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estimulantes. Assim, planejei meu trabalho de campo de modo a presenciar as várias
etapas que constituem os dois ciclos rituais que podem acontecer anualmente, durante as
estações seca (umurũe zeky/“seco” “quando, se [ficar]”) e chuvosa (hyritsik zeky/
“chuva” “quando, se[ficar]”)
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Retornei aos Rikbaktsa em outubro de 2002 e, em menos de 15 dias ocorreriam
duas mortes de gaviões-reais ou harpias. Cada qual redundaria em um rito específico
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Sobre a caracterização destes ciclos, refiro o leitor ao belíssimo trabalho de Eriberto Nabita (1997) –
professor Rikbaktsa do 3º grau indígena -, que conseguiu expressar seu significado para além de sua
dimensão ritual, imergindo-os na vida Rikbaktsa. A distinção chuva x seca, embora faça algum sentido
em termos ambientais, é para além disso, uma distinção importante em seu ciclo de vida. Este contraste
agrega significados que encampam mas em muito ultrapassam o caráter estritamente ecológico-alimentar.
Como não trato desta dimensão, gostaria de dar algumas informações importantes sobre sua “estratégias
de subsistência”, que aparecerão diluídas no decorrer da tese (ver também Anexo 2). Os Rikbaktsa
excursionam em grande parte da estação seca, na busca por uma variedade de recursos, não apenas frutas,
mel e caças, mas pontas de flechas, penas, conchas, animais para criação (como reservatórios de penas) e
até “inimigos”. O preparo das roças – as familiares (-tsuhu) e as comunitárias (waratok) - ocorre
preferencialmente no início da estação seca e precede estas movimentações, que podem durar meses.
Jamais os ouvi refirerem-se a este período enquanto de “carência” ou “penúria” alimentar e ainda menos a
qualquer motivação deste tipo para suas movimentações territoriais (para uma versão discordante, ver
Pacini 2000:177). Notadamente caçar, mas também pescar, coletar e até colher frutos e víveres em antigas
roças longínquas são atividades características da estação seca que trazem consigo também uma
determinada imagem de fartura. Canoas chegam lotadas de recursos e muitos parentes que acompanham
estas excursões podem retornar munidos deles ou ainda enviá-los por intermédio de outrem àqueles que
não puderam acompanhá-los. Na estação chuvosa, em contrapartida, os movimentos não são tão
sistemáticos, tendo menor alcance. Durante a estação chuvosa, tida como mais longa que a seca, se se
plantou adequadamente e tudo correu bem, a roça estará crescida e pronta para a colheita, que se inicia
com o milho, pelos idos do mês de dezembro. A caça é tida como abundante, mas não contrastam esta
abundância com uma suposta “carência” da estação seca. Na chuva, dizem, é quando animais folívoros de
consumo preferencial, os macacos, estão mais gordos e muitas frutas que servem de alimento a tantos
outros animais de maior porte chegam ao seu amadurecimento. Não há apenas uma estratégia em se lidar
com um regime de chuvas e modificações mais ou menos evidentes em características ambientais. Estas
alterações ou ciclos só serão favoráveis ou desfavoráveis conforme as próprias estratégias de subsistência,
ou como prefiro chamar, “estratégia de vida” de cada grupo humano em particular. O caráter linear de
qualquer variabilidade deve ser investigado de forma relativa, tanto ao ambiente e à ênfase do sistema
alimentar em questão, quanto, dentro deste, à especificidade das espécies disponíveis no ambiente
considerado. É caso de determinação complexa e, quase sempre, é sobre o modo de vida preferencial de
cada população que devemos nos concentrar se quisermos entender algo sobre “escassez” ou
“abundância” de uma ou outra atividade por estação do ano. Não há, aqui, relações ambientais
necessariamente obrigatórias e mesmo que as houvesse, esta dimensão não seria por si só capaz de
determinar o modo pelo qual os grupos humanos tratam e significam uma atividade e a possível flutuação
ou não de seu rendimento no decorrer do tempo. Um exemplo disso é a ênfase dos amazônicos sobre a
caça, mesmo em grupos, digamos assim, “estatisticamente” horticultores (cf. Viveiros de Castro
2002a:342-343). No que diz respeito à caça, o estudo de Beckerman (1994) admite exceções, mas indica
uma maior produtividade da caça na estação seca. Este fato, embora não seja desmentido pela importância
da caça durante as excursões da estação seca, vai de encontro ao discurso Rikbaktsa sobre a estação
chuvosa, quando os ritos preconizam não apenas a abundância como também a qualidade das caças,
especialmente dos macacos que dizem estar deliciosamente gordos nesta época. Asserções deste tipo
devem ser tanto mais relativizadas quanto mais avançam os estudos que direta ou indiretamente abordam
os “modos de vida” amazônicos. Em contraste com os Piro da amazônia peruana, que caracterizam a
estação chuvosa como aquela em que passam fome (cf. Gow 1989:574), quanto mais os estudos
multiplicam-se mais encontram-se grupos neste aspecto semelhantes aos Rikbaktsa, como os Shipibo
(Bergman 1980), os Nambikwara (Aspelin 1975), os Wari’ (Leite 2004) e os Parakanã (Fausto 2001).
Muitos outros grupos poderão ainda obter produtividade semelhante em atividades diversas no decorrer
das estações, visto que esta produtividade não pode ser univocamente relacionada à sazonalidade.