21
utopia reacionária de uma regeneração da monarquia no seio de uma revolução
religiosa mundial” (apud Glaudes, 2006:12). Com efeito, Maistre apresenta uma versão
modernizada, própria para as circunstâncias políticas de fins do XVIII e princípio do
XIX, do milenarismo (ou quiliasmo) judaico-cristão. Essas duas religiões possuem uma
concepção histórica muito particular, que favorece o surgimento, de tempos em tempos,
e em condições de opressão e désarroi, de uma poderosa crença na mudança iminente,
radical e benfazeja do curso da história. Segundo Norman Cohn, a primeira
manifestação do quiliasmo judaico se deu em meados do século II a.C., quando a
Palestina passou ao duro domínio da dinastia sírio-helenística dos Selêucidas. O
monarca Antíoco Epifânio, cujo reinado durou de 175 a 164, notabilizou-se por sua
devoção à cultura grega e ira contra o judaísmo, ao ponto de intentar suprimi-lo. O
Livro de Daniel, escrito durante a revolta dos Macabeus, contém, para Cohn (1957:4), o
modelo do que viria a ser “the central phantasy of revolutionary eschatology”. O mundo
caiu nas garras de um tirano maligno, não humano, mas diabólico. Suas vilezas e
crueldades vão num crescendo, para desespero das vítimas, que, fracas e assustadas, não
têm condições de lhe opor nenhuma resistência. A situação chega ao fim quando Deus
se deixa tocar pelas súplicas de seu povo e intervém, secundado pelos santos cuja fé não
esmoreceu. O governante ímpio é derrubado e, com tal, tem início uma nova era de
glória e justiça para os eleitos.
Ainda segundo Cohn, a febre quiliasta dos judeus arrefeceu com o passar dos séculos.
Ou, melhor dizendo, foi contraída pelos cristãos: o “sonho de Daniel” os impressionou
sobremaneira. Com efeito, vários foram os que se entregaram, nas horas de perseguição,
à esperança da vinda iminente do messias. No século IV, porém, as autoridades
eclesiásticas optaram – com base em razões nada estranhas à política – por reprimir tais
movimentos. “The Catholic Church was now a powerful and prosperous institution,
functioning according to a well-established routine; and the men responsible for
governing it had no wish to see Christians clinging to out-dated and inappropiate
dreams of a new earthly Paradise”, escreve Cohn (id., 14). Orígenes, o mais influente
teólogo do paleocristianismo, já tentara, no século III, apresentar o quiliasmo como
fenômeno individual, não coletivo: o advento do Reino dar-se-ia na alma do crente ao
invés de na sociedade (ibid., 13). (Maistre, que muito o admirava, não o seguiu, pois,
nesse ponto.) No século V, Santo Agostinho afirmou, em A Cidade de Deus, que o
milênio se consumara com a fundação da Igreja. Em 431, o Concílio de Éfeso chancelou