59
as aptidões sua estupidez animal supera tudo o que pode nossa divina inteligência. O
problema é que tendemos a condenar tudo aquilo que ignoramos e não conhecemos.
Condenamos tudo o que nos parece estranho e o que não entendemos; assim também nos
acontece no julgamento que fazemos sobre os animais.
60
Portanto, não é por um juízo
verdadeiro e sim por louco orgulho e obstinação que nos preferimos aos outros animais
e nos apartamos de sua condição e companhia.
61
É difícil não identificar neste longo
trecho da Apologia o primeiro Tropo do ceticismo pirrônico. Tal como Sexto Empírico,
Montaigne estabelece a igualdade de valor entre as percepções animais e humanas. E
assim como as Hipotiposes, a Apologia também rejeita qualquer tipo de ordem
hierárquica da natureza. O homem não é mais que um detalhe imperceptível desta grande
ordem cósmica que abraça todas as criaturas igualmente.
62
Montaigne se dedica, em seguida, à discussão em torno da vanidade da ciência,
considerada por ele como sendo, em geral, nociva à felicidade humana. De que adianta
obter ciência, pergunta ele, se o entendimentos de tantas as coisas não nos serve de
nenhuma utilidade? Pois os ignorantes e camponeses, que se deixam guiar por seus
apetites naturais, desfrutam de uma vida muito mais feliz do que qualquer sábio ou
filósofo, que teima em ter pedras na alma antes de as ter nos rins: como se não fosse
chegar a tempo para sofrer o mal quando ele existir, antecipa-o pela imaginação e corre
ao seu encontro.
63
A partir de uma citação de Cícero, Montaigne diz então ser preferível
para a espécie humana a recusa total da atividade do pensamento e da sagacidade que
denominamos razão, pois estas são fatais para muitos e só salutar para pouquíssimos.
64
O modelo de vida e sabedoria a ser seguido seria aquele encarnado por Sócrates.
Este era sábio por não se considerar sábio e por sustentar a ciência da ignorância, em
outras palavras, a simplicidade de espírito. Por meio de tanto estudo, este filósofo pôde
constatar a condição natural da ignorância humana, renunciando assim à presunção e à
vaidade. O recorrente elogio montaigneano da filosofia socrática emana da admiração
que ele nutre pelo jogo cético da eqüipolência, ou melhor, pela ciência de opor objeções.
59
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 186.
60
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 203.
61
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 229.
62
BARAZ, M. 1968, 24.
63
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 237.
64
MONTAIGNE, M. de. 2000, II, 12, 230.
34