Download PDF
ads:
1
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
LA OTRA ORILLA: ESPAÇOS NO UNIVERSO CRIATIVO DOS
PRIMEIROS CONTOS DE JULIO CORTÁZAR
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Letras,
na área de História da Literatura.
Lizete Pinho Azevedo
Prof.ª Dr.ª Elena Palmero González
Orientadora
Rio Grande, agosto de 2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
AGRADECIMENTOS
Ao término de um trabalho como este, em que as contribuições humanas são essenciais,
muitas foram as pessoas que tiveram importância fundamental em meu crescimento, tornando
possível sua realização. Dentre as muitas pessoas que me acompanharam, nesse caminho intelectual
percorrido, dedico um agradecimento especial:
- aos meus pais, Belizário e Rosa Maria, pelo amor, incentivo e apoio sempre presentes,
os quais foram imprescindíveis em minhas escolhas profissionais.
- às minhas filhas, Luara e Luiza, pela compreensão e carinho nas horas difíceis,
sentimentos que me tornaram mais forte e perseverante.
- ao meu amor Gelson, que com seu exemplo de caráter e de luta me manteve corajosa
em meus desafios, e com seu afeto e dedicação me trouxe a tranqüilidade e o sorriso
necessários à vida.
- à minha orientadora Elena, cuja dedicada ajuda foi decisiva em minha evolução
intelectual, e cuja grande amizade amparou minhas angústias e dificuldades.
- ao professor e amigo Carlos Baumgarten, que com seu exemplo profissional e humano
me fez amar ainda mais a literatura e a vocação de educar.
- às professoras Aimée Bolaños e Néa de Castro, queridas amigas, que me ensinaram a
arte da palavra e da vida com as almas iluminadas.
- aos meus colegas do curso de mestrado, que compuseram juntos o mais harmonioso
ambiente de estudo do qual já fiz parte. Em especial agradeço aos meus amigos do
coração Danilo, Daniel e Alberto, com os quais conheci a felicidade de construir laços
afetivos profundos através da literatura.
- à amiga Valéria, que muito contribuiu com suas dicas filosóficas na construção de
meus pensamentos.
ads:
3
SUMÁRIO
RESUMO ..............................................................................................................................
RESUMEN ...........................................................................................................................
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...........................................................................................
4
5
6
1 – MARGENS DE UM PROCESSO ................................................................................ 13
1.1 – O conto latino-americano na modernidade .............................................................. 13
1.2 – Anos quarenta: os inícios do escritor ........................................................................ 19
1.3 – A gestação de um livro: La otra orilla ....................................................................... 22
2 – MARGENS DE UMA OBRA ........................................................................................ 25
2.1 – Plágios .......................................................................................................................... 25
2.2 – Imagens ........................................................................................................................ 41
2.3 – Prolegômenos ............................................................................................................... 64
3 – A TERCEIRA MARGEM ............................................................................................. 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 92
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 95
4
RESUMO
O conto latino-americano na década de quarenta contribui de maneira decisiva no processo
de transformação dos códigos expressivos da narrativa latino-americana do século XX. Em
correspondência com os novos modos de entender a literatura, abertos pelas vanguardas e
amadurecidos nesses anos, autores como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, José Lezama Lima
ou Guimarães Rosa publicam contos que, em suas diferentes singularidades autorais, enriquecem
significativamente esse gênero tão cultivado no continente.
Nesse contexto histórico-literário, Julio Cortázar escreve seus primeiros contos, reunidos em
1945 sob o título de La otra orilla, livro que será publicado postumamente e que se mantém
praticamente desconhecido pela crítica e pela historiografia literárias até hoje. Esta pesquisa procura
visualizar esse conjunto de textos à luz do período de formação do artista e do processo de
renovação do conto latino-americano situados nos anos quarenta, procurando avaliar sua
contribuição no entendimento desse processo.
O espaço apresenta-se como o problema de poética narrativa central no estudo hermenêutico
dos contos, uma vez que seu funcionamento, no nível compositivo e temático, é de determinante
importância na produção de sentidos nos textos de La otra orilla e de particular significação na
renovação dos códigos narrativos do conto moderno. Também é pensada uma possível concepção
autoral de espaço neste primeiro livro de contos e em que medida ela participa de uma poética do
conto cortazariano.
5
RESUMEN
El cuento latino-americano en la década del cuarenta contribuye de manera decisiva al
proceso de transformación de los códigos expresivos en la narrativa latino-americana del siglo XX.
En correspondencia con los nuevos modos de entender la literatura, abiertos por las vanguardias y
que maduran en estos años, autores como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, José Lezama Lima o
Guimarães Rosa publican cuentos que, en sus diferentes singularidades expresivas, enriquecen
significativamente ese género tan cultivado en el continente.
En este contexto histórico-literario, Julio Cortázar escribe sus primeros cuentos, reunidos en
1945 bajo el título de La otra orilla, libro que solo será publicado póstumamente y que se mantiene
prácticamente desconocido por la crítica y por la historiografía literarias hasta hoy. Esta
investigación procura visualizar ese conjunto de textos a la luz del período de formación del artista
y del proceso de renovación del cuento latino-americano en los años cuarenta, procurando evaluar
su contribución al entendimiento de ese proceso.
El espacio es presentado como el problema de poética narrativa central en el estudio
hermenéutico de los cuentos, toda vez que su funcionamiento, en el nivel compositivo y temático,
es de determinante importancia en la producción de sentidos en los textos de La otra orilla y de
particular significación en la renovación de los digos narrativos del cuento moderno. También es
pensada una posible concepción autoral en torno al espacio en este primer libro de cuentos, y en qué
medida el participa de una poética del cuento cortazariano.
6
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao longo do curso de Graduação em Letras Português-Espanhol, particularmente nos anos
de 2002 e 2003, participei como bolsista dos projetos de pesquisa O processo de renovação da
literatura latino-americana no século XX: estudos de poética e O conto latino-americano entre a
modernidade e a pós-modernidade: estudos de poética para uma antologia de textos críticos, que
se desenvolvem no Departamento de Letras e Artes da FURG, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Elena
Palmero González. Nesse período realizei uma série de leituras acerca da produção crítica e
ficcional latino-americana dos anos quarenta, leituras que foram ampliando minha visão do
processo de transformação da narrativa no século XX estudado em disciplinas literárias do curso.
Dentre essa produção, decidi pesquisar o gênero conto, e tive particular interesse pelo primeiro livro
de contos do escritor argentino Julio Cortázar, intitulado La otra orilla, editado postumamente, em
1994.
La otra orilla apresenta-se como uma grande incógnita por ser um livro praticamente
desconhecido do público leitor e da crítica. Os contos que o formam foram textos escritos no final
dos anos trinta e primeira metade dos quarenta, por um Cortázar jovem mas já com decidida
vocação literária. Alguns desses textos haviam aparecido em publicações periódicas, mas o livro
como conjunto teve sua edição adiada durante anos, por razões diversas.
A particularidade de ser um livro publicado contemporaneamente mas escrito nos anos
quarenta, como pode ser comprovado na correspondência do escritor, situa a obra diante de um
problema de historiografia literária da maior relevância. Visualizar o livro à luz daquele fecundo
momento de desenvolvimento do conto no continente, do período de formação ideológica e estética
do próprio escritor, e do processo de renovação da narrativa latino-americana na alta modernidade
converteu meu estudo num instigante desafio de pesquisa.
Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação no ano de 2004, e inserida na linha de pesquisa
da História da Literatura, direcionei minhas leituras à produção teórica e crítica do próprio Cortázar
7
nos anos quarenta, procurando identificar prováveis diálogos entre a ficção e essas duas atividades
intelectuais exercidas paralelamente pelo escritor. Com isso surgiu-me uma outra importante obra,
de escassa divulgação e de quase nenhuma crítica, um texto ensaístico que, como La otra orilla,
havia sido escrito nos anos quarenta e publicado nos noventa. Trata-se do ensaio Teoría del
túnel: notas para una ubicación del surrealismo y el existencialismo, cujos posicionamentos éticos
e artísticos acham-se em profunda sintonia com o livro de contos.
Também pensando na probabilidade de encontrar nesses contos inaugurais determinados
elementos expressivos e temas que prenunciassem uma poética do conto cortazariano, empreendi
a leitura de seus três livros subseqüentes, Bestiario (1951), Final del juego (1956) e Las armas
secretas (1959), bem como estudos críticos sobre a obra de Cortázar em seu conjunto.
Decidido o objeto da pesquisa, passei a definir qual seria o problema de poética do gênero
focalizado em minha análise. Muitos poderiam ser os aspectos de La otra orilla a serem estudados,
como ocorre em qualquer obra com valor artístico, porém três fatores tornaram-se determinantes
para a eleição do espaço narrativo como problema teórico privilegiado no estudo dos contos.
Inicialmente, a leitura da obra levou-me a avaliar a riqueza de sua concepção espacial, fato que me
fez conjeturar que o estudo do funcionamento de seu espaço, nos veis compositivo e temático,
contribuiria significativamente na interpretação dos possíveis sentidos instaurados nos textos. Outra
direção importante foi-me indicada pelos estudos sobre o conto latino-americano, que vieram a
evidenciar a potencialização dos elementos tempo e espaço na contística moderna e a destacar o
espaço como importante elemento configurador das transformações desse gênero dentro do sistema
literário latino-americano. Tais questões teóricas me pareceram desafiadoras em sua posssibilidade
de serem comprovadas ou não em La otra orilla. O outro ponto fundamental que me levou a tal
eleição encontra-se no pertinente estudo sobre o gênero empreendido por Julio Cortázar em
“Algunos aspectos del cuento” (1962), em que é apontada a importância da composição espaço-
temporal na concepção de um conto. Cortázar compara o contista com o fotógrafo em sua intenção
de captar um instante delimitado mas significativo da realidade, que seja capaz de provocar no leitor
uma abertura a significados muito mais profundos do que a trama contida no conto. Segundo o
escritor, para que esse tipo de construção narrativa tenha êxito, el tiempo del cuento y el espacio del
cuento tienem que estar como condensados, sometidos a una alta presión espiritual y formal para
provocar esa “apertura, pois o contista, não podendo trabalhar acumulativamente como o
8
romancista, sabe que su único recurso es trabajar en profundidad, verticalmente, sea arriba o hacia
abajo del espacio literario (CORTÁZAR, 1994c, p. 372).
A partir desses pressupostos, as questões norteadoras da pesquisa encontram-se situadas em
torno da seguinte pergunta: Qual seria o aporte de La otra orilla, em termos de modernidade
literária, ao processo de desenvolvimento do conto latino-americano na década de quarenta? Essa
questão, por sua vez, desdobra-se em outras que deram fundamento à análise: O que esse livro
aporta a um processo literário em termos de poética da narração? Como é tratado o problema do
espaço, no que se refere à composição narrativa e à construção de sentidos nos textos? É possível
falar-se numa concepção autoral de espaço a partir dessa prática artística?
Para dar respostas a essas perguntas, procurei consultar fontes críticas em torno do livro em
questão. Constatei então a ausência de referências sobre La otra orilla na crítica brasileira, além de
pouquíssimas referências no âmbito hispânico. A maior parte dos estudos sobre a contística
cortazariana, ainda hoje, dedica-se a estudar livros como Bestiario ou Final del juego.
Da mesma
maneira, os estudos sobre o processo criativo do escritor costumam situar Bestiario, de 1951, como
livro inaugural de Cortázar. Também as histórias da literatura ou as antologias do conto não
consideram La otra orilla no contexto da narrativa dos anos quarenta
. Curiosamente não foi
encontrada a citação do livro no conjunto da obra cortazariana nos meios eletrônicos, nem o site
oficial dedicado ao escritor menciona o livro na página dedicada às suas primeiras produções
ficcionais, com exceção do espaço dedicado à venda de livros, que o oferece para compra.
Fundamental contribuição no necessário diálogo crítico foi-me dada pelo conhecimento do artigo de
Carmen de Mora, publicado na França, sob o tulo La protohistoria literaria de Cortázar: La otra
orilla
(in MANZI, 2002). Nele a autora, além de fornecer alguns dados da vida do escritor nos
anos quarenta, avalia a quase totalidade dos contos do livro a partir de duas principais perspectivas:
a influência da tradição fantástica na concepção dos textos, bem como as subversões, no que se
refere à composição e temas, que eles apresentam diante dessa herança; e os diálogos estabelecidos
entre a concepção dos relatos e as idéias psicanalíticas de Freud. Conclui Mora que em La otra
orilla já se pode apreciar a envergadura da escritura cortazariana e uma concepção de fantástico que
não se modificaria ao longo do tempo.
Quanto à formulação de uma metodologia que possibilitasse a análise do funcionamento
espacial na composição dos textos, orientei-me em torno de conceitos sobre o espaço narrativo
desenvolvidos pela Teoria Literária do século XX. Particularmente meu método norteou-se a partir
9
do pensamento dos seguintes teóricos da literatura: Iuri Lotmam, Mikhail Bakhtin, Umberto Eco,
Boris Uspienski, Paul Ricoeur, Gaston Bachelard e Silviano Santiago.
Nesse sentido, são
referenciados, a seguir, alguns pontos teóricos relevantes na elaboração do presente estudo.
Pensando o espaço literário como uma entidade textual que, na singularidade de sua
representação artística, expressa o infinito do mundo que lhe é exterior e também o infinito universo
da subjetividade humana, muitas são as configurações adotadas e as relações estabelecidas por esse
elemento narrativo na composição de um texto. Assim, podemos falar de um espaço artístico que
veicula referências geográficas, sociais ou históricas, ou ainda, que contempla diferentes instâncias
existenciais ou regiões ontológicas. Ademais, a própria tradição literária pode converter-se em
referência, o que propicia que sejam agregados espaços intertextuais ao relato.
Na obra de Iuri Lotman A estrutura do texto artístico, o espaço é visto como elemento
organizador do texto artístico, já que a estrutura do espaço do texto torna-se um modelo de
estrutura do espaço do universo e a sintagmática interna dos elementos interiores ao texto, a
linguagem da modelização espacial (LOTMAN, 1978, p. 360). Por essa perspectiva, um dos pontos
que rege minha metodologia é a construção espacial segundo a sintaxe de oposições espaciais
proposta por Lotman, que considera que a contraposição dos valores semânticos dos subespaços e o
valor conferido à fronteira que os separa contribuem na construção do choque entre diferentes
concepções de mundo das personagens, o que serve como móvel à ação, articulando os
acontecimentos ou fenômenos da trama.
Em se tratando da relação espaço-temporal no texto narrativo literário, considerei a
interpretação de Mikhail Bakhtin a partir de seu conceito de cronotopo. Sabemos que o teórico
russo introduz esse conceito para designar a inter-relação de tempo e espaço que funciona como
formador da imagem da personagem, funcionamento que foi investigado no processo de
desenvolvimento da narrativa desde a Antigüidade até o Realismo. Bakhtin observa a crescente
humanização do cronotopo e conseqüente historicização do ser humano nos vários tipos de
romances que aparecem na história da narrativa. Ele afirma que a imagem da personagem é o
centro da representação espacial de uma obra, onde os objetos estão correlacionados com suas
fronteiras tanto internas quanto externas (fronteiras do corpo e fronteiras da alma) (BAKHTIN,
2003, p. 90). Além da teoria do cronotopo, fazem-se presentes as análises de Bakhtin em torno da
relação do autor e da personagem, em que é investigado o fenômeno de criação do todo espacial da
personagem e de seu mundo ficcional. Num dos seus primeiros estudos, na década de vinte,
10
intitulado “O autor e a personagem na atividade estética”, o pesquisador trata dos processos
criativos a partir de uma abordagem inter-humana, que concebe a relação autor/personagem não
técnica (como queriam os formalistas russos, diz Bakhtin), mas humana. A idéia de dependência do
olhar do outro na formação da imagem do indivíduo norteia a linha de pensamento de Bakhtin para
conceber a criação da personagem e de seu universo, que ambos são vistos de fora e de forma
acabada pelo autor.
Além dessas questões, Bakhtin se propõe pensar como é representado verbalmente o espaço,
ou seja, pela imagem visual (ou recursos plástico-picturais) e pelas impressões volitivo-emocionais,
a fim de construir um sentido interno à experiência de mundo do autor e do leitor. Esses recursos
discursivos utilizados na formulação do espaço também são abordados por Umberto Eco, em seu
artigo “Les sémaphores sous la pluie” (1996, in ECO, 2003). O teórico diz que a criação do espaço
verbal (hipotipose) consiste em um fenômeno semântico-pragmático, exemplo mestre de
cooperação interpretativa, [ou seja,] uma técnica capaz de suscitar o esforço de compor uma
representação visual (por parte do leitor) (ECO, 2003, p. 186).
Umberto Eco fala sobre as relações de dependência entre a linguagem, que ele denomina
espacialidade da expressão, e o conteúdo, chamado espacialidade do conteúdo, termos que preferi
substituir em minha metodologia por espaço enunciativo” (ou “discursivo”) e espaço do
enunciado” (ou “diegético”). Salientando a determinação que os recursos enunciativos exercem na
construção do espaço literário, Umberto Eco diz que os diversos modos de focalização assumem
importância significativa na construção espacial.
Nesse sentido, consultei os estudos de Boris Uspienski (in REDONET COOK, 1983), que
investiga o foco narrativo na composição do texto artístico a partir das perspectivas que se definem
segundo a localização espaço-temporal assumida pelo narrador em relação à personagem e ao leitor.
Explica-nos o teórico russo que o narrador, ao assumir a posição espacial da personagem, adota seu
ponto de vista e a movimentação espacial desta (e, às vezes, sua perspectiva psicológica),
localizando-se, portanto, no interior do relato e tendo seu campo visual relativizado. Também
quando o ponto de vista temporal da personagem coincide com o do narrador (ao adotar o tempo
presente), a perspectiva temporal é interior e sincrônica ao relato, e desse modo o foco narrativo tem
como função colocar o leitor no centro da cena, convidando-o a se converter em sua testemunha.
Porém, se tanto a perspectiva espacial como a temporal não coincidem com as da personagem, o
narrador se mantém fora do relato, ignorando as percepções espaciais das personagens e adotando
11
uma visão retrospectiva das ações vividas por elas. Assim, os acontecimentos são narrados desde
uma posição distanciada, em que o leitor é afastado do episódio, que o narrador adota a
perspectiva do leitor, ou seja, externa ao relato (in REDONET COOK, 1983, p. 356).
Procurando visualizar o espaço narrativo de uma perspectiva de natureza cultural, incorporei
em minha pesquisa os estudos de Silviano Santiago sobre o discurso latino-americano enquanto
espaço discursivo (denominado entre-lugar), com características peculiares e atuantes no sistema
literário ocidental. No ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1971, in SANTIAGO,
2000), Santiago repensa o espaço ocupado pelo escritor e a literatura latino-americanos dentro desse
sistema, a partir de um novo posicionamento da crítica: aquele que se pretende contrário à
hegemonia cultural metropolitana. O autor acredita que a escritura latino-americana, enquanto
assimiladora de modelos originais importados dos países colonizadores, constrói-se entre a
admiração ao “já-escrito” e a necessidade de produzir um novo texto que o transgrida, numa atitude
descolonizadora. Utilizando como exemplo o romance 62: modelo para armar (1968), de Julio
Cortázar, Santiago mostra como funciona essa escrita por meio dos jogos com os signos da
literatura francesa feitos por Cortázar, ao redimensionar, e também inverter, seus significados
primeiros no contexto paradoxal vivido pela personagem sul-americana em Paris.
A respeito de determinados valores simbólicos e arquetípicos que os espaços comportam,
foram consultados os estudos de Gaston Bachelard. Com o objetivo de fundar uma espécie de
metafísica da alma, o filósofo dedica a obra A poética do espaço, publicada em 1957, à pesquisa de
certas imagens de espaços arquetípicos presentes na literatura, que são capazes de documentar a
subjetividade e a transubjetividade humana. Entre alguns desses espaços, aparecem a casa, como a
topografia da intimidade, e a imensidão, em sua ligação com a necessidade de expansão do ser (já
que a imensidão interior torna-se equivalente à do mundo por meio da imaginação).
Concebendo com Paul Ricoeur que a interpretação de um texto passa pelo estudo da
linguagem como obra, que os gêneros são expedientes generativos para produzir discurso, pois
regem os textos por via das leis de composição (RICOEUR, 1976, p. 15), proponho a interpretação
de alguns dos sentidos dos contos de La otra orilla a partir de um processo dialético que transite
pela explicação da composição narrativa, a compreensão do universo referencial e a produção de
sentidos.
Para fins de organização, a pesquisa realizada encontra-se dividida em três capítulos,
antecedidos pelo que chamei de “Considerações iniciais” e encerrados pelas “Considerações finais”.
12
O primeiro capítulo, de caráter histórico-literário, explora elementos gerais que permitem situar o
conto latino-americano dos anos 40 no processo evolutivo de seu sistema literário, os primeiros
passos intelectuais do escritor e o processo de concepção do livro; o segundo, de caráter crítico
interpretativo, aborda o estudo dos contos em sua singularidade expressiva, e o terceiro, de caráter
integrador, estuda os contos em suas inter-relações.
13
1 – MARGENS DE UM PROCESSO
1.1 – O conto latino-americano na modernidade
(...) un cuento, en última instancia, se mueve en ese plano del hombre donde la vida
y la expresión artística de esa vida libran una batalla fraternal, si se me permite el
término: y el resultado de esa batalla es el cuento mismo, una ntesis viviente a la
vez que una vida sintetizada, algo así como un temblor de agua dentro de un cristal,
una fugacidad en una permanencia (CORTÁZAR, 1994c, p. 370).
Com esse trecho do ensaio “Algunos aspectos del cuento” (1962), Julio Cortázar apresenta-
nos uma das características essenciais desse gênero: o poder de atingir profundamente o ser
humano, pelo seu modo singular de selecionar artisticamente um fragmento de vida que seja capaz
de quebrar os limites espaciais do texto e iluminar a sensibilidade e inteligência de cada um de seus
leitores.
De maneira particular, o conto toca os escritores latino-americanos da modernidade. Com as
produções de autores como o brasileiro Machado de Assis e o nicaragüense Rubén Darío, o conto
alcança consolidação estética no final do século XIX, momento a partir do qual vem assumindo,
cada vez mais, vitalidade nos diferentes países, apresentando particularidades autorais e originais
desdobramentos em cada um de seus momentos históricos.
Noé Jítrik, em seu artigo “Destruição e formas nas narrações” (1979), chama atenção para a
inter-relação que se estabelece entre a evolução do gênero e as mudanças ocorridas na modernidade,
que esse momento histórico é marcado pelas dúvidas diante das formas de conhecimento que
alicerçam seu modelo de sociedade, impasse com que também o escritor se defronta ao perguntar-
se, na própria obra, sobre sua capacidade de conhecer o mundo. Coincidindo com tal perspectiva,
Fernando Burgos, na introdução da antologia organizada por ele e intitulada El cuento
hispanoamericano en el siglo XX, considera que a complexa experiência da modernidade latino-
americana pode ser entendida mediante a percepção das transformações do conto ao longo do
14
século XX, pois este se elabora das constantes reconstruções por que passa sua escrita em cada uma
das etapas de sua história (BURGOS, 1997, p. 9) .
A intenção de ruptura com o modelo tradicional realista será um dos principais focos desse
processo, que irá se definindo no sistema literário continental a partir de evidentes mudanças
temáticas e do redimensionamento de certos problemas de composição narrativa. Personagem,
narrador, espaço e tempo passam a funcionar de modo diferente em uma narrativa que não mais
tenta reproduzir a realidade objetiva.
Sabemos que na narrativa ilusionista, a qual caracterizou o modelo realista novecentista, a
interpretação da realidade é reduzida a uma perspectiva externa, que orienta de forma lógica os
acontecimentos. Quanto ao espaço, geralmente limita-se aos ambientes sociais e, observa trik,
costuma ser apresentado como um contínuo, por meio do foco narrativo que sai do olhar e retorna
a ele como única maneira de ser apreendido e compreendido (in MORENO, 1979, p. 230); quanto
ao tempo, na maior parte das vezes é linear e cronológico.
A produção contística regionalista manteve a visão nativista e o discurso verista nos
primeiros anos do século XX, dando continuidade ao que a literatura romântica havia proposto
como dimensão verbal do continente, da nação ou de uma identidade latino-americana a partir do
exotismo geográfico e racial. Referindo-se às “narrativas da terra” e ao papel protagônico do
telurismo nestas, Alicia Llarena, em seu artigo “Espacio y literatura en Hispanoamérica”, cita
Vargas Llosa: Seres, objetos y paisajes desenpeñan en estas ficciones función parecida, casi
indiferenciable: están allí no por lo que son sino por lo que representan. ¿Y qué representan? Los
valores “autóctonos” o “telúricos” de América (apud NAVASCUÉS, 2002, p. 41).
Esse tipo de narrativa estende-se pelas décadas seguintes, representando uma forte vertente
que continuaria à procura de uma identidade americana, mediante a exploração das paisagens locais
e a fixação de tipos característicos.
Um dos primeiros protagonistas da ruptura com esse modelo é o uruguaio Horacio Quiroga.
Em sua obra contística, os problemas do espaço social, que oprimem e desestruturam o homem em
Cuentos de amor, de locura y de muerte (1917), ainda são tratados sob a ótica determinista do meio,
mas as personagens quiroguianas exercem papel diferente na narrativa, pois não são qualificadas em
sua individualidade, são generalizações das experiências humanas, o que as faz passarem a um
plano simbólico, segundo Jítrik, e tocarem o leitor de forma interior
(1979, p. 222).
15
As vanguardas irão incorporar o regional a partir de uma perspectiva de renovação no final
dos anos vinte. Do criollismo tomam a carga nacionalista, relegando a influência positivista e a
ênfase tipicista. Abrindo-se aos ismos europeus e apropriando-se do legado modernista, que
reivindicou a liberdade de imaginação, os escritores e artistas vanguadistas passam a situar-se, de
acordo com Aimeé Bolaños, em un espacio supranacional, más atentos a su propósitos
identificadores, sobre todo evidentes en su repudio y crítica de las enajenantes práticas sociales
que constituyen un componente esencial de la modernización (BOLAÑOS, 2002, p. 31).
Os espaços urbanos passam a predominar nas narrativas, enquanto o contato com o
surrealismo propicia que a espacialidade comporte as dimensões oníricas ou que ambientes
cotidianos sejam recriados por uma visão dica. A enunciação assume a consciência de seu caráter
performático e de sua função comunicativa, desvincula-se do contrato ilusionista das narrativas
novecentistas (com as quais dialoga de forma paródica e irônica) e se abre a múltiplas vozes da
cultura popular. Salienta Fernando Burgos, na introdução do livro Antología del cuento
hispanoamericano, que os escritores da vanguarda desenvolvem uma preocupação com a natureza
da linguagem do conto, e, aproximando-se do logos poético, ampliam os recursos metafóricos de
seu discurso, substituindo a linearidade narrativa pela descontinuidade, recursos que criariam un
nuevo tipo de lector e implicarían su compromiso creativo (BURGOS, 1991, p. xxv).
Nos anos trinta, surge um conjunto de textos que trarão profundas transformações à
contística latino-americana, que apontam uma total insubmissão aos temas ligados à cor local,
juntamente ao rompimento com a linguagem ilusionista. Um dos escritores que se destacam nessa
substituição de paradigmas literários será o argentino Macedonio Fernández, que em sua obra
assume a intenção de negar um modelo realista de narrativa, pois acredita que tal modelo veicula,
em sua construção, uma ideologia comprometida com um mundo civilizado decadente. Noé Jítrik,
em seu artigo “La ‘novela futura’ de Macedonio Fernández”, comenta: La negación, que aparece
como una fuerza estructurante, se manifiesta por lo tanto en dos níveles, el de la forma vieja como
imagen de una totalidad y el de los “elementos” que siendo constitutivos de la forma vieja deben
ser transformados (in LAFFORGUE, 1974, p. 37).
Macedonio Fernández subverte o funcionamento desses elementos quando constrói um
mundo às avessas, em Papeles de recienvenido (1929), universo com leis próprias, diferentes das do
mundo real, em que é negada a concepção objetiva de espaço e tempo. Ana María Barrenechea, no
ensaio “Macedonio Fernández y su humorismo de la nada”, comenta o sentido de tal mudança
16
formal na referida obra: su absurdo humorístico afecta las tres categorías fundamentales de la
experiencia: el tiempo, el espacio y la causalidad (in LAFFORGUE, 1974, p. 76). O tempo é
aquele vivido pelo ser no presente, em que se inscrevem muitos planos espaciais: do sonho, da
morte e da arte. Revelando um profundo caráter auto-reflexivo, os textos apresentam um
cruzamento dos planos da “realidade” e da ficção, em que personagens perguntam sobre seus papéis
e debatem suas ações com o autor.
Como tem sido afirmado pelas diferentes vozes da crítica, Jorge Luis Borges é figura
determinante nos novos rumos da contística latino-americana dos anos 30 e 40. Fazendo uso de
grande liberdade criativa, tanto em sua temática universal (que funde tangos, literatura gauchesca e
as Mil e uma noites) como na insubmissão aos gêneros (ensaio, biografia, resenha e ficção
mesclam-se), a narrativa borgeana será decisiva nas rupturas com a tradição
Borges cria uma nova linguagem, que se desvencilha dos modelos europeus e da submissão
aos referenciais da realidade concreta. Com isso,
nas palavras de Flávio Loureiro Chaves,
transforma o fazer literário em ato puro de criação (CHAVES, 1973, p. 149).
Considera Loureiro Chaves que Borges, junto a Roberto Arlt e Julio Cortázar, serão os
responsáveis pela inserção da literatura latino-americana na modernidade ocidental, pois suas
narrativas incorporam a imagem caótica e incompleta da existência, junto à constatação da falência
da linguagem tradicional para dar conta da crise humana.
1
Nos anos quarenta, o conto latino-americano assume importância decisiva no processo de
evolução literária, na medida em que contempla uma geração de escritores responsável por um dos
momentos mais fecundos da contística latino-americana, em que os questionamentos sobre a
condição humana e a própria literatura aprofundam-se, juntamente à constante problematização dos
procedimentos narrativos, aspectos que nortearão os paradigmas escriturais das décadas seguintes.
Nesse período aparecem os textos inaugurais de escritores como Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti,
Alejo Carpentier, Juan Rulfo, José Lezama Lima e Guimarães Rosa, os quais dominarão a cena
literária na segunda metade do século XX. Sobre a importância do estudo dessa produção, comenta
Elena Palmero González:
1
Chaves considera que as narrativas de Machado de Assis são uma exceção soberana nesse contexto cultural, pois o
cunho existencial abordado de maneira profunda pelo escritor brasileiro não teria continuidade no sistema literário
latino-americano até a década de trinta, já que o teórico acredita que até mesmo as várias tendências modernistas pouco
disfarçaram um romantismo retardatário. De acordo com o pensamento de Chaves, antes da revolução industrial dos
anos trinta não houve condições para que uma narrativa existencial, que se inicia com Kafka e tem continuidade com
17
(...) es imprescindible una mirada al cuento latinoamericano de la década del
cuarenta no sólo en su lógica de continuidad del proceso renovador iniciado con las
vanguardias, sino también en lo que concierne a su profunda transformación de los
códigos genéricos que adelantan el reconocido florecimiento de los cincuenta y
sesenta (2004, p. 144).
Uma das temáticas que se destacam nesse período, traduzindo a crise do sujeito, é a
problematização da experiência temporal humana. Esse tema alcançará correlato na resolução
composicional do texto, que reduzirá significativamente o tempo do enunciado em função da
potencialização do tempo da enunciação. Esse procedimento de redução temporal, recorrente na
narrativa dos anos quarenta, é considerado por Palmero González (2004) uma das maiores
conquistas expressivas dessa produção em seu papel transformador da tradição narrativa. Esse
privilegiar do tempo do contar em detrimento do tempo contado garante a metatextualidade, as
fraturas e a descronologização, apelando assim para os múltiplos movimentos internos do tempo
humano.
Carlos Fuentes acredita que na cada de quarenta um protagonismo da cronotopia, pois
em escritores como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Alejo Carpentier o espaço e o tempo
tornam-se protagonistas, como se fossem heróis da narrativa. Ao entender o espaço como criação da
linguagem, Fuentes destaca a importância de Borges ao conceber uma espécie de totalidade
espacial, pois num único espaço, como ocorre em “La biblioteca de Babel” (1941), reúnem-se todos
os textos de todas as épocas, cujo diálogo é estabelecido mediante o ato presente e aberto da leitura.
Também o presente constante das narrativas de Cortázar, diz Fuentes, contempla a idéia da
totalidade do tempo da ficção, onde en cada uno de nuestros actos presentes, portamos todo lo que
hemos hecho, genéricamente (FUENTES, 1997, p. 8).
No ensaio La narrativa argentina actual”, Jorge Lafforgue aponta para o destaque merecido
às décadas de 40 e 50 no que concerne ao surgimento de um conjunto de narradores extremamente
representativo na abertura e inserção da América Latina no processo de transformação da literatura
ocidental. Completando tal idéia, Lafforgue diz: Al mismo tiempo que se incorporan nuevas
técnicas y procedimientos narrativos se va definiendo la propria personalidad (1974, p. 11).
2
Virginia Woolf e Samuel Bekett, ocorresse na América Ibérica, que o processo de formação de seu sistema literário
estabeleceu-se numa dialética entre neo-realismo e regionalismo (CHAVES, 1973, p. 145).
2
Essa obra crítica dos anos 70 empreende uma avaliação que comporta diferentes opiniões a respeito da produção
literária argentina, das quais uma visão negativa da função da literatura fantástica na década de quarenta no sistema
18
Chamando a produção dos anos quarenta de “neovanguardismo”, Fernando Burgos
considera que o conto dessa década experimenta a maturidade das transgressões compositivas
iniciadas pela contística dos anos vinte e trinta, das quais considera fundamental a textualização dos
impasses do processo criativo e de seus resultados imprevisíveis no próprio conto, em que a
imagem do escritor e da escrita são continuamente representadas, numa atitude literária que
aprofunda ainda mais seu caráter autoquestionador. Aproximando o conto à pintura, acrescenta
Burgos a respeito da potencialização do espaço narrativo no conto desses anos: El cuento se
encuentra con el arte, reconociéndose en un espacio de máximo aprovechamiento, ocupado por la
energía del lenguaje, la movilidad de perspectivas y la multiplicidad metafórica (BURGOS, 1997,
p. 19).
José Miguel Oviedo, considerando toda a literatura que vai dos anos vinte aos quarenta
dentro de uma linha estética que ele chama de “La innovación”, diz, na introdução de Antología
crítica del cuento hispanoamericano del siglo XX, que o acento do processo de renovação do conto
hispano-americano nesse período recai na reflexão sobre o próprio sentido de literatura, em que o
relato assume sua condição inevitável de criação fictícia, fruto de pura imaginação e livre da
sujeição a um correlato objetivo. O teórico destaca a presença do fantástico nesse processo
inovador, já que tal vertente cobre muitas variantes que buscam revelar uma inquietação diante das
certezas do mundo cotidiano. Completa Oviedo: Por un lado, esta literatura colinda con la filosofía
y la metafísica; por otro, con el juego, el humor negro y la paradoja intelectual. Es un ejercicio de
la imaginación libre, que tiende siempre a concebir lo imposible (1992, p. 22).
Destacando Borges, Julio Cortázar e Juan Rulfo como três narradores de faculdades
extraordinárias, Enrique Pupo-Walker, no prólogo de El cuento hispanoamericano, considera que
esses escritores inauguram a plenitude criativa do conto hispano-americano que celebraríamos na
segunda metade do século XX. Com seus respectivos livros Ficciones (1944), Bestiario (1951) e
El llano en llamas (1953), o pesquisador diz que seus textos possuem uma riqueza imaginativa e
uma ampla projeção hermenêutica que serão decisivas nos futuros caminhos da literatura ocidental
(PUPO-WALKER, 1995, p. 38).
literário latino-americano. Trata-se do artigo “Lo arquetípico en la narrativa argentina del 40¨, em que Jorge Rivera
considera as narrativas de Borges, Cortázar e Casares como arquetípicas, espécie de narrativas de cunho ideológico
alienado dos processos históricos e com função apenas estética, o que leva o crítico a argumentar que são obras de
retrocesso na história literária argentina.
19
É nesse contexto literário que se insere o primeiro livro de Julio Cortázar, La otra orilla,
obra desconhecida em seu tempo de produção.
1.2 – Anos quarenta: os inícios do escritor
O cunho auto-reflexivo, elemento que até aqui se definiu como elemento privilegiado no
conto nos anos quarenta, evidencia, de alguma maneira, a atitude de autoquestionamento que essa
prática ficcional assume nessa etapa histórica. Trata-se de um período em que muitos intelectuais
questionam o modelo hegemônico de compreensão da realidade que, baseado no espírito
racionalista, revela sua profunda contradição ao sustentar um tipo de civilização que é capaz de
gerar o ápice de seu paradoxo: o irracionalismo materializado na Segunda Grande Guerra. Tal
hegemonia apresenta-se, ao mesmo tempo, como forma e conteúdo de um pensamento totalizador, o
que irá provocar uma atitude de ruptura, uma “implosão epistemológica”, nas palavras do filósofo
Ricardo Timm de Souza, perante tal hegemonia, o que se expressará em muitas áreas do
conhecimento. Ao cabo de um grande conjunto de mudanças, a sociedade acaba vivendo a
precipitação do processo de rompimento e desagregação de uma totalidade fática e de sentido
(SOUZA, 1996, p. 27)
3
.
Tais atitudes de rompimento com a tradição do pensamento ocidental estão presentes na
produção dos intelectuais latino-americanos. Também nas primeiras escolhas éticas e estéticas de
Julio Cortázar constata-se essa postura de ruptura com velhos modelos de sociedade e literatura, que
se evidencia tanto em seus primeiros textos críticos e ficcionais como na própria trajetória de vida
nos anos quarenta.
3
O conceito filosófico “Totalidade” torna-se relevante na medida em que caracteriza o modelo socio-político-cultural
da civilização ocidental do culo XX a partir de duas perspectivas: refere-se ao tipo de linguagem abstrata interessada
na referência semântica unívoca e na precisão da idéia expressa (SOUZA, 1996, p. 16), e denomina o impulso do
espírito ocidental em reduzir o desconhecido em conhecido, o “diferente” no “mesmo”. Diante deste quadro histórico de
período entre-guerras, há uma indignação ética da intelectualidade européia com a tradição histórica, filosófica e
literária. Na filosofia, a crítica dirige-se ao próprio autocentramento (a filosofia resolve-se em si mesma), já que o
pensamento filosófico tradicional não parece responder às questões pontuais que a sociedade quer discutir. A crítica a
tal pensamento, que havia sido iniciada no início do século pelos integrantes da Escola de Frankfurt (entre eles
Adorno, Horkheimer e Benjamin), na década de quarenta tem sua continuidade com a filosofia e ficção existencialista
de Jean-Paul Sartre (entre outros), ao defender que o pensamento deve situar-se para fora de si mesmo, alimentar-se da
realidade objetiva. Na produção literária, também há um posicionamento ético do escritor diante da sua tradição
literária, o que seria, nas palavras de Roland Barthes, um compromisso com a sua forma, seja assumindo, seja
recusando a escrita de seu passado (BARTHES, 2004, p. 4).
20
Ao dirigirmos nosso olhar para a Argentina, país que Julio Cortázar adota (pois nascido em
Bruxelas em 1914), encontramos uma nação que, mesmo aparentando uma modernização
proveniente do excedente comercial propiciado pela Segunda Guerra Mundial, mantinha-se atrelada
à aristocracia pecuarista e comercial sob o governo populista do General Juan Perón. Sobre tal
situação, Carlos Fuentes chama a atenção para as contradições de um país que mantinha uma
drástica divisão entre sua moderna capital e seu atrasado interior agrário, fato que o escritor assim
metaforiza: Buenos Aires era a cabeça do gigante Golias colocada sobre o frágil corpo de Davi, a
nação argentina (FUENTES, 2001, p. 319).
Nessa européia” cidade latino-americana, como a considera Fuentes (já que em muitos
aspectos se assemelhava às grandes cidades da Europa), ocorre um considerável movimento
cultural, que pode ser atestado pela atuação de vários intelectuais, entre eles o grupo de artistas
plásticos abstratos, cujas idéias eram veiculadas pela revista Arturo (que se inicia em 1944 e assume
o nome de Madi, em 1946), artistas que, junto com os surrealistas, lançam a revista Ciclo em 1948,
com propostas que, além de se sintonizarem com as vanguardas artísticas européias, reivindicavam
o materialismo dialético, como explica o crítico de arte Edouard Jaguer (PONGE, 1999, p. 271). No
meio literário formam-se grupos atuantes em torno de revistas como Sur, dirigida por Victoria
Ocampo, e Los Anales de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luis Borges. Em tais publicações são
lançados novos autores latino-americanos, como foi o caso do próprio Cortázar, apresentado por
Borges por meio da publicação do conto “Casa tomada” em Los Anales de Buenos Aires, em 1946,
bem como são traduzidos grandes contistas, principalmente anglo-saxões, como é o caso de Edgar
Alan Poe, Henry James e H. G. Wells, que serão de grande influência para a nova geração.
Nesse contexto histórico-cultural é que se produz a formação literária de Julio Cortázar e o
início da criação ficcional e ensaística do artista, que, mesmo afastado da metrópole argentina,
mantém-se em intensa produção intelectual.
Tendo ido trabalhar como professor secundário em 1939 na cidadezinha de Chivilcoy, da
qual o escritor queixa-se, nas cartas que troca com amigos, do pouco movimento cultural que tinha
e da enorme distância que a separava de Buenos Aires, Cortázar aproveita a solidão para dedicar-se
a ler e estudar os grandes autores clássicos e contemporâneos e a fazer traduções de textos literários
do inglês e do francês para a revista Leoplán. Em 1944, encontra problemas com grupos
nacionalistas de Chivilcoy, que o acusam de “escaso fervor gubernista”, “comunismo” y
“ateísmo” (MORA, 2002, p. 48), e decide mudar-se para Mendoza, onde iria ministrar aulas de
21
Literatura Francesa e Inglesa, nas Faculdades de Letras e Filosofia da Universidad de Cuyo. Em
1945 ele se demite, pois se sentia atrelado a um mandato ditatorial, posição do escritor que, na
opinião de Saúl Yurkievich, conta de uma atitude de autonomia ética e defesa da liberdade de
pensamento (CORTÁZAR, 1994b, p. 15). Cortázar vai então para Buenos Aires, onde exerce um
emprego burocrático na Cámara Argentina del Libro, e permanece até 1951, quando parte para
Paris.
Quando ainda assinava-se Julio Denis, Cortázar publica seu primeiro livro, Presencia
(1938), uma seleção de poemas, e em 1941 faz sua estréia na ensaística numa desconhecida revista,
Huella, com o texto “Rimbaud”, considerado por Jaime Alazraki como uma proclamação de
literária da geração de 1940, em que é defendida a necessidade de mudar a vida pela prática poética
(CORTÁZAR, 1994c, p. 9). Ao longo desses anos, Cortázar escreve várias resenhas literárias em
diferentes revistas: Cabalgata, Los Anales de Buenos Aires, Realidad e Sur, as quais testemunham o
grande número de leituras que o escritor utiliza em suas críticas. Em 1947 escreve Divertimento,
romance que será publicado postumamente, e em 1949 publica Los reyes, poema dramático que
leva seu nome. No ano de 1948, publica “Notas sobre la novela contemporánea”, em Realidad,
em que serão apontados sinteticamente alguns dos temas desenvolvidos no ensaio Teoría del túnel:
notas para una ubicación del surrealismo y el existencialismo, obra de grande fôlego, escrita em
1947 e só publicada depois de sua morte, em 1994.
A obra Teoría del túnel assume lugar significativo na trajetória de Julio Cortázar, pois, além
de analisar o processo de transformações por que passa a linguagem narrativa ao longo da história
literária, busca definir a própria poética, o que confere à obra uma dupla condição: crítica analítica e
manifesto literário
4
. Esse ensaio preconiza uma nova escrita, a “linguagem-túnel”, discurso
iconoclasta que pretende desestruturar as centenárias “fortificações” literárias na intenção de
construir outra escrita, tendo como objetivo maior a aproximação da literatura com a existência
humana, tanto no que se refere ao caráter autoconstrutivo que Cortázar atribui ao ato humanizador
da escritura, como ao compromisso social da literatura de não apresentar a vida, mas também de
atuar sobre ela. Desse modo, é veiculado um compromisso social diante do sistema literário ao qual
Cortázar dirige sua reflexão e no qual procura situar seu lugar de ruptura, que se torna evidente na
sua própria ficcionalização como nuestro joven escritor rebelde (CORTÁZAR, 1994b, p. 48).
4
O estudo desse texto crítico de Cortázar é desenvolvido em meu ensaio: “A história do romance ocidental na Teoría
del nel, de Julio Cortázar”, apresentado no VI Seminário Internacional de História da Literatura, na PUC-RS, em
2005.
22
Cortázar, em seus “passos subterrâneos”, rechaça uma norma narrativa realista, esta entendida nos
termos em que a narrativa novecentista traduz a relação do texto subjugada ao universo da
referência objetiva. Interessante é observar a reincidência da imagem poética do rio e suas margens
nesse texto crítico, pois a escrita será metaforizada como el río de la creación verbal del hombre,
cujas “orillas” serão facultadas às duas atitudes modernas que terão forte influência na obra de
Cortázar: o surrealismo e o existencialismo, movimentos que, segundo o escritor, mesmo diferentes,
como as margens de um rio, possuem um objetivo comum: a abolição do encarceramento espiritual
do ser humano.
1.3 – A gestação de um livro: La otra orilla
Um outro lugar, uma margem inventada ou um espaço inusitado são algumas das idéias
sugeridas pela imagem La otra orilla, título que Julio Cortázar dá, em 1945, à reunião de seus
primeiros contos, escritos entre os anos de 1937 e 1945, livro inaugural no conjunto da obra
contística do escritor argentino.
Assim como a Teoría del túnel, essa obra ficcional seria publicada postumamente, em
1994, quando a editora espanhola Alfaguara, nos dez anos da morte do escritor argentino,
homenageia-o lançando cinco volumes dedicados a sua produção ficcional e ensaística: Cuentos
completos 1 e 2 e Obra crítica 1, 2 e 3. Tal fato editorial justifica, em certa medida, o pouco
conhecimento por parte da crítica e das histórias literárias dessas duas obras fundamentais ao
entendimento do conjunto da produção de Cortázar.
Apenas dois contos de La otra orilla teriam sido publicados nos anos quarenta: “Llama el
teléfono, Delia”, no jornal socialista de Chivilcoy, El Despertar, em 1941, e Bruja”, na revista
Correo Literario, de Buenos Aires, em 1944. Posteriormente, “Estación de la mano” será incluído
em La vuelta al día en ochenta mundos (1970) e “Bruja” será reeditado em 1978, na revista
Caravelle. Carmen de Mora, baseada na correspondência que Cortázar manteve com amigos nos
anos quarenta, acredita que La otra orilla permaneceu inédito devido a problemas editoriais, uma
vez que, em carta dirigida a Lucienne de Duprat (Mendoza, 16 de dezembro de 1945), Cortázar
assim se refere à edição da obra: De mi tarea personal, le diré que reuní los cuentos en volumen,
23
agregué dos o tres escritos hace poco, y espero que me editem en Buenos Aires, aunque no hay
nada seguro – como de costumbre (MORA, 2002, p. 49).
Em 1946, em carta enviada ao amigo Sergio Sergi (importante gravurista argentino), o
escritor conta que o volume seria publicado pela Editorial Nueva,
por outubro ou novembro daquele
ano, e que os contos seriam ilustrados por Seoane. Sobre tal possibilidade ele comenta: Parece que
será una linda edición (MORA, 2002, p. 50). A interrupção da correspondência entre os amigos
contribui para o desconhecimento das razões que provocaram o impedimento da edição de La otra
orilla, ficando a cargo de Bestiario (1951), portanto, o lugar de livro de estréia de Julio Cortázar
como contista. Com isso, o autor argentino só será referenciado pela crítica e a historiografia
literária como um autor dos anos cinqüenta, já que os dois contos publicados em publicações
periódicas da década de quarenta, “Llama el teléfono, Delia” e “Bruja”, são totalmente ignorados no
momento de caracterizar o itinerário criativo do autor.
No prólogo de La otra orilla, Julio Cortázar conta-nos um pouco sobre o modo como
entende a relação estabelecida entre os treze textos reunidos no livro, histórias que, segundo ele,
interagem como se cada uma constituísse um haz de mimbres (p. 29)
5
. Tal imagem aponta para a
interligação dos textos através de pontos em comum e para a condição complementar, em alguns
casos, que apresentam um em relação ao outro, como as delgadas ramas que juntas formam os
arbustos que crescem nas margens dos rios, ambiente fronteiriço, que está em sintonia com os
muitos significados espaciais a que o título e a obra remetem. Essa interdependência também
aparece no processo de organização da obra, como confidencia o autor: Toda vez que las hallé en
cuadernos sueltos tuve certeza de que se necesitaban entre sí, que su soledad las perdía (p. 29).
A intenção de respeitar a necessidade de encadeamento entre os textos é percebida pela
ordem em que as histórias estão dispostas, já que na maior parte das vezes obedecem à cronologia
de sua escrita e, por conseguinte, o processo reflexivo que acompanhou esse começo de criação
artística, como é anunciado, ainda no prefácio, pelo escritor: Acaso merezcan estar juntas porque
del desencanto de cada una creció la voluntad de la siguiente (p. 29). Além de uma certa seqüência
temporal, os contos obedecem ao agrupamento em três partes, cujos títulos sugerem uma
aproximação temática entre os textos de cada um dos capítulos: “Plagios y traducciones”, “Historias
de Gabriel Medrano” e “Prolegómenos a la Astronomía”.
5
Todas as citações de trechos de La otra orilla são feitas com o número da página entre parênteses e pertencem à
edição referenciada: CORTÁZAR, Julio. Cuentos completos/1. Madrid: Alfaguara, 1994a.
24
Mediante tais “instruções de leitura”, as análises interpretativas dos contos, propostas no
capítulo seguinte, seguem a ordem de apresentação dos textos no livro, bem como a divisão em três
partes.
25
2 – MARGENS DE UMA OBRA
2.1 – Plágios
Interessado não em desestruturar a aparente idéia de segurança em que a realidade social
se apóia, mas também em investigar o ser humano nas diferentes dimensões de sua existência,
Cortázar encontrou no fantástico um gênero propício para a concretização de grande parte de sua
obra. Diz Cortázar, em “Algunos aspectos del cuento” (1963), que seus contos podem ser
considerados como fantásticos por apresentarem um mundo, não a partir de un sistema de leyes, de
principios, de relaciones de causa a efecto, de psicologías definidas, de geografías bien
cartografadas, (...) [mas de] otro orden más secreto y menos comunicable. Ainda acrescenta:
(...) el fecundo descubrimiento de Alfred Jarry, para quien el verdadero estudio de
la realidad no residía en las leys sino en las excepciones a esas leyes, han sido
algunos de los principios orientadores de mi búsqueda personal de una literatura al
margen de todo realismo demasiado ingenuo (CORTÁZAR, 1994c, p. 368).
O escritor sempre referenciou sua dívida com os grandes mestres do conto fantástico,
identificação que pode estar relacionada ao fato, citado por Italo Calvino, de que tal gênero, nascido
na Alemanha no início do século XIX, surge com a intenção de representar o mundo interior e da
imaginação com a mesma dignidade com que é representado o mundo objetivo e dos sentidos
(CALVINO, 2004, p. 10), intenções que parecem identificar-se com as de Cortázar
6
.
6
Tzvetan Todorov entende que a literatura fantástica conta da problematização do sujeito e do mundo em diferentes
instâncias, utilizando para tanto transgressões formais, tais como a ruptura do princípio de causalidade e o afastamento
da concepção objetiva do tempo e do espaço (TODOROV, 1975, p. 113). Wolfgang Kayser chama a atenção para a
mudança do sentido da literatura fantástica no segundo decênio do século XX, pois não se interessa mais em incorporar
o noturno para causar medo, e sim abalar as categorias vigentes na imagem burguesa do mundo. (KAISER, 1986, p.
91). Na América Latina, o uso artístico do fantástico vem se manifestando desde o século XIX, assumindo, desde então,
diversidade de tratamento pela contística latino-americana, e constitui, pois, gênero que atravessa o modernismo, segue
com as vanguardas e continua até a literatura atual. Esse processo evolutivo do conto fantástico é descrito por Fernando
26
Sobre a renovação do conto fantástico efetuada por Cortázar, argumenta Charles Kiefer que,
mesmo quando se trata de uma fábula de cunho realista, o autor consegue representar outro
ordenamento do universo mediante o trabalho original com os meios expressivos. Com isso, o
pesquisador considera o fantástico cortazariano como complexo produto da linguagem, pois não
reside apenas num motivo inusitado, mas na constante eminência da passagem de uma ordem à
outra, ordens que costumam estar ligadas tanto ao plano temático como ao formal (KIEFER, 2004,
p. 97).
É relevante analisarmos as próprias opiniões de Cortázar sobre a presença da tradição
fantástica em sua obra, em artigo publicado na década de setenta, “Notas sobre lo gótico en el Río
de la Plata” (1975), no qual destaca também tal perspectiva de interpretação da realidade em grande
parte da produção ficcional rioplatense (entre os autores, são citados Horacio Quiroga, Jorge Luis
Borges e Felisberto Hernández). Cortázar tenta entender esse fato a partir de sua própria
experiência: uma infância povoada de crenças populares e histórias de terror e a leitura de autores
góticos consagrados, dos quais destaca Edgar Allan Poe, são as razões que o autor argentino
encontra para justificar esse gosto que seria decisivo na criação de seu modo de expressão. Diz ele:
Creo que sin “Ligeia”, sin “La caída de la casa de Usher”, no se hubiera dado en mi
esa disponibilidad a lo fantástico que me asalta en los momentos más inesperados y
que me lleva a escribir como única manera posible de atravesar límites, de
instalarme en el terreno de lo otro (CORTÁZAR, 1994d, p. 82).
Citando o termo freudiano Unheimlich (aproximadamente: lo inquietante, lo que sale de lo
cotidiano aceptable por la razón) (CORTÁZAR, 1994d, p. 82), o autor situa esse terreno do outro
nas zonas obscuras da psique, em que realidade e irrealidade se confundem. Por sua vez, o termo
”outro” assume duplo sentido, que tanto se refere aos “outros eus”, zonas desconhecidas da
própria psique, como também a outra pessoa (como o leitor), com quem é possível reconhecer-se
mediante a correlação de experiências arquetípicas.
Com as referências textuais contidas no ensaio de 1975, Cortázar nos informa sobre as
leituras que lhe foram decisivas na construção de seu cosmos individual, espaço vital em que
figuram os grandes temas existenciais que um artista necessita expressar de forma particular. Mas,
além dessas importantes reflexões, esse ensaio contém uma esclarecida visão do posicionamento do
Burgos como altamente produtivo, que, de cada uma dessas etapas, o gênero absorveu la energía de orientaciones
artísticas variadas y hasta contradictorias (BURGOS, 1991, p. xxiv).
27
escritor frente às suas influências literárias, uma vez que, partindo da premissa de que a inocência já
não existe na literatura moderna, considera que a leitura que os escritores latino-americanos fazem
dessa tradição gótica efetua-se a partir de um rechaço irônico dos velhos truques dos contos de
horror e da tradicional cenografia verbal, que consiste em extrañar de entrada al lector,
condicionarlo con un clima morboso para obligarlo a acceder dócilmente al misterio y al espanto
(CORTÁZAR, 1994d, p. 83). Ainda acrescenta: Nuestro encuentro con el misterio se dio en otra
dirección, y pienso que recibimos la infuencia gótica sin caer en la ingenuidad de imitarla
exteriormente; en última instancia, ése es nuestro mejor homenaje a tantos viejos y queridos
maestros (1994d, p. 87).
As idéias de Julio Cortázar remetem-nos ao conceito “entre-lugar”, espaço enunciativo
produtivo em que se situa a diferença, onde, se o significante é o mesmo, o significado circula uma
outra mensagem, uma mensagem invertida (SANTIAGO, 2000, p. 23). Sob essa perspectiva o
escritor trabalha o espaço enunciativo de La otra orilla, particularmente em sua primeira parte, cujo
título, “Plagios y traducciones”, aponta ironicamente para a proposta de um diálogo com a tradição
literária, em que é evidente a relação intertextual estabelecida com motivos e composições
narrativas reconhecíveis na história da literatura, mediante uma escritura que se constrói por meio
da ressignificação da herança na própria fábula. Velhas lendas de fantasmas, vampiros e bruxas,
além de contos de Edgar Allan Poe, Gérard de Nerval e Guy de Maupassant, dialogam com os
textos do escritor argentino.
Tais procedimentos encontram-se num dos primeiros contos escritos por Cortázar, “El hijo
del vampiro” (1937), em que podemos constatar algumas estratégias que subvertem e atualizam a
lenda em tempos modernos. De início, nos é apresentada a figura paradoxal do vampiro Duggu
Van: habitante das tumbas que não é temido, mas respeitado pelos fantasmas, ser impulsivo que tem
como costume nunca pensar antes de agir; vampiro guloso, cujo desejo por sangue novo começa a
ser refreado pelo amor sentido por Lady Vanda. Essa importante mudança sentimental é
metaforizada na vontade, sentido pelo vampiro, de troca de sua tumba-cama de solteiro por uma de
casal. Trata-se, portanto, de um móvel vampiresco subvertido, pois perde sua força simbólica
tradicional ligada à solidão e falta de afetividade de um vampiro, ajudando na construção desse
novo caráter dado à personagem da tradição fantástica.
Michel Butor, em seu estudo “Filosofia do mobiliário” (1967), chama a atenção para o
significado que adquirem os objetos na narrativa, pois possuem diferentes forças (psicológicas,
28
históricas, arquetípicas etc.) como o espaço vivido (de que se serve a literatura), em vista do que os
objetos possuem significativa função na construção das personagens (REDONET COOK, 1983, p.
546). Além de atuar na modelagem do vampiro-homem, tal leito aponta para um novo espaço
narrativo, de traços também híbridos, em que a divisão incomunicável entre o mundo dos seres
sobrenaturais e o dos humanos começa a ser rompida.
Apesar de retomar o espaço do fantástico tradicional, em que figura o castelo medieval, o
tempo da lenda é atualizado mediante a presença, repudiada por Duggu Van, de uma indústria
frigorífica. Todas essas “brincadeiras” subvertem o modelo literário da lenda, ademais ocorre a
humanização da figura do vampiro através do riso. Tal processo humanizador também surge com o
sentimento amoroso, que, além de corromper a imagem atemorizante do vampiro, funciona como
desencadeador da ruptura dos limites entre diferentes instâncias da existência, ou seja, rompe com
as barreiras entre vida e morte, corpo e alma. Acompanhemos, no conto, o início desse processo:
Que los vampiros se enamoren es cosa que en la leyenda permanece oculta. Si él lo
hubiese meditado, su condición tradicional lo habría detenido quizá al borde del
amor, limitándolo a la sangre higiénica y vital. Mas Lady Vanda no era para él una
mera víctima destinada a una serie de colaciones. La belleza irrumpía de su figura
ausente, batallando, en el justo medio del espacio que separaba ambos cuerpos,
com el hambre (p.33).
A expressão en el justo medio del espacio que separaba ambos cuerpos comporta uma zona
intersubjetiva inusitada, um espaço de natureza ontológica em que se debatem, metaforicamente, as
duas naturezas humanas: a espiritual (a beleza de Lady Vanda) e a corporal (a fome de Duggu Van).
A
distância entre os corpos vai sendo vencida por uma série de fenômenos inexplicáveis, os quais
movem a trama. A invasão e posse do corpo feminino pelo monstro inicia-se com o ato sexual, tem
continuidade com a gravidez e a recusa do aborto por Lady Vanda, e finalmente culmina na
apropriação do corpo da mãe pelo filho vampiro. O surgimento desse corpo insólito instaura o fim
dos limites que comportariam as dualidades: corpo e espírito, morte e vida, humano e montruoso. O
filho do vampiro é a metonímia da própria condição humana paradoxal, já que admite que o
humano também é monstro, a vida comporta a morte, o espírito e o corpo são inseparáveis.
No que se refere ao fenômeno de suplantação física, o artigo “La protohistoria literaria de
Cortázar: La otra orilla”, de Carmen de Mora (2002, p. 53), aponta a intertextualidade desse motivo
com os contos “Ligéia” e “Morella”, de Edgar Allan Poe, uma vez que nos três contos a morte é
vencida mediante essa posse” de um outro corpo, possessão movida pela força do sentimento
29
amoroso. Tal amor, a vontade que não morre, em “Ligéia” (POE, 1987, p. 150)
7
, manifesta-se em
criaturas estranhas, como é o caso da própria Ligéia, descrita por Poe de forma vampiresca. Talvez
resida a metáfora da estranheza de um amor devorador, incontrolável, libidinoso, irracional.
Apesar do impedimento de o vampiro encontrar Lady Vanda grávida, provocado tanto pela
vigilância da governanta, Miss Wilkinson (mais um dos nomes, no conto, que homenageia o
fantástico anglo-saxão), como pela separação espacial dos amantes, efetuada pelas puertas cerradas
por Yale (p. 34), que constituem representações dos controles sociais, o filho do amor “vampiresco”
passa a existir e ocupar seu lugar na sociedade.
Charles Kiefer desenvolve a idéia de que a irrupção do fantástico no cotidiano, característica
freqüente nos contos de Cortázar, dá-se mediante um processo de invasão, o que constituiria uma
visão do fantástico como “passagem”. Partindo dessa premissa, poderíamos pensar que “El hijo del
vampiro” se soma a essa prática cortazariana. Um corpo de mulher invadido por um vampiro é de
alguma maneira a expressão do espaço do cotidiano invadido pelo fantástico.
No segundo conto, “Las manos que crecen” (1937), é interessante observar a ambigüidade
entre ficção e realidade criada no início da narração, quando o narrador atribui às palavras o
desenrolar das ações tal como suele ocorrir en esta vida (p. 36). Trata-se de uma estratégia
discursiva que brinca com as margens e com a determinação espacial, para ludicamente introduzir a
dúvida entre o “real” e o “onírico” no relato, ambigüidade que é reativada no final, em que há
confusão em diferenciá-los por parte da personagem.
A tradição literária é articulada no relato mediante a leitura de um motivo muito freqüente
no gênero fantástico: a mão separada do corpo. Como acontece no conto “A mão encantada”, de
Gérard de Nerval (1832), o relato de Cortázar tem como enredo o descontrole das mãos (e, por
conseguinte, da própria vida da personagem) por parte do protagonista, mediante a força
descomunal que adquirem. Como observou Italo Calvino acerca do relato de Nerval, a mão
enfeitiçada assume simbolismo moral ao sugerir a idéia da violência agressiva que cada um de s
traz consigo (CALVINO, 2004, p. 139), o que é intensificado no texto de Cortázar, pois a origem da
força dispensa os poderes gicos externos. A agressividade é evidenciada no enorme prazer de
Plack em golpear o amigo, como é referido no trecho: y cada vez que sus puños se hundían en una
masa rebaladiza y caliente, que sin duda era la cara de Cary, él sentía el corazón lleno de júbilo (p.
36).
7
Esse trecho pertence à epígrafe, de autoria de Joseph Glanvil, que abre o conto “Ligéia”.
30
Em ambos os relatos, a desmedida agressividade das mãos está associada à reação perante a
situação de opressão social vivida pela personagem, que, no caso da personagem nervaliana,
Eustache, é a de um novo comerciante na fechada sociedade francesa aristocrática do século XVII,
e de Plack é a de mais um desvalorizado empregado público na sociedade capitalista do século XX.
Ao referir-se ao trabalho na repartição pública, o narrador, apropriando-se da perspectiva
psicológica da personagem, mostra o paradoxo, percebido por Plack, entre a quantidade de energia
despendida pelas mãos e a falta de (auto-)reconhecimento desse empenho: Mucho trabajo, en la
Municipalidad. No bastaban todas las manos para cumprir la tarea. Las manos... (p. 37).
A hipertrofia das mãos do empregado, presente apenas no conto argentino, instaura uma
nova perspectiva temática ao tradicional motivo fantástico, que poderíamos entender como
problematização da condição do trabalho contemporâneo, que evidencia, ironicamente, a falta de
importância do trabalhador na figura paradoxal de um funcionário com superpoderes de herói.
Poderíamos pensar a anomalia das mãos como a metáfora do descompasso entre duas classes
sociais incomunicáveis e em conflito no modelo socioeconômico capitalista: a classe opressora (que
não abdica da violência para manter sua posição de poder), possuidora dos meios de produção, e a
classe oprimida (que sofre a violência do poder sico e espiritual), a qual, desprovida dos meios
produtivos, vende sua força de trabalho por pouco. No conto, as duas realidades sociais são
metaforicamente fundidas na mesma personagem (elemento narrativo que assume a dupla função de
herói e anti-herói), que é trabalhador massificado, funcionário de muitas mãos insignificantes na
sociedade burocrática, mas também indivíduo poderoso, por isso, boxeador de golpes invencíveis.
Portanto, estamos diante de uma personagem grotesca, cuja aparência desumana (fora dos padrões
humanos) advém do fato de ela significar o desordenamento de uma realidade que possui um
modelo socioeconômico em crise, agregando num único indivíduo a divisão rígida entre o
explorador e o oprimido. Poderíamos também conjeturar que essas enormes mãos são a metáfora de
uma espécie de assinalamento discriminatório em relação ao “diferente” (trabalhador que também é
herói), prática que constitui a própria origem do pensamento totalizador que baliza a civilização
ocidental. As mãos assimétricas marcam na imagem externa da personagem sua condição de
indivíduo transgressor à ordem estável, pois, como personagem grotesca, desarticula a solidez de
um modelo de civilização homogêneo.
A tensão do conto constrói-se mediante sua composição espaço-temporal também
tensionada. O tempo da história é muito curto, já que a vida do protagonista é radicalmente
31
transformada em algumas horas, apesar de essa profunda experiência ser sentida como
interminable. O desenrolar dos acontecimentos ocorre numa seqüência de subespaços cujos valores
semânticos são cada vez mais ameaçadores: a personagem sai da sala da prefeitura de onde havia
tido êxito físico e moral; atravessa o corredor em que há a passagem de homem a monstro; chega às
ruas, espaço público em que é rejeitado; entra, com muita dificuldade, no táxi de um negro, cuja
etnia, tradicionalmente marginada e tratada com preconceito por nossas sociedades, aproxima-se à
condição desumana de Plack (que por isso o insulta); chega ao consultório do médico, o qual tenta
tirar todas as vantagens possíveis das deformidades de seu paciente. Desse modo, a cada subespaço
transposto a agressão do meio social torna-se mais intensa, com isso as mãos passam,
gradativamente, de objeto de satisfação física a motivo de descontrole da personagem.
Ao perceber que já não é mais o mesmo, o homem vê-se diante de um impasse: como aceitar
em si aquilo que não lhe confere mais identidade humana? Diferentemente de Eustache, que é
levado pelo turbilhão de acontecimentos trágicos, desencadeado por sua mão poderosa, até o
assassinato e perda da mão para seu dono mágico, Plack, sabendo que em seu mundo de funcionário
público não lugar para mãos vencedoras, é quem se decide pela própria amputação, o que poderá
lhe garantir o reingresso, mesmo sem uma parte se si, na sociedade ordenada. A perda das mãos é o
ápice do processo de descapacitação do trabalhador e, por conseguinte, da despersonalização do
próprio indivíduo. Ao final do relato, o que poderia ser um pesadelo é fato real: as grandes mãos
não se encontram mais no corpo, estão inertes no formol, já não ameaçam a imagem do funcionário
em seu espaço público.
Desfiguradas pelo formol, as mãos inchadas, ao virar da página, sob o título de um novo
relato, transformam-se em miúdas e delicadas mãos de moça no conto “Llama el teléfono, Delia”
(1938). Com isso é mantido um interessante diálogo no desdobramento da imagem aterrorizante das
mãos deformadas em seu reverso delicado. A expressão que abre o texto, A Delia le dolían las
manos (p. 43), aponta para as mãos feridas da mulher (que doem menos que sua tristeza) em seu
trabalho doméstico, fato que prenuncia as relações analógicas que irão se estabelecer, ao longo do
relato, entre alma, corpo e lar.
O tema da volta dos mortos ao mundo dos vivos, muito freqüente nas narrativas fantásticas
populares, é tratado a partir do desmoronamento psíquico vivido pela mulher que perde o marido,
perda que é percebida em “todas as partes” do ambiente, la ausencia de Sonny, presente en todas
partes como son las ausencias (p. 43). Essa percepção dá-se por meio de um narrador em terceira
32
pessoa, que adota a perspectiva espacial e psicológica da protagonista, assim como sua perspectiva
temporal, que a enunciação, apesar de assumir o tempo verbal pretérito, aproxima-se muito do
tempo do enunciado mediante a presença generalizada de diálogos, o que presentifica a história. O
conto apela assim à unidade de tempo, espaço e ação, aproximando-o do que poderíamos chamar de
tom dramático. Desse modo, uma “apresentação da vida”, em substituição de uma
“representação da vida”, traço que Cortázar apontará, na Teoría del túnel, como um dos sinais de
inovação da narrativa contemporânea (CORTÁZAR, 1994b, p. 67).
Além dessas estratégias discursivas, que trazem o leitor para dentro do relato, os recursos
verbais que remetem aos sentidos também colaboram para que o espaço diegético (o triste lar) seja
imaginado: o sabão que arde nas mãos cortadas como vidro moído, a melodia de um blues cantado
por uma negra, as horas anunciadas pela rádio por uma espécie de guincho, o mover fatigado do
pêndulo do relógio, o silêncio constante do telefone.
A partir do isolamento de Delia em seu encerrado universo psíquico é estabelecida uma
correspondência espaço-temporal de sufocamento, pois ela transita por um reduzido apartamento
num tempo quase imóvel, expressado por reiteradas referências aos minutos do relógio e à
programação da rádio, ou seja, mais um procedimento compositivo usado por Cortázar para
condensar o tempo e o espaço, submetendo-os a uma alta pressão formal e espiritual.
Quando a jovem atende a chamada telefônica e reconhece a voz do marido desaparecido,
intensifica-se a desestruturação da personagem, desencadeando-lhe uma percepção do espaço
ameaçadora, como um redemoinho que a engole: la habitación giraba y el minutero del reloj se
convertía en una hélice furiosa (p. 44).
Após o rmino da ligação, a imensa dor interna da jovem e o pranto que a acompanha
tomam conta do ambiente, e com isso o espaço antropomorfiza-se: Había en la habitación como un
gran oído atento, y los sollozos de Delia ascendían por las espirales de las cosas, se demoraban,
hipando, antes de perderse en las galerías interiores del silencio (p. 47).
Ao saber da morte do marido, Delia aliena-se cada vez mais em seu silêncio interno, e o lar
aparece-lhe como uma confusão generalizada, sem sentido: a respiração do filho confunde-se com o
pêndulo do relógio ou com a voz de um locutor de rádio anunciando um novo modelo de
automóvel. Desse modo, desintegra-se o lar, analogicamente ao que vinha ocorrendo em suas mãos
e em sua alma.
33
O quarto conto, “Profunda siesta de Remi” (1939), é protagonizado por um jovem que
mistura os planos da imaginação, sonho, memória e realidade. Muitos dos fatos que são contados
pelo narrador em terceira pessoa, um narrador que assume a perspectiva espacial e psicológica da
personagem, parecem antecipadamente vividos na mente de Remi. Por culpa de su imaginación
enferma (p. 49), a personagem fantasiou, desde a infância, a idealização de sua morte heróica, cuja
redenção seria o amor de Morella (nome que homenageia a personagem do conto “Morella”, de
Poe), porém na vida real tal morte heróica converte-se, ironicamente, na condenação à pena capital
pelo assassinato da própria amada.
A cena inicial trata do dia da morte de Remi, quando ele é levado pelos policiais de sua cela
até a sala de execução, acontecimento que é construído mediante o deslocamento da personagem
por uma sucessão de subespaços. Observemos tal encadeamento: abre-se a porta da cela, a
personagem atravessa o corredor, chega à sala principal onde se situa uma escada que o encaminha
para cima, chega à sala de execução, un gran silencio lleno de nada (p. 49), e imagina a morte
como uma queda num grande poço negro (espaço que remete não às características de fundo e
escuro, mas também à presença de água estagnada). O conto parece estabelecer uma
correspondência simbólica entre os espaços porta-corredor-escada-sala de execução-poço e a
experiência de passagem do ser humano da vida para a morte, travessia que se aproxima de uma
espécie de ritual de morte, o que prenuncia o destino da personagem.
8
Tal simbologia parece vincular-se com o que Paul Ricoeur chama de “lógica das
correspondências”, ou seja, as ligações simbólicas estabelecidas entre certos espaços com caráter
arquetípico, as quais a literatura revela em muitas de suas criações, como é o caso do conto aqui
analisado. Explica Ricoeur que espaços como portas, pontes e veredas estreitas correspondem a
tipos homólogos de passagem, que os ritos de iniciação nos ajudam a atravessar nos momentos
críticos da peregrinação pela vida: momentos como nascimento, puberdade, casamento e morte
(RICOEUR, 1976, p. 74).
Em se tratando da composição espaço-temporal, as palavras do oficial de justiça, Es la
hora, Remi (p. 49), surgem como indicadoras da redução temporal a que o relato será submetido, já
que nesse último instante que antecede a morte de Remi são encadeados todos os outros episódios
8
Em “La noche boca arriba” de Final del juego (1956), Cortázar retomará essa configuração espacial para novamente
relatar as experiências diante da morte próxima, por meio das aventuras de uma personagem que se desdobra em duas
vidas paralelas em planos espaço-temporais diferentes: um mosteca na Guerra Florida e um motociclista contemporâneo
34
por meio da memória da personagem. Ocorre, então, o que Elena Palmero González, ancorada nas
idéias desenvolvidas por Darío Villanueva no livro Estructura y tiempo reducido en la novela
(1989), aponta como procedimento narrativo determinante na transformação da narrativa
contemporânea: a redução do tempo da história e a ampliação do tempo do contar (PALMERO
GONZÁLEZ, 2003, p. 28). Estudando a obra de Alejo Carpentier, a pesquisadora constata essa
redução em relatos como Viaje a la semilla, que reduz a doze horas a vida de Don Marcial;
Semejante a la noche, em que três milênios de história humana são reduzidos a vinte e quatro horas,
e El camino de Santiago, que diminui para poucos meses a história infinita do mito e da utopia. Tal
redução simultaneística quebra com a noção de presente monolítico, ou seja, rompe com uma
unidade rígida do aqui e agora. Com tal procedimento narrativo, o presente faz-se plural e
heterogêneo (PALMERO GONZÁLEZ, 2003, p. 52).
Essa valorização do tempo do discurso na narrativa contemporânea favorece que sejam
articuladas outras noções temporais ao relato, como é o caso da percepção subjetiva do tempo, que
Paul Ricoeur (1997) chama temporalidade, noção que domina com extraordinária força a filosofia
no século XX.
O filósofo Ricardo Timm de Souza acredita que a passagem da Modernidade à
Contemporaneidade está diretamente relacionada à superação do fixismo do tempo lógico por meio
da redescoberta da temporalidade, o tempo da existência (SOUZA, 1998, p. 136)
9
. Por sua vez, Paul
Ricoeur considera que a atividade literária moderna contribui de maneira excepcional na abordagem
da experiência interna do tempo, pois não se restringe ao tema (como ocorre no campo filosófico),
mas preocupa-se com a própria composição textual. Explorando as características não-lineares da
temporalidade, que o tempo cronológico oculta, a partir das variações imaginativas sobre o tempo, o
teórico francês acredita que a literatura consegue inventar construções da linguagem que conseguem
dar conta dos dilemas da existência (RICOEUR, 1997, p. 241).
Em “Profunda siesta de Remi”, podemos acompanhar tal vínculo entre a construção
narrativa e a vivência da temporalidade pela personagem. O tempo cronológico e objetivo da
acidentado. Assim como Remi, o mosteca e o motociclista também são conduzidos por um corredor que leva ao alto
(boca arriba), onde se situam tanto o altar de sacrifícios dos astecas como a sala de cirurgia de um hospital.
9
Alguns dos estudos filosóficos que vão apontar para uma flexibilização temporal começam com as pesquisas de Henri
Bergson, que falam de uma temporalidade contínua, a qual corresponderia a uma vida interna continuada; além dos
pensamentos de Heidegger em torno da anti-fixação do ser no tempo (SOUZA, 1998, p. 140). Também assumem
importância os estudos de Gaston Bachelard, que em A dialética da duração (1950) opõe-se a Bergson ao propor que a
temporalidade encontra-se no instante. Jean-Paul Sartre, em O ser e o nada (1943), define a temporalidade como intra-
estrutura do ser, ou seja, o ser se temporaliza existindo em várias dimensões temporais (presente, passado e futuro).
35
história é reduzido a um segundo, surgindo assim um tempo interno em que múltiplos espaços da
memória são revividos pela mente agonizante de Remi
10
. Assim descreve o narrador, identificado
com a subjetividade da personagem, o momento em que o tempo da história é interrompido: medi
en el instante fulmíneo las posibilidades sensoriales que lo galvanizarían un segundo después
cuando soltaran la escotilla (p. 49).
A partir desse momento do conto, a composição do relato e seu tema refletem-se,
procurando aproximar-se das complexas experiências da mente diante da morte que se aproxima. O
relato assume um discurso descontínuo que corresponde à confusão mental de Remi, em que o
narrador focaliza simultâneos espaços por meio de sua identificação com a memória do
protagonista. Assim, inscreve-se outro plano narrativo, no qual Remi recorda várias cenas do
passado, em que lhe aparecem o dia em que matou a namorada e lembranças das brincadeiras
infantis. Essas brincadeiras também se aproximam de rituais de morte, que são justapostos como
flashes da memória, nos quais Remi era víctima ilustre, por regicidio o alta traición (p. 50) ao invés
do assassino que se tornará.
Ao final, coincidem o assassinato da mulher e a execução do protagonista, ou seja, os dois
planos narrativos
encontram-se, o plano “real” em que ocorre a morte de Remi na penitenciária e o
das lembranças do protagonista em que Morella leva o tiro fatal, simbiose de acontecimentos
desencadeada pelo grito em comum que ambos despendem ao morrer. Acompanhemos, no trecho a
seguir, como as duas mortes confundem-se na última oração do texto, gerando uma ambigüidade
em torno dos vocábulos “cuerpo”, “ejecutor” e “testigos”: A Remi le pareció como si el grito fuera
suyo, alarido quebrándose de golpe en su garganta contraída. El cuerpo cesaba de temblar. La
mano del ejecutor buscó el pulso en los tobillos. Ya se iban los testigos (p. 51).
Carmen de Mora lembra-nos da reincidência de tal procedimento compositivo em mais dois
contos posteriores de Julio Cortázar: “La noche boca arriba”, de Final del juego (1956), e “El
perseguidor”, de Las armas secretas (1959),
nos quais também o uso de um tempo e um espaço
reduzidos encadeando diversas cenas. Mora cita um trecho de “El estado actual de la narrativa en
10
Erich Auerbach, analisando a narrativa de Virginia Woolf, aponta essa diminuição do tempo da história em favor de
uma multiplicidade espacial. O teórico diz que quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência das
personagens do romance, havendo uma valorização de insignificantes fragmentos da vida, em que num instante pode
estar representada a “substância” de toda uma vida (AUERBACH, 1976, p. 481).
36
Hispanoamérica” (1976), em que Cortázar, a partir do exemplo de “El perseguidor”
11
, explica a
relação que se estabelece entre tal princípio compositivo e a organização espaço-temporal dos
sonhos.
(...) ciertos sueños abarcan episodios múltiples que exigirían un tiempo
considerable para ser realizados consecutivamente y que, no obstante, la compleja
trama de tales sueños puede finalizar, por ejemplo, con un disparo de un arma que
abruptamente nos despierta haciéndonos caer en la cuenta de que alguien acaba de
llamar a la puerta. Está claro que el ensueño ha sido íntegramente construído a fin
de culminar en ese supuesto disparo de revólver, hecho que obliga a admitir que el
cumplimiento del sueño ha sido casi instantáneo, mientras que el hecho de soñarlo
parecía producirse a lo largo de un prolongado período de tiempo. En otras
palabras, podría decirse que en ciertas ocasiones penetramos en un tiempo diferente
y que esas ocasiones pueden ser, como sucede siempre con lo fantástico, triviales y
aún absurdas, por lo menos en sus historias (apud MORA, 2002, p. 60).
12
Curioso é constatarmos, no trecho citado, que tal esclarecimento a respeito de um tempo e
um espaço “diferentes”, em que se juntam distintas dimensões existenciais, faz uso de uma cena em
que um tiro de um revólver que desencadeia o momento do encontro entre sonho e realidade,
aproximando-se, assim, da concepção ficcional de vínculo entre sonho e morte realizada em
“Profunda siesta de Remi”, título em que já é sugerida essa ambigüidade.
No próximo texto, “Puzzle” (1938), a presença de Edgar Allan Poe se faz explícita quando o
texto faz referência a seu conto “O coração denunciador” (1887), neste trecho: Escuchó, y al no
hallar más réplica que la del silencio, empujó la puerta; no con la lentitud sistemática del
personaje de Poe, aquel que le tenía odio a un ojo, sino com alegre decisión, como quando se entra
en casa de la novia o se acude a recibir un aumento de sueldo (p. 52).
A displicência do protagonista-assassino parodia a longa premeditação e execução do crime
da personagem de Poe, enquanto a cena do assassinato perde a atmosfera lúgubre, que é
comparada à chegada à casa da namorada; com isso o homicídio é executado, como o próprio
narrador declara, evitando todo preliminar y toda mise en scène (p. 52).
Ratificando a homenagem a Edgar Allan Poe, o espaço diegético corresponde à cidade de
Nova Iorque, cujos letreiros luminosos e os ruídos subvertem o do conto de horror norte-americano,
11
Nesse conto o saxofonista Johnny Carter, durante uma viagem de metrô, em que fica em estado de semi-sonho por
dois minutos (tempo gasto pelo trem de uma estaçõo a outra), dá-se conta de que conseguiu sonhar ou pensar muitas
coisas, as quais não seria possível pensar em menos de quinze minutos.
37
constituído pelo encerrado e escuro quarto do velho do olho de abutre. Poderíamos chamar esse
espaço narrativo de “O coração denunciador” presente em “Puzzle” de intertextual, já que é
incorporado à narrativa cortazariana mediante as referências intertextuais que o leitor traz de suas
leituras, tipo de criação verbal que Italo Calvino chama de “literatura potencial”, pois nela cada
texto multiplica seu espaço por meio de outros textos, sejam eruditos, populares ou míticos
(CALVINO, 1995, p. 245). Assim o conceito de espacialidade narrativa amplia-se, pois abarca
também o espaço da cultura, exigindo do leitor uma competência textual e um conhecimento de
mundo que ele deve buscar fora da obra para poder entendê-la. Umberto Eco considera que a
citação explícita de um episódio ou de um modo de narrar de outrem, com a intenção de
homenagear a obra anterior, torna-se um dos procedimentos típicos da narrativa pós-moderna, em
que o leitor é levado a refletir ironicamente sobre a natureza tópica do evento citado e a
reconhecer o jogo para o qual foi convidado (ECO, 1989, p. 125).
Pensando sob a perspectiva de Eco, o texto de Cortázar convida-nos para jogar um novo
“puzzle”, com as “peças” do conto de Poe que possuímos. Assim, subvertendo o enclausurado
quarto do velho do olho de abutre, o quarto de Ralph mantém-se com a janela aberta e a iluminação
abundante. O único feixe de luz da lanterna utilizado no crime pela personagem de Poe é
ressignificado na luz colorida que chega da metrópole. O assassino chega a esquecer-se da
iluminação quando comete o crime e depois se expõe ao olhar da cidade quando chega na janela do
edifício. Por sua vez, a descrição de Nova Iorque configura o sentimento de onipotência e frieza
desse assassino, que a cidade desde sua posição localizada muitos metros acima, com olhos de
dominador:
Estuvo largo rato inclinado sobre el abismo, mirando Nueva York. La miraba
atentamente, con gesto de descubridor que se adelanta visualmente a la proa de su
navío. La noche era antipoética y calva. Allá abajo, siluetas de automóviles
regresaban a condición de escarabajos y luciérnagas por el imperio del color y la
hora y la distancia (p. 53).
Em “O coração denunciador”, o narrador-personagem dirige-se a um interlocutor que pode
ser ele mesmo, o próprio assassino, conferindo ao espaço da enunciação as características de um
monólogo interior. No texto cortazariano também utilização do pronome “usted”, que podemos
12
Carmen de Mora chama a atenção para a proximidade dos temas ficcionais ligados aos contatos entre sonho e vigília
com a teoria psicanalítica de interpretação dos sonhos de Freud, pois é sabido que o escritor argentino teria lido sua
obra.
38
considerar associado à consciência do assassino. O emprego da segunda pessoa, além de favorecer
que o enunciado assuma teor confessional, permite que tenhamos acesso à situação vivida pela
personagem e à maneira como a linguagem nasce nela, aproximando o leitor ainda mais da
consciência da personagem (PRADA OROPEZA, 1989, p. 126). Nesse sentido, é importante referir
o critério de Oscar Tacca sobre o monólogo interior, quando explica que este, reproduzindo
fielmente o devir da linguagem, assume a espontaneidade, o irracionalismo e o teor caótico desse
instante da consciência, conservando todos os elementos num mesmo nível (...), porque a sua
verdadeira realidade é dada no plano da expressão (TACCA, 1983, p. 93). Desse modo, o narrador
identifica-se totalmente com os pensamentos profundos da personagem, o que faz com que o
monólogo interior não somente vise à exploração da consciência desse assassino, mas expresse os
“acontecimentos reais” transformados em “imagens” de sua consciência
13
.
Regido por uma sintaxe descontínua, o discurso associa diferentes espaços da memória, que
trazem ao texto imagens, sensações, pressentimentos, reflexões e fragmentos de acontecimentos,
todos imbricados uns nos outros. Essa fragmentação, próxima da montagem cinematográfica, faz
com que o espaço se dinamize e o tempo perca sua continuidade linear, características que Arnold
Hauser avalia como fundamentais na concepção da arte moderna, em que a simultaneidade espacial
criada permite o abandono do espaço e o tempo da experiência ordinária
14
.
Davi Arrigucci Jr., comentando a reincidência do uso da montagem na narrativa
cortazariana, salienta o papel ativo do leitor requerido nessa quebra sintática, e, citando os
pensamentos de Eisenstein, elucida o processo cooperativo que se instala no cinema, muito próximo
do que ocorre na literatura: a virtude consiste em que a emotividade e o raciocínio do espectador
interferem no processo de criação (ARRIGUCCI, 1973, p. 94). Parece ser esse o papel do leitor em
“Puzzle”, pois diante do descrédito que o discurso desorganizado do criminoso provoca, o que
denota o crescente processo de loucura desse assassino, o leitor é levado a interferir na narrativa,
juntando as partes desconexas dessa confissão subjetiva, como se assumisse o papel de uma
personagem-detetive.
13
Gérard Genette chega a considerar que o uso do discurso imediato (conceito com que Genette substitui a classificação
tradicional de monólogo interior) apaga as marcas da instância narrativa, pois dá, de modo imediato, desde o início da
narração, a palavra à personagem, o que representa, na concepção do pesquisador, uma das grandes vias de
emancipação do romance moderno (GENETTE, 1972, p. 12 – trecho traduzido por Kelley Baptista Duarte).
14
Diz Hauser: A essência da montagem reside na combinação imediata de elementos heterogêneos; nesse sentido sua
técnica incorpora o princípio formal de todo o surrealismo e na verdade de toda a arte moderna. (...) Além de
expressar a natureza heterogênea da realidade, os vários níveis da realidade em que a própria vida se desdobra em
39
Função significativa no conto é desempenhada pela irmã, elemento narrativo ausente no
conto de Poe, e que pode estar associada à imagem de um olhar repressor presente na consciência
do criminoso, ou seja, a personificação dos próprios processos de auto-recriminação que perseguem
a personagem. O olhar acusador da irmã, que se constrói na expressão Rebeca lo miraba a usted
com una fijeza increíble (p. 55), repetida cinco vezes, e a sentença proferida por ela, também
reincidente, de que Ralph voltará, prenuncia o total descontrole mental do protagonista. Como se
não pudesse fugir dos olhos denunciadores da irmã, o assassino entra nas armadilhas construídas
pela imagem dela e dos significados que podem estar associados às ações da mulher. No contexto
do conto, tais medos são articulados mediante o caráter metafórico que adquirem as seguintes
expressões: Rebeca puso la tapa a la olla de la sopa. La puso despaciosamente (p. 55), e mais
adiante, Entonces usted levantó la tapa de la olla. La fue levantando despacio, tan despacio como
Rebeca la había puesto (p. 55). Segundo Carmen de Mora, “destapar a panela” tradicionalmente
significa o descobrimento de algo que estava oculto intencionalmente (MORA, 2002, p. 57), o que
acrescenta ao texto o sentido de descoberta do crime pelo menos é assim que o discurso
descontrolado da mente do criminoso percebe e comunica o desenrolar dos acontecimentos. No
trecho a seguir, podemos acompanhar o que constitui o começo do descontrole da personagem ao
retirar a tampa da panela: Usted sentía un extraño miedo de descubrir la olla de la sopa, pero
comprendía que se trataba una mala jugada de sus nervios. Usted pensó en lo bueno que sería
estar lejos, en la planta baja, y no en el último de los treinta pisos, a solas com ella (p. 55).
Novamente as referências espaciais do edifício são utilizadas para modelar a personagem,
pois, ao contrário da sensação de onipotência sentida no início do relato perante a cidade vista do
trigésimo andar, uma mudança total na imagem da personagem, que surge na expressão: lo
bueno que sería estar lejos, en la planta baja, y no en el último de los treinta pisos. O movimento
sugerido da personagem (ainda que em sua intenção mental) no espaço narrativo instaura um eixo
vertical orientado para baixo, o que se apresenta como ratificação da desestruturação da consciência
do protagonista, pois este não se sente mais confortável nas alturas, imagem espacial que se associa,
no conto, ao controle da situação por meio da inteligência. O assassino passa a preferir a zona baixa,
imagem espacial ligada ao descontrole, ao inconsciente.
seus diferentes aspectos, sua irracionalidade e a incapacidade da mente para dominar suas contradições, ilustra
sensivelmente a natureza lúdica desse estilo todo (HAUSER,1976, p. 447).
40
Estudando a psicologia dos espaços, Gaston Bachelard vai ao encontro dessa dupla
polaridade vertical da casa que observamos em “Puzzle”, pois ela se repete em algumas obras
literárias estudadas por ele, em que o sótão surge como parte consciente do ser humano, e o porão,
como parte inconsciente. Analisando os contos de Edgar Allan Poe, o filósofo evidencia o valor
semântico do porão como a loucura enterrada, e comenta que, em textos como “O barril de
amontillado”, os crimes no porão exploram temores naturais, temores que estão na dupla natureza
do homem e da casa (BACHELARD, 2003, p. 38).
Além dessa aproximação semântica em torno do que seria um porão nesse edifício, um
objeto pode ser considerado a metonímia do porão da casa, lugar do inconsciente em que se situam
os medos do assassino: a panela de sopa. O processo de loucura do protagonista tem seu ápice no
momento em que é descrita a visão do interior da panela, a partir de associações de olhares que se
cruzam: o protagonista olha dentro da panela enquanto é olhado por Rebeca, ao mesmo tempo ele
parece enxergar o olho da vítima na sopa, e assim las cosas fueron perdiendo relieve, y sólo quedó
la visión de la tapa, levantándose despacio, el líquido en la olla, y... y... (p. 56). Também nesse
conto a presença do líquido dentro da panela traz o valor simbólico do inconsciente.
Assim como em “O coração denunciador”, provavelmente o criminoso confessa o crime,
diante da incapacidade de organizar-se racionalmente, condição psicológica que é descrita como se
o protagonista se sentisse incapacitado para seguir viviendo en el interior de su cerebro y decidió
buscar una escapatoria (p. 56), a qual consiste em repetir as ações que praticou no ato do crime.
Tal incapacidade de “viver no interior do cérebro” equivale à incapacidade de diálogo consigo
mesmo e de término do monólogo interior, ou seja, do próprio relato.
Conclui-se, assim, o “puzzle” proposto por Cortázar, em que se joga a partir de um novo
reordenamento dos significantes do modelo narrativo (o conto de Poe), produzindo, com isso, um
novo significado, uma vez que o coração passa a ser o olho, e também o olhar, denunciador.
Essa natureza lúdica do relato é considerada por Davi Arrigucci Jr. uma das marcas mais
importantes na poética de Cortázar, tanto no que se refere à eleição dos temas como dos meios
expressivos, o que leva o teórico a considerar o jogo como um leitmotiv de toda a obra do escritor.
Ele aponta a reincidência dessa temática mediante a significativa quantidade de títulos de livros que
trazem a idéia de jogo, como por exemplo: Final del juego; Los premios; Rayuela; 62, Modelo para
armar. O teórico diz que o sentido lúdico da obra cortazariana é favorecido pelas brincadeiras com
41
a linguagem, as visitas constantes a textos alheios e a criação de uma realidade múltipla
(ARRIGUCCI JR., 1973, p. 54).
2.2 – Imagens
Na segunda parte do livro, são muitas as imagens em que mundo e ser humano se recriam.
Como num espelho, personagens e espaços têm suas funções invertidas ao serem visitadas novas
dimensões da existência; ou se duplicam, produtos de imagens intuitivas que rompem com o
cotidiano; ou ainda, são reinventados, ao serem criados na imaginação de um(a) jovem escritor(a).
O título dessa segunda parte, “Histórias de Gabriel Medrano”, apresenta-nos uma
personagem que se desdobrará na produção literária de Julio Cortázar. Gabriel Medrano, o
protagonista do conto “Retorno de la noche”, é o homem que rompe os limites entre a vida e a
morte, o sonho e a vigília, o corpo e o espírito. Medrano será a personagem que reaparecerá
posteriormente no romance Los premios (1960), também como transgressor, cujo objetivo na trama
é atravessar os limites do poder autoritário, da ordem imposta
15
. Ainda poderíamos sugerir que
Gabriel Medrano seria a personagem-embrionária de Horacio Oliveira, o protagonista de Rayuela
(1963), que, assumindo uma postura desajustada diante das normas sociais e artísticas, se propõe
relativizar as fronteiras surgidas no jogo da vida e da arte, o que o leva à loucura. Trata-se, portanto,
de uma personagem que assumirá a função de protagonista rebelde, uma construção ficcional que
poderia também estar ligada à imagem autoral do “escritor rebelde”, como acompanhamos na
Teoría del túnel, uma vez que também o título sugere essa aproximação de Gabriel com o autor das
histórias contadas. Assim como Gabriel, também Paula, a protagonista de “Bruja”, se convertena
escritora transgressora Paula Lavalle, que acompanha Medrano na inusitada viagem no navio
“Malcon”, em Los premios. Vale a pena lembrar que esse tipo de personagem feminina será
continuamente recriada por Cortázar, como a bruxa que reaparecerá em “Circe” e a escritora Alina
em “Lejana” de Bestiario, além da presença representativa da Maga em Rayuela.
O conto que abre o capítulo, “Retorno de la noche” (1941), é narrado pelo próprio Gabriel
Medrano. Nele encontramos uma irônica nota em que esse contador de histórias desculpa-se pela
falta de uma ambientação de mistério, aos moldes dos relatos ingleses, com un acorde sombrío que
15
Tais aspectos são abordados mediante uma trama em que Medrano tenta romper com as proibições aleatórias que são
impostas aos passageiros de ocuparem a popa do navio “Malcon”, atitudes rebeldes que lhe custam a vida.
42
se aloje en la médula; una luz cárdena (p. 59), descuido que é justificado pelo descrédito nas
palavras. Tal índice aponta para a condição de literatura potencial que o texto contempla, pois
declara que sua leitura comporta significações que se completam para além do texto, no mundo,
mediante referências construídas no diálogo com os espaços intertextuais da tradição fantástica.
Também nessa nota transparece a ficcionalização do processo de escrita e da imagem do autor, o
que implica um modelo de código narrativo em que o nível discursivo do texto é privilegiado.
Ainda podemos afirmar que o texto pretende romper com formas tradicionais do fantástico,
transgressão sugerida pela frase da nota: yo he perdido la fe en las palabras y los exordios (p. 59).
No fantástico tradicional, o espaço exterior é que comporta o extraordinário, porém o conto passa a
articular um outro espaço, de caráter subjetivo, aquele em que a verdadeira fonte do mistério é o
interior humano. Nessa perspectiva, a tradicional luz cárdena é substituída por uma luz crua,
cadavérica, que, associada às cores cinza e preto, reúne ao ambiente as significações dos mistérios
da morte e do inconsciente. Tais cores serão substituídas, no final do relato, pelo cobre da manhã,
cor quente como o aconchego do cotidiano familiar. Ainda na nota, é lançada uma suposta doença
coronariana, o que pressupõe a ambigüidade entre sonho e morte que se desdobrará ao longo da
narrativa.
A ligação entre a morte e o mundo onírico é abordada com a intenção de refletir sobre o
tema da dualidade entre corpo e espírito, reflexão que tomou grande expressão na literatura
fantástica do século XIX. Recordemos o conto O Horla (1886), de Guy de Maupassant, em que é
ficcionalizada tal divisão a partir da saída de uma forma invisível de dentro do corpo do
protagonista, surgindo assim um “outro” (identificado com um alienígena ou fantasma) ameaçador
e desencadeador da loucura do homem
16
. O texto de Cortázar aborda a mesma questão de maneira
atualizada, porque a dualidade humana é tratada a partir do choque entre corpo e espírito dentro do
próprio indivíduo, o que contribui para que sejam aprofundados importantes questionamentos.
Articulada pelo discurso de Gabriel Medrano, a história passa-se no plano da consciência da
personagem, porém tal enunciação não apresenta a quebra sintática que ocorre nos monólogos
interiores de “Profunda siesta de Remi” e “Puzzle”, que o pensamento se constrói de modo
ordenado, como o próprio protagonista percebe: que mis ideas se tornaron súbitamente claras (p.
16
JoThomaz Brum aponta a relação que o sentimento pessimista e o pensamento de relatividade que predomina na
Europa, no final do século XIX, mantêm com a literatura fantástica desse período. Assim caracteriza a virada do século:
À extenuação da fé vêm se juntar os temas da falência da ciência e da psicologia da época, fatos que aparecem na obra
de Maupassant como temas que abordam uma existência habitada pela inquietude. (MAUPASSANT, 1997, p. 8).
43
59). Apesar de manter uma sintaxe contínua, a tensa experiência por que passa a personagem ao
transitar por dimensões existenciais ambíguas é traduzida por uma representação espacial que apela
às experiências sensoriais do leitor, já que rias referências a visões e sons que se misturam,
aproximando, assim, o leitor das sensações e sentimentos contraditórios que invadem a personagem.
O pesadelo com a morte ocasiona o despertar repentino, e assim, las puertas se abren a los
sueños (p. 59); então, realidade e sonho entrelaçam-se, negándose a separar sus aguas (p. 59). Esse
espaço de características heterogêneas é vivido de maneira incorpórea pela personagem, devido a
sua cisão em corpo e imagem onírica, como acompanhamos nas expressões: mi cuerpo no se
reflejaba en el espejo, ante el espejo no había nada (p. 59) e de pie frente al espejo que no devolvía
nada (p. 60). O conto serve-se do espelho como meio de passagem para um outro lado da
existência, onde a quebra da convencional percepção do mundo estabelece relação análoga com a
percepção invertida ocasionada pelo espelho. Essa experiência da desconstrução do corpo em nada
(pois está invisível) através do espelho é inversa àquela ocorrida no processo de construção da
unicidade do indivíduo nos primeiros estágios da vida humana, que, de acordo com Umberto Eco
(baseado nas idéias de Lacan), é quando se o domínio corporal, no nível da imaginação, ao se
reconstruírem os fragmentos ainda não unificados do próprio corpo (...) como alguma coisa de
externo mediante a experiência especular
17
. Desse modo, o conto propõe a vivência inversa do
fenômeno especular no que se refere a seu papel na ontogênese humana, já que pretende abordar,
por meio da ausência da imagem no espelho, não a experiência do espírito no plano do sonho-
morte, mas também as muitas fragmentações que compõem a existência de um indivíduo.
O espelho não devolve a imagem real de Gabriel, que passa a viver a imagem onírica, como
se entrasse no espelho. Essa entrada pelo espelho lembra-nos a experiência num mundo invertido
criado por Lewis Carrol, em Através do espelho (1871), inversões que se dão também na forma
desse romance, como o abandono da organização causal do enredo e de concepções convencionais
de percepção do espaço e tempo, bem como a própria subversão da linguagem. Recordemos aqui
que Carrol foi autor muito admirado por Cortázar e considerado decisiva influência no
surrealismo.
18
17
Umberto Eco fundamenta suas idéias nos estudos de Lacan sobre a fase do espelho. Segundo Lacan, o espelho
constitui um fenômeno-limiar, “virada” do eu especular para o eu social, pois demarca as fronteiras entre o
imaginário, que constrói a imagem de si no espelho na infância, e a linguagem, que é a construção do sujeito no
universal em fases posteriores (ECO, 1989, p. 12).
18
Jean Cocteau, artista que representou um marco na formação estética de Cortázar, foi um surrealista que revisitou o
motivo da entrada no espelho em seu filme O sangue de um poeta (1930), em que apresenta um pintor buscando “fechar
44
Poderíamos argumentar que, nesse momento, o relato ficcionaliza a quebra da realidade
objetiva, pois se contrapõem duas dimensões da existência: a realidade objetiva, metonimicamente
representada pelo corpo abandonado, que se apresenta como um espaço limitado, a comportar o ser
material no mundo real e no tempo cronológico; e o sonho-morte, espaço ilimitado, onde se situa o
espírito do ser, inscrito no tempo eterno. Assim explica a personagem a antítese estabelecida entre
os dois campos semânticos: mi propia imagen anduvo por las dimensiones inespaciales de mi
sueño; inespaciales e intemporales, dimensiones únicas, extrañas a nuestra limitada cárcel de la
vigilia... (p. 63).
Com a intenção de construir verbalmente as sensações e emoções de um espaço ilimitado, o
texto contém expressões do tipo: y me dejé ir, inacabablemente (p. 60), hundir la frente en el
cobertor rojo, mesclándome a él y a la noche (p. 62), deslizándome sobre veredas familiares (...)
caminé inacabablemente (p. 63). Nesse sentido, personagem e espaço confundem-se, mesclam-se,
que as fronteiras do corpo da personagem não existem e não possibilidade de delimitação
nesse espaço inacabável.
Noutra perspectiva, é possível conjeturar que, objetivando manter analogia com um espaço
indefinido e com o caráter reflexivo que o conto possui, o uso reincidente dos vocábulos saetas e
flechas indica não posições e sentidos espaciais distintos, mas também sentimentos ambíguos e
pensamentos contraditórios, como constatamos nas expressões: de un Sebastián, contento de saetas
(p. 61), apuntaba una flecha gris en los paredones lejanos (p. 63), la iglesia asestaba sus primeras
flechas hacia el cielo (p. 64).
As experiências dessa dimensão única, descritas através das características inespaciales e
intemporales, remetem a um tipo de cronotopo ontológico, pois articula tempo e espaço de
naturezas internas, onde se move a consciência da personagem. Mikhail Bakhtin constata na obra de
Dostoiévski um tipo de cronotopo dessa natureza, que se distancia dos referentes da realidade fora
do tempo e do espaço onde se situam as profundezas da alma humana e ocorre o diálogo entre as
várias consciências (BAKHTIN, 2003, p. 197), tipo de cronotopo que será amplamente explorado
por muitos autores da narrativa contemporânea.
Apesar de a divisão da personagem identificar-se com a bipartição da estrutura espaço-
temporal, dimensiones únicas, extrañas a nuestra limitada cárcel de la vigilia, o texto não
a boca da ferida”, que se abre em sua mão, mediante sua penetração no espelho, onde encontra diferentes espaços
simbólicos que traduzem seu inconsciente.
45
abandona a idéia inicial de um espaço híbrido, la vigilia y el ensueño siguen entrelazados (...)
negándose a separar sus águas (p. 59). Desse modo, subversão do que seria uma estrutura
espacial fixa, dividida em dois subespaços de valores semânticos opostos, aos moldes do que
estabelece Iuri lotman, pois, de acordo com o teórico, a fronteira que divide um espaço em duas
partes deve ser impenetrável e a estrutura interna de cada subespaço, diferente (LOTMAN, 1978,
p. 373). Como podemos notar, em “Retorno de la noche” o espaço torna-se fronteiriço, ou seja,
coexistência entre sonho e vigília, morte e vida, que não mais constituem dualidades, mas uma
dimensão: vivência do infindável mistura-se com a lembrança e a necessidade da volta ao lar, e a
eternidade se junta à preocupação com o horário marcado em que a avó lhe levará o café da manhã.
Persiste, assim, a ambigüidade do espaço, que as fronteiras que estabeleceriam os limites das
zonas fixas são instáveis, traduzindo, portanto, as incertezas, dúvidas e medos de um sujeito
contraditório.
Nubia Hanciau, estudando as variantes teóricas que assumiu o termo entre-lugar nos anos
que seguiram sua formulação, em diferentes estudos culturais nas Américas, aponta para o caráter
descentrado não só dos sujeitos, mas também dos discursos pós-modernos, que, veiculando a
associação dos contrários, deixa de conceber espaços delimitados, cunhados como zonas com
sentido ou conteúdo fixos. Com isso, o próprio conceito de fronteira é redimensionado, deixa de se
ancorar em referências ligadas à demarcação territorial e passa a ser permeável e flexível,
vislumbrando espaços fronteiriços, de cunho heterogêneo (FIGUEIREDO, 2005, p. 135)
19
. Como
pudemos observar, é esse conceito de fronteira que parece ser vislumbrado no conto cortazariano da
década de quarenta.
Além da instabilidade das fronteiras que relativiza a oposição entre os campos semânticos,
em “Retorno de la noche” a ambigüidade espacial é reafirmada pela presença simultânea de duas
mulheres, a negra e a avó: esta traz a Medrano as percepções espaço-temporais da realidade-
consciência, aquela, as do desconhecido-inconsciência.
A voz que chora da negra, inicialmente, identifica-se com a morte, espejo de la eternidad (p.
61), vinda de um rio profundo e longínquo e da noite; depois, chega da infância, parte antigua,
19
Nubia Hanciau, no ensaio intitulado “Entre-lugar”, discute alguns dos novos espaços enunciativos da narrativa,
estudados por importantes teóricos do continente americano que m pensando sobre tais questões. Entre os termos que
denominam tais espaços, a pesquisadora cita: lugar intervalar (E. Glissant), tercer espacio (A. Moreiras), espaço
intersticial (H. K. Bhabha), the thirdspace (revista Chora), in-between (Walter Mignolo e S. Gruzinski), caminho do
meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt), ou de fronteira (Ana Pizarro e S. Pesavento) (in FIGUEIREDO, 2005,
p. 127).
46
querida y olvidada (p. 63). No final do relato, é identificada com o interior da personagem: desde
una remota oscuridad interior retornaba la voz de la mujer negra. Essa mulher, metáfora da
obscuridade interior de Gabriel, apesar de cantar tristemente, entoa versos de redenção (“Mi alma
está anclada en el Señor...), o que confere à alma de Medrano um caráter antitético, pois oscila
entre o abismal e o transcendente. Por seu turno, a voz da a liga a personagem ao mundo
concreto, traz o tempo das palavras doces e dos cuidados da infância, acorda o homem para o
cotidiano, junto à luz do dia e o canto dos pássaros. Desse modo, a figura da avó torna-se metáfora
da segurança, da própria vida terrena, enquanto a negra é metáfora do desconhecido, do ameaçador,
que pode se situar na morte ou no inconsciente.
Representativo é o valor simbólico que assume o leito da avó, gran lecho venerable (p. 61),
metonímia do lar, cama em que é sonhado o sagrado, em contraposição ao leito profano de Gabriel,
lecho monstruoso (p. 64), onde surgem os pesadelos e se instala o cadáver. Com isso cria-se uma
nova antítese, constituída pela luta entre a imagem idealizada do ser na infância (representada na
intenção de volta ao leito da avó) e a imagem corrompida do homem atual (simbolizada pelo corpo
na cama em processo de putrefação).
O cadáver é a imagem externa e, como a imagem refletida no espelho, é visto apenas de fora
por Medrano como algo desconhecido, estranho, que, desprovido de alma, não possui auto-
sensação interna capaz de oferecer um verdadeiro reconhecimento de si. Mikhail Bakhtin, em “O
autor e a personagem na atividade estética”, diz que a própria imagem contemplada no espelho é
aquela imaginada segundo o que se é para o outro, e que, veiculando um juízo de valor externo,
prejudica a relação interna e direta para consigo, gerando um duplo na autoconsciência, do qual se
tem medo, o que na literatura é muitas vezes representado sob o tema do duplo. Esclarece Bakhtin a
nova relação consigo mesmo que surge no homem quando ele sente a interferência de um outro
indeterminado: o contexto de sua autoconsciência é confundido pelo contexto da consciência que o
outro tem dele, seu corpo interior esbarra na oposição do corpo exterior que está separado dele e
vive sob os olhos do outro (BAKHTIN, 2003, p. 55).
Através desse outro fictício que julga do espelho, não é possível ver o próprio rosto, mas
apenas uma máscara, atributo que no conto, em sua nota inicial, refere-se ao cadáver: me voy a
quedar de pronto com la última expresión aferrada a la cara, máscara (p. 59), e que para Karl Jung
é o termo que nomeia a “persona”, aquilo que em essência o homem não é mas que ele mesmo e os
47
outros tomam como sendo (BAKHTIN, 2003, p. 30). O cadáver sugere essa máscara social
ameaçadora, um ser desprovido de essência, um duplo que nada mais é do que um desconhecido.
Outra reflexão veiculada pelo conto é a interdependência entre a temporalidade e a própria
constituição da vida. Na cabeça de Medrano martela a idéia: La vida es el tiempo, e junto a ela
nasce a reflexão:
Allá he quedado, espacio absoluto; aqui estoy, tiempo vivo. ¡Se han roto los
cuadros de la realidad! mi cadáver es, no siendo ya nada; mientras que yo alcanzo
apenas el horror de mi no ser, tiempo puro que no puede aplicarse a ninguna forma,
espectro que la mañana desnudará a los ojos sombríos de la gente... (p. 64).
Ao separarem-se espaço e tempo, roto los cuadros de la realidad, a unidade do ser humano
também é rompida, corpo e espírito separam-se. A forma corporal que não é preenchida pelo tempo
é carne morta existe no espaço, mas não ocorre no tempo. Apesar de o cadáver, rígido espantajo
crispado (p. 61), existir como matéria na realidade, não existe enquanto consciência (ou espírito), já
que é desprovido do tempo vivo, não é definido interiormente, não é temporalidade. A imagem
sendo o nada, imagen onírica desgajada de su origen (p. 63), não pode habitar a matéria porque
pertence ao tempo puro (ou eterno).
A fenomenologia rítmica, estudada por Gaston Bachelard em A dialética da duração (1950),
apontará questões que se aproximarão da idéia cortazariana sobre a relação entre matéria e tempo.
Nesse estudo, o filósofo também defende que o tempo é vida, que considera que a existência da
matéria pode ser concebida a partir de sua freqüência temporal: A matéria existe num tempo
vibrado e somente num tempo vibrado. A partir daí, diz Bachelard:
A doutrina das relações entre a substância e o tempo apresenta-se assim sob uma
luz metafísica totalmente nova: não se deve dizer que a substância se desenvolve e
se manifesta sob a forma do ritmo; deve-se dizer que é o ritmo regular é que
aparece na forma de atributo material determinado (BACHELARD, 1988, p. 120).
Parece que com tal reflexão em torno da profunda interdependência entre tempo e vida, ou
seja, da matéria vista como própria materialização deste tempo humano, o texto aponta para a
possível inexistência da divisão entre corpo e espírito ou espaço e tempo, e propõe a vida humana
como uma plural e contínua manifestação destas instâncias da existência. O ser humano, pois, é sua
48
morte e seu sonho, constrói-se em sua encarcerada realidade, mas também é ilimitado como o
eterno e o absoluto.
Ao final do conto, torna-se interessante a passagem de volta à finitude terrena, que ocorre
como se a personagem voltasse à superfície da terra depois de se afogar no mar, o que remete ao
elemento água, novamente utilizado não só como metáfora do inconsciente, como em “Puzzle”, mas
também da experiência da morte, como em “Profunda siesta de Remi”. A travessia do ser por uma
névoa esbranquiçada (oposta à obscuridade do outro lado) assume a função de fronteira especular,
proporciona o reingresso de Gabriel Medrano à vida real, retorno doloroso, marcado pela luta contra
o corpo. Interessante é a retomada do diálogo com o texto de Maupassant, pois a entrada do espírito
no corpo nos lembra, ao reverso, o roubo do espírito do protagonista pelo invisível Horla.
Acompanhemos os dois trechos:
Sim, caía no nada, no nada absoluto, numa morte de todo o ser da qual era
bruscamente, horrivelmente, arrancado pela horrível sensação de um peso
esmagador sobre o peito e de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por
entre os lábios (MAUPASSANT, 1997, p. 73).
Caí sobre mismo aferrando esos hombros de mármol, sacudiéndome como un
loco, apretando la boca contra mis labios sonrientes, buscando reanimar esa
acabada inmovilidad. Me apreté contra mi cuerpo, quise romperle los brazos com
mis garfios, succioné desesperadamente la boca rebelde, quebré mi horror frente
contra frente, hasta que mis ojos dejaron de ver, ciegos, y el outro rostro se perdió
en una niebla blanquecina, y solamente quedó una cortina temblorosa, y un jadeo, y
un aniquilamiento... (p. 64).
Passagens do ser por distintos planos existenciais são freqüentes nos contos de La otra
orilla. Elas permeiam não temáticas em torno do monstruoso, da loucura e da morte, mas
também narrativas que têm a perspectiva metaliterária, como é o caso de “Bruja” (1943). Esse
relato recria a personagem da bruxa, mulher acometida pela necesidad imperiosa de aprehender
todo lo que sus sentidos puedan alcanzar en el instante (p. 66). Mulher mágica, mulher criadora,
mulher demiurgo, mulher artista, que em sua constituição nos remete à metáfora da escrita.
Lembremos que, quatro anos depois de conceber esse conto, Cortázar falará, na Teoría del túnel,
sobre a necessidade que tem o poeta de superar sua angústia pessoal de alienação através de sua
escrita. Onze anos depois de “Bruja”, no ensaio “Para una poética”, Julio Cortázar voltará a tal
aproximação entre escrita e magia, mediante um discurso argumentativo referenciado em estudos de
antropólogos como Lévy-Brühl, os quais dão respaldo à tese de que o pensamento analógico é
49
inerente a todo homem e base para o pensamento mágico primitivo. Tais idéias levam Cortázar a
concluir que a criação analógica aproximaria a prática da magia com a criação poética, que a
metáfora manteria relação com a forma gica do princípio de identidade
20
. Acompanhemos o
pensamento do escritor: Hallada la analogía (razonará el poeta-mago) se posee la cosa. Una ansia
de dominio hermana al mago con el poeta y hace de los dos un solo individuo codicioso del poder
que será su defensa y prestigio (CORTÁZAR, 1994c, p. 279).
A aproximação ao pensamento primitivo, freqüente nas pesquisas intelectuais e produções
artísticas latino-americanas da primeira metade do século XX, renovará o interesse que as artes
plásticas européias haviam começado a manifestar pela arte primitiva na virada do século XIX
para o XX (lembremos Gauguin e depois Picasso), fortemente retomado pelas diferentes
manifestações artísticas do surrealismo, movimento em grande sintonia com os estudos
antropológicos que vinham se desenvolvendo na época. Identificado com tais idéias, situa-se o texto
crítico “El arte narrativo y la magia”, de Jorge Luis Borges, de seu livro Discusión (1932), em que o
autor concebe que a ordem analógica que rege a construção da narrativa, un juego preciso de
vigilancias, ecos y afinidades, é a mesma que estabelece nculos entre coisas distantes no
pensamento mágico primitivo (BORGES, 1957, p. 90).
Paula, protagonista de Bruja”, é a personagem que define a primeira elaboração da idéia de
vínculo entre magia e literatura tão presente na obra posterior de Cortázar. Ela é a primeira mulher-
mágica das muitas que povoarão a obra do escritor argentino, e também o início do exercício
reflexivo sobre a natureza da criação verbal que se fará presente nessa obra. Apresentada, no início
do conto, como a mulher que tece, a jovem pode ser entendida como metáfora da escritora. O estado
interior alienado da bruxa, quase em transe, é sugerido através do movimento imperceptível da
cadeira de balanço em que está sentada, o que também configura a angústia de não poder se mover
do lugarejo onde vive. Paula tem sua imagem moldada por impressões emocionais que a
apresentam como jovem melancólica, silenciosa, una muchacha triste, buena, sola (p. 66), traços
que vão sendo configurados em pequenos eventos, sob uma estrutura compositiva descontínua, que
nem sempre segue uma linha temporal cronológica.
O lugar opressivo onde mora é um pequeno povoado, de onde ninguém escapa por medo,
fato que corrobora o caráter determinante do espaço na construção da imagem de Paula. Tal espaço
20
Cortázar também considera, na Teoría del túnel, que o pensamento analógico é a diretriz das narrativas vanguardistas,
iniciadas com o Conde de Lautréamont e Nerval, pois privilegiam a linguagem poética, fato que seria responsável pela
evolução do romance contemporâneo.
50
é dividido em dois subespaços que se contrapõem: o exterior (cujo valor ameaçador tem seu
símbolo na igreja) e o interior da casa da bruxa. Por conseguinte, o choque entre Paula e as outras
mulheres do povoado será construído mediante a oposição semântica entre esses dois campos
semânticos: a igreja, ancha, pegada a la tierra (p. 68), freqüentada pelas mulheres que retardam a
volta para suas casas, e a casa da bruxa, de onde quase não sai a jovem, que considera o espacio
de una casa como suficiente dimensión de vida (p. 66). O apego da igreja à terra é ironicamente
contraposto à transcendência da magia, que encontra seu lugar na casa da bruxa. Por sua vez, a
construção antitética dessas personagens conta com recursos verbais, ligados à visão, que as
modelam em função da ausência ou presença da luz-cor: as mulheres invejosas reúnem-se para falar
na sombra espesa de los árboles (p. 68), enquanto Paula passa bellamente vestida de azul (p. 68) em
seu caminho solitário.
Já totalmente aislada de sus semejantes (p. 70), a jovem busca superar sua alienação
situando-se para além de seu mundo interior e do povoado, por meio de sua autoconstrução em
outra dimensão, ou seja, cria-se como outro-personagem dentro de um universo ficcional,
entrelaçando-se, como diz Bakhtin, sem reservas, com o tecido plástico-pictural único da vida,
enquanto homem entre homens, enquanto personagem entre outras personagens (BAKHTIN, 2003,
p. 29).
Abandonado o medo que a escrita-magia tem lhe causado até seus vinte anos, Paula decide
deixar-se invadir pela tentação de construir sua obra, de ver surgir a materialización de su deseo (p.
68), de projetar-se no mundo, como conta o narrador sob a perspectiva da moça: Toda ella se lanza
tras su mirada hasta sentir de como un vacío, un gran molde hueco que antes ocupara, una
evasión total que la desgaja de su ser, la proyecta en voluntad... (p. 68).
Na citação acompanhamos como Cortázar fala de mais um novo deslocamento do ser nesse
conjunto de contos, um ser que abandona seu molde oco (ou, como chamaria Gabriel Medrano,
rígido espantajo crispado) e entra, por desejo, noutra dimensão da existência. Desse modo,
instauram-se outros dois campos semânticos, pelos quais a personagem irá transitar: a realidade e a
ficção, estrutura espacial que organiza o argumento central do texto, o vivenciamento do processo
da criação literária. Portanto, o que constituía a transição da personagem pelos planos da vida-morte
ou sonho-vigília, em “Retorno de la noche”, traduzida pelo abandono do corpo pelo espírito de
Medrano, tem tratamento análogo em “Bruja”, mas assume perspectiva metaliterária, que o ser
interior da escritora se evade de seu corpo e passa a viver no plano ficcional.
51
Por outro lado, essa vivência artística é descrita como necessidade de apreensão do mundo,
por meio dos sentidos, no tempo correspondente a um instante. Vejamos como isso é descrito no
texto: Movimiento de la mecedora, dolor en el pie esquerdo, picazón en la raíz del cabello, gusto a
canela, canto del canario flauta, luz violeta en la ventana, sombras moradas a ambos lados de la
pieza, olor a viejo, a lana, a paquetes de cartas (p. 66).
Tal trecho fala-nos de impressões sensoriais experienciadas pela bruxa, que as ordena,
identifica e faz conhecimento; em outras palavras, o conteúdo da vida que se insere num instante
torna-se conhecimento estético, forma visual y auditiva más penetrante y original, como escreverá
Cortázar em “Algunos aspectos del cuento” (1994c, p. 378). Com isso, o conto articula um discurso
que se propõe pensar a criação contística na própria fábula, dentro dos limites da própria ficção.
Decidida a la construcción de la casa e do amante, a bruxa adquire poderes de deusa-
escritora e cria, em sete dias, sua obra. Essa relação assimétrica entre autora e personagem, aos
moldes de uma deusa que tem domínio sobre sua criação, é tratada por Bakhtin em “O autor e a
personagem na atividade estética” como o tipo de consciência “transgrediente” que o autor possui
em relação à consciência da personagem. Explica o teórico que, partindo da concepção de que o
autor pode dirigir para a própria vida seu olhar interno fragmentado, ele conclui que distante
de si mesmo se torna possível a representação estética do todo espacial do corpo e do ambiente
e do todo temporal – da alma frente à vida e à morte, em que consiste a criação de uma obra literária
(BAKHTIN, 2003, p. 25).
A vivência do processo criativo em Paula vai se dando aos poucos, iniciando-se com os
bombons, os quais se materializam como obra quando las palabras de las envolturas se afirman
categóricas (p. 68), expressão que constitui uma feliz analogia que Cortázar estabelece com a
literatura. Depois continuam sendo criadas outras pequenas obras, como o vestido azul e o anel, até
que a primeira personagem, a boneca Nenê, é criada e assassinada, evento que denota a primeira
luta interna do autor perante a construção da personagem, conflitos subjetivos que Bakhtin aponta
como as dificuldades éticas e estéticas da auto-objetivação (BAKHTIN, 2003, p. 29). A maturidade
criadora chega quando a bruxa decide construir a casa e Esteban; nesse momento ela se sente
triunfante com o produto obtido: hay como um brillo de fósforo en sus pupilas claras (p. 69).
Construindo-se aos poucos, a casa da bruxa vai surgindo como um mundo de imagens de ambientes
de revistas, metáfora do texto narrativo enquanto tessitura composta por uma multiplicidade de
imagens, com as quais Paula edifica seu universo ficcional. Esse universo possui os traços de uma
52
principiante, daí nele ser incluída também uma biblioteca de volumes rosa, marca textual que
caracteriza a ironia cortazariana diante dos próprios textos inaugurais. Concluída a casa, a bruxa
cria um homem belo e delicado que a ame, Esteban, que jamás quería salir de la casa (p. 70), fato
que aponta para a condição de personagem assumida pelo amante dentro da fábula, pois, sendo
elemento da ficção, só pode viver dentro do espaço literário – a casa criada.
Ao sétimo dia, a deusa-escritora conclui sua criação, cujo final é marcado com sua morte,
que coincide com o desaparecimento da casa e de Esteban. Com isso, a escritura assume significado
de autoconstrução da escritora, de fazer humanizador. Essa idéia vai ao encontro do que comenta
Aimée Bolaños a respeito do conto de Jorge Luis Borges “La busca de Averroes” (in El Aleph,
1949): no solo el hombre crea la narración, sino la narración hace al hombre, en tanto el hombre
narra (BOLAÑOS, 2002, p. 74). A pesquisadora chama a atenção para a importância que assumem
as ficções de Borges dos anos trinta e quarenta ao inaugurar reflexões sobre a escritura, a natureza
da criação estética e a atividade literária enquanto trabalho transformador, pensamentos que, no
entender de Aimée Bolaños, estão profundamente sintonizados com o espírito do que será chamado
de pós-modernismo.
Interessante é notarmos a aproximação entre esses dois relatos concebidos nos anos quarenta
no que diz respeito ao entendimento da criação literária, pois em ambos o desaparecimento da
personagem criadora ao final da escritura, como conta o narrador convertido na figura autoral de
Borges em “La busca de Averroes”:
Mi narración era um símbolo del hombre que fui, mientras la escribía y que, para
redactar esa narración, yo tuve que ser aquel hombre y que, para ser aquel hombre
yo tuve que redactar esa narración y ahasta el infinito (en el instante en que dejo
de creer en él, ‘Averroes’ desaparece).
21
Borges cria-se ao narrar Averroes, do mesmo modo que Cortázar se constrói na imagem de
Paula, assim como ela se cria ao conceber Esteban, processos criadores interdependentes que, como
círculos concêntricos, se interpenetram e se renovam incessantemente na escritura.
Ao criar-se em Paula, muitas das características do “jovem escritor rebelde” são concedidas
à bruxa: Cortázar, como lembramos, morava na pequena Chivilcoy em 1943 (data em que é escrito
o conto), ano anterior a sua partida ocasionada por atritos com grupos nacionalistas. A inadaptação
nesse ambiente provinciano deve ter feito o escritor sentir-se na pele de uma bruxa isolada, uma
53
espécie de figura grotesca que, como comenta Wolfgang Kayser, estaria ligada à idéia do artista
isolado e excêntrico na sociedade moderna, aquele que, na literatura fantástica, estaria aberto às
forças obscuras e à loucura (KAYSER, 1986, p. 95). Nessa medida, o relato propõe o debate sobre a
condição do artista latino-americano na primeira metade do culo XX, aquele artista que ainda
enfrenta o pensamento conservador de uma cidadezinha hispano-americana, que sua estranheza
perante os outros o torna um ser anacrônico e deslocado no espaço. Implicitamente, o texto articula
um cronotopo ambíguo, que duas épocas históricas a contemporaneidade e o período medieval
e dois continentes a América e a Europa tocam-se sob um mesmo discurso retrógrado, ao
passo que o leitor volta a sentir a ameaça das velhas fogueiras da Idade Média no atual povoado de
Paula-Cortázar, fogo que se realimenta de novas almas num novo continente.
No quarto conto de “Historias de Gabriel Medrano”, intitulado “Mudanza” (1945), ocorre
um outro tipo do que poderíamos chamar de “movimento do ser interior”, processo desencadeado
pela crise existencial por que passa o protagonista, o que provocará nele uma outra percepção de
sua realidade e uma projeção numa nova imagem de si mesmo.
Como Plack, a personagem deformada de “Las manos que crecen”, o protagonista
Raimundo Velloz é mais um dos indivíduos transformados em massa indiferenciada pela sociedade
capitalista. Contador exemplar da Ferrocarriles del Estado, a personagem é (des)construída
mediante as referências espaço-temporais que vão compondo um ambiente cotidiano opressivo,
degenerativo da vitalidade humana e, por isso, responsável pela crise instalada no funcionário
público. No trecho inicial do conto, em que é narrado o final do expediente de trabalho e o retorno
para o lar, na descrição do mesmo itinerário percorrido todos os dias e as sensações e sentimentos
que isso provoca em Raimundo, encontramos algumas expressões que compõem esse ambiente
opressivo:
Bah, si no fuera más que la oficina, pero el viaje de vuelta ahora que la gente tiene
que hacer cola para subir a los vehículos, y dentro de los tranvías permanece y se
estanca el mismo aire de encierro, especie de tapioca blanquecina que se respira y
se expele: un asco (p. 73).
Por sua vez, o tempo do relógio intensifica a degeneração do indivíduo, que soma as horas,
dias e anos que são subtraídos de sua existência, enquanto os vários objetos adquiridos ao longo
desse tempo são adicionados nesse cálculo cujo resultado parece ser zero:
21
Apud BOLAÑOS, 2002, p. 73.
54
Nada que reprocharse, un premio de cinco mil pesos en la lotería de Tucumán, el
terrenito en Salsipuedes, suscriptor de El Hogar, amigo de los niños y no
demasiado nostálgico de su soltería… tiene a su madre, a su abuela, a su hermana.
El sofá, el café, BBC. No es poco, cuántos otros... (p. 73).
O vazio interior de Raimundo, produto das perdas de uma rotina compacta, é muito bem
expresso pela imagem corporal de alguém que se às voltas com um roubo, situação que se
apresenta na voz de um narrador em terceira pessoa totalmente identificado com a personagem
(como ocorre em todo o texto), que assume o tempo presente (em muitas partes do conto) e a
perspectiva espacial dessa personagem, o que aproxima efetivamente o leitor da vivência do
processo de indiferenciação coletiva por que passa o protagonista, com o qual passa a identificar-se.
Vejamos o trecho:
Com qué alivio baja Raimundo Velloz del 97 y se queda en el refugio tocándose
los bolsillos por fuera con el gesto del asaltado, del que ha tenido que pagar
bruscamente una cuenta y medita de a poco la modificación del presupuesto, cómo
hay dos billetes de diez en vez de uno de cien (p. 73).
Assaltado pelo próprio destino, o funcionário “faz as contas” do alto preço pago pela solidez
de seu mundo, avalia a diferença entre a promessa de felicidade oferecida pelo modelo de vida
proclamado pela sociedade de consumo (ao qual está plenamente moldado) e a decepção com a
concretização desse modelo, que constitui sua vida diária.
O escritório tem participação decisiva na modelagem do encarceramento interior da
personagem: La oficina lo cansa, lo dobla, lo cierra como un puerco espín contra todo lo que no
sea reposo después del horario obligado (p. 73), ao passo que a casa constitui a recompensa
desejada: Piensa en su sofá del estudio, la taza de café que María prepara tan caliente, las
pantuflas com mullido forro de panza de guanaco. Y el boletín de la BBC a las diez (p. 73).
Esse conjunto de objetos que o homem deseja quando volta do trabalho relacionam-se à
função de aquecer, confortar, amaciar o resto de existência que sobrou de seu dia, dentro de um
espaço doméstico que o protege do mundo exterior, como um útero em que Raimundo retorna e
encontra os cuidados das três mulheres que assumem funções maternas: a avó, a mãe e a irmã,
personagens que, mesmo sendo femininas, são assexuadas,
confirmando a solidão do protagonista.
Tal isolamento consolida-se mediante o tipo de relações abstratas estabelecidas com o mundo
55
exterior, já que estas lhe chegam apenas virtualmente, através da BBC. Acomodado a um conforto
tranqüilizador, ele almeja a recompensa das energias despendidas no trabalho, no entanto essa
recompensa apresenta-se, paradoxalmente, como inércia, produto de anti-energias. Esse estado
metaforiza-se numa mobília muito sugestiva, o sofá, vocábulo reincidente no texto e que, por isso,
pode ser apontado como símbolo da imobilidade do ser, do isolamento em si mesmo, do sentimento
de evasão.
Ampliando os significados do texto, inscreve-se o nome da personagem Raimundo Velloz,
que se pode associar à expressão “mundo veloz”, para remeter à idéia de aceleração, de rapidez com
que os acontecimentos vêm se sucedendo no mundo contemporâneo. Tal velocidade cada vez mais
tem se dirigido ao frenetismo, velocidade desorganizada, tempo vertiginoso característico do
progresso da civilização, pois, como comenta Ricardo Timm de Souza, ela não está ligada às
sucessões incessantes de fatos, mas sobretudo às transformações na essência das coisas, dos
conceitos e dos seres. Essa velocidade é a mesma de indivíduos frenéticos e solitários, cujas
existências compactas apresentam um espaço interior superficial
22
.
Embora a total imutabilidade do destino pareça atingir Raimundo, surge a hesitação em seus
pensamentos, brecha que leva ao aprofundamento interior, que carrega a dúvida diante da ordem
absoluta:
“El universo”, piensa Raimundo Velloz “¡qué tontería!” la unidad patraña de
metafísico. (Él es egresado del Nacional Central). No hay un universo, hay
millones y millones uno dentro de otro y dentro de cada uno otro y dentro de cada
otro cinco, diez, catorce universos variados y distintos. (...) el universo del hombre
que es un universo dentro de quién sabe cuántos universos, que tal vez y se
acuerda de haberlo leído es solamente un pedacito de la suela del sapato de un
niño cósmico que juega en un jardín (cuyas flores serán naturalmente las estrellas).
El jardín forma parte de un país que forma parte de un universo que es un pedacito
de diente de ratón apresado en una ratonera puesta sobre la masa de un desván en
una casa de arrabal. El arrabal forma parte... (p. 74).
A unidade é negada, assim como é afirmada a relativização da verdade científica (base da
edificação da sociedade capitalista fundamentada pela razão) e a fragmentação do absoluto, Un
pedacito de cualquier cosa pero siempre un pedacito, y la magnitud es una ilusión que casi da
22
Sobre essas questões têm se debruçado os filosóficos que discutem a sociedade pós-moderna, como é o caso de Paul
Virilio, que diz: A violência da velocidade tornou-se, simultaneamente, o lugar e a lei, o destino e a destinação do
mundo (apud SOUZA, 1998, p. 149).
56
lástima (p. 74). Com isso, inscreve-se a possibilidade do surgimento do diverso, da multiplicidade
de sentidos possíveis.
Esse trecho digressivo sugere que as inter-relações entre os vários universos sejam
analógicas, ou seja, não se submetam aos enunciados lógicos, em que o que “é” afirma as certezas
científicas e a irreversibilidade do estado das coisas. Assim, o enunciado científico passa a ser
substituído pelo enunciado metafórico, em que a relação estabelecida pelo “é” entre sujeito e
predicado entra em contradição, provocando uma autodestruição do sentido literal em favor da
criação de novos sentidos e, desse modo, dizendo coisas novas sobre a realidade
23
. Nessa
perspectiva, o conhecimento metafísico é minado, que, apesar da aparência das relações sólidas e
estáveis do cogito, o texto propõe que a racionalidade deixou de fornecer segurança aos destinos
humanos. A perda do controle humano sobre o mundo é metaforizada mediante a eleição de um
lugar desprivilegiado para o ser humano no universo, pois habita a sola do sapato de un niño
cósmico que juega, espaço marginalizado, que o desaloja de uma participação na consciência
divina e, portanto, desconstrói o sentimento de onipotência humana.
No entanto, o trecho citado propõe que a participação da vida humana dentro do movimento
cósmico é indispensável, por isso é repensada, sendo sugerida uma prática poética (segundo
relações analógicas) capaz de intervir num mundo solidificado pela razão. Como uma atividade
lúdica, um “jogo cósmico”, é proposta a invenção do mundo por meio da literatura, discurso
metaliterário reincidente no livro e que assume novo tratamento em Mudanza”, mediante uma
espécie de digressão autoral na voz do narrador, cuja proposta é de que, por meio da arte, elementos
e funções podem ser reformulados, invertidos e ressignificados.
Voltando à tese formulada por Davi Arrigucci Jr. de que o jogo é um leitmotiv de toda a obra
de Julio Cortázar, e de que está ligado a um projeto de construção dessa obra (ARRIGUCCI JR.,
1973, p. 56), é possível argumentar que tal opinião se confirma ao analisarmos esse trecho
digressivo presente em “Mudanza”, uma vez que esse conto inaugural apresenta a idéia de
correspondência entre a criação literária e a atitude lúdica do autor.
A partir desse instante reflexivo, instaura-se um outro andamento na narrativa, uma
mudanza no ritmo do mundo veloz, onde se abre uma zona intersticial (uma outra margem) no
cotidiano massificado, em que a personagem começa a perceber coisas novas: a pele das mulheres
23
Sobre o valor cognitivo do excesso de significação dos enunciados metafóricos, Paul Ricoeur desenvolve pertinente
capítulo, “Metáfora e símbolo”, em seu livro Teoria da interpretação.
57
está áspera, a voz da mãe fica rouca e grave, as mãos de María tornam-se grandes, o vestido da mãe
tem um modelo inusitado e os cabelos da avó ostentam uma trança longa e negra. O espaço ao redor
vai se alterando aos poucos, não tem mais o cunho acolhedor do início do relato, passa a possuir
valor semântico ameaçador. Por seu turno, o tempo passa a articular, num mesmo plano narrativo,
acontecimentos do presente e do passado, como ocorre com a visita do tio Lucas à casa,
personagem que não pode pertencer ao plano narrativo situado no presente, pois havia morrido.
Com todas essas modificações, Raimundo ainda tenta achar uma justificativa plausível para a série
de mudanças no lar, e reflete:
Y luego que los cambios son simples detalles, una modificación en la luz de la
araña que torna distinto el retrato del tío Horacio, un amigo de su hermana, la
portera que se le da por subir la correspondencia vespertina, un bolsillo raro de su
madre, su abuela más vigorosa y sin esos hombros esmirriados y fragilísimos de
antes. Detalles, cosas que tienen que ir sucediendo en una casa (p. 77).
Esse conjunto de mudanças que começa a tomar conta do ambiente cotidiano a partir da
ressignificação de personagens, espaço e tempo – é uma concepção comum de instalação do
fantástico na poética cortazariana, reinvenção ficcional das formas tradicionais desse gênero que
ocorre como se, de repente, a realidade se tornasse porosa, como uma esponja, a acontecimentos
inusitados e assim se instalasse a dúvida diante da identidade do sujeito, como comenta Cortázar em
seu ensaio “El estado actual de la narrativa en Hispanoamérica”
24
(CORTÁZAR, 1994d, p. 97).
Como pode ser observado ao longo da produção ficcional e crítica de Julio Cortázar, os
termos, “figura” e “imagem” manterão correspondência, e a expressão mais utilizada será “figura”,
freqüentemente apontada pela crítica como uma verdadeira matriz da visão de mundo e da arte de
Cortázar (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 209). Sobre a figura, acrescenta o teórico brasileiro:
Imagem desequilibradora do que o hábito aceita por real, na figura encontram o
máximo desenvolvimento a porosidade do universo cortazariano e as estranhas
relações de duplicidade no campo psicológico. A visão figural relaciona,
ludicamente, pessoas, coisas, ações, o cotidiano e o imaginário, independentemente
das categorias lógicas que os separam e isolam (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 209).
24
Segundo Saúl Sosnowski, esse ensaio foi originalmente publicado em inglês como “Politics and the intellectual in
Latin America”, em Books Abroad, em 1976 (CORTÁZAR, 1994d, p. 25).
58
No conto ocorre o entendimento da figura como “imagem”, pois as relações analógicas que
caracterizam o pensamento de Raimundo e passam a reger sua percepção do mundo são descritas
pela possibilidade que se instaura de poder se seguir por las dos puntas de la imagen. O termo será
modificado para figura por Cortázar anos mais tarde, como apontou Walter Bruno Berg em seu
artigo “Figura modelo para armar outra história? (reflexões acerca da utilização do conceito em
Auerbach e Cortázar)”
25
. Essa imagem intuitiva, devido ao fato de poder ser seguida por qualquer
de suas pontas, sugere a quebra da sucessão causal de eventos e da organização cronológica do
relato, apontando para a subversão das referências espaço-temporais da realidade objetiva.
Também nesse conto aparece a noção de “constelação” como interligação de figuras.
Nesse sentido, é pertinente reavaliar a análise crítica empreendida por Joan Hartman, em seu artigo
“La búsqueda da las figuras en algunos cuentos de Cortázar”. Segundo o estudo que Hartman
empreende sobre a elaboração da figura em contos de Final del juego (1956), Las armas secretas
(1959) e Todos los fuegos el fuego (1966), ele formula a tese de que, além da constância de seu uso,
uma evolução no tratamento do tempo e do espaço, cujo ápice se daria no conto “Todos los
fuegos el fuego”, que nele surgiria a concepção de constelação, que seria: la idea de que la vida
del hombre, fuera del tiempo e del espacio y más allá de los límites de su propia conciencia y
razón, se vincula, estructural y geométricamente
, a las vidas de una “constelación” de otros seres
(in GIACOMAN, 1972, p. 345).
Essa descrição conforma-se à idéia expressa em “Mudanza”, de que o universo humano
talvez faça parte de un niño cósmico que juega en un jardín (cuyas flores serán naturalmente las
estrellas), ou seja, uma constelação, na qual são estabelecidas inter-relações entre os distintos
universos e destinos humanos, o que se confirma nas ligações existenciais que se estabelecem entre
Raimundo Velloz e Jorge Romero. Portanto, o conceito de constelação, que o escritor argentino
toma de Jean Cocteau, conta da inserção humana num cosmos abarcador, não-definido, por isso
aberto à invenção humana. Desse modo, é possível argumentar que a idéia em torno das ligações
humanas via constelação não comporta a culminância do figuralismo, mas sim uma cosmovisão
particular dentro de um projeto literário que se delineia desde os primeiros textos.
25
Walter Bruno Berg mostra essa mudança entre os dois conceitos, “figura” e “imagem”, na passagem do capítulo 116
de Rayuela (1963), em que Morelli (personagem que é uma ficcionalização autoral) diz: Acostumar-se a empregar a
expressão figura em vez de imagem para evitar confusões. Sim, tudo coincide. Mas não se trata de uma volta à Idade
Média nem coisa parecida. Erro de postular um tempo histórico absoluto. tempos diferentes ainda que paralelos
(BERG, 1994, p. 15).
59
As mudanças que ocorrem ao longo da história amedrontam o protagonista, uma vez que o
estranhamento vai se intensificando, como ocorre com a transformação radical dos hábitos e da
aparência das mulheres. Na parede da sala, o antigo quadro de tio Horacio metamorfoseia-se em
uma desconhecida mulher maligna, significando a ameaça oferecida pela transformação das três.
Diante da desorganização de seu sólido universo, da perda das referências do cotidiano doméstico, a
personagem desespera-se, teme a loucura: pareció comprender lejanamente que no comprendía
nada, sólo entendía com precisión las ideas más estúpidas (p. 77). O medo diante do
desmoronamento do lar (espaço simbólico do mundo interior de Raimundo), dos hábitos que
constituem Raimundo (ainda que de uma maneira incompleta) e do modelo de realidade que o
delimita, é o medo da própria mudança, da possibilidade de reinventar-se, de intervir num mundo
solidificado
26
.
Apesar da resistência à mudança sentida pelo protagonista, as metamorfoses em seu
cotidiano continuam se intensificando, pois as personagens se transformam em outras: a irmã deixa
de ser María, agora é Lucia (mas também será Luisa); a antiga María torna-se a professora de
francês, mulher atraente (numa imagem sexualizada da irmã), a qual se apresenta com simpatia a
Jorge Romero, rapaz que se chamou, na ordem anterior, Raimundo Velloz. Essas personagens-
segundas são normalmente tratadas pela crítica à obra de Cortázar como duplos, como é o caso da
opinião de Leônidas Câmara, que as classifica sob essa perspectiva
27
. Também Marta Morello-
Frosch, em seu ensaio “El personaje y su doble en las ficciones de Cortázar”, analisa tais
transformações das personagens sob esse ângulo, no entanto adverte que esses duplos não apontam,
como de costume, para a divisão da personalidade, mas sim para um enriquecimento vital. Afirma
Morello-Frosch:
se trata de vidas en dos planos, el personal, restringido, y uno más amplio, mágico
pero aceptado como cosa natural, a menudo buscado en acto de voluntad en un
esfuerzo por reintegrarse a un orden misterioso y trascendente del cual forman
parte estos juegos de destinos múltiples que sólo en ciertos momentos se nos
revelan (in GIACOMAN, 1972, p. 338).
26
Referindo-se ao medo que sentem os indivíduos regidos pela Totalidade, Ricardo Timm de Souza diz que ele é
proporcional ao medo diante de qualquer tipo de mudança. Conclui o filósofo: É enquanto oposição ao verbo ser que a
mudança conquista seu espaço, oscilando entre o “ser” e sua sombra, o “nada”, entre a redenção e a danação finais
(SOUZA, 1998, p. 154).
27
Câmara aproxima a estrutura de duplo registro, que para o teórico representaria o tema da ficção cortazariana, à
estrutura compositiva chamada por Cortázar de figura e ao motivo do duplo (CÂMARA, 1983, p. 35).
60
O medo, anteriormente sentido por Raimundo, de “não ser mais” é superado, ao pensarmos
na sua transformação em seu duplo, Jorge Romero, como recriação de si próprio, ou seja, superação
da solidão de Raimundo a partir de um descentramento de si mesmo. O intervalo na existência de
Raimundo, instaurado mediante sua atitude de dúvida diante das certezas de um modelo de mundo,
ativa a força vital do indivíduo e o capacita para sua autoconstrução e interferência no mundo,
provocando uma fissura no tempo e no espaço do maciço da realidade e, por conseguinte, na
organização convencional do relato. Essa possibilidade de participar do “jogo cósmico” surge para a
personagem como um momento epifânico, e se liga ao caráter lúdico revelador que singulariza a
poética cortazariana, como observa Arrigucci Jr.:
o jogo aparece na obra de Cortázar como uma experiência imantada de
potencialidade reveladora, uma “diversão” que desvia da normalidade repetitiva,
apontando para uma nova dimensão da realidade, ou seja, como um jogo
transcendente (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 56).
Poderíamos também argumentar, numa perspectiva metaliterária, que Jorge Romero seria
uma criação literária, uma personagem de nome sonoro, nascida da transformação de Raimundo
Velloz. A partir dessa interpretação, a personagem seria produto de linguagem: Raimundo/Romero,
Velloz/Jorge, em que os vocábulos manteriam uma correspondência no número de sílabas e
ocupariam uma posição invertida no conjunto do nome, aproximação aos jogos com palavras tão
admirados por Cortázar
28
. Com isso, encontraríamos, na passagem do ser de Raimundo a Romero,
o cumprimento da projeção do eu-escritor em direção ao outro-personagem, perfazendo uma nova
representação no livro do entendimento do processo de criação verbal enquanto possibilidade do
escritor de sair de si, avançar à procura de ser mais, una irrupción en outro ser, en otra forma de
ser: una participación (...) transposición poética de su [escritor] angustia personal de
enajenamiento, como diz Cortázar no ensaio de 1954 “Para una poética” (CORTÁZAR, 1994c, p.
278).
Passemos, pois, ao último conto de “Histórias de Gabriel Medrano. Trata-se de “Distante
espejo” (1943), o qual retoma a intertextualidade estabelecida com “O Horla”, dessa vez de forma
28
Processo semelhante ocorrerá no conto “Lejana”, de Bestiario (1951), em que a argentina Alina Reyes inventa a
“outra” em Budapeste a partir do anagrama Alina reyes, es la reina y... Com isso, a criação da figura a partir do
movimento do pensamento e da escrita, materializada na narrativa/diário, compondo a narrativa em dois planos
simultâneos. Davi Arrigucci Jr. também aponta para o jogo com palavras que remete ao duplo Axolotl, que aparece no
61
explícita, que reelaboração de um episódio do conto francês em que o protagonista,
pressentindo a presença em seu quarto do Horla (também chamado o Invisível), consegue enxergá-
lo através da ausência do seu próprio reflexo no espelho.
Uma das idéias vinculadas ao motivo do invisível na narrativa maupassantiana é a de sua
significação como uma força desconhecida que move o ser humano, idéia que é ressignificada no
texto cortazariano, uma vez que tal proposição passa a ser articulada com um discurso metaliterário.
Além disso, a discussão metaficcional é desenvolvida a partir de duas perspectivas: a imagem do
escritor e a imagem da escrita. Para tal empresa, são usadas determinadas estratégias textuais, que
irão criar novos sentidos e referências contextuais para os signos do texto francês. Entre tais
estratégias, destaco a ficcionalização do autor, por meio de uma narração em forma de diário, e a
estrutura em abismo do relato, que possibilita a construção da imagem refletida do próprio relato.
O autor é ficcionalizado por meio de confidências dos hábitos e leituras de uma personagem
que possui muitos traços biográficos do jovem escritor Julio Cortázar, em sua vida reclusa de
professor na cidadezinha de Chivilcoy, a qual é representada no espaço do conto. O autor parece
divertir-se com a própria ficionalização quando declara: comprendo que mi relato ha guardado
hasta ahora el exterior de un diario, manera elegante de someter “comptes rendues” a biógrafos
futuros (p. 82).
Como o protagonista maupassantiano, esse homem é solitário, porém, ao contrário do
primeiro, ele não possui raízes culturais que o liguem à comunidade e chega a identificar-se como
um selvagem entre os chivilcoynianos. Trata-se de um jovem encerrado em seu quarto de estudos,
subespaço que condensa um saber aprendido, nem sempre compreendido (porque não vivenciado),
como acontece com o trecho em alemão da Bíblia de Lutero que se torna incompreensível. Daí o
surgimento do vazio e da divisão interior, como descreve a personagem: ese combate durísimo del
alma con el alma (p. 82).
Essa dualidade é acentuada por uma força incontrolável (o invisível) que
o toma, chamada pela personagem de Tupac-Amao desejo de algo e de seu contrário, idéia de
divisão do ser em partes antagônicas, em sentidos contrários. O nome Tupac-Amarú pode estar
ligado ao episódio da morte da personagem histórica que, como é sabido, foi assassinada pelos
espanhóis, que despedaçaram seu corpo em partes puxadas em diferentes direções por quatro
conto homônimo, de Final del juego (1956), ao aproximar-se a Xóolotl, que é o duplo de Quetzalcoatl, mito pré-
colombiano do México que significa a cristalização da dualidade (ARRIGUCCI Jr., 1973, p. 58).
62
cavalos (FUENTES, 2001, p. 212)
29
. Também podemos pensar na utilização do nome Tupac-Amarú
como invocação da presença de uma cultura autóctone latino-americana e a busca de sua afirmação,
que remete ao último imperador inca, e foi o nome adotado pelo rebelde índio que liderou uma
grande revolta contra o domínio espanhol em 1780.
Tal sensação contraditória desinstala a personagem de sua reclusão intelectual e a lança às
ruas, onde atuam forças naturais e sobrenaturais. Nesse sentido, o fenômeno Tupac-Amarú
desencadeia, num primeiro momento, a busca de si mesmo nas forças da natureza, uma espécie de
volta às raízes primitivas dessa personagem-escritor latino-americano. A paz, oriunda da natureza,
subespaço aberto que se opõe semanticamente ao quarto encerrado, faz com que seu corpo se
dissolva no ambiente natural: Mi cuerpo volvía a sentir esa impresión exquisita tantas veces
gustada en las playas estivales de disolverse bajo el sol, fundirse en el aire azul y tornarse
incorpóreo, conservando sólo el poder de sentir lo tibio, lo celeste, lo cómodo (p. 83).
Seguindo, pois, sua intuição, o protagonista é levado à casa da amiga professora, porém o
sobrenatural se instala, porque a residência se metamorfoseia na pensão em que vive o jovem, que
declara: Pero es que era mi casa (p. 84). Por meio da estrutura em abismo, que comporta uma
narrativa dentro de outra, a construção ficcional desdobra-se num plano especular, em que é
refletida a imagem da personagem-escritor em seu quarto de estudos, numa repetição dos atos
cotidianos narrados na primeira parte do relato. A partir desse instante, não é possível ao
protagonista definir o que é real e o que é imaginação, ou qual de seus eus” é o real e qual é a
imagem. Num primeiro momento, esse “outro” é negado, pois, como o Horla, é considerado
estranho, exótico. A personagem volta a sentir a manifestação dos “contrários” dentro de si, já que a
antiga paz é substituída pelo horror de descobrir-se um “outro”, um desconhecido. Ademais,
invertem-se os papéis, já que é a imagem da personagem que assume o protagonismo da cena, como
acompanhamos no trecho que segue: terminó mi papel activo; fui ya una cosa inmóvil parada junto
a la puerta, asistente al desarollo de una escena cotidiana, en espectador atento, sin miedo por
exceso de horror (p. 84).
Observa Carmen de Mora, em pontual análise do conto “Distante espejo”, que esse
procedimento cortazariano de identificar a personagem com seu reflexo constitui não só uma
subversão do texto de Maupassant, mas da própria perspectiva fantástica. Esclarece a pesquisadora:
29
Por meio de testemunhos anônimos da tradição oral, Carlos Fuentes relata esse místico acontecimento, já que foi
acompanhado de manifestações naturais, como tempestades e ventos fortes.
63
Este relato, por tanto, al identificar lo extraño con el protagonista de la historia,
devolviéndole su propia imagen, en lugar de la presencia invisible de un fantasma o
espíritu, marca una clara ruptura con la literatura fantástica tradicional, de la que
toma distancia a través de la ironía burlona (MORA, 2002, p. 66).
30
A partir dos conflitos internos da personagem, surge uma nova imagem dessa personagem-
escritor, aquela fundada a partir de uma força ancestral, Tupac-Amarú. Esse novo escritor é capaz
de desvendar o trecho literário alemão, porque o interpreta segundo sua identidade cultural, a qual é
representada pelos “rituais” sul-americanos do mate doce e da cantiga inca entoada com
modulación norteña ad hoc (p. 84).
Por outro lado, a estrutura em abismo, ao provocar a dúvida na personagem de que poderia
estar protagonizando a cena de “O Horla”, potencializa a espacialidade do conto, pois sua
composição passa a comportar um espaço dentro de outro, ou seja, o espaço intertextual do conto
maupassantiano insere-se no de Cortázar
31
. Desse modo, o texto opera um novo procedimento
narrativo no livro que objetiva desestabilizar as fronteiras entre ficção e realidade, surgindo um
outro espaço fronteiriço, composto não de heterogeneidades de natureza existencial, mas,
sobretudo, de cunho cultural, que deixa a descoberto o mundo da referência na própria fábula,
lançando, assim, a discussão sobre a própria construção do relato.
Aprofunda-se ainda mais o autoquestionamento no conto ao ser pensado o espaço
enunciativo latino-americano, como podemos acompanhar na cena em que a personagem confunde
os dois relatos e declara: Por Dios, esto es LE HORLA”. Com isso, o texto sugere que o modelo
(conto de Maupassant) e a cópia (conto de Cortázar) sejam semelhantes, o que confere
invisibilidade ao segundo relato. Essa escrita invisível se identifica com a obra invisível de Pierre
Menard, aquela que é subterrânea o Quijote, seu modelo inatingível, no conto de Jorge Luis Borges
“Pierre Menard, autor del Quijote (em El jardín de senderos que se bifurcan, 1941). Nesse sentido,
30
A autora considera que, ao identificar o intruso à própria personagem, o conto cortazariano concebe uma outra
natureza do fenômeno fantástico, pois ele estaria ligado não a entidades externas, mas à ppria mente do ser humano
(MORA, 2002, p. 66).
31
Icleia Borsa Cattani, em seu ensaio “Procedimentos do surrealismo nas artes visuais”, avalia a importância da
estrutura em abismo utilizada nas artes plásticas surrealistas, mediante o estudo da obra do pintor René Magritte, artista
muito admirado por Cortázar. Numa série de quadros intitulada Isto não é um cachimbo, iniciada por volta de 1928 e
retomada em 1966 no quadro Os dois mistérios, o pintor inclui, em sua composição espacial, um quadro dentro de
outro. Com isso, afirma a teórica, são exibidas as estratégias de comunicação e discutidas as convenções de
representação artística, procedimentos auto-reflexivos decisivos nos novos rumos da arte contemporânea (in PONGE,
1991, p. 126).
64
inscreve-se no texto a discussão
32
sobre a condição de dívida da literatura latino-americana ante os
textos colonizadores, pois, por serem ambos pertencentes ao mesmo modelo ocidental, modelo e
cópia são idênticos, o que faz com que os textos-segundos (o de Menard e o da personagem-escritor
de Cortázar) desapareçam. Os dois contos parecem sugerir que o discurso latino-americano
consegue superar sua dívida na criação de uma linguagem que reinventa sua herança, onde se revela
a situação cultural, política e econômica do artista latino-americano. Com a intenção de vencer a
própria invisibilidade, a personagem cortazariana complementa sua fala, propondo uma atitude
ativa perante a tradição, e declara, de maneira jocosa: Ahora tendremos que dialogar, etcétera (p.
84).
A diferença que se inscreve no texto-segundo é pressentida pela personagem, que, aliviada,
conclui: no era LE HORLA gracias a Dios. Qual seria, então, essa diferença? Responde-nos a
própria narrativa que, apesar dos signos que nos remetem ao conto de Maupassant (simbolicamente
marcados pelas iniciais GM inscritas na escrivaninha do escritor), essa outra imagem escritural traz
a subversão desses signos (como comprovamos ao longo da interpretação do conto), instaurando,
assim, uma linguagem particular, pois oriunda da cultura de seu criador. Nesse sentido, Cortázar
formula no título “Distante espejo” uma feliz metáfora da escrita latino-americana, já que ela
concebe a idéia de que a construção dessa literatura passa por sua condição de espelho, no momento
em que reflete a admiração pelo texto colonizador, mas também surge como reinvenção de uma
nova imagem, pela atitude de distanciamento que assume perante ele, ao subvertê-lo.
2.3 – Prolegômenos
Na última parte de La otra orilla, “Prolegómenos a la Astronomía”, Julio Cortázar segue
inventando, como Raimundo Velloz, um jardim cósmico. Imaginando constelações, planetas
distantes e estações encantadas, cuja astronomia vai desvelando um cosmos particular, Cortázar
alude não às angústias e aos embates do escritor perante a sociedade e sua criação literária, mas
também aos deslumbramentos de um jovem encantado pela literatura. O título “Prolegómenos a la
Astronomía” remete aos inícios, aos preâmbulos da atividade reflexiva que será exercida em toda a
32
Essa discussão proposta pelo texto borgeano da década de quarenta é um dos pontos de partida que Silviano Santiago
propõe para a reflexão do entre-lugar ocupado pelo discurso literário latino-americano dentro do sistema literário
ocidental.
65
sua obra ficcional, em que as preocupações com os problemas da linguagem associam-se às
posições críticas do artista perante o modelo capitalista e o papel da história literária nesse contexto.
Observamos nas muitas incursões astronômicas que os relatos propõem que, apesar da
distância espaço-temporal entre a Terra e os planetas imaginários e do fato de esses espaços serem
estranhos, desconhecidos, habitados por seres exóticos, eles evocam nosso mundo contemporâneo.
Assim, sob os contrastes e aproximações que daí decorrem, é proposto o debate, que a
ambigüidade se instaura mediante o recurso alegórico de que os contos se valem
33
.
Pensando a alegoria sob a perspectiva de Walter Benjamin, podemos considerá-la como um
modo de expressão próprio da modernidade (como ocorre na obra de Baudelaire e na estética
surrealista analisadas pelo teórico), pois comporta um mundo em que as coisas se apresentam
separadas de seus significados, reflexo da consciência de alienação. Orlando Fonseca, explicando a
concepção benjaminiana de alegoria, diz que ela se afasta do entendimento medieval, associada a
códigos semióticos fixos, e do romântico (com Goethe), que, valorizando o símbolo como
representação artística intuitiva da realidade, esvazia o sentido da alegoria, circunscrevendo-a
apenas a um papel de exercitação didática. Em textos contemporâneos, a natureza tradicional da
alegoria é subvertida pela concretude histórica a que se liga, transcendendo, portanto, a convenção e
apontando para novos níveis de conteúdo (FONSECA, 1997, p. 51).
A construção discursiva dos contos de “Prolegómenos a la Astronomía” instaura uma
distância entre o que está sendo enunciado e o que se que enunciar, pois a linguagem literal, que
formula uma diegese aos moldes de ficção científica, oculta uma outra, que se propõe discutir
aspectos sociológicos do mundo moderno e questionar a instituição literária e o próprio fazer
artístico. Ademais, nesses contos surgem perguntas sobre o que significa “ser” humano e as práticas
sociais contraditórias (incluindo-se nessas práticas a própria literatura) associadas a esse complexo
verbo “ser”.
O primeiro conto, “De la simetría interplanetaria” (1943), formula, de início, a descrição do
planeta Faros e dos farenses sob um discurso de tom científico, a partir da perspectiva de seu
narrador-personagem, possivelmente um astronauta do futuro, que vai introduzindo, aos poucos, o
leitor numa dimensão espaço-temporal desconhecida. Segundo Tzvetan Todorov, o fato de o
conhecimento tecnológico do narrador não se encontrar ao alcance da ciência contemporânea leva o
33
Do grego, allós=outro, agourein=falar, etimologicamente significa “outro discurso”, ou seja, pode-se definir
genericamente a alegoria como toda concretização, por meio de imagens, figuras e pessoas, de idéias, qualidades ou
entidades abstratas (FONSECA, 1997, p. 52).
66
texto a aproximar-se do gênero fantástico de science-fiction, o qual utiliza, em muitos casos, a
alegoria (TODOROV, 1975, p. 63). Tais aspectos podem ser observados nesse conto de Cortázar.
Como num relato de viagem, em que o colonizador objetiva informar sobre seu
descobrimento, as informações não deixam de veicular o olhar daquele que vem de fora, que
pertence a um espaço e a uma cultura alheios, ou seja, a enunciação veicula o estranhamento diante
de uma topografia e de uma outra forma de existência diferentes da sua própria. Nas primeiras
observações do ambiente e dos habitantes desse espaço exótico, o narrador centra as atenções em
seus aspectos externos: el ambiente físico, fitogeográfico, zoogeográfico, político-económico y
nocturno de su ciudad capital que ellos llaman 956. (...) Los farenses son lo que aquí
denominaríamos insectos (p. 91).
O choque entre os dois planetas, Terra (real) e Faros (imaginário), começa a ser construído
no texto por meio das peculiares características do segundo, pois as formas e as relações espaciais
são diferentes das que ocorrem na Terra, como a forma do corpo dos farenses, sua maneira estranha
de deslocar-se (com suas dezessete patas) e o peculiar design dos objetos, como é o caso da mesa
em forma de pirâmide. Assim, o texto solicita ao leitor que imagine o que nunca viveu, que são
experiências não-humanas que devem ser acrescidas ao discurso para que esse espaço seja
formulado.
Não obstante os contrastes dos dois universos, o visitante estabelece comunicação com os
extraterrestres, apesar da incompatibilidade entre as linguagens, favorecido pelo uso de gestos
universales e uma innegable simpatía dos farenses, fatos que aproximam tanto o protagonista como
o leitor com o modo de vida desses seres, por serem práticas sociais utilizadas nas relações
diplomáticas humanas.
Aos poucos, o protagonista vai se dando conta de que os seres desse universo estranho, uma
espécie de outro lado do espelho visitado por Alice, não têm uma maneira de existir tão distante
daquela vivida pelos terráqueos, diferentemente do que ocorre no romance de Lewis Carrol, em que
a aparência inusitada do outro mundo alia-se a sua organização totalmente distinta (o que constitui
uma total inversão da imagem do mundo real, como no espelho). Em Faros, as diferenças
existem na aparência.
Apesar de o planeta ser exótico e os farenses serem completa confusión (p. 92) para o
terráqueo, ele observa vários pontos que o leitor reconhece em sua própria espécie: Me explicaron
que profesaban el monoteísmo, que el sacerdocio no estaba aún de todo desprestigiado, y que la ley
67
moral les mandaba ser pasablemente buenos (p. 91). Contrariamente ao que se poderia supor, o
pensamento mítico e a ética exercidos pelos extraterrestres são idênticos aos praticados na Terra,
correspondência que comporta a discussão em torno de duas questões sociológicas pontuais em
nosso contexto: a superficialidade das relações interpessoais e a fragilidade espiritual do mundo
contemporâneo.
Na continuidade de sua aventura intergalática, o visitante relata: El problema actual parecía
consistir en Illi. Descubrí que Illi era un farense con pretensiones de acendrar la fe en los sistemas
vasculares (“corazones” no sería morfológicamente exacto) y que estaba en camino de conseguirlo
(p. 91).
Convidado a participar de um banquete de autoridades, o astronauta presencia um fato
surpreendente:
Repentinamente creí estar viviendo un anacronismo, haber retrocedido a las épocas
terrestres en que se gestaban las religiones definitivas. Me acordé del Rabbi Jesús.
También el Rabbi Jesús hablaba, comía y hablaba, mientras los demás lo
escuchaban com atención y parecían adorarlo (p. 91).
A personagem Illi é o desestruturador da ordem de Faros. Aos moldes da missão executada
pela personagem Jesus, pretende instaurar tal desordenamento mediante o exercício da afetividade.
Pela possibilidade que tem o viajante intergalático de reviver a saga do filho de Deus, ele se
pergunta sobre as reações dos farenses diante de Illi. Teriam atitudes semelhantes aos humanos
perante Jesus? O debate implícito em torno da sociedade é retomado sob nova perspectiva, já que a
reflexão sobre a homogeneidade da cultura de nossa civilização é sugerida na expressão: si los seres
reaccionan igualmente en todos lados (p. 92).
Assim como na Terra, os farenses matam o ser iluminado, e com isso adquirirem,
provavelmente, a culpa diante de Deus. Incorpora-se ao texto o questionamento em torno do
controle exercido pela religião cristã e dos governos que se valem dela para exercer o poder ao
longo da história ocidental. A culpa pelo assassinato do filho de Deus é inseparável da definição de
“ser” humano na civilização ocidental: hombre de la tierra, sentí nacerme una vergüenza
retrospectiva. El Calvario era un estigma coterráneo, pero también una definición (p. 92). A
expressão hombre de la tierra adquire, pois, significado pontual, pois o espaço Terra torna-se a
metáfora do modelo capitalista-cristão no mundo contemporâneo. Nessa perspectiva, o valor
semântico que tal espaço possui é decisivo na definição do que seja “humanidade”, pois assume
68
valor ideológico ligado ao controle da liberdade humana. A defesa da liberdade diante das formas
de dominação do pensamento, tema predominante nessa terceira parte de La otra orilla, será um dos
pontos essenciais que Cortázar apontará mais tarde na Teoría del túnel, em que serão propostas
atitudes de rebelião artística contra sistemas sociais, religiosos e culturais que ameaçam a
manifestação integral do ser humano.
34
No que se refere à articulação dos acontecimentos da trama, observamos que o mesmo
aprisionamento que o terráqueo vive em seu planeta é experienciado em outro, ou seja, os dois
campos semânticos articulados pela narrativa, Terra e Faros, possuem valores semelhantes
(construção espacial evocada no sugestivo título “De la simetría interplanetaria”), o que gera uma
imobilidade interior da personagem, que sua movimentação, ao passar de um cronotopo a outro,
não provoca sua transformação, nem tampouco dos mundos em que se move. Também a
circularidade temporal aprofunda tal estado da personagem, mediante o retorno dos acontecimentos
históricos, que a trajetória de Jesus Cristo volta a ocorrer com Illi. Tais procedimentos narrativos
fazem apologia ao pensamento tautológico, que caracteriza a imobilidade do pensamento da
sociedade tradicional e de grande parte da produção intelectual ocidental, aquela atrelada ao
conservadorismo, à qual Cortázar dirige sua crítica. A epígrafe do conto parece anunciar-nos tal
homogeneidade e paralisia cultural, porque é proferida por uma espécie de personificação da cultura
de massa: o Pato Donald, personagem das histórias em quadrinhos de Walt Disney, que representa o
discurso hegemônico do dominador, o qual manifesta seu tédio diante da repetição de seu próprio
discurso: This is very disgusting.
Passando ao conto “Los limpiadores de estrellas” (1942), deparamo-nos com as aventuras de
uma grande empresa em sua missão de executar seu rentável negócio de limpeza dos astros do
universo. Ocultado encontra-se o argumento principal do conto: a crítica às convenções formais e
ao sistema cultural a que estão atrelados as obras de arte e os artistas em nossa sociedade. A
construção alegórica mobiliza um conjunto de metáforas que se desdobram ao longo da narrativa, as
quais irão construindo sentidos que podem ser interpretados a partir da relação proposta a seguir: a
Sociedade de Los Limpiadores de Estrellas metaforiza a instituição acadêmica e também o sistema
34
A epígrafe da Teoría del túnel é um trecho do texto teatral As moscas (1943), de Jean-Paul Sartre, peça escrita no
mesmo ano do conto “De la simetría interplanetaria” e que também usa o recurso alegórico, discutindo a liberdade na
contemporaneidade mediante o drama protagonizado por Electra e seu irmão Orestes, que lutam para restituir a
liberdade de seu povo ao tentarem acabar com a culpa gerada e controlada pelo governo real de Egisto e pelo poder
religioso de Júpiter. No diálogo estabelecido entre Egisto e Júpiter, este declara ao rei: Por um homem morto, vinte
69
cultural; os astros podem ser tanto os artistas como, em certos trechos, as obras; a limpeza sugere
uma adaptação às categorias estéticas; o brilho parece remeter à inserção no sistema canônico, ou
seja, ao reconhecimento de obras e artistas; os estudos astronômicos estão ligados aos estudos
estéticos.
A Sociedade, sediada na Terra, tem como objetivo atender às solicitações de serviços
oriundas de todo o universo, fato que revela um descompasso acentuado no que se refere às ínfimas
dimensões espaciais da Terra em relação à imensurabilidade do universo; com isso, é proposta a
crítica à desproporção entre o conjunto limitado de classificações estéticas e a infinidade de
possibilidades expressivas da arte.
O céu, espaço da aventura, no início apresenta-se multiforme, composto de cores e brilhos
diferentes, um cosmos em que se contrapõem luz e sombra, onde nasce o dia e a noite. Tal
configuração alude a um frutífero espaço cultural em que há multiplicidade de idéias, contradições e
discordâncias. Também é possível pensarmos num espaço literário plurívoco, onde acontece o
diálogo entre variadas linguagens. Numa cena cultural com tais características, é possível
circularem verdadeiras obras de arte, que, por serem cosmovisões particulares, apresentam entre si
incompatibilidades, ou, como diz Adorno, pontos de fricção, pois sintetizam momentos
incompatíveis, não idênticos
(apud SOUZA, 1996, p. 47), geradoras de novas formas de conhecer,
de expressar o inusitado, de inventar o ainda não existente. Nesse sentido, Adorno argumenta que a
arte contradiz a lógica da totalização, pois sua autonomia e singularidade atestam a expressão do
“diferente” que não se reduz a uma cultura homogênea
35
.
No entanto, as características desse espaço vão se alterando com a intervenção da ordem
imposta pela sociedade de Los Limpiadores de Estrellas: En esta forma, bien pronto las estrellas
del cielo readquirieron el brillo que el tiempo, los estudios históricos y el humo de los aviones
habían empañado (p. 93).
Nesse trecho Cortázar associa ambos os discursos que compõem a alegoria numa mesma
oração, rompendo com o paralelismo sintático ao inserir a fumaça dos aviões ao lado do tempo e da
historiografia, estes dois últimos fatores ligados às continuidades ou mudanças do cânone.
mil mergulhados no arrependimento: é este o balanço. E acrescenta:O doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que
os homens são livres (SARTRE, 1983, p. 124).
35
Diante desse papel social da arte, conclui Adorno em sua obra Minima moralia, citada por Ricardo Timm de Souza: a
missão da arte, hoje, é introduzir o caos na ordem (apud SOUZA, 1996, p. 47).
70
Na fábula, a limpeza das estrelas gera diferenças de magnitude, que, por seu turno,
provocam invejas entre constelações e nebulosas. Essas zonas espaciais evocam as divisões
estanques em círculos seletos de artistas, ou escolas estilísticas e “ismos”, configuração espacial que
denota a fragmentação em círculos artísticos incomunicáveis, gerando uma cena cultural
improdutiva. Também podemos pensar nas rígidas delimitações de gêneros literários em que a
literatura costuma ser compartimentada e que tende a limitar a criação verbal.
Em meio a disputas e animosidades, Los Limpiadores de Estrellas propõe um trato
compensatório à falta de brilho das nebulosas:
El cepillado de las nebulosas permite a éstas ofrecer a los ojos del universo la
gracia constante de una línea en perpetua mutación, tal como la anhelan poetas y
pintores. Toda cosa ya definida equivale al renunciamiento de las otras múltiples
formas en que se complace la voluntad divina (p. 94).
De modo muito significativo, o texto sugere os tácitos acordos entre as academias, o
mercado e os artistas profissionais, relações de troca em que são garantidos tanto a produção como
seu consumo, desde que a criação artística assuma o conjunto de formas limitantes que a linguagem
tradicional impõe e que é cultuada nos meios oficiais. O artista conservador adapta-se aos limites
formais e temáticos, que produz a junção perfeita entre o conteúdo que é conveniente que seja
expresso e a linguagem institucionalizada que o expressa, ao passo que as obras se situam dentro do
sistema com a perenidade das formas “limpas” e “brilhantes”, produto do trabalho de “ourives” de
seu autor a serviço da forma institucionalizada.
36
A crítica ao tipo de intelectualidade que incorpora e legitima o conservadorismo de modelos
de sociedade baseados no lucro associa-se à denúncia da vulnerabilidade dos cânones da
historiografia literária. O conto incorpora essa instância auto-reflexiva ao misturar acontecimentos
da história intergalática com referências metaliterárias, no episódio que relata que bibliotecas são
incendiadas, sistemas astronômicos entram em crise, cânones são substituídos (¿quién recordó
desde entonces a Laforgue, Jules Verne, Hokusai, Lugones y Beethoven?, p. 94) e motivos artísticos
36
Na Teoría de túnel Cortázar formulará sua crítica aos benefícios desse convênio entre academia e o escritor
tradicional, novamente utilizando termos relativos à “limpeza” e “esplendor”. Diz Cortázar: El escritor se beneficia a su
vez com una adecuación feliz de fondo y forma, y su estilo es siempre la modalidad individual de esa adecuación: el
idioma se beneficia a su vez con un enriquecimiento continuo que lo expande armónicamente, lo fija, lo limpia y le da
esplendor (CORTÁZAR, 1994b, 58).
71
entram em declínio em favor de outros que são readmitidos (himnos al sol, ahora en descrédito,
fueron burlonamente desterrados de las antologías, p. 94).
O controle exercido pela Sociedade estende-se por todo o universo; ela deseja limpiar de
buen o mal grado aquellas indiferentes o modestas (p. 94), ou seja, tais estrelas metaforizam os
artistas independentes e excluídos da oficialidade cultural; as brigadas são utilizadas, o que pode
remeter ao poder acadêmico ditatorial aliado ao político; o silêncio é instaurado, o que está ligado à
censura instalada: Ya no se hacían preguntas como en los viejos tiempos: “¿Te parece que es
anaranjada, rojiza o amarilla?” (p. 95).
A indiferenciação dos astros sugere não a homogeneidade da produção artística, mas se
estende também à massificação do ser humano (o que nos lembra as personagens Plack e Raimundo
Velloz): tanto la Luna como el Sol aparecían confundidos en la muchedumbre de estrellas,
invisibles, derrotados, deshechos por la triunfal tarea de los limpiadores (p. 95).
A tarefa da Sociedade é totalmente concluída depois de limpa a última estrela, Nausicaa:
una estrella que muy pocos sabios conocían, perdida allá en su falsa vigésima magnitud (p. 95). No
nome da última estrela a ser submetida à limpeza (talvez devido ao próprio desconhecimento da
importância de seu brilho por parte da Sociedade), o texto homenageia o romance A náusea
(1938)
37
, incorporando potencialmente um espaço intertextual, já que é integrada à narrativa a
representação sartreana de uma realidade fora de controle, um mundo ameaçador (nauseante) ao
indivíduo, construído a partir de referenciais ligados ao cogito.
Com a eliminação do último brilho particular no Universo, a estrela Nausicaa, o total
descontrole é produzido, paradoxalmente descrito como a claridade total, pois insuportável
luminosidade que elimina a visão do ser humano, un clamoreo horrible, como el de vidrios
raspando un ojo (p. 95), imagem que remete a sensações visuais terríveis, para que o leitor imagine
um espaço ameaçador. Tal espaço evoca a contradição do modelo de mundo proposto desde o
Iluminismo (cujos pensamentos e práticas se intensificam cada vez mais desde o século XVIII),
que, propondo o conhecimento universal capaz de iluminar através da razão, elimina o que não
pode ser conhecido por ela, prometendo o controle da realidade mediante a desconsideração do
conhecimento intuitivo.
37
Na resenha que Cortázar escreverá em 1948, na revista Cabalgata, sobre A Náusea (edição traduzida ao espanhol por
sua mulher Aurora Bernárdez), o escritor novamente destaca a influência desta obra sobre la generación en plena
actividad creadora, apesar de permanecer subestimada pela intelectualidade, além disso considera-a como marco na
72
Com a nova configuração do espaço, transforma-se o universo: La noche quedó
instantáneamente abolida. Todo fue blanco, el espacio blanco, el vacío blanco, los cielos como un
lecho que muestra las banas, y no hubo más que una blancura total, suma de todas las estrellas
limpias (p. 95).
O espaço perde a heterogeneidade que comportava no início, torna-se compacto, e o tempo,
eterno dia, em que a luz está desprovida da sombra, e a homogeneidade do branco não permite a
presença da variação de cores. Nessa perspectiva, a espacialidade assume o significado do terrible
porvenir que aguardaba el universo, pois o espaço transforma-se em maciço e o tempo vira eterno:
Y el cielo sería perfecto, para siempre (p. 95). A descrição espaço-temporal de tal realidade vai ao
encontro de concepções filosóficas próprias da pós-modernidade que buscarão caracterizar o tempo
e o espaço que compõem o atual modelo de civilização capitalista. A construção conceptual de tal
modelo passa pela construção de uma idéia absoluta, à qual subjaz um tempo lógico e eterno (já que
imutável), categoria temporal da Totalidade. A esse tempo agrega-se um espaço de natureza maciça,
pois comporta um tipo de espaço social em que não há lugar para a interferência do indivíduo.
No interior desse céu luminosamente branco encontram-se pontos negros, antigas estrelas
que, por terem sido totalmente absorvidas pela claridade exterior, estão desprovidas de qualquer
brilho próprio. Estrelas sem luz, como artistas sem profundidade e obras sem vitalidade, produtos
de uma cultura homogênea. Talvez o debate instaurado sobre uma situação cultural opressora esteja
ligado à própria condição desfavorável vivida pelo artista Cortázar na Argentina em tempos do
governo populista de Perón.
As características espaciais compactas que o texto assume no final do conto evocam um
espaço social em que não lugar para a intervenção particular do artista, para o qual restam duas
perspectivas diante da sociedade: como ponto negro, não encontra possibilidade de expressão; como
estrela homogênea, confunde-se com o falso esplendor de uma cultura superficial.
No conto subseqüente, intitulado “Breve curso de Oceanografía” (1942), a importância do
espaço é intensificada, pois planetas e acidentes geográficos se antropomorfizam e, às vezes,
protagonizam a história. Como no conto anterior, o conjunto de metáforas acionadas, que se
perpetuam ao longo da narrativa, constitui um sistema de relações que compõem a idéia central do
texto, a qual poderia ser expressa (parafraseando o título) por “Breve curso de História da
destruição de formas de organização social e na denúncia da inconsistência da “ordem” no mundo civilizado
(CORTÁZAR, 1994c, p. 106).
73
Narrativa”. Tal discurso metaliterário prenuncia discussões que serão levantadas na Teoría del
túnel, como é o caso das transformações do gênero narrativo no sistema literário ocidental e o papel
que o joven escritor bárbaro (CORTÁZAR, 1994b, p. 72) pretende assumir perante tal sistema,
questões fundamentais em La otra orilla e que continuarão a ser pensadas no referido ensaio. Nesse
sentido, a leitura interpretativa do conto aqui proposta alia-se às idéias contidas no texto crítico de
1947, já que em muitos pontos os dois textos se complementam e interagem na produção de
significados.
Iniciemos, pois, a análise pelo trecho que abre “Breve curso de Oceanografía”: Observando
con atención un mapa de la Luna se notará que sus “mares” y “ríos” distan mucho de tener
comunicación entre sí; por el contrario, guardan una reserva completa y perpetúan abstraídamente
el recuerdo de antiguas aguas (p. 97).
Na Teoría del túnel, Cortázar formula sua opinião sobre as transformações da escrita na
história da narrativa a partir do estudo das mudanças ocorridas em sua linguagem, ou seja, na
função que exercem os discursos lógico e poético na concepção desse gênero
38
. A esse respeito, diz
o escritor que, na maior parte da produção ficcional do Ocidente, a estrutura da narrativa permanece
moldada pela linguagem lógica, enquanto o poético serve apenas de ornamento, uma espécie de
aura sentimental e espiritual que complementa personagens e situações. Referindo-se ao processo
de separação definitiva entre as duas linguagens e à posterior culminância do caráter racional que
adquirem os romances do século XIX, Cortázar conclui, metaforicamente, que a narrativa opera
una cómoda partición de las aguas, entrega el material esencialmente poético al lírico y se reserva
la visión enunciativa del mundo (CORTÁZAR, 1994b, p. 91).
A partir desse diálogo intratextual, mediatizado pela identificação entre as imagens da ficção
e do ensaio, o trecho citado do conto pode ser interpretado segundo a seguinte rede de metáforas: a
Lua sugere a metáfora das produções narrativas; o mapa da Lua seria a história literária; a água, a
substância verbal; águas antigas adquirem o sentido de produções literárias do passado; os rios
podem ser entendidos como a linguagem poética; os mares, a linguagem lógica.
Ao longo do texto, a Terra metaforiza as instituições oficiais de cultura ligadas ao
academicismo, onde cuenta más la forma que la ética (p. 97), enquanto Astarté é uma espécie de
38
O ensaísta explica que a narrativa emprega uma linguagem simbiótica, em que o uso enunciativo, gico e científico
da língua se junta ao uso poético, simbólico e intuitivo. Sobre o caráter híbrido do discurso romanesco, afirma Cortázar,
de modo metafórico: La novela es un monstruo, uno de eses monstruos que el hombre acepta, alienta, mantiene a su
lado; mezcla de heterogeneidades, grifo convertido en animal doméstico
(CORTÁZAR, 1994b, p. 81).
74
deusa terrena, protetora do pensamento científico e da razão; Selene, por sua vez, é a musa poética,
habitante do lado escondido da Lua, espalda de azúcar (p. 97). Dirigindo-se a essas duas entidades
míticas, o narrador constrói seu discurso com características de uma elegia, canto doloroso que
glorifica saudosamente os encantos de Selene e desmerece os atributos de Astarté.
Por sua vez, a Lua acha-se dividida em dois subespaços: o lado que fica virado para a Terra,
ou seja, onde se situam as narrativas orientadas por uma visão racional e reconhecidas como
cânones dentro do sistema literário; e o lado desconhecido, onde ficções com uma cosmovisão
intuitiva e afastadas do reconhecimento acadêmico.
No que se refere à estrutura temporal do conto, dupla perspectiva, em que passado e
presente são contrapostos, tanto no desenrolar dos acontecimentos que contam a transformação do
espaço físico da Lua e o conseqüente destino de seus habitantes, como na análise diacrônica da
história literária. No presente, a vastíssima corrente se converte em un estuario ahora
pavorosamente seco y enjuto, recubierto por las ásperas crines del sol que lo golpean y lo acucian
(p. 97). Portanto, o conto irá relatar os acontecimentos ocorridos em diferentes momentos do
passado que foram responsáveis pelas mudanças que o satélite apresenta no presente. No passado,
do qual esse narrador parece ter participado, a Lua não se achava dividida em partes distintas, nem
tampouco seus rios e mares eram incomunicáveis. Assim relata esse saudoso narrador:
Déjame narrar cómo en antiguos tiempos tu corazón era un inexhaustible manantial
del cual fluían los ríos de voluptuosa cintura, devoradores de montañas, alpinistas
amedrentados, siempre camino abajo hasta encontrarse todos, luego de petulantes
evoluciones, en la magna corriente de tu espalda que los llevaba al OCÉANO. ¡Al
Océano multiforme, de cabezas y senos henchido! (p. 97).
Identificando-se com um planeta úmido, a Lua era um espaço fértil no passado, quando seus
volumosos rios corriam com ímpeto e originavam o oceano. Tal dinâmica espacial pode ser
interpretada como um tipo de literatura em que a criação verbal manifesta-se plena de vitalidade,
orientada pela visão poética (os rios), cujo produto final é uma grande obra (o oceano). De acordo
com as idéias de Cortázar na Teoría del túnel, a poesia épica e o teatro de Sófocles e Shakespeare
seriam essas obras de arte do passado, pois sendo “multiformes”, ou seja, articulando de modo
75
complementar as linguagens lógica e poética, manifestam poeticamente situações narrativas,
prenunciando narrativas modernas.
39
Os primeiros acontecimentos que ocasionarão a transformação desse espaço lunar são
convertidos em aventuras vividas por uma Lua-menina:
La Luna era doncella y su río le tejía una trenza bajándole por el fino hueco entre
los omóplatos, quemándole com fría mano la región donde los riñones tiemblan
como potros bajo la espuela. Así por siempre, incesantemente la trenza descendía
envuelta en paisajes minerales, asistida de grave complacencia, resumen ya de
hidrografías vastísimas (p. 97).
Referindo-se aos séculos XVII e XVIII, na Teoría del túnel, Cortázar situa esse tempo
histórico como o período em que há significativas mudanças na linguagem narrativa, pois esta
absorve a racionalidade enciclopédica. Parece ser essa a idéia veiculada no conto: a escrita ficcional
(río) vai sendo delimitada por uma rígida estrutura estética em que a criação literária se presa (la
trenza), o que ameaça a força expressiva (quemándole com fría mano). A literatura incorpora a
força espiritual de sua época, ou seja, a formulação racional da realidade (la trenza descendía
envuelta en paisajes minerales), legitimada por grande número de teorias universais inscritas na
Enciclopédia (hidrografías vastísimas).
40
Prosseguem as aventuras planetárias, e as transformações, que haviam sido iniciadas do lado
da Lua voltado para a Terra, começam a atingir seu lado oposto:
¿y los mares entre montañas, los estupendos circos entonces henchidos de su
sustancia flexible? ¿y la reverberación de las olas, aplaudiendo la propia
arquitectura?
¡Agua sorprendente! Después de mil castillos y manteles efímeros,
después de regatas y pasteles de boda y grandes demostracions navales frente a las
rocas aferradas a su sinecura, la teoría rumorosa se encaminaba hacia el magno
estuario del outro lado, ordenando sus legiones (p. 98).
Poderíamos interpretar a expressão estupendos circos como metáfora dos romances realistas
e naturalistas, uma vez que são o ponto culminante do tipo de narrativas que se orientam pela
39
Cortázar acrescenta a esse respeito: Sin temor al anacronismo, se debe afirmar que un Shakespeare se adelanta a
arrebatar el material de los novelistas del porvenir (CORTÁZAR, 1994b, p. 91).
40
Barthes também situa no século XVII o processo de encarceramento formal e temático por que passa a literatura, cuja
escrita clássica seria um produto de decisões dogmáticas de um poder político aliado às definições de gramática e de
retórica formuladas por uma classe minoritária e privilegiada. Assim resume Barthes tal processo social: A autoridade
política, o dogmatismo do Espírito e a unidade da linguagem clássica são portanto as figuras de um mesmo movimento
histórico (BARTHES, 2004, p. 50).
76
linguagem gica (los mares entre montañas). Assim são criticadas tais narrativas na Teoría del
túnel, quando o escritor argentino diz que elas, por apresentarem transformações superficiais,
podem ser consideradas como obras que não trazem mudanças significativas ao sistema literário,
pois não põem em crise a substância verbal, que não se aventuram em situações ou estados
anímicos que poderiam representar uma agressão aos cânones estéticos e aos valores sociais do
século XIX. O trabalho de aprimoramento da dimensão significante dessas narrativas é valorizado
(grandes demostracions navales frente a las rocas aferradas a su sinecura), e o esteticismo
(reverberación de las olas, aplaudiendo la propia arquitectura) substitui a reflexão ética sobre a
escrita
41
. Essa narrativa (que baliza os grandes romances do século XIX), ao reduzir a realidade a
um único ponto de vista lógico, legitima a visão da burguesia triunfante e considera os valores dessa
classe (e a forma convencional ligada a esses valores) como universais (la teoría rumorosa se
encaminaba hacia el magno estuario del otro lado, ordenando sus legiones).
Apesar da enorme quantidade de águas geladas que chegam do lado conhecido da Lua, os
selenitas, que de la gran corriente descendían, (...) seres entornados a toda evidencia excesiva,
libres aún de comparación y de nombres, (...) huían entonces de los glaciares en busca de la tibieza
que la corriente conservaba en sus profundas napas de crudo azul (p. 98). É possível argumentar
que os selenitas são os ficcionistas que permanecem procurando uma expressão individual, aqueles
que objetivam a autoconstrução por meio da literatura e assumem uma visão intuitiva da realidade.
Escritores que dão continuidade ao trabalho dos primeiros românticos (chamados por Cortázar de
avós dos surrealistas na Teoría del túnel), pois são motivados por uma rebeldia social e espiritual,
considerando a literatura não um produto estético, mas diário de uma consciência.
42
Esses seres, de hábitos bondadosos y corazón siempre rebosado, passam a freqüentar as
profundezas das águas, zona espacial que assume duplo sentido, pois significa o caráter profundo
41
Cortázar acusa esse período da história da narrativa como el siglo del Libro, em que se inserem as obras de Flaubert e
Balzac, vistas como despersonalizadas, que o objetivo principal do escritor não é sua autoconstrução ou a reflexão
sobre seu papel social, e sim a construção da obra, o que seria definido pela idéia do livro como um fim. Ao vocábulo
Libro são atribuídas várias designações e metáforas, na Teoría del túnel, tais como: arca da Aliança, objeto de fetiche,
bela e dourada jaula literária, fabricante de máscaras, coluna imanente da literatura ocidental e forma magistral.
42
A grande revolução empreendida pelos românticos é considerada por Cortázar a construção de uma escrita
transgressora, pois rompe com o classicismo e propõe a formulação estética ajustada a sua necessidade expressiva
particular, em que a imagem poética é valorizada e o vocabulário cotidiano é utilizado, como acontece na obra de
Aleksandr Pushkin, o que foi alvo de rechaço por parte da crítica russa da época. Cortázar chama a atenção para o
significado histórico que tal mudança da linguagem representou em termos de evolução da narrativa ocidental, e afirma:
Sostengo que la primera reacción contra lo romántico no deriva tanto del escándalo ante sus ideas, sino de que esas
ideas y los sentimientos com ellas confundidos son expresados por primera vez al desnudo, con un idioma que los
mienta sin rebozo (CORTÁZAR, 1994b, p. 59).
77
das narrativas poéticas, assim como o espaço obscuro no sistema literário em que muitas obras de
vanguarda se situam, permanecendo ignoradas pelas histórias literárias.
O episódio decisivo que é responsável pela completa mudança na conformação espacial da
Lua é descrito por um narrador mergulhado em profunda tristeza:
Es esto lo más triste de contar; es lo más cruel. Que la corriente colectora olvidase
un día la fidelidad a su cauce, que por sobre la fácil curvatura de la Luna creara una
húmeda tangente de rebeldía, que se desplazara apoyada en el espeso aire, rumbo al
espacio y a la libertad... ¿cómo narrarlo sin sentir en las vértebras? Por sobre el aire
se alejaba la corriente, proyetándose una ruta de definido motín, llevando consigo
las aguas de la Luna desgarrada de asombro, repentinamente desnuda y sin caricias
(p. 98).
A partir dessa outra rota seguida pelas águas, a Lua muda seu aspecto, torna-se estéril,
desértica, perde a vitalidade que possuía no passado, quando seus rios corriam com força e
mantinham comunicação com seus mares. Desse modo também se configura a cena literária, que
se apresenta como espaço estéril, onde não ocorrem mudanças significativas na produção ficcional,
cujas narrativas, quase na sua totalidade, mantêm-se sob os moldes tradicionais, em que o conteúdo
se adapta servilmente à forma preestabelecida e os problemas expressivos da escrita são abolidos
por renúncia.
No entanto, o narrador fala de un acorde de agria disonancia, e nesse momento uma
eloqüente homenagem a Lautréamont. A função de personagem é depositada no Conde de
Lautréamont, que passa a atuar nos eventos da diegese. Nessa perspectiva, é acionada a relação
dessa personagem rebelde na trama com o papel desse escritor no sistema literário ocidental, ou
seja, Lautréamont torna-se personagem que assume dupla função, atua nos dois discursos que
constituem o texto: faz oposição ao curso de acontecimentos que instauram a aridez do espaço
lunar, assim como provoca ruptura na tradição literária.
Na Teoría del túnel, Cortázar afirma que desde a metade do século XIX surgem os primeiros
sinais de mudança na narrativa: Lautréamont, Nerval e Rimbaud realizam as fusões das linguagens
enunciativa e poética. Desses autores, a importância do primeiro é atribuída à criação de um tipo de
narrativa que se norteia pela linguagem poética e se inscreve em planos espaço-temporais de caráter
onírico, o que seria um prenúncio do surrealismo e das mudanças da narrativa contemporânea.
43
43
No ensaio, Cortázar considera que o ápice do processo de ruptura na história literária dá-se nas primeiras cadas do
século XX, com as “novelapoemas”, as criações literárias surrealistas consideradas por ele como os signos certos desse
78
Atraídas pela Terra, as antigas águas lunares passam a ocupar o espaço terráqueo, por isso se
tornam contaminadas, onde nadam apenas os delfins, seres que possuem a sensibilidade que lembra
os selenitas, raza celeste de fusiforme contextura, de hábitos bondadosos y corazón siempre
rebosado (p. 99). Interessante é identificarmos a analogia estabelecida entre a umidade do espaço da
Lua, no passado, e o coração transbordado dos selenitas, o que sugere uma aproximação entre os
líquidos água e sangue, ou, num nível mais profundo, entre a fertilidade do solo e a grande
sensibilidade dos selenitas, ou seja, conta da relação entre o escritor interessado em construir-se
integralmente em sua obra e a profundidade que esta irá manifestar. A Terra, ao simbolizar rígidas
convenções estéticas, contamina as próprias águas, ou seja, empobrece a criação verbal, reduz as
intenções do escritor, que se preso dentro das limitações da forma, como os delfins que estão
encarcerados em mares poluídos.
Importante papel no texto é desempenhado pelo narrador, que se identifica com um selenita,
como podemos constatar na expressão presente no início do conto: ¡oh dulcísima Selene!, me es
conocida tu espalda de azúcar (p. 97), condição que lhe permite conhecer os fatos que narra. Com
isso, a perspectiva desse narrador é de ruptura perante sua linguagem, d o caráter poético da
narrativa.
Da mesma maneira, a imagem do autor também é configurada no âmbito textual. Assumindo
o papel de escritor rebelde, esse autor ficcionalizado continuidade a um compromisso com a
visão poética da realidade e assume sua filiação romântica e sua admiração pelos surrealistas,
assumindo-se, assim (no nível diegético), como herdeiro de antigos seres que habitavam águas
límpidas mas ainda vivem e sonham com Selene. a descrição, no último trecho do conto, dos
sentimentos desses artistas rebeldes e sonhadores (delfins-selenitas), que se frustam dentro de um
espaço literário limitado pelas convenções (mar poluído): Rebosado ahora de sucia resaca y apenas
con la luz de tu imagen, que en pequeñísima perla fosforece para cada uno de ellos en lo más
hondo de su noche (p. 99).
Por seu turno, quando fala de si mesmo na Teoria del túnel, Cortázar ficcionaliza-se em
termos muito semelhantes:
Nuestro escritor advierte en mismo, en la problematicidad que le impone su
tiempo, que su condición humana no es reductible estéticamente y que por ende la
período. Tais formas literárias abandonam a convencional organização do romance, já que as articulações entre as
situações não são lógicas e sim analógicas, ou seja, a organização da obra é de ordem poética.
79
literatura falsea al hombre a quien pretendido manifestar en su multiplicidad y
su totalidad; tiene conciencia de un radiante fracaso (CORTÁZAR, 1994b, p. 62).
Nas últimas páginas de La otra orilla, novamente nos deparamos com um metarrelato, em
que uma outra revisitação ao motivo da mão separada do corpo, como havia sido formulado
em Las manos que crecen”. O conto “Estación de la mano” (1943) tem como argumento central a
vivência da criação verbal, que se constrói junto às aventuras de uma personagem-escritor que se
envolve com uma misteriosa mão, um ser sensível e despretensioso que entra em sua vida.
Retomando o tema em torno do processo de criação que aparece em Bruja” (significativamente
escrito no mesmo ano de “Estación de la mano”), que se havia centrado na composição da
personagem e de seu universo ficcional, esse último conto dedica-se a refletir sobre a escrita e as
angústias do escritor perante a criação de sua própria linguagem. Nessa perspectiva, a mão pode ser
interpretada como a metáfora da criação poética, como é sugerido no trecho que abre o texto:
La dejaba entrar por la tarde, abriéndole un poco la hoja de mi ventana que da al
jardín, y la mano descendía ligeramnete por los bordes de la mesa de trabajo,
apoyándose apenas en la palma, los dedos sueltos y como distraídos, hasta venir a
quedar inmóvil sobre el piano, o en el marco de un retrato, o a veces sobre la
alfombra color vino (p. 100).
A sucessão de espaços e objetos, bem como os verbos que compõem essa primeira descrição
da chegada desse ente misterioso, são muito significativos na produção de sentidos textuais, pois
estabelecem relações metafóricas que serão importantes ao longo da narrativa. Primeiramente
aparecem os verbos dejar e abrir, como indicações da receptividade desse narrador-personagem
diante da visita, enquanto a expressão mi ventana que da al jardín se refere não só à casa, mas
metaforiza o próprio corpo do escritor, no sentido de que o ser está aberto, receptivo, e os sentidos
estão aguçados a tal presença. O verbo descender aponta para o fato de essa mão surgir de um
espaço situado no alto, ou seja, é atribuído a seu lugar de origem um valor transcendente, espiritual.
Com a chegada desse ser alado, o ato de escrever torna-se solto, fácil, como a mão que se apóia
somente na palma e mantém os dedos distraídos. A imobilidade da mão diante de certos objetos
sinaliza a importância atribuída às qualidades poéticas, pois tais objetos produzem as seguintes
relações metafóricas: piano pode ser entendido como a musicalidade, o canto poético; retrato
sugere as imagens da memória ou da imaginação; alfombra color vino possibilita a ligação com as
impressões visuais, ou seja, remete às percepções sensoriais. Com tais traços poéticos reivindicados
80
à linguagem narrativa, o texto expõe a intenção de que a escrita narrativa seja guiada pela visão
poética, ou seja, dotada de música, rica de imagens e de ampla rede metafórica. Nesse sentido, a
idéia veiculada pelo discurso metaficcional é de que, apesar de o texto narrativo continuar relatando
situações, destinos e conflitos, a linguagem deve tornar-se a própria situação do conto.
O surgimento da escrita chega para a personagem do mundo e se interioriza por meio de
percepções dos sentidos; ou, em outros momentos, vem das profundezas do ser, de uma pulsação
particular, ou seja, ambos os processos descritos nesse conto comportam uma busca de si na
escritura, uma intenção de se construir junto à linguagem a partir de processos internos. Ao chegar,
de repente, do jardim (mundo que se materializa nas percepções do artista), a escrita surge de modo
conpulsivo, como pequeña sombra que de pronto se proyectaba sobre los papeles, ou quando chega
devagar, vinda do interior do ser, constitui uma elevação espiritual e é descrita como se estivesse
ascendiendo por los peldaños de la hiedra, onde havia calado un camino profundo (p. 100). Nesse
segundo caminho, a experiência poética é associada ao cultivo da essência, da inocência necessária
(amaba las palomas y los bocales de agua fresca, p. 100), o que nos lembra os escritores guiados
pela sensibilidade no conto anterior, identificados com os selenitas. Reiterando a transcendência
atribuída à poesia, a mão habita os céus, é comparada a pájaro y hoja seca, ou seja, a palavra quer
voar e ir além do próprio escritor.
Por sua vez, a filiação romântica (atribuída aos escritores-selenitas e compartilhada pelo
narrador-autor em “Breve curso de Oceanografía”) é retomada ao serem citadas obras românticas
em que as mãos aparecem como motivos: Étude de mains, de Gautier e Le gant de crin, de Reverdy.
Referindo-se à presença de tal intertextualidade em “Estación de la mano”, Carmen de Mora
entende que a referência aos poemas de Gautier acentua a ambigüidade da imagem da mão no
conto, pois associa la belleza y la gracia de un lado; la crueldad asesina, de outro. Explica a
pesquisadora que isso ocorre porque a obra de Gautier é composta de dois poemas: Imperia”, que
elogia a beleza das mãos da cortesã italiana homônima, que viveu no século XVI e foi muitas vezes
evocada pelos românticos, e o poema “Lacenaire”, que censura a mão cortada do assassino-poeta
Lacenaire (MORA, 2002, p. 55).
44
Também esclarece Mora que Étude de mains inspirou Rimbaud na criação de “Les mains de
Jeanne-Marie”. A presença implícita de Rimbaud corrobora a homenagem aos mestres rebeldes,
44
Sobre a inspiração do poema “Lacenaire”, Mora diz que Gautier escreve-o depois de conhecer, em sua própria casa, a
mão mumificada do assassino-poeta.
81
que, junto aos poetas românticos e a Lautréamont (citado no conto anterior), representam a linha de
escritores rebeldes com que Cortázar se identifica, aqueles que buscam o conhecimento poético do
ser humano e do mundo.
David Arrigucci Jr., analisando diacronicamente a obra de Cortázar, observa tal filiação com
os escritores rebeldes. Ele denomina tal vínculo de “linhagem da destruição”, uma vez que é nítida a
intenção desses artistas de crítica da linguagem e abolição das fórmulas estereotipadas, atitudes que
estão presentes no romantismo e se acentuam no simbolismo, atingindo o ápice da força demolidora
com o dadaísmo e o surrealismo (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 81).
Outro diálogo interessante é estabelecido, mediante o uso metafórico das mãos, com um dos
primeiros ensaios escritos por Cortazar, intitulado “Rimbaud”, em que é apontada a decisiva
influência do poeta francês na produção de alguns escritores latino-americanos (como é o caso
citado de Pablo Neruda) por meio da seguinte imagem: guardan en la mano izquierda el corazón
sangrante de Rimbaud y escuchan su latido, aunque muchos no hayan abierto jamás la página
primera de “Les Illuminations” (CORTÁZAR, 1994c, p. 17). No conto a mão encantada é a direita,
que se apaixona pela mão esquerda do escritor, lembrando, assim, a mão que guarda o coração
sangrante de Rimbaud. Além disso, podemos interpretar o sentido dessa mão como a evocação da
imagem do autor, na medida em que recordamos que Cortázar era canhoto.
Novamente a relação intratextual mantém-se entre Estación de la mano” e a ensaística,
quando em seu ensaio Situación de la novela” (1950) Cortázar volta a revisitar a metáfora das
mãos para melhor referir-se aos dois discursos que compõem a narrativa. Acompanhemos um
trecho desse estudo teórico:
La novela es una mano que tiene la esfera humana entre los dedos (...), quiere
llegar ao centro de la esfera, alcanzar la esfericidad, y no puede hacerlo com sus
recursos propios (la mano literaria, que se queda fuera), entonces acude (...) a la vía
poética de aceso (CORTÁZAR, 1994c, p. 223).
“Dg” pode ser entendida como a mão que toca o coração da esfera, entrega o coração de
Rimbaud ao escritor. Tem o contato direto com as coisas, conhece o mundo por meio da
sensibilidade. Portanto, o conto narra os embates entre essa visão poética (Dg) e a racionalidade,
vivenciados pela personagem-escritor durante a construção da escrita. O fato de a enunciação
assumir a primeira pessoa propicia uma identificação entre as aventuras da personagem e as
reflexões do autor durante o próprio processo de escrita do conto; além disso, a mesma perspectiva
82
espacial assumida pelo narrador e pela personagem-escritor também aproxima a leitura da escritura,
na medida em que o leitor tem acesso às muitas impressões sensoriais que o espaço provoca durante
a criação verbal.
Significativa é a recusa do protagonista de pronunciar Dg, nome que permanece no
pensamento, pois demonstra que há consciência de que a palavra é instrumento limitado para
revelar os mistérios do ser e do mundo, ou ainda, como diria Mallarmé: nombrar un objeto es
suprimir las tres cuartas partes del goce del poema, que reside en la felicidad de ir adivinando; el
sueño es sugerido (BORGES, 1957, p. 86) trecho com o qual Borges, em seu artigo “El arte
narrativo y la magia” reforça sua idéia em torno da construção analógica da narrativa, que pode
parecer verossímil ao leitor por meio de aproximações, imagens, sons, metáforas e mbolos que
sugiram seu argumento central. A aproximação a esse pensamento borgeano é feita no conto por
meio da observação, efetuada pela personagem-escritor, da maneira de abordagem de uma flor
utilizada por Dg: esse modo de ahuecarse para envolver una flor, sin tocarla. Com isso, a
importância do discurso metafórico na construção narrativa é, mais uma vez, ratificada no livro.
A própria sonoridade do nome Dg é importante na construção de sentidos textuais: sugere a
flexão do verbo “dejar” na primeira pessoa do pretérito perfecto simple, “dejé”, verbo que guiou o
pensamento de entrega da personagem no momento que viveu a “estaçãopoética em sua vida, e
que, fazendo parte da idéia veiculada no parágrafo que inicia o relato, La dejaba entrar por la tarde
abriéndole un poco la hoja de mi ventana, assume grande importância na temática em torno da
descoberta da visão poética.
A inusitada mão é responsável pela inserção da personagem em um outro plano espaço-
temporal, aquele que se contrapõe ao cotidiano banal e monótono, uma estação encantada, em que o
escritor assiste, indiferente, ao transcorrer do tempo cronológico, pois passa a viver sua
temporalidade: así declinaron las estaciones, unas esbeltas y otras con semanas ceñidas de luces
violetas, sin que sus llamadas premiosas llegaran hasta nuestro ámbito (p. 101).
No entanto, essa descoberta não se de forma tranqüila para o protagonista; uma luta
interna entre as duas visões de mundo que ele traz dentro de si, choque que se articula no confronto
entre os dois campos semânticos que estruturam o espaço narrativo a casa e a cidade. O
aparecimento da mão misteriosa faz com que a personagem abandone sua rotina, exile-se em sua
casa, ou seja, torne-se habitante de sua interioridade e cultive a visão poética. Por seu turno, os
acontecimentos que chegam do mundo exterior (vinculados à cidade) se relacionam com a
83
personagem de modo superficial, revelam relações espaciais que não se interiorizam (ao contrário
das que chegam da natureza), a atingem de fora e de forma oblíqua. Vejamos o que diz o trecho:
los sucesos exteriores a los cuales debía mi vida someterse con dolor, principiaron a ondularse
como curvas que sólo de sesgo me alcanzaban (p. 100).
Após o inicial deslumbramento, o homem decide analisar sua hóspede, quer investigar que
tipo de ser é essa mão intrigante: cansado de maravillarme, quise “saber”; he ahí el invariable y
funesto fin de toda aventura (p. 101). O escritor dirige-se à mão com os instrumentos da razão,
decide avaliá-la a partir de métodos científicos e descobre que, apesar de ler, Dh recusa-se a lhe
escrever mais do que a seguinte frase: Esta resolución anula todas las anteriores hasta nueva orden
(p. 101). A única frase escrita por Dg aponta a incompatibilidade entre os métodos racionais e a
poesia, pois a liberdade criativa começa a ser cerceada pela realidade conduzida pela razão: la
sanción de lo real vino a incidir en mi flaqueza, ardida de celos por tanta plenitud fuera de sus
cárceles pintadas (p. 102).
O clímax do conflito interior da personagem ocorre ao se confrontarem, no plano onírico, a
mão do escritor (ainda dominada pela razão) e a mão da poesia (Dg). Nesse pesadelo são
representados os medos diante de si mesmo e das próprias escolhas éticas e estéticas e o temor
diante da liberdade para transgredir modelos literários.
Sem a presença de Dg o escritor abandona a casa (o que pode ser identificado tanto com o
interior do protagonista como com a própria escrita), porque passa a se sentir inadaptado consigo
mesmo e em crise com sua escrita. Há o deslocamento da personagem em direção ao campo
semântico oposto, a cidade, subespaço identificado com a sociedade. Portanto, a dimensão espaço-
temporal de características ontológicas – “estação da mão poética” é abandonada. Quanto à
movimentação em direção à cidade, num primeiro momento pode ser interpretada como uma
alienação da personagem, que, desprovida de vida interior poética, torna-se apenas el perfil de un
habitante correcto, ou seja, perde-se numa sociedade regida pela racionalidade exacerbada.
Contudo, esse deslocamento em direção à cidade pode estar ligado à única possibilidade de a
personagem-escritor descobrir-se no mundo enquanto homem entre os homens (como diz Bakhtin),
abandonar o refúgio e lançar-se para fora de si, ainda que tal deslocamento interno seja doloroso.
Também a própria linguagem narrativa tematizada no conto é posta em xeque, que não se torna
possível que as referências do mundo sejam ignoradas, nem tampouco que tal linguagem seja
absolutamente poética, centrada apenas no eu-lírico.
84
Torna-se significativo que seja esse o conto que encerra o livro, pois sua idéia repousa no
conflito de um escritor à procura de uma linguagem própria, pensamento que prenuncia o caráter
auto-reflexivo que percorre toda a obra. Ao fechar-se a porta dessa casa-livro, a sensação do leitor é
de que dentro dela muitas janelas foram abertas. Em seus umbrais, pudemos vislumbrar as leituras
do escritor, os sonhos de mudança da instituição literária, as dores de um homem totalmente
inserido em seu tempo histórico e as esperanças de um jovem comprometido com sua criação.
85
3 – A TERCEIRA MARGEM
Depois de analisadas em separado as três partes que compõem La otra orilla no capítulo
anterior, proponho que neste capitulo o livro seja pensado de forma integrada, visualizando como
funciona uma poética do espaço na dimensão temática e compositiva do conjunto e como ela pode
ser expressiva de uma concepção autoral de espaço.
Iniciemos o estudo partindo da interpretação do título dado à reunião dos treze relatos. Ao
vincular os vocábulos otra e orilla, Julio Cortázar lança diferentes sentidos em torno de uma idéia
central: a invenção de um novo espaço. Ao consultarmos o dicionário, encontramos a palavra orilla
com os seguintes significados:
Término, límite o extremo de la extensión de alguna cosa. Faja de tierra que está
más inmediata al agua del mar, de un lago, río, etc. Senda que en las calles se toma
para poder andar por ella, arrimado a las casas. Fig: Límite, término o fin de una
cosa no material. pl. Arg. y Méx: Arrabales, afueras de una población
(GONZÁLEZ ÁLVARO, 1997, p. 1023).
Utilizando o termo orillas no sentido de arrabaldes, Jorge Luis Borges, em seu ensaio “O
escritor argentino e a tradição”, presente em Discusión (1932), questiona os temas locais requeridos
pela crítica literária argentina de cunho nacionalista, que, nas palavras do escritor, querem limitar o
exercício poético, como se os argentinos pudessem somente falar de “orillas” e estâncias e não do
universo (in BERND, 2001, p. 16). Com a intenção de ampliar os limites espaciais impostos pelas
orillas argentinas em direção ao mundo, os contos de Cortázar se propõem-se investigar o ser
humano de forma integral e não como tipos locais, abrir o horizonte da ficção à multiplicidade de
zonas ontológicas, como as do sonho, do inconsciente, da morte, da loucura e da imaginação
criadora.
A eleição do fantástico para dar forma artística a essas intenções do artista em seus
primeiros relatos tem um caráter marcadamente espacial. Em seu ensaio “El estado actual de la
86
narrativa en Hispanoamérica”, Cortázar remete a espacialidade de sua ficção a um intervalo ou a
uma zona intersticial que se desliza entre dos momentos o dos actos en el mecanismo binario típico
de la razón humana a fin de permitirnos vislumbrar la posibilidad latente de una tercera frontera
(CORTÁZAR, 1994d, p. 100).
Tal concepção de tercera frontera, por sua vez, aproxima-se à de otra orilla, que ambas
parecem buscar a fundação de um novo espaço, mediante uma nova literatura, que seja capaz de
ampliar os horizontes da realidade objetiva e da criação literária. Nessa medida, insere-se um
segundo sentido de orilla, o de limite, tênue fronteira que separa um mundo ordenado de outro
regido por ordens desconhecidas, linha divisória que às vezes desaparece e que faz surgir zonas
intersticiais da existência, representadas por espaços narrativos fronteiriços. Nessas zonas híbridas,
as fronteiras são móveis, o que propicia que o ser interior das personagens se mova e atravesse os
distintos planos da vida que são representados nas narrativas. Esses deslocamentos interiores, se
considerarmos que a maioria das personagens transita por espaços subjetivos, configuram um
sujeito em busca de si, que, sentindo-se em crise com a própria subjetividade, move-se, muitas
vezes, em direção ao “outro”. Tal dissolução da identidade do sujeito é apontada por Luis Alberto
Brandão Santos e Silvana Pessôa de Oliveira como uma das marcas da contemporaneidade que a
literatura apresenta no século XX, configurada por um espaço que se constrói a partir do
cruzamento de variados planos espaço-temporais experimentados pelo sujeito, apresentando uma
dimensão múltipla e um caráter aberto (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 82).
Por sua vez, a subversão dos conceitos de espaço e tempo concretiza-se literariamente no
uso de originais estratégias narrativas, fazendo com que o leitor seja desalojado de seu lugar seguro
e passivo, que é desafiado a desvendar não os mistérios da existência, mas também os da
linguagem. Isso pode ser observado em textos como “Puzzle” e “Profunda siesta de Remi”, pois,
objetivando explorar as características não-lineares da temporalidade para dar conta das
experiências da mente diante da morte e da loucura, esses contos reduzem o tempo da história e
dinamizam o espaço ao agregar múltiplos espaços através da memória das personagens. O
abandono do tempo objetivo também foi acompanhado na leitura de “Mudanza”, ao coexistirem
presente e passado, bem como em “Distante espejo”, mediante a circularidade temporal que se
inscreve ao se repetir a primeira cena, num espaço refletido, por meio do uso da estrutura em
abismo, recurso que será aprofundado, por exemplo, em “Continuidad de los parques”, de Final del
juego.
87
A relação espaço-foco narrativo é particularmente significativa no livro. Observamos que
em cinco relatos, “Puzzle”, “Retorno de la noche”, “Distante espejo”, “Breve curso de
Oceanografía” e “Estación de la mano”, as narrativas se constroem por meio de uma visão interna,
com um narrador-personagem situado dentro dos limites espaciais da história e com um leitor
participativo que é convidado a “entrar” na cena. No que se refere aos outros oito contos, narrados
na terceira pessoa, constatamos que uma coincidência da posição espacial ocupada pelos
narradores com aquela em que se situam as personagens. Conseqüentemente é acentuada a
ambigüidade espacial, pois o leitor pode compor os espaços verbais mediante a visão interna,
fragmentada e ambígua das personagens. Um importante aspecto advindo dessa perspectiva interna
adotada no livro é a relativização da visão autoral de mundo, a dúvida perante qualquer idéia
absoluta sobre a existência humana. Davi Arrigucci Jr. sustenta que essa visão interna, que
caracteriza o foco narrativo de boa parte do conjunto da obra de Cortázar, é extremamente relevante
na compreensão de sua poética, uma vez que, o narrador, ao se situar no centro do relato, entrega-se
à sondagem da realidade ao mesmo tempo em que a narrativa vai sendo construída. Nesse sentido, é
configurada uma visão de estranhamento diante do mundo, possível para quem participa da
trama, se arrisca no jogo (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 203).
Estudando os vínculos entre espaço e personagem presentes na obra de Cortázar, faz-se
evidente que na maioria dos contos a trajetória da personagem através da estrutura espacial do
relato comporta a desconstrução dessa personagem, como ocorre em “Las manos que crecen” e
“Profunda siesta de Remi”. Também possuem valor destrutivo os espaços confinados de “Llama el
teléfono, Delia” e de “Puzzle”, que funcionam como encarceramento subjetivo. Atitude de
alienação é vivida pela personagem do conto “De la simetría interplanetaria”, que seus
deslocamentos espaciais interplanetários se configuram como desenvolvimento interno frustrado.
Representativos são os espaços que se metamorfoseiam ao longo do relato, como é o caso da casa
que desaparece em “Bruja”, as transformações do lar em “Mudanza” e o quarto que se duplica em
“Distante espejo”, relatos em que as personagens também se transmutam interiormente. Outro
interessante papel reservado aos espaços é o de incorporar as funções de personagens na trama,
como ocorre em “Los limpiadores de estrellas” e Breve curso de Oceanografía”, em que,
personificando pensamentos e opiniões, os planetas e as estrelas protagonizam acontecimentos da
diegese mediante um discurso alegórico.
88
Marta Morello-Frosh, ao estudar a produção contística de Cortázar desde Bestiario até
Todos los fuegos el fuego, entende que o espaço tem função determinante sobre a conduta das
personagens. Em seu ensaio “La relación personaje-espacio en las ficciones de Cortázar”, a teórica
enfatiza o caráter social dos espaços cortazarianos, que el personaje se define por donde está en
cuanto es un ente social (in
LAGMANOVICH, 1975, p. 120), pois, mesmo sendo narrativas
fantásticas, os espaços metaforizam problemas sociais ou forças inconscientes do ser humano
dentro de uma determinada sociedade. Também em La otra orilla é possível apontar tal caráter dos
espaços, pois, como ocorre em textos como “Las manos que crecen” e “Mudanza”, torna-se
evidente a ligação do valor semântico ameaçador de seus espaços com o desumano modelo da
sociedade de consumo em que a personagem está inserida. O debate proposto sobre o aniquilamento
do diferente, que resulta no evento da amputação das mãos do protagonista de “Las manos que
crecen”, é ampliado em “Mudanza”, tendo em vista que a discussão passa a abarcar a natureza desse
processo por meio da problematização do tempo e do espaço e suas referências na sociedade
moderna.
Quanto à questão do espaço como metáfora do inconsciente humano, apontada por Morello-
Frosh, foi possível constatar que a maioria das estruturas espaciais presentes em La otra orilla
vincula-se às instâncias da subjetividade humana. Nesses espaços dois elementos que se
destacam: a casa e a água. A casa identifica-se, em “Llama el teléfono, Delia”, “Retorno de la
noche” e “Mudanza”, com o núcleo familiar, ou seja, com a idéia de proteção, de solidez e de
conforto subjetivo, características que são afetadas pelas crises internas vividas pelas personagens.
em “Puzzle”, a casa (transformada num edifício, em que são metaforizados o porão e o sótão)
comporta a própria psique da personagem. Por outro lado, nos contos “Bruja”, “Distante espejoe
“Estación de la mano” a casa metaforiza não o mundo interior do artista, mas a própria obra
literária, ou ainda o espaço literário em que se constroem personagens e se ficcionaliza o autor em
seu processo de criação. Com tal uso reincidente, é possível argumentarmos que a casa constitui um
espaço simbólico no livro, e que tal simbologia terá continuidade ao longo da produção contística
de Julio Cortázar, como tem sido apontado pela crítica sob diferentes pontos de vista.
Uma dessas perspectivas é construída pela argumentação de Ary Pimentel, ao avaliar a
produção ficcional argentina do século XX, pois observa que tanto a casa como a cidade de Buenos
Aires são os espaços protagônicos nessas narrativas, que, além de constituírem um de seus
principais cenários, potencializam significados simbólicos ligados aos enfrentamentos sociais desse
89
país. No artigo “A invasão do labirinto: a casa e a cidade na literatura argentina”, o pesquisador
considera que o conto “Casa tomada”, de Bestiario, sintetiza, no microcosmo de uma velha
residência, as atitudes de ressentimento da elite rica e ociosa de Buenos Aires diante dos novos
grupos populares que se formam na Argentina (in FANJUL et al., 2004, p. 106). Noé Jítrik também
observou a importância da casa na contística cortazariana em seu ensaio “Notas sobre la ‘zona
sagrada’ y el mundo de los otros en Bestiario de Julio Cortázar”, no qual diz que o sentido da casa
que é invadida por inimigos estranhos em “Casa tomada” parece ser esclarecido em “Cefalea”, na
frase Entonces la casa es nuestra cabeza, pois o pesquisador considera que isso significa que as
forças ameaçadoras se encontram dentro de si mesmo (in
VINOCUR DE TIRRI, 1968, p. 14).
Analisando os contos de Bestiario, Charles Kiefer vai ao encontro da opinião de Jítrik, quando
demonstra que em “Casa tomada”, “Cefalea” e “Carta a una señorita en Paris” as casas são
invadidas, paulatinamente, por acontecimentos inusitados que metaforizam medos, neuroses ou
dores dos protagonistas, e que, em “Carta a una señorita en Paris”, o próprio corpo transforma-se
numa casa tomada (KIEFER, 2004, p. 95). Quanto ao sentido da casa como metáfora do espaço
literário, Ana Luiza Andrade, em seu artigo Bizarra coincidência: Clarice Lispector e Julio
Cortázar”, interpreta como casa-texto a relação estabelecida entre o casarão invadido e abandonado
em “Casa tomada” e uma outra maneira de ler (que pretende desestabilizar hábitos de leitura) e de
transformar o mundo por meio das palavras (in ANTELO, 1994, p. 284).
No que se refere à presença da água no livro, o termo orilla, incluído no título, anuncia uma
terra que se localiza perto de rios, lagos ou mares, ou seja, um espaço aquático que, no contexto dos
contos, metaforiza as zonas desconhecidas da existência humana. Pudemos constatar em “Puzzle”
como o líquido da sopa, em que se perde o olhar do assassino, liga-se ao mergulho em sua mente,
no desequilíbrio do inconsciente; já em “Retorno de la noche”, o canto da negra, que anuncia a
morte, vem de um rio profundo, e, ao final do conto, é do mar que regressa Gabriel de um sonho-
morte; em “Profunda siesta de Remi”, a água encontra-se estagnada dentro de um poço, lugar que
significa o momento da morte do protagonista. Também a água se um elemento espacial
recorrente nos livros de contos subseqüentes, possuindo função semântica importante em muitos
textos, como em Lejana”, de Bestiario, que, de acordo com Davi Arrigucci Jr., vincula a presença
do rio gelado e violento, na cena do encontro entre as duas mulheres sobre a ponte, com o tema da
divisão do ser (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 60). Em Final del juego, a água também se torna o
elemento cosmogônico predominante do espaço, pois em contos como “El río”, “Relato con un
90
fondo de agua” e “Axolotl” personagens afogadas, nos dois primeiros, e no último, há o
mergulho total do protagonista no aquário ao metamorfosear-se em axolotl. Essas personagens
submersas têm em comum uma profunda crise psíquica, em que a identidade é posta em xeque.
Além disso, podemos apontar a água como metáfora da escrita em “Breve curso de
Oceanografía”, em que tal elemento incorpora uma natureza subjetiva ao espaço textual, que
tanto autor como leitor são movidos interiormente por uma escrita que se quer poética, reveladora
da alma humana e metaforizada pelos rios que correm na Lua. Em entrevista a Omar Prego,
Cortázar descreve os mecanismos psíquicos que sua escrita busca despertar como extrapolações
mentais, inconscientes ou subconscientes, que ocorrem no leitor. Cortázar ainda fala dos
acréscimos de sentido despertados por seus textos:
Esta literatura é muito mais fecunda, porque abre em cada indivíduo uma série de
referências. Em uma palavra, e digo isso sem nenhuma vaidade, enriquece o leitor,
como a experiência pessoal enriqueceu o escritor. Acho muito bom dizer isso,
porque continuam sempre nos chateando com a velha história do conteúdo e do
realismo (PREGO, 1991, p. 68).
Essa “escrita-água”, que não sonda o inconsciente em seus temas, mas busca uma
linguagem que dê conta deles, filia-se a uma linha de escritores que, desde os românticos, começam
uma progressiva rebelião no que tange à linguagem. Diz Davi Arrigucci Jr. que essa nova escrita
formula-se desde a busca da expressão imediata da “inspiração” até o reconhecimento da
impossibilidade de se dar expressão à espontaneidade humana (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 86).
Parece que é esse o impasse diante da palavra que La otra orilla propõe em seu último conto,
”Estación de la mano”.
O pensar sobre a linguagem literária, presente em muitos dos contos de La otra orilla,
remete ao que diz Cortázar na Teoría del túnel, quando afirma que existe un limite [dessa
linguagem] tras del cual se abre un territorio tabú (CORTÁZAR, 1994b, p. 52). A intenção de
abolição de limites traz à tona a consciência de um homem que questiona a linguagem literária na
própria ficção. Desse modo, removem-se tradicionais fronteiras entre ficção e ensaio, surgindo um
espaço textual heterogêneo, em que o pensamento crítico tem seus sentidos ampliados ao inscrever-
se na diegese dos relatos.
A criação verbal, como a imagem de um rio que corre, terá suas margens continuamente
deslocadas ou ampliadas, pois, numa atitude de renovação que se compromete com sua função
91
social, a escrita pretende construir um novo espaço literário, uma otra orilla, ou, como diz
Guimarães Rosa em Primeiras estórias (1962), uma terceira margem do rio.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção contística dos anos quarenta apresenta-se dentro do sistema literário latino-
americano como um período em que, dando continuidade à renovação dos temas e dos meios
expressivos dos inícios do século XX, são evidenciadas significativas transformações na arte de
narrar, em que é buscada a palavra literária que conta da complexidade do ser humano sob as
novas circunstâncias sociais, econômicas e epistemológicas da modernidade.
A leitura empreendida, nesta dissertação, dos contos de La otra orilla, de Julio Cortázar,
permite argumentar que os textos desse livro inserem-se no espírito transformador da linguagem
ficcional de seu tempo. Ao serem postas em xeque as certezas do saber racional, esses textos
refletem sobre as dúvidas e as indeterminações, em correspondência com o caráter auto-reflexivo
que assumem e com a intenção de interpretar artisticamente uma realidade de caráter plural e
fragmentado.
Essa interpretação artística de uma realidade complexa incorpora uma concepção de
espacialidade extremamente rica, a qual influencia decisivamente na configuração de uma
arquitetura textual original. A quebra de um tempo linear e um espaço absoluto; a simultaneidade
temporal e espacial; a redução temporal com o predomínio do tempo e do espaço enunciativos são
aspectos que ampliam a visão cortazariana do espaço narrativo. Múltiplas imagens de espaços são
agregadas via memória ou imaginação em textos de La otra orilla, procedimento presente em
muitos contos desse meio de século e que não será abandonado na ficção contemporânea.
Com a construção figural, uma quebra da sucessão causal de eventos e da organização
cronológica do relato, que aliada à duplicação do espaço e das personagens aponta para a idéia de
negação de unidade, ou, em outras palavras, para a dissolução do modelo de mundo homogêneo e
para a atomicidade do ser humano. Tal procedimento compositivo prenuncia uma particular
arquitetura textual e uma cosmovisão autoral que caracterizará o conjunto de sua obra ficcional.
93
A maior parte dos espaços representados traduzem não só uma sociedade conflituosa, injusta
ou alienada, mas também os medos, as angústias ou os terrores do sujeito moderno. Nessa
perspectiva, os espaços, geralmente, atuam na desconstrução das personagens, já que ao transpor os
subespaços ao longo da história, as personagens vão destruindo-se interiormente.
Com a intenção de pesquisar o ser humano de forma integral, alguns contos buscam sondar
as zonas do inconsciente mediante a construção de espaços fronteiriços, que são instáveis as
fronteiras entre morte e vida, sonho e vigília, sanidade e loucura. Nesses híbridos espaços as
personagens não conseguem atravessar as fronteiras, parecem situar-se num limbo que as impede de
resolver seus conflitos internos. Loucos, utópicos ou alienados, os protagonistas que se perdem
nessas zonas desconhecidas da alma humana circulam por espaços subjetivos em que os limites
estão dissolvidos. Muitos desses espaços já prenunciam elementos simbólicos na poética espacial da
contística de Cortázar, como é o caso da presença da casa e da água.
Por sua vez, a ambigüidade espacial é acentuada pelo foco narrativo interno que predomina
no livro, visão que percebe e descreve, junto à personagem, as impressões mais profundas e as
experiências inusitadas que são vividas dentro de zonas instáveis. Tal foco narrativo fragmentado se
fará presente no conjunto da produção ficcional de Cortázar, e contribuirá na construção de uma
poética autoral que relativiza nossa percepção do mundo.
Também é importante o tratamento do próprio espaço textual nos contos que se propõe a
pensar o fazer literário. Tais textos debruçam-se sobre a imagem da escritura e do autor, práxis
literária dos quarenta que frutificará posteriormente na literatura continental. Os espaços
intertextuais da tradição são postos a descoberto, com a intenção de desvelar as próprias influências,
abrindo os horizontes do discurso latino-americano a produtivos diálogos com as suas heranças
culturais. É plausível argumentar que La otra orilla representa uma prática extremamente
prenunciadora do caráter performático que a literatura irá tomando nos próximos decênios.
Podemos falar em tematização da escritura e da leitura na própria ficção e da proposição de uma
visão da literatura como atividade humana transformadora. Ao serem abaladas as convencionais
oposições entre ficção e ensaio, em alguns contos, são ampliados os sentidos desses textos e
apontadas novas perspectivas de criação artística para a literatura das décadas futuras.
A riqueza gerada pelas diferentes configurações de espaço e pelo funcionamento narrativo
original deste elemento no livro, juntamente com a utilização de outros procedimentos expressivos
94
apontados nesta pesquisa, torna possível a argumentação de que o livro se situa entre as
produções da década de quarenta que renovam o sistema literário latino-americano.
A possibilidade aberta pela publicação desses primeiros contos propicia um novo olhar em
direção ao próprio processo de criação do escritor, à produção contística da década de quarenta e à
transformação dos gêneros narrativos no século XX. Espero que esta dissertação ilumine futuros
estudos do processo de desenvolvimento criativo do grande narrador argentino e pesquisas de
historiografia literária centralizadas no fecundo segmento dos anos quarenta em nossas letras
continentais.
95
REFERÊNCIAS
ANTELO, Raúl (org.). Identidade e representação. Florianópolis: Pós-Graduação em
Letras/Literatura, UFSC, 1994.
ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado (A poética da destruição em Julio Cortázar). São
Paulo: Perspectiva, 1973.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. Trad. Marcelo Coelho. São Paulo: Ática, 1988.
_____. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BERG, Walter Bruno. Erich Auerbach: Colóquio 5, UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
BERND, Zilá (coord). Antologia de textos fundadores do comparatismo literário interamericano.
Porto Alegre: UFRGS, 2001. CD-ROM.
BOLAÑOS, Aimée. Pensar la narrativa. Rio Grande: Ed. da FURG, 2002.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1957.
_____. Ficções. Trad. Carlos Nejar. Porto Alegre: Globo, 1972.
BURGOS, Fernando. Antología del cuento hispanoamericano. México: Porrúa, 1991.
_____. El cuento hispanoamericano en el siglo XX. Madrid: Castalia, 1997.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
_____. (org). Contos fantásticos do século XIX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CÂMARA, Leônidas. O duplo registro na ficção de Cortázar. Rio de Janeiro: José Olympio;
Recife: FUNDARPE, 1983.
CARROL, Lewis. Alice no país do espelho. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2004.
CHAVES, Flávio Loureiro. Ficção latino-americana. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1973.
CORTÁZAR, Julio. Los premios. Buenos Aires: Sudamericana, 1973.
_____. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982.
96
_____. Cuentos completos/1. Madrid: Alfaguara, 1994a.
_____. Obra crítica/1. (edição de Saúl Yurkievich). Madrid: Alfaguara, 1994b.
_____. Obra crítica/2. (edição de Jaime Alazraki). Madrid: Alfaguara, 1994c.
_____. Obra crítica/3. (edição de Saúl Sosnowski). Madrid: Alfaguara, 1994d.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1994.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Trad. Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
_____. Sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2003.
FANJUL, Adrián P.; OLMOS, Ana Cecília; GONZÁLEZ, Mario M. (org.). Hispanismo 2002:
literatura hispano-americana. São Paulo: Humanitas, 2004. v. 3.
FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2005.
FONSECA, Orlando. Na vertigem da alegoria: militância poética de Ferreira Gullar. Santa Maria:
UFSM, Curso de Mestrado em Letras, 1997.
FUENTES, Carlos. O espelho enterrado: reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Trad. Mauro
Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
_____. Tiempos y espacios. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
GENETTE, Gerald. Figures III. Paris: Seuil, 1972.
GIACOMAN, Helmy F. (org). Homenaje a Julio Cortázar: variaciones interpretativas en torno a su
obra. Madrid: Las Américas, 1972.
GONZÁLEZ ÁLVARO, Juan (dir.). Gran Espasa Ilustrado (diccionario enciclopédico). Madrid:
Espasa Calpe, 1997.
HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença e a origem da arte moderna. Trad. Magda
França. São Paulo: Perspectiva; Ed da Universidade de São Paulo, 1976.
JULIO CORTÁZAR. Disponível em: <www.clubcultura.com/clubliteratura>. Acesso em: 15 jun.
2006.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 1986.
KIEFER, Charles. A poética do conto. Porto Alegre: Nova Prova, 2004.
LAFFORGUE, Jorge (comp.). Nueva novela latinoamericana II: la narrativa argentina actual.
Buenos Aires: Paidós, 1974.
LAGMANOVICH, David. Estudios sobre los cuentos de Julio Cortázar. Barcelona: Sololibros,
1975.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978.
MACHADO, Maria Luiza Bonorino. O espelho e a máscara: o narrador nos contos fantásticos
latino-americanos. Porto Alegre, 1999. Dissertação [Mestrado em Literatura Comparada]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
97
MAUPASSANT, Guy. Contos fantásticos: O Horla & outras histórias. Trad. JoThomaz Brum.
Porto Algre: L&PM, 1997.
MORA, Carmen de. La protohistoria literaria de Cortázar: La otra orilla. In: MANZI, Joaquín
(dir.). La Licorne, Paris, UFR Langues Littératures Poitiers, n. 60, 2002. Volume especial:
Cortázar, de tous les côtés.
MORENO, César Fernández (org). América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.
NAVASCUÉS, Javier. De Arcadia a Babel: naturaleza y ciudad en la literatura hispanoamericana.
Madrid: Iberoamericana, 2002.
OVIEDO, José Miguel (seleção e introdução). Antología crítica del cuento hispanoamericano del
siglo XX. Madrid: Alianza, 1992.
PALMERO GONZÁLEZ, Elena. Relatar el tiempo: Alejo Carpentier. Rio Grande: Ed. da Furg,
2003.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro:
Globo, 1987.
PONGE, Robert (org.). O surrealismo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1991.
PRADA OROPEZA, Renato (org). La narratología hoy. Habana: Arte y Literatura, 1989.
PREGO, Omar. O fascínio das palavras: entrevistas com Julio Cortázar. Trad. Eric Nepomuceno.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
PUPO-WALKER, Enrique. El cuento hispanoamericano. Madrid: Castalia, 1995.
REDONET COOK, Salvador (org.). Selección de lecturas de investigación crítico-literária. La
Habana: Editorial de la Facultad de Artes y Letras, 1983.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1997. t. 3.
_____. Teoria da interpretão: o discurso e o excesso de significão. Lisboa: Edições 70, 1976.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Marins Fontes, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão.
Petrópolis: Vozes, 1997.
_____. A náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
_____. As moscas. Lisboa: Presença, 1983.
SOUZA, Ricardo Timm de. O tempo e a máquina do tempo: estudos de filosofia e de pós-
modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
_____. Totalidade e desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1996.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Almedina, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São
Paulo: Perspectiva, 1975.
98
TROUCHE, André Luiz G.; REIS, Lívia de Freitas. Hispanismo 2000. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de Hispanistas, 2001.
VINOCUR DE
TIRRI, Sara. La vuelta a Cortázar en nueve ensayos. Buenos Aires: Carlos Pérez,
1968.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo