— Oh!
— Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos
últimos sucessos, e dizia cousas meigas e graves. Quintília afirmava ter
esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até
não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus
sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse
só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares
palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi
que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; com a diferença
que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de
caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com
diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à
carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu
amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre
nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder
ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.
— Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou
eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.
— Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.
— Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o
senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse
com a absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.
— Não corri; fui dous dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta
com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de
humilhação, onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e
restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio,
custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança
veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um
dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me
retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos
de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu
negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa
vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata
austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos,
e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele
cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu,
inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou
depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi
então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava,
resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu
muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então
lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi
então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros
puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram
violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha
notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.
— De que moléstia padecia?