submissa. Era começar mal o dia; era sair aparelhada para destruir uma fortaleza, e dar com
uma cidade aberta, pacífica, hospedeira, que lhe pedia o favor de entrar e partir o pão da
alegria e da concórdia. Era começar o dia muito mal.
A segunda causa do tédio de D. Benedita foi um ameaço de enxaqueca, às três horas da
tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de ameaço. Chegou a transferir a
visita, mas a filha ponderou que talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde
para deixar de ir. D. Benedita não teve remédio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-
se, esteve quase a dizer que definitivamente ficava; chegou a insinuá-lo à filha.
- Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta com a senhora, disse-lhe Eulália.
- Pois sim, redargüiu a mãe, mas não prometi ir doente.
Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as últimas ordens; e devia doer-lhe muito a cabeça,
porque os modos eram arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que não quer. A
filha animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos sais, instava que saíssem, descrevia a
ansiedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dois em dois minutos o pequenino relógio,
que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.
- O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a mãe.
E saiu, saiu exasperada, com uma grande vontade de esganar a filha, dizendo consigo que a
pior coisa do mundo era ter filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas
as filhas!
Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo que a enchesse de grande
satisfação, porque não foi assim. Os modos de D. Benedita não eram os do costume; eram
frios, secos, ou quase secos; ela, porém, explicou de si mesma a diferença, noticiando o
ameaço da enxaqueca, notícia mais triste do que alegre, e que, aliás, alegrou a alma de D.
Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na
doença do que na quebra do afeto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não
houve naquele dia mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre carícias mútuas;
não houve nada do jantar de domingo. Um jantar apenas conversado; não alegre,
conversado; foi o mais que alcançou o cônego. Amável cônego! As disposições de Eulália,
naquele dia, cumularam-no de esperanças; o riso que brincava nela, a maneira expansiva da
conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o rosto afável, meigo,
com que ouvia e falava ao Leandrinho, tudo isso foi para a alma do cônego uma renovação
de esperanças. Logo hoje é que D. Benedita estava doente! Realmente, era caiporismo.
D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite, depois do jantar. Conversou mais, discutiu um
projeto de passeio ao Jardim Botânico, chegou mesmo a propor que fosse logo no dia
seguinte; mas Eulália advertiu que era prudente esperar um ou dois dias até que os efeitos
da enxaqueca desaparecessem de todo; e o olhar que mereceu à mãe, em troca do conselho,
tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo dos olhos matemos. De
noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulália repetiu consigo a palavra que lhe
ouvimos, dias antes, à janela:
- Isto acaba.
E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou uma caixinha, abriu-a,
aventou um cartão de alguns centímetros de altura, - um retrato. Não era retrato de mulher,
não só por ter bigodes, como por estar fardado; era, quando muito, um oficial de marinha.
Se bonito ou feio, é matéria de opinião. Eulália achava-o bonito; a prova é que o beijou, não
digo uma vez, mas três. Depois mirou-o, com saudade, tornou a fechá-lo e guardá-lo.
Que fazias tu, mãe cautelosa e ríspida, que não vinhas arrancar às mãos e à boca da filha
um veneno tão sutil e mortal? D. Benedita, à janela, olhava a noite, entre as estrelas e os