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Janina Moquillaza Sánchez
CURRÍCULO INTERCULTURAL:
A ARTE COMO SISTEMA SIMBÓLICO CULTURAL
NA ESCOLA DE BRANCO
Um estudo a partir da arte na educação escolar, na aldeia tupi-guarani de Piaçaguera
Doutorado em Educação: Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo/2006
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JANINA MOQUILLAZA SANCHEZ
CURRÍCULO INTERCULTURAL:
A ARTE COMO SISTEMA SIMBÓLICO CULTURAL
NA ESCOLA DE BRANCO
Um estudo a partir da arte na educação escolar, na aldeia tupi-guarani de Piaçaguera
Doutorado em Educação: Currículo
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a
a obtenção do título de Doutora em
Educação: Currículo, sob a Orientação
do Prof. Dr. Alípio Márcio Dias Casali
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo/ 2006
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BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
__________________________________________
São Paulo, ____ de ________________ de__________
dedico este trabalho a todos
aqueles
que acreditam
na escultura social,
a arte da vida.
janina
Agradeço a Deus, à Vida, por ter-me dado Mônica e Tatiana para amar.
Agradeço a Deus, à Vida, porque tive pais que à sua maneira, me amaram.
Agradeço às pessoas que fazem ou fizeram parte de minha
família e me permitiram, à minha maneira, amá-las.
Agradeço aos amigos e a todos aqueles que, de alguma
forma, contribuíram para a minha construção pessoal e profissional.
Agradeço a Dalva Cunha Vilela dos Reis, minha psicanalista,
por iluminar-me o caminho de volta.
Agradeço a meu Orientador, Prof. Dr. Alípio Márcio Dias Casali
por ter-me alimentado com a sua sabedoria.
Agradeço as valiosas contribuições da Banca de Qualificação,
Profs. Drs. Mário Sérgio Cortella e Rinaldo Sérgio Vieira Arruda.
Agradeço ao CNPQ pela Bolsa que me possibilitou realizar esta pesquisa.
RESUMO
CURRÍCULO INTERCULTURAL: A ARTE COMO SISTEMA
SIMBÓLICO CULTURAL NA ESCOLA DE BRANCO
Um estudo a partir da arte na educação escolar, na aldeia tupi-guarani de Piaçaguera
Trata-se de pesquisa qualitativa de caráter etnográfico, com abordagem metodológica
de pesquisa-ação. A partir do problema das limitações do acesso ao direito humano à educação
de qualidade, busquei conhecer a maneira pela qual o professor indígena pode por meio da
arte, valorizar a sua auto-estima tendo acesso aos discursos e apropriando-se dos saberes nas
relações interculturais. Especificamente, observei o caso de uma tribo do tronco lingüístico
tupi-guarani no Estado de São Paulo.
Para orientação paradigmática desta tese, adotei a teoria antropológica da cultura, de
Clifford Geertz, para quem a cultura é uma teia de significados tecida pelo homem. Nessa teia
das relações entre a cultura de educação do branco, com a cultura de educação indígena; teci
linha teórica que parte da compreensão de cultura como conjunto de mecanismos de poder,
controles e instruções para governar o comportamento e da idéia, também de Geertz, de arte
como sistema simbólico cultural, uma forma coletiva e materialização de uma maneira de
viver. Igualmente, fundamentei-me no pensamento de Vygotsky sobre a arte na educação e a
estética na vida cotidiana e no comportamento, o uso da linguagem, a formação social da
mente e a importância da mediação.
Investiguei as circunstâncias sócio-históricas da educação intercultural indígena e na
pesquisa-ação, desenvolvida na aldeia Piaçaguera, município de Peruíbe, São Paulo, à medida
que o problema se configurava, e visando desvelar a verdade da hipótese da baixa auto-estima
dos professores, desenvolvemos juntos pesquisas e compartilhamos conhecimentos; estimulei
o uso das habilidades para criar; o resgate do conhecimento dos antepassados e do
reconhecimento das possibilidades de uso das linguagens artísticas, na educação.
Considero que a educação intercultural é um desafio para a educação contemporânea e
que na educação diferenciada, para a educação indígena, permanece a idéia de escola de
branco. Encontrei maneiras importantes que mostram como isso está afetando e afetará as
populações indígenas, permanecendo algumas perguntas sobre como essas populações usam e
usarão suas forças para também afetá-la; questões que certamente serão respondidas pelas
gerações futuras. Concluindo, constatei que foi possível contribuir para a valorização da auto-
estima dos professores indígenas, resgatar alguns elementos do sistema simbólico cultural do
contexto e promover a arte na educação e na vida da comunidade indígena da aldeia
Piaçaguera.
Palavras-chave: 1. currículo intercultural – 2. arte e educação – 3. educação indígena – 4.
Tupi-guarani – 5. Aldeia Piaçaguera.
ABSTRACT
INTERCULTURAL CURRICULUM: ART AS A CULTURAL
SIMBOLIC SYSTEM IN THE SCHOOL OF WHITES
From art in school education, a study at the indigenous
Tupi-guarani Piaçaguera village.
This is a qualitative ethnographic research, approached through the action-research
method. From the problem of limitations to access the human right to quality education, I
intended to know the ways to enhance self esteem of indigenous teachers through the means of
art, by accessing theoretical discourses and appropriating of knowledges in intercultural
relations. Specifically, I observed the case of a group of the Tupi-guarani linguistic branch in
the State of São Paulo.
For the paradigmatic orientation of this thesis I adopted the cultural anthropological
theory of Clifford Geertz, to whom it is a net of meanings invented by man. Within the net
of relations between the whites culture of education and indigenous culture of education, I
developed a theoretical comprehension of culture as empowered mechanisms, controls,
instructions to govern behavior, and adopting Geertz’ idea of art as a cultural symbolic system,
I found a cultural collective production as the materialization of a way of living. Also, I based
on Vygotsky ‘s thoughts about the psychology of art, aesthetics on education, on current life
and on behavior, the use of language, the social formation of mind and the importance of
mediation.
I researched about socio-historical circumstances of indigenous intercultural education
as the action-research was developed at the Piaçaguera Tupi-guarani village, in Peruíbe,
interior of São Paulo. As the problem configurated, and wiling to reveal the truth of the
hypothesis of teachers low self-esteem, we developed a process of life history researches in
the same village, sharing knowledges and stimulating the use of abilities to create, recovering
ancient knowledges, and recognizing of possibilities of the use of artistic languages, in
indigenous education.
I consider that intercultural education is a challenge to contemporary education and
that in the differentiated indigenous education persist ideas of the school of whites. I found
important ways of how this is affecting and will affect indigenous populations, remaining
some questions such as how this people use and will use their strength to also affect it; answer
that will surely be given by us and by future generations. Concluding, I found that it was
possible to contribute to enhance the self esteem of the indigenous group, to recover some
elements of the cultural symbolic system, to promote art in education and in the life of people
of the indigenous Piaçaguera village.
Key words: 1. intercultural curriculum - 2. art and education - 3. indigenous education –
4.Tupi-guarani – 5. Aldeia Piaçaguera.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO Pág.
1 - Minha vivência com a Arte............................................................................................... 11
2 - A cultura, a vivência pedagógica e a origem do problema............................................... 13
3 - A estruturação do trabalho ............................................................................................... 17
CAPÍTULO I – A ARTE COMO SISTEMA SIMBÓLICO CULTURAL, NA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
1.1 O paradigma.................................................................................................................... 22
1.2 A arte como sistema simbólico cultural e na educação................................................. 26
1.3 A etnografia do pensamento cultural............................................................................. 38
1.4 O currículo intercultural: um encontro entre culturas .................................................. 40
1.5 A educação diferenciada................................................................................................ 58
1.6 Nação e etnia ................................................................................................................ 68
CAPÍTULO II –CIRCUNSTÂNCIAS SÓCIO HISTÓRICAS DA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL INDÍGENA NO BRASIL
2.1. Primeira Referência: os Jesuítas .................................................................................. 84
2.2. Segunda Referência: os missionários estrangeiros ....................................................... 95
2.3. Terceira Referência: o SPI ............................................................................................ 102
2.4. Quarta Referência: a FUNAI, o SIL ............................................................................. 111
2.5. Referência atual: o MEC/ Referencial Curricular Nacional Para As Escolas
Indígenas e a violência simbólica ................................................................................. 114
CAPÍTULO III – ENTRE OS TUPI-GUARANI NA ALDEIA PIAÇAGUERA
3. O método ..................................................................................................................... 126
3.1. O método qualitativo.................................................................................................... 126
3.2. A abordagem pesquisa-ação ....................................................................................... 133
3.3. O processo da pesquisa-ação ...................................................................................... 135
3.4. Entre os tupi-guarani na aldeia Piaçaguera ................................................................. 137
3.4.1. Os pressupostos teórico-conceituais ......................................................................... 139
3.5. Primeiro momento empírico: o local e o problema que se anuncia ............................ 140
3.5.1. Segundo momento empírico: observação participativa, mudança e avaliação ....... 146
3.5.2. Terceiro momento empírico: a avaliação dos que avaliam........................................ 195
CONCLUSÕES................................................................................................................... 214
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 218
FOTOS
Foto 1 – Huacachina, oásis no deserto de Ica, Peru, o lugar onde nasci .................... 10
Foto 2 – Mãe-menina krahô, Tocantins. Março, 2003 ................................................. 15
Foto 3 – Menina xerente da aldeia Nova, Tocantins. Outubro, 2003 ........................... 18
Foto 4 – Menina tupi-guarani, aldeia Piaçaguera, São Paulo. Setembro, 2004............. 29
Foto 5 – Professora tupi-guarani da aldeia Piaçaguera, São Paulo. Setembro, 2004 ... 35
Foto 6 – Professor tupi-guarani de arte e cultura, ensina para adolescentes ................ 45
Foto 7 – Professora dá aula de desenho. Ao fundo, outra professora ensina
língua portuguesa .......................................................................................... 52
Foto 8 – Cacique da aldeia Itaoca, no Memorial da América Latina, S.Paulo.
Dezembro, 2004 ............................................................................................. 80
Foto 9 – Meninas tupi-guarani no pátio central da aldeia. Outubro, 2004 .................. 82
Foto 10 – Terras guarani no litoral de São Paulo e aldeia Piaçaguera, 2004 ................. 125
Foto 11 - Cancela à entrada da aldeia Piaçaguera, 2004 ............................................. . 137
Foto 12 - Escola Ywy Piau, na aldeia Piaçaguera, Agosto 2004 .................................. 147
Foto 13 – Crianças aguardam o almoço na escola da aldeia. Agosto, 2004 ................... 150
Foto 14 – Professores cantam Piray (Peixe). Agosto, 2004 .......................................... 160
Foto 15 – Professores tupi-guarani da aldeia Piaçaguera avaliam reunião anterior
Setembro, 2004 ............................................................................................. 165
Foto 16 - Casa comunitária da aldeia. Setembro, 2004 ................................................. 167
Foto 17 – Professoras dançam Tangará ......................................................................... 173
Foto 18 – Professores dançam Txondaro ..................................................................... 183
Foto 19 – Crianças tupi-guarani vão para sala de aula cantando .................................. 189
Foto 20 – Meninas tupi-guarani representam peça teatral ............................................ 192
DESENHO
1 – Reunião de conselho de chefes, à noite. O cacique expunha as razões da reunião .. 123
e a seguir os velhos, cada um à sua vez, falavam sobre o assunto.
ANEXOS
Anexo 1 - Estatuto do Índio – Lei 6001 de 19 de dezembro de 1973
Anexo 2 – Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996, Estabelece as bases da Educação Nacional
Anexo 3 – Resolução CEB no.3 de 10 de novembro de 1999 – Fixa diretrizes para
funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências
Anexo 4 – Lei 10.558 de 13 de novembro de 2002 – Cria o Programa Diversidade na
Universidade e dá outras providências.
Anexo 5 – Referencial Curricular Nacional para as escolas indígenas – Arte/ MEC, 1998
10
Foto 1 - Huacachina, oásis no deserto de Ica, Peru, o lugar onde nasci.
Os Apapokuva-Guarani acreditavam que podiam alcançar o paraíso de
duas formas. Primeiro pela dança, aligeirando o corpo a ponto de poder
subir ao zênite através da porta do céu; ou procurando a “Terra sem Males”,
que estaria situada no centro da superfície terrestre. Um movimento migratório
com 12.000 pessoas, chefiadas pelo cacique Viarazu, teria partido em 1539
do litoral brasileiro e alguns membrosda expedição teriam chegado ao Peru
(FERNANDES, Florestan 1948: 91-92).
Os tupi localizavam a “Terra sem Mal” – lugar de abundância, de ausência de
labuta, da imortalidade, mas sobretudo da guerra e do canibalismo – tanto num
eixo horizontal e espacial, quanto em outro vertical e temporal. Ela era o destino
individual pós-morte dos matadores, daqueles que deixavam memória pela
façanha guerreira; mas era também um “paraíso terreal” inscrito no espaço, em
algum lugar a oeste ou a leste, que podia ser coletivamente alcançado em vida
(FAUSTO, Carlos [1992] 2002: 385)
11
1 - Minha vivência com a Arte.
No começo da década de 90, atuando como professora de Arte, fui procurada por uma
artista, psicóloga de profissão, que pintava há alguns anos, dizendo que gostaria de ter uma
produção com a qual se identificasse, porque o que ela fazia não lhe agradava, no sentido de
que após fazer um determinado trabalho, dava-se conta de que aquilo não tinha nada a ver com
ela.
Esse foi o toque que me introduziu no mundo da pesquisa sobre as relações da Arte
com a vida, me fez passar a ler a vasta literatura sobre o assunto e a observar a maneira como
essas relações são tratadas pelas pessoas nos diversos âmbitos, principalmente no meio
educacional. Minha aluna queria identificar-se com o que fazia, porém não havia
desenvolvido um conhecimento tácito específico para dedicar-se à arte como opção de vida;
somente naquele momento tomara a decisão de mudar. Antes, o que criava a satisfazia.
Agora ela contava com uma motivação interior para desenvolver o conhecimento explícito.
Quando na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 1997,
participei do curso Ensino da Arte e da Cultura, tive oportunidade de dar-me conta da estreita
relação que existe, por um lado, entre o artista e aquilo que ele faz, a sua produção em relação
consigo mesmo e com o contexto sócio-econômico-político-cultural do qual faz parte e por
outro, da importância do currículo escolar, a maneira como a Arte é pensada dentro do
planejamento disciplinar de uma escola, o que influi na maneira como as pessoas passam a
entender o que seja Arte e a sua importância, ou não, para a vida.
Observei que na prática do ensino da arte o conhecimento se apresenta fragmentado.
Para alguns é o exercício determinado da faculdade de dominar a matéria (veículos, meios,
suportes), para outros é decoração, lazer, distração. Ao não considerar que são opções
epistemológicas do conhecimento sobre a arte, ocorre um enfraquecimento da força da Arte, é
como se cada um dos dedos da mão representasse uma parte do todo do conhecimento.
12
Andamos sempre com as mãos abertas, os dedos muito separados, como se um dedo não
tivesse nada a ver com o outro, ignorando que se juntarmos os dedos e os entrelaçarmos,
unindo as duas mãos com firmeza, ficaremos fortes, com tanta força nas mãos, que poderemos
oferecê-las para que outros apóiem nelas os seus pés e pulem o muro que separa, fragmenta.
À medida que mais experiências me permitiram conhecer e compreender as teorias, as
práticas, e principalmente refletindo através da arte contemporânea, sua função como
linguagem ética e estética foram ganhando um novo sentido. Durante alguns anos, organizei
seminários e exposições de arte, realizando o desejo de levar exposições para espaços
diversos, criar novos públicos, intervir na vida das pessoas; como ocorreu em 1997, por
ocasião da exposição de arte pública “Arte e Natureza”, quando 10 artistas tomaram praças de
Alphaville e nesse evento, Maria Bonomi, cobriu de espelhos o chão da praça que lhe foi
destinada, oferecendo ao público a oportunidade de se indagar na imagem do céu que cobria o
chão, carregado de significados.
Algumas vezes esses eventos ficaram apenas na idéia, como quando também em 1997
planejei realizar exposição de arte pública no Parque Ecológico Chico Mendes, no Rio de
Janeiro e os artistas Maria Moreira, Martha Niklaus, Brígida Baltar, Cláudia Baker, Annabella
Geiger, João Modé, Márcia X, Brígida Baltar, Ricardo Basbaum, Fernanda Gomes, Regina De
Paula, criaram projetos de instalações sobre a água do lago, as árvores e a areia. Felizmente
naquele mesmo ano, em Münster, ao norte da Alemanha, pude assistir à Sculpture uma
exposição como a que havia desejado, espalhando-se por toda a cidade, desafiando a realidade
com a sinceridade das utopias.
Para a dissertação de mestrado, que defendi na Faculdade de Educação da USP, em
2003, dediquei-me a buscar o significado epistemológico da arte na educação, tendo em vista
os Parâmetros Curriculares Nacionais-Arte/1997 e a formação de professores. Com essa
proposta, estudei as concepções da Arte ao longo do tempo e a maneira como vem sendo
ensinada, desde a chegada de D. João VI ao Brasil, buscando compreender os diversos tipos de
contribuições sociais, as funções, os pontos de harmonia e conflito.
13
Ao mesmo tempo, durante um ano, desenvolvi pesquisa de caráter etnográfico,
acompanhando o desempenho e fazendo intervenções no planejamento e na didática em arte,
de uma professora do ensino fundamental de escola pública no Estado de São Paulo. Observei
e estudei as variáveis com relação ao contexto sócio-econômico-cultural da escola, dos alunos
e da professora; acompanhei um curso de capacitação de professores no ensino da arte
fornecido pelo Estado, assim como estudei o currículo de alguns cursos de formação superior,
da cidade de São Paulo.
No problema em estudo, intrigava-me a confusão de conceitos e a escassez teórica
verificada na articulação da didática escolar, a maneira como é pensada a arte por aqueles que
ensinam a disciplina. Nessa revisão crítica, encontrei um projeto iluminista, passivo às
influências da força da política da industrialização da arte, da cultura, da comunicação, da
mídia, frente ao poder da lógica cultural capitalista.
Nesse período, uma das vivências mais valiosas da minha formação deu-se durante os
três anos que me foi permitido participar de reuniões, debates, dar cursos, oficinas e organizar
seminários como pesquisadora do Núcleo de Formação de Professores da Faculdade de
Educação da USP, sob a coordenação e a sabedoria da Prof. Dra. Stella Piconez.
2 - A cultura, a vivência pedagógica e a origem do problema da tese.
Nasci em uma cidade incrustrada no meio de um deserto, na província de Ica, no Peru,
a 400 quilômetros ao sul de Lima. A cada dois anos, meu pai, que era funcionário da ONU,
tirava dois meses de férias e levava toda a família para um passeio por alguns países da
América do Sul, da América do Norte ou da Europa, antes de irmos para estar com a família.
As imagens mais marcantes que guardo dessas viagens são da estrada entre Lima e Ica,
até chegar à chácara de minha avó. As intermináveis montanhas de areia se espalhando sob o
céu azul, as altíssimas montanhas de pedra andina, as ruínas incaicas por que passávamos, a
14
água gelada do Oceano Pacífico, os lobos marinhos descansando na areia; as roupas
multicoloridas das pessoas das cidades onde o carro parava para que descansássemos,
comêssemos pão com azeitonas, tâmaras, uvas, mangas, doces de gergelim e bebêssemos Inka
Cola.
A dinâmica no processo do encontro de diferenças culturais sempre exerceu um
fascínio sobre mim. Principalmente as imagens das sutilezas dos gestos, as nuances do
comportamento; a força do não-dito; a presença do que não se vê mas está ali; o instaurado
pelo que não se ouve na tradução; a direção do que não está na representação.
No fim do ano de 2001, tendo cursado o Lato Sensu em História da Arte, e ensinado
Estética e História da Arte em uma faculdade da cidade de São Paulo, fui ensinar em Palmas,
no curso de Jornalismo da Universidade Federal do Tocantins. Chamou-me a atenção a
pergunta de alguns alunos da disciplina Antropologia Cultural: “professora, o Tocantins tem
cultura? “ De alguma maneira a pergunta se justificava pelo fato de Palmas ser a mais nova
capital do Brasil, onde moram pessoas chegadas de todo o país.
A partir de então, juntamente com os alunos, desenvolvi expedições ao interior do
Estado; grupos penetravam em igrejas, condomínios, associações, sindicatos, tribos indígenas
do interior do Estado. Descobrimos, modos de viver que remontam ao século XVII, quando
aquela parte do país era o norte do Estado de Goiás e comportamentos, tradições, crenças;
assim como novos hábitos, novos costumes, que poucos imaginavam que existissem.
Gradativamente, a riqueza das relações culturais atuais da vida social, política, econômica,
cultural, foram desvelando-se para nós.
Uma visita muito significativa aconteceu a uma aldeia indígena Krahô, do grupo
lingüístico Macro-Jê, onde o professor índio tentava ensinar, pelos mesmos livros usados para
as escolas públicas da capital. Um de seus alunos veio nos dizer que queria aprender arte.
“Eu quero inventar”, disse ele. Há uma complexidade na relação intercultural que envolve a
15
Foto 2 – Mãe-menina Krahô, Tocantins
Março, 2003
16
cultura de educação não-indígena com a cultura de educação indígena, e o desejo deste aluno,
a princípio tão simples, faz parte da problemática instaurada.
Sabendo que toda identidade é uma construção simbólica e que ao mesmo tempo não
existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades construídas em diferentes
contextos e momentos históricos, interessei-me por começar a retirar as veladuras desse
quadro. Formei um grupo de pesquisa com alunos do curso de jornalismo, consegui
aprovação da Congregação para o Projeto Interações: Comunicação - Educação Indígena e
durante o ano de 2003 fizemos diversas visitas a aldeias Xerente com o intuito de tentar
compreender a maneira como as comunidades viviam a escola intercultural.
Um momento muito especial aconteceu já em minha primeira visita a uma aldeia
Xerente, que escolhemos, a aldeia Nova. Conversamos longamente com o cacique, ouvimos
suas preocupações com o aprendizado das crianças, enquanto todos os demais permaneciam
sentados a uma certa distância, à nossa volta, calados. A seguir, ele nos levou para conhecer a
escola, a aldeia, as árvores, o riacho ao fundo e quando voltamos, as mulheres estavam
sentadas ao redor de uma mesa, onde haviam disposto artesanato criado por elas mesmas.
Compramos alguns objetos, conversamos um pouco mais e já nos despedíamos, quando vimos
que o cacique colocava uma saia de palha em uma das meninas menorzinhas e na cabeça lhe
amarrava um pequeno cocar. Voltei e pedi a uma aluna que fotografasse a força visual que se
impunha. Os demais indígenas, vestindo bermudas e camisetas, também olhavam
pensativamente para o cacique vestindo a menina.
Assim, nesta tese de doutoramento, a minha proposta é, a partir do problema das
limitações do acesso ao direito humano à educação de qualidade, que se realiza pela cidadania,
tentar compreender as maneiras como a arte é pensada na educação intercultural indígena, ao
mesmo tempo que reflito sobre os significados da ação transformadora da estética para a vida.
À medida que a educação diferenciada se desenvolve e repercute sobre as múltiplas definições
de cultura indígena, percebo que os professores apresentam baixa auto-estima e interessa-me
saber de que maneira a Arte é um veículo que pode contribuir, ou não, na relação pedagógica,
na vida cotidiana e quais as conseqüências.
17
3. A estruturação do trabalho
Os resultados que desejo sugerem que parta dos seguintes pressupostos teórico-conceituais:
Que sendo a arte um processo de percepção, inteligências e conhecimento em
ação, dar a conhecer esses recursos teóricos, as recentes concepções de
percepção, inteligências, conhecimento e a tradução da generalidade dessas
questões epistemológicas em relação com a especificidade das ações docentes,
contribuiria para fortalecer a auto-estima; dar ao professor o sentimento de
autonomia que necessita, quanto às possibilidades de planejar livre e
criativamente o currículo, os conteúdos, a valorização da própria percepção, das
próprias habilidades, do próprio conhecimento e a avaliação do aluno, do
professor e da escola intercultural indígena;
Que o estudo do processo histórico-cultural contextualizado, propicia aos
professores, a possibilidade do reconhecimento do sistema simbólico cultural
naquele tempo e lugar, contribuindo para o fortalecimento da relação cidadã, do
discurso crítico e consigo mesmo;
Que para aqueles da cultura do branco que trabalham com o currículo
intercultural é importante o estudo do sistema simbólico cultural do contexto,
visando ter maiores chances de contribuir para uma relação intercultural
educacional digna.
18
Foto 3 - Menina Xerente da aldeia Nova, Tocantins
Outubro, 2003
19
Que a ação criativa desempenha importante papel no processo de construção da
pessoa.
Esses pensamentos me levaram a construir a tese em três Capítulos.
No capítulo I – A ARTE COMO SISTEMA SIMBÓLICO CULTURAL, NA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL.
Neste Capitulo, exponho os fundamentos teóricos que norteiam a pesquisa, revelo por
que a escolha do paradigma usado, reflito sobre a idéia de arte como sistema simbólico
cultural e na educação, sobre o fazer a etnografia do pensamento cultural, sobre o currículo
intercultural, a educação diferenciada e as concepções de nação e etnia, por encontrar que
neste estudo, que envolve um grupo de indígenas no Brasil, as revelações teóricas ajudam a
compreender as relações implícitas no currículo intercultural.
No capítulo II – CIRCUNSTÂNCIAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL INDÍGENA NO BRASIL
Busco desvelar as referências históricas, desde a intervenção dos padres jesuítas até a
atualidade, sob a responsabilidade do MEC – Ministério da Educação e da Cultura. Reflito
através de, entre outros, o conceito de violência simbólica de BOURDIEU e PASSERON.
No capítulo III – A PESQUISA-AÇÃO NA ESCOLA TUPI-GUARANI
Sobre a abordagem empírica da pesquisa, apresento a experiência desenvolvida na
Escola tupi-guarani junto aos professores. Exponho as razões do planejamento, defino
20
objetivos, os procedimentos da pesquisa-ação, o que faço com os professores, o que eles
planejam fazer e o que fazem com os alunos.
Participo de aulas dadas pelos professores, descrevo à medida que reflito, desenvolvo a
observação participativa e faço inserções.
Considerando esta etapa da pesquisa-ação encerrada, me auto-avalio e submeto-me à
avaliação daqueles que avaliam: assessor pedagógico, supervisor, coordenador, vice-diretor e
diretora. Por fim, afastando-me do foco para vê-lo melhor, observo a maneira como se
processou a ação transformadora, minha e dos professores. Reflito criticamente sobre como
ocorreu a interação entre mim e eles; busco encontrar como as pretensões teóricas
aconteceram de fato e revelaram a hipótese da baixa auto-estima dos professores.
Concluo o trabalho, constatando que foi possível contribuir para a educação
diferenciada e o currículo intercultural, a valorização da auto-estima dos professores
indígenas, resgatar alguns elementos do sistema simbólico cultural do contexto e promover a
arte na educação e na vida da comunidade indígena da aldeia Piaçaguera.
21
O imaginário está na raiz tanto da alienação,
como na criação da história.
Cornelius Castoriadis ([1975] 1982:161)
Determinações epistemológicas e éticas (universalidade), por um lado,
determinações culturais e morais (parcialidade) por outro, e
determinações individuais (singularidade) dos sujeitos envolvidos
na produção do currículo, comandam a seleção dos saberes
e das disposições que comporão o currículo escolar.
Alípio Casali (2001: 123)
A dialética intranqüiliza os comodistas, assusta os preconceituosos,
perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários.
Leandro Konder([1981 (2004:87)
22
Neste Capítulo, exponho os fundamentos teóricos que norteiam a pesquisa, revelo por
que a escolha do paradigma usado, reflito sobre as idéias de Arte como sistema simbólico
cultural e Arte na educação; sobre a etnografia do pensamento cultural; o currículo
intercultural, a idéia de educação diferenciada e as idéias de nação e etnicidade, por encontrar
que neste estudo, que envolve um grupo de indígenas no Brasil, as revelações teóricas
explicam conflitos do espírito das pessoas e ao mesmo tempo abrem brechas que podem
oferecer alívio ao sofrimento humano.
1.1. O paradigma
Quando, no começo de 2003, assumi a disciplina “Pesquisa em Educação” do curso de
Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins, isso me deixou muito feliz, pela
possibilidade de realizar um trabalho instigante de pesquisa qualitativa com os alunos.
No entanto, para minha surpresa, fui procurada pelo professor de Estatística, que me
comunicou que havia alguns anos ele e a professora anterior, juntavam as disciplinas para
ensinar pelo método da pesquisa quantitativa e assim haviam sido sempre exitosos. Com a
minha entrada, ele esperava que eu não fosse querer mudar aquilo que já era tradição no
currículo da Instituição.
Após caracterizar para os alunos algumas das teorias e métodos envolvidos nas duas
maneiras de pesquisar, dei a eles a escolha da maneira como iríamos trabalhar. O fato de
todos escolherem a pesquisa qualitativa, repercutiu posteriormente no seu entusiasmo, quando
foram a campo em pequenos grupos, conviver, observar, fazer anotações, entrevistar,
fotografar e filmar maneiras, processos de educar crianças do ensino fundamental em
contextos diferentes; na escola pública, na escola privada, na escola da FEBEM, na escolinha
da prisão de mulheres, na aldeia indígena.
23
Durante essa vivência, um grupo de alunos foi a uma aldeia Krahô e dali trouxe mais
uma experiência para motivar o meu interesse pela arte no currículo intercultural: tratava-se da
imagem de uma menina de 12 anos, que enquanto amamentava, sentada sobre uma esteira,
fazia as tarefas escolares. Todo o edifício da burocracia institucional educacional se desfez
diante de meus olhos, quando vi as contradições; a simplicidade, a complexidade, a
responsabilidade, o descompromisso, a gravidade e a delicadeza daquele quadro, e da minha
perplexidade, desejei conhecer mais profundamente os significados das relações nos processos
envolvidos nesse universo.
Assim sendo, para orientação paradigmática desta tese, adoto a idéia de cultura como
sistemas de significados, pois a sua compreensão e as transformações me interessam mais do
que a crítica ao processo de mudanças nas estruturas educacionais, que atualmente envolvem a
relação intercultural entre a cultura de educação não-indígena e a cultura de educação
indígena, no Estado de São Paulo.
O conceito adotado vem da teoria antropológica da cultura, do antropólogo norte-
americano Clifford Geertz ([1978] 1989:4), para quem cultura é uma teia de significados
tecida pelo homem, cabendo a nós ao fazer o seu estudo, analisar, não como uma ciência
experimental buscando leis, mas como uma ciência que busca os significados.
O Professor Dr. Geertz nasceu em San Francisco, na Califórnia, em 1923; estudou
filosofia no Antioch College, Ohio, e defendeu tese de doutorado em antropologia na
Universidade Harvard. Desenvolveu pesquisa etnográfica no Sudeste da Ásia em Java e Bali,
e na África do Norte, em Marrocos. Considera Wittgenstein como seu mestre, pela oposição
que faz à idéia de uma língua privada, por ter o filósofo levado o pensamento a ser examinado
em praça pública, por sua noção de jogo de linguagem como um conjunto de práticas e a sua
proposta de formas de vida como feixes de condições naturais e culturais pressupostas em
qualquer compreensão específica de mundo ([2000] 2001:9).
24
Quando Geertz chegou a Harvard, o Prof. Dr. Kluckhohn, que era decano da disciplina,
e o Prof. Dr. Alfred Kroeber, recentemente aposentado da Universidade de Berkeley, estavam
empenhados em preparar uma compilação definitiva e autorizada de várias definições de
cultura, surgidas na literatura desde Arnold e Taylor; tendo encontrado 171, classificáveis em
13 categorias; eles chamaram Geertz para ler o que haviam feito e lhe pediram que sugerisse
mudanças ou esclarecimentos. Esta teria sido a experiência que o levou a mergulhar
profundamente na problemática da cultura
(Idem:22).
Sua contribuição para a teoria social e cultural é considerada uma revolução
paradigmática, levando pesquisadores a desejarem conhecer mais sobre os significados dos
sistemas simbólicos que ligam as vidas das pessoas. Atualmente é professor emérito no
Instituto de Estudos Avançados na Universidade de Princeton, New Jersey.
Mudanças paradigmáticas indicam diferenças em substância, visam não apenas à
natureza, mas também à ciência que os produziu e são fonte de métodos, áreas problemáticas e
padrões de solução que se aceitam em uma determinada comunidade científica (KUHN,
[1962]1990:137).
Foi isso o que aconteceu no meio acadêmico, quando GEERTZ, em sua obra
Interpretação das Culturas, publicado em 1978, lançou duas idéias fundamentais: a primeira
entende a cultura, não como complexos de padrões concretos de comportamento, costumes,
usos, tradições, hábitos, como vinha sendo pensado até então, mas sim como um conjunto de
mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções para governar o comportamento
([1978] 1989:33).
A segunda idéia defende que o homem é um animal que depende desses programas
culturais, mecanismos de controle extragenéticos, para ordenar seus comportamentos, que de
outra maneira seriam um caos de atos sem sentido, e a experiência humana não teria qualquer
forma (Ibid.).
25
Essas reformulações do conceito de cultura, e do papel que esta desempenha na vida
das pessoas, provocou um deslocamento na definição de homem; do empiricismo do seu
comportamento em cada tempo e lugar, para os mecanismos através dos quais a amplitude e a
indeterminação das suas capacidades inerentes podem ser reduzidas à estreiteza e
especificidade de suas reais possibilidades de desempenho. Vemos, portanto, que a cultura
não é apenas a totalidade acumulada de padrões culturais, mas em suas relações, uma condição
essencial à existência humana (Ibid.).
Para explicar a natureza do entendimento antropológico, GEERTZ se refere ao
incidente causado pela viúva de Bronislaw Malinowski, também antropóloga, quando após o
falecimento do cientista, publicou A Diary in the Strict Sense of the Term, surpreendendo os
leitores ao desfazer o mito do pesquisador de campo que se adapta com facilidade, tem muito
tato e paciência para lidar com qualquer povo, em qualquer parte do mundo, causando
escândalo ao revelar que MALINOWSKI na verdade dizia coisas muito desagradáveis sobre
os nativos com quem vivia e dizia desejar estar em outro lugar ([1983] 1997:85).
Para GEERTZ, a questão da idealização moral da figura do pesquisador, não é bem o
aspecto principal levantado pelo livro, mas sim de como seja possível que antropólogos
cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e percebe o mundo. Trata-se,
mais bem, diz ele, de uma questão epistemológica que requer a suficiente proximidade
psicológica, que lhes permita aproximar-se do que seja o mundo do ponto de vista dos nativos.
Encontrar o equilíbrio entre perceber conceitos que são da experiência-próxima das
pessoas (idéias e realidades que elas representam) e estabelecer uma conexão esclarecedora
com aqueles conceitos de experiência-distante, seria essa tarefa que permitiria ao antropólogo
colocar-se “por trás do ombro do outro”; para descobrir o que eles acham que estão fazendo.
O “macete”, seria não deixar-se envolver por nenhum tipo de empatia espiritual interna com
seus informantes (Idem: 88).
Essa forma de colocar a questão, apresentada por GEERTZ e formulada pelo
psicanalista Heinz Kohut, conceitua como experiência-próxima a que um paciente ou um
26
informante usa sem esforço para referir-se àquilo que seus semelhantes vêem, sentem, pensam
ou imaginam, e ele próprio entenderia facilmente se outros usassem da mesma maneira. Por
exemplo, medo seria uma experiência-próxima e fobia uma experiência-distante e pela mesma
lógica, amor, seria experiência-próxima e catexia em um objeto uma experiência-distante
(Idem:87).
Portanto, entender os conceitos alheios requer deixar de lado a nossa própria
concepção e buscar perceber as experiências dos outros com relação a sua própria concepção
de eu. GEERTZ (Idem: 90) entende que a concepção de pessoa, a idéia que se tem sobre o
que é ser uma pessoa, é um fenômeno universal, existe em todos os grupos sociais e seria,
portanto, o veículo inicial, que permitiria examinar as formas simbólicas, palavras, imagens,
instituições, comportamentos, nos quais as pessoas se representam e representam aos outros,
pois a concepção de eu é parte de uma ontologia e estética específica que inclui outras
sutilezas secundárias, manifestadas através de formas simbólicas, formando um mundo
interior de emoção e um mundo exterior de comportamento estruturado.
Com base nestes pensamentos, o desenvolvimento da pesquisa-ação, descrita no
Capítulo III, teve início com perguntas sobre o que os professores indígenas pensam de si
mesmos. Dessa maneira, foi possível observar sua relação consigo mesmo e com os programas
culturais, mecanismos de controle que ordenam os seus comportamentos, e planejar inserções
com o intuito de contribuir para dar alívio e nova forma, mais confiante, à experiência
humana.
1.2. A Arte como sistema simbólico cultural e na Educação
Pela Constituição de 1998 e a nova LDB (RECENEI, 1998: 12), os povos indígenas
têm todo direito de estabelecer formas particulares de organização escolar. As escolas têm
27
autonomia tanto para criar um calendário diferenciado, quanto para o desenvolvimento e a
avaliação dos conteúdos, como lhes pareça mais adequado a suas realidades.
No item A arte nas sociedades indígenas do RECENEI, considera-se a arte presente
nas diferentes esferas da vida: “nos rituais, na produção de alimentos, nos locais de moradia,
nas práticas guerreiras, além de expressar aspectos da própria organização social” (Idem: 228).
Considera-se também que as produções artísticas se constroem a partir de valores,
regras, estilos, conhecimentos técnicos, materiais e concepções estéticas distintas em cada
povo e que a arte não se constitui em algo que não muda, que se transmite através de gerações
de modo inalterado, mas é constantemente elaborada e reelaborada, ao longo do tempo e
através do espaço, acompanhando a própria vida da sociedade produtora (Ibid.).
Defende-se que a arte indígena deva ser compreendida por suas diferentes
características de estilo, formas, materiais, concepções estéticas, tipo de decoração, técnica e
matéria prima, pois o conjunto de elementos que formam o estilo de cada povo, busca atingir
determinados padrões estéticos (Idem: 289).
Compreender e captar o simbolismo de uma sociedade, diz CASTORIADIS ([1975]
1982:167), é captar as significações que ela carrega e essas significações só aparecem
veiculadas por estruturas significantes. Mas isso não quer dizer que se reduzam a isso, nem
que sejam unívocas ou determinadas por elas, pois a constituição de signos em função de um
sentido é um processo complexo.
Considerar o sentido como simples “resultado” da diferença dos signos seria
transformar as condições da história, em condições suficientes de sua existência (Idem: 168).
É preciso ter em conta que o simbolismo é ele próprio criado e que a história somente existe
na e pelas diferentes linguagens que se dão, constituem e transformam. Por isso é importante
observar como o currículo se processa na prática, nas ações.
28
Para GEERTZ ([1983]1997:140), a arte, a ciência, a ideologia, o direito, a religião, a
tecnologia, a matemática, a ética e a epistemologia, são tão freqüentemente considerados
gêneros da expressão cultural, dependentes de tradições de pensamento e sensibilidade
elaborada, que isso leva a querer saber até que ponto os povos de fato as possuem, qual forma
tomam nas diferentes culturas e como podem iluminar a versão que temos desses gêneros.
O autor (Idem: 154) defende que a unidade da forma e do conteúdo seja um feito
cultural, onde e em que grau ocorra. A tarefa de explicar esta cinética particular, essa ação de
forças em movimento, caberia à semiótica da arte, a qual, em seu entender, deveria dar mais
atenção para aquilo que se fala e se diz, além do discurso estético. Assim, tanto no caso do
observador como no do artista, como as habilidades se desenvolvem através de uma
experiência cultural de vida, a capacidade visual do público, resulta ser também um veículo
transmissor da arte.
O antropólogo (Idem: 144) diz perceber que atualmente, em quase todo o mundo, fala-
se da arte em termos que ele chama de artesanais, ou seja, sobre as progressões de tonalidades,
as relações entre as cores, formas, harmonia e composição pictórica, como se estas fossem até
ciências menores. Fomentada pelo movimento moderno, que é orientado para um formalismo
estético, esta idéia estaria generalizando essa maneira de ver a arte e ao mesmo tempo
elaborando uma linguagem técnica, supostamente capaz de expressar as relações internas entre
mitos, poemas, danças ou melodias, em termos abstratos e possíveis de ser mudados.
O problema, diz o autor (Ibid.), não estaria na abordagem técnica, também utilizada
por alguns povos aborígenes australianos e outros, mas sim, o que chama a atenção é o fato de
que somente no Ocidente e talvez somente na Idade Moderna, tenha-se acreditado ser esse
aspecto suficiente para entender a Arte.
Subestima-se o fato de que os meios através dos quais o artista se expressa e manifesta
seus sentimentos pela vida, são inseparáveis. Assim, no caso da estética nativa, a preocupação
com linhas, cores e formas, nasce de algo mais que um prazer desinteressado em suas
propriedades intrínsecas ou de alguma noção cultural generalizada, surgindo mais bem, como
29
Foto 4 - Menina tupi-guarani na escola da aldeia Piaçaguera, São Paulo
Setembro, 2004
conseqüência de uma sensibilidade específica, formada pela totalidade da vida coletiva (Idem:
149).
Esse pensamento difere daquele que considera a força estética como uma expressão de
prazeres do artesanato (o fazer) e o da visão funcionalista, instrumental e pragmática que
entende obras de arte como mecanismos elaborados para definir relações sociais, manter
regras, fortalecer valores, idéia estimulada atualmente pela industrial cultural.
30
Segundo GEERTZ (Idem: 150) a principal conexão entre a arte e a vida coletiva está,
não em celebrar uma estrutura social ou em pregar doutrinas úteis, mas em materializar uma
determinada forma de viver, trazendo um modelo específico de pensar para ser visto no
mundo dos objetos, à medida que o torna visível.
Assim, partindo do princípio de que Arte é um pensamento, sua concretização nasce de
uma maneira de pensar, portanto aquilo que não se vê, o que aconteceria com um povo que
deixasse de produzir pinturas ou esculturas? Certamente não entraria em colapso. Talvez
algumas coisas sentidas deixariam de ser ditas, representadas por esses suportes e após algum
tempo, poderiam até deixar de ser sentidas, ou se encontraria outros meios, veículos, para as
expressões, pois muitas coisas ajudam uma sociedade a funcionar e a destruir-se (Ibid.).
É então possível perceber como os sinais ou elementos simbólicos que compõe um
sistema estético, tem uma conexão ideacional, e não mecânica, com a sociedade em que se
apresentam, pois fazem parte do sistema geral de formas simbólicas da cultura. Não são,
portanto, ilustrações de conceitos em vigor, mas se relacionam com os demais componentes
do universo de experiências, buscando um lugar significativo nesse repertório e como produto
da sensibilidade coletiva, transcendendo a própria experiência vivida (Idem: 165).
As idéias sustentadas atualmente por GEERTZ foram também defendidas por Lev
VYGOTSKY. Em suas obras, VYGOTSKY ([1926] 2001:361) questionava diversos aspectos
da Arte na educação. Um deles é justamente a prática comum de se reduzir a estética ao
sentimento de prazer, como um fim em si mesmo, restringindo o significado das vivências
estéticas aos sentimentos imediatos de alegria e gozo que despertam, desprezando o fato de
que a obra de arte não é percebida apenas pela passividade do nosso organismo, olhos, mãos,
corpo, mas sim através de uma complexa atividade perceptiva e emocional.
O autor (Idem: 358) dizia que a arte na educação também não deveria ser usada como
efeito moral, bom ou mau, ou como sentimentalismos, ou para formas de interpretação
caricaturescas, pois tudo isto se encontra em profunda contradição com a natureza da vivência
31
estética e, mais grave ainda, prejudica a percepção e a atitude estética em relação às coisas da
vida.
Propondo idéias que se aplicam à arte em geral, VYGOTSKY ([1925] 1970: 35) dizia
que o erro fundamental da estética experimental usada na educação, naquela época assim
como atualmente, estava justamente em começar pelo fim, pela apreciação e o prazer estético,
desprezando o próprio processo e esquecendo que o prazer e a apreciação representam
momentos casuais, secundários e derivados da conduta estética, o que leva ao segundo erro, o
de separar e diferenciar a vivência estética, da comum.
Dessa forma a arte acabada, sendo uma ideologia como outra qualquer, na estética
modernista pragmática e experimental, fica sempre por fora das reais dimensões da estética, ao
valorizar apenas a reprodução de obras de arte que já existem e apresentar para apreciação “las
combinaciones más elementales: de colores, líneas, sonidos, etc, sin tomar en consideración
que estos momentos no caracterizan em modo alguno la percepción estética como tal.”,
reificando a arte (Idem: 68).
Enquanto não aprendamos a separar os procedimentos adicionais da arte, pelos quais se
transformam os materiais tomados da vida, toda intenção de conhecer algo através da obra de
arte, resultará metodologicamente falso, dizia VYGOTSKY (Idem: 70). Ele sustentava que se
recorresse à vida psicológica para compreender a sua ação, porque essa se realiza sempre em
conexão com as demais formas de nossas atividades (Idem: 39).
O que isso quer dizer, é que a arte introduz um movimento crescente de ação que
rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade para um sentido novo, formulando para a
mente e revivendo para o sentimento as emoções, paixões e imperfeições que sem a arte
permanecem imóveis e indeterminadas. Daí porque a arte na educação pragmática
1
é usada
apenas para a reprodução, assim como pela indústria cultural, porque as emoções estéticas ao
1
SANCHEZ, Janina Moquillaza. “O significado da arte na educação” Dissertação de Mestrado, Faculdade de
Educação da USP, 2003.
32
acumular-se e repetir-se, conduzem a “interessantes” resultados práticos (VYGOTSKY [1925]
1970: 306).
Isto porque as emoções da arte como emoções inteligentes (Idem: 260), organizam
nossas condutas em direção ao futuro, sendo uma disposição que nos põe para a frente, como
uma exigência dialética que pode até nunca vir a realizar-se, mas que nos impulsiona a aspirar
além da nossa vida (Idem: 310).
Segundo GEERTZ ([1983] 1997:146), o que isso implica em qualquer sociedade, seja
qual for a forma que a arte tomar, é que surge o problema da necessidade que as pessoas têm
de explicá-la, de anexá-la às outras formas de atividade social, integrando-a na textura de um
padrão de vida específico. Este processo de incorporação e atribuição de um significado
cultural à arte, deve ser sempre um processo local a ser reconhecido, para ser valorizado.
Para as reflexões desta tese, adoto os pensamentos de GEERTZ e VYGOTSKY,
buscando observar como podem contribuir para a arte como sistema simbólico cultural e para
a educação intercultural. No Brasil, uma das etnias que mais me impressionou nesse sentido,
foi a Carajá, na ilha do Bananal, no Tocantins, onde no cotidiano, logo cedo pela manhã, as
mães adornam as crianças, põe-lhes flores nas orelhas enquanto cantam e enfeitam o seu
corpo.
Na aldeia tupi-guarani, de Piaçaguera, as pessoas possuem forte memória das relações
que seus antepassados mantiveram com o lugar onde a aldeia está, por ser um “lugar de
passagem”. Pensam-se como um “povo misturado” devido a que alguns dos homens e das
mulheres se casaram com pessoas “de fora”. Quando lhes perguntei a forma como viviam
seus rituais e festas, disseram que “não festejam nada”. Porém logo me dei conta de que na
verdade, não é porque não houvesse festas, nem porque eles não gostassem, mas é que para
eles, estavam desprovidas de valor.
Durante os meses que me reuni com os professores, à medida que as nossas reuniões
foram produzindo pesquisa deles mesmos no âmbito da aldeia, e foram surgindo dados sobre
33
contos, músicas, danças, instrumentos, desenhos e simples relatos dos mais velhos, tal
procedimento nos possibilitou uma visão mais ampla da variedade de conhecimentos da
comunidade.
Gradativamente foi aparecendo forte interesse em buscar novos dados, mostrar
instrumentos que estavam guardados, cantar músicas que há muito tempo não se cantavam
mais. Foi-se construindo assim, uma identidade mais confiante e positiva, baseada na
valorização das suas habilidades e dos seus conhecimentos tradicionais
Nessa convivência, observei como os índios planejavam a fertilidade da sobrevivência,
criavam objetos escolhendo cuidadosamente as cores, os tipos de plumas, palhas, sementes,
pedras, texturas e madeiras para vender, estudavam propostas, pintavam o seu corpo,
examinavam projetos coletivos, construíam a própria casa, lidavam com os conflitos,
dançavam a alegria do seu corpo e a satisfação de oferecer algo para alguém.
“Quero fazer cerâmicas na aldeia”, me disse uma vez Ecocatu. Teria realizado a sua
idéia? Ainda não sei. Ás vezes as aflições são muitas, e ao mesmo tempo. Mas ela estava
gestando a idéia, fecundando a arte que deriva da sua própria riqueza interior, predisposta para
a construção de novas possibilidades para a vida coletiva.
BOURDIEU e PASSERON ([1970] (1992: 32) dizem que, em uma determinada
formação social, as instâncias que pretendam objetivamente o exercício legítimo de um poder
de imposição simbólico, pretendendo reivindicar o monopólio da legitimidade, entram
necessariamente em concorrência, pois a legitimidade é indivisível.
A expressão violência simbólica é usada por BOURDIEU e PASSERON para referir-
se à ruptura com todas as representações e as concepções espontâneas de ação pedagógica.
Eles vêem o funcionamento da escola e da cultura através de metáforas econômicas nas quais
a cultura funciona como uma economia e a dinâmica da reprodução social está baseada na
reprodução cultural. Entendem que, para que o domínio simlico seja eficaz, acontece em
34
um duplo arbitrário; por um lado, a imposição simbólica, por outro a ocultação de que se trata
de uma imposição.
Percebendo que esse é um recurso usado há séculos na educação, no Brasil, recorro aos
fundamentos destas reflexões, tendo em conta, a influência preponderante da cultura e que em
1970, quando a obra A Reprodução foi escrita, ainda não se compreendia a teoria da recepção
como dinâmica que pode ser ativa.
O RCNEI integra a série Parâmetros Curriculares Nacionais elaborados pelo Ministério
da Educação e do Desporto, atendendo a determinação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, que estabelece a diferenciação da escola indígena das demais escolas do
sistema brasileiro, pelo respeito à diversidade cultural, à língua materna e pela
interculturalidade.
A análise integral desse documento não é a proposta deste trabalho, mas sim destacar
da sua leitura alguns trechos que auxiliem nossas reflexões. Nota-se por exemplo, que o
capítulo dedicado à Arte, é introduzido por um texto focado no conceito de arte e cultura
ocidental, usa-se da linguagem do sistema acadêmico e pressupõe-se que o índio tenha acesso
a museus, praças, fotografias, gravuras, discos, livros e filmes:
Em cada período da história da humanidade, algum tipo de arte foi produzido. Pode-se
conhecer uma boa parte dessa arte em museus, praças, nos próprios lugares de sua realização,
ou por meio de fotografias, gravuras, discos, livros, filmes e outros meios de registro e
divulgação (RCNEI/Arte 1998:287).
No parágrafo a seguir, noto aquilo que Marilena Chauí chama de “recusar do não-saber
que habita a diferença”, trata-se de através da linguagem, neutralizar a história, abolindo as
diferenças, ocultando as contradições e desarmando toda a tentativa de interrogação. Diz o
texto :
35
Foto 5 - Professora tupi-guarani da aldeia Piaçaguera, São Paulo
Setembro, 2004
Assim como há elementos que servem para distinguir os diferentes povos e grupos
sociais, é preciso lembrar que as culturas também se parecem, em certos aspectos, umas com as
outras. Se por um lado os desenhos dos Inuit (esquimós) podem se diferenciar em estilo ou
técnica dos desenhos Ticuna, por outro, os temas de suas esculturas em pedra criam uma
estreita relação com as esculturas Ticuna, estabelecendo uma ponte para que uns possam
apreciar as produções artísticas dos outros (Ibid.).
Lembrando que essa é uma leitura dirigida a professores indígenas, cuja capacitação,
seguida de formação no Estado de São Paulo, iniciou-se há apenas três anos, percebe-se que
quanto mais o contexto no qual se constitui o valor dos produtos das diferentes ações
36
pedagógicas está unificado, mais inculca um arbitrário cultural dominado sobre o grupo que
sofre a ação pedagógica, mais tem oportunidade de lembrar o não-valor de seu acervo cultural
e a indignidade cultural de seus conhecimentos (BOURDIEU e PASSERON [1970] 1992: 41).
No caso acima, talvez alguns professores tenham anteriormente ouvido falar de Inuits, porém
para a maioria, acredito que seja mesmo uma palavra desconhecida.
O discurso instituído (CHAUÍ [1980] 1981:7) não conceitua arte nem cultura, mas
através dos exemplos, define:
Nas sociedades indígenas, a arte está presente nas diferentes esferas da vida, nos
rituais, na produção de alimentos, nos locais de moradia, nas práticas guerreiras, além de
expressar aspectos da própria organização social (RCNEI-Arte/1998: 287).
Outro aspecto a ser lembrado são os tempos de cerimônias e rituais e sua grande
efervescência artística. Nesses momentos, interrompem-se atividades cotidianas e todas as
pessoas se empenham na experiência da recriação mítica dos fundamentos de sua sociedade. A
arte ganha refinamento, obedecendo a regras mais estritas (Idem: 288).
O discurso competente, defende CHAUÍ (Idem:13), não exige uma submissão
qualquer, mas algo profundo e sinistro; exige a interiorização de suas regras, pois aquele que
não as interiorizar corre o risco de ver-se a si mesmo como incompetente, anormal, a-social,
como detrito e lixo.
O RCNE/Indígena (1998: 14), deixa claro que “não é um documento curricular pronto
para ser usado mecanicamente, em qualquer contexto, nem pretende estar dando receitas de
aula” e dentro do discurso competente permite-se diferentes leituras (Idem: 26):
A política integracionista começava por reconhecer a diversidade das sociedades
indígenas que havia no país, mas apontava como ponto de chegada o fim dessa diversidade.
37
Toda diferenciação étnica seria anulada ao se incorporarem os índios à sociedade nacional. Ao
se tornarem brasileiros, tinham que abandonar sua própria identidade.
No texto dedicado à arte, é possível perceber o que GEERTZ ([1983] 1997:144) chama
de tendência modernista da arte, a maneira de tratar da arte em termos artesanais sobre as
cores, formas, linhas, suportes, técnicas de documentação, conservação, tratamento de
matéria-prima, etc. (RCNEI 1998: 297-316); assim como há referências acadêmicas da
extensão da arte à vida:
Além desses, outros aspectos estão relacionados intimamente com as produções
artísticas, como a percepção, a criação, a fantasia, a imaginação, a reflexão, a emoção, o
sentimento. Tais aspectos, tratados adequadamente, propiciam o desenvolvimento de
potencialidades individuais que também são fundamentais à construção de outros
conhecimentos. Permitem, ao mesmo tempo, que os alunos tenham oportunidade de lidar com
situações que ultrapassam o universo de sua vida cotidiana, tornando-se capazes de ampliar a
dimensão da realidade em que vivem e passando a ter uma participação mais ativa nos
processos culturais, especialmente os criativos (RCNEI-Arte/1998: 292).
E teorizações sobre a criação e a expressão através da arte:
Permite compreender, ainda, que todos os seres humanos possuem as mesmas
capacidades de criar, expressar idéias, imaginar, ser sensível, ter emoções, ter competência
para desenvolver técnicas elaboradas, selecionar materiais e ampliar a percepção do mundo em
que vivem (Idem: 293)
Entretanto, penso que toda essa exposição acadêmica, embora correta e pertinente, é
porém insuficiente, enquanto não se perceba e se assuma que pensar Arte hoje, requer pensar
ao mesmo tempo na construção e destruição de sistemas simbólicos, buscando o sentido das
coisas que nos acontecem (GEERTZ [1983] 1997: 180).
VYGOTSKY postulava que a arte com relação à vida, representa o centro de todos os
processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, e é meio de estabelecer equilíbrio
38
entre o homem e o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida. Ele (Idem:
316-317) acreditava que no futuro, a arte seria necessária, para refazer o homem em um novo
homem, convencido de que a arte seria decisiva nesse processo.
Penso que a arte tem a importância de significar que se pode ir além do estudo de
sinais como meios de comunicação, indo ao encontro de formas de pensamento, como um
idioma a ser interpretado, epistemologias a serem traduzidas, trilha de muitos caminhos a ser
caminhada com os pés descalços, deixando-se compreender os diversos significados que as
coisas têm para a vida das diferentes pessoas, e fazer perguntas estando aberto às
possibilidades que surgem com as mais simples respostas.
Como se verá no Capítulo III, acredito que na educação intercultural, essa seja a arte a
se valorizar, não por ser um complemento da vida, nem porque sirva para indicar, ou porque
imite estilos ou represente convenções, mas porque revela a energia da vontade, da percepção
das experiências individuais, coletivas, culturais, abrindo possibilidades dialéticas, críticas, e
da riqueza interior predispondo a ação criativa que transcende a própria vida.
1.3. A etnografia do pensamento cultural
Refletir sobre a arte no currículo intercultural, é também refletir sobre o pensamento
cultural. VYGOTSKY ([1934] 1991:44) dedicou estudos importantes sobre o pensamento e a
linguagem, fazendo análise genética e observando sistematicamente as relações entre o
desenvolvimento da capacidade de pensar da criança e o seu desenvolvimento sócio-cultural,
defendendo que o pensamento e a fala têm raízes diferentes e que existe um sistema dinâmico
de significados em que o afetivo e o intelectual se unem. Segundo ele, o desenvolvimento do
pensamento é determinado pela linguagem, ou seja, pelos instrumentos lingüísticos do
pensamento e pela experiência.
39
VYGOTSKY (Idem: 18). considera que o pensamento verbal não é uma forma de
comportamento natural e inata, mas sim resulta de um processo histórico-cultural com
propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de
pensamento e fala, daí porque o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento
acontece do social para o individual.
Dentro da idéia de que o pensamento é resultado de uma manipulação intencional de
formas culturais, referindo-se às exigências do cientificismo do século XIX, Manuela Carneiro
da CUNHA ([1992] 2002: 134), cita Blumenbach, um dos fundadores da antropologia física,
quem, preocupado em separar claramente os antropóides dos humanos, analisou um crânio de
índio Botocudo (povo indígena encontrado em Minas, Bahia e Espírito Santo), e o classificou
como “a meio caminho entre o orangotango e o homem”.
Não se pode dizer de que maneira uma afirmativa dessas repercutiu sobre a vida dos
Botocudos, pois não se sabe se eles chegaram a tomar conhecimento dessa classificação e de
que forma teriam reagido a ela, mas podemos imaginar a repercussão social e cultural, com
relação à imagem que se tem do índio na sociedade, pois como diz GEERTZ ([1978]
1989:33), o homem é um animal que depende de programas culturais, que influem e ordenam
seus comportamentos e que desempenham um papel fundamental na vida das pessoas,
podendo reduzir suas reais possibilidades de desempenho.
Enquanto antes era questão de comparar processos psicológicos de uma pessoa com os
de outra, hoje considera-se questão de comparar estruturas conceituais de uma comunidade
lingüística com as de outra, diz CUNHA ([1992] 2002:225).
Essa mudança na maneira de ver o problema fez surgir a chamada epistemologia
prática, que levou ao surgimento da hermenêutica cultural e a questão atualmente é descobrir
como é que os outros, onde quer que estejam, organizam seu universo de significados
(GEERTZ([1983] 1997: 226), o que envolve perceber as formas simbólicas, arte, linguagem,
mitologia, teoria, ritual, tecnologia, direito, receitas, preconceitos, senso comum.
40
Ao mesmo tempo, trata-se de considerar a cognição, a emoção, a motivação, a
percepção, imaginação e a memória, como sendo elas mesmas, “coisas sociais” que se
solucionam esteticamente.
Nesta tese, fazendo a etnografia do pensamento cultural, considero a maneira de tratar
a unidade e a diversidade da vida da mente, busco refletir à medida que descrevo. Assim, trato
de decifrar a forma pela qual um determinado significado em um sistema de expressão, é
expresso e compreendido em outro sistema.
1.4. O currículo intercultural: um encontro entre culturas
No ambiente escolar indígena, o currículo se perspectiva para o espaço em que ocorre
o encontro entre culturas. É ali que as ações curriculares ocorrem, pessoas se manifestam,
processos circunstanciais se dinamizam e criam-se projetos, palavras, gestos, imagens,
juntando possibilidades que surgem de dois mundos, ou três, ou mais. Quando se cria, diz
VYGOTSKY ([1925] 1970: 74), em sua tese de doutoramento sobre a psicologia da arte, tudo
aquilo que o artista tenha utilizado, constitui o material da obra de arte; sons, imagens,
palavras, e inclusive os pensamentos que a obra possa encerrar.
Pensar o currículo intercultural significa o profundo respeito à identidade étnica e
racial, o que quer dizer o reconhecimento ético dos elementos implícitos na dimensão estética
e na complexidade dessa construção.
Segundo Peter McLaren ([1994]2000:46), identidades envolvem articulações pré-
discursivas (materiais) e discursivas (semióticas) estando sempre relacionadas a práticas
sociais materiais, de uma formação social mais ampla. Por esse motivo os educadores se
devem perguntar sobre as formas de relação, as maneiras de estruturação, negociação, os
41
padrões de inteligibilidade, as relações de interdependência que desejam construir na
especificidade do currículo intercultural.
Na atualidade, as características de ceticismo, desconfiança, ganância, o desejo de
consumo hiper-erotizado, o narcisismo, a mídia controlada pela elite branca, o
desaparecimento do afeto, o clima de desilusão e desespero, frutos do capitalismo ocidental,
são forças incompatíveis com a realização de liberdade, e de fato não contribuem para a justiça
e democracia que se deseja no currículo multicultural (MACLAREN, Idem: 54-56).
O multiculturalismo, conceito de culturas públicas heterogêneas defendido por MAC
LAREN (Idem: 60-62) no quadro da crítica pós-moderna educacional, problematiza a questão
da diferença e da diversidade, da pedagogia e da transformação social, enfatizando a
indissociabilidade entre língua, poder e subjetividade; revelando a desesperança de
transcender as condições ideológicas, econômicas e políticas que transformam o mundo em
formações sociais e culturais pré-determinadas
Portanto os educadores interculturais precisam ter consciência de que o saber curricular
é produzido social e historicamente, e o seu fazer individual, de acordo a seus pressupostos
sobre o saber, tem importância para o aprendizado em sala de aula (Michael YOUNG, [1998]
2000:18).
A história, as divisões sociais, os interesses concorrentes e sistemas de valor existentes
numa sociedade, estão implícitos no currículo escolar e influem sobre o modo como os
professores vêem seus próprios papéis. YOUNG (Idem:43-44) chama a atenção para a
existência de duas concepções: “o currículo como de fato”, com conceitos fixos de ensino,
conhecimentos e capacidades, fortemente criticado por Paulo Freire por desumanizar e
mitificar o processo de aprendizado, produzindo estruturas de saber externas à realidade da
prática de sala de aula, dos professores e alunos.
E o “currículo como prática”, igualmente enganador, utópico, por enfatizar
excessivamente as intenções e ações subjetivas dos professores e alunos, como se estes
42
pudessem mesmo estar agindo sobre um currículo, que na verdade é em parte externo a eles e
procedente deles, pois tem também caráter político e econômico.
Diante da questão da reificação curricular, YOUNG (Idem: 54-55), sugere um conceito
radical de currículo, alternativa que permita aos professores transformar sua ação e melhorar o
aprendizado dos alunos, através do desenvolvimento de práticas com melhor base teórica.
Os modelos curriculares, diz o autor (Idem: 217-218), desde o século XIX têm sido
portas de entrada para o emprego ou para o estudo futuro e funcionam como mecanismos de
seleção e como fiadores desses padrões. Pressupondo um modelo estático de sociedade,
assumia-se que a divisão profissional do trabalho evoluía lentamente, tendo poucas relações
com a sociedade do futuro, na qual as pessoas mudam de profissão e se re-qualificam várias
vezes na vida, como acontece atualmente e é um problema que nos países em
desenvolvimento, pode causar situações de inflação ou desvalorização das qualificações.
Para aliviar as tensões atuais, diz YOUNG (Ibid.) necessita-se de uma qualificação
como processo contínuo; que certifique que foram alcançados certos padrões, superando
padrões anteriores, o desenvolvimento de novas habilidades, e um novo entendimento ao
longo do tempo, entre as pessoas envolvidas no planejamento de cursos e avaliação por um
lado, e por outro, os diferentes grupos que qualificam, empregadores e suas organizações.
O autor (Idem: 258) acredita que deva dar-se um significado completamente novo ao
tornar a educação a mais alta prioridade política, diante de desafios como; desenvolver
critérios para articular perspectivas de diferentes abordagens disciplinares; identificar
possíveis conseqüências no caso de mudanças de política, devido às novas formas de
estratificação que podem provocar; observar a incorporação de conceitos de aprendizado como
participação social e as relações com outros tipos de organizações, onde o aprendizado
também acontece; assim como diferentes maneiras como o aprendizado escolar e não-escolar,
disciplinar e não-disciplinar, podem relacionar-se e contribuir uns com os outros.
43
Para Saturnino de la Torre (1994:126) o problema da reificação metodológica na
educação, deve-se à falta de uma atitude reflexiva e crítica dos professores, sobre as mudanças
que têm ocorrido no âmbito das ciências sociais e o progresso social, representando um
retrocesso, pela imposição de fatores resistentes e bloqueios à inovação. Para o autor (Idem:
136), a inovação curricular necessita de macroestratégias: para melhorar a qualidade do
ensino, ter objetivos educativos, desenvolvimento profissional do docente, capacitação
docente, e “melhora institucional”.
Sendo o currículo objeto de regulações econômicas, políticas e administrativas, com
implicações evidentes na ordenação do sistema educativo, na estrutura dos centros e na
distribuição do professorado, essa regulação é conseqüência da própria estrutura do sistema
educativo e da função social que cumpre, pois a ordenação do currículo faz parte da
intervenção do Estado na organização da vida social, cultural e econômica da sociedade,
explica J. Gimeno SACRISTÁN ([1991] 1998: 108).
No entanto, defende esse autor (Idem: 165-166), a influência pode ser recíproca, pois
se o currículo molda os docentes, por sua vez, na prática, é traduzido pela mediação desses
professores, dentro de espaços de autonomia, ainda que sejam mínimos. Na verdade o que
ocorre é que, o ensino em geral e o próprio currículo, são entendidos como um processo de
construção social, na qual o professor não decide sua ação no vazio, mas no contexto de uma
realidade mais ampla à qual está inevitavelmente condicionado.
O currículo é assim, a expressão da função social da instituição escolar, com
conseqüências tanto para o comportamento dos alunos, como do próprio professor. A
influência externa sobre as decisões que os professores tomam fica evidente nos guias
curriculares, nos padrões de controle, nas provas externas de avaliação de resultados ao final
de um ciclo, no tipo de ensino, nos livros-texto previamente regulados administrativamente e
nas pautas de funcionamento da escola. Essas são algumas das forças curriculares
orientadoras e determinantes exteriores, também presentes na escola indígena, pressões reais,
percebidas, que se somam constituindo um quadro no qual os professores podem mostrar
44
submissão, buscar brechas ou resistir, a depender do desejo de emancipação do próprio
docente (Idem: 171).
Toda descrição do que seja o currículo não é suficiente, porque ele se resolve na
prática. Na realidade da escolarização intercultural, as práticas cotidianas na escola, dentro e
fora da sala de aula é que nos dizem o que os alunos aprendem e deixam de aprender na
situação escolar. Como isso está ligado à interação entre professor e alunos; entre alunos e
alunos; alunos e conteúdos e alunos e demais atividades, o que envolve relações de
negociação, consenso, rejeição, controle, poder, desenvolvendo uma cultura, no Capítulo III
observarei a linguagem dos professores, os estereótipos encontrados nos livros, os exemplos
utilizados pelos professores, as formas de agrupar os alunos, as atividades fora da sala de aula,
as atitudes para com os alunos, as formas de avaliação.
Segundo Henry Giroux ([1992] 1999: 37), não se pode negar a existência da política
da representação, que situa a linguagem fora da teoria, da política e da luta; que há uma
complexidade na forma como a linguagem pode desafiar os paradigmas educacionais
tradicionais, criando novas categorias para reivindicar novos espaços para a resistência,
estabelecendo novas identidades e construindo novas relações entre o conhecimento e o poder.
GIROUX (Idem: 38) postula que o legado do colonialismo na verdade tem se
reafirmado, em um discurso e prática etnocêntricos, forjados em relações nas quais o Outro é
subjugado ou eliminado na violência das oposições binárias. Esse legado, diz o autor, deve ser
questionado, desconstruído, problematizado, para tornar visíveis as exclusões e repressões que
permitem que formas de privilégio específicas, permaneçam não reconhecidas na linguagem
dos educadores e dos profissionais da cultura.
O autor defende a idéia de educação radical (Idem: 20), como uma prática crítica,
questionadora das instituições e dos pressupostos recebidos, uma educação de natureza
interdisciplinar, que questiona as categorias fundamentais de todas as disciplinas e tem uma
missão pública de tornar a sociedade mais democrática.
45
Foto 6 - Professor tupi-guarani de arte e cultura, ensina para adolescentes.
Setembro, 2004
Ele lançou a idéia de “pedagogia de fronteira”, como uma prática pedagógica que torna
os eixos de poder transparentes, insere a diferença dentro de uma política cultural, busca criar
nas escolas, universidades e outros espaços educacionais, pontos de vista epistemológicos
fundamentados nos interesses das pessoas, reconhecendo a materialidade do conflito, do
privilégio, e da dominação (Idem: 46).
GIROUX (Idem: 47) defende que a importância da pedagogia de fronteira esteja no
compreender como as subjetividades são produzidas dentro de configurações de conhecimento
46
e poder, que existem fora da experiência imediata das pessoas; das obrigações da cidadania
crítica e da construção de culturas públicas críticas.
A pedagogia de fronteira propõe que os professores aprofundem seu próprio
entendimento do discurso do Outro, sendo autocríticos, dialéticos e capazes de ouvir
criticamente as vozes dos alunos. O conhecimento e o poder estão juntos, diz GIROUX
(Idem: 48) não apenas para reafirmar a diferença, mas para interrogá-la.
O autor descreve as considerações teóricas da pedagogia de fronteira como sendo:
primeiramente, a categoria de fronteira reconhece as margens epistemológicas, políticas,
culturais e sociais que estruturam a linguagem da história, do poder e da diferença e prefigura
a crítica cultural e os processos pedagógicos como forma de transpor fronteiras, assinalando
formas de transgressão em que as fronteiras existentes forjadas na dominação, podem ser
desafiadas e redefinidas.
Em segundo lugar, refere-se à necessidade de criar condições pedagógicas nas quais os
alunos transponham fronteiras para compreender o Outro em seus próprios termos, criando
outras regiões fronteiriças nas quais os diversos recursos culturais permitam novas identidades
dentro das circunstâncias de poder existentes.
E em terceiro lugar, deve-se tornar visíveis as limitações, os pontos fortes, histórica e
socialmente construídos, os locais e fronteiras herdados que estruturam nossos discursos e
nossas relações sociais. Pela política da diferença, a pedagogia de fronteira torna primária a
linguagem da política e da ética; dando ênfase ao político, examina como as instituições,
conhecimento e relações sociais são inscritos de maneiras diferentes no poder; destaca o ético,
examinando como as relações do conhecer, agir e da subjetividade, são construídas nos
espaços e nos relacionamentos sociais, por julgamentos que demandam e estruturam
“diferentes modos de reação ao outro”.
Nesse sentido, o estudioso norte-americano Michael Apple ([1979] 1982:103), de
orientação marxista, também desenvolveu uma linha crítica de reflexões sobre o currículo
47
intercultural, tendo encontrado que os valores morais, a ideologia e as finalidades econômicas,
é que fizeram o currículo das primeiras escolas americanas, organizadas para formar pessoas
que valorizavam a vida tradicional comunitária, o consenso, trabalhadores cuidadosos,
econômicos, eficientes, para as indústrias, porque acreditava-se, no começo do século XIX,
que a escola deveria resolver os problemas da vida urbana, o empobrecimento e a decadência
moral das massas. Assim, a escola é que adaptaria as pessoas aos respectivos lugares que
deveriam ocupar na economia industrial.
O autor americano (Idem: 106) acredita que o currículo contemporâneo ainda seja
influenciado pelo pensamento dos primeiros curriculistas: Franklin BOBBIT, W.W.
CHARTERS, Edward L. Thorndike, Ross L. FINNEY, Charles C. PETERS e David
SNEDDEN, que no fim do século XIX e começo do século XX, definiram a relação entre a
estruturação do currículo, a integração social, a consciência de grupo, o controle e o poder da
comunidade na hierarquia da organização industrial.
Esse grupo de pessoas temia o surgimento de uma nova classe econômica e social,
composta por proprietários de corporações. Eles consideravam os imigrantes uma ameaça,
como mão de obra barata, que chegavam do leste e do sudeste da Europa, assim como os
negros do sul americano rural, pois a cultura norte-americana homogênea, estava centrada na
idéia de cidade pequena, sedimentada nas suas crenças, valores e atitudes herdadas dos
antepassados ingleses (Idem: 109).
O grupo de curriculistas teria encontrado então na escola, o instrumento ideal para
aculturar o imigrante aos valores, crenças e padrões de comportamento da classe média
americana, criando leis que tornaram a graduação em nível secundário, obrigatória. O
problema, diz APPLE, é que ao levar a idéia para a prática, ao invés de se referirem às
diferenças étnicas, de classes sociais e raciais, o grupo de articulistas falava em termos de
diferenças em relação à inteligência.
FINNEY (Idem: 114). dizia que metade da população tinha cérebro de qualidade
apenas mediana ou inferior e entre esses, muitos tinham cérebro mais fraco ainda.
48
THORNDIKE dizia que as pessoas com baixo quociente de inteligência, eram uma ameaça à
existência da civilização. O problema passou a ser então, como manter a importância daqueles
com mais alto quociente de inteligência, os virtuosos, mais eficientes e dedicados ao trabalho.
BOBBIT e SNEDDEN, propuseram que a diferenciação se fizesse por classe social e
formação étnica, pois os homens de negócios, cientistas e advogados, eram todos brancos, da
classe média americana, portanto sem dúvida, os de inteligência superior. Já a massa sem
inteligência, estava na diversidade da população, ou seja, imigrantes da Europa e em grau
inferior, os negros. Assim, o que inicialmente havia sido constatado como problema cultural,
de diferença étnica e de classe, foi redefinido “cientificamente”, como problema de
inteligências (Idem: 118).
Como defensores da industrialização, da eficiência e da produtividade industrial, os
primeiros curriculistas americanos, encontraram no modo de organização industrial, um
modelo para a própria sociedade.
Na universidade, FINNEY (Ibid.). defendia a necessidade de se reconhecer uma
hierarquia de inteligência e instrução superior, tendo no topo do sistema ele próprio e os outros
especialistas do seu grupo, levando a pesquisa para setores altamente especializados, seguidos
pelos líderes relativamente independentes, que as universidades deveriam formar no
conhecimento das descobertas dos especialistas; estes por sua vez, seguidos dos graduados no
curso secundário, que conheceriam algo do vocabulário dos que se achavam acima deles, e
respeitariam o conhecimento especializado e por fim, a massa estúpida, repetindo as palavras
dos que estão acima deles, imaginando que os entendem, e seguem por imitação.
Os vínculos comunitários foram se enfraquecendo, à medida que a tecnologia se
desenvolvia e aumentava a “necessidade” de dividir e controlar a mão-de-obra, visando o
aumento de lucros. Entre educadores e intelectuais, uma nova linguagem, descritiva, surgia,
legitimando e oferecendo explicações sobre a relação entre a escola e os problemas da
sociedade, determinando causas, justificando, no sentido de dar seguimento ao controle e à
manipulação das pessoas (Idem: 121).
49
A sociedade, baseada no capital cultural técnico e acumulação individual de capital
econômico, precisava mostrar-se como se esse fosse o único mundo possível, de forma que o
conhecimento fosse visto como neutro, basicamente inalterável e parte de um “consenso”.
Legitimar essa perspectiva basicamente técnica, correspondia a um mundo social e intelectual
a-crítico (Idem: 126).
Pelo currículo oculto transitavam normas e valores implícitos e efetivamente
transmitidos pelas escolas, porém não mencionados (Idem: 127). Nesse “jogo”, o conflito era
sempre eliminado, passando a idéia de harmonia constante; como se fosse possível a ciência
existir sem diferentes posturas; as teorias se apresentavam como consensuais, embora
saibamos que na verdade, há uma série de diferentes formas paradigmáticas de percepção do
mundo social e científico (Idem: 141).
Assim os conflitos, importante fonte de mudança, inovação e criatividade, dimensões
básicas e benéficas da dialética da atividade e do fluxo da sociedade, eram tratados como
negativos, estimulando a crença de que um processo em conflito destrói a harmonia e é fator
de ruptura, como se ambos não fossem parte da mesma moeda, e essenciais à formação de
grupos e à persistência da negociação na vida coletiva.
Tratando justamente do arbitrário cultural, Pierre BOURDIEU e Jean-Claude
PASSERON, usando o termo violência simbólica, definiram uma teoria geral crítica da
violência social, a violência do monopólio escolar e do monopólio estatal, pelo qual tende-se a
dissociar a reprodução cultural da sua função de reprodução social e ignora-se o efeito das
relações simbólicas na reprodução das relações de força (BOURDIEU e PASSERON [1970]
1992:25).
Considerando o trabalho pedagógico como ação transformadora, que inculca uma
determinada formação, e que confirma, consagra e legitima a autoridade pedagógica e o
arbitrário cultural, os autores, revelaram a linguagem universitária como linguagem à parte das
línguas faladas pelas diferentes classes sociais; controlada e travada em sua evolução,
50
justamente pela intervenção normalizadora e estabilizadora das instâncias de legitimidade
(P.128).
Os autores se colocaram contra a redução das funções do sistema de ensino à função
técnica e econômica, medidas pelas necessidades de mercado. Naquele tempo, década de
setenta, sabia-se pouco sobre a recepção ativa na complexidade da comunicação. Foi apenas
no começo da década de oitenta, que teóricos latino-americanos, entre os quais MARTIM-
BARBERO, denunciaram o engano epistemológico, que confundia a significação da
mensagem com o sentido do processo e das práticas da comunicação, minimizando o sentido
dessas práticas à passividade, diante do significado veiculado pela mensagem, quando na
verdade a recepção é também de alguma maneira, ativa (MARTIM-BARBERO, [1987]
1991:40).
Sobre a forma como no Brasil, as intenções e teorias curriculares americanas foram
absorvidas, Antonio Flávio Moreira ([1990] 2005: 29) refere-se às primeiras influências da
concepção de controle social presente nas primeiras teorias do pensamento curricular
americano, encontrando duas concepções de controle social; o explícito e direto, modos
artificiais que atuam externamente sobre o indivíduo como a coerção; e o implícito e indireto
contido nos processos sócio-pedagógicos.
O autor (Idem: 42) não acredita na transferência educacional para o Brasil como
simples cópia, mas sim que aquelas idéias importadas tenham sido “contaminadas” pelas
idiossincrasias das tradições históricas, culturais, políticas e sociais locais, que teriam
“adulterado” o currículo ao ser transmitido e usado pelos professores brasileiros. Concordo
com o autor, penso que de fato não pode ter ocorrido meramente cópia, porém as práticas
demonstram que alguma influência sempre foi transladada, não somente no caso do Brasil,
mas nos demais países latino-americanos importadores das metodologias pedagógicas
americanas.
Na década de setenta, surgiram no país organizações indigenistas não governamentais e
a formação de movimentos indígenas, a Comissão Pró-Índio de São Paulo; o CEI – Centro
51
Ecumênico de Documentação e Informação, a ANAÍ – Associação Nacional de Apoio ao
Índio e o CTI – Centro de Trabalho Indigenista ( FERREIRA [2000] 2001:72). Nesse
período, também foram criadas duas organizações católicas, visando rever sua posição em
relação à causa indígena, a OPAN – Operação Anchieta, contribuindo para articular o
movimento indígena e auxiliando na política e prática indigenista, paralela à oficial, visando a
defesa de territórios, a assistência à saúde e a educação escolar, organizando encontros,
seminários, e produzindo material impresso.
E também surgiu o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, organismo vinculado à
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que vem dando um novo sentido ao
trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas. Criado em 1972, tem procurado
favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo assembléias indígenas, onde se
desenham os contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural. Igualmente no
Estado de São Paulo, as universidades USP, UFRJ, UNICAMP e PUC-SP, desenvolveram
assessorias especializadas.
Por iniciativa dos próprios povos indígenas, a partir da década de 80, lideranças e
representantes se articulam na busca de soluções coletivas para seus problemas. Atualmente, o
MEC tem equipe permanente de professores e assessores indígenas para as decisões que
envolvem a educação intercultural, através do SECAD – Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Em 20 de junho de 2005, o Ministério de Educação anunciou o
recebimento de projetos para formação de professores e construção, ampliação e reforma de
escolas indígenas. Sendo a contrapartida de estados e municípios, de 1%
FREIRE ([1997] 2000: 42) defendia a importância do exercício constante da “leitura
do mundo”, ou a prática de verificar, encontrar razões, supor, denunciar realidades constatadas
e anunciar soluções, como superação. Esse exercício, defendia ele, levaria o indivíduo a sair
da ingenuidade, em direção à criticidade, viabilizando a ação política, a realização dos sonhos
pelos quais se luta.
52
Foto 7 - Professora dá aula de desenho. Ao fundo, outra professora ensina língua portuguesa
Setembro, 2004.
Como se verá no Capítulo III, observando o currículo em ação na aldeia tupi-guarani, a
cultura na sala de aula denuncia os processos anteriores à relação ensino-aprendizagem: a lista
de presença é uma folha mimeografada, e a criança deve colorir o desenho de um animalzinho,
em sinal de presença. Também denuncia o pouco caso institucional com o processo
educativo: a mesma sala é dividida por duas turmas de idades diferentes, ao mesmo tempo,
gerando situações de desatenção, agitação dos alunos, barulho e o cansaço de todos. E
53
denuncia a percepção do índio sobre o pensamento cultural do branco, na resposta de um
professor durante uma atividade: “Branco pensa que índio é burro.”
Os professores são obrigados a “traduzir” os conteúdos dos livros, pois usam os
mesmos que destinados às demais escolas públicas do Estado, incorporam em sua fala
exemplos que dificultam que os alunos relacionem às suas próprias idéias: “a ovelha pula a
cerca”, “a sobremesa é de morango”.
Do ponto de vista didático pedagógico, observei o professor de arte e cultura ditando
palavras soltas em tupi-guarani para adolescentes; não debatendo ou representando as
perspectivas sócio-culturais do grupo, nem a experiência cotidiana, não problematizando e
nem debatendo as questões atuais; como conseqüência obtendo o distanciamento dos alunos.
Na estante de livros da escola há material pedagógico, criado pelos próprios
professores, todos são vocabulários desenhados. Considerando a importante mudança
epistemológica que decorre da alteração promovida pelo uso dos métodos da escola do branco,
agora assumidos, os próprios professores estão sendo objeto de juízos e preconceitos que
desvalorizam a experiência de seu grupo étnico, quando usam material didático que diz:
“Antigamente, o homem primitivo morava assim.” E segue o desenho de uma casa em paus
de madeira, com telhado de palha.
MACLAREN ([1994] 2000: 72) postula que a justiça deva ser continuamente criada e
conquistada; uma força auto-confiante que permita aos educadores, criticar e transformar as
práticas culturais sociais existentes, ditas democráticas.
Para o autor, a sala de aula é o local da corporificação teórico-discursiva do próprio
educador, sua disposição ética como agente político e moral, e seu posicionamento como
trabalhador cultural dentro de uma identidade narrativa maior (Idem: 99).
O currículo intercultural deve ser a incorporação do respeito à diversidade cultural, a
decisão de perceber essa diversidade em uma dimensão individual, coletiva, e ao mesmo
54
tempo nas esferas da estrutura organizacional e social do mundo dos brancos, já que esta é a
esfera administrativa. No currículo intercultural, não bastam as boas intenções, mas o que de
fato acontece na sala de aula, onde professores, materiais didático-pedagógicos e conteúdos
são mediadores.
Para aquelas pessoas que trabalham percebendo o multiculturalismo, é importante
resolver a sua relação com o Outro e consigo mesmo, a fim de melhor contribuir para
desenvolver relações sociais mais justas. Implantar uma escola de tijolos no meio da aldeia e
servir almoço para as crianças, não vai mudar-lhes a vida, nem a dos professores, tanto quanto
tratá-los com igual dignidade. Forjada a partir das idéias da cultura de educação do branco,
portanto em condições desiguais no sistema social e educacional, a administração da escola
intercultural indígena propõe programas educativos diferenciados; o que isso significa, afeta a
identidade cultural de grupos e povos inteiros.
Durante o ano de 2004 participei de um evento em um hotel muito elegante no bairro
do Itaim, na capital paulistana. Nas paredes do saguão do hotel, viam-se emoldurados cocares
indígenas. A respeito do custo de cada cocar dentro das sofisticadas molduras brancas, pode-
se argumentar que pagar mil reais por cada objeto, seria um preço razoável, já que tratava-se
de algo único e autêntico, porém não se sabia a qual ou quais etnias correspondiam, já que não
havia identificação a esse respeito.
A pergunta que surge é, quanto teria sido pago a cada índio ou aos índios autores
daquele trabalho. Digamos que oitenta reais. Pode-se também argumentar que aquele era um
objeto artesanal, que realmente valia esse dinheiro, antes de alguém colocá-lo dentro de uma
sofisticada moldura de madeira branca coberta com vidro, e vendê-lo assim ao arquiteto ou ao
decorador do hotel internacional, de cinco estrelas. Exatamente como fazem os artistas
quando se apossam de tintas ou, sapatos, tênis, livros, para fazer uma instalação e a obra,
acabada, é que tem um determinado valor elevado.
Em todos os casos aqui mencionados, trata-se da manutenção de um tipo de
aculturação organizada parcial e fragmentária, em benefício de um só grupo, como no caso da
55
escravidão e da colonização vivida pelos índios no Brasil. O desejo de usar a cultura do grupo
dominado submetendo-o aos interesses do grupo dominante.
Sob uma perspectiva econômica, a questão não é apenas em relação à autoria
individual ou coletiva, mas saber se não gostaria o índio de se instrumentalizar para que ele
próprio participasse do mercado, por exemplo, como no caso citado anteriormente, de objetos
de arte, decoração, arquitetura, música, comidas, ecoturismo, ensino das línguas indígenas,
prática de esportes indígenas, ou de curas alternativas pelo uso das folhas, como faziam seus
ancestrais, se ele assim o desejasse. Teria a escola essa função?
Refletindo sobre a educação indígena FREIRE ([2004] 2005: 53), diz que não é
possível “mostrar o queijo e depois dizer: Vocês não comam porque vocês não têm o cuidado
com esse queijo, eu sim. Queijo é perigoso para índio, só não é para branco.”, pois o
conhecimento é tão válido para os índios como para os brancos.
Ele (Idem: 58) se refere a uma carta dos iranxe na qual dizem: “Nós não precisamos
que vocês venham ensinar o que significa ser iranxe, porque nós já somos iranxe. FREIRE
diz compreender que no fundo o que eles querem dizer é que eles têm uma história e uma
cultura que os constituíram como iranxe e agora o que querem é conhecer o conhecimento
que o branco tem; e porque tem, os explora e os domina.
Como demonstram as idéias de FREIRE, MACLAREN, GIROUX e MICHAEL
APPLE, a pedagogia pode se reconstituir em termos transformadores; para tanto, o professor
indígena necessitará fazer a opção ética da responsabilidade moral e política de ser um
professor que compreende a diferença como respeito à diversidade, e à tolerância como
justiça. Como no caso da educação indígena, os professores são da mesma comunidade onde
ensinam, eles precisam conscientizar-se e instrumentalizar-se para esse papel.
Sobre o encontro entre culturas, Denys Cuche ([1996] 2002: 127:129) chama a atenção
para a dialética que explica o fenômeno das reações em cadeia, bastante comum neste tipo de
56
processo, que provoca reações imprevisíveis, pois a aculturação
2
forma um fenômeno social
total, atingindo todos os níveis da realidade social e cultural, a curto e a longo prazo, sendo
necessário levar em conta tanto o grupo que dá, quanto o que recebe, pois não há simetria,
nenhuma cultura é somente doadora nem unicamente receptora.
Sobre a mesma questão, Roger Bastide (Idem 127-128) diferenciou tipos de situações
de contato a partir de três critérios fundamentais: um geral sobre a presença ou ausência de
manipulações das realidades culturais e sociais, com três situações: a primeira, de aculturação
“espontânea”, na verdade jamais completamente, não sendo nem dirigida nem controlada.
A segunda situação, aculturação organizada e forçada, em benefício de um só grupo,
como no caso da escravidão e da colonização vivida pelos índios no Brasil, modificando em
curto prazo a cultura do grupo dominado, para submete-lo aos interesses do grupo dominante,
ocorrendo deculturação sem aculturação (Idem: 127-128).
A terceira situação, aculturação planejada, controlada, sistemática e visando o longo
prazo, o chamado neo-colonialismo no regime capitalista e no regime comunista, pretendendo
construir uma sociedade proletária, que ultrapasse e englobe as culturas nacionais, resulta do
interesse de um grupo que deseja evoluir no seu modo de vida, favorecendo seu
desenvolvimento econômico (Idem: 129-130).
O segundo critério, cultural, refere-se à relativa homogeneidade ou heterogeneidade
das culturas presentes no processo e o terceiro critério, de ordem social, refere-se à relativa
abertura ou fechamento das sociedade em contato (Ibid.).
BASTIDE estudou indivíduos vivendo em contradições culturais insuperáveis e
demonstrou que a aculturação “não produz necessariamente seres híbridos, inadaptados e
infelizes”, mas .através do que chamou de “princípio de corte”, descobriu pelo estudo do
universo religioso afro-brasileiro, que os negros podiam ao mesmo tempo ser fervorosos
2
Etimologicamente, a palavra vem do latim ad que indica movimento de aproximação
57
adeptos do culto do candomblé e estar perfeitamente adaptados à racionalidade moderna. No
caso do indígena, ele poderia tornar a sua inteligência ocidentalizada, enquanto a afetividade
continuaria indígena ou vice-versa (Idem: 134).
A idéia é que, o indivíduo que é “cortado em dois” contra sua vontade, pode introduzir
“cortes” entre seus diferentes engajamentos, constituindo um mecanismo de defesa da
identidade cultural. O princípio do corte, característico de grupos minoritários, dependerá das
situações e particularmente do tipo de relações entre os grupos de culturas diferentes, para
impor-se, tirando partido da complexidade do sistema social e cultural, ou não (Idem 135-
136).
No entanto, CUCHE (Idem 137-138) chama a atenção para o fato de que em certos
casos, os fatores de deculturação poderem dominar, a ponto de impedir qualquer
reestruturação cultural, ainda que restos da cultura de origem coexistam com contribuições da
cultura vencedora mas sem ligação entre eles, as significações profundas desses elementos
estarão perdidas e o conjunto não constituirá um sistema.
Esta desestruturação, sem reestruturação possível, provoca uma desorientação nos
indivíduos, produzindo patologias mentais, condutas delinqüentes e suicídios. Como se verá
no Capítulo II desta tese, em vários momentos da história dos índios no Brasil, e em diversas
circunstâncias atuais, o sentimento de sofrimento pela deculturação tem levado indígenas
desesperados ao alcoolismo ou ao suicídio, inclusive entre adolescentes.
O etnocídio, destruição sistemática da cultura de um grupo, a eliminação por todos os
meios, não somente de seus modos de vida, mas também de seus modos de pensamento, é o
caso da realidade das operações sistemáticas de erradicação cultural e religiosa nas populações
indígenas, para fins de assimilação da cultura e religião dos conquistadores, realidade atestada
pelos historiadores e etnólogos, como se verá no Capítulo II.
A contra-aculturação, explica CUCHE (Idem: 140), se produz quando a deculturação é
tão profunda que impede qualquer recriação pura e simples da cultura original e é geralmente
58
uma reação desesperada à aculturação formal, no sentido de querer voltar “à autenticidade”
original. Contudo, o que se consegue não é a volta às origens, mas a produção do novo.
A percepção do que seja o currículo intercultural, está em construção. Fazendo-se com
muitas preocupações, à medida que a cultura de educação do branco se mobiliza para o
encontro com a cultura de educação indígena, e a pergunta é se os indígenas terão força, para
também afetá-la, e de que forma isso está ocorrendo e repercutirá para o benefício da educação
diferenciada.
Acreditando que a interculturalidade na educação é possível, a experiência que
desenvolvi e que descrevo no Capítulo III, faz parte da proposta de contribuir para reforçar o
indígena na sua auto-estima, acreditando que essa seja uma instrumentalização básica do
professor para o enfrentamento do processo intercultural.
1.5. A Educação Diferenciada
À medida que aprofundei minhas leituras e a pesquisa-ação foi se desenvolvendo, a
palavra diferença foi tornando-se comum no vocabulário. A começar pela maneira como o
Ministério de Educação e Cultura introduz o Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas – RCNEI/1998:
Em atendimento às determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
que estabelece enfaticamente a diferenciação da escola indígena das demais escolas do
sistema pelo respeito à diversidade cultural e à língua materna, e pela interculturalidade, o
MEC, objetiva, com este material, auxilia-lo no seu trabalho educativo diário junto às
comunidades indígenas. (RCENEI/1998. Introdução)
Nos últimos anos os professores indígenas,(...) vêm insistentemente afirmando a
necessidade de contarem com currículos mais próximos de suas realidades e mais
59
condizentes com as novas demandas de seus povos. Esses professores reivindicam a
construção de novas propostas curriculares para suas escolas (...) (RECENEI/1998:11)
Na concepção de alteridade dos tupi-guarani, segundo CASTRO (2002:206), era
inconcebível para eles, a arrogância dos colonos que queriam reduzir o outro à própria
imagem. Nesse sentido, os índios viam europeus e cristãos em sua alteridade plena e na
possibilidade de autotransfiguração, reunião do que havia sido separado na origem da cultura,
sendo portanto capazes de vir a alargar a condição humana, ou mesmo de ultrapassa-la. Não
desejavam impor aos portugueses a sua identidade nem recusavam a identidade estrangeira em
nome da própria excelência étnica, mas desejavam sim, atualizando a relação com o outro,
transformar a própria identidade. Daí porque consideravam uma honra entregar filhas e irmãs
em casamento aos europeus.
Portanto era a troca, a afinidade relacional e não a identidade, o valor fundamental a
ser afirmado. A honra, valor primordial da cultura tupinambá, estava na captura de alteridades
no exterior do socius e a sua subordinação à lógica social interna pelo endividamento
matrimonial. Compreendia-se a guerra mortal aos inimigos, hospitalidade aos europeus,
vingança canibal e voracidade ideológica, na mesma propensão e desejo (Idem: 207).
Lidar com o Outro, para o tupi-guarani, era absorver o outro; deuses, inimigos,
europeus, figuras da afinidade potencial, e nesse processo, alterar-se, pois sem essa alteridade
o mundo desmoronaria na indiferença e na paralisia (Ibid).
O que significa a alteridade no Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas - RCNE/Indígena, 1998, documento escrito com a expectativa de contribuir para pôr
em prática um currículo para as escolas indígenas, é garantir o direito às formas particulares de
organização escolar, assegurando-lhes a diferenciação, em substituição aos modelos de
décadas anteriores e desta vez sob a Constituição de 1988 e a nova LDB. Como se lê:
60
A escola indígena como executora de uma experiência pedagógica peculiar tem que ser
legitimada a partir da criação da categoria escola indígena, junto aos sistemas estaduais e
municipais de ensino. Só assim, a especificidade da educação intercultural será
assegurada e as escolas poderão ter acesso aos diversos programas que têm por objetivo o
desenvolvimento da escola fundamental. Para que a regulamentação da categoria escola
indígena se efetue, é necessário que o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais de
Educação avancem no sentido de normatizações específicas que atendam o direito à diferença
garantido na legislação. Do mesmo modo, aos técnicos envolvidos com a educação escolar
indígena deve ser esclarecido que a escola indígena não pode ser normatizada nos termos das
demais escolas do sistema (RECNEI,: 1998:40).
Diante das propostas colocadas, e passados seis anos da sua implementação, pareceu-
me importante constatar de que forma esse modelo de escola tem se desenvolvido no Estado
de São Paulo, qual interpretação tem sido posta em prática operacionalizando as propostas
assumidas.
Segundo GIROUX ([1992]1999:200) em muitos casos, a diferença atua como um
marcador de poder para nomear, rotular e excluir determinados grupos. Por isso, o conceito
tem que ser usado para resistir àqueles aspectos do seu legado ideológico, usados a serviço da
exploração e da subordinação, e para desenvolver uma referência crítica com o objetivo de
utilizar os limites e os potenciais da diferença como um aspecto fundamental de uma teoria
crítica da educação, daí porque é importante observar de que maneira o conceito repercute na
sociedade.
Há uns dias atrás, eu estava na fila de um banco e enquanto esperava, lia o livro de
Regina Gadelha Missões Guarani. Impacto na sociedade contemporânea. Um senhor atrás de
mim perguntou-me a que sociedade contemporânea, a autora se referia? Achei a pergunta
intrigante e devolvi com outra pergunta: “Preocupava-o alguma época em especial?” “Já não
há mais guaranis”, disse ele. “Agora, qualquer bêbado, mendigo, branco, negro, o que for, se
junta a um grupo que se autodenomina índio e vai aproveitar dos benefícios que o Estado dá
61
para desocupados, porque na verdade a população indígena brasileira foi toda dizimada há
muito tempo”.
Parece que necessitamos de uma nova forma de política, diz GEERTZ, que não encare
a afirmação étnica, religiosa, racial, lingüística ou regional como uma irracionalidade arcaica a
ser suprimida ou ultrapassada e a veja como a qualquer outro problema social, como uma
realidade a ser enfrentada, com a qual de algum modo é necessário lidar e chegar a um acordo
(Clifford GEERTZ, [2000] 2001:215).
O autor (Ibid.) acredita que conforme as situações que se deva enfrentar, varie a forma
dessa política, dependendo das origens da diferenciação e da discórdia; de se ter uma atitude
menos simplista e menos negativa para com a diferenciação; de se adaptar os princípios do
liberalismo e da democracia social, guias do direito, do governo e da conduta pública, que têm
sido cegamente desconsiderados.
Nesse sentido, para preparar o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas,
o MEC constituiu uma equipe formada por educadores vinculados a ações de implantação e
assessoria a escolas indígenas e à formação de professores índios, promoveu discussão
curricular, recebeu propostas curriculares de algumas Secretarias de Educação e de
Organizações Não Governamentais. Finalizada a redação do documento, submeteu-o à
avaliação de um conjunto mais amplo de educadores, especialistas, instituições indígenas e
não indígenas e as contribuições recebidas serviram para aprimorar e enriquecer o texto
original (RCNEI, 1998:15).
GEERTZ (2000] 2001:215) acredita que abrir-nos para a divergência e a
multiplicidade, depende de construirmos uma concepção mais clara e detalhada, menos
mecânica, estereotipada, homogênea, com menos totalidades carregadas de clichês sobre o que
é a política, o que é a cultura; as estruturas de sentido em que as pessoas vivem e formam suas
convicções, individualidades e estilos de solidariedade, como força ordenadora das questões
humanas, pois é importante observar o que a pessoas sentem.
62
Atualmente, vivemos um problema de tensões entre a homogeneização e a
heterogeneização cultural diz Arjun APPADURAI ([1990] 1999: 312), estudioso da
complexidade da economia global atual, isto implica disjunções fundamentais entre a
economia, a cultura e a política. O Brasil é um país de dimensões continentais com a
pretensão de contemplar 206
3
povos com a educação diferenciada. Para contextualizar a
discussão da viabilização da escola lingüística e culturalmente diferenciada das demais
escolas do país, é necessário ter em conta as tensões decorrentes das reivindicações indígenas
e os modelos de escola do branco que lhe foram impostos até então, como descrevo no
Capítulo II em seu aspecto histórico e no Capítulo III, na pesquisa-ação; o desejo de
autonomia e de cidadania indígenas; as contradições entre tendências homogeneizadoras e a
valorização da diversidade.
Para auxiliar na análise dos deslocamentos entre homozeneização e heterogeneização
cultural da atualidade, APPADURAI (Ibid.) lança a idéia de cinco dimensões do fluxo da
cultura global: etnopanorama seria o mundo em transformação no qual vivemos, como uma
trama de movimentos humanos de imigrantes, minorias étnicas, raciais, turistas, refugiados,
exilados, grupos de pessoas que parecem afetar as políticas das nações, em um grau nunca
visto antes.
Tecnopanorama, a segunda dimensão, seria o fluxo global da tecnologia superior e
inferior, mecânica e informal que agora atravessa barreiras antes intransponíveis e é dirigido
por relações econômicas cada vez mais complexas.
A terceira dimensão, finançopanoramas, se refere à circulação de fluxos fiscais e
investimentos que vinculam economias através de uma rede global de especulação da moeda,
transferência de capitais, bolsa de valores, movimentos de megasomas de dinheiro, a uma
velocidade difícil de ser acompanhada (Idem: 314).
3
RCNEI/1998:16
63
O ponto crítico, diz o autor, é que o relacionamento global entre estes “panoramas” é
profundamente disjuntivo e imprevisível, cada “panorama” sujeito às suas próprias restrições e
incentivos, e por sua vez sendo restrição e parâmetro para os movimentos dos outros. Nesse
fluxo, os mídiapanoramas distribuem produções eletrônicas e disseminam informações,
dificultando distinguir o que seja “realidade” ou “ficção”, de forma que quanto mais afastada a
pessoa estiver das experiências diretas da vida e interesses das metrópoles, maior a
probabilidade de estar planejando-se sobre “mundos imaginários”, o que é preocupante, pois
as mídias contribuem para narrativas do “Outro” (Idem: 315).
E os ideopanoramas, diz APPADURAI (Idem: 316) são imagens que se relacionam à
política, às ideologias dos estados e às contra-ideologias iluministas, usando palavras como
“liberdade”, “bem-estar”, “direitos”, “soberania”, “representação” e “democracia”; nesse
quadro, o paradoxo central da política étnica no mundo atual é que os “primórdios”, ou seja, as
origens da linguagem, cor da pele, vizinhança e parentesco, tornaram-se globalizados.
Isso que dizer que o sentimento político e transformador da identidade, tem se
espalhado por espaços irregulares, deslocando-se à medida que os grupos se movimentam e ao
mesmo tempo permanecem vinculados entre si, através de habilidades sofisticadas da
comunicação. O ponto crítico nessas disjunções, diz o autor, é a controvérsia entre igualdade e
a diferença; isto é o que tem gerado protestos, torturas, revoltas, genocídios patrocinados ou
não pelo Estado.
Quanto mais as coisas se juntam, mais ficam separadas, diz GEERTZ [2000]
2001:217), pois o mundo uniforme não está mais próximo do que a sociedade sem classes.
Diferenciar rupturas de continuidades culturais, pessoas com uma forma de vida identificável,
com outras de forma de vida diferente, é bem mais fácil na teoria do que na prática.
Seja o que for que defina a identidade no capitalismo sem fronteiras na aldeia global,
diz GEERTZ (Idem: 225), não se trata de acordos profundos sobre questões profundas, mas
apelar para divisões conhecidas, a idéia de manter a ordem de duas tendências opostas: a
diferença e ao mesmo tempo, a limpeza étnica.
64
Segundo Álvaro Vieira Pinto ([1967] 1969: 130-131), a discussão está na raiz da
divisão histórica entre camadas sociais contraditórias, é uma projeção da divisão do trabalho
nas formas intelectual e manual. Deve-se a que, por um longo período da formação da
ciência, a classe letrada apropriou-se do aspecto subjetivo da cultura, tornando-se dona das
idéias e finalidades a lhes dar, ocupando-se disso para justificar a primazia do seu papel
histórico, produzindo o conhecimento “puro”, a descoberta, a combinação das idéias, o estudo
dos processos, produzindo teorias científicas, desvinculada do contato direto com a natureza.
Para a outra classe, diz o autor, a do trabalho manual, afastada da esfera ideal da
cultura, deixou-se a operação no mundo físico, sem a possibilidade da investigação com fins
científicos sobre os corpos e fenômenos que manipula, ficando impedida de uma atitude
questionadora, de formar idéias a respeito das coisas e dos processos naturais.
Sabe-se que o trabalho manual obrigatório, habitual e estabelecido, leva à rotina da
produção uniforme, embotando o espírito questionador e crítico, incapacitando-o de chegar à
conceituação daquilo que faz e de definir finalidades, dando destino para as coisas que produz,
estigmatizando pela obrigação de produzir (Ibid.).
Entre o paradoxo e a responsabilidade, o ônus do dever ético fica para a educação
intercultural diferenciada dialética, transformadora, criadora, frente aqueles que especulam
sobre um poder central e cuja pretensão é manter a humanidade dividida, para melhor
escravizá-la.
Refletindo sobre como se processa a administração do poder mundial, retorno ao
episódio com aquele senhor que na fila do banco me perguntou, a que sociedade guarani
contemporânea a autora se referia, como se não fosse possível haver hoje no Brasil um grupo
de pessoas que genuinamente reivindique essa identidade; percebe-se o discurso excludente
que apenas ele se considera vivo, brasileiro, incluído na história e nos direitos de cidadania, a
do branco.
65
A outra identidade, a indígena, é marcada pela diferença por antagonismo, ou seja a
diferença que exclui: ser cidadão brasileiro é ser não-indígena. Nessa diferença, um expulsa
o outro e é estranho ao outro. Não seria uma simples questão de desconhecimento das
condições históricas, das línguas, da simbologia ou da cosmologia, mas de negação do outro.
Contra esse pano de fundo crítico, na tentativa de auxiliar no discernimento das
múltiplas maneiras pelas quais a diferença é construída, MACLAREN ([1994] 2000: 110-113)
relata as primeiras tendências do multiculturalismo, começando pelo “multiculturalismo
conservador”, das visões coloniais, evolucionistas, dos europeus e americanos que viam a si
mesmos por auto-elogios e auto-justificações e achavam que afro-americanos e índios eram
escravos e serviçais que divertiam as pessoas. Essa visão permanece até hoje através de
projetos como o de construir uma cultura comum, que anula o conceito de fronteira, através da
deslegitimação das línguas estrangeiras, dialetos étnicos e regionais, a manutenção de
estereótipos raciais e a defesa da população branca como de inteligência superior.
O “multiculturalismo humanista liberal” defende que exista uma igualdade natural
intelectual entre as pessoas brancas, afro-americanas, latinas, asiáticas e outras populações
raciais. Porém, devido à falta de oportunidades sociais e educacionais, latinos e negros não
teriam podido competir igualmente no mercado capitalista, devendo essas restrições ser
modificadas e reformadas, para alcançar uma igualdade relativa. Segundo o autor, essa visão,
das comunidades político-culturais anglo-americanas, resulta no humanismo etnocêntrico e
opressivo.
O multiculturalismo liberal de esquerda, defende a diferença cultural com ênfase na
igualdade de raças, e o problema estaria na tendência a ignorar a diferença como construção
histórica e social, que constitui e representa significados. Trata-se de um populismo elitista
que valoriza apenas o pessoal, dispensando a teoria em favor da identidade pessoal e cultural.
E a idéia de multiculturalismo crítico, desenvolvida pelo autor (Idem: 122),
enfatizando o papel que a língua como construção da experiência e a representação de raça,
classe e gênero, desempenha na construção de significado e identidade. Compreende que a
66
cultura é conflituosa, não adota a diversidade como meta, mas que esta deva ser afirmada
dentro de uma política de crítica e compromisso com a justiça social. A diferença é percebida
como um produto da história, cultura, poder e ideologia, devendo ser compreendida nos
termos de sua produção.
A posição teórica é de que as diferenças são produzidas de acordo com a produção
ideológica e a recepção de signos culturais. Deve-se lutar diz MACLAREN (Idem: 132), por
uma solidariedade centrada nos imperativos de liberdade, libertação, democracia e cidadania
crítica.
Nesse sentido, é necessário que os grupos brancos examinem suas próprias histórias
étnicas, de forma a perceber que suas normas culturais não são neutras, desprovidas de
interesses, nem universais, e que tem servido, como norma invisível, para medir o seu próprio
valor (Idem: 136).
MACLAREN (Idem: 139) sustenta que enquanto a cultura branca, como estrutura
cultural definidora para as transações branco-étnicas, definir os limites para todo o
pensamento sobre as relações humanas, não poderá haver projeto para a igualdade humana.
Surge então a pergunta, no que concerne à educação diferenciada: de que forma é
tratada a diferença no encontro intercultural, por exemplo, no material pedagógico oferecido
para as escolas indígenas?
No contexto vivido pelo grupo de indígenas tupi-guarani do litoral do Estado de São
Paulo, que iniciaram seu processo de educação diferenciada há apenas três anos, e que
enfrenta pressões internas e externas pela implantação do processo educacional, a vivência do
grupo assemelha-se à de outros, que vivem situações similares, embora em circunstâncias e
contextos diferentes; há o forte desejo de legitimar socialmente a sua identidade.
Segundo Stuat Hall ([1996] 2000: 106), acredita-se comumente que a identidade seja
construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características
67
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou a partir de um mesmo ideal, desenvolvendo um
“fechamento” que forma a base da solidariedade e da fidelidade do grupo. No entanto, sob
uma abordagem discursiva, a identidade é mais uma construção, cujo processo de articulação
não se completa nunca e não é nunca completamente determinada, portanto pode-se sempre
ganhá-la ou perdê-la, sustentá-la ou abandoná-la.
Sendo condicional a uma contingência, inclui os recursos materiais e simbólicos que a
sustentam e uma vez assegurada, não anula a diferença, pois como todas as práticas de
significação, está sujeita justamente ao jogo de diferença que envolve um trabalho discursivo,
o fechamento, a marcação de fronteiras simbólicas, e a produção dos “efeitos de fronteiras”
(Idem: 106).
Este conceito, não essencialista, mas estratégico e posicional, não se refere a um eu
imutável ao longo do tempo, nem a um eu coletivo, fixo com relação a uma história comum e
a uma ancestralidade partilhada que garante um pertencimento cultural ou uma “unidade”.
Pois trata-se de identidades fragmentadas, fraturadas, multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas, e que estão
constantemente em processo de mudança e transformação (Idem: 107).
Assim, os processos de globalização e migrações, características da modernidade, têm
se tornado fenômeno global do chamado mundo pós-colonial, no qual as identidades parecem
estar ligadas ao passado histórico e às origens, quando no entanto, o que acontece é que usam
de recursos da história, da linguagem e da cultura, para a produção não daquilo que somos,
mas daquilo que nos tornamos, e tem a ver muito mais com quem podemos nos tornar, como
temos sido representados, e como essa representação afeta a forma como podemos representar
a nós mesmos (Idem: 109).
Surgindo da narrativização do eu, a identidade tem tanto a ver com a invenção da
tradição, quanto com a própria tradição e a sua natureza ficcional e simbólica, não diminui a
sua eficácia discursiva, material ou política. Dentro do jogo de poder, identidades são o
produto da marcação da diferença e da exclusão, mais do que signos de unidade (Ibid.).
68
Dessa forma, as identidades são construídas por meio da diferença, não fora dela;
apenas por meio da relação com o Outro, com aquilo que não é, pois a identidade tem
necessidade daquilo que falta; seu exterior constitutivo; podendo funcionar ao longo de toda a
sua história como pontos de identificação e apego, apenas por causa de sua capacidade para
excluir, deixar de fora, transformar o diferente em abjeto (Idem: 110).
Experiências recentes da escola diferenciada, nos diversos Estados do país, tem
demonstrado possibilidades e dificuldades que se enfrentam no cotidiano, mantendo aberto o
debate sobre soluções pedagógicas e didáticas dialógicas e principalmente como espaço de
saber do índio.
No caso da educação intercultural indígena, a produção da diferença, como defendo
nesta tese, tem sido construída por antagonismo e tem produzido significados culturais de
negação dos direitos humanos, inclusive da educação de qualidade no envolvimento da relação
de poder, daí a importância de considerar que essa noção de diferença não é fixa, mas está
dentro de um processo, uma contingência.
A diferença que foi construída negativamente, por meio da exclusão e negação do
Outro, acredito que pode vir a ser construída positivamente, através de uma educação
diferenciada calcada na justiça do respeito à diversidade da qual o Outro faz parte e à medida
que pelo discurso crítico, emergir a ética do respeito à diversidade que há dentro de cada
pessoa e que se vê nos meios pelos quais o significado é produzido no sistema simbólico
cultural e social.
1.6. Nação e Etnia.
69
Segundo POUTIGNAT Philippe e STREIFF-FENART Jocelyne ([1995] 1998:44), não
é fácil definir o que seja exatamente uma nação, por critérios ou combinação de critérios, já
seja a questão da língua, etnia, cultura, história comum, território, religião ou outros, porque
estes são flutuantes e porque sempre se encontram exceções para os critérios. Um
determinado grupo pode querer persistir como nação comunidade política ou como nação
comunidade etnocultural; nação vem a ser portanto, uma entidade cultural e, ou política.
O fator-chave seria a consciência de si do grupo, como povo, a nação deve constituir-
se em comunidade ou em povo que se reconhece previamente na instituição estatal e
justamente nessa relação estaria a expressão de uma identidade preexistente que se refere aos
mitos de origem, do sentimento de continuidade histórica, constituindo uma forma ideológica
efetiva (Idem: 50).
Daí porque o problema seria que na sua produção, o povo se produz como comunidade
nacional e nessa situação, os indivíduos de origens múltiplas, percebendo-se como membros
de uma mesma nação, devem ser instituídos como homo nationalis, por meio de uma rede de
instituições e práticas que os socialize, determinando a representação de “si” e relativizando
sua diferenciação em relação à diferença simbólica, entre “nós e os estrangeiros” (Ibid.).
Nação e etnia são duas noções distintas, explicam POTIGNAT E STREFF-FENART
(Idem: 52), que possuem como elemento comum a capacidade de sustentar o senso de uma
história e cultura comuns.
Antes das nações (modernas), as etnias desenvolveram o senso de uma herança cultural
e um destino histórico compartilhado; simbolismo e mitos que garantem a seus membros a
convicção de ser, através da sucessão das gerações, um só e mesmo povo. Assim, dizem os
autores, na concepção democrática-revolucionária, a partir de 1830, o “princípio das
nacionalidades” separa nacionais de nacionalidade (Ibid.).
O termo ethnos, era usado no mundo grego em referência aos bárbaros ou aos gregos
não organizados segundo o modelo de cidade-Estado e o termo latino “ethnicus” foi usado
70
durante o século XIV em referência aos pagãos, em oposição aos cristãos, ou seja, esse termo
foi sempre usado para designar pessoas “diferentes de nós” (Idem: 22).
A noção de etnia, desde o século XIX, quando foi criada, misturava-se e criava
ambiguidade com as noções de povo, raça ou nação (Idem:32) . Vacher de Lapouge,
explicava a diferenciação, dizendo que também não se deve confundir etnia com raça, sendo
raça as características morfológicas como altura, índice cefálico, qualidades psicológicas e
etnia o agrupamento formado a partir da cultura ou da língua, resultando da reunião de
elementos de raças distintas reunidas pelo efeito de acontecimentos históricos, instituições,
uma organização política, costumes ou idéias comuns” (Idem:34).
Segundo os escritos de Weber, no começo do século XX, grupos étnicos alimentavam
a crença subjetiva em uma comunidade de origem, fundada nas semelhanças de aparência
externa, ou nos costumes e lembranças da colonização ou da migração, e a fonte da etnicidade
estaria na atividade de produção, manutenção e aprofundamento de diferenças, cujo peso
objetivo não poderia ser avaliado (Idem: 37-40).
Considerado um fenômeno típico da época moderna e um produto do desenvolvimento
econômico, da expansão industrial capitalista, da formação e do desenvolvimento dos Estados-
nação, o conceito de etnicidade designa fenômenos que anteriormente se ignoravam, pois os
teóricos funcionalistas realçavam o consenso, a adaptação, a harmonia e o equilíbrio (Idem:
27-29).
Na verdade, tem havido uma grande dificuldade em classificar grupos étnicos, em
definir uma unidade étnica e esta dificuldade, explicou Fredrik Barth na década de 60, devia-
se à impossibilidade de encontrar um conjunto total de traços culturais que permitisse
distinguir um grupo de outro, pois a variação cultural não permite traçar limites étnicos (Ibid.).
Identidades distintas podem ser mantidas na ausência de traços culturais comuns,
comprovando como é possível uma teoria indígena de diversidade étnica, apesar da
homogeneidade cultural constatada pelo observador, daí porque é impossível estabelecer a
71
delimitação estrita de uma “tribo” sobre uma comunidade de cultura. A questão então,
passaria a ser estudar a maneira como a diversidade étnica é socialmente articulada e mantida,
e não a maneira como os traços culturais estão distribuídos (Ibid.).
Igualmente segundo BARTH (Idem: 64), a investigação empírica demonstra que não se
pode acreditar que o isolamento geográfico e social seja a base da diversidade étnica, pois as
fronteiras étnicas persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam e mantém relações
através delas, sendo condição não da dispersão das identidade étnicas, mas de sua perpetuação.
Esta mudança nas concepções, marca a passagem da noção de “tribo” para a noção de
“grupo étnico”. A tribo, pensada como uma unidade discreta, do mundo não-ocidental
estudada com abordagem objetivista e sistêmica, é substituída pela concepção de grupo étnico,
unidade potencialmente universal, contextualmente definida por seus limites, estudada
segundo uma abordagem dinâmica e “subjetivista”. Dessa forma, o objeto das pesquisas sobre
etnicidade mudou, do estudo das características dos grupos, para o estudo das propriedades e
da dinâmica de um processo social (Ibid.).
Daí a importância de conhecer as concepções, pois no debate atual, os problemas de
pesquisa se relacionam às escolhas teóricas (POUTIGNAT E STREIFF-FENART, Idem: 86-
96): A concepção de etnicidade como dado primordial, atualmente considerada ultrapassada,
de autoria de Shils, defendeu a existência de um tipo de ligação chamada primordial, ou
afinidade natural, tal como o vínculo de sangue presumido, traços fenotípicos, religião, língua,
pertença regional ou de costume. A etnicidade como extensão do parentesco, defendida por
Pierre Van den Berghee,é neodarwinista; A etnicidade como expressão de interesses comuns,
é a idéia defendida por Glazer e Moynihan, como mobilização de grupos para a realização de
objetivos políticos concretos.
Como forma de organização social, a etnicidade se baseia na atribuição categorial,
dizem os autores, classificando as pessoas em função de sua origem suposta, e é validada na
interação social ao ativar signos culturais socialmente diferenciadores, resultando em
72
Nós/Eles. Esta definição leva aos problemas-chave da etnicidade, como se verá a seguir (Idem
141).
A atribuição categorial, por ser construída na relação entre a categorização dada pelos
não-membros e a auto-definição; é um processo dinâmico, sujeito à redefinição e à
recomposição. No caso dos americanos nativos dos Estados Unidos, eles mantiveram suas
definições tribais por longo tempo, porém devido a terem sido submetidos a um tratamento
administrativo de uniformização, acabaram por criar uma identidade geral de indígenas, a
partir do sentimento de opressão compartilhada, e da experiência comum do sistema de
reservas. No Capítulo II desta Tese, trato do desenvolvimento dessa problemática, no Brasil.
Nesse jogo, a dialética exógena/endógena ou seja, as lutas simbólicas de designação e
denominação étnica, se produzem quando os grupos dominados avaliam e manipulam as
significações ligadas às categorias étnicas, em relação à sociedade global. É o caso dos
imigrados americanos da Ásia chamados orientais pelos americanos, e que entre si mesmos
distinguem-se como chineses, coreanos, japoneses, etc.(Idem: 142-143). O rótulo étnico é
geralmente objeto de uma relação de forças, no qual o grupo dominado tenta impor sua
definição, desqualificando aquela que o estigmatiza. No Capítulo II desta tese percebe-se a
questão do rótulo dado ao indígena ao longo do tempo e no Capítulo III, através da fala dos
professores que tomam parte na pesquisa-ação, percebe-se a situação atual.
O “paradoxo da identidade” ocorre quando a sociedade que acolhe continua a tratar
como estrangeiro o indivíduo que se considera assimilado, e seu grupo não o reconhece mais
como fazendo parte dos seus. É o caso da identidade “mestiça” (Idem: 148-149).
A relação entre Critérios e Índices (traços fisionômicos, cor da pele, etc.) é
problemática e ambígua. Basicamente, os critérios definem e os índices informam, e
dependem dos critérios que os definem. Nesse debate, a noção de fronteiras, é uma idéia que
foi lançada em 1969, pelo Prof. Dr. Fredrik Barth, nascido em 1928 e professor da
Universidade de Oslo. Trata-se de uma concepção mais sociológica e dinâmica da identidade
étnica, substituindo a noção anterior, mais estática. Ele diz que a identidade étnica, coletiva ou
73
pessoal, é construída e transformada na interação de grupos sociais, através de processos de
inclusão e exclusão que estabelecem limites entre grupos, dizendo os que se integram ou não
(Idem: 150-152).
Para o autor, a idéia de fronteiras é elemento central para compreender os fenômenos
de etnicidade; ele considera que a pertença étnica é determinada em relação a uma linha de
demarcação entre membros e não-membros, e que os atores têm conhecimento dessas
fronteiras, que marcam o sistema social ao qual acham que pertencem, e para além dos quais
outros atores implicam outro sistema social, na relação nós/eles. São essas fronteiras e não o
conteúdo cultural interno, que definem o grupo étnico e permitem que o grupo se dê conta de
sua persistência no tempo.
O professor BARTH diz que a manutenção das fronteiras necessita da organização das
trocas simbólicas entre os grupos e da ativação de proscrições e prescrições que as regem.
Mais ou menos estáveis no tempo, podem manter-se, reforçar-se, apagar-se, desaparecer, ser
mais ou menos fluidas, moventes e permeáveis, porém quanto mais a organização esteja ligada
à divisão diferencial de atividades no setor econômico, mais fechadas serão (Idem: 154-155).
Fator importante, defende BARTH, é que não dependem da permanência de suas
culturas. Um grupo pode adotar os traços culturais de outro, como a língua e a religião, e
continuar a ser percebido e perceber-se como distintivo; além disso, pode continuar constante
através dos tempos, apesar de transformações culturais internas ou mudanças na natureza da
própria fronteira.
No entanto, isso não significa que a identificação étnica possa exercer-se a partir “de
qualquer coisa”, pois os recursos simbólicos; a língua, o território, a tradição cultural ou
qualquer outro usado para marcar a oposição Nós/Eles, pode ser distorcido ou reinterpretado,
mas de certa forma, “tem estado lá” disponível, desde sempre (Idem: 157).
74
Nesse sentido, os recursos simbólicos funcionam como critérios de pertença por
preencher três condições: prestam-se à objetivação e à interiorização e marcam uma oposição
entre grupos extensos.
Igualmente, a atribuição de uma história sedimentada, possibilita a idéia de formação e
manutenção de grupos étnicos. Nesse caso, diz BARTH o ponto de origem pode ser mais ou
menos recuado no tempo, a identidade étnica pode apresentar-se como tendo sido criada ou
inventada, não implicando com isso que seja inautêntica, seus inventores pessoas de má-fé,
pois nada impede reconhecer a realidade do sentimento subjetivo que se tem, de formar um
grupo (Idem: 158-160).
A etnicidade é um modo de identificação, um rótulo que não remete a uma essência
que se possua, mas a um conjunto de recursos disponíveis para a ação social. Conforme as
situações em que se localize e as pessoas com quem interagir, um indivíduo pode assumir uma
ou outra das identidades que lhe são disponíveis, pois estas se determinam pelo contexto.
Logo, não se trata de saber quem é X, mas quando, como e por que a identificação X lhe é
preferida dentro de determinadas circunstâncias.
Essa possibilidade de manipular a própria identidade étnica e escolher se realçá-la ou
não, está ligada ao contexto no qual a interação ocorra, em alguns contextos, a etnicidade é
estatuto prescrito com papéis étnicos reificados e estereotipados, como uma sorte ou um
destino inevitável, com possibilidades mínimas de manipulação estratégica, nas interações
sociais. Mas os estereótipos também podem ser usados, como em um jogo. O fato étnico é
algo que se descobre, se encontra o sentido que tem na vida das pessoas e os processos
organizacionais pelos quais esse sentido é socialmente construído (Idem: 161-162).
A importância no debate atual, da reformulação de mitos e paradigmas antropológicos
proposto por BARTH, está na sua contribuição crítica aos modelos funcionalista e
estruturalista, com relação às variantes e condicionamentos comportamentais, que dominavam
a antropologia, sobre o trabalho de manutenção de fronteiras e a organização social do grupo
étnico.
75
Conhecer as diferenças culturais passa a implicar considerar as diferenças que os
próprios atores consideram significantes. A auto-atribuição ou aquela dada por outros, na
organização social, classifica a pessoa em termos de sua identidade básica e ao mesmo tempo
geral, determinada por sua origem e seu meio ambiente e nesse sentido, a formação de grupos
étnicos, pode surgir com objetivos de interação (Idem: 194).
Nos sistemas sociais poliétnicos, explica BARTH, há uma variedade de setores de
articulação e separação, prescrições de papéis no nível microssocial; como o sexo ou a posição
social, a identidade étnica exerce um constrangimento sobre o beneficiário em todas as suas
atividades, sendo imperativa, não podendo ser ignorada. Ainda que as sociedades poliétnicas
complexas tendam a ser mais compreensivas, as convenções morais e sociais que as
compõem, tornam-se cada vez mais resistentes às mudanças (Idem: 198).
Nas relações interétnicas em que se categoriza um setor da população diferentemente
de outra, isto gera situação de restrições à interação étnica. Igualmente, novas formas de
comportamento tenderão a ser dicotomizadas, pois as identidades manifestas devem ser
endossadas pelos membros do grupo étnico. Numa sociedade poliétnica atua-se para a
manutenção de dicotomias e diferenças, havendo a tendência a canalizar e padronizar a
interação e a emergência de fronteiras que mantenham e gerem a diversidade étnica (Idem:
200).
BARTH (Ibid.) defende que em um sistema social englobante, vários grupos étnicos
poderão perceber complementaridade em relação a certos traços de suas características
culturais, podendo resultar em interdependência ou simbiose; já nos casos em que não haja
complementaridade, não poderá haver base para uma interação.
Assim, nos sistemas sociais, o grau de coação que a identidade étnica exerce sobre a
variedade de estatutos e papéis que o indivíduo pode assumir, é diferenciado e, onde os
valores da identidade étnica são pertinentes apenas para poucos tipos de atividades, a
organização social que nela se baseia, será igualmente limitada.
76
Os sistemas poliétnicos complexos têm diferenças valorativas amplas, com múltiplas
restrições de combinação de estatutos e de participação social. A complexidade se baseia em
diferenças culturais importantes, complementares e padronizadas, requer-se mecanismos
altamente eficientes para manter a fronteira, de forma que a interação interétnica se baseia em
identidades étnicas que ao mesmo tempo permaneçam estáveis, as diferenças complementares
persistindo dentro dos sistemas (Idem: 201).
Com relação à mudança de identidade étnica, BARTH (Idem: 209) diz que sendo a
etnicidade associada a um conjunto cultural específico de padrões valorativos, isso implica
que as circunstâncias nas quais uma determinada identidade se realiza estejam de acordo aos
padrões valorativos básicos, não podendo sustentar-se em contexto inadequado.
Para BARTH, no caso do contato cultural, a melhor maneira de analisar interconexões
seria examinando os agentes de mudança, encontrando quais estratégias são abertas, atrativas,
e as implicações organizacionais das diferentes escolhas. No caso dos grupos em situação
menos industrializada e dependente em relação a mercadorias e organizações das sociedades
industrializadas, podem-se assumir as seguintes estratégias para conseguir novas formas de
valor (Idem 200-202):
O grupo tenta fazer-se passar por membro da sociedade industrial e do grupo cultural
escolhido, incorporando-se a eles. Se bem sucedido, o grupo étnico será desprovido de sua
fonte de diversificação interna, poderá permanecer como culturalmente conservador, com
baixo nível de articulação e posição inferior no sistema social global.
Caso o grupo aceite o estatuto de “minoria”, acomodando-se, reduzindo suas
inabilidades, suprimindo as diferenças culturais em setores de não-articulação, participando do
sistema geral do grupo industrializado em outros setores de atividade, a aceitação desta
segunda estratégia impedirá o surgimento de uma organização poliétnica claramente
dicotomizada e poderá resultar na assimilação da minoria.
77
No caso do grupo escolher o realce da identidade étnica, usando-a para desenvolver
novas posições e padrões, organizando atividades nos setores antes não encontrados, ou não
desenvolvidos adequadamente em sua sociedade, estará aí sim, criando um movimento
interessante, como se observa atualmente em várias partes do mundo.
Segundo o dicionário Antonio Houaiss da Língua Portuguesa (2001), os grupos
indígenas do Brasil constituem nações, como agrupamento político autônomo. O Capítulo
VIII da Constituição Federal de 1988, intitulado Dos Índios, em seus artigos 231 e 232 e seus
parágrafos, ditou as bases políticas para a efetivação das relações entre os diferentes povos
indígenas e o Estado brasileiro, como resultado das reivindicações das lideranças indígenas
dos diferentes povos, junto ao Congresso Constituinte, visando a explicitação de direitos que
assegurassem a sua continuidade, enquanto etnias (SANTOS, Sílvio [1995] 1998: 87).
No entanto, a legislação brasileira, anterior à Constituição de 1988, ainda vigente,
assim como o Estatuto do Índio – Lei 6001 de 19 de dezembro de 1973 (ANEXO 1) ainda
vigente, mantém a intenção de assimilação dos grupos indígenas à população brasileira, como
cidadãos sem identidade étnica específica, gerando a necessidade de adequar a Legislação aos
termos da nova Constituição.
Desde 1991, o Estatuto do Índio encontra-se em revisão no Congresso Nacional e na
ocasião, foram criadas comissões interministeriais para tratar da elaboração de uma “nova
política indigenista”, tendo desde então registrado diversos projetos.
Na atualidade brasileira, os índios que mantém seus usos e costumes tradicionais, são
considerados como “relativamente incapazes”, tutelados e objeto de direito especiais, mas sem
os direitos plenos de cidadania. Aqueles considerados “integrados à comunhão nacional”, que
dominam e praticam usos e costumes da sociedade brasileira, arriscam-se a perder seus
direitos como grupos étnicos, inclusive o de posse e usufruto de seus territórios, em troca dos
direitos individuais de cidadania (ARRUDA Rinaldo Sérgio Vieira, [1997] 2001: 46).
78
A permanência da questão indígena em espaço subordinado a outros eixos temáticos e
tentando legitimar sua identidade diferenciada, instituindo-se como sujeitos do processo de
significação (Idem: 47), torna evidente o compromisso ético da educação, pois segundo Paulo
FREIRE ([2004] 2005:61), a prática é a que valida o discurso, e não o contrário.
FREIRE (Idem: 47) defendia que uma das tarefas dos educadores é decifrar o mundo
opressor para o oprimido, daí o papel político da educação.
Desenvolvendo relações com a sociedade nacional e lutando para afirmar sua
autonomia, os índios cada vez mais intervém ativamente na dinâmica sócio-política nacional,
fundam entidades e associações, elaboram projetos, participam do mercado como produtores e
consumidores, tornam-se eleitores e políticos, ocupam cargos nacionais e participam da
máquina estatal e do espaço social.
Não há possibilidade de se pensar o amanhã, diz Paulo FREIRE ([1997] 2000: 117),
sem que nos achemos em processo permanente de “emersão” do hoje, do tempo em que
vivemos, tocados pelos desafios, os problemas, a insensatez que anuncia desastres, tomados de
justa raiva em face das injustiças profundas, pela transgressão da ética. Para ele, não é
possível separar política de educação, pois o ato político é pedagógico, e o pedagógico é o
político que não pode reduzir-se a interesses utilitários, imediatistas e nem negar o sonho e a
utopia
No caso de grupo indígena da aldeia Piaçaguera, a identidade étnica é incorporada por
aqueles que sendo brancos, negros ou mestiços, ao se casarem com homem ou mulher do
grupo da aldeia, passam a fazer parte da mesma, assumindo os padrões valorativos da
comunidade e seus filhos são considerados tupi-guarani.
Segundo FERNANDES (1948: 184), pela tradição tupinambá, a modalidade de
casamento preferencial era entre o tio materno com a sobrinha, porém o mesmo não ocorria
com a filha do irmão, que era tida como filha. As moças que rejeitassem o tio materno,
79
desejando escolher o seu marido, desagradavam a comunidade, não tendo a sua união
reconhecida e os parentes lhe promoviam novas ligações com os viajantes.
Era permitido o casamento entre primos cruzados, filhos do tio materno ou da tia
paterna. Os chefes ou grandes guerreiros, recebiam mulheres de presente e tomavam conta
delas, desde crianças, ou após os ritos de puberdade. Homens de muito prestígio podiam
contrair novas núpcias e a mulher passava a residir em sua moradia, no espaço que lhe era
reservado, ou continuavam a morar nas malocas dos pais e mantinham os filhos dessa união
em sua companhia.
O indivíduo que se casava com jovem estranha, constituía um problema do ponto de
vista etnológico, pois devia mudar-se para a maloca dos pais da moça, transferindo para os
sogros as obrigações que tinha com relação aos seus próprios pais. Além disso, devia servir
aos irmãos e irmãs ou tio, no caso da falta do pai, devendo conquistar-lhes a graça, pois as
famílias exerciam grande controle sobre as uniões de seus membros com pessoas de outros
grupos familiares (Idem 190-197).
A situação do genro na família, exprime a concepção Tupinambá sobre o parentesco
por afinidade e os direitos e deveres inerentes:
Apuaue – taigaipu aucoe-pro romo yieng, o que quer dizer
“Os povos estão ligados com grande trabalho e dificuldade” .
Quando perguntei a Ecocatu, a vice-diretora da escola da aldeia, quem é branco. Ela
me disse: “É todo aquele que não é índio, são os estrangeiros, alemães, franceses; já os
mestiços, são irmãos.”. Ou seja, os mestiços seriam menos diferentes? A sua filha,
Jurumopycoé contou em entrevista que sentia vergonha de dizer que é indígena, e que
somente veio a dar-se conta da importância da sua identidade índia, quando desejou que sua
filha, agora de um ano e meio, falasse tupi-guarani e por isso faz questão que a avó lhe ensine
a língua.
80
Embora a convivência seja amigável entre etnias, como no caso da aldeia Itaoca, onde
convivem guarani e tupi-guarani no mesmo espaço geográfico, estes últimos fazem questão de
dizer “nós somos tupi-guarani, estamos aqui desde antes dos guarani”.
Durante o seminário “Terras Guarani no Litoral”, organizado pelo CTI – Centro de
Trabalho Indigenista, em dezembro de 2004, quando após entrevistar o cacique eu quis
fotografá-lo, ele pediu licença e foi pedir ao cacique guarani o cocar emprestado.
Foto 8 - Cacique da aldeia Itaoca, no Memorial da América Latina
Dezembro, 2004.
Até que ponto vamos ser nós os delimitadores
do que os índios devem saber?
Paulo Freire (2005: 58)
Dizia Varnhagen, “de tais povos na infância
não há história: há só etnografia”
In: Manuela Carneiro da Cunha ([1992] 2002:11)
Além da atividade consciente de institucionalização
as instituições encontraram sua fonte no imaginário social.
Este imaginário deve-se entrecruzar com o simbólico, do contrário
a sociedade não teria podido “reunir-se”, e com o econômico-
funcional,do contrário ela não teria podido sobreviver.
Cornelius Castoriadis ([1975] 1982:159)
82
Foto 9 - Meninas tupi-guarani no pátio central da aldeia Piaçaguera
Outubro, 2004
Neste capítulo reflito sobre a história do indígena no Brasil, especificamente no caso
dos tupi-guarani. Perspectivando o olhar sobre a atualmente chamada educação intercultural,
busco compreender as formas das relações mantidas entre a cultura de educação indígena e a
cultura de educação não-indígena, o Estado e a igreja e a maneira como se desenvolveram
conceitos, considerando as dimensões da história da educação no Estado de São Paulo.
83
Com essa finalidade, recorro aos autores José Mauro GAGLIARDI, Manuela Carneiro
Da CUNHA, Carlos FAUSTO, Antonio Carlos de SOUZA LIMA, Luiz Beltrão, John Manuel
MONTEIRO, Aracy Lopes da SILVA, Mariana Kawall Leal FERREIRA, Bruna
FRANCHETTO, Raquel TEIXEIRA, Otaíza ROMANELLI, Florestan FERNANDES, Egon
SCHADEN, BOURDIEU e PASSERON, Clifford GEERTZ, Álvaro Vieira PINTO, que com
suas idéias auxiliaram minhas análises, meditações e avaliações.
À medida que a minha consciência foi se formando, passei também a produzir, criando
idéias sobre as muitas relações possíveis da história, as transformações, as contradições, as
relações de poder, a ética, as mediações nas relações interculturais, a produção do próprio
homem em função da produção do sistema simbólico cultural, a criação de conceitos e a
transmissão de uma geração a outra dos modos de transformação da existência.
Analisando as relações atuais entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, no
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, documento oficial, encontra-se que
este reconhece duas tendências históricas: a de dominação, realizada através da integração e
homogeneização cultural que teria acontecido desde o período colonial até o final dos anos 80
do século XX e a do pluralismo cultural, que teria nascido com a Constituição Federal de
1988 (RCNEI, 1998:26).
Assim, citando como Primeira Referência os padres jesuítas, descrevo o período da
economia colonial brasileira, quando a missão da Companhia de Jesus era perspectivar a
missão universalista à obediência ao Papa, ao mesmo tempo que, assumir compromissos
locais.
A seguir, como Segunda Referência exploro a temática dos missionários estrangeiros,
que no início do século XVIII montaram ampla rede de escolas e colégios de nível primário e
secundário e o surgimento de idéias positivistas em defesa dos índios, que acreditando que os
homens evoluíam em estágios sucessivos, visavam protege-los, reunindo-os em centros
agrícolas
84
Como Terceira referência, recorro a estudos sobre o SPILTN – Serviço de Proteção
aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, buscando perceber o contexto no qual
desenvolveu-se uma maneira de lidar com a educação indígena no início do século e no
período de atuação do SPI – Serviço de Proteção aos Índios, até a sua extinção em 1967.
Na Quarta Referência: FUNAI e o SIL, exploro a idéia de “ensino bilíngüe”, que
nasceu com a criação da FUNAI em 1967, período em que tornou-se obrigatório em todo o
país o ensino das línguas nativas nas escolas indígenas. Trato também da interferência do SIL
– Summer Institute of Linguistics, em diversos estados brasileiros, principalmente Brasília,
Porto Velho, Belém e Cuiabá.
E para Referência Atual recorro ao MEC/Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas e a ação da Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo nas
escolas do Estado; amplio as minhas reflexões, buscando compreender a ação de organismos
internacionais que visam garantir o direito de membros de minorias étnicas, religiosas ou
lingüísticas, estimular que tenham sua própria vida cultural e sua própria língua, estabelecendo
sua condição política, promovendo o seu próprio desenvolvimento econômico, social e
cultural e que disponham livremente de suas riquezas e recursos naturais.
2.1.- Primeira Referência: os padres Jesuítas.
Penso estar percorrendo a evolução de um caminho longo e problemático no sentido de
perceber o conceito de “educação brasileira” como um todo, pois no levantamento da literatura
especializada sobre a educação nacional, dificilmente encontra-se, nessa totalidade, referências
à educação indígena; como se essa fosse mesmo uma coisa à parte, tratada principalmente pelo
interesse dos antropólogos.
85
Uma exceção é o livro História da Educação no Brasil, da Prof. Dra. Otaíza de
Oliveira Romanelli, resultado de sua tese de doutoramento. A professora introduz seu
trabalho com o desejo de compreender a trama de relações existente entre os fatores que atuam
no sistema educacional brasileiro e que, segundo ela, são responsáveis pela maioria de seus
problemas. A autora defende que a forma como evolui a economia interfere na organização
do ensino, impondo-lhe significação de acordo aos interesses do sistema econômico, dessa
forma criando uma demanda de recursos humanos que devem ser preparados pela escola
(ROMANELLI, ([1978] 1991:14).
Durante o período da economia colonial brasileira, os padres jesuítas receberam do rei
de Portugal a missão de converter índios e dar apoio religioso aos colonos. Essa ligação entre
o clero e realeza; religião e finalidades colonizadoras, está no “Plano de Colonização” do
padre Manuel da Nóbrega, para a coroa, abrangendo todos os aspectos estratégicos, inclusive
os militares (CASALI, 1989:48).
Na prática, do início da colonização, até o império, a igreja no Brasil teve como
característica importante, o distanciamento do papado, enquanto religião oficial trazida pela
metrópole, constituindo-se aqui como uma Cristandade dependente mais de Portugal do que
de Roma (Idem: 84).
Assim, o fato da Companhia de Jesus ter uma perspectiva missionária universalista,
com estrita e direta obediência ao Papa, e ao mesmo tempo assumir compromissos locais,
resultou em atritos com bispos ligados e dependentes do rei. No caso específico do tratamento
com os indígenas, os jesuítas se opunham à escravização, ao mesmo tempo que a toleravam e
faziam uso dela (Idem: 55).
A ambivalência da obra educativa da Companhia de Jesus contribuiu para que a
sociedade latifundiária e escravocrata se tornasse também uma sociedade aristocrática, devido
ao tipo de organização social e ao conteúdo cultural que foi transportado para a Colônia,
através da formação mesma dos padres, pois a escola era freqüentada apenas pelos filhos
homens dos donos de terra e senhores de engenho, menos os filhos primogênitos, a quem
86
cabia ser preparado para assumir a direção do clã, da família e dos negócios (ROMANELLI,
([1978] 1991:34).
ROMANELLI explica que a ação jesuítica no Novo Mundo tinha por objetivo prático
o recrutamento de fiéis e servidores. Com esse intuito, a catequese realizou a conversão da
população indígena, através da criação de escolas para os “curumins” e de núcleos
missionários no interior das nações indígenas. Porém gradativamente, a educação da elite é
que foi tomando totalmente o lugar da catequese, firmando-se dessa forma durante os períodos
colonial e imperial, até a expulsão dos jesuítas, ocorrida no século XVIII (Idem: 35).
É o que também encontra-se na interpretação crítica de MONTEIRO ([1994] 1995:8),
sobre a história social, cultural e econômica de São Paulo: entre os séculos XVI e XVIII; diz o
autor, os índios ocuparam um papel central como força de trabalho escravo fomentado pelos
bandeirantes, possibilitando a produção e o transporte de excedentes agrícolas; com essa mão-
de-obra sendo administrada pelos jesuítas, articulando a chamada Serra Acima a outras partes
da colônia portuguesa e ao circuito mercantil do Atlântico meridional.
Portanto, não se trata de relações entre entidades diferentes e contrárias umas em
relação às outras, mas contraditórias, no sentido de que a existência de uma nega a existência
da outra, como se verá a seguir.
Segundo MONTEIRO (Idem: 19) os europeus logo perceberam que grande parte do
litoral e alguns lugares do interior do Brasil estavam ocupados por sociedades com
características semelhantes, comuns à chamada cultura tupi-guarani. Perceberam também que
a sociedade tupi, aparentemente homogênea, era bastante segmentada e que o interior do país
era habitado por outras sociedades, que falavam dezenas de famílias lingüísticas.
Decidiram então reduzir a riqueza desse panorama cultural a duas categorias genéricas:
tupi, para se referir às sociedades litorâneas, que habitavam do Maranhão a Santa Catarina,
incluindo os guarani, e tapuia para referir-se aos grupos que além de diferenciados do padrão
tupi, eram pouco conhecidos dos europeus.
87
Assim resolveu-se essa dificuldade, negando a cultura, os muitos costumes, crenças,
relações políticas, produções e línguas indígenas, simplificando, como fez o jesuíta Fernão
Cardim que registrou 76 grupos não-tupi, classificando-os como tapuias. Logo, essa
denominação redutora passou a ser projetada em termos negativos e pejorativos, como antítese
da sociedade tupi.
Segundo Egon Schaden ([1954] 1962: 10-12), não há remanescentes dos antigos Tupi
da costa, desaparecidos já no período colonial. Ele explica, que a maioria das populações
indígenas encontradas em terras da bacia platina, falava dialetos do idioma Guarani, bastante
afim à língua das chamadas tribos Tupi, que dominavam quase todo o litoral brasileiro e
grandes extensões do interior.
Ele divide os Guarani do Brasil Meridional, pelas diferenças lingüísticas, em três
grandes grupos: os Ñandéva, os Mbya e os Kayowá, mas também por peculiaridades na cultura
material e não-material.
O autor explica que a auto-denominação usada por todos os Guarani é Ñandéva, que
quer dizer os que somos nós, os que são dos nossos, e que eles gostam de usar expressões
como ñandevaekuére, que significa nossa gente, ñandéva eté que quer dizer é mesmo nossa
gente e txé ñandéva eté ou seja, eu sou mesmo Guarani, um dos nossos (Idem: 10).
SCHADEN (Idem: 18) considera que os Guaraní constituem um dos exemplos de tribo
ameríndia mais submetida a relações de contato com as culturas de tipo ocidental e a
influências de variadas situações interculturais, sendo sua característica biológica mais
mestiça, e suas culturas variando entre formas quase-tribais e rurais, a culturas urbanas de
acentuado caráter civilizatório.
Ele encontrou em São Paulo, os Ñandéva vivendo em duas aldeias do litoral paulista e
na aldeia Araribá, perto de Bauru. Ao sul de Santos, os Mbya nas aldeias de Rio Branco e
Rio Comprido, perto de Itariri, vindos do Paraguay. Sobre os Kayová não encontrou notícia
88
que tenham chegado até a costa atlântica, mas que tenham permanecido ao sul de Mato Grosso
e em algumas regiões do Paraguai.
Algumas famílias também se haviam estabelecido em aldeamentos: Ñandéva no Itariri
(entre Peruíbe e Juquiá); Ñandéva no Bananal (um dos mais antigos aldeamentos do litoral de
São Paulo) ao sul de Itanhaém; e em Itaporanga (SCHADEN, Idem: 11-12).
Quando da chegada dos portugueses, haveria população de 6 a 10 milhões de
indígenas, que falavam aproximadamente 1.300 línguas. Atualmente, estima-se uma
população de
1
370.000 pessoas (0,2% do total do país), estando esse número distribuído entre
mais ou menos duzentos povos que falam aproximadamente 180 línguas.
Somente a partir das últimas décadas, historiadores, arqueólogos, antropólogos e
lingüistas, começaram a compreender o processo de “depopulação” que extinguiu as línguas,
muitas vezes através da extinção física dos povos que as falavam (TEIXEIRA, [1995] (1998:
295).
A língua Tupinambá, ou Tupi Antigo, que ficou conhecida como língua Brasílica; era
falada pelos índios também conhecidos como Tamoio, Tupinikim, Kaeté, Potiguara e
Tobajára. O Tupi-guarani, portanto, não é apenas uma língua, mas uma “família lingüística”;
fazem parte da “família” as línguas com origem comum e que ao longo do tempo foram se
diferenciando), da qual o Tupinambá e o Guarani fazem parte, sendo o tronco Tupi o maior e
mais conhecido das línguas indígenas brasileiras.
TEIXEIRA criou o quadro didático explicativo abaixo, que ajuda a compreender o
tronco lingüístico TUPI e sua abrangência cultural (Idem:300):
1
Fonte: www.socioambiental.org.br , outubro/2005.
89
TUPI-GUARANI ARIKÉM JURUNA MONDÉ MUNDURUKU RANARAMA TUPARI AWETI PURUBORÁ MAWÉ
Akwáwa Karitiana Juruna Aruá Kuruáya Arara Makuráp
Amanayé Xipáya Cinta-larga Munduruku Itogapúk Tupari
Anambé Gavião Wayoró
Apiaká Mekém
Avá Mondé
Awaweté Suruí
Guajá Zoró
Guarani
Kamayurá
Kayabi
Kokáma
Nheengatú
A autora indica algumas semelhanças entre a língua Tupi e a Guarani Mbyá, por exemplo:
Tupi Guarani Mbyá
Pedra Itá Ita
Fogo Tatá Tatá
Jacaré Jacaré Djakaré
Onça Jaguareté Jagwareté
Pássaro Güyrá Gwyrá
Mão dele Ipó Ipó
Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, o tupi espalhara-se de tal maneira pelo
Brasil, que no século XVIII o governo português baixou decretos proibindo o seu uso,
principalmente nas escolas (TEIXEIRA, Idem: 308).
90
Entre os tupi-guarani a oratória era tão importante, que considerava-se que a autoridade
do chefe da tribo, como líder, estava nessa virtude e na sua habilidade para mobilizar
guerreiros. Tanto que, o padre Anchieta, exímio orador, admirava a fala de Tibiriçá, chefe dos
Tupiniquim, quem conforme conta Fernão Cardim, diariamente, antes do amanhecer, pregava
durante meia hora (MONTEIRO, [1994] 1995:24).
Em atitude educacional, o cacique reunia a tribo, lembrava os feitos dos seus
antepassados e a seguir distribuía o tempo, dizendo o que fariam naquele dia. Nesse mesmo
sentido há relatos do padre Nóbrega de que o chefe era o guardião das tradições, quem
determinava as atividades do dia e recomendava viver em comunidade (Ibid.).
Florestan FERNANDES (1964:11) explica que para os tupinambá, a educação tinha
por base assimilar o indivíduo à ordem social tribal, o “nós coletivo”, sem prejuízo do
equilíbrio psico-biológico da pessoa, conseguindo êxito no respeito e no aproveitamento
construtivo de aptidões, visando atender às necessidades materiais ou morais, decorrentes do
sistema de divisão de trabalho e classificação social.
Observando não havia a competição individualista e as implicações igualitárias para as
atribuições de status, o autor (Idem:12) atribui a esses fatores a intervenção extensa e intensa
na conformação da ampla variedade de atitudes, comportamentos e aspirações ideais de auto-
realização das pessoas.
Nessas condições, FERNANDES (Idem: 13) diz que resulta ser essencial para a
sobrevivência do grupo e da sua herança sócio-cultural, o resguardo das diferenças entre as
pessoas, dessa forma obtendo o aproveitamento construtivo das variadas aptidões pessoais. O
autor observa que apenas a divisão sexual do trabalho criava algumas separações na
transmissão de conhecimentos, pelas habilidades, conteúdos e aspirações específicas.
Xamãs ou pajés, que às vezes também acumulavam autoridade política, tinham funções
essenciais, como o curandeirismo, a interpretação de sonhos e a proteção da sociedade local
contra ameaças externas, inclusive espíritos malévolos. Seu conhecimento, era considerado
91
acessível a todos, desde que em consonância com os princípios gerais de sexo, idade e graus
de aptidões pessoais reveladas e comprováveis socialmente (Idem: 16).
Portanto, não se observava qualquer monopólio de conhecimentos, técnicas sociais,
culturais, formação de grupos fechados, privilegiados ou com direitos especiais. Mesmo o
conhecimento dos mais velhos, portadores de excelência dos conhecimentos e técnicas, pois a
própria continuidade da ordem tribal exigia a transmissão aberta da herança cultural para as
gerações futuras.
A vida espiritual dos povos tupi-guarani era também marcada pela eventual presença
de profetas ambulantes, os caraíbas, que tinham grande influência sobre os habitantes das
aldeias. Transitavam de aldeia em aldeia, eram recebidos com festas e danças e deixavam
mensagens messiânicas, como reporta o padre Nóbrega (Idem: 25),
O feiticeiro lhes diz que não cuidem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento
por si crescerá, e que nunca lhes faltará que comer, e que por si virá a casa; e que os paus
agudos se irão cavar, e as flechas se irão ao mato por caça para seu senhor, e que hão de matar
muitos de seus contrários, e cativarão muitos para seus comeres.
Segundo MONTEIRO, nos principais relatos coloniais, três elementos críticos se
destacavam como tendo importância crucial nas relações intertribais e posteriormente
euroindígenas: a trama da vingança, as práticas de sacrifício e antropofagia, e a complexa
configuração de alianças e animosidades entre aldeias (Idem: 26).
Apesar do impacto destrutivo do projeto missionário e da violenta ação dos colonos, há
relatos de resistência e resposta criativa do povo nativo, como se lê em relato do padre
Nóbrega, que dizia que no interior dos aldeamentos, os pajés diziam que era a água do batismo
que causava as doenças que assolavam populações nativas. E também com relação às velhas
que, tendo visto muitas vezes os padres batizarem índios à beira da morte, diziam que o
batismo é que os teria matado (MONTEIRO [1994] 1995: 48).
92
Imitando os líderes nativos, os jesuítas pregavam de madrugada. Faziam soar o sino no
meio da noite enquanto meninos indígenas, seus alunos, eram instruídos a passar os
ensinamentos religiosos para a geração mais velha. Durante o dia, os padres saíam de casa em
casa, usando as mesmas palavras dos pajés carismáticos, dizendo que “queriam ensinar coisas
de Deus, para que ele lhes desse abundância de mantimentos, saúde e vitória de seus inimigos
(Idem: 49).
Desprezava-se assim, que no processo educativo tupinambá, a tradição não é somente
sagrada, mas aparece como um saber puro, capaz de orientar ações e decisões dos homens, em
quaisquer circunstâncias que enfrentem. Ignorava-se também a importância dada à dinâmica
do caráter adaptativo, que atribuía níveis de honorabilidade às ações e ao caráter das pessoas,
devendo todos esforçar-se por equiparar suas atitudes aos mínimos morais definidos pelo
grupo (Idem: 18).
Na educação nativa, se consideram o valor da ação e o valor do exemplo, o que levava
à idéia de “aprender fazendo” e daí o fato das crianças serem desde cedo incluídas nas
atividades adultas, e ninguém excluir-se de obrigações (Idem: 19).
Os confrontos com as expedições do homem branco, foram marcados por encontros
sangrentos com os colonos, que partiam para o interior de São Paulo em busca de índios, de
preferência tupi e guarani. Raposo Tavares, em 1628 liderou uma grande expedição, com o
fim de fazer cativos e assaltar aldeias guarani, atingindo seu objetivo com uso de muita
violência. Seu método consistia em cercar a aldeia e persuadir seus habitantes a acompanha-
los na volta a São Paulo. Para isso, entrava, matava, queimava e assolava e em alguns casos
aplicava o método em uma aldeia com a intenção de aterrorizar aldeias vizinhas. Enfermos,
velhos, aleijados, mulheres e crianças que impedissem parentes de seguir a viagem, eram
mortos e seus corpos jogados aos cães (MONTEIRO [1994] 1995: 73).
Com o tempo, devido ao crescimento da economia, a vila paulistana tornou-se centro
receptor da maioria dos escravos indígenas. Registra-se (Idem: 69) que em 1637, entre 70 e
80 mil índios haviam sido levados pelos paulistas da região dos Patos, chegando a haver 9 mil
93
em uma só expedição e que até 1632, 13 das 15 aldeias guarani e todas as reduções do Guairá
haviam sido destruídas (Idem: 74).
MONTEIRO considera uma realidade incontestável que os índios formaram a base de
toda a produção colonial em São Paulo, e que os colonos tenham lutado por isso ao longo do
tempo, consolidando um incontestável triunfo sobre seus adversários e recriando, controlando
e sustentando a força de trabalho, embora, no plano ideológico e institucional, sua posição
permanecesse menos estável diante da oposição dos jesuítas e da Coroa (Idem:133).
Em relatório à Coroa, escrito por Bartolomeu Lopes de Carvalho, em 1690, ele
explicava os direitos históricos dos portugueses sobre as terras indígenas, pelo pacto de paz e
amizade que os fez receber dos nativos o direito sobre as suas terras; justificado pelo fato dos
europeus possuírem uma “política racional” e “religião superior”, considerando o apoio
espiritual, uma retribuição suficiente à apropriação da terra e do trabalho indígena
(Idem:134).
Alfredo BOSI (1992: 135), encontrou que nos depoimentos da tradição cristã com
relação aos índios, a filiação comum e universal dos homens em relação a um Deus criador e
único, era o aval da irmandade geral : “E entre cristão e cristão não há diferença de nobreza,
nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza porque todos são filhos de Deus; nem há
diferença de cor porque todos são brancos.”, o autor explica que a última frase se deve a que o
batismo teria limpado espiritualmente a todos, sem distinção.
Até os últimos anos do século XVII, o termo usual para os índios era negro da terra;
com a chegada de africanos, surgiram outras expressões depreciativas, como gentio do cabelo
corredio, administrados, servos, pardos e carijós. Desde meados do século XVI, carijós eram
os guarani em geral, porém no início do século XVIII o termo passou a referir-se a todo índio
subordinado, devido à heterogeneidade étnica e a diminuição do fluxo de cativos guarani
(Idem: 166).
94
O enquadramento da população cativa numa categoria étnica padronizada, significava
mais que a política senhorial ou a semântica, um processo histórico envolvendo a
transformação de índios em escravos e o inculcar simbólico do que isso queria dizer.
Assim, outras terminações que expressavam uma diferença crítica da época, eram o
mamaluco e o bastardo, termos usados para referir-se à prole de pai branco e mãe indígena.
No caso dos mamalucos, estes tinham reconhecida publicamente a paternidade, o que
implicava liberdade plena e a aproximação dos portugueses. Porém os bastardos,
permaneciam vinculados ao segmento indígena da população, seguindo a condição materna.
À medida que no século XVIII o termo mamaluco caiu em desuso, bastardo passou a designar
qualquer um de descendência indígena. Como designação, que significa, percebe-se nesse
processo uma importante comunicação e um modo de educação (Idem: 167).
Na tradição tupinambá, não havia o costume do castigo aos filhos, por nenhum motivo,
nem a repreensão ou doutrinação, entendia-se que a criança ia aprendendo à medida que fazia.
Até a idade de sete ou oito anos, eram sempre vistos às costas da mãe que os amamentava até
cinco, seis anos. Os meninos aprendiam com o pai o uso de arcos e flechas e as meninas
acompanhavam o serviço da casa e da fiação ( FERNANDES, 1964: 42).
Segundo FERNANDES (1948:152), as relações entre pai e filho eram consideradas
muito íntimas, profundas, laços criados pelo fato do pai cortar o cordão umbilical, reforçando
com isso as obrigações e ligações entre um e outro; o mesmo ocorrendo no caso do
nascimento de filha, quando era a mãe quem cortava com os dentes, o cordão umbilical.
No estudo do sistema de parentesco dos tupi-guarani, ou seja, o sentido das regras
relativas ao matrimônio, dos princípios estruturais da organização da família, do sistema de
direitos e deveres que regulam o tratamento e o comportamento dos parentes, encontra-se que
os critérios de atribuição de status ao homem e à mulher eram diferentes, sendo que no caso da
mulher, a maturidade estava relacionada ao seu desenvolvimento biológico. Tão logo
menstruavam, eram submetidas aos ritos de iniciação, sendo-lhes permitido adquirir cônjuge
ou manter relações sexuais livres. Já os homens, sua maturidade era reconhecida apenas após
95
ter executado ritualmente ao menos um inimigo, e mesmo assim, o homem somente contraía
matrimônio dois ou três anos depois do sacrifício ritual do inimigo (FERNANDES, Idem:
130-134).
Porém no contato com brancos, houve violenta desestruturação cultural. Durante o
século XVII, período de grande desenvolvimento econômico da região do planalto paulista, a
chamada idade de ouro da produção de trigo, entre 1630 e 1680, as lutas pelo acesso às terras e
à mão-de-obra indígena contribuíram de maneira importante para essa transformação e
degradação da vida nativa (Idem:113).
A partir da segunda metade do século XVII tornou-se cada vez mais difícil a aquisição
dessa mão-de-obra, pelas condições cada vez menos lucrativas das expedições, distâncias
maiores e maior resistência indígena.
Como resultado, alguns comerciantes mudaram de atividade, outros introduziram a
mão de obra escrava africana, ou passaram a criar animais de carga, tentando substituir as
reservas de carregadores índios, e outros dedicaram-se à busca de metais preciosos em São
Paulo ou Minas Gerais, agravando o êxodo de mão de obra (Idem: 209).
Tendo vivido a experiência chamada por Bastide de aculturação organizada e forçada,
em benefício do grupo colonizador, como explicado por CUCHE ( [1996] 2002: 123), as
sociedades indígenas remanescentes diminuíram drasticamente ou desapareceram, dizimadas
por doenças infecciosas ou deslocando-se para áreas ainda não ocupadas pelos brancos.
2.2. Segunda Referência: os missionários estrangeiros
No século XVIII, as relações entre senhores e índios, já se haviam definido pelos
extremos da estrutura de dominação, produção, distribuição desigual e identidade, situação
96
que determinou diferenças marcantes entre colonos ricos e a grande maioria, cada vez mais na
pobreza rural, ignorância e humilhação.
No século XIX, a consciência da necessidade de definir uma política indigenista para o
Império, levou José Bonifácio de Andrada e Silva a apresentar um projeto à Assembléia Geral
Constituinte de 1823, no qual, acreditando na integração pacífica do índio à sociedade
brasileira, ele propunha que o relacionamento entre o Estado e as populações indígenas se
orientasse por quatro princípios básicos: justiça, brandura, constância e sofrimento
(GAGLIARDI, Mauro. (1989: 30-31)
E como meios para a sua civilização, Andrada e Silva apontava, primeiramente o
comércio, visando a aproximação entre brancos e índios: de início, trocando produtos
silvestres por espelhos, anzóis, facas e a seguir organizando feiras ou mercados nas aldeias
onde pudessem comercializar os produtos por eles cultivados, como o algodão, tabaco, café,
gado e outros. Em segundo lugar, introduzir nas aldeias, brancos e mulatos, de forma a
favorecer seus casamentos com indígenas, visando misturar as raças, “nos interesses de uma
só nação” (Ibid.).
Em terceiro lugar, o trabalho de catequese, a cargo de um colégio de missionários,
concentrando o poder político no pároco, com respaldo das forças militares, aquarteladas a
uma certa distância da aldeia e dando apoio sempre que necessário. Por fim a introdução dos
índios à agricultura, pois eles deveriam de produzir gêneros alimentícios para seu próprio
consumo e para a comercialização. Esse modelo de administração contaria também com uma
enfermaria e um Tribunal Superior (Ibid.).
Quanto à “tutela orfanológica”, esta foi imposta aos indígenas durante o governo
Regencial de 1831, após a revogação das Cartas Régias expedidas em 1808 por D. João VI,
determinando-se que os índios livres da servidão fossem considerados como órfãos e
entregues à proteção dos juízes (SANTOS, 1998:97).
97
Nesse contexto, na década de 1840, o governo passou parte do controle da catequese
dos índios aos missionários capuchinhos, que oficialmente passaram a vir ao Brasil nos anos
de 1843 e 1844, com as despesas asseguradas pelo governo do império (GAGLIARDI, Mauro.
(1989: 32)
Também a partir de 1878, o papa Leal XIII iniciou estratégia de expansão para as
Américas, África e Ásia, gerando a irrupção de congregações religiosas e missões. Assim,
para o Brasil, nos primeiros cinqüenta anos, vieram 37 novas Ordens masculinas e 97 Ordens
femininas, a maioria dedicando-se principalmente a montar uma rede de escolas e colégios de
nível primário e secundário (CASALI, 1989:83).
Procurando informações que nos situem nas idéias que articulavam a escola para índios
durante o século XIX, encontramos no estudo de Marta Rosa Amoroso ([2000] 2001:134)
explicações sobre o sentido dessa escola e dos institutos de educação que mantinham cotas
para crianças indígenas. A autora desenvolveu seus estudos através da análise da
documentação produzida pela Ordem Menor dos Padres Capuchinhos.
O estudo de AMOROSO tem por objetivo compreender a situação local dos
aldeamentos católicos, tomando as instituições de caráter educacional como forma de acesso
às relações sociais que se estabeleceram entre os diversos agentes sociais, de maneira a formar
um perfil da chamada “escola para índio” no século XIX (Ibid).
Ela considera a escola o local privilegiado para a análise antropológica do embate entre
o projeto civilizatório idealizado pelos colonizadores e o Estado, o plano de discurso
edificante dos frades e a conflituosa realidade das relações sociais produzidas na situação de
aldeamento (Ibid).
Nesse sentido nas províncias brasileiras, a mensagem que a escola veiculava, como
catequese católica, adquiria diversos significados, conceitos manipulados pelo indigenismo do
Brasil monárquico. Em menor escala atuaram também os padres salesianos no Mato Grosso
98
desde 1894, os dominicanos, em Minas Gerais desde 1878, e em Goiás desde 1886 (Idem:
135).
Na concepção capuchinha estudada (Idem:155) essa “escola para índios”,
subvencionada pelo Estado, proibia a imposição da conversão ao catolicismo, porém pela
política da “brandura e bons tratos” para com a população nativa, na prática significava a
violência simbólica assimilacionista.
Segundo AMOROSO (Idem: 136), pela conversão, buscava-se a educação e a
assimilação branda, querendo distinguir-se dos violentes séculos anteriores. O Estado dava
apoio financeiro e estratégico, inclusive manutenção do aparato militar, e os empreendimentos
eram precedidos pela montagem de colônias militares ou presídios. Os aldeamentos eram
administrados pelo missionário religioso e na escola a vacinação e o socorro durante
epidemias eram prescrições tutelares que na maioria das vezes não chegaram a se cumprir.
Condenava-se a reclusão de crianças indígenas, contra a vontade dos pais. No entanto,
na escola as arbitrariedades eram comuns entre os funcionários do governo e religiosos, que
também estimulavam o estabelecimento de pontos de comércio dentro do aldeamento e onde
já se convivia com militares, comerciantes, colonos, escravos e ex-escravos negros (Idem:
137)
Pelo Regulamento da Catequese e Civilização dos Índios, de 1845, das Assembléias
das Províncias, a criação de escolas nos aldeamentos teria a manutenção a cargo das
províncias e a direção do missionário. Estabelecera-se a criação de cursos de primeiras letras,
e quanto ao conteúdo didático, o missionário deveria “ensinar a ler, escrever e contar para os
meninos e os adultos, que sem violência quisessem adquirir essa instrução”. Na prática,
resultou em conversões à religião católica e na obtenção de trabalhadores (139-140).
Na pedagogia capuchinha, três idéias prevaleciam (Idem: 140): que os índios não
tinham capacidade intelectual para o aprendizado de valores exteriores a suas culturas
originais; que os índios eram irredutíveis, não mudariam nunca, mesmo vivendo a situação de
99
aldeamento; e que o estágio de selvageria em que se encontravam não permitia o aprendizado,
somente a imitação. FERNANDES diz que os tupinambá sempre impressionavam os brancos
por sua memória, lembrando sempre do que viram, ouviram com todas as circunstâncias do
lugar, do tempo, das pessoas, quando o caso se dera ou se executara. Por isso conseguiam
conservar os acontecimentos e os fatos importantes da tradição tribal com grande fidelidade.
Os mais velhos descreviam fatos ocorridos há 120, 140, 160 anos ou mais, descrevendo-os
minuciosamente, FERNANDES 249)
Para o seu trabalho de “catequese”, os padres fundamentavam-se nas idéias do padre
Vieira, que dizia que os índios, “tão admiráveis naquilo que é do instinto animal, eram de
raciocínio reduzido e espírito infantil” por isso, trabalhavam na montagem de equipamentos e
peças para a igreja, na roda-d´água que movia a serra de madeira, no engenho para fazer
açúcar, nas juntas de bois para trazer a cana, no alambique de destilar aguardente,
concentrando atividades na produção de roças de mantimento para alimentar populações de
500 a milhares de pessoas (Idem: 144).
Nessa mesma época, a Inglaterra, que durante o século XVIII fora uma das maiores
comerciantes de tráfico de pessoas negras, assumiu o seu interesse intransigente de que as
colônias adotassem o trabalho livre, base da economia capitalista, na qual era vanguarda, e
passou a combater a escravidão.
Com o fim da importação de escravos negros, renasceu o argumento pelo retorno da
caça ao índio, através de Varnhagen, a quem se deve a imagem de que o índio seria
preguiçoso, traiçoeiro e anti-social, passando de dono das terras em que habitava, para intruso
e os conquistadores europeus, estrangeiros, adquirindo o status de cidadãos brasileiros, agentes
da história nacional (GAGLIARDI, Mauro (1989: 36-37).
Varnhagen acreditava que para civilizar o império seria necessário impor à população
autóctone o pacto social, acabar com a escravidão africana e admitir no país mais gente
branca, criando uma unidade nacional e étnica. A oligarquia do oeste paulista, adiante do
100
processo de modernização do país, pela economia cafeeira, trazia imigrantes que trabalhavam
principalmente como assalariados, e esbarrava na centralização política do aparelho de Estado
pela administração imperial, o poder Moderador, o Senado vitalício, as eleições à base de
renda (Idem: 41). Após a extinção do trabalho escravo, até o fim do século, a imigração anual
era de 100.000 pessoas, a maioria italianos (Idem: 60).
Algumas tendências políticas contribuíram para a queda da monarquia, principalmente
os princípios do positivismo que surgiu na França, fundado por Augusto Comte na primeira
metade do século XIX e que aqui se iniciou na Escola Militar. Enfraquecido por indisposições
com o clero, com o exército e a oligarquia tradicional, que participavam da legitimação do
poder, o período imperial chegou ao fim em 1889 (Idem 45-46).
No governo provisório, instituiu-se a bandeira da República, com o decreto de 19 de
novembro de 1889, com a máxima da filosofia comtiana: “Ordem e Progresso”. Por
influência de Teixeira Mendes, substituíram-se as formas de tratamento “Deus guarde a V.
Excia.” por “Vós” e “Saúde e Fraternidade”; retirou-se a presença da imagem de Cristo no
tribunal do júri, e em 9 de dezembro de 1889, Demétrio Ribeiro apresentou ao Governo
Provisório, o projeto de separação da Igreja, do Estado e em 7 de janeiro de 1890 e o projeto
de Rui Barbosa sobre a liberdade espiritual no Brasil, acabou prevalecendo (Idem: 53-54).
A aproximação do século XX, foi marcado por amplo processo de expansão econômica
e conquista de territórios inexplorados. Em São Paulo, a economia cafeeira abria horizontes
para negociantes, grileiros e fazendeiros que avançavam para o interior do Estado, chocando-
se violentamente com as populações indígenas que habitavam a região e criando um
verdadeiro estado de guerra.
No final do ano de 1908, na imprensa paulista e carioca, uma polêmica sobre o
extermínio dos índios levou os positivistas através de Teixeira Mendes, a posicionar-se em
defesa da questão indígena, pois acreditava-se que a solução estaria em elevar o indígena do
estado fetichista em que se encontrava para o estado positivo, poupando-lhe a transição pelo
estado teológico, orientando-se pelos “supremos interesses da Humanidade”, cabendo ao
101
governo federal a proteção desses povos e seus territórios, a fim de evitar qualquer violência
contra eles (Idem:55-56).
De acordo com a doutrina positivista, o conhecimento humano estaria sujeito a passar
inevitavelmente por três sucessivos estados de evolução: o Teológico, o Metafísico e o
Positivo, no qual se encontrava a Europa Ocidental, devido a seu elevado desenvolvimento
científico (Idem:44).
As sociedades mais primitivas estariam no estado Teológico, o qual por sua vez, se
dividia também em três etapas de evolução: o fetichismo, infância da humanidade e etapa
inevitável; o politeísmo e o monoteísmo, que conduziriam ao estado Metafísico, sendo o estado
Positivo, o último e definitivo dessa evolução (Idem: 45).
A retirada da igreja católica da civilização dos índios, e o bloqueio às subvenções
econômicas destinadas às missões religiosas, gerou grande resistência por parte da Igreja, com
apoio de alguns intelectuais, entre os quais, Teodoro Sampaio, que dizia: “ O bandeirante ou o
conquistador, alargava as fronteiras, dilatava os domínios. O missionário, porém, consolidava
a conquista, legitimava-a” (Idem: 97-99).
O padre Claro Monteiro do Amaral, escreveu sobre o problema, dizendo que o
indígena era mais interessante à economia nacional, que o imigrante, e que sua incorporação à
sociedade brasileira como trabalhador, apenas seria possível pela catequização da Igreja, pois
somente ela tinha palavras de vida e caridade: “Dê o Estado seus auxílios materiais à Igreja,
que esta, pressurosa, das selvas arrancará cristãos e convertê-los-á em cidadãos patriotas e
úteis, e assim distenderá de modo eficaz e permanente o território nacional ” (Idem:100-102).
As metas fundamentais lançadas pelos positivistas na política indigenista, e pela qual
lutaram nos anos seguintes, tinham dois objetivos: sobre o relacionamento, que deveria
nortear-se por princípios de amizade e brandura e sobre a assistência, que em função da nova
forma política do Estado, deveria de ser leiga, cabendo ao governo protegê-los, assegurar suas
vidas e seus territórios. Essas idéias influiriam para a criação do SPI.
102
2.3- Terceira Referência. O SPI.
Entre as manifestações da sociedade civil em favor dos índios, destacam-se J. Mariano
de Oliveira e o Desembargador Antônio Ferreira de Sousa Pitanga, que em 1901 elaborou
estudo sobre a situação jurídica do índio, publicando-o na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com a preocupação de sensibilizar o poder público, no sentido de
preservar a vida dos indígenas, até que se conseguisse a sua assimilação completa à
civilização.
O autor dizia que a catequese não havia solucionado a situação das tribos hostis, não
conseguindo impedir as invasões, violências armadas e chacinas, justificadas através da
alegação de que eles não faziam parte da sociedade legalmente estabelecida (GAGLIARDI,
Mauro (1989: 36-37.
Souza Pitanga propunha que se delimitasse e reconhecesse o território necessário à
existência dos índios, variando esse território em função do número de tribos ocupantes, que
se respeitasse o direito de posse e uso das riquezas naturais contidas nas áreas indígenas, a não
ser em casos de necessidade pública, já que pela Constituição de 1891, artigo 72, parágrafo 17,
previa que o direito de propriedade se garantisse em sua plenitude, salvo em caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública e mediante indenização prévia ( Idem:
106).
O desembargador também propunha a promulgação de uma lei que punisse os
responsáveis por invasões armadas, tornasse possível o enquadramento de transgressores do
Código Penal, criasse escolas nas quais se ministrasse o ensino da língua geral e de outras
línguas indígenas mais conhecidas e a construção de aldeias nas proximidades das áreas
indígenas, sob a direção de pessoas que falassem os idiomas indígenas, leigo ou missionário
(Ibid).
103
Nesse debate, surgiu a figura da Professora Leolinda Daltro, que no começo de julho
de 1896 engajara-se ao movimento em prol da causa indígena, por ocasião da visita de um
grupo de índios Xerente ao Rio de Janeiro. Tendo à frente o índio Sepé, eles vinham da
Aldeia Providência, em Goiás, à margem do rio Tocantins, no intuito de conversar com o
presidente da República, conseguir roupas, armas, ferramentas e a atenção do governo para a
obra de civilização que o cacique, sem nenhuma orientação, vinha desenvolvendo na região
(Idem:108).
Passada a viagem, na qual faleceram dois índios, haviam sido encaminhados a uma
delegacia de polícia, no Rio de Janeiro e ali passavam dias de cansaço e fome. Cedendo à
pressão da imprensa, o presidente Prudente de Morais os recebeu e ouviu do cacique que,
viviam sob a ameaça dos grandes fazendeiros, que tinham necessidade de instrumentos para
lavrar a terra, roupas para a sua gente e que queriam uma escola para centenas de crianças que
lá existiam (Idem: 109)
A professora Leolinda Daltro, ouvindo as descrições do cacique sobre a sua aldeia e do
seu desejo de que alguém lhes ensinasse a ler e a escrever, entusiasmou-se pela idéia, pediu ao
governo que dobrasse seu pequeno salário e lhe concedesse uma licença de dois anos, indo
viver no sertão, onde permaneceu por quatro anos.
Retornou com informações sobre as dezessete tribos indígenas com as quais conviveu:
que não haviam feito nenhum progresso, ainda que subordinados ao sistema de catequese, que
se haviam tornado subservientes e estavam em decadência.
Ela observara que o padres, após ganhar a confiança do índio, não mais o perdiam de
vista, aproveitando-se de sua ingenuidade para explorá-los das mais diversas formas e para
incutir neles a sua doutrina. Dessa maneira, constatou-se que não eram verdadeiras as notícias
de boa condição de vida dos índios e que o resultado das subvenções econômicas investidas no
sistema de catequese, era nulo (Idem: 110).
104
A professora considerava que ainda não se havia tratado a civilização dos índios com a
devida seriedade, pois desde os mais remotos tempos havia sido entregue aos padres, com
exclusividade, nas margens dos rios Araguaia e Tocantins, e estes somente haviam procurado
“enriquecer os cofres de suas ordens, fazendo dos índios instrumentos de seus desígnios e de
seus interesses, algumas vezes infames” (Ibid.).
Com a idéia de fundar uma colônia indígena laica e associação de proteção aos índios,
à margem do rio Araguaia, ela reivindicou a proteção do governo e o apoio do povo, porém
obteve o descaso do governo e alguma compreensão da classe média do Rio e de São Paulo.
Logrou reunir-se duas vezes com o Gal. Melo Rego, o Comendador H. Raffard e Sousa
Pitanga, porém estes se renderam às pressões da igreja.
Estando sempre acompanhada por um grupo de índios, a Professora passou a denunciar
através da imprensa, em reuniões e congressos, as violências praticadas contra os índios, que
ela própria testemunhara (Idem: 111-113).
Em setembro de 1906, foi convidada pela “União Cívica Brasileira”, a orientar uma
expedição que se enviaria a Bauru, em São Paulo, a propósito do extermínio de índios
Kaingang que se promovia na região, pelos trabalhadores da estrada de ferro. Em outubro do
mesmo ano, com a presença de índios Guarani, Xerente e Krahô, fundou-se o “Grêmio
Patriótico D. Leolinda Daltro”, tendo como princípio básico a incorporação dos índios à
sociedade republicana, livre de qualquer intromissão clerical.
No segundo semestre de 1908, tendo sido informada pelo índio guarani Jepiá-ju que
autoridades locais do sul de São Paulo, promoviam extermínio da tribo dos Chucles em
Ourinhos, ela decidiu reiniciar os trabalhos da fundação da Associação de Proteção e Auxílio
aos Selvícolas do Brasil, com o fim de defender o índio e ajudá-lo através da instrução leiga, a
entrar para a comunhão nacional (Idem: 116).
As primeiras atividades da Associação, coincidiram com a publicação do artigo de
Hermann von Ihering na Revista do Museu Paulista, aconselhando o extermínio dos índios que
105
barrassem o avanço da civilização, ao qual a professora apresentou protesto dizendo que em
sua viagem de quatro anos até os rios Araguaia e Tocantins, em nenhuma das dezessete tribos
encontrara um índio que fosse assassino ou ladrão, ao contrário, eram amorosos e gratos, e se
atacavam, estavam apenas se defendendo dos roubos dos civilizados brancos (Idem: 117).
Igualmente, indígenas Guarani, Guajajara, Xerente e Krahô, apresentaram protesto em
forma de abaixo-assinado, dizendo ao ilustre diretor do Museu de São Paulo, que nas suas
incultas tribos nenhum índio nunca aprovaria a carnificina de entes humanos, a não ser na
sagrada defesa dos direitos dados pela Natureza, os mesmos direitos dados aos homens de
muita ciência, mas nenhum sentimento humanitário (Ibid.).
A Professora Daltro defendia que mesmo para as populações católicas, a catequese não
tinha utilidade, pois essas permaneciam na ignorância, sem saber ler ou escrever, sem
conhecer algum ofício ou arte. Sugeriu a adoção de um programa para reunir diversas tribos
indígenas em um lugar previamente escolhido pelo clima e fertilidade da terra; construir
habitações e fornecer utensílios domésticos; estimular o desejo ao conforto e ao gosto estético;
despertar o gosto pela arte, literatura e ciência, evitando o sectarismo religioso, a superstição e
o fanatismo (Idem: 131).
Cada comunidade deveria adequar esse programa às suas necessidades específicas; o
governo deveria garantir ao indígena a liberdade e os direitos de cidadão da República,
concedendo através de lei, uma área territorial para as instalações definitivas; começar com
um núcleo experimental, que poderia servir de modelo para os demais e o auxílio do governo
não deveria exceder cinco anos (Idem: 132).
Em 1910, na mobilização da sociedade civil no sentido de pressionar o Estado para
encontrar uma solução institucional para o impasse gerado pela situação do índio, destacaram-
se três tendências políticas: a primeira, representada por H. von Ihering e J. de Campos
Novais, aconselhava o extermínio dos índios; a segunda, representada pelo padre Claro
Monteiro, Teodoro Sampaio, Basílio Machado e Noberto Jorge entre outros, afirmava a
incorporação do índio à sociedade, através da catequese da igreja Católica. A terceira,
106
representada por J. Mariano de Oliveira, Leolinda Daltro, L. B. Horta Barbosa, entre outros,
defendia a criação de um órgão, orientado por princípios leigos, que assegurasse ao índio a
proteção da lei e o direito de posse das terras que habitava (Idem: 134).
Decisivo para a criação do Serviço de Proteção aos Índios, foi o contato que o Ministro
Rodolfo Miranda tinha com Cândido Rondon, a quem o ministro expôs o seu plano de criar
um órgão governamental com duas finalidades: estabelecer relações pacíficas com grupos
indígenas e reunir a força de trabalho espalhada na área rural – índios, negros e mestiços para
aproveitamento nos povoados, vilas e reservas indígenas, de forma organizada (Idem: 185).
O plano tinha por base três pontos cruciais: a atividade das ordens religiosas junto aos
índios se classificara como ineficaz; o novo órgão, republicano, estaria livre de intromissão
doutrinária e teria caráter federal, com capacidade de intervenção nos Estados (Ibid.).
Cândido Mariano da Silva Rondon havia sido Alferes-aluno do Major Antônio Ernesto
Gomes Carneiro, que em 1890 estivera à frente da Comissão Construtora da linha Telegráfica
de Cuiabá ao Araguaia, nomeado pelo ministro da Guerra, Benajmin Constant. O major
adotava como norma de conduta não hostilizar o índio, mandando colocar cartazes ao longo da
linha, proibindo que se atirasse neles, mesmo para assustar (GAGLIARDI, Mauro (1989: 141-
142).
Esta atitude impressionara o Alferes-aluno, depois nomeado chefe da reconstrução da
linha Cuiabá-Araguaia, concluída em 1898. Da sua relação com os índios, Rondon criou o
lema “Morrer, se necessário for; matar nunca” (Idem: 143).
O apoio da sociedade civil, da imprensa e do Congresso Nacional Maçônico, de 1909,
deram ao ministro a certeza de levar adiante o seu projeto, fazendo-o acreditar que seria
possível diminuir a distância que separava o indígena do colonizador, o operário do burguês,
redefinindo os mecanismos de distribuição da riqueza do país e a organização da economia
nacional, monopólio das oligarquias estaduais, através de um decreto (Idem: 188-189).
107
Na verdade, o que interessava aos governos estaduais, era dar um fim aos assaltos dos
indígenas nas regiões onde a economia de mercado começava a penetrar, sem ter que
envolver-se diretamente na questão (Idem:190).
À medida que o plano governamental se definia para uma orientação puramente
secular, as reações da igreja e de setores mais conservadores da sociedade se apresentavam em
palestras, associações e na imprensa (Idem: 209).
A Igreja Católica chamou o plano de “infernal, forjado nas profundezas dos antros
maçônicos”, Monsenhor D. Armando Bahlman propôs que o governo fiscalizasse o emprego
das verbas destinadas à catequese e que fiscais visitassem as aldeias, mas que não se
transferisse o trabalho missionário para pessoas sem vocação para essa atividade, pois a
catequese é que servia para civilizar os índios, infundindo-lhes sentimentos de justiça, amor ao
trabalho, moral de temor a Deus, “pois para serem bons cidadãos, precisam primeiro fazer-se
bons cristãos”. Porém Rodolfo Miranda defendeu que a forma republicana e leiga do Estado
brasileiro era missão “toda terrestre” (Idem: 210-212).
Em 20 de junho de 1910, através do Decreto 8072 foi criado o Serviço de Proteção aos
Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Na exposição que Rodolfo Miranda fez
sobre a legislação indígena, procurou demonstrar que as medidas tomadas no período colonial
eram contraditórias, no Império haviam sido ineficazes, e na República, não se poderia
permanecer na imobilidade, frente ao massacre de índios e ao regime de trabalho de cativeiro
(Idem: 225-228).
O símbolo da nova orientação era a substituição da palavra catequese por proteção.
Quanto aos trabalhadores nacionais, o objetivo era selecionar aqueles que tivessem qualidades
morais e disposição para trabalhar, índios, ex-escravos e mestiços, entre vinte e um e sessenta
anos, de preferência chefes de família e que não tivessem sido condenados por crime,
reunindo-os em locais, centros agrícolas, em que os imigrantes não se adaptavam, como
pequenos agricultores (Idem: 230-232).
108
O regulamento possibilitava proteger o indígena de contratos de trabalho extorsivos e
fiscalizar o tratamento recebido nas aldeias. Deveria-se respeitar suas instituições, hábitos e
vontades, embora houvesse instruções para impedir a guerra entre eles, a Educação limitar-se-
ia a uma simples orientação, sem coerção, e a posse da terra deveria de ser efetivamente
garantida (Idem: 230)
O objetivo era substituir o antigo sistema de aldeamento, por núcleos, povoações nas
quais haveria escolas de ensino primário e agrícola, aulas de música, oficinas , máquinas e
utensílios agrícolas para beneficiar os produtos cultivados, o índio poderia optar pela ocupação
de sua preferência, abandonando-a quando quisesse e o produto do trabalho lhe pertenceria
(Ibid.).
O regulamento, de inspiração positivista, acreditando que os homens evoluíam através
de estágios sucessivos, dividiu as populações indígenas em três categorias: nômade, aldeado e
em contato com civilizados, deixando de incorporar a importante reivindicação do Apostolado
Positivista: o reconhecimento dos povos indígenas como nações independentes (Idem: 231).
Com apenas um ano de existência, o SPILTN já lutava contra toda sorte de
manifestações de repúdio por parte de clérigos, que não se conformavam com o golpe
desfechado sobre o monopólio da Igreja Católica sobre a catequização dos índios; críticas de
conservadores que apoiavam a igreja, de contradições entre os interesses das classes
dominantes, oligárquicas; resultando em toda sorte de intrigas, polêmicas entre católicos e
positivistas, cortes de orçamento, a chamada dos militares de volta aos quartéis e chegando-se
a pedir a sua extinção formal, situação que perduraria até a sua extinção (Idem: 240-243).
Pelo Decreto 9.214 de 15 de dezembro de 1911, o exercício de tutela passava para os
funcionários do SPI, que a princípio de fato se preocupavam em como representá-los e atende-
los, porém devido às diversas dificuldades o SPI foi perdendo a sua eficácia, passando a ser
um instrumento de submissão e cerceamento, já que a idéia de tutela ficava sujeita à
interpretação do funcionário que a exercia (SANTOS, Sílvio [1995] 1998: 98).
109
Em 1915, uma comissão estudava a situação jurídica do indígena, no Código Civil que
foi aprovado em 1916, estabelecendo a sua situação sob tutela do Estado; no “Artigo 6
o
: são
incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I. Os maiores de 16 e
menores de 21 anos; II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal; III Os
pródigos; IV os silvícolas (GAGLIARDI, Mauro (1989: 251)
Em parágrafo único, ditou-se que “os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará, à medida em que se forem
adaptando à civilização do país”. Em 1918, pela Lei 3.454, dividiu-se o SPILTN,
permanecendo o Serviço de Proteção aos Índios - SPI (Ibid.).
Em 1928, regulamentou-se a situação jurídica do indígena nascido em território
nacional, pelo Decreto 5.484, de 27 de julho, liberando-o da tutela orfanológica instituída pela
legislação do Império, classificando-o em quatro categorias: índios nômades, arranchados ou
aldeados; pertencentes a povoações indígenas e pertencentes a centros agrícolas ou que vivem
promiscuamente com civilizados; e instituindo que todo índio poderia ser lançado no registro
civil (Idem: 274).
Com relação à educação, alegando-se a diversidade lingüística e cultural e a
necessidade da integração à sociedade nacional, dava-se maior ênfase ao trabalho agrícola e
doméstico, com o pretexto de os índios serem produtores de bens comerciais para o
abastecimento do mercado regional (FERREIRA [2000] 2001:75).
Em 1930, Cândido Rondon foi reformado e o SPI entrou em fase de grandes
dificuldades. Em 1934, com a transferência do SPI para o Ministério da Guerra, e sob o
argumento de que o país necessitava proteger as fronteiras e resguardar a nacionalidade, o
indígena foi considerado indispensável por suas qualidades físicas, morais e adaptação ao
clima (Idem: 276).
Revendo a legislação vigente, em 1936 através do Decreto 736, propunha-se a
nacionalização dos “silvícolas” incorporando-os à sociedade em postos classificados como :
110
Postos de Atração, Vigilância e Pacificação e Postos de Assistência, Nacionalização e
Educação, devendo ser educado para o cumprimento dos deveres cívicos, através do
conhecimento da higiene, escola primária, exercícios físicos, instrução militar, educação moral
e cívica, culto à bandeira, canto dos hinos e conhecimento das datas nacionais (Idem: 277).
Em 1949, em conversa com Egon Schaden, Rondon mostrou o seu descontentamento
com a nacionalização do indígena, pois isso criava graves problemas de desajustamento, com
o abandono da cultura tribal, constituindo ao invés de progresso, um depauperamento na sua
natureza humana (Idem: 281).
Quanto à educação, tendo em vista o crescente desinteresse demonstrado pelos
indígenas pelo processo de escolarização, o SPI a partir de 1953, elaborou o Programa
Educacional Indígena, reestruturando as escolas; criando os “Clubes agrícolas” e as escolas
passaram a ser chamadas de “Casa do Índio”. No currículo escolar passou a se incluir as
disciplinas “Práticas Agrícolas” para meninos e “Práticas Domésticas” para meninas. Os
prédios escolares foram modificados para parecerem-se a casas indígenas e construíram-se
oficinas de trabalho (FERREIRA, ([2000] 2001:75).
Apesar do SPI abrir escolas e pretender proteger a diversidade de línguas e culturas,
nas escolas não se respeitava as culturas específicas, resultando no fato de finalmente a
instituição declarar-se incapaz de elaborar alfabetos e gramáticas para as várias línguas faladas
pelos índios, pela falta de quadro técnico e de professores (Ibidem).
Em 1955, o SPI foi entregue ao PTB e logo depois, graças à reação de um grupo de
servidores, retirado da influência política. Os últimos anos de administração militar, foram de
decadência, chegando a associar-se o seu nome, por tanto tempo digno da legenda “Morrer, se
preciso for, matar, nunca” à sustentação de exploradores e assassinos de índios.
O golpe de 1964, que aguçara ainda mais as contradições internas, pois o golpe havia
acontecido justamente pela criação de mecanismos institucionais para acelerar a acumulação
111
do capital, e significou para os indígenas a intensificação da expropriação de suas terras, mais
doenças e massacres (GAGLIARDI, José Mauro. 1989:284)..
Assim, após longa investigação, realizada sob encomenda do ministro do Interior,
General Albuquerque Lima, chegou-se às provas de corrupção administrativa e massacres de
grupos indígenas inteiros, o que causou uma situação incômoda para o governo militar, frente
à imprensa internacional, levando-o a extinguir o SPI, em 5 de dezembro de 1967 (Ibid.)
2.4 - Quarta Referência: a FUNAI e o SIL.
A idéia de ensino bilíngüe nasceu com a criação da FUNAI- Fundação Nacional do
Índio, criada em 1967, no mesmo dia da extinção do SPI, e pela Lei 6001/1973, do Estatuto do
Índio, passou a ser obrigatório o ensino de línguas nativas nas escolas indígenas. Dessa forma,
atendia-se à expectativa da ONU – Organização das Nações Unidas, de que através dos DCs,
Programas de Desenvolvimento Comunitário criados no período pós-guerra pelos países
desenvolvidos, se detivesse o avanço do socialismo, e se criasse melhores condições de vida
no Terceiro Mundo (FERREIRA, [2000] 2001:76).
Atendia-se também à Convenção 107 de Genebra, de 1957, que dispunha sobre a
proteção e integração das populações indígenas de países independentes. O artigo 23 dessa
Convenção estabelece o direito à alfabetização na língua materna e em caso de
impossibilidade, na língua do grupo de pertencimento, como diz o artigo 49 do Estatuto do
Índio, que “a alfabetização dos índios deve fazer-se na língua do grupo a que pertençam e em
português, salvaguardando o uso da primeira” (Ibid).
A FUNAI, em 1973, firmou convênio com o SIL – Summer Institute of Linguistics,
empresa norte americana atualmente rebatizada como Sociedade Internacional de Lingüística,
que estava no Brasil desde 1956. Contando com respaldo acadêmico, o SIL, empresa da
112
Wycliffe Bible Translators, fez convênios com instituições oficiais brasileiras, acadêmicas ou
não, instalou-se em Brasília, Porto Velho, Belém, Cuiabá, e durante décadas monopolizou a
pesquisa, a formação e a assistência educacional a indígenas, dedicando-se a converter povos à
religião protestante, através da tradução e leitura de textos bíblicos, em países das Américas do
Sul e Central. O convênio, foi rompido em 1977 e reativado em 1983, após gestões junto ao
governo nacional (Idem: 77).
Observa-se que a educação bilíngüe se firmou mais como tática para assegurar
interesses civilizatórios do Estado, favorecendo o acesso dos índios ao sistema nacional, da
mesma forma que os missionários evangélicos, inventores das técnicas bilíngües, na conversão
religiosa (Ibid.).
O SIL passou a documentar a educação dos povos indígenas, línguas e culturas a partir
de seus conceitos e valores e sob alegação de “riscos iminentes de desaparecimento” dos
povos indígenas ( F. SILVA e M. AZEVEDO In: ([1995] 1998:149). Introduziu-se a figura do
“monitor-bilingüe” um professor indígena domesticado e subalterno (Idem: 151) inventado
para ajudar os missionários e professores não índios na tarefa de alfabetizar nas línguas
indígenas e ser o informante para os missionários.
O próprio sentido da educação “bilíngue” gerava problemas que foram levados a
encontros de discussão, antes da nova LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
pois em algumas regiões do país, pela própria estrutura social da região, praticamente toda a
população falava mais de uma língua (dem: 153).
Problematizando, surgiam então perguntas como, qual delas deveria ser escolhida e
qual esquecida, já que “bilíngüe” implicava uma língua indígena e o português. E o que fazer
no caso de povos que por força da violência exercida sobre eles, no passado, abandonaram a
língua indígena e portanto agora falavam apenas o português?
113
Em dezembro de 1973 o Presidente Gal. Emílio Médici sancionou o Estatuto do Índio,
com os seguintes vetos, mantendo a União como única responsável pelo índio (BELTRÃO,
Luiz 1977: 37):
. parágrafo único do art 2
o
.”que reconhece às missões religiosas e científicas o direito de
prestar ao índio e às comunidades indígenas serviços de natureza assistencial, respeitadas a
legislação em vigor e a orientação do órgão federal competente”;
. o art. 64 e seu parágrafo, “nos quais se autoriza e disciplina a prestação de serviços aos índios
sem fins lucrativos por entidades religiosas e filantrópicas”;
. parágrafo segundo do art.18 “prescreve que as terras indígenas não poderão ser objeto de
arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que estrinja o pleno exercício da posse
direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas”
. Nessas áreas é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais, ou comunidades
indígenas, a prática de caça, pesca, ou extrativas”
O governo acrescentou: é vedado a terceiro contratar com índios a prática por estes de
qualquer das atividades previstas no parágrafo anterior”.
Religiosos católicos e protestantes fizeram acirrados discursos de protesto contra essa
decisão, que no entanto permaneceu.
Até fevereiro de 1991 o SIL havia lançado inúmeras publicações, responsabilizara-se
por implantar programas educacionais em áreas indígenas, prestara assistência médica e
desenvolvera projetos comunitários entre 53 povos ou mais, em todo o país. Porém devido às
faltas e omissões acima relatadas, surgiram protestos internacionais, de universidades do país e
de associações indígenas contra a FUNAI, órgão responsável, que recebeu severas críticas de
intelectuais, antropólogos, educadores, dos próprios índios e outros especialistas, por
contradições com relação aos objetivos iniciais; pela “destruição das culturas nativas”, uso
114
demagógico de conceitos como ‘respeito a costumes e tradições” e pedagogia alienadora
(Idem: 81-83).
Como visto, a atuação do SIL caracterizava-se por preservar apenas a diversidade
lingüística através da redução à escrita e pela alfabetização, ignorando a diversidade cultural.
Durante os últimos anos da década de 70, aconteceram diversas crises entre o SIL, as
instituições oficiais, o rompimento com as universidades nacionais e por fim com a própria
FUNAI. Segundo FRANCHETTO, em 2001, permanecia no Brasil com o Projeto Línguas
Amazônicas, sediado na UNIR, campus de Guajará-Mirim em Rondônia (2001: 151).
Com o esvaziamento da FUNAI, em fevereiro de 1991, o Ministério de Educação
passou então a se responsabilizar por coordenar as ações referentes à Educação Indígena.
Atualmente, ponderando sobre as ações e a literatura sobre a educação diferenciada, chama a
atenção que muitas das pessoas envolvidas nesse processo não se dignem conhecer mais a
fundo a sua complexidade, como se verá na pesquisa-ação. Assim, o que temos, são palavras
a-críticas, olhares ingênuos, o desconhecimento do processo histórico, das repercussões sobre
o presente e o futuro.
A partir dos anos 80, surgiram projetos alternativos para a educação escolar indígena, a
partir da estruturação de diferentes organizações indígenas, visando a defesa de suas terras e
de seus direitos. A União das Nações Indígenas, - UNI, foi a primeira de muitas outras
organizações, associações e organizações de professores que em todo o país, passaram a
promover Encontros de Professores Indígenas ou Encontros de Educação Indígena, para a
discussão do que se queria como educação para suas comunidades.
2.5. Referência atual: o MEC/ Referencial Curricular Nacional Para As
Escolas Indígenas e a violência simbólica
115
Neste capítulo, parto da necessidade de refletir sobre o Referencial Curricular Nacional
para as Escolas Indígenas – Arte/1998, na tentativa de identificar o contexto maior do qual
esse Referencial faz parte, com relação à América Latina e demais países do mundo que
desenvolvem educação para povos nativos, ao mesmo tempo que, busco compreender as
contribuições que esses parâmetros de fato oferecem para a educação indígena; quais a
ressonâncias e qual relevância aparentemente têm e terão para a vida dos vários grupos
societários que afetam.
Analisando as relações atuais entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, no
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, documento oficial, encontra-se que
este reconhece duas tendências históricas: a de dominação, realizada através da integração e
homogeneização cultural que teria acontecido desde o período colonial até o final dos anos 80
do século XX e a do pluralismo cultural, que teria nascido com a Constituição Federal de
1988 (RCNEI, 1998:26).
Até antes da Constituição de 1988, como visto nos capítulos anteriores, a intenção de
integração permeava a relação entre o Estado e os povos indígenas, alterando-se a partir da
Constituição, no sentido do reconhecimento dos direitos e deveres do índio como cidadão e
membro de uma coletividade que vive uma diversidade étnica, social e cultural própria, o
direito a seus territórios e aos recursos naturais que ele abriga; sua história, identidade,
instituições políticas e sociais, concepções filosóficas e religiosas, de forma autônoma.
No âmbito internacional, Declarações e Convenções elaboradas por diversos
organismos, tem sido assinadas pelo Brasil e demais países da América Latina, nos últimos
anos, visando garantir direitos fundamentais e coletivos, coibir discriminações e preconceitos.
BOURDIEU ([1974] 2003: 129). considera que encontramo-nos intimamente inseridos
na rede de relações de dependência/ independência que vinculam o sistema de ensino às
classes dominantes e que nessas condições de comprometimento, somente a análise das
relações que se mantém, e da função na divisão do trabalho simbólico, nos diferentes
116
momentos da história com o poder, levaria a encontrar o princípio dos paradoxos, as
diferenças e coincidências entre ideologias e políticas.
Durante o Seminário “Terras Guarani no Litoral – Contexto Fundiário e Ambiental”,
que ocorreu no Memorial da América Latina, em São Paulo, do qual participei durante os dias
15 e 16 de dezembro de 2004, organizado pelo Centro de Trabalho Indigenista, com o apoio
da Norwegian Rainforest Foundation, um índio guarani disse que havia sido trazido para
prestigiar aquele encontro, tendo sido hospedado em um hotel, comendo três refeições ao dia;
estava sendo conduzido em ônibus confortáveis e encontrando parentes de várias aldeias do
Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. “Da próxima vez”, disse ele, “vou trazer toda a minha
família, porque eles ficam na aldeia, passando fome, sem entender o que é que eu estou
fazendo aqui”.
No processo de elaboração que construo neste texto, levo em conta esses dados
enigmáticos: na tentativa de entender como se processa a administração do poder mundial e
suas relações com a educação; traduzo minhas impressões, à medida que atualizo informações
através da mídia impressa e virtual.
Recentemente, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura), realizou a IV Reunião Mundial de Educação, em Brasília. De 8 a 10 de novembro
de 2004, reuniram-se 26 ministros de educação de vários países, para discutir o Relatório
Mundial de Monitoramento do “Educação para Todos”, com informações acerca de 160 países
que assumiram no Fórum Mundial de Educação de Dakar, em 2000, o compromisso de
melhorar os índices de educação de suas populações, até o ano de 2015
2
.
Na mesma oportunidade, aconteceu a Reunião da Iniciativa “Fast-Track” em parceria
com o Banco Mundial, com objetivo de discutir as formas de acelerar o acesso à educação dos
países em desenvolvimento, mobilizar recursos financeiros em favor dos países mais pobres e
com maior dificuldade de alcançar as metas de expansão e qualidade da educação, conduzir e
2
www.unesco.org.br/noticias/releases/educacao 09.11.2004
117
impulsionar o processo de Educação para Todos, fortalecer parcerias, identificar prioridades e
incidir sobre os recursos a serem mobilizados
3
.
As metas do “Educação para Todos”, são: 1. expandir e melhorar a educação e
cuidados com a infância; 2. assegurar, até 2015, educação gratuita, compulsória e de
qualidade; 3. assegurar que as necessidades básicas de aprendizagem de jovens sejam
satisfeitas de modo eqüitativo, por meio de acesso a programas de aprendizagem apropriados;
4. atingir, até 2015, 50% de melhoria nos níveis de alfabetização de adultos; 5. eliminar, até
2005, disparidades de gênero na educação primária e secundária e alcançar igualdade de
gênero até 2015, com foco no acesso de meninas à educação básica de qualidade. 6. melhorar
a qualidade da educação (Ibid.).
Especificamente no caso da educação diferenciada, diversos instrumentos e
convenções internacionais têm estabelecido princípios a serem considerados pelas políticas
públicas e pelos técnicos governamentais responsáveis por sua implementação.
É o caso do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovados pela ONU em 1966 e em vigência desde
1976 e que garantem o direito de membros de minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas,
terem sua própria vida cultural e sua própria língua, estabelecerem sua condição política,
promoverem seu desenvolvimento econômico, social e cultural e disporem livremente de suas
riquezas e recursos naturais (GRUPIONI 2001:91).
É também o caso da Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do
Ensino, estabelecida em 1960 pela UNESCO, visando eliminar toda discriminação de raça,
cor, sexo, língua, religião, no âmbito da educação, promover a igualdade de oportunidades
para todos e generalizando o ensino primário gratuito obrigatório.
3
(Idem)
118
A UNESCO também lançou em 1966, a Declaração sobre os Princípios de Cooperação
Cultural Internacional, visando reconhecer a variedade e diversidade de todas as culturas como
um patrimônio comum da humanidade; lançou em 1978 a Declaração sobre a Raça e os
Preconceitos Raciais, visando que cada grupo decida sobre os valores que considera essenciais
à sua identidade; e que o Estado assegure os recursos educativos, programas e materiais
didáticos, cursos de capacitação docente e meios de comunicação, promovendo a
compreensão, tolerância e amizade.
E em 1995, lançou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, definindo-a como o
respeito, a aceitação, o apreço da riqueza e da diversidade das culturas e atribuiu às políticas e
programas de educação o papel de contribuir para o desenvolvimento da compreensão,
solidariedade, tolerância entre os indivíduos e grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos,
lingüísticos e as nações.
BOURDIEU e PASSERON ([1970] (1992:32) compreendem que, numa formação
social determinada, aquelas instâncias que pretendem objetivamente o exercício legítimo de
um poder de imposição simbólico, e que tendem a reivindicar o monopólio da legitimidade,
entram necessariamente em relações de concorrência, pois a legitimidade é indivisível.
O termo violência simbólica é usado por BOURDIEU e PASSERON (Idem: 33-35)
para referir-se à ruptura com todas as representações e as concepções espontâneas de ação
pedagógica. Eles vêem o funcionamento da escola e da cultura através de metáforas
econômicas nas quais a cultura funciona como uma economia e a dinâmica da reprodução
social está baseada na reprodução cultural. Entendem que, para que o domínio simbólico seja
eficaz, acontece em um duplo arbitrário; por um lado, a imposição simbólica, por outro a
ocultação de que se trata de uma imposição.
Percebendo que esse é um recurso usado há séculos na educação, no Brasil, recorro aos
fundamentos destas reflexões, tendo em conta primeiramente a influência preponderante da
cultura e em segundo lugar que em 1970, quando a obra A Reprodução foi escrita, ainda não
se compreendia a teoria da recepção como dinâmica que pode ser ativa.
119
Segundo MACLAREN ([1994] 2000: 135-137) os professores precisam examinar
criticamente o desenvolvimento de discursos, práticas pedagógicas e sistemas de significados
dominantes, na maioria das vezes ideologicamente estabelecidos no patriarcado e
imperialismo ocidentais, que impõe determinados atributos ao Outro. Ele considera essencial
que se possibilite aos estudantes brancos o sentido de sua própria etnicidade branca, que não
pode continuar sendo ignorada, pois não existe do lado de fora da cultura, mas constitui o
texto social prevalecente, que se considera no direito de representar todos os outros grupos
étnicos e a partir do qual se fazem as normas.
Na educação, MACLAREN (Idem: 93-95) defende que para exercer influência sobre a
produção cultural, os professores necessitam colocar-se “do lado de fora” da multiplicidade
de vozes estereotipadas da ética consumista e da lógica de mercado, para poder encontrar
formas diferentes de abordar e mediar o real, atravessando as fronteiras das zonas de diferença
cultural e poder lutar por uma solidariedade que se desenvolva a partir dos imperativos da
libertação, democracia e cidadania crítica.
Igualmente GIROUX ([1992] 1999:149) defende que o multiculturalismo em geral diz
respeito ao Outro, mas é escrito de maneiras em que os aspectos dominantes da cultura branca
não são questionados e o potencial de oposição da diferença como um local de luta é
emudecido.
Para demonstrar seu pensamento sobre essa problemática, Paulo FREIRE ([[2004]
2005:83) conta que em certa ocasião um matemático amigo dele que estava em um grupo
indígena, se surpreendeu quando para pescar um peixe, o índio não sacudiu o arpão sobre o
peixe e sim entre o peixe e o barco. O matemático perguntou porque ele fizera aquilo e o
jovem índio respondeu: “Isso é uma ilusão dos seus olhos”. Baseado nesse acontecimento,
FREIRE defende que sua preocupação maior seja com a ética, que ele se pergunta como faz
para respeitar a cultura do outro. Que certamente respeitar o Outro, não significa mantê-lo na
ignorância, mas faze-lo superar a sua ignorância. O que por outro lado, não significa
ultrapassar os sistemas de interesses sociais e econômicos da sua cultura.
120
A relação intercultural é uma coisa que preocupa FREIRE (Idem: 75) profundamente.
Ele diz que nessa relação, é fundamental compreender não somente a cultura do outro, mas a
própria relação em si, porque “a verdade não está nem na cultura de lá nem na minha, a
verdade do ponto de vista da minha compreensão, está na relação entre as duas”.
Sobre a atualidade da presença dos missionários religiosos na aldeia, ele diz que (Idem
77-78):
Em nome da amorosidade, nós cristãos, temos sido através da História
intensamente arrogantes, e o pior, em nome de Cristo, um negócio que me choca. (...)
Não temos compreendido bem, eu acredito, o recado de Cristo. Não temos percebido
também que, afinal de contas, uma compreensão da transcendência se dá de forma
independente e diferente, mas legítima, dentro das culturas de formas distintas, de
como nós representamos e de como nós vivemos.
(...) Nós temos entendido a fé, como um martelo que a gente impõe e dá na
mão como um instrumento qualquer. (...) Segura esse troço que é a fé! (...) Eu acho a
expressão “Terra de Missão” profundamente colonialista. (...) Eu acho que o mundo
inteiro é uma Terra de Missão. Mas o que é que acontece? Peguem um mapa do
mundo e coloquem nessa parede e vão pintar de verde as terras de missão. Vocês vão
ver que por coincidência, só dá no Terceiro Mundo. Se existe uma terra de missão, é
porque uma terra declarou que a outra é de missão. (...) Não me consta que Amsterdã,
Zurique, Berlim, Genebra, Londres, Chicago Los Angeles, sejam terras de missão”.
Como se lê no Sub-capítulo 1.4., o currículo intercultural é um encontro entre culturas;
as características desse encontro, como expostas neste Capítulo II, demonstram que nessas
circunstâncias, requer-se que o professor reconheça que trabalha dentro de um campo
pedagógico cuja realidade é a diferença e ele deve instrumentalizar-se para questionar a teoria
e a prática.
121
Acredito que tenha chegado o momento de observar as palavras de Florestan
FERNANDES (1964:11) quando nos explica que para os tupinambá, a educação tinha por
base assimilar o indivíduo à ordem social tribal, o “nós coletivo”, sem prejuízo do equilíbrio
psico-biológico da pessoa, conseguindo êxito no respeito e no aproveitamento construtivo de
aptidões, dessa forma podendo atender às necessidades materiais e morais, decorrentes do
sistema de divisão de trabalho e classificação social democráticos.
E considerar que não precisa haver a competição individualista e nem as implicações
para as atribuições de status, pois há extensa e intensa variedade de atitudes, comportamentos
e aspirações ideais de auto-realização das pessoas.
Acredito que na educação diferenciada a afinidade relacional, através da troca, da
reciprocidade, seja a dádiva
4
a ser afirmada como valor primordial na cultura da diferença. A
importância do questionamento está em perceber que a “violência simbólica” não significa
exatamente a inviabilidade da educação intercultural, mas que é necessário fazer surgir uma
pedagogia voltada para o reconhecimento da riqueza que há na diversidade humana, a
construção de um futuro coletivo ao mesmo tempo moral, ético, produtivo, criativo, estético,
4
O debate sobre a dádiva no mundo contemporâneo está ligado à tradicional oposição troca-uso. Seria
necessário adicionar o valor de vínculo que é distinto do valor de uso. Trata-se primeiramente de distinguir
nesse quadro o esbanjador, que não transforma o dinheiro em valor de uso, nem em valor de troca fazendo-o
frutificar; ao dá-lo, o coloca fora do circuito da dádiva, e fora do valor de vínculo. Não o dá a ninguém, retira o
objeto de todas os circuitos de circulação admitidos na sociedade, recusando ao mesmo tempo, o valor de uso, o
valor de troca e o valor de vínculo (Jacques T GODBOUT e Alain CAILLÉ, 1999: 210-215).
Circulando, a dádiva enriquece o vínculo e transforma os protagonistas. Esse fato é estranho ao pensamento
econômico. Na relação de dádiva não existe escala econômica, pois o valor de vínculo depende das características
das pessoas, da natureza do vínculo, de um conjunto de variáveis de que o valor econômico, para se formar e se
tornar puramente quantitativo, teve que se livrar O valor de vínculo escapa ao cálculo, o que não significa que
ele não exista. O valor de vínculo é o valor do tempo, que o mercado substitui por uma imediatidade
indefinidamente extensível no espaço, extraindo a coisa da rede temporal. Quanto mais se isolam as coisas de
seu valor de vínculo, mais elas se tornam transportáveis, frias, congeladas, objetos puros que escapam ao tempo
(Ibid.).
Ao expressar o valor de vínculo, a dádiva serve para nos provar que não somos objetos. As pessoas que dão,
confirmam aos outros que não são coisas Contrariamente ao universo mercantil, que faz com que tudo só possa
ser produzido e processado, na dádiva, as coisas aparecem e desaparecem. A dádiva é um nascimento, é o que
aparece e não estava previsto, nem pelo gesto, nem pela lei, nem mesmo pela dádiva. É todo o paradoxo da
gratuidade, é a graça que aparece a mais (Ibid.).
122
que requer de cada pessoa uma reflexão
5
que assuma esses fatores, a administração de novas
formas pedagógicas e a criação da representação do oferecimento da minha relação com o
Outro, como na minha diferença eu gostaria de ser tratada (o).
5
Pensar em termos de dádiva é essencialmente deixar de ver o que nos cerca (principalmente os vínculos, mas
também as coisas), como instrumentos e meios à nossa disposição, o que nos leva ao paradoxo, e ao circuito
estranho contido na relação fins-meios. Dar é entrar na corrente, no circuito, sair do pensamento linear, conectar-
se horizontalmente, mas também verticalmente, no tempo, encontrando os ancestrais (Ibid.).
A dádiva é a alternativa à dialética do senhor e do escravo, pois não se trata de dominar os outros, nem de ser
dominado, mas de pertencer a um conjunto mais amplo, restabelecer a relação, tornar-se membro. Por medo de se
deixar enganar, o homem moderno não consegue mais abandonar-se à corrente cósmica, “prender-se”, reduzindo
o universo a objetos aparentemente não ameaçadores dos quais possa desligar-se imediatamente. Com isso gera a
poluição, sufoca naquele que ele rejeita e que acaba por rejeita-lo (Idem: 250-254).
A reflexão da dádiva se encerra com duas considerações fenomenológicas, enquanto experiência humana: em
toda dádiva se encontram duas idéias contraditórias: a idéia de aceitação da perda, de sua sublimação, do
desapego voluntário em relação aos objetos, da renúncia; e a idéia, ao contrário, do excedente, do aparecimento,
do inesperado, do desperdício, da criação (Ibid.).
Ambas são idéias inaceitáveis para o pensamento moderno: a perda só pode ser deixar-se enganar num negócio
ou deixar-se explorar. A criação é também impossível, porque toda produção é reprodução do mesmo, em um
processo onde nada jamais aparece, salvo a mais-valia, ou o lucro (Ibid.).
A psicanálise é das ciências humanas a que é mais sensível ao fato de que é necessário perder a mãe e renunciar
a ela para tornar-se adulto, experiência essencial a todo ser humano. Porém para a psicanálise, a relação de dívida
é algo unicamente negativo, do qual devemos nos livrar, visão característica do modelo mercantil, pois não raro,
mas não sempre, em psicanálise dádiva pode ser apenas dádiva-veneno (Ibid.).
Aceitar a experiência de renúncia aos objetos e aos seres, é conhecer a criação e a renovação que essa experiência
oferece, é finalmente, fazer o aprendizado da morte. E da dádiva (Ibid.).
123
Desenho 1- Reunião de conselho de chefes, à noite. O cacique expunha as razões
da convocação e a seguir os velhos, cada um à sua vez, falavam sobre o assunto.
Fonte: Hans Staden In: FERNANDES, Florestan (1948: 280)
124
Mudar é difícil, mas é possível.
(Paulo Freire[1997] 2000:94)
O pensamento é espetacularmente múltiplo como um produto,
E maravilhosamente singular, como um processo.
(Clifford Geertz[1983] 2003:216)
Lo principal en la música, es lo que no se oye, en las
artes plásticas, lo invisible e intangible.
(Vygotsky [1925] 1970:67)
125
Foto 10 - Terras Guarani no litoral de São Paulo, marcadas em vermelho
Aldeia Piaçaguera indicada com seta branca, abaixo.
Fonte: CTI, Secretaria de Meio Ambiente, Estado de São Paulo, 2004.
126
Neste Capítulo, dedicado à pesquisa-ação, parto do problema das limitações do
acesso ao direito humano a uma educação de qualidade que se realiza pela cidadania, da
idéia do desrespeito e do problema de auto-estima que a vivência dessa situação provoca e
da idéia de educação diferenciada promovida pelo governo do Estado, a qual reivindica o
reconhecimento da identidade cultural e do direito fundamental do índio à educação de
qualidade.
3.O método
3.1.O método qualitativo
Para a concretização do problema de pesquisa e o desvelamento da veracidade da
hipótese: a baixa auto-estima dos professores, tomo referencialmente, a pesquisa de campo,
realizada com os professores indígenas da aldeia Piaçaguera, da 1
a
. a 4
a
. série do ensino
fundamental. A reflexão teórica, sólida e coerente, presente tanto na fundamentação teórica
como na prática, visa apresentar uma contribuição científica sustentável e digna de todos
aqueles que estão comprometidos com a ação educativa intercultural.
Como visto no Capítulo I, a cultura é vista como um sistema de diferenças e
atividade de formação simbólica; um processo de traduções no qual as diferenças se fazem
de acordo com a produção e recepção ideológica de signos culturais
O caráter intercultural presente na tese, fez com que eu como pesquisadora,
recorresse a minhas próprias formas de representação, meus fundamentos éticos e estéticos
e revele o senso político da minha pedagogia. Acredito que a metodologia intercultural
necessite dessa atitude especial na motivação da experiência científica, a da observação do
127
significado de contexto, a dialética, a cooperação, o respeito à diversidade, a crítica e a
liberdade no desejo de criar.
Coerentemente com a orientação científica, o método de pesquisa escolhido, o
qualitativo, tem raízes antropológicas. BOGDAN E BIKLEN ([1982] 1992: 9) consideram
que Franz Boas tenha sido o primeiro antropólogo a escrever especificamente sobre a
antropologia na educação, ao publicar artigo sobre o ensino da antropologia na
universidade, em 1898. O termo pesquisa qualitativa, no entanto, somente foi cunhado
quando usado nas ciências sociais durante a década de 60.
Diferentemente de seus colegas, que acreditavam que a cultura estudada deveria
corresponder às expectativas dos antropólogos, BOAS acreditava que o antropólogo
deveria de estudar as culturas com a intenção de compreender como cada cultura era
entendida por seus próprios membros.
Bronislaw Malinowski, fundador da antropologia funcionalista, também passava
longos períodos no local estudado, a observar. Suas descrições de como obtinha suas
informações e como era a experiência na pesquisa de campo, enfatizando a importância de
compreender “o ponto de vista do nativo” ainda influem os pesquisadores contemporâneos
(Idem:10).
Também a antropóloga Margaret Mead dedicou estudos à escola como organização
e ao desempenho do professor, desenvolvendo conceitos, mais que métodos. Estudou como
determinados contextos – tipos diferentes de escolas, a escola da cidade e a academia,
atraíam determinados tipos de professores e como estes interagiam com os estudantes
(Ibid.).
MEAD também é a antropóloga que por mais décadas incluiu as crianças e
adolescentes em seus estudos. Até o final de sua carreira, perguntou-se o motivo de haver
tão pouco interesse da academia pelas crianças e atribuiu ao fato de que no decorrer da
128
história européia, os cuidados com as crianças nem sempre terem sido os melhores e nem
sempre as crianças terem sido sequer consideradas seres sociais completos, ou mesmo,
seres sociais (LOPES DA SILVA [2001] 2002:12).
Do começo do Século XX, até os anos 30, a Escola de Chicago contribuiu de forma
importante para o desenvolvimento do método qualitativo. O jornalista Robert Erza Park
1
,
foi um de seus mais importantes pesquisadores, realizando estudos sobre problemas sociais,
atitudes, comportamentos, a vida na cidade e problemas comunitários (BOGDAN e
BIKLEN ([1982] 1992: 12).
No entanto, a partir da década de 30, até a década de 60, nos EUA, os estudos
sociológicos na educação tornaram-se progressivamente quantitativos. Afetados pelos
problemas da Depressão, sociólogos e antropólogos realizaram estudos importantes sobre
as suas conseqüências, problemas raciais e da emigração. Porém à medida que os
educadores se interessavam cada vez mais por quantidades, quantias e projeções; as
estratégias qualitativas, como o uso de documentos históricos e relatos de vida, foram
perdendo credibilidade (Ibid.).
Do fim da década de cinqüenta, destaco o livro do cientista inglês C. P. Snow
publicado pela primeira vez em 1959, no qual criou a expressão “duas culturas”, para
apontar diversidades entre cientistas e literatos. O escritor, ele próprio um físico que à
noite escrevia e saía com amigos escritores, percebera que os humanistas não conheciam
conceitos básicos da ciência e os cientistas não tomavam conhecimento das dimensões que
eram caras aos humanistas, como as psicológicas, filosóficas, sociais e éticas, dos
problemas científicos (SNOW [1959] 1995:25).
Ele percebeu que havia problemas sérios de comunicação entre esses dois grupos;
como dificuldades de uso da linguagem, pois muitas vezes o que um dizia o outro não
1
Park era defensor da causa negra, em 1903 defendeu a tese de doutorado “A massa e o público”
(MATTELART, 2000)
129
entendia, o mesmo acontecendo com relação à ação que cada um assumia diante dos
problemas cruciais de sobrevivência da humanidade; por exemplo, na maneira de entender
a situação dos países ricos frente aos mais pobres e frente à arte e à ciência.
SNOW (Idem: 37) estudara esses dois grupos e concluíra que uma cultura havia
cessado de falar com a outra desde a década de 30 e que na década de 50, até a cortesia
havia desaparecido. Culpava o racionalismo e a tendência à especialização; por estarem
criando uma pequena elite, estreitando a visão dessas pessoas sobre a vida, criando
preconceitos e gerando graves resultados para a educação, provocando reações
discriminadoras e recriminadoras, mais que aprovadoras e conciliadoras, próprias da
educação.
Finalmente, propunha que se saísse do estado de resignação e se repensasse a
educação. Em contrapartida, recebeu críticas e ameaças de todas as partes do mundo, que o
obrigaram a escrever, quatro anos depois, uma segunda parte do livro, que chamou de
“Uma segunda leitura”, na qual fala dos insultos e dos elogios que recebeu de gente de
muitos países; de como algumas pessoas se sentiram atingidas, por ele ter falado de
sociedades favorecidas e desfavorecidas e aceitado que essa divisão pode apresentar-se de
maneiras diferentes em outras sociedades (Idem: 128).
No segundo livro, SNOW (Idem: 128) explicou e reiterou o uso da palavra cultura
no sentido antropológico, previu que surgiria uma “terceira cultura“, que ele chamou de
interdisciplinar, a partir da confluência de áreas como história social, sociologia,
demografia, ciência política, economia, psicologia, medicina e arquitetura e novamente
chamou a atenção para a necessidade de mudanças na educação, que chegassem até a
massa, que fossem capazes de cultivar pessoas para usufruir e produzir ciência, conhecer a
experiência criativa, e assumir o dever de contribuir para diminuir o sofrimento de seus
contemporâneos, que hoje chamaríamos de intercultural.
130
Os estudos de SNOW repercutiram sobre diversas áreas do conhecimento, influindo
para diminuir o nível de racionalismo instaurado, e para o surgimento dos conceitos de
transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, da década de oitenta, bastante propagados
durante a década de noventa, no Brasil.
Durante a década de setenta, o pensamento antropológico do brasileiro Paulo
FREIRE ([1970] 1987:17) é outro fundamento importante nesta tese, pois ele não aceitava
a separação entre teoria e prática, defendendo que toda prática educativa implica numa
teoria educativa.
FREIRE (Idem: 11-12):via o ato de estudar como uma atitude frente ao mundo, não
o ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las. Defendia a necessidade da prática,
próxima à realidade do educando, dizendo,
Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que se esforcem por recria-la,
repensando também o meu pensamento. E ao faze-lo, que tenham em mente que nenhuma
prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural,
econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto (Idem: 17)
Para FREIRE, a linguagem também é cultura, ele propõe a educação como prática
de liberdade, um ato de conhecimento em perspectiva crítica, de responsabilidade social e
política, que jamais é neutra.
Atualmente, acredita-se que o método qualitativo seja o mais apropriado para
entender o que ocorre em uma determinada cultura, pois as pessoas raciocinam e constroem
conceitos em um determinado contexto, tempo e lugar (BOGDAN e BIKLEN, ([1982]
1992:28).
131
Os autores consideram que para que a investigação qualitativa aconteça em sua
complexidade, cinco características devam fazer-se presentes, cada uma em potencialidade
diferente:
Primeiramente, a pesquisa se realiza no local, ou seja, na fonte mesma onde
as informações, pessoas, palavras, gestos, acontecem e o pesquisador é um
instrumento-chave: a pesquisa de campo desta tese se desenvolve em aldeia tupi-
guarani no litoral do Estado de São Paulo.
Em segundo lugar, é necessário entender as circunstâncias sócio-históricas
de contexto: este item nos fez recorrer principalmente a José Mauro Gagliardi, John
Manuel Monteiro, Manuela Carneiro da Cunha, Darcy Ribeiro, Carlos Fausto,
Antonio Carlos de Souza Lima, Roberto Cardoso de Oliveira, Aracy Lopes da Silva
e Florestan Fernandes, entre outros.
Em terceiro lugar, a pesquisa qualitativa é descritiva, portanto os dados
coletados são palavras ou imagens, mais que números, o que me levou a fazer
visitas semanais à aldeia, de agosto a novembro de 2004, a fim de conviver para
melhor descrever as pessoas, situações, acontecimentos, fazer entrevistas, colher
depoimentos.
Em quarto lugar, a pesquisa se preocupa com o processo em si: Nesse
sentido, adotei o seguinte procedimento metodológico: as técnicas usadas durante o
processo de coleta de dados foram: entrevista aberta, ou informal, pois na pesquisa
qualitativa, as entrevistas chegam a assemelhar-se a uma conversa e visam
principalmente a reflexão (SZYMANSKI Heloisa (Org.)2002: 15).
Contando com um roteiro organizador, gravei as entrevistas dos professores
indígenas, supervisora, coordenador, vice-diretora, diretora regional e diretora do
Núcleo de Educação Indígena do Estado de São Paulo, assim como alguns
132
depoimentos. Nessas ocasiões, estive atenta a desenvolver um registro minucioso e
cuidadoso, fazendo anotações em caderno sobre os comportamentos dos
entrevistados, inclusive os seus silêncios. Para os professores, também pedi que
respondessem a um questionário por escrito, aplicado por mim mesma, durante uma
de nossas reuniões, com perguntas abertas, o que me possibilitou agregar esse
material aos dados colhidos nas entrevistas.
Fotografei todas as “reuniões” da experiência empírica e filmei algumas das
soluções estéticas encontradas pelos professores.
Os documentos analisados foram documentos oficiais, mapas, estatísticas e
livros didáticos da escola onde transcorreu a pesquisa-ação, auxiliando na
construção dos acontecimentos e fornecendo o material para a análise das relações
interculturais do contexto em estudo. Esses documentos não foram considerados
verdades acabadas, nem solução, pois considero que se contextualizam temporal e
espacialmente.
E em quinto lugar não há preocupação com resultados ou produtos, ou seja,
trata-se de perceber a perspectiva dos participantes, de perguntar como as pessoas
negociam o significado, como certos termos ou rótulos são aplicados, como certas
noções tomam parte do que se entende por senso comum (Idem: 30-31).
Neste último caso, opto por adotar o pensamento de VYGOTSKY, o qual entende
que o método é o instrumento e o resultado do estudo, já que para ele, estudar alguma coisa
historicamente, significa estudá-la no processo de mudança. Portanto, estarei sim atenta
aos possíveis resultados da investigação, pois se fará inserções, interferências que ocorrerão
conforme a necessidade da relação com o grupo pesquisado ([1930-35] 1984:74).
133
Neste tipo de investigação, analisam-se os dados por indução; não tentando
necessariamente provar as hipóteses conhecidas antes da pesquisa, mas sim a partir das
mesmas, construir abstrações à medida que o processo acontece (Ibid.).
Inspiram as palavras de George E. Marcus, que diz que qualquer trabalho
etnográfico é um documento de consciência histórica que reconhece a possibilidade de
múltiplas recepções, a relevância de múltiplos discursos e as implicações políticas ([1986]
1999:166).
Também pelas palavras desse autor, diferencia-se a pretensão científica etnográfica,
como crítica cultural:
This is what makes ethnography, long seen as merely description, at present a
potentially controversial and unsettling mode of representation. Difference in the world is
no longer discovered (…) but rather must be redeemed, or recovered as valid and
significant, in an age of apparent homogenization and suspicion of authenticity, which,
while recognizing cultural diversity, ignores its practical implications” (Idem: 167)
Como o objetivo da etnografia crítica é a exploração das condições sócio-históricas;
os meios de expressão e as problemáticas dos valores presentes, são tidos como o
questionamento estético e epistemológico que levam à tentativa de compreensão (Ibid.).
Busco entender melhor o que vem a ser um processo intercultural de educação, as
estruturas de significação, a dinâmica em que as pessoas se movimentam, formam
convicções, individualidades, solidariedades, como força ordenadora do sistema simbólico
cultural e das questões humanas.
3.2. A abordagem: pesquisa-ação
134
Entre as propostas atuais da pesquisa educacional e os novos métodos de
investigação, escolhi a pesquisa-ação por ser uma abordagem com objetivo de mudança
psicosocial, uma ação em nível realista, acompanhada de uma reflexão autocrítica objetiva
e de uma avaliação de resultados (BARBIER, [1977] 1985: 38) (VYGOTSKY, [1930-35]
1984: 74).
Considerando as noções de diferença e de multiplicidade, como parte de nosso
vocabulário de análise cultural, a minha presença como pesquisadora tem como propósito a
tentativa de contribuir para o alívio das preocupações práticas, das pessoas que fazem parte
do problema, assim como o desejo de colaborar para o desenvolvimento das ciências
sociais (BARBIER, Ibid.)).
BARBIER distingue quatro tipos de Pesquisa-Ação (Idem: 39):
De diagnóstico, na qual a equipe de pesquisadores penetra em uma situação
existente, faz o diagnóstico e recomenda medidas saneadoras;
A empírica, pela qual se estuda diariamente grupos sociais semelhantes,
acumulando dados para chegar a princípios mais gerais;
A participante, escolhida para esta investigação, na qual, desde o começo,
as pessoas da comunidade estudada participam do processo da pesquisa e se auto-
avaliam e,
A pesquisa-ação experimental, que exige um estudo controlado da eficácia
relativa das técnicas utilizadas, assim como requer uma relação comparativa com
situação social praticamente idêntica (Idem: 39).
Para BARBIER, a pesquisa-ação tem também uma dimensão clínica, do grego
kliné, que significa relacionar-se com o doente e observá-lo direta e minuciosamente. Ele
135
considerava que este tipo de investigação ou sócio-análise não poderia ser ignorada no
âmbito da educação porque (Idem: 46),
O que é fundamental ao procedimento clínico é o respeito, ou melhor, a
sensibilidade ao que é ambíguo, ao duplo sentido e à hipercomplexidade.
Neste caso, trata-se de realizar a análise do uso de símbolos como ações sociais, um
empreendimento extremamente difícil e significa navegar nos paradoxos plural/unificado,
produto/processo; é ver a comunidade como se fosse uma fábrica na qual os pensamentos
são construídos e desconstruídos, e a história um território capturado; dar atenção a
assuntos tão complexos como a representação da autoridade, a demarcação de limites, a
retórica da persuasão, a expressão de compromissos e o registro da discordância (GEERTZ,
[1983] 2003: 229).
Trata-se de perceber de que maneira a arte, como sistema simbólico cultural, está
presente na alma das pessoas, produzindo soluções estéticas, na construção de mundos.
3.3. O processo da pesquisa-ação
Segundo COREY ([1953] 1957:26), este é um método que permite perceber se
certas atividades realmente levam aos resultados previstos; as evidencias são
sistematicamente procuradas, registradas e interpretadas, visando descobrir qual é
definitivamente o problema e compreender o que acontece quando certos procedimentos
são usados ao lidar com ele.
Embora alguns autores defendam que não há necessidade de lançar hipóteses para o
caso da pesquisa-ação, adoto o pensamento de COREY, que considera essencial que o
pesquisador lance hipóteses ou previsões sobre os resultados que deseja, pois isso implica
em objetivos, o desenvolvimento de procedimentos ou ações para atingi-los. Através da
136
observação, o registro de dados e a sua interpretação, verifica-se os resultados em relação
com aqueles esperados, e se há necessidade de nova hipótese a ser testada. No caso desta
pesquisa, a baixa auto-estima do professores (Idem: 27-35).
Quanto ao processo de coleta e análise de dados, sigo a idéia de Menga Lüdke
(1986:15-16) de passar por três etapas ou estágios, que para mim se realizaram da seguinte
maneira:
Primeiramente, fazendo a seleção e definição de problemas, a escolha do local onde
seria feito o estudo e o estabelecimento de contatos para a entrada em campo.
No segundo estágio, selecionando dados que favorecessem a compreensão e
interpretação do fenômeno estudado, considerando: forma e conteúdo da interação verba
dos participantes; forma e conteúdo da interação verbal com o pesquisador, comportamento
não-verbal; padrões de ação e não-ação, registros de arquivos e documentos.
No terceiro e último estágio, busco explicar a realidade do fenômeno estudado,
situando as descobertas em um contexto mais amplo, a fim de melhor compreende-lo e
interpretá-lo, ao mesmo tempo visando que me seja possível desenvolver teorias.
Concluo o trabalho percebendo que foi possível valorizar a auto-estima dos
professores indígenas, o resgate de elementos do sistema simbólico cultural do contexto e a
promoção da arte na educação e na vida da comunidade indígena da aldeia Piaçaguera,
constando que a escola diferenciada se configura com escola de branco.
As reflexões da pesquisa apontam pistas para uma escola intercultural diferenciada
através da construção de um currículo multicultural crítico.
137
Foto 11 – cancela à entrada da aldeia Piaçaguera, 2004.
3. 4. Entre os tupi-guarani, na aldeia Piaçaguera
Penso que a partir do momento que é construído dentro da aldeia, um prédio de
tijolos com telhado de cerâmica, janelas de vidros e uma placa na qual se lê “Escola
Estadual...”, o sistema simbólico cultural é definitivamente alterado e a educação
intercultural penetra em todas as dimensões da vida das pessoas, afetando-as de diversas
maneiras.
138
Através desta experiência, busco compreender as maneiras como os tupi-guarani da
aldeia Piaçagüera em Peruíbe, no interior do Estado de São Paulo, acessam os diversos
discursos disponibilizados pela educação formal, oficial, e se apropriam dos saberes; em
especial quais recursos teórico conceituais da arte podem contribuir para a compreensão da
educação diferenciada no sistema simbólico cultural indígena e as conseqüências.
Ao mesmo tempo que reflito sobre os significados da ação transformadora da arte
para a vida, me interessa perceber como esta é um veículo que contribui, ou não, na relação
pedagógica e na vida cotidiana.
A análise da arte como sistema simbólico cultural e como ação social, é um
empreendimento extremamente difícil e significa navegar entre paradoxos, perceber a
comunidade como se fosse uma fábrica na qual os pensamentos são construídos e
desconstruídos, e a história um território capturado; portanto, darei atenção a assuntos tão
complexos como a representação da pessoa, da vida coletiva, da autoridade, organização de
idéias, demarcação de limites, a retórica da persuasão, a expressão de compromissos e o
registro da discordância (GEERTZ [1983] 2003: 229).
Desde o começo, os professores indígenas da comunidade estudada, participam do
processo da pesquisa-ação o avaliam e se auto-avaliam, o que significa, dentro da sócio-
análise, observação direta e minuciosa das ações, o respeito e sensibilidade ao que é
ambíguo, aos duplos sentidos, aos significados locais e à complexidade (BARBIER, [1977]
1985: 339).
Divido o trabalho em três etapas; primeiramente o estabelecimento de contatos para
a entrada em campo, ao mesmo tempo que faço a seleção e definição prévia dos problemas;
a seguir a escolha do local, o desenvolvimento da observação participativa e intervenções
da pesquisa-ação, e no terceiro e último estágio, reflito sobre a realidade do fenômeno
estudado, situando as descobertas em um contexto mais amplo, a fim de melhor
compreende-lo e interpreta-lo, visando que me seja possível desenvolver teorias. Nesse
139
momento, busco a avaliação dos professores, da supervisora, do coordenador, da vice-
diretora, da diretora, e faço auto-avaliação (LÜDKE 1986:15-16).
Como este é um método que permite perceber se certas atividades realmente levam
aos resultados previstos, procurarei registrar e interpretar evidências, visando descobrir qual
é definitivamente o problema e compreender o que acontece quando certos procedimentos
são usados ao lidar com esse problema (COREY [1953] 1957:26).
Embora alguns autores defendam que não há necessidade de lançar hipóteses no
caso da pesquisa-ação, adoto o pensamento de COREY (Ibid.), que considera essencial que
o pesquisador lance hipóteses ou previsões sobre os resultados que deseja, pois isso implica
em objetivos, o desenvolvimento de procedimentos ou ações para atingi-los, verificando
depois os resultados em relação com aqueles esperados, e se há necessidade de nova
hipótese a ser testada. Portanto, parto da percepção da baixa auto-estima dos professores.
3.4.1. Os pressupostos teórico-conceituais:
Os resultados que almejo sugerem dos seguintes pressupostos teórico
conceituais:
Que sendo a arte um processo de percepção, inteligências e conhecimento
em ação, dar a conhecer esses recursos teóricos, as recentes concepções de
percepção, inteligências, conhecimento e a tradução da generalidade dessas
questões epistemológicas em relação com a especificidade das ações
docentes, contribui para fortalecer a auto-estima; dar ao professor o
sentimento de autonomia que necessita, quanto às possibilidades de planejar
livre e criativamente o currículo, os conteúdos, a valorização da própria
140
percepção, das próprias habilidades, do próprio conhecimento e a avaliação
do aluno, do professor e da escola intercultural indígena;
Que o estudo do processo histórico-cultural contextualizado, propicia aos
professores, a possibilidade do reconhecimento do sistema simbólico
cultural naquele tempo e lugar, contribuindo para o fortalecimento da
relação cidadã, do discurso crítico e consigo mesmo;
Que para aqueles da cultura do branco que trabalham com o currículo
intercultural é importante o estudo do sistema simbólico cultural do
contexto, visando ter maiores chances de contribuir para uma relação
intercultural educacional digna.
Que a ação criativa desempenha importante papel no processo de construção
da pessoa.
3.5.Primeiro Momento Empírico:
Em primeiro momento empírico, estabeleci os contatos para entrada em
campo, selecionei alguns problemas que se anunciavam; esbocei um planejamento
operacional prevendo o caminho a ser seguido, não com o rigor de uma estrada de
mão-única, mas como uma trilha que dá margem a outras.
Durante meses procurei a escola onde desenvolveria a pesquisa-ação, no Estado de
São Paulo. Quando finalmente confirmou-se o local, folguei em saber que começaria a
parte do estudo que para mim, representa um maior desafio. Ao mesmo tempo, novas
preocupações se iniciaram: de que forma se estaria configurando a educação intercultural
na escola dessa aldeia? O que significaria interculturalidade para esse grupo? Como seria
141
percebida a ação criadora pelas pessoas? Como compreenderiam o sistema simbólico
cultural? Qual seria a situação a mudar? Como se daria a relação Estado – escola? Teria,
eu, de fato, contribuições a oferecer? Que importância a pesquisa-ação teria para o
conhecimento acadêmico?
Nessa perspectiva, visando perceber a situação do contexto maior, começo pela
macroestrutura institucional sócio-cultural-educacional, pois sei que de alguma maneira o
que estas pessoas pensam influi sobre o que as demais pensam e fazem, levando-as a
responder a um conceito que se tem sobre elas. Quis observar primeiramente a relação
entre a Instituição Estadual e a educação indígena, e o modo como é percebida a ação
criadora dos índios nessa relação.
Minhas intenções eram conhecer a maneira como a Instituição Estadual lida com a
educação indígena, saber o que pensava sobre a ação criadora dos índios; apresentar esta
proposta de pesquisa, solicitar a escolha de um local para o desenvolvimento do trabalho,
autorização para penetrar no mundo da educação intercultural, regido pelo Estado e coletar
o maior número possível de evidências que indiquem as dificuldades que poderão se
apresentar (COREY [1953] 1957: 48).
Quis notar, sobretudo, o que dizem as palavras; a maneira como os responsáveis
pela educação se apresentam, falam de seu universo, das situações presentes e passadas.
Neste momento da descrição da experiência, revelaram-se as presenças, as percepções, os
tratamentos, o comportamento. Tratou-se de perceber as relações, um movimento próprio,
uma dinâmica de responsabilidades, emoções, projetos cumpridos e por realizar, dentro de
uma realidade complexa.
O desvelar das questões começou pela entrevista que realizei com a coordenadora
do NEI – Núcleo de Educação Indígena da Secretaria de Estado da Educação do Estado de
São Paulo, Prof. Deusdith Velloso, e dias depois, com a Diretora Regional de Ensino do
município onde se desenvolveu a pesquisa, tendo após estas duas entrevistas, se definido o
142
conceito que a Instituição tem sobre a ação criadora indígena, a cultura indígena, a escola
onde se desenvolveria a pesquisa-ação e o tempo de duração.
Assim sendo, em 23 de junho de 2004, entrevistei a Coordenadora do Núcleo de
Educação Indígena. Soube pela professora que a Secretaria de Educação atende a 5 etnias:
Kaingang, Krenak, Terena, Guarani e Tupi-guarani e que a formação de professores
indígenas começou em 2002, já tendo formado 61 professores - anteriormente, desde 1997,
havia somente cursinhos de capacitação - a 1
a
. formação, teve lugar no CEFAM – Centro
Específico de Formação de Magistério da Rede Estadual , e dividiu-se em 3 pólos. Para os
alunos do litoral norte e da capital, o curso realizou-se no CEFAM-Tucuruvi em São
Paulo; para alunos do litoral sul e Vale do Ribeira, realizou-se no CEFAM-Guarujá e para
alunos do oeste paulista, no CEFAM-Bauru. As aulas foram ministradas por profissionais
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, com quem a Secretaria firmou
contrato.
O curso de formação para o ensino da Educação Infantil teve duas Etapas: Estudos
Básicos e Estudos Específicos. Os alunos que já estavam cursando a faculdade fizeram os
Estudos Específicos e os que estavam completando o ensino médio, cursaram as duas
etapas, em 15 meses. Trabalhou-se aos sábados, domingos e feriados, entre o presencial e
à distância, usando-se dos recursos de vídeo-conferências e aulas presenciais. Em duas
ocasiões os professores indígenas estiveram na USP e também foram visitar museus. Para
futuro próximo, planeja-se o magistério do ensino superior.
Segundo a professora, adota-se o Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas, por ser esse o parâmetro nacional de formação de professores, e a proposta de
prática pedagógica considera vários aspectos importantes em sala de aula, procurando estar
sempre, “dentro do que eles conhecem, pois isso tem sido o que deu mais certo”.
A professora comentou que há anos atrás, a política geral do Brasil criou um
processo, principalmente no Estado de São Paulo, de dispersar os índios para que eles
143
fossem se inserindo na cultura branca e desaparecendo, e este é um fator que repercute até
hoje. Assim, para dar este curso, percebeu-se que há aldeias tupi-guarani no litoral norte,
em Ubatuba, assim como em Bauru, a mais de 400 km de distância entre uma e outra. Em
seu entender, a geografia desenhada por essa política, foi perversa, e fica clara quando se
pretende fazer um trabalho de educação, pois dessa forma, concentrando-se apenas em sua
cultura, os indígenas desconhecem muitos aspectos da história, vivendo apenas as
conseqüentes dificuldades da comunicação.
Muito fragilizados na alimentação, a maioria não tem trabalho remunerado nem
emprego, a escola então seria a coisa mais importante para abrir caminhos que até agora
pareciam fechados. Um problema que tem surgido com a presença da escola na aldeia, é
que esta criou uma estrutura social nova, que é a liderança dos professores frente à
tradicional liderança do cacique e a do pajé, que agora pedem acesso direto à Secretaria de
Educação, porque acham que os professores não lhes dizem tudo o que eles querem saber.
Para a professora, a relação intercultural é uma coisa que se necessita compreender
melhor. Assim aconteceu por exemplo, quando verificou-se que as crianças indígenas não
passavam do 3
o
. ano primário, constatando-se que elas não falavam nada de português.
Agora está-se trabalhando no sentido de construir essa nova escola indígena, que tem
praticamente um ano de estar funcionando: cada escola tem um diretor, professores e
auxiliar de serviços, todos indígenas, e a escolha é por indicação da comunidade.
Quanto à convivência coletiva, disse que quando o professor está em sala de aula, se
há mais de uma etnia presente, é necessário dividir os grupos, por etnia. Somente podem
misturar-se para contar resultados ou para fazer a interface de um conhecer o outro. Quando
há necessidade de obter representação, um indígena não pode representar todos, porque as
etnias são diferentes. “Sempre há necessidade de se trabalhar assim, ou abaixam a cabeça,
não falam nada, até que você se dê conta e mude; eles são um grupo de resistência”.
144
Quanto à ação criativa, a professora considera que a imaginação e a reflexão deles é
muito rica. “Eles têm o jeito deles de fazer, que é um jeito escondido, é só para quem se
interessar pelo trabalho deles. Quem passar somente olhando com rapidez, fica sabendo
pouco” . Ela deu o exemplo de um livrinho que havia na aldeia Boa Vista, no qual falava-se
sobre os remédios: estava escrito em guarani e em português como devia se proceder para
usar. Na escrita não havia quase nada da explicação, no entanto, olhando o desenho da
criança, “via-se até o pontinho da folha da árvore de onde você tira o remédio, porque eles
marcam tudo, atentam aos detalhes”. Quanto à música, “também conta a sua história; assim
como a dança, tudo tem um segundo sentido, para eles nada é descontextualizado. Nós é
que precisamos ter um olhar específico para compreende-los”, disse a professora.
Comentários:
As palavras denotam pouca confiança na capacidade do indígena de fazer relações
com novas informações, sobre temas desconhecidos: “sempre dentro do que eles conhecem,
pois isso tem sido o que deu mais certo”.
Sobre o fato de muitos indígenas terem se concentrado apenas em sua cultura,
desconhecendo aspectos importantes da história do Brasil com relação a eles: índios não
têm mais e melhores conhecimentos, não porque não queiram, mas porque não tiveram
acesso aos meios que lhes propiciassem esses conhecimentos.
Não é dito quais caminhos a escola pode abrir para melhorar a alimentação, nem a
oferta de trabalho.
Impressiona que tenham sido necessários três anos para que o Estado percebesse
que as crianças tinham chegado ao 3
o
. ano primário sem falar português. Também cabe a
pergunta de como elas teriam sido aprovadas de um ano para o outro.
145
Sobre uma nova escola, com mais funcionários (ainda que escolhidos pela
comunidade): o risco do desconhecimento das reais necessidades de alunos e professores; a
omissão ou a indiferença, permanecem.
Quanto à representação étnica: admira o senso ético do índio que tendo sido
humilhado por estar sendo representado por quem desconhece a sua cultura, apenas abaixa
a cabeça e espera que alguém se dê conta do engano; talvez outras pessoas tivessem reações
mais agressivas, não por pertencer a esta ou aquela etnia, mas por estar sendo
desrespeitado.
A segunda entrevista se realizou em 13 de agosto de 2004, na diretoria estadual
regional. Reuni-me com a diretora, às 10h da manhã, em seu gabinete. Ela mostrou-se
bastante receptiva a nossa proposta, devido ao fato da educação indígena estar começando e
sentir “que necessita de ajuda”
1
.
Estão sob sua coordenação cinco aldeias, a maioria com dificuldades de acesso
devido às condições das estradas, sendo que para uma delas chega-se apenas por canoa.
Quanto à vida coletiva, a professora referiu-se a um problema que se está vivendo
na escola da aldeia Itaoca, onde também vivem índios tupi-guarani, cuja professora decidiu
mudar-se, deixando a aldeia e os alunos sem professora. O problema estaria nas
dificuldades em preparar um novo professor daquela etnia e que este se disponha a morar
na aldeia, pois todos os moradores adultos não têm estudo.
Quanto à ação criativa dos indígenas, a professora considera que devido à ação
invasora do homem branco, perdeu-se muito do que é a riqueza cultural original, porém o
grupo tupi-guarani demonstra querer resgatar e preservar a sua cultura e nesse sentido ela
acha que devem ser ajudados.
1
Palavras da diretora
146
Colocada a questão da seleção de local para a pesquisa-ação, a diretora escolheu
uma aldeia que considera “a melhor”, na qual o sistema implantado está funcionando de
acordo às expectativas. Algumas poucas pessoas moram no lugar há mais de quarenta
anos, tendo vivido ali seus antepassados. A maioria, após o reconhecimento da FUNAI,
veio recentemente de outras aldeias, principalmente Bananal e Rio Branco.
Comentários:
Sobre a dificuldade de acesso às aldeias: este aspecto, logístico, é mais uma vez
citado como um exemplo de dificuldade na escola, e não questões quanto a conteúdos,
metodologias didático pedagógicas ou o relacionamento humano intercultural..
Quanto ao fato da escola de outra aldeia estar sem professor: a questão é tratada
como se a comunidade tivesse um problema a resolver, e não a Instituição estatal.
Professores indígenas estarão mesmo propensos a mudanças de moradia, como é de seu
costume.
Sobre o resgate e a preservação da cultura: é como se a comunidade pudesse mesmo
ir ao passado e de lá trazer uma cultura congelada e dedicar-se a preserva-la em um freezer.
Como dizia FREIRE ([2004] 2005:34), não há por que falar de um caráter ou de um
aspecto político da educação, como se ela tivesse apenas um aspecto político, mas não fosse
uma prática política.
3.5.1 Segundo momento empírico: nossas reuniões, observação
participativa, intervenções, avaliações.
147
Em segundo momento empírico, o problema se define, acontece a escolha do
local, o desenvolvimento da observação participativa e intervenções da pesquisa-ação.
Tendo formulado as hipóteses e à medida que ouço os professores, planejo
desenvolver as experiências, dinâmicas, ações, traduções das questões epistemológicas,
iluminadas pelo acervo teórico por mim selecionado, a minha vivência e experiência
docente, as reflexões e contribuições de todos os professores participantes.
De agosto a novembro de 2004, dedicamos um dia da semana a viver juntos o
cotidiano da escola. No processo de investigação, registrei sistematicamente as informações
coletadas, as falas, os gestos, as compreensões, as negociações, decisões, as ações coletivas
Foto 12 – Escola Ywy Piau na aldeia Piaçaguera. Agosto, 2004
148
criadas e avaliações dadas. Busquei encontrar o maior número possível de evidências, com
relação às práticas que levariam a mudanças significativas (COREY [ 1953] 1957: 48).
Fotografei, gravei entrevistas, filmei situações; estudei a história, ouvi as palavras
das pessoas, buscando melhor identificar os pontos críticos do desafio de contribuir para o
alívio das preocupações práticas dos professores que faziam parte da experiência, assim
como, para o desenvolvimento do estudo da educação intercultural, através de uma
colaboração ética mutuamente aceitável (RAPAPORT, In: BARBIER, 1985).
Segunda-feira 16 de agosto de 2004.
A diretora regional e eu saímos da sede da Diretoria Regional, em São Vicente, às
10 horas da manhã em direção à Rodovia Padre Manuel da Nóbrega, que leva à aldeia
Piaçagüera. Após a estrada asfaltada que ladeia o mar, nos aproximamos do caminho que
conduz à aldeia, dentro de uma faixa de areia de aproximadamente 3,5km. Seguimos por
um caminho tortuoso que vai à cancela de paus de madeira, que se encontrava aberta; pois
todos sabiam de nossa visita. O carro seguiu ladeando um campo de futebol, onde um
grupo de meninos jogava, e após algumas árvores estacionamos ao lado do prédio escolar,
uma construção ovalada, em tijolos com janelas de vidro.
Enquanto descia do carro, observei que os índios sentados sob a mangueira do
campo de futebol se levantavam. Vestiam bermuda e camiseta, tinham o rosto pintado e
usavam cocar. Enquanto caminhávamos para o pátio aberto da escola, outros indígenas
surgiam na rua de areia, vestindo sandália havaiana, calças jeans, camisetas e colares.
Construída há dois anos pela Secretaria de Estado da Educação, a escola tem
entrada com área coberta, onde estão dispostas mesas longas de madeira, e bancos. Quando
chegamos, crianças estavam sentadas, aguardando o almoço. À volta, algumas mulheres
149
ajudavam a servir, usavam vestidos comuns, ocidentalizados, colares e brincos de plumas
nas orelhas. Após essa área, via-se a cozinha com grandes panelas e logo em frente e à
esquerda, a sala da diretora. Nesta, havia uma mesa ampla, coberta por papéis, cadernos e
livros, à sua direita uma estante de aço com livros diversos sobre antropologia, ciências,
geografia, matemática, português, arte, cultura indígena e alguns pequenos dicionários
Aurélio da língua portuguesa.
À esquerda, sobre outra mesa, encontrava-se um computador e impressora e ao seu
lado um arquivo de aço para pastas suspensas. A sala é bem iluminada e não tem telefone.
As pessoas da aldeia se comunicam com o exterior pelo telefone público instalado logo ao
lado de fora da escola. Ao lado da sala da diretora vê-se um banheiro social seguido de um
banheiro para meninos, escrito “awá” e outro para meninas, em cuja porta se lê “cunhã”.
A sala de aula, em formato circular, está dividida em duas partes. Ao lado direito da
porta de entrada há uma lousa verde na parede e outra ao lado esquerdo, tendo à sua frente
aproximadamente 25 mesas e cadeiras para alunos, de cada lado. Toda a parede da sala é
rodeada de janelas de vidros por onde, do lado de fora, crianças olham para os que estão
dentro.
Antes do início da reunião, conversei com Ecocatu, a vice-diretora da escola, em
sua sala de trabalho. Ela contou que atende no local a mães e professores, comparece às
reuniões na Diretoria Regional de Ensino em São Vicente ou em São Paulo e participa de
reuniões de liderança indígena. Conversei também com o cacique, líder da comunidade e
representante externo, na luta pelos direitos, costumes e tradições de seu povo.
2
.
Atendendo ao pedido da vice-diretora indígena, combinamos que além dos
professores, também aquelas pessoas que pretendam candidatar-se ao cargo de professor,
poderão fazer parte do grupo que participará desta reunião e da pesquisa-ação.
2
Palavras do cacique
150
Foto 13– Crianças aguardam o almoço na Escola da aldeia
Agosto, 2004
Começamos com a presença de todos. A vice-diretora apresentou-me, explicou-lhes
que sou doutoranda na área de educação na PUC, que eu gostaria de ajudá-los em seu
trabalho didático-pedagógico, no âmbito da arte e da cultura e que eles deveriam de dizer se
concordavam com minha presença na escola e a minha atividade e caso afirmativo,
deveriam de falar o que gostariam que fosse trabalhado, pois o conteúdo seria definido
juntamente com eles.
Observei-os. Alguns começaram a falar baixinho entre si, outros pensavam olhando
para os próprios pés. Todos tiveram oportunidade de se pronunciar e aos poucos, sem
exceção, disseram que concordavam porque queriam resgatar sua cultura e achavam que
151
necessitavam de ajuda, devido ao fato dos professores em geral terem problemas para
ensinar e muitas dificuldades com os alunos. Eu agradeci, disse que esperava que nossos
encontros correspondessem a suas expectativas e combinamos que na quinta-feira 26 de
agosto, começaria o nosso trabalho.
1
a
. reunião. Quinta-feira, 26 de agosto de 2004.
Desta vez viajei em meu próprio carro, direto de São Paulo para a aldeia. Quando
cheguei para nossa primeira reunião, algumas mães e crianças estavam sentadas ao redor da
mesa do pátio da escola. Cumprimentei e dirigi-me para a sala da vice-diretora, que estava
atendendo uma mãe da comunidade, que juntamente com outras, haviam escrito à Diretoria
Regional de Ensino, denunciando a má qualidade dos professores da aldeia e pedindo que a
Secretaria de Educação mandasse uma professora branca
3
para solucionar o problema.
A diretora, juntamente com o cacique, explicavam àquela senhora que ela e as
demais mães que estivessem descontentes, teriam que dar uma chance ao grupo de
professores índios, porque eles estavam apenas começando, tudo era novo para todos
e os bons resultados demoram a chegar. “Precisamos de tempo”, dizia ele, olhando para
mim e procurando apoio para suas palavras, enquanto eu me mantinha calada.
A mulher estava muito nervosa, falava alto, dizendo que iria retirar o seu filho da
escola da aldeia, se aquela situação não melhorasse durante o semestre. A vice-diretora
mostrou-me a carta que tinha nas mãos e disse à mulher que justamente eu estava ali para
ajudá-los.
3
Observo que os indígenas chamam “branco” aquele que não é indígena. Posteriormente, perguntei a
Ecocatu quem é “branco” e ela explicou que são todos os brasileiros em volta da aldeia e também os alemães,
franceses, os estrangeiros. No entanto, os mestiços, já são considerados “irmãos”.
152
Seguimos todos para a sala de aula. Após a minha apresentação pessoal, eu disse
acreditar em uma educação que valoriza a pessoa, a vida coletiva, o respeito às diferenças
entre uma pessoa e outra e as capacidades de criar. Pedi então que eles falassem de si
mesmos e dissessem qual a sua expectativa com relação a nossas reuniões e quais
dificuldades viviam em sala de aula, de forma que me fosse possível visualizar melhor o
problema. Por sugestão de Ubirajara, que já foi cacique da aldeia, e que participava
naquele dia da reunião, cada um disse o seu nome primeiramente em tupi-guarani
4
e depois
em português.
Perguntei a Ecocatu por que tupi-guarani e ela me disse que primeiro a língua era
tupi, depois vieram os guarani, trazidos do Paraguay e as línguas foram se misturando.
Mas eles, os guarani, eram de outra etnia: “Os tupi é que estavam aqui na praia desde antes
dos portugueses”
5
-
6
. Em seu caso, a avó e o pai eram tupinambá do litoral e a mãe,
Guarani Mbyá.
As expectativas do grupo eram de que esse fosse um curso, porque todos
reconheciam que tinham muito a aprender. Estavam assustados com o pessimismo das
famílias da comunidade com relação à escola, e disseram ser importante para suas próprias
perspectivas profissionais, conhecer mais e tirar suas dúvidas em nossos encontros.
4
Em 1955, o Pe. A Lemos Barbosa publicou o “Pequeno Vocabulário Tupi-português” pela Livraria São José
do Rio de Janeiro, qualificando-o como material autêntico tupi. Ele se refere a publicações anteriores, fontes
sobre o tupi antigo, Arte do Pe. José de Anchieta (1595) Vocabulário na Língua Brasílica , de jesuíta
desconhecido do século XVI, Catecismos do Pe. Antônio de Araújo (1618); do séculos XVI e XVII, obras de
André Thevet, Jean de Léry, Hans Staden, Antônio Knivet, Claude d’ Abbeville, Ives d” Évreux, Jorge
Marcgrave, Guilherme Piso. Do século XIX, as obras de Batista Caetano de Almeida Nogueira e Lucien
Adam e do século XX Teodoro Sampaio, Plínio Ayrosa e M de Paula Martins. L. Barbosa considera como
melhores trabalhos do Prof. Frederico G. Edelweiss da Bahia, e Aryon dall’ Igna Rodrigues, de Curitiba.
5
Palavras de Ecocatu
6
Segundo FAUSTO ([1999] 2002: 282) existem dois modelos de expansão tupi-guarani na costa brasileira:
um (defendido por Métraux) movimento migratório de sul para norte, da bacia Paraná-Paraguai, onde
Tupinambá e Guarani teriam se separado; e o segundo (defendido por Brochado), baseado na interpretação de
dados arqueológicos, inverte o sentido, acredita que a partir de um nicho originário amazônico, teriam havido
dois movimentos migratórios de orientações diversas: os proto-Guarani teriam rumado para o sul via
Madeira-Guaporé e atingido o rio Paraguai, desde o início da era cristã e os proto-Tupinambá teriam descido
o Amazonas até sua foz, expandindo-se em seguida pela costa, no sentido oeste-leste e depois norte-sul.
Mapas ANEXO 1 e 2.
153
Todos achamos oportuno aceitar que duas das mães que haviam reclamado à
Secretaria de Educação também fizessem parte do grupo. A maioria dos participantes mora
na aldeia, poucos em aldeias vizinhas, mas eles estão sempre visitando os parentes do
Bananal, Rio Branco, Ubatuba e do Bauru e de lá também recebem famílias, nessas
andanças, às vezes a família se muda e fica morando durante meses e até anos na aldeia.
Alguns passaram anos fora, indo morar na cidade e voltaram recentemente
7
. É o
caso da vice-diretora, ela disse que veio para ser educadora; há 10 anos, fundou uma
associação indígena que agora a comunidade usa para suas reivindicações, e aqui na aldeia
Piaçaguera foi cacique durante alguns meses por indicação da comunidade. Ela, sua filha
Jurumopycoé e o professor Icoeté fizeram o primeiro curso de formação de professores do
Estado e foram os primeiros educadores na tribo, quando então o cacique era Ubirajara.
A professora Nheepocaruguara, disse que gosta muito de ensinar, quer que lhe
apontem seus erros, quer ouvir e corrigir. Diz que tem duas alunas que estão no terceiro
ano, mas que não sabem escrever. Ela quer saber como fazer para que essas crianças
aprendam, que talvez tenham preguiça, as duas são irmãs. Na aldeia, ela e Quirini têm
desenvolvido trabalhos de teatro com as crianças. Yapíra e Pucu também querem ensinar .
Pucu cursa faculdade de Nutrição.
Quirini está sendo cogitado para ensinar em escola tupi-guarani de outra aldeia. A
vice-diretoria explicou que ele poderia ser preparado para essa tarefa, que a aldeia Itaoca
fica do outro lado da estrada Manuel da Nóbrega e ali os tupi-guarani moram há cerca de
quatorze anos, são mais ou menos umas oito famílias e aproximadamente dezoito crianças,
que convivem com um grupo de guaranis que são mais ou menos oitenta adultos e trinta
crianças, que chegaram depois deles na área, localizando-se atrás do grupamento tupi-
guarani, mas que o grupo guarani está sempre crescendo, porque continua vindo gente do
Paraguay e da Argentina. Atualmente, os dois grupos étnicos dão aula na mesma escola,
7
Esta é uma tendência também verificada em outros Estados.
154
cada um usando a metade da sala. Os guarani sempre têm professora que dá aulas em
português e em guarani.
Todos disseram que acham importante este momento da escola na aldeia, ainda que
difícil, mas querem aprender como ensinar e resgatar a cultura tupi-guarani, que muita
gente desconhece.
O cacique contou que tem preocupação com a educação das crianças, que mães e
pais querem que elas estudem, mas reclamam da situação atual porque algumas nem sabem
escrever. Ele acha que não se pode reclamar diretamente para a Secretaria de Educação,
sem dar oportunidade de que os professores tupi-guarani melhorem. Diz que em 2003
começou o ensino da aldeia, com dificuldades de todo tipo, receberam muitas críticas, mas
lutam por melhorar e acredita que a comunidade tem que se empenhar.
Durante o intervalo, dei-me um tempo para refletir sobre os sentimentos que as
pessoas haviam demonstrado ter para consigo mesmas. Por um lado, a confiança do
cacique que acredita que pode ser melhor; por outro, a zanga das mães que acham que não
tem mais jeito e por outro,a realidade dos professores frente aos desafios da didática
pedagógica, da nova relação epistemológica na construção do conhecimento.
A aldeia é próxima da cidade, e as pessoas convivem com uma urbanidade, já seja
nas proximidades da vizinhança, na praia; mesmo que a maioria não saia dali. Na
linguagem dos corpos presentes, a baixa auto-estima, o reconhecimento da sua situação
crítica. Na sala de aula, a cultura de educação do branco, instalada.
Assim, ao retomarmos a atividade, primeiramente pedi-lhes que me ajudassem a
representar no quadro o que seriam os nossos encontros: uma relação intercultural. Dentro
de um círculo, representamos a cultura de educação indígena, e à medida que eles falavam
como são seus costumes, como se desenvolve o aprendizado das crianças na aldeia com os
155
pais, as mães, com os demais parentes, e as suas vivências na família, eu ia escrevendo na
lousa.
Contaram que as crianças são aceitas em todo lugar, desde pequenas, porque estão
sempre aprendendo; que isso de ensinar a caçar e pescar já não faz parte da realidade atual,
que há um riacho que corta a aldeia, onde os mais velhos pescavam, mas atualmente está
poluído e não se pode nem tomar banho nele.
Para seu sustento, a maioria produz artesanato com sementes, folhas, madeira e
plumas de pássaros da região e vai vender na cidade ou nas oportunidades que aparecem.
Quanto às crianças, elas almoçam e comem o lanche enviado pelo Estado, pois a Escola
tem merendeira, uma senhora da comunidade que cozinha; ela também gostaria de
candidatar-se a professora. Algumas das pessoas depois da infância, foram para o ensino
fundamental nos colégios da cidade.
Desenhei outro círculo, parcialmente sobreposto ao anterior, significando o encontro
com a cultura de educação do branco, da qual eu mesma faço parte e juntos fomos
construindo os costumes, comportamentos, normas, hábitos, burocracia, cobrança de
resultados, relações institucionais. Na junção entre esses dois círculos, resultando algo
novo, a relação intercultural, que não existia antes e que muda de acordo a cada
comunidade que atinge, e as suas circunstâncias.
Concordamos na necessidade de que durante as nossas falas, sempre que alguém
quisesse fazer inserções, pedisse a palavra dizendo suas idéias e fazendo perguntas, porque
isso poderia ajudar outros, que também tivessem a mesma dúvida, a esclarecê-la.
Igualmente concordamos que todos participariam das respostas dadas por mim ou por
qualquer outra pessoa, porque isso também ajudaria na socialização de experiências,
enriquecendo nossas reuniões.
156
Expliquei não ser minha proposta ensinar métodos, mas que pelo que eles me
estavam colocando, eu percebia que poderia oferecer para discussão, algumas teorias do
estudo do branco que têm valor para todos os seres humanos, e eles por sua vez, poderiam
me fazer conhecer mais pensamentos da sua cultura e irmos vendo de que maneira uma
cultura se encontra com a outra, e se há colaboração ou não. Além disso, buscaríamos
compreender a arte naquilo que eles já estão acostumados: o trabalho coletivo, as decisões
coletivas, a negociação, a criação em grupo.
Então, buscando encontrar e socializar a concepção que eles têm de si mesmos,
perguntei o que pensam do povo tupi-guarani. Coema. disse: “penso que eles se
misturaram muito com o povo não-índio e por isso está acabando o índio”; para
Poraussubara: “o povo tupi guarani é um povo batalhador, guerreiro, por isso tenho
orgulho dele”. Yapuana. acha que “somos um povo muito carente”, Jurumopycoé disse que
“é um povo que vem lutando para não perder sua cultura” e para Oryba “ é um povo unido
que luta pelos seus direitos”
Eu quis saber se alguém já tinha se perguntado: “será que eu sou inteligente?”
Alguns abaixaram a cabeça silenciosamente, outros trocaram olhares e falaram entre si em
tupi-guarani. “Claro”, disse um: “ou a gente é inteligente ou a gente é burro.” “Tem
branco que acha que índio é burro”, disse outro. “Ah, entendi.” Disse eu. “E nós, o que
nós achamos?” Mantiveram-se pensativos e calados por uns instantes.
“Alguém já ouviu falar em QI?” Perguntei. Quatro levantaram a mão dizendo que
sim, já tinham ouvido falar. Ubirajara contou como certa vez fizera um teste de QI, disse
que havia perguntas, com exercícios que devia preencher sobre língua portuguesa, e que
também havia uma letra de música e contas para ele fazer.
Falei do conceito que está por trás dessa palavra “QI”, o histórico, a idéia que ela
tentava explicar, e como os dois estudiosos, Simon e Binet acreditavam que as pessoas
157
tinham apenas dois tipos de inteligência: a lógica-matemática e a lingüística, deixando
portanto, bastante gente de fora. Inclusive eu, que sou artista. Todos riram.
Colocando a questão nesses termos, expliquei que há estudos científicos recentes, da
década de oitenta, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que trazem novas
contribuições. Comecei socializando a teoria das Inteligências Múltiplas. Os professores
ouviram com muita atenção, como o grupo do Project Zero encontrou as sete inteligências.
À medida que eu explicava, ia pedindo que eles mesmos dessem exemplos de como
o indígena usa sua inteligência espacial: “índios não se perdem no mato”, disse alguém,
“mas alguns sim”, contestou outro, e todos riram. Sobre a inteligência musical, contaram
que agora cantam poucas músicas, mas os mais velhos dizem que conhecem outras que não
se cantam mais e que sempre o povo tupi-guarani cantou e tocou instrumentos sem
ninguém ensinar.
A inteligência interpessoal encontrou-se nos líderes, o cacique, o pajé, aqueles que
sabem falar bem, que ajudam nos problemas da aldeia, eles representam o povo diante dos
brancos e agora tem índio que é deputado e muita gente vota nele; contaram como alguns
pastores também falam bonito e como outros os enganam. Quando abordei a inteligência
intrapessoal, eles disseram que tem índio que sabe o que quer, se conhece, ajuda todos da
comunidade, dão conselho, são legais. A vice-diretora disse que acha que os tupi-guarani
precisam desenvolver mais o conhecimento do espírito. Que está-se sentindo falta de um
pajé.
Quando tratamos da inteligência corporal, todos colocaram o tupi-guarani como um
guerreiro, que sabe lutar, sabe correr e que todos sabem dançar. Ubirajara contou que seu
filho está estudando medicina em Cuba. Quanto à lógica-matemática, estão aprendendo
na escola, mas antes da escola vir para a aldeia, eles já sabiam comercializar, vender,
comprar, sabem usar o dinheiro e quando tratamos da lingüística, Oryba contou que gosta
de escrever poesias e letras de músicas.
158
Muito curiosos, antecipavam perguntas que me levavam a explicar as outras partes
da teoria: “Todas as pessoas nascem assim?” Desenhei um círculo no quadro e dividi-o em
pedaços, como uma laranja cortada pelo meio, em partes, e expliquei que se trata de um
espectro de inteligências, porque a teoria acredita que todos nascemos com todas elas.
“Ninguém é diferente?” “Ah, sim”, disse eu. “Cada um de nós tem cada uma em maior ou
em menor nível”.
Demonstrei em forma de gráfico com colunas diferenciadas e usamos para exemplo
alguns dos presentes, procurando identificar quais habilidades se destacavam mais ou se
destacavam menos em cada pessoa. “E as inteligências ficam sempre do mesmo jeito até
morrer?” “Não”, disse eu. “Elas precisam de treino e alimento para se modificar, porque
se trata de ações.” “As inteligências estão sempre se movimentando e se relacionando com
nossos sentimentos, emoções, afetividade.” Todos copiaram do quadro as explicações,
colorindo os desenhos e os gráficos, pensativos.
Devido a sua preocupação com a recuperação da sua cultura, combinamos que para
a próxima aula, cada grupo assumiria a tarefa de trazer uma representação musical tupi-
guarani, em diferentes situações: dança, canto, uso de instrumentos, letra de música, tudo
seria aceito. Por alguns minutos conversaram entre si e para encerrar, perguntei se eu
poderia dividir a turma em grupos aleatórios ou se eles mesmos prefeririam dividir-se.
Quiseram que eu os agrupasse.
Perguntei quais eram as suas comemorações, festejos, momentos em que se viviam
rituais durante o ano. Eles explicaram que agora festejam apenas o dia-do-índio, em abril, e
que quando vai visita à aldeia eles também cantam e dançam, fora essas ocasiões, não havia
nada. Nem festas nem rituais.
Concordamos que cada grupo iria conversar com as pessoas mais velhas da tribo,
observar, fazer anotações, para na próxima aula contar a todos o que ouviram sobre a
159
música escolhida. Deveriam dizer quem entrevistaram, onde e como a pesquisa se
desenvolvera. Também concordamos que as apresentações se fariam da maneira que o
grupo escolhesse, ou seja, escrevendo no quadro, representando, lendo anotações ou de
qualquer outra maneira criativa.
Agradeci a todos por estarem ali e dar-me a oportunidade de estar com eles. Já me
despedia, quando disseram que também queriam agradecer-me. Imediatamente foram
todos para a frente da sala, dividindo-se em dois grupos.
Perfilando-se os homens para um lado e as mulheres para outro, cantaram em tupi-
guarani com vozes suaves, uma melodia muito harmoniosa.
Quando terminaram, Ubirajara explicou que a canção se chama Piray, que quer
dizer Peixinho e a letra se refere aos peixinhos que ficam muito felizes quando chove
porque a água lhes leva alimento. Mais uma vez, agradeci emocionada, pela beleza desse
gesto estético.
Receber e retribuir, assim era a economia de reciprocidade dos tupi-guarani,
explicava Florestan FERNANDES (1948:125). A economia de reciprocidade se manifesta
pela obrigação de dar e levava os grupos a desenvolverem técnicas de entreajuda
econômica e cooperação social, tendo assim desenvolvido padrões especiais de
comportamento recíproco. Para eles, não ter o que comer pode ser menos grave do que não
ter o que ofertar.
160
PERFIL DOS PROFESSORES
*Nome: a fim de preservar a
privacidade, uso nomes fictícios.
Formação Onde ensina Quantid.
alunos:
Idade
alunos
O que ensina
1.Jurumopycoé Idade: 22 anoss Mag. Indíg. EEI Ywy Piau 16 8 a 14 Língua materna,
Português, História,
Geografia, Mate.
2. Yapuana Idade: 40 anos 5
a
.série Está se
preparando
Não ensina
3. Ecocatu Idade: 54 anos Mag.Indíg. Vice-diretora Não ensina
4. *2. Yapira Idade: 36 anos Preparando-se
5. Nheépocaruguara
Idade: 26 anos
E.Médio EEI Ywy Piau 20 6 a 9 Língua materna,
Português, Matem.
História,Geografia
6. Coema Idade: 42 anos Fundam. Não ensina Não ensina
7. *3. Pucu Idade: 28 anos Estudante de
Nutricionismo
Nutricionista
8. Essacuanhyro Idade: 40 anos Não ensina
9. Icoeté Idade: 27 anos EEI Ywy Piau Teatro
10. Quirini Idade: 28 anos EEI Ywy Piau 10 13 a 17 Língua materna e
português
11. Poraussubara Idade:22 anos EEI Ywy Piau Português e cultura
indígena
12. Qryba Idade: 39 anos 3o. Fund. Não ensina A cultura,
13. Guarinissara Idade: 14 anos Preparando-se
*1. Escolhi os nomes em relação com a minha percepção das pessoas.
Ecocatu: virtude, graça, felicidade
Jurumopycoé: covinha no rosto
Yapuana: o que rescende, cheiroso
Yapira: mel
Nheepocaruguara: delicada no falar
Coema: manhã, amanhecer
Pucu: alto, comprido
Essacuanhyro semblante bom
Icoeté valente, corajoso
Quiriri silencioso, calado
Poraussubara compassivo, misericordioso
Oryba alegre, feliz
Guarinissara guerreiro
*2. Yapira tem filha na PUC-SP, com bolsa para a Faculdade, porém com dificuldade de se
auto-sustentar, teme abandonar o estudo.
*3.Em 2005 Pucu foi obrigado a deixar a Faculdade, por não ter a Bolsa renovada.
161
Foto 14 - os professores tupi-guarani cantam Piray (peixe)
Agosto, 2004
2
a
. Reunião. 2 de setembro de 2004.
Quando cheguei para o encontro de 02 de setembro, com uma hora de antecedência,
no campo de futebol havia um grupo de meninos jogando bola. Aproximei-me e logo a
seguir Ubirajara veio falar comigo. Eu elogiei a natureza, a mata atlântica, e ele disse que
aquele lugar havia sido escolhido por ser um lugar de passagem para seus ancestrais,
portanto um lugar místico, que agora os aproxima de suas tradições. Com a mão, cavou um
pouco a terra e me mostrou um pedaço de cerâmica, dizendo que havia pedaços do passado
162
por todo lado, potes, tijelas, coisas que haviam sido usadas por seus parentes. Lembrei-me
que para os guarani, esse é um elemento simbólico importante; formar aldeias e
m lugares
eleitos” significa estar mais perto do acesso a ywy marãey, a “terra sem mal”.
preocupada porque
tinham ue fazer o projeto pedagógico e não sabiam como elaborá-lo.
aviam criado um calendário, mais próximo de suas realidades, que todos tinham
logiado.
de, qual tema quero discutir, qual o problema que se apresenta, qual
solução quero propor.
ias coisas que eu não sabia. Para que eu
prenda a conversar mais com meus parentes”.
Yapira escreveu:
Quando cheguei na sala de aula, já estavam alguns professores finalizando os
trabalhos que seriam apresentados. A vice-diretora disse que estava
q
Perguntou-me se eu poderia ajudar. Combinamos que leríamos o texto impresso
fornecido pelo Estado, interpretaríamos e refletiríamos. A minha intenção era limitar-me a
despertar as possibilidades de criação para que posteriormente eles mesmos concretizassem
idéias na invenção de seu próprio projeto pedagógico. Duas semanas depois, contaram-me
que a diretora regional, gostara muito do que eles propuseram para o próximo ano e que
inclusive h
e
A seguir, pedi-lhes primeiramente que avaliassem a nossa aula anterior, escrevendo
em um papel o que tinham achado, de que maneira aquilo que foi trabalhado repercutiu
sobre seu trabalho. Eu observara a facilidade com que o grupo falava sobre suas idéias e o
esforço que representava colocar o pensamento no papel. Como eu já tivera oportunidades
de conviver com a mesma dificuldade com meus alunos universitários brancos, coloquei no
quadro um “orientador” para a organização das idéias: o que quero dizer; por que; para
que; como; quando; on
Yapuana escreveu “
“Foi muito bom, porque eu pude aprender vár
a
163
Aprendi coisas que realmente eu não sabia, me senti até mais confiante e aprendi que tudo
é questão de treino e aprendizado. A aula foi importante pois consegui entender as várias
formas de inteligência. Senti que todos participaram. A aula serviu para abrir a nossa mente,
pretendo aprender muito mais e estou amando”.
Nheepocaruguara escreveu:
“Um novo mundo surgiu para mim; eu estava com baixa auto-estima com relação a minha
capacidade, a aula anterior caiu como um presente de Deus, percebi que sou capaz de
alcançar meus sonhos mais desejados. Me abriu os olhos para lutar e trilhar meu caminho
de acordo com minha escolha.
Ecocatu escreveu.
“A aula foi muito boa, construtiva, abriu a minha mente e levantou a minha auto-estima.
Por você ter falado sobre a nossa inteligência, vejo que é só a gente pensar um pouco e vai
se abrindo a memória e vai vendo quantas coisas a gente fez. Aí, é pôr tudo para trabalhar.
Hoje eu tenho certeza que eu sou capaz de me esforçar e chegar a meu objetivo, até mesmo
onde o mar se encontra com o sol, o infinito
8
”.
Essacuanhyro escreveu:
Sobre a aula passada eu acho que foi muito bom e quero aprender mais. Para mim é
importante e para meus amigos também. Foi bom porque pudemos trocar idéias para
aprender mais uns com os outros.”
Pucu escreveu:
“Acho que foi bem aproveitado, de uma forma bem ampla, pois todos nós participamos,
conseguimos um aprendizado sobre coisas interessantes. Cada vez mais iremos obter uma
forma mais produtiva e teremos mais conteúdo para desenvolvermos o nosso dia-a-dia. Será
útil para que possamos transmitir aos nossos descendentes, informações mais concretas.”
8
Possivelmente as professoras Neepocaruguara e Ecocatu façam referência à Terra Sem Mal, Ywy Maraey,
localizada pelos Tupi como o lugar de abundância, um “paraíso terreal”, inscrito no espaço, em algum lugar a
oeste ou a leste, que poderia ser coletivamente alcançado em vida (FAUSTO, Carlos. 2000: 385).
164
Oryba escreveu:
“Sobre a aula de 26 de agosto, eu achei que foi muito importante para nós, índios, porque
nós tiramos muitas dúvidas e com o passar do tempo vamos aprender mais e assim,
poderemos estar passando para nossos filhos e para nossa comunidade”.
Depois das avaliações escritas, iniciamos as apresentações artísticas que haviam
sido planejadas. Todos foram à frente da sala, falaram sobre a entrevista com o parente
mais velho, como transcorreu a visita, como conversaram, como conheceram a origem da
música e em que ocasião era cantada. Apresentaram também por escrito a sua pesquisa
com desenhos que foram socializados, e texto.
Nheepocaruguara e Jurumopycoé usaram o instrumento chamado “pau de chuva”,
cujo som ameno, reproduz a água que cai da chuva de maneira ritmada e agradável. Eles
cantaram e representaram:
Letra da música: Eké namitã mitã
Deru togueru
Tapiti nambiqueí
Derupexi rain
Towé tugueru
[Tanambi é pamitantoqué]
Tradução: Dorme nenê, nenezinha
Que seu pai for buscar
Orelhinha do coelhinho
Pra te dar sono
Deixa ele trazer
Essa orelhinha vai te fazer dormir.
Disseram que antes ou depois da canção, é contada a seguinte historia para que a
criança durma:
165
“Uma vez, um certo indiozinho não parava de chorar, os pais estavam muito aflitos,
não sabiam o que a criança tinha. Eles então levaram a criança até o pajé, mas ele disse que
a criança não tinha nada. Os pais já muito cansados, choravam juntos, tentando achar uma
solução.
A mãe da criança então exausta, pediu que seu marido cuidasse da criança para que
ela pudesse dormir um pouco. Antes de dormir ela pediu a Nhanderu que os ajudasse e
então ela dormiu e teve um lindo sonho.
Ela acordou feliz, correu e disse para seu marido, que fosse buscar um coelho. Ele,
sem fazer perguntas, buscou enquanto ela começou a cantar. Ele trouxe o coelho e ela
então passou a orelha do coelho nos olhos da criança, que dentro de alguns minutos
adormeceu, tranqüila e sorridente
.
A mulher então explicou ao seu marido: Nhanderu disse para mim que os coelhos
eram iluminados e podiam cuidar das crianças que choravam sem motivo. As crianças
também ficam tristes e por isso choram, os coelhos tinham medo de se aproximar e serem
comidos pelos índios, por esse motivo, não ajudavam as crianças tristes. Mas eles são os
protetores das crianças. A partir desse dia, tornou-se proibido comer coelho naquela tribo.
O grupo seguinte, Jurumopycoé e Pucu cantaram, enquanto Guarinissara tocava
violão:
Owewé, Owewé
Gwyra ru’ é
Nhe ‘ é Yátu
Edju Edju
Gwyra ru’ i
Nhe’ é yátu
166
Contaram que quando as crianças ficavam um pouco abatidas, sem ânimo para
nada, até para brincar, era chamado o pajé da aldeia, ele rezava pelas crianças e essa reza
era feita durante vários dias, porque segundo o Pajé, a reza tinha que ser feita para alegrar o
espírito da criança. Quando o espírito está triste, a criança fica abatida, sem ânimo para
nada.
Foto 15 - Professores tupi-guarani da aldeia Piaçaguera avaliam a reunião anterior
Setembro, 2004
Alegres, contaram que as pessoas da aldeia estão comentando que assim todos vão
ficar sabendo das histórias que os mais velhos contavam e voltarão a cantar as músicas do
passado. Perguntei para que mais poderiam servir agora essas atividades? “Para aula das
línguas” disse alguém “pode ensinar coisas de português e coisas de tupi-guarani do mesmo
167
jeito”, “para aula de cultura”, disse outro, “até para coisas de matemática”, disse uma das
mães presentes. Todos olharam para ela.
Perguntei: “O que é que está sendo trabalhado aqui, por nós todos?” “A cultura.”
“O que mais?” “Lembranças, passado, coisas que estavam escondidas. Coisas que as
pessoas não falavam mais.” “O que mais?” “Sentimentos.” “Será que tem outras coisas
que a gente não percebeu? Será que tem outras coisas que poderiam estar sendo
trabalhadas e a gente não trabalhou?” “Ah, com certeza” Disse alguém.
Ao finalizar a reunião, Ecocatu trouxe um projeto escrito por ela e algumas pessoas
da aldeia, disse que esse era um escrito importante para ela e para a aldeia e pediu-me que
tratássemos dele na próxima aula. Levei para casa a cópia de “A Busca Cultural do Awati
Marae-y, milho sagrado da Aldeia Tupi-guarani” para me inteirar do assunto.
3
a
. reunião. 9 de setembro de 2004.
Por decisão da vice-diretora, esta reunião aconteceu na casa-comunitária, onde eles
costumam se reunir; uma construção de paus de madeira e teto de palha, tendo uma área
menor onde se fazem as comidas quando há eventos e outra área maior sem paredes, com
uma grande mesa de madeira rodeada por bancos. Estavam presentes alguns professores,
outros índios da aldeia, todos homens, e o representante da FUNASA que atende à aldeia,
no total aproximado de 18 pessoas. Algumas se sentaram e outras permaneceram de pé ao
redor da mesa.
A questão era como viabilizar o projeto, cujo objetivo era a retomada de um dos
preceitos místicos que fundamentam a relação dos tupi-guarani com a terra e pela qual,
simbolicamente e na prática, condicionam a sua sobrevivência. Queriam fazer ressurgir o
167
Foto 16 - Casa comunitária da aldeia Piaçaguera
Setembro, 2004
o ritual da coleta e da consagração do milho sagrado, que acontece uma vez ao ano.
Esse é um ritual ancestral, desenvolvido pelo pajé da aldeia e é também a cerimônia na qual se
batizam as crianças, que recebem o seu nome após sonhos e visões do pajé. A cerimônia
ocorre geralmente no mês de janeiro, após a colheita de dezembro. Quando acontece do pajé
não sonhar o nome da criança, o batismo fica para a próxima consagração. Esse ritual é
sagrado e se chama Mongaray.
A idéia é contar com a participação de todos os moradores da aldeia, visando que estes
se envolvam no cultivo de produtos que serão consumidos na época dos festejos;
168
principalmente o milho, o cará, a bebida do ritual, o cauim, feito de cana e milho ou cana e
banana, a batata doce, banana, cana de açúcar, mel e cera de abelha, que também é usada para
fazer velas.
As pessoas ali presentes disseram acreditar na necessidade de reviver esses
conhecimentos e transmiti-los para as novas gerações porque tudo faz parte do Ñande Reko
(nosso sistema), ensinado por Tupã, e que trata sobre como viver os costumes, hábitos, a
tradição, a cultura. Perguntei se pessoas de qualquer idade podiam transmitir conhecimentos e
eles disseram que não há idade para isso, mas que os mais velhos é que sabem as técnicas e
conhecem coisas da tradição, que é sagrada e que os mais jovens ainda não conhecem e que
por isso têm coisas que o pai ensina para o filho e outras que a mãe ensina para a filha.
Querem favorecer que surja um novo pajé, pois eles estão há anos sem esse líder
espiritual e o pajé pode orientar ações e decisões1 - 2. Perguntei como saberiam que tinham
um novo pajé e responderam que era necessário ficar observando as pessoas até encontrar
alguém que seja especial no sentido de que desenvolveu conhecimentos religiosos, que
conhece a tradição, que ouviu os anciãos, que conhece os rituais, as cerimônias, é uma coisa
do espírito. Antigamente, quando o pai era pajé3 o filho também poderia ser, mas não
necessariamente, porque poderia a comunidade perceber que outra pessoa seria mais apta.
Além disso, acham que essa seria uma maneira de envolver a comunidade em uma
atividade produtiva, na qual trabalhariam homens e mulheres no cultivo, na manutenção e no
preparo dos produtos necessários para seu alimento.
1 FAUSTO ([1999] 2002: 389) explica que a estrutura de chefia dos tupinambá era tão difusa quanto a das
unidades sociais e que cada maloca dentro de uma aldeia tinha um “principal”, alguém que conseguira reunir em
torno de si uma grande parentela.
2 (Idem: 387) O xamanismo em seus diversos aspectos, permitia gerenciar certas relações com o exterior da
sociedade: com os espíritos, com os animais, com os agentes patogênicos, com um outro mundo onde não havia
morte e escassez.
3 Segundo FAUSTO ([1999] 2002:387) principais e pajés, morubixaba e caraíba, não se opunham, ambas forças
estavam voltadas para o exterior, para o gerenciamento da relação com a alteridade: a função chefe operava no
plano físico, a função xamã no plano metafiísico.
169
Acreditam que como resultado, nasceria também a possibilidade de ampliar a festa,
convidando as comunidades vizinhas, dando condições para a venda de artesanatos e produtos
cultivados na aldeia, situação propícia para a interação com os brancos, sem perder suas
origens.
Após as conversações, fomos caminhando para escolher uma área de aproximadamente
1000 metros quadrados, como estava escrito no projeto, e todos decidiram naquele mesmo
momento, por um espaço mais próximo das casas, por receio de invasores que eventualmente
surgem da praia, pois a aldeia não é cercada e se estende até o mar, margeando 3km de areia.
A disposição das casas 4 dentro da reserva, não obedece a nenhum formato
organizacional simétrico, mas após o pátio central que também funciona como campo de
futebol, as casas se dispõe por um lado, ao longo do caminho que leva para o mar, por outro
lado atrás da escola, espalhando-se mata adentro, e em volta do grande pátio está a escola e a
casa comunitária. As famílias estão ligadas por laços de consangüinidade e amizade, e
segundo Ecocatu foram fazendo suas casas à medida que foram chegando, onde achavam
melhor. Nas ocasiões que perguntei sobre o número de casas, o número de famílias e a sua
localização, as pessoas foram evasivas, dizendo que é difícil precisar porque eles estão sempre
se mudando.
Segundo Maria Elisa Ladeira ([1975] 1983:13), nas sociedades indígenas, o espaço da
aldeia, como espaço determinado pelo modo como se movimentam as pessoas, revela o modo
como elas se relacionam, se deslocam, e a análise das posições e deslocamentos do espaço,
possibilita apreender as linhas demarcatórias que orientam as relações sociais e através delas,
chegar aos pontos de articulação da sociedade.
Paramos na casa de Ecocatu, uma construção de paus de madeira com janelas
pequenas. Dentro, três ambientes cujas portas levam para sala, onde descansam seus três
filhos, uma moça, um rapaz e um menino. Nas paredes estavam pendurados, objetos em
4 O autor explica que (Idem: 384) as aldeias tupinambá costumam compor-se por um número variável de
malocas, geralmente de quatro a oito, dispostas em torno de um pátio central
170
palha, madeira e bambu, feitos por seu marido: arcos, flechas, paus-de-chuva, machadinhas.
Ecocatu mostra o que ela faz, pulseiras, anéis, colares e brincos de pena de aves da região. O
marido também fez uma horta na frente da casa, que ele mesmo cuida e onde também planta
milho.
Retornamos para a casa comunitária, Ecocatu disse que todos deveriam de falar sobre o
que achavam da realização do projeto e eles disseram que queriam comprometer-se com a
retomada do ritual, por achá-lo importante para as pessoas da aldeia e perguntaram como seria
custeado seu trabalho e sua alimentação, durante o preparo da terra e do plantio.
Combinou-se que um grupo de homens iria verificar o custo das sementes, outro iria
conseguir um agrônomo para constatar se a escolha desse pedaço de terra seria mesmo o
adequado, Ecocatu disse que já estava estudando como conseguir o pagamento das despesas.
Sugeri contatar ONGs e o Projeto Fome Zero que apóia projetos para a auto-sustentação.
Aproximadamente um mês depois desta reunião, soube pela vice-diretora que o Projeto Fome
Zero estaria dando o suporte financeiro pedido.
Para o nosso encontro de 16 de setembro, planejamos outra atividade. O meu objetivo
era reforçar o reconhecimento do valor dos seus próprios saberes; a tarefa deveria envolver
pesquisa junto aos mais velhos e culminar com a criação de uma representação artística em
dança, relacionada à utilização do conhecimento adquirido, e por fim o grupo deveria
relacionar a representação artística à criação de aulas para os alunos da escola. Eles me
explicaram que homens dançam com homens e mulheres com mulheres, por isso seria assim
que eles iriam preparar a próxima atividade.
4
a
. reunião. 16 de setembro de 2004.
171
Começamos com todos, homens e mulheres, na sala de aula da escola. O grupo de
mulheres composto por Nheepocaruguara, Yapuana. ,Coema. e Jurumopycoé apresentou uma
dança chamada Tangará. Explicaram que entrevistaram o índio Poióió. de 70 anos de idade,
para conhecer a história e este contou que a dança se origina do povo guarani e passou a ser
adotada pelos tupi-guarani à medida que com o tempo os dois povos foram se juntando há
muitos anos atrás. O nome vem de pequenos pássaros pretos que tem a cabeça colorida e
canto harmonioso:
Conta-se que uma vez a tribo estava passando por muitas dificuldades, fome, guerras,
perda de terras, invasão, e que o pajé rezou e Ñhanderu enviou vários pássaros para ajudar.
Assim, milhares de pássaros pretos com cabeças coloridas invadiram a tribo, enquanto os
índios dormiam. Quando eles acordaram, sua aldeia estava cheia de árvores frutíferas,
plantações viçosas e nem sinal de invasão.
Quando olharam para o céu, os pássaros faziam uma dança muito bonita, para abençoar
a tribo. Enfileirados, alguns iam para frente, outros para trás, outros para os lados, e as
mulheres índias aprenderam a dança dos pássaros, de forma que até hoje ela é usada para
abençoar os guerreiros antes de ir para a guerra e também para atrair a prosperidade para a
tribo. Porém ninguém conseguiu explicar o que os pássaros fizeram, porque todos dormiam no
momento da sua chegada.
A dança foi batizada com o nome de Tangará. Os pássaros são sagrados para os
indígenas por serem o símbolo da alma. Representam o espírito de cada índio e quando este
morre, é um pássaro que vem avisar os parentes. O Tangará atualmente é dançado para vários
fins. É uma dança que constrói, que atrai tudo de bom que se pretende adquirir.
As professoras explicaram que são usadas roupas tradicionais, e o rosto é pintado com
as cores vermelha, branca e preta. A seguir, dançaram o Tangará com os pés descalços. Um
dos homens explicou que antigamente o violão era feito de madeira, com cordas de folha de
coqueiro. Desenvolveram coreografia leve e harmoniosa, usando pés, mãos, braços, os rostos
172
sorrindo, os corpos se entregando em coreografia ao som da música que ficava cada vez mais
forte. Uma das mulheres, com um cocar na cabeça, liderava o grupo.
Concluíram dizendo que é preciso ensinar para as crianças suas músicas e danças, para
que nunca as esqueçam e ensinem as crianças do futuro que o quê o povo precisa pede a
Nhanderu, o criador, que pede à natureza que os ajude e que é importante que a cultura
indígena sobreviva à situação cultural do Brasil atual.
Ubirajara contou então que soube por seus avós que eles têm descendência
tupiniquim, e que dessa descendência teria restado, Shanga Sinhara. e Pedro Butuca, e Guahá.
Depois veio a geração de Aperehá, Amai Panthu, os pais e os avós, principalmente Txaí
Nhawadju . Como eles eram Kaiowá, então na verdade, pela história que chegou-se a
conhecer, este povo seria Tupi Kaiowá e não Tupi-guarani. Os primeiros índios, disse ele,
eram os Tupiniquim e Kaiowá, depois é que vieram os guarani do Paraguai, misturando-se
com todos e hoje até brancos há entre as tribos.
Sobre as danças religiosas, ele contou que havia a casa de reza, onimbodjere awá onde
se realizavam os rituais sagrados. O instrumento usado era a mbaracá e taquá, não usavam
cachimbo, nem viola, nem violão ou violino. “Esses instrumentos são usados pelos guarani”.
Para o batismo e consagração do casamento fazia-se jejum de três dias. Colocavam
água na casca de cedro e deixavam curtindo por três dias, após o quê se realizava o batismo e
os casamentos, realizados pelo pajé, todo fim de ano. Acontecia então a festa com danças e
todos preparavam os corpos com pinturas.
173
Foto 17 - Professoras dançam o Tangará
Setembro de 2004.
O grupo de professores dançou o Txondaro. Explicaram que essa é uma música
importante porque é da cerimônia que prepara os índios para a guerra. Um dos homens leva
um bastão e com ele bate no chão de vez em quando, bem próximo aos pés de alguém,
provocando que aquele que foi escolhido tenha que reagir, pulando. A música vai se tornando
cada vez mais forte e alta. Explicaram que os homens pintam o rosto e o corpo para essa
ocasião.
Depois das apresentações, dispusemos as cadeiras em forma de círculo e conversamos
sobre o significado das músicas e das danças, da socialização de experiências da comunidade e
as maneiras como esses conteúdos poderiam ser trabalhados em sala de aula. Surgiram
diversas idéias para todas as disciplinas.
174
Após o intervalo, escrevi na lousa o tema que planejara tratar naquele dia, se todos
concordassem: a maneira como se constrói o conhecimento. Acharam bom falar disso.
Perguntei-lhes como eles achavam que o conhecimento se construía. Jurumopycoé disse:
“antes, o povo indígena não escrevia, mas homens e mulheres passavam o conhecimento para
as crianças”.
Poraussubara explicou que “o conhecimento é passado no dia-a-dia, conversando com
os mais velhos”. Para Nheepocaruguara.: “Agora estamos resgatando coisas que já estavam
esquecidas e estamos conhecendo outras que nem sabíamos”. Para Ubirajara: “o
conhecimento é isso que os antigos conhecem, os remédios do mato, os bichos, a natureza” e
Guarinissara. disse achar “que o conhecimento é importante para o futuro da aldeia”.
Ecocatu chamou a atenção dizendo: “A minha avó não foi para a escola de branco e
sabia muito”. “Ah, é?” Disse eu, e provoquei: “então vamos ver o que Ecocatu. quer dizer
com isso?”
Usamos suas palavras para ilustrar a concepção de conhecimento que baliza o nosso
trabalho. Fundamentando-me em MACHADO ([1995]1996:15), desenhei na lousa um balde e
expliquei: “já que está-se fazendo uma relação entre o conhecimento do branco e do indígena,
vamos manter a relação. Pelo estudo do branco, achava-se que a gente construía conhecimento
como se fossemos enchendo um balde, cada coisa que entrava na cabeça da gente, ia ficando
lá, quietinha, e com o tempo, chegava outro conhecimento, e assim, tinha gente que tinha mais
conhecimento que outros, porque a pessoa cursava o fundamental, enchia um pouco o seu
balde, depois cursava o ensino médio, enchia mais o seu balde e tudo ficava lá dentro.”
“Pois é, mas é isso que eu acho” disse o professor Essacuanhyró
“Bem, agora, os estudiosos atuais dizem que na verdade o conhecimento se faz em rede
de relações. Vamos ver se eles estão certos, ou se a gente discorda deles?” Desenhei a cabeça
de uma pessoa e demonstrei: “por exemplo, a avó de Ecocatu. não foi para a escola de branco,
175
mas estamos sabendo agora que essa avó tinha muito conhecimento. Pode dizer para nós, qual
conhecimento era esse?” Todos olharam para Ecocatu.
“Ela sabia cozinhar coisas diferentes”. “Então, faço aqui uma linha azul para
representar esse conhecimento, que se liga ao que ela aprendeu da mãe dela e das outras
parentes. Será que ela sabia outras coisas?” “Ela conhecia as plantas que serviam de remédio
para as pessoas da aldeia e usava nas crianças e nos parentes”. À medida que dizia as coisas
que a avó sabia fazer, “ela sabia contar as coisas para as crianças e ensinar as mulheres mais
jovens” eu ia ilustrando com linhas coloridas essas habilidades e com pontos, ou ”nós” o que
ela aprendia. O desenho ficou parecendo uma rede de pescador. Por fim, perguntei: “então, a
gente pode dizer a avó de Ecocatu não tinha conhecimento? Que a cabeça da avó de Ecocatu
era vazia?”
“Não!” Responderam todos. “Ué mas ela não tinha o conhecimento do branco...”
Provoquei. Ficaram pensativos, calados. “Não era conhecimento de branco, mas era
conhecimento!” Alguém falou. “Ah, é? Então é apenas um conhecimento diferente?”.
“É isso mesmo, disse Ubirajara. O nosso conhecimento é diferente do branco”.
Para finalizar, pedi a todos que respondessem por escrito às perguntas conforme abaixo.
Minha intenção era obter deles uma avaliação das atividades, saber de que forma os estava
atingindo, se seria necessário mudar algo, ou não. Pretendendo preservar o direito à opinião
pessoal e expor a sinceridade das respostas, os autores são identificados apenas como
Participantes.
PERGUNTA 1.O que você pensa do povo tupi-guarani?
RESPOSTAS:
Participante 1: Eu acho que é um povo criado, pois falamos o tupi e o guarani, uma
mistura de duas etnias.
Participante 2: Penso que somos um povo muito carente.
Participante 3: Um povo inteligente e tradicional.
176
Participante 4:Um povo que luta para não perder sua cultura.
Participante 5: O povo tupi-guarani é um povo batalhador, guerreiro, por isso tenho
orgulho dele.
Participante 6. Que é um povo unido e que luta pelos seus direitos.
Participante 7: Penso que tem se misturado muito e por isso está acabando o índio.
Participante 8: Não respondeu.
PERGUNTA 2. A cultura tupi-guarani está presente em suas aulas? Como?
RESPOSTAS:
Participante 1: Eu tento passar a história do povo indígena, pois da cultura tupi-guarani
mesmo, sei pouco.
Participante 2: Sim aqui na nossa aldeia os professores ensinam.
Participante 3: Não respondeu.
Participante 4: Sim, nas aulas de artesanato, aulas que falam sobre a natureza.
Participante 5: Ensinando na língua materna e também no dia-a-dia com seus pais.
Participante 6: Na tradição, no artesanato e na linguagem.
Participante 7: Como o não-índio.
Participante 8: A cultura está sempre presente.
PERGUNTA 3. Como você vê a escola indígena?
RESPOSTAS:
Participante 1: Vejo facilidade para a comunicação e mais interesse em preservar e ensinar
cultura indígena, é importante para a identificação de cada aluno.
Participante 2: Eu vejo que está sendo muito boa para as crianças
Participante 3: Veio numa hora boa, porque é uma escola diferenciada e as crianças
aprendem o português e a língua indígena.
Participante 4: Uma escola voltada para a cultura indígena, mas é preciso que as crianças
tenham também o conhecimento dos não-indígenas para poder lutar pelos seus direitos.
Participante 5: Vemos que foi muito bom por parte da Educação, resgatando a nossa
cultura e dando um espaço para nossos alunos serem alguém na vida.
Participante 6: Uma escola tradicional onde as crianças vão aprender a cultura.
177
Participante 7: A escola indígena é diferente porque é ensinada a língua materna.
Participante 8: Vejo como um exemplo para outras escolas, porque trabalha a cultura e a
própria língua.
PERGUNTA 4: Costumam ocorrer mudanças? Quais?
RESPOSTAS:
Participante 1: Há. E a mais preocupante é o comportamento. Pelo fato do professor ser
alguém ligado a eles, não respeitam.
Participante 2: Acho que ocorrem sim.
Participante 3: Acho que ocorrem sim.
Participante 4: Sim. Quando uma classe tem muitas crianças, temos que ter mais atenção.
Participante 5:Costumam ocorrer sim. As palavras novas que surgem no dia a dia.
Participante 6: Acho que muda muita coisa entre os costumes e as tradições.
Participante 7: Sim A mudança é que as crianças maiores só falam português.
Participante 8: Não ensino.
PERGUNTA 5: Você acha que isso interfere na educação indígena? Por que?
RESPOSTAS:
Participante 1: Sim. Atrasa muito, o que temos que ensinar. Preocupar-se com o
comportamento toma quase que o tempo todo.
Participante 2: Sim. Porque às vezes os professores querem dar alguma coisa e não
conseguem.
Participante 3: Não atrapalha porque o que seria dado no dia anterior é dado no dia
seguinte.
Participante 4: Na educação não interfere mas interfere nas aulas dos não-indígenas.
Participante 5: Não porque vemos que também precisamos aprender a cultura do não-
indígena.
Participante 6: Não atrapalha em nada.
Participante 7: Sim porque quando a gente vai ensinar ou falar algumas palavras eles não
entendem.
Participante 8: Não ensino.
178
PERGUNTA 6: Onde você aprendeu a ensinar?
RESPOSTAS:
Participante 1: Com os livros e comigo mesmo. Eu me coloco em estudo para melhor
aprender a ensinar.
Participante 2: Ainda não aprendi.
Participante 3: Ainda não aprendi.
Participante 4: Me formei no magistério indígena.
Participante 5: No magistério indígena.
Participante 6: Não ensino.
Participante 7: No magistério indígena..
Participante 8: Agora estou estudante mas pretendo dar aula.
PERGUNTA 7: O que você acha de sua formação?
RESPOSTAS:
Participante 1: Ainda não fiz o curso de pedagogia, mas vou fazer. Comecei a ensinar
porque fiz o médio e porque levo jeito para isso..
Participante 2: Não sou professora.
Participante 3: Não sou professora.
Participante 4: Foi muito rápida, mas deu para aprender muita coisa..
Participante 5: Acho muito importante para transmitir o que aprendi.
Participante 6: Ainda não sou formado.
Participante 7: Muito pouco tempo e muita matéria.
Participante 8: Estou estudando.
PERGUNTA 8: Por que você ensina?
RESPOSTAS:
Participante 1: Porque é maravilhoso ensinar e ver que você colocou aquela informação na
cabeça de uma criança que não sabia nada. É muito bom fazer as pessoas serem sábias.
Participante 2: Eu ainda não estou ensinando mas gostaria muito de poder ensinar.
Participante 3: Não ensino.
179
Participante 4: Porque gosto de trabalhar com crianças e para poder passar a nossa cultura.
Participante 5: Para as crianças terem um futuro melhor..
Participante 6: Porque sou liderança e luto pela comunidade, costumes e tradições.
Participante 7: Ensino as crianças para facilitar a saída para a cidade e para
comercializarem.
Participante: Pretendo dar aula de arte, que é o que eu gosto.
PERGUNTA 9: O que você ensina?
RESPOSTAS:
Participante 1: Ensino português, língua materna, história, geografia, matemática, artes.
Idade 6 a 9 anos.
Participante 2: Gostaria de ensinar a nossa língua.
Participante 3: Ainda não ensino.
Participante 4: Língua materna, língua portuguesa, história, geografia. Idade: 8 a 14 anos.
Participante 5: Português e cultura indígena.
Participante 6: A cultura porque sou cacique.
Participante 7: Língua portuguesa e materna.
Participante 8: Não ensino, mas gostaria de ensinar artes.
PERGUNTA 10: Diga o que você acha mais fácil quando ensina e por que.
RESPOSTAS:
Participante 1: Quando ensino língua materna porque eles gravam bem o que falo..
Participante 2: Gostaria de ensinar a língua tupi-guarani .
Participante 3: Não ensino.
Participante 4: História. Quando se fala, vai-se lembrando muitas coisas.
Participante 5: Não encontro dificuldade para ensinar. Às vezes na leitura.
Participante 6: Não ensina.
Participante 7: A língua materna porque é minha língua.
Participante 8: Não ensino.
PERGUNTA 11: Diga quais são as suas dificuldades e por que.
180
RESPOSTAS:
Participante 1: Tenho mais dificuldade em lidar com o comportamento deles. São
agressivos e não sei como agir.
Participante 2: Não ensino.
Participante 3: Não ensino.
Participante 4: Minha dificuldade maior é fazer uma criança aprender a ler.
Participante 5: Para controlar a classe. Às vezes isso se torna um pouco difícil..
Participante 6: Não ensino.
Participante 7: A dificuldade é no português porque eu não conheço a cultura deles.
Participante 8: Não ensino.
PERGUNTA 12: O que você achava da inteligência do povo indígena?
RESPOSTAS:
Participante 1: Achava que não davam valor para si próprios, faziam as coisas por fazer,
sem se valorizar..
Participante 2: Eu acho que o povo indígena tem boa inteligência..
Participante 3: A minha aumentou um pouco depois do estudo que tivemos.
Participante 4: São povos muito inteligentes, tem ideais legais, principalmente os mais
velhos.
Participante 5: Muito importante, porque vemos e aprendemos com os mais velhos.
Participante 6: Vem dos antepassados.
Participante 7: Muito inteligente porque quase todos conhecem raízes e ervas.
Participante 8: Apesar da maioria não ter estudo, são muito inteligentes.
PERGUNTA 13: O que você acha agora?
RESPOSTAS:
Participante 1: Agora aumentou a auto-estima e a vontade de crescer cada vez mais..
Participante 2 Eu acho que agora está bom.
Participante 3: Agora melhorou muito.
Participante 4: continuam inteligentes.
Participante 5: Continuo pensando da mesma forma.
181
Participante 6: Que devemos lutar..
Participante 7: Agora a maioria procura o médico.
Participante 8: Não respondeu..
PERGUNTA 14: Como você vê o conhecimento na cultura do povo indígena?
RESPOSTAS:
Participante 1: Estamos resgatando coisas que já estavam esquecidas e conhecendo outras
que nem sabíamos.
Participante 2: Eu gostaria de aprender mais.
Participante 3: Do que eu vejo na cultura, eu gostaria de aprender mais.
Participante 4: Antes eles não escreviam, só passavam o conhecimento para as crianças.
Participante 5: No dia-a-dia, conversando com os mais velhos.
Participante 6: Quero aprender mais com os mais velhos.
Participante 7: O conhecimento é isso que os mais velhos conhecem.
Participante 8: Acho que o estudo da inteligência é importante para o futuro da aldeia.
PERGUNTA 15: Como você vê agora?
RESPOSTAS:
Participante 1: Agora o interesse aumentou, a procura pelos mais velhos aumentou e
sentimos a falta dos que morreram.
Participante 2: Eu acho que temos que aprender muita coisa que ainda não aprendemos.
Participante 3: Ainda gostaria de aprender mais.
Participante 4: Agora o conhecimento é escrito..
Participante 5: Para mim não mudou nada. .
Participante 6: Que ainda estou aprendendo
Participante 7: Agora eles esqueceram da tradição.
Participante 8: Eu vejo o conhecimento do povo indígena muito importante para si e para o
futuro.
PERGUNTA 16: O que foi visto e debatido até agora, tem importância para o seu
trabalho como professor? Por que?
182
RESPOSTAS:
Participante 1: Sim, porque para mim que não tenho muita experiência, está sendo ótimo.
Hoje eu sei que sou capaz de desenvolver um aluno que está indo mal.
Participante 2: Para mim que não sou professora, eu acho muito importante.
Participante 3: Sim é bom para as crianças. Senão tivesse professor, nossos filhos estariam
sem estudar. Por isso é importante o trabalho do professor.
Participante 4: Sim, para melhorar o meu trabalho e ajudar meus alunos.
Participante 5: Sim. Acho importante porque foi um trabalho com luta e garra e aprendi a
superar muitas críticas e barreiras que surgiram na minha carreira como professor.
Participante 6: Sim. Muito importante para nós e quero aprender mais.
Participante 7: não respondeu.
Participante 8: Sim. Porque faz a gente refletir sobre a inteligência do povo indígena.
17. CRÍTICAS/SUGESTÕES:
RESPOSTAS:
Participante 1: Está realmente esquecida a cultura e a língua, muito se quer e pouco se tem.
Pouco se procura, falta interesse.
Participante 2: Não respondeu..
Participante 3: As aulas, os estudos, fizeram com que aprendêssemos muitas coisas boas.
Participante 4: Ainda não tenho nenhuma crítica. Só espero adquirir mais conhecimento.
Participante 5: Para mim está sendo muito importante, porque aprendemos muitas coisas
novas. Por isso acho boa esta aprendizagem.
Participante 6: Não respondeu.
Participante 7: Para mim o tupi quase acabou. As crianças só falam o português. Quando o
pai é índio, a mãe não é assim, quando a mãe é índia, o pai não é, e aí está a dificuldade.
Participante 8: não tenho nem crítica nem sugestão.
Ao encerrar esta reunião, propus dedicar alguns minutos para que, em grupos,
conversassem sobre a maneira como na vida cotidiana, as inteligências e o conhecimento
ajudam a resolver problemas e a criar. “Criatividade?” Perguntou alguém. “É”. Disse outro.
“É quando você faz outras coisas”.
183
Observei que o cacique5 fez questão de participar da maioria das reuniões. Quando faltou,
mandou avisar que estava fora da aldeia. Tendo notado que o grupo tinha características
diversas quanto a sua formação e que apenas a metade, quatro, de fato ensinavam, considerei
que seria importante dedicar dois dias a acompanhá-los. Conversei com a vice-diretora sobre
essa possibilidade e com sua concordância, informei ao grupo dessa decisão e que voltaríamos
a trabalhar juntos, apenas após essas duas semanas.
Foto 18 - Professores dançam Txondaro
Setembro, 2004.
5 Segundo FAUSTO ([1999] 2002: 390) entre os tupi não há uma regra mecânica de sucessão, dependendo do
evento, da circunstância, dos acontecimentos. Esse é um caráter performativo da estrutura tupi, preservando
sempre um “resíduo de incerteza” – não redutível à distinção norma e prática –que aponta para uma noção não
elementar de norma e regra. Esse intervalo ou resíduo de incerteza, segundo FAUSTO, é o espaço do político na
sociedade tupinambá.
184
5
a
. reunião: 23 de setembro de 2004.
Visitei, em seu horário de aula, a professora Nheepocaruguara que ensina para o 1
o
. e
2
o
. graus e a professora Jurumopycoé que ensina para o 3
o
. e 4
o
. graus. Sentei-me em uma
das mesas ao lado dos alunos e assisti a sua prática. Ambas ensinam no mesmo espaço, ao
mesmo tempo.
A lista de presença dos alunos da professora Nheepocaruguara é uma folha com o
nome da criança e para todos os dias do mês há um quadradinho com um desenho que ela deve
colorir em sinal de presença. As crianças entravam e saíam da sala; não pude identificar bem
se devido a minha presença ou se usualmente eles são assim agitados. Um menino de
aproximadamente 7 anos, muito zangado, olhava para a janela, calado. Outros meninos
brigavam entre si. Algumas meninas tinham a cabeça recostada sobre o tampo da mesa e
conversavam, outras entravam e saíam, enquanto Nheepocaruguara pedia atenção. Ela
escrevera algumas palavras em português na lousa e fazia ditado.
Ao lado, a professora Jurumopycoé, dizia aos alunos que deveriam de fazer um
desenho. As crianças, que também conversavam entre si, aos poucos puseram-se a preparar a
cartolina para desenhar e a partilhar lápis de cores. Observei que cada um desenhava o que
queria, e à medida que necessitavam, solicitavam a presença da professora. No fim da aula,
ela falou brevemente sobre o que fizeram e todos foram embora.
Após a aula, conversei com elas. Jurumopycoé diz que até nosso curso, ela não sentia
confiança de dizer para as crianças, “se você tentar, vai conseguir”, agora ela sabe que todos
temos inteligência e que os alunos dela também podem. Também sabe como fazer pesquisa
ali na aldeia mesmo, indo aos mais velhos fazer perguntas, apesar de tudo ter mudado
bastante, e que no dia-a-dia eles não falam o tupi-guarani.
Procuro saber como é sua relação com os livros didáticos que utiliza, se a ajudam ou se
há dificuldades. Ela diz que usa os livros enviados pela Secretaria de Estado, mas são livros
185
para escola de branco, por isso ela faz adaptações, porque eles se referem a coisas que não há
na aldeia. Mostra-me nos livros; “por exemplo: semáforos, prédios, shopping-center...”
Folheio um dos livros e vejo o desenho de uma casa de palha e no texto logo abaixo, lê-se:
“antigamente, o homem primitivo morava assim.” Folheio outro e leio: “Como todo mundo
sabe, o Frankenstein...”
Ela diz usar principalmente o livro de língua portuguesa. Eu lhe pergunto que
educação ela quer para seu alunos, e ela diz que deseja que seus alunos consigam lutar por
seus ideais, que agora eles têm dificuldade de sair da aldeia, de defender-se e por esse motivo
têm que saber coisas das duas culturas. “A gente conversa com os pais e a gente ensina como
será difícil. Muitos desistem de sair da aldeia porque as pessoas tiram sarro deles lá fora. Mas
eu digo que não podem se deixar abater, têm que lutar e conseguir.”
Pergunto-lhe quais idéias são importantes para seus alunos saberem, na sua formação.
Ela diz que suas idéias são localizadas na aldeia, que “aqui a gente vive de um jeito, lá fora é
outra vida. Aqui quase não tem briga. Quando as pessoas vêem carro, não tem idéia de como
é perigoso lá fora, a gente ensina que quando sair, não pode ir caminhando pela rua,
descuidado.”
Em sala de aula, acrescenta a professora, tem que se trabalhar conteúdos para fora e
para dentro da aldeia. Porém algumas crianças, quando há ditado em português, não entendem
nada. É o caso de três crianças que só falam tupi-guarani, “eles ficam olhando e perguntam: o
que é que ela está falando? Então, para que é que a gente mora em uma aldeia, se não fala a
língua? Tem também o diferencial das roupas, mas o mais bonito é a língua.” Diz ela.
Digo-lhe que dentro de nossas atividades, a proposta agora seria ir para a prática
pedagógica, juntando as duas teorias que trabalhamos em sala de aula e pergunto se ela
gostaria de começarmos a pensar juntas um tipo de aula chamada transdisciplinar.
Justifico, explicando porque seria interessante para suas aulas e de que maneira
ajudaria a dinamizá-las. Falo que é um processo no qual trata-se de usar duas disciplinas ou
186
até mais, mantendo cada uma suas características, porém uma contribuindo com a outra e a
partir desse encontro, usando contos, músicas, desenhos, danças e problematizando. A
professora se entusiasma e eu lhe peço que ela escolha o material com o qual possamos
começar. Ela diz:
“Meu avô6 sonhou que estava trabalhando com artesanato e que ele fazia um colar de
capiá. Entre cada conta, ele colocava uns pauzinhos de bambu. Um de um lado, outro do
outro lado, e um pintadinho no meio. Quando ele viu, estava desenhando o sol, a lua e as
estrelas.”
Pensando de que maneira esse material poderia ser usado para fins didáticos, ela disse
que essa narrativa poderia ser dita em tupi-guarani, servindo como ditado e depois os alunos
poderiam fazer a tradução em português. Em outra aula, ela poderia usá-lo para a matemática;
podendo pedir que os alunos mesmos desenhassem seu colar, na quantidade de contas e
estrelas que ela precisasse trabalhar, e para encerrar, pediria que o pintassem.
A seguir conversei com a professora Nheepocaruguara Ela ensina para crianças da
primeira e segunda série, disse que a aula dela mudou, porque ela tem ao mesmo tempo
crianças muito atrasadas e outras que estão melhor. Antes, isso parecia muito desanimador.
Agora ela insiste mais com cada um. Ela diz perceber que às vezes a criança está apenas com
preguiça, naquele dia. “Agora, eu não desisto fácil.” Acrescentou.
“Com as crianças maiores, o problema é que outras coisas chamam a atenção delas”.
Pergunto se ela vê possibilidade de ter alguém que a ajude, alguém que esteja aprendendo. Ela
diz que seria bom, porque há os mais atrasados que pedem acompanhamento, e aqueles que
estão mais adiantados; quando acabam a tarefa, já querem mais trabalho. Outro problema para
6 Os thuyuae eram os anciãos ou velhos. Nesta categoria entravam os homens cuja idade ia além de 40 anos. Era
considerada a idade mais honrosa, cercada de respeito e admiração, idade dos soldados valentes, capitães
prudentes. Tinham poder político e quando falavam eram ouvidos com todo silêncio. As pessoas mais jovens
dispensavam-lhes tratamento respeitoso, honrando-os em todas as situações. À noite contavam histórias para os
mais jovens (FERNANDES, Florestan, 1948: 240).
187
ela, é o fato de que a maioria dos pais quer que as crianças falem somente o português e a
idéia da escola é que se fale as duas línguas.
Explico a idéia de trabalhar baseada no conceito de transdisciplinaridade. Ela gosta do
conceito que exponho e das possibilidades que se apresentam; planejamos algumas aulas com
explorações entre as árvores, na areia do mar, na quadra de futebol, entrevistas com os tios,
visitas aos mais velhos, às comunidades indígenas vizinhas, pesquisas para descobrir
brincadeiras e canções antigas dos tupi-guarani e seu significado.
6a. reunião: 30 de setembro de 2004.
Logo ao chegar à aldeia, ouvi vozes de crianças cantando. Senti uma sensação de
prazer e alegria quando percebi que era em tupi-guarani. Aproximei-me da escola e vi que as
crianças menores, da 1
a
. e 2
a
. série, cantavam enquanto entravam em sala de aula, seguindo em
fila indiana atrás da professora.
Neste dia trabalhei com o professor de cultura indígena, Quiriri.. Primeiramente
observei-o, dando a sua aula na casa comunitária, para um grupo de aproximadamente seis
adolescentes com idades entre 12 e 17 anos. Ele ditava palavras em tupi-guarani e os alunos
escreviam. De vez em quando certificavam-se com o professor sobre o uso das letras. Após o
intervalo, conversamos.
Alguns alunos permaneceram para ouvir nossa conversação7. Ele disse que aprendeu
bastante em nossas reuniões. “Estou sempre querendo aprender”. Falou. “Agora mudou,
porque entendo melhor os alunos, alguns têm mais dificuldades que outros. De primeiro, eu
achava que eles tinham que saber já, quando eu explicava. Eu dizia por que vocês não
entendem? Mas agora eu sei que cada um é diferente do outro.”
7 Crianças e adolescentes participam de qualquer conversação entre adultos.
188
Falamos sobre as suas aulas. Ele disse que acha que os alunos já chegam cansados,
porque vêm da escola de branco, onde estudam. Também acha que precisa de material sobre a
história do povo tupi-guarani, para que ele possa ensinar aos alunos. Perguntei-lhe se gostaria
de conhecer outras maneiras de trabalhar os conteúdos e ele concordou.
Perguntei-lhe o que ele sentia quando olhava à sua volta. Ele levantou a cabeça e
olhou. Ficamos assim calados durante algum tempo enquanto ambos passeávamos os olhos
pelo mato, em direção à entrada da aldeia, o campo de futebol, as árvores, a escola. Dois
adolescentes permaneciam sentados conosco e do lado de fora, uma menina com um bebê no
colo, silenciosos.
Após explicar-lhe o conceito de transdisciplinaridade, planejamos algumas aulas com
pesquisa sobre as casas da aldeia, os pedaços de cerâmica que se encontram no chão de areia,
as folhas que curam doenças, os parentes que chegam, as pessoas que sabem curar e as várias
trilhas que há na aldeia.
Eu me lembrava de GEERTZ ([1983] 2003:181), que diz que em qualquer lugar do
mundo, certas atividades parecem estar especificamente destinadas a demonstrar que as idéias
são visíveis, audíveis e será preciso inventar uma palavra – tactíveis; que permitem aos
sentidos, e através destes, às emoções,comunicar-se com elas de uma maneira reflexiva, e que
a variedade de expressão artística seria resultado da variedade de concepções que os seres
humanos têm sobre como são e funcionam as coisas.
7a. reunião: 07 de outubro de 2004.
Quando cheguei à aldeia, dei-me conta de que estava sendo construída uma casa de
palha em frente à escola. O cacique e alguns índios conduziam madeiras e palhas, enquanto
algumas mulheres conversavam na cozinha da casa comunitária, preparando a comida.
189
Primeiramente, dirigi-me à sala da vice-diretora, com intenção de ouvir a sua avaliação sobre
o desenvolvimento de meu trabalho junto aos professores. Ela disse que os professores
estavam bastante satisfeitos que todos estavam se sentido ajudados e que agora está melhor.
Que para ela mesma foi muito importante, porque agora se sente mais tranqüila, diz que vivia
ansiosa e agora se sente melhor com relação ao desempenho dos professores.
Pergunto que tipo de pessoa ela quer que os alunos se tornem. Ela diz que quer que
sejam cidadãos, que conheçam e respeitem não somente a cultura indígena, mas as outras
culturas. E que os brancos também respeitem a cultura indígena. Diz desejar a integração
entre as duas culturas.
Foto 19 - Crianças tupi-guarani vão para a sala de aula cantando
Outubro, 2004
190
Ela conta que sente que no momento ela precisa de uma coisa mais espiritual, quer
dedicar-se às coisas do espírito. Pergunto o que aconteceu com aquelas mães do começo, de
nossas atividades, que quando eu cheguei estavam em sua sala, reclamando. Ela diz que não
houve mais reclamações. Que houve outro tipo de problema com outras crianças, mas que ela
chamou os pais, conversaram e agora tudo está calmo.
Pergunto quais idéias ela acha que devem ser passadas para as crianças e ela diz que
neste momento o tupi-guarani não conhece nem sua própria cultura nem a do branco. Que os
professores teriam que estar falando da sua cultura, e depois de cultura do branco mas que isso
é difícil porque tudo está começando e nesse sentido o nosso trabalho está ajudando.
Quando pergunto como ela vê o currículo que ela recebe para dar em sala de aula, ela
diz que não conhece nenhum currículo. Conta que quando começou a dar aula, há muitos anos
atrás com uma outra professora, ela observava e de vez em quando perguntava alguma coisa.
Mas nunca ninguém lhe falou de currículo. Perguntei-lhe como via o projeto pedagógico. Ela
disse que fez o projeto pedagógico pela primeira vez para este ano, que foi muito bem
recebido pela diretoria e que para o próximo ano, haverá melhoras.
Perguntei de que maneira os professores decidem o quê e quando um determinado
conteúdo será dado em sala de aula, se ela se reúne com os professores ou se eles decidem
sozinhos. Ela diz que cada um tem seu pensamento e que ela prefere não interferir. Acha que
os alunos têm que aprender coisas da vida do indígena e não ficar presos à sala de aula. Para o
ano que vem, quer programar visita a outras aldeias para enriquecer as idéias das crianças com
outros mundos.
Sobre os conteúdos dos livros de uso na aldeia, ela diz que são livros do ensino do
branco, que no ano passado ela adequou muitas coisas. Por exemplo, havia textos falando de
“pizza”. Ela se perguntava “como é que eu vou falar disto que os meus alunos não conhecem?
Primeiro teria que explicar o que é a pizza.” Então ela dizia que se tratava de alguém que ia
para a floresta caçar e lá matava um macaco... e por aí acabava inventando outra história. Não
há nada apropriado especificamente para a escola indígena.
191
Naquele dia tivemos um reencontro alegre entre professores e demais participantes da
comunidade. Dedicamos a nossa reunião a desenvolver toda sorte de atividades
transdisciplinares, criando aulas para todas as disciplinas e prevendo atividades nas quais
surgiam atividades livres.
Eles inventaram poesias, teatro e desenhos, ganhando significados para si mesmos.
8a. reunião: 15 de outubro de 2004.
Quando cheguei à aldeia, a casa de palha em frente à escola já estava pronta. Haviam
colocado mesas dentro da casa, dispondo objetos para vender: colares, brincos, pulseiras,
cocares, cestos, maracás, petecas, flechas em miniatura. Chamou-me a atenção as caixas de
som instaladas sob uma árvore e uma espécie de biombo improvisado que dissimulava o
aparelho de som e CDs.
Logo chegaram ônibus, camionetes, a mídia, autoridades, e a aldeia encheu-se de
alunos brancos, uniformizados, que transitavam entre os indígenas, curiosos. Como parte do
projeto Escolas Irmãs, a aldeia recebia a visita de uma escola do interior do Estado de São
Paulo. A comunidade tupi-guarani através da professora Jurumopycoé deu as boas vindas e
passou-se a palavra aos representantes da escola-visitante.
Falaram ao microfone algumas coordenadoras e professoras, todas sem exceção,
chorando, dizendo estar muito emocionadas por estar ali, naquele momento, que haviam
sonhado e planejado muito, há muito tempo. Todas agradeciam enxugando as lágrimas por
terem essa oportunidade de estar entre os índios, e eles olhavam para elas, perplexos.
Presentearam a escola com caixas de livros e material didático-pedagógico. Depois que todos
falaram, e não sei por que motivo, chamaram-me ao microfone para que eu também falasse.
Tomada de surpresa e no meio de minhas elucubrações, disse primeiramente que eu não iria
192
chorar, mas que queria apenas dar a todos os parabéns. Houve um silêncio pesado que
pareceu durar algum tempo e eu emendei: “parabenizo a todos por este bonito encontro”. E
me retirei.
O grupo de alunos e professores indígenas desenvolveu duas peças teatrais
relacionadas a mitos, cantaram, dançaram e em seguida os alunos brancos também fizeram
apresentação de músicas. Finalmente, na casa de artesanato venderam-se objetos e jovens e
crianças não-indígenas tiraram fotos, cada um ao lado de um indiozinho.
Foto 20 - Meninas tupi-guarani representam peça teatral
Outubro, 2004.
193
9a. reunião: 21 de outubro de 2004.
Para este encontro, planejei tratar da origem do povo nativo das Américas. Usando do
mapa e das explicações de Manuela Carneiro da Cunha, no livro História dos Índios no Brasil,
desenhei na lousa as trajetórias possíveis, para as pessoas que há milhares de anos vieram da
Ásia para a América. Contei-lhes que eu mesma nasci no Peru, onde há povos de diversas
etnias e falam o quéchua, o aymara, e outras línguas.
Havia poucos participantes, porque acontecia nesse dia uma reunião de dirigentes
indígenas do Estado de São Paulo, que segundo os professores disseram, estavam reunidos
para discutir interesses das comunidades. No período que estive na aldeia, houve a mudança
de dois caciques; porém observei que geralmente a representação da comunidade nos eventos
fora da aldeia, era feita por Ecocatu.
Os professores folhearam o livro, demorando-se nas imagens e conversando entre si
sobre o que viam. Lemos algumas partes do livro e conversamos sobre o trecho “Os índios
como agentes de sua história” (CUNHA [1992] 2002:18). Do texto, chamou-lhes a atenção
dois aspectos interessantes, um sobre o comentário que a autora faz sobre a percepção que o
indígena geralmente tem da política e da consciência histórica, na qual os índios se vêem
como sujeitos e não como vítimas, e outra sobre a gênese do homem branco nas mitologias
indígenas, que difere em geral da gênese de outros “estrangeiros” ou inimigos, porque
introduz, além da alteridade, o tema da desigualdade no poder e na tecnologia. Pelo mito, o
homem branco seria alguém que teria pertencido ao grupo e que teve que fazer uma escolha.
Perguntei ao grupo como essa questão política e esse mito eram vividos por seu povo.
Eles se entreolharam e falaram entre si em tupi-guarani. Ecocatu explicou que de fato, eles
tiveram que ter muita força para resistir ao longo da história até a atualidade, e que o tupi-
guarani é um guerreiro.
194
Quanto ao mito, ela disse que realmente, antes eram todos um povo só e que andavam
juntos pelo mato; mas que tiveram que fazer uma escolha e houve aqueles, os indígenas, que
preferiram desenvolver o espírito e outros, os brancos, que escolheram explorar a terra para
tirar tudo dela, deixando-a sem riquezas e explorar também os seus irmãos. Alguns os
chamam vermes da terra.
Para finalizar, presenteei a escola com o livro de Manuela Carneiro da Cunha e o livro
“Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo”, de John Manuel Monteiro,
desejando que o estudo da história contribua para a construção do futuro que eles desejam.
Eles se disseram interessados em conhecer os povos do meu país e me comprometi em
mostrar-lhes alguma coisa na próxima reunião.
10a. reunião: 04 de novembro de 2004.
Iniciando a nossa reunião, mostrei livros com fotos de ruínas de edificações peruanas
antigas, falei da medicina, da arquitetura, a engenharia, as comidas, da agronomia e da
astronomia peruana, mostrei objetos do artesanato de um dos povos nativos, os incas, que
falam quéchua, moradores das montanhas dos Andes, e da região desértica, Ica, originária das
antigas culturas Nazca e Paracas, anteriores aos incas, beirando o Oceano Pacífico, onde
nasci.
Também mostrei fotos da cidade de Machu-Pichu para onde os incas fugiram quando
da chegada dos espanhóis e da antiga capital, Cuzco, com alterações executadas pelos
espanhóis, e como se vê atualmente. Eles se mostraram impressionados com aqueles edifícios
de grandes pedras, as montanhas, a neve, o vulcão.
Sobre Lima, viram o Palácio da Santa Inquisição, usado pelos padres espanhóis para
castigar os que pecavam e os grandes centros para venda de trabalhos artesanais do povo
195
nativo. A antiga cultura, resistente, transformada e vivida intensamente e as atuais associações
de classe, de gênero, de questões políticas e de direitos humanos.
Observaram as bonecas feitas em cabaças com pequenos desenhos feitos à mão, o
poncho colorido feito em lã de alpaca, as roupas de lã grossa das mulheres e dos homens.
Perguntaram sobre os instrumentos musicais, as datas de festas e como era o relacionamento
com os brancos. Falei da relação histórica com os espanhóis, da educação intercultural
bilíngüe, que enfrenta as dificuldades do contexto sócio-político-econômico-cultural e as
inerentes da globalização.
Para finalizar, agradeci-lhes por terem me recebido em sua casa, por tudo o que aprendi
com eles e todos os momentos que vivemos juntos, disse-lhes que tenho muita consciência do
que faço e a responsabilidade na educação é uma coisa que me preocupa profundamente. Por
isso, desejo que o pouco que lhes dei, sirva mais que para o desenvolvimento técnico, para a
beleza do espírito. Presenteei a vice-diretora com um cesto colorido, tecido pelas mãos de
indígenas peruanas.
Os oito professores que estavam ali presentes falaram. Disseram que agradeciam as
aulas, que agora sabiam como valorizar sua cultura e trazê-la para a sala de aula, que agora
sentem que não têm que ter vergonha de nada, mas ao contrário, criar coisas novas para
vender. A vice-diretora agradeceu porque compartilhei com eles o meu conhecimento. Disse
que o conhecimento e experiência estão agora no tempo e no espírito de cada uma daquelas
pessoas e presenteou-me com um arco e flecha de tamanho natural, usado pelos guerreiros
tupi-guarani desde os ancestrais.
3.5.2. Terceiro Momento Empírico:
196
No terceiro momento empírico, e último estágio, busco analisar os dados descritos
no fenômeno estudado, ressaltar significados expressos pelos sujeitos, apontar
regularidades e peculiaridades. Faz-se necessário saber ler os dados e em cumplicidade
com o tempo, saber esperar as conseqüências. Submeto-me à avaliação daqueles que
avaliam: ouço a assistência pedagógica das escolas indígenas da região, a supervisão da
educação indígena, a diretoria regional e a diretoria responsável pelo Núcleo de
Educação Indígena do Estado de São Paulo e me auto-avalio.
Analiso o processo, reflito sobre a experiência vivida. A partir da idéia de Paulo Freire
de que “viver é recriar” ([1982] 2005:25) percebo que viver a educação indígena é recriá-la
em seu currículo, nos seus fundamentos, em seus conteúdos, na sua prática, exatamente como
faz a professora Jurumopycoé por sua própria iniciativa. Esta idéia me auxilia a compartilhar
a riqueza do processo mediador, ciente de que apenas a liberdade do espírito é condição para o
processo de criação; que não podemos libertar os outros e de que os seres humanos não podem
tampouco libertar-se sozinhos, porque se libertam a si mesmos em comum, mediante a
realidade que devem transformar (FREIRE, [1978]1987).
A avaliação dos que avaliam.
1
a
. avaliação: 10 de dezembro de 2004. Assessor Técnico Pedagógico.
A responsável também assessora outras escolas do Estado e considera que a área indígena
é a que mais requer dela. Preocupa-a porque é uma área nova e neste momento todos se
sentem aprendendo. Recentemente foi nomeada para a comissão de ética regional, que faz
parte do NEI – Núcleo de Educação Indígena, tendo a função de acompanhar o ensino, o
andamento das aulas, desde a elaboração do diário de classe, até a troca de professores. Diz
que procura ouvir e trocar idéias com os indígenas.
197
Com relação a esta pesquisa-ação: peço-lhe que relacione o primeiro semestre ao segundo,
quando trabalhei com eles, e diga se há algum tipo de alteração visível. Ela diz que soube por
eles mesmos que ficaram satisfeitos e felizes, que o trabalho realizado colaborou bastante para
elevar a auto-estima do grupo, para o ânimo pelo resgate da cultura e inclusive que o resto da
comunidade também gostou. Que se surpreenderam de ver quantas coisas faziam e não davam
importância nem valorizavam e agora dizem que podem ver-se melhor.
A professora disse achar que eu tenha trabalhado “algo mais sistematizado” para ter obtido
esse tipo de resultado “e para que apareça dessa maneira”.
Quando pedi que ela comparasse essa aldeia com uma outra aldeia tupi-guarani, ela
disse que cada aldeia tem realidades diferentes:
Por exemplo, a aldeia X já está bem organizada, já tiveram um professor muito bom,
atualmente falecido. Eles são muito politizados, têm a auto-estima desenvolvida, é uma família
mais unida, já há uma estrutura forte anterior. Eles não têm o mesmo tipo de problemas que se
apresentavam na aldeia Piaçaguera, na qual se percebia que a comunidade não aceitava bem a
escola e portanto, o apoio era mais difícil.. Já a aldeia X não tem esse problema, as crianças
lêem, escrevem bem e participam das atividades.
Comparando com a situação na aldeia Piaçaguera, na qual havia mais desorganização,
nesse sentido ela considera que a minha intervenção foi positiva porque agora demonstram ter
mais confiança em si mesmos e estão entusiasmados para resgatar a cultura e produzir material
pedagógico, feito por eles mesmos.
A função da supervisão é checar a parte da escrituração, a qual é uma dificuldade que
os indígenas têm, porque não estão acostumados a essa burocracia e isso é feito pela vice-
diretora.
2
a
. Avaliação. 20 de dezembro de 2004. Supervisor pedagógico.
198
Para esta avaliação, procuro a supervisora pedagógica Tânia, já sabendo que não
desenvolvera trabalho na aldeia. A atividade de supervisão consta do acompanhamento dos
documentos da escola, o diário de classe, ficha de acompanhamento dos alunos, calendário,
projeto pedagógico, montagem de histórico escolar.
Ao ser informada de que fora substituída e tendo em vista o fato de seu substituto
desconhecer esta proposta de pesquisa, dirijo a nossa conversação para a avaliação do
SARESP – Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, que ocorreu
durante o mês de novembro, na aldeia. Fico sabendo que os alunos não foram bem e que
houve muita dificuldade por parte da 1
a
. e 2
a
. série.
O supervisor diz que “A avaliação trabalhou com texto e os alunos não conseguiram
responder nada”. Pergunto se a escrita avaliada era em português e em tupi-guarani ou se
somente em uma das línguas e fico sabendo que usou-se o mesmo padrão de prova para todas
as escolas estaduais do Estado, não levando em consideração “essas particularidades”.
Ele explica que “os alunos não tinham noção do que estava na frente deles,
principalmente por serem textos desvinculados das suas realidades”. Houve apenas trabalho
com interpretação de texto e redação, porém os alunos da 1
a
. e 2
a
. série não chegaram a
escrever nada. Os alunos da 3
a
e uma aluna da 4
a
. série conseguiram fazer alguma coisa,
principalmente a aluna da quarta série, que participou sozinha.
Quando pergunto qual era o tema da redação, sou informada que era sobre Branca de
Neve. Nesse momento me lembro que em um dos livros usados pelos professores da aldeia,
no primeiro parágrafo lia-se: “Como todo mundo sabe, Frankenstein....”
3
a
. Avaliação. 20 de dezembro de 2004. Diretora-regional.
199
Peço à diretora que avalie a pesquisa-ação. Ela lamenta que não tenha sido possível
acompanhar como gostaria8, diz que conversou com os professores e ficou sabendo que
gostaram muito, que aprenderam a planejar suas aulas e agora tem mais tempo para melhorá-
las. Também chamou a atenção deles o respeito com que foram tratados. A diretora disse que
soube que fui extremamente respeitosa com eles: “Parecia até que era uma das nossas”, foram
as palavras que eles usaram, segundo a diretora.
Destacaram todo o trabalho como de extrema importância.
Quando pergunto à professora o que mais a preocupa na escola, ela diz que é a
formação precária dos professores, que tem que sair de um estágio e ingressar em outro de
muita responsabilidade e têm que dar conta disso. Ela acha que tem que haver capacitação
constante voltada para conteúdos, dar tempo ao tempo e torcer para que permaneçam os
mesmos, porque eles mudam muito.
4
a
. Avaliação: cacique Mbetara de outra aldeia tupi-guarani: 15.12.2004.
Pergunto-lhe se soube do trabalho que desenvolvi na aldeia Piaçaguera. Ele confirma
que sim, que todos ficaram satisfeitos, e que ele sabe que sou uma pessoa que quer ajudar.
Pergunto por que gostaram? Ele diz que as pessoas sentiram que sua cultura é importante e
que elas agora acham que podem fazer mais coisas.
Pergunto como é a educação em sua aldeia. Ele diz que durante todo o ano ficaram sem
professor9. “São 18 crianças ao todo de todas as idades, que estão 24 horas desocupadas.
Saem da aldeia para a rua e para vão à feira pedir coisas às pessoas, porque dentro da aldeia
não tem o que fazer”. Ele diz que os pais não conseguem segurar os filhos e que ele como
cacique, conversa com os pais, mas estes dizem que não conseguem fazer nada.
8 Em outubro, no meio do processo, tentei ser recebida por ela, para uma primeira avaliação, porém a diretora
estava comprometida com obras no prédio da secretaria e reuniões em São Paulo, motivos porque não pôde me
receber.
9 Durante o primeiro semestre de 2005 esta aldeia também permaneceu sem professor.
200
Pergunto por que não há professor. Ele diz que o problema é que a professora foi
embora com a mãe dela, e que como se exige a formação adequada e que o professor seja da
mesma etnia, tem havido dificuldades de encontrar alguém nessas condições.
Conta que em outubro houve reunião de caciques e ele pediu ajuda para o problema:
“Todos acham que falta muita coisa para o governo fazer.”
Pergunto como ele acha que poderia resolver-se isso. Ele responde que está falando
com as pessoas mais próximas, os parentes, mas isso é responsabilidade do governo. Na aldeia
dele não há orelhão, o que dificulta para todos porque ele como cacique não tem salário e isso
impossibilita sua comunicação, pois vive do artesanato que faz. Portanto só lhe resta aguardar
e quando se reúne com os outros parentes é que fala do seu problema.
Pergunto que aluno ele quer? O que ele deseja da educação na aldeia? Ele diz que
quer encontrar alguém que dê aulas como na escola Guarani Mbyá, onde os alunos têm duas
horas em língua materna e duas horas em português. Diz que a educação é necessária para que
a criança não sofra, como os antepassados sofreram e que isso não é tudo, que eles precisam
preparar a criança para ter o que repartir com os parentes e para enfrentar a vida, pois esse é
um direito do ser humano.
Quando pergunto quais são as disciplinas que ele considera mais importantes, ele diz
que português e a história do povo indígena. Ele estudou até a 5ª. série e tem 23 anos de
idade. O que deseja para seu povo é que este resgate a sua cultura que está atrasada, estude
para aprender e se formar, porque hoje em dia isso é importante.
5ª. Avaliação: diretora do Núcleo de Educação Indígena.
201
Para finalizar, também durante o mês de dezembro, apresentei-me à Secretaria de
Estado da Educação do Estado de São Paulo, comuniquei o encerramento do processo e
agradeci à diretora do NEI por sua autorização para a realização da pesquisa. Ela disse que
soube que a minha atividade trouxe benefícios para a aldeia. Após fazer breve resumo dos
acontecimentos, perguntei se o Estado pretende investir na formação continuada e soube que
pensa-se colocar uma televisão em cada aldeia para esse fim.
Quando perguntei se há projeto para levar o ensino médio para as aldeias, a diretora
disse que isso é uma decisão que os caciques vão ter que tomar e que justamente tratará desse
assunto brevemente. Perplexa, lembrei-a que o cacique da aldeia pesquisada cursou até a 4ª.
série do fundamental e encontrei recentemente um cacique com 23 anos de idade, que cursou
até a 5ª. série, pessoas muito inteligentes e perceptivas, porém, perguntei se ela de fato
acreditava que neste momento, eles teriam condições intelectuais para avaliar e tomar decisões
sobre um processo tão complexo, do âmbito educacional.
Como a professora permaneceu calada, me despedi.
Enquanto me retirava, caminhando pelos corredores da instituição estatal e ainda com
as frias palavras da professora em meus ouvidos, eu pensava na insensibilidade, no
distanciamento da situação do Outro presente nessa inter-relação cultural, tentando imaginar
como os índios fariam para manter, pela televisão, a sua “capacitação continuada”. Lembrei
das palavras de CASTORIADIS ([1975] 1982: 196), quando diz que a idéia ocidental de
constituição de uma história total, de compreensão e de explicação das sociedades de outros
lugares, fracassa em sua raiz, se tomada como um projeto especulativo. Isto porque a história
é sempre “história” para “nós”, o que não quer dizer que tenhamos o direito de submetê-la a
nossas projeções, pois o que interessa na história é o Outro como “outros possíveis de homem
em sua singularidade absoluta”.
A indiferença à realidade da educação indígena estava nas palavras da diretora, na sua
tentativa de interpretar o mundo e transformá-lo, subordinando-o às suas exigências,
estabelecendo uma unidade articulada, pragmática, do mundo da representação.
202
Auto-avaliação:
Avaliar-me significa pensar o “índio” (abstração) e a pessoa indígena em relação a
mim mesma, minha responsabilidade moral, ética, minhas obrigações civis, meu papel como
educadora e artista.
Significa também considerar a minha origem nativa, (nasci em Ica, Peru) e a
construção cultural de minha vida (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Tocantins no
Brasil, desde 1958). Procurei desenvolver um trabalho meticuloso, consciente e cada vez mais
cuidadoso e respeitoso, deixando-me direcionar pela minha percepção da sensibilidade das
pessoas.
Falhei, quando pela racionalidade lógica, de alguma maneira me afastei do universo
tupi-guarani e o observei de longe. Desculpo-me porque acredito que há um caminho para a
educação intercultural que é possível, requer muito e que será encontrado à medida que
olharmos para a realidade de nossos conflitos, falarmos palavras sinceras, nos permitirmos
envolver pelo silêncio e descobrirmos, reconhecermos e respeitarmos o pensamento das
pessoas, como elas se vêem, no que elas crêem, o que querem, sem explicações nem
justificativas, à medida que também desejem (e possam) falar, argumentar, reconhecer o
sistema simbólico cultural do contexto e juntos lutemos por justiça e pelo direito de criar
novas vidas.
3.5. Análise do processo
Começo por comentar o que percebo na relação entre a Instituição Estadual e a
educação indígena, a seguir reflito sobre o processo de transformação minha e dos
professores e finalmente analiso partes do processo da pesquisa-ação, em relação com
as seguintes hipóteses levantadas:
203
Que sendo a arte um processo de percepção, inteligências e conhecimento em
ação, dar a conhecer esses recursos teóricos, as recentes concepções de
percepção, inteligências, conhecimento e a tradução da generalidade dessas
questões epistemológicas em relação com a especificidade das ações docentes,
contribui para fortalecer a auto-estima; dar ao professor o sentimento de
autonomia que necessita, quanto às possibilidades de planejar livre e
criativamente o currículo, os conteúdos, a valorização da própria percepção, das
próprias habilidades, do próprio conhecimento e a avaliação do aluno, do
professor e da escola intercultural indígena;
Que o estudo do processo histórico-cultural contextualizado, propicia aos
professores, a possibilidade do reconhecimento do sistema simbólico cultural
naquele tempo e lugar, contribuindo para o fortalecimento da relação cidadã, do
discurso crítico e consigo mesmo;
Que para aqueles da cultura do branco que trabalham com o currículo
intercultural é importante o estudo do sistema simbólico cultural do contexto,
visando ter maiores chances de contribuir para uma relação intercultural
educacional digna.
Que a ação criativa desempenha importante papel no processo de construção da
pessoa.
3.5.1.Sobre a relação Estado-escola, encontro que há um distanciamento importante entre o
discurso e a prática. Alguns exemplos sintetizam essa percepção:
204
O Estado não dispõe de supervisor, assessor técnico pedagógico e coordenador,
específicos para a educação indígena, sendo estes os mesmos funcionários que
atendem às demais escolas da região.
A contratação de profissionais específicos para lidar com a administração do trabalho
intercultural, contribuiria para a melhora e a possibilidade de êxito da comunicação
pedagógica. Como MACLAREN ([1994] 2000:162), acredito que narrativas como a desta
pesquisa-ação, formam um contrato cultural entre pessoas, grupos e o nosso universo social,
dando significado a nossas vidas e nesse sentido precisamos sempre buscar entender o que são
essas narrativas, e como vieram a exercer tal influência sobre nós, professores e alunos.
Como se viu no Capítulo III, páginas 168, 175 e 186, o Estado não desenvolveu
material pedagógico apropriado para a educação indígena e a valorização do conhecimento do
índio, nem revisou o material atual que lhe é destinado. Esse problema, gera enorme desgaste
na relação entre o professor e os conteúdos a serem dados, ao exigir dele o esforço de adaptar
e adequar temas, situações e problemas ali expostos, a realidades locais.
O Estado, através do SARESP – Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar10,
avalia o sistema de ensino paulista, de modo a obter dados e informações que revelem os
pontos fortes e fracos do sistema, identificando, com isso, o rendimento escolar dos alunos de
diferentes séries e períodos e os fatores que interferem nos seus desempenhos. Avalia
habilidades cognitivas de leitura e escrita. Como instrumento de avaliação, utiliza prova
constituída de 30 questões objetivas. A prova apresenta também um tema para redação do tipo
narrativo-descritivo, para o ensino fundamental (3ª. a 8ª. séries). Com base nesses mesmos
critérios, tendo avaliado o ensino das escolas diferenciadas em novembro de 2004, na verdade
prestou um desrespeitoso desserviço, causando cruel confusão na cabeça de alunos e
professores, mas ao mesmo tempo, revelando a indiferença e o desprezo que se encobre na
educação da população indígena.
10 Fonte destas informações: www.saresp.edunet.sp.gov.br
205
Sabe-se que o sistema escolar não é neutro, nem independente. A avaliação, portanto,
não é somente a expressão mais legível dos valores escolares e das escolhas implícitas do
sistema de ensino, que impõe uma definição social do conhecimento e da maneira de
manifestá-lo. Oferecendo um de seus instrumentos mais eficazes ao empreendimento de
inculcação da cultura dominante e do valor dessa cultura, para reprovar todos os alunos de
uma escola indígena, menos um, causa-se cruel injustiça humana e humanitária, com
conseqüências a curto e a longo prazo.
Assim, o tema “Branca de Neve” usado para avaliação na escola indígena, fornece o
protótipo da mensagem pedagógica oficial, a ambição intelectual relacionada à cultura
dominante; maximiza o valor social das qualidades humanas e das qualificações profissionais
que produz, controla e consagra. Ou seja: a cultura do branco, consumista e estrangeira.
Certamente as crianças avaliadas tiveram o processo de interpretação visual e verbal
prejudicada, pela dificuldade de relacionar o tema proposto a sua própria história e ao sistema
artístico cultural com o qual se relacionam. A dificuldade de compreender o significado de um
objeto de outro contexto e de outra cultura visual, mesmo que soubessem dizer o que é a
Branca de Neve, levaria ainda à dificuldade de fazer conexões com sua própria realidade,
prejudicando portanto, os objetivos da educação.
O educador tem de partir da compreensão crítica de sua própria experiência e a do
educando. Sem o conhecimento da experiência do educando, o educador falha (FREIRE,
2005:129).
Mantendo profissionais que não reconhecem o sistema simbólico cultural indígena e
estão afastados da realidade cotidiana da escola na aldeia, o Estado está também,
demonstrando desprezo pelo “saber local”, os sinais ou elementos simbólicos que compõe o
sistema estético indígena contemporâneo e a maneira como os significados se organizam
naquele universo. Esse distanciamento também é denunciado pela solução de espalhar
televisões pelas aldeias para a educação continuada, demonstrando que não há interlocução
intercultural.
206
3.5.2. Como se processou a ação transformadora, minha e dos professores.
A pesquisa-ação significou trabalhar com minha sensibilidade, percepção, ética, moral,
buscando os dados de forma a percebe-los, sintetizá-los e organizá-los, procurando descobrir o
que havia de mais importante com relação ao problema do acesso ao direito à educação de
qualidade, a baixa auto-estima, e as contribuições da arte com relação às hipóteses levantadas.
À medida que buscava compreender as maneiras como o sistema simbólico cultural se
apresentava, as relações internas, as contradições, e a dialética da arte e a ação criativa iam
sendo vividas pelo grupo, significou decidir o quê e como usar nas reuniões com os
professores; traduzir o acervo de teorias para uma linguagem simples e acessível, anotar e
refletir sobre as palavras dos participantes, as respostas dadas a minhas inserções, estimular a
beleza da criação de idéias, os resultados nos corpos, nas ações, nos projetos, nos
planejamentos de aulas; observar a forma que a pesquisa ia tomando, ao mesmo tempo que
buscava a valorização da pessoa na sua auto-estima e no sistema cultural do contexto.
3.5.3. Como se confirmaram os pressupostos teórico conceituais:
Tendo em vista o problema das limitações do acesso ao direito humano à educação, as
hipóteses se confirmaram da seguinte maneira:
A idéia de que sendo a arte um processo de percepção, inteligências e
conhecimento em ação; dar a conhecer esses recursos teóricos, as recentes concepções de
percepção, inteligências, conhecimento e a tradução da generalidade dessas questões
epistemológicas em relação com a especificidade das ações docentes, contribuiria para
fortalecer a auto-estima; dar ao professor o sentimento de autonomia que necessita quanto às
207
possibilidades de planejar livre e criativamente o currículo, os conteúdos, a valorização da
pessoa se confirmou pelas seguintes declarações:
Prof. Ecocatu: “A aula foi muito boa, construtiva, abriu a minha mente e levantou a
minha auto-estima. Por você ter falado sobre a nossa inteligência, vejo que é só a gente
pensar um pouco e vai se abrindo a memória e vai vendo quantas coisas a gente fez.
Aí, é pôr tudo para trabalhar. Hoje eu tenho certeza que eu sou capaz de me esforçar e
chegar a meu objetivo, até mesmo onde o mar se encontra com o sol, o infinito”.
Prof. Nheepocaruguara: “Um novo mundo surgiu para mim; eu estava com baixa auto-
estima com relação a minha capacidade, a aula anterior caiu como um presente de
Deus, percebi que sou capaz de alcançar meus sonhos mais desejados. Me abriu os
olhos para lutar e trilhar meu caminho de acordo com minha escolha.
Na avaliação da diretora regional de ensino, ela considerou que a intervenção da
pesquisa-ação foi positiva porque agora os professores demonstravam ter mais
confiança em si mesmos e estavam entusiasmados para resgatar a cultura e produzir
material pedagógico, feito por eles mesmos.
Sobre a percepção, pela minha vivência anterior com grupos indígenas e pela
análise cultural do comportamento do grupo, observei logo na primeira reunião a aguçada
percepção das pessoas do grupo. Enquanto eu falava, tinha certeza de que eles sabiam o que
havia por trás das minhas palavras, dos meus gestos e que eles liam o meu pensamento com
muita tranqüilidade, demonstrando-me que sobre essa noção eu não tinha nada a acrescentar.
Ao contrário, tinha muito a aprender. Como escreve CASTRO (2002: 187), no tema
das “três raças”, evocando as três almas da doutrina aristotélica: sobre a formação da
nacionalidade brasileira, alguns estudiosos atribuem a cada uma delas o predomínio de uma
208
faculdade, atribuindo-se aos índios a percepção, aos africanos o sentimento e aos europeus a
razão.
Já nos anos dos primeiros contatos com os Tupi, escrevia o padre Nóbrega, que o
problema dos índios não estava no entendimento, “aliás ágil e agudo”, mas nas outras duas
potências da alma: “a memória e a vontade, fracas, remissas, muy fraca memória para as coisas
de Deus...” (CASTRO Idem: 188).
Observei que os índios usam a percepção muito conscientemente e dela se valem como
o instrumento que é. Mário PEDROSA (In: ARANTES [1995]1996:147) explicava que a
percepção não nasce de um caos ao qual impõe ordem e também não é resultante de uma
atividade intelectual; mas que há uma capacidade intrínseca na percepção primitiva em
organizar-se estruturalmente, da melhor maneira nas condições dadas, que fez com que alguns
estudiosos dissessem que a percepção primeira é a artística.
Então por que precisaríamos da arte se a percepção já é artística? PEDROSA,
respondendo pelas palavras de Koffka, dizia que a arte seria uma espécie de correção
individual, consciente, da percepção primeira, no sentido de lhe dar uma estrutura idealmente
perfeita, a forma. Assim, a arte seria o retificador consciente e desinteressado, da percepção,
respeitoso da sua autêntica espontaneidade primeira (PEDROSA, Idem: 148).
O artista cego Evgen Bavcar, esloveno radicado em Paris, fotógrafo, diz que “todo
mundo se utiliza do olhar do outro, só que sobre outros planos, sem se dar conta sempre.
Percepção, não é aquilo que vemos, mas a maneira como abordamos o fato de ver.”
(TESSLER E CARON 2001: 32)
Sobre a inteligência, quando eu lhes disse se já se haviam perguntado se são
inteligentes: “Claro”, disse um: “ou a gente é inteligente ou a gente é burro.” E outro: “Tem
branco que acha que índio é burro”.
209
Segundo GEERTZ ([1978] 1989:56), deve-se engendrar adivinhações de significados
na avaliação das conjeturas, ao traçar explicações a partir das sensibilidades expostas, e é isso
o que percebi, que seria covardia deixar os professores indígenas deste contexto, em
desvantagem quanto a seu acervo teórico epistemológico sobre as concepções de
conhecimento e inteligência.
Dei-me conta de que para que a intersubjetividade tivesse validade seria necessário o
consenso intersubjetivo, a simetria entre os argumentantes.
Para GEERTZ ([1978] (1985:38), as diferentes formas de ser gente não estão apenas
no falar, em como se emitem determinadas palavras em determinadas situações; não é apenas
comer, mas preferir certos alimentos a outros; não é apenas sentir, porém como se vivem
emoções; daí porque para saber o significado do eu para um grupamento humano, diz ele
([1983] 2003:106), é necessário perceber o uso que o povo faz dos símbolos, observar e
descrever percepções, sentimentos, pontos de vista, experiências, oscilando entre detalhes e
características mais abrangentes.
Assim, para estudar a arte de forma eficaz, eu sabia que deveria ir além do estudo de
sinais como meios de comunicação, considerando-os mais bem como formas de pensamento,
um idioma a ser interpretado (GEERTZ, [1983] 1997:181).
Explorando a dimensão cognitiva da arte (GARDNER, [1993] (1995:119),
(PASSERON, René 2001: 63) busquei explicações em Nelson GOODMAN, o cientista que
inspirou os trabalhos de GARDNER do Project Zero, da Harvard University, durante a década
de 80. GOODMAN diz que a distinção entre o científico e o estético é algo arraigado na
diferença entre conhecer e sentir, entre o cognoscitivo e o emotivo e que no entanto, esta
dicotomia é duvidosa e a sua aplicação enigmática, quando percebemos que tanto a
experiência estética como a científica são fundamentalmente de tipo cognoscitivo ([1968]
1976:247).
210
GARDNER dedicou 25 anos de trabalho (desde 1983), à exploração das implicações
educacionais da Teoria das Inteligências Múltiplas. Após a publicação de seus estudos,
percebeu que sua investigação assumira várias formas dadas por outros estudiosos do mundo
todo. Desde como desenvolver as inteligências, até a tentativa de planejar novos tipos de
instrumentos de avaliação ([1993] (1995:5-6)
Buscando que as pessoas demonstrem suas capacidades, entendimentos e produções de
uma maneira confortável para si mesmas e para a avaliação pública, GARDNER (Ibid.)
introduziu as noções de “contextualização de inteligências” e “inteligências distribuídas”.
Assim, ampliando a inteligência para além da pele do indivíduo ao defender que nossas
capacidades intelectuais são determinadas pelos contextos em que vivemos, os recursos
humanos e materiais aos quais temos acesso.
As inteligências são, portanto, maneiras de desenvolver capacidades importantes para
modos de vida. Como diz o autor, seja no caso dos cirurgiões e engenheiros, caçadores e
pescadores, dançarinos e coreógrafos, atletas e treinadores de atletas, chefes e feiticeiros de
tribos. Para todos, a inteligência é a capacidade de resolver problemas, elaborar produtos que
sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários (Idem:14).
Sobre o conhecimento, foi possível traduzir a concepção de conhecimento de
Pierre Lévy da construção de conhecimento em rede, aproximando-a da realidade e da
compreensão do grupo, dessa forma rompendo com a mitificação, a sensação de perplexidade,
impotência e incapacidade cognitiva (CORTELLA, Mário Sérgio[1998] 2004:102).
Isso aconteceu, por exemplo, quando falávamos da avó de Ecocatu, e eu provoquei: “Ué
mas ela não tinha o conhecimento do branco...” Ficaram pensativos, calados. “Não era
conhecimento de branco, mas era conhecimento!” Alguém falou. “Ah, é? Então é apenas
um conhecimento diferente?”. “É isso mesmo, disse Ubirajara. O nosso conhecimento é
diferente do branco”.
211
Sobre o currículo intercultural, foi possível constatar que para aqueles que
trabalham nessa área, é importante o estudo do sistema simbólico cultural do contexto,
visando ter maiores chances de contribuir para uma relação intercultural educacional digna.
Quando o grupo iniciou a pesquisa com as pessoas da comunidade, criou-se um
movimento quase que de busca “arqueológica”. Os professores disseram que as pessoas da
aldeia estavam comentando que assim todos iriam ficar sabendo das histórias que os mais
velhos contavam e que voltariam a cantar as músicas do passado e a encontrar coisas que
ninguém falava mais.
Quando perguntei para que mais poderiam servir essas atividades, as respostas se
voltaram para o presente: “Para aula das línguas” disse alguém “pode ensinar coisas de
português e coisas de tupi-guarani do mesmo jeito”, “para aula de cultura”, disse outro, “até
para coisas de matemática”, disse uma das mães presentes, surpreendendo os demais.
Instaurava-se um movimento não-linear, no qual o presente voltava ao passado e mergulhava
no desconhecido, criando o futuro e esparramando significados.
O grupo decidiu retomar o projeto “A Busca Cultural do Awati Marae-y, milho sagrado
da aldeia Tupi-guarani”, que havia sido feito no ano anterior; estimularam-se a retomar um
empreendimento coletivo e foram em busca das possibilidades de realização da idéia,
encontrando o patrocínio desejado.
Quanto a essa vivência, devo observar que na ocasião, avaliei como positivo o suporte
financeiro que lhes permitia dar começo à realização de um projeto importante para a vida
coletiva. No entanto alerta-me pensar que o discurso de apoio à autonomia indígena, o
auxílio econômico, político ou social, possa tornar dispensável a própria presença indígena,
pois sabe-se que agências de intermediação tendem a se tornar indispensáveis, concentrando o
poder de acesso a recursos que legitimam a necessidade de sua presença (ARRUDA, Rinaldo
Sérgio Vieira 2001 : 53)
212
A idéia de que a ação criativa desempenha papel importante na construção da
pessoa, se confirmou durante o processo, pois no começo das aulas, observei a baixa auto-
estima dos professores, o reconhecimento da sua situação crítica, a frustração diante do pedido
das mães de que se mandasse uma professora branca; o interesse e o desejo de ser melhor, sem
saber como.
À medida que a pesquisa-ação avançava, foi surgindo a auto-confiança, o ânimo foi
mudando, o grupo foi saindo do modo de vida rotineira e deixando-se envolver pela paixão de
criar (PASSERON, René 2001:63); todos se envolveram em atividades criativas ligadas a seu
próprio universo, resemantizando-o Nas paredes da sala de aula, onde a princípio havia
apenas um arco e flecha pendurado, começaram a surgir outros objetos criados por eles
mesmos e embora ninguém explicasse ou comentasse, a sala foi ficando mais acolhedora.
Também quando encerrada a pesquisa de campo, pela avaliação da supervisora fiquei
sabendo que a comunidade gostou da nossa atividade. Que se surpreenderam de ver quantas
coisas faziam e não davam importância, nem valorizavam, e agora dizem que podem ver-se
melhor.
No gesto criador, a fantasia permitiu o acesso a uma realidade guardada em seu
interior; não decifrando nada, mas inventando a vida. Trabalhando com o professor de arte e
cultura, após vê-lo dar ditado para os adolescentes, perguntei-lhe se gostaria de conhecer
outras maneiras de trabalhar os conteúdos e ele concordou. Perguntei-lhe o que ele sentia
quando olhava à sua volta. Ele levantou a cabeça e apreciou vagarosamente o céu muito azul,
os verdes da mata, as cores da areia, as pedras encravadas na terra, os galhos entre as folhas
caídas e o sol batendo no silêncio... que eu via na minha leitura? Não sei, nem poderia saber.
Mas ficamos assim calados algum tempo enquanto ambos bebíamos daquela paisagem,
frente à entrada da aldeia. Passado o silêncio, falei-lhe do conceito de transdisciplinaridade,
planejamos algumas aulas com pesquisa sobre as casas da aldeia, as cerâmicas encravadas no
chão de areia, as folhas e as pessoas que curam doenças, as trilhas que levam a lugar nenhum e
a muitas saídas.
213
A arte tem raízes profundas na natureza de homens e mulheres. Dificilmente
encontraremos um comportamento humano que não tenha uma dimensão artística – mesmo
que um objeto não esteja envolvido. As pessoas estão constantemente mentalizando desenhos,
avaliações de formas, cores, tamanhos, espessuras, adequações mais ou menos harmoniosas,
segundo critérios imaginados para si mesmo e para os demais; respondendo a incentivos
pessoais ou exteriores, e considerando ou evitando críticas, no esforço de satisfazer o desejo
de beleza, seu e dos demais.
Isso vale tanto para a produção de uma tela, como para o próprio corpo, para o
comportamento íntimo ou social, e o aspecto que me parece mais importante é o da afetividade
envolvida no processo de encontrar mentalmente uma solução estética para um determinado
problema. Pelo exposto nesta valiosa experiência, acredito que a arte tenha importante papel a
desempenhar na construção das relações interculturais, na educação multicultural da vida
contemporânea.
214
CONCLUSÃO
Concluo o trabalho com a satisfação de ter constatado que foi possível contribuir para a
valorização da auto-estima dos professores indígenas, resgatar alguns elementos do sistema
simbólico cultural do contexto e promover a arte na educação e na vida da comunidade
indígena da aldeia Piaçaguera.
Percebi que toda descrição do que seja o currículo não é suficiente, porque ele se
resolve na prática, na realidade da escolarização intercultural. Observei que o currículo
intercultural deve incluir a incorporação do respeito à diversidade, a decisão de percebê-la em
uma dimensão individual e coletiva, e ao mesmo tempo nas esferas da estrutura organizacional
e social do mundo dos brancos, já que é esta quem rege essa totalidade. No currículo da
escola diferenciada, não bastam as boas intenções, mas o que de fato acontece na sala de aula,
onde professores, materiais didático-pedagógicos e conteúdos, são mediadores.
A diferença que foi construída ao longo da história de forma negativa, por meio da
exclusão e negação do Outro, acredito que possa vir a ser construída positivamente, através de
uma educação diferenciada calcada na justiça do respeito aos direitos do Outro e à medida que
pelo discurso crítico, emergir a ética do respeito à diferença que há dentro de cada um de nós e
que se vê nos meios pelos quais o significado é produzido no sistema simbólico cultural e
social.
Quanto ao papel da a arte na educação, constatei que através dela foi possível
introduzir na prática do currículo dos professores índios, um movimento crescente de ação que
rompeu o equilíbrio interno, modificando a vontade coletiva para um sentido novo,
formulando para a mente e revivendo para o sentimento as emoções, paixões e imperfeições
que sem a arte permaneceriam imóveis e indeterminadas. Daí porque a arte na educação
necessita da estética e da ética, porque essa ação se realiza sempre em conexão com as demais
formas de nossas atividades cotidianas.
215
Como VYGOTSKY acredito que a arte com relação à vida, pode representar o centro
de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, e é meio de estabelecer
equilíbrio entre o homem e o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis; e também
como ele acredito que a arte seja necessária, para refazer o homem forjado nos projetos
modernistas, em um novo homem, mais generoso e solidário.
Penso que a arte tem a importância de significar que se pode ir além do estudo de
sinais como meios de comunicação, indo ao encontro de formas de pensamento, como um
idioma, epistemologias a serem escolhidas, traduzidas, trilha de muitos caminhos a ser
caminhada com os pés descalços, deixando-se compreender os diversos significados que as
coisas têm para a vida das diferentes pessoas, e fazer perguntas estando aberto às
possibilidades que surgem com as mais simples respostas.
Penso que na educação intercultural, essa seja a arte a se valorizar, não por ser um
complemento da vida, nem porque sirva para indicar, ou porque imite estilos ou represente
convenções, mas porque revela a energia da vontade, da percepção das experiências
individuais, coletivas, culturais, abrindo possibilidades dialéticas, críticas, e da riqueza interior
predispondo para a ação criativa.
Acredito que para trabalhar com o currículo intercultural, percebendo o
multiculturalismo, é importante que o professor resolva a sua relação com o Outro e consigo
mesmo, a fim de melhor contribuir para desenvolver relações sociais e educacionais mais
justas, daí a importância de considerar que a noção de diferença não é fixa, mas está dentro de
um processo, uma contingência.
O professor índio como um novo ator que surge oficialmente no sistema simbólico
cultural indígena no Brasil, é em si uma diferença da prática subjetiva da mediação, com a
qual a comunidade indígena começa a conviver como diferente aos demais. Dos objetivos
supremos dos Tupinambá, que colocavam como ideais de personalidade o bom chefe de
família, o grande guerreiro ou o pajé de poderes mágicos a serviço da educação tribal e das
216
situações existenciais da vida comunitária, têm agora o objetivo da figura do bom professor da
multiculturalidade, a serviço de uma vida coletiva e de um futuro melhor para todos.
Na escola da aldeia tupi-guarani de Piaçaguera, uma nova formação existencial se
organiza e cria tensões desestruturantes, produzindo re-arranjos pessoais e coletivos, à medida
que o discurso crítico se fortaleça, as diferenças forem sendo solucionadas, e os que estamos
comprometidos com a educação multicultural crítica, produzirmos novos movimentos, mais
justos.
O objetivo deste estudo foi trabalhar com o intuito de viabilizar a aproximação entre
culturas diferentes, teoricamente distintas, almejando contribuir para a construção de uma
narrativa biográfica atualizada, entre muitas possíveis, de uma forma de existir entre dois ou
três mundos e nos dois ou três ao mesmo tempo, pela complexidade e a velocidade do agora.
Para mim que sou mestiça, na minha certidão de nascimento, e me sinto triplamente mestiça,
na minha peruanidade e brasilianidade, sinto-me muito bem com a possibilidade de articular
com desenvoltura na estética entre fronteiras, na defesa das minhas identidades culturais e
coletivas.
Com este trabalho, foi possível constatar que a premissa de que os índios não detém
capacidade intelectual para o aprendizado de valores exteriores a suas culturas originais; a
constatação de que os índios não mudam nunca; e a avaliação de que o estágio de selvageria
em que se encontravam não permitia o aprendizado, somente a imitação, sendo sempre
vítimas; são mitos que foram se desintegrando há muitos anos, ao longo do tempo histórico e
agora, principalmente entre os brancos, é lamentável que ainda haja aqueles que não aceitam
as evidências.
Há poucos dias atrás falei com Ecocatu ao telefone, e soube que 81 índios do Estado de
São Paulo, inclusive ela, estão participando do curso Magistério do Ensino Superior na USP,
em contrato com a Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e estão
“adorando”; compreendi melhor a importância de que o processo de formação de qualquer
profissional passe pela apropriação crítica de sua história de vida, o esforço pessoal da tomada
217
de consciência individual e coletiva, cuja essência é a representação simbólica que o sujeito
faz de si, pois esta é uma fase histórica na educação no Brasil, que se estende agora, através
dos próprios índios no Estado de São Paulo, à vida universitária.
Concluindo, constato que a escola diferenciada preserva algumas cruéis imposições do
modelo de escola de branco para indígena e creio que permanece a pergunta sobre como as
demais populações indígenas estão sendo afetadas, usam e usarão suas forças para também
afetá-la; questão que deverá ser respondida por nós e pelas gerações futuras.
218
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