Com relação à farmácia, já agora adjetivada de comercial, a inadequação
de sua formação era igualmente patente, porém, em decorrência de um excesso
de conhecimentos científicos e técnicos, para uma atividade de comércio, mais e
mais exclusiva, à proporção que se atrofiava a atividade referente à manipulação
extemporânea de medicamentos. Resultou daí a frustração do farmacêutico, o
conflito de interesses entre ele, a exigir remuneração compatível com a sua
formação profissional (de nível universitário), e o proprietário pretendendo
remunerá-lo ao nível de trabalho realmente prestado, de comerciário. Deste
conflito eternizado pelo dispositivo legal que exige a assunção por um
farmacêutico da responsabilidade técnica pela Farmácia resultou
freqüentemente o pior — a responsabilidade formal, não real, emprestando o
farmacêutico o seu nome, para satisfação da exigência legal, a troco de min-
guada remuneração e... do direito de não permanecer no estabelecimento.
Evidentemente, sem mercado de trabalho a profissão entrou em crise. O
divórcio existente entre a escola, o profissional militante e os órgãos de classe
não permitiu que se encontrasse para ela, a solução adequada.
Aferrados de um lado ao privilégio de responder pela farmácia comercial,
apesar da remuneração parca e da frustração decorrente da atividade
subalterna; sem realizarem uma análise criteriosa do curso de formação que
inferiorizara o farmacêutico na disputa de colocações na indústria farmacêutica,
os elementos mais representativos da classe julgaram ver uma saída na
ampliação do espectro de atividades a que esta poderia aspirar a exercer:
análises clínicas, bromatologia, perícias toxico-lógicas, atividades de saúde
pública etc. Isto à custa de providência simplista de sobrecarregar com mais
disciplinas o já onerado rebarbativo currículo do curso de formação. E, também,
como emprestar ao nível profissional um novo título — farmacêutico bioquímico.
Aparentemente, as providências simplórias deram resultado; atraiu--se
aos concursos de habilitação das escolas de Farmácia, já quase totalmente
desertados, um número maior de candidatos. Em verdade, a situação continuou
quase a mesma: persiste o conflito e a frustração no âmbito da farmácia
comercial; continua o farmacêutico mal preparado para as atividades da indústria
farmacêutica; nas novas atividades a que se habilitou compete sem vantagem
com outros profissionais, sendo que na mais promissora delas - a de laboratório
clínico — em inferioridade flagrante, em relação ao médico, pelas restrições que
lhe são impostas à vista de lacunas sensíveis em sua formação (notadamente de
patologia).
Mas se a solução não foi cabal, do ângulo de interesse do farmacêutico,
criou ou ampliou problema para a escola: a multiplicação de disciplinas, exigindo
mais e mais docentes, para o curso de demanda restrita, elevou a um ponto
insuportável o custo do aluno-ano
Estas as situações em que se encontram o ensino de formação e a
atividade profissional do farmacêutico, a requererem uma solução racional e
adequada.
Concepção de uma nova estrutura para os cursos de Farmácia
Essa solução racional pode ser encontrada, pelo menos em grande parte,
numa nova concepção de curso de formação do farmacêutico que
Visto o que ocorreu com as instituições, vejam agora o que se passou de
referência aos profissionais com atividades relacionadas à preparação e ao
comércio de medicamentos.
Ao tempo da botica, as atividades a esta inerentes eram conduzidas por
único profissional — pesquisador, químico, biologista e tecnólogo — e boticário.
Com a evolução, assim como a botica desaparece substituída pelo laboratório
industrial farmacêutico e pela farmácia, o boticário cedeu lugar ao farmacêutico.
Este, porém, é ainda um profissional de formação eclética e indiferenciada, que
deve atender à pesquisa, à preparação (em caráter industrial ou artesanal) e ao
comércio de medicamentos, presente na indústria farmacêutica, como na
farmácia.
Essa concepção de um profissional único capaz de atender às
necessidades da indústria farmacêutica, como às da farmácia, exigia já no
primeiro quarto de século que ele fosse, a um tempo, químico (com
conhecimentos de Química Inorgânica, Orgânica e Analítica, e de
farma-cognosia), biologista (apto em Botânica, Microbiologia e Farmacologia),
físico (instruído em Análise Instrumental e Física Industrial), tecnólogo (Farmácia
Galênica e Tecnologia Industrial Farmacêutica), e, ainda, pesquisador em todos
esses campos. Isto, sem levar em conta outros conhecimentos igualmente
necessários, embora não tão explicitamente requeridos: noções sobre doenças
infecciosas e parasitárias, higiene, administração industrial e comercial,
legislação farmacêutica, etc.
É fácil compreender que, com o correr do tempo e a amplitude dos campos
de conhecimento, conseqüente do processo científico e técnico, esse ecletismo,
observado na formação do farmacêutico, foi tomando-se crítico. Num dado
momento, o currículo do curso de formação excessivamente sobrecarregado de
disciplinas díspares fez do Farmacêutico um profissional amplamente informado,
mas superficialmente preparado, tanto do ponto científico como técnico. Com a
agravante da inadequação dessa formação tanto às necessidades das indústrias
farmacêuticas como às de farmácia.
Isto, que as escolas não souberam ver, foi cruelmente cobrado na vida
profissional, com a perda progressiva do mercado de trabalho. Realmente, essa
formação eclética não recomendava especialmente o farmacêutico para as
tarefas de pesquisa, onde antes se requer especialização, vale dizer,
conhecimento circunscrito e aprofundado. Neste terreno, um farmacêutico,
embora amplamente informado, não substituía ou igualava uma equipe,
tratando-se do conjunto de pesquisas requeridas p. ex. para colocar um
medicamento novo em condições de uso (exemplo típico de pesquisa
interessando à indústria farmacêutica); por outro lado, o seu preparo superficial
em face de uma pesquisa determinada o colocava em inferioridade a outro
profissional de formação mais específica, coerente e aprofundada.
Também, no campo da atividade industrial — face ao caráter de indústria de
transformação que adquiriu a indústria farmacêutica — de pouco lhe servia uma
boa parte dos conhecimentos adquiridos, enquanto o seu conhecimento de Física
Industrial, no caso essencial, era lamentavelmente escasso. Com isso, o
farmacêutico perdeu um mercado de trabalho que normalmente deveria ser seu,
em favor de outros profissionais, mas em especial do Engenheiro Químico.
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