Na opinião dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade
do destino. Nem no martirológico cristão, nem nos trágicos gregos, nem no livro de Jó, havia sequer
um pálido esboço dos seus infortúnios.
Vejamos alguns traços patéticos da existência do nosso herói.
Nascera rico, filho de um proprietário de Goiás, que nunca vira outra terra além da província
natal. Em 1828 estivera ali um naturalista francês, com quem o comendador Seabra travou relações,
e de quem se fez tão amigo, que não quis outro padrinho para o seu único filho, que então contava
um ano de idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera umas venialidades poéticas que
mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo, - velho trapeiro da eternidade, - levou
consigo para o infinito depósito das coisas inúteis. Tudo lhe perdoava o ex-poeta, menos o
esquecimento de um poema em que ele metrificara a vida de Fúrio Camilo, poema que ainda então
lia com sincero entusiasmo. Como lembrança desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado
Camilo, e com esse nome o batizou o padre Maciel, a grande aprazimento da família e seus amigos.
– Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mandá-lo
para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra coisa em que se faça homem. No caso de lhe
achar jeito para andar com plantas e minerais, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que
lhe parecer como se fôra seu pai, que o é, espiritualmente falando.
– Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista.
– Oh! Há de viver! Protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua têmpera é de ferro. Não
o vejo eu andar todos os dias por esse matos e campos, indiferente a sóis e a chuvas, sem nunca ter
a mais leve dor de cabeça? Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. Há de viver e
cuidar do meu rapaz, apenas ele tiver concluído cá os seus primeiros estudos.
A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camilo seguiu para Paris, logo depois de
alguns preparatórios, e ali o padrinho cuidou dele como se realmente fôra seu pai. O comendador
não poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia servir para
duas ou três pessoas em iguais circunstâncias. Além da mesada, recebia ele por ocasião da Páscoa e
do Natal, amêndoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam às mãos debaixo da forma
de alguns excelentes mil francos.
Até aqui o único ponto negro na existência de Camilo, era o padrinho, que o trazia peado,
com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipícios da grande cidade. Quis, porém, a sai
boa estrela que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas produções extintas,
deixando na ciência alguns vestígios da sua passagem por ela. Camilo apressou-se ao escrever ao
pai uma carta cheia de reflexões filosóficas.
O período final dizia assim:
“Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessário juízo para concluir aqui os meus
estudos, e se tem confiança na boa inspiração que me há de dar a alma daquele que lá se foi deste
vale de lágrimas para gozar a infinita bem-aventurança, deixe-me cá ficar até que eu possa regressar
ao meu país, como um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua
vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pai, porque então não me
demorarei um instante mais nesta terra, que já foi meia pátria para mim, e que hoje (hélas!) é
apenas uma terra de exílio.”
O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas desta lacrimosa epístola o
verdadeiro sentimento que a ditara. Chorou de alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta a
todos os seus amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo o tempo
necessário para completar os seus estudos, e que, além da mesada que lhe dava, nunca recusaria
tudo quanto lhe fosse indispensável em circunstâncias imprevistas. Além disso, aprovava de
coração os sentimentos que ele manifestava em relação à sua pátria e à memória do padrinho.
Transmitia-lhe muitas recomendações do tio Jorge, do padre Maciel, do coronel Veiga, de todos os
parentes e amigos, e concluía deitando-lhe a benção.
A resposta paterna chegou às mãos de Camilo no meio de um almoço, que ele dava no Café
de Madri a dois ou três estróinas de primeira qualidade. Esperava aquilo mesmo, mas não resistiu ao
desejo de beber à saúde do pai, ato em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos.