa da personalidade, na medida em que
representam um penoso segredo pessoal, isolando a pessoa e alienando-a do seu
ambiente (JUNG, 1991 [A], p. 59, §57).
A consciência naturalmente resiste a tudo que é inconsciente e desconhecido, pois ela
se coloca em uma situação perigosa pela descida ao inconsciente. Isso requer uma certa
condição por parte do consciente, ou seja, um rebaixamento do nível mental. Aparentemente é
como se a consciência se extinguisse, pois aquilo que está sendo dissolvido experimenta a
Solutio como aniquilação de si mesmo. Em outras palavras, o que ocorre é uma perda de
potência do consciente:
O forte efeito dos conteúdos inconscientes permite tirar conclusões quanto à energia
dos mesmos. Todos os conteúdos inconscientes, quando ativados (isto é, quando se
tornam manifestos) possuem, digamos assim, uma energia específica, graças à qual
eles podem manifesta-se universalmente (...). Mas esta energia, em circunstância
normais, não é suficiente para fazer com que o conteúdo inconsciente irrompa no
consciente. Isso requer uma certa condição por parte do consciente. É necessário que
este apresente um déficit sob a forma de uma perda de energia. A energia perdida vai
aumentar no inconsciente o valor psíquico de certos conteúdos compensatórios
(JUNG, 1999[C], p. 49, § 372).
Os alquimistas sabiam do perigo de mergulhar na massa caótica, e sempre nos tratados
exortam à Deus nas operações. É com razão que a Grande Obra principia aqui, pois é
realmente uma questão quase irrespondível como se deverá enfrentar a realidade neste estado
de divisão e ruptura interiores. Eirenaerus Philaletha
29
, em seu tratado alquímico A porta
aberta do palácio fechado do rei, no trigésimo quarto capítulo, adverte:
Aqueles no caminho do erro crêem que dissolver os corpos é uma operação tão fácil
que imaginam que o ouro imerso no Mercúrio dos Sábios deve ser devorado num
piscar de olhos, compreendendo mal a passagem do conde Bernard Trévisan, onde
fala de seu livro de ouro mergulhado na fonte e que ele não pode recuperar. Mas
aqueles que penaram com a dissolução dos corpos podem atestar a verdadeira
dificuldade desta operação. Eu mesmo, por ter sido freqüentemente testemunha
ocular, certifico que é preciso grande sutileza para controlar o fogo, após a preparação
da matéria, de modo a dissolver os corpos sem queimar suas tinturas.
30
29
Eirenaerus Philaletha é pseudônimo, sob o qual se suspeita ter escrito o conhecido inglês Eugenius Philalethes,
ou Thomas Vaughan (1961-1665). O tratado parece ter sido escrito em 1645.
30
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
85
No sonho descrito acima, o sonhador se vê sentado numa ilha solitária. Em uma
discussão psicológica, durante o período de “incubação” de mudanças sensíveis é frequente
verificar-se uma perda de energia do consciente. Jung compara essa situação psíquica com o
fenômeno da “perda da alma” dos primitivos e, também, na calma e no vazio que antecedem
as grandes criações; ou então, numa escala menor do fenômeno, na angústia e depressão que
precedem determinados esforços psiquicos em determinados eventos importantes como um
exame, uma entrevista, etc. Para Jung, o isolamento do sonhador pela ativação da atmosfera
psíquica resulta numa espécie de substituto do contato perdido com a realidade exterior:
... Provavelmente o mecanismo de tais fenômenos tem uma explicação energética. As
relações normais com os objetos se fazem às expensas de uma certa quantidade de
energia. Se essa relação com o objeto é interrompida, há uma “retenção” de energia
que forma, por seu lado, um substituto equivalente. (...) uma realidade ilusória vem
substituir a animação normal do meio ambiente, e em lugar de pessoas, comecam a
mover-se sombras aterradoras e fantasmagóricas (JUNG, 1991 [A], p. 59, § 57).
A Allegoria Merlini
31
está entre os tratados medievais mais antigos, o qual mostra a
morte e a resurreição do rei. Conta a alegoria que certo rei pretendia conquistar um poderoso
povo e por isso preparou-se para a guerra. Porém, quando ele ia começar, exigiu que um de
seus soldados lhe dêsse um copo d`água que “poderosamente amava”. O rei começou a beber
e bebeu outra vez até que todos seus membros se encheram e, todas suas veias ficaram
inchadas, e ele ficou todo descolorido. E disse:
Estou pesado e minha cabeça dói, e imagino todos os meus membros repartindo-se
em um outro. Conseqüentemente eu comando que você me ponha em um quarto
claro, que deva ser um lugar morno e seco, então eu suarei e a água será seca, e eu
estarei livre também dela.
32
Nota-se que enquanto o tratado alquímico Splendor Solis representa a Solutio com o
rei em vias de afogar-se, a alegoria de Merlin, promove um tipo de afogamento interior, uma
hidropsia, ou seja, uma acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais do corpo. A
figura do rei na alquimia como símbolo do sol, do mundo claro e diurno correponderia na
31
A associação com figura céltica de Merlin é obscura e não há nenhuma referência interna (nem certamente
algumas ligações com os mitos de Merlin), que pudesse explicar porque este nome é associado com a alegoria. A
alegoria existe desde o século XIV XV em um manuscrito na Biblioteca Nacional de Paris e foi publicado
como Merlini-Allegoria, profundissimum Philosophici Lapidis Arcanum perfecte continens, no compêndio
alquímico Artis Auriferiae, em 1593.Texto disponível na internet: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html.
32
"I find myself heavy, and my head aches, and I fancy all my members divide themselves from one another.
Therefore I command you that you do bring me into a light chamber, which must be in a warm and dry place,
then I shall sweat and the water will be dried in me, and also I will be freed from it". THE ALLEGORY of
Merlin (s.d). Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html.
86
psicologia analítica à consciência, na qual e pela qual são reconhecidos os conteúdos do
inconciente. No entanto, qualquer descida ao inconsciente é suficiente para mobilizar
tendências e desejos instintivos. Isto explica-se pelo fato de que uma determinada quantidade
de energia, que não tem mais utilização no consciente, reflui para o inconsciente, onde vai
ativar certos conteúdos. Quando deparamos com tais conteúdos, compreendemos
imediatamente porque o equilíbrio psíquico se encontra perturbado; sabe-se que desses
conteúdos emana um fascínio que se apossa do indivíduo. Desta “água” que ele tão
“poderosamente amava”, o rei bebe tanto que os seus membros e veias ficam “inchadas”. Esta
imagem alquímica, em uma discussao psicológica, está descrevendo o processo de dissolução
da personalidade provocado por uma identificação da consciência com os conteúdos
inconscientes. Na parábola de Merlin o rei ou seja, o princípio dominante, dissolve-se em seu
própria concuspiscência representada aqui pelo “excesso alimentar” e a água miraculosa tem
o efeito que decompõe e dissolve, e que antecipa o despedaçamento causando assim uma
dissociação da personalidade
33
. Jung comenta esse texto:
... o rei corresponderia ao egoísmo exaltado, que em breve encontrará a sua
compensação. Ele está pronto para partir para um ato de violência, o que caracteriza
seu estado moralmente defeituoso e necessitado de correção. Sua sede corresponde a
uma concuspicência desenfreada ou paixão. Entrementes se torna ele subjugado pela
água, isto é, o inconsciente, e este estado reclama auxílio médico (JUNG, 1990, p.
22- 23, § 18).
Na alegoria de Merlim, o rei, como princípio dominante dissolve-se em sua própria
concuspiscência representada aqui pela “sede” como estado moralmente defeituoso e
necessitado de correção. Sabe-se que todo desejo que dê à sua própria satisfação um valor
central transcende os limites da realidade do ego. A aparente unidade da pessoa que insiste em
dizer : “Eu quero, eu penso” etc., cinde-se e se desagrega sob o impacto do choque com o
inconsciente. Neste sentido, quando o eu se defronta com o inconsciente sem uma atitude
crítica, nestas circunstancias, segundo Jung, “o eu é facilmente superado e se identifica com
os conteúdos assimilados” (JUNG, 1988, p. 21, §43). O esmagamento do eu por conteúdos
inconscientes e, uma consequente identificação com a totalidade pré-consciente, não se
recomenda de modo algum ao julgamento humano, pois ela é a “preparação para as umidades
destruidoras” descritas na famosa fase “negra” da alquimia. A água miraculosa no rei tem o
efeito de dissolução, subjugado este que está pela água do inconsciente.
33
O problema consiste em manter a integridade, do que Edinger nomeou de “eixo ego Si-mesmo”, ao mesmo
tempo em que se dissolve a identificação do Ego ao Si-mesmo.
87
Os alquimistas conheciam as armadilhas venenosas do estado inicial da prima materia
e assim esperavam que através de uma atitude de humildade, esforço e oração, o operador
estivesse à altura de sua obra. Do ponto de vista psicológico, uma atitude genuinamente
religiosa consiste no esforço feito para descobrir esta experiência única e para manter-se
progressivamente em harmonia com ela. A transformação e ampliação da consciência se dá
através de um consequente recuo das projeções que ofuscam e distorcem a personalidade e o
mundo. Neste processo, a consciência aparece como papel decisivo através da auto crítica e
da instrospecção ativa, pois uma consciência inflacionada de nada serviria no trabalho de
recuo das projeções. Segundo Jung:
Este apelo a qualidades obviamente morais deixa claro que a opus não exige apenas
capacidades intelectuais ou conhecidamente técnicos, como por exemplo o
aprendizado pratico do exercicio da quimica moderna, mas constitui muito mais um
empreendimento que além de psiquico tambem é moral. É frequente encontrarmos
nos textos exortações deste tipo. Elas propõem uma atitude semelhante à que é
exigida na execução de um trabalho religioso (JUNG, 1999[C], p.103, § 451).
Uma outra imagem da Solutio do rei aparece no trigésimo primeiro emblema
alquímico do livro Atalanta Fugiens de Michael Maier
34
(1568-1622). Lá o rei no mar, nada e
clama em voz alta: “Aquele que me livrar, dar-lhe-ei uma grande recompensa”
35
:
(Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
36
34
Michael Maier, médico, filósofo e alquimista alemão, escreveu o tratado alquímico Atalanta Fugiens. O
Atalanta Fugiens foi publicado primeiramente em latim em 1617. O Atalanta fugiens, é uma espécie de obra
hermética total, já que consiste em Estampas, Epigramas em verso, Discurso em prosa e pequenas peças
musicais em forma de fuga, cada um desses tipos de textos distintos criados em número de cinquenta. Neste
sentido era um exemplo adiantado de combinação de texto gráfico e som na exibição da informação.
35
“… He that delivers me shall have a great reward”. MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html.
88
Na alquimia, o simbolismo alquimico da fase da nigredo está relacionada com o que é
corrompido, deformado e preto através da umidade. Porém, sabe-se que mais tarde tal estado
desaparece tornando-se seco, como afirma o Composto dos compostos já citado anteriormente
“o calor, actuando, primeiramente, sobre o húmido, engendra negrura, a sua acção sobre o
seco engendra brancura”
37
. Na alegoria de Merlim, em trecho citado, o rei que sofreu de
hidropsia, comanda que o ponha em um lugar morno e seco, para que ele possa então suar
toda a água. Sendo assim, com secar desta água uma transmutação ocorre e o rei é trazido
para à vida, em um forma mais energética. Assim também, observa-se um discurso
semelhante no texto que acompanha o emblema acima do Atalanta fugiens:
Mas que deve ser feito ao rei quando ele é portanto libertado? Primeiramente
daquelas águas que ele recebeu deve ser aliviado pela sudorese, do frio pelo calor do
fogo, do embotamento de seus membros pelo Banho moderadamente quente, da fome
e do querer alimento pela administração de uma dieta conveniente e de outras
enfermidades por seu inverso e pelos remédios Saúde-restauradores. (...)
38
O tratado alquímico aconselha que o rei seja aliviado daquelas águas que recebeu no
mar pela sudorese. Além disso, no trigésimo oitavo emblema, Michael Maier retrata o rei em
um banho vaporoso, como se observa na imagem a seguir:
O rei no suadouro (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
39
36
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html.
37
MAGNO, ALBERTO (s.d.) Compositum de Compositis. Acesso em: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-
p.htm.
38
“But what is to be done to the King when he is so delivered? First from those Waters he had received in He
must be relieved by Sudorificks, from Cold by the Heat of Fire, from the Numbnesse of his Limbs by Baths
moderately Hot, from Hunger and want of food by the Administration of a convenient Diet and from other
externall maladies by their contraries and Health-restoring Remedies. (…)” MAIER, Michael (1617). Atalanta
fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html.
39
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl26-0.html.
89
O texto que segue o emblema do Atalanta Fugiens faz alusão à Alegoria de
Duenech
40
. Na tradição alquímica nós encontramos algumas alegorias que envolvem a
transformação de um rei, entre elas, as alegorias de Merlin e de Duenech estão entre as mais
antigas. Nesta última, um velho duque, chamado Duenech se sentiu desprezado na reunião
dos monarcas, devido à sua melancolia
41
profunda. Após um discussão com amigos sobre
como esta melancolia poderia ser eliminada, eles chamaram Pharut, o príncipe dos médicos e
ofereceram-lhe uma grande recompensa, caso ele conseguisse a cura. Duenech foi posto por
Pharut em uma cama com folhas brancas que então deu-lhe água para beber. Duenech
começou assim a suar fortemente, de modo que as folhas brancas foram manchadas
completamente. A bílis negra tinha sido dissolvida em todo o corpo de Duenech. A alegoria
continua descrevendo o processo de cura de Duenech, onde, resumidamente, por último
Pharut coloca Duenech exausto em uma terceira cama e, o revive com água e o óleo,
misturados com enxôfre. Quando Duenech olhou a si mesmo, viu que estava livre da
melancolia e teve de novo sangue saudável.
Resumidamente, na alegoria de Merlin, o rei sofre de hidropsia e comanda que o
ponha em um lugar morno e seco, para que ele possa então suar toda a água. No Atalanta
Fugiens o rei é aliviado daquelas águas que recebeu no mar pela sudorese, e o Banho
moderadamente quente ou banho vaporoso faz alusão à Alegoria de Duenech. Nesta última,
Duenech começou a suar a água que Pharut deu-lhe de beber sendo assim livrado da “bílis
negra”. Nota-se que os alquimistas escolheram entre um conjunto de símbolos, a sudorese,
como resultado dos processos de lavagens e dos banhos à vapor. Sabe-se que a sudorese é
uma pequena quantidade de sais dissolvidos, o que remete ao simbolismo alquímico do sal. O
sal por sua brancura, geralmente era associado à segunda etapa alquímica da albedo. Por isso,
a relação do sal com a negrura é em geral rara
42
. Jung, em Mysterium Coniunctionis, analisou
40
A Alegoria de Duenech foi publicada no vasto compêndio alquímico, Theatrum Chemicum III, p.756-757,
Ursel, 1602. Esta disponível também em http://www.levity.com/alchemy/duenech.html.
41
Nesta alegoria alquímica, o rei sofre de uma profunda melancolia. No I Ching, a melacolia é um atributo do
princípio maleável ou obscuro e por isso imperfeito e desejável de ser transformado: “o atributo do princípio
maleável ou obscuro não é a alegria e sim a melancolia” (WILHELM, Richard. I Ching, o livro das mutações.
São Paulo: Ed. Pensamento,1998, p. 177). Segundo Jung, “o homem civilizado apresenta manifestações
análogas. Também lhe acontece perder repentinamente toda disposição e iniciativa, sem saber por quê. A
descoberta da causa verdadeira nem sempre é facil e desemboca regularmente em discussões bastante delicadas
sobre os fundamentos psíquicos. A atividade vital pode ficar paralisada por omissões de todo tipo, por deveres
negligenciados, por obstinações deliberadas, de tal forma que uma determinada quantidade de energia, que não
tem mais utilização no consciente, reflui para o inconsciente onde vai ativar certos conteúdos (compensatórios) e
isso com tal intensidade, que começa a exercer uma ação coercitiva sobre o consciente”(JUNG, 1999[C], p. 49-
50,§372).
42
Além desta passagem, mais uma relação do sal com a negrura é encontrada em Mylius em sua Philosophia
Reformata, de 1622: “O que resta no fundo da retorta é o nosso sal, isto é, nossa terra, e é de cor preta, um
dração que devora sua própria cauda. Pois o dragão é a matéria que resta após a destilação de sua água, e aquela
90
em detalhes o simbolismo do sal na alquimia. Inicialmente pela relação próxima com a água
do mar, ele aparece como sinônimo do estado inicial ou prima materia. A passagem do
tratado alquímico Gloria Mundi
43
diz: “Saiba que o sal de que Geber fala não tem nenhuma
das propriedades específicas do sal, no entanto é chamado um Sal, e ainda é um sal. É preto e
de mau cheiro.”
44
Com frequência os alquimistas usaram as qualificações “mau cheiro”, “água fétida”,
“espírito fedorento” para qualificar a matéria primeira da arte, a qual devem todos alquimistas
trabalhar. A água fedorenta, é a mãe de todos os metais, do que, pelo que, e com que, os
filósofos preparam o elixir no começo e na extremidade; é a terra feculenta da qual todos os
filósofos falam. Grande parte desta água é feita preta e maus odores fazem alusão ao fedor
sepulcral e ao negrume da origem que lhe é inerente. Como assegura diz Basílio Valentim
45
em sua primeira chave da filosofia:
Tens que saber, meu amigo, que todos os corpos imundos e leprosos são impróprios
para a nossa obra, pois a sua lepra e impureza não só não podem produzir algo de
bom como também impedem que o que é limpo possa engendrar.
46
Entretanto estas qualificaçoes referentes ao estado inicial da matéria muito mais que
uma impureza de substancias; buscavam significar uma podridão e corrupção moral. Em uma
discussão psicológica, análogo ao primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, o primeiro
estágio no processo de individuação, se caracteriza pelo encontro com a sombra. A sombra,
segundo Jung, “ constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu
como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender
energias morais” (JUNG, 1988, p. 6, § 14). Para que este processo ocorra, é necessário que a
atitude consciente aceite o que parece ser uma “critica do inconsciente”. Problemas morais
água é chamada de cauda do dragão, e o dragão é a sua negrura, e o dragão é embebido em sua água e coagula, e
deste modo devora a sua cauda” MYLIUS, Joannes Danielis. Philosophia reformata. Frankfurt, 1622, p.195.
Apud: JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p.184,§ 238.
43
Incluído no Musaeum Hermeticum de 1625, embora tenha sido publicado primeiramente no alemão enquanto
Gloria Mundi sonsten Paradeiss Taffel, Frankfurt, 1620.
44
“Know that the Salt of which Geber speaks has none of the specific properties of salt, and yet is called a Salt,
and is a Salt. It is black and fetid.” THE GLORY of the world. (1620). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/glory1.html
45
Basílio Valentim, segundo os seus escritos, foi um monge pertencente à Ordem Beneditina, que viveu nos
princípios do século XV. Mas na opinião da maioria dos estudiosos, inclusive de Jung, os manuscritos não
podem ser anteriores ao século XVII. Entre seus livros mais famosos está As Doze chaves da filosofia, cuja a
versão de 1609 foi reproduzida em Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.119-147. Ao
que parece, este nome era apenas um pseudónimo que significa “rei valente”, por trás do qual, se esconde, na
opinião de Jung, como possível autor, Johan Toide de Turinga. Seja como for, a sua obra começou a ser
conhecida a partir de 1602.
46
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da Filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991,p. 123.
91
são invariavelmente provocados pelo aparecimento da sombra. Neste processo honesto de
auto-crítica, se esbarra com uma dificuldade de ordem ética:
A alquimia anuncia uma fonte de conhecimento que, por assim dizer, é paralela,
senão até equivalente à Revelação, mas que fornece "água amarga" e não se
recomenda de modo algum ao julgamento humano. Ela é acre e amarga ou como o
vinagre (acetum/azedo), isto é torna-se árduo para uma pessoa aceitar a escuridão e a
negrura (...) e atravessar essas trevas da sombra. É amargo, na verdade, ter de
reconhecer - por trás de seus ideais tendentes para as alturas, por trás de suas
convicções parciais e freqüentemente pertinazes, mas por isso tanto mais acariciadas,
e por trás de suas reivindicações orgulhosas e heróicas - apenas egoísmo crasso ,
veleidades infantis e apegos de comodismo.(...) Como dizem os alquimistas, o
processo começa pela nigredo ou a produz como condição prévia da síntese, pois
jamais podem ser unidos os opostos que não estiverem constelados ou trazidos à
consciência (JUNG, 1997, p.249, § 338).
Assim também, o amargor como uma propriedade da substancia tornou-se entre os
alquimistas um conceito técnico. Em Mysterium Coniunctionis, Jung discute, a razão por que
o gosto do sal é dado como amargo e não apenas como salgado; segundo ele “o agrupamento
desses atributos está indicando uma conexão íntima entre ambos: corruptio et impuritas
(corrupção e impureza) estão na mesma linha” (JUNG, 1997, p. 185-186, §240). O sal que
surge a partir dos minerais do mar é amargo por causa de sua origem, mas o amargor também
provém da corrupção e impureza do seu corpo imperfeito e designa o estado inicial da materia
prima. Neste sentido:
A negrura e o mau cheiro designados pelos alquimistas como “odor sepulchrorum”
(cheiro de sepulcro), pertencem ao mundo inferior e desse modo às trevas morais.
Desse caracter da impureza participa também a “corruptio”, (...) como paralela ao
“amargor” (JUNG, 1997, p. 190, § 248).
Este estado psíquico, onde a aparente unidade da pessoa se desagrega sob o impacto
do choque com o inconsciente, não se recomenda de modo algum ao julgamento humano pois
ela é a “água amarga”, e a “preparação para as umidades destruidoras”. Nesta tomada de
consciência da sombra, trata-se de reconhecer aspectos obscuros da personalidade, que é
indispensável para o autoconhecimento. Entretanto, isto implica em um trabalho árduo que
pode se estender por muito tempo.
A sudorese, pequena quantidade de sais dissolvidos, geralmente é o resultado de
grande fatiga e trabalho excessivo. Psicologicamente corresponde à secagem dos complexos
inconscientes que vivem na água, pois o desejo, exigência ou expectativa antes inconscientes,
primeiro aparecem em estado de identificação com o ego. Edinger em seu livro Anatomia da
92
psique compara esse processo psícológico com o processo alquímico da calcinatio
(calcinação), ou seja, ao processo de aquecimento de um sólido, destinado à retirar dele a
água e outros elementos passíveis de volatilização. A sudorese, necessária para o controle da
temperatura corpórea, psicologicamente indica que as energias da psique arquetípica em
estado de identificação com o ego, exprimindo-se no impulso de poder representado na figura
do rei, são purgadas isto é, o fogo da calcinatio, segundo Edinger, purga essas identificações e
“impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou
transpessoal, tendo restaurado seu aquecimento natural - isto é, sua energia e seu
funcionamento próprios” (EDINGER, 1999, p.63).
Sabe-se que as representações alquimicas tratam do tema da transformação de um
modo original. A procura destes processos pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando
ligada à transmutação do próprio alquimista. Enquanto o alquimista incandesce no forno a sua
materia, ele se submete também, por assim dizer, “moralmente” ao tormento pelo fogo e à
mesma purificação e transformação. Por isso, o homem interior deve incandescer até o mais
alto grau, pois dessa forma a sua impureza é consumida.
Nota-se que os alquimistas escolheram entre um conjunto de símbolos, a sudorese,
como resultado dos processos de lavagens e dos banhos à vapor. Os corpos deviam ser
purgados e limpos de todas as impurezas. Tanto as lavagens, as Purgações, os Banhos, a
Lacónica (estufa seca no tempo dos romanos) e os banhos vaporosos são todos simbolismos
alquímicos relacionados com a operação alquímica da Solutio. Neste sentido, a solutio tem
duplo efeito: provoca o desaparecimento de uma forma e o surgimento de uma nova forma
regenerada, como mostra principalmente a Visio Arislei
47
(Visão de Arisleu).
Na Visio Arislei, os filósofos e o casal de irmão-irmã, Gabricus (ou thabritius) e Beja,
filho do rei e filha do rei, são trancados no fundo do mar dentro de um tripla casa de vidro
pelo “Rei do Mar”. Como no mito do herói que conhece a condição de ser tragado pela
baleia, o calor no ventre desta é tao intenso que o herói chega a perder os cabelos, assim
também os filósofos sofrem um calor insuportável durante o seu encarceramento. Assim como
a finalidade de toda a opus é a transformação e a ressurreição do adepto, a questão aqui
também é a reanimação, não mais do rei, mas do filho do rei, Thabritis (Gabricus) morto, ou o
seu renascimento, segundo outras versões.A segunda versão da Visão de Arisleu aparece na
47
Uma das versões da Visio Arislei se encontra no terceiro texto alquímico do primeiro volume da coleção de
textos alquímicos Artis Auriferae. Michael Maier reserva também uma versão intitulada “Epitalâmio em honra
das núpcias de Beia e de seu filho Gabrico” em Symbola aurea mensae duodecim nationum.Frankfurt, 1617.
Segundo Jung, Arisleu é uma corruptela de Archelaos, devido a uma transcrição árabe. Archelaos poderia ser um
alquimista bizantino do século VIII-XI. No entanto, uma vez que a Turba atribuída a Arisleu remonta à tradição
árabe, presume-se que Archelaos tenha vivido em época bem anterior. Ruska identifica-o com Anaxágoras.
93
quinta figura do Rosarium Philosophorum, onde se diz:”Com tal amor (Beya) abraçou o
Gabricus que ela mesma absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços
indivisíveis.”
48
Eis a gravura correspondente:
Beya abraça Gabricus (Rosarium Philosophorum, 1550)
49
A concepção alquímica girava em torno da idéia central: a anima mundi (a alma do
mundo) permaneceu em estado potencial dentro da matéria e, com isto, se conservou também
o estado caótico inicial. A idéia destes antigos filosofos era de que Deus se revelou em
primeiro lugar na criação dos quatro elementos. Por isso os alquimistas achavam que a prima
matéria era uma parte do caos primordial “gravido” do espírito. Neste sentido, era tarefa do
alquimista libertar "a substância misteriosa" cativa na matéria. O estado de imperfeição
assemelha-se a um estado de dormência; neste estado os corpos encontram-se como que
acorrentados e adormecidos na Physis. Estes são despertados pela substância divina extraída
da pedra miraculosa, cheia do espírito. Na Visão de Arisleu, Beya, abraçou Gabricus com
amor tão grande que o recebeu por inteiro em sua natureza, dissolvendo-o em partículas
invisíveis. A gravura reproduz a descida do homem primordial ao seio da “physis”, de sua
aproximação dessa Physis que ameaça capturá-lo; e por isso é uma imagem arcaica que
perpassa toda a alquimia. Com relação ao aspecto psicológico da gravura é evidente que se
trata de uma descida ao inconsciente:
... O inconsciente pessoal corresponde à “sombra” e às chamadas “funções
inferiores”, que em linguagem gnóstico-cristã significa a pecaminosidade e a
impuritas, da qual deve ser lavado o catecúmeno. (...) Os inconsciente que tentam
atravessar o mar sem estarem purificados e sem a orientação iluminadora morrem
48
“...And she embraceth Gabrick with so great a love that she hath conceived him wholly in his nature and
divided him into inseperable parts.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html
49
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html
94
afogados, isto é, ficam retidos no inconsciente e caem na morte espiritual por não
serem capazes de desenvolvimento ulterior em sua orientação (JUNG, 1997, p. 192, §
251).
Uma imagem semelhante ao abraço de Beya (que aqui representa o mar inteiro)
absorvendo a natureza de Gabricus completamente e, dividindo-o em pedaços indivisíveis,
aparece na décima terceira figura do Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck
50
,
mostrando o rei, não mais misturado na profundeza do mar, mas ele próprio como "prima
materia", devorando o filho:
O rei devorando o filho (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
51
A gravura novamente reproduz o tema da descida do homem primordial no seio da
“physis”, de sua aproximação dessa Physis que ameaça capturá-lo. O texto que segue a figura
assegura: “Ao entrar o filho na casa de seu Pai, o Pai o rodeou com forte abraço, E ali mesmo
num instante o tragou; engolindo-o com extrema alegria.”
52
Psicologicamente, um ego
imaturo é eclipsado e ameaçado com destruição, isto é, à extinção da consciência, quando
abraça ingenuamente o inconsciente maternal. A alquimia expressa isso por meio dos
símbolos da morte, da mutilação ou do envenenamento. Em uma discussão psicológica, Jung
assegura:
50
O Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck, apareceu pela primeira vez numa coletânea de textos
alquímicos, publicada em 1599, em Frankfurt, por Nicolau Bernaudo, que afirma tê-lo traduzido do alemão, de
“um manuscrito muito antigo”. Ele reapareceu em outras coletâneas similares, como por exemplo, no oitavo
volume do Museu Hermético, publicado em 1678, também em Frankfurt.
51
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
52
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 277.
95
... O separar a realidade das camadas da ilusão que a envolvem nem sempre é sentido
como agradável, mas muito antes como penoso e até doloroso (...) pois o
desmascaramento da realidade não somente é, em geral difícil, mas não raramente é
até perigoso. As ilusões não seriam tão frequentes, se elas também não fossem boas
para alguma coisa e se ocasionalmente não encobrissem um lugar delicado com uma
escuridão salutar, da qual às vezes se espera que jamais caia sobre ele algum raio de
luz (JUNG, 1990, p. 276, § 396).
Com foi visto anteriormente, com relação específicamente à fase alquímica da
nigredo, além da operação alquímica da Solutio, Também a nigredo poderia ser produzida
pelas operações alquímicas nomeadas Separatio (separação) e mortificatio (mortificação),
segundo as quais descrevem o processo concomitantemente de discriminação e mortificação
do composto.
III. 4. A Separatio e a Mortificatio na fase alquímica nigredo
Como foi visto anteriormente,a Visio Arislei traz o motivo do despedaçamento pela
água, isto é, a Solutio. Entretanto a dissolução em partículas traz também o tema do ferimento
e da tortura que remonta na alquimia ao tempo de Zózimos e suas visões, como já foi
mostrado no capítulo anterior. Segundo Jung, “nesta forma tão completa, o motivo aliás nao
retorna jamais” (JUNG, 1997, p. 29,§27). Eis a seguir o trecho final destas visões:
Com isto, caindo (em mim) de novo, voltei a adormecer (...) e, quando me aproximei
do lugar do sacrifício, o homem que levava a espada disse-me: “Corta-lhe a cabeça e
esquateja a sua carne e os seus músculos, pedaço a pedaço, a fim de que a sua carne
possa ser fervida segundo ensina o método, e possa depois sofrer o sacrifício”. Neste
ponto despertei e disse para mim: “Compreendo bem que estas coisas se referem aos
líquidos da arte dos metais.” E de novo, o que trazia a espada disse: “Completaste a
subida dos sete degraus.” E o outro, ao mesmo tempo que se fundia em chumbo por
acção de todos os líquidos, disse: “A obra está completa.”
53
O encontro com o inconsciente e a retirada das projeções da realidade envolve sempre
uma lesão do ego. Essa lesão do ego é simbolizada pelo rei-sol aleijado ou que tem um
membro amputado. Uma das principais imagens referentes à esse processo, como nas visões
de Zózimo, está retratado no tratado alquímico Splendor Solis:
53
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
29.
96
O corpo mutilado (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)
54
54
Figura disponível em: disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.
97
De acordo com o texto:
Rosinus disse/ quis dar um ensinamento parabólico ao descrever (o quadro de) um ser
humano, que jazia morto/ e que ao mesmo tempo tinha o corpo extremamente alvo/
como o sal/ Seus membros estavam separados e sua cabeça era finalmente dourada/
mas separada do corpo/ próximo a ele se erguia um homem rude de face negra
terrível/ que tinha na mão direita uma espada de duplo corte, banhada de sangue/ era
o executor da pobre vítima/ na mão esquerda ele trazia um cartão sobre o qual estava
escrito: Eu te matei/ para que recebas uma vida superabundante/ mas devo esconder a
tua cabeça/ para que o mundo não te veja e espalharei teu corpo por toda a terra/ e o
enterrarei para que apodreça/ e se multiplique/ e produza frutos em incontável
abundância.
55
Percebem-se, tanto na imagem quanto no texto, nítidas associações com os temas da
alquimia, tais como a tortura, a morte e o renascer em forma apropriada. As fases da obra
também se apresentam nas cores da imagem. A nigredo está expressa na face escura do
homem com a espada que desmembra aquele corpo. Ao mesmo tempo as roupas
avermelhadas representam a perfeição atingida na fase de rubedo. Na brancura do corpo
mutilado e da túnica do executor está representada a fase de albedo. O estágio denominado
citrinitas está representado na figura na cabeça dourada do corpo morto, que deve, da mesma
forma que o segredo do ouro alquímico, ser escondida do mundo.
Sabe-se que o despedaçamento, o ferimento, aludem à operação alquímica da
Separatio (separação) ou Divisio (divisão). Estas duas operações alquímicas juntamente com
a solutio, constituíam operações alquímicas relacionadas à fase da nigredo. Considerava-se a
prima materia uma mistura de componentes indiferenciados que requeria um processo de
separação. Os vários processos químicos e fisicos realizados no laboratorio formecem
imagens para esse processo. Muito próxima das imagens referentes ao processo alquímico da
Separatio estão as imagens de mutilamento, despedaçamento, ferimento e por último, de
morte. As imagens de morte são associadas com a operação alquímica da Mortificatio
(Mortificação), pois a nigredo, quando não é a condição original da prima materia, tem como
origem a morte de alguma coisa. Com relação à Morticatio, Edinger considera:
A mortificatio nao tem nenhuma referencia quimica (...) Descrever um processo
químico como mortificatio é uma projeção integral de uma imagem psicológica. Isso
de fato aconteceu. O material contido no frasco era personificado, sendo as operações
realizadas consideradas como tortura. (EDINGER, 1999, p. 165-166)
55
Salomon Trismosin, La toison d`or, pp. 206-207. In: BELTRAN, M.H. R. Imagens de magia e de ciência:
entre o simbolismo e os diagramas da razão. São Paulo: EDUC 2000, p.76.
98
Associado à mortificatio, também se encontra a putrefactio, que significa "putrefação",
a decomposição que destrói os corpos orgânicos mortos. No geral, costuma-se descrever a
dissolução do antigo por meio de uma série de imagens negativas, associando-as com a
nigredo. Porém, essas imagens tenebrosass com frequência levam a imagens altamente
positivas, como crescimento, ressurreição, renascimento. Como foi visto no capítulo anterior,
na alquimia mais tardia aparece o motivo da renovação do rei. A transformação do rei indica
de maneira primitiva a renovação da força vital. Em muitos tratados, a “decadência” do rei
deriva de sua imperfeição ou de de sua doença. No Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham
Lambsprinck, o rei, que devorou o filho, é retratado na imagem seguinte, na cama, suando
profundamente por seu filho:
O rei doente (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
56
O texto que segue a gravura, diz:
Aqui está o Pai suando por seu filho. E, no fundo do coração reza ao Senhor, que é
quem, na verdade, tudo pode, já que foi Ele quem criou tudo que há. Ele pede que de
si faça surgir, o Filho de seu corpo, a fim que possa Ressuscitar e retornar à vida
plena.
57
Quando o rei se torna velho e necessitado de renovação, então se prepara o seu afundar
no banho ou no mar, sua dissolução e decomposição, o extinguir-se da luz em trevas, sua
renovação no estado de caos. Com isso se exprime o pensamento que a posição da
56
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
57
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 285.
99
consciência envelhecida necessita da influência de seus conteúdos inconscientes para seu
fortalecimento e renovação. A alegoria alquímica retrata o rei doente e frágil representando
um princípio dominante de cunho consciente que perdeu a sua eficácia e deve por isso
submeter-se à transformação. Assim, o rei também é um objeto frequente da mortificatio. No
vigésimo quarto emblema do Atalanta fugiens, um lobo, como prima materia, devora o rei
morto:
O lobo como prima materia devorando o rei (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
58
Basílio Valentim, em seu livro mais famoso, as Doze chaves da filosofia, já citado
anteriormente, parece fazer referência à este emblema do Atalanta fugiens. No texto que
segue o primeiro emblema e “a primeira chave da filosofia”, Valentim assegura:
...se queres operar nas nossas matérias, pega um feroz lobo cinzento, o qual (...) é
encontrado nos vales e nas montanhas do mundo, onde ele perambula quase
selvagem com fome. Dê à ele o corpo do rei, e, quando ele o tiver devorado, queima-
o totalmente até as cinzas em um grande fogo. Por esse processo, o rei será libertado
(...)
59
O aspecto psicológico da alegoria significa que a consciência ao descer por regiões
desconhecidas é dominada por forças arcaicas do inconsciente. O inconsciente é como
58
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html.
59
“If you would operate by means of our bodies, take a fierce grey wolf, which, (…) is found in the valleys and
mountains of the world, where he roams about savage with hunger. Cast to him the body of the King, and when
he has devoured it, burn him entirely to ashes in a great fire. By this process the King will be liberated (…)”
VALENTIM, Basílio (1609). As Doze Chaves da Filosofia. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html
100
natureza e como animal pode irromper na consciencia. Os símbolos teriomórficos
60
, segundo
Jung, “indicam sempre que um processo psíquico se realiza na etapa animal, isto é, na esfera
dos instintos” (JUNG,1997, p. 143,§173). No processo, a pessoa é “mordida” por animais ao
se expor aos afluxos do inconsciente. O psicólogo Edinger também comenta o emblema
acima do Atalanta fugiens, e assegura:
...a morte do rei é um tempo de crise e de transição. O regicídio é o crime mais grave.
Psicologicamente, significaria a morte do princípio que rege a consciência, a mais
elevada autoridade da estrutura hierárquica. Por conseguinte, a morte do rei seria
acompanhada por uma dissolução regressiva da personalidade consciente. Esse curso
de eventos é indicado pelo fato de o corpo do rei servir de alimento a um lobo
raivoso; isto é, o ego foi devorado pelo desejo faminto. O lobo, por sua vez alimenta
o fogo. Mas lobo = desejo e desejo=fofo. Assim, o desejo consome a si mesmo.
Depois de uma descida ao inferno, o ego (rei) renasce, à feição da fênix, num estado
purificado ( EDINGER, 1999, p.39).
Toda a regressão ao nível da psique instintiva deve submeter-se à transformação e
perder a identificação com o seu próprio desejo, isto é com o seu inconsciente. Neste sentido,
as paixões estão sempre representadas pelos animais. Um ego frágil é sobremodo vulnerável
ao ser consumido pelo encontro com um afeto intenso. Explosões de afeto, exigências de
poder, ressentimentos devem submete-se à mortificatio, para que a energia do conteúdo
inconsciente se transforme. Jung, em seu livro autobiográfico Memorias, sonhos e reflexões,
descreve o processo de abandonar-se às emoções e sentimentos negativos, os quais
entretanto, ele não podia aprovar. Ele anotava as fantasias que frequentemente pareciam-lhe
insensatas e, que no entanto, provocavam-lhe suas resistências:
...Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar
as imagens que se ocultavam na emoção, eu readquiria a paz interior. Se tivesse
permanecido no plano das emoções, possivelmente eu teria sido dilacerado pelos
conteúdos inconscientes. Ou talvez se os tivesse reprimido, seria fatalmente vítima de
uma neurose e os conteúdos inconscientes destrur-me-iam do mesmo modo (JUNG,
1996, p. 158).
Na alquimia o símbolo do dragão, isto é, a serpente ouroboros é um sinônimos da
prima materia. Assim como esta última, ele é bissexual , ou seja, se auto fecunda e nasce de si
mesma. Simbolo da auto-destruição e da transformação, a linguagem alquímica exprime o
próprio inconsciente que se prepara para o processo de renovação. Jung afirma em Mysterium
Coniunctionis que “o draco (dragao), é a forma mais baixa e inicial da vida do rei” (JUNG,
60
Do grego Therion = animal selvagem + morphé= forma, e significa, “em forma de animal”.
101
1997, p. 87, § 138). Já nas visões de Zózimo, o dragão aparece como sendo um dos símbolo
da prima materia:
...Observa bem de que lado se encontra a entrada do templo, toma uma espada em
tuas mãos e procura-a. Pois o lugar em que se acha o acesso à porta do templo é
exígio e estreito. Há um dragão estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o
abatendo-o em primeiro lugar; depois deves escalpelá-lo; toma sua carne com os
ossos, retalha seus membros; junta a carne dos membros um a um como os ossos na
entrada do templo; faze assim um degrau para ti; sobe-o e entra, lá encontrarás o que
procuras (...)
61
O dragão que devora a própria cauda é um antigo símbolo alquímico que representa o
“nous” devorado pelas próprias trevas no momento em que é abraçado pela “physis”. Ocorre
que “nous” e “physis” encontram-se em princípio como “caos”. Misturados um com o outro,
não há ainda discernimento. Enquanto a consciência não se manifesta, os opostos do
inconsciente permanecem latentes. Eles são ativados pela consciência e o “regius filius”, é
então tragado pela “physis”, adquirindo um predomínio sobre a consciência. O dragão é um
ser primitivo que vive nas cavernas, e em uma ánalise psicológica, representa uma
personificação da psique instintiva. Jung analisa o trecho acima das visões de Zózimo e
assegura:
O dragão, isto é, a serpente, representa a inconsciência original, pois este animal
como dizem os alquimistas gosta de permanecer “in cavernis et tenebrosis locis”:
Esta inconsciência deve ser sacrificada. Só então poder-se-á encontrar a entrada para
a cabeça, isto é, para o conhecimento consciente. Aqui ocorre de novo a luta
universal do herói contra o dragão, em que cada vitória o sol nasce, isto é, a
consciência se ilumina (JUNG, 2003, p. 90-91,§ 118).
Ligado ao aspecto selvagem da psique, o dragão é escolhido para morrer, no Atalanta
Fugiens, na imagem da Mortificatio do dragão:
61
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65.
102
Mortificatio do dragão (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
62
O mito do herói conhece a condição de ser tragado pela baleia, assim como Jonas foi
tragado pelo peixe e retido em seu ventre. A finalidade de todo conhecimento e de toda a opus
é a transformação e a ressurreição do adepto. Da mesma maneira como o heroi resgata a
donzela cativa do dragão, assim também o alquimista redime a anima mundi de sua prisão na
matéria por meio da mortificatio da prima materia.
Como foi visto no capítulo anterior, o sol é um sinônimo alquímico de ouro;
consequentemente, o rei no essencial é um sinônimo do Sol. Sendo assim, por vezes, o rei é
substituído pelo sol, onde ele, como consciência dominante é engolido pelo leão, isto é, como
mostra a décima oitava no Rosarium philosophorum:
O sol sendo devorado pelo leão (Rosarium Philosophorum, 1550)
63
62
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html.
63
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary5.html.
103
A mortificatio do rei ou do sol refere-se à morte e transformação de um princípio
diretor dominante. Estas representações alquimicas tratam do tema da transformação de um
modo original. São os processos que a materia prima deve suportar a fim de ser transformada,
as quais se inserem no contexto mais vasto do novo nascimento. Eirenaerus Philaletha em A
entrada aberta ao palacio fechado do rei, no Capítulo vigésimo quarto, intitulado “Do
primeiro regime da Obra, que é mercurio”, considera:
Estejas bem certo de que, se bem que nosso Mercúrio devora o Sol, não é da maneira
que pensam os Químicos Filosofistas. Porque, mesmo se o unes ao nosso Mercúrio,
após uma espera de um ano recuperarás o Sol intacto e em plena posse de sua virtude
primeva, se não o fizeste cozinhar ao grau conveniente de calor. Quem o contrario
afirmar, Filósofo não pode ser.
64
O sol, princípio masculino, espiritual da luz e do logos desaparece no “abraço” da
physis, representado na natureza animal do leão. Nota-se, tanto nesta, quanto nas outras
alegorias, a necessidade da simbolização em forma de animais. A mortificatio, segundo Jung,
“significa a superação do antigo ou precedente; primeiramente é a superação das etapas
perigosas antecedentes, as quais vem designadas por símbolos de animais” (JUNG, 1997, p.
136,§164). Na figura acima, o sol simbolizando a consciência dominante é devorado pelo
Leão. O leão, assim como o dragão, representam o aspecto perigoso da prima materia.
Entretanto, ele é a forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso, e neste aspecto,
é a forma mais alta e posterior da transformação do rei, cuja a primeira forma é o dragão:
... este animal régio, que já na época helenística era considerado como a etapa da
transformação do Hélio, significa o velho rei (...). Ao mesmo tempo representa ele, na
forma teriomórfica, o rei que se transforma, isto é, na forma em que ele, a partir de
seu estado inconsciente, se dá a conhecer. A forma animal exprime que o rei de certo
modo foi subjugado ou encoberto pelo leão e que por isso toda a sua manifestação de
vida consiste apenas em reações animalescas, que justamente nada mais são do que
emoções. Emocionalmente, no sentido de afetos desgovernados, é um assunto
essencialmente animal (...) (JUNG, 1990, p. 47-48, § 65).
Sendo assim, o leão, símbolo do poder vital e da soberania solar, é o rei dos animais e
aspecto teriomórfico do sol, ou uma etapa de transformação dele. Por isso, há também uma
versão com o próprio leão submetido à mortificatio, pela amputação de suas patas. A
64
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
104
mutilação do leão tem na alquimia de fato o significado de domar a concuspicência
65
. Ao
analisar o décimo sonho de uma série especialmente de cunho metafísico, Edinger comentou
essa imagem alquímica, e assegurou que “as mãos são o agente da vontade consciente. Assim
ter as mãos cortadas corresponderia à experiência da impotência do ego” (EDINGER, 2000,
p. 286). Segue abaixo essa imagem na alquimia, cuja a forma mais extrema, aparece como o
homem esquartejado do tratado Splendor Solis, já visto anteriormente:
O leão sem patas (Songe de Poliphile, 1600)
66
No geral, o rei, o sol e o leão referem-se ao princípio diretor do ego consciente e ao
instinto de poder. Num certo ponto, esses aspectos devem ser mortificados para que ocorra
uma transformação em uma forma renovada e mais consciente surja um novo. Uma vez que
sol, rei e ouro se equivalem, assegura Edinger, “isso significa uma descida da consciência ao
reino animal, no qual deve suportar as ferozes energias do instinto. No conjunto químico de
imagens, seria a purificação ou refino do ouro” (EDINGER, 1999, p. 39).
O leão é a forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso, cuja a primeira
forma é o dragão. Apos ele ser morto e eventualmente despedaçado, segue quase sempre a
forma de leão. O leão por sua vez é seguido pela águia. Segundo Jung “a águia é a etapa
imediatamente superior à do Leo. Este como quadrúpede, ainda está ligado à terra, ao passo
que a Águia representa um spiritus (espírito)”
67
. Nota-se que a transformação alquímica
65
Segundo Jung, o leão ígneo, quer representar “ a emocionalidade passional, que significa a etapa previa do
conhecimento de conteudos inconscientes” (JUNG, 1990, p. 46, § 64).
66
Parte da imagem tirada do frontispício do Songe de Poliphile (1600), editado por Béroalde de Verville. Figura
disponível em EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000, p. 285. Também disponível em
JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 48.
67
JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.73,§ 116, nota 256.
105
conduz da maior profundidade, representada pelo aspecto primitivo do dragão na caverna, até
as maiores alturas, na águia solar. Do nivel animal e arcaico o alquimista busca-se o homem
místico.
Uma gravura em especial na “terceira chave dos filosofos” do tratado As doze chaves
da filosofia, de Valentim, retrata um dragão com asas e, logo acima da cabeça do dragão,
sobrepõem-se as imagens de um lobo e um pássaro; como pode ser visto à seguir:
A terceira chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)
68
Eis as representações psíquicas daquele alquimista que quer vencer os aspectos
instintivos e selvagens do corpo. Nesta gravura, fica nítido as transformações nos símbolos
teriomórficos. O dragão, a forma mais baixa e inicial da vida do rei, passa a ser retratado com
asas. O lobo, que junto com o cão, por serem a forma de sangue quente do animal devorador e
impetuoso, são colocados no mesmo nível que o leão, passa a ser retratado sendo carregado
por uma águia. Esta como visto anteriomente, é a etapa imediatamente superior à do leão.
Este como quadrúpede, ainda está ligado à terra, ao passo que a águia representa um espírito.
O texto que segue a figura, acrescenta:
O fogo pode sufocar-se e apagar-se com a água; muita água deitada sobre um pouco
de fogo faz-se dona deste. Assim se deve fazer o nosso sulfeto ígneo, moderado,
vencido e obtido devidamente pela água, para que depois a água ígnea devore e
68
Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html.
106
domine as águas e se retire. Mas não poderemos obter aqui uma vitória, se o rei não
tiver dado a sua virtude e força à sua água e não lhe tiver dado a sua virtude e força à
sua água e não lhe tiver proporcionado o seu libre e cor real, para com ele ser
dissolvido e convertido em invisível, devendo, contudo, aparecer outra vez e mover-
se à vista. E, ainda que isto não se possa fazer sem dano nem lesão do seu corpo, far-
se-á contudo com aumento da sua natureza e virtude.
69
O sulfeto ígneo, de natureza e cor do fogo, é simbolizado claramente na figura do
dragão. Este como aspecto instintivo da psique será vencido, isto é mortificado pela água da
dissolução, como retrata o trecho “assim se deve fazer o nosso sulfeto ígneo, moderado,
vencido e obtido devidamente pela água”. Entretanto tendo feito isto, este corpo será revivido
novamente pela água, em uma forma superior. Desta maneira separa-se da mistura a parte
mais volátil por evaporação seguida da condensação, por isso o significado do trecho “para
que depois a água ígnea devore e domine as águas e se retire”. Logo o rei vem substituir o
dragão ígneo, representando a renovação em uma forma superior. Este então, passa por uma
nova mortificatio, como descreve o trecho: “Mas não poderemos obter aqui uma vitória, se o
rei não tiver dado a sua virtude e força à sua água”. Embeber a mistura com a sua própria
água, significa que esta mistura deverá ser destilada e, por isso, embebida pela própria
essencia dela extraída, até que seja elevada ao grau máximo de pureza pelo movimento
circular continuado, revivendo em um natureza superior. Desta maneira o corpo novo levanta-
se outra vez desobstruído, puro e imortal, como descreve o trecho: “ainda que isto não se
possa fazer sem dano nem lesão do seu corpo, far-se-á contudo com aumento da sua natureza
e virtude”.
Erich Neumann, discípulo e colaborador de C. G. Jung, em seu livro História da
origem da consciência, descreve a ruptura do estado uroborico inicial. Neste processo, parte-
se do “caos”do estágio da uroboros de Neumann e, se observa, de modo geral, no motivo da
luta com o dragão, um desenvolvimento e transformação da libido. Nesse processo de
transformação da humanidade, assegura Neumann:
... Jung conseguiu provar o significado transpessoal da luta do herói porque não
tomou o aspecto familiar pessoal como o ponto de partida para o desenvolvimento
humano, mas sim o desenvolvimento e a transformação da libido. Nesse processo de
transformação da humanidade, a luta do herói desempenha um papel eterno e
fundamental na superação da inércia da libido, inércia que se apresenta no símbolo da
mãe-dragão circundante, isto é, do inconsciente (NEUMANN, 2003, p. 122).
69
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 127-128.
107
O emblema quadragésimo primeiro do Atalanta Fugiens retrata Adônis morto por um
varrão, por quem Venus apressada, tinge as rosas com seu sangue:
Adônis morto por um varrão (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
70
A narrativa que segue o emblema, diz:
Mas Adonis é morto pelo varrão, (isto é, pela agudeza do vinagre, ou pela água se
dissolvendo, a qual possui dentes terríveis como um varrão) e tem seus membros
despreendidos e cortados fora. Mas Venus esforça-se para ajudar seu amante; e
quando ele estava morto, o estendeu e o preservou entre alfaces.
71
O porco e o javali, são animais que representam o aspecto selvagem da psique, por
serem vorazes glutões. Não à toa o texto compara a dissolução da água com os terríveis dentes
destes animais. Estes são os responsáveis pelo estado de desagregamento produzido pelo
impacto do choque com o inconsciente. A figura do cão também se encontra na alquimia
como um dos simbolismos para representar o aspecto da prima materia, isto é, da psique
instintiva. Tanto o lobo, o cão e até mesmo o leão, são colocados no mesmo nível, pois são as
forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso. Cérbero, o guardião do inferno, era
um cão mostruoso, de cabeça tripla e cauda de dragão, com que violava todos os que iam ter
os infernos. Ele era o cão de Hades, o deus infernal. No sétimo capítulo do tratado alquímico
70
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html.
71
“But Adonis is slain by the Boar, (that is, by the sharpness of Vinegar, or dissolving water, which hath terrible
teeth like a Boar ) and has his members loosened and cut off. But Venus endeavours to help her Lover; and when
He was dead, laid out and preserved him among Lettuces.” MAIER, Michael (1617) Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html.
108
A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei, Eirenaerus Philaletha, faz referência à figura do
cão
72
:
Daí nascerá o Camaleão, quer dizer, nosso Chaos, onde estão escondidos todos os
segredos, não em ato, mas em potência. É esse o infante Hermafrodita, envenenado
desde o berço pela mordida do cão enraivecido de Corascena, por causa de uma
hidrofobia permanente, ou medo da água, que o torna louco e insensato; e agora que a
água é o elemento natural mais próximo dele, ele a abomina e foge dela. Ó Destinos!
Não obstante, encontram-se na floresta de Diana, duas pombas que suavizam sua raiva
insensata ( se as aplica com arte da Ninfa Vênus ). então para impedir que esta
hidrofobia o retome, mergulhe-o nas águas, e que ele pereça. Neste momento, o Cão
Negro Enraivecido, sufocado, incapaz de suportar as águas, subirá quase até a sua
superfície; persegue-o à forca de chuva e golpes, e faz com que fuja para bem longe;
assim desaparecerão as trevas. Quando a Lua brilhar plenamente, dará asas à Águia,
que voará (...).
73
Na citação acima, o “caos” é um infante hermafrodita, isto é, uma criança andrógina
que foi mordida pelo cão raivoso ainda muito nova. Nota-se que o cão negro e raivoso
representa a nigredo. Devido à contaminação e o envenenamento da prima matéria (cão), o
hermafrodita se tornou hidrofóbico, o que parece insensato aos olhos do alquimista, pois a
umidade é o elemento mais próximo desta fase no mercúrio comum. Mas é justamente das
trevas tenebrosas da nigredo, que o infante quer se afastar. As duas pombas, então, pelo
movimento circular continuado correspondente à destilação, mergulhao novamente nas
águas, onde o cão se encontra, para que este se transforme em uma forma superior (águia), na
ocasião então da lua cheia (alusão à albedo).
No trecho do tratado de Eirenaerus Philaletha há referencia à Lua. O mundo materno
feminino-ctônico da agua permanens (água eterna), ou respectivamente do “caos” é associado
ao mundo lunar. A prima materia em seu aspecto feminino, é a lua, a mãe de todas as coisas;
ela também tem mil nomes, é a terra e a serpente escondida nela; por sua umidade estava
relacionada à umidade destruidora da nigredo. A Lua, segundo Jung, “é o oposto do sol; por
isso é fria, úmida, de luz fraca até a escuridão, feminina, corpórea, passiva” (JUNG, 1997, p.
124, §149). Enquanto o sol alquímico, por sua luminosidade era equiparado à iluminação, à
luz da natureza, e em última instância, com o surgimento da consciência, “parece que os
appetitus como ‘potentiae sensuales’ pertencem a esfera da lua; são a ira e o desejo (libido),
ou numa palavra a ‘concuspicentia’” (JUNG, 1997, p. 137,§199).
72
Segundo Jung, “...a figura do cão penetrou na alquimia ocidental pelo Liber Secretorum, que é um tratado de
Kalid, talvez escrito originariamente em árabe” (JUNG, 1997, p. 140-141,§169).
73
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
109
Na alquimia o símbolo da lua, assim como do sol, foi exaustivamente abordado. O
simbolo da lua nova, ou seja quando esta “engole” o sol, foi muitas vezes usada nos tratados
para simbolizar a fase da nigredo. Entretanto, somente na lua cheia ela está em completa
oposição ao Sol, e a sua luminosidade branca e brilhante era associada à fase da albedo. Em
Mysterium Coniunctionis, Jung trata sobre a figura alquímica do cão, e especificamente
analisa o trecho acima de Eirenaerus Philaletha:
Este relacionamento mencionado entre o cão e a Lua permite compreeender que o
cão perigoso e doente sofre uma transformação por ocasião do plenilúnio, mudando-
se em uma águia. Desaparece então sua natureza sombria e ele se torna um animal
solar. Por isso deve-se supor que o pior estado dele cai no novilúnio (...) isto é, na
época da nigredo. Não está claro o modo como o cão hidrofóbico e raivoso chega até
a água, a não ser que desde o começo já se encontre nas “aquae” (inferiores) (JUNG,
1997, p. 149,§177).
Estas simbologias alquímicas demonstram uma transformação psíquica quanto ao grau
de consciência dos conteúdos inconscientes. Transformações estas que eram acompanhadas
por transformações tanto nos simbolos teriomórficos como nos símbolos ligados às fases da
lua. Deste modo, da escuridão do inconsciente surge a luz da iluminação da albedo. Sobre
este aspecto da lua cheia, Jung traz uma citação do século XVI, no tratado De igne et sale de
Blasius Vigenerus
74
:
... De tal modo constitui a lua o caminho para o céu que os pitagoreus a designaram
como terra celeste e o céu terrestre e astro, porque a natureza inteira é inferior no
mundo dos elementos em relação ao intelligibile. (...) Na mesma proporção em que (a
lua) se afasta deste [o sol] para atingir a oposição, aumenta também a sua
luminosidade para nós neste mundo, mas desaparece no lado que olha para cima.
Reciprocamente, se ela está em conjunção quando para nós está obscurecida, se
encontra totalmente luminada de brilho na parte que está voltada para cima (para o
Sol). Isto acontece para nos ensinar que, quanto mais nosso intelecto descer para as
coisas dos sentidos, tanto mais se desvia das coisas inteligíveis, e vice-versa.
75
Esta temática envolve toda uma problemática que a alquimia se viu envolvida, a saber,
a problemática da união simbólica do elemento animal com as mais elevadas conquistas
morais e intelectuais do espírito humano. Esta questão traz também o capítulo para o seu
objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo o primeiro grau da
Coniunctio de Dorneus está relacionado com a fase alquímica da nigredo. É compreensível
74
Segundo Jung, Blaise de Vigenere (1523-1596 ) era um conhecedor muito douto do hebraico. Na alquimia a
cabala foi aceita tanto direta como indiretamente, por isso é possível encontrar citações do Sohar.
75
Theatrum Chemicum.VI, p. 17. In: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p.
21, § 19.
110
também que se fez necessário abordarmos alguns aspectos essenciais presentes na simbólica
da fase seguinte, a albedo, de modo que se demonstre que quanto mais se caminha para uma
unio mentalis, mais se afasta da simbólica envolvida no contexto da nigredo e mais se
aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir
a respectiva fase “negra”.
III. 5. A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de
Gerardus Dorneus
Os indivíduos que tentam atravessar o mar (inconsciente) sem estarem purificados e
sem a orientação iluminadora morrem afogados, isto é, um ego imaturo é eclipsado e
ameaçado com destruição, quando abraça ingenuamente o inconsciente maternal, ficando
retido no inconsciente, por não ser capaz de desenvolvimento posterior em sua orientação.
Esta ocasião é associada na alquimia com o negrume da lua nova. Entretanto, quanto mais o
intelecto sobe para as coisas inteligíveis, tanto mais se desvia das coisas do sentido. Entre
essas imagens deste processo psíquico, destaca-se a lua cheia. Somente na lua cheia ela está
em completa oposição ao Sol. Na mesma proporção em que (a lua) se afasta deste [o sol] para
atingir a oposição, aumenta também a sua luminosidade para nós neste mundo.
Psicologicamente falando, somente um ego que não sucumbiu ao encontro com a sombra,
mas encontra-se em um estado de igualdade de ânimo, prudência e imparcialidade, transcende
a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua). Sobre a passagem simbólica da lua nova
para a lua cheia, do ponto de vista psicológico da Opus, considera Jung:
...No mito alquímico do rei, a confrontação vem expressa pela colisão do mundo
paterno espiritual- masculino do Rex Sol (rei sol) com o mundo materno feminino-
ctônico da agua permanens (água eterna), ou respectivamente do “caos” (...) O
reflexo do Sol é a Luna feminina, que dissolve o rei em sua umidade. É como se o
Sol descesse e penetrasse na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as
forças do (mundo) com as do inferior (...). A dominante da consciência, agora
tornada inoperante, desaparece de modo ameaçador nos conteúdos ascendentes do
inconsciente, pelo que ocorre primeiramente um obscurescimento da luz. O combate
entre a dominante da consciência do eu e os conteúdos do inconsciente é sustentado
primeiramente de modo que a inteligência procura colocar cadeias em seu oponente
(JUNG, 1990, p. 111-112, § 170).
De modo especial, é importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de
completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).
Jung, na citação acima, assegura, que o combate entre a dominante da consciência do eu e os
111
conteúdos do inconsciente é sustentado primeiramente de modo que a inteligência procura
colocar cadeias em seu oponente, isto é, nos conteúdos ascendentes do inconsciente; nesta
simbólica alquímica, a natureza inteira é inferior no mundo dos elementos em relação ao
inteligível. Uma das imagens referentes à esse processo psíquico na alquimia é a decapitação.
A decapitação aparece na imagem do seccionamento da cabeça de ouro, nos manuscritos do
Splendor Solis, no processo alquímico da separatio e mortificatio do corpo, mostrado
anteriormente. Ion é despedaçado pelo homem com a espada já no século III, em Zózimo.
através do escalpelamento, cujo o trecho foi citado no capítulo anterior:
...Com efeito, alguém veio às pressas, de madrugada, subjugou-me e me transpassou
com uma espada e me dividiu em pedaços, mas de tal maneira, que a disposição de
meus membros continua harmoniosamente como antes. E arrancou a pele de minha
cabeça com a espada que ele vibrou com força e recolheu os ossos com os
fragmentos de carne, queimando tudo no fogo, com a própria mão, até que percebi
me haver transformado em espírito.
76
Assim como nos rituais de sacrifício astecas, o Sacerdote, ao se alimentar do coração
da vítima, assimilava sua força e coragem, da mesma forma que os ídolos untados com seu
sangue adquiriam vida e poder; assim também extrair e devorar o cérebro de um inimigo deve
produzir a incorporação de suas forças vitais. Na alquimia, a cabeça desempenha papel
considerável. Em Zózimo e em alquimistas mais tardios, a cabeça, segundo Jung “ tem o
significado do ‘redondo’, do chamado elemento ômega, (...) que se refere à substancia arcana
ou da transformação. A decapitação significa portanto a obtenção da substancia arcana”
(JUNG, 2003, p. 74, § 95). Assim também a cabeça de corvo é a designação tradicional da
nigredo. No Theatrum Chemicum, “a cabeça do corvo é a origem da obra”
77
. Associado à fase
negra estava a figura do etíope. No Treatrum Chemicum: "a nigredo (negrura) ou
respectivamente caput corvi ( cabeça de corvo), é designada como ´caput nigrum
aethiopis`(cabeça negra do etíope)."
78
A figura do "etíope", que aparece também em outros
tratados, segundo Jung, origina-se igualmente de um tratado atribuído a Alberto intitulado
Super arborem Aristotelis. A passagem diz: " até que a cabeça negra que se assemelha ao
etíope fique bem lavada e comece a tornar branca".
79
76
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa. Rio de Janeiro:Vozes, 1991, p. 27.
77
Theatrum Chemicum. Vol. I, Ursel, 1602, p. 166. Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro:
Vozes, 1990, p. 268, § 386, nota 178.
78
Treatrum Chemicum. Vol. III, Ursel, 1602, p. 854 Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro:
Vozes, 1990, p.266, § 384, nota 162.
79
Treatrum Chemicum. Vol. II, Ursel, 1602, p.524s. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro:
Vozes, 1991, p.418, § 484, nota 171.
112
Nicolas Flamel (1330-1418), o mais célebre alquimista francês, em sua obra mais
famosa O livro das figuras hieroglíficas, também menciona a expressão “cabeça do corvo” no
texto sobre quarta figura que trata sobre a “Albificação” e o “Embranquecimento”. A figura
retrata um homem semelhante a São Paulo, vestido com uma roupa branco-alaranjada,
segurando uma espada e tendo a seus pés um homem ajoelhado. Na explicação da figura,
Flamel considera:
... Observa bem este homem na forma de São Paulo, vestido com uma roupa
inteiramente branco alaranjada. Se bem o considerares, ele vira o corpo em postura
que demonstra que ele quer tomar a espada nua, ou para cortar a cabeça, ou para
fazer qualquer outra coisa a este homem que está a seus pés de joelho, vestido com
uma roupa alaranjada, branca e negra, o qual diz em seu rolo: (…) suprime minha
negritude, termo da arte. Mas queres saber o que quer dizer este homem que toma a
espada? Significa que se deve cortar a cabeça do corvo, ou deste homem, vestido de
diversas cores, que está de joelho. Tomei esse desenho e figura de Hermes
Trismegisto em seu Livro da Arte Secreta, onde ele diz: Suprime a cabeça a este
homem negro; corta a cabeça ao corvo, ou melhor, embranquece nossa areia
(FLAMEL, 1973, p. 94).
Assim como o homem com a espada arranca a pele da cabeça de Ion, o dragão também
sofre o escalpelamento, ambos nas visões de Zózimo, em trecho já citado: “Há um dragão
estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o abatendo-o em primeiro lugar; depois deves
escalpelá-lo”
80
. O escalpelamento, segundo Jung, “deve significar um apropriar-se pars pro
toto do princípi da vida ou da alma” (JUNG, 2003, p. 73, § 93). A mesma operação realizada
com auxílio da espada aparece na segunda figura de Lambsprink:
(Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
81
80
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65.
81
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
113
O texto que acompanha a figura, assegura: “Os sábios afirmam que vive no Bosque,
um Dragão cuja a pele é de um negror completo. Mas se alguém lhe cortar a cabeça, ele perde
na hora sua escuridão. E se torna, inteiro, branco como a neve.”
82
Jung comenta o significado
psicológico do símbolo alquímico da decapitação
83
:
...A decapitação é importante como símbolo, por ser uma separação da “intelligentia”
(inteligencia) da “passio magna et dolor” (grande sofrimento e dor), que a natureza
causa à alma. Ela é como uma emancipação do pensar residente na cabeça, que é a
“cogitatio” (cogitação) ou uma libertação da alma “das cadeias do corpo”. Ela
corresponde à intenção de DORNEUS de estabelecer uma “unio mentalis in
superatione corporis” (união mental por meio da superação do corpo (JUNG, 1990, p.
269, § 387).
Na simbólica alquímica, o estado de sofrimento da matéria, ou seja, o sofrimento e a
dor, que a natureza causa à alma, desaparece somente quando a fase da nigredo foi vencida e
a aurora anuncia a albedo. Marie-Louise Von Franz em sua obra Alquimia:, considera que a
brancura da fase da albedo, “sugere purificação, o fim da contaminação da materia, o que
significa aquilo que chamamos tecnicamente, e de modo tão displicente, o retrocesso de
nossas projeções” (VON FRANZ, 1980, p. 195). Na simbólica dos três graus da coniuctio de
Dorneus, este estado é alcançado através da unio mentalis. Do ponto de vista psicológico, a
unio mentalis coincide com o auto conhecimento e a ampliação da consciência
84
. Jung em
Mysterium Coniunctionis define o auto conhecimento como “recuo das projeções ingênuas,
por meio das quais modelamos a realidade que nos circunda e a própria imagem de nosso
carácter” (Idem, 1990, p. 276, § 396). Sobre o retrocesso das projeções representada no estado
de brancura purificada da matéria, assegura Von Franz
Logo que uma projeção é realmente retirada, se estabece uma espécie de paz a
pessoa torna-se tranquila e é capaz de observar as coisas de um ângulo objetivo. Ela
pode examinar o problema ou o fator específico de forma objetiva e serena, e talvez
usar alguma imaginação ativa a respeito do mesmo sem se tornar constantemente
emocional ou recair no emaranhado de emoções. Isso corresponde à albedo e
constitui, de certa forma, o primeiro estágio do processo em que a pessoa se torna
82
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 54.
83
Edinger acrescenta: “That`s the unio mentalis. And, (…), one of the images for that phenomenon is
decapitation - beheading, separating the head from the body. That`s a stark and vivid image for the fact that
everything going on in the head gangs up against the body, doesn`t want to have anything to do with the body,
and so separates from it, (…)” [Esta é a unio mentalis. E, (...), uma das imagens para esse fenômeno é
decapitação - degolando, separando a cabeça do corpo. Esta é uma imagem completa e vívida para o fato que
tudo que vai sobre a cabeça conspira contra o corpo, não quer ter qualquer coisa a fazer com o corpo, e assim se
separa dele (...)] (EDINGER, 1995, p. 285).
84
Jung acrescenta: “A unio mentalis (união mental) representa, pois, tanto na linguagem alquímica como na
psicológica a ‘cognitio sui ipsius’ ou o conhecimento de si mesmo” (JUNG, 1990, p. 254, §370).
114
mais tranquila, mais despreendida e objetiva; filosoficamente mais imparcial. Ela tem
um ponto de vista au dessus de la melée; pode colocar-se no topo da montanha e
observar a tempestade que se desenrola embaixo e que ainda está naturalmente em
curso, mas pode ser vista sem medo ou sem que a pessoa se sinta ameaçada por ela
(VON-FRANZ, 1980, p. 195).
Em uma discussão psicológica, análogo ao estado de igualdade de ânimo, prudência e
“filosoficamente mais imparcial”, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do
corpo, sem recair no emaranhado de emoções; a confrontação com a sombra, segundo Jung,
“causa primeiramente um equilíbrio morto” (Idem, 1990, p. 252, § 367). Tal estado de
despreendimento objetivo é descrito inicialmente como uma atitude realista para com as
exigências do mundo exterior. A disciplina rígida, por seu turno, enfatiza os limites estritos de
comportamento, encoraja a dissolução da identidade ego-Si-mesmo e trata a inflação de modo
aparentemente eficaz. Diz-se “aparentemente”, pois há um verdadeiro perigo de que conforme
o ego vai se separando do si-mesmo, o vínculo vital que os liga seja danificado,
permanecendo alienado do seu próprio intimo. Naturalmente existe a máxima tentação do ego
se identificar com o si-mesmo, o que resulta numa espécie de vago super homem,
alimentando assim a ilusão de um domínio do eu. Neste caso, as figuras do inconsciente são
psicologizadas, e o si-mesmo, em consequência, assimilado ao eu. Em outros casos, considera
Jung:
... o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos afluxos dos
conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente, o que
dá origem a um enfraquecimento e obscurescimento da consciência do eu, a uma
identificação deste com a totalidade inconsciente. Tanto um como o outro destes dois
procedimentos impossibilitam a realização do eu [sem grifo no original] (JUNG,
1998[A], p. 161).
Edinger, em seu livro o Ego e o arquétipo, analisa a separação da identidade
inconsciente com o Si-mesmo, ou seja, estado de identificação com a unidade inconsciente
original, descrito na simbolica alquímica na fase da nigredo e, considera que o ato inflado, ou
seja, o ato de hybris é um crime necessário, pois é preciso defender o mundo da
consciênciencia e da realidade contra um estado onírico e arcaico, evitando a assimilação do
eu pelo inconsciente. O autor considera que o tema do encontro com uma cobra ou de ser
mordido por uma cobra, comum nos sonhos, tem o mesmo significado de sucumbir à tentação
da serpente que se apresentou para Adão e Eva, no Jardim do Éden; assim como os sonhos em
que comete-se um crime possui o mesmo significado do crime original do roubo do fruto:
115
... A obtenção da consciência é um crime, um ato de hybris contra os poderes
estabelecidos, mas é um crime necessario, que leva a uma necessaria alienação com
relação ao estado inconsciente natural da unidade. (...) é preferível ser consciente a
permanecer no estado animal. Mas, para emergir, o ego é obrigado a colocar-se
contra o inconsciente de que proveio e assegurar a sua autonomia com um ato inflado
(EDINGER, 2000, p. 50).
Edinger considera que cada um desses passos, na qualidade de ato verdadeiramente
inflado, é acompanhado não só de culpa mas também do risco bastante real de levar a entrar
num estado de inflação que acarrete as consequencias de uma queda. Em certo sentido, a
separação da alma das cadeias do corpo descrito na unio mentalis, transcende a afetividade e o
aspecto instintivo do corpo, e os impulsos animais do inconsciente. Entretanto, este estado
tende a danificar a conexão vital e necessária entre o ego e as raizes que ele mantém no
inconsciente. A separação das esferas espiritual e vital, e a subordinação desta última a pontos
de vista racionais,segundo Jung “ não agrada, uma vez que a ratio (razão) sozinha não é capaz
de avir-se de maneira abrangente e satisfatória com os dados irracionais do inconsciente”
(JUNG, 1990, p. 225-226, § 335).Von Franz em Alquimia, analisa o estado de completa
introversão mental produzida pela unio mentalis entre a mente e anima no primeiro grau da
Coniunctio de Dorneus, e considera:
... o sentimento inconsciente, ou pensar de um certo modo, é uma umidade
corruptível de que não nos damos conta, e o objetivo do trabalho é cozinhar toda ela
até que seja eliminada. Os sonhos localizam e assinalam o fato e, interpretando e
integrando o que eles nos dizem, livramo-nos lentamente dessa umidade. Mas se
prosseguirmos por tempo demais, se superanalisarmos, perderemos um certo
momento decisivo no processo, que só deveria prosseguir por um determinado
período de tempo, visto que, se este for excessivamente prolongado, as pessoas
perderão sua espontaneidade (VON FRANZ, 1980, p. 202).
Em certo sentido a unio mentalis no primeiro grau da Coniunctio de Dorneus, tende a
superar aquele estado em que a afetividade aprisionada no corpo influenciava perturbando a
razão; entretanto apresenta, ao mesmo tempo, o risco de danificar a ligação do ego com o
inconsciente, o que desencoraja a espontaneidade. Por isso, sabe-se que o combate entre a
dominante da consciência do eu e os conteúdos do inconsciente é sustentado, primeiramente,
de modo que a inteligência procura colocar cadeias em seu oponente; entretanto, continua
Jung, “com o tempo, falham essas tentativas ate que o eu aceite sua fraqueza e dê liberdade ao
combate furioso das potencias psíquicas que se desenrola no seu íntimo” ( JUNG, 1990, p.
112, §170). No ascetismo religioso a sujeição das paixões afetivas ocorre por meio de
penitencias, abstinências ou de dolorosos rigores inflingidos ao corpo. Em uma discussão
116
psicológica, de fato, essa assertiva deve ser tomada em sentido simbólico, e não de forma
literal. Os desejos devem ser mortos em sua forma projetada, de cunho obsessivo. Segundo
Jung:
... Não compensa mutilar por muito tempo o ser vivo pelo primado do espiritual,
razão pela qual mesmo o piedoso não pode impedir de sempre de novo pecar uma vez
ou outra, e o racionalista deve sempre de novo aborrecer-se com suas
irracionalidades. (...) Felizmente a natureza cuida de fazer com que os conteúdos
inconscientes mais cedo ou mais tarde despontem na consciência para aí provocar as
perturbações correspondentes. Uma espiritualização duradoura e livre de
complicações é por isso tão rara que seus detentores são canonizados pela Igreja
(JUNG, 1990, p. 226,§335).
Sendo assim, as operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a
solutio, a separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo
de dissolução, discriminação e mortificação do composto. Estas operações alquímicas
descritas nas alegorias envolvem uma gama de simbolismos alquímicos, principalmente os
relacionados à nigredo, pois este parece ser o aspecto que os filósofos da arte mais se
debruçaram. Com o intuito de restringir os aspectos envolvidos aos simbolismos mais
recorrentes, tanto do ponto de vista psicológico quanto alquímico, foi necessário realizar
quase que uma “extração da alma”, a fim de que os mesmos não se perdessem em uma massa
caótica de alegorias e tratados condizentes com a fase “negra”. Na tradição alquímica, dos
tratados e alegorias que envolvem a transformação do rei, através da operação alquímica da
solutio, foram observadas as alegorias de Merlin e de Duenech, que estão entre as mais
antigas. O tratado alquímico Splendor Solis retrata também a solutio do rei, na alegoria que
mostra o rei do mar gritando por socorro. Foi observado a solutio do rei também no Atalanta
Fugiens. Entre os textos que que reproduzem a descida do homem primordial ao seio da
“physis”, destaca-se a Visio Arislei que foi retratado em várias versões inclusive no Rosarium
Philosophorum, entretanto sua origem no tempo é desconhecida. Das operações alquímicas
envolvendo a Separatio e a Mortificatio, o tema do ferimento e da tortura remonta na
alquimia ao tempo de Zózimos e suas visões, no século III. No Tratado da Pedra Filosofal, de
Abraham Lambsprinck, a gravura reproduz a descida do homem primordial ao seio da
“physis”, mostrando o rei, não mais misturado na profundeza do mar, mas ele próprio como
"prima materia", devorando o filho. O rei-sol desmembrado por um homem com a espada,
está retratado novamente no tratado alquímico Splendor Solis. Quanto à mortificatio do rei
ligado aos símbolos teriomórficos, foi observado a versão no Atalanta fugiens, retratando o
lobo, como aspecto devorador da prima materia. O rei substituído pelo Sol é engolido
117
também pelo leão no Rosarium Philosophorum. Novamente no Atalanta Fugiens Adônis é
retratado morto por um varrão. Tanto o lobo, o cão e até mesmo o leão, são colocados no
mesmo nível, sendo assim, no tratado alquímico A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei,
de Eirenaerus Philaletha, a criança andrógina é mordida pelo cão raivoso. O motivo da
renovação do rei ocorre em paralelo com as transformações nos simbolos teriomórficos Com
relação à estes, o dragão como a forma mais baixa e inicial da vida do rei, é retratado no
Atalanta Fugiens através da Mortificatio do dragão. O leão, forma mais alta e posterior da
transformação do rei, é submetido à mortificatio no frontispício do Songe de Poliphile. No
tratado alquímico, A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei, a natureza sombria do cão é
transformada em uma forma superior e finalmente a “terceira chave dos filosofos” do tratado
As doze chaves da filosofia, de Valentim, a transformação nos símbolos teriomórficos
ocorrem tanto na figura do dragão como na figura do cão (lobo).
Resumidamente, as operações alquímicas ligadas à fase da nigredo, solutio separatio,
mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo de dissolução,
discriminação e mortificação do composto. Essa terra, temos de mortificá-la e decompô-la,
segundo ensina a "A Tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto": "separa a terra do fogo, o
sutil do denso, com delicadeza e com grande ingenuidade."
85
Nota-se que, segundo a
concepção alquímica, tal operação consiste em isolar o mercúrio do enxofre, em separar o
fixo do volátil, o agente do paciente, etc. Sob este conjunto de dualidades, fixo e volátil, ativo
e passivo, agente e paciente, o alquimista quer simbolizar o binário corpóreo-espiritual, o
"nous" e a "physis" na unidade indistinta e caótica da prima materia, Porém, como isolar o
espírito luminoso da matéria tenebrosa se, na unidade, só há uma substância? É que sob este
binário corpóreo-espiritual estava oculto um terceiro, que é o "vínculo do sagrado
matrimônio": a alma. Não seria demais relembrar que nas concepções mais antigas havia um
reino intermediário, segundo Jung, um "domínio anímico de corpos sutis, cuja característica
era manifestar-se tanto sob a forma espiritual, como material" (JUNG, 1991 [A], p. 291, §
394).
Assim, sob a afirmativa de que arte pode romper a coesão da matéria e isolar o
mercúrio do enxofre, buscava-se uma operação em especial: tal operação resultará que a
matéria prima libertará o mercúrio, o que corresponde à uma separação da alma das cadeias
do corpo. Como foi visto anteriormente, o primeiro grau da Coniunctio, Dorneus descreve
como sendo a união (conjunção) da alma com o espíríto. Este estágio recebe o termo em
85
TRISMEGISTO, Hermes. A Tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto. In: EDINGER, E. F. Anatomia da
Psique. São Paulo: Ed. Cultrix, 1999, p. 247.
118
Latim de unio mentalis, que significa uma união mental, o qual ocorre simultaneamente a
separação da alma do corpo. Assim como para uma primeira Coniunctio, descrita na união da
alma com o espírito pelo alquimista Dorneus, foi necessário uma separação da alma do corpo,
assim também, na concepção alquímica da fase da nigredo, o metal dissolvido, triturado,
"despedaçado", entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Assim
compreende-se porque os alquimistas ensinam aos verdadeiros adeptos que "o sapiente sabe
apaziguar a sua dor", uma alusão à necessidade da mortificação e da decomposição da
semente mineral, matéria prima da obra:
A própria elaboração do Elixir mostra-lhe que a morte, transformação necessária,
mas não real aniquilamento, não o deve afligir. Bem pelo contrário, a alma liberta do
fardo corporal, goza, em pleno impulso, duma independência maravilhosa, toda
banhada dessa inefável luz acessível apenas aos espíritos puros. Ele sabe que as fases
de vitalidade material e de existência espiritual se sucedem umas após outras,
segundo leis que lhes regem o ritmo e os períodos. A alma só deixa o seu corpo
terrestre para ir animar outro novo (...) (FULCANELLI, 1990, p. 299).
Ao promover a decomposição prévia da prima materia, o espírito e matéria rompem a
sua associação anímica. Em uma discussão psicológica do processo, o estado composto era
aquele no qual a afetividade do corpo exibia uma influência perturbadora sobre a
racionalidade da mente. Enquanto a energia do forte desejo instintual não tiver sido extraída
de sua forma original e transformada em espírito, isto é, a compreensão consciente, estes
processos psíquicos são simbolizados por meio de um conjunto negativo de imagens, nos
quais os símbolos teriomórficos representam o aspecto selvagem da psique:
Em termos psicológicos isto significa que a união da consciência (Sol) com seu
parceiro feminino, o inconsciente (Lua), tem de início um resultado não desejado: daí
surgem animais peçonhentos, como dragão, serpente, escorpião, basilisco, sapo;
depois leão, urso, lobo, cão, e finalmente águia e corvo. Como se vê, aparecem aí
animais de rapina, primeiro os de sangue frio, depois os de sangue quente, e
finalmente as aves de rapina e o agourento devorador de carniça. Os primeiros filhos
do matrimonium luminarium são pouco agradáveis (JUNG, 1997, p. 138, § 167).
Os animais de sangue frio, os de sangue quente simbolizam o aspecto ligado à psique
instintiva, e quanto mais próximos estes das aves
86
, mais se denota nas alegorias uma
transformação psíquica na esfera da consciência. Jung parece estar consciente deste fato, pois
com relação não só à aproximação do simbolismo teriomórfico da ave como da mutabilidade
86
As pombas, por sua brancura, eram associadas à fase da albedo, e, “na alquimia representam elas, como todos
os seres alados, spiritus ou animae, (...) isto é, a substancia de transformação que é extraída” (JUNG, 1997, p.
150,§ 179).
119
da lua, ao comentar o trecho do tratado de Eirenaerus Philaletha, no qual um par de pombas
acalmam o furor do cão raivoso, por ocasião do plenilúnio, assegura ser “importante o
plenilunium (lua cheia): ‘Fulgente Luna in suo plenilunio’ (fulgindo a Lua no plenilúnio), é
enxotado o ‘cão danado’, o perigo que ameaça a criança divina” (JUNG, 1997, p. 126, § 149).
Somente aí desaparece então a natureza sombria do cão, ou seja, há uma transformação no
simbolo teriomórfico: o cão raivoso é sublimado e, se torna uma águia por ocasião do
plenilúnio. Nota-se que a transformação alquímica conduz da maior profundidade, até as
maiores alturas:
... O sol percorre as diversas etapas da transformação passando pelo dragão, pelo leão,
pela águia até o hermaphroditus. Cada etapa representa um novo grau de compreensão,
sabedoria e iniciação “Nisi me interfeceritis” (se não me matardes) normalmente se
refere à mortificatio do dragão, que é, pois a primeira etapa perigosa e venenosa da
anima (=mercúrio) libertada da prisão na prima materia (Ibidem, p. 135, §163).
Em uma análise dos simbolismos alquimicos relacionados com a primeira fase
alquímica, nota-se que, embora o primeiro grau da coniunctio do alquimista Dorneus não
apresente equivalência com a simbólica envolvida no contexto da nigredo; em seus aspectos
psíquicos, estabelece sim equivalência com tudo aquilo que culmina, produz ou almeja
produzir a respectiva fase “negra”: segundo a tese, uma unio mentallis, ou seja, um estado de
superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica
profunda, dos impulsos animais do inconsciente. Este fato é comprensível visto que o
primeiro grau da coniunctio de Dorneus, como o próprio termo assegura, configura uma
união, ou seja, o cume de um processo anterior, enquanto a fase da nigredo, como a própria
semântica deduz, denota uma modificação de um aspecto e por isso, uma passagem. Esta
hipótese é enriquecida pelo motivo da renovação do rei ocorrer em paralelo com as
transformações tanto nos simbolos teriomórficos como na mutabilidade do símbolo da lua.
Sendo assim, quanto mais se realiza um processo de “extração da alma”, tanto mais os
símbolos teriomórficos progridem da esfera dos instintos (corpo) representado nos animais
ligados à terra para a esfera do espírito, e aproximam-se dos símbolismo teriomórficos das
aves; e, respectivamente quanto mais se afasta da inconsciência original no negrume da lua
nova, na mesma proporção é importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de
completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).
No proximo capítulo, serão observadas as imagens alquímicas referentes à situação
psíquica daquele ego que não sucumbiu ao encontro com a sombra, mas alcançou uma Unio
120
mentalis
87
. Mas neste estado ideal e abstrato não se vive, desta maneira, demostrar-se-á de que
modo a fase alquímica da albedo está relacionada com a produção da Quintessência de
Dorneus.
87
Sobre este aspecto, acrescenta Edinger: “...is the first stage of coniunctio, namely the unio mentalis. That
would corresponds to a reductive analysis of the shadow (...)” [... é o primeiro estágio da coniunctio, a saber a
unio mentalis. Isso corresponde a uma restrita análise da sombra] (EDINGER, 1985, p. 280).
121
IV A FASE ALQUÍMICA ALBEDO À LUZ DA PSICOLOGIA PROFUNDA DE
CARL GUSTAV JUNG
IV. 1 - A subida e a descida do volátil na fase alquímica Albedo
De modo geral, a afirmativa de que a Arte pode romper a coesão da matéria e isolar o
mercúrio do enxofre, corresponde à uma separação da alma das cadeias do corpo. O metal
dissolvido (Solutio), despedaçado (Separatio), e mortificado (Mortificatio) na fase da nigredo,
entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Na linguagem dos
alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, e a aurora
1
, que luta para nascer na
alma liberta do fardo corporal, goza de um espírito tão fugidio, que, pela sua volatilidade,
esta libertação das cadeias da prima materia era anunciada na fase “branca”. Já nas visões
oníricas de Zózimo, encontram-se referências à albedo, como se pode observar no trecho a
seguir:
...Vi um homenzinho embranquecido pelos anos e me disse: “ O que é que estás a
ver ?” Respondi que estava maravilhado com o ferver das águas, e com os homens
que se queimavam mas continuavam vivos. Respondeu-me ele dizendo: “Este é o
lugar do exercício denominado conservação (embalsamento), pois os homens que
desejam alcançar a virtude vêm aqui e convertem-se em espíritos, voando do corpo.
2
Para alguns alquimistas, a obtenção da parte volátil da matéria, era suficiente para uma
comemoração, sob certo ponto de vista, precipitada, da conquista do elixir. Diz-se
“precipitada”, pois na opinião dos alquimistas mais respeitados, tal procedimento alquímico
não se configurava como o requisito necessário para a obtenção da “chave da obra”.
Aprofundando-se no estudo dos tratados clássicos de alquimia, a concepção mais aceita era a
de que, a alma liberta do fardo corporal, pela sua volatilidade, gozava de um espírito tão
fugidio, que o adepto se via no trabalho de fixá-lo em um corpo apropriado. Alberto Magno,
O Grande, no primeiro capítulo de seu tratado Compositum de Compositi, o Composto dos
Compostos, citado anteriormente, sobre o “Arsênico”, considera que alguns, “ignorando a
composição do Magistério, trabalham só com Mercúrio, pretendendo que ele tenha um corpo,
1
Jung acrescenta: “O alvejamento (albedo s. dealbatio) é comparado ao “ortus solis” (nascer do sol). É a luz que
surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento” (JUNG,1999[C], p138, § 484).
2
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
27.
122
uma alma e um espírito”
3
. Também Bernardo Trevisano
4
, em trecho do Tratado da Natureza
do Ovo, assegura aos filósofos da arte que não se deve confiar no Mercúrio sublimado:
... não se deve confiar no Mercúrio sublimado, nem dissolvido (já que) o total é
fugitivo (a não ser) no calcinado depois da dissolução, como disse o expositor em Luz
de Luzes: Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas
depois do seu coagulante fica coagulado e calcinado, fixo e retido.
5
Nota-se que já na escola alquímica de Alexandria, nos tratados da egípcia helenizada
Maria, a Profetisa, tal concepção já estava presente como se observa no trecho a seguir:
Conservai os vapores ripostou Maria e não deixeis que nada escape. Fazei o
nosso fogo em proporção com o calor do sol no mês de Junho e Julho. Mantendo-vos
junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a
vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo
e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como o leite penetrante e
fundente. Este é o segredo escondido.
6
Na citação de Maria, os vapores fazem alusão à alma liberta do fardo corporal, pela
sua volatilidade. Esta, deve retornar ao corpo, sendo por isso fixada em um corpo apropriado;
por isso a afirmação de que “os vapores penetrarão no corpo e o espírito ficará preso”.
A concepção da necessidade da fixação da alma em um corpo apropriado no
pensamento alquímico é bastante compreensível, pois o corpo sem a alma morrerá; segundo
Jung, como "é a alma que anima o corpo, e com isso representa o princípio de toda a
realização, então os filósofos não podiam deixar de observar que nesse caso o corpo e o
mundo dele estavam mortos” (JUNG, 1990, p.278, § 398). Neste sentido, antes da síntese
final do enxofre e do mercúrio, fazia-se necessário uma outra operação alquímica: a
purificação e regeneração da matéria. Para o alquimista, esta purificação e regeneração se
dava através de sucessivas destilações, onde o mercúrio, a "alma-espírito" é dissolvido
novamente na matéria e, se eleva novamente. Passando da alquimia greco-egípcia para a
alquimia árabe, observa-se que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo e a
necessária fixação em um corpo apropriado na fase da albedo já se encontrava nos tratados de
3
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm.
4
Bernardo Trevisano, ao que parece, deve ter vivido na segunda metade do século XVI. Alquimista renomado,
alquimistas como Basílio Valentim já fizeram suas homenagens à este alquimista.
5
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, p. 75. Texto disponível também em: http://www.levity.com/alchemy/span01.html.
6
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70,1991, p. 38.
123
Morienus, nos Diálogos entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o magistério de
Hermes:
MORIEN Antes de ser feita, tem um odor forte e cheira mal mas, uma vez feita,
cheira bem, isto fez exclamar o sábio: “Esta água deita o cheiro do corpo morto e já
privado da sua alma.” O corpo neste estado cheira muito mal, com um odor de
tumba. Por isso o sábio disse que aquele que tenha branqueado a alma, a tenha feito
subir pela segunda vez e tenha conservado bem o corpo e rechaçado toda a
obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo, e quando estas
partes se juntam acontecem coisas maravilhosas.
7
O “branquear a alma” denota que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo,
ou seja, a alma liberta do corpo que “cheira mal”, necessita da fixação em um corpo
apropriado. Sendo assim, Morien, sob a afirmação de que “aquele que tenha branqueado a
alma, a tenha feito subir pela segunda vez”, chama a atenção para a purificação e regeneração
da matéria através de sucessivas destilações. O termo “segunda vez” ou “levanta-se outra
vez” denota que está operação é repetida, como na “Ethelia de Arisleus” citado em capítulo
anterior, que é embebida com sua própria água, até que “gere a brancura, que é a segunda
cor”. Assim se faz o Mercúrio dos filósofos, afirma Morien, conservando bem o corpo, tendo
“rechaçado toda a obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo”. Isto é o
que atesta os alquimistas também ao dizer que é preciso que o corpo seja liquefeito com o seu
dissolvente, a fim de alterar a sua natureza corporal, até que, o corpo se converta em espiritual
e volátil e, o volátil, se converta em corpóreo e fixo. Este processo foi antigamente
desenvolvido pelos filósofos da arte no enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil
fixo. Esta operação é anunciada novamente por Morien neste trecho dos diálogos:
MORIEN Toda a nossa operação consiste em nada mais do que tirar a água da terra
e voltar a pô-la outra vez na terra até que esta apodreça. Pois esta terra apodrece com
a água e limpa-se com ela; depois de se ter limpo, estará terminado o regime de todo
o Magistério, com a ajuda de deus. Esta é a operação dos sábios; é a terceira parte de
todo o Magistério. Ainda te advirto de que se não limpas bem o corpo impuro e não
secas e pões branco nem o animas, fazendo-lhe entrar uma alma, se não o libertas de
todo o seu mau odor de modo que, depois de se limpar, caia sobre ele a tintura e o
penetre, não terás feito nada no magistério por não teres observado bem o seu
regime.
8
A umidade fria da água e a volatilidade do ar, estavam associadas à propriedade
mercurial-passiva de todos metais, ou seja, à propriedade dissolvente/volátil, como foi visto
7
DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU,
Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 59.
8
Ibidem. p. 63-64.
124
anteriormente. Por isso, “tirar a água da terra” faz alusão ao mercúrio sublimado e,
consequentemente, à alma liberta do corpo. Segundo Morien, esta “água” deve ser tirada da
terra e posta outra vez, até que a terra esteje “limpa”. A terra aqui designa o princípio da
fixidez da matéria, e por isso estava associada à propriedade sulfurosa- ativa, ou seja, à secura
ígnea do fogo e à coagulação da terra e, neste sentido, à propriedade secativa/coaguladora dos
metais. Esta “terra” é o “corpo impuro”, o qual deve ser limpo e seco, reanimado, na fase da
albedo, “fazendo-lhe entrar uma alma”, segundo Morien. Somente assim, o alquimista liberta
o corpo “de todo o seu mau odor”, como afirma o alquimista acima, porque o revive.
O tema da subida e da descida do volátil se encontravam principalmente nas sentenças
da “Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegistus” que orientaram toda a alquimia medieval:
“...Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra, e recebe as forças das coisas superiores e
das coisas inferiores”
9
. Assim também, Fulcanelli, um dos últimos representantes da alquimia,
já no século XX, também assegura:
...A água viva "mais celeste do que terrestre", agindo sobre a matéria grave, rompe a
sua coesão, amolece-a, solubiliza-a pouco a pouco, prende-se apenas às partes puras
da massa desagregada, abandona as outras e sobe à superfície arrastando o que pode
agarrar de conforme à sua natureza ardente e espiritual. (FULCANELLI, 1990, p.
204)
Por este processo acima descrito, separava-se da mistura a parte mais volátil por
evaporação, seguindo da condensação. Esse processo era repetido diversas vezes, onde a
essência extraída é levada ao estado máximo de pureza pelo movimento circular continuado.
Assim, através do famoso axioma alquímico, "solve et coagula" (dissolve e coagula), o adepto
tenta, através de todos os meios, dissolver o que foi agregado e reunir o que foi separado. Daí
o termo “arte espagírica”, ou seja, aquela que separa e que reúne. As repetidas extrações do
espírito mercurial, estão na imagem alquímica a seguir: o eterno processo de sublimação está
simbolizado pela pomba que voa para cima e para baixo. A conjunção e a separação estão
representadas pelas sublimações repetidas:
9
TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23.
125
As repetidas extrações do espírito mercurial (De Summa, século XVIII)
10
O movimento circular continuado já é mencionado por Maria, a Profetiza, como se
observa no trecho a seguir:
...Tomai o corpo claro, colhido nas montanhas pequenas e que não se faz pela
putrefacção, mas apenas pelo movimento. Moei esse corpo com a goma Elzaron e os
dois vapores. A goma Elzaron é o corpo que agarra e prende o espírito, moei-o todo e
aproximai-o do fogo, então fundir-se-á todo e se o projectardes sobre sua mulher a
totalidade por-se-á como água que se destila e congelar-se-á ao ar, e só então será um
corpo. ... Tereis de saber que os vapores de que acabo de falar são as raízes desta arte
e são o Kibrick branco e a cal húmida, a que os filósofos deram toda espécie de
nomes.
11
10
Reproduzido em: ROLA, Stanislas Klossowiski de. Alquimia. Madrid: Ed. del Prado, 1996, p. 114
11
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38-39.
126
Na citação acima, a alusão à fase da albedo, já se faz notar pela qualificação “corpo
claro”, segundo o qual não se obtinha pela putrefação da matéria
12
. Se o procedimento
alquímico não se realizava mais pela putrefação da matéria, como afirma Maria, este deveria
ser realizado pelo movimento local, ou seja, pela sublimação filosófica, outro termo usado
pelos alquimistas para anunciar a fase “branca”, como se nota a seguir, na citação do pai da
alquimia árabe, Geber, em trecho do tratado A Suma Perfeição:
Digo que toda a Obra consiste em colher a Pedra ou seja a matéria da Pedra que
deve ser já suficientemente conhecida por tudo o que já dissemos,e dar-lhe o primeiro
grau de sublimação com um trabalho assíduo, com o fim de tirar-lhe toda a impureza
que a corrompe. A perfeição, que a sublimação dá a esta Pedra consiste em torná-la
tão fluída que fique elevada à ultima pureza e fluidez, e se converta em algo volátil e
espiritual. Ter-se-á, então, que fixá-la com os processos de fixação (...) a fim de que
possa resistir ao fogo, por mais violento que seja e permanecer nele sem se evaporar.
Este é o fim do segundo grau de preparação, que é preciso dar a esta matéria. Por
meio do terceiro grau acaba-se de vez a preparação. Faz-se, sublimando esta Pedra
(ou esta matéria) que por meio dessa passa de sólida que era, a volátil; logo de volátil
a sólida e, estando dissolvida (após nova dissolução que precedeu uma fixação), faz-
se outra vez volátil e volta-se a fixá-la, (…).
13
Observa-se na citação que o “primeiro grau de sublimação” promove a obtenção da
parte volátil, isto é, segundo Geber, da parte espiritual da matéria. A necessidade da fixação
deste em um corpo apropriado se dá por meio do fim do segundo grau de preparação. No
terceiro grau, Geber deixa claro que a purificação e regeneração da matéria se dá através de
sucessivas destilações, ou seja, passando “de sólida que era, a volátil; logo de volátil a sólida”,
sucessivas vezes. A sublimação filosófica foi anunciada não somente pelos alquimistas árabes
posteriores como também, séculos mais tarde, também pelos alquimistas europeus. No século
XIII, Alberto Magno em já citado tratado O Composto dos Compostos, considera:
Esta sublimação constitui uma verdadeira separação dos elementos, segundo os
filósofos: “O trabalho da nossa pedra não é mais que a separação e a conjugação dos
elementos, porque, na nossa sublimação, o elemento aquoso, frio e húmido,converte-
se em elemento quente (…)
14
Dissolvendo o que foi agregado e reunindo o que foi separado, o adepto tenta, através
de todos os meios, a “arte espagírica”, por isso na citação acima a afirmação de que “o
trabalho da nossa pedra não é mais que a separação e a conjugação”. No quinto capítulo,
12
Kibrick branco e a cal húmida também pela coloração fazem alusão à albedo.
13
GEBER. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
50-51.
14
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm
127
“sobre a multiplicação do Mercúrio Filósófico”, o tema da subida e da descida do volátil vêm
à tona quando Magno considera, que de fato, “quando a nossa pedra está em seu vaso e se
eleva, então há sublimação ou ascensão mas, quando em seguida, cai de novo no fundo, diz-se
que há destilação ou precipitação”
15
. Também no primeiro capítulo, sobre a “Formação dos
metais em geral pelo enxofre e o mercúrio”, fazendo alusão ao movimento circular
continuado da obra, Bacon considera que “a geração dos metais é circular, passando
facilmente, de um a outro, segundo um círculo”
16
.
Arnald de Villa Nova
17
no mesmo sécúlo, em seu Tratado Sumário do Rosário de
Arnold de Villa Nova na parte “ Recapitulação do trabalho” afirma:
Sublime primeiramente a substância, e remova-a de toda corruptiva impureza;
dissolva também, com isso, seu suplemento branco ou vermelho até que o todo seja
tão sutil e temporário como pode possivelmente se tornar. Fixe-o então por todos os
métodos até que seja capaz suportar o teste do fogo. Após isso, sublime a parte fixa
da pedra junto com sua parte temporária; faça o fixo temporário, e temporário fixo,
pela solução e pelo sublimação alternados; continue assim, e fixe então ambos juntos
até que eles formem uma tintura líquida branca ou vermelha. Desta maneira você
obtêm o arcanum que não tem preço que é sobretudo o tesouro do mundo.
18
Sublimando e dissolvendo a primeira substância, Villa Nova remove a matéria “de
toda corruptiva impureza”. Nota-se que Villa Nova chama a atenção para o estado
momentâneo da parte volátil da matéria, através da afirmação “até que o todo seja tão sutil e
temporário como pode possivelmente se tornar”. A seguir, Villa Nova enaltece a fixação deste
em um corpo apropriado, por meio do aconselhamento “fixe-o então por todos os métodos até
que seja capaz suportar o teste do fogo”. Este operação alquímica é repetida então
sucessivamente, ou seja, fazendo “o fixo temporário, e temporário fixo, pela solução e pelo
sublimação alternados”, obtendo desta maneira o Arcanum.
Um século mais tarde, Nicolas Flamel, em seu tratado O livro das figuras
hieroglíficas, usa o termo “sobe e desce no vaso” na seguinte afirmação :
15
Loc.cit.
16
Loc.cit.
17
Grande sábio valenciano, Arnaldo de Villanueva ou Arnau de Vilanova, nasceu em 1245 e morreu em 1313.
18
“First sublime the substance, and purge it of all corrupting impurity; dissolve also, therewith, its white or red
additament till the whole is as subtle and volatile as it can possibly become. Then fix it by all methods till it is
able to stand the test of the fire. After that, sublime the fixed part of the Stone together with its volatile part;
make the fixed volatile, and the volatile fixed, by alternate solution and sublimation; so continue, and then fix
them both together till they form a white or red liquid Tincture. In this way you obtain the priceless arcanum
which is above all the treasures of the world.” VILLA NOVA, Arnald de. (1546) Summary of the Rosary of
Arnold de Villa Nova. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/arnoldus.html.
128
...É que quando o calor do Sol age sobre elas, transforma-se primeiramente em pó ou
graxa e viscosa, que, sentindo o calor, foge para o alto na cabeça do frango com a
fumaça, isto é, com o vento e o ar; desce aí, esta água, lançada e infusa com as
confecções, volta para baixo, e descendo reduz e resolve tanto quanto pode do resto
das confecções aromáticas, fazendo sempre assim (...). Eis porque se chama a isso,
sublimação, e volatilização, pois voa ao alto, e ascensão e descenso, porque sobe e
desce no vaso (FLAMEL, 1973, p. 86).
A ave representa a volatilização e a sublimação que, juntamente com o vento, o ar e a
fumaça, indicam a extração do espírito mercurial da matéria, por isso a afirmação de Flamel
de que “foge para o alto na cabeça do frango com a fumaça, isto é, com o vento e o ar”.
Posteriormente a propriedade mercurial-passiva representada pela umidade fria da água,
“desce”, “volta para baixo”, segundo Flamel, prosseguindo “sempre assim”. Desta maneira,
esta operação alquímica é repetida então sucessivamente, ou seja, porque “sobe e desce no
vaso”, como bem assegura Flamel. No mesmo tratado, em outra citação, Flamel comenta uma
série de expressões alquímicas que fazem alusão à subida e à descida do volátil. Segundo
Flamel, os filósofos invejosos jamais falaram da multiplicação sem os termos comuns da arte:
“abre, fecha, liga, desliga. Chamaram abrir e desligar fazer o corpo (que é sempre duro e
fixo), mole e fluido, e líquido como água, e fechar ou ligar o coagulá-lo por e segundo
decocção mais forte, remetendo ainda uma vez à forma de corpo” (FLAMEL, 1973, p. 108).
Finalmente, no texto sobre a quarta figura mencionada em capítulo anterior, Flamel
comenta a figura que retrata um homem semelhante a São Paulo, vestido com uma roupa
branco-alaranjada, segurando uma espada, e tendo a seus pés um homem ajoelhado. Segundo
o autor, a imagem trata especialmente da “Albificação” e do “Embranquecimento”; Flamel
observa no tratado que a espada nua está enrodilhada por uma cinta negra, mas suas
extremidades não chegam a envolvê-la completamente. Segundo o alquimista, esta espada nua
resplandecente é a chamada “pedra branca, comumente descrita pelos filósofos sob esta
forma. Para então alcançar esta brancura coruscante, deves compreender o enrodilhamento
desta cinta negra, e o que ele ensina, que é a quantidade das embebições” (FLAMEL, 1973, p.
94).
Sendo assim, a alusão à fase da albedo faz-se notar na expressão “pedra branca” do
alquimista. Esta pedra branca somente é alcançada através de sucessivas “embebições”, isto é,
através da sublimação filosófica. Desta maneira então terás o ensino da obra toda, como
assegura o texto da setima figura do Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck.
Segundo o autor, “o mercúrio, sublimado muitas vezes, é fixado, por fim, de forma tal, que
129
não assume mais a forma fluída, nem pela força do fogo se evapora. Na verdade, o que se faz
com este metal, é a destilação muitas vezes repetida. Até que ele seja, por fim, bem fixado”
20
.
Também na oitava figura do seu Tratado da pedra filosofal Lambsprinck oferece,
como ele próprio assegura, uma Receita para a Albificação no texto que segue o título
referido. Assim como Flamel, Lambsprinck indica a necessidade de repetidas “embebições”
para a obtenção do Corpo Branco. Este deve ser colocado repetidamente em esterco de
cavalo, ou em banho-maria, até ser digerido por seu ar próprio, ou, segundo o alquimista, pelo
“espírito separado anteriormente do corpo. O corpo se torna Branco através da Arte e,
igualmente, o espírito se torna Vermelho através dela. A obra tende à perfeição da sua
natureza, e é assim que se prepara a Pedra Filosofal”
21
.
Um século mais tarde, Basílio Valentim, em As doze chaves da filosofia também
oferece uma espécie de receita para a fixação em um corpo apropriado, na segunda chave da
filosofia. Segundo Valentim, do mesmo modo quando se casa o nosso esposo Apolo com a
sua Diana, “deve-se fazer-lhes diversas espécies de vestidos, lavar-lhes diligentemente a
cabeça e inclusive o corpo todo, com a água, que será preciso preparar com muitas
destilações, pois há muitas espécies de águas e umas são melhores do que outras”
22
. Nota-se
nesta citação, que a preparação do corpo se faz através de uma lavagem, isto é, de uma
purificação, segundo a qual se promove atraves de sucessivas destilações
23
. Mais à frente
Valentim assegura na quinta chave da filosofia:
... Ao olhar para um espelho, vê-se a reflexão das espécies, a própria imagem de quem
olha, e se alguém quiser tocar com a mão na sua imagem só tocará no espelho para
que olhou. Do mesmo modo deve tirar-se desta matéria um espírito visível que
contudo seja inatingível. Este espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio
dos filósofos, do qual se prepara industriosamente o licor da nossa arte, que tu
tornarás material uma vez mais; (...). O nosso começo é um corpo bem ligado e sólido,
o meio é um fugaz espírito e uma água de ouro sem corrosão, por meio do qual os
sábios gozam os seus desejos nesta vida. O fim é uma medicina fixa, tanto para o
corpo humano com para os corpos metálicos (...)
24
Como se observa na citação acima, a obtenção da parte volátil da matéria é ressaltada
na frase “deve tirar-se desta matéria um espírito visível que contudo seja inatingível.” Este
20
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 183.
21
Ibidem, p. 187.
22
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 126.
23
Nesta citação, Valentim faz menção ao casamento de Apolo e Diana, tema este segundo o qual será abordado
no decorrer do capítulo.
24
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.
130
espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio dos filósofos, como assegura Valentim,
segundo o qual deverá ser fixado em um corpo apropriado, por isso, a afirmação a seguir de
que “tu tornarás material uma vez mais”. Finalmente na terceira chave da filosofia, Valentim
assegura:
... O que não se pode fazer antes que o mar salgado tenha tragado um corpo e
arremessado este, sendo sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor
dos outros astros e o seu sangue tão aumentado e aperfeiçoado, que possa como o
pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde e sem nenhum incômodo
para as outras partes do seu corpo, alimentar com o seu próprio sangue todos os seus
filhos. É esta a tintura dos filósofos de cor purpurina e o sangue vermelho do
Dragão.
25
Nota-se na citação acima, que o “tragar e o arremessar” do corpo pelo mar salgado é
mais uma expressão entre outras, como o “abre e fecha” e o “sobe e desce no vaso”, ou seja,
faz referência à subida e à descida do volátil no Opus Alchymicum. Esta operação é repetida
até que o corpo seja “sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor dos outros
astros”, como assegura a recomendação de Valentim. Além disso, a citação de Valentim faz
menção à um importante símbolo alquímico, o Pelicano:
Representação do pelicano (Rhenanus, Solis e puteo emergentis sive dissertationis
chymotechnicae libri tres, 1613)
26
O Pelicano é um importante símbolo alquímico usado para indicar a sublimação
filosófica na fase da albedo. O Pelicano se chama a retorta em que o tubo de saída torna a
entrar no bojo do vaso. Devido à sua destilação circulatória, o Pelicano era usado na alquimia
pra indicar o movimento circular continuado da albedo. Sobre este aspecto assegura Jung:
25
Ibidem, p. 128.
26
Reproduzido em: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 160.
131
... Para os alquimistas, a destilação sempre significava um refinamento e
espiritualização através da extração da substância volátil, isto é, do espírito, a partir
do corpo incompleto ou impuro. Este processo era simultaneamente uma vivência
física e psíquica. A retorta destillatio representaria uma destilação em sentido
contrário. (...) Poder-se-ia tratar da destilação no chamado pelicanus, em que o
escoamento da retorta desemboca novamente no bojo da mesma, e através da qual é
realizada uma destillatio circulatoria, tão usada pelos alquimistas. Pela destilação
“mil vezes” repetida esperava-se um resultado final particularmente “refinado”
(JUNG, 2003, p. 150-151, § 185).
Finalizando estas citações que poderiam preencher grossos volumes, Eirenaeus
Philalethe, em A entrada aberta do palácio fechado do rei, afirma: “Também o fixo se faz
volátil por um tempo, a fim de possuir em seqüência, um estado mais nobre por sua herança,
graças ao que obterás poderosíssima fixidez”
27
.Nota-se que Philalethe chama a atenção para o
estado momentâneo da parte volátil da matéria, para a seguir enaltecer um “estado mais
nobre”, isto é, de “poderosísima fixidez”.
Sendo assim, pelo enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo, segundo
um círculo, diz respeito as sucessivas extrações do espírito mercurial. Pela arte circular o
alquimista buscava produzir a pedra.
IV. 2 A subida e da descida do volátil do ponto de vista psicológico do Opus
Alchymicum
Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes
processos alquímicos na compreensão do mundo natural, a questão gira em torno de
demonstrar o que o procedimento alquímico da albedo tem à dizer, em seus aspectos
psíquicos. Que o encontro com o caos da prima materia, na fase da nigredo, trata-se, em uma
análise junguiana, do tema do encontro com a sombra, transformou-se quase em senso comum
no meio acadêmico. Entretanto, na óptica junguiana, qual o sentido da concepção de que, a
alma liberta do fardo corporal, pela sua volatilidade, gozava de um espírito tão fugidio, que o
adepto se via no trabalho de fixá-lo em um corpo apropriado? Melhor, qual o sentido do
processo alquímico torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo para a Psicologia
Analítica?
Na concepção junguiana o aspecto psicológico da albedo, engloba nada mais, nada
menos, que a temática axial da teoria: a “passagem para o centro” ou, a “união dos opostos”.
27
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
132
Conforme o axioma central da alquimia: “Non fieri transitum nisi per medium” (Não ocorre a
passagem a não ser por um meio), a coniunctio nem sempre representa uma união imediata e
direta, porque necessita de um certo meio. Tal procedimento é descrito pela alquimia, na
passagem do branco para o vermelho, respectivamente da albedo para a rubedo alquímica.
Psicologicamente, trata-se mais precisamente, da necessidade de protegermos o eu contra o
inconsciente e de integrarmos o segundo no primeiro. Etienne Perrot, autor do livro O
caminho da transformação, segundo C. G. Jung e a alquimia, acrescenta:
A obra é feita de vaivém, de subidas e descidas (...).Uma das grandes divisas da obra
é: Coagula, solve, “coagula, dissolve”. Coagula: fixa a tua atenção no fim desejado,
reforça a tua atitude consciente, firma-te, limita o círculo de teus interesses, evitando
distrações e, dentro de tua transformação, recua em relação às produções
inconscientes; enfim, de modo mais vasto, expõe-te aos raios de sol, ao calor e à luz
do amor que rege o universo, a fim de fazeres secar essa Pedra, que se aglomera em
teu vaso. Por outro lado, quando as circunstâncias internas e externas o exigirem,
solve, “dissolve”: abandona-te, abre-te ao mar do inconsciente, deixa subir em ti o
lodo viscoso, que é a matéria-prima da pedra, ou, em sentido mais restrito, usa mais a
liberdade, relaxa e distrai-te, como as crianças entre duas aulas difíceis (PERROT,
1998, p. 225).
As citações até aqui então apresentadas indicam as repetidas extrações do espírito
mercurial da matéria. Como foi visto anteriormente, na alquimia, os seres alados, representam
a sublimação ou volatilização, isto é, a a substância de transformação que é extraída. Na
décima primeira imagem alquímica do Splendor Solis, Saturno é cozido no banho até que seu
espírito, a pomba branca, dele se eleve:
133
Mercúrio é cozido no banho até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve.
(Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)
28
28
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11153.
134
O etíope, o “negro”, era associado ao chumbo, a Saturno, símbolo do inconsciente em
seu aspecto negativo, devorador e hostil. Na imagem alquímica, Saturno é cozido no banho
até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve. Do ponto de vista alquímico é uma
imagem que se refere à operação da Sublimatio, segundo a qual transforma a matéria em ar
por meio da elevação e volatilização. Especialmente Edinger analisa em seus aspectos
psíquicos a operação alquímica da Sublimatio, e considera:
... Em termos psicológicos, isso corresponde a uma forma de lidar com um problema
concreto. Ficamos “acima” dele quando o vemos objetivamente. Abstraímos um
sentido geral dele e o vemos como um exemplo particular de uma questão mais
ampla. O simples fato de encontrar palavras ou conceitos adequados para um estado
psíquico pode ser suficiente para que a pessoa se afaste dele o bastante para olhá-lo
de cima (EDINGER, 1999, p. 135).
No capítulo anterior foram analisadas as imagens alquímicas referentes à situação
psíquica daquele ego que foi ao encontro do inconciente, mas não sucumbiu ao encontro com
a sombra, isto é, alcançou o Primeiro Grau da Coniunctio de Dorneus. Entretanto, se no início
do Opus Alchymicum, a psicologia se vê obrigada a ressaltar a importância do inconsciente,
ela demonstra também que aquele que alcançou uma unio mentalis, apresenta ao mesmo
tempo o risco de que uma redução à consciência separare-o da experiência imediata com a
base inconsciente. Sobre este aspecto psicológico do Opus, Jung adverte:
... O desvanecer da sensação de dependência e o fortalecimento simultâneo da crítica
é percebido como progresso, esclarecimento, libertação, e mesmo como salvação,
ainda que um ser unilateral e limitado tenha tomado o trono de um rei. Um eu
pessoal arrebata as rédeas do poder para sua própria ruína, pois a simples natureza do
eu, não obstante a posse de uma anima rationalis (alma racional) não basta para
dirigir sua própria vida pessoal (...) (JUNG, 1990, p. 122, §185).
Isso de hipótese alguma significa que a importância do consciente tenha que ser
diminuída, “significa apenas que se deve de certa forma ‘relativizar’ o consciente no caso de
uma valorização excessiva e unilateral do mesmo” (JUNG, 1999[C], p.156,§ 502). Enquanto a
consciência procura o sentido unívoco e as decisões claras, deve ela constantemente libertar-
se de argumentos e de tendências opostos; nessa tarefa especialmente os conteúdos
incompatíveis permanecem inconscientes. Quanto mais isso acontece, tanto mais inconsciente
permanece a posição oposta:
135
Quanto mais poderosa e independente se torna a consciência e, com ela, a vontade
consciente, tanto mais o inconsciente é empurrado para o fundo, surgindo facilmente
a possibilidade de a consciência em formação emancipar-se da imagem primordial
inconsciente. Alcançando então a liberdade, poderá romper as cadeias da pura
instintividade e chegar a uma situação de atrofia do instinto, ou mesmo de oposição e
ele. Esta consciência desenraizada, que não pode mais apelar para a autoridade das
imagens primordiais, acede às vezes a uma liberdade prometéica, a uma hybris sem
deus (JUNG, 2003, p. 22, §13).
Na concepção junguiana, a existência humana abrange duas vertentes: o movimento
em direção à adaptação ativa e consciente ao ambiente e, o movimento em direção às
necessidades inconscientes; o que, obviamente, não quer dizer que um seja positivo e o outro
negativo. Por isso, Jung propôs que “o conceito de psíquico só fosse aplicado àquela esfera
em que exista uma vontade comprovadamente capaz de alterar o processo reflexivo ou
instintivo” (JUNG, 1988, p. 2, § 3). Trata-se do sistema de auto-regulação da psique humana.
A primeira é ascendente: a pessoa se separa do fascínio da figura dos pais, deixa a infância e
enfrenta o mundo. Nesse período, a tarefa do psicólogo consiste, em favorecer o vôo e em
ajudar a se desatarem os laços que mantinham cativo o jovem
29
. Há uma ambição louvável,
um desejo nobre de sair da escuridão interior e exterior, reproduzida na simbólica alquímica
da fase negra, porque essa escuridão, sob certos aspectos, é uma forma de inconsciência, da
qual é necessário libertar-se. Mas quando, toda a energia se concentra num dos pólos da
realidade, com prejuízo do outro, no alto, perdendo de vista o baixo, a vida profunda
restabelece imediatamente o equilíbrio. Aquele que acumula avidamente no plano consciente,
dissipa e corrompe no nível inconsciente. De tanto se acentuar a predominância do espírito e a
mortificação dos sentidos, os alquimistas notaram que tinha-se extenuado o corpo e feito
cessar a comunicação harmoniosa entre os diferentes níveis do ser. O intelecto, ceifado de
suas raízes, deve abdicar de sua autonomia e, para escapar à esterilidade, abaixar-se para o
mundo do instinto. A alquimia reproduz este processo psíquico na temática da subida e da
descida do volatil, ou seja, na problemática da união simbólica do elemento animal com as
mais elevadas conquistas morais e intelectuais do espírito humano:
... Na realidade, o intelecto apenas prejudica a alma quando pretende usurpar a
herança do espírito, para o que não está capacitado de forma alguma.O espírito
representa algo de mais elevado do que o intelecto, abarcando não só este último, mas
também os estados afetivos. Ele é uma direção e um princípio de vida que aspira às
29
Segundo Jung, uma atenção muito exclusiva aos processos interiores pode ser prematura e constituir meio de
furtar-se às tarefas imediatas, o qual tem como símbolo o puer aeternus, o “menino eterno”. Há casos em que o
sonho manda retificar uma atitude que dá muita importância ao inconsciente. Uma atração pelo domínio
espiritual e oculto, por exemplo, pode ser acompanhada de uma fuga diante dos problemas concretos, pessoais.
136
alturas e sobre-humanas. A ele se opõe o feminino, obscuro, telúrico (yin), com sua
emocionalidade e instintividade que mergulha nas profundezas do tempo e nas raízes
do continuum corporal (JUNG, 2003, p. 19- 20, § 7).
Uma das dificuldades da obra é a de manter a medida entre a energia inconsciente, que
irrompe, e a capacidade de integração da pessoa no nível consciente. Ademais, Perrot conclui,
“o que o homem exige não é sublimação, mas integração, porque o fim não está nem em
cima, nem embaixo, mas no centro, num centro situado mais profundamente que o ego”
(PERROT, 1998, p. 128). Também sobre este aspecto, Jung afirma que “a confrontação da
consciência com o inconsciente significa de uma parte a dissolução da personalidade, e de
outra parte simultaneamente uma recomposição da totalidade” (JUNG, 1997, p. 214, §288).
Em outras palavras, necessita-se voltar a atenção para a psique arquetípica e estabelecer
contato significativo e real com ela, o que significa que deve-se fazê-lo de modo consciente,
pois assim é possível entender o processo simbólico subjacente a ela. Em uma discussão
psicológica deste processo, o indivíduo deve examinar novamente suas atitudes e falhas,
porque apenas de certo modo, os motivos inconscientes são reprimidos. Na realidade, a
pessoa é sempre de novo advertida por um ressentimento incômodo quanto à existência do
que foi recalcado:
... Quem quer que seja que no tempo hodierno quizer tentar no caminho análogo, a
verificação de sua segurança no confronto com a realidade, fará experiencias
semelhantes. Mais uma vez aquilo que criou para si despedar-se-á na colisão com o
mundo, e ele não deverá desanimar por ter de examinar sempre de novo onde sua
atitude ainda tem falhas e quais são os pontos cegos no seu campo visual (JUNG,
1990, p. 291, § 413).
Na fase da albedo, a subida e a descida do volátil desenvolve o processo alquímico da
Circulatio, o qual, do ponto de vista psicológico, será analisado mais de perto a seguir.
IV. 3 O processo alquímico da Circulatio do ponto de vista psicológico do Opus
Alchymicum
Sabe-se que a geração dos metais circular no processo alquímico da albedo, pelo
enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo; segundo um círculo, diz respeito
as sucessivas extrações do espírito mercurial. Pela arte circular o alquimista buscava produzir
a pedra. A idéia clássica da circulatio, do movimento através dos quatro elementos, da
repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia clássica de circum-ambulação
137
do Si-mesmo ou seja, entre outras coisas, do processo de individuação através das diferentes
fases da vida. Von Franz analisa o processo alquímico da Circulatio, e considera:
Psicologicamente, isso significa que o Si-mesmo começa a se manifestar no espaço e
no tempo, que não se converte em algo num certo momento como um retorno
subsequente ao modo de vida anterior do indivíduo, mas, ao contrário, tem efeito
imediato sobre a vida toda (VON FRANZ, 1980, p. 144).
Como foi observado anteriormente, devido à sua destilação circulatória, o Pelicano
era usado na alquimia pra indicar o movimento circular continuado da albedo. Von-Franz
analisa o símbolo alquímico do Pelicano e considera este, o recipiente alquímico no qual
ocorre a circulatio (destilação circular), “comparável à circum-ambulação de um problema de
pontos de vistas diferentes e em diferentes fases da vida a essência do processo de
individuação” (VON-FRANZ, 1980, p. 227). Especialmente Dorneus chama o vaso de “‘vas
pellicanicum’, através do qual é extraída a essentia quinta da prima materia”
30
. Segundo Jung,
nos escólios do Tractatus Aureus Hermetis
31
se acha um quatérnio de superior inferior,
exteriorinterior, segundo os quais são reunidos em uma unidade por uma manobra circular,
chamada “Pelecanus”. O autor anônimo afirma: “Este vaso é o verdadeiro pelicano filosófico,
e não se deve procurar outro no mundo inteiro”
32
. Em uma análise psicológica tanto do
simbolo alquímico do Pelicano, como consequentemente da sublimação filosófica, Jung
assegura: “A síntese se faz pelo movimento circular (circulatio, rota) no decurso do tempo”
(JUNG, 1997, p. 4-5, §5).
A sexta figura do Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, sob o títúlo “Este é
certamente um milagre grande e sem nenhuma decepção Em um dragão venenoso deve
haver a Grande Medicina”, é retratada da seguinte maneira:
30
DORNEUS, Gerardus. In: Theatrum Chemicum I (1602), p. 500. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 88, § 115. nota 143.
31
Segundo Jung, “este tratado é de origem árabe, e foi impresso em Manget: Biblioteca Chemica, 1702, I, 409s”
(JUNG, 1997, p. 9, § 8, nota 39).
32
Theatrum Chemicum (1613) IV, p. 789. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
2003, p. 89, § 115, nota 144.
138
Símbolo da Ouroboros (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
33
O texto que segue a figura assegura que o “mercúrio convenientemente preparado,
alquimicamente precipitado e sublimado, se dissolve em sua água e coagula.”
34
Nota-se no
texto e na figura de Lambsprinck que a sublimação filosófica aparece retratada como um
dragão em forma de círculo, mordendo sua própria cauda, ou seja, pela símbolo da
Ouroboros, sendo este, portanto, um símbolo alquímico para o movimento circular
continuado da opus. Psicologicamente, a finalidade da circulatio, segundo Jung, “ é a
produção (respectivamente, reprodução) do homem primitivo redondo” (JUNG, 1997, p. 5,
§5). Um século mais tarde, Bernardo Trevisano, aconselha que para a matéria possa ser
transformada em elixir completo, deve ser totalmente levada à espírito redondo, feito pela
devida circulação para que assim possa ser chamada de Ovo Filosófico:
...Mas a vossa matéria ainda não chegou à sua propriedade, pela qual possa ser
chamada Ovo Filosófico, e por cuja a disposição possa, em última instância, ser
transformada em elixir completo, como o ovo em pinto, já que toda a nossa matéria
não foi totalmente levada a espírito redondo, feito pela devida circulação, mas é antes
um corpo por si fixo, que não foge, um espírito fugitivo somente por si, sem o fixo, o
que faz com que isto não pareça ser um ovo, porque o uno repete o resto. (...) Pois
nem o corpo permite que se separe sem a sua natureza, nem o espírito quando sobe
sem a sua secura, se pode converter em elixires, porque por meio do vapor não
podem misturar-se uns com os outros, e esta é a razão porque os filósofos chamaram
Ovo ao seu Mercúrio, e isto é assim porque como o ovo é uma coisa circular,
redonda, que contém em si duas naturezas e uma substância, o branco e o amarelo,
tira de si mesmo outra coisa que tem alma, vida e geração, ou seja, a saber, sai um
33
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
34
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 158.
139
pinto. Assim também aqui o Mercúrio contém em si duas coisas de uma natureza,
corpo e espírito, e tira de si a alma e a vida (...)
35
Na citação acima, Bernardo Trevisano aconselha que, para a matéria se transforme em
elixir completo, esta deve ser totalmente levada à espírito redondo, ou seja, feita pela devida
circulação, a fim de que assim possa ser chamada de Ovo Filosófico. O ovo é o vaso
alquímico, uma espécie de útero e matrix, do qual deve nascer a Pedra filosofal. A Pedra
filosofal possui uma dupla natureza, pois nasce da união do volátil com o fixo, do úmido com
o seco, o que indica o binário corpóreo-espiritual, por isso a afirmação de que “o ovo é uma
coisa circular, redonda, que contém em si duas naturezas e uma substância”. Em uma análise
psicológica da obra alquímica, Jung considera que o Ovo filosófico, ou seja, o verdadeiro
pelicano filosófico, “é a própria lapis e a contém ao mesmo tempo, isto é, o si-mesmo que se
contém. Esta formulação corresponde à frequente comparação da pedra com o ovo ou com o
dragão que se devora e dá nascimento a si mesmo” (JUNG, 2003, p. 89,§115).
A sublimação filosófica aparece no símbolo circular da serpente, em uma citação de
Geber no texto da segunda figura no Rosarium Philosophorum pertencente ao século XVI,
segundo o qual afirma “que aquela água deve ser pura e limpa, e portanto deve não ser feita
mas de um dragão removida. E deixe que o dragão seja removido elevando-o três vezes e
então revivendo”
36
. Sendo assim, pelo movimento circular continuado do dragão produz-se
aquela água pura e limpa; aquela a qual, Morien no início do capítulo “tirou da terra” e voltou
a “pô-la outra vez”. Ainda no mesmo século do Rosário dos Filósofos, a água aparece na
sublimação filosófica representada pelo “trabalho das mulheres”, que é ensinado pela
Natureza, como se observa na imagem alquímica do Splendor Solis, a seguir:
35
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 76. Texto disponível também em:
http://www.levity.com/alchemy/span01.html.
36
“Fifthly, that that water ought to be pure and clean, and should not be made but of a purged Dragon. And let
the Dragon be purged by elevating it three times and then by reviving it.” THE ROSARY of the Philosophers.
(1550) Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
140
O trabalho das mulheres (Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)
37
A sublimação filosófica pelo “trabalho das mulheres” também aparece um século mais
tarde, no terceiro emblema do Atalanta Fugiens de Michael Maier:
37
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11166.
141
A sublimação filosófica no trabalho das mulheres que é ensinado pela natureza (Michael
Maier, Atalanta fugiens, 1617)
38
O texto que segue a figura afirma:
Quando as roupas de linho são poluidas e sujas pelo imundície terrestre (física), estas
são limpas pelo elemento seguinte a ele: a saber a Água; e então extraídas pelo calor
do sol como pelo fogo, que é o quarto elemento, e se isto for repetido
frequentemente, se torna limpa & livre das manchas. Este é o trabalho das mulheres
que é ensinado pela Natureza. Para nós vermos (...) se estiverem frequentemente
molhada com chuva assim como secas frequentemente pelo calor do sol será
reduzido a uma brancura perfeita.
39
Nota-se no texto de Maier que, através do trabalho das mulheres, a roupa
repetidamente molhada e seca, referem-se ao corpo liquefeito com o seu dissolvente, a fim de
alterar a sua natureza corporal, até que, o corpo se converta em espiritual e volátil e, o volátil,
se converta em corpóreo e fixo; desta maneira, fazendo alusão à fase da albedo, afirma Maier,
“será reduzido a uma brancura perfeita”. Sobre este símbolismo alquímico, Von-Franz em
Alquimia, obra já citada, considera a nigredo, ou seja, a negrura, a terrível depressão e estado
de dissolução. Este estado psicológico, segundo a autora, tem que ser compensado pelo
trabalho árduo do alquimista:
38
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html.
39
“When Linen Clothes are soiled & made dirty by earthy Filth, they are cleaned by the next Element to it:
Namely Water; & then clothes being exposed to the Air, the moisture together with the Faeces is drawn out by
the heat of the Sun as by fire, which is the fourth Element, & if this be often repeated, they become clean & free
from stains. This is the work of women which is taught them by Nature. For we see (…) if they are often wet
with Rain & as often dried by the heat of the Sun will be reduced to a perfect whiteness” MAIER, Michael
(1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html.
142
... esse trabalho consiste, entre outras coisas, na lavagem constante; por conseguinte,
até o trabalho da lavadeira é frequentemente mencionado no livro, ou a constante
destilação, o que também é feito com o propósito de purificação, pois o metal se
evapora e depois é precipitado num outro recipiente, removendo assim as substâncias
mais pesadas (VON-FRANZ, 1980, p. 194).
Deste fato também se conclui que a água referente à esta fase não está mais associada
à preparação para as umidades destruidoras descritas na fase “negra”, através do tema do
afogamento e da dissolução, no qual o rei se banha, mergulha ou se afoga; de modo geral, a
água que anuncia a fase da albedo é purificadora, isto é, é o orvalho, a água celeste, pois é “a
alma que desce do céu é idêntica ao orvalho, à “aqua divina” que significa o “rex de coelo
descendens” ( o rei que desce do céu)” (JUNG, 1999[C], p. 150, § 497). Basílio Valentim na
terceira chave da filosofia considera:
E tens que saber que se alguns vapores e nuvens se elevam da terra e se amassam no
ar, voltam a cair por causa do peso natural da água e a terra recebe mais uma vez a
sua humidade perdida com a qual se deleita e alimenta e pela qual se acha mais
própria pra produzir o seu fruto. É por isso que é preciso reiterar as preparações das
águas com muitas destilações, de maneira que a terra se empape com frequencia na
sua humidade. E tal humor tantas vezes obtido (seco), tal como o Euripo, deixa
frequentemente a terra em seco, depois volta sempre, até construir o palacio real, com
esforço, enfeitado, com grande cuidado e que o mar de vidro o tenha enriquecido,
com o fluxo e o refluxo, com muitas riquezas, o rei já poderá entrar e habitá-lo.
40
Primeiramente os vapores e nuvens se elevam da terra, denotando uma extração do
espírito mercurial da matéria. Posteriomente, a propriedade mercurial-passiva representada
pela umidade fria do orvalho, volta para a terra. Observa-se também na citação de Valentim
que o “fluxo e refluxo” quer significar a mesma operação alquímica que o “sobe e desce no
vaso”, o “abre e fecha” e o “tragar e o arremessar”, ou seja, as sucessivas destilações, onde o
mercúrio, ou seja, "alma-espírito" é dissolvido novamente na matéria, e se eleva novamente,
procedendo assim, até construir o palácio real, isto é, até que o corpo esteja preparado. Dessa
maneira ,a alma idêntica ao orvalho, desce do céu e, assim, “o rei já poderá entrar e habitá-
lo”, como chama a atenção Valentim.
O enaltecimento do orvalho já esta presente na quarta prancha do Mutus Liber, o Livro
Mudo da Alquimia, como podemos ver na imagem a seguir
41
:
40
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.126.
41
O Mutus Liber é reconhecidamente uma das mais importantes obras da tradição alquímica. Composto de 15
pranchas, gravadas por Altus (La Rochelle, 1677), descreve os passos para a realização da Grande Obra apenas
por imagens.
143
Recolhimento do Orvalho (Mutus Liber, 1677)
42
Em especial nesta prancha, o alquimista e sua soror mystica recolhem aqui o orvalho
celeste. O casal colocou lençóis pregados em cima de quatro piquetes e deixou-os toda a noite
para que se impregnassem desse elemento sutil. José Jorge de Carvalho, doutor em
Antropologia, especialista em religiões comparadas, mitologia e arte, responsável pela
pesquisa e recompilação que culminou no mais completo estudo iconográfico e simbólico do
Mutus Liber, com relação à “flor do céu” nesta prancha, isto é, ao “orvalho celeste” assegura
que “a flor celeste representa a um só tempo o espírito (o que está em cima) que se tornou
42
Figura disponível em: http://perso.orange.fr/pensee.sauvage/L2/alchimie/mutus.htm
144
denso e a matéria (o que está em baixo) que se tornou sutil” (CARVALHO, 1995, p.92).
Ainda sobre o orvalho celeste, Basílio Valentim na quinta chave da filosofia chama a atenção
para o aspecto revificador deste:
Por isto conhecerás que a vida é um puro espírito, é a razão por que tudo aquilo que o
ignorante crê morto deve viver com uma vida inatingível, mas visível, espiritual e ser
conservado nela. Se queres que a vida coopere com a vida, devem alimentar-se estes
espíritos com o orvalho do céu,e tomarão a sua extracção de um ser celeste elementar
e terrestre que se chama materia sem forma.
43
Deste fato se conclui que a a água na alquimia é aquela que mata e, também, revive a
matéria; neste sentido, tem ela, pois, segundo Jung, um “efeito duplo e oposto entre si”
(JUNG, 1990, p. 19, § 12). No texto que acompanha a segunda imagem alquímica, o
Rosarium Philosophorum ainda afirma que esta água “chamaram-na água da purificação ou
putrefação, e falaram a verdade, porque é purificado por sua água ou purificado de sua
obscuridade. É lavado e feito isso branco e mais tarde vermelho”
44
. Ainda no texto que
acompanha a primeira figura, referindo-se ao Espelho da alquimia de Roger Bacon, na
seguinte citação sob o título “The mirror” afirma-se :
…até que o espírito e o corpo forem feitos todos um, de modo que os corpos
corpóreos sejam feitos incorpóreos, e incorpóreos sejam corporificados
Conseqüentemente, a água é a coisa que faz o branco e o vermelho É a água que mata
e revive. É a água que queima e faz quente. É a água que dissolve e coagula.
45
Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do Pelicano, traz
conotação correspondente; isto é, anteriormente foi observado a sublimação filosófica no
simbolismo alquímico do pelicano; entretanto, não foram esgotados os significados profundos
desta alegoria alquímica
46
. Em outra parte da Citação do Tractatus Aureus Hermetis,
encontra-se a seguinte afirmação: “Ao aplicar o bico ao peito, curva ele todo o pescoço
juntamemte com o bico formando um círculo ... o sangue que escorre do peito devolve a vida
43
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.132.
44
“… they have called it water of their purification or putrefaction, and they spoke the truth, because it is
purified by their water or purified from its blackness. It is washed and it maketh it white and afterwards red”
THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
45
“…till the spirit and body be made all one, so that the corporate bodies be made incorporate, and the
incorporate be made corporate Therefore, water is the thing which maketh white and red. It is the water which
killeth and reviveth. It is the water which burneth and maketh hot. It is the water which dissolveth and
congealeth.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
46
Jung acrescenta: “...O pelicani rasga o peito para alimentar seus filhotes, sendo por este motivo uma conhecida
alegoria do Cristo” (JUNG, 1999[C], p. 177, §533).
145
aos filhotes mortos”
47
. Eis o que pretendiam também significar com outro axioma Matar o
vivo para revificar o morto:
...todos os autores ensinam que é preciso matar o vivo se queremos ressuscitar o
morto; eis porque o bom artista não hesitará em sacrificar a ave de Hermes, e em
provocar a mutação das suas propriedades mercuriais em qualidades sulfurosas, pois
toda a transformação está submetida à decomposição prévia e não pode realizar-se
sem ela. (FULCANELLI, 1990, p. 345)
Esta formosa ave, cujas as asas são emblemas da volatilidade e expressão da pureza,
assim como a "água viva mais celeste do que terrestre", possui evidentemente as duas
qualidades essenciais do mercúrio. Este mercúrio que foi libertado inicialmente do fardo
corporal, pelo processo de dissolução, trituração e, despedaçamento, mencionados no capítulo
anterior. Este deve porém ser "sacrificado", porque fixado e coagulado novamente. Sendo
assim, a matéria que estava morta, porque separada do espírito mercurial, revive. Neste
capítulo, observamos a imagem alquímica do Splendor Solis, onde Saturno é cozido no banho
até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve. Ainda com relação à este, BasílioValentim
na nona chave da filosofia chama a atenção para o fato de que, ainda que Saturno tenha
adquirido,por sua vontade, o lugar mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair
abaixo de todos, isto é, “cortando-lhe as asas”:
Saturno, o mais alto dos planetas, é o mais baixo e abjecto do nosso magistério;
contudo, possui a primeira chave e, sendo vil e carecendo quase de autoridade, ocupa,
apesar de tudo, o melhor lugar. Ainda que tenha adquirido,por sua vontade, o lugar
mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair abaixo de todos, cortando-lhe
as asas e, com a sua morte, alcança toda a perfeição da obra, a fim de que o negro se
transforme em branco e o branco em vermelho. (...) E ainda que saturno pareça o mais
vil e menor de todos, tem, contudo, grande virtude e eficácia. A sua nobre essência (
que na realidade é um frio muito grande) junta-se com um corpo metálico volátil e
ígneo, que o torna fixo e sólido e inclusivamente mais firme e permanente que ele
mesmo. Essa transmutação toma a sua origem no mercúrio, no sulfureto e no sal. (...)
Mas quanto mais vil e abjecta é a matéria, mais elevado e subtil tem de ser o espírito
(...)
48
47
“Dum enim rostrum applicat pectori, totum volum cum rostro flectitur in circularem formam ... sanguis
effluens e pectore mortuis reddit vitam.” Manget, 1.c.I, 444b. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 9, §8, nota 40. O mesmo pensamento se repete no texto de Valentim citado
anteriormente: “o pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde para alimentar com o seu próprio
sangue todos os seus filhos.” VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et
al. Alquimia e ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.
48
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 141.
146
Tanto o verdadeiro pelicano filosófico, que criva o seu peito para alimentar com o seu
próprio sangue os seus filhos, assim como a expressão alquímica recorrente de que “a águia
pode ter suas asas amputadas”, como se observa na citação acima através da expressão
“cortando-lhe as asas”, em uma análise junguiana deste processo, significa a morte do estado
abstrato e ideal, pois é necessario insuflar “sangue”
49
e, reanimar a emocionalidade e a
instintividade do corpo. Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do
Pelicano traz conotação correspondente ao orvalho celeste da albedo, isto é, é o sangue e a
umidade anunciando o retorno da alma
50
. No capítulo anterior, o tema da decapitação na fase
da nigredo, do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum demonstrou ser importante
símbolo da separação da inteligência do grande sofrimento e dor, que a natureza (aspecto
instintivo do corpo) causa à alma. Entretanto, na fase da albedo, a recomendação de que “a
águia pode ter suas asas amputadas”, do ponto de vista psicológico, significa que o que deve
ser excluído na fase da albedo é a unilateridade da consciência, desenraizada da experiência
imediata com a base inconsciente, para que assim, desta maneira, se volte para o corpo.
Sabe-se que Jung entendia o processo de individuação um processo intencional de
diferenciação psicológica que tem como fim o afastamento do indivíduo da base coletiva para
realizar seu destino próprio individual. Sobre este aspecto em especial, Jung analisou uma
sonho dos sonhos da série publicada em Psicologia e Alquimia, no qual a impressão visual
hipnagógica, do quarto sonho é descrita da seguinte maneira: “O sonhador está cercado por
muitas formas femininas indistintas. Uma voz interior diz-lhe “primeiro preciso separar-me
do Pai” (JUNG, 1991 [A], p. 59, § 58). Jung faz a seguinte análise psicológica do sonho:
...As palavras “primeiro preciso separar-me” implicariam a complementação “para
depois”. Pode-se supor que este complemento corresponde mais ou menos a : “para
depois seguir o inconsciente, isto é, a sedução das mulheres”. O Pai, enquanto
representante do espírito tradicional, como nas religiões e concepções gerais do
mundo, impede-lhe o caminho, retendo o sonhador na consciência e seus valores. O
mundo tradicional masculino, com seu intelectualismo e racionalismo, manifesta-se
como um obstáculo (Ibidem, p. 60, §59).
Nota-se que Jung chama a atenção para a necessidade de primeiramente afastar-se do
mundo do Pai, isto é, em outras palavras, a necessidade de livrar-se do hábito de pensar
49
Nas visões de Zózimo encontramos a seguinte citação, indicando a passagem da fase alquímica da albedo para
a rubedo: “De novo, ví o mesmo altar sagrado em forma de caldeiro e ví também um sacerdote vestido de
branco, que estava a celebrar aqueles temerosos mistérios. “Quem és?”, perguntei-lhe. Ele respondeu-me: “Sou
o sacerdote deste Santuário. É preciso meter sangue nos corpos, aclarar os olhos e ressuscitar os mortos.”
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 29.
50
O sangue segundo Jung, “é um dos sinônimos mais conhecidos da aqua permanens (água eterna) e se apóia
muitas vezes na simbólica e na alegórica eclesiásticas do sangue” (JUNG, 1990, p. 43-44, § 61).
147
amparado pela tradição e pelo meio ambiente, quando se depende de um hábito que tem o
caráter de lei. É um estágio que se aceita passivamente, um estado de não-reflexão. Isto
significa o sacrifício das perspectivas comuns e a volta para uma ordem de valores que
ultrapasse os limites do eu; como afirma Perrot, seria “o bom senso das realidades profundas
da alma que zomba do bom senso exterior como a verdadeira eloquência zomba da
eloquência” (PERROT, 1998, p. 209). Afastar-se do mundo do Pai significa a aceitação de
caminhos estranhos, de saída imprevisível, revelado no sonho pela atração decisiva pelo
inconsciente (anima). Este último não deve, no entanto, ser subordinado aos julgamentos
racionais da consciência, “mas tornar-se vivência sui generis. O intelecto não aceita isto
facilmente, porque se trata de um ‘sacrificium intellectus’ que, embora não sendo total, é ao
menos parcial” (JUNG, 1991 [A], p. 60, § 59).
Entretanto Jung alerta para o fato de que esta “relativização”da consciência, não deve
chegar a ponto de permitir que o fascínio exercido pelas verdades arquetípicas subjugue o eu:
Edinger nomeou esse processo de coniunctio inferior, ou seja, uma união dos opostos que
foram separados de maneira imperfeita. O produto era sempre “um elemento morto, mutilado
ou fragmentado (uma sobreposição com o simbolismo da solutio e da mortificatio)”
(EDINGER, 1999, p. 228). Isso aparece mais claramente no Rosarium Philosophorum, onde a
nigredo não aparece como estado inicial, mas já como o produto de um processo anterior
51
.
No Rosarium Philosophorum, isto acontece no abraço Beya em Gabricus: ela mesma
absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços indivisíveis.
Psicologicamente, a coniunctio inferior sempre ocorre quando um ego se identifica com os
conteúdos inconsciente; o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos
afluxos dos conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente
52
;
isto “gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre
este último e as figuras inconscientes.” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Naturalmente será preciso
defender a realidade contra um estado fantasioso. O eu vive no tempo e no espaço e precisa
ajustar-se às leis desta realidade para poder subsistir. Neste sentido, a disciplina, por sua vez,
51
A Coniunctio inferior aparece também no Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, no qual, na décima
terceira prancha o rei como prima materia devora o filho. Na décima quarta prancha, a necessidade da
purificação da matéria é retratada através da imagem, na qual o rei transpira para que “o óleo e a tintura certa dos
filósofos jorre dele”. Ele pede a Deus que lhe restitua o único filho, que devorou. Posto isto, é-lhe enviada uma
chuva astral (orvalho), que dissolve o seu corpo enquanto dorme. Na décima sexta prancha, o pai que sofre então
uma completa transformação, primeiro numa “água transparente” e depois, numa “terra fecunda”, gerou um
novo filho. A prancha reproduz assim, o Pai (corpo), o Filho (espírito) e o guia (alma), que formam um só por
toda a eternidade.
52
Jung acrescenta: “Assim é que uma consciência masculina, por exemplo, cai sob a influência da anima,
podendo até mesmo ser possuido por ela” (JUNG, 1988, p. 21,§ 43)
148
enfatiza os limites de comportamento, encoraja a dissolução da identidade ego-Si-mesmo e,
trata a inflação, supostamente, de modo eficaz, evitando a assimilação do eu pelo
inconsciente:
O enraizamento do eu no mundo da consciência e o fortalecimento da consciência
por uma adaptação o mais adequada possível são de suma importância. Neste
sentido, determinadas virtudes como a atenção, a conscienciosidade, a paciência, sob
o ponto de vista moral, e a exata consideração dos sintomas do inconsciente e a auto
crítica objetiva, do ponto de vista intelectual, são também sumamente importantes
(JUNG, 1988, p. 21, § 46).
No capítulo anterior observamos as imagens alquímicas daqueles que tentam
atravessar o inconsciente sem estarem purificados; em linguagem gnóstico-cristã significa a
pecaminosidade e a impuritas, da qual deve ser lavado o catecúmeno, para isso recomenda-se
o emprego de todas as espécies possíveis de virtude, pois um ego fraco é sobremodo
vulnerável ao ser consumido pelo encontro com um afeto intenso, identificando-se aí com o
desejo projetado. A vontade do rei então deverá ser submetida à uma solutio, separatio e
mortificatio; o que nos apectos psicológicos foi exautivamente abordado anteriormente; mas,
em linguagem gnóstico-cristã, seria a sujeição das paixões apetites por meio de penitências,
abstinências ou de dolorosos rigores aflingidos ao corpo. Do ponto de vista psicológico do
Opus, isto explica o fato de, embora a gravura do abraço Beya em Gabricus no Rosarium
receba o título de “Coniunctio”, a sequência das gravuras seguintes são retratadas com os
seguinte títulos: putrefação, ascensão da alma, purificação, retorno da alma e finalmente novo
nascimento; respectivamente referentes à sexta, sétima, oitava, nona e décima figura. Nota-se,
neste sentido, que a alquimia chama a atenção para a necessidade da purificação da matéria
antes do retorno da alma.
Na concepção alquímica, supõe-se que ambos, o enxofre e o mercúrio deviam ser
purificados de maneira à constituírem a matéria próxima do Magistério, e não conservando já
nenhuma impureza deviam ser unidos. Porém, para recompor o que a natureza alterou, era
necessário tornar o enxofre e o mercúrio, por sua vez, blocos básicos de todos os metais,
"quimicamente" puros, e uni-los, para obter o "ouro". Jung analisa do ponto de vista
psicológico o processo alquímico da purificação presente na fase da albedo e, faz a seguinte
consideração:
A “mundificatio” (purificação) é, pois, uma discriminação do que estava misturado, a
saber, da “coincidentia oppositorum”, na qual também está incluído o indivíduo. O
homem racional deste mundo tem que diferenciar-se daquilo que ele é “na
149
eternidade”, digamos assim. Como indivíduo único, ele representa também o
“Homem” como tal, e participa de tudo o que mobiliza o inconsciente coletivo. Em
outras palavras: as verdades “eternas” tornam-se perigosos fatores de perturbação,
quando oprimem o eu individual e único, vivendo às custas e em detrimento deste
último (JUNG, 1999 [C], p.156, § 502).
Do ponto de vista psicológico, na fase da nigredo, o indivíduo caminha ainda
misturado com o inconsciente, quase inconsciente da sua existência. Sendo assim, quando este
último se defronta com o inconsciente sem uma atitude crítica, nestas circunstâncias, “o eu é
facilmente superado e se identifica com os conteúdos assimilados” (JUNG, 1988, p. 21, § 43).
A separação na unio mentalis , portanto, é indispensável, pois somente ocorre uma Coniunctio
superior se houver uma união dos opostos que foram separados de maneira perfeita. Na
alquimia, “a purificação se faz através de uma múltipla destilação; na psicologia, através da
separação radical do ser (eu) humano comum de todas as interferências inflacionárias do
inconsciente” (Idem, 1999[C], p. 157, § 503). Entretanto, a separação da psique coletiva de
caráter animalesco, isto é, da multiplicidade, conduz a um tal distanciamento da psique pré-
histórica, que acarreta uma atrofia da vida instintiva. Do ponto de vista junguiano, o caminho
principia no tempo em que a consciência racional do presente ainda não se separara da alma
histórica do inconsciente coletivo. No entanto, “se a multiplicidade depreciada do homem
natural for rejeitada, sua integração, ou melhor, o processo de auto-realização também será
impossibilitado” (Idem, 1991 [A], p.92, § 105). Sobre este aspecto psicológico do Opus
Alchymicum, existe uma gravura que ilustra uma sentença do filósofo hermético Morienus,
citado anteriormente. A gravura representa um homem pisando conscientemente um monte de
esterco, enquanto, em segundo plano, outro homem, que tentava entrar num edifício pela
janela do primeiro andar, cai de costas:
(Michael Maier, Symbola Aurea mensae duodecim nationum, 1617)
53
53
Reproduzido em: PERROT, Etienne. O caminho da Transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 68.
Também disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.alchemywebsite.com/amclglr6.html
150
A sentença que inspira a gravura de Michael Maier em Symbola Aurea mensae
duodecim nationum assegura: “Toma essa coisa que é calcada aos pés sobre seus montes de
esterco; do contrário, querendo subir sem escada, cairás sobre a cabeça”
54
. Segundo Jung, a
“pré-história psíquica é o espírito da gravidade, que exige degraus e escadas, porque não pode
voar, a modo do intelecto, sem corpo e sem peso”.(JUNG, 1991 [A], p. 72, § 79). Do ponto de
vista psicológico, a fonte só será encontrada se a consciência resignar-se a retornar, a fim de
receber, como antes, as diretrizes do inconsciente, pois, de outro modo, “cairás sobre a
cabeça”. Este aspecto psicológico da Obra remete também ao oitavo sonho da série analisada
por Jung em Psicologia e Alquimia. Eis a impressão hipnagógica retrada: “Um arco-íris devia
ser usado como ponte, mas não se deve passar por cima e sim por baixo dele. Quem passar
por cima sofre uma queda mortal” (Ibidem, p.68, § 69). No estado consciente pensamos
ingenuamente que o caminho leva ainda a maiores alturas. Jung acrescenta: Esta é a
quiméria ponte do arco-íris. Na realidade, para atingir o cume seguinte, teremos primeiro que
descer àquele país onde os caminhos apenas começam a separar-se” (Ibidem, p. 70, § 75).
A volta à pré-história psíquica nao significa que se deve renunciar à diferenciação da
consciência; trata-se mais da questão do homem ocupar o lugar do intelecto ou do que Jung
chamou de a consciência capaz de discernimento; ou seja, é indispensável ter “consciência
dos dois lados da personalidade humana, de suas metas e de sua origem. Esses dois lados
nunca devem ser separados, seja pela soberba (hybris), seja pela covardia” (Ibidem, p. 126, §
148). Neste sentido, no retorno da alma necessário à Coniunctio, nota-se uma acentuação
oposta: se em um primeiro momento, há o afastamento do homem em relação aos seus
instintos, em um segundo, a identificação do espírito com o intelecto, da consciência com o
pensamento, e o mundo da consciência conquistado às duras custas através da separação da
alma do corpo
55
, deverá ser demolido, em benefício da realidade do inconsciente; é preciso
reconhecer, portanto, que “apesar do inegável sucesso da atitude racional hodienda, sob
muitos aspectos ela é infantilmente inadequada e portanto hostil à vida” (Ibidem, p. 70, § 74).
Neste sentido, outro fator importante a ressaltar é que, de modo oposto, o perigo
psicológico correspondente na fase da albedo se refere à uma colocação do acento sobre a
personalidade do eu, onde agora o Si-mesmo e as figuras do inconsciente são psicologizadas,
54
“Hoc accipe quod in sterquiliniis suis calcatur, si non absque scala ascensurus cades in caput”. Morienus.In:
PERROT, Etienne. O caminho da Transformação: segundo C. G. Jung e a alquimia. São Paulo: Ed. Paulus,1998,
p. 68.
55
Segundo Jung, “é o afastamento do homem em relação aos instintos a sua oposição a eles que cria a
consciência” (Idem,1998 [A], p.337).
151
ou seja, assimilados ao eu, o que denota novamente o perigo da inflação
56
, embora por
motivos contrários:
É bem possível que a colocação do acento sobre a personalidade do eu e sobre o
mundo da consciência assuma tais proporções, que as figuras do inconsciente sejam
psicologizadas, e o si-mesmo, em conseqüência, assimilado ao eu. Embora isto
signifique o processo inverso relativamente ao que acabamos de descrever, a
conseqüência que se verifica é a mesma, ou seja, a inflação. Neste caso, o mundo da
consciência deveria ser demolido, em benefício da realidade do inconsciente. No
primeiro caso será preciso defender a realidade contra um estado onírico arcaico,
eterno e “ubíquo”; no segundo caso, deve-se, ao invés, dar espaço ao sonho, em
detrimento do mundo da consciência. Na primeira hipótese, recomenda-se o emprego
de todas as espécies possíveis de virtude. Na segunda eventualidade, a presunção do
eu só poderá ser sufocada por uma derrota moral. Isto se faz necessário, pois de outro
modo nunca se alcançaria aquele grau mediano de modéstia que é preciso para manter
uma situação de equilíbrio (Idem, 1988, p.23, § 47).
Nota-se que, em um primeiro momento, há um reforço da virtude, da moral e da
postura crítica obtida às duras custas na unio mentalis, produto do encontro com a sombra;
entretanto, em um segundo momento
57
, “nao se trata de um afrouxamento moral, como se
poderia se supor, mas de um esforço moral numa direção diferente” (JUNG, 1988, p.23, §47).
Do ponto de vista psicológico, nesta fase do Opus Alchymicum, a crítica
58
deve conseguir de
um lado, fixar alguns “limites racionais do eu, a partir de critérios universalmente humanos, e
de outro, conferir uma autonomia e uma realidade (de natureza psíquica) a figuras do
inconsciente, isto é, ao si-mesmo, à anima e à sombra” (JUNG, 1988, P. 21-22, §44). De
modo geral, a virada começa aos 35 40 anos. A atração do mundo exterior se torna menos
56
Jung acrescenta: “... quanto maior for o número de conteúdos assimilados ao eu e quanto mais significativos
forem, tanto mais o eu se aproximará do si-mesmo, mesmo que esta aproximação nunca possa chegar ao fim.
Isto gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre este último e as
figuras inconscientes” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Neste sentido, quando o homem se identifica com os
conteúdos a serem integrados, ocorre uma inflação positiva ou negativa. A inflação positiva, segundo Jung, “
assemelha-se a uma megalomania mais ou menos consciente; a inflação negativa vai resultar num aniquilamento
do eu. Também pode acontecer que esses dois estados se alternem.Em todo caso, a integração de conteúdos que
sempre estiveram inconscientes e projetados significa uma grave lesão do eu” (JUNG, 1999[C], p. 129, § 472).
57
O primeiro estágio da coniunctio, a saber a unio mentalis, corresponde a uma restrita análise da sombra.
Entretanto, no segundo estágio, a saber, a união da unio mentalis com o corpo, é necessário que antes o indivíduo
se defronte com a sua anima, como será visto maios adiante neste capítulo. Sobre este aspecto Jung acrescenta:
“A sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade, enquanto certos traços como o sabemos, opõem
obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto a qualquer influência. De modo geral, estas
resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um
grande esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços da sombra podem ser
reconhecidos, sem maior dificuldade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção
parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa (...)” (JUNG, 1988, p. 7, § 16).
58
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “...Quem não é suficientemente responsável, por exemplo, precisa de um
desempenho moral, a fim de que possa satisfazer a mencionada exigência. Para aqueles, porém, que são
suficientemente enraizados no mundo, em virtude de seus próprios esforços, vencer suas virtudes, afrouxando,
de algum modo, os laços de sua relação com o mundo e diminuindo a eficácia de seu esforço de adaptação,
representa um desempenho moral notável” (Idem, 1988, p.23, § 47).
152
viva. Diferentemente do estagio anterior, característico do desenvolvimento individual da
primeira metade da vida, onde a formação da personalidade e a adaptação à realidade estão
sob a orientação de uma instância da consciência da ética, correspondente aos valores
coletivos; a pessoa se sente reconduzida a si mesma e sente obscuramente a necessidade de
encontrar uma ordem de valores que ultrapasse os limites do eu:
É necessário perder-se para ganhar-se, abandonar a linha que nos tínhamos fixado,
renunciar aos planos de cinco ou dez anos, para seguirmos uma lei mais profunda,
mais vasta, porque é a lei do mundo tal como nós, por nossa parte, devêmos vivê-la, a
lei da transformação universal, que é a maneira pela qual a divindade imutável se
manifesta no tempo e no espaço, aqui, em mim e através de mim. Que isso não se
verifica sem incerteza, sem noite, sem crise, é inevitável. Tudo o que ameaça a
autonomia do eu é fonte de temor (PERROT, 1998, p. 270).
Pelo processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da tensão dos
opostos; através desta operação alquímica o alquimista buscava produzir uma união dos
opostos na Lapis, como será visto a seguir.
IV. 4. A tensão dos opostos na alquimia do ponto de vista psicológico do Opus
Alchymicum
Um aspecto capital do método da transformação psicológica é a reconciliação
consciente do que fora separado pela consciência e o estabelecimento de uma comunicação e
de uma unidade consciente numa pessoa que, havendo saído da unidade inconsciente,
indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. A meta é uma realização mais
elevada do que os ideais da organização coletiva. Contra a superioridade e a brutalidade da
convicção coletiva, assegura Jung, “nada tem o homem para opor a não ser o mistério de sua
alma viva” (JUNG, 1997, p. 159, §191). Sobre este aspecto, considera Neumann:
Uma vez que realizou a divisão da uroboros no par de opostos os “pais do Mundo”
colocando-se no meio deles, o “filho” estabeleceu com esse ato a sua
masculinidade e saiu-se bem no primeiro passo da sua emancipação. O ego no meio
dos Pais do Mundo provocou a inimizade de ambos os lados da uroboros, atraindo a
fúria do superior e do inferior. Agora ele está diante da iminência daquilo que
chamamos a “luta com o dragão”, isto é a guerra com esses opostos (NEUMANN,
2003, p. 121).
153
Se o eu aguentar e enfrentar o impulso quase irresistível de fugir do inconsciente, a
tônica do sentimento intervém
59
, pois esta última representa, de fato, segundo Jung, um “certo
vínculo com a existência e, consequentemente, o sentido dos conteúdos simbólicos, um
compromisso em relação ao comportamento ético, do qual o esteticismo e o intelectualismo
gostariam de se livrar” (JUNG, 1999 [C], p.144, §489). Afastar-se do Pai, na analise
junguiana do primeiro sonho citado neste capítulo, é, portanto, afastar-se da consciência
coletiva, de opiniões e julgamentos tradicionais para seguir o inconsciente coletivo, isto é, a
sedução das mulheres (anima). A anima é uma personificação da atmosfera psíquica ativada,
que indica que o inconsciente começou a atuar; tal como o grupo de figuras femininas,
significa sempre uma atividade autônoma do inconsciente:
A anima torna-se assim um fator dispensador de vida, uma realidade anímica em
profunda oposição ao mundo paterno.(...) Mas quem quer que reconheça a realidade
da psique e a tome pelo menos como um fator ético e co-determinante ofende o
espírito tradicional que há muitos séculos vem regulamentando o ser anímico a partir
de fora, através de instituições e também da razão. Não que o instinto irracional se
rebele por si mesmo contra a ordem solidamente estabelecida e é bom ressaltar que
ele mesmo é, por sua lei interna, a estrutura mais sólida e o fundamento originário
criador de toda ordem vigente. Mas justamente pelo fato de este fundamento ser
criador, toda a ordem que dele promana mesmo em sua forma mais divina é
passagem e transitoriedade. O estabelecimento da ordem e a disolução do já
estabelecido, contra toda aparência externa, escapam no fundo à arbitrariedade
humana (JUNG, 1991[A], p. 82, § 93).
Jung designou o fator determinante de projeções presente no homem com o nome de
anima. A anima é um arquétipo que se manifesta no homem que onde quer que se manifeste:
nos sonhos, e fantasias, ela aparece personificada por um ser feminino, o que denota que o
inconsciente do homem tem por assim dizer, um sinal feminino. Jung usa o vocábulo anima
como um conceito como meio nocional que auxilia o fato de que o inconsciente do homem é
caracterizado mais pela vinculação ao Eros do que pelo caracter cognitivo do Logos. No
homem, assegura Jung, “o Eros que é a função de relacionamento, via de regra, aparece
menos desenvolvido do que o Logos” (Idem, 1988, p.12, §29). Seja do ponto de vista positivo
como negativo, a relação animus-anima é sempre “animosa”, isto é, emocional, e por isso
59
Jung acrescenta: “A função de valor, ou seja, o sentimento, constitui parte integrante da orientação da
consciência; por isso, não podem faltar em um julgamento psicológico mais ou menos completo, pois de outra
forma o modelo do processo real a ser produzido seria incompleto. É inerente a todo processo psíquico a
qualidade de valor, isto é, a tonalidade afetiva. Esta tonalidade indica-nos em que medida o sujeito foi afetado
pelo processo, ou melhor, o que este processo significa pra ele na medida em que o processo alcança a
consciência. É mediante o ‘afeto’ que o sujeito é envolvido e passa, consequentemente, a sentir todo o peso da
realidade.(...) Psicologicamente não se possui o que não se experimentou na realidade. Uma percepção
meramente intelectual pouco significa, pois o que se conhece são meras palavras e não a substância a partir
dentro” (JUNG, 1988, p. 31, §61).
154
mesmo coletiva. Os afetos rebaixam o nível da relação e o aproximam da base instintiva.
Sendo assim, segundo Jung, no homem “o afuscamento animoso é sobretudo de carácter
sentimental e caracterizado pelo ressentimento” (Ibidem, p. 14, §32). Por isso, a anima se
transforma em um Eros da consciência, mediante a integração imprime uma relação e uma
polaridade na consciência do Homem
60
:
Este conhecimento é um pré-requisito indispensável para qualquer integração, isto é,
um conteúdo só pode ser integrado quando seu duplo aspecto se tornar consciente e o
conteúdo tiver sido apreendido no plano intelectual, mas em correspondência com seu
valor afetivo. É muito difícil, porém, combinar intelecto e sentimento, pois os dois,
“per definitionem”, se repelem. Quem se identificar com um ponto de vista
intelectual, poderá eventualmente confrontar-se com o sentimento sob a forma da
anima, numa situação de hostilidade; inversamente, um animus intelectual brutaliza-
o ponto de vista do sentimento. No entanto, quem quiser realizar esta difícil tarefa,
não só intelectualmente , mas também como valor de sentimento, deverá, para o que
der e vier, defrontar-se com o animus ou com a anima, a fim de alcançar uma união
superior, uma “coniunctio oppositorum” [unificação dos opostos]. Este é um pré-
requisito indispensável para se chegar à totalidade (JUNG, 1988, p.29, § 58).
Os alquimistas descreveram o tema da tensão dos opostos na maneira de efetuar esta
importante operação sob um conjunto de dualidades, como o fixo e o volátil, por exemplo.
Sendo assim, sob a alegoria do combate da águia e do leão, do volátil e do fixo, ou da "morte
de dois campeões" (em linguagem alquímica, o enxofre e o mercúrio). Trata-se também da
conhecida alegoria do dragão com asas e sem asas, ou ainda, a do pássaro que já aprendeu a
voar e do que ainda não aprendeu. Um dele é Nicolas Flamel, citado anteriormente, que
retrata na segunda imagem alquímica do seu Livro das Figuras Hieroglíficas, a luta de dois
dragões, um com asas e outro sem asas:
Considerai bem esses dois dragões, pois que são os verdadeiros princípios da
filosofia, que os sábios não ousaram mostrar a suas próprias crianças.O que está
embaixo, sem asa, é o fixo, ou macho; o que está em cima, é o volátil, ou bem a
fêmea negra e obscura, que será chamada de muitos nomes. O primeiro é chamado
enxofre, ou então calidez e secura, e o último, prata-viva, ou frigidez e umidade. São
o Sol e a Lua de fonte mercurial e origem sulfurosa, que pelo fogo continuado
60
O pensamento e o sentimento são funções da consciência sempre em oposição. Ao lado do pensamento, por
exemplo, não pode aparecer, como função secundária, o sentimento, pois, segundo Jung, “ sua natureza está em
demasiada oposição à natureza do pensamento” (JUNG, 1991[C], P. 382, § 736). Este conhecimento é um pré-
requisito indispensável para qualquer compreensão da integração dos opostos, pois como assegura Jung, “...
precisa-se, no mínimo, de duas funções ‘racionais’ para se esboçar o esquema mais ou menos completo de um
conteúdo psíquico” (Idem, 1988, p. 26, § 52 ). Se o indivíduo for do tipo sentimento, por exemplo, a função mais
desvalorizada será o pensamento. Neste caso resultará em um indivídio cuja a observação rancorosa, venenosa e
efeminada que ele emprega para desvalorizar todas as coisas, é provocada pelo ofuscamento animoso. Jung
completa: “... Por certo é possível que haja também muitos homens que argumentem de maneira bem feminina,
naqueles casos, por exemplo, em que são predominantemente possuídos pela anima, razão pela qual se
transmudam no animus da sua anima” (Idem, 1988, p. 12-13, §29).
155
tornam-se de hábitos reais, para vencer toda coisa metálica, sólida, dura e forte, assim
que estiverem unidos num só, e mudados em quintessência. São as serpentes e
dragões que os antigos egípcios desenharam em círculo, a cabeça mordendo a cauda,
para dizer que se originavam de uma mesma coisa, e que ela só bastava a si mesma e
que em seu circuito e circulação ela se aperfeiçoava (FLAMEL, 1973, p. 82).
Nota-se na citação de Flamel que o enxofre está associado ao leão sem asas, isto, é, ao
fixo, ao macho e ao Sol, consequentemente ao ouro. O mercúrio está associado ao leão com
asas, isto é, ao que está em cima, ao volátil, à fêmea, à Lua e à prata-viva. Também o
alquimista Lambrisprink na sétima figura do Tratado da Pedra Filosofal, retrata na imagem
alquímica a seguir, os dois pássaros de Hermes, ou seja, o pássaro que já aprendeu e aquele
que ainda não aprendeu a voar:
(Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
61
O texto que acompanha a figura considera:
No bosque se encontra um ninho, Onde os Pássaros de Hermes se abrigam. Um deles
quer sempre voar para cima, E o outro, nele, quieto permanece. Eles nunca
abandonam um ao outro, Mas ficam sempre juntos no ninho, Como um marido, em
casa, com a mulher, Solidamente unidos pelos laços do matrimônio. Nós também,
nos alegramos a toda hora, Por termos dentro de nós a Águia e sua Fêmea, E damos
graças a Deus por este fato. No bosque os Dois pássaros chamam E entretanto, não
são mais do que um. O Mercúrio, sublimado muitas vezes, É fixado, por fim, de
forma tal, Que não assume mais a forma fluida, Nem pela força do Fogo se evapora.
Na verdade, o que se faz com este metal É a destilação muitas vezes repetida, Até
que ele seja, por fim, bem fixado.
62
61
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
62
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 182-183.
156
Jung analisa especialmente esta imagem alquímica,na qual estes opostos são
simbolizados por dois pássaros no mato, um já emplumado e o outro ainda implume, e
considera que “aqui a oposição dos dois pássaros indica antes a oposição entre o espírito e
corpo” (JUNG, 1997, p. 4, § 3). Nota-se que o caracol com sua concha circular remete a
destilação circular da obra. O mesmo tema reaparece no sétimo emblema do Atalanta
Fugiens, o qual retrata um filhote de águia que tenta voar fora de seu próprio ninho e cai nele
outra vez:
(Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
63
O texto que acompanha a imagem alquímica assegura:
... Conseqüentemente o criador supremo compôs o sistema inteiro deste mundo
inteiro de naturezas diversas & contrárias, a saber de claro & de pesado, quente &
frio, húmido & seca-o, que um poder pela passagem da afinidade no outro, & uma
composição fossem feitos assim dos corpos que devem ser o muito diferente de outro
essencialmente, qualidades, virtues & efeitos. Para nas coisas misturadas
perfeitamente são os elementos claros, como o fogo & o ar, & do mesmo modo os
pesados, como a terra & a água, os quais são balanceado e moderado juntos, aquela
que não voa da outra.
64
63
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html.
64
“...Therefore the supreme creator composed the whole system of this whole world of diverse & contrary
natures, namely of light & heavy, hot & cold, moist & dry, that one might by affinity pass into the other, & so a
composition be made of bodies which should be very different one from another in Essence, Qualities, Virtues &
Effects. For in things perfectly mixed are the light Elements, as Fire & Air, & likewise the Heavy, as Earth &
Water, which are to be poised and tempered together, that one flies not from the other.” MAIER, Michael
(1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html.
157
A imagem alquímica a seguir, retrata o tema da tensão dos opostos através daquele que
está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e um
sapo:
O que está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e
de um sapo. (D. Stolcius v. Stolcenberg, Viridarium chymicum, 1624)
65
A respeito dessa imagem alquímica, Michael Maier comenta:
... O sapo “está em oposição ao ar, é o elemento oposto a este, a saber a terra, na qual
unicamente pode ele movimentar-se a passo lento, e jamais ousa ele ir para qualquer
outro elemento. A cabeça dele é muito pesada e se inclina para a terra. Por esse
motivo representa ele a terra filosófica, a qual não pode voar (isto é, ser sublimada)
por ser firme e sólida. Sobre ela como base ou fundamento, deve ser edificada a ‘casa
dourada’. Se a terra não estivesse atuando, o ar evolaria para longe, também o fogo
não encontraria alimento, nem a água um recipiente.
66
65
Reproduzido em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. Trad. Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed.
Taschen, 1997, p. 27.
66
MAIER, Michael. In: Symbola Aurea Mensae, 1617, p. 200. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 2-3, § 2.
158
Na citação de Maier, o sapo está associado à terra e, por isso ao corpo;
psicologicamente trata-se da pré-história psíquica, da vida instintiva que não pode voar, a
modo do intelecto, sem corpo e sem peso. Sob a óptica junguiana nesta imagem alquímica, o
alquimista expõe a problemática do ser vivo não alheio à materialidade, em oposição à
incorporalidade obrigatória do espírito abstrato.
Jung fez duas constatações: de um lado, os problemas vitais essenciais são
racionalmente insolúveis, porque constituem um confronto de opostos; por outro, se a pessoa
suporta corajosamente seu problema, um dinamismo misterioso se põe em ação, permite que o
conflito seja superado e elabora uma síntese em nível superior. Essa unidade consciente
progride aos poucos através dos conflitos provocados pela colocação dos opostos frente a
frente. Produz-se, então, cada vez, uma diferença de potencial e uma descarga de energia.
Essas provações se multiplicam naquele que deixou a norma coletiva para seguir seu caminho
pessoal. Ele sofre então colisões de deveres, conflitos que deve resolver sozinho, sem
referência, sabendo que se expõe às censuras dos que o observam e não podem suspeitar o seu
drama íntimo. Do ponto de vista psicológico, a integração do inconsciente, porém, só é
possível, se o eu aguentar. Como quer que se encare a situação, assegura Jung, ela sempre
será “um conflito interno e externo: um dos pássaros já aprendeu voar, o outro ainda não. A
dúvida é a seguinte: por um lado um ‘pro’ discutível, por outro, um ‘contra’ que é preciso
acatar”(JUNG, 1999 [C], p. 166, §522). Tal como o alquimista purifica o corpo e submete o
Mercurius à tortura de passar de um vaso à outro, assim também o processo psicológico da
diferenciação não é um trabalho fácil, pois requer paciência e perseverança:
Ascensus e descensus, altura e profundidade, para cima e para baixo descrevem um
realizar emocional dos opostos, que lentamente leva ou deve levar a um equilibrio
entre eles. (...). neste sentido, o motivo correspondente à luta do dragão alado com o
não alado, isto é, o Ouroboros, e Dorneus designa isto também de destillatio
circulatoria” (destilação circular) e de “vas spagyricum” (vaso do arcano), que é para
ser construído à semelhança do natural. Com isso se designa a forma esférica. O
hesitar entre os opostos ou o ser jogado de um lado para o outro, de acordo com a
interpretação de Dorneus, significa o estar contido nos opostos. Os opostos se tornam
um vaso, no qual aquele ser que antes ora era um, ora era outro, agora está suspenso a
vibrar, e aquela penosa situação de estar suspenso entre os opostos lentamente se
transforma em uma atividade bilateral do centro (JUNG, 1997, p. 215-216, §290).
Sendo assim, pelo processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da
operação da união dos opostos (Coniunctio). Em uma discussão psicológica desta operação
alquímica, também a consciência deve descer reinterada vezes nas profundezas do
inconsciente em busca da parte negativa e inconsciente da personalidade, pois ainda existe
159
sempre e última e mais forte oposição. Segundo Jung, a “estrutura do espírito propria da
sombra primitiva nao pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição” (Idem,
1990, p. 247, §335). Somente a partir daí, a parte que resiste, deixará de ter existência
autônoma, para se juntar à profunda unidade da psique. Deste modo, aquilo que, de início
escandalizava a consciência, é integrado mais tarde como sua atividade própria. Neste
processo psíquico, o inconsciente criará um simbolo mediador, um terceiro elemento
desproporcional e paradoxal, mas unitivo, pois qualquer conteúdo que transcenda a
consciência e, para o qual não há qualquer possibilidade de apercepção, pode dar origem à
uma simbolica paradoxal ou antinômica. A união do consciente ou da personalidade do eu
com o inconsciente personificado pela anima gera uma nova personalidade:
O choque com a anima e o animus, constitui portanto, um conflito e um problema
difícil de resolver, dentro dos quais somos colocados pela própria natureza. Não
importa que façamos isto ou aquilo, de qualquer modo a natureza se ressente e tem
que sofrer por assim dizer até a morte, pois o homem puramente natural deve morrer
de certa forma durante sua própria vida. O símbolo cristão do crucifixo é um modelo
e uma verdade “eterna” justamentepor isso. Certas imagens medievais mostram o
Cristo pregado na cruz por suas próprias virtudes. Em outros seres humanos são os
vícios que se encarregam disso. Aquele que se encontra a caminho da totalidade não
pode escapar desta estranha suspensão representada pela crucifixão. Com efeito, ele
encontrará infalivelmente aquilo que atravessa o seu caminho e o cruza, isto é, em
primeiro lugar aquilo que ele não queria ser (sombra), em segundo lugar, aquilo que
não é ele, mas o outro ( a realidade individual do tu) e em terceiro lugar, aquilo que é
seu Não-eu psíquico, o inconscientre coletivo (...) (JUNG, 1999[C], p. 128, § 470).
O processo psicológico consiste em amaciar aquelas partes da personalidade que
endureceram e, simultaneamente, solidificar o núcleo da personalidade, o Si-mesmo e isso
conjugaria os opostos de masculino e feminino. Entretanto, tal conflito não pode ser resolvido
pela compreensão, mas só pela vivência. Cada estágio do processo deve ser vivido
plenamente. A unificação da consciência e do inconsciente só pode ser gradualmente, assim
se obtem a fórmula adequada para a correlação consciente-inconsciente, que confira à
personalidade a posição intermediária e correta. Assim pode-se afirmar que existe tanto
separação quanto integração, e isso seria atingir uma condição de tranquilidade pois, quando
podem abandona-se ideais errados ou atitudes coletivas, há um súbito apaziguamento. Desse
modo, a pessoa é redimida do constante esforço de conseguir algo na direção errada. A
integração do si-mesmo é, no entanto, um problema da segunda metade da vida. O homem
que chegou à metade da existência, a esse período no qual o tumulto interior, se foi
enfrentado e transformado, acalma-se; período no qual a pessoa pode aspirar a uma vida
160
serena e voltada para a consolidação de sua situação interior e também para a contemplação
dos valores invisíveis:
Após a ascensão da alma, que abandonou o corpo nas trevas da morte, sucede, neste
capítulo, uma enantiodromia: à nigredo segue-se a “albedo”. O negrume, ou o estado
inconsciente, produzido pela união dos opostos, atinge seu ponto mais profundo, que é
ao mesmo tempo seu ponto de reversão. O orvalho caindo anuncia o retorno à vida e
uma nova luz. A descida a regiões cada vez mais profundas do inconsciente converte-
se numa iluminação vinda de cima. Ao desaparecer com a morte, a alma não se perdeu;
apenas foi constituir no além um pólo de vida oposto ao estado de morte neste mundo.
Conforme já dissemos, a unidade [lê-se umidade] do orvalho é o anúncio de que ela
está descendo de novo (Idem, 1999 [C], p. 145-146, § 493).
A integração do si-mesmo é, no entanto, um problema da segunda metade da vida, isto
é quando o processo de individuação se torna objeto de exame consciente
67
. Isso significa que
o Si-mesmo começa a se manifestar no espaço e no tempo, que não se converte em algo num
certo momento como um retorno susequente ao modo de vida anterior do indivíduo, mas, ao
contrário, tem efeito imediato sobre a vida toda.
Além destas imagens alquímicas que se ocupam dos símbolos teriomórficos, os
símbolos alquímicos também aparecem na maneira de efetuar esta importante operação sob
um conjunto de dualidades ligados ao masculino e ao feminino, como branco e vermelho, rei
e rainha (no Rosarium Philosophorum também por imperador e imperatriz), homem vermelho
e mulher branca, etc. Esta temática já se mostra presente na alquimia greco-egípcia com
Maria Prophetissa, quando esta em seu diálogo com Aros, aconselha “...Tomais pois o
alúmen, goma branca e goma vermelha que é o Kibric dos filósofos, o seu ouro e a sua maior
tintura e juntai em verdadeiro matrimônio a goma branca com a vermelha”
68
. Basílio
Valentim na quinta chave da filosofia também acrescenta:
Digo-te isto com verdade. Que um trabalho deve suceder a um trabalho e uma
operação seguir-se a outra, pois o princípio deve purgar-se e limpar-se bem a nossa
matéria, depois dissolvê-la, fragmentá-la e reduzi-la a pó e cinzas. Logo (deve
resultar) um espírito volátil tão branco como a neve e outro tão volátil como o
sangue. Estes dois espíritos contém um terceiro, e apesar disso, não são senão um só
espírito. São eles três que conservam e prolongam a vida. Põe-nos juntos e dá-lhes de
comer e beber segundo a sua natureza, mantém-nos num leite de orvalho que esteja
quente até ao termo de sua geração.
69
67
Sem dúvida, os símbolos oníricos com características de mandala já podem surgir muito tempo antes, sem que
isso implique diretamente o problema do crescimento do homem interior.
68
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37.
69
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.
161
Assim com a goma branca e a vermelha fazem alusão ao o binário corpóreo-espiritual,
também na citação acima encontramos um espírito volátil tão branco como a neve e o e outro
tão volátil como o sangue. Pela união destes dois, produz- um terceiro mediador, de dupla
natureza; análogo ao mercúrio filosófico, é o remédio alquímico corpóreo-espiritual. A
conjunção do branco e do vermelho, do marido e da esposa, aparece mais claramente na sexta
chave da filosofia de Valentim; a imagem alquímica retrata o casamento filosófico:
A sexta chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)
70
O texto que acompanha a imagem alquímica, considera:
O macho sem a fêmea não é mais que meio corpo, tal como acontece com a fêmea
sem o macho, pois estando um sem o outro não podem engendrar nem multiplicar a
sua espécie; mas se estiverem casados e juntos, formam um corpo perfeito e
completo, próprio pra a geração.
71
Este conjunto de dualidades ligados ao masculino e ao feminino, já estava presente no
Livro das figuras hieroglíficas com Flamel. Na terceira figura alquímica, que retrata um
homem e uma mulher, ele traz:
Tens portanto aqui duas naturezas casadas, onde uma concebeu a outra, e por esta
concepção está convertida em corpo de macho, e o macho no de fêmea, isto é, foram
feitos um só corpo, que é o andrógino dos antigos (...). Desta maneira, represento-te
que tens duas naturezas reconciliadas, que (se forem conduzidas e regidas
70
Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html.
71
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 133.
162
sabiamente) podem formar um embrião na matriz do vaso, e depois dar-te à luz um
rei poderosíssimo, invencível e incorruptível, porque serpa uma quintessência
admirável (FLAMEL, 1973, p. 89).
Se os símbolos teriomórficos voltam à aparecer nesta fase, porém não mais ligados à
característica de ser sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas,
certamente aparecerão ligados ao aspecto do masculino e do feminino. A quarta imagem
alquímica do Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, é um exemplo disso:
O Espírito e a Alma (Lambsprinck, O Tratado da Pedra Filosofal, 1599)
72
O texto que acompanha a imagem alquímica assegura:
Os sábios nos ensinam claramente que dois fortes leões, o macho e a fêmea,
vagueiam no esconso Vale das Sombras. (...) Aquele que, com saber e com astúcia
possa pegá-los com uma rede e os atar, e domafos, devolvê-los à Floresta, deste se
falará com justiça e com direito (...). Pode bem ser grande maravilha, que estes dois
leões sejam um. O Espírito e a Alma têm de estar bem juntos e unidos em seu
Corpo.
73
A imagem alquímica retrata dois leões, sendo um deles macho e o outro fêmea, mas
enquanto nos outros símbolos teriomórficos parece existir oposição entre o espírito e o corpo,
aqui a oposição é entre o espírito e a alma. Segundo Jung, a oposição entre o espírito e a alma
“provém da subtilidade material desta última. Ela está mais próxima do corpo hílico
72
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
73
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 111.
163
(material) e é ‘ densior et crassio’ ( mais densa e mais grosseira) do que o espírito” (JUNG,
1997, p. 4, § 3).
Além destas imagens alquímicas que se ocupam dos símbolos ligados à conjunção do
branco e do vermelho, do masculino e do feminino, do marido e da esposa, a alquimia
também se ocupou de retratar esta importante operação através da simbólica Sol- Lua. Com
relação à esta, é necessário acrescentar que os símbolos alquímicos não possuem um
significado estático, como um leigo nos tratados alquímicos poderia supor. Um estudioso
mais atento e dedicado sabe que cada símbolo deve ser interpretado correspondendo à fase
tratada. Neste sentido, as interpretações de um mesmo símbolo mudam durante a obra
alquímica. A profundeza escura do mundo sublunar, por exemplo no início do Opus,
corresponde ao estado úmido e destrutivo da matéria, e por isso uma alusão à nigredo.
Posteriormente, da escuridão do inconsciente surge a luz da iluminação da albedo, trazendo o
plenilúnio (lua cheia), como foi visto anteriormente. No entanto, “seu papel mais importante é
o de ser a parceira do Sol na conjunção” (JUNG, 1997, p. 124, § 149). Neste momento do
Opus Alchymicum, a lua nova aparece para simbolizar a verdadeira Coniunctio superior, ou
seja, uma união daqueles opostos que foram separados de maneira perfeita: o Sol desce e
penetra na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as forças do mundo superior com
as do inferior. No texto anônimo Consilium Coniugii de massa solis et lunae (Conselho de
casamento da massa do Sol e da lua, com seus compêndios) citado por Jung está escrito:
Sua alma sobe dele (do enxofre) para o alto e é elevada até o céu, isto é, ao estado de
espírito, e ela ao nascer do Sol se torna vermelha e ao surgir da Lua (se torna) de
natureza solar. E então o candelabro das duas luzes (...), isto é, a água da vida,
retornará à sua origem, isto é, à Terra e desaparece e é rebaixada e apodrece e é
afixada a seu amado, o enxofre terrestre.
74
De acordo com a concepção alquímica, a Lua é um vaso do sol, ou seja, a umidade
lunar, ventre e útero da natureza recebe as forças do céu e recebe a luz solar. Por isso existe
uma certa analogia entre a lua e a terra
75
. Jung, comentando o trecho citado acima do
Consilium Coniugii, acrescenta
76
:
74
Consilium Coniugii de massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 165. Apud: Jung,
C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 212, § 285.
75
Jung acrescenta: “...Quanto à albedo, a Terra e a Lua coincidem no mesmo, pois de uma parte a Terra, depois
de sublimada e calcinada, aparece como terra alba foliata, da qual se diz que é o ‘bem procurado’, ‘como a mais
branca neve’; e de outro lado a Luna é a senhora da albedo, a feminina alba da coniunctio (...)” (JUNG, 1997, p.
125, § 149).
76
Neste caso o enegrecimento (escurescimento) da lua depende do esposo Sol. A parte passiva aqui de mercúrio
é chamada de Lua, visto que ela se doa e se esvazia; ela é a nutrição e a morada de todos os metais, o alimento e
a mãe de todos os metais. A parte ativa é atribuida ao masculino, isto é ao enxofre terrestre, que sugará o
164
Aquilo que sobe é aqui a alma da substancia do arcano. (...) A anima como Luna
atinge o seu pleniluniom, o brilho semelhante ao do Sol, para depois decrescer até o
novilunium e para o abraço do enxofre terrestre, (...). Pertence a este contexto a
descrição horrorosa da coniunctio da lua nova, que se encontra no Scrutinium
Chemicum de Majer: A mulher e o dragão jazem enrolados no sepulcro. (JUNG,
1997, p. 213, § 287).
Na alquimia mais tardia tanto o sol como a lua são substâncias do arcano e, também
algo de volatil, espiritual. Assim, nota-se que a prima materia é a mãe de Mercúrio e, ao
mesmo tempo, concluída a sublimação, dá-se a germinação de uma alma de um branco
resplandecente (anima candida) e, por isso é chamada de filha. Por outro lado, o Sol que
ascende da prima materia (inconsciente maternal), isto é, a alma espírito, é o Filho
77
e, ao
mesmo tempo, de acordo com a autoridade máxima da Tabula Smaragdina, o pai de
Mercurius, que descerá ao vaso, isto é, no corpo, tendo este o papel de noiva-mãe (Lua), para
dar a luz ao Mercúrio Filosofal
78
. Este fato contribui para a compreensão de que se trata de
dois aspectos de uma e mesma substancia, isto é, pra a qualidade binária do mercúrio
filosósico
79
. Sobre uma análise psicológica de Mercurius duplex, Jung acrescenta:
... Dele deriva a mens humana, a vida acordada da alma, que se deriva consciência.
Esta parte reclama inexoravelmente a parte oposta que lhe corresponde, a qual é algo
de psíquico escuro, latente, não manifesto, isto é, o inconsciente, cuja a existência
somente pode ser conhecida pela luz da consciência. Como o astro noturno se eleva
saindo do mar noturno, assim a consciência se forma a partir do inconsciente, tanto
de maneira ontogenética como filogenética, e cada noite retorna ela novamente ao
estado primordial de sua natureza. Esta duplicidade da existência psíquica é tanto
alimento da mulher branca mercurial, transformando-se no enxofre vermelho dos filósofos. Jung acrescenta: “...
Na verdade, o envenenamento oculto, que aliás parte do frio e do úmido (portanto da parte lunar), ocasinalmente
é atribuído ao draco frigidus (dragão frio), que se supõe conter um spiritus igneus volatilis (um espírito ígneo e
volátil) e ser flammivomus (vomitador de fogo). Assim no 5°[aqui parece ocorrer um erro de tradução, pois
trata-se da quinquagésima imagem no Atalanta Fugiens e não da quinta imagem] Emb lema do Scrutinium
compete ao dragão ao papel masculino: Ele abraça a mulher no sepulcro em um amplexo mortal. O mesmo
pensamento aparece no 5º Emblema em que se coloca um sapo junto ao seio da mulher para que, aleitando ela o
sapo, venha ela a morrer, ao passo que sapo cresça. O sapo é um animal frio e úmido como o dragão. Ele esvazia
a mulher, como se a Lua se derramasse no Sol (...)” (Idem, 1997, p. 33, § 30). Confira as imagens alquímicas
em: http://www.alchemywebsite.com/atalanta.html.
77
Aqui a designação metafórica de Cristo como Sol, que, segundo Jung, “é frequente no modo de falar dos
Padres da Igreja, é tomada ao pé da letra pelos alquimistas e aplicada ao sol terrenus” (Idem, 1997, p. 96-97, §
118).
78
O autor anônimo do Consilium coniugii acrescenta “… Do mesmo modo a umidade da Lua mata o Sol ao
receber a luz solar que vem para ela, e também morre ao dar à Luz a prole dos filósofos.” Consilium Coniugii de
massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 141s. Apud: Jung, C. G. Mysterium
Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 25, § 21.
79
Jung conclui: “... Deste modo o Sol é pai e filho ao mesmo tempo; por isso existe o seu correspondente
feminino de mãe e filha em uma só pessoa; e, além disso, o masculino (Sol) e o feminino (Luna) são dois
aspectos de uma e mesma substancia, que é simultaneamente a causadora e a resultante de ambos; isto é, o
Mercurio duplex, de quem dizem os filósofos que nele está contido tudo o que é procurado pelos sábios” (Idem,
1997, p. 97, § 118).
165
modelo como imagem original para a simbólica do Sol e da Luna (JUNG, 1997, p.
93-94, §114).
Os esforçosdos alquimistas em unir os opostos alcança assim a meta no “casamento
alquímico”, no relacionamento recíproco do masculino e do feminino. Desses fatos
fundamentais, faz parte o par de opostos primários consciência-inconsciente, cujo o símbolo é
Sol-Luna. Sendo assim, a geração dos metais é circular, passando facilmente, de um a outro,
segundo um círculo
80
. Desta maneira, “o pássaro sem asas deterá aquele que as tem, e as
substâncias fixas subordinará as Volatéis”, que é a coisa que pela necessidade deve ser
efetuada. Pelo enigma: torna o fixo, volátil, e, de novo, torna o volátil, fixo, o alquimista, pela
destilação “mil vezes” repetida esperava-se um resultado final particularmente “refinado”
obtendo desta maneira o Arcanum. Sob este conjunto de dualidades, fixo e volátil, ativo e
passivo, agente e paciente, macho e femea, Sol e lua, branco e vermelho, o alquimista quer
simbolizar o binário corpóreo-espiritual, e o Mistério da União simbólica tradicional do
casamento sagrado (hierósgamos), objetivo ultimo da alquimia na operação alquímica da
coniunctio. Dissolvendo o que foi agregado e reunindo o que foi separado, o alquimista
procurava, através de todos os meios, a união dos opostos. Os filósofos, habilmente, soldaram
numa só duas obras sucessivas e com tanta maior facilidade quanto se trata de operações
semelhantes, conduzindo a resultados paralelos. É um processo que resulta em um fenômeno
de transmutação mútua: a matéria- prima liberta o espírito universal, após uma decomposição
e o espírito liberta a matéria, após uma regeneração súbita. Assim cumprido fica o primeiro
termo do axioma Solve et Coagula, pela volatilização regular do fixo e pela combinação com
o volátil; o corpo espiritualizou-se, o espírito corporificou-se, obtendo-se um corpo
glorificado: a Pedra Filosofal. A conhecida alegoria do dragão com asas e sem asas, ou ainda,
a do pássaro que já aprendeu e do que ainda não aprendeu a voar, “trata-se de uma alegoria,
de uma das inúmeras representações da dupla natureza de Mercurius, de sua parte ctônica e
pneumática” (Idem, 1999, [C], p. 147, §494). Este também é representado pelo hermafrodita,
ou seja, é por assim dizer, de aspecto masculino-espiritual e feminino-corporal:
80
Jung acrescenta: “... Tal como o alquimista purifica o ‘corpus’ de todas as ‘superfluitates’ no fogo em seus
mais altos graus, e submete o Mercurius à ‘tortura de passar de uma câmara nupcial à outra’, assim também o
processo psicológico da diferenciação não é um trabalho fácil, pois requer muita paciência e perseverança”
(JUNG, 1999 [C], p. 157, § 503).
166
O Rebis hermafrodita (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)
81
Sendo assim, para que este Mercúrio tenha em si a natureza fixadora (que lhe é junta)
como também por causa da sua dupla natureza, os filósofos chamaram-lhe água pemanente e
perseverante ao fogo. Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas
depois do seu coagulante, fica coagulado e calcinado, fixo e retido. Este coagulante, completa
Trevisano, “ é o corpo que fica oculto ao Mercúrio dos filósofos”
82
. Não há dúvida, segundo
Jung, “ que a substância do arcano, quer seja coisa, quer seja pessoa, sobe da Terra, realiza a
união dos opostos e retorna à Terra, o que significa a sua própria transformação em ‘elixir’”
(JUNG, 1997, p. 212, §285). Assim cumprido fica o primeiro termo do axioma Solve et
Coagula, pela volatilização regular do fixo e pela combinação com o volátil; o corpo
espiritualizou-se, o espírito corporificou-se, obtendo-se um corpo glorificado (repetição).
Porque, se é conveniente dominar o combate e provocar o reencontro, é necessário ainda
captar a parte pura, essencial do novo corpo produzido, a única que nos é útil, a saber: o
mercúrio dos sapientes, o Mercúrio Filosófico
83
:
Por fim, nota-se que quanto mais se caminha para a produção da Quintessência, mais
se afasta da simbólica da albedo e, mais se aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo
aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: uma união dos
81
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl35-40.html.
82
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, p. 75.
83
De modo geral a fase da albedo é a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento. O
orvalho é sinônimo de “aqua permanens” e de “aqua sapientiae”, que por sua vez, significa a iluminação que se
produz quando se dá sentido a algo. Assim como o orvalho caindo anuncia o retorno à vida, o espírito Mercurius,
“em sua forma celeste como ‘sapientia’ e como Espírito Santo (fogo), vem de cima e purifica o negrume” (JUNG,
1999, [C], p. 138, §484).
167
opostos. A união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e
mudados em quintessência. Sendo assim, esta questão traz também o capítulo para o seu
objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo a fase alquímica da
albedo está relacionada com a produção da Quintessência de Geradus Dorneus.
IV. 5. A fase alquímica albedo e sua relação com a produção da Quintessência de
Gerardus Dorneus
Como foi visto anteriormente, a união dos opostos, somente ocorre assim que estes
estiverem unidos num só, e mudados em uma quintessência. Entretanto, era de conhecimento
do alquimista que não se reconciliaria os opostos, se não lhe viesse em socorro uma certa
substância: trata-se da idéia alquímica do Mercurius, esse ser duplo tanto espiritual como
material. Na perspectiva junguiana, o Mercúrio Filosófico corresponde àquele terceiro-
mediador, necessariamente um símbolo paradoxal, que promoverá união dos opostos. Tal
“substancia” é o objetivo da opus e simultaneamente um "auxiliar", algo que ele não realizaria
a união dos opostos se não viesse em socorro certa substancia. Segundo Jung: "o Mercúrius,
pois, não é apenas o medium coniungendi (meio da união), mas simultaneamente é também
aquilo que deve ser unido, porque ele forma a essência (...) do masculino como do feminino"
(JUNG, 1990, p. 215, § 324).
Para o alquimista Gerardus Dorneus, seria a substância celeste, a Quintessência, o
“remedio incorruptível” que transformaria o corpo e produziria a reuniao da posição espiritual
(unio mentalis) com a esfera corporal. Dorneus começa o processo alquímico da produção da
Quintessência com a destilação do vinho filosófico. O vinho, segundo Dorneus, “pode ser
preparado a partir dos grãos, e igualmente também de todas as outras sementes”. (DORNEUS,
p. 232, § 343. In: JUNG, 1990). Pela destilação do vinum philosophicum (vinho filosófico) ele
acrescenta:
... Por esse processo, a anima (alma) e o spiritus (espírito) são separados do corpo, e
sublimados tantas vezes até que eles sejam liberados de toda “phlegma” (fleuma),
isto é, de todo líquido, que já não contenha nenhum “espírito” (DORNEUS, p. 240,
§351. In: JUNG, 1990).
De início, nota-se que Dorneus reproduz o processo alquímico da extração da anima
(alma) do corpo necessária para o primeiro grau da Coniunctio, no próprio interior da
descrição da produção do remédio que deve servir para prender a unio mentalis (união
168
mental) ou, sua posição espiritual, ao corpo; isto é, no preparo da phlegma vini (fleuma do
vinho). Neste sentido, segundo Jung, a unio mentalis “coincide novamente com a
quintessência sublimada a partir da phlegma (líquido viscoso)”
84
, isto é é reproduzida
novamente no interior da destilação do vinho filosófico na condição mediadora da produção
da quintessência necessária entre a unio mentalis e o corpo. A extração do pneuma (espírito)
ou da alma (anima) da matéria sob a forma de uma substância volátil ou líquida (isto é, capaz
de evaporar-se), mortifica o corpo
85
. Sendo assim, “apenas começa o processo químico, e já é
o corpo o que resta na retorta após a destilação do vinho” (JUNG, 1990, p. 242, §354). Sobre
este resíduo, que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, acrescenta Jung:
...esta “phlegma” (líquido viscoso) é então tratada assim como o corpo aéreo da alma
no purgatório. Como este, também, o resíduo do vinho deve passar por muitos fogos
sublimadores, até que ele esteja tão purificado que daí possa ser separada a
quintessência da “cor do ar ou do céu” (Ibidem, p. 242, §354).
Com o corpo que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, recomenda
Dorneus:
... Este resíduo, o chamado corpus (corpo), é incinerado “com fogo ardentíssimo”, e
depois pelo acréscimo de água quente é transformado em um “lixivium asperrimum”
(lixívia fortíssima), o qual então é separado cuidadosamente da cinza por uma
inclinação do vaso. Com o resto ou borra procede-se novamente da mesma maneira, e
por tanto tempo até não restar na cinza mais nenhuma “asperitas” (aspereza ou
caráter de base). A lixívia é então filtrada e a seguir evaporada em um vaso de vidro.
Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a
pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas”. Este sal, se coloca sobre uma
placa de mármore em lugar úmido e fresco, pode deliqüescer, formando água
tártárica”. Isto é a quintessência do vinho filosófico (DORNEUS, p. 240-241, § 351.
In: JUNG, 1990).
Nesta altura da Opus Alchmicum, a propriedade seguinte do arcano a ser considerada é
a natureza física dele: “para DORNEUS não se trata do espírito e da água do vinho, mas de
um resíduo sólido deixado por ele; trata-se, portanto, de algo ctônico e corpóreo, que aliás não
se consideraria como a parte essencial e preciosa do vinho” (JUNG, 1990, p. 283, § 403). Daí
também se conclui que a produção símbolica no interior da produção da Quintessência de
84
JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p. 242, § 355.
85
Entretanto essa mesma substancia revive a matéria; ou seja, “essa ‘aqua permanens’ (água eterna) era
empregada para reanimar o corpo e devolver-lhe a alma, e também, ainda que de modo contradidório, para a
‘extração da alma’” (JUNG, 1990, p. 18-19, § 11).
169
Dorneus, volta-se novamente para a matéria, isto é, o chamado corpus (corpo), onde está
projetado o inconsciente, que dá a luz à si mesmo. Dorneus acrescenta:
Pelo tratamento alquímico dos ‘grana’ (grãos, sementes da uva) é preparado “nosso
Mercurius pela mais elevada sublimação (exaltatione). Pode ser feita a mistura do
novo céu, do mel, da chelidonia, das flores do alecrim, da mercurialis, do lírio
vermelho, do sangue humano, com o céu do vinho vermelho ou branco, ou do Tártaro
(tártaro) (...) (DORNEUS, 233-234, § 345 In: JUNG, 1990).
Aqui a projeção inconsciente se intensifica
86
. Como foi visto anteriormente, a aqua
permanens, ora é empregada ou, ora é extraída; aqui Dorneus passa a relatar uma série de
ingredientes que devem ser acrescentados ao “céu”; segundo, os quais, “possibilita uma visão
na natureza daqueles conteúdos psíquicos que estão projetados na substância química”
(JUNG, 1990, p. 244, § 358). Na concepção alquímica, a aqua permanens (água eterna) era
empregada para reanimar o corpo
87
; do mesmo modo, do ponto de vista psicológico, neste
ponto do Opus Alchymicum, a série de ingredientes que devem ser acrescentados à mistura,
denota que o inconsciente ganha vida, isto é, a psique do adepto, “reinando com libertade
plena, se serve de substâncias químicas e dos processos, à semelhança de um pintor que dá
formas à imagem à sua fantasia por meio das tintas da sua palheta” (Ibidem, p. 237, § 347).
Embora, acredita ser o sujeito o autor das projeções, sabe-se que todas as projeções são
identificações inconscientes, o que denota um certo carácter autônomo do inconsciente e
também uma espécie de intencionalidade. Este duplo ponto de vista que devemos assumir em
relação à qualquer organismo mais ou menos autônomo, segundo Jung, “conduz naturalmente
a um duplo resultado: de um lado, a uma espécie de relato sobre aquilo que faço com o objeto,
e, de outro, ao relato do que ele faz (ocasionalmente em relação à mim)” (Idem, 2001, p. 5, §
86
Sobres este aspecto acrescenta Jung: “... A psique do adepto, reinando com libertade plena, se serve de
substâncias químicas e dos processos, à semelhança de um pintor que dá formas à imagem à sua fantasia por
meio das tintas da sua palheta. Portanto DORNEUS, para descrever a união da unio mentalis (união mental) com
o corpo, lança mão de substâncias químicas e de instrumentos, isso não quer dizer outra coisa senão que ele
procura tornar plásticas suas fantasias por meio de processos químicos. Para este fim escolhe ele as substâncias
adequadas, como o pintor das tintas apropriadas” (JUNG, 1990, p. 237, § 347).
87
No “Aurora consurgens”, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em
celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. Sobre o líquido miraculoso, a água divina, Jung
acrescenta: “... Em seu aspecto funcional imaginaram-na como uma espécie de água batismal que, a modo da
água benta da Igreja, possui uma propriedade criadora e transformadora. Ainda hoje a Igreja Católica celebra o
rito da benedictio fontis (benção da fonte) do Sabbathum sanctum na vigília pascal. O rito consiste, entre outras
coisas, no descensus spiritus sancti in acquam (descida do espírito santo na água). Com isto a água comum
adquire a propriedade divina de transformar o homem e proporcionar-lhe o novo nascimento espiritual. Esta é,
precisamente, a idéia que os alquimistas tinham da água divina, e não haveria dificuldade alguma em derivar o
aqua permanens do rito da benedictio fontis, se a “água eterna” não fosse de origem pagã e, sem dúvida, a mais
antiga das duas. Encontramos a água miraculosa nos primeiros tratados de alquimia grega, que datam do século
I” (JUNG, 1999 [B], p. 107, § 161).
170
557). Aqui, na produção da quintessência, Dorneus procura tornar plásticas suas fantasias por
meio de processos químicos: esse é o “líquido” que provém do inconsciente, isto é, os
conteúdos inconscientes que forçam a orientação da atenção
88
. Com relação à Dorneus, Jung
acrescenta:
... Ele sente sua operação como uma ação que atua de modo mágico e confere
propriedades mágicas à substância representada. A projeção de propriedades mágicas
alude à existência de efeitos correspondentes na consciência, isto é, o adepto sente
que um efeito numinoso se despreende do lapis (pedra), seja qual for a denominação
dada por ele à substância do arcano. Nosso racionalismo, porém, talvez nem conceda
tal coisa às imagens que o homem moderno projeta de sua intuição de conteúdos
inconscientes. Este último parece de fato ser influenciado por tais imagens. Chega-se
a esta conclusão ao analisar mais exatamente as reações psíquicas quanto às suas
representações. Estas com o tempo, exercem um efeito calmante e criam algo como
um fundamento interior (Idem, 1990, p. 290, § 412).
Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a
pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas” como afirma Dorneus anteriormente.
Como foi visto no capítulo anterior, o sal pode aparecer no simbolismo alquímico
primeiramente associado à sua propriedade amarga, pois o amargor designa a corrupção e
impureza do estado inicial da prima materia; assim também a transpiração pela sudorese
(fluído aquoso, constituído por água e pequena quantidades de sais dissolvidos), apareceu no
simbolismo alquímico como os resultado do processo de tormento constante na fase da
nigredo. Do ponto de vista psicológico da Opus, a volatilização pelo suor é o produto do
reconhecimento dos conteúdos inconscientes pela consciência; e por isso corresponde à
secagem dos complexos inconscientes que primeiro aparecem em estado de identificação com
o ego. Pela evaporação se obtem a retirada da cobertura negra da consciência. Neste ponto,
entretanto, o opus ainda não chegou ao fim, porque resta terra negra, o corpo da pedra. É,
pois, “necessário que as ‘evaporationes’ se precipitem para a ablução da negrura, ‘unde tota
terra albescet’ (pelo que se torna branca a terra toda)” (Idem, 1997, p. 197, § 258). Sobre este
aspecto também acrescenta Von-Franz:
... Se evaporarmos uma substância química, obteremos uma fórmula vaporífera; é a
sua alma e, se fizermos de novo a sua precipitação ou coagulação, ela retornará ao
corpo, um símile óbvio. Assim, o símile da umidade intervem também, visto que pelo
88
Essa projeção inconsciente, segundo Jung, “...somente muito mais tarde, se isso acaso ocorrer, será
compreendida como tal e então retirada. (...) Com isso se suprime a identidade inconsciente com o objeto, e “a
alma é libertada de suas cadeias” (JUNG, 1990, p. 243, § 356).
171
fogo a umidade corruptível tem que ser destilada e depois é vertida a umidade
vivificante (VON-FRANZ, 1980, p. 201).
Do ponto de vista psicológico do Opus, a fase da nigredo corresponde àquele trabalho
analítico, no qual a umidade corruptível é expulsa, isto é, quando se elimina a identidade
inconsciente com o objeto e quando ocorre o recuo das projeções que distorcem a relação do
indivíduo com o mundo: esta é a “extração da alma” que leva à compreensão consciente. No
entanto, o aparecimento na fase da albedo do suor assim como do sal
89
na fleuma do vinho
empregado para reanimar o corpo, anuncia o trabalho sintético, ou seja, a integração dos
conteudos inconscientes na vida real do indivíduo
90
, assim como o orvalho, caindo anuncia o
retorno à vida. Segundo Dorneus, este sal, se coloca sobre uma placa de mármore em lugar
úmido e fresco, pode deliqüescer, formando “água tártárica”, isto é, a umidade vivificante,
considerada por Dorneus a quintessência do vinho filosófico. Sobre este aspecto psicológico
do Opus, assegura Jung:
Durante a solutio, separatio e extratio aparece o succus lunariae, sanguis, aqua
permanens, que ou é empregado ou é extraído. Esse “líquido” provém do
inconsciente, e nem é o verdadeiro conteúdo, mas muito mais o efeito que ele produz
na consciência. Trata-se aqui certamente daquele efeito indireto de conteúdos
constelados e inconscientes, que é bem conhecido por parte dos médicos e equivale a
uma atração, assimilição ou mudança de direção exercida sobre a consciência.
Observa-se este processo (...) nos sonhos, nas fantasias e nos processos criativos, nos
quais os conteúdos inconscientes forçam a orientação da atenção. A atenção é o
succus viate, o sangue, a participação vital (...) (JUNG, 1997, p.145-146, §175).
Os conteúdos personificados do inconsciente uma vez reconhecidos pela consciência
provocam uma mudança psíquica, visto que estes não poderão voltar a ser inconscientes
91
. A
aquisição do conflito nesta fase pode ser considerada uma vantagem especial, pois sem ele
não existe união, nem nascimento. Nota-se na citação de Jung que o succus vitae ora é
89
Sobre este aspecto acrescenta o alquimista Basílio Valentim : “Tal como o sal conserva todas as coisas e as
preserva da podridão, o sal filosófico defende e preserva todos os metais para que não possam ser totalmente
destruídos ou reduzidos a nada e não possam fazer nada sem que morra também o bálsamo e o espírito do sal,
que é o que são. Neste caso, serão só um corpo morto, que não serviria para nada, porque os espíritos metálicos o
abandonariam e, arrancados pela morte natural, deixarão o seu domicílio vazio e morto e nunca lhe poderá dar
vida”. VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo. Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 130.
90
Com relação ao sal na fase da albedo, Basílio Valentim, conclui: “Mas, meu amigo, tens que saber que o sal
que vem das cinzas tem, com frequencia, uma virtude oculta mas que de nada serve, se o seu interior não se
exterioriza, pois só o espírito dá a vida e a força. O corpo sozinho nada pode. Se puderes encontrar este espírito,
possuirás o sal dos filósofos” Loc. cit.
91
No entanto, é importante ressaltar na presente dissertação, como bem afirma Jung, de que “a experiência
psicológica acentua em primeiro a reação subjetiva na formação das imagens e reserva a si o juizo libera et
vacua mente (com a mente livre e vazia de preconceitos) quanto a possíveis efeitos objetivos” (JUNG, 1990, p.
290, § 412).
172
empregado ou ora é extraído, o que denota as sucessivas “embebições” pela sublimação
filosófica. Do ponto de vista psicológico, a pedra só será encontrada no momento em que a
investigação tornar-se pesada para aquele que investiga, pois forçam a orientação da atenção
às inspirações internos e aos fatos externos. Estes são os oculi piscium (olhos de peixe) tão
frequentemente mencionados pelos alquimistas, como símbolo da atenção permanente e não
diferentemente é mencionado por Dorneus na conclusão que acompanha a produção da
Quintessência
92
:
... Esta é a base da verdadeira filosofia, Quem considerar tudo isso consigo mesmo e
libertar seu espírito de todos os cuidados mundanos e distrações, “este aos poucos e
de dia para dia verá com seus olhos espirituais (oculis mentalibus) brilhar as faíscas
da iluminação divina (scintillas divinae illustrationis) (...) (DORNEUS, p. 235, § 346.
In: JUNG, 1990).
Os oculi piscium na Opus Alchimicum indicam que o lapis (Si-mesmo) está em
formação, e forçam a participação, o envolvimento pessoal e a atitude crítica, pois é
necessário que o homem seja afetado no processo. Esse enredamento nos conteúdos
inconscientes provocados pelo efeito numinoso destes ocorre, segundo Jung, “com a
finalidade expressa de integrar à consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu
conteúdo compensativo, e assim realizar esse sentido da totalidade” (JUNG, 1990, p. 288, §
410). O afeto liberado pela aquisição do conflito torna-se o fogo capaz de secar e purificar a
contaminação do inconsciente, pois o que agora se realiza é a confrontação decisiva com o
inconsciente
93
. De fato acontece como se a atenção reanimasse o inconsciente e deste modo
eliminasse os obstáculos que o separam da consciencia: o que é meio caminho andado para a
experiência e a criação do símbolo da totalidade.
Nota-se que do ponto de vista psicológico da Opus, a reunião da unio mentalis com o
corpo chama a atenção para a questão da experiência real; pois pode haver conhecimento,
sem que este se torne atuante, se a ele não se juntar a experiência. Por esta razão também é
que a questão relacionada à reanimação do corpo, isto é, de tornar a unir a alma ao corpo
desprovido dela, constituía um problema na alquimia: daí a importância da produção do
remédio que devia servir para prender a unio mentalis (união mental) ao corpo e, também da
92
Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “..Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar
sempre, razão pela qual os alquimistas os empregam como símbolo para a atenção permanente” (JUNG, 1990, p.
286, §406).
93
No procedimento alquímico da calcinatio, após o processo de intenso aquecimento, resta somente um fino pó
seco. Os simbolismos usados para representar este produto final eram as cinzas brancas, o cal e também o sal.
Todos estes aludem à fase de embranquecimento, a albedo.
173
série de ingredientes que deviam ser acrescentados ao “céu”
94
. Jung em Mysterium
Coniunctionis analisa a natureza dos conteúdos psíquicos que são projetados por Dorneus na
mistura e, resumidamente, acrescenta:
...Com o mel entrava na mistura o prazer dos sentidos e a alegria da existência, e com
isso também o cuidado oculto e o temor por causa do “veneno”, isto é, do perigo
mortal do enredamento do mundo. Com a celidônia entrava o sentido e o valor mais
elevado dos “filhos da terra”, o si-mesmo como o todo da personalidade, o remédio
“curador”, isto é, o remédio unificante que é até reconhecido pela psicoterapia
moderna, a união com o amor espiritual conjugal, expresso pelo alecrim, e para que
não faltasse o inferior ou o ctônico, a mercurialis acrescenta a sexualidade juntamente
com o rubeus (vermelho), o homem movido pelas paixões, sob o símbolo do lírio
vermelho. Quem dá a isso tudo também o seu sangue, “coloca também toda a sua
alma no prato da balança”. Tudo é unido com a quintessência azul, ou com a anima
mundi (alma do mundo), extraída da matéria inerte (...) (JUNG, 1990, p. 248-249, §
364).
Nota-se pela análise junguiana, que a natureza dos conteúdos psíquicos que são
projetados por Dorneus na mistura apontam para o regresso à água da vida, isto é, para um
modo de vida imediato
95
; por meio destes ingredientes acredita Dorneus que a mistura adquire
a propriedade não apenas de eliminar o impuro, mas também de transformar o espírito em
corpo. A fase alquímica da reanimação do corpo, segundo Von- Franz, corresponde ao
objetivo psicológico da “espontaneidade consciente”, isto é, participar conscientemente no
fluxo da vida:
Emergir da água e sentar-se ao sol, e depois ter que mergulhar de novo na água é um
negócio muito perigoso. Isso pode ser feito mediante uma recaída no estado anterior,
mas não tem qualquer mérito. Deve-se retornar, mas conservando a segunda forma de
consciência analítica, preservando a percepção consciente da sombra e da anima, etc.
Assim a segunda fase é espontaneidade consciente, na qual a participação da
consciência não se perde, e isso é algo muito difícil, porque é bem mais fácil continuar
superanalisando, ou recair no estado anterior de inconsciência [sem grifo no original]
(VON-FRANZ, 1980, p. 202).
94
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “Se eles tivessem realizado a re-animatio (re-animação) por via direta, a
alma por assim dizer teria recaído em sua ligação anterior, e tudo voltaria a ser como antes. Mas não se podia
nem por um instante deixar entregue a si mesmo esse ser volátil, que se achava incluso e guardado
cuidadosamente no vaso hermético, isto é, na unio mentalis (união mental), porque este Mercurius evasivo de
outra forma evolaria e retornaria à sua natureza anterior, como, segundo atestam os alquimistas, não raramente
acontecia. O caminho direto e natural teria consistido simplesmente em conceder à alma, curso livre, pois ela
sempre se volta para o corpo. Como, porém, ela está mais presa ao corpo do que ao espírito, então ela se
separaria deste e retornaria ao estado de inconsciência anterior, sem ter levado consigo algo da luz do espírito
para dentro da escuridão do corpo. Por esta razão é que a reunião com o corpo constituía um problema. Expresso
na linguagem psicológica, isso significaria que o conhecimento adquirido pelo recuo das projeções não
suportaria a colisão com a realidade (...)” (JUNG, 1990, p. 279, § 398).
95
Na concepção junguiana, a experiência individual é a vida imediata; a “vida imediata é sempre individual, pois
o individuo é o sustentáculo da vida” (JUNG, 1999 [B], p. 55, § 88).
174
Após relatar uma série de ingredientes, que devem ser acrescentados ao “céu”,
Dorneus conclui:
A essência extraída daí é finalmente levada ao estado de sua ‘máxima simplicidade’
pelo movimento circular continuado, ocasião em que o puro se separa do impuro.
Então se verá “o primeiro flutuar bem em cima como algo transparente, luminoso e
da cor mais pura do ar (portanto: azul)” (DORNEUS, p.232, §343. In: JUNG, 1990).
Nota-se que igualmente como na sublimação filosófica na fase da albedo discutida
anteriormente, onde a separação da mistura da parte mais volátil por evaporação, seguida da
condensação, era repetida diversas vezes e a essência extraída levada ao estado máximo de
pureza pelo movimento circular continuado; assim também a quintessênia do vinho filosófico
é submetida em seguida à rotação mencionada acima. Como em uma centrifugação o puro é
separado do impuro, e por cima fica flutuando um líquido “da cor do céu”. Esta “substancia-
espirito” é uma união dos opostos
96
; segundo Jung, “representava o equivalente físico do céu”
(JUNG, 1990, p. 300, § 429). Do ponto de vista psicológico, pelo movimento circular, isto é,
o centro da consciência é entregue ao si-mesmo, que se torna o novo centro da personalidade.
Na perspectiva junguiana, o Mercúrio Filosófico corresponde àquele terceiro-
mediador, necessariamente um símbolo paradoxal, que promoverá união dos opostos. Tal
“substancia” é o objetivo da opus e simultaneamente um "auxiliar", algo que ele não realizaria
a união dos opostos se não viesse em socorro certa substancia
97
. Análogo à esta concepção,
em Dorneus, seria a substancia celeste, a Quintessência, o “remedio incorruptível” que
transformaria o corpo e produziria a reuniao da posição espiritual (unio mentalis) com a esfera
corporal:
... Ele acredita na necessidade da operação alquímica, como também no êxito dela;
ele está convencido de que a quintessência é indispensável na “praeparatio”
(preparação) deste corpo, e que este último por meio desse remédio é melhorado a tal
ponto que possa realizar-se a coniunctio (conjunção) do espírito e da alma (Ibidem, p.
241, § 353).
96
O vinho também segundo Jung, “constitui, pois, um sinônimo adequado, porque ele, sob a forma de um
líquido físico, representa o corpo, mas como álcool indica o espírito (spiritus)” (JUNG, 1990, p. 232, § 343).
97
Análogo ao mercúrio dos filósofos, o Si-mesmo se caracteriza por um centro organizador de onde emana o
impulso interior de crescimento, portanto, neste sentido, ele corresponde à um "auxiliar". Mas simultaneamente,
o Self corresponde à algo que devemos estar conscientemente orientados, e assim corresponde também à algo
que deva ser recuperado devido à sua parcela inconsciente. Em outras palavras, ele fica, paradoxalmente, no
homem e ao mesmo tempo fora dele; concomitantemente ele é o caminho e o objetivo para a realização dos
opostos no processo de individuação.
175
Embora Jung tenha indicado a relação do primeiro grau de Dorneus com a primeira
fase alquímica da nigredo, um estudioso mais desatento no assunto, poderia, prematuramente,
subentender que o segundo e o terceiro grau de Dorneus, corresponderiam, respectivamente,
às outras duas etapas gerais da alquimia, a saber, a albedo e a rubedo. Porém, com um certo
domínio, tanto sobre a temática alquímica, quanto da psicologia junguiana, nota-se que estas
relações não ocorrem nesses termos. Ou seja, é possível estabelecer e demonstrar a relação do
primeiro grau de Dorneus com a nigredo, como o próprio Jung indicou e, como no capítulo
anterior se demonstrou. Porém, como no segundo grau da Coniunctio de Dorneus está
incluído o processo alquímico da produção da Quintessência, estas relações não se
estabelecem desta maneira. Sendo assim, esta dissertação demonstra que quanto mais se
caminha para a produção da Quintessência, mais se afasta da simbólica da albedo e mais se
aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir
a respectiva fase “branca”: uma união dos opostos. Assim como a união dos opostos, somente
ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e mudados em quintessência, também
Gerardus Dorneus considera a produção da quintessência, ser “necessária para a unio mentalis
(união mental) com o corpo” (Ibidem, p. 237, § 347).
Eis porque a famosa fase alba, que remete à brancura e a pureza do espírito, nao
corresponde à meta final de um alquimista. A fase alquímica da Rubedo, remete à
vermelhidão do sangue e da vida
98
, mas este desenvolvimento da consciencia, isto é, “a
integração desses conteúdos na vida real do indivíduo (opus ad rubeum!)” (Idem, 1997, p.
147, § 175), somente poderá ser vivenciado se o alquimista for confrontado com uma união
dos opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados
alquímicos concomintantemente juntas, pois a feminina alba e o servo rubedo formam o par
tradicional do Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do
masculino. Assim a conjunção do úmido, do corpo e da (Lua) com o quente, o espírito e o
(Sol) resulta naquele bálsamo. Por isso também esta concepção alquímica se repete em
Dorneus, que não hesita em afirmar que a mistura toda é então unida “com o céu do vinho
vermelho ou branco ou com o Tartarus” (tártaro)...” (DORNEUS, p. 234, §345. In: JUNG,
1990). Sobre este aspecto, Jung acrescenta:
98
Os alquimistas também não hesitavam em afirmar que a fase da rubedo somente consistia no aumento gradual
do fogo, isto é, do ponto de vista psicológico, do aquecimento gradual pelo desejo. O fogo significa paixão,
afeto, concuspicência e as forças impulsivas e emocionais da natureza humana em geral, ou seja, tudo o que se
pode entender sob o termo “libido”. Sobre este aspecto acrescenta Jung: O aquecimento pelo desejo tem o seu
análogo na alquimia, que é o aquecimento gradual daqueles corpos que contenham o arcanum. Neste caso tem
papel importante o símbolo da cura pelo suor, como indicam certas representações. Como no maniqueísmo o
suor dos arcontes significa a chuva, assim entre os alquimistas o suor representa o orvalho (JUNG, 1997, p. 36,§
33).
176
Se procurarmos conceber a natureza em sentido mais elevado como uma noção geral
que abranja todos os fenômenos, veremos que um dos seus aspectos é o físico e o
outro espiritual (pneumático). Desde a antiguidade o primeiro deles é considerado o
feminino e o segundo o masculino. A meta do primeiro é a união, mas o segundo
tende para a distinção (JUNG, 1997, p. 85, § 101).
Eis porque a conjunção da unio mentalis com o corpo é uma tarefa ainda a ser
realizada pela humanidade no futuro. A alquimia parece ter suspeitado disso e, por isso, era o
corpo que merecia ser tratado pela sua corrupção
99
, de outra forma a unio mentalis nao
suportaria o conflito entre a vida do mundo e o modo de ser do espírito. A existência corporal,
seria uma espécie de imã hostil, as quais as exigências vitais deveriam ser atendidas em
primeiro lugar. Nesta situação o eu somente entra em consideração por poder oferecer
resistência, defender sua própria existência e afirmar-se, onde o conflito for de pouco valor, a
pessoa se coloca do lado da razão e da moral convençional
100
. Deste modo os motivos
inconscientes são novamente reprimidos
101
. Entretanto alerta jung:
... que ninguem tire desta constatação geral precipitadamente a conclusão que em um
caso individual exista cada vez uma hybris (soberba) da consciÊncia do eu, que
mereça ser subjugada ao inconsciente. Mas de modo algum o caso é sempre esse,
pois ocorre muito frequentemente que tanto a consciencia como a responsabilidade
do eu sao fracas demais e antes estao necessitadas de reforço (JUNG, 1990, p. 304, §
433).
Auto crítica é faculdade discriminatória que acompanha o indivíduo para descobrir as
razões do seu próprio comportamento. Por isso, a transição de uma atitude meramente
estética, perceptiva para uma atitude crítica, segundo Jung, “pressupõe-se naturalmente que o
juízo formado seja obrigatório tanto moral como intelectualmente” (JUNG, 1990, p.288, §
409). O criterio moral aqui é a consciência reflexa e não a lei, nem a convenção; má é a
inconsciência do agir
102
. Jung acrescenta:
99
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “ ... o corpo se achava na situação de quem não está com a razão, pois em
consequência de fraqueza moral havia contraído o pecado original. Por isso era o corpo com sua escuridão que
precisava ser preparado. E isso acontecia, como já vimos, pela extração de uma quintessência” (JUNG, 1990, p.
300, § 429).
100
Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “... Quanto a ideais considerados corretos, como é sabido, é impossível
impô-los por meio do esforço da vontade, por algum tempo e até certo ponto, a saber, até que se manifestem
sinais de cansaço e diminua o entusiasmo inicial. Mas então a decisão livre se transforma em espasmos da
vontade e a vida reprimida força, por todas as brechas, seu caminho para a liberdade. Esta é lamentavelmente a
sorte de todas as decisões tomadas exclusivamente pela razão” (JUNG, 1990, p. 279, § 398).
101
O recalque, segundo Jung, “ é a maneira semi-consciente de deixar correr as coisas, ou de externar desprezo
por uvas que pendem de ramos demasiado altos, ou de olhar em direção contrária para não enxergar os próprios
desejos” (JUNG, 1999[B], p. 80, §129).
102
Sobre este aspecto considera Jung, “...Jesus procurou ensinar a concepção mais adiantada e psicologicamente
mais correta de que a oposição à essencia do mal não é a fidelidade à lei, mas muito mais o amor e a bondade.”
(JUNG, 1997, p. 163,§200)
177
... há uma grande diferença, subjetivamente falando, em o individuo saber o que ele
esta vivendo e compreender o que esta fazendo e declarar-se responsável ou não pelo
que intenciona fazer ou já fez. Cristo formulou compkexivamente em uma única frase
aquilo que constitui a consciencia reflexa ou sua ausencia: “Se sabes o que fazes, és
feliz, mas se não sabes, és um maldito e transgressor da lei”. A inconsciência nunca
pode valer como desculpa perante o tribunal da natureza e do destino. Ao contrário,
grandes castigos pesam sobre ela e é por isso que toda a natureza inconsciente anseia
pela luz da consciência, à qual, no entanto, se contrapõe (Idem, 2001, p. 102, § 745).
Como foi visto anteriormente, a estrutura do espírito própria da sombra primitiva nao
pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição
103
. Existem camadas profundas
da psique que não podem ser atingidas pela intelecto e nem pela força da vontade. Nesta
altura do processo de individuação, a natureza vem ao nosso encontro com uma ajuda, isto é,
forças impessoais que se ocultam no interior e escapam ao nosso arbítrio e intenções. A
numinosidade destes fatores psíquicos então torna difícil um tratamento intelectual, pois é o
caráter afetivo que entra sempre em conta. O intelecto mera parte e função da psique não
basta para compreender a totalidade humana. O indivíduo participa pro et contra no processo,
de estados de conflitos agudos, e choques de deveres, ate que o inconsciente produza um
simbolo de natureza unificante, proponha um terceiro termo irracional,e consequentemente
imprevisto, e nao esperado como solução. Na alquimia o corpo era restaurado, como já vimos,
pela extração de uma quintessência. Entretanto, sabe-se que o que “a alquimia tenta para sair
de seu dilema é uma operação química que hoje poderíamos designar como um símbolo
(JUNG, 1990, p. 283, § 404). A dinâmica força deste processo é o instinto que cuida, para que
tudo quanto pertence a uma vida individual seja nela integrado:
Jamais faltam ao eu razões opostas, de natureza moral e racional, que nem se pode
nem se deve pôr de lado enquanto elas ainda servem de apoio. Pois somente então
alguém se sentirá em um caminho seguro quando a colisão de deveres se resolver
como que por si mesmo, e esse alguem se tiver tornado vítima de uma decisão, que
foi tomada independentemente de nossa cabeça e de nosso coração. Nisto se
manifesta a força numinosa do si-mesmo, que dificilmente poderia ser experimentada
de outra maneira. Por isso a vivencia do si-mesmo significa uma derrota ao eu. A
enorme dificuldade dessa vivência consiste no fato de que o si-mesmo apenas pelo
conceito se distingue do que desde sempre chamamos de “Deus”, não porém na
prática (JUNG, 1990, p. 303-304, § 433).
103
A sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não uma qualidade maligna absoluta.
Ela contêm qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existencia
humana; mas o homem se choca com as regras tradicionais.
178
Sabe-se que Jung localiza a base da função religiosa da psique na sua capacidade
natural de gerar a experiência do sobrenatural
104
. Sendo assim, quando Jung trata da
experiência religiosa, está se referindo a uma experiência psíquica, ou seja, à uma relação da
consciência do indivíduo com uma instância que é inapreensível totalmente por conceitos
105
.
Isto é, deixando de lado os atos da graça que fogem à alçada humana, Jung considera que,
sem a relação entre a consciência e o Si-mesmo, mediante a exploração do inconsciente, não
há experiência da totalidade e portanto não há acesso interior às formas sagradas. Porém, Jung
sofreu uma enorme resistência por parte dos teólogos da época, quanto à essa qualificação da
experiência religiosa, como podemos observar neste trecho a seguir:
... É quase uma blasfêmia pensar que uma vivência religiosa possa ser um processo
psíquico; é então introduzido o argumento de que tal vivência "não é apenas
psicológica". O psíquico é só natureza - e por isso se pensa comumente que nada de
religioso pode provir dele. Tais críticos não hesitam, no entanto, em fazer todas as
religiões derivarem da natureza da alma, excetuando a que professam (...) (JUNG,
1991 [A], p.22, § 9).
Sendo assim, chega sempre o momento em que a pessoa está só com “Só” em que
pode dizer como João da Cruz: “perdi o rebanho que seguia antes”. O encontro com o Si-
mesmo é um encontro solitário, é um encontro com o seu “máximo outro”. Segundo Jung, na
medida em que “o homem se acha somaticamente comprometido, o ‘adversário’, não é senão
o ‘outro em mim’” (JUNG, 1999 [B], p. 82, § 133). Na reconciliação com o outro dentro de
mim o que importa saber é se o homem é capaz por si de alcançar um degrau moral mais
alto. Sobre este aspecto acrescenta Jung:
... É justamente por esse o motivo que a observância da moral cristã nos faz cair nos
piores conflitos de deveres. Só quem se habituou a não tomar as coisas
rigorosamente ao pé da letra estará em condições de escapar deles.O fato de a ética
cristã nos levar a conflitos de deveres constitui um argumento a seu favor.
Produzindo conflitos insolúveis e, consequentemente, uma certa “afflictio animae”,
104
Ele também empresta de Rudolph Otto o termo que o fez famoso no mundo dos estudos religiosos do século
XX. Para os dois isso significava a experiência imediata do divino. Para Otto essa experiência era ambígua,
surpreendente, estimulante, condenatória e encorajadora. Nesse ponto, Jung concordaria com a descrição de Otto
sobre a experiência do sobrenatural. Eles só descordam em relação à origem dessa experiência. Para Otto, essa
experiência tinha como objetivo uma divindade que era chamada de “o outro completo”. O que Jung faz com a
idéia de Otto é internalizar a experiência desse outro Deus completo e discutir que o poder ou poderes que geram
essa experiência, não devem ser entendidos como um outro completo, mas como um interno completo. Ele
localiza esses poderes na dimensão arquétipa da psique, o inconsciente coletivo.
105
Jung acrescenta: “...este Deus age através do inconsciente do homem, obrigando-o a unir e a harmonizar as
influencias contrárias e permanentes, às quais sua consciencia esta submetida. O inconsciente pretende ambas as
coisas: separar e ubir. É por isso que o homem , em suas tentyativas de unificação pode sempre contar com a
ajuda de um mediador metafísico (...). o inconsciente quer introduzir-se na consiência, a fim de poder chegar à
luz, mas ao mesmo tempo, é impedido de tal designio” (Idem, 2001, p. 98, § 740).
179
ela aproxima o indivíduo do conhecimento de Deus: qualquer contraste pertence a
Deus e por isso o homem deve tomá-lo sobre si; tão logo o faça, Deus se apossará
dele, juntamente com as suas antinomias. O homem é, então, invadido pelo conflito
divino. Não é sem fundamento que ligamos a idéia de sofrimentom ao estado no qual
os contrários se chocam dolorosamente, e temos receio de considerar uma
experiência desta como libertação (Idem, 2001, p. 59, § 659).
As aflições, conflitos e sofrimentos no entanto adquirem um sentido e objetivo que o
livram de seu caráter amedrontador; a partir disso, se o indivíduo conseguir reconhecer o
inconsciente ao lado do consciente, vivendo de modo amplo as exigências conscientes e
inconscientes (instintivas), entao o Si-mesmo se colocará como centro vívído e o espírito
diretor na vida diária:
Tais problemas nunca serão solucionados por meio de um da legislação ou por
artifícios. Só podem ser resolvidos poruma mudança geral de atitude. E esta mudança
não se inicia com a propaganda ou com reuniões de massa, e menos ainda com
violencia. Ela só pode começar com a transformação interior dos indivíduos. Ela
produzirá efeitos mediante a mudança das inclinações e antipatias pessoais, da
concepção de vida e dos valores, e somente a soma dessas metarmorfoses individuais
poderá trazer uma solução coletiva (Idem, 1999 [B], p. 84, § 135).
Os alquimistas desde sempre procuraram fora de si encontrar aquela substância do
arcano que devia estar por toda a parte, como panacéia ou tintura de ouro ou elixir para
prolongar a vida e, “somente no século XVI passou a aludir a um efeito interno com uma
clareza de que já não se podia duvidar (JUNG, 1990, p. 290, § 412). Gerardus Dorneus era um
deles. Por isso, a problemática unio corporis, segundo a qual os alquimistas tanto se
debruçaram no axioma alquímico “torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo”;
Dorneus entende este enigma do seguinte modo: “faze do corpo inerte (pertinax) o flexível
(tractabile), de maneira que pela excelência do espírito (animi), que se adapta à alma, surja
um corpo resistente, que possa tomar sobre si todas as provações. Pois o ouro é
experimentado no fogo” (DORNEUS, p. 236, § 346. In: JUNG, 1990). Sobre este aspecto,
considera Jung:
... não obstante acredita ele na possibilidade da espiritualização unilateral, sem dar-se
conta de que a condição para esse efeito consiste justamente em uma materialização
do espírito, a saber, a quintessência azul. Na realidade, entretanto, seu esforço eleva o
corpo até aproximidade da espiritualidade, mas também atrai o espírito até a
proximidade da matéria. Ao sublimar ele a materia, materializa ele o espírito (Idem ,
1990, p. 293, § 419).
180
Chegamos assim, ao final das considerações sobre a fase alquímica albedo e sua
relação com a produção da Quintessência de Gerardus Dorneus, analisados à luz da Psicologia
Profunda de Carl Gustav Jung.
IV. 6. Sobre o axioma de Maria Prophetissa
Sendo assim, através da constatação destas relações no decorrer da dissertação, isto é,
tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases
alquímicas, foi encontrado um duplo subsídio para promover um maior entendimento dos três
principais processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final.
Com esta constatação chegamos ao axioma central da alquimia, ou seja, ao aforisma de Maria,
a Prophetissa: “Um torna-se dois, dois torna-se três e do três provêm o um, que é o quarto”
106
.
Sobre o axioma de Maria na alquimia, observa-se a seguinte citação do tratado anônimo De
Sulphure:
...Assim o fogo começou a atuar sobre o ar e produziu o enxofre. Em seguida o ar
começou a atuar sobre a água e produziu o mercúrio. Depois a água começou a atuar
sobre a terra e produziu o sal. Mas a terra, como nada tinha sobre o que atuar, nada
produziu, mas o produto permaneceu nela: resultaram assim apenas três princípios, a
terra se tornou a nutriz e o lugar maternal dos outros. Desses três procedem o
masculino e o feminino, isto é, manifestadamente o primeiro provêm do enxofre e do
mercúrio, e o último do mercúrio e do sal. Mas os dois produzem o um incorruptível
(unum incorruptibile), a saber, a Quinta Essentia (quintessência), “e assim o
quadrilátero corresponde ao quadrilátero”.
107
Na citação acima, a produção da Quintessência se faz de acordo com o axioma de
Maria
108
. Do estado caótico dos quatro elementos, isto é, o Um, provêm o enxofre (princípio
masculino ativo) e o Sal (neste caso, representa o princípio feminino-passivo), )
demonstrando que a alma-espírito (o masculino, o paterno, o espiritual) separa-se do corpo,
106
MARIA PROPHETISSA. In: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1991, p. 34,
§26.
107
De Sulphure. Museum Hermeticum. 1678, p. 622s. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 1990, p. 212, §320.
108
Jung comenta esta citação do De Sulphure, e acrescenta: “A síntese do um incorruptível ou respectivamente
da Quinta Essentia se realiza de acordo com o Axioma de Maria, no qual o quarto corresponde à terra. O estado
de separação cheio de inimizade da parte dos elementos corresponde ao caos e às trevas. Das sucessivas uniões
provêm um agens (agente: Sulphur, enxofre) e um patiens (paciente: Sal), como também um intermediário, um
ambivalente, a saber, o Mercúrius. Dessa clássica trindade alquímica resulta a relação de homem e mulher como
a oposição suprema e essencial. O fogo se acha no início e não é produzido por nada, e a terra se encontra no
fim e não atua sobre nada.Entre o fogo e a terra não reina nenhuma interactio (interação), e por isso os quatro
não formam um círculo, isto é, nenhuma totalidade. Esta apenas é produzida pela síntese do masculino e do
feminino (Idem, 1990, p. 212, § 321).
181
(feminino, o materno, o físico); assim também como há um intermediário, um ambivalente, a
saber, o Mercúrio, que de uma parte se divide em metade masculina e em outra feminina; isto
é, o masculino, que provêm do enxofre e do mercúrio e, o feminino, que provêm do mercúrio
e do sal. O terceiro, o Mercúrio, é capaz de unir ambas as partes restabelecendo a unidade
primordial. Sendo assim, pela síntese do masculino e do feminino, os dois produzem o um
incorruptível, a saber, a Quinta Essentia (quintessência), “e assim o quadrilátero corresponde
ao quadrilátero”
109
:
Substancia universal
Sal Enxofre
Água-terra Fogo - ar
Feminino Masculino
Mercúrio
Água-ar
Feminino-masculino
Do ponto de vista psicológico, O Um, corresponde ao estado de entrelaçamento difícil
de desfazer entre a alma e o corpo, com o qual eles formam uma unidade sombria. No caos da
prima materia, estes elementos nao estão unidos no caos, apenas coexistem lado a lado,
devendo por isso, ser unidos mediante o processo alquímico. As designações da matéria-
prima, segundo Jung, “indicam algo que não consiste em uma determinada substância, mas
que deve ser, certamente, o conceito intuitivo de uma situação psíquica inicial” (JUNG, 1988,
p. 146, § 240). O processo de diferenciação da consciência exige que se retirem todas as
projeções que podem ser alcançadas e, quanto mais a consciência reivindica para si uma
natureza luminosa, mais permanece uma oposição, pois só quando uma pessoa se conserva
legitimamente inconsciente de seus impulsos, não há cisão
110
. A essência do consciência é a
diferenciação; para ampliar a consciência é preciso separar os opostos uns dos outros:
O desenrolar do processo de individuação começa em geral com uma tomada de
consciência da “sombra”, isto é, de uma componente da personalidade que,
ordinariamente apresenta sintomas negativos. Neste personalidade inferior está
contido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempreàs leis e regras da vida
109
Como se sabe, “o um que é o quarto” remete ao tema da quadratura do círculo,
,
ou seja, aos símbolos da
totalidade, que o inconsciente em determinadas circunstancias produz espontaneamente. Deve-se mencionar
nesse sentido, antes de tudo, os objetos geométricos que encerram os elementos do círculo e da quaternidade. O
círculo e a quateridade possuem caráter de totalidade: “o primeiro por causa da “pefeição” de sua forma e a
segunda enquanto número mínimo resultante da divisão natural do círculo” (JUNG, 1988, p. 214, § 351).
110
Segundo Jung, a “psicologia sabe que os opostos correlatos constituem condições imprescindíveis e inerentes
ao ato de conhecimento, pois sem eles seria impossível qualquer tipo de diferenciação” (JUNG, 1988, p. 57,
§112).
182
inconsciente. elaé constituída pela “desobediência” e por isso é rejeitada não só por
motivos de ordem moral, mas também por razões de conveniência (JUNG, 1999 [A],
p. 87, § 292).
Sendo assim, o “Um torna-se dois”, segundo o axioma. A diferenciação da
consciência, no entanto, leva o indivíduo a um conhecimento cada vez mais ameaçador da
contradição, e significa nada mais nada menos que uma crucificação do eu, isto é, uma
suspensão dolorosa entre dois opostos irreconciliáveis
111
. A estrutura do homem, Jung
acrescenta, corresponde a esta bifurcação: “o corpo provém do elemento feminino, cuja
característica fundamental é a emocionalidade,ao passo que o espírito provém do elemento
masculino, ao qual corresponde a racionalidade” (Idem, 1988, p. 52, § 100). A separação da
consciência e a subordinação desta última à pontos de vista racionais não agrada, uma vez que
a razão nao é capaz de lidar de maneira satisfatória com os dados irracionais do inconsciente.
Como é impossível unir os contrários em seu próprio nivel, é preciso encontrar um terceiro
termo de ordem superior, no qual as partes possam encontrar-se. Aqui costuma falhar o
intelecto com sua lógica, pois em uma oposição lógica não existe um terceiro termo. O que
traz a solução somente pode ser de natureza irracional. Como o símbolo provém tanto da
consciência como do inconsciente, ele é capaz de unir ambas as partes, “o caráter antitético e
ideal deles, devido a sua forma, correesponde ao caráter antitético emocional de sua
numinosidade” (Ibidem, p. 170, § 280). Sendo assim, o inconsciente em determinadas
circunstancias produz espontaneamente um simbolo arquetípico da totalidade acrescentando-
lhe um significado central e supremo, e isto justamente porque ele constitui uma “coniunctio
oppositorum” [integração dos opostos]. O simbolo arquetípico da totalidade, segundo Jung,
“é uma criação do inconsciente, muitas vezes é personificado pela anima, uma figura
feminina” (JUNG, 1999 [B], p. 68, §106). Este símbolo, é o terceiro mediador, que reconduz
ao um, que ele traz em si. A anima, personificação da atmosfera psíquica ativada, “representa
sempre a ‘função inferior’, que está de tal modo contaminada pelo inconsciente coletivo, que,
“ao se tornar consciente traz consigo entre outros o arquétipo do Si-mesmo (...)” (JUNG, 1991
[A], p. 37, § 31). O fenômeno da contaminação se baseia no fato de haver na psique um
estado de fusão e mistura: em um ponto qualquer os opostos se revelam idênticos; segundo
Jung, isso “corresponde à imagem da anima, a qual em virtude de seu estado
111
Edinger acrescenta: “This brings stage 2, the beginning of ego development, which is characterized by the
separation of subject and object. Here the ego begins to experience itself as separate from the world while still
caught in the polarity between Nature (Mother) and Spirit (Father)” [Isto traz o estágio 2, o começo do
desenvolvimento do ego, que é caracterizado pela separação do assunto e do objeto. Aqui o ego começa a
experimentar-se como separado do mundo apesar de ainda capturado ainda na polaridade entre a Natureza (Mãe)
e o Espírito (Pai)] (EDINGER, 1995, p. 279-280).
183
preponderantemente ‘inconsciente’ traz em si o sinal característico de não ser distinguível”
(Idem, 1990, p. 172, § 267). Sendo assim, a conscientização deste processo arrasta consigo o
“quarto”, devido à contaminação do arquétipo com a natureza arcaica em contraposição à
qualquer aspiração consciente:
... Este conhecimento dá origem, no homem, a uma tríade, um terço da qual é
transcendente, ou seja; o sujeito masculino, o sujeito feminino, o seu contrário e a
anima transcendente. (...) No homem, o quarto elemento que falta à tríade para
chegar à totalidade é o arquétipo do velho sábio. (...) Estes elementos formam uma
quaternidade, que é metade imanente e metade transcendente, ou seja aquele
arquétipo que denominei quaternio de matrimônios. Este quatérnio forma um
esquema do si-mesmo (JUNG, 1988, p. 20, § 42).
O velho sábio não é apenas “o si-mesmo psicológico”, mas também o próprio processo
de transformação. A formula alquímica para isso é o axioma de maria; deste modo ele é
reconduzido ao um que tem em si, e por isso ele é o três e o quatro. O indivíduo é assim
obrigado à suportar o oposto em benefício de sua inteireza. Aquilo que se achava mais
distante da consciência desperta e, parecia inconsciente assume, segundo Jung, “como que um
aspecto ameaçador, ao mesmo tempo que o valor vai crescendo na seguinte progressão:
consciência do eu, sombra, anima, si-mesmo” (Ibidem, p. 27, § 53). Chegamos, neste sentido,
ao final do axioma central da alquimia: “Um torna-se dois, dois torna-se três e do três provêm
o um que é o quarto”
112
.
112
Jung conclui: “... O material apresentado mostra como o drama arquetípico de morte e renascimento está
oculto na coniunctio opositorum, ou também quais os afetos humanos primitivos se chocam violentamente nesse
problema. É o problema moral da alquimia de colocar em concordância com o princípio do espírito aquela
camada profunda da alma masculina, revolvida pelas paixões, a qual é de natureza feminino-maternal na
verdade uma tarefa hércula (Idem, 1997, p. 37, § 34).
184
V UNUS MUNDUS E O SÍMBOLO QUATERNÁRIO: UMA CONTRIBUIÇÃO
PARA O ESTUDO DO RELIGIOSO NO CAMPO SIMBÓLICO
O terceiro grau da Coniunctio de Dorneus, a união do homem total com o Unus
Mundus, em contrapartida, não encontra respaldo análogo nos três procedimentos gerais da
alquimia, pois como assegura Jung, "a produção do lapis (pedra) é de modo geral a meta final
da alquimia. Dorneus, porém, forma uma exceção importante. Para ele até agora apenas se
completou o segundo grau da coniunctio (conjunção)" (JUNG, 1990, p.290, § 413).
Entretanto, o terceiro e último grau de Dorneus, a união com o Unus Mundus, apenas reforça
o retorno àquela unidade original antes perdida, a substância universal, a matéria básica junta
ao espírito na própria unidade da substância criada e imortal. Sendo assim análogo ao
mercúrio filosófico, substância essa de dupla natureza, a Quintessência de Dorneus, é o
remédio alquímico corpóreo-espiritual e um terceiro mediador que prepara o corpo, e realiza a
conjunção do espírito e da alma com o corpo. A união com o Unus Mundus é universal, é o
restabelecimento do estado cósmico primordial, o retorno ao núcleo de ouro da uroboros
sublimada de Neumann. Além deste aspecto, a terceira etapa de união se tornou também
objeto das representações figurativas, como no estilo da Assunção e coroação de Maria, como
assegura Jung no trecho a seguir:
... Esta terceira etapa da unio (união) se tornou objeto de representações figurativas,
no estilo da assunção e coroação de Maria, nas quais Maria representa o corpo. A
Assumptio (assunção) é propriamente uma festa de núpcias, a versão cristã do
hierósgamos (casamento sagrado), cuja a natureza incestuosa primordial
desempenhou grande papel entre os alquimistas. (...) Por isso os alquimistas
representaram a unio mentalis (união mental) pelo Pai e pelo Filho e a união deles
pela pomba (Espírito Santo) (a spiratio ou espiração comum ao Pai e ao Filho), mas o
mundo corpóreo pelo feminino ou o “patiens” (passivo), a saber, Maria. Assim
prepararam eles, a seu modo, pelo espaço de mais de um milênio, o caminho para o
dogma da Assumptio (Assunção). Entretanto a partir do dogma e de sua
fundamentação, não é ainda evidente por si só a implicação amplíssima de um
casamento do princípio espiritual paterno, com o que é “material”, isto é, com a
corporeidade materna (Ibidem, p. 219- 220, §329).
Os esforços dos alquimistas em unir os opostos alcança a meta no “casamento
alquímico”, no relacionamento recíproco do masculino e do feminino, cujo o símbolo é o
Sol-Lua, por ocasião da Lua nova. No pensamento teológico fundamental, segundo Jung, esse
pensamento foi expresso na simbólica da Lua como igreja
1
, e na versão cristã do hierósgamos,
1
Jung acrescenta que “o ‘morrer’ da igreja está ligado à parábola da lua escura” (JUNG, 1997, p. 24, § 20). O
momento desse eclipse e matrimônio místico é a morte na cruz. Assim Cristo foi ferido na cruz pelo amor à
185
que elevou a Coniunctio ao estado de núpcias do esposo (Cristo) e da esposa (Igreja). Na
alquimia, o Mercúrio no papel de noiva-mãe “se identifica com Luna e chega, por meio da
simbólica eclesiática de Luna-Maria-Ecclesia, a ser equiparado à Virgem” (Idem, 1997, p. 97,
§ 118), a qual, no papel de vaso alquímico (lua), receberá a alma-espírito, para dar a luz ao
Mercúrio Filosofal. Assim, na tradição alquímica, há uma apoteose da Virgem-mãe sob a
forma de elevação de Maria, da “Assumptio Beatae Mariae Virginis
2
. Na figura de Pandora,
a mãe virginal como instrumento de novo nascimento, é identica à árvore e, representada sob
a forma de uma virgem nua e coroada. Jung acrescenta
3
:
... Os antigos filósofos da natureza representavam a Trindade enquanto imaginata in
natura (imaginada através da natureza) como os três asomata, spiritus ou volatilia,
ou seja, água, ar e fogo. A quarta parte integrante era o somaton, a terra ou o corpo.
Eles simbolizavam esta última por meio da Virgem. Desta maneira, acrescentaram o
elemento feminino à sua Trindade física, criando assim, a quaternidade ou o círculo
quadrado, cujo o símbolo era o Rebis hermafrodita, o filius sapientiae ( o filho da
sabedoria) (Idem, 1999 [B], p. 68, §107).
A veneração de Sophia como a noiva mística dos filósofos ou “senhora do mundo
interior” cruza-se muitas vezes com a mãe da criança divina, isto é, do filius sapientiae [filho
da sabedoria] da alquimia medieval, porque se trata evidentemente de uma mulher celeste,
isto é, de uma deusa e companheira de um Deus. Sophia corresponde a esta definição, como
também Maria Glorificada
4
. Assim, Mercúrio é chamado “a nossa amada virgem”, porque,
igreja. Sobre este aspecto acrescenta Jung: “A sponsa é a lua nova escura de acordo com a concepção cristã a
Igreja no tempo do amplexo matrimonial e esse amplexo é simultaneamente o ferimento do sponsus Sol-
Christus” (Ibidem, p. 28, §25). Além disso, H. Rahner em sua pesquisa Mysterium Lunae, segundo Jung, “fala de
modo apropriado das ‘trevas místicas da união dela (Lunae, i. E.. Ecclesiae) com Cristo’ no tempo da lua nova,
que significa a ‘Igreja moribunda’” RAHNER. H. Mysterium Lunae. I.c. p. 314.Apud: JUNG, C.G. Mysterium
Coniunctionis p. 24, §20, nota 138.
2
Jung acrescenta: “Depois de o magistério eclesiástico ter hesitado por longo tempo, e de já haver passado quase
um século da declaração da Conceptio Immaculata como verdade revelada, foi somente então em 1950 que o
papa achou ser oportuno declarar a Assumptio como verdade revelada, ao ver-se como que impelido por uma
corrente popular, que se tornava cada vez mais intensa. Tudo parece confirmar que essa declaração dogmática
foi motivada principalmente por uma necessidade religiosa das massas cristãs. Por trás disso se encontra o
numem arquetípico da divindade feminina, que se fez notar pela primeira vez como exigência no concílio de
Éfeso em 431, ao reclamar para ela o direito ao título de Theotokos (mãe de Deus) em oposição ao racionalismo
nestoriano se simples Anthropotokos (mãe do homem)” [sem grifo no original] (JUNG, 1997, p.179-180, § 231).
3
Sobre este texto alquímico, Jung acrescenta: “A Pandora é uma das mais antigas, senão a primeira apresentação
sinótica da alquimia em linguagem alemã. Sua primeira edição foi publicada em 1588 por Henricpetri, na
Basiléia. Atribui-se sua autoria ao doutor em Medicina HIERONYMUS REUSNER, tal como o prólogo sugere”
(JUNG, 2003, p. 146, § 180, nota 129). Cf. a figura em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. Trad.
Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed. Taschen, 1997, 503. Jung acrescenta: “... A figura de Pandora indica
o grande arcano que os alquimistas sentiam de maneira pouco clara estar implicado na Assumptio” (JUNG,
1997, p. 180, §232).
4
O culto à “senhora do mundo interior” na alquimia também intercepta muitas vezes o culto da água mercurial
divina. No Aurora consurgens, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em
celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. A água de extraordinária natureza, que é água e
espírito, como foi visto anteriormente, mata e revifica. Neste sentido, “uma vez que a água procurada e
186
como Maria, concebe a “solução do céu” e depois a gera como lapis philosophorum. Desta
maneira a tradição alquímica, mediante as representações da coroação de Maria prepara o
caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino da terra, do corpo e da
matéria à sua Trindade física. Sobre possível argumento, de que Cristo foi elevado aos céus
em corpo e alma, na perspectiva de Jung, aqui existe algo bastante diferente, pois “Cristo é
Deus, o que não se pode dizer de Maria. No caso desta, trata-se-ia, de um corpo muito mais
material, isto é, de uma realidade ligada ao espaço e ao tempo” (Idem, 1999 [A], p. 59, § 251).
Entretanto, analisando os textos alquímicos, nota-se que Mercurio como Cristo satisfazia esta
Trindade alquímica, pelo menos em parte, pois Cristo, participa de duas naturezas, isto é, da
divina e da humana, ou seja, é constituído de duas partes, a celeste e a terrena
5
. De modo
semelhante fala o anônimo da Ars chemica:
... É certo que a terra não poderia subir, se o céu antes não tivesse descido; da terra se
diz que ela será elevada ao céu quando, dissolvida em seu próprio espírito, ela se
unificar a com ele. Com a seguimte parábola quero satisfazer-te: O Filho de Deus
desceu (!) ao seio da Virgem e nele tornou-se carne, e nasceu como ser humano; ele
que, para a nossa salvação, nos mostrou o caminho, sofreu e morreu por nós e voltou
para o céu após a ressureição. Nele, a terra, isto é, a humanidade, foi elevada e
transferida sobre todas as esferas do mundo, para o céu espiritual da Santíssima
Trindade.
6
Como foi possível constatar nesta dissertação, na alquimia se fala primeiro em subida
e somente então em descida. Como nas sentenças da Tábua da Esmeralda de Hermes
Trismegisto: “Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra e recebe a força das coisas
superiores e das coisas inferiores. Terás por esse meio a glória do mundo”
7
. Quanto à isso, é
preciso atender-se especialmente que o Opus, acrescenta Jung, “consta em geral de uma
subida que é seguida de uma descida, ao passo que o modelo provável cristão-gnóstico
primeiro apresenta uma descida e depois de uma subida” (Idem, 1997, p. 210, § 282). Como é
de conhecimento para os estudiosos da alquimia na visão junguiana, sabe-se que Jung
considera a alquimia “como que uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que
necessária representa um ciclo de nascimento e morte, todo o processo, consistindo em morte e renascimento,
significa a água da vida” (JUNG, 2003, p. 104, § 135).
5
Em Orthelius, lê-se acerca deste mediador: “pois... assim como.. o Bem sobrenatural e eterno, nosso mediador
e salvador, Jesus Cristo, que nos liberta da morte eterna, do diabo e de todo o mal, participa de duas naturezas,
isto é da divina e da humana, assim também este nosso Salvador terreno é constituído de duas partes, a celeste e
a terrena, mediante as quais ele nos restitui a saude e nos livra das enfermidades celestes e terrenas, espirituais e
corporias, visíveis e invisíveis” Theatrum Chemicum, 1661, VI, p.431. In: JUNG, C. G. Psicologia e religião.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 96, § 150.
6
Liber de arte chimica incerti authoris. In: Art. Aurif.I, p. 612s. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 105, §137, nota 209.
7
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23.
187
reina na superfície” (Idem, 1991 [A], p. 34, §26.). No entanto, se em um primeiro olhar existe
a máxima tentação de aludir ao Mercúrio Filosófico, apenas um reflexo do salvador que é
Cristo, esta adução não se confirma em um segundo olhar. Isto ressalta o fato de o
inconsciente não atuar simplesmente em oposição à consciência, mas em compensação à ela.
Sendo assim, completa Jung, “não é uma imagem complementar de filha que o tipo do filho
do inconsciente chama do inconsciente ctônico, mas um outro filho” (Ibidem, p. 35, § 26).
Neste sentido, o filho dos filósofos, o Mercúrio Filosófico, na qualidade de hermafrodita,
apresenta os traços da contrapartida ctônica revelando que “o segredo alquímico é um
equivalente inferior dos mistérios superiores; é um ‘sacramentum’ não do espírito paterno,
mas da matéria materna” (Idem, 1999[C], p. 178, § 533).
Entretanto, a apoteose da Virgem-mãe sob a forma de elevação de Maria como
mostram as representações alquímicas, sugere que “a componente feminina exige como a
masculina, uma representação de caráter pessoal” (JUNG, 2001, p. 107, § 753) e assim,
provoca um aumento da Trindade física, mediante um quarto elemento de natureza feminina,
que coincide com a terra ou o corpo. Sem querer entrar no mérito atual das consequências que
este arquétipo (da divindade feminina) traz hoje em dia, que é algo da última moda e, que está
na linha de frente das idéias progressistas de nosso tempo, como por exemplo, as discussões
em torno do best seller O código da Vinci e o tema da entronização da mulher e do feminino;
a questão é que o fato deste tema ter encontrado tanto crédito, de uma parte prova, a
credibilidade fácil e generalizada, bem como a ausência de crítica do público e, de outra parte,
revela a existência da profunda necessidade que haja uma instância espiritual colocada acima
do eu. Porque supervalorizamos o aspecto físico falta à nossa razão hoje em dia a orientação
espiritual. Tal instância, como ja foi discutido anteriormente, impossível de ser apreeendida
pelo intelecto, não surge jamais através de uma ponderação racional, por ficar reduzida ao
âmbito da consciência, mas apenas pela graça divina, isto é, a natureza
8
. Neste relação,
destaca-se a importância da psique que, por ser o ponto de encontro das representações
possíveis, nos permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de
procedência material ou espiritual e, devido à substância metafísica própria da psique, como
tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito. Não há
8
Entretanto Jung acrescenta: “... A interpretação racionalista da autoridade interior como sendo “forças naturais”
ou como instintos satisfaz a inteligência moderna, mas tem o grande inconveniente de que a decisão,
aparentemente vitoriosa do instinto, ofenda a auto-consciência; por esta razão facilmente nos persuadimos de
que a coisa só foi resolvida por uma decisão racional da vontade. O homem civilizado tem tanto medo do
“crimen laesae maiestatis humanae” [crime de lesa majestade humana] que, sempre que possível, retoca
posteriormente os fatos da maneira descrita, para dissimular a sensação de uma derrota moral sofrida. Seu
orgulho consiste, evidentemente, em acreditar na própria autonomia e na onipotência de seu querer, e, em
desprezar aqueles que são logrados pela simples natureza” (JUNG, 1988, p. 24, § 48).
188
duvida que na investigação simbólica do Opus, a alquimia aponta a solução para um quarto
elemento de natureza feminina-terrestre e, atrás dela, toda a psique arcaica e todo o mundo
arquetípico entram em contato direto com a consciência, impregnando-a de influências
arcaicas; portanto esta instância procede de uma tradição que se estende muito mais
profundamente tanto do ponto de vista histórico como psicológico:
Nos sonhos modernos, a quaternidade é uma criação do inconsciente, muitas vezes é
personificado pela anima, uma figura feminina. Ao que parece o simbolo da
quaternidade provém dela. Assim, pois, ela seria a matriz, a terra-mãe da
quaternidade, uma Theotokos ou Mater Dei (Mãe de Deus), do mesmo modo pelo
qual a terra foi considerada como a mãe de Deus (…) (JUNG, 1999 [B], p. 68, §106).
Os simbolos arquetípicos da totalidade, como o terceiro mediador, provém tanto da
consciência como do inconsciente, sendo capaz de unir ambas as partes. A conscientização
deste processo arrasta consigo o “quarto”, devido à contaminação com a função inferior,
constituindo por conseguinte uma certa mediação com a obscuridade do inconsciente.
Segundo Jung, “a interpretação herética do Espírito Santo como Sophia corresponde a esta
realidade psicológica (...). Sem dúvida foi esta associação que levou ao Espírito Santo a
suspeita de feminilidade” (Idem, 1991[A], p. 164, § 192). Sendo assim, o Espírito Santo, o
mediador do nascimento na carne, que possibilita a manifestação visível da divindade
luminosa na escuridão da matéria, também foi associado ao femininino. Segundo Jung:
A qualidade de mãe era originariamente um atributo do Espírito Santo, que um grupo
de cristãos dos primeiros tempos chamou de “Sophia- Sapientia”. Não era possível
extirpar de todo esta propriedade feminino, e ela perdura ligada, pelo menos ao
símbolo do Espírito Santo: a columba spiritus sacti (a pomba do Espírito Santo)
(Idem, 1999 [B], p. 78, §126).
Como se sabe, qualquer conteúdo que transcenda a consciência, segundo o qual não há
uma possibilidade de apercepção gera um símbolo paradoxal. O inconsciente luta em
significar um conteúdo inconsciente para o qual nao há entendimento no plano da
consciência. Sendo assim, “são justamente as antinomias impressionantes da simbólica do
Espírito que provam existir uma complexio oppositorum (uma união dos contrários) no
Espírito Santo” (Idem, 1999 [A], p. 74, § 277). Com a intervenção do Espírito na vida dos
homens, estes são inseridos no processo divino e, consequentemente, também no princípio da
individuação. Entretanto, sob a ótica do mediador Mercurius, nota-se que, como a Tríndade,
“também a tríade alquímica é uma quaternidade disfarçada; provém isso da duplicidade da
figura central: Mercúrius de uma parte se divide em metade masculina e em outra feminina”
189
(Idem, 1997, p.178, § 229). Sobre isso, Jung expõe o seguinte esquema em Mysterium
Coniunctionis
9
:
Mercurius Lapis - masculino Espírito Santo (Pomba)
Sulphur Sal Cristo Deus Pai
Mercurius Serpente -feminino Maria
Apesar da duplicidade evidente de Mercúrio, o filho como mediador reúne o um ao
três; e por isso, é uno e trino, (corpo, espírito e alma), isto é, sulphur (enxofre), sal e
Mercúrio; e, muitas vezes é representado como uma serpente tricéfala, aludindo o seu
compromisso com o mundo ctônico. Trata-se de uma quaternidade, na qual o quarto
elemento, é ao mesmo tempo a unidade de todos. De qualquer modo, acrescenta Jung,
Mercurius se comporta não apenas como a contraparte de Cristo, (na medida em que é
‘filho’), mas também como contraparte da Trindade de um modo geral, na medida em que é
interpretado como triunidade ctônica” (Idem, 2003, p. 218, § 271). De qualquer modo, o
mercúrio sempre foi designado como “quadratus” (quadrado), a substância arcana que
promove a transformação da Lapis e, pela qual a meta é realizada:
Embora Mercurius seja considerado trinus et uno (trino e uno) em muitos textos, isto
empede que ele tenha uma participação intensa na quaternidade da lapis, com a qual
se identifica essencialmente. Ele exemplifica pois o estranho dilema reprsentado pelo
problema do três e do quatro. Trata-se do conhecido e enigmático Axioma de Maria
Profetisa (Ibidem, p. 219,§ 272).
É importante ressaltar que estas são representações coletivas que desde os primórdios
permitiram a ligação entre o consciente e o inconsciente. A evolução dessas grandezas
simbólicas corresponde a um processo de diferenciação da consciência humana, que como
fatores autônomos (árquétipos) são resultado da intervenção de um dinamismo de caráter
transcedental. Os alquimistas sabiam que a Arte era, em parte natural e, em parte divina.
Neste ponto estava toda a dificuldade. Os antigos também sabiam que uma virgem conceberia
9
Jung acrescenta sobre a duplicidade da figura central:'“... e de outra parte ele é também o dragão venenoso e o
lapis celeste. Está perfeitamente claro que aqui o dragão é análogo ao demônio e o lapis a Cristo, de acordo com
a concepção cristã de que o demônio é o adversário de Cristo. Acresce que não é apenas o dragão que se
identifica com o demônio, mas também o aspecto negativo do sulphur, ou o sulphur comburens, como Glauber
diz do sulphur: ‘O verdadeiro e preto demônio do inferno, que não pode ser vencido por nenhum outro
elemento, a não ser pelo sal’. Em correspondência com isso o sal é uma “substância ‘luminosa’ e semelhante ao
lapis (...)” (Idem, 1997, p. 178, §229). Confira o esquema proposto em JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 179, § 230-231.
190
e daria luz a à si própria. Nisso está incluído toda a compreensão do Opus, cujo o símbolo da
famosa serpente ouroboros desenhada no manuscrito alquímico de Cleópatra do 1° século
D.C. encontrou sua maior expressão. O segredo reside, Jung conclui, “no fato de que só tem
vida aquilo que por sua vez pode suprimir-se a si mesmo” (Idem, 1991 [A], p. 82, § 93).
V. 1. Paul Tillich e Carl Jung
Essa discussão em torno do símbolo da quaternidade alquímica traz uma contribuição
para o estudo do religioso no campo simbólico. Entre os estudiosos desta área destaca-se Paul
Tillich. Professor alemão de filosofia e teologia, Tillich juntamente com Jung são os dois dos
maiores apologétas da religião do século vinte. Os dois perceberam que a religião
rapidamente se desacreditava nas culturas deste século. Para Tillich, no ocidente, a aliança
peculiar entre as forças científicas, filosóficas e religiosas era responsável pelo sentido do
religioso ter sido, aos poucos, abandonado até chegar à quase extinção na metade do século,
culminando em um estado da humanidade, reduzida ao racionalismo estéril. Tillich buscava
salvaguardar as profundesas humanas presentes na experiência religiosa; para ele a
experiência universal originária de todas as religiões particulares fundamenta-se no próprio
espírito humano. Sendo assim, a teologia que admite a dinâmica vital no indivíduo como
necessário elemento em sua expressão pessoal devia estar aberta à dimensão de profundidade,
do ser e do sentido, que é, em categorias teológicas, o Espírito. A recuperação dessa base, o
único verdadeiro alívio da ansiedade de existência, foi chamada por Tillich de
“essencialização” e atribuída a esse processo, a questão da salvação, intimamente associada
ao trabalho do Espírito Santo.
Da mesma maneira e pelas mesmas razões, a análise que Jung faz da situação religiosa
contemporânea tem muito em comum com a de Tillich. Para Jung, a transformação histórico-
universal da consciência para o lado “masculino” é, em primeiro lugar compensada pelo
inconsciente ctônico-feminino. Neste sentido, o processo, em si positivo, da emancipação do
ego e da consciência diante da supremacia do inconsciente, tornou-se negativo no
desenvolvimento ocidental, porque há um poderoso outro lado que resiste ao processo. Assim
como Tillich, Jung achava que as discussões teológicas não tinham a experiência imediata do
divino e, sua intenção, consistia em religar a consciência deteriorada da cultura
contemporânea espiritual, teológica e filosóficamente, com o poder e a presença do divino em
suas profundesas. Para Jung, a insensibilidade ao poder do inconsciente privava o ser humano
do acesso ao poder numinoso; esta dimensão de profundidade, do ser e do sentido, que é em
191
categorias teológicas, o Espírito significava para ele, a articulação da consciência do ego à
totalidade superior, à qual não se pode chamar de “Eu”, mas é visualizada melhor como uma
entidade mais ampla.
Sobre este aspecto, ao considerar a contribuição de Paul Tillich e Carl Jung ao diálogo
religioso atual entre as culturas, John Dourley, sacerdote católico, doutor em Filosofia e
diplomado em Psicologia Analítica pelo Instituto C. G. Jung de Zurique, em seu artigo Tillich,
Jung e a Situação Religiosa Atual, assegura que os dois “diagnosticaram os males de sua
época situando-os nas rupturas do humano resultantes de sua redução à consciência separada
de suas bases bem como das energias que possibilitariam o seu renascimento e renovação”
10
.
Além deste aspecto, Tillich, como Jung, valorizou altamente o símbolo. Todo símbolo
religioso, afirma Tillich, em seu trabalho Teologia Sistemática, “se nega a si mesmo em seu
sentido literal, mas afirma-se a si mesmo em seu sentido auto-transcendente” (TILLICH,
2000, p. 252). Neste sentido, assim como Jung rebela-se contra as teologias contemporâneas
incapazes de entender o simbólico como a expressão fundamental da experiência religiosa,
Tillich considera que a humanidade contemporânea é levada a escolher entre duas formas
incompletas: De um lado, a exigência teológica da fé literal anula a mente dos que percebem a
natureza simbólico-mítica das expressoes fundamentais da fé; por outro lado, separada de sua
unidade essencial com Deus, a razão existencial só pode ler sua profundidade por meio da
linguagem do símbolo e do mito. Desta maneira, conclui Dourley, “o crente religioso e o
devoto da razão são igualmente cortados da plena humanidade e deixam de participar na
experiência do divino inatamente presente em suas profundezas”
11
.
Sobre este aspecto e relevância do simbólico no fenômeno religioso, Jung em sua obra
Interpretação Psicológica do dogma da Trindade aborda justamente o mais sagrado dos
símbolos cristãos, isto é, o dogma da Trindade, como objeto de investigação psicológica por
estar convencido do seu valor psicológico. Para Jung, o símbolo central do Cristianismo, a
Trindade, significa a essência de um processo que se desenvolve em três etapas que podem
ser consideradas, por um lado como um processo secular de tomada de consciência e por
outro, como “fases de um amadurecimento inconsciente no interior do indivíduo” (JUNG,
1999 [A], p. 82, §287). Segundo Jung, a realidade psicológica do dogma da Trindade consta
dos seguintes termos: Pai, Filho e Espírito Santo. Analogamente à inconsciência original, ou
10
DOURLEY, John. Tillich, Jung e a Situação Religiosa Atual. Trad. de Jaci Maraschin. (s.d.) Acesso em:
http://www.metodista.br/correlatio/num_01/a_dourle.htm.
11
Loc. cit.
192
ao estágio urobórico inicial de Neumann, o Pai determina um estágio cultural incapaz de
reflexão
12
:
Em geral, o Pai representa o estagio primitivo da consciência, o estágio ainda infantil,
quando se depende ainda de uma forma de vida preexistente, de um habito que tem o
carater de lei. É um estágio que se aceita passivamente, um estado de não-reflexão,
puro conhecimento de um fato onirico, sem que haja um julgamento intelectual ou
moral. Isto se aplica tanto no plano individual como no coletivo (Ibidem, p. 69, §
270).
A "transformação do Pai no Filho", da unidade na dualidade, do estado de irreflexão
no da crítica, se verifica no momento em que começou a crítica do mundo pelos gregos, na
época da gnose em seu sentido mais amplo e da qual surgiu o Cristianismo. Segundo Jung, a
clássica pergunta sobre a origem do mal ainda não existia na era do Pai. Só com o
Cristianismo é que se colocou o problema relativo ao princípio das disposições morais. Junto
com a discriminação entre o ego e o outro, natureza e espirito, vem a consciencia moral dos
opostos bem e mal. No estágio do filho, começa o processo da reflexão e a quebra da unidade
original
13
:
Se Deus se revela e se converte num ser determinado, isto é , num determinado
Homem, então os seus contrários deveriam dissociar-se: de um lado o Bem e do outro
o Mal. Desfizeram-se assim as oposições latentes na divindade quando o Filho foi
gerado, para manifestarem-se depois na oposição Cristo-Diabo. (...) O mundo do
filho é o mundo da cisão moral, sem a qual a consciência humana dificilmente teria
podido conseguir aquele progresso na diferenciação espiritual a que realmente
chegou (Ibidem, p. 63, § 259).
Jung considera que no Cristianismo, o simbolo paradoxal, o terceiro mediador que
completa a tríade e termina com o estado de dualidade e crítica do estágio do Filho, não é uma
figura humana, nem caráter definitivo, mas espírito, isto é o Espírito Santo
14
. A vida, segundo
12
Análogo ao primeiro estágio, isto é, ao ego identificado ao Si-mesmo, na alquimia o caos da prima materia,
reflete um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo.
13
De modo análogo, o segundo estágio, ou seja, o ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de
superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos
animais do inconsciente por ocasião da albedo, alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo,
havendo saído da unidade inconsciente, indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade.
14
Análogo ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade da
substancia ou promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo; o terceiro elemento
comum entre o Pai e o Filho, o Espírito Santo, enquanto representação coletiva, originado por conteudos
arquetípicos, significa uma eliminação da dualidade no estágio do Filho e um retorno ao Pai. Sobre possível
argumento do ponto de vista teológico, de que o espírito de Deus já estava presente parirando sobre as águas na
gênese, e portanto não corresponderia ao papel de terceiro mediador, é necessário afirmar que, do ponto de vista
da alquimia este fato retrata o estado caótico da matéria, como se observa na citação de Eirenaeus Philaletha em
seu tratado A entrada aberta ao palácio fechado do rei, no quinto capítulo intitulado “ O chaos dos sábios”:
193
Jung, “sempre extrai da tensão da dualidade um terceiro elemento desproporcional e
paradoxal. Por isso na qualidade de "tertium" o Espírito Santo é necessariamente
desproporcional e paradoxal” (Ibidem, p. 47, § 236). Esse terceiro estágio significa a
articulação da consciência do ego à uma totalidade superior e, até mesmo uma subordinação à
este
15
. Aqui costuma falhar o intelecto com sua lógica, pois em uma oposição lógica não
existe um terceiro termo. O que traz a solução somente pode ser de natureza paradoxal
16
:
Ele é psicologicamente heterogêneo, por não derivar logicamente da relação Pai-
Filho, mas pelo fato de só poder ser entendido, como representaçõa, à base de um
processo de reflexão humana. Na verdade, trata-se de um conceito “abstrato”, pois
uma espiração comum a duas figuras diversamente caracterizadas e não permutáveis
dificilmente poderia ser considerada comum fato evidente (Ibidem, p. 48- 49,§ 237).
Essa discussão em torno do mais sagrado dos símbolos cristãos, isto é, o dogma da
Trindade, como objeto de investigação psicológica também remete à Paul Tillich. Tillich se
aprofundou no significado dos símbolos cristãos que se tornaram cada vez mais problemáticos
dentro do contexto cultural deste tempo. Segundo Tillich, as oposições da humanidade
solucionam-se por meio da participação na Trindade. Há um paralelo para o pensamento
junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial primordial
expresso no dinamismo da vida trinitária. Sobre este aspecto considera Dourley:
A humanidade essencial, pessoal e universal, fundamenta-se na Trindade,
especificamente no Logos que é a base do eu essencial individual tanto no tempo
como na eternidade. À medida que o indivíduo sai do eu essencial para a existência no
momento da criação, deixa também a sua realidade essencial que estava na Trindade e
passa a participar nas ambigüidades e fragmentações da vida existencial. (...). O ser
humano existencial, em virtude da experiência ou memória do eu essencial, intui
imediatamente a queda ou separação do ser essencial e percebe a própria alienação.
Essa alienação em face do eu essencial baseia-se no eros ou na pulsão em busca da
recuperação plena. O objeto universal da experiência religiosa humana universal bem
como o objeto da preocupação suprema universal (que também pode ser chamada de
“Que o filho dos filósofos, unânimes em concluir que esta obra deve ser comparada à criação do Universo. Pois
no princípio, Deus criou o céu e a terra, e a terra era vazia e deserta, e as trevas cobriam o abismo, e o espírito de
Deus era levado sobre as superfícies das águas” PHILALETHA, Eirenaeus. A entrada aberta ao palácio fechado
do rei. (s.d.). Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm.
15
Jung, na carta dirigida à Victor White, acrescenta sobre esta fase do conflito: “ ... quanto mais estiver
envolvida nesta guerra e nestas tentativas de paz, ajudada pela anima, tanto mais começará a olhar pra frente,
para além do éon cristão, para a unidade do Espírito Santo. Ele é o estado pneumático que o criador alcança
através da fase da encarnação. Ele é a experiência de todo indivíduo que sofreu a completa abolição de seu ego
através da oposição absoluta (...)” (JUNG, 2002 [B], p. 305).
16
Dourley analisa a interpretação psicológica da Trindade, do ponto de vista Junguiano e, considera: “Em seu
ensaio sobre a Trindade Jung elogia o símbolo e a sabedoria de sua história conciliar ao descrever o movimento
básico da psique entre o inconsciente, que é o mundo do Pai, o consciente, o do Filho, Logos ou razão
discernente, e o Espírito, poder do eu que une o Pai e o Filho, o inconsciente com o consciente. Sem esses três
elementos a psique ficaria patologizada com o ego imerso no inconsciente ou separado dele” Loc. cit.
194
fé) é a recuperação do eu essencial do qual estamos todos alienados na
existência.(...)
17
Desta forma, Tillich considera que a teologia que admite a dinâmica vital no indivíduo
como necessário elemento em sua expressão pessoal deve saber que ela tem aceitado a vida
dentro da ambigüidade divina-demoníaca e isto é triunfo da Presença Espiritual
18
. A Presença
espiritual (uma racionalização da doutrina teológica do Espírito Santo) seria, neste sentido,
para Tillich, a fórmula para a recuperação do eu essencial primordial expresso no dinamismo
da vida trinitária. Sendo assim, a Presença Espiritual, segundo Tillich, “é, então, o primeiro
símbolo que expressa a vida-sem-ambigüidade” (TILLICH, 2000, p. 467). Sobre este aspecto,
conclui Dourley:
... A vida, para Tillich, significa a experiência de opostos em tensão que se dirigem
para a resolução. Em páginas inspiradas em Jacob Bohème, Tillich demonstra a
intuição natural humana de Deus combinada com o poder escuro e tremendo do
primeiro momento da vida divina com a luz do segundo para se resolver no terceiro,
que é o Espírito. Segundo Tillich, o Ser é vivo, e o movimento da consciência
existencial na direção de seu fundamento para a recuperação do eu essencial é, ao
mesmo tempo, o movimento, embora fragmentado, na direção da resolução dos
principais conflitos da vida que Deus já providenciou desde a eternidade. Esse
movimento dirige-se sempre para o fundamento de cada pessoa onde o poder da
Trindade, aí presente, age na vida existencial para a sua integração.
19
Neste ponto, Jung e Tillich, assim, compartilham versões semelhantes da experiência
ligadas à integração dos opostos no ser individual. A primeira dessas afinidades é o uso que
fazem do antigo princípio da unio oppositorum. Sobre este aspecto, Dourley considera que os
dois pensadores entendem o princípio da união dos opostos em seu sentido mais profundo e
abrangente que é a da união da consciência com sua origem ou matriz
20
. Para Tillich, segundo
17
Loc. cit.
18
Tillich acrescenta: “... Aquele que tenta evitar o aspecto demoníaco do sagrado perde igualmente o aspecto
divino e lucra apenas uma segurança enganadora entre eles. A imagem da perfeição é o homem que, no campo
de batalha entre o divino e o demoníaco, vence o demoníaco, embora fragmentária e prolepticamente (isto é, em
antecipação). Essa é a experiênciaem que a imagem da perfeição sob o impacto da Presença Espiritual
transcende o ideal humanista de perfeição” (TILLICH, 2000, p. 568).
19
Loc. cit.
20
Além desta união mais geral de opostos, Dourley acrescenta: “...os dois pensadores entendem a reunificação
da consciência com sua fonte para unir, mesmo se de forma ambígua, as divisões ou fragmentos da própria
consciência existencial. Tillich elabora essa unidade da fragmentação existencial por meu de seu entendimento
trinitário de Deus. A Trindade para ele representa a unidade suprema dos opostos em cuja vida as dimensões de
poder, profundidade ou abismo da vida se unem com sua expressão no Logos por meio do Espírito. À medida
que essa vida existencial participa em seu fundamento trinitário, ela frui, embora parcialmente, a unidade de
opostos que a vida divina possui desde a eternidade.(...). Ao reunir tais opostos por meio do Espírito que induz
maior participação na Trindade, Tillich entende que a teleologia do Espírito divino leva o espírito humano a se
unir nos níveis da moral, da cultura e da religião” Loc. cit.
195
o autor, “tal união se dá entre a humanidade existencial e sua realidade essencial no seu
fundamento divino. Para Jung, é a união entre o mundo consciente do ego e sua fonte nas
profundezas do psiquismo”
21
.
Voltando ao símbolo central do Cristianismo, a Trindade, para Jung, significa a
essência de um processo que se desenvolve em três etapas que podem ser consideradas como
um processo secular de tomada de consciência. No conceito cristão da Trindade encontramos
a interpenetração mediante o qual o Pai aparece no filho, o Filho no Pai, o Espírito Santo no
Pai e no Filho, ou estes dois naquele, em sua qualidade de Paráclito, pois nesta perspectiva,
“as Três Pessoas divinas são personificações das três fases de um acontecimento psíquico
regular e instintivo” (JUNG,1999 [A], p. 82, § 287 ). O motivo do símbolismo trinitário na
trindade cristã é apenas um exemplo disso. Jung também descreve trindades babilônicas e
egípcias. Sobre este aspecto, Edinger também assegura uma tendência na humanidade no
sentido de conceber a divindade como tendo natureza trinitária e, ao analisar estas imagens
trinitárias, acrescenta:
... Essas imagens trinitárias podem referir-se a divindades funcionais ou de processo,
em oposição a divindades estruturais. Em outras palavras, elas seriam personificações
do dinamismo psíquico em todas as suas fases. Desse ponto de vista, uma trindade
poderia exprimir a totalidade, tal como o faz a quaternidade, mas a representação
trinitária teria uma natureza completamente diversa da representação quaternária. No
primeiro caso, a totalidade abranderia as várias fases dinâmicas de um processo de
desenvolvimento; no segundo, seria uma totalidade de elementos estruturais. Três
simbolizaria um processo; quatro, um alvo (EDINGER, 2000, p. 249-250).
Tillich também analisa os motivos do símbolismo trinitário e, principalmente com
relação ao número três implícito na palavra trindade, o autor observa que “é o conflito
possível entre essas figuras e a ultimacidade daquele que é último que motiva o simbolismo
trinitário em muitas religiões (...)” (TILLICH, 2000, p. 601). Sendo assim, Tillich se
preocupou com a razão de se conservar esse número e, segundo o autor, “essas questões tem
um fundamento histórico bem como sistemático” (Ibidem, p. 608). A diferença neste
pensamento para a concepção junguiana é que, para este segundo, trata-se de um padrão
arquetípico. Nesta concepção, Tillich não estaria equivocado, pois se associarmos os
arquétipos ao contingente, este último assume o aspecto específico de uma modalidade que
tem o significado funcional de um fator constitutivo de mundo. Novamente, nesta concepção,
Tillich estaria correto ao afirmar que “ os simbolismos trinitários são uma descoberta que
tinha que ser feita, formulada e defendida” (Ibidem, p. 601). Sendo assim, a substância de
21
Loc. cit.
196
todo pensamento trinitário, assegura Tillich, “está dada em experiências revelatórias, e, a
forma tem a mesma racionalidade que toda a teologia, como deve ter toda a atuação do
Logos” (Ibidem, p. 603). O fato de Tillich ter associado o pensamento trinitário à experiências
revelatórias, na concepção junguiana, se atribui este caráter revelador à autonomia das
projeções arquetípicas, pois são fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e, por
isso podemos atribuir-lhes uma certa autonomia. Portanto esta instância procede de uma
tradição que se estende muito mais profundamente tanto do ponto de vista histórico como
psicológico e, embora seja óbvio que a presença desse conceito seja fruto de uma reflexão
humana, tal reflexão não constitui necessariamente um ato consciente
22
. Sobre este aspecto,
acrescenta Jung:
... Ela pode muito bem provir de uma “revelação”, isto é, de uma reflexão
inconsciente, fruto de uma atividade autônoma do inconsciente, ou melhor, do Si-
mesmo, cujos símbolos, como vimos, não podem ser separados das imagens de Deus.
É por isso que a interpretação religiosa insistirá na revelação divina desta hipótese,
contra a qual a psicologia nada pode objetar, embora se atendo firmemente à sua
natureza inteligível; pois afinal de contas a Trindade é o resultado de um paulatino e
assíduo trabalho do espírito, ainda que predeterminado pelo arquétipo intemporal
(JUNG, 1999 [A], p. 48, §237).
Neste sentido, Jung atribui à Trindade a forma mais completa do respectivo arquétipo,
ou seja, a manifestação gradativa de um arquétipo, no decurso do tempo, “que organizou as
representações antropomórficas de Pai, Filho, Vida, Pessoas distintas, numa figura arquetípica
numinosa, ou seja, a “Santíssima Trindade” (Ibidem, p. 39, § 224). Em outras palavras, a
tríade é o desdobramento do uno, e, segundo Jung, “sua transformação num conjunto
cognoscível” (Ibidem, p. 8, § 180). Embora a presença desse conceito seja fruto de uma
reflexão humana, tal reflexão não constitui necessariamente um ato consciente, mas sim
“como um processo coletivo que se prolonga ao longo de séculos, isto é, um processo de
diferenciação da consciência que se estende por milênios” (Ibidem, p. 68, § 268). Sendo
assim, com relação ao arquétipo da trindade, este parece estar ligado à um esquema
ordenador, pois quando lidamos com “eventos temporais ou ligados ao desenvolvimento,
parece haver uma tendência arraigada de carácter arquetípico, a organizar eventos em termos
de um ritmo ternário” (EDINGER, 2000, p. 247). Neste sentido, os símbolos trinitários
22
Jung acrescenta: “Se as representações da Trindade nada mais fossem do que sutilezas da razão humana, talvez
não valesse a pena mostrar todas as conexões sob uma luz psicológica. Mas sempre defendi o ponto de vista de
que essas representações pertencem à categoria da revelação. (...) A revelatio, é em primeira instância, uma das
descobertas da alma humana, a ‘manifestação’ em primeiro lugar de um modus psicológico que como se sabe,
além disto, nada nos diz acerca do que ela poderia ser” (Idem, 1999 [B], p. 78, § 127).
197
estariam ligados à associações dinâmicas e não estáticas e, implicariam em crescimento,
desenvolvimento e movimento no tempo. Nesta concepção, o que inicialmente parece apenas
um esquema ordenador, de organização e diferenciação da consciência, “se mostra como
veículo de síntese, na qual culmina o processo de individuação” (JUNG, 1999 [A], p. 78, §
281). Desta maneira a síntese se faz pelo movimento ternário, pois, o número três representa,
segundo Edinger, “a totalidade do ciclo de crescimento e de mudança dinâmica conflito,
resolução, e mais uma vez, conflito. Logo de acordo com a fórmula trinitária, a tese três e a
antítese quatro devem ser resolvidas numa nova síntese” (EDINGER, 2000, p. 253-254). Este
processo de separação e de reconhecimento, ou de atribuição de propriedades, assegura Jung,
“é uma atividade intelectual que, embora inicialmente se desenvolva de maneira inconsciente,
passa gradativamente à consciência, à medida em que vai se realizando” (JUNG, 1999 [ A], p.
48, § 238). Sobre este aspecto, também Tillich, analisa os motivos do símbolismo trinitário e,
assegura:
...os símbolos trinitários são dialéticos; eles refletem a dialética da vida, a saber, o
movimento de separação e reunião. (...) Se significa a descrição de um processo real,
não é paradoxal ou irracional de nenhuma maneira, mas é uma descrição precisa de
todos os processos da vida. E na doutrina trinitária é aplicado à vida divina em
termos simbólicos (TILLICH, 2000, p. 602).
Entretanto, com relação ao símbolo central do Cristianismo, a Trindade, Jung constata
que, se entendermos a Trindade como um processo em três etapas, este processo deveria
prolongar-se até chegar à totalidade absoluta, isto é, no símbolo quaternário
23
. Isso significa
que a Trindade, agora enquanto símbolo da totalidade (não mais como um processo e um
dinamismo psíquico em todas as suas fases), é quaternária e, por isso, falta o quarto elemento,
o qual tem sido associado ao demônio: o ctônico, o institual, o feminino, que representa a
parte condenável do cosmo cristão
24
. Jung percebeu que a cultura perdera a alma ao perder
23
A quaternidade é, segundo Jung, “o pressuposto lógico de todo e qualquer julgamento de totalidade” (Idem,
1999 [A], p. 55, §246). Este fato parece estar ligado também ao quatérnio espaço-tempo, que segundo Jung, “é a
condição e a possibilidade arquetípica do conhecimento físico em geral” (Idem, 1988, p. 241, §398). aion). Em
ambos os casos, o quarto fator, “representa algo de incomensuravelmente diverso, o qual entretanto, é necessário
para determiná-los, um em relação ao outro” (Idem, 1988, p. 240, §397).
24
A associação do diabo com a terra provêm do fato de que este como anjo “caiu do céu a modo de um
relampago” e se tornou senhor deste mundo. A matéria é a verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu
inferno e o fogo de sua fornalha no interior da terra .Especialmente, Gerardus Dorneus “acha que o demônio, por
ocasião da queda dos anjos, ‘in quaternariam et elementariam regionem decidet’ (foi precipitado na região da
quaternidade e dos elementos)” ( DORNEUS, p. 65, § 104 In: JUNG, 1999[B]).Na alquimia, não se mencionava
abertamente o princípio do mal, “mas este parecia no carácter venenoso da prima materia, assim como em outras
alusões” (JUNG, 1999 [B], p. 68,§107). Além disso, a prima materia é saturnina, e “o maleficus Saturnus é a
morada do diabo, ou ainda ela á a coisa mais desprezível e abjeta”(Idem, 2003, p. 171, § 209). Já a associação
do demônio ao feminino provêm do número binário, que é o secreto parentesco entre o diabo e a mulher. Fato
198
contato com as suas profundezas. Acreditava que a experiência religiosa aparece na
consciência a partir das profundesas da psique. Sobre este aspecto, Dourley considera que a
crítica cultural de Jung é, na verdade, contra a consciência patriarcal e seus efeitos
reducionistas. Para ele, assegura Dourley, “a recuperação do senso religioso vivo significava a
recuperação da fonte da razão, que era a Deusa, que cria e recria a consciência a partir de seus
fundamentos”
25
. Dourley ao analisar o ensaio de Jung sobre a Trindade, observa que o
inconsciente, que fez nascer o mito cristão, quer agora exceder-se num quarto mito:
Esse novo mito honraria o símbolo do andrógino no qual o masculino e o feminino
recuperam a oposição que estava faltando, primeiramente na base intra-psíquica.
Também a oposição entre o espírito e a terra seria superada. Neste contexto, Jung
sentiu-se impressionado pela doutrina da Assunção que lhe pareceu simbólica não
apenas da restauração da Deusa na trindade cristã mas também da divindade da terra
e do corpo por meio dos quais Deus nasce na consciência humana.
26
Além disso, Jung observa que, por um lado, a declaração da Assunção de Maria como
dogma aponta para a realização do hierógamos no pleroma, isto é, realiza a união no céu com
seu corpo originário e, isto ocorre, para a glória eterna. Por outro lado, o nascimento do
Salvador se dá no homem, no decurso do tempo; sendo assim, Jung conclui que a união
nupcial constitui a etapa preliminar da encarnação, isto é, do nascimento daquele Salvador
este que Dorneus descobre com grande astúcia: Dorneus observa que na tarde do segundo dia da criação, depois
de haver separado as águas superiores das inferiores, Deus não disse que “era bom”, tal como nos outros dias. E
isto, “precisamente porque no segundo dia Deus criou o Binárius, que é a origem do Mal”. (JUNG, 1999 [A], p.
61, § 256). Segundo Jung, Dorneus é o primeiro a mostrar a discrepância que há entre a trindade e a
quaternidade, entre Deus, enquanto espírito, e a natureza empedocliana, cortando, com isso, o fio vital da
projeção alquimista. Jung assegura que para este autor, a emancipação da dualidade deu origem à desorientação,
à separação e às desavenças. Do binário surgiu ‘sua prole quaternária’. Como a dualidade é feminina, significa
Eva, enquanto que a tríade corresponde a Adão. Por isso o diabo tentou Eva em primeiro lugar. Sendo assim,
Dorneus oferece uma descrição minuciosa da operação simbólica mediante a qual o demônio criou a “serpente
dupla” (dualidade) de quatro chifres (quaternidade):“Ele (o diabo), cheio de astúcia, sabia com efeito que Adão
fora assinalado com a marca do um; por isso não o assediou em primeiro lugar, pois não tinha a certeza de que
poderia conseguir algo. Mas sabia também que Eva tinha sido separada de seu marido, à semelhança do número
binário que se separa da unidade do número três. Por isso, apoiado numa certa semelhança do número dois com
o número um ... decidiu atacar a mulher. Efetivamente, todos os números pares são femininos e sua base é o
número dois, correspondendo Eva a este primeiro número (par)” DORNEUS, Gerardus. De Tenebris contra
Naturam et Vita Brevi; In: TheatrumChemicum, 1602, I, p. 527. Apud: JUNG, C.G. Psicologia e religião. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 1999 [B], p. 65, §104, nota 48. Neste sentido, assim como o Diabo se caracteriza pela sua
oposição e, pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo que a desobediência caracteriza o pecado
original, foi principalmente pelo pecado original e pela sedução da mulher que a morte entrou no mundo. Jung
acrescenta: “O inconsciente do homem também é feminino e personificado pela anima. Esta última representa
sempre a ‘função inferior’ e por isso constitui não raro um caráter moral duvidoso; às vezes representa o proprio
mal. Geralmente é a quarta pessoa (...). É o ventre materno, escuro e temido, e enquanto tal, de natureza
ambivalente” (JUNg, 1991 [A], p. 162, § 192).
25
Loc. cit.
26
Loc. cit.
199
que por sua vez, se refere ao futuro nascimento do menino divino
27
que, “em virtude da
tendência divina a encarnar-se, escolherá o homem empírico para nele se realizar. Este
acontecimento metafísico é conhecido como processo de individuação” (JUNG, 2001, p. 110,
§755). Sobre este aspecto, ao comentar que a Trindade se transforma em quaternidade, com o
acréscimo de uma quarta pessoa, a saber, a Rainha, Jung assegura que a quaternidade e o
círculo, de um lado, e o ritmo ternário, de outro, se interpenetram de um modo que um se acha
contido no outro. Desta maneira, portanto a quaternidade “aparece como conditio sine qua
non do nascimento de Deus e portanto da vida interna da trindade, em geral” (JUNG, 1999
[B], p. 77, § 125). Sobre este aspecto concorda Edinger, pois o quatro, ou a totalidade
psíquica, deve ser realizado, segundo o autor pela sua “submissão ao processo ternário de
realização no tempo. Devemos nos submeter à dolorosa dialética do processo de
desenvolvimento. A quaternidade deve ser complementada pela trindade" (EDINGER, 2000,
p. 256). Neste sentido, como a individuação, na realidade, jamais está verdadeiramente
completa, “cada estágio temporário de completude ou totalidade deve ser submetido, uma vez
mais, à dialética da trindade, para que a vida continue” (Ibidem, p. 259). Sobre este aspecto,
Tillich, analisa o motivo do símbolismo trinitário e, assegura, que o simbolismo trinitário é
dialético pela persistência do número “três” nas fórmulas devocionais e, no pensamento
teológico:
Esses fatos mostram que não é o número “três” que é decisivo no pensamento
trinitário mas a unidade numa multiplicidade de automanifestações divinas. Se
perguntarmos porque, apesar dessa abertura a números diferentes, prevaleceu o
número “três”, parece muito provável que o três corresponde à dialética intrínseca da
vida experienciada e, portanto, é o mais adequado para simbolizar a Vida Divina. A
Vida foi descrita como sendo o processo de saída de si e o retorno a si mesma. O
27
A união nupcial consumada no tálamo celeste exprime o hierógamos que, por sua vez, constitui a etapa
preliminar da encarnação, isto é, segundo Jung, “do nascimento daquele Salvador que desde a antiguidade
clássica era considerado como um ‘filius solis et lunae, filius sapientiae’, correspondente a Cristo. Ora se o
desejo de que a Mãe de Deus fosse glorificada estava presente no coração do povo, é indício de que esta
tendência, em suas últimas consequências, exprime o anseio profundo de que nasça o Salvador, um
pacificador,(…). Embora Ele tenha nascido no pleroma, antes de todos os tempos, o seu nascimento só pode
realizar-se no tempo, quando percebido, conhecido e proclamado (declaratur) pelo homem” (JUNG, p. 105). A
divindade de Jesus, rejeitada por três concílios, o mais importante dos quais foi o de Antióquia (269), foi, em
325, proclamada pelo de Nicéia, nestes termos:"A Igreja de Deus, católica e apostólica, anatematiza os que
dizem que houve um tempo em que o Filho não existia, ou que não existia antes de haver sido gerado." Paul
Tillich, em seu trabalho Teologia Sistemática, aponta para uma Unidade inquebrantável entre Jesus e Deus: “A
história do nascimento virginal faz remontar essa unidade até o próprio início e mesmo além dele, até seus
antecessores. O símbolo de sua pré-existência dá a dimensão eterna, e a doutrina do Logos que se tornou
realidade histórica (carne), aponta para para aquilo que foi chamado “Encarnação”. Era necessária a cristologia
encarnacional para explicar a cristologia adocionista” (TILLICH, 2000, p. 359). Sendo assim, o Logos não
desapareceu quando Jesus de Nazaré nasceu. A encarnação do Logos, conclui Tillich, “não é metamorfose mas
sua manifestação total numa vida pessoal” (Ibidem, p. 359).
200
número “três” está implícito nessa descrição, como já o sabiam os filósofos dialéticos
(TILLICH, 2000, p. 608).
Como foi observado no decorrer desta dissertação, os alquimistas encontraram assim a
solução da problemática da união simbólica do elemento animal com as mais elevadas
conquistas morais e intelectuais do espírito humano em um terceiro-mediador. Esta substancia
de dupla natureza, corpóreo-espiritual, volátil e fixa, feminina e masculina, que os sábios
chamaram o seu hermafrodita é o objetivo da opus, porque era ela que realizaria a união dos
opostos na pedra. Neste sentido, é ela que restaura a unidade da substancia, ou seja, a matéria
básica junta ao espírito na própria unidade da substância criada e imortal, o que coincide com
o conceito alquímico de Unus Mundus. O conceito de Unus Mundus como ápice do processo
alquímico, no qual o terceiro e mais alto grau da coniunctio significa a união do homem total
com o “unus mundus”, se aproxima do conceito ontológico de vida, ou melhor, do que Tillich
chama de recuperação do eu essencial primordial”; uma união final do que se tornou
verdadeiramente essencial na humanidade existencial em um certo tempo, com a vida da
Trindade na eternidade. Do ponto de vista junguiano, sem dúvida alguma, a idéia do unus
mundu, “se baseia na suposição de que a multiplicidade do mundo empírico repousa no
fundamento da unidade dele” (JUNG, 1990, p. 295, § 422). De modo semelhante, a unidade e
diversidade da vida em sua natureza essencial descreve aquilo que Tillich chama de “unidade
multidimensional da vida”. Segundo o autor, somente se for entendida essa unidade e a
relação das dimensões e reinos da vida, “poderemos analisar as ambigüidades de todos os
processos da vida de forma correta e expressar a busca da vida sem ambigüidade ou vida
eterna de forma adequada”. (TILLICH, 2000, p. 394). Sobre este aspecto, também concorda
Dourley:
A psicologia de Jung reveste-se de profundo sentido da imanência divina. No seu
trabalho descreve o ápice do processo alquímico em termos do unus mundus. Procura
descrever por meio dessa frase a consciência capaz de perceber-se a si mesma e o
meio ambiente como teofania. Por meio do processo de distanciamento do corpo e de
retorno a ele, a alma é capaz de perceber a realidade a partir do "... fundamento eterno
de todos os seres empíricos". Essa postura se parece bastante com a de Tillich. Jung
também entende que à medida que o eu encarna na consciência, esta, assim
abençoada, torna-se capaz de ver a realidade e de responder a ela a partir de sua
inserção no seu fundamento. Aí as perspectivas de Deus e dos seres humanos acabam
coincidindo.
28
28
Loc. cit.
201
Embora essas afinidades contenham em si elementos semelhantes, carregam também
diferenças irreconciliáveis. Atribuindo à realização do essencial na existência, Tillich, no
final, confessa que a realização do potencial humano no tempo, complementa a vida divina na
eternidade; sendo assim, as contradições da humanidade e a resolução das oposições que
constituem a vida, se resolvem por meio da participação na Trindade, na qual todas elas já
foram superadas desde a eternidade. Essa resolução, segundo Dourley, “pode ser verificada
fragmentariamente no tempo à medida que o ser humano participe no fluxo harmonioso da
vida trinitária que só será consumada além das ambigüidades na eternidade”
29
. Este aspecto
não coincide com o pensamento junguiano. A intimidade dialética que Jung estabelece entre o
consciente e suas fontes dentro da psique, demonstra que desde o princípio, o centro da
consciência está relacionado à matriz da totalidade; esta fonte constantemente busca uma
consciência maior na sua criatura, o consciente e, por isso, está sempre em processo de
criação. Sendo assim, para Jung, as contradições da vida nunca são definitivamente superadas,
pois o inconsciente, que busca se realizar na consciência existencial, sempre ultrapassa sua
realização na consciência. Sobre este aspecto, considera Dourley:
A sugestão de que o mundo arquetípico pudesse se completar em suas manifestações
parece-lhe impossível psicologicamente. Em vez disso, Jung imagina uma
humanidade incapaz de realizar plenamente o pleroma de sua potencialidade
arquetípica muito embora conserve o impulso dos arquétipos na direção de sua maior
realização histórica. A humanidade está obrigada a viver em constante estado de
aproximação nesse conflito entre a exigência por maior realização do arquétipo e a
impossibilidade de alcançá-la plenamente.
30
Além disso, na concepção junguiana, o processo de individuação exige a cooperação
da criatura; o eu atua para unir os opostos na consciência e é um produto dessa unidade
quando conscientemente percebida. Neste sentido, a colisão dos opostos se resolve na vida
humana, mais precisamente no eu, capaz de incluir e unir em si mesmo a totalidade da criação
como uma expressão adequada da totalidade da base divina. Portanto Jung vê a resolução
daquela contradição na consciência humana, diferentemente da concepção de Tillich, na qual
todas elas já foram superadas com a vida da Trindade na eternidade.
Conforme sucintamente esquematizado, num primeiro momento desse processo o
inconsciente, busca se tornar progressivamente consciente na consciência. A consciência
humana, uma vez criada, consegue guiar sua fonte na consciência por meio da morte na fonte
29
Loc. cit.
30
Loc. cit.
202
e da volta dessa mesma fonte
31
. Quando o ego adentra novamente o útero (ovo) cósmico, do
inconsciente da Grande Mãe e se dirige a um momento de unidade com a fonte primal da
totalidade; esse momento parece promover essa dupla integração na psique daqueles que
submergem nessa reentrada e retornam à consciência; ou seja, promove a integração dos
componentes complexos do indivíduo em direção a uma personalidade mais unificada e
portanto, revitalizada e, ao mesmo tempo, correlaciona essa personalidade com a totalidade a
partir da qual esse indivíduo emergiu. Esse processo, do ponto de vista psicológico, está bem
descrito na obra alquímica, principalmente nos três graus da Coniunctio de Dorneus.
Resumidamente no primeiro grau, tem-se a unio mentalis, que corresponde a união
(conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir a unio mentallis com
o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio, ocorre a conjunção completa, a saber, a
união com o unus mundus (mundo uno). Sendo assim, pelo processo de extração da alma do
corpo e do seu retorno à este, atinge-se o estado de consciência que os alquimistas descreviam
como unus mundus. Jung interpreta o termo para descrever um estado natural, porém
avançado de maturação psicológica, num idioma com profundas implicações religiosas. Essa
maturação psicológica e maturidade religiosa vêm de encontro não ao além da vida mas
inserida nela como objetivo da psique e da vida enquanto no corpo físico. Do ponto de vista
psicológico, esta terceira etapa da Coniunctio, segundo Jung:
... pode tratar-se, primeiro de mera “unio mentalis” (união mental) intrapsíquica do
intelecto e da razão com o Eros, que representa o sentimento. Uma operação interna
dessa espécie sem dúvida não significa pouco, por representar um grande progresso
tanto do conhecimento como do amadurecimento pessoal, mas sua realidade é apenas
potencial e se torna verdadeiramente real somente depois de sua união com o mundo
físico dos corpos (JUNG, 1990, p. 219- 220, §329).
Chegamos assim, ao final das considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como
ápice do processo alquímico e, suas contribuições para o estudo do religioso no campo
simbólico, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.
31
Esse lado do pensamento de Jung pode levantar sérios problemas teológicos sobre a auto-suficiência do divino
e atribui um papel à atividade humana no processo de salvação em alguma tensão considerável com doutrinas
tradicionais sobre a gratuidade salvação e a prioridade de Deus por todo o processo de salvação.
203
VI -- CONCLUSÃO
Tendo em vista que a alquimia é um fenômeno histórico extremamente complexo e
obscuro, no qual, qualquer um que se dedique ao seu estudo, mergulha numa massa caótica de
símbolos e alegorias alquímicas; esta dissertação, no intuito de evitar uma sobrecarga no
próprio objeto de estudo, optou por esboçar algumas linhas de orientação que contribuíram
para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na Idade Média, percorrendo a
alquimia chinesa-hindu, alexandrina e a árabe. Desta maneira, se preparou assim o próprio
terreno simbólico para o objeto de estudo em questão.
É necessário, no entanto, advertir que tanto a simbólica, quanto os textos alquímicos,
foram escritos por homens, pode-se mesmo dizer que com exclusividade; portanto, tanto
através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto das fases
alquímicas, os três principais processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até
a Conjunção final, devem ser observados sob a ótica da psicologia masculina “que é a única a
permitir comparação com a da alquimia"( JUNG, 1997, p.102, § 124).
Jung encontrou nos três graus da conjunção de Dorneus um terreno seguro para
explicar a seqüência dos processos psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no
processo de individuação, e demonstrou que a conjunção alquímica na verdade ocorrem em
três estágios. O primeiro grau da Coniunctio de Dorneus ou primeiro estágio da conjunção, é
descrito pela união da alma com o espírito, o qual ocorre simultaneamente a separação da
alma do corpo. Este estágio recebe o termo em Latim de unio mentalis, que significa uma
união mental. Como o próprio Jung indicou, é possível estabelecer relação do primeiro grau
de Dorneus, com a primeira fase da alquimia, a nigredo. Na perspectiva da psicologia
junguiana, esta simbólica do primeiro grau de Dorneus, significa:
... o desprender-se, por parte da alma e de suas projeções, da esfera corporal e de
todos os condicionamentos do mundo ambiente relacionados com o corpo (...) tem o
discípulo, por ocasião deste processo, toda a sorte de oportunidade para descobrir o
lado sombrio de sua personalidade, os desejos e motivos de menor valor, as fantasias
infantis e os ressentimentos, enfim, todos aqueles traços do temperamento que a
gente procura esconder de si próprio. Por meio disso ele se confronta com sua sombra
(...) (JUNG, 1990, p.228, § 338).
As operações alquímicas ligadas à primeira fase alquímica, ou seja, a solutio, a
separatio e a mortificatio (solução, separação, mortificação) descrevem o processo de
dissolução, discriminação e mortificação do composto que tinham como objetivo a “extração
204
da alma” do caos da prima materia. Esta idéia provém das concepções mágico-pagãs, a
respeito de uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à
physis (natureza) ou nela aprisionada. Neste sentido, é compreensível que Jung tenha indicado
a relação do primeiro grau da conjunção de Dorneus, a unio mentalis, a qual ocorre a
"separação da alma do corpo" com o primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, como se
pode observar no trecho abaixo:
...A inconsciência original, ainda meio animal, era conhecida ao adepto como nigredo
(negrura), caos, massa confusa e como um entrelaçamento difícil de desfazer entre a
alma e o corpo, com o qual ele forma uma unidade sombria (unio naturalis).
Justamente dessas cadeias queria ele libertá-la pela separatio (separação) e
estabelecer uma posição contrária, de natureza psíquico-anímica, isto é uma
compreensão consciente e conforme à razão, que se apresentava como superior às
influências do corpo. Mas tal compreensão, (...), somente é possível quando se pode
retirar as projeções enganosas, que encobrem como um véu a realidade das coisas.
(Ibidem, p. 243, § 356).
O alquimista se propõe a criar um ser volátil (ou aéreo, espiritual), no entanto inicia a
obra no caos da prima materia, refletindo um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e
o corpo. Na fase alquímica nigredo, a dissolução e mortificação do corpo, pelo processo da
“extração da alma”, denota, do ponto de vista psicológico do Opus, que a consciência,
desembaraça-se desta fusão com a natureza, isto é, dos afluxos do inconsciente. Mantendo-se
em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, nota-se
que, embora o primeiro grau da Coniunctio do alquimista Dorneus não apresente equivalência
com a simbólica envolvida no contexto da nigredo, em seus aspectos psíquicos, estabelece
sim equivalência com tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase
“negra”: segundo a tese, uma unio mentalis, ou seja, um estado de superação em relação os
afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos
animais do inconsciente
1
. Acrescenta-se à esta questão, a constatação feita pela presente
dissertação, de o motivo da renovação do rei na alquimia ocorrer em paralelo com as
transformações tanto nos simbolos teriomórficos como na mutabilidade do símbolo da lua.
Sendo assim, quanto mais se realiza o processo alquímico de “extração da alma”, tanto mais
os símbolos teriomórficos progridem da esfera dos instintos (corpo), representado pelos
animais ligados à terra, para a esfera do espírito, isto é, aproximam-se dos símbolismo
1
Edinger acrescenta: “So the unio mentalis brings about a state where the ego is separated from the
unconscious, and able to take an objective and critical atitude toward affects and desirousness the spirit and
soul are joined together and separated from the body” [Então a unio mentalis traz aproximadamente um estado
onde o ego está separado do inconsciente, e capaz de ter uma atitude crítica e objetiva com os afetos e desejos --
o espírito e a alma estão juntos unidos e separados do corpo] (EDINGER, 1995, p. 281).
205
teriomórficos das aves; respectivamente, com relação à simbólica Sol- Lua, acrescenta-se
também a constatação feita pela presente dissertação de que, quanto mais se afasta da
inconsciência original no negrume da lua nova, na mesma proporção é importantíssimo o
plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de completa oposição ao Sol, que transcende a
afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).
O processo simbólico alquímico de “separação da alma do corpo” é bastante
conhecido na psicologia, que usa o mesmo procedimento ao tornar objetivo os afetos e
instintos e ao confrontar à consciencia com eles. Erich Neumann, discípulo e colaborador de
C. G. Jung, aborda este processo, caracteristico do desenvolvimento individual da primeira
metade da vida, em seu livro História da origem da consciência, ao descrever a ruptura do
estado uroborico inicial, no qual a consciência, alem de desembaraçar-se da sua fusão com a
natureza, ao mesmo tempo, constela a sua independência da natureza como independência do
corpo. O ser contido na uroboros significa que a consciência se encontra à mercê dos
instintos, impulsos sensações e reações advindos do mundo do corpo. Sendo assim, a
"separação da alma do corpo" descrita na unio mentalis de Dorneus e concomitantemente no
estágio da nigredo, na concepção junguiana:
... tem em vista subtrair o espírito e a afetividade (Gemüt) ao influxo das emoções e
com isso estabelecer uma positio (posicionamento) espiritual superior à esfera
turbulenta do corpo, o que conduz primeiro a uma dissociação da personalidade e a
uma violenta correspondente do homem meramente natural. (Ibidem, p. 225, §335).
A separação da consciência da fusão com a natureza constela ao mesmo tempo a sua
independência da natureza como independência do corpo. Neste ponto do Opus Alchymicum,
o assentimento intelectual fortalecido pela alma racional chama a atenção para o risco de
facilmente se considerar o conhecimento filosófico como bem supremo
2
. Com relação à este
aspecto psicológico do Opus, podemos citar o fato de que os alquimistas insistiam, sem
exceção, no estudo meticuloso dos livros e na meditação dos mesmos. Assim o leitor
esforçado, partindo da filosofia meditativa, atingiria a sabedoria, se desde o início, estivesse
ocupado em ler e meditar, e isso era justamente o que consistiria a preparação da pedra.
Entretanto, em certa altura da obra, insistiam também, na expressão “rasguem os livros”
3
.
2
Jung acrescenta: “No plano psicológico, equivaleria a considerar a conscientização dos conteúdos inconscientes
e eventualmente a exploração teórica como meta do trabalho. Em ambos os casos, estaríamos impondo ao
conceito de espírito a definição de que o mesmo tem a ver com o pensar ou o intuir (JUNG, 1999[C], p. 143, §
486).
3
Embora a expressão “rasguem os livros” apresente-se como uma tomada de decisão da consciência, o mesmo
não poderá ser afirmado com relação ao conjunto de imagens que se apresentam na sucessão das fases
206
Sobre este aspecto psicológico da expressão alquímica, Jung conclui que os alquimistas
perceberam o perigo de a realização estagnar no âmbito de uma determinada função da
consciência
4
:
Parece que os alquimistas perceberam o perigo de a realização estagnar no âmbito de
uma determinada função da consciência. Por isso ressaltam a importancia da
“theoria”, ou seja, da compreensão intelectual, em relação à “practica”, que poderia
dar-se por satisfeita com o mero experimentar. Este último corresponderia à
percepção simples; no entanto, esta tem que ser complementada pela apercepção.
Mas nem mesmo esta segunda etapa significa a realização completa. Fica faltando o
coração, isto é, o sentimento, que confere àquilo que foi entendido um valor de
compromisso. Os livros devem, pois, ser destruídos, a fim de que o pensamento não
prejudique o sentimento, porque de outra forma a alma não pode retornar (Idem,
1999 [C], p. 143-144, § 488).
No entanto, se no início do Opus, a substância de transformação é extraída; na fase da
albedo, nota-se que os alquimistas chamam a atenção para o estado momentâneo da parte
volátil da matéria, demonstrando também, do ponto de vista psicológico, que aquele que
alquímicas, visto que estas tratam-se naturalmente, de projeções psíquicas, sendo, portanto, necessariamente
identificações inconscientes. Isto decorre do fato de os alquimistas desde sempre procuraram fora de si encontrar
aquela substancia do arcano e, somente no século XVI passou a aludir a um efeito interno com uma clareza de
que já não se podia duvidar. Sendo assim, como a diferenciação psicológica inexistia na época da alquimia com
relação à expressão “rasguem os livros”, Jung acrescenta que, “não é de se estranhar que encontremos apenas
ligeiras alusões nos tratados a considerações deste tipo que acabo de fazer. Contudo, tais alusões existem,
conforme podemos ver” (JUNG, 1999[C], p. 144, §490).
4
Jung neste ponto de sua obra chega a estabelecer uma sequência de 4 etapas de realização das funções da
consciência durante o opus alchymicum: sendo a sensação (entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o
corpo), seguido pelo pensamento na segunda etapa; seguido da função em oposição mais forte ao pensamento,
ou seja, o sentimento, e terminando na antecipação da lapis, ou seja, na atividade imaginativa da quarta função,
“a intuição, ou pressentimento, sem a qual nenhuma realização é completa” (JUNG, 1999[C], p. 145, § 492).
Como o processo de individuação é um processo cíclico, esta sequência de realização dessas funções também o
seria. Além disso, como é do conhecimento junguiano, sabe-se que a anima, assim como o animus, apresentam
quatro estágios de desenvolvimento. Levanta-se aqui uma hipótese se estes estágios de desenvolvimento da
anima-animus também não obedecem esta sequência de 4 etapas de realização das funções da consciência
apontadas por Jung. Com relação à anima: o primeiro é uma simples personificação do relacionamento
puramente instintivo e biológico (sensação). O estágio seguinte personifica um nível romântico e estético, uma
tentativa para diferenciar ( pensamento) o lado feminino da natureza masculina na relação com a mulher
(exterior) e em relação ao seu próprio mundo interior, passando a distinguir tanto os seus sentimentos quanto a
sua conduta para com as mulheres. No terceiro estágio, o eros é elevado à grandeza da devoção espiritual
(sentimento).O quarto estágio é simbolizado pela Sapiência, a sabedoria que transcende (intuição) até mesmo a
pureza e a santidade, “fazendo descortinar novos horizontes e perspectivas (VON- FRANZ, 1964, p. 185). Por
outro lado, a personificação dos quatro estágios do animus aparecem associados primeiro à uma simples
personificação do relacionamento puramente instintivo e biológico (sensação), ligado apenas à força física. Na
psicologia feminina, como o consciente da mulher é caracterizado mais pela vinculação ao Eros, o carácter
diferenciador e cognitivo do Logos, via de regra, aparece menos desenvolvido do que o primeiro. Sendo assim, o
segundo estágio, personifica o homem romântico (sentimento) e, como o pensamento é geralmente a função
menos diferenciada que o sentimento, aparece por isso, apenas no terceiro estágio, tornando-se o “verbo”, na
figura de um professor ou clérigo (pensamento). Finalmente a quarta manifestação é a personificação do sábio
guia que leva à verdade espiritual (intuição), relacionando “a mente feminina com a evolução espiritual da sua
época, tornando-a assim mais receptiva a novas idéias criadoras do que o homem. É por esse motivo que
antigamente, em muitos países, cabia às mulheres a tarefa de adivinhar o futuro ou a vontade dos deuses” (VON-
FRANZ, 1964, p.194).
207
alcançou uma unio mentalis, apresenta o risco de que uma redução à consciência separe-o da
experiência imediata com a base inconsciente. Mais uma vez, mantendo-se em um campo
factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, acrescenta-se a
constatação de que nesta etapa da Obra, a alquimia volta-se para a matéria, isto é, segundo
Dorneus, o chamado corpus (corpo), onde está projetado o inconsciente, que dá a luz à si
mesmo. Sendo assim, um fato digno de nota, diz respeito à importância que a alquimia dá
para a volta e a fixação no corpo; fato este que a presente dissertação buscou abordar nas
citações apresentadas no decorrer do capítulo referente à albedo, onde as repetidas extrações
do espírito mercurial, demonstraram ter como objetivo, a fixação da parte volátil-espiritual da
matéria em um corpo apropriado Na alquimia, no que diz respeito à fixação e permanência da
alma- espírito ao final da sublimação, no somaton, (a terra ou o corpo), demostra que nesta
etapa do Opus, há uma exaltação do ctônico, do institual, do feminino, isto é, em um
discussão psicológica, do inconsciente. Esse enredamento nos conteúdos inconscientes
provocados pelo efeito numinoso destes, ocorre com a finalidade expressa de integrar à
consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu conteúdo compensativo e, assim,
realizar esse sentido da totalidade. Os conteúdos personificados do inconsciente uma vez
reconhecidos pela consciência provocam uma mudança psíquica, visto que estes não poderão
voltar a ser inconscientes. A aquisição do conflito nesta fase pode ser considerada uma
vantagem especial, pois sem ele não existe união, nem nascimento. Como foi visto, pelo
processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da operação da união dos
opostos (Coniunctio). Neste ponto, nota-se que símbolos teriomórficos voltam à aparecer, mas
formados por dualidades, (como a águia e o sapo, ou ainda, duas aves e de dois dragões,
sendo sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas), indicando assim, a
ultima e mais forte oposição entre o espírito e corpo. Além disso, os símbolos também
aparecem na maneira de efetuar esta importante operação sob um conjunto de dualidades
ligados ao masculino e ao feminino, como branco e vermelho, esposo e esposa, rei e rainha
(no Rosarium Philosophorum também por imperador e imperatriz), homem vermelho e
mulher branca, leão macho e leão femea, etc. Do ponto de vista psicológico do opus, a idéia
clássica da circulatio, da repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia
clássica de circum-ambulação do Si-mesmo. Esta aproximação chega até que se atingir a mais
completa oposição. Isso acarreta o confronto com o inconsciente e a tentativa de estabelecer
uma síntese dos opostos.
De modo igual, assim como os simbolos voltam a aparecer, mas formados por
dualidades, indicando a última e mais forte oposição entre o espírito e corpo; mais uma vez,
208
mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes processos
alquímicos, acrescenta-se a constatação com relação também à simbólica Sol- Lua. Desta
maneira, embora seja importantíssimo o plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de
completa oposição ao Sol, que transcende a afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua);
a união dos contrários, Sol e Lua, na Lua nova é, de fato, uma das formas das núpcias
interiores, que trazem consigo a restauração do andrógino primordial, um dos símbolos da
realização, que é a finalidade da obra psicológica
5
.
Por fim, acrescenta-se a constatação feita pela presente tese de que, assim como na
sublimação filosófica na fase da albedo, a separação da mistura da parte mais volátil por
evaporação, seguida da condensação, era repetida diversas vezes e, a essência extraída levada
ao estado máximo de pureza pelo movimento circular continuado, assim também a
quintessênia do vinho filosófico é submetida em seguida à rotação mencionada acima. O
processo alquímico da produção da Quintessência de Dorneus, resulta assim em um líquido
“da cor do céu”. Esta “substancia- espirito” é uma união dos opostos, pois representava, como
foi visto, o equivalente físico do céu.
A geração dos metais é circular, passando facilmente, de um a outro, segundo um
círculo; desta maneira, quanto mais se caminha para a produção da Quintessência, mais se
afasta da simbólica da albedo e mais se aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo
que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: uma união dos opostos.
Em uma discussão psicológica do processo alquímico, é compreensível que a produção da
Quintessência, esteja incluído no próprio segundo estágio de Dorneus, ou seja, entre a união
da unio mentalis com o corpo, visto que tal "substância misteriosa", corresponderia também à
um terceiro mediador. Análogo ao mercúrio filosófico, substância essa de dupla natureza, a
Quintessência de Dorneus, é o remédio alquímico corpóreo-espiritual. Segundo Jung:
...O bálsamo, que ‘está acima da natureza’, deve encontrar-se também no corpo
humano, como pensa DORNEUS, e deve ser semelhante a uma substancia aérea. Ele
conserva e assegura a persistência das partes elementares dos corpos vivos e é o
melhor remédio não apenas para o corpo, mas também para o espírito. Ainda que ele
seja de natureza corpórea, contudo ele é essencialmente espiritual, por ser a união do
5
Edinger acrescenta: “So now we`re at level 2 on our way, and at this level the ego has achieved the acceptance
of the opposites and is able to endure tha paradox of the psyche`s two-sidedness” [Assim agora nós estamos no
nível 2 em nosso caminho, e neste nível o ego conseguiu a aceitação dos opostos e pode resistir ao paradoxo dos
dois lados da psique] (EDINGER, 1995, p.281). Análogo ao Mercúrio filosofal, a Quintessência de Dorneus,
restaura a unidade da substancia, no terceiro estágio. Edinger acrescenta: “ The event that takes place is the third
stage of the coniunctio, the called union with the unus mundus” [ O evento que ocorre é o terceiro estágio da
coniunctio, a chamada união com o unus mundus] (Ibidem, p. 281). Neste sentido, o processo é ternário: origem,
desenvolvimento do conflito, e reunião. Mas a imagem é quaternária, devido ao desdobramento na oposição.
209
espírito (spiritus) e da alma (anima) do remédio espagírico (JUNG, 1990, p.218,§
328).
Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos processos
alquímicos, tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto
das fases alquímicas, esta dissertação encontra um maior entendimento dos três principais
processos psíquicos que se desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final. Entretanto
a contribuição da presente tese não se encerra aqui. Esta pesquisa poderá enriquecer neste
sentido a análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um
processo em três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta,
isto é no símbolo quaternário. Esta hipótese é enriquecida pela opinião compartilhada de
Edinger, em seu trabalho O Ego e o Arquétipo
6
:
Em capítulos anteriores, fiz o esboço de um esquema de desenvolvimento
psicológico com o fito de explicar as relações existentes entre o ego e o Si-mesmo.
Também fiz uso de um padrão ternário sendo as três entidades o ego, o Si-mesmo
(ou não-ego) e o vínculo que os liga (o eixo ego-Si-mesmo). De acordo com essa
hipótese, o desenvolvimento da consciência ocorre através de umm ciclo de três fases
que se repete ao longo da vida do indivíduo. As três fases desse ciclo repetitivo são:
(1) o ego identificado ao Si-mesmo; (2) o ego alienado do Si-mesmo; e (3) o ego
unido de novo ao Si-mesmo através do eixo ego-Si-mesmo. Em termos mais
resumidos, esses três estágios poderiam ser denominados: (1) estágio do Si-mesmo;
(2) estágio do ego; e (3) estágio do ego-Si-mesmo. Esses três estágios correspondem
precisamente aos três termos da cristã: a idade do pai (Si-mesmo); a idade do Filho
(ego); e a idade do Espírito Santo (eixo ego-Si-mesmo). Eis outro exemplo de um
padrão ternário que exprime a totalidade de um processo temporal, de um processo
de desenvolvimento (EDINGER, 2000, p. 250-251).
Entretanto Edinger, apenas aponta o estabelecimento dessas relações sem, no entanto,
aprofudar-se nestas; fato este que o projeto inicial desta dissertação procurou fazer ao
estabelecer a relação entre, tanto os estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto as
fases alquímicas, com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da totalidade
quaternária no símbolo central do Cristianismo, a Trindade, segundo C. G. Jung. Sendo assim,
6
De acordo com o esquema ternário de desenvolvimento psicológico de Edinger, o primeiro estágio, isto é, o
ego identificado ao Si-mesmo corresponderia na alquimia ao caos da prima materia, refletindo um
entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo. O segundo estágio, ou seja, o
ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e,
em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do inconsciente por ocasião da albedo,
alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo, havendo saído da unidade inconsciente,
indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. Finalmente o terceiro estágio, isto é, o ego unido de
novo ao Si-mesmo através do eixo ego-Si-mesmo, corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real
do indivíduo; fato este que somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos
opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados alquímicos
concomintantemente juntas.
210
com intuito de não apresentar-se repetitiva, a presente dissertação restringirá a Conclusão
apenas nos aspectos essencias desta questão. Esta pesquisa poderá enriquecer neste sentido a
análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um processo em
três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta. Isso significa
que a Trindade, agora enquanto símbolo da totalidade, é quaternária e, por isso, falta o quarto
elemento, o qual tem sido associado ao demônio: o ctônico, o institual, o feminino, que
representa a parte condenável do cosmo cristão. Na alquimia, “...não há dúvida de que o
quarto elemento dos filósofos medievais se referia à terra e à mulher” (JUNG, 1999 [B], p. 68,
§106). Desta maneira a tradição alquímica, mediante as representações da coroação de Maria
prepara o caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino da terra, do corpo
e da matéria à sua Trindade física. Neste sentido, Jung nota que, enquanto a fórmula do
inconsciente representa uma quaternidade, o simbolo cristão central é o da Trindade. No
entanto, consciente de que esta discussão traria consequências demasiadamente longe, tanto
do ponto de vista ético quanto intelectual, Jung considera:
Minha opinião é que a Igreja deve repelir qualquer tentativa de se levar a sério tais
resultados. E é até mesmo possível que deva condenar qualquer tentativa de
aproximação em relação a essas experiências, pois não se pode permitir que a
natureza reúna aquilo que ela separou. Percebe-se claramente a voz da natureza em
todas as experiências vinculadas à quaternidade, e isto desperta a antiga suspeita
contra tudo aquilo que lembre o inconsciente, por mais remotamente que seja. O
estudo científico dos sonhos é a antiga oniromancia com novas roupagens e talvez
por isso seja tão condenável como as demais artes “ocultas”. Nos tratados alquimistas
encontramos paralelos próximos ao simbolismo dos sonhos, e estes são tão heréticos
quanto os primeiros. Parece que aí está uma das razões essenciais para se manter tais
conceitos em segredo, ocultando-os com metáforas protetoras (JUNG, 1999 [B], p.
66, § 105).
Sendo assim, ao estabelecer uma relação entre os processos alquímicos e os processos
psíquicos que se desenrolam no Opus alchymicum até a Conjunção final, a presente tese de
dissertação busca ter dado um passo adiante na compreensão tanto da representação, quanto
da realização enquanto processo de individuação, como duas diferentes interpretações
respectivas e intercambiadas: com relação ao arquétipo da quaternidade, como representação
em si completa do processo. O alvo é quaternário, ou seja, símbolo da totalidade; neste
sentido, a imagem da natureza quaternária da psique, segundo Edinger, “fornece uma
orientação estabilizadora. Ela nos traz vislumbre da eternidade estática” (EDINGER, 2000, p.
246). Entretanto, com relação ao arquétipo da trindade, como realização enquanto processo
de individuação, ou seja de um dinamismo psíquico em todas as suas fases, não há espaço
211
para um quarto elemento
7
. Trata-se, neste sentido, “do aspecto de desenvolvimento, temporal,
de realização. Embora o alvo seja quaternário, o processo de realização do alvo é ternário”
(Ibidem, p. 254). Edinger ao se aprofundar nesta questão, conclui que nesse caso o arquétipo
da quaternidade e o da trindade se refeririam a dois diferentes aspectos da psique:
A imagem da quaternidade exprime a totalidade da psique em seu sentido estrutural,
estático ou eterno, ao passo que a imagem da trindade exprime a totalidade da
experiência psicológica em seu aspecto de desenvolvimento, dinamismo e
temporalidade (EDINGER, 2000, p. 246).
Paul Tillich também se aprofundou no significado dos símbolos cristãos que se
tornaram cada vez mais problemáticos dentro do contexto cultural do século vinte. A partir de
uma perspectiva teológica, Paul Tillich foi o representante mais importante da tentativa de
eliminar a distância entre o religioso e o psicológico. É importante reforçar que a menção
desta dissertação à Tillich está longe de esgotar o que este último entende por reconciliação.
No entanto, como um dos maiores apologetas da religião, no que diz respeito ao símbolismo
trinitário, e especialmente com relação à doutrina da Trindade, ele conclui:
A doutrina da Trindade não está encerrada. Ela não pode nem ser descartada nem
aceita em sua forma tradicional. Ela deve permanecer aberta para que cumpra sua
função original expressar em símbolos abrangentes a auto-manifestação da Vida
Divina ao homem (TILLICH, 2000, p. 610).
Mantendo-se em um campo factível, que é o da investigação simbólica dos processos
alquímicos, tanto através do exame dos estágios alquímicos do alquimista Dorneus, quanto
das fases alquímicas, esta dissertação confirmou a hipótese de que, do ponto de vista
psicológico, os graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, possuem relação com as fases
alquímicas. Sendo assim, conforme o axioma alquímico "Non fieri transitum nisi per
medium" (Não ocorre a passagem a não ser por um meio), a presente dissertação, se
concentrou nos processos e implicações desta passagem, encontrando assim um duplo
subsídio para um maior entendimento dos três principais processos psíquicos que se
desenrolam no opus alchymicum até a Conjunção final, confirmando ser o ritmo ternário dos
processos psíquicos em busca da totalidade quaternária.
7
Edinger acrescenta: “ Se pensarmos na trindade como reflexo de um desenvolvimento, um processo dinâmico,
o terceiro termo é a conclusão do processo. O terceiro estágio restaurou a unidade original do 1 num nível mais
elevado. Essa nova unidada só poderá ser perturbada pela emergência de uma nova oposição, que repetirá o ciclo
trinitário” (EDINGER, 2000, P. 248).
212
É importante ressaltar que a sequência no tempo das fases do Opus é coisa bastante
incerta. Como foi visto anteriormente, no que diz respeito à seqüência dos estágios
alquímicos, a divisão do processo era inicialmente feita em 4 fases assinaladas caracterizadas
pelas cores originárias: o enegrecimento, o embraquecimento, o amarelamento, e o
enrubescimento. Porém, mais tarde, as cores foram reduzidas a três. Jung na citação abaixo,
analisa este fato; e suas considerações enriquecem ainda mais a tese da presente dissertação:
Embora a tetrameria original fosse equivalente à quaternidade dos elementos,
sempre se acentuou que, apesar dos elementos serem quatro (terra, água, ar e fogo) e
quatro as qualidades (quente, frio, úmido e seco), havia apenas três cores: preto,
branco e vermelho. Uma vez que o processo nunca conduzia à meta desejada, cada
uma de suas partes nunca era levado a termo de modo padronizado; a mudança na
classificação de seus estágios era devida ao significado simbólico do quatérnio e da
Trindade ou, em outras palavras, era devida a razões de ordem interna e psicológica,
e não externa (JUNG, 1991 [A], p. 242-243, § 333).
Por fim, embora a sequência no tempo das fases do Opus seja coisa bastante incerta,
deparamos com a mesma incerteza no processo de individuação, no qual só se pode
estabelecer um esquema típico da sequencia de fases, de modo genérico. Entretanto, a simples
possibilidade de ordenação destes simbolismos presentes nas três fases, dentre uma massa
caótica de simbolismos que a alquimia engloba e, o estabelecimento de analogias apropriadas,
como as propostas nesta tese com relação aos estágios da Coniunctio de Dorneus, embora não
represente o esquema geral do fenômeno, já se justifica, por mais que sua imperfeição possa
dar margem a desentendimentos.
213
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