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CHINA
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais Embaixador Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações
Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos
da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas
de relações internacionais e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
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CHINA
Rio de Janeiro, 17 e 18 de abril de 2008
Brasília, 2008
III Conferência Nacional de Política Externa e
Política Internacional - III CNPEPI
“O Brasil no mundo que vem aí”
4
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
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Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994 de 14/12/2004.
Impresso no Brasil 2008
Copyright ©, Fundação Alexandre de Gusmão
Equipe técnica:
Eliane Miranda Paiva
Cintia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Maria Marta Cezar Lopes
Projeto gráfico e diagramação:
Cláudia Capella e Paulo Pedersolli
Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional - III
CNPEPI : (2 : Rio de Janeiro : 2008) : O Brasil no mundo que vem
aí. Seminário : China - Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão,
2008.
458 p.
ISBN: 978-85-7631-124-9
1.Política externa – China. 2. Política internacional. I. Conferência
Nacional de Política Externa e Política Internacional. III CNPEPI
: 2 : Rio de Janeiro : 2008.
CDU: 327 (042.3)
Sumário
Apresentação ............................................................................................... 7
Abertura
Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores ............................... 9
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
China: Dimensões Histórica e Política
China e o Autocratismo Esclarecido ........................................................ 21
Wanderley Guilherme dos Santos
O Centro do Mundo .................................................................................. 43
Mauro Santayana
A Era Deng, passo a passo ........................................................................ 65
Jayme Martins
China: Dimensões Econômica e Científica Tecnológica
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional ............ 89
Carlos Aguiar de Medeiros
O Fator China nos novos equilíbrios regionais ...................................... 113
Sergio Marcelo Cesarin
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e
política econômica do desenvolvimento............................................... 137
Mark Selden
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na
China de hoje .......................................................................................... 161
Elias M. K. Jabbour
China: Dimensões Internacional e Estratégica
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês .................. 187
Wang Weiguang
China: Dimensões Estratégicas .............................................................. 213
Gilberto Dupas - texto
China: Dimensões Estratégicas .............................................................. 239
Gilberto Dupas – discurso
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror
e da estratégia de desenvolvimento de energia do além-mar .............. 245
Pan-Guang
A China e o Emergente Regionalismo Asiático..................................... 267
T. J. Pempel
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia ... 289
Isabela Nogueira
China: Perspectivas e Desafios
China. ...................................................................................................... 329
Helio Jaguaribe
A China constrói uma parceria estratégica com a África ..................... 337
Amaury Porto de Oliveira
China: Perspectivas e Desafios .............................................................. 375
Henrique Altemani de Oliveira
China, um depoimento jornalístico ........................................................ 403
Ana Paula Campos
Luiz Eduardo Garcia
China: Desafios e Perspectivas .............................................................. 425
Shaoguang Wang
7
“Eu acho que a China e o Brasil só têm a ganhar com o
aperfeiçoamento das nossas relações (...) Somos dois grandes países
em desenvolvimento que procuram integrar-se nas correntes
internacionais de comércio e investimento sem abrir mão da
autonomia de nossos processos decisórios. Daí a importância de
nossa aliança estratégica - não só para intensificar nosso
relacionamento recíproco, mas para modificar as regras injustas
que, hoje, presidem o comércio internacional.”
Presidente Lula da Silva
Xangai, 26 de maio de 2004
Os textos que compõem esta publicação foram apresentados na
conferência sobre a China, realizada nos dias 17 e 18 de abril de 2008,
no Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro.
APRESENTAÇÃO
Abertura
Palestra do Secretário-Geral
das Relações Exteriores
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
11
SENHOR EMBAIXADOR JERÔNIMO MOSCARDO
Bom dia. Por quê a China? A Fundação Alexandre de Gusmão
trabalha com o pressuposto que a sociedade sabe mais e pode mais
que o Governo, por isso, mobiliza hoje a vertente, o vetor do saber.
A idéia de que sem a direção acadêmica não se faz política externa e
sem a inserção da cidadania não se legitima essa política externa. Essa
reunião de hoje, essa conferência tem uma característica singular: nós
não estamos aqui para estudar ações Brasil/China. Estamos aqui para
estudar a China como objeto de estudo. A idéia é estudá-la como os
americanos brasilianistas nos estudavam, como os brasilianistas
chineses também nos estudavam. Agora nós também o fazemos,
graças à orientação que foi um sonho do Darci Ribeiro e um projeto
do Governo Lula executado por Celso Amorim e Samuel Pinheiro
Guimarães.
A idéia é estudar esses grandes países, esses países-baleias,
como eles nos estudavam. Porque no passado se estudava só a relação
de maneira comercial. Nós vamos estudar o fenômeno China de
maneira interdisciplinar. Esta idéia tem mais uma dimensão, que é a
dimensão de liberdade de pensamento. Esta reunião não é financiada
pela C.I.A., nem recebe nenhuma assistência de fundação alemã. É
uma reunião em que estamos aqui com nossos irmãos argentinos;
está aqui o Diretor de política exterior bilateral da Argentina,
Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores
12
Embaixador Vicente Espeche Gil, e mais acadêmicos argentinos, que
nos acompanham nessa reflexão sobre o fenômeno China.
Eu quero dizer, também, que o método de trabalho aqui é um
pouco diferente: nós adotamos o tempo da televisão, a idéia de que
não se vai fazer grandes explanações, mas sim de que cada um vai
fazer um pinga-fogo e dar a sua participação. Eu quero, também,
agradecer a participação das bancadas estaduais. Está aqui o Doutor
Schmidt, que foi, recentemente, em uma grande comitiva em visita à
China e que vem nos ajudar. Está presente, também, o Presidente da
Academia Baiana, Professor Edivaldo Boaventura, que tem um livro
sobre a China. Eu quero agradecer a todos e dar as boas-vindas ao
Embaixador da China, que nos tem ajudado enormemente nessa
tarefa. Quero pedir também a sua paciência, pços hoje nós não vamos
negociar com a China, e sim estudá-la.
Eu quero agradecer a todos os Embaixadores presentes e eu
resumiria o agradecimento na figura de Ovídio de Melo, este grande
Embaixador brasileiro, que eu quero que receba esta homenagem
em nome da Casa. Com a palavra o Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães para fazer a abertura. Muito obrigado.
S
ENHOR EMBAIXADOR SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
De grandes áreas do sistema, a começar pela antiga União
Soviética, depois Europa Oriental e depois a própria China são áreas
que ficam fora do sistema econômico capitalista, do sistema político
com ele relacionado. Esse processo termina em um ponto importante
que é a queda do Muro de Berlim em 1989; mas ele começa a terminar
antes disso, na desintegração da União Soviética. Esses são simbólicos.
Porque a partir das crises do petróleo, da renegociação das dívidas
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
13
externas, o que ocorre é um processo de reincorporação da economia
global, não só de países, como setores de países da periferia que
estavam fora do alcance das mega-empresas multinacionais. Por
exemplo, o setor de telefonia no Brasil, que era estatal e que estava
fora do alcance. Então, esse é o processo de privatização, de
reincorporação no grande sistema global desses setores. Um processo,
inclusive, de realinhamento da ex-União Soviética no sistema. Nesse
processo ocorre o fenômeno chinês: cerca de 30 anos atrás a China
começou a se reinserir, a se reincorporar nesse processo global. Mas,
essa reincorporação da China não é comum, porque se trata de um
país com mais de 1 bilhão de habitantes, de um país que foi durante
toda a história da humanidade, com um interregno de cerca de 200,
250 anos, o país mais importante, o país mais avançado durante todo
o período desse interregno.
E quando ele volta a ser internacional, volta em um processo
que cria um enorme impacto sobre o sistema mundial, sobre o sistema
econômico. A China já é a segunda maior potência econômica do
mundo em termos de qualidade de poder de compra; foi o segundo
maior país exportador do mundo e um dos maiores países
importadores mundiais, depois dos Estados Unidos, naturalmente.
A China volta em um processo que, em minha opinião, é extremamente
interessante e que afetam os grandes temas atuais. Primeiro, porque
essa reinserção da China corresponde a concorrer com os Estados
Unidos, que sofreram uma enorme migração de pessoas no final do
século XIX, isto é, uma migração de trabalho para os Estados Unidos
e de capitais. De capitais ingleses em enorme quantidade.
Hoje em dia, o que verificamos é uma enorme migração de
capital e de tecnologia dos centros altamente capitalizados do mundo
e com avanço tecnológico para a China, onde já existe, naturalmente,
Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores
14
o fator trabalho em abundância. Essa migração de capital faz com
que estejam operando, hoje, na China, 600 mil empresas estrangeiras.
Cerca de 480 das 500 principais empresas multinacionais, listadas na
Revista Fortune, estão em operação na China. As empresas japonesas
na China são 30 mil, ocupando 9 milhões de trabalhadores e assim
por diante. É uma enorme migração de capital e de tecnologia que
vai ao encontro de uma mão-de-obra abundante e disciplinada, com
o propósito firme de desenvolvimento. É um sistema econômico
em que a participação do Estado é extremamente importante, não
só para definir as regras de como participam as empresas estrangeiras
na economia chinesa, como também pela existência, ainda, de grandes
empresas estatais no sistema econômico chinês. Isso confere uma
característica muito importante. Essa transferência de capitais e de
tecnologia é responsável, juntamente com o Estado chinês, pelas
políticas e pelos trabalhadores chineses e pelos empresários e é o que
permite uma expansão em 29 anos de uma média de 10% de
crescimento do PIB. É algo extraordinário na história da humanidade,
eu creio.
Essa expansão devido às características do território chinês,
que é diferente do território americano no século anterior, é um
território em que a disponibilidade de recursos naturais não é
suficiente. É necessário ir em busca desses recursos energéticos,
minerais, em busca de alimentos, porque não são suficientes. Isso
tem um impacto muito grande sobre o comércio mundial, como um
país que demanda alimentos e matérias-primas de uma forma geral,
e, também, um país que é capaz de processar e ter níveis crescentes,
extremamente elevados, de sofisticação tecnológica na sua produção.
Essa demanda faz com que hoje já estejam incorporadas, na
economia moderna chinesa, talvez 400 milhões de pessoas. Se forem
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
15
400 milhões de pessoas, é uma população semelhante à da União
Européia e 100 milhões maior do que a americana. Mas ainda há
outros 900 milhões. Isso tem um impacto extraordinário sobre a
demanda por matérias-primas e alimentos e esse desenvolvimento
industrial acelerado tem um impacto muito grande, também, nas
questões relativas ao meio ambiente.
Apesar de os índices de emissão de gases de efeito estufa, na
China, serem baixos em termos per capita, em termos totais, em
termos absolutos, o volume é muito grande. Os senhores sabem,
mais do que eu, que a emissão de gases de efeito estufa é um
processo histórico. É um processo cumulativo de gases na atmosfera
e os principais responsáveis por esse acúmulo e pela alteração
climática são os países altamente desenvolvidos. Nós sabemos disso.
Mas, o fato é que, em termos absolutos, a China é um ator de
grande importância no tema da segurança energética (que é um dos
temas mais importantes, no momento, na política internacional), nas
questões do meio ambiente e nas questões relativas à modificação
do poder militar no mundo. Naturalmente, a China, com as suas
legitimas preocupações de segurança, tem o direito de ter
armamentos adequados ao seu nível de desenvolvimento, ao seu
território, aos seus interesses e assim por diante, como os grandes
Estados ocidentais.
Isso torna a China um ator extremamente importante no que
diz respeito aos aspectos militares da política internacional.
Quanto aos aspectos econômicos, há a participação no
comércio internacional, a demanda de matérias-primas; no meio
ambiente há o impacto dessas questões; e um aspecto final muito
interessante é que, devido ao acúmulo crescente de reservas pelo
Estado chinês, essas reservas transformadas, em parte, em fundos
Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores
16
soberanos, tentam adquirir empresas do centro tradicional do sistema
econômico internacional, o que cria, muitas vezes, grandes
preocupações.
Mas, esse processo de integração da China pode ser
simbiótico. Os capitais que se dirigem à China têm níveis de
rendimento muito mais elevados do que no centro do sistema. Isso
por razoes óbvias. Ao mesmo tempo, os superávits comerciais são
investidos em títulos do tesouro americano, o que contribui para a
estabilidade do sistema norte-americano. Ao mesmo tempo, as
exportações, pela China, de produtos com preços altamente
competitivos, contribuem para manter baixos os níveis de preço
dos países centrais, digamos assim. Também tem um efeito sobre
as reivindicações salariais nesses países. Então, é algo que é
extremamente inter-relacionado. Os interesses dos países altamente
desenvolvidos não conflitam com os interesses da China como um
país em processo de desenvolvimento acelerado.
Isso tem sobre nós os efeitos conhecidos. Não só nos interessa
a participação da China nesses diversos temas, como meio ambiente,
energia, e assim por diante, como também nos afeta como grandes
produtores de matérias-primas que o Brasil é, e como produtor
bastante avançado na área de produtos industriais. Hoje, já há um
número razoável de empresas brasileiras com investimentos na
China. Esse processo de simbiose faz com que os interesses desse
conjunto sejam muito convergentes, com exceção, talvez, da questão
de poder, da política de poder e das questões militares. Esta área é
um pouco diferente. Talvez, aí os interesses sejam um pouco mais
complexos. Mas, de toda forma, a China é hoje um ator essencial,
fundamental, importantíssimo para a política internacional. Portanto,
é um País com extraordinário interesse para o Brasil, que tem,
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
17
também, alguma semelhança com a China por ser um grande Estado
da periferia. Muito obrigado aos senhores pela atenção e eu quero
que tenhamos um ótimo seminário e que ao final dele possamos
compreender melhor o que significa esse fenômeno da China. Muito
obrigado pela atenção.
China:
Dimensões Histórica e Política
21
Pouco visível entre os espetaculares recordes exibidos pela
história da China nos últimos vinte e cinco anos encontra-se a
velocidade com que as previsões sobre o futuro dessa mesma história
se tornam obsoletas. Sucessivas advertências sobre iminentes colapsos
semelhantes aos da ex-União Soviética e de associados da Europa
Oriental têm sido desmentidas com a mesma freqüência com que
cenários otimistas de uma rápida transição da modernização econômica
a um sistema político pluralista encontram-se desautorizados. O
recorrente hábito de interpretar processos singularmente específicos
segundo modelos de elevada generalidade responde por esses repetidos
fracassos de futurologia. Assim como em relação a outras experiências
nacionais, também não terá sido por ausência de recomendações de
historiadores que os analistas caem vítimas de impetuosidades pouco
cautelosas. Em volume de confecção muito interessante, China
Transformed: Historical Change and the Limits of European
Experience,
1
R. Bin Wong narra os sucessos característicos do período
de ingresso na modernidade e na industrialização do ponto de vista
europeu e do ponto de vista chinês, revelando não somente
divergências de interpretação como de vivência de fenômenos
abstratamente semelhantes.
CHINA E O AUTOCRATISMO ESCLARECIDO*
Wanderley Guilherme dos Santos
* Trabalho apresentado na sessão “China: Dimensões, História e Política”, na III
Conferência Nacional de Política Internacional “O Brasil no mundo que vem aí” -
China, promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão, no período de 17 e 18/04/
2008, no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro, RJ.
1
Ithaca, Cornell University Press, 1997.
22
Wanderley Guilherme dos Santos
Contudo, a distinção não é de natureza ontológica, como se
estivesse a China marcada por peculiaridades inteiramente ausentes de
outros países e, ao mesmo tempo, sem revelar qualquer traço de
aproximação com outras sociedades. Estão lá os sistemas de parentescos,
as lealdades de clã, os laços familísticos que irão co-patrocinar tanto as
vicissitudes quanto a abundância dos vilarejos do interior rural chinês,
e reproduzir, nas áreas urbanas e rurais, o clientelismo típico do
subdesenvolvimento ocidental.
2
Simultaneamente, os identificáveis
emblemas das crises de construção do estado e da redistribuição de
renda afloram em todas as províncias da China.
3
Outros dois aspectos antecedendo a análise recomendam registro
inicial. Um, refere-se ao relativamente novo processo histórico de
sociedades autocráticas em que ocorre uma passagem a sistemas
competitivos sem violenta ruptura com o status quo. A Espanha
inaugurou o experimento e, posteriormente, o mesmo se verificou, a
velocidades diferentes, no Brasil, no México e no Chile. Embora não
existam indícios claros nesse sentido, vários analistas mantêm a
expectativa de que algo semelhante venha a acontecer na China. Dada
a modéstia de informações sobre os processos eleitorais chineses, em
nível local, ou documentos que explicitem o que o Partido Comunista
entende por democracia socialista, torna-se inviável avaliar se a dinâmica
política da China contemporânea tem algum parentesco com os
exemplos antes mencionados. A análise deve se ater a indicadores
menos precisos, com a vantagem, porém, de não reduzir a política
chinesa a exclusiva disputa entre cliques ou personalidades.
4
2
Cf. David Faure, China and Capitalism – A History of Business Enterprise in
Modern China – Hong Kong University Press, 2006.
3
Cf. Lily L. Tsai, Accountability without Democracy – Solidary Groups and Public
Goods Provision in Rural China, N.Y., Cambridge University Press, 2007.
4
Ver, nessa linha, Bo Zhiyue, China Elite Politics – Political Transition and Power
Balancing, London, World Scientific, 2007.
China e o Autocratismo Esclarecido
23
Outro registro previne que serão evitadas as tentativas de ajustar,
ainda que especulativamente, a realidade chinesa a um modelo
democrático convencional,
5
nem desfigurar o modelo democrático
para adaptá-lo ao que parece ser a realidade chinesa.
6
O caráter em grande parte inédito da modernização chinesa
surpreende, quer pela velocidade, quer pela rápida adaptação da
sociedade às novas circunstâncias. Ao proclamar a famosa palavra de
ordem “deixem as pessoas ficarem ricas primeiro”, Deng Xiaoping
autorizou a substituição do princípio da solidariedade social pelo
princípio do “interesse” no comportamento pessoal. Há um núcleo
de significado na mudança cujo potencial revolucionário só se revela
gradativamente. Com efeito, enquanto o princípio da “solidariedade
social” é com freqüência esquecido na vida real, mantendo-se, via de
regra, por coação, raramente se viola o princípio do “interesse”, o qual,
inclusive, dispensa os custos da coerção para que seja obedecido. Por aí
se entende a rapidez da adaptação ao novo código de comportamento,
uma vez posto em prática em algum segmento da sociedade. O efeito
demonstração do comportamento por interesse, em particular o interesse
por “consumo”, é fulminante, difundindo-se mais rapidamente do que
uma epidemia não-controlada. O espaço social em que o princípio
começou a ser implantado foi no universo agrário.
A China ainda é uma sociedade majoritariamente rural e convém
conferir alguns indicadores chineses em comparação com os dos três
outros “brics” (Brasil, Rússia e Índia).
5
Cf. Bruce Gilley, China Democratic Future, Columbia University Press, 2004.
6
O esforço de Daniel Bell para criar uma democracia confuciana, em Beyond Liberal
Democracy – Political Thinking for an East Asian Context, Princeton University
Press, 2006, com uma elite se submetendo a exames de qualificação para governar
consiste, na verdade, em variante da solução platônica para um bom governo. Ocorre
que, assim como nadar, ou o samba, a política também não se aprende por
correspondência ou na escola.
24
Wanderley Guilherme dos Santos
Human Development Report 2007/2008
Em alguns aspectos do que se pode considerar como “bens
públicos” ainda há lugar para muito progresso, o que vale para todos
os “brics”. A expectativa oficial é a de que avanços materiais de grande
magnitude mantenham a estabilidade social que, desde a reforma
iniciada em 1978, é o objetivo central do crescimento econômico.
Notes:
a.The HDI rank is determined using HDI values to the sixth decimal point.
b. Data refer to national illiteracy estimates from censuses or surveys
conducted between 1995 and 2005, unless otherwise specified. Due to
differences in methodology and timeliness of underlying data, comparisons
across countries and over time should be made with caution. More details,
see http://uis.unesco.org/.
c. Because data are based on national definitions of what constitutes a city
ou metropolitan area, cross-country comparasions should be made with
caution.
d. Population estimates include Taiwan Province of China.
e. Data refer to a year or period other than that specified, differ from the
standard definition or refer to only part of a country.
Source:
http://hdrstats.undp.org/buildtables/
China e o Autocratismo Esclarecido
25
Entende-se, assim, que as perspectivas econômicas sejam consideradas,
praticamente, como simultâneo prenúncio de harmonia social. Embora
um pouco longa, compensa a citação a seguir: “Desde a reforma e a
abertura, a China tem obtido notável desempenho em termos de
progresso econômico. A despeito de todos os seus problemas, a
administração macroeconômica é uma história de sucesso. A China
tem mantido uma elevada taxa de crescimento por mais de duas décadas.
Agora a China precisa se preparar para enfrentar a instabilidade fiscal
e financeira no futuro próximo, mas todos os seus problemas são
superáveis. Tanto quanto possa manter a estabilidade social através
do estabelecimento de uma decente rede de políticas sociais e impedindo
o alargamento da desigualdade, o futuro da China será, na verdade,
muito brilhante”.
7
Tal como se lia e ainda se lê nas teorias sobre os
efeitos benéficos da modernização econômica, a estabilidade social (e
por extensão silenciosa a estabilidade política) resulta naturalmente de
bem sucedida aventura de crescimento econômico. Algumas notas
cautelares são, todavia, indispensáveis.
Depois dos estragos causados pela tentativa de dar um grande
salto à frente e dos desmandos da revolução cultural, a disseminação
da fome pelo interior das províncias facilitou a iniciativa de
reintroduzir a responsabilidade das coletividades locais pela
organização do trabalho e pela negociação entre os comuns e a seção
local do Partido quanto ao volume esperado da produção, a quota a
ser entregue ao governo e o que seria comercializado pela comunidade.
Foi o primeiro escaninho no planejamento centralizado, ocorrido na
província de Anhui. Embora o apoio da liderança central do Partido
tenha sido essencial, inclusive para tudo que se seguiu a partir daí, “o
7
Cf. Yu Yong-ding, “A Review of China Macroeconomic Development and Policies
in teh 1990s”, China and World Economy, n.6, 2001, concluding remarks.
26
Wanderley Guilherme dos Santos
processo não foi dominado pelos aparelhos intelectuais e burocráticos
do Partido”.
8
O mesmo Fewsmith, porém, assinala que “Embora a
realidade social e econômica tenha sido vital na conformação do
desenvolvimento da reforma, (este livro) argumenta que o processo
da reforma chinesa foi conduzido, em primeiro lugar e principalmente,
pela liderança máxima. (...) Sem o apoio dos líderes centrais as reformas
rurais da China não poderiam haver prosperado”.
9
Liderança ou
necessidade é tema recorrente na China contemporânea.
Robert Nozick é um autor respeitado pelo renomado
economista chinês Jinglian Wu, que o cita favoravelmente em seu
recente e didático volume.
10
Anarchy, State, and Utopia,
11
de Nozick,
converteu-se em leitura obrigatória por sua radical defesa do
surgimento espontâneo da ordem política e do mercado, em desacordo
com seu colega de Harvard, o contratualista John Rawls (ambos
recentemente falecidos). Segundo Nozick, o mercado subverte o plano,
qualquer plano, em razão das conseqüências não esperadas da ação
humana, por mais coordenada que se pretenda. O economista Barry
Naughton sustenta, em linguagem mais pictórica, que “o mercado
cresce para fora do plano”.
12
O sistema denominado de “mão dupla”
previa que, vendida a quota da produção rural ao Estado pelo preço
estipulado pelo planejamento, o excesso de produção revertia à
comunidade que o comercializava a preços de mercado, agora
limitadamente permitido. Tendo em vista a descentralização
8
Cf. Joseph Fewsmith, Dillemas of Reform in China – Political Conflict and Economic
Debate, London, M.E. Sharpe, 1994, p.32.
9
Cf. Fewsmith, op.,cit., p.6.
10
Understanding and Interpreting Chinese Economic Reform, Inglaterra, Thomson,
2005.
11
New York: Basic Books, 1974.
12
Cf. Barry Naughton, The Chinese Economy – Transitions and Growth, The MIT
Press, 2007, part. p. 92.
China e o Autocratismo Esclarecido
27
administrativa que acompanhou o início da reforma, as comunidades
podiam planejar o volume da produção e, claro, a produção para o
mercado cresceu enormemente, tornando o plano praticamente
irrelevante para a estratégia dos comuns. Por isso, isto é, em busca de
maximização dos lucros, é que as comunidades, e depois as famílias,
passaram a organizar a produção. Sem necessidade de coação ou
vigilância, o interesse instalou-se como principal ordenador das
atividades rurais. Na segunda fase da reforma, toda a produção passou
a ser encaminhada para o mercado. O efeito demonstração do mercado
é, na expressão de uma analista, contagioso, e a comparação dos ganhos
advindos dos contratos com o Estado e os obtidos pela via do mercado
rapidamente faz com que a balança pese em favor do mercado.
Primeiro, nas áreas rurais, mas também no mundo industrial urbano,
particularmente nas relações de trabalho, sob considerável influência
das empresas estrangeiras.
13,14
Um processo nozickiano de desenvolvimento apresenta claras
similaridades com os processos evolucionários, nos quais o
experimentalismo se encarrega de inventar e, por assim dizer,
desinventar modos de sobrevivência. Sem citar Nozick ou os teóricos
da evolução, é, todavia, segundo tal modelo que Tsai apresenta o
surgimento e expansão do setor privado na China.
15
Garantido um
mínimo de liberdade e de credibilidade pública, as pessoas se organizam
13
Cf. Mary Elizabeth Gallagher, Contagious Capitalism – Globalization and the
Politics of Labor in China, Princeton University Press, 2005.
14
As etapas das reformas no campo e na área industrial são claramente apresentadas
no volume de Naughton, cit., e no de James Riedel, Jing Jin, Jian Gao, – How China
Growns Investment, Finance, and Reform, Princeton University Press, 2007,
especialmente no capítulo 1 – “Overview of Economic Reforms and Outcomes”, e
cujos capítulos finais apontam para a vulnerabilidade do crescimento chinês em virtude
do subdesenvolvimento de seu sistema financeiro.
15
Cf. Kellee S. Tsai, Capitalism without Democracy – The private sector in contemporary
China, Ithaca, Cornell University Press, 2007.
28
Wanderley Guilherme dos Santos
naturalmente para a experimentação de formas alternativas de
produção, comercialização e convivência. Ao contrário de Naughton,
Tsai assegura que “a real dinâmica causal conduzindo as decisões ao
nível das elites surge das interações locais entre os empresários e entre
os empresários e funcionários” do Partido ou do Estado.
16
De acordo
com a própria autora, sua reivindicação é a de contraditar uma das
versões da teoria da modernização, segundo a qual o crescimento
econômico engendraria uma nova classe, os empresários burgueses,
que, em algum momento, reformariam o Estado e implantariam a
democracia. Longe disso, segundo Tsai, observa-se um inovador
processo de acomodação mútua entre o Estado socialista autocrático
e os empresários. Não obstante as evidências bastante convincentes da
acomodação mútua entre Estado, Partido e interesses privados, o
excesso de otimismo espontaneísta faz com que a Autora apresente
um partido e um Estado tão vazios de interesses próprios, para além
de garantir a estabilidade social, que em certas passagens permite a
formulação da extraordinária hipótese de que, em reviravolta histórica,
o Partido Comunista Chinês se teria transformado no verdadeiro
comitê executivo da burguesia.
17
Apresentado como processo espontâneo por Tsai, a lógica do
interesse prevalece nos arranjos administrativos e políticos. É, sem
dúvida, extraordinária a velocidade de adaptação do Estado chinês a
um universo inteiramente distinto, inclusive da tradição chinesa pré-
revolucionária.
18
Não tem estado ausente das modificações
16
Cf. Tsai, ob. cit., p. 9.
17
Cf. Tsai, ob.cit., ps. 23, 39, 105/106 e capítulo 7; a partir de uma discussão sobre a
criação de um estado de direito na China, Randall Peerenboom, China Modernises –
threat to the West or model for the rest, Oxford University Press, 2007, não só considera
possível a longevidade do modelo como sugere que deve ser aplaudido.
18
Cf. o excelente volume de Dali L. Yang, Remaking the Chinese Leviathan – Market
Transition and the Politics of Governance in China, Stanford University Press, 2004.
China e o Autocratismo Esclarecido
29
administrativas e legais, por outro lado, o persistente e difundido
problema da corrupção, incluindo, ironicamente, altos funcionários
do Partido e do Estado encarregados de administrar agências
anticorrupção e contrabando.
19
Projeto ou necessidade?
II
Não obstante as peculiaridades nacionais características de
sociedades complexas, uma interpretação do fenômeno chinês segundo
uma estilização ocidental pode, simultaneamente, oferecer um quadro
coerente da história contemporânea da China e tornar evidentes as
limitações da própria abordagem. É conveniente, neste sentido,
lembrar que o renomado economista Jinglian Wu lança mão de autores
e scholars ocidentais para expor, não apenas as reformas econômicas,
mas também as mudanças sociais e políticas do País.
O clássico modelo de mobilização social política em seqüência
ao crescimento econômico não pode ser descartado completamente
na análise da história chinesa recente. Partindo de uma sociedade
majoritariamente camponesa, pressionada por escassez quase
permanente e destituída de instituições comparáveis ao estado de direito
do continente europeu, é unânime o diagnóstico de que a liga social
essencial daquela sociedade era o guanxi, uma espécie de sócioeconomia
de reciprocidade. Variante em escala monumental do que, no
Ocidente, é registrado como organização clientelista da vida
comunitária. Com todas as peculiaridades locais garantidas, são os
costumes informais da troca de favores e das regras de conexões que
19
Cf. Melanie Manion, Corruption by Design – Building Clean Government in
Mainland China and Hong Kong, Harvard University Press, 2004, particularmente
capítulo 3.
30
Wanderley Guilherme dos Santos
asseguram a sobrevivência nas áreas rurais e no que então havia de
urbano na China.
20
É a instituição, por assim dizer, do guanxi, que
sobreviverá à revolução comunista e facilitará a incorporação das
associações empresariais privadas na estrutura do estado socialista
remodelado.
21
Ao final, irá absorver empresários como membros do
Partido comunista, muitos dos quais ex-membros que se
transformaram em capitalistas. As relações entre o PC chinês e as
organizações privadas permanecerão tensas, sendo as organizações
objeto de regulação e vigilância permanente.
22
A política de clientela, predominante durante períodos de
controle oligárquico do poder, persiste em estágios de transição,
quando a modernização da economia e da administração estatal não
corresponde à instauração do estado de direito e da livre e pública
competição política. Conforme diagnóstico que o presente autor
subscreve, o projeto de socialismo de mercado da China “contém nele
próprio uma contradição básica entre a transformação econômica e a
imobilidade política”.
23
O afastamento formal do Partido das
estruturas do governo e do Estado não significou efetivamente uma
descontração nos controles e vigilância do Partido em relação à vida
econômica, social e política. A velocidade da modernização acelerou
20
Cf. o excelente volume editado por Thomas Gold, Doug Guthrie e David Wank,
Social Connections in China – Institutions, Culture, and the Changing Nature of
Guanxi, Cambridge University Press, 2002.
21
Cf. Scott Kennedy, The Business of Lobbying in China, Harvard University Press,
2005.
22
Cf. Bruce J. Dickson, Red Capitalists in China – The Party, Private Entrepreneurs,
and Prospects for Political Change, Cambridge University Press, 2003; as dificuldades
antepostas ao surgimento e funcionamento de organizações civis autônomas estão
bem estudadas em Gordon White, Jude Howell and Shang Xiaoyuan, In Search Of
Civil Society – Market Reform and Social Change in Contemporary China, Oxford
University Press, 1996.
23
Cf. o excelente estudo de Gordon White, Riding the Tiger –The Politics of Economic
Reform in Post-Mao China, Stanford University Press, 1993, p.12.
China e o Autocratismo Esclarecido
31
o aparecimento dos problemas que costumam acompanhá-la e em escala
de magnitude bastante considerável. A invasão urbana, se assim
podemos chamá-la, decorrente da suspensão dos controles sobre
movimentos populacionais internos e do diferencial de salários entre
o mercado urbano e o mercado rural, torna cada vez mais difícil
registrar tudo que acontece na sociedade, em particular a emergência
de movimentos reivindicatórios. Em trajetória estudada por Simon
Kuznets, e aceita como razoável hipótese explicativa para os
movimentos reivindicatórios chineses por Jinglian Wu, acentuam-se
os indicadores de desigualdade social, em renda, oportunidade de
trabalho e condições de vida. A descentralização fiscal, requisito para
aumentar a eficiência na alocação de recursos, produz novas
oportunidades de organização autônoma, reduzindo a capacidade
controladora do Partido e aumentando a tensão nas relações entre o
Partido, as estruturas administrativas do Estado e do governo.
24
A segurança política do Partido Comunista depende de
continuado crescimento econômico a taxas elevadas, capaz de impedir
uma explosão do desemprego, especialmente urbano, explosão que
configura uma das facetas de instabilidade social. Abortar a todo custo
a difusão de estabilidade social é o objetivo fundamental do Partido
Comunista. Ao traduzir o critério da “prática” na qualidade do
desempenho, bem ou mal sucedido, Deng Xiaoping absolveu o
“interesse” de qualquer estigma pecaminoso a priori. Perseguir o
próprio interesse não é em si mesmo prejudicial à ordem socialista e,
se é bem sucedido, a ordem se consolida. Caso contrário, o próprio
24
Cf. Shaoguang Wang, “The Rise of the Regions: Fiscal Reform and the Decline of
Central State Capacity in China”, in Andrew G. Walder (Ed.), The Waning of the
Communist State – Economic Origins of Political Decline in China and Hungary,
University of Califórnia Press, 1996.
32
Wanderley Guilherme dos Santos
mercado (os outros interesses) se encarregará de penalizá-lo. O mercado,
de inimigo, passa a coadjuvante das políticas do Partido.
Em volume de título provocativo, Susan Shirk expõe as várias
regras que, segundo ela, o Partido Comunista segue e é obrigado a
seguir tendo em vista evitar a difusão da instabilidade social.
25
Entre
elas encontra-se, talvez essencial, a de evitar instabilidade social em
larga escala : “Eles (os líderes chineses) utilizam o eufemismo
‘estabilidade social´ para convencer o público chinês que o governo
do Partido Comunista é essencial para manter a ordem e a
prosperidade, e que sem ele um país tão grande quanto a China cairia
na guerra civil e no caos. A democracia é uma impossibilidade em um
país tão grande quanto a China, dizem os líderes”.
26
Não obstante, o número de conflitos, demonstrações e passeatas
revela tendência crescente a um ritmo acelerado. Contra as hipóteses
anti-modernização, os últimos vinte e cinco anos chineses têm revelado
que o crescimento econômico em uma sociedade majoritariamente
rural pressiona por urbanização †e o governo chinês terminou por
liberar o tráfego populacional interno , gera diferenciação ocupacional
e, com isso, estratificação hierárquica, diferenciais de renda, interesses
conflitantes e desigualdade entre grupos e regiões. Todas estas
conseqüências derivadas do modelo de modernização estão sendo
observadas na China, sendo, inclusive, reconhecidas por seus principais
scholars. Jinglin Wu, já citado, um dos mais famosos economistas
chineses, admite a nova estratificação da sociedade chinesa e até arrisca
algumas análises sociológicas. Entre elas a que explica o crescimento
dos movimentos reivindicatórios pela aceleração das expectativas da
população com melhor poder aquisitivo, concordando com ninguém
25
Cf. China – Fragile Superpower, Oxford University Press, 2007.
26
ob. cit., p.53.
China e o Autocratismo Esclarecido
33
menos do que Samuel Huntington. Vale a citação: “De acordo com
Samuel Huntington, o processo de modernização implica em uma
mudança de uma sociedade tradicional, onde o fluxo de informação
está naturalmente entupido, para uma sociedade em transformação na
qual a informação pode fluir livremente. Como conseqüência, mesmo
aquelas pessoas que vivem em regiões atrasadas podem se informar como
outras pessoas, neste mundo multifacetado, aproveitam a vida. Em tal
situação, a expectativa das pessoas quanto à melhora em seus padrões de
vida pode aumentar substancialmente. Quando essas expectativas não
podem ser atendidas, ou o são incompletamente, as pessoas se tornam
descontentes”.
27
Mais do que adesão à teoria norte-americana das
expectativas crescentes, Wu está subscrevendo a brilhante tese de Alexis
de Tocqueville, em sua análise sobre O Antigo Regime e a Revolução
Francesa, segundo a qual, depois de longo período de estagnação,
quando a economia de uma sociedade começa a crescer materialmente,
as aspirações sociais também crescem, só que a taxas bastante superiores
à da capacidade da economia em atendê-las. A Revolução Francesa não
teria resultado de um empobrecimento da população, mas, ao contrário,
de um progresso relativo, embora muito inferior ao que essa população
desejava. Compreende-se, assim, o progresso paralelo da renda per capita
chinesa e das manifestações de descontentamento. Daí a importância
fundamental de outro requisito induzido por Susan Shirk, na verdade
tornado público em documentos do Partido e em discursos de seus
líderes, a unidade da liderança partidária e a cautela para que não se
revelem em público as divergências internas.
Ao recato da atual liderança chinesa corresponde, entretanto,
extraordinário aprofundamento da vigilância social. Mesmo os
27
Cf. Wu, ob. cit., p. 387.
34
Wanderley Guilherme dos Santos
experimentos locais de eleições competitivas, isto é, competição entre
quadros do Partido (ao contrário das anteriores candidaturas únicas)
ou entre quadros do Partido e membros da elite local, quase sempre
associados ao Partido por guanxi, são acompanhadas com muito
cuidado.
28
A autonomia das repartições de governo devem, igualmente,
ser interpretadas com modéstia, pois o Partido observa se as diretrizes
partidárias estão sendo obedecidas. Há autores cuja descrição da discreta
supervisão partidária dos assuntos de governo e das manifestações
sociais (organizacionais e individuais) é tão viva e extensa que sugere a
hipótese, em analogia ao shadow cabinet britânico, de que o Partido
Comunista Chinês tenha se transformado em uma espécie de shadow
State, pronto para intervir ao menor sinal de violação dos órgãos de
administração pública das diretrizes partidárias.
29
III
Havendo ou não se convertido em um shadow State, o Partido
Comunista Chinês, havendo substituído o princípio da igualdade pelo
do “interesse”, será capaz de, utilizando somente os recursos da
cooptação e coerção, e mantendo sólida unidade partidária em torno
da sobrevivência no poder, evitar para sempre a instabilidade social?
Se um país tão grande como a China não poderá ser uma democracia,
conforme diagnóstico de Deng Xiaoping, será viável como uma
autocracia desenvolvimentista, regulando e vigiando uma sociedade
crescentemente complexa e rica?
28
Cf., sobre as eleições locais, Elizabeth Perry, Merle Goldman (Eds.), Grassroots
Political Reform in Contemporary China, Harvard University Press, 2007.
29
Cf. Minxin Pei, China s Trapped Transition – The Limits of Developmental Autocracy
Harvard University Press, 2006.
Mesmo considerando a relevância, embora modesta, das eleições
locais, o problema é muito diferente quando se reflete sobre instituições
representativas centrais. É sabido que a “representatividade per capita
dos parlamentos é tão menor quanto maior for a população ou o
eleitorado representado. Dou, abaixo, um gráfico e anexo uma tabela
correspondendo à “representatividade per capita” dos parlamentares
segundo a ordem crescente da população dos países listados.
Parlamento como proporção da população
A distância entre os interesses dos representados e até mesmo a
capacidade de se informar dos representantes, sugere, fortemente, a
existência de limites físicos e institucionais para a viabilidade de sistemas
representativos. Qual deveria ser a magnitude do parlamento inglês?
Ou o brasileiro? A multiplicação de interesses em sociedades complexas
de mercado gera conflito entre eles e isto é inevitável. Bem analisado, o
conflito de interesses está contido no próprio processo de divisão
China e o Autocratismo Esclarecido
35
36
Wanderley Guilherme dos Santos
social de trabalho. Em sociedades subdesenvolvidas, pobres e
majoritariamente rurais, a estabilidade social foi historicamente
assegurada ou quando se instalava duradoura ditadura (casos do México
e da Espanha) ou quando um sistema autoritário instaurava fóruns de
conciliação de interesses, arbitrados pelo Estado coercitivo (os exemplos
aqui seriam o Brasil de 1937 a 1945 e o fascismo italiano). Em todos os
casos, foi impossível a continuidade do regime autocrático muito tempo
depois de iniciado moderno processo de industrialização e suas
conseqüências. Com o crescimento das reivindicações e dos interesses,
entraram em declínio as ideologias antidemocráticas que sustentaram
os regimes autocráticos: o fascismo, o franquismo, o getulismo, o priismo
mexicano). A decadência do marxismo como cultura cívica chinesa está
sendo, ao que parece, substituída por um recrudescimento do
nacionalismo. O nacionalismo espanhol ajudou a fazer renascer o
nacionalismo basco e galego; o nacionalismo italiano está testemunhando
as aspirações autonomistas do Sul da Itália, e outros exemplos poderiam
ser mencionados. Será o nacionalismo de um partido único simbólica e
organizacionalmente suficiente para dar conta dos problemas
institucionais de um país com mais de 1 bilhão e meio de habitantes? Se
a democracia representativa não é viável, o autocratismo iluminado será?
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n.6, 2001, concluding remarks.
ZHIYUE, Bo. China Elite Politics – Political Transition and Power
Balancing, London: World Scientific, 2007.
40
Wanderley Guilherme dos Santos
ANEXO
Países em ordem crescente de População (milhares),
Tamanho do Parlamento e Tamanho do Parlamento como
percentagem da população
China e o Autocratismo Esclarecido
41
42
Elaboração LEEX.
Fontes: Relatório Banco Mundial, Relatório dos Países da OECD,
Mackie, Thomas T. & Rose, Richard (eds.).The International Almanac of
Electoral History.
3ª edição, London: Macmillan, 1991;
Mackie, Tom & Rose, Richard (eds.). A Decade of Election Results: Updating
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Centre for the Study of Public Policy: University of Strathclyde, 1997;
Mainwaring, S. and Scully, T. Building Democratic Institutions . Party Systems
in Latin America. Stanford University Press: Stanford, California, 1995.
LeDuc, Lawrence; Niemi, Richard G; Norris, Pippa (editors). Comparing
Democracies - Elections and
Voting in Global Perspective. United Kingdom: SAGE Publications, 1996.
Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1996. Do Plano ao Mercado.
Washington: Banco Mundial, 1996
OBS: Os valores dos tamanhos dos parlamentos referem-se a última eleição
conferida (a partir da 2ª metade dos anos 80).
Wanderley Guilherme dos Santos
O CENTRO DO MUNDO
Mauro Santayana
43
Na China, viste, observaste e amaste o Brasil, que cresce em
nossa fé quanto mais conhecemos ou convivemos com outros
povos, grandes e pequenos. Descrever outros povos é, hoje,
escrever sobre o Brasil.
Osvaldo Aranha, carta a Maria Martins, como prefácio a
“Ásia Maior, O Planeta China” (Civilização Brasileira, 1958).
“A razão pela qual o Sábio é capaz de olhar o mundo como uma
família e a China como uma pessoa (o que é verdadeiro como natureza
humana em um homem há de ser verdadeiro para todos) é que ele não cria
regras arbitrárias; procura, por outro lado, conhecer a natureza humana,
definir as inclinações dos homens e chegar a uma noção bem clara do que
seja bom ou mau para a humanidade.”
Ao iniciar essas reflexões sobre a China, lembro estas palavras
de Confúcio, no Livro dos Rituais, e recorro ao conselho ético de
Spinoza: non ridere, non lugere, neque detestare; sed intelligere. Essa é
a postura que devemos ter, ao tratar de qualquer assunto. Quando
procuramos entender, não devemos rir, lisonjear ou detestar, o que,
por outro lado, não nos impede de expor a opinião que possamos ter
sobre a realidade que analisamos.
44
Mauro Santayana
Nós, jornalistas, somos especialistas em idéias gerais,
conforme a definição de Otto Lara Resende. É nessa
superficialidade, de impressões colhidas em meu tempo, que se
fundam esse testemunho. Para suas falhas, peço a indulgência dos
debatedores.
Poucas são, na filosofia do Ocidente, definições do
humanismo como a de Confúcio, com que abro este texto. A partir
do ser humano, do indivíduo, o Mestre – que viveu no século
anterior ao de Sócrates – estabelece a regra para entender a totalidade
dos homens e das nações, e, ao entendê-la, saber o que lhes é bom
e o que lhes é mau.
O trecho é uma lição, e as lições podem ser ou não assimiladas.
Nele podemos ver a receita para a paz - o que é bom para as nações
e para a família das nações - a partir da inteligência dos homens. É
improvável que os textos atribuídos a Confúcio fossem conhecidos
dos humanistas gregos, entre eles, Sócrates, cujo pensamento se
assemelha ao do sábio chinês. O conhecimento dos homens – que
começa em si mesmo, conforme a máxima socrática – corresponde
ao imperativo necessário, a fim de que os legisladores estabeleçam
as normas para a solução dos dissídios, seja entre os indivíduos ou
entre as nações. Às normas e aos ritos que conduzem a seu
cumprimento, chamamos política. Alguém pode considerar a
própria forma de ver o mundo como a melhor ou a mais correta,
mas isso não deve impedir a análise da realidade em cada caso.
Montesquieu reproduz, em seus Pensées e Le Spicilege, os
encontros que teve, em sua emblemática viagem a Roma, com o
padre Fouqué, que passara vinte e um anos (de 1699 a 1720) na
China. O escritor o conheceu em janeiro de 1729, quando as
memórias do sacerdote ainda se encontravam frescas:
O Centro do Mundo
45
“O palácio do imperador é uma teia de aranha, e ele se encontra no
meio, como a aranha. Ele não pode mover-se, sem que tudo se mova, e
ninguém se pode mover, sem que ele também se mova. Os eunucos
entendem o príncipe de tal maneira que eles sabem precisamente o
valor de cada gesto, de cada tom e até de seus pensamentos íntimos,
porque o estudam sem interrupção.”
A imagem do Imperador como a aranha no centro de sua teia
lembra a do mito da China no centro do mundo, o que lhe deu o
título de Império do Meio. Esse mito explica também no símbolo
do Tai Chi, com a representação gráfica do Yin e do Yang, em
rotação acelerada sobre o seu próprio eixo. O resultado é um círculo
dentro do outro. A China como um mundo à parte, dentro do
nosso mundo.
Essa idéia de um mundo à parte, talvez tenha feito com que,
nos dois mil e trezentos anos que separam a unificação do Império e a
revolução industrial de Deng Xiaoping, a China tenha parecido imóvel
aos olhos do Ocidente.
A atitude dos poderosos e intelectuais chineses, em relação aos
ocidentais, era de desconhecimento e algum desdém. Eles se
encontravam bem longe, eram brancos, logo diferentes, e adoravam
deuses menores. A mesma atitude era a dos ocidentais com relação aos
chineses. Eram amarelos, encontravam-se no outro lado do mundo, e
professavam outras crenças.
“Ele (o padre Fouqué, lembra Montesquieu) me disse que, estando um
dia, em uma sala, à espera de ser recebido pelo Imperador, ouviu um
chinês dizer ao outro: “veja essa gente ali, eles são piores do que os
nossos bonzos” (LE SPICILEGE, p. 481).
46
Mauro Santayana
A História Moderna da China é um dos melhores apólogos
sobre o colonialismo e a resistência nacional dos povos. Ela começa
com o confronto de duas obstinadas manifestações de orgulho nacional,
a dos britânicos e a do Império do Meio, tendo os interesses econômicos
como razão objetiva. O comércio marítimo direto do Ocidente com
a China começara com os portugueses, que, na segunda metade do
século 16, aportaram em Macau e obtiveram permissão para ali
permanecer, enquanto a carga, destinada ao Japão, secasse por se ter
encharcado durante a longa travessia. Os portugueses acabaram por
instalar-se em Macau, embora de maneira precária, iniciando trocas
comerciais discretas, para transformar o enclave no importante
empório asiático e futura colônia. A partir de 1684, o comércio passou
a ser permitido formalmente aos ocidentais, com fortes restrições.
Somente em 1757, o governo autorizou a construção de entrepostos
em pequena área, junto à foz de um rio, nas proximidades de
Guangzho.
Em 1792, o governo inglês decidiu enviar à China um de seus
mais bem sucedidos diplomatas, Lorde George Maccartney, à frente
de numerosa embaixada de 700 homens. Essa missão, que só viajou no
ano seguinte, passou pelo Rio de Janeiro, a fim de abastecer-se, antes
de contornar o sul da África rumo ao Oriente. O malogro da expedição
é conhecido, e foi minuciosamente narrado por Alain Peyreffite. O
principal objetivo era o estabelecimento das relações diplomáticas
regulares entre os dois maiores impérios daquele tempo, com a abertura
de uma embaixada em Pequim. A Inglaterra acabara de perder as
colônias norte-americanas, com a independência dos Estados Unidos,
e pretendia superar a perda com maior projeção rumo ao Oriente,
onde já mantinha possessões no território da Índia. Além do
estabelecimento das relações oficiais, o governo britânico reivindicava
O Centro do Mundo
47
o fim das restrições ao comércio e a aquisição de pequena ilha, perto
do porto de Chuen, que serviria de residência para seus mercadores,
entreposto e despacho de mercadorias.
O embaixador britânico levava ricos presentes de seu soberano
ao Imperador Quianlong, que os menosprezou. Quando o emissário
britânico se recusou à reverência tradicional diante do Imperador, de
prostrar-se no chão e tocar a cabeça no solo – o kou-tou – a missão já
se encontrava malograda. O imperador afirmou que a China era auto-
suficiente em tudo, e as relações comerciais restritas com o Ocidente
significavam mera concessão de sua generosidade. Os ingleses
insistiram, anos depois, com outra missão, chefiada por Lorde
Amherst. William Amherst teve a mesma sorte de Macartney. De
volta à Inglaterra, o navio que o conduzia parou na Ilha de Santa
Helena para refresco. O Embaixador – como era comum com todas
as autoridades inglesas que por ali passavam - visitou o prisioneiro
Napoleão Bonaparte, recluso no meio do Atlântico desde sua
destituição, e conversaram bastante sobre a China. Foi então que o
grande chefe militar pronunciou a frase poderosa: “Quand la Chine
s’eveillera, le monde tremblera”.
A China era o Grande e Celeste Império e continuava sendo o
país mais populoso do mundo. A Muralha constituía proteção suficiente
contra os meios bélicos de seus confinantes de então. Os conflitos
internos ali mesmo se resolviam, não obstante as terríveis desigualdades
sociais, com a miséria e a fome endêmica em algumas regiões e, em
outras, provocadas pela inclemência das secas ou pelas inundações. A
China podia ser vista como uma dessas imensas nuvens brancas, belas
e lentas, que guardam em seu interior massas de gelo e energia, que,
como Napoleão disse a Lorde Amherst, estão prontas a explodir em
temporais e ciclones.
48
Mauro Santayana
Na sua obra prima, “L’Esprit des lois”, Montesquieu volta a
cuidar da China:
“Os legisladores da China fazem mais ( do que Licurgo, em Esparta,
M.S.). Eles confundem a religião, as leis, os costumes e as maneiras.
Tudo isso faz a moral, tudo isso faz a virtude. Os preceitos que se
referem aos quatro pontos constituem o que chamamos de ritos. É na
observação exata desses ritos que o governo chinês triunfa. Passa-se a
juventude a aprendê-los e toda a vida a praticá-los. E como eles envolvem
todas as pequenas ações da vida, uma vez que existem os meios de fazê-
los cumprir exatamente, a China é bem governada. Duas coisas
puderam facilmente gravar os ritos no coração e no espírito dos
chineses: uma, a sua forma de escrever, extremamente composta, o
que faz com que, durante grande parte da vida, o espírito esteja
unicamente ocupado desses ritos, porque é preciso aprender a ler com
os livros e pelos livros que os contêm; a outra que os preceitos dos
ritos, nada tendo de espiritual, mas simplesmente regras de uma prática
em comum, é mais fácil de convencer e tocar os povos do que alguma
coisa de intelectual. Os príncipes que, em lugar de governar pelos
ritos, governam pela força dos suplícios, querem conseguir com eles o
que não está em seu poder: instituir os costumes. Os suplícios arrancam
da sociedade um cidadão que, tendo perdido seus costumes, viola as
leis, mas se todos perderam os costumes, como os restabelecerão?”
(MONTESQUIEU, XIX, p. 17).
Uma das chaves para explicar a China, ainda de acordo com a
análise do grande pensador político, é a observância dos ritos. O
respeito aos ritos e sua prática são a argamassa das sociedades
aparentemente – e só aparentemente - estáveis, imutáveis, como a da
O Centro do Mundo
49
China. Os ritos podem mudar, e continuar essencialmente os mesmos,
de acordo com os fundamentos arcaicos e objetivos nacionais. Os
lemas políticos da China de nossos dias são legados dos sábios e
imperadores ancestrais. O príncipe é substituído pelo partido, de
acordo com a tese de Gramsci, em seus estudos sobre Maquiavel e o
Estado moderno. Para onde se move o partido, move-se a nação. O
governo, como antes o Imperador, está no centro da teia. O que
pretendia Mao – e de certa forma conseguiu – foi inverter o
movimento. Em sua proclamação de julho de 1919, na continuação
do processo iniciado com os protestos estudantis de 4 de Maio do
mesmo ano, é a teia que deve mover a aranha:
“O mundo somos nós, a nação somos nós, a sociedade somos nós. Se
não falarmos, quem falará? Se nós não agirmos, quem agirá?”
Com essa sintética reflexão, Mao dá início ao grande movimento
popular pela independência real da China e sua inserção revolucionária
no mundo moderno. O isolamento fizera com que, durante séculos,
a perplexidade ocidental diante do Império Celeste desse à Europa a
falsa noção de que a China era estranha à realidade do mundo. Uma
grande ilha, onde nada ocorria, enquanto a história se fazia do lado
de fora.
O CASULO SE ABRE
Há duas formas de tentar entender o passado de uma nação.
Uma delas é o exame da cronologia dos fatos; outra, meditar as idéias
que os antecederam. No caso da China, é bom desconfiar dos
estereótipos. O que a define como um império imóvel, conforme o
50
Mauro Santayana
título do ensaio de Alain Peyreffite, não corresponde exatamente à
realidade. Uma situação, quando vista de longe, pode parecer em
descanso; mas quando dela nos aproximamos, tudo muda. A China
sempre se moveu, sobretudo em si mesma, na pluralidade de seus
povos, na diversidade cultural, nos avanços e recuos territoriais dos
Estados interiores, no confronto entre as dinastias regionais que
disputavam a hegemonia, e sob a eventual ocupação estrangeira, como
ocorreu durante o Império Mongol e o domínio britânico. A
civilização chinesa, que já existia há quatro ou cinco milênios, tem
singular relação com o tempo. A ponte entre os povos da China e a
Eternidade é e sempre foi o Estado. Os chineses não planejam para a
próxima semana, mas para o próximo milênio. Pode-se mesmo dizer
que, no imaginário nacional, eles contam com planos alternativos,
que se substituem, conforme as circunstâncias, mas todos subordinados
à razão principal da permanência. Na adversidade, utilizam-se da
astúcia para continuar o seu caminho.
A FORÇA DOS DOIS IMPÉRIOS
Em seu bem documentado estudo sobre a origem e o
desenvolvimento dos estados, The History of Government, S.E.
Finner faz interessante paralelo entre os dois maiores impérios da
antiguidade, o romano e o chinês. Finner se detém na centralização
do poder na China, com a fundação do Império de Han, em 221 a.C,
por Cheng, rei de Ch’in, depois da conquista final do território. Com
o título imperial de Shih Huang-ti, o jovem monarca – que havia
formalmente ascendido ao trono aos 13 anos, e suportado a incômoda
regência do amante de sua mãe até a maioridade, em 238, a.C. – se
tornou o homem mais importante da história dos chineses. Ao assumir
O Centro do Mundo
51
o poder, mandou matar o novo amante da mãe e enviou o regente, Lu
Pu Wei para o exílio. Nos 17 anos que se seguiram, ele se livrou dos
seis soberanos rivais e, finalmente, uniu o vasto território em um só
Império. Combateu os seguidores de Confúcio, mandando queimar,
vivos, 460 dos discípulos do Mestre, morto 250 anos antes, e
determinou que suas obras fossem incineradas. Conseguiu unir o
Império e, embora essa unidade tenha sido eventualmente rompida
nos séculos seguintes, serviu de marca e compromisso nacional
permanente. Huang-ti aumentou a Grande Muralha, ao preencher os
trechos vazios, fortaleceu o Exército e estabeleceu rígida administração
centralizada. Todo o poder estava em suas mãos, e o exercia como o
Filho do Sol, mas o governo estava a cargo de devotado Primeiro-
Ministro, Li Ssu. Coube a este último criar um sistema administrativo
baseado em centros graduais de poder, de modo piramidal. A partir
de seu sucessor, durante o longo período Han, o papel do Imperador
foi cada vez mais ritual do que executivo.
O sistema administrativo era superior ao dos romanos em
muitos aspectos. Finner mostra que o império chinês se apoiava na
burocracia, constituída e administrada pelos senhores feudais. Os
exércitos, formados , em toda a sua hierarquia, pelos pobres e servos,
eram ferreamente controlados pelos civis. Em Roma, a situação era
diferente, uma vez que, com poucas exceções, os soldados estavam
comandados pelos patrícios, que participavam pessoalmente dos
combates, e, ao mesmo tempo, exerciam o governo civil. Uma dessas
exceções foi o plebeu Caio Mario, vencedor da Guerra de Jugurta e,
por seis vezes, eleito cônsul. Finner nota que, se, em Roma, conforme
o brocardo conhecido, inter arma silent legis, na China, inter legis
silent
arma. Os dois impérios viviam no apogeu. De acordo com um
censo do ano 2 da era cristã, havia na China 57.671.400 pessoas, sobre
52
Mauro Santayana
as quais incidiam os tributos. Isso significa que o total dos habitantes
passava de 70 milhões. Se, nos censos modernos, com todas as
facilidades de comunicação, os números são sempre subestimados, é
de se deduzir que, naquele tempo, milhões ficassem fora da contagem
oficial. A grande diferença está na fragmentação do Império Romano,
em conseqüência das invasões bárbaras, e na relativa coesão do Celeste
Império, durante a nossa Idade Média.
A MURALHA E O CANAL
Os dois grandes símbolos da engenharia chinesa são a Muralha
e o Grande Canal. Nesse particular, sua civilização se contrapõe
fortemente à egípcia, com as pirâmides. A Grande Muralha, sendo
fortaleza linear, é a expressão soberana do direito à liberdade; o
longo canal, que liga o Norte ao Sul, serve à unidade e à coesão dos
povos – além de favorecer a irrigação de grandes áreas, e possibilitar
duas colheitas anuais de arroz. Essas obras revelam o projeto nacional
chinês, ao mesmo tempo transcendental – uma vez que ultrapassa os
limites do tempo e das gerações – e profundamente arraigado à
realidade de cada época. O caso do Grande Canal é singularmente
emblemático. Os chineses iniciaram a sua construção no século IV
antes de Cristo e só o foram terminar no século XIV depois de
Cristo, ou seja 14 séculos na construção. Poderíamos arriscar a
entender a história da China, tendo como eixo essas duas fantásticas
obras como a de um projeto político semelhante ao desenho genético
dos seres vivos. Cada geração herda das anteriores essa consciência e,
em cada uma delas, surgem os homens necessários à direção
continuada do plano imemorial, dentro daquela lição de Confúcio
que citamos na abertura destas notas.
O Centro do Mundo
53
Nenhum outro povo, ao longo da História, foi tão ofendido
pelos estrangeiros, sob a força das armas, quanto o chinês, nos dois
últimos dois séculos. Tal como Ciro da Pérsia fizera para a definitiva
derrota de Cresus, o mítico rei da Lídia, os ingleses começaram
buscando promover a desmoralização dos chineses. Os persas
introduziram os jogos e a prostituição entre os lídios; os ingleses
disseminaram entre os chineses o vício do ópio. Quando o governo
intensificou a repressão ao tráfico e ao consumo do narcótico, os
ingleses lhes moveram duas guerras (a segunda, com o concurso dos
franceses), em nome da liberdade do comércio. As duas guerras do
ópio, com a derrota dos chineses, foram seguidas pela colonização
dissimulada do antigo e altaneiro povo, mediante acordos draconianos
com os vencidos. O malogro dos entendimentos diplomáticos entre
os dois países no século anterior não justificava o que depois ocorreu.
Enfim, os chineses estavam em sua própria casa. Não viajaram duas
vezes a Londres para negociar a instalação de uma embaixada na
Inglaterra. Era seu direito manter o isolamento, preservar sua cultura
e sua autodeterminação. Tinham direito ao que afirmara Qianlong: a
China se bastava, não necessitava importar nada, não queria expandir
um comércio que mantinha por concessão de sua boa vontade.
Desde o fim do século XIX, o Japão, aproveitando-se da
fragilidade chinesa, havia iniciado a expansão rumo ao continente.
Primeiro, na divisão da Coréia, mais tarde, com o fim da primeira
guerra sino-japonesa com a ocupação de Formosa e de parte da
Manchúria. Em 1905, ao vencer os russos, os japoneses se apoderaram
de Port Arthur, então em poder dos derrotados. Em 1931, Tóquio se
apoderou de toda a Manchúria. Em 1937, aproveitando-se da cisão do
Kuomintang, os japoneses ocuparam o grande porto de Xangai, depois
54
Mauro Santayana
de tenaz resistência chinesa, e avançaram rumo a Nanquim, onde
encontraram um exército de 300.000 homens, já exausto e moralmente
abatido. Foi-lhes fácil obter a capitulação dos resistentes, que esperavam
a benevolência dos vencedores. O que se viu foi o contrário. O príncipe
Asaka, que comandava a operação, determinou o fuzilamento de todos
os prisioneiros no dia seguinte à rendição. Na manhã de 14 de
dezembro de 1937, milhares de chineses se prostraram no solo,
implorando pela vida, e foram vilmente massacrados pelos vencedores.
Mais do que as ofensas sofridas diante dos ocidentais, o que
entope a garganta da China é a memória dessa crueldade sem limites.
Por mais se esforcem os dirigentes dos dois países em busca de uma
entente asiática, será quase impossível apagar do coração dos chineses
a imagem de seus soldados, ajoelhados diante dos vencedores, com
lenços brancos amarfanhados, em grupos de doze, pedindo clemência
antes dos disparos. Finda a guerra, com a derrota nipônica – para a
qual contribuíram - os chineses esperavam que o Japão fizesse sua
contrição, confessando a ignominiosa culpa no assassinato frio dos
prisioneiros desarmados. Essa contrição ainda está por fazer-se.
DOS MARES DA CHINA NÃO MAIS VIRÃO AS
QUINQUILHARIAS
(MURILO RUBIÃO - O PIROTÉCNICO ZACARIAS)
A humanidade, e, dentro dela, as civilizações conhecidas, é um
jogo dialético permanente. Ao corromper parcela dos chineses,
mediante o ópio, os ingleses e franceses reacenderam o orgulho nacional
do povo, preservado em alguns homens predestinados que, em certo
momento, passaram à ação. Esse processo dialético não é instantâneo.
Em algumas estações históricas, leva decênios a fim de madurar-se; em
O Centro do Mundo
55
outras, séculos. Da mesma forma, os colonizados aprendem com os
colonizadores. Durante o processo, na medida em que os colonizados
se fortalecem com o conhecimento e a consciência de nação, os
colonizadores se enfraquecem. Nesse instante histórico se dá a ruptura
e, dependendo das circunstâncias, os papéis se invertem. Essa é uma
outra evidência histórica que encontra amparo na filosofia chinesa do
Tao e na dialética do Yin-Yang.
Os chineses, salvo o curto período (em termos de sua longa
história) de submissão aos poderes europeus, sempre mantiveram
estados fortes, mesmo quando o território se encontrava dividido em
monarquias autônomas e durante o Império Mongol. O que fica claro,
no exame de seu comportamento, é a consciência de que a defesa do
espaço cultural, econômico e territorial depende diretamente da coesão
da comunidade, que só o estado presente e forte pode assegurar. O
grande segredo chinês em nosso tempo – de acordo com a sua filosofia
do yin-yang – tem sido o de combinar a extensa mão-de-obra
disponível, sua disciplina de trabalho e vasto mercado interno, a fim
de atrair os investimentos estrangeiros. Não se tratou de abertura
improvisada. Com Deng Xiaoping, cuidaram do desenvolvimento da
produção rural, a fim de liberar trabalhadores do campo para as
cidades. Investiram fortemente na educação básica e universitária e
criaram um sistema econômico original, de capitalismo de estado com
participação privada, sob rígido controle governamental.
Aproveitaram-se, e bem, da globalização neoliberal, submetendo-a a
seus interesses. O extraordinário desempenho econômico supera todas
as experiências anteriores, conforme a análise dos especialistas.
O que fica claro, no exame de seu comportamento, é a conclusão
de que a defesa do espaço nacional depende diretamente da coesão da
comunidade, que só um estado independente pode assegurar. Metáfora
56
Mauro Santayana
para várias idéias, a frase de Deng Xiaoping se aplicou ao Estado: não
importa a cor do gato, o importante é que apanhe o rato. Não importa,
nessa visão de mundo, que o estado seja dessa ou daquela natureza: o
importante é que haja estado capaz de identificar a vontade nacional e
conduzi-la. A vontade nacional sempre corresponde à necessidade
básica, que é a da sobrevivência do grupo e preservação de sua
autonomia.
A era de Mao – iniciada com o fim da monarquia e a luta pela
soberania nacional – correspondeu à imperativa necessidade histórica.
O rígido sistema político, com o controle quase totalitário da
sociedade para assegurar a reforma agrária, a expropriação dos meios
de produção industrial e a integridade do território continental,
com a exceção dos enclaves de Hong-Kong e Macau e da Ilha de
Formosa. Mao cuidou de não usar de seu poder militar para invadi-
la, agindo com prudência, a fim de não provocar as grandes potências
que protegiam Chiang Kai-shek, mas manteve-o sob pressão. Quanto
a Hong-Kong e Macau, convinha-lhe respeitar os tratados
internacionais que cediam os territórios aos ingleses e portugueses.
Os chineses sabem esperar.
Do ponto de vista interno, a derrota de Chiang Kai-shek
também correspondia à necessidade histórica. O líder do Kuomintang
fora soldado do Japão, e seu desempenho na resistência ao inimigo
sempre foi colocado em dúvida. Além disso, pertencia a uma família
poderosa e se somava aos latifundiários contra os comunistas, mesmo
quando, por imposição dos aliados, a eles se reuniu na resistência contra
os japoneses. As relações com a União Soviética e os aliados obrigaram-
no a uma aliança com os comunistas, contra os japoneses – mas tão
logo o Japão se rendeu aos aliados, rompeu-se o entendimento e
eclodiu a guerra civil.
O Centro do Mundo
57
As contradições internas, favorecidas pelo envelhecimento de
Mao, também foram úteis. No jogo dialético da política, movimentos
como a Revolução Cultural e o ostracismo temporário de alguns líderes
– como ocorreu com o próprio Deng Xiaoping – constituem respostas
necessárias ao perigo da estagnação, e terminam pela ação conciliatória
dos moderados.
As grandes revoluções são destinadas ao encontro do equilíbrio
ou à derrota em prazo curto. Quando elas se fazem apenas para a
conquista da autonomia nacional, sem compromissos ideológicos
maiores, costumam consolidar-se sem retrocessos, como ocorreu na
independência dos Estados Unidos. Os norte-americanos rompiam
com a monarquia de George III, mas não com as idéias políticas da
Inglaterra. Ao contrário, delas se valeram para reivindicar a
independência e construir a República. Na origem da revolução norte-
americana se encontravam os ingleses Milton, Locke, Hobbes e Adam
Smith, uma vez que a jovem nação não dispunha ainda de pensamento
original.
No seu acelerado caminho nestas últimas décadas, a China teve
duas fontes inspiradoras: a de sua filosofia milenar, com Confúcio e
Lao-Tsé, e a do marxismo, que, tal como ocorrera, antes, com a União
Soviética, também serviu como doutrina adjetiva, a fim de assegurar a
independência e orientar a continuidade do projeto nacional. Da mesma
forma que no processo soviético, houve conflitos fortes, entre eles o
de Stalin contra Trotski; no desenvolvimento do processo chinês essas
contradições afloraram. Mao, da mesma forma que Stalin, foi capaz
de dominar as correntes e manter o timão, até a morte. Coube a Deng
buscar a conciliação histórica, ao iniciar a abertura do sistema.
Podemos ver, assim, que o fortalecimento da nação chinesa,
baseado em obras como a Grande Muralha e o Grande Canal, bem
58
Mauro Santayana
como em sua filosofia milenar; na observância dos ritos de que nos
fala Montesquieu; na resistência ao colonizador estrangeiro, e, depois,
na utilização do marxismo para a consolidação nacional e o surgimento
de poderoso capitalismo de Estado, é a culminação de um processo
coerente de afirmação nacional que está se consolidando vigorosamente,
neste início do século XXI.
A CHINA E O FIM DO FIM DA HISTÓRIA
O século XX foi visto como o século americano, pelo fato de
os Estados Unidos, a partir de seu grande parque industrial e capital
acumulado, nele liderarem o desenvolvimento tecnológico. Será
prudente ver os últimos cem anos como parte de um processo de
mudanças muito mais importantes, e com a intervenção de outros
agentes, além dos anglo-saxões. O século passado foi o século da
intensificação da barbárie e do racismo, das guerras de genocídio, do
auge e declínio do colonialismo, com as lutas de independência dos
povos na África e na Ásia; da conquista do espaço; do avanço – para o
bem e para o mal – da física atômica. A corrida enlouquecida pela
velocidade e pelo consumo, como instrumentos de afirmação
individual - o que vem sendo a marca de nossa Idade - , perturba a
razão dos homens com a ilusão da onipotência e da ubiqüidade e os
leva a atos espantosos de loucura, como as guerras de extermínio.
Nele, a razão do Iluminismo dissolveu-se nos ácidos do genocídio dos
nazistas e de seus êmulos menores. O “ariano” Hitler, fruto da
deterioração da Kulturkampf de Bismarck, foi mais selvagem do que
o “primitivo” Idi Amin. Mas o último século foi também o da esperança
de que pudessem realizar-se os ideais de igualdade e fraternidade, na
recuperação dos anseios dos sans culotte do século 18. Para o reacender
O Centro do Mundo
5959
desse sonho humanitário dos iluministas foram importantes a
Revolução Soviética, a derrota dos nazistas e fascistas, e a vitoriosa
resistência de povos aparentemente débeis, como o vietnamita, que
expulsou de seu território o exército mais poderoso do mundo. Não
foi só na Indochina que os grandes países tiveram que se curvar à
bravura dos oprimidos. Lá, a débâcle euro-americana teve dois nomes:
Dien Bien Phu (em 1954), com a derrota fragorosa dos franceses por
Nguyen van Giap, e Saigon (abril de 1975), quando o mesmo general
escorraçou o resto dos marines do território. Houve outros episódios
semelhantes, como o do frustrado ataque a Cuba (Bahia dos Porcos),
a fuga precipitada de soldados norte-americanos da Somália e, quase
tão importante quanto a derrota no Vietnã, a vitória das tropas
angolanas e cubanas contra a poderosa África do Sul na crucial batalha
de Cuito-Cuanavale, que confirmou a independência de Angola e
possibilitou a independência da Namíbia.
Foi o século da aeronáutica, com o brasileiro Santos Dumont,
do respeito ao direito dos trabalhadores (pelo menos até os anos 90),
por pressão da Revolução de Outubro; do fim do apartheid , nos
Estados Unidos, com Martin Luther King, e na África do Sul, com
Nelson Mandela. E foi o século do Brasil, que teve, no período, o
mais alto crescimento do PIB, e um dos mais altos índices do PIB per
capita. É certo que esse crescimento se deu partindo do mais baixo
patamar, diante do que já se haviam desenvolvido os Estados Unidos
e os países europeus.
Em 1989, no calor do colapso da União Soviética, o intelectual
nipo-americano Francis Fukuyama publicou um artigo sob o título
de “O fim da história”, que, em 1992, viria a transformar-se no livro
“O fim da história e o último homem.” No artigo e no livro, ele
defendia a tese de que, com o capitalismo e a democracia norte-
60
Mauro Santayana
americana, a humanidade teria atingido o coroamento da história, o
ponto mais alto de sua evolução, com o triunfo do liberalismo sobre
todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Para Fukuyama,
o século XX vira a destruição do fascismo e, em seguida, a do socialismo,
sobrando apenas, em oposição à proposta capitalista liberal, alguns
resíduos de nacionalismo, e, por outro lado, a civilização islâmica,
como fenômeno restrito a países periféricos.
Na manhã do dia 11 de setembro de 2001, a História, guiada
pelas mãos de um grupo de militantes sauditas, desmoralizou o
acadêmico. O impacto de sua fúria pôde ser visto e ouvido no mundo
inteiro, na forma de dois aviões carregados de passageiros explodindo
em gigantescas bolas de fogo sobre o maior ícone da vitória do
capitalismo global: as duas torres gêmeas do World Trade Center de
Nova Iorque.
Os homens que pilotavam os aviões naquele instante sabiam
que iam morrer, além de matar cerca de três mil pessoas. Mas não
é preciso ter estado lá naquele momento para saber que todos eles,
de uma forma ou de outra, sabiam que estavam fazendo História.
A História, estrondosamente, dizia aos que a quiseram sepultar,
que – ao contrário do que sonhavam – ela estava ali, em Nova
Iorque, para, mais uma vez, mudar o mundo. Mas os impérios são
teimosos. Tivessem entendido o recado, Bush e seus constrangidos
aliados não teriam invadido nem o Iraque nem o Afeganistão. Se o
fizeram, foi por que a sua cega arrogância continua intacta. Para
que os norte-americanos e europeus mudem, será preciso que o
mundo mude como um todo nos próximos anos. As mesmas pessoas
que acreditaram no “fim da história”, ainda acreditam que os Estados
Unidos venceram a Guerra Fria. Estão errados. A Guerra Fria
está entrando no novo século, com a nova China. Mistura de
O Centro do Mundo
61
socialismo com alta tecnologia e capitalismo de estado, a China
tem demolido, sucessivamente, os paradigmas que sustentavam o
discurso neoliberal nos anos 90. Sem privatizar ou desnacionalizar
os setores estratégicos de sua indústria e de seu sistema financeiro,
a China confirmou, de forma transparente, o papel estratégico do
Estado na condução do ambiente econômico, na melhoria das
condições sociais da população e na recuperação e fortalecimento
da soberania das Nações, quando há ainda quem defenda a doutrina
da “flexibilização” das fronteiras. Se a China dispõe de armas
nucleares, de armamento cada vez mais moderno e sofisticado e de
2,3 milhões de soldados nas suas Forças Armadas, o mais importante
é que, para cada um deles, o País já dispõe de mais de 65.000 dólares
em reservas internacionais. Com os seus produtos baratos, a China
invadiu os mercados do mundo inteiro, e, com as suas pesquisas e
sua tecnologia, está agregando valor a esses produtos. É com as
suas disponibilidades cambiais que está comprando empresas
européias e norte-americanas e revolucionando o mercado mundial
de matérias-primas. Com a fantástica demanda de suas indústrias e
de seu mercado interno, obriga os países ricos a pagar mais pelas
commodities e a transferir recursos aos países em desenvolvimento.
Isso constitui, por si só, uma revolução no comércio mundial. Da
mesma forma, aplica volumosos capitais nos países produtores de
matérias-primas, a fim de garantir os suprimentos futuros, como
está fazendo na África.
Se o século XX acabou sob o aparente domínio dos Estados
Unidos, que eles supunham definitivo com a queda do muro de Berlim,
a emergência da China no século XXI permitirá o fim daquela
hegemonia, com o surgimento de novos pólos de influência. Nesse
processo, cabe ao Brasil – como lembrava Osvaldo Aranha no prefácio
62
Mauro Santayana
do livro de Maria Martins de 1958 - aprender com a experiência chinesa,
sem abrir mão de seus interesses.
A CHINA E O CONTEXTO DO MUNDO
Quando o economista francês Alfred Sauvy, em 1952, criou a
expressão Terceiro Mundo, sua referência histórica era o Tiers État -
a representação do povo na divisão da sociedade francesa – à qual o
abade Sieyés atribuía todo o poder constituinte na assembléia
revolucionária de 1789. Sauvy falava dos países dependentes, ex-
colônias da Europa, em que a população vivia nas mesmas e péssimas
condições dos servos dos feudos europeus nos séculos 17 e 18. Hoje,
na engambelação semântica dos donos do poder, a expressão foi
substituída, primeiro pelo eufemismo de países em desenvolvimento,
e, mais recentemente, por países emergentes.
A China sempre foi vista como o maior país do Terceiro
Mundo, por causa de sua imensa população e pelas terríveis condições
de vida de seus habitantes. A China passa a ser, em nossos dias –
como apontamos neste texto – a vanguarda dos povos pobres, como
o mais poderoso dos países emergentes. Parafraseando o abade Sieyés
em seu famoso panfleto - O que é o Terceiro Estado? -, o Terceiro
Mundo, que não era nada há apenas cem anos, passa a ser tudo . A
China – a menos que ocorra um cataclismo universal – será, dentro
de poucas décadas – ou poucos lustros - a mais importante nação do
mundo. Para vencê-la em um conflito bélico, será necessário acabar
com o globo. Os Estados Unidos e a Rússia dispõem de arsenal
capaz de eliminar a vida do Planeta, mas não podem vencer
militarmente a China, nem outros grandes países e menos ainda
ocupá-los.
O Centro do Mundo
63
As lições do século passado mostram que o Império Universal
é uma quimera. Ocorreu, em poucos anos, a inversão: dentro das
convenções da economia mundial, a China é que está sustentando
os déficits crescentes dos Estados Unidos. Nessa realidade mutante
e surpreendente de nosso tempo, a guerra contra os muçulmanos
(aliados naturais da China) está sendo indiretamente financiada pelos
chineses, que são os mais importantes credores dos norte-
americanos.
A China não é hoje apenas uma questão econômica (e, de
certa forma, militar) para o futuro do mundo. Sua presença impõe
novas regras de convivência internacional. Com sua sabedoria
milenar, os chineses entendem, naturalmente, que – por mais
poderosos que eles sejam – não serão mais possíveis, no futuro que
se esboça, potências hegemônicas. A perspectiva é a de que venham a
contribuir para um sistema mundial que assegure a sobrevivência da
humanidade, mediante a combinação da inteligência técnica com a
razão política. Em primeiro lugar, terão que resolver o problema
da desigualdade em seu próprio país – onde centenas de milhões
ainda mal podem viver o dia-a-dia. Em seguida, terão que contribuir
para que os seus vizinhos mais próximos, e ainda em dificuldades,
tenham a possibilidade de diminuir o fosso entre os ricos e os pobres.
Não é tarefa fácil quando sabemos que se somarmos as populações
da Índia, do Paquistão, do Bangladesh, do Afeganistão, dos países
da Indochina e das ilhas da Indonésia, teremos ali mais da metade da
população do mundo. Sem a revolução tecnológica que encontre
novas fontes de energia e de alimentos, será muito difícil a manutenção
da paz. A ciência já tem resposta para esses desafios, mas a novíssima
revolução tecnológica não se fará dentro do sistema capitalista
neoliberal. Essa é a grande contradição que só será resolvida no plano
64
político. A situação é simples: para que sobrevivamos todos, é
necessário que todos tenhamos o usufruto dos bens da natureza.
Os chineses sempre fizeram do Estado o grande e incontestado
regente da ordem social. Por isso mesmo, realizaram as recentes e
importantes mudanças na economia sem contestações graves. Mas as
pessoas, quando começam a melhorar o seu padrão de vida, querem
necessariamente mais, e neste mais se inclui a aspiração de viver melhor,
com mais liberdade e maior conforto. Essa situação poderá acarretar
problemas políticos e exigir flexibilidade dos governantes chineses.
Com sua tradição de prever e planejar o futuro, eles já se encontram
preocupados com esses problemas.
Os pensadores mais lúcidos de nosso tempo tentam encontrar
os caminhos de retorno ao velho humanismo. Os chineses são
devotados à contemplação da natureza e ao sentimento de fraternidade,
que seus mestres e sábios cultivaram, e contribuem naturalmente para
que voltemos à lição de Confúcio: o que é bom para um homem , é
bom para sua família, para sua pátria e para o mundo.
Um poema de Mao, quando se iniciava a Longa Marcha, ao
falar sobre as Montanhas de seu País, revela a esperança no futuro da
Humanidade:
Montanhas,
Furando o céu azul sem manchas,
Se o céu cair,
Todos nós teremos de apoiá-lo.
Mauro Santayana
65
A ERA DENG, PASSO A PASSO
Jayme Martins*
Antes de entrarmos no tema que titula nossa palestra, o qual
diz respeito fundamentalmente ao atual processo de Reforma e
Abertura para o Exterior, inaugurado em 1978, permitam-nos um
ligeiro preâmbulo, especialmente para mostrar que muito do que
acontece nestes 30 anos de China pós-Mao já era tomado como
orientação do PCC antes da proclamação da República Popular, em
1949.
Em reunião de agosto de 1945, realizada em Chongqing, entre
o Partido Comunista e o Kuomintang (Partido Nacionalista), com a
participação de Mao Zedong (Mao Tse Tung) e Jiang Jieshi (Chiang
Kai-shek) e a presença do embaixador norte-americano Patrick Hurley,
concluiu-se pela formação de um organismo de frente única, que viria
a ser a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, integrada
pelos dois partidos majoritários, bem como pelos sete outros partidos
democráticos então existentes, representativos dos diversos setores
sociais, sem o apoio dos quais não teria sido possível a vitória de 1949.
Segundo as conclusões dessa reunião, a Conferência Consultiva
devia servir de base para a formação de um governo de coalizão.
Contudo, logo em seguida a tais entendimentos, Jian Jieshi passou a
* Jornalista, CEO da Overchina Consultoria Ltda., Diretor de Comunicação da
Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, viveu 20 anos em Pequim (1962-79 e
1987-89, como Professor de Português do Instituto (hoje, Universidade) de Línguas
Estrangeiras, copidesque do Serviço de Português da Rádio Pequim (hoje, Rádio China
Internacional) e correspondente da mídia brasileira (O Globo, Estadão, JT, SBT,
Rádio Guayba e Rádio Eldorado).
66
Jayme Martins
considerar que um governo de coalizão democrático-popular e
também um governo democrático liberal de modelo ocidental seriam
inaplicáveis na China. O próprio embaixador Dean Acheson, que
logo depois assumiria as funções de Secretário de Estado, reconhece
em sua autobiografia que o Guomintang “revelava cada dia mais sua
convicção de que, com a busca de uma China unificada e democrática,
o Guomintang acabaria perdendo tudo”.
O PCC continuou sustentando a orientação de governo de
coalizão, tanto que, em 1949, não se proclamou uma República
Socialista, mas uma República Popular, uma adjetivação de
República (uma conquista histórica da revolução burguesa), não
mais sob a égide da burguesia, mas sob a égide de uma frente única
de operários, camponeses, soldados e expressões da burguesia
nacional. Esta última teve respeitada sua propriedade dos meios de
produção e tornou-se partícipe do poder nos diferentes níveis, tendo
a Sra. Song Qingling, líder da Ala Revolucionária do Kuomintang,
como vice-presidente da República. Após a proclamação da
República Popular, a Conferência Consultiva funcionou como o
Legislativo do País, tendo elaborado o projeto de Constituição
Nacional, que seria aprovado pela Assembléia Popular Nacional,
instalada em 1954, e da qual a Conferência Consultiva constitui,
até hoje, um organismo anexo.
Quanto à Economia no meio rural, foram expropriados os
meios de produção dos latifundiários, mas outorgando-se a eles
também uma parcela de terra e respeitando sua propriedade dos
meios de produção no comércio e na indústria (considerada sua
parte burguesa). No meio urbano, foram expropriados os meios
de produção do capital estrangeiro e da burguesia comercial e
industrial que sustentara o governo guomintanista e se associara
A Era Deng, Passo a Passo
67
ao capital estrangeiro. Também foi respeitada a propriedade dos
meios de produção da burguesia nacional (indústria, comércio,
serviços). As grandes empresas de setores estratégicos (siderurgia,
energia, transporte) da burguesia nacional foram convertidas em
companhias mistas (estatal-privadas).
Nos primeiros 30 anos de República Popular, essa orientação,
tanto política como econômica, foi subvertida em várias ocasiões,
com graves erros de “esquerda” e de direita, sobretudo em duas
ocasiões, com o desencadeamento do Grande Salto Adiante e a
adoção das Comunas Populares Rurais (1958-61). Esses desvios
“esquerdistas” se manifestaram, por um lado, em tentativas de
avanços temerários, impaciência pela obtenção de êxitos imediatos,
menosprezo pelas condições reais e pelas leis objetivas, na busca às
cegas de relações de produção avançadas e de um alto ritmo de
desenvolvimento das forças produtivas (como alcançar a produção
siderúrgica britânica, então da ordem de 50 milhões de toneladas,
com um fogão e três panelas; por outro lado, se manifestaram na
omissão de pesquisas e analises objetivas e completas da situação
econômica e política da sociedade, na acentuação arbitrária e
unilateral da luta de classes e em sua extra-limitação.
Em conseqüência, em vez de conduzir ao desenvolvimento e
ao progresso, os desvios “esquerdistas” provocam confusão e
retrocesso. O “esquerdismo” transforma precipitadamente em “luta
de classes” simples contradições não-antagônicas, comuns no seio
do povo. Tivemos amplas oportunidades de assistir a isso tudo
durante os 20 anos que vivemos na China, especialmente durante a
Revolução Cultural, em cujo movimento também nos envolvemos,
juntamente com numerosos outros especialistas estrangeiros que
lá viviam.
68
Jayme Martins
FEITO O PREÂMBULO
Depois da morte de Mao Zedong (1976), do fim da Revolução
Cultural (1966-76), da derrubada do “Bando de 4” (1977), da liderança
meteórica de Hua Guofeng (1976-77) e da reabilitação de Deng
Xiaoping (1977), a economia chinesa, que seguia uma orientação de
planejamento burocrático altamente centralizado, tornou-se, passo a
passo, uma economia de mercado socialista bastante descentralizada e
desburocratizada, através do processo de Reforma e Abertura para o
Exterior, a partir de 1978.
Tendo em vista antigo sonho nacional, alimentado desde os
tempos imperiais por confucioanos, budistas, taoístas e outras
correntes religiosas, políticas e filosóficas, de conquista do reino
da harmonia em múltiplos aspectos, ocorreu na China, em fins da
década de 1970, uma alteração ideológica correspondente, em
muitos aspectos, à que já fora anunciada pelo PCC antes da
proclamação da República Popular (1949) e que prevalecera por
algum tempo, até 1957/58, na passagem do 1.o para o 2.o Plano
Qüinqüenal, quando se adotou uma série de temerários projetos
“esquerdistas”, como a Comuna Popular Rural (tornando-se esta a
unidade administrativa básica do Estado chinês) e o chamado
Grande Salto Adiante.
A Comuna Popular Rural vinha alterar pela quarta vez em
menos de dez anos a estrutura agrária do País, que já passara pela
Reforma distributiva e por vários processos de coletivização,
como os grupos de ajuda mútua de diferentes níveis e as
cooperativas agrícolas. O triênio do Grande Salto Adiante (1958-
60) acarretou enormes devastações e desperdícios na produção
industrial e na agrícola, bem como na construção, as quais
A Era Deng, Passo a Passo
69
exigiram duros e árduos esforços para serem superados nos
últimos dois anos do 2.o Plano Qüinqüenal (1961-62) e uma série
de reajustes até 1965.
Com a adoção do sistema de Reforma e Abertura, em vez de
movimento de agitação política, tendo por centro a luta de classes
(como aconteceu sobretudo durante a Revolução Cultural), esta
deixou de ser considerada a contradição principal e passou-se a
concentrar esforços na edificação econômica. Prevaleceu, assim, a
compreensão de que a contradição principal nesta etapa inicial de
uma sociedade socializante (etapa que pode durar um século) reside
na discrepância entre as crescentes necessidades materiais e culturais
do povo e o atraso da produção social, ou seja, o atraso
especialmente em educação, ciência, tecnologia e capital.
MODERNIZAÇÃO
Especificamente quanto às contradições de classes, Deng
Xiaoping afirmou, em março de 1979, que “A luta de classes na
sociedade socialista é algo que existe objetivamente, e não devemos
subestimá-la nem exagerá-la”. Com esta compreensão, a direção
chinesa deu outro passo adiante, rejeitando a tese “esquerdista” de
“revolução permanente sob a ditadura do proletariado”, que viria
a ser a diretriz básica da Revolução Cultural. Passou a prevalecer,
então, a orientação pela qual tais contradições devem ser resolvidas
de acordo com método definido, havia muito, pelo Partido sobre
os dois tipos de contradições sociais — as antagônicas e as não-
antagônicas ¯, assegurando-se, assim, uma situação de estabilidade,
unidade e harmonia, indispensável ao processo de modernização
do País.
70
Jayme Martins
FUNÇÃO DO MERCADO
A economia planificada supercentralizada (operada
exclusivamente por diretrizes administrativas) foi descartada, passando
o mercado a desempenhar papel cada vez maior na vida econômica. O
ponto de partida para a manifestação pública desta compreensão pela
direção chinesa data de 1978, quando decidiu que a economia
planificada fosse tomada como o principal, tendo como auxiliar a
função reguladora do mercado. Já era um saudável salto adiante em
relação ao velho sistema imperante, o qual admitia apenas a economia
planificada centralizada. Esta decisão data da Sessão Plenária do Comitê
Central do PCC, realizada em dezembro de 1978.
Esta e outras decisões tratavam de eliminar, no essencial, perniciosas
posições “esquerdistas” consistentes em fazer a revolução apenas pela
revolução, passando por alto a importância do desenvolvimento das forças
produtivas (especialmente educação, ciência, tecnologia, capital) e
provocando nos diversos setores da super-estrutura desastrosas alterações.
Em novembro de 1979, ao receber Massayoshi Ohira, então Primeiro-
Ministro do Japão, Deng Xiaoping referiu-se, pela primeira vez, à economia
mercantil como “uma conquista da civilização humana” e que ela “já
florescia dentro mesmo da sociedade feudal”.
Logo depois, apareciam na imprensa chinesa declarações suas,
no sentido de que, como mecanismo de gestão, como conjunto de
meios e métodos de distribuição dos recursos naturais, “a economia
de mercado é fruto do desenvolvimento econômico do mundo
moderno”. Em 1984, a economia chinesa seria oficialmente
caracterizada como economia mercantil planificada, distanciando-se
ainda mais da concepção que contrapunha a economia mercantil à
economia planificada.
A Era Deng, Passo a Passo
71
ECONOMIA DE MERCADO
Ainda por alguns anos, a concepção segundo a qual a economia
de mercado seria própria, exclusiva, do capitalismo, continuou
dificultando novos passos teóricos e práticos no sentido da
modernização, devido à resistência “esquerdista” dentro da direção
chinesa. Contudo, o desenvolvimento econômico e a necessidade de
aprofundar as reformas ajudaram a aclarar a questão, com o que alguns
dirigentes e publicações passaram a falar em economia de mercado
socialista.
Em viagem de inspeção pelo Sul do País, em princípios de 1992,
o próprio Deng Xiaoping botava os pingos nos is, ao afirmar
textualmente que “economia planificada não é sinônimo de socialismo,
pois no capitalismo também existe plano, e que economia de mercado
não é sinônimo de capitalismo, já que no socialismo também existe
mercado”. Por fim, em outubro de 1993, o Congresso Nacional do
PCC homologou o termo economia de mercado socialista, logo
referendado pela Assembléia Popular Nacional, através de emenda
constitucional, conferindo-lhe força de lei.
Segundo Deng Xiaoping, “a diferença essencial entre economia
socialista e economia capitalista não consiste em um pouco mais de
plano ou um pouco mais de mercado”. A diferença essencial está em
qual sistema de propriedade – a pública ou a privada – exerce o papel
dirigente da economia.
Segundo Deng, “em nossos dias, nenhum país adota de forma
pura nem a economia de mercado, nem a economia planificada, pois,
desta ou daquela forma, plano e mercado estão sempre combinados
em qualquer país – uns acentuando o plano, outros enfatizando o
mercado competitivo. A China adota oficialmente uma economia
72
Jayme Martins
sujeita à regulamentação macroeconômica do Estado, mas atribui cada
vez mais ao mercado o papel fundamental na distribuição dos recursos”.
PECULIARIDADES CHINESAS
A direção chinesa sempre faz questão de acentuar que a economia
de mercado socialista adotada tem peculiaridades chinesas, ou seja,
corresponde obrigatoriamente ao atual nível de desenvolvimento das
forças produtivas do País, estando livre de qualquer voluntarismo ou
outras atitudes que não correspondam à capacitação do País em termos
de educação, ciência, tecnologia e capital (venha este de onde vier).
CORRESPONDÊNCIA OBRIGATÓRIA
Trata-se de uma posição que a liderança chinesa já assumira antes
mesmo da proclamação da República Popular (1949). Lembrando que o
socialismo não pode advir da noite para o dia, nem ser implantado por
decreto ou voluntariosamente na marra (como se pretendeu desastradamente
em alguns países), com o conseqüente abandono de leis econômicas
fundamentais enunciadas pelos clássicos do marxismo para a sociedade
socialista, o economista Xue Muqiao, diretor do Instituto Nacional de
Economia, em seu livro “Problemas da economia socialista chinesa”, condena
o desprezo com que era vista na China, até 1977, a “Lei objetiva da
correspondência obrigatória entre as relações de produção e o nível de
desenvolvimento das forças produtivas”, assim formulada por Marx, no
prólogo de sua obra “Contribuição à crítica da economia política”:
“Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas
as forças produtivas que nela caibam, nem jamais aparecem novas e
A Era Deng, Passo a Passo
73
mais altas relações de produção, antes que as condições materiais para
sua existência tenham amadurecido no seio da sociedade anterior. Por
isto, a humanidade se propõe sempre unicamente os objetivos que
pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, sempre observamos que estes
objetivos só vingam quando já se dão ou, pelo menos, estão em gestação
as condições materiais para sua realização”.
TODAS AS INICIATIVAS
É exatamente sob tal orientação que, a partir de 1978, no
processo de Reforma e Abertura, são permitidas na China, além da
estatal, todas as formas de empreendedorismo: a privada, a coletiva, a
mista (da estatal com a privada nacional, da estatal com a privada
estrangeira, da privada nacional com a privada estrangeira, da estatal
chinesa com estatal estrangeira) e até a da iniciativa privada 100%
estrangeira, desde que dedicada à obtenção de novas tecnologias e de
divisas, através da exportação de sua produção. Mais de 60% do PIB
chinês já é proveniente da iniciativa privada.
DESEQUILÍBRIOS
Para que se efetive a meta de estabilidade, unidade e harmonia,
a liderança chinesa tem hoje como prioridades reduzir os principais
desequilíbrios existentes, como as diferenças de renda entre ricos e
pobres; a diferença entre os níveis de desenvolvimento dos centros
urbanos e do meio rural; tratam também de promover no centro e no
Oeste do País o nível de desenvolvimento conseguido nas províncias
litorâneas do Leste. Outras prioridades: impor um paradeiro à
corrupção burocrática, responsável pelo desvio anual de bilhões de
74
Jayme Martins
yuans; conter a devastação ecológica ocasionada por uma
industrialização descontrolada, a qual afeta profundamente o solo, a
água e o ar, por toda parte.
Em meio a isso tudo, a China tem em vista o problema de
garantir com produção própria a demanda de alimentos de sua
população em 2025 (com 1,480 bilhões de habitantes) e em 2050 (com
1,600 bilhões). Esta é uma questão de maior interesse para o Brasil,
tendo em vista as perspectivas de maior ou menor exportação de
produtos alimentícios de nosso País para a China, especialmente soja
em grão, farinha, farelo e óleo de soja, carnes, laticínios, frutas, e
outros alimentos industrializados. Em 2007, a soja teve, mais uma
vez, grande participação nas exportações brasileiras para a China,
beneficiando-se do aumento do preço desse produto no mercado
internacional, aumento esse impulsionado pelo crescimento da
demanda chinesa. As exportações do óleo de soja brasileiro para a
China também registrou significativo aumento em 2007, da ordem de
85% sobre 2006.
A esse respeito, a maioria das informações provém de acirrados
debates acadêmicos e jornalísticos que se travam ultimamente na China
a respeito da gravíssima situação ambiental do País e as múltiplas e
desastrosas conseqüências econômicas e sociais decorrentes. Alguns
estudos e as autoridades chinesas respondem que a China será capaz
de alimentar-se com recursos próprios. Mas, para isso, ela deve tomar
uma série de gigantescas e inadiáveis providências, sumariadas em dez
pontos:
1 – Melhorar substancialmente a eficiência no uso da água.
2 Desviar águas do Sul (Rio Yangtzé) para a árida Planície
do Norte.
A Era Deng, Passo a Passo
75
3 Remover os gargalos de infra-estrutura, tecnologia e
logística de transporte.
4 Privatizar as propriedades aráveis, a fim de ampliar a
extensão das unidades rurais.
5 Dedicar algumas áreas a cultivos de maior valor econômico.
6 – Intensificar as medidas de prevenção de inundações.
7 – Apoiar cada vez mais as pesquisas biotecnológicas.
8 Garantir o abastecimento com algumas intervenções do
Estado.
9 Conter o crescimento da população com rigor no
planejamento familiar.
10 Fazer com que a agricultura se beneficie das mudanças
climáticas.
Apesar de serem agricultáveis menos de 10% de seus 9 600 000
km2, os estudos consideram que, mesmo com os níveis atualmente
disponíveis de tecnologia agrícola, a China dispõe de suficiente
quantidade de terras aráveis para alimentar uma população de 1, 480
bilhões, projetada para 2025 , ou de 1,600 bilhões, prevista para 2050.
De acordo com recente avaliação da FAO - Organização de
Alimentação e Agricultura da ONU, a China já dispõe de um potencial
agrícola capaz de produzir cerca de 650 milhões de toneladas de grãos
(sua produção atual é de 500 milhões de toneladas). Este potencial de
produção corresponde à maioria das projeções da demanda chinesa
de alimentos feitas pelo Banco Mundial e pelo Departamento de
Agricultura dos EUA.
Esta avaliação considera que aproximadamente 25% das terras
aráveis serão reservadas para outros cultivos, como hortaliças e frutas.
E ainda leva em conta as áreas destinadas a obras de infra-estrutura.
76
Jayme Martins
Contudo, seria bom não levar tais avaliações ao pé da letra,
pois, no futuro, a China poderá considerar economicamente
mais atrativo importar determinada quantidade de cereais, em
vez de produzir 100% de suas necessidades de grãos. Parte das
áreas cultiváveis poderá ser utilizada para finalidades mais
rentáveis que a produção de arroz, soja, trigo, milho e outros
farináceos.
Além disso, não há nenhuma garantia de que a China venha
a desenvolver sua economia agrícola de maneira a utilizar
totalmente o potencial agro-climático existente. Isto dependerá
de decisões políticas e econômicas, que não podem ser previstas
com tanta antecedência.
Contudo, como já dissemos no início, a China só poderá
alimentar-se suficientemente se empreender sérios esforços, a
fim de cumprir aqueles dez pontos, alinhados sem qualquer
ordem de importância e que vamos esmiuçar a seguir:
1 - A C
HINA PODE (E DEVE) MELHORAR SUBSTANCIALMENTE A EFICIÊNCIA
NO
USO DE ÁGUA NA AGRICULTURA.
Quanto às limitações atuais da agricultura chinesa, a
situação é melhor quanto à terra do que quanto à água. Grandes
áreas agricultáveis existentes no Norte do País não podem ser
cultivadas em todo o seu potencial, devido a insuficiente
precipitação pluviométrica. Ainda há uma reserva de uns 30
milhões de hectares, parte dos quais podem ser cultivadas
somente com irrigação.
Conseqüentemente, os governos Central e provinciais
terão que dar maior atenção ao problema da água, com projetos
A Era Deng, Passo a Passo
77
para aumentar as fontes de suprimento em regiões agricultáveis
carentes de água; com projetos para melhorar a qualidade da
água, ampliar o tratamento de águas servidas e reduzir o
desperdício, além de tratar de aprimorar os projetos de
irrigação da iniciativa privada.
Diferentes estudos assinalam a gravidade do problema do
desperdício de água em canais abertos de irrigação e em campos
de cultivos inundados (e não são poucos os arrozais inundados
na China). Essa perda é estimada em até 60%. Este é um recurso
significativo que poderá ser utilizado para irrigações na árida
Planície do Norte (onde fica, inclusive, Pequim), a qual é muito
afetada por prolongados períodos de estiagem. Mas esse
aproveitamento depende de melhor manutenção e de tecnologia
mais avançada nas obras de infra-estrutura de irrigação
existentes.
2 - D
ESVIAR ÁGUAS DO SUL (RIO YANGTZÉ) PARA MELHORAR O
ATENDIMENTO
DO CONSUMO DA CRESCENTE CONCENTRAÇÃO
DEMOGRÁFICA
DA PLANÍCIE DO NORTE.
Nas próximas décadas, além das necessidades adicionais
de água do setor agrícola do Norte, também necessitarão de
mais e mais água outros setores em rápido crescimento: as
áreas urbanas e as industriais. Uma melhor eficiência no uso
da água bem que poderia cobrir pelo menos parte desta
demanda. O desvio de água do Rio Yangtzé para a bacia do
Rio Amarelo talvez seja a única opção a longo prazo para
desenvolver um abastecimento de água eficaz para o árido
Norte da China.
78
Jayme Martins
3 - REMOVER OS GARGALOS DE INFRA-ESTRUTURA, DE TECNOLOGIA E
DA
LOGÍSTICA DE TRANSPORTE.
A insuficiência de transporte, a tecnologia obsoleta de
transporte e a logística de transporte subdesenvolvida são
gargalos muito sérios no setor alimentício. Em particular, a
insuficiente capacidade do setor portuário, a sobrecarga das ferrovias
e a falta de estradas adequadas em muitas áreas remotas põem
seriamente em risco o suprimento local e regional de alimentos. Como
diz o provérbio chinês: “É mais difícil ir ao Sichuan do que subir ao
céu” (Sichuan é a mais importante província do Oeste chinês.).
4 - P
RIVATIZAR E VENDER AS PROPRIEDADES AGRÍCOLAS DE MENOR
EXTENSÃO
, A FIM DE AMPLIAR O TAMANHO DAS UNIDADES RURAIS, TENDO EM
VISTA
PROMOVER A ECONOMIA DE ESCALA E IMPULSIONAR A PRODUTIVIDADE.
As numerosas propriedades rurais muito pequenas constituem
um dos fatores que impedem o avanço ainda maior da modernização
da agricultura chinesa. As áreas de cultivo familiar (cultivos de
subsistência) são, em geral, demasiado pequenas para poderem usufruir
das vantagens de uma economia de escala. A modificação do atual
status agrário, com a passagem do sistema de contrato de usufruto
familiar para o sistema de propriedade privada significaria uma grande
contribuição para a economia agrícola, com a possibilidade de compra
e venda da terra. Assim, os pequenos produtores rurais, cuja renda
principal decorre do emprego na agroindústria, poderiam vender seu
direito de propriedade para unidades maiores e mais produtivas. Isto
promoveria a consolidação da estrutura rural, promovendo a economia
de escala e impulsionando a produtividade.
A Era Deng, Passo a Passo
79
5 - DESTINAR ALGUMAS ÁREAS AGRICULTÁVEIS A PRODUTOS DE MAIOR
VALOR
ECONÔMICO E AUMENTAR MODERADAMENTE A IMPORTAÇÃO DE
CEREAIS
.
Economicamente, não faz nenhum sentido aumentar a pressão
para que os produtores rurais cultivem mais e mais grãos, a fim de
elevar a capacidade de auto-suficiência. Os recursos limitados das
terras agricultáveis podem ser utilizados mais eficientemente com
cultivos de maior valor, como hortaliças e frutas, e também com a
suinocultura.
A China pode, inclusive, utilizar estas áreas para cultivos
altamente lucrativos destinados à exportação. Assim, o País poderia
compensar as importações moderadas de cereais com a exportação
de determinados produtos agrícolas. O crescimento moderado da
importação de grãos, entre 30 e 50 milhões de toneladas, não
perturbaria o mercado mundial, porque estaria bem dentro das
flutuações históricas normais e poderia, inclusive, animar a produção
nos EUA, na Europa, e na Austrália.
6 - I
NTENSIFICAR AS MEDIDAS DE PREVENÇÃO DE INUNDAÇÕES.
As inundações constituem uma séria ameaça à segurança da
produção de alimentos na China. Entre 1988 e 1995, a China perdeu
uns 856 mil hectares do colheitas devido a calamidades naturais,
sobretudo inundações. Uns 33 mil diques e barragens de porte médio
e menores necessitam de reparos urgentes, de melhor manutenção e,
mesmo, de reconstrução. Ainda nos faltam os dados sobre os estragos
causados pelas grandes nevadas que assolaram grandes extensões do
País.
80
Jayme Martins
7 - APOIAR CADA VEZ MAIS AS PESQUISAS BIOTECNOLÓGICAS.
A China já é um dos principais países dedicados a pesquisas
avançadas na biotecnologia do arroz. Em meados da década de 80, os
centros de pesquisa chineses começaram a desenvolver ferramentas
biotecnológicas avançadas, como a tecnologia de DNA recombinante.
Por causa do potencial e também dos riscos de plantas e animais
geneticamente modificados como futuras fontes de alimentos, os
esforços de pesquisa devem ser intensificados.
8 - G
ARANTIR O ABASTECIMENTO SUFICIENTE DE CEREAIS COM ALGUMAS
INTERVENÇÕES
DO ESTADO.
A suficiência de grãos e a estabilidade no abastecimento de
produtos alimentícios básicos, como arroz, soja e trigo,
provavelmente, requererão, como em muitos outros países, algum
tipo da intervenção do Estado. No Ocidente se faz, freqüentemente,
a revisão das formas de subsídio, da regulamentação dos preços e das
quotas da produção agrícola. Sob o atual sistema de aquisição de grãos
em vigor, o Estado adquire dos produtores a preços fixos e negociados;
somente uma pequena porcentagem é vendida a preço de mercado.
Preços mais atrativos para o produtor estimularão certamente a
produção de grãos muito mais do que qualquer tipo de pressão.
9 - R
IGOR NO PLANEJAMENTO FAMILIAR PODE EVITAR CRESCIMENTO MAIOR
QUE
O PREVISTO NA DEMANDA DE ALIMENTOS.
Sem um eficaz cumprimento do programa de planejamento
familiar, a demanda de alimentos provavelmente crescerá mais rápido
A Era Deng, Passo a Passo
81
do que o esperado. Quando a mudança do estilo de vida, associada à
prosperidade crescente, conduzir a taxas de fertilidade voluntárias mais
baixas nas áreas urbanas, a situação será, por certo, diferente no meio
rural. Se as limitações do planejamento familiar nas áreas rurais forem
relaxadas, o número de crianças crescerá. Um ligeiro aumento da
fertilidade média rural aumentaria a população — e as bocas a alimentar
– de algumas centenas de milhões.
10 - F
AZER COM QUE A AGRICULTURA CHINESA SE BENEFICIE DAS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS
.
Os estudos sobre mudanças climáticas na China ainda são
inconsistentes e contraditórios. Enquanto alguns assinalam ligeiras
desvantagens para a agricultura, outros indicam benefícios. De acordo
com avaliações preliminares, o impacto mais provável das mudanças
climáticas seria uma ligeira melhora no Norte, que se beneficiaria de
temperaturas mais altas e de maiores precipitações. Já o Sul do País,
por um lado, pode ampliar as áreas de cultivo e, por outro, pode ser
ligeiramente afetado por maiores intempéries tropicais.
Os produtores agrícolas chineses cultivam atualmente uns 132
milhões de hectares – quase 40% acima do previsto. E ainda há uns 30
milhões de hectares por cultivar, principalmente no Norte. Como se
situa em regiões áridas do Norte, a maioria destas reservas poderá ser
cultivada se chegar água disponível para irrigação.
Portanto, as autoridades chinesas acreditam que o recurso mais
crítico para a agricultura do País é a água, e não a terra. A distribuição
regional de recursos hídricos não corresponde à demanda de irrigação.
E muitos rios e lagos estão seriamente poluídos. Serão necessários
investimentos maciços em obras de infra-estrutura hidráulica. A
82
Jayme Martins
degradação do solo é uma realidade. O efeito da poluição na
produtividade agrícola pode ser reduzido com a adoção de medidas
adequadas de manejo e conservação ¯ como indica o aumento
sextuplicado da produção de cereais desde a década de 60.
POLÍTICAS ERRADAS
Finalmente, cabe reiterar que medidas econômicas e políticas
são a chave para a segurança do setor alimentício da China.
O período de “grande fome”, que teria sacrificado uns 30
milhões de chineses durante o chamado “grande salto adiante” não
foi causado por falta de terra ou de água, nem por insuficiente
tecnologia agrícola ou por uma demanda de alimentos maior que a
prevista. Esse grande desastre foi causado por medidas políticas
erradas.
Portanto, mais do que qualquer outra coisa, as decisões
políticas é que determinarão se a China poderá ou não alimentar sua
população no próximo meio século.
JOGOS OLÍMPICOS
As monumentais realizações da China em obras de infra-
estrutura e novas tecnologias para as Olimpíadas de Pequim este ano
não teriam sido possíveis sem o processo de Reforma e Abertura.
Os chineses aproveitam a oportunidade não apenas para
demonstrar a força de sua economia, mas também o amadurecimento
cultural da nação, o que se reflete, inclusive, na magnificência dos
estádios e ginásios destinados aos jogos, tanto em Pequim como nas
outras seis cidades que os sediarão.
A Era Deng, Passo a Passo
83
Somam quase US$ 15 bilhões os projetos de construção de 31
estádios, 77 estradas e pontes, 26 km de light rails (vias exclusivas para
ônibus), seis novas linhas de metrô, que transportarão de graça quase
20 milhões de passageiros/vezes por dia.
Nos 16 dias de jogos, de que participarão 20 mil atletas, Pequim
receberá pelo menos dois milhões de visitantes nacionais e estrangeiros.
A partir de então, a exemplo do que aconteceu com Barcelona, a capital
chinesa se tornará um dos mais importantes centros de atração turística
mundial. Como isto se refletirá na onda de turismo por todo o País,
prevê-se que, em uns dez anos, a China ultrapasse a Itália, os EUA e a
França no ranking dos principais destinos turísticos do mundo. Para
sediar em 2010 a Expo Mundial, a cidade de Xangai se prepara para
receber, nesse ano, entre 50 e 70 milhões de turistas.
O clima olímpico que a China vive nos últimos anos já influi
pesadamente na diária dos hotéis, alguns dos quais majoraram o
pernoite, de US$ 32 para US$ 265. Esse clima influi também no preço
das propriedades imobiliárias. O metro quadrado de construção
residencial registra aumentos de até 160%, tornando-se quase 50%
maior que o de Xangai.
A preocupação com o meio ambiente, a fim de que Pequim se
torne respirável, sem afetar o pulmão e o rendimento dos atletas
também parece bastante responsável. As providências para despoluir
o ar da cidade são tomadas com bastante rigor e eficiência. Em teste
realizado recentemente, durante quatro dias, 1/3 dos três milhões de
carros particulares matriculados na capital foram obrigados a parar
alternadamente, com o que se conseguiu reduzir de 20% a poluição
proveniente dos automóveis.
Ultimamente, foram retirados de circulação 65 mil táxis e e 19
mil ônibus velhos, substituídos por diferentes veículos movidos a gás
84
Jayme Martins
natural. Além disso, foi bastante ampliada a rede de trolebus (ônibus
elétricos) de poluição zero. A serviço exclusivamente dos atletas e do
pessoal dos Jogos Olímpicos estarão funcionando 3 500 vans e 2 500
automóveis. Uma equipe de 20 mil pessoas está sendo preparada para
auxiliar os 250 mil guardas já existentes, a fim de ordenar o trânsito.
No aeroporto internacional, já está funcionando uma nova pista de
decolagem e um terceiro terminal de passageiros, tornando-o o maior
e mais moderno do mundo,
Um bom número de indústrias, inclusive de grande porte, das
mais poluidoras, foram removidas para longe de Pequim. E um projeto
intitulado “Olimpíadas Verdes” está investindo US$ 10 bilhões na criação
de anéis de arborização e na inauguração de novos parques. Nos
subúrbios de Pequim, especialmente nas proximidades dos centros de
competição, foram demolidas quadras ou bairros inteiros de velhas
habitações, melhorando um bocado o aspecto físico dessas áreas urbanas
e dando lugar a novas áreas verdes e modernos conjuntos residenciais.
Entre 2005 e 2007, foram revitalizadas quase 200 vilas urbanas. Hoje,
51% da parte urbana de Pequim compreende áreas verdes, com milhões
de árvores e arbustos, muitos deles floridos, e extensos gramados.
As ruas, avenidas e praças são varridas duas vezes por dia com
equipamentos de última linha e a cidade está sendo dotada de numerosas
toaletes, dotadas de descarga econômica , cujos dejetos são tratados e
reutilizados imediatamente na irrigação de áreas verdes.
No dia 8 de agosto de 2008, às 8 horas e 8 minutos da noite, o
Estádio Nacional, já conhecido internacionalmente como “Ninho de
Pássaros”, será palco do megaespetáculo de abertura, o qual deve
deslumbrar o mundo, a exemplo do que já aconteceu com a participação
chinesa no show de encerramento dos Jogos Olímpicos de Atenas em
2004.
A Era Deng, Passo a Passo
85
Naturalmente, tanto esse espetáculo de abertura como as
medalhas que a China conquistar durante os Jogos refletirão as novas
conquistas obtidas pelo povo chinês nestes 30 anos de Reforma e
Abertura, inclusive em matéria de emprego e elevação do nível de
vida das populações urbanas e rurais, as quais passaram, recentemente,
a valer-se também de uma série de proteções previdenciárias, além de
novos direitos humanos.
Enfim, as Olimpíadas de Pequim contribuirão definitivamente
para desfazer a imagem de velha China que ainda permanece na mente
de muita gente no Brasil e no Ocidente em geral, mostrando uma
China milenar revitalizada, rica e moderna.em múltiplos aspectos e
em festivo ambiente de paz com o mundo.
China:
Dimensões Econômica e
Científica Tecnológica
89
A estratégia de modernização e de transição econômica para
uma economia de mercado liderada pelo Estado, implementada na
China desde as reformas iniciadas em 1979 por Deng Xiaoping,
manteve-se, nas últimas décadas, sem solução de continuidade.
Ela levou a uma extraordinária expansão econômica, fazendo
da China o país de mais alto e persistente crescimento econômico dos
tempos modernos. Com um PIB de $1,932 bilhões,
2
com exportações
superiores às dos EUA e Japão, um fluxo de comércio superior a um
trilhão de dólares e reservas também superiores a um trilhão de dólares,
a China firmou-se como um grande ator da economia mundial. A
previsão do governo chinês é atingir um PIB de US$ 4 trilhões em
2020.
Devido ao seu tamanho e características estruturais, a
permanência de altas taxas de crescimento econômico vem pondo em
curso amplas transformações econômicas e sociais que, se persistirem,
projetam novos processos de crescimento e novas transformações na
divisão internacional do trabalho. Por outro lado, devido à sua história
e inserção geopolítica, o desenvolvimento chinês vem provocando
novos e velhos desafios entrelaçados, cujo enfrentamento vem
definindo uma abrangente estratégia nacional. O objetivo básico desta
estratégia (tal como historicamente idealizada por Chu En-lai e Deng)
1
Professor Associado do Instituto de Economia da UFRJ.
2
Em 2005 a estimativa era $8,9 trilhões em PPP segundo metodologia antiga
ou $5.3 trilhões expressos em outro sistema de PPP.
CHINA: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
E ASCENSÃO INTERNACIONAL
Carlos Aguiar de Medeiros
1
90
Carlos Aguiar de Medeiros
é o de elevar o status internacional da China como potencia econômica
e política capaz de influenciar, ao invés de apenas responder aos desafios
impostos pelo sistema internacional. Tal objetivo gera o que poderia
ser descrito como um “dilema de segurança” que se antepõe a qualquer
potência em ascensão: a construção de estratégias de segurança desperta
potencial retaliação do poder militar estabelecido (no caso os EUA); a
não-construção destas estratégias aumenta a possibilidade da retaliação.
(GOLDSTEIN, 2001).
São cinco os desafios principais que o desenvolvimento chinês
vem enfrentando e que se projetam no futuro imediato: manter o
crescimento econômico elevado e deslocar a estrutura produtiva na
direção de setores intensivos em ciência e tecnologia; reduzir as
assimetrias sociais e regionais de forma a conter a crescente contestação
interna e manter a unidade do PCC; expandir a influência econômica
e política da China no Sudeste Asiático; garantir a expansão de fontes
de suprimento de energia e matérias-primas; e, por último, mas de
importância maior, modernizar as forças armadas, dissuadir o projeto
de autonomia de Taiwan e contornar as iniciativas estratégicas
americanas de isolar e conter a China.
Como será discutido no restante deste texto, o enfrentamento
destes desafios econômicos, políticos e militares se entrecruzam em
muitos planos.
CRESCIMENTO ECONÔMICO E PROGRESSO TÉCNICO
O quadro 1 apresenta algumas estatísticas básicas da
macroeconomia chinesa, o quadro 2 identifica as principais fontes do
seu crescimento e o quadro 3 apresenta as mudanças recentes na sua
inserção internacional. Em estudo recente, Bob Rowthorn (2006),
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
91
usando uma projeção cautelosa de crescimento na China, medida em
dólares correntes e não em PPP (que força a convergência de renda
entre países), obteve que em 2050 a produção total chinesa será 60%
maior do que a americana. Indiscutivelmente, a persistência do
crescimento econômico chinês, ainda que a taxas mais baixas do que
no passado, trará grandes impactos na economia mundial mesmo que
a sua natureza seja difícil de ser antecipada devido ao grau e à velocidade
das transformações estruturais associadas a este crescimento.
Quadro 1 – Principais indicadores econômicos da China
Fonte: Banco Mundial (2007). 1/ Projeções; 2/ Estimativas baseadas nos dados
das Contas Nacionais; 3/ Estimativas baseadas nos deflatores de bens
publicados pela Administração Aduaneira; 4/ Base GFS, governos centrais e
locais, incluindo empréstimos externos oficiais.
92
Carlos Aguiar de Medeiros
Quadro 2 – Estrutura da demanda das fontes
de crescimento da China
Fonte: elaboração própria a partir de China Statistical Yearbook (2004).
Quadro 3 – Estrutura das exportações de bens da China (%)
Fonte: UNCTAD, TDR, 2005, p. 99.
Economicamente, a dinâmica do crescimento chinês a longo
prazo depende do acesso às matérias-primas, da evolução dos custos
salariais, da produtividade e das fontes de demanda do seu crescimento
econômico. Com exceção das matérias-primas, que dependem de
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
93
circunstâncias particulares (ver a frente), os demais fatores encontram-
se fortemente relacionados. Com efeito, a meteórica expansão das
exportações chinesas, que ao lado dos investimentos vêm puxando o
crescimento econômico, baseou-se em grande parte em suas enormes
vantagens de custos na produção de bens industriais de baixo valor
unitário, nos quais os custos de trabalho expressos em dólares
internacionais constituem um fator estratégico. Desde a crise asiática
de 1997, a manutenção da estabilidade nominal do yuan levou a elevação
relativa dos salários chineses vis-à-vis os competidores asiáticos que
desvalorizaram suas moedas (MEDEIROS, 2006), e, nos anos mais
recentes, uma moderada valorização do yuan frente ao dólar (uma
direção que possivelmente se afirmará nos próximos anos) tem
provocado uma elevação dos salários industriais chineses em moeda
internacional.
Ao lado do câmbio, as principais fontes de expansão dos salários
são o aumento do custo de vida e as pressões sobre o mercado de
trabalho. Até o presente momento, os aumentos de salários não
resultaram em perda de competitividade das exportações chinesas
intensivas em trabalho devido ao superior crescimento da
produtividade, o que mantém baixos os custos unitários do trabalho
em dólares. Entretanto, a mudança do grau de especialização chinesa
na direção de produtos intensivos em conhecimento – um processo já
em amplo curso - é essencial para a manutenção do alto crescimento e
ao mesmo tempo viabilizar a evolução dos salários reais. O ritmo em
que o deslocamento da estrutura produtiva e das ocupações deverá
seguir depende, também, das políticas industriais, da qualificação da
força de trabalho chinesa e da elevação dos salários.
Em relação às políticas de desenvolvimento, o governo chinês
vem realizando amplos esforços tecnológicos em sua política industrial
94
Carlos Aguiar de Medeiros
e de P&D voltada para a obtenção de tecnologias de ponta tanto para
uso civil quanto para militar – ver a seguir. O objetivo é construir um
amplo complexo industrial militar com tecnologias de última geração
em eletrônica, aviação, espacial e novos materiais. Por outro lado,
através de estímulos indiretos ao capital estrangeiro e diretos exercidos
pelas empresas estatais, a China vem desenvolvendo um inédito
(considerando a sua renda per capita) sistema de inovações tecnológicas.
Ao contrário do estipulado na literatura convencional que estabelece
para os países em desenvolvimento um modelo de cópia passiva de
produtos e técnicas dos países mais avançados, a criação tecnológica
na China vem se desenvolvendo de forma semelhante à destes países.
Como atesta Sum (2002), entre as grandes empresas chinesas, mais de
30% possuíam laboratórios de P&D em 1999, cifra que embora seja
baixa entre os países industrializados, excede em muito o percentual
predominante entre os países em desenvolvimento. Como corolário
deste esforço, a China tem registrado um número crescente de
patentes.
Ao lado destas políticas de fomento ao processo de inovação, a
política de ampliação dos investimentos no ensino superior vem
resultando numa rápida qualificação da força de trabalho, formando
um grande pool de engenheiros e trabalhadores muito qualificados.
3
Se do ponto de vista da oferta são as novas políticas industriais
e tecnológicas que definem a rapidez do processo de mudança na
especialização internacional, do ponto de vista da demanda, a
velocidade da mudança depende da redução relativa da lucratividade
3
“In 1975 China produced almost no S&E doctorates. In 2003, the country
graduated 13,000 PhDs, approximately 70% in science and engineering.
Between 1995 and 2003, first year entrants in PhD programs in China increased
six-fold, from 8,139 to 48,740. At this rate China will produce more S&E
doctorates than the U.S. by 2010!” (Freeman, 2006, p. 6)
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
95
das atividades prevalecentes baseadas em salários baixos. Estas
estabelecem um tipo de especialização em que a modularização, a
padronização e a não-diferenciação de produtos tornam a concorrência
em custos o elemento central de expansão do mercado para as firmas
exportadoras. A elevação dos salários constitui, assim, um fator de
mudança na estrutura produtiva e nas qualificações dos trabalhadores.
Para Cai Feng e Yang Du (2006), a exaustão potencial do grande
excedente de mão-de-obra nas áreas urbanas costeiras estaria gerando
o que denominam de transição “lewisiana”. Ela, tal como no clássico
artigo de Arthur Lewis (1954), ocorreria quando o deslocamento da
população rural excedente se encerrasse, elevando os salários reais no
setor industrial (moderno) da economia e reduzindo os lucros e o
ritmo de acumulação de capital.
Para os autores, em que pese a importância do trabalhador
imigrante na força de trabalho urbana
4
que está em torno de 150
milhões (um percentual que se expandiu extraordinariamente nos
últimos anos), esta transição já estaria em curso, com a progressiva
elevação do salário relativo do trabalhador imigrante e com a escassez
relativa de trabalho não-qualificado em algumas regiões costeiras
5
. Com
4
“According to the 2000 census, the most comprehensive data on migrants
and migratory patterns available to date, 131 million people – one-tenth of the
population – were residing outside their places of household registration.
Other studies from the National Bureau of Statistics (NBS), the Ministry of
Agriculture and the Ministry of Labour and Social Security (MoLSS) have put
the number of rural migrants at approximately 120 million, of which 100
million migrate to urban areas. Most recently, a report published by the
Chinese Academy of Social Sciences adjusted this estimate to 150 million”.
(Tunon, 2006, p. 7)
5
Devido à falta de informações precisas, esta informação é bastante
controversa. As estimativas de Cai Feng e Yang Du são indiretas e baseiam-se
nos anuários demográficos da China. Elas são contraditórias com algumas
outras evidências baseadas em informações diretas. De acordo com Tunon
96
Carlos Aguiar de Medeiros
o progressivo relaxamento do sistema de registro domiciliar hukou,
os trabalhadores rurais excedentes fluíram maciçamente para as regiões
costeiras nos anos 90. Contudo, a expectativa de que este fluxo “tipo
Lewis” perdurará nos próximos anos não é realista por razões
demográficas e sociais. A população rural mais jovem (e na média
com o primeiro grau completo) constituiu o núcleo principal das
migrações e esta contraiu-se de forma significativa; por outro lado, a
expansão dos serviços sociais e investimentos no interior –ver próximo
item - deverá resultar numa diminuição do fluxo migratório.
Embora Rowthorn (2006) não discuta as pressões demográficas
e limite suas observações aos salários dos trabalhadores industriais
formalmente registrados, argumenta que a elevação do custo de vida
decorrente da própria urbanização e a expansão dos padrões de
consumo já vem elevando os salários chineses. Estes não terão como
deixar de aumentar em termos internacionais, ainda que a elevação da
produtividade siga numa trajetória positiva. O deslocamento da
estrutura produtiva e do tipo de especialização internacional é tão
inevitável que já estaria em curso.
Estudo recente do Banco Mundial (2007) não contesta a direção
do processo de mudança, mas a sua velocidade. O peso ainda muito
elevado da população rural chinesa na estrutura do emprego, em
relação às economias industrializadas, empurra o processo de transição
para várias décadas; por outro lado, a presença maciça de trabalhadores
migrantes com baixos salários e a relativamente baixa taxa de
(2006), os salários dos trabalhadores migrantes no Delta do Rio das Pérolas
estão objetivamente estagnados nos últimos doze anos, o salário mínimo não
é cumprido e os atrasos salariais são freqüentes. As leis do trabalho
constituídas em 1994 estabelecem o salário mínimo, proíbem o trabalho
infantil, limitam as horas de trabalho e proíbem a discriminação. Apenas
recentemente foram introduzidas políticas voltadas ao trabalhador migrante.
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
97
participação da população urbana em relação a outros países em
desenvolvimento, abre uma possibilidade adicional de expansão da
força de trabalho, deslocando no tempo qualquer exaustão decorrente
do processo migratório.
Embora a discussão da redução do “trabalho excedente” na China
seja muito importante do ponto de vista econômico e social, deve-se
levar em consideração que do ponto de vista econômico a questão
central é a elevação dos salários reais, para a qual a redução do excedente
de mão-de-obra contribui, porém, de modo algum, a determina de
forma exaustiva. As mudanças nas instituições do mercado de trabalho
ora em curso – ver próximo item - certamente trarão impactos mais
rápidos sobre a formação dos salários. Por outro lado, a elevação dos
salários possui um efeito muito distinto sobre as fontes de acumulação
de capital.
Como se observou, as exportações e os investimentos
constituíram, desde os anos 90, as principais fontes de crescimento do
PIB chinês, e o consumo das famílias cresceu de forma mais lenta.
Esta dinâmica seguiu as mudanças na distribuição da renda decorrentes
da estratégia de industrialização capital intensiva e exportadora (DIC
LO, 2006). A elevação do salário real, empurrada por forças
demográficas e sociais, poderá resultar não necessariamente numa
redução do crescimento econômico devido à menor expansão das
exportações – o que pode ser compensada pela mudança no tipo de
especialização internacional - mas numa mudança a favor de um maior
crescimento do mercado interno e maior divisão social do trabalho,
com uma maior expansão do setor de serviços. A expectativa é de que
nos próximos 20 anos a população urbana chinesa aumentará em mais
de trezentos milhões de pessoas. Esta direção também se impõe por
razões políticas, conforme se argumenta a seguir.
98
Carlos Aguiar de Medeiros
CONCENTRAÇÃO DE RENDA E TENSÕES SOCIAIS
A forte expansão dos investimentos públicos e privados na China
desde o final dos anos 90 resultou numa extraordinária participação
destes no PIB. A desaceleração inicial das exportações que se seguiu
após a crise asiática de 1997 foi mais do que compensada pelos
investimentos públicos tanto para a infra-estrutura urbana quanto
para a expansão dos projetos privados voltados para o mercado interno
chinês. A despeito da menor expansão do consumo, o aumento
simultâneo dos investimentos e das exportações levou, como observado,
a uma redução relativa do excedente de mão-de -obra e aumento do
salário real urbano residente. Isto se deu num contexto de provisão
de novas e melhores residências urbanas e de redução da pobreza. A
queda da pobreza, segundo as estimativas usuais, e a mobilização social
ascendente foram dois dos processos sociais de maior expressão nas
últimas décadas.
Entretanto, as características macroeconômicas, demográficas e
sociais resultaram em um não menos espetacular processo de
concentração de renda. Tanto a distribuição funcional quanto a
distribuição pessoal passaram por grande concentração favorecendo
os capitalistas, os trabalhadores qualificados e o mundo urbano em
geral, em detrimento dos camponeses, trabalhadores migrantes e o
mundo rural, formando uma das sociedades asiáticas mais desiguais.
Talvez poucos países se aproximem tanto quanto a China dos anos 90
da análise clássica de Kuznets (1954) sobre o movimento inicial da
concentração associada ao processo de industrialização. Com efeito,
anteriormente às reformas de Deng Xiaoping, a China apresentava
uma distribuição de renda extremamente igualitária baseada em dois
pilares: na propriedade estatal dos ativos (terra e capital) e na regulação
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
99
do trabalho e condições sociais. Esta última era baseada nas comunas
rurais, envolvendo a grande maioria da população e força de trabalho
e no emprego assalariado urbano nas empresas estatais, com salários e
benefícios sociais politicamente definidos. O regime de domicílios
hukou rural garantia terra, enquanto o hukou urbano garantia os
salários e benefícios sociais. Nos anos 80, a propriedade dos ativos se
manteve subordinada ao estado e a dissolução das comunas rurais foi
acompanhada por mudanças dos termos de troca favorecedores da
agricultura, beneficiando os agricultores e, sobretudo, a diversificação
das atividades não-agrícolas nas vilas e municípios. A despeito do
aumento da concentração no meio rural, a elevação da produtividade
do conjunto da agricultura e das empresas de vila e município implicou
em redução da desigualdade face ao mundo urbano, de forma que o
elevado crescimento econômico ocorreu sem alterações substanciais
na distribuição de renda.
Ao longo dos anos 90, importantes transformações ocorreram.
A criação de um sistema de leasing sobre as terras urbanas,
6
a expansão
de ativos privados, a reforma das empresas estatais (demissões em massa
e maior liberdade para demitir) e o relaxamento do regime de
domicílios alteraram fundamentalmente os pilares iniciais. Com a
mudança dos termos de troca contra a agricultura (ao longo da década),
a expansão do comércio e dos investimentos fortaleceu os mecanismos
de acumulação privada e ampliaram, de forma inédita, a concentração
6
A despeito de não haver um mercado de terras na China, formou-se nos
principais centros urbanos um mercado imobiliário baseado em leasings de
longo prazo de terrenos. Nas grandes cidades, os terrenos possuem preços
definidos pelo mercado, mas no interior as prefeituras estabelecem preços
muito baixos aos agricultores e transferem os terrenos a preços muito mais
altos aos industriais,porém em níveis internacionais eles são irrisórios, o que
aumenta a especulação urbana industrial.
100
Carlos Aguiar de Medeiros
da renda entre capitalistas e assalariados, entre indivíduos e, ainda
mais intensa, entre campo e cidade. Como resultado da marginalização
do trabalhador migrante, e, sobretudo, da especulação de terras urbanas
(incluindo as regiões periféricas), os protestos em larga escala se
proliferaram.
7
Estas tensões levaram, nos anos recentes, a uma revisão nas
prioridades das políticas de investimento voltadas para a busca de
uma “sociedade harmoniosa”.
8
Esta passa pela modernização do
nordeste, região central e regiões ocidentais do País, com uma nova
urbanização, investimentos em educação e saúde e uma política de
proteção do trabalho, generalização do salário mínimo, proteção
social, e, em particular, uma política diretamente voltada para os
trabalhadores migrantes. Estas incluem o seu reconhecimento como
membros integrantes da classe trabalhadora (e não camponeses) com
direito à sindicalização, à obrigação dos empregadores de
estabelecerem um contrato formal e garantirem condições
adequadas de trabalho, à obrigatoriedade dos municípios de
garantirem o acesso ao ensino básico dos filhos de imigrantes e à
extensão da previdência social aos trabalhadores migrantes.
Estas prioridades vêm ampliando os gastos sociais e o
consumo das famílias e governo, o que reforça a expectativa de
uma maior elevação do salário do trabalhador não-qualificado na
China.
7
“The number of these incidents reached and estimated 74,000 in
2004.....Chinese analysts maintain that land seizures and illegal fees on rural
farmers now represent the most frequent causes of unrest, estimating some
80,000 illegal seizures and other unlawful land-related practices occurred in
2004”. (Department of Defense, 2006)
8
Tal como definida nos documentos oficiais do governo de Hu Jintao.
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
101
REGIONALIZAÇÃO ASIÁTICA
Com o câmbio relativamente valorizado em relação aos países
da ASEAN, mas desvalorizado em relação ao dólar (e ao euro), e com
um crescimento econômico a dois dígitos, a China transformou-se na
maior base de exportação para os EUA. Isto ocasionou uma
extraordinária expansão do seu saldo comercial bilateral e global. Ainda
que esta tenha suscitado grandes pressões do governo americano para
a valorização do yuan, a elevada participação das empresas
transnacionais americanas (ET) neste saldo, e o ingresso da China na
OMC, ampliaram a sua força econômica gravitacional sobre os
interesses privados americanos, reduzindo o poder de retaliação
comercial unilateral.
Em relação aos EUA, as relações comerciais constituem uma
base objetiva e também um pretexto político para o aumento das
pressões americanas sobre a estratégia chinesa, pois as relações com as
economias asiáticas possuem um sentido econômico e político de outra
natureza. Como já se discutiu em outro lugar,
9
um resultado do alto
crescimento do mercado interno chinês foi o incremento
extraordinário das importações provenientes do resto do mundo,
principalmente do sudeste asiático, com destaque do Japão, Taiwan,
Coréia e o países da Associação das Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN). Com a manutenção da estabilidade do yuan e a progressiva
redução das tarifas, tendo em vista o ingresso na OMC, os países
asiáticos beneficiaram-se amplamente da “locomotiva” chinesa. Em
particular, os países de maior capacitação tecnológica, como o Japão,
a Coréia e Taiwan tornaram-se grandes exportadores para a China,
9
Ver Medeiros (2006).
102
Carlos Aguiar de Medeiros
que rapidamente se afirmou como seu primeiro mercado exportador.
Também os países de menor grau de desenvolvimento beneficiaram-se
da economia chinesa, devido à grande escala de seu mercado interno e
pelo espaço que começou a ser aberto pela elevação dos salários chineses.
Em particular, a elevação dos salários na China tem representado uma
oportunidade para países como o Vietnam de ampliarem sua quota no
mercado internacional de manufaturas intensivas em trabalho.
A China passou a apresentar déficit comercial com os principais
países asiáticos. Por outro lado, desde a crise asiática de 1997, a China
tem se envolvido em diversas iniciativas de cooperação financeira, tal
como a criada em Chiang Mai, voltada para a criação de um pool de
reservas entre moedas asiáticas e moedas conversíveis como o dólar, o
yen e o euro, fortalecendo a capacidade de intervenção dos bancos
centrais. No plano diplomático, tomou ampla iniciativa na criação de
fóruns regionais – especialmente na forma do ASEAN+3
10
- que
objetivam a obtenção de maior cooperação econômica nos planos
comerciais, financeiros, de investimento e tecnológicos e de menor
influência dos EUA (como o da APEC).
Tais iniciativas vêm alterando a dinâmica da regionalização que
se estabeleceu na década de 90, introduzindo um processo amplamente
impulsionado por interesses das grandes empresas, vetores políticos
estratégicos. Com efeito, na medida em que a China percebe-se contida
pela política americana – ver discussão a frente - uma diplomacia voltada
para os países asiáticos torna-se fundamental para evitar que a
emergência do nacionalismo asiático, em particular no Japão e o
movimento autonomista de Taiwan, não a isole e não fortaleça a
política americana de contenção da China.
10
Um fórum formado pelos países da ASEAN, Japão, Coréia e China.
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
103
Entretanto, o êxito desta estratégia deflagrou a expansão dos
outros dois desafios – o da energia e o da segurança -, cujo
equacionamento vem levando a uma aproximação com a Rússia e ao
desenvolvimento de uma política tecnológica e industrial mais agressiva
e nacionalista voltada à produção de uma tecnologia de duplo uso
(militar e civil).
A QUESTÃO ENERGÉTICA
Como resultado do alto crescimento dos investimentos na
indústria da transformação e da construção civil, a China, que
historicamente apresentava uma auto-suficiência no consumo do
petróleo, passou a ser um grande importador (cerca de 1/3 do aumento
da demanda mundial de petróleo nos últimos anos).
11
A China importa,
hoje, cerca de 50% do seu consumo, e gera uma demanda extraordinária
de petróleo e matérias-primas no mercado internacional.
A elevada demanda da China sobre petróleo e gás deriva da
grande participação da indústria pesada intensiva em energia na sua
estrutura produtiva. De longe, a indústria pesada é o maior consumidor
de energia na China.
Ao lado do consumo industrial, o boom do consumo de energia
chinesa resulta da rapidez da difusão do automóvel, estimulada pela
urbanização e pela expansão da renda per capita. O consumo de
petróleo na China (ainda que muito baixo em termos per capita) tornou-
se muito elevado por unidade de produto. Ainda que amplos esforços
de mudança da base energética e de redução do consumo unitário de
energia tenham sido desenvolvidos nos anos recentes, a expectativa é
11
Austin (2005).
104
Carlos Aguiar de Medeiros
de aumento da dependência da China sobre uma fonte essencial à
expansão da industrialização. Esta nova realidade afirmou-se estrutural
e, conseqüentemente, estratégica.
12
Do mesmo modo, a crescente
dependência da importação de gás, de forma a reduzir a participação
do carvão e reestruturar a matriz energética chinesa, apresenta-se como
um desafio estratégico também.
Como resultado deste processo, o elevado crescimento
econômico chinês resultou num aumento do preço do petróleo e das
matérias-primas. Em conseqüência, os exportadores de petróleo – países
do Golfo Pérsico, Rússia e produtores do Mar Cáspio, Indonésia,
produtores africanos, Venezuela - tiveram grande elevação em suas
rendas (diferenciais) petroleiras.
O acesso aos mercados internacionais de petróleo e matérias-
primas e a garantia de fontes de suprimentos de longo prazo
transformaram-se em objetivo diplomático central do governo chinês,
ensejando uma ofensiva econômica diplomática mundial. A rapidez
com que as relações comerciais e financeiras com a África se
desenvolveram, a expansão do comércio com a América Latina e a
internacionalização das grandes empresas estatais petrolíferas CNPC
e Sinopec são os fatos mais evidentes desta realidade. Realidade que
diretamente traz a ascensão econômica chinesa para o cenário político.
O episódio da oferta (rejeitada) de compra da Unocal pela China
National Offshore Oil Company (CNOOC) reforçou a política de
contenção americana (ver próximo item) à expansão chinesa.
13
A questão da energia e da segurança, sendo que a segunda está
intimamente articulada com a primeira, promoveu as relações com a
Rússia para um novo plano. Com efeito, a principal fonte de
12
Rosen e Houser, 2007, p. 7
13
Para uma discussão deste aspecto ver Arrighi (2007).
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
105
suprimento de petróleo está no Oriente Médio e chega à China através
do estreito de Málaca. As características físicas deste estreito e a presença
ostensiva de frotas americanas revelam a vulnerabilidade da economia
chinesa a um potencial estrangulamento energético numa situação de
conflito (SMALL, 2005). A diversificação das fontes de suprimento
energético colocam as relações com a Rússia e demais produtores do
Mar Cáspio (como o Cazaquistão) na ordem do dia.
O fluxo de comércio entre a China (computadores e produtos
eletrônicos) e a Rússia (armas e petróleo) expandiu-se rapidamente
nos últimos anos, e, devido aos termos de troca, tem sido amplamente
favorável à Rússia. Ao lado do comércio em geral, a negociação
fundamental é a construção de oleodutos, que permitirão garantir
um grande suprimento à China.
14
As negociações econômicas com a Rússia vêm fazendo deste
País, do ponto de vista de Pequim, um “parceiro estratégico”. Tendo
em vista o boicote americano e da União Européia à venda de armas
sofisticadas à China, as armas russas constituem a base essencial para a
modernização militar da China e para sua capacitação tecnológica.
OS DILEMAS DA ASCENSÃO PACÍFICA
Como discute Arrighi (2007), mesmo entre os conservadores
americanos há leituras distintas sobre a ascensão chinesa. De um lado
afirma-se uma proposição mais beligerante voltada a um enfrentamento
direto com a China através do apoio a Taiwan.
Autores como Robert Kaplan (2005) apontam a inevitabilidade
de uma ascensão chinesa belicosa tal como a que se deu na Alemanha
14
Como o Angarsk-Daqing, de 2.400 km.
106
Carlos Aguiar de Medeiros
e no Japão nas primeiras décadas do século XX. Para prevenir esta
ascensão os EUA deveriam conter a China através de uma ativa aliança
militar centrada no Comando Militar do Pacífico (PACOM). Ao
lado destas análises e proposições, vozes mais prudentes, como a de
Kissinger, embora reconheçam que o centro de gravidade
internacional mudou do Atlântico para o Pacífico, discordam
basicamente da premissa de que um confronto estratégico com a
China seja inevitável. A base da ascensão chinesa, argumentava
Kissinger, era econômica e política, ao invés de militar, e sua doutrina
militar excluía um confronto direto se o resultado fosse incerto.
(ARRIGHI, 2007)
A primeira interpretação tem predominado nos discursos e ações
da política de segurança americana.
15
Em 2000, num discurso que teve
grande repercussão na China, Condoleezza Rice afirmou que era
necessário “conter as ambições de poder e segurança da China na
medida em que ela era uma ameaça potencial na estabilidade da região
Ásia-Pacífico e um rival nesta área dos interesses americanos e do atual
status quo.
16
Alianças militares na Ásia, e, em particular, a construção
com o Japão de um sistema regional de defesa antimíssil, a construção
de exércitos modernos nas Filipinas e o apoio logístico de porta-aviões
em Cingapura fazem parte desta estratégia.
15
“The original draft of the Defense Planning Guidance of 1992…..incorporate
d the suggestion that the US should work actively to block the emergence of
any potential competitor to American power, and the theory has never quite
shaken off this association” (Small, 2001, p. 50)
16
“That alone makes it a strategic competitor, not the “strategic partner” the
Clinton administration once called it. Add to this China’s record of
cooperation with Iran and Pakistan in the proliferation of ballistic missile
technology, and the security problem is obvious. China will do what it can to
enhance its position, whether by stealing nuclear secrets or by trying to
intimidate Taiwan”. (Condoleeza Rice, 2000, cit in Small p. 30)
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
107
Entretanto, mesmo em andamento, tal estratégia conflita, ou é
de coerência reduzida, quando se considera a imensa rede de interesses
privados na China, que seguramente preferem uma estratégia de
acomodação cujo modelo de desenvolvimento é muito mais aberto
aos investimentos estrangeiros do que, por exemplo, o Japão.
De fato, a China vem perseguindo nos últimos anos o que os
documentos oficiais denominam de “desenvolvimento pacífico”, na
verdade, a política longamente defendida por Chu En-lai e Deng
Xiaoping.
17
A percepção chinesa é que, desde a dissolução da União Soviética,
o principal obstáculo à sua ascensão pacífica é a política de contenção
americana. No ponto de vista de Pequim, através de claros sinais,
iniciativas e alianças militares,
18
os EUA têm posto em prática uma
política de contenção da China que iniciou nos anos 90 e assumiu
maior evidência no novo milênio.
Diante desta estratégia, a China vem desenvolvendo ampla
iniciativa voltada a construir um “poder nacional abrangente”. Ela
inclui uma política comercial e diplomática e uma estratégia militar.
17
Em 2004, como registra Arrighi (2007), Hu Jintao defendeu os quatro nãos:
à hegemonia, à força, à formação de blocos, à corrida armamentista.
18
O envio de dois cruzadores às águas de Taiwan em 1996, as alianças militares
e o estímulo ao envolvimento do Japão e Austrália nas questões de segurança
no Pacífico, a colisão de um avião espião americano com um jato chinês são
os sinais mais visíveis. Segundo analistas chineses, o acordo de cooperação
militar entre os EUA e o Japão iniciado em 1996 e voltado para que o Japão
assuma maiores responsabilidades iniciou crescentes suspeitas de que o Japão
se envolveria no apoio militar a Taiwan (Goldstein, 2001). As revoluções
coloridas (Geórgia, Ucrânia, Kyrgyzstão) foram vistas por Beijing como
utilização explícita e por meios indiretos do poder dos EUA (defesa da
democracia, da imprensa livre e de ONGs simpáticas aos EUA) para destruir
e criar governos aliados, num processo que tem por objetivo expandir a
presença americana na Ásia Central e enclausurar a China.
108
Carlos Aguiar de Medeiros
No campo comercial e diplomático, a crescente afirmação da China
nos fóruns multilaterais e sua política na Ásia são elementos centrais.
Em particular, entre os países asiáticos, a tentativa de anular a ação
americana através de políticas econômicas, diplomáticas e militares
constitui o motivo principal da “grande estratégia chinesa”. Com efeito,
como se argumentou, a política na Ásia objetiva a desfazer as
desconfianças políticas e militares dos países da ASEAN - a periferia
geográfica da China, mas sob forte influência americana - em relação
a expansão chinesa. Tais desconfianças têm sido exploradas diretamente
pelos EUA com o estabelecimento de acordos comerciais bilaterais e
de cooperação militar.
Em relação à estratégia militar é importante considerar a
mudança da doutrina militar da China e a sua percepção sobre o que
considera “poder nacional abrangente”. Desde a dissolução da União
Soviética e da primeira Guerra do Golfo Pérsico, a China mudou
inteiramente sua estratégia de enfrentamento, tradicionalmente baseada
na guerra de atrito de longa duração. A imensa superioridade
tecnológica revelada pelos EUA na primeira Guerra do Golfo, e,
posteriormente, no Iraque, mudou o horizonte e a concepção de guerra
do Exército de Libertação Popular (ELP). A “guerra local sob
condições de informatização” (DEFENSE REPORT, 2006) – uma
descrição de um potencial conflito no estreito de Taiwan - ao lado do
maior controle e acesso às águas internacionais passaram a ser as maiores
prioridades. A modernização de mísseis de longo alcance, em adição à
guerra assimétrica (agressão sem declaração de guerra) e a formação de
grupos de forças especiais de operação (como nos EUA) faz parte da
nova estratégia.
O orçamento militar chinês, cujo crescimento tem se dado a
uma taxa superior à do crescimento do PIB desde os anos 90, expandiu-
China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
109
se ainda mais rapidamente nos últimos anos (situando-se em 1,5% do
PIB),
19
concentrados na modernização da capacitação militar, mísseis,
balística, submarinos. (DEPARTMENT OF DEFENSE, 2006)
Possivelmente, o aspecto potencialmente mais desafiante da
estratégia chinesa seja a aproximação com a Rússia no plano militar.
Esta se deu a partir da afirmação da Organização de Cooperação de
Shanghai (OCS), uma instituição criada com o objetivo de reforçar a
segurança na Ásia central, reunindo China, Rússia, Cazaquistão,
Quirquistão, Uzbequistão e Tadjiquistão e com a inclusão como
observadores (após 2005) do Irã, Índia, Paquistão e Mongólia. A
despeito de uma retórica de cooperação e não-exclusão, esta instituição
constitui um primeiro esforço (do maior bloco produtor e consumidor
de petróleo e armas) de se contrapor à OTAN e ao unilateralismo
militar dos EUA.
20
CONCLUSÕES
Argumentou-se nestas breves notas que a ascensão econômica
chinesa enfrenta diversos desafios econômicos, sociais, geopolíticos e
políticos. Economicamente, a passagem de uma inserção externa baseada
19
A cifra oficial do gasto militar de 2006 foi de $35 bilhões; fontes americanas
consideram que o valor real estaria entre $70 a $105 bilhões, mais do que o
dobro do valor oficial.
20
Em 2005 ocorreu a primeira manobra militar de vasta escala entre China e
Rússia com a utilização de aviões e mísseis russos de última geração e uma
declaração conjunta renunciando a confrontação, o alinhamento e o
unilateralismo. Em 2006, a declaração da OCS sublinhou sua missão de garantir
a estabilidade estratégica na Ásia Central e a necessidade de garantir a
autonomia dos estados nacionais em perseguir seus modelos de
desenvolvimento, criticando explicitamente a exportação de modelos
econômicos e políticos.
110
Carlos Aguiar de Medeiros
em produtos padronizados e intensivos em trabalho para produtos
intensivos em ciência e a mudança do padrão de acumulação, com
maior dinamismo do consumo interno, constituem elementos centrais.
Do ponto de vista social, a redução das desigualdades na distribuição
da renda entre campo e cidade e posições ocupacionais, especialmente
com a elevação dos salários e bem-estar dos trabalhadores migrantes,
constituem, juntamente com a generalização do sistema de proteção
social, os desafios principais. Do ponto de vista geopolítico, as duas
questões centrais e que envolvem múltiplas determinações são a da
segurança energética e militar. A construção de fontes estáveis de
abastecimento de gás e petróleo, a expansão de uma ampla diplomacia
na Ásia, a formação de uma parceria estratégica com a Rússia e a
modernização tecnológica do ELP são centrais para a construção de
um poder nacional abrangente que possa contornar a política de
contenção dos EUA.
Com efeito, do ponto de vista da China, nada poderia ser mais
negativo política e economicamente do que um conflito aberto no
estreito de Taiwan com a presença de forças internacionais lideradas
pelos EUA. A possibilidade de uma derrota do Exército de Libertação
Popular poderia trazer repercussões desastrosas para a estratégia de
desenvolvimento e projeção internacional chinesa. Evitar o confronto,
manter as condições políticas sobre o controle do estado-partido e
priorizar o desenvolvimento econômico constituem os objetivos
maiores da ascensão pacífica chinesa.
REFERÊNCIAS
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China: Desenvolvimento Econômico e Ascensão Internacional
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Carlos Aguiar de Medeiros
113
O FATOR CHINA NOS NOVOS EQUILÍBRIOS REGIONAIS
Sergio Marcelo Cesarin
INTRODUÇÃO
O surgimento da China como um dos principais atores do
sistema internacional atrai a atenção de analistas, de líderes atônitos
com sua rápida transformação e do sobressaltado homem comum,
que assiste ao espetáculo de um mundo em mudança devido ao
protagonismo alcançado pelo antigo Império Central. De uma
empobrecida economia rural regida por determinantes ideológicas
(maoísmo chinês) à atual pujante economia estatal com amplos espaços
para o mercado, transcorreram quase três décadas, um período curto,
se se leva em consideração a projeção histórico-temporal de uma das
mais antigas culturas e civilizações que habitaram o planeta.
As circunstâncias internacionais e domésticas que deram alento
à virada histórica imposta pela política de reformas, a partir do final
da década de setenta do século XX, são distintas e dinâmicas. A
compreensão do mapa geoestratégico mundial, as mudanças no cenário
doméstico de poder, a assimetria de poder econômico entre a China e
as economias desenvolvidas, o fosso, com relação à riqueza e o
tecnológico que a separava de pujantes economias asiáticas (a Coréia,
Cingapura, Hong Kong), européias, de seu vizinho Japão, e,
principalmente, dos Estados Unidos, foram determinantes para
desencadear a abertura econômica e o início de um novo ciclo histórico.
A convicção dos dirigentes políticos, a canalização das energias
sociais para a geração de riqueza, a negação de uma radical mudança
114
Sergio Marcelo Cesarin
ideológica regida por um sentido de “revolução permanente”, a
recuperação do espírito nacional, tendo como centro o auto-respeito
e uma herança cultural comum, possibilitaram a implementação das
reformas como linha estratégica tendente a colocar novamente a China
entre as principais potências do Planeta.
A internacionalização da sociedade chinesa; os debates sobre
seu modelo de desenvolvimento; as expectativas que, como poder
oposto ao dos Estados Unidos, a China encerra; a redefinição imposta
à ordem econômica e política mundial; fundamentalmente, a
curiosidade intelectual que a revitalizada China cria, do ponto de vista
cultural, levam ao ponto culminante da reflexão de distintos
formuladores de políticas sobre os impactos que produzirá no futuro,
particularmente sobre o mundo em desenvolvimento.
A concretização de tais objetivos não é uma tarefa simples. A
profusa bibliografia existente, a qualidade dos trabalhos expostos à
opinião pública e o rigor com que autores latino-americanos, europeus
e estadunidenses analisam as mudanças produzidas na China e as que
ela introduz na compreensão dos assuntos mundiais, supôem lógicas
de interpretação num cenário dinâmico caracterizado pela transição
do sistema internacional para uma nova ordem de relações políticas
no século XXI.
Longe vão os dias da ideologia como força motriz da busca de
prestígio, autonomia e espaços internacionais; hoje, a vontade nacional
se expressa através de uma liderança pragmática que visa a explorar
oportunidades abertas pela globalização, e maximizar vantagens
derivadas de seu crescente poderio e do enfraquecimento de outros
atores sistêmicos. A essência do capitalismo global e de sua lógica
transformadora e expansionista tem sido bem entendida pela milenária
e mercantilista cultura chinesa, que luta para manter, no longo prazo,
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
115
um cenário favorável que sirva à reconstrução do antigo poder chinês.
Para a China, as respostas sobre o futuro estão em sua própria história,
utilizada como plataforma para projetar seu poder político, econômico
e cultural no mundo. Dessa forma, a China de hoje – e do futuro –
percorre um caminho (jing, trilha) cuja teleologia consiste em alcançar
o Olimpo das grandes potências nos meados do século atual.
Hoje, a poderosa economia chinesa, em busca de apoio político
e econômico, trocou os militantes revolucionários – maoístas –dos
anos sessenta e setenta por atilados políticos e tecnocratas formados
em universidades norte-americanas e européias, que fornecem
informação estratégica a diferentes agências governamentais e a
empresas. O sistema imperial de administração do Estado e de condução
do governo exige nova vida, após a “curta história” da República
Popular.
Com essa perspectiva, este trabalho indaga, em primeiro lugar,
sobre as tendências que hão de conduzir a ação chinesa, interna e
externa, nas duas próximas décadas, destacando os fatores domésticos
(regime político, governabilidade), os externos (configuração de novos
equilíbrios sistêmicos) e os principais vetores para a construção do
poder chinês mundial.
Em sua segunda parte, analisa a influência do “fator China” nos
equilíbrios geopolíticos regionais, o agravamento das tendências
competitivas unilaterais e sub-regionais, e a reorientação de recursos
políticos, econômicos e tecnológicos destinados a maximizar os
vínculos com a China. Finalmente, descreve os principais desafios para
o futuro, considerando a – necessária – redefinição de um modelo de
inserção externa latino-americana baseado no paradigma de uma nova
geografia econômica global articulada sobre a China e seu projeto de
integração do espaço econômico asiático.
116
Sergio Marcelo Cesarin
Diante dessas realidades, e tendo como quadro uma lenta
transição para um sistema multipolar de poder, destaca a erosão de
práticas associativas no campo de políticas de integração e a vontade
difusa de convergência de processos sub-regionais de cooperação
econômica, imprescindíveis para enfrentar, de forma colegiada, um
dos grandes desafios do século atual, qual seja o inevitável
ressurgimento da China. Em síntese, o “fator China” e seus impactos
na ALC, no longo prazo, deve ser ponderado adequadamente, para
evitar dinâmicas unilaterais e sub-regionais de competência que
produzam erosão em práticas comuns de negociação e agravem as
tensões norte-sul e leste-oeste na região.
1. TENDÊNCIAS ASSUMIDAS
Para o desenvolvimento (proposto) do argumento, assumo
como variáveis determinantes, em primeiro lugar, a persistência de
uma ordem sistêmica estável, que, apesar de tensões periódicas, configure
o cenário adequado aos interesses do surgimento de um renovado
poder chinês no mundo. O almejado cenário de paz e estabilidade,
funcional para a estratégia de modernização econômica chinesa,
responde a três fatores sócio-históricos e políticos profundos que
garantem o compromisso chinês para com a paz e a estabilidade globais:
i) adesão à paz – internacional – como parte de uma ordem axiológica
derivada do substrato cultural chinês (humanismo confuciano), cuja
extensão no campo operacional se expressa pela propensão para a
solução pacífica de conflitos internacionais, posição vantajosa na medida
em que a influência chinesa e sua posição determinante como ator
aumenta seu peso na formulação das agendas de negociação; ii) a
necessidade de empregar recursos de poder para assegurar a estabilidade
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
117
política interna garantidora da governabilidade do País: e iii) uma
orientação pragmática externa baseada em atributos próprios de uma
concepção “estadocêntrica” das relações internacionais, mas que não
se afaste do compromisso com a construção da governabilidade global
mediante a criação de instituções (multilateralismo ativo) que melhor
atenda a seus interesses.
1
Em segundo lugar, a evolução interna da China supõe a
persistência de um sistema político que ainda exibe a vitalidade do
“sistema imperial” de governo e de administração que consiste num
modelo de ordem na gestão dos negócios públicos (eficiência
burocrática), planejamento estatal e organização dos recursos de poder
do Estado com forte poder de coesão, uma liderança ajustada às novas
condições sociais e a persistência do controle político exercido pelo
Partido Comunista Chinês (PCC) mediante um bem selecionado
exercício de democracia interna aplicado a instâncias eletivas partidárias
e a estilos decisórios (centralismo democrático).
Dessa forma, a configuração de forças internas e as lutas entre
os fatores de poder (partido, forças armadas, governo) não supôem a
– futura – primazia das tensões rupturistas sino-evolutivas, tendentes
a reforçar a estabilidade doméstica mdiante o ajuste permanente entre
demandas sociais e oferta política.
Em terceiro lugar, a subordinação de metas de crescimento a
uma estratégia de desenvolvimento. Sem dúvida, o ingresso pleno da
China no sistema capitalista mundial alonga seu alcance e outorga
vitalidade renovada. Portanto, a inserção da China na economia
1
O interesse chinês pela administração dos equilíbrios internacionais terá no sistema
das Nações Unidas um dos cenários de maior ativismo político-diplomático; como
Membro Permanente do Conselho de Segurança (CSNU), a China almeja a
redistribuição de poder mundial “começando de cima”.
118
Sergio Marcelo Cesarin
mundial – não isenta de tensões e desafios internos – continuará
transformando-a em uma das principais potências políticas,
econômicas, militares e técnico-científicas do mundo. As projeções
são concordes em indicar que a China ultrapassará a Alemanha como
primeiro exportador mundial em 2008; aumentará o controle sobre
os fluxos financeiros internacionais (comércio e investimentos) por
meio da poupança nacional e dos excedentes comerciais; comandará a
definição de ciclos de ascenso e descenso na economia mundial; a
determinação dos preços internacionais das matérias-primas essenciais
para as economias em desenvolvimento; e, a persistir a trilha de
crescimento rápido, converter-se-á na primeira economia do mundo,
nos meados do século.
Na categoria das vulnerabilidades, o crescente consumo de
energia tornará mais aguda a dependência externa em matéria de
hidrocarboneto (compensada apenas pelo aporte de outras fontes
convencionais e não-convencionais ou aperfeiçoamentos tecnológicos)
e matérias-primas. É muito provável que a China não alcance “segurança
energética”, e, muito menos, “segurança alimentar” reforçando
esquemas de cooperação com países do Sudeste da Ásia, que serão
provedores essenciais (de petróleo, de gás) nas décadas vindouras,
condicionados, porém, pela persistência de conflitos, produto de
dinâmicas próprias (políticas, econômica, religiosas, étnicas), bem como
pela ingerência de atores externos. Maior poder militar acompanhará
esse cenário. A China mantém suas hipóteses de guerra baseadas no
controle de recursos naturais vitais e/ou em rotas de abastecimento.
Nem deve ser descartado o surgimento de atores políticos contestadores
e de forças sociais (campesinato, trabalhadores) organizadas que
ponham em perigo a estabilidade interna do regime, resultado de um
processo de acumulação de tensões sociais derivadas da inquietação
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
119
ou da deterioração das condições de vida no interior do País. Nesse
caso, o apelo para o “nacionalismo”, para moderar a oposição, ver-se-
á enfraquecido pelos riscos colaterais que a mobilização social pode
ocasionar ante o descrédito do poder político.
No processo de construção de poder, a China recorre a vetores
definidos para eliminar o hiato que a separa das nações mais adiantadas.
Primeiro, no campo das idéias: o Estado importa, e um modelo de
capitalismo (modelo asiático) associado a sua eficiente gestão-
intervenção continua vigente. Diante do processo de deslocamento
em diversos países, o Estado e suas instituições continuam sendo os
provedores de políticas e estratégias a longo prazo direcionadas para a
consecução de objetivos nacionais, tais como o desenvolvimento
econômico, a integridade territorial e a defesa ante novas e antigas
ameaças. Embora os atores não-estatais recuperem vitalidade, o modelo
chinês (sistema imperial) realça o controle estatal sobre os fatores de
produção, cedendo quotas de mercado – marginais – à economia
privada. Um projeto integrador, expresso no plano nacional, ordena
as variáveis cerntrais do processo e determina o alcance político a longo
prazo.
2
Em segundo lugar, o controle sobre os processos e ciclos
tecnológicos compreende o domínio de tecnologias avançadas
(nanotecnologia, novos materiais, tecnologias de informação), a maioria
de aplicação dual. O terceiro vetor de transformação é o controle de
cadeias globais de valor mediante Empresas Transnacionais (ETNs),
em sua maioria estatais; nos ciclos de pesquisa e desenvolvimento (P&D)
e suas aplicações práticas (inovação) reside o “grande salto para a frente”
2
Um esquema muito semelhante é o Plano Três Tempos, do Brasil, que oferece um
modelo de planejamento estratégico pouco seguido pelos demais países latino-
americanos.
120
Sergio Marcelo Cesarin
que a China deu em exportações de média e alta tecnologia durante a
última década. A correlação destas capacidades com políticas de
modernização da defesa explicam o poderio militar (terrestre,
marítimo, aeroespacial) que a China conseguiu construir a partir do
fim da Guerra Fria.
Uma estratégia de “pega tudo” supõe maximização da
incorporação de tecnologias definidoras para construir poder
econômico e cooptar empresas em setores tecnologicamente intensivos
(inclusive na ALC), mediante fusão, compra ou associação
3
, bem como
estabelecer “protocolos e padrões” tecnológicos (em telecomunicações,
pela Internet, por satélites ou audiovisuais) fora dos internacionalmente
vigentes, com a finalidade de gerar relações de dependência tecnológica
que rebaixem a posição dominante da Europa, dos Estados Unidos,
da Coréia ou do Japão.
4
Finalmente, o controle sobre os fluxos financeiros é o quinto
vetor que assegura a ascensão acelerada da China na hierarquia de
poder mundial. O processo de acumulação de excedentes comerciais
tem possibilitado aumentar as margens de manobra autônomas
internacionais, provendo investimentos, capitais e empréstimos às
nações em desenvolvimento, entre as quais se encontram as latino-
americanas. A participação da China na compra de ativos de diferentes
países por meio de “fundos soberanos”, é um indicador da sofisticação
alcançada pelos administadores econômicos e de seu conhecimento
sobre as regras do capitalismo mundial.
5
3
Um exemplo em tal sentido oferece-o a compra de empresas relacionadas com o
desenvolvimento aeroespacial na Argentina.
4
S
ão exemplos a aplicação de tecnologias próprias em sistemas de telecomunicações 3
G, os sistemas de navegação aeroespacial e a Internet..
5
Para tal fim, o Governo chinês criou a Agência Estatal de Pesquisas, responsável por
administrar uma carteira de US$ 230.000 milhões, destinada à aquisição de ativos em
diferentes países.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
121
2. O PODER CHINÊS NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE
Imagens regedoras aproximam politicamente a China da ALC.
A tradicional concepção chinesa das relações interestatais pressupõe
que os países latino-americanos fazem parte do mundo em
desenvolvimento, conservam uma história compartilhada e tradição
política sobre “não-alinhamento” aplicado à cooperação política e à
militância anti-hegemônica e seu reservatório de matérias-primas e
recursos naturais. Em segundo lugar, a ALC é o principal “campo de
batalha” entre a China e Taiwan. A participação da ALC na trama de
vínculos econômicos internacionais da China é marginal, comparada
com a de outras zonas do Planeta; contudo, o “capital político” que
representa nesta contenda é determinante na orientação dos recursos
financeiros, econômicos, políticos e militares para a região, a fim de
aumentar a “contenção” internacional de Taiwan.
6
Uma diplomacia multirradial permite o desdobramento do
poder chinês na ALC. A região faz parte do exercício diplomático
chinês voltado para a sustentação de sua “ascensão pacífica” (peaceful
development strategy) à hierarquia de poder mundial.
O processo de transformação econômica gera maior
dependência externa de insumos e de matérias-primas, o que aumenta
sua vulnerabilidade diante de um possível conflito geoestratégico com
potências hostis (leia-se Estados Unidos). Dessa forma, a ALC, como
“zona de paz”, ganha importância por sua riqueza de recursos naturais
e como “provedora alternativa” que sirva de resseguro ante possíveis
crises energéticas ou alimentares.
6
Ver: Cesarin, Sergio, The relationships between China and Latin America: realities
and trends, em Enter the Dragon? China´s presence in Latin America, Cynthia
Arnson, Mark Mohr and Riordan Roett (Editors), School of Advanced Studies (SAIS),
Latin American Program, Washington DC, Febrero, 2008, pp. 17 – 26.
122
Sergio Marcelo Cesarin
Para a consecução desses objetivos, os recursos são múltiplos e
variados. Alianças bilaterais, inserção em esquemas sub-regionais de
cooperação e integração (MERCOSUL), participação na
institucionalidade hemisférica (OEA, BID, Pacto Andino, Fórum de
Cooperação Leste da Ásia-América Latina – FOCALAE).
Outrossim, os vínculos não-governamentais abrem canais
complementares da diplomacia pública mediante, por exemplo, elos
estabelecidos entre organizações empresariais, centros acadêmicos ou
baseados em semelhanças culturais.
7
A China ajusta sua política exterior na ALC para não entrar em
confronto direto com os Estados Unidos. Mesmo quando os idealizadores
de políticas chineses sustentam este argumento, é evidente que na América
Latina a China demonstra capacidade de manobra e influência como agente
global numa área geograficamente afastada de seu primeiro círculo de
interesses estratégicos (o Nordeste e o Sudeste da Ásia). O enfraquecimento
da capacidade norte-americana de impor coalizões, o fracasso na guerra
do Iraque e a oposição na ALC ao projeto hemisférico de integracão
(ALCA), constituem restrições com que opera a potência hegemônica
em nível mundial e regional, que a China tem sabido aproveitar. Outros
fatores, como a imagem negativa dos Estados Unidos na região, o
surgimento de movimentos sociais críticos da posição de Washington e a
diversidade de governos nacional-populistas e de esquerda que vêem a
China como uma “terceira via” para alcançar o desenvolvimento
econômico, servem para ampliar seus espaços de influência na região.
A sofisticada política de alianças divisada pela China maximiza
as vantagens derivadas do “vazio diplomático” deixado por
7
Por exemplo, a ponte entre a China e o mundo lusófono, através de Macau, constitui
um vetor que possibilita a aproximação com o Brasil, e, por conseguinte, aumenta a
projeção do poder cinhês na ALC.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
123
Washington, particularmente após o 11 de setembro, permitindo
projetar poder até o “quintal” norte-americano. Constituem exemplos
a cooperação chinesa com a Venezuela e com Cuba; o eixo crítico
Havana-Caracas; os interesses chineses no Panamá, que permitem
projetar poder até os Estados Unidos (costa oeste) por meio do controle
que empresas (continentais e de Hong Kong, como a Hutchinson
Whampoa) alinhadas com os interesses estratégicos de Pequim exercem
no tráfego marítimo através do Canal; a influência sobre setores
empresariais centro-americanos; a escolha do Peru e do Chile como
parceiros comerciais preferenciais (TLCs) e a utilização da ex-base
americana em Manta (Equador), dão alento à formação de um “arco
do Pacífico” como eixo para a entrada e saída de bens e servíços que
criem interconexão entre a costa oriental latino-americana (Atlântico)
e o oeste subcontinental (Oceano Pacífico). A presença de firmas
mineradoras e de energia na Bolívia realça a relevância atribuída a um
país chave na equação energética sul-americana, e a possibilidade de
saída de metais e minerais pelos portos chilenos do Pacífico.
8
A China define, dessa forma, uma nova realidade geoeconômica
latino-americana. Os investimentos chineses na região localizam-se
principalmente em setores extrativos (como na África), acompanhados
pelo desenvolvimento de infra-estrutura que assegure rápida e eficiente
saída para bens e serviços. A Venezuela é o primeiro beneficiário dos
investimentos chineses na ALC, seguida pelo Brasil. Dessa forma, a
matriz empresarial latino-americana também viu-se enriquecida pela
operação de firmas multinacionais chinesas (estatais, nacionais ou
provinciais), que, por sua escala no quadro de processos de
8
Ver, a repeito: América latina al encuentro de China e India: perspectivas y desafíos
en comercio e inversión, Rosales, Osvaldo y Kuwayama, Mikio, Revista de la CEPAL
No.93, Diciembre 2007, pps. 85 – 109.
124
Sergio Marcelo Cesarin
internacionalização, ajustam suas operações a vastos mercados e buscam
estabelecer alianças que facilitem acesso ao mercado, ajudem na
construção de prestígio chinês no mundo e, mediante ágeis processos
de fusão e aquisição (M&A), dêem impulso à integração vertical de
processos industriais. Ao mesmo tempo, o mercado chinês também
passou a ser um “campo de experimentação” para ETNs latino-
americanas (Translativas) e para milhares de pequenas e médias
empresas (P&Mes) exportadoras ávidas por alcançar o sofisticado e
competitivo mercado chinês. São exemplos concretos a expansão de
operações de Chinalco (produtora de alumínio) no Peru; a compra,
por parte da MCC (mineradora), de uma fábrica produtora de minério
de ferro na Argentina; os acordos entre a Shanghai Baosteel com a
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD); as operações no setor
energético da Sinopec y Petrochem, na Venezuela e no Equador, bem
como no setor industrial a instalação da Zhongxing Automobile no
México (com o objetivo de exportar 25% da produção para os Estados
Unidos, a partir de 2009), ou a Chery Automotive, no Uruguai. Por
outra parte, pelo lado latino-americano, são emblemáticas as alianças
celebradas com empresas chinesas por parte da Embraer, da Petrobrás
(Brasil), da PDVSA (Venezuela) e da CODELCO (Chile), entre outras.
A mobilização de recursos políticos, econômicos, culturais,
financeiros e científico-tecnológicos mostra, às vezes, a irrelevância
dos governos e a crescente importância que adquirem os agentes
não-estatais. Na fase menos pública, a China promove a imigração
de cidadãos para a região como um movimento sincrônico com
processos de formação de comunidades chinesas em diferentes países
do mundo.
9
O padrão tradicional de vinculações que mantêm os
9
O Canadá, a Austrália, a Colômbia, a Argentina, o Chile, a Angola, a Nigéria e o
Sudão.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
125
“chineses de além-mar” com seu país de origem e a rede de contatos
com a ALC geram, por si mesmos, um espaço de influência política,
cultural e econômica não-formal, mas funcional para consecução de
seus interesses e objetivos de longo prazo.
10
As correntes migratórias do século XIX, conseqüência da pobreza,
foram substituídas por imigrantes com capital, artesãos e pequenos
empresários dispostos a prestar serviços comerciais, financeiros, turísticos
ou de intermediação comercial. Os exemplos mais concretos provêm das
comunidades chinesas historicamente localizadas no Peru
11
, no México,
no Panamá, no Brasil e em Cuba. Outras mais recentes se estabeleceram
na Argentina, no Chile, na Venezuela e na Bolívia. Todas mesclam as
realidades e interesses locais com as do poder central chinês, dando origem
a um processo de retroalimentação de interesses entre os países latino-
americanos e a China. Um exemplo de interesse surge dos laços entre a
comunidade chinesa de negócios estabelecida em Cuba e os residentes
chineses em Miami (Flórida), intermediários em operações comerciais.
Dessa forma, a economia transnacional baseada em vínculos étnicos ignora
as fronteiras dos estados, mas agrega um dado político chave para a agenda
dos governos envolvidos (China, Estados Unidos e Cuba).
3. IMAGINANDO O FUTURO. A CHINA, FATOR DE
ESTABILIDADE OU DE INSTABILIDADE NA AMÉRICA LATINA?
Os impactos, a longo prazo, gerados pela China na ALC, nos
levam a indagar sobre a evolução dos vínculos intra-regionais em
10
Os espaços geográficos “vazios” na ALC tornam-na atraente para a imigação chinesa,
proveniente, em sua maioria, de províncias litorâneas, como Fujian e Guangdong,
historicamente “expelidoras” de população.
11
Por exemplo, a comunidade chinesa era a colônia estrangeiro mais numerosa em
Ituitos (Amazônia peruana), no início do século XIX.
126
Sergio Marcelo Cesarin
matéria de política e economia, sobre o futuro dos projetos de
integração, e, inclusive, sobre o futuro de iniciativas de “defesa
conjunta” na ALC, considerando não apenas a crescente influência da
China no cenário regional, como também de todos os outros atores,
como a Rússia e a Índia.
Nesse sentido, a presença da China na ALC suscita temores e
esperanças; o ying y yang de sua inserção regional é permanentemente
exposto por políticos, intelelectuais e acadêmicos; todavia, para o
cenário dinâmico do presente ou o horizonte difuso do futuro não
existem respostas unívocas. O certo é que dificilmente os desafios que
a China impõe podem ser desdenhados pela região, mediante maiores
doses de cooperação-coordenação-integração e una bem dosada
engenharia de processos políticos, diplomáticos, culturais, financeiros
e técnico-científicos para manter a representatividade da região na
futura distribuição de poder mundial. Enquanto se observam dinâmicas
emergentes na região, derivadas das tensões ocasionadas pelo ativismo
de atores globais, como a China, outras, ainda permanecem ocultas,
por isso julgo necessário destacar alguns dentre os eixos de análise a
seguir.
1) A busca de alianças e condições alternativas fora das
tradicionais, por parte dos países latino-americanos, direcionou para
a China seu principal foco de atenção. Nessa etapa histórica, as
aspirações latino-americanas coincidem novamente com os objetivos
e interesses chineses de longo prazo, não por meio da “revolução ou
da ideologia”, mas, sim, do acordo e da cooperação econômica. Pela
maioria dos países latino-americanos, a China é considerada uma opção
preferencial de política exterior, com o objetivo de aumentar as
margens de autonomia externa num contexto de redistribuição de
poder mundial e de ampliação de oportunidades econômicas globais.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
127
Para grande parte dos planejadores de política latino-aamericanos, o
“fator China” soma vantagens, considerando que outros “atores
globais” desenvolvem regionalmente parte de seu jogo competitivo
no sistema internacional, e, por conseguinte, também contribuem com
“graus adicionais de liberdade” aplicados à diversificação de vínculos
externos. Como conseqüência, as mudanças na geografia econômica
mundial e o futuro surgimento da China como um dos atores centrais
do sistema de poder supõem o repensar da vigência e/ou da geometria
de sistemas “tradicionais” de aliança, isto é, ponderar o papel da Europa
e dos Estados Unidos na definição de estratégias (políticas e econômicas),
bem como a orientação e aplicação de recursos de poder – em sua
maioria escassos – para a consecução de tais objetivos. Nesse sentido,
a prática política na ALC demonstra que convivem diferentes
perspectivas que oscilam entre a escolha da China como o tipo ideal
de sócio-aliado para contrabalançar a influência norte-americana e/ou
européia na região, os que propugnam a utilização da “Carta chinesa”
para obter concessões (políticas, econômicas e financeiras) dos poderes
dominantes na região, ou os que almejam manter “constantes de
vinculação” ou alinhamento. Os entrecruzamentos são variados, e o
mapa de vinculações sino-latino-americanas mostra a “geometria
variável” das políticas exteriores dos Estados da região.
2) Conhecer melhor os fundamentos do “poder chinês”. A ALC
anela encontrar um “contrapoder” que modere a ingerência –
intervenção – norte-americana na região. Contudo, pouco sabemos
ainda sobre os objetivos do poder chinês e seus reais anelos de exercer
liderança internacional. Diante dessa situação, podemos assumir um
amplo leque de opções entre as que priorizam a imagem de uma China
interlocutora e defensora dos países em desenvolvimento, frente aos
poderes dirigentes da ordem mundial, ou aceitar que o realismo
128
Sergio Marcelo Cesarin
pragmático de sua direção subordinará nossos interesses à associação
com os principais atores do sistema.
A princípio, é preciso reconhecer que o “nacionalismo imperial”,
que guia a política exterior chinesa, concentrará cada vez mais seus
recursos de poder (econômico, político, cultural, e, sobretudo, militar)
na Ásia. A ALC não é nem será uma prioridade para a China, e tal o
afirmam estudo e documentos de governo.
12
O mais recente, elaborado
pela Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS), define as grande
linhas da política exterior chinesa para as próximas décadas. No
documento, cujo título é Estratégia de Pomba da Paz, elaborado por
acadêmicos, e aceito pelo poder político, os analistas sugerem
concentração de esforços nas Nções Unidas (cabe1ça), alianças com a
Europa e os Estados Unidos (asas), sustentatadas pelo tronco, ou corpo,
que significa sua aliança de integração com os demais países asiáticos,
e, finalmente, a cauda, representada pela América Latina, a África e a
Oceania.
Como conseqüência, num contexto de declínio do poder
relativo norte-americano e europeu, a “irrelevância estratégica” regional
estendida a outros poderes emergentes, pode muito bem ser aproveitada
pela ALC com o objetivo de maximizar a autonomia externa e construir
poder de base regional.
3) A China, fator de estabilidade ou instabilidade na ALC – A
ALC faz parte do cenário global de confrontação estratégica com os
Estados Unidos. A presença chinesa na ALC atrai a atenção de analistas
12
O mais recente, elaborado pela Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS),
define as grande linhas da política exterior chinesa para as próximas décadas. No
documento, cujo título é Estratégia de Pomba da Paz, elaborado por acadêmicos, e
aceito pelo poder político, os analistas sugerem concentração de esforços nas Nções
Unidas (cabeça), alianças com a Europa e os Estados Unidos (asas), sustentatadas pelo
tronco, ou corpo, que significa sua aliança de integração com os demais países asiáticos,
e, finalmente, a cauda, representada pela América Latina, a África e a Oceania.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
129129
e políticos em Washington, os quais, mediante a implementação de
uma atuante diplomacia de contenção, com apoio de governos aliados,
tenta limitar a ingerência chinesa na região. No front econômico, as
pretensões chinesas de formalizar acordos de livre comércio (TLC)
com economias latino-americanas (uma via de cooperação que
Washington tem dificuldade de impor) reforçam as percepções críticas
sobre o agir chinês na região. A cooperação no campo militar com
países “não-confiáveis” para Washington, inclusive venda de armas,
transferência de tecnologias sensíveis e formação de oficiais de alta
patente, aumenta as suspeitas sobre as pretensões chinesas na ALC.
No plano multilateral hemisférico, a participação chinesa no
sistema interamericano (a China possui o status de Observador
Permanente da OEA desde 2004), a presença de tropas chinesas em
operações de manutenção da paz (Haiti) e suas pretensões de ingressar
no BID são também avaliadas com cautela pelos Estados Unidos.
Resumindo, a atuante diplomacia chinesa na ALC atrairá cada vez
mais a atenção de Washington, redundando em maior interferência e
conflitividade intra-regional.
4) A China nas políticas de defesa. A “variável China” faz parte
das hipóteses de conflito elaboradas por diferentes países latino-
americanos. As políticas de defesa em diversos países da região prevêem
que as principais ameaças provêm de setores “externos hostis”
compelidos a ceder vastos recursos naturais (biodiversidde, água,
minerais, terras agrícolas, hidrocarboneto). O pretenso controle sobre
os recursos naturais por meios políticos e econômicos e/ou a
combinação destes, com ameaça militar, inclusive tentativas de
“internacionalização” de reservas naturais estratégicas (hídricas,
florestais, energéticas, minerais) faz parte do leque de futuras ameaças
intra e extra-regionais, sendo a China um fator a mais a considerar.
130
Sergio Marcelo Cesarin
Dessa forma, as doutrinas nacionais de defesa, a disposição do
instrumento militar e os sistemas nacionais de vigilância (aeroespaciais,
marítimos, terrestres) presumem como possível (embora pouco
provável) a agressão de agentes extra-regionais, pelo que é necessário
adequar as capacidades defensivas nacionais. Indício do aqui exposto é
o aumento dos pressupostos militares: compra de armamento na ALC,
realocação de bases e reativação de indústrias para a defesa, com objetivo
de proteger recursos naturais estratégicos.
Com esse quadro, rompido o sistema interamericano de defesa,
e considerando-se a potencial presença hostil de novos atores, a procura
de instrumentos comuns tendentes a constituir um “sistema sul-
americano” de defesa parece responder a esses desafios.
5) Possibilitar as vantagens e desvantagens da competição
regional.
A ALC, tradicionalmente importante para os dirigentes chineses,
exige nova entidade como reserva de recursos necessários para seu
desenvolvimento. Contudo, esse cenário de benefício mútuo no curto
prazo parece perder o colorido quando se trata do longo prazo. A
natureza do intercâmbio econômico sino-latino-americano é basicamente
interindustrial, com poucos setores (automotivo, de maquinaria) de
comércio intra-industrial restritos a países como o Brasil e o México.
13
Do ponto de vista do planejamento econômico de longo prazo,
a correlação futura dos ciclos econômicos latino-americanos com os
vaivéns da oferta e da demanda de matérias-primas de commodities
13
A ALC responde por 4% das importações chinesas de todas as procedências, e é
destinatária de 3% de suas exportações; em manufaturas, apenas 1,1% (ASEAN, 10,9%,
Mesquita Moreira, 2006). Os 71% das exportações latino-americanas com destino à
China são compostos por produtos primários e manufaturas baseadas em recursos
naturais. Ver: Mesquita Moreira, Mauricio, Fear of China: Is there a future for
manufacturing in Latin America?, INTAL – ITD, Ocasional Paper 36, April 2006.
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
131
por parte da China (e da Índia, inclusive) não costuma ser um dado
tranquilizador. O papel arbitral da China como formadora de preços
internacionais, e uma possível onda neoprotecionista por
determinantes internos, não constituem um precedente de maiores
certezas para o futuro.
Por conseguinte, a China é um ativo “parceiro para o
crescimento”, porém persistem riscos de que como “parceiro
alternativo” reafirme condições estruturais do subdesenvolvimento
latino-americano.
6) A China na reorganização do espaço geoeconômico latino-
americano. As políticas nacionais para o desenvolvimento industrial, o
fomento do investimento, a ciência e tecnologia, o emprego, o
desenvolvimento de infra-estrutura e financiamento (novo “prestamista
de última hora”) incluem a China em sua definição. Os exemplos são
eloqüentes. Os planos para a infra-estrutura da integração (corredores
bioceânicos, redes de transporte) atendem à futura demanda chinesa e
asiática em geral.
14
Como resultado, o epaço geoeconômico latino-
americano é tracionado para o “oeste” do subcontinente, para satisfazer
a escala ascendente de comércio em direção ao Pacífico. Tudo isso requer
uma cuidadosa coordenação de políticas e a construção de consenso
que favoreça estratégias win–win e não aumente as assimetrias existentes.
Os projetos de integração energética e física, e as aspirações de
satisfazer a demanda chinesa parecem revalidar o heartland geopolítico
sul-americano formado pelo eixo histórico Norte do Chile–Bolívia–
Peru. A densidade de interconexões leste–oeste (corredores), a
relevância adquirida por países produtores de energia e a teia de
14
A iniciativa mais ambiciosa na América do Sul é a Iniciativa para a Integração da
Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA); na América Central, o alargamento
do Canal de Panamá e o projetado Canal Secon, na Nicarágua, também corroboram
o acima exposto.
132
Sergio Marcelo Cesarin
tratados de livre comércio (TLCs) que aproximam a costa ocidental
latino-americana das economias asiáticas (China–Chile, Chile–Coréia,
Peru–China, Índia–Chile) parecem dotar de nova vida a configuração
econômica (e, obviamente, política) da antiga ordem do Vice-Reino,
o que, inevitavelmente, gerará tensões norte–sul e leste–oeste na região.
7) Ausência de consenso, unilateralismo competitivo, sub-
regionalismo competitivo, ou políticas de integração. A China nos
põe diante de nossas carências em matéria de coordenação econômica
e pactuação política. A erosão do princípio de “ação coletiva”, o vazio
de confiança aberto no MERCOSUL, e a dispersão de esforços
integradores inibem o desenho de estratégias comuns fente a novos
atores, como a China. A perda do horizonte estratégico da integração
alerta para a importância de aplicar instrumentos comuns para enfrentar
os desafios e maximizar os benefícios de uma relação intensa.
A soma negativa de “unilateralismo competitivo”, de estratégia
de free hidding e de “sub-regionalismo competitivo” afetam a
viabilidade dos processos de integração na América do Sul, erodem
práticas e disciplinas comuns de negociação e tensionam as relações
políticas entre os Estados da região, uma de cujas expressões mais
preocupantes é o incremento de conflitos de limites (Bolívia, Chile,
Peru, Venezuela, Colômbia, Nicarágua, Honduras), relacionados,
ao que parece, com pretensão de controle sobre os recursos
(marítimos, energéticos) e rotas marítimas. Diante de tal cenário, os
governos latino-americanos não deveriam perder de vista a necessária
convergência entre iniciativas sub-regionais de integração, e o apoio
a projetos que consolidem a união política e econômica regional par
enfrentar os desafios do século XXI.
15
15
Nesse sentido, dois projetos em andamento surgem como relevantes: a Comunidade
Sul-americana de Nações (CSN) e a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA).
O Fator China nos Novos Equilíbrios Regionais
133
8) Imigração chinesa e morfologia social. As iniciativas
governamentais nem sempre provêem indicadores apropriados sobre a
intensidade das relações bilaterais, sub-regionais e inter-regionais. Por vezes,
as mesmas ficam inexpressivas diante da importância de processos sociais,
de redes acadêmicas e de intercâmbios culturais que constituem o
underpinning da relação pública. É por isso que as redes transnacionais
baseadas na identificação étnica soem ser uma variável relevante a considerar
nas agendas nacionais, sub-regionais e regionais. Especialmente importantes
são as redes étnicas para a promoção de contatos empresariais e a
dinamização de atividades econômicas ligadas ao comércio e às finanças.
O biculturalismo e contatos internacionais favorecem as
interações econômicas para além da vontade reguladora dos governos.
Nesse sentido, as comunidades chinesas, importantes em número e
em representatividade econômica, são funcionais para a marcha do
poder chinês na ALC. Por essa razão, o diagnóstico sobre o futuro
das relações sino-latino-americanas requer análise de seu papel nos
processos políticos e econômicos internos (poder de pressão, influência
sobre as decisões de governo), atividades comerciais (unidades de
negócios, pequenas e médias empresas), seu aporte ou não para a
estabilidade social, ou sua importância como emissores de remessas.
Em última instância, os resultados nos dirão que papel desempenha a
ALC na construção do poder econômico chinês.
9) Os temas indesejados. Sem dúvida, uma agenda latino-
americana voltada para a consecução de objetivos econômicos com a
China reduz a relevância pública de temas “sensíveis” como
democratização, direitos humanos ou liberdade de expressão. A
tradição política latino-americana – e vários governos na atualidade –
se destaca por sua promoção ativa dos direitos humanos em âmbito
internacional; entretanto, evidentes razões econômicas condicionam o
134
Sergio Marcelo Cesarin
“pensamento crítico” latino-americano quando se trata da China.
Cabe perguntarmo-nos se o debate sobre uma nova ordem mundial
e os valores que hão de promover atores emergentes tornam
necessário ajustar as políticas de “padrão duplo” para que a ALC
recupere seu papel de liderança neste campo, sem perder as
vantajosas posições em outros contextos.
CONCLUSÕES
A ascensão da China (“desenvolvimento pacífico”) na
hierarquia de poder mundial implica recomposição de forças e novos
equilíbrios globais. Os principais atores do sistema internacional
ajustam suas agendas políticas, econômicas e de defesa conferindo
relevância ao “fator China”. As economias primário-exportadoras,
entre as quais se inclui a maioria das latino-americanas, buscam
maximizar as vantagens derivadas do alto preço das commodities e
das matérias-primas, conseqüência da recente demanda chinesa.
Como resultado, a China se transformou em um dos principais
fatores da recuperação econômica latino-americana.
Nesse contexto, embora o menu de oportunidades pareça
vasto, no longo prazo surgem indagações a serem respondidas. A
presença chinesa na região gera reacomodações geopolíticas e
geoeconômicas que devem ser conduzidas de maneira tal que sirvam
a políticas de integração regional, não alimentem preferências
unilaterais dos Estados em prejuízo das coletivas, e não agravem as
tensões norte–sul ou leste–oeste na região.
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Sergio Marcelo Cesarin
137
Desde o início dos anos 80, a China vem gerando o mais
dinâmico crescimento do mundo em termos de produto nacional bruto
e de comércio, colocando-se na vanguarda dos países que atraem
investimentos estrangeiros. Por trás, freqüentemente, deste quadro
brilhante de reforma, encontram-se estruturas resistentes, na verdade
exacerbadas de desigualdade e as vibrantes formas de resistência
popular que elas geraram.
São igualmente ignoradas as desigualdades da era revolucionária,
inclusive com a permanência de legados históricos e de novas formas
de desigualdade, que foram a conseqüência das políticas do Estado.
Proporei um quadro para avaliar as estruturas da desigualdade chinesa
em épocas sucessivas da revolução e da reforma; sugerirei uma
abordagem para aferir os vencedores e os perdedores em duas épocas
do desenvolvimento chinês, e avaliarei brevemente a cambiante relação
em mudança entre os movimentos sociais e as estruturas de
desigualdade.
Duas indagações chave conduzem a análise: quais são os legados
da Revolução Chinesa na busca de igualdade social? Como a reforma
reestruturou os padrões de desigualdade e moldou as trajetórias do
desenvolvimento? Finalmente: explorarei brevemente a relação entre
* Este documento utiliza trabalho escrito e pesquisa em andamento em colaboração
com Ching Kwan Lee.
DESIGUALDADE DURADOURA DA CHINA:
REVOLUÇÃO, REFORMA E POLÍTICA ECONÔMICA
DO DESENVOLVIMENTO*
Mark Selden
138
Mark Selden
as sublevações sociais durante ambos os períodos e os padrões de
desigualdade em mudança. A desigualdade persistente, definida
geralmente em termos de renda, riqueza, reclamo de
oportunidades de vida e de atendimento das necessidades básicas
resultou de três hierarquias duradouras – de classe, de cidadania
e de localização – cujos mecanismos e interação têm estado em
fluxo ao longo do tempo e do espaço nas últimas seis décadas
Por exemplo: enquanto uma estrutura de classe
politicamente definida durante a era revolucionária foi
transformada pelas forças do mercado, houve continuidade na
habilidade da classe burocrática para dominar os cidadãos comuns,
tanto na cidade quanto na zona rural. Uma hierarquia de
cidadania desigual evoluiu da era revolucionária para a da reforma.
Em ambas as épocas o Estado conferiu diferente direitos e poderes
a categorias de cidadãos chineses definidos segundo a classe social
e a localização espacial. Os residentes rurais e os urbanos foram
tratados diferentemente, particularmente a partir dos anos 60,
mesmo com os pacotes de direitos e concessões pertinentes tendo
mudado de conteúdo ao longo do tempo. A transição da era da
guerra revolucionária e de transformação social para a de
integração no mercado global produziu o resultado paradoxal de
localizar e fragmentar os conflitos de classe e os protestos que
antes, como no caso da reforma agrária e da Revolução Cultural,
assumiram principalmente a forma de mobilizações de massa de
grande alcance, iniciadas pelo partido em escala nacional. A
retórica da classe e da exploração deu lugar a um discurso liberal
que enfatizava os direitos, a legalidade, a cidadania e a
estratificação que disfarça a exacerbada desigualdade de classes e
espacial.
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
139
I. TRANSFORMAÇÃO DA CLASSE, DA CIDADANIA E DAS
HIERARQUIAS ESPACIAIS, 1945-1970
A reforma agrária e os subseqüentes controles do mercado
eliminaram as principais classes sociais rurais polarizadas enraizadas
em diferentes propriedade da terra e riqueza diferenciadas, o que
produziu uma chocante homogeneização das rendas e das
oportunidades internas dos vilarejos, ao mesmo tempo em que
proporcionava uma importante nova divisão social entre os quadros e
os aldeões. Nos anos 1946-53, o confisco e a redistribuição da terra
satisfizeram parcialmente os sem-terra e os pobres em termos de terra
e derrubaram a elite rural, ao mesmo tempo em que estabelecia um
modo de luta de classe.
Os resultados incluíram, basicamente, propriedade de terra per
capita no âmbito de cada comunidade do vilarejo e a ascensão ao poder
de uma liderança partidária local comprometida com a reforma agrária.
A coletivização, juntamente com a contração do mercado,
transformaram as instituições agrárias e os processos sociais chineses
de um modo tal que a reforma agrária, que deixara intacta a agricultura
familiar, não tinha conseguido.
As unidades básicas da agricultura coletiva eram grupos de 20-
30 famílias dominadas pelos quadros locais, que controlavam
diretamente o trabalho, a transferência de grãos para o Estado, a
distribuição da renda e os principais parâmetros da vida política. A
coletivização expandiu o alcance do Estado para o vilarejo natural,
possibilitando a obtenção de uma porção maior do excedente agrícola.
Porções substanciais do excedente foram transferidas para a indústria
e para as cidades através de venda compulsória para o Estado a preços
baixos e fixos para os grãos e para o algodão. Devido a todas essas
140
Mark Selden
dinâmicas políticas e sociais próprias, a China reproduziu uma das
trajetórias padrão bem conhecidas desde a aurora da revolução
industrial: a transferência do excedente da agricultura e do campo
para a indústria e para as cidades. E com isso reproduziu uma das
linhas centrais viciosas do conflito social.
Os processos revolucionários da reforma agrária e da
coletivização homogeneizaram a estrutura social complexa da China
rural pré-revolucionária. Por um lado, a desigualdade de renda com
base na propriedade era eliminada, originando uma distribuição de
renda altamente igualitária no âmbito da aldeia. Por outro lado, surgiu
uma estrutura com duas classes de aldeões coletivizados e de quadros,
estes últimos monopolizando o poder político. Na estrutura formal
do período revolucionário a classe (chengfen) era fixada pelo
nascimento, com base na pretensa posição ocupada na paisagem social
de antes da reforma agrária. A conseqüência é que os proprietários de
terra e os camponeses ricos, de há muito despojados da propriedade e
da riqueza que um dia definiram sua posição na classe, constituíram
uma nova subclasse social que viria a ser repetidamente atacada em
campanhas políticas. Isso tornou visível a liderança partidária e
destituiu aqueles definidos como inimigos da cidadania dentro do
vilarejo, ao mesmo tempo em que transmitia um falso sentido de poder
aos aldeões que se associavam aos rituais de degradação.
N
ACIONALIZAÇÃO DA INDÚSTRIA E ESTRUTURA DE CLASSE URBANA
O Partido engendrou um movimento para transformar a
estrutura de classe urbana através da desapropriação de comerciantes
e capitalistas e da socialização da indústria na forma de propriedade
do Estado e coletiva.
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
141
Enquanto a luta rural de classes foi decretada no meio da guerra
civil, a nacionalização da indústria ocorreu, na maioria dos casos, depois
que o poder do Partido estava assegurado, e envolveu muito menos
mobilização de massa ou combate violento. Na esteira da socialização,
os trabalhadores permanentes em empresas estatais obtiveram emprego
vitalício e um pacote social que incluía cuidados com a saúde, habitação
e generosos benefícios da aposentadoria.
Permaneceram significativos desníveis de renda e de status no
seio das fileiras trabalhistas. Apenas os trabalhadores do núcleo de
empresas estatais obtiveram o grande pacote social que proporcionava
serviço de saúde gratuito para os membros da família e muitos
benefícios, indisponíveis para trabalhadores de empresas estatais
menores e de empresas coletivas. Não obstante, a nacionalização da
indústria e a coletivização rural produziram substancial homogeneidade
da renda, do consumo e do bem-estar social nas cidades chinesas. Por
volta do início dos anos 50, tornou-se visível um hiato crescente entre
renda e benefícios urbanos e do campo
Com início em 1955, mas particularmente em 1960, os aldeões
foram impedidos de deixar seus vilarejos em busca de trabalho nas
cidades. Os poucos que se tornaram trabalhadores temporários ou
contratados, foram excluídos dos benefícios sociais urbanos.
A revolução conferiu aos trabalhadores urbanos significativos
ganhos sociais e de status, em contraste com sua contrapartida rural.
A divisão social mais profunda nas cidades não ocorreu dentro
das fileiras trabalhistas, mas, como no campo, ela ocorreu entre os
trabalhadores dos quadros. A disparidade de renda e de benefícios,
tais como alocação de habitação e cuidados médicos entre os quadros
e os trabalhadores, permaneceu segundo os padrões internacionais.
Contudo, os quadros monopolizaram o poder político e podiam ter
142
Mark Selden
acesso a recursos escassos, como lojas especiais disponíveis apenas para
trabalhadores altamente privilegiados.
Em suma, a cidade, como o campo, experimentou uma
homogeneização de diversas classes num sistema de duas classes:
trabalhadores (as massas) e funcionários públicos (os quadros), ao
mesmo tempo em que erradicava os extremos de riqueza e de
características de status da ordem pré-revolucionária através de provisão
de grande número de empregos industriais seguros.
Os trabalhadores e os aldeões eram beneficiários da
transformação revolucionária; aqueles, através da equalização da
propriedade da terra e da renda; estes, através da oferta de emprego
seguro, com generosa provisão de bem-estar social. As diferenças de
classe na China revolucionária não dependiam da propriedade
diferenciada dos meios de produção nem em diferença substancial de
nível de riqueza, e sim, do acesso diferenciado ao poder.
H
IERARQUIAS ESPACIAL E DE CIDADANIA
Em 1960, quando falhou o Grande Salto para a Frente,
empurrando a China para a fome, o Partido endureceu o sistema de
registro da população (hukou), erguendo uma grande muralha entre
a cidade e o campo, aprisionando a população rural em suas aldeias e
eliminando a maior parte do remanescente intercâmbio campo-campo
e campo-cidade. Conquanto os salários urbanos fossem baixos, a
combinação de renda em dinheiro à vista, (a população rural obtinha
renda principalmente em espécie), o emprego vitalício, as pensões e os
serviços de saúde (oferecidos pelo Estado apenas para os trabalhadores
e empregados urbanos), o sistema de ração subsidiada e escolas
superiores representavam vantagem para esses trabalhadores e
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
143
empregados urbanos. Em suma, a hierarquia da indústria estatal sobre
a agricultura coletiva era exacerbada pela divisão cidade-campo.
O significado da divisão cidade-campo fica patente em dois
conjuntos de fatos. Primeiro, quase todos os milhões que morreram
de fome durante a crise de víveres do Grande Salto – as estimativas
mais confiáveis falam em mais de 20 milhões – eram de população
rural. Segundo, em 1961 o Estado relegou (xiaxiang) temporariamente
20 milhões de trabalhadores urbanos, transferindo, assim, sua
responsabilidade por alimentar e prover trabalho para eles em tempo
de crise de alimentos para um campo que já possuía um grande
excedente de mão-de-obra e enfrentava uma fome severa.
Essa primeira onda de abandono de denizens (alienígenas) seria
acompanhada por envio para a zona rural de aproximadamente 20
milhões de alunos urbanos com diploma da escola secundária e
secundária júnior, entre os anos 1964 e 1976, visivelmente com o
objetivo de eliminar o hiato cidade-campo por meio de suas
contribuições como agricultores para o desenvolvimento do campo,
mas, na verdade, aliviando o Estado da obrigação de prover
empregos e benefícios para eles. Para a maioria, a transferência foi
definitiva.
A revolução na forma de reforma agrária, coletivização,
nacionalização da indústria e restrição do alcance dos mercados,
trouxera a homogeneização das classes sociais, redução da disparidade
de riqueza e amenização da pobreza, tanto rurais quanto urbanas.
Não eliminara, contudo, as divisões de classe, de cidadania e espacial
pura e simplesmente. Sem dúvida, a partir de 1960, as divisões cidade-
campo se agravaram. O Estado passou a policiar as divisões,
manifestadas como franquias, direitos e rendas diferenciais,
particularmente entre os aldeões coletivizados alocados na agricultura,
144
Mark Selden
por um lado, e os trabalhadores e empregados do Estado e das empresas
coletivas, por outro.
A maior parte dos movimentos sociais liderados pelo Partido
nos estágios iniciais da revolução, notavelmente a reforma agrária, a
coletivização agrícola e a nacionalização da indústria, nos anos de 1946-
56, tiveram como alvo direto as estruturas de desigualdade enraizadas
na sociedade pré-revolucionária, e estavam associadas a uma mudança
institucional de longo alcance. Os movimentos subseqüentes, tanto os
orquestrados pelo Estado quanto os procedentes das bases, se dirigiam
a uma vasta gama de injustiças relacionadas com o sistema hukou, às
restrições do mercado e ao envio de trabalhadores e estudantes urbanos
para o campo, com importantes implicações para as desigualdades
econômicas ou de classe, bem como para os conflitos étnicos.
Eles fracassaram, entretanto, não produzindo as mudanças
estruturais numa escala comparável àquelas dos primeiros anos da
República Popular.
II. REFORMA, DESIGUALDADE E DESENVOLVIMENTO,
1970-2008
Importantes desigualdades durante a época revolucionária, como
as entre os trabalhadores e os quadros, e entre a cidade e o campo,
eram, em grande parte, produto da mobilização do Estado, levada a
cabo em circunstâncias nas quais os mercados doméstico e internacional
estavam rigorosamente controlados. Contrastando com isso, o
período de reforma é notável pela proeminência do capital doméstico
e do global na reestruturação das desigualdades.
Por volta do início dos anos 70, parecia evidente aos elementos
da liderança voltados para a reforma que o desenvolvimento da
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
145
economia nacional demandava a reativação da economia rural, a
melhoria do padrão de vida dos 80% da população que vivia no campo
e o impulso às exportações de há muito estagnadas. No início dos
anos 80, o Estado havia relaxado os controles no setor dos negócios
domésticos, melhorado substancialmente os preços de compra, por
parte do Estado, das commodities agrícolas, expandido o alcance dos
mercados rurais, reduzido a venda compulsória ao Estado dos grãos e
da safra, permitido a expansão das glebas privadas, de 5% para 15% da
terra cultivada, encorajado a expansão das indústrias coletivas e
aumentado os incentivos através de novos sistemas de compensação.
Os resultados eventualmente se estenderam à eliminação dos controles
sobre os mercados, à descoletivização da agricultura e ao
desmantelamento das comunas. A ordem rural pós-coletivização girava
em torno da agricultura familiar baseada em contratos sobre a terra
distribuída às famílias numa base per capita e na expansão da indústria
e dos mercados rurais.
Milhões e milhões de aldeões começaram a se engajar na
migração intra-rural e urbana em busca de trabalho e de renda. Como
resultado, um crescimento rápido da produção agrícola, apesar de
substancial mão-de-obra ter se transferido para a indústria e o
comércio rurais. A produção de grãos cresceu de um terço, a safra
de óleo mais do que dobrou e a de algodão quase triplicou em apenas
seis anos, de 1978 a 1984. A renda rural aumentou uma vez e meia
no mesmo período de seis anos, com um crescimento líquido de
16% ao ano, conseqüência não apenas dos altos retornos do
incremento da produção agrícola, mas também resultado do aumento
repentino dos mercados rurais e da indústria local nas áreas litorâneas.
Da mesma forma, como o campo havia assumido a liderança na
transformação social nos primeiros anos da reforma agrária, as mais
146
Mark Selden
profundas mudanças institucionais e estruturais ocorreram aí nos
primeiros anos da reforma.
Desde o início dos anos 70, visto que o Estado relaxara as
proibições em relação à indústria e ao comércio rurais, levas crescentes
de aldeões se voltaram para atividades não-agrícolas, de início
principalmente em empresas locais da aldeia, mas muitos, logo em
seguida, em empresas de grupos privadas, resultando na expansão do
emprego remunerado nas indústrias rurais e urbanas. Por volta dos
anos 80, o setor tornou-se um ímã para os investidores estrangeiros,
principalmente para os chineses de além-mar. Fabricando produtos
industriais e de ocupações que empregam mão-de-obra intensiva e
processando colheitas agrícolas, as empresas municipais e de aldeia
(TVEs)(EMAs) transformaram-se em máquinas do crescimento guiado
pela exportação da economia chinesa dos anos 70 até meados dos anos
80. Em 1993, por exemplo, as TVEs representavam 32.7% dos ganhos
chineses com intercâmbio com o estrangeiro, e 41.6% dos ganhos totais
com exportação.
A escala de investimento estrangeiro direto era tão significativo
que por volta dos meados dos anos 90 diversas áreas rurais costeiras
estavam mais internacionalizadas e dinâmicas do que muitas cidades
cujas indústrias encontravam-se ainda dominadas pelas SOEs.
As TVEs, por vezes associadas ao Estado local, denunciam a
elite emergente do negócio burocrático, casando o poder regulador
com o capital, incluindo-se o capital privado chinês e o capital
internacional. Por volta do fim dos anos 90, os líderes locais haviam
privatizado entre meio milhão e um milhão de TVEs, transformando
em privadas essas empresas anteriormente coletivas, adquirindo ações
de empresas freqüentemente dominadas por antigos administradores
e quadros locais, algumas atraindo investimentos internacionais,
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
147
particularmente chineses de além-mar, bem como de Taiwan e da
Coréia. O poder regulador, conservado pelos funcionários rurais locais
no licenciamento, na taxação e na alfândega tornou-os parceiros de
importância vital nos negócios domésticos e internacionais. Esses
fatores produziram rápido crescimento econômico e crescente renda
per capita nas áreas rurais e suburbanas das províncias litorâneas.
Eles geraram também nova estratificação. No período das TVEs
dinâmicas, os trabalhadores migrantes eram empregados em indústrias
de baixos salários e na agricultura, enquanto que os aldeões em
localidades com empresas rentáveis, tanto municipais quanto de aldeia,
tinham participação nos lucros e na renda. Com a privatização das
TVEs, os aldeões das áreas litorâneas encontram-se praticamente na
mesma situação dos trabalhadores migrantes, forçados a competir por
empregos de baixos salários.
Contrastando com as áreas litorâneas dinâmicas, o interior
agrícola, as províncias centrais produtoras de grãos e as áreas
montanhosas do extremo Oeste foram lentas em desenvolver a indústria
e o comércio rurais e em atrair investimento doméstico ou estrangeiro.
Em muitos casos, problemas relacionados com a estagnação econômica
foram exacerbados por funcionários locais predadores. Na região
central, predominantemente agrícola, a renda registrou taxas de
crescimento negativo entre 1984 e 1990, exatamente quando o
crescimento econômico e da renda explodia nas áreas litorâneas. Se as
articulações em níveis desiguais com o comércio e o investimento
internacionais contribuem para a desigualdade regional, as prioridades
do investimento governamental regressivo e o regime de impostos
também resultaram no aprofundamento das desigualdades de classe e
espacial. Esse resultado tem suas raízes na estratégia inicial de reforma
do governo central: deixar as áreas ricas (litorâneas) prosperar primeiro,
148
Mark Selden
e a descentralização fiscal em que os governos locais e os quadros retêm
uma fatia da renda de impostos e taxas para o desenvolvimento local.
Era uma fórmula para a desigualdade de classe e espacial planejada.
Por volta do novo milênio, o centro (governo central) procurou
amenizar a distância que se aprofundava entre a cidade e o campo e
entre as áreas litorâneas e as interiores. Nos anos 2004-06 eliminou o
imposto agrícola estatal e transferiu fundos adicionais para compensar
as áreas locais pela perda de renda. Resta saber, entretanto, se isso
evitará a exação de pesadas taxas, sobre os aldeões, particularmente
nas localidades mais pobres.
D
UALISMO CIDADE-CAMPO
O ganho maior para muitos aldeões, como resultado de três
décadas de reforma, é, questiona-se, a expansão de seus direitos de
cidadania, inclusive os direitos civis, políticos e econômicos, na forma
de aumento de liberdade para procurar emprego assalariado ou para
se engajar em atividades de mercado em cidades e em áreas suburbanas,
distante de suas aldeias nativas. Ao mesmo tempo, os direitos e as
concessões sociais declinaram, uma vez que os regimes de bem-estar
social, tanto urbanos quanto rurais, foram enfraquecidos.
As dispensas temporárias na indústria estatal coincidiram com
as reformas dos serviços médicos e das pensões, que eliminaram os
benefícios anteriores.
120 milhões de residentes rurais (estimativa) aproveitaram a
vantagem da relação do sistema de registro domiciliar para procurar
emprego fora de suas comunidades. Com base em um cálculo (bem)
informado, a combinação de rápido crescimento agrícola e
industrialização rural reduziu a disparidade de renda entre o campo e
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
149
a cidade de 2.6, em 1978, para 1.8, em 1984. Entretanto, desde aquele
tempo, a vantagem pendeu firmemente para as cidades, uma vez mais,
alcançando um pico histórico de 3.2 por volta de 2005.
De modo semelhante, com algo próximo da estagnação de renda,
nas províncias interiores dependentes da agricultura, na segunda metade
dos anos noventa, as disparidades entre as regiões litorâneas e interior
também aumentaram. Enquanto aos aldeões foi outorgado o direito
de migração para fins de trabalho, o poder das forças de mercado
para reduzir o fosso entre o campo e a cidade, em matéria de renda,
ainda estava emperrado devido à classificação oficial dos cidadãos em
categorias de cidadãos rurais e urbanos, e pela manutenção de uma
hierarquia de lugares urbanos, com Pequim e Xangai no ápice e as
cidades menores na base.
Os resultados incluem a perpetuação de credenciamentos
desiguais e da vulnerabilidade dos registrantes rurais frente à truculência
e extorsão por parte da polícia para escapar à expulsão das cidades. Os
residentes rurais bem sucedidos na procura de empregos urbanos não
têm direito a esquemas de pensão administrados pelo Estado ou a
auxílio-habitação, disponível para os residentes urbanos. Eles podem,
também, enfrentar dificuldade na compra de imóvel residencial, numa
época em que virtualmente todo o sistema de habitação está privatizado.
Em muitos casos, os trabalhadores migrantes não têm o direito de
enviar seus filhos para escolas públicas urbanas, e até mesmo escolas
particulares para crianças migrantes freqüentemente sofrem ataque
por parte do governo. Ter vivido e trabalhado em cidades por uma
década ou mais não constitui garantia dos tais direitos básicos da
cidadania. O status de segunda classe dos migrantes nas cidades levou
a um sistema de trabalho hipotecado espoliador, entre cujas
características encontra-se o freqüente não pagamento dos salários.
150
Mark Selden
Em suma, enquanto um número significativo de trabalhadores rurais
obteve ganhos na indústria litorânea e urbana, persistem elementos
da hierarquia social dualística rural-urbana, e mesmo crescem,
enquanto os residentes rurais são privados dos direitos básicos de
cidadania enquanto vivem nas cidades. Esse dualismo é um dos fatores
que degradam os níveis salariais e mantêm uma mão-de-obra submissa,
fatores que têm facilitado uma nova rodada de acumulação guiada
pelo capital doméstico, pelo global e por uma aliança entre o capital
oficial e o privado.
R
EFORMA URBANA
Entre as mais importantes mudanças relacionadas com as
reformas econômicas desde o início dos anos 90, estava a privatização
por etapas das SOEs e o correlato desemprego crescente entre os antes
seguros trabalhadores. No início dos anos 90, o Estado chinês começou
a fazer cortes de subsídios a empresas estatais deficitárias, seguidos de
permissão para liquidar pequenas SOES através de compras e fusões.
A partir de 1995, enquanto grandes empresas em setores estratégicos
eram reorganizadas, a bancarrota (em média seis mil empresas por
ano) e a privatização provocaram um rápido crescimento do
desemprego, um fenômeno até então virtualmente desconhecido. Os
números relativos a trabalhadores despedidos saltaram de 3 milhões,
em 1993, para um total de 25 milhões no final de 2001, com fontes
internas informando sobre cifras que alcançavam os 60 milhões. De
repente, grande número de trabalhadores despedidos encontrou-se
sem os benefícios da aposentadoria e do bem-estar social, como a
subclasse nos Estados Unidos de hoje. Essa situação, que anteriormente
apenas os trabalhadores migrantes haviam enfrentado, estendeu-se aos
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
151
trabalhadores com residência urbana, inclusive muitos que haviam
trabalhado durante décadas nos empregos seguros das SOEs. Pela
primeira vez, desde o início dos anos 50, os trabalhadores urbanos
eram forçados a competir diretamente por empregos de baixa
remuneração com a enorme quantidade de migrantes rurais, dispostos
a aceitar empregos em termos impensáveis por trabalhadores
acostumados com os benefícios da empresa socialista.
Os trabalhadores não apenas experimentaram o rompimento
abrupto de um pacto com o Estado, que se tinha baseado em emprego
vitalício, mas freqüentemente tiveram de enfrentar constante perda
de concessões no campo do bem-estar social, amealhadas ao longo de
toda uma vida. Enquanto o governo deu início a uma nova rede de
seguros baseada em contribuição, o sistema é ineficientemente e
desigualmente implementado, e muitos trabalhadores permanecem
abandonados à própria sorte. Por volta de 2002, uma nova classe de
pobres urbanos havia surgido, calculada em torno de 15 a 31 milhões,
ou 4 a 8 % da população urbana, aos quais deve ser acrescentado o
número de residentes rurais nas cidades.
A
LIANÇA DA BUROCRACIA COM O MUNDO DOS NEGÓCIOS
A privatização das SOEs produziu simultaneamente o pobre
urbano e o novo rico, ao mesmo tempo em que transformava o caráter
da elite de quadros. Aproveitando a vantagem de seu efetivo controle
sobre a renda das SOEs e das ambigüidades das medidas reformistas,
administradores e funcionários locais tomaram ilicitamente a
propriedade pública em suas próprias mãos em escala maciça.
Administradores e funcionários nos setores manufatureiro, financeiro
e de utilidades públicas criaram novas empresas, despojando os
152
Mark Selden
segmentos mais lucrativos das empresas estatais existentes. Com
freqüência, os consórcios com entidades não-estatais deixavam pouco
distintas as fronteiras (no que diz respeito à propriedade) da nova
entidade quando o assunto era roubo dos fundos do Estado.
Alternativamente, a política aprovada de corporativização, isto é, a
transformação da empresa estatal em sistema de sociedade de ações
autoriza os funcionários governamentais mais graduados a designarem
diretamente a si próprios como acionistas.
Os trabalhadores das SOEs, cujo trabalho havia criado os ativos
ao longo de uma vida no emprego, foram deixados de mãos vazias. O
investimento estrangeiro direto (FDI) também desempenha um papel
central na comodificação e privatização dos ativos estatais. De 1979 a
2002, US$ 446 bilhões em FDI utilizados tornaram a China o segundo
maior receptor de FDI, atrás apenas dos Estados Unidos, uma posição
que haveria de consolidar subseqüentemente. Em 1999, 60% dos
ingressos chineses por FDI tomaram a forma de fusão e aquisição.
No processo de privatização, os direitos dos trabalhadores a empregos
e benefícios são quase invariavelmente sacrificados de forma semelhante
à dos resgates de empresas norte-americanas.
Finalmente, a comodificação dos direitos urbanos e suburbanos
ao uso da terra tornou-se terreno fértil para o crescimento da nova elite
burocrática e de negócios. A venda de direitos de uso da terra a
contratadores comerciais permitiu a funcionários amealhar enormes
fortunas, ao mesmo tempo em que privavam os aldeões de seu direito à
terra ou a seus lucros. A perda de ativos estatais através de transferências
ilícitas de direito de uso da terra desde o fim dos anos 80, tem sido
estimada na faixa de 10 bilhões de yuan por ano. Entre 1999 e 2002, as
vendas ilegais de terra, documentadas, totalizaram 550.000 casos,
envolvendo 1.2 bilhões de metros quadrados de terreno urbano.
A partir dos anos 70, a China não apenas alcançou rápido e
sustentado crescimento econômico, como quebrou um padrão de
estagnação da renda: uma porção substancial da população, inclusive
o trabalhador pobre, conseguiu significativos ganhos em renda. Mas
também a China saiu da condição de uma das mais igualitárias
sociedades do mundo, às vésperas da reforma, para se tornar, por
volta de 1995, uma das mais iníquas da Ásia. Nos primeiros anos do
século XXI, a distribuição de renda estava entre as mais injustas do
mundo. Esta tendência reflete a dos Estados Unidos, do Japão e de
muitos outros países, mas o caso chinês é extremo. Os coeficientes
Gini para o País como um todo pioraram, passando de uma taxa
espantosa de 0.31 em 1979, para 0.38 em 1988, 0.43 em 1994 e 0.47
em 2004. As tendências emergentes de polarização espacial, e,
principalmente, de classe, eram a conseqüência da comodificação do
trabalho, da terra e do capital, embutida em, e tornada possível por
uma aliança emergente entre o capital doméstico e internacional e a
elite burocrática local.
III. CONFLITO SOCIAL E AGITAÇÃO NA ERA DA REFORMA
E DA MODERNIZAÇÃO
A agenda da reforma, notavelmente a comodificação da terra e do
trabalho e a privatização de empresas simultaneamente, estimularam o
crescimento econômico e ameaçaram o sustento e a segurança de
segmentos das classes trabalhadoras rurais e urbanas. Muitos conflitos
sociais derivam do comportamento corrupto e ilegal que priva a
população trabalhadora de seus direitos históricos e ativos pessoais.
Como resultado, entretanto, da promoção do governo central da
reforma legal – julgada necessária para a entrada bem sucedida da
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
153
154
Mark Selden
China numa economia de mercado globalizante, e para prover um
florescimento retórico do governar o país de acordo com a lei (yifa
zhiguo), bem como para afastar o conflito das ruas – aldeões e
trabalhadores prejudicados alcançaram uma nova consciência de seus
direitos. Os resultados incluem uma crescente litigiosidade e
experimentação do ainda frágil sistema legal nos tribunais e nas ruas.
No processo, a retórica de classe e de conscientização freqüentemente
conduziram aos discursos liberais sobre direitos e cidadania.
R
ESISTÊNCIA RURAL
Até 2000 as maiores queixas que originavam a ação das massas
de aldeões eram os gravames, incluindo impostos, taxas, extração de
fundos (para a construção de escolas e de estradas), penalidades (multas
por ultrapassagem das quotas de nascimento), e avaliações
compulsórias. Subseqüentemente, a exploração da terra tornou-se um
tema incendiário adicional. As rebeliões freqüentemente começam
quando os aldeões conseguem detalhes das leis e regulamentos que
dizem respeito a seus interesses e direitos. Quando os quadros locais
violam políticas oficiais, os aldeões escrevem cartas se queixando,
visitam funcionários de maior graduação, expõem as violações locais
das políticas centrais na mídia, mobilizam os companheiros aldeões
no sentido de reter o pagamento de taxas ilegais e arbitrárias e
denunciam abusos tais como roubo de terra. Os confrontos entre os
que resistem e os quadros locais têm resultado em batalhas judiciais
que se arrastam, e em tumultos, alguns dos quais provocam violentas
batidas policiais por parte dos governos locais e provinciais. Grupos
informais de ativistas dos direitos têm surgido em diversas localidades.
Enquanto a grande maioria dos protestos são lutas locais, numa única
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
155
povoação ou fábrica, os ativistas astutamente têm construído redes
através das aldeias e até mesmo dos condados. Apoiados na confiança,
na reputação e na comunicação verbal, eles evitam organizações
documentadas, composição de membros e liderança formal. Nos
poucos casos em que os aldeões protestadores tiveram sucesso na
coordenação de ações através do País, culminando em tumulto, a polícia
armada invariavelmente interveio tomando medidas contra o protesto.
Como o número de lutas populares cresceu vertiginosamente,
Pequim reiteradamente emanou éditos concitando os governos locais
a aliviar os gravames sobre os pobres rurais. Enfatizando as
preocupações do governo central com o campesinato, na esteira dos
tumultos de 1991-2, a Lei Agrícola de 1993 concedeu aos agricultores
o direito de recusar pagamento de taxas e multas impropriamente
autorizadas, e estipulou um limite de 5% de imposto de renda. Em
1998, as autoridades centrais sancionaram leis para consolidar os
direitos sobre a terra, prorrogando os contratos de terra dos
agricultores por mais 30 anos.
A lei e os tribunais tornaram-se o novo terreno onde a injustiça
social é contestada. Há pouca evidência, contudo, de que esses esforços
por parte do governo central e dos cidadãos tenham significativamente
dobrado os poderes arbitrários dos funcionários locais, ou conferido
poder aos aldeões.
P
ROTESTOS TRABALHISTAS
A reforma das empresas estatais, as bancarrotas, o desemprego
em massa e as violações dos direitos trabalhistas desencadearam uma
maré montante de ativismo trabalhista nas cidades a partir dos anos
90.
156
Mark Selden
As queixas dos trabalhadores, tanto no setor estatal quanto no
privado, focalizam principalmente um cortejo de problemas
econômicos e de sustento, notavelmente pensões e salários não pagos,
despedidas do emprego, compensação inadequada nos casos de
demissão e atrasos no reembolso de atendimento médico.
Alvos das queixas dos trabalhadores têm sido a administração
das empresas, os governos locais, a corrupção oficial e a transferência
ilícita dos ativos do Estado.
Requerimento, arbitragem e protesto são as estratégias
trabalhistas mais comuns. Em 2003, 1.66 milhões de trabalhadores
despedidos, de aposentados e de trabalhadores na ativa participaram
de protestos em escala nacional, representando 46.9% dos participantes
nos 58 000 incidentes que a polícia registrou. Quando os trabalhadores
fazem reivindicações contra o Estado, eles invocam a retórica dos
direitos legais e da lei, mais ou menos como fazem os aldeões. Mas as
bandeiras dos trabalhadores também reivindicam direitos de
subsistência (Precisamos Comer, Precisamos Existir), freqüentemente
apelando por padrões de justiça que evocam a ideologia socialista e o
contrato social entre a classe trabalhadora e o Estado.
Em contraste com os laços em grande escala formados pelos
trabalhadores, o regime chinês tem, até agora, contido os protestos
da agitação rural e urbana dentro de suas respectivas localidades e
reprimido todas as organizações horizontais incipientes. Não têm
surgido grandes alianças no campo ou na cidade. O standoff (dispensa
temporária do emprego) durante o movimento pró-democracia, em
1989, foi o último episódio em que surgiram laços entre classes, unindo
estudantes e intelectuais aos trabalhadores e empresários e
reivindicando liberalização política, governo limpo e estabilidade
econômica. A carga violenta sobre o movimento levou muitos
Desigualdade duradoura da China: revolução, reforma e política econômica do desenvolvimento
157
intelectuais a se afastarem das políticas de massa em busca de reforma
legal e constitucional, enquanto muitos mais assumiram atividades
empresariais ou ingressaram na elite burocrático-empresarial. Os com
algum nível educacional têm sido os maiores vencedores, como
conseqüência da reforma econômica, medida pela mobilidade social
para cima e pela habilidade para direcionar a integração chinesa para a
economia mundial.
C
ONCLUSÃO
Ao longo das eras revolucionária e da reforma, as desigualdades
de classe deram origem a padrões distintos de resistência popular.
Primeiro, no período revolucionário, campanhas lançadas pelo Estado-
Partido central, com suas lideranças unidas nos anos 50 mas fracionadas
por dissenções de facções nos anos 60, forneceram pretexto para
protestos populares de larga escala, alimentados por queixas com raiz
nas desigualdades de classe e espacial. Seja por meio de mobilização
inter-regional, seja por meio de ativismo simultâneo, sem coordenação,
mas com características semelhantes, e por todo o País, as lutas dos
aldeões, dos trabalhadores e dos estudantes se espalharam, tendo como
alvo as políticas emanadas das autoridades centrais e criando
organizações de âmbito regional e nacional. Na era da reforma, a
descentralização e a mercadização produziram resultados
desenvolvimentistas inteiramente desiguais, fragmentando e tornando
locais as queixas e os interesses. O resultado foi não a eliminação do
protesto, mas sua dispersão na forma de protestos celulares, tendo
como alvo líderes locais na aldeia, administradores de empresas e
funcionários locais do Estado, e, freqüentemente, com apelo por apoio
por parte do governo central.
158
Mark Selden
Segundo, enquanto as forças de mercado combinadas com o
poder do Estado exacerbaram as desigualdades de classe e espacial em
um período de crescimento dinâmico e renda crescente, a retórica da
resistência tendeu a se transferir da linguagem revolucionária de classe
para um paradigma liberal, contratual, de direitos legais e cidadania.
Isso reflete a própria guinada do Partido Comunista, de uma retórica
e de uma praxe mobilizatória centrada na análise de classe e nas
contradições antagônicas, para uma linguagem de estratos que é
direcionada para a integração da nova elite empresarial no Partido e
no deslocamento dos protestos populares das ruas para os tribunais.
O desequilíbrio extremo de poder entre as autoridades governamentais
e a população, entretanto, constitui uma barreira formidável contra a
concretização de direitos liberais legais, tanto no campo quanto na
cidade. A contradição entre o sistema legal autoritário e uma ideologia
do império da lei, pode, em situações de dificuldade econômica, levar
à radicalização e à convergência dos movimentos populares numa
sociedade notável por desmedidas e crescentes desigualdades espaciais
e de classe.
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LI, Shih. 2000. “A Comparison of Rural-Urban Per Capita
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160
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PERRY, Elizabeth and Mark Selden, eds. 2003. Chinese Society:
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SOLINGER, Dorothy. 1999. Contesting Citizenship in Urban China.
Peasant Migrants, the State, and the Logic of the Market. Berkeley:
University of California.
UNGER, Jonathan. 2002. The Transformation of Rural China.
Armonk: M.E. Sharpe.
Mark Selden
161
Por ocasião do 17° Congresso Nacional do Partido Comunista
da China (PCC), realizado em outubro último em Pequim, o núcleo
da atual geração dirigente – Hu Jintao –, cravou sua marca nos
estribilhos da evolução do pensamento do PCC, e, simultaneamente,
pautou uma verdadeira política de Estado a ser executada para os
próximos anos e talvez gerações. Com o denominado “conceito
científico de desenvolvimento”, Jintao seguiu a mesma trilha de seus
predecessores que, ao sintetizarem conceitos, sistematizaram expressões
que dão conta da forma com que cada geração enfrentou desafios
impostos pela conjuntura, e, ao mesmo tempo, buscaram granjear a
unidade política do País e do partido dirigente em torno de suas
soluções.
2
Logo, a análise do “conceito científico de desenvolvimento” só
é proveitosa à luz da história recente. Trata-se de analisar o conceito
como resposta aos imensos desafios encetados à China neste início do
século XXI. Desafios estes decorrentes do surgimento de complexos
1
Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Geografia do CFH-UFSC
e do Instituto Brasileiro de Estudos de China, Ásia e Pacífico (IBECAP) e autor de
China: infra-estruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006, 256 p.) e
China: desenvolvimento e socialismo de mercado (Departamento de Geociências do
CFH-UFSC, 2006, 86 p.). Endereço eletrônico: [email protected]
2
Uma afinada investigação acerca das características da atual geração dirigente chinesa
pode ser encontrada em: OLIVEIRA, Amaury P.: “Governando a China: a quarta
geração dirigente assume controle da modernização”. In: Revista Brasileira de Política
Internacional. Brasília, vol. 42, n° 002, jul./dez., 2002, p. 138-160.
“CONCEITO CIENTÍFICO” E OS DESAFIOS DO
DESENVOLVIMENTO NA CHINA DE HOJE
Elias M. K. Jabbour
1
162
Elias M. K. Jabbour
problemas que podem variar tanto dos limites do próprio modelo em
si, quanto os da necessidade e das formas de se alocar interesses de
grupos diversos em um país cujo poder é exercido por uma única
força política, redundando, para muitos, no surgimento de uma pauta
dita “democrática”.
Assim, faz-se necessário, neste espaço, expor – mesmo
superficialmente – sobre o alcance do desenvolvimentismo com
características chinesas para, em seguida, demonstrar os limites
impostos, os desafios e os encaminhamentos delineados pela via do
“conceito científico de desenvolvimento”, incluindo os desafios da
própria representação política em si, sob o signo da busca por
“estabilidade social”.
1. O “DESENVOLVIMENTISMO COM CARACTERÍSTICAS
CHINESAS”
Baseada em uma grande autoconfiança num mundo de
turbulências e mudanças drásticas, sendo a principal delas a
desagregação da URSS e a conseqüente débâcle do sistema socialista
mundial, a governança chinesa fez a correta escolha soberana – portanto,
fora dos esquemas estratégicos dos EUA, como o fez a América Latina
na década de 90 –, de navegar no mar da “globalização” como forma
de alcançar o objetivo de reprojetamento da China ao rol das grandes
nações em um mundo marcado pelo rápido desenvolvimento das forças
produtivas e pela existência de grandes potências.
Assim, e após o diagnóstico acerca da improbabilidade de uma
3ª Guerra Mundial envolvendo o capitalismo e o socialismo, a
consecução dos citados objetivos centrou-se em uma participação ativa
no já referido processo de “globalização”. Para tanto, fez praticar
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
163
uma retificação de curso amplamente baseada tanto na capacidade
milenar de comércio e de acumulação do camponês médio chinês
(reconstruindo, assim, o pacto de poder vitorioso em 1949),
3
quanto
na constituição de um círculo internacional chinês espalhado pelo
Sudeste Asiático. Círculo com poder financeiro suficiente para carrear
ao continente seus excedentes, viabilizando, assim, tanto o
financiamento externo da modernização e a indigenização de avançadas
técnicas modernas de administração, quanto a solução de pendências
históricas como Hong-Kong, Macau, e, principalmente, Taiwan.
Como resultado, nos últimos 30 anos o País tem crescido
ininterruptamente numa média que varia de 10% ao ano, deixando,
assim, de representar 1% do PIB mundial, no início das reformas,
para 4,2% em 2004. Seu comércio exterior cresceu em quase 100 vezes,
pois em 1978 seu volume foi de US$ 20,6 bilhões e, em 2007, passou
dos US$ 2 trilhões. Desde meados da década de 90 ela é a maior
receptora de capitais produtivos estrangeiros, sendo que em 2006 sua
cifra foi de US$ 69,5 bilhões. Suas reservas cambiais em outubro último
eram estimadas em US$ 1,45 trilhão.
Notável, também, fora a retirada de pessoas da linha da pobreza.
Segundo dados devidamente amplificados pelo Banco Mundial, o
número de pessoas abaixo da linha da pobreza na China diminuiu de
490 milhões em 1981 (ou 49% da população) para 88 milhões em 2003
(7% da população).
Houve um aumento de sua influência na economia mundial
tão claro a ponto de qualquer mudança que vier a afetá-la internamente
pode ser o estopim de grandes repercussões no mercado internacional.
No período de 1999 a 2006 seu crescimento correspondeu a 29% do
3
Noventa por cento dos empresários chineses instalados na Zona Econômica Especial
de Shenzen eram camponeses médios em 1978.
164
Elias M. K. Jabbour
desempenho econômico mundial, e, segundo Barros de Castro, se
mantidas as taxas de crescimento tanto da China, quanto dos EUA, as
duas economias se “encontrariam” em tamanho no espaço de 10 anos.
4
Em 2000, a China representava 3,4% do PIB mundial; 11,6% do PIB
calculado sobre a paridade do poder de compra (PPA); 6,6% do
consumo de petróleo e 3,9% das exportações mundiais. Já em 2004 (já
citado), representou 4,2% do PIB mundial (13,2% em PPA); 8,35 do
consumo mundial de petróleo e 6,5% das exportações correntes no
mundo.
5
Tais números subiram desde o período, sem sombra alguma
para dúvidas.
É grande evidência pressupor que dado o peso histórico,
geográfico e populacional da China, esse processo – cujos números
citados são expressão – em curso tende a criar uma nova geografia
econômica do mundo, para onde se dirigem e saem fluxos financeiros,
econômicos, políticos e culturais crescentes. Enfim, um grande imã
que atrai e irradia movimentos gravitacionais e que edita uma grande
reocupação de espaços perdidos desde o início das agressões estrangeiras
em 1839.
6
Conseqüência desta “reocupação de espaços” é encerrada em
seu crescente poderio financeiro como a tábua em que se assenta uma
planificação do comércio exterior, possibilitadora da implementação
de uma convivência imediata com seu principal competidor estratégico
que inclui – não espantosamente –, o financiamento dos chamados
déficits gêmeos do próprio competidor estratégico. Porém, a grande
4
CASTRO, A. Barros de: “No espelho da China”. Documento recente e disponível
em: http://plenoemprego.files.wordpress.com/2008/02/no-espelho-da-china1.pdf
5
BUSTELO, Pablo: “China 2006-2010: hacia una nueva pauta de desarrollo”. In,
Revista Electrónica de la Fundación Real Instituto Elcano. Madrid: n° 127-2005 -
26.10.2005.
6
MAMIGONIAN, A. “Apresentação” . In: JABBOUR, Elias: China: infra-estruturas
e crescimento econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. p. 7-10.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
165
expressão dessa nova força financeira internacional (lastreada
historicamente por uma política comercial milenar e avassaladora) está
na possibilidade de proscrição dos principais órgãos financeiros
surgidos no âmbito de Bretton Woods, notadamente o FMI e o Banco
Mundial – conforme a política africana e latino-americana da China
vem demonstrando nos últimos anos.
7
2. A DIMENSÃO EXATA DOS LIMITES E CONTRADIÇÕES
Em momento de grande perplexidade com a velocidade e a
forma com que o desenvolvimento muda a face da China, é de bom
grado advertir que, ao lado do sucesso e da consolidação de pretensões
de ordem mundial, o desenvolvimento na China também guarda sua
face dolorosa e eivada de inquietações, que talvez sejam o próprio
motor do processo em si. Uma economia em desenvolvimento não
resolve problemas sem criar outros maiores, saltando de forma
ininterrupta de um desequilíbrio a outro. E a China não foge à regra.
Assim, podemos de imediato relacionar três grandes fontes de
limites, que se relacionam, ao processo em andamento na China. Trata-
se da relação entre o tamanho de sua população, os recursos existentes
em seu território e o modelo clássico de industrialização extensiva. Desta
relação podem ser extraídas as principais contradições surgidas nessa
7
Se na Idade Média o comércio entre feudos era variável de ínfima consideração, o
mesmo não ocorre na contemporaneidade na medida em que o comércio internacional
transformou-se em variável de primeira grandeza, o que nos sugere que a investigação
que busque sínteses de longo prazo não pode prescindir da variável comércio
internacional como o lócus síntese de primeira hora das contendas que envolvem as
nações. Eis, a nosso ver o grande paradigma, como teoria e prática, das relações
internacionais modernas. Arriscamo-nos a dizer que o futuro depende, e é guardado,
necessariamente, a quem vencer a cada vez mais presente e aberta guerra comercial
entre China e EUA.
166
Elias M. K. Jabbour
esteira desenvolvimentista: a pressão sobre os recursos naturais, as
desigualdades sociais e regionais e a danificação ao meio ambiente.
A população chinesa ainda não atingiu seu pico. O início de sua
curva decrescente deverá ocorrer por volta de 2030, quando o País
poderá chegar a 1,5 bilhão de habitantes. A sua economia corresponde
somente a 1/7 da economia norte-americana e a 1/3 da japonesa, o
que a coloca – apesar das duplicações do PIB pós-1978 – entre as
economias de baixa renda per capita. Com 1/5 da população mundial,
a China conta com somente 5% das terras em condições de plantio no
planeta. Seus recursos hídricos per capita correspondem somente a
25% da média mundial. Os recursos chineses em petróleo, gás natural,
cobre e alumínio per capita são da ordem de 8,3%, 4,1%, 25,5% e 9,7
das respectivas médias mundiais.
8
No campo de análise da produção industrial e do caráter
extensivo caracterizado por um grande aporte de capital e trabalho,
em detrimento da incorporação de novas tecnologias, podemos afirmar
que esse tipo de produção é grande fonte de contradições, cuja
superação é determinada pela incorporação de novos paradigmas
tecnológicos capazes de acelerar a produtividade do trabalho.
9
Não
somente isso – conforme o desenvolvimento interno do País vem nos
mostrando, também é necessário aprofundar a mudança em curso do
8
BIJIAN, Zheng: “China`s ‘Peaceful Rise’ to Great-Power Status”. In: Foreign Affairs,
September/October 2005.
9
Deve-se ter uma visão de conjunto e uma certa rigidez teórica e metodológica ao
analisar o fator “industrialização extensiva” na China, pois a grandeza territorial e
populacional do país faz-nos sugerir que – na China – estão em plena convivência as
três chamadas “revoluções industriais”, significando que ao lado de formas típicas da
2ª Revolução Industrial (RI) existem ainda grandes parcelas da economia transitando
tanto à primeira quanto à segunda e desta à terceira RI (setor espacial, por exemplo).
Assim, a equalização de tal fenômeno só pode ser feita nos marcos de um intenso
processo de urbanização que não pode ser procedida fora dos marcos de algo
minimamente calculado e planejado, dado os custos sociais que de tal processo derivam.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
167
modelo.
10
O que significa dizer: fortalecimento da demanda interna e
das empresas nacionais e lenta diminuição do fator comércio exterior
na composição do PIB, que passou de 22% em 1992 para a altíssima
taxa de 47% em 2006.
11
Significa, também, demonstrar a pressão sobre
os recursos naturais originados desse tipo de organização industrial:
atualmente a China necessita de 832 toneladas de petróleo para
produzir US$ 1 milhão em riquezas, isto é, quatro vezes mais que os
EUA (209 ton.), seis vezes mais que a Alemanha (138 ton.) e sete vezes
mais que o Japão (118,8 ton.).
12
Os impactos ao meio-ambiente de 30 anos de industrialização rápida
e ininterrupta também têm sido altos. Por exemplo, 70% das águas
subterrâneas estão contaminadas, principalmente as localizadas no norte
do País, onde 60 milhões de pessoas seguem com dificuldade para dispor
de água potável. Dezesseis das 20 cidades mais poluídas do mundo
localizam-se na China que, por sua vez, ocupa o segundo posto em emissão
de dióxido de carbono (apesar de sua emissão per capita ainda ser muito
baixa), e o primeiro lugar na emissão de clorofluorcarbonetos e de dióxido
sulfúrico por superfície habitada. Os prejuízos ao País, somente no ano
de 2005, foram da ordem de US$ 10 bilhões por conta dos efeitos da
chuva ácida.
13
Um agravante, neste caso, deve-se à previsão de crescimento
do parque automotivo, que poderá saltar dos 20 milhões de carros em
2004 para 60 milhões em 2010 e a 90 milhões em 2015.
10
A crise asiática representou um divisor de águas nesse processo de transição conforme
tentamos demonstrar em: JABBOUR, Elias: China: infra-estruturas e crescimento
econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
11
China Statistical Yearbook para todos os anos.
12
BEI Jin: “From Concept to Implementation: a Scientific Concept of Development”,
Time, 24/01/2007. Disponível em: http://www.safea.gov.cn/english/
content.php?id=12742807.
13
JABBOUR, Elias: China: infra-estruturas e crescimento econômico. São Paulo: Anita
Garibaldi, 2006. p. 125.
168
Elias M. K. Jabbour
2.1. A EXPLOSIVA, CÍCLICA E MILENAR QUESTÃO CAMPONESA
A pressão sobre os recursos e os desequilíbrios ambientais, numa
observação mais de fundo, devem ser vistos como parte de um conjunto
que envolve a centralidade da questão social na China de hoje. De
forma mais aguda e em perspectiva histórica, a questão social na
atualidade é sinônimo de questão camponesa. Explosiva, cíclica e
milenar, responsável pela queda de simplesmente todas as dinastias, a
classe camponesa na China – cuja subjetividade é mediada por um
espírito rebelde tipicamente taoísta – é o grande ator político do País
e classe pela qual, de tempos em tempos, passa-se o crivo do
merecimento ou não do mandato do céu.
14
Eis um dos maiores desafios,
de caráter estritamente político, a ser enfrentado pela atual geração
dirigente.
Em que pese a grande façanha da inclusão na China, a grande
verdade é que o ritmo do nível das desigualdades aumentou
substancialmente. Além disso, apesar de a pobreza rural ter diminuído,
a pobreza urbana aumentou, pois entre 1999 e 2003 a pobreza urbana
passou de 11 milhões, ou 2,5% da população, para 23 milhões, ou 4%
da população urbana. Voltando à questão do aumento das
desigualdades, se tomarmos o coeficiente 20/20 (parte da renda nacional
dos 20% mais ricos e 20% mais pobres) perceberemos que o mesmo
aumentou de 6,5 em 1990 para 10,6 em 2001. Este dado se confirma se
14
Infelizmente poucos percebem que a sustentação do regime ante os distúrbios de
junho de 1989 em Pequim só foi possível graças ao sucesso da liberalização do comércio
agrícola pós-1979, permitindo que os camponeses acumulassem riquezas, lastreando,
assim, politicamente o regime. Sobre interessantes e essenciais aportes acerca da
formação social chinesa ler: MAMIGONIAN, Armen: “As origens sociais e naturais
do povo chinês”. In: Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1: Núcleo de
Estudos Asiáticos do Departamento de Geociências do CFH-UFSC, Florianópolis,
Edição Piloto, p. 30-47. Junho/ 2007.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
169
partirmos das bases de cálculo do índice de Gini (10/10): entre 1999 e
2001 os 10% mais ricos passaram a deter de 24,6% para 33,1% da
renda nacional. Enfim, a China de hoje é uma das sociedades mais
desiguais do mundo.
15
No que tange às desigualdades regionais, o problema da
concentração também é refletido. Entre 1990 e 2002 a renda média
das cidades passou de 2,2 para 3,1 vezes mais alta que a do campo. A
ampliação da renda rural em 2006 foi de 7,4%, enquanto que nas
cidades foi de 10,4%, denunciando – o que é óbvio –, que as atividades
urbanas são mais rentosas que as praticadas no meio rural; e a
manutenção das diferenças campo-cidade redundam em cada vez
maiores disparidades regionais, seja na China, seja no mundo. Daí a
necessidade de criar condições políticas, econômicas e infra-estruturais
para uma cada vez maior absorção de mão-de-obra sobrante no campo
para grandes centros urbanos – sejam eles centros já existentes ou em
construção –, pois somente pela via da urbanização essa desigualdade,
em médio e longo prazo, poderá ser equalizada.
16
Outro dado que sugere reflexão encerra-se na atual taxa de
poupança da China. O comportamento da taxa de poupança revela
algo similar ao da taxa de investimento no período de 1980 a 2003,
saindo de uma média de 35% nos anos 80 para exatos 44% no final de
2006, distribuída em: 7% do governo, 18% de famílias e 19% de
empresas. Trata-se da mais alta taxa de poupança do mundo. Os
números expressam um grande desequilíbrio: valores que no centro
do sistema estariam disponíveis a empresas para estratégia de fusões e
15
Idem ao 5.
16
Mas não podemos generalizar acerca da urbanização na China, o que significa dizer
que as soluções poderão ocorrer nos marcos de uma crescente urbanização do meio
rural que se acelerou com o desenvolvimento das Townships and Villagge Enterprises
nas décadas de 1980 e 1990.
170
Elias M. K. Jabbour
aquisições pelo mundo, na China são expressão de poupança familiar
– o que, entre outras coisas, se relaciona diretamente com a debilidade
de um sistema previdenciário e de saúde pública que atingiu situação
de caos no começo da presente década. Eis uma grande expressão da
premência e do desafio que representa a questão social/camponesa na
China de hoje.
Tal estado de coisas tem motivado revoltas camponesas no
interior do País nos últimos anos, com o acréscimo de motivações
que vão desde a ocupação de terras de plantio por empreendimentos
de infra-estrutura e urbanos até a corrupção de funcionários públicos.
3. “CONCEITO CIENTÍFICO” E MUDANÇA
DE MODELO NA CHINA
A transformação do “conceito científico de desenvolvimento”
em política oficial de Estado e aporte teórico do PCC é a cristalização
de um processo iniciado já nos fins do mandato de Jiang Zemin, no
final da década de 90. O objetivo de uma “sociedade modestamente
acomodada” e a idéia de “harmonia social” já estava inscrita nos anais
do 16° Congresso do PCC realizado em 2002, denunciando que aos
objetivos do regime a solução das novas “questões sociais” estavam
passando a primeiro plano. Algo como uma idéia de “desenvolvimento
com rosto humano”, ou da forma como os chineses tratam, “colocando
o homem no centro”. Ou melhor, o “desenvolvimento a qualquer
custo” deveria ser suplantado por um desenvolvimento como base de
uma harmonia social, um desenvolvimento cientificamente voltado a
soluções de problemas criados pelo próprio processo em si, uma tomada
de consciência para quem o crescimento econômico é a essência do
desenvolvimento social, mas não o todo.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
171
A mudança do modelo de desenvolvimento na China fora
assumida publicamente, e em claras palavras, por Hu Jintao em seu
mais importante discurso desde o início de seu governo, proferido a
25 de junho de 2007 na Escola Central do Partido, momento aquele
em que já estava sistematizada uma elaboração mais acabada do
“conceito científico de desenvolvimento”. Por outro lado, tomando
sob o aspecto do comando do processo, nada mais normal que um
núcleo dirigente – (Hu Jintao e Wen Jiabbao) com carreiras políticas
de sucesso trabalhando em contato com as populações mais pobres do
interior da China – fosse o timoneiro de tal mudança.
17
Apesar dos sinais emitidos por ocasião do 17° Congresso
Nacional do PCC, o conceito em si fora anunciado pela primeira vez
na 3ª Sessão Plenária do Comitê Central do PCC em 2003. A mudança
de eixo já pode ser sentida com os objetivos delineados no 11º Plano
Qüinqüenal (2006-2010), onde, nos estertores de sua elaboração, Hu
Jintao – em reunião do G-20 realizada em outubro de 2005 – sintetizou
o “conceito científico de desenvolvimento” na busca por “cinco
equilíbrios”, a saber: entre o desenvolvimento interno e a abertura à
economia mundial, entre o interior e o litoral, entre as economias
rural e urbana, entre o homem e a natureza e a economia e a sociedade.
Enfim, a senha ao enfrentamento à moda “bismarckiana” das principais
condicionantes internas do regime.
Porém, a nosso ver, o aporte mais importante a ser buscado na
prática concreta é a solidificação do instituto da “estabilidade social”
17
Hu Jintao foi governador das duas províncias mais pobres da China, Tibet e Gansu.
O fato de ambos (Jintao e Jiabbao) terem sido curtidos em meio às vastidões do oeste
explica, também, suas suscetibilidades ante as demandas de grupos internos do PCC
como a “Nova Esquerda”, grupo formado basicamente por intelectuais “mais à esquerda”
que, longe de negar a essência das reformas econômicas, podem ser localizados no
espectro político chinês em um campo quase oposto ao dos tidos como “ultraliberais”
sediados, sobretudo, em Xangai.
172
Elias M. K. Jabbour
como causa e efeito do sucesso da modernização do País, tendo como
síntese, nas palavras de Hu Jintao, a construção de uma “sociedade
socialista harmoniosa”. O que significa destacar relevo à harmonia
entre a economia e a sociedade, incluindo a crescente participação
popular. Como mais abaixo tentaremos demonstrar, o regime e sua
reprodução dependem sobremaneira das formas que darão termo a
uma ampla gama de interesses sociais múltiplos – entre os mais
importantes, a própria questão social intrínseca aos camponeses e novos
trabalhadores urbanos e a rápida ascensão de uma poderosa classe de
proprietários no País. Eis o “x” da questão. Retornaremos a este
assunto de forma mais detida.
3.1. P
LANEJAMENTO E PROJETOS EM ANDAMENTO
A conjuntura em que se insere o “conceito científico de
desenvolvimento” não é mais uma repetição atualizada de conjunturas
como a de 1949, em que a necessidade de industrialização rápida e
acelerada contava com pífios recursos, nem como a de 1978, quando
os requerimentos da modernização, em larga medida, assentavam-se
numa grande inflexão externa do regime, dada sua não-autonomia
financeira e tecnológica.
O que a China e seu projeto têm a favor na atual contenda é o
fato de suas soluções estarem ao alcance de uma economia já calcada
em bases industriais sólidas, com uma política ativa em ciência e
tecnologia e, o principal, nos marcos de uma solidez financeira jamais
sonhada pelas antigas gerações. Essa conjunção de fatores é condição
objetiva ao lançamento de novas e superiores formas de planejamento,
como expressão prática e em correspondência aos objetivos e desafios
colocados pela conjuntura a atual geração dirigente.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
173
Um planejamento de nível superior que signifique a utilização
do acúmulo financeiro chinês ao combate às desigualdades sociais e
regionais num outro patamar e que seja capaz de aproveitar a
oportunidade dada pela história que se caracteriza, na atualidade, pela
convivência em um mesmo mundo de milhares de cabeças, homens
dedicados à ciência; homens esses que, em nenhum momento da
história, foram contemporâneos – tanto nossos, quanto de si mesmos
– e que à sua disposição contam, especialmente no centro do sistema,
com recursos materiais inimagináveis e capacidade de dar curso às
suas elucubrações mediados por um planejamento estatal e privado
cada vez mais milimétrico.
De modo exato, ditas formas estão sendo lançadas a campo
desde 1999, em meio ao decréscimo no nível de consumo popular
verificado no desenrolar do 9° Plano Qüinqüenal (1996-2000).
Exemplificamos o salto qualitativo em matéria de planejamento, em
projetos de grande alcance ao enfrentamento das questões social e
regional, como o “Projeto de Desenvolvimento do Grande Oeste”
lançado na primavera de 1999 – desde então já responsável por
investimentos da ordem de mais de US$ 1 trilhão de dólares somente
entre 2000 e 2006. Tal projeto está centrado numa troca interna de
energia e matérias-primas abundantes no oeste do País por capital e
tecnologia acumulados durante 25 anos pelo litoral. Trata-se da maior
transferência territorial de renda da história, algo somente comparado
com processo semelhante ao ocorrido na URSS nos primeiros planos
quinqüenais. Não é demais dizer que as províncias que crescem de
forma mais acelerada são o Tibet e a região autônoma de Xinjiang.
18
18
Detalhes de inúmeros projetos de transferência territorial de renda em marcha na
China podem ser encontrados em: JABBOUR, Elias: China: infra-estruturas e
crescimento econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. Na verdade, e
insistentemente frisada pelo Embaixador Amaury Porto de Oliveira, está em marcha
174
Elias M. K. Jabbour
Ora, se o ato de investir nada mais é do que transformar uma grande
renda numa miríade de pequenas rendas (como dizia meu mestre
Ignácio Rangel), estamos diante de um grande processo de distribuição,
e, o mais importante, em setores da economia (construção civil) com
grande capacidade de absorção de trabalho.
Mais um exemplo pode estar no anúncio, em 2004, de uma
reforma financeira no País voltada para o corte de impostos sobre
os camponeses de forma que tal carga chegasse a “zero” até o
final de 2008. Abrindo parêntese, logo, assim como em 1978,
implementa-se uma clara política de relaxamento de relações de
produção muito bem definida. Para termos clareza da matéria,
em algumas províncias como a rica Sichuan (sudeste chinês), as
taxas cobradas aos camponeses variavam de 30% a 35% de seus
rendimentos. Observando o geral, visualizamos que as taxas
agrícolas entre 1949 e 1978 sustentaram o esforço de acumulação
no País e correspondiam, em 1979, a 41% da receita fiscal. Porém,
a partir de 1979, com a difusão industrial e do setor de serviços,
isso passou a corresponder somente a 1% do total no ano de 2003.
Por menor impacto financeiro que tivesse sobre o Estado, o mais
importante é o significado histórico deste ato, pois tais impostos
vigoravam há mais de 3000 anos no País.
19
na China todo um objetivo de constituição nas próximas décadas de uma economia
continental de corte pós-fordista com políticas e manejos semelhantes aos executados
pelos EUA em sua versão na segunda metade do século XIX. A exemplo de Oliveira,
temos de ir mais longe. A nosso ver, significa afirmar que ao lado da constituição de
um poder financeiro chinês, a unificação econômica do continente chinês é o leitmotiv
de transformações qualitativas no cenário internacional. O que em miúdas palavras
significa (economia continental mais poderio financeiro) mais um paradigma, a ser
aprofundado, das relações internacionais do século XXI.
19
"Having peaked in 1998, output fell steadily up in 2003, then recovered somewhat
in 2004". Chinability. 06/01/2005. Disponível em: http://www.chinability.com/
Grain.htm
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
175
Os resultados têm sido claros. Se tomarmos as safras
agrícolas como uma grande determinação no sentido de auferir o
“estado de ânimo” camponês, perceberemos que após uma intensa
tendência de baixa iniciada em 2000, esta foi revertida e, já em
2004, a safra alcançou a marca de 469.5 milhões de toneladas de
cereais, num aumento de 39,5 milhões de toneladas com relação
ao ano anterior, e, no mesmo ano, o subsídio estatal aos
camponeses chegou a US$ 6,5 bilhões, um aumento de 15% com
relação a 2003. Esta tendência de alta nas colheitas até o momento
não foi revertida, denunciando um imediato resultado satisfatório
ao governo.
Enfim, no que concerne a novos aportes, em matéria de
programação econômica e execução de projetos como os citados
– e, incluso, um Plano Qüinqüenal totalmente voltado à questão
ambiental com investimentos previstos da ordem de US$ 175
bilhões entre 2006 e 2010
20
–, o exposto serve em grande medida
como demonstração prática de uma determinada capacidade de
enfrentamento de reais problemas. Nas trilhas das tarefas
incumbidas ao Príncipe Moderno – descrito, um dia, por Gramsci.
Talvez seja nessa capacidade, revigorada por grandes
condições industriais e financeiras, que resida o espírito prático
que encerra o conteúdo do “conceito científico de
desenvolvimento”.
20"
China plan to protect environment”. BBC News, 18/07/2006. Disponível em:
http://news.bbc.co.uk/2/hi/asia.pacific/5192376htm
176
Elias M. K. Jabbour
4. MULTIPLICIDADE DE INTERESSES E
“QUESTÃO DEMOCRÁTICA”
“Quando a moderna democracia chinesa se
desenvolver, terá a própria marca, não a dos
americanos, mas à sua maneira conterá as
oportunidades necessárias para a vida,
a liberdade e a procura da felicidade
pela qual todos os povos anseiam”
(Pearl Buck em palestra realizada nos EUA em 1948)
A estabilidade social é a grande chave política à consecução dos
objetivos postos historicamente e do próprio “conceito científico de
desenvolvimento”. Melhor dizendo, a estabilidade social é o objetivo
número um do regime, a variável com capacidade de lubrificar o
andamento de campos da prática concreta de governo no País. A China
de hoje é uma sociedade em metamorfose ambulante, com ambulantes
interesses em voga. São camponeses lutando por seus legítimos direitos
ou simplesmente transformando-se em trabalhadores urbanos;
intelectuais com cada vez maiores possibilidades de expor suas opiniões
dentro e fora do País; uma classe média em barganha com o regime e
uma verdadeira explosão de “capitalistas” com papel a cumprir no
jogo interno da abertura de novos campos de investimentos vitais ao
conjunto da economia, e, externamente, na frenética concorrência
global entre países e empresas. No topo desta pirâmide está o PCC,
do qual a manutenção do desenvolvimento econômico e o alargamento
de sua base social são incomensuráveis à continuidade do exercício de
seu poder.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
177
Assim, podem ser elencados os atores principais do surgimento
de uma “questão democrática” na China. De um lado, pode-se vaticinar
existir uma grande pressão à abertura do regime e uma aposta feita
por muitos formadores de opinião, principalmente na Europa e EUA,
no fracasso da experiência da revolução chinesa, tornando a
liberalização do regime um imperativo ante o caos. De outro, existe
um núcleo de governo ainda apostando na manutenção do
desenvolvimento como amortecedor de pressões, mas também
impondo seu próprio ritmo às transformações políticas, com respostas
até agora, a nosso ver, satisfatórias e em consonância com sua própria
história de 5.000 anos de civilização e 2.500 de Estado Nacional, o
que pressupõe – em alguns casos – o aprofundamento de suas próprias
experiências milenares de democracia de base em detrimento de
externalidades, sem grandes condições de responder aos anseios, tanto
de seus próprios países de origem, quanto da China.
21
4.1. EIXO NO DESENVOLVIMENTO, ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL
E
DIREITOS FORMAIS
A história demonstra que somente nos marcos de um contínuo
alargamento de sua base material, uma nação poderá comportar o
surgimento de variegados interesses, de grupos e classes sociais. Eis o
primeiro ponto, já aprendido pelos chineses ao manifestarem,
reiteradamente, o desenvolvimento como tarefa primária do regime,
não existindo soluções aos impasses surgidos longe da manutenção de
altos índices de crescimento. Trata-se de uma condição objetiva basilar
21
A importância desta questão pode ser expressa no fato de a palavra “democracia” ter
sido proferida mais de 60 vezes por Hu Jintao em seu informe ao 17º Congresso
Nacional do PCC.
178
Elias M. K. Jabbour
à implementação de políticas públicas que visem ao tratamento de
todos os “equilíbrios” enumerados por Hu Jintao, principalmente o
equilíbrio entre a economia e a sociedade.
Por outro lado, pode parecer uma opinião simplista – mas não é, na
medida em que os desafios colocados à governança do PCC não são de
pequena monta –, mas se no médio prazo houver garantias de que os
camponeses terão condições de se reproduzir e seus filhos de enfrentar o
futuro; os trabalhadores tiverem ampliados e garantidos seus direitos e os
“capitalistas” garantia de crédito e suporte a seus empreendimentos,
acreditamos que nada poderá abalar o status quo do PCC. Poderão estar
garantidas, inclusive, as condições à construção de uma ordem democrática,
já em curso, de forma que todos os interesses existentes na sociedade poderão
ter seus devidos fóruns.
Ponto crucial à harmonia entre a economia e a sociedade reside no
aparelhamento de um Estado de Bem-Estar Social com características chinesas.
Nada como sua similar européia e mais algo a ver com o aprofundamento
de investimentos em saúde e educação, já iniciados em larga escala, de forma
que, de um lado, uma imensa massa de pessoas possa ter acesso a benefícios
reais do crescimento, e, de outro, como forma de aumentar a participação
da variável consumo no PIB do País, liberando os acúmulos em poupança
ao consumo de bens industriais. A nosso ver, eis uma base concreta e única
pela qual pode ser fixado o ascenso de novos direitos democráticos, da
mesma forma que no Japão e na Coréia, onde o desenvolvimento foi a base
de distintos processos de democratização. Neste aspecto, Hu Jintao, no já
citado discurso de 25 de junho de 2007, ungiu entre os grandes objetivos
imediatos do governo: o desenvolvimento prioritário da educação, a reforma
profunda do sistema de distribuição de renda e o estabelecimento de um
amplo sistema de saúde. A bem da verdade, os investimentos, por exemplo,
em educação básica, foram triplicados entre 2002 e 2006.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
179
Outro campo em que os direitos de tipo democrático estão
em trânsito, na China, é o relacionado aos direitos formais, entre
eles, o reconhecimento de se transitar livremente pelo País e o dos
direitos dos trabalhadores – ambas formas de participação no
processo encampadas após algum nível de atrito entre a população
interessada e as autoridades centrais. A liberdade de ir e vir interna
foi praticamente legalizada após graves acontecimentos envolvendo
um estudante, confundido com trabalhador migrante, que foi
espancado até a morte em 2003 na província de Guangzhou.
Mobilizações e discussões virtuais foram estopim de pressões que
levaram o regime a ceder nesse aspecto, deixando fora de termo a lei
que permitia a prisão de trabalhadores migrantes sem registro.
No campo dos direitos dos trabalhadores há ainda uma grande
estrada a ser caminhada, porém necessária, num país em que a
regulação do trabalho ainda é um problema. Porém, é inegável que
avanços aconteceram. Como expressão disso, pode servir de exemplo
tanto as mais de 1.000 empresas fechadas em 2006 por não estarem
respeitando direitos básicos de um trabalhador, quanto o fato de a
filial chinesa da Wal-Mart ser a única em que o direito de filiação
sindical teve de ser aceito. Além disso, existe, atualmente, a
possibilidade de trabalhadores em iminência de demissão disporem
de bônus da empresa, de forma a assegurar-lhes alguma participação
sobre os lucros. Um grande avanço, tendo em conta que há apenas
alguns anos, muitos trabalhadores demitidos voltavam às suas casas
com poucas garantias de seguridade ante determinadas intempéries
no trabalho.
22
22
Informações sobre a forma chinesa de transitar a uma democracia pode ser encontrada
em entrevista realizada pela revista Veja (26/12/2006) com o iminente intelectual
chinês Wang Hui, um dos expoentes da chamada “Nova Esquerda” no País. Desta
entrevista extraímos e socializamos algumas sínteses.
180
Elias M. K. Jabbour
4.2. DEMOCRACIA FORMAL E O PCC
Os poucos elementos elencados acima já são de suficiência à
demonstração de que a China já caminha, a seu tempo e a seu jeito, no
rumo de uma transição que pode desembocar numa democracia
propriamente dita.
23
Hoje, a sociedade chinesa é muito viva, em que o
grosso de sua população tem plena consciência de seus direitos e deveres.
Na própria universidade – conforme nossa experiência pessoal de visitas
ao País é testemunha –, uma miríade de opiniões, que vão desde um
culto ao ultraliberalismo até a militância em prol de minorias oprimidas
(homossexuais), é tolerada como jamais ocorreu em todos os tempos.
Outro exemplo pode ser reservado ao chamado feito em 2006, pelo
premier Wem Jiabbao, para que os 200 milhões de usuários de internet
no País se apoderassem do exercício do direito de supervisionar as
ações do governo.
24
São sinais significativos de uma transição em
andamento.
Numa análise histórico-comparativa, é bom lembrar que as
mulheres nos EUA só puderam ter direito a voto 120 anos depois da
independência do País e os negros conquistaram direitos civis quase
23
Esta constatação pode ser auferida, também, após a leitura de excelente artigo assinado
pelo professor da Universidade Tsinghua de Pequim, John Thornton na edição de
janeiro/fevereiro de Foreign Affairs, intitulado “Long Time Coming – The Prospects
for Democracy in China”. Baseado em conversas com dirigentes do País e em
apresentações de Hu Jintao e Wen Jiabbao, Thornton aufere o alcance e o gradualismo
chinês em matéria de democracia, partindo de três campos previamente elencados
pelo Primeiro-Ministro Wen Jiabbao, a saber: eleições, independência do poder judiciário
e supervisão baseada em balanços e resultados, onde amiúde as indagações do autor
quanto à velocidade e à forma como o processo está em andamento são de muito bom
tom pelas informações nele contidas. Disponível em: http://www.foreignaffairs.org/
20080101faessay87101/john-l-thornton/long-time-coming.html
24
Tal observação foi feita em um meeting entre Wen Jiabbao e uma delegação do
Brookings Instituition e relatado pelo professor da Universidade Tsinghua de Pequim,
John Tornton.
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
181
200 anos após os acontecimentos de 1776 nos EUA. Importante,
também, é afirmar que esse processo de mudança qualitativa nos EUA
não pressupôs a derrubada do condomínio de poder pós-1776. Sem
nenhuma intenção de fazer juízo de valor ao processo norte-americano,
a grande verdade (e, como toda verdade, só tem lastro se for
demonstrada historicamente) – baseada no desenvolvimento de processo
com traços de similaridade com o visto nos últimos 230 anos nos
EUA – é que a experiência chinesa ainda não completou 60 anos;
logo, um nada curto caminho ainda há de ser seguido no
desenvolvimento de uma democracia formal, também com
características chinesas e mediado politicamente pelo próprio PCC.
Neste aspecto, não é de somenos vaticinar que cerca de 700
milhões de camponeses chineses vão às urnas periodicamente para
eleger seus representantes ao nível da aldeia, inclusive com candidaturas
externas ao PCC, com importância crescente de eleição em eleição.
Trata-se de um sinal no rumo de uma democracia com características
chinesas, expressada numa grande retomada da milenar democracia à
base da aldeia típica de regiões do globo onde predominou a pequena
produção mercantil (terras comunais germânicas, as Treze Colônias
inglesas na América do Norte e vales de grandes rios na China, por
exemplo). Instituídas na década de 80 e abertas a não-membros do
PCC desde 1998, evidente que esse tipo de experiência ainda é
caracterizada por uma série de vícios e problemas (nada anormal para
um país que viveu sob uma variante de feudalismo durante mais de
3.000 anos, assim como – não é anormal – o avassalador poder do
capital financeiro em qualquer contenda eleitoral, seja nos EUA, seja
no Brasil, países onde eleger um candidato em qualquer nível custa
milhões de US$). Mas para quem não conhece a China (ou esteve lá e
não teve acesso ao menos a umas três aldeias camponesas, o que é tão
182
Elias M. K. Jabbour
importante quanto conhecer Pequim ou Xangai) é necessário registrar
que é no nível da aldeia que se mede uma série de variáveis políticas.
Apesar de não ser prudente superestimar este tipo de experiência,
acreditamos que nela reside a semente cujo conteúdo revela parte da
essência do futuro das reformas políticas na China.
O próprio PCC não ficou incólume às mudanças verificadas
no tecido social chinês. Acelerou-se o processo de transformação de
sua identidade na década de 90. O PCC caminhou a passos firmes na
esteira de sua transformação em um partido político de caráter
nacional, resultando em um “encontro” programático e de base social
com as origens e objetivos do Kuomintang em seus primórdios, sob a
liderança de Sun Yatsen. Isso não representa renúncia aos objetivos
estratégicos de maior envergadura – o que significaria uma negação da
própria história e essência programática do PCC –, mas, sim, a criação
de condições que permitam sua adaptação a uma nova realidade em
que, por exemplo, capitalistas surgidos pós-1978, com papel de relevo
no desenvolvimento do País em um mundo ultracompetitivo,
pudessem ser abrigados sob o guarda-chuva do partido. Embora, por
um lado, não haja nenhuma contradição nisso, por outro, tem
demandado maiores mecanismos de controle ante a praga da corrupção
e a sedução que os negócios comerciais impingem. Daí, a atual geração
nomear a corrupção como o inimigo número um a ser combatido –
um passo relativamente curto. Mas, ainda, o futuro próximo nos
reserva algumas respostas nesse aspecto.
Finalizando esta superficial análise, há quem diga que uma
reforma interna no PCC guarda maior significado que
experimentações de sufrágios em nível de base. Neste sentido, também
se verifica mudanças no cotidiano do partido: de uma organização de
listas prontas e fechadas a um partido político decidido a sacudir as
“Conceito Científico” e Os desafios do desenvolvimento na China de hoje
183
teias de uma militância acostumada a determinados hábitos políticos.
O próprio Hu Jintao, ao contrário de seus predecessores, não conta
mais com maioria absoluta dentro do Politburo, o que tem
conseqüência direta na vida partidária hoje, literalmente incentivada a
se discutir e trabalhar mais e se reunir menos. O último Congresso
Nacional do PCC foi o primeiro em que houve número de candidatos
apresentados a ocupar as cadeiras do comitê central maior que as
vagas disponíveis; 15% dos candidatos a delegados ao Congresso foram
rejeitados e entre 2006 e 2007, 296 cantões de 16 províncias colocaram
– como parte de um projeto de experimentação – os chefes locais do
PCC a serem votados, o que significa uma verdadeira prova de fogo a
determinadas lideranças locais.
25
Ora, fica, assim, uma grande evidência de mudanças
institucionais na China, cristalizadas na própria prática política da
atual geração no poder. Mas, é certo que da parte de nós, analistas,
ainda vale um caminho muito longo e tortuoso de estudos e
investigações, pois a democracia chamada a se encaixar numa formação
social complexa como a da China não é a mesma praticada nos marcos
de realidades nacionais como as do Japão e da Coréia.
Daí, sob nosso ponto de vista, a discussão não poder girar em
torno de previsões do tipo “quando vai haver eleições na China?” (o
que, aliás, torna a discussão algo próximo da pauperização absoluta
do método científico), o que redunda em mais de 90% dos casos em
respostas que não estão assentadas em métodos plausíveis com a
superioridade metodológica que somente a ciência histórica e o
conhecimento da realidade concreta são capazes de proporcionar.
25
Thornton, John: “Long Time Coming – The Prospects for Democracy in China”.
Foreign Affairs. Vol. 87, n° 1. January/February 2008.
184
Logo, sob nosso prisma, muito mais importante do que buscar
respostas imediatas a determinadas questões é a compreensão do
processo histórico em si, que, no caso em tela – a China – é marcado
por desafios e mudanças, nos quais se insere também a questão da
legitimidade, cujo conteúdo do “conceito científico de
desenvolvimento” e sua prática como método e política de Estado
encerra per si uma série de questões colocadas, tanto pelo momentum
chinês, quanto por externalidades.
Elias M. K. Jabbour
China:
Dimensões Internacional
e Estratégica
187
Estou muito satisfeito de ter vindo para essa famosa cidade
litorânea do Brasil, Rio de Janeiro, vindo da distante Pequim, na
China, e de ter sido convidado a participar desta muito importante
conferência internacional. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer
aos organizadores deste encontro por me terem concedido a
oportunidade de falar no mesmo.
O tema desta manhã é “História e política da China”, e eu desejo
aproveitar esta oportunidade para lhes dar, em poucas palavras, algumas
informações sobre a reforma e abertura na China, bem como sobre
sua rota de desenvolvimento.
I. O SUCESSO E AS EXPERIÊNCIAS DA REFORMA E DA
ABERTURA NA CHINA
Este ano ocorre o 30
o
Aniversário da reforma e da abertura na
China. Trinta anos atrás, assinalado pela Terceira Plenária do 11º
Comitê Central do Partido Comunista Chinês, a China ingressou
numa nova era histórica de reforma e abertura. Durante esses trinta
anos, a China fez tremendo progresso e conseguiu brilhante sucesso
nos campos econômico, político, cultural, social, etc. Com uma postura
inteiramente nova, a nação chinesa agora goza de posição firme como
uma rocha no concerto das nações, marchando à frente dos tempos.
* Vice-Presidente Executivo da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
A REFORMA, A ABERTURA E A ROTA DO
DESENVOLVIMENTO CHINÊS
Wang Weiguang*
188
Wang Weiguang
O Processo de abertura
Durante esses trinta anos, do campo à cidade, e da área
econômica às outras todas, o processo de uma reforma
avassaladora se desenvolveu com força irresistível. Das áreas
litorâneas, ao longo do rio Yangtzé e suas margens e das
regiões orientais às centrais, as portas estiveram francamente
abertas para o mundo exterior. Esse grande movimento de
reforma e de abertura nunca tinha sido visto na história da
China. Ela removeu o rígido e fortemente centralizado
sistema econômico, estabeleceu um sistema de mercado
econômico socialista muito dinâmico e instituiu o sistema
econômico básico no qual a propriedade pública predomina
e diferentes setores econômicos se desenvolvem
paralelamente. A sociedade chinesa está atuante como nunca
estivera antes, e o entusiasmo, o espírito de iniciativa e de
criatividade revelam grande inspiração. Os maiores avanços
ocorreram no setor agrícola, no tecnológico, no das empresas
estatais e no setor privado da economia. A transformação
das funções de governo se acelerou e a reforma do sistema
de administração governamental foi inserida na agenda. Hoje,
estamos profundamente conscientes de que a decisão de
iniciar a reforma e a abertura foi vital para o desenvolvimento
atual da China, e de que a reforma e a abertura são a única
forma de desenvolver o socialismo com características chinesas
e de rejuvenescer a nação, e de que frear a reforma ou reverter
à situação anterior nos levaria a um beco sem saída.
Desenvolvimento econômico e social. Desenvolvimento
econômico rápido e sustentável foi o feito mais notável no novo
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
189
período de reforma e de abertura. Em 1978, o PIB total da China era
de apenas 364.52 bilhões de yuans, e o PIB per capita era de 381 yuans;
em 2007, o PIB total da China somava 24.66 trilhões de yuans, 67.7
vezes o de 1978. com um crescimento anual médio próximo de 14%.
Em 1978, a renda per capita dos residentes urbanos era de apenas 343
yuans, e chegou a 13.786 yuans em 2007. Em 1978, a renda líquida per
capita dos residentes rurais era de apenas 134 yuans, enquanto em 2007
atingiu 4.140 yuans. Havia 400.000 estudantes matriculados na
universidade depois que a China reintroduziu o vestibular, em 1978;
em 2007, o número de graduandos e de pós-graduandos regulares atingiu
11.44 milhões, o de alunos secundários e de escolas superiores
vocacionais chegou a 20 milhões e 8.61 milhões, respectivamente. Em
1978, a frota de carros particulares era quase nenhuma; pelo final de
2007 o número total de carros particulares na China chegou a 15.22
milhões. Em 1978, a população pobre na China girava em torno de 2.5
bilhões; atualmente está reduzida a menos de 20 milhões. A produção
de bens de natureza agrícola e industrial, como grãos, algodão, carne,
ferro e aço, carvão, fertilizantes químicos, cimento, etc. foi a maior do
mundo. Além do rápido crescimento econômico, a China fez, também,
notável progresso no que diz respeito às instituições políticas, culturais
e sociais. Possuímos hoje um sólido fundamento material, com condições
que favorecem mais e mais desenvolvimento
1
.
RELAÇÕES DA CHINA COM O MUNDO EXTERIOR
Antes da reforma e da abertura, a China era um Estado fechado
e semi-fechado, com poucas relações econômicas com a comunidade
1
Dados numéricos de acordo com o original (nota do tradutor) íntima relação entre o
futuro e o destino da China e o futuro e o destino do mundo.
190
Wang Weiguang
internacional. Em 1978, as importações e exportações totais da China
foram de apenas US$ 20.64 bilhões, e as reservas externas, US$ 167
milhões. Após 30 anos de desenvolvimento, a China transformou-se
num completo, complexo e abrangente modelo, estabelecendo laços
econômicos, políticos, culturais e de segurança, antes inexistentes, com
o mundo lá fora. Em 2007, as importações chinesas totalizaram US$
1.17 trilhões, tornando-se a terceira maior nação em comércio no
mundo; as reservas externas ultrapassaram US$ 1.53 trilhões,
representando um terço do total mundial, e tornou-se a maior
detentora mundial de reservas externas. A China tornou-se uma
importante geratriz de crescimento da economia mundial, e da regional
em particular, e sua taxa de contribuição para o crescimento econômico
mundial estava em torno de 14%. A entrada para a OMC marcou
uma nova etapa da abertura chinesa. Ela tomou parte na globalização
econômica de uma forma mais abrangente, e se integrou ainda mais
ao sistema econômico global. A China está crescendo pari passu com
o mundo, e tem contribuído muito com a economia mundial. A China
trilha sem desvios o caminho do desenvolvimento pacífico, e tem a
opinião de que os povos de todos os países devem se esforçar para
construir um mundo harmonioso, com paz duradoura e prosperidade
comum, o que é apreciado pela comunidade internacional. Mudanças
históricas têm ocorrido entre a China contemporânea e o resto do
mundo, resultando em cada vez mais.
A reforma e a abertura, que representam uma grande revolução
desencadeada pelo povo sob a liderança do Partido numa nova era,
criaram amplas perspectivas para o desenvolvimento contemporâneo
da China, e causaram um impacto muito grande na atual situação
mundial e no curso da humanidade. Trinta anos de prática de reforma
e de abertura nos ajudaram a acumular uma rica experiência que
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
191
julgo poder ser descrita nos nove pontos que desenvolveremos a
seguir.
1. P
ERSISTIR EM LIBERAR A MENTE, BUSCAR A VERDADE DOS FATOS E
ACOMPANHAR
OS TEMPOS
Emancipação ideológica é a força motriz da reforma na China
e do desenvolvimento, e a precursora das mudanças sociais ali. Desde
o final dos anos 70, o movimento de emancipação ideológica com
respeito à reforma e à abertura tornou-se a força motriz da reforma e
da abertura. Pode-se dizer que cada passo que a China deu nessa direção
é conseqüência da emancipação ideológica. Os trinta anos de reforma
e abertura são também a história de uma emancipação contínua da
mentalidade, de abertura, de inovação e da busca do desenvolvimento.
Trinta anos provaram que, insistindo na reforma da mentalidade, a
China haveria de se reformar, se desenvolver e avançar, do contrário
haveria estagnação, recuo e atraso. Somente partindo das atuais
condições, ousando romper os entraves de idéias inadequadas e
reformando os sistema rígidos e superados, explorando corajosamente
e mantendo-se atualizados com os tempos, podem a reforma, a abertura
e a causa da modernização avançar .
2. A
DESÃO AO OBJETIVO FUNDAMENTAL DE LIBERAR E DESENVOLVER AS
FORÇAS
PRODUTIVAS, AUMENTANDO O PADRÃO DE VIDA DO POVO
A China sempre adotou “os três favoráveis” como critério para
avaliar os ganhos e perdas, e o sucesso ou fracasso da reforma e da
abertura, isto é, se elas promovem o crescimento das forças produtivas
numa sociedade socialista, se empresta força ao Estado socialista e se
192
Wang Weiguang
aumenta os padrões de vida do povo, o que é determinado pelas
realidades fundamentais e pelos sistemas básicos do País. Apenas
quando se comprometendo firmemente com as tarefas centrais do
desenvolvimento, considerando o desenvolvimento como necessidade
absoluta e primeira prioridade do Partido no governo e no
rejuvenescimento do País, concentrando-nos na construção e no
desenvolvimento, podemos erguer as forças produtivas do estado de
subdesenvolvimento e construir um país rico e forte o mais cedo
possível. Somente almejando a prosperidade de todo o povo, elevando
continuamente os padrões de vida materiais e culturais, e repartindo
os frutos da reforma e da abertura com a população, poderão a reforma
e a abertura na China evitar desvio de sua verdadeira rota, e as várias
linhas, princípios e políticas ser aprovadas e apoiadas pelas massas.
3. R
EVIGORAMENTO DAS INSTITUIÇÕES E DOS SISTEMAS DE INOVAÇÃO,
REFORMA E APERFEIÇOAMENTO DOS SISTEMAS E MECANISMOS
A reforma e a abertura são, na verdade o auto-aperfeiçoamento
e desenvolvimento do sistema político socialista, e a infalível força
motriz da sobrevivência e do desenvolvimento da nação. As inovações
do sistema foram vitais para a efetiva aplicação das teorias, das linhas,
dos princípios e das políticas de reforma e abertura. Nas primeiras
etapas, a implementação do sistema de responsabilidade familiar pelo
contrato e a abolição do sistema de comunas do povo foram o prelúdio
das inovações do sistema e grandemente proporcionaram o
desenvolvimento das forças produtivas agrícolas. As inovações do
sistema, que tem como foco o aperfeiçoamento do sistema econômico-
socialista de mercado, foram uma grande invenção. O estabelecimento
de sistemas econômicos, políticos, culturais e sociais que acompanham
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
193
as etapas atuais do desenvolvimentos social e o nível das forças de
produção proporcionou um importante apoio e garantia do tranqüilo
desenvolvimento econômico e social desses trinta anos. Hoje, a China
está na etapa das inovações abrangentes do sistema, enfatizando em
aplicações integrais da visão científica do desenvolvimento, que
promoverá um grande aperfeiçoamento da reforma e da abertura.
4. C
ORRETO LIDAR COM AS RELAÇÕES ENTRE REFORMA, DESENVOLVIMENTO
E
ESTABILIDADE
A reforma é a força motriz, o desenvolvimento, o objetivo e a
estabilidade é o pré-requisito. Sem reforma, a China não poderia trilhar
o caminho certo do desenvolvimento consentâneo com as condições
nacionais, e os diversos empreendimentos não poderiam avançar com
desenvoltura sem o desenvolvimento. A China não poderia ter
realizado a modernização e mantido duradoura estabilidade política
sem estabilidade, e a reforma e o desenvolvimento não poderiam ter
sido alcançados. Lidar corretamente com as relações garantiu a saudável
operação da reforma e da abertura, sem o que a China teria sofrido
muito e pago o preço até com eventuais desastres para a sociedade. Na
reforma e abertura, sem recorrer a programas radicais como “terapia
do choque” ou “aterrissagem dura”, a China adotou sempre a
abordagem gradual à reforma planejada do velho Deng Xiaoping, o
arquiteto- chefe da reforma e da abertura chinesa, procedendo a partir
da realidade, passo a passo, e dando muita atenção à harmonia das
relações entre os esforços da reforma, o ritmo do desenvolvimento e
o grau de tolerância social. A realização de reforma num país tão
vasto como a China, com uma população de mais de um bilhão de
pessoas, não tem precedentes na história do Planeta. Precisamos romper
194
Wang Weiguang
uma estrutura de socialismo à chinesa, aprender fazendo, fazer ainda
aprendendo e acumular experiência com a ação. Assim agindo, a China
pôde não apenas evitar séria recessão econômica, a intensificação das
contradições sociais e sérios distúrbios sociais devido a medidas
inapropriadas, mas também tornar a sociedade chinesa rica de vitalidade,
harmonia e estabilidade. Agora vemos, claramente, que a China realizou
com sucesso a transformação econômica. Até agora há mais de 50 países
que reconhecem o status de economia de mercado da China,e o Brasil
reconheceu esse status no Memorando de Entendimento e Cooperação
assinado pelos dois governos em novembro de 2004.
5. C
OMBINAÇÃO DA BUSCA DE DESENVOLVIMENTO INDEPENDENTE COM
PARTICIPAÇÃO
NA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA
O desenvolvimento econômico é pré-requisito e base da
participação na globalização econômica. Nós estamos plenamente
conscientes de que para um tão vasto país em desenvolvimento como
a China sobreviver e se desenvolver na competição da globalização
econômica, devemos primeiro tomar como base nosso próprio país,
procedendo a partir da realidade, e promover o desenvolvimento
econômico e todos os outros empreendimentos confiando na força
do povo. Ao mesmo tempo, entendemos muito bem que, com o
contínuo desenvolvimento das forças produtivas, a economia mundial
está cada vez mais inter-relacionada, interdependente e entrelaçada,
tendo-se tornado um só organismo integrado. Com o pré-requisito
da manutenção do desenvolvimento independente, a participação ativa
na cooperação econômica global é a melhor forma de aumentar a
capacidade da China de conseguir desenvolvimento independente e
promover forte e rápido desenvolvimento da economia nacional. A
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
195
China deve tomar parte ativa na globalização econômica, desenvolver-
se fazendo uso integral dos fundos estrangeiros, das tecnologias, das
experiências avançadas e de outras condições externas e alcançar
desenvolvimento equilibrado, benefícios compartilhados e progresso
win-win (todos ganham) através da competição em pé de igualdade,
procurando os benefícios e evitando as desvantagens.
6. C
OMBINAÇÃO DE APRENDIZAGEM COM ADOÇÃO DE EXPERIÊNCIAS ADMI-
NISTRATIVAS ESTRANGEIRAS NAS CONDIÇÕES CHINESAS
A reforma e a abertura chinesas são realmente um processo de
aprendizagem contínua com as experiências avançadas de administração,
por exemplo, com a instituição de um sistema corporativo moderno, e
otimização de governo corporativo no nível microeconômico, a
introdução do mercado de capital, o estabelecimento do mercado de
trabalho no nível intermediário e aplicação de políticas monetária e
fiscal e do papel regulador das políticas de distribuição de renda no
nível macroeconômico. No processo de aprendizagem, nós
introduzimos aos poucos uma série de sistemas de apoio à economia de
mercado, como o sistema de bem-estar social, o sistema de seguridade
social, o sistema de administração de propriedades estatais, o sistema
moderno de administração de pessoal civil, etc. A maioria deles é fruto
da adaptação das experiências administrativas estrangeiras avançadas às
condições de um país específico .
7. A
PERFEIÇOAMENTO DA DEMOCRACIA SOCIALISTA E DO SISTEMA LEGAL
O desenvolvimento da democracia socialista e o fortalecimento
do sistema legal é o objetivo que vimos perseguindo consistentemente.
196
Wang Weiguang
A democracia continuará se desenvolvendo com o progresso do
socialismo. Desde que a China iniciou sua reforma e abertura, temos
feito permanente esforço para promover a reestruturação política,
melhorar o sistema de congressos populares, o sistema de cooperação
multipartite e de consulta política sob a liderança do PCC, e o sistema
de autonomia étnica regional que efetivamente assegure para o povo a
posição de donos do país e de seus direitos humanos, e definir as
instituições, os padrões e os procedimentos em busca de uma
democracia socialista.
Para fortalecer o desenvolvimento da democracia, temos o
regime da lei como princípio fundamental: promover o
aperfeiçoamento do sistema legal e executar processo decisório
democrático, administração e supervisão de acordo com a lei. O
estabelecimento da economia de mercado à moda socialista demanda
um relativamente completo sistema legal. Hoje, um sistema legal
socialista com características chinesas está praticamente em
funcionamento;o regime da lei foi efetivamente implementado como
princípio fundamental e toda a ação do Estado é baseada na lei. A
reforma do sistema de administração governamental foi grandemente
aprimorada, e cresceu pouco a pouco a confiança do povo no governo.
8. P
ERSISTÊNCIA SEM DESVIOS NA POLÍTICA DE REFORMA E DE ABERTURA
Este ano ocorre o 30º aniversário da reforma e da abertura
chinesas. A decisão de iniciar a reforma e a abertura foi vital para o
destino da China contemporânea, e ambos são a única forma de
desenvolver o socialismo com características chinesas e de alcançar a
modernização. Ao longo do glorioso curso desses trinta anos, a China
parte de um novo marco na história. Agora precisamos continuar a
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
197
emancipar as mentes, a fazer mudanças e inovações ousadas, a ter
atitudes verdadeiras, e a levar adiante corajosamente a grande causa da
reforma, da abertura e da modernização.
9. A
DESÃO SEM DESVIOS EM DIREÇÃO À SENDA DO SOCIALISMO COM CARAC-
TERÍSTICAS CHINESAS
No 17º Congresso do PCC, encerrado o ano passado, o
Secretário Geral, Hu Jintao, observava: a razão fundamental de todo
o nosso sucesso e de nossas realizações desde a reforma e a abertura, é
que “nós iluminamos o caminho do socialismo com características
chinesas”. Resumindo: aderindo sem desvios ao socialismo com
características chinesas significa que, sob a liderança do PCC e levando
em conta as condições básicas da China, nós assumiremos o
desenvolvimento econômico como a tarefa principal, aderiremos aos
Quatro Princípios Cardeais, perseveraremos na reforma e na abertura,
liberaremos e desenvolveremos as forças produtivas, consolidaremos
e aperfeiçoaremos o sistema socialista, desenvolveremos a economia
de mercado socialista, a democracia socialista, uma cultura socialista
avançada e uma sociedade socialista harmoniosa, e faremos da China
um país próspero, forte, democrático, culturalmente avançado,
harmônico e moderno.
A tomada do caminho do socialismo com características chinesas
requer lidar adequadamente com cinco “combinações”: combinar a
adesão aos princípios básicos do Marxismo com a adaptação do mesmo
às condições chinesas; manter os Quatro Princípios Cardeais, mas
aderindo à política de reforma e abertura; respeitar a iniciativa pioneira
do povo reforçando a liderança do Partido; aderir ao sistema básico
do socialismo desenvolvendo a economia de mercado; realizar as
198
Wang Weiguang
mudanças na base econômica promovendo a reforma da
superestrutura; desenvolver as forças produtivas melhorando a
qualidade cultural e étnica de toda a nação; aumentar a eficiência
promovendo a igualdade social; buscar o desenvolvimento
independente participando da globalização econômica, e promover
a reforma e o desenvolvimento com manutenção da estabilidade
social.
Os nove pontos acima constituem a principal realização e
experiência da China durante trinta anos de reforma e abertura.
II. CONTEÚDO DA CULTURA TRADICIONAL CHINESA E
ESCOLHA DO CAMINHO DO SOCIALISMO COM
CARACTERÍSTICAS CHINESAS
Conforme mencionado anteriormente, o sucesso do
desenvolvimento chinês pode ser atribuído ao caminho do
socialismo com características chinesas, um caminho para o
rejuvenescimento, desenvolvimento e prosperidade. O caminho do
socialismo com características chinesas é a opção feita pela história
e o povo, e é a opção correta. Ela encerra três significados:
desenvolvimento científico, desenvolvimento harmonioso e
desenvolvimento pacífico, que são inseparáveis do conteúdo da
cultura chinesa tradicional.
A China acumula mais de 5 000 anos de história e civilização,
e o amor pela paz e a busca de harmonia sempre correu nas veias
da nação chinesa. O povo chinês sempre amou a paz, e o antigo
filósofo, Confúcio, considerava a harmonia como “o fundamento
do mundo e a raiz de tudo na terra”. A nação chinesa assumiu
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
199199
xie he wan bang”, “wan guo xian ning” e “tian xia taii ping”, que
significa “paz e harmonia entre as nações”, como o ideal supremo.
A histórica Estrada da Seda de mais de 2000 anos é comumente
reconhecida como uma Estrada para intercâmbio amistoso há mais
de 600 anos.
Zheng He, da dinastia Ming, viajou sete vezes para o
Ocidente, e com a mais poderosa armada do mundo não tomou
uma polegada sequer de terra de outras nações, revelando, assim,
a civilização e o espírito de amizade do povo chinês. De 1840 a
1949, durante mais de 100 anos antes da fundação da nova China,
a pobre e fraca China sofreu bastante com guerras. Seriamente
atacada e brutalmente saqueada pelos poderes estrangeiros, a China
foi forçada a pagar indenização com prata do tesouro nacional e a
importar ópio com chá e seda, e a paz transformou-se numa bolha.
Após a fundação da nova China, em 1949, a nação chinesa,
novamente erguida, tinha completa consciência do valor da paz e
da importância do desenvolvimento. Trocou a espada pelo arado,
pagou o mal com o bem, ativamente integrada no mundo com paz
e visão ampla, e tem feito incessantes esforços para manter a paz
mundial. Uma das razões por que o grande feito da China nesses
30 anos de reforma e abertura atraiu a atenção do mundo e um
número crescente de pessoas se associou para discutir o caminho
do desenvolvimento chinês, é que sua rota de desenvolvimento
encerra a essência da cultura tradicional da China ao longo de 5
000 anos. Como doutor em Humanidades, e também professor,
estive por muito tempo ocupado com o ensino e a pesquisa sobre
o Marxismo e as teorias do socialismo com características chinesas.
Aqui, gostaria muito de compartilhar com os senhores meus pontos
de vista para promover intercâmbio de idéias e discussão.
200
Wang Weiguang
1. DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO DA CHINA
Em geral, desenvolvimento científico significa colocar o povo
antes e alcançar desenvolvimento abrangente, equilibrado e sustentável.
Estabelecendo o povo como prioridade, devemos sempre tomar os
seus principais interesses como o objetivo principal e instrumento de
desenvolvimento e de satisfação das crescentes necessidades materiais
e espirituais como o fim do processo de desenvolvimento.
Desenvolvimento abrangente significa que teremos como foco principal
a tarefa central da construção econômica e de promover
desenvolvimento econômico, político, cultural e social abrangente,
alcançando progresso completo no desenvolvimento econômico e
social. Desenvolvimento equilibrado requer de nós desenvolvimento
urbano e rural equilibrado, desenvolvimento inter-regional,
desenvolvimento econômico e social, relações entre o homem e a
natureza, desenvolvimento doméstico e abertura para o mundo lá
fora, para equilibrar as relações da produção com as forças produtivas
e a superestrutura com a base econômica, e coordenar todos os laços
e aspectos das construções econômica, política, cultural e social. O
desenvolvimento sustentável requer harmonia entre o homem e a
natureza, entre o desenvolvimento econômico e os recursos da
população e o meio ambiente. Devemos adotar uma abordagem
inteligente do desenvolvimento que resulte em aumento de produção,
em vida melhor e boas condições ecológicas e ambientais para assegurar
desenvolvimento sustentado geração após geração. A China adota um
caminho científico de desenvolvimento, não apenas por causa dos
problemas desenvolvimentistas que o País enfrenta na fase atual, mas
também por causa das responsabilidades com relação ao mundo. A
China é o maior país em desenvolvimento no mundo e possui as duas
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
201
características estruturais dos países emergentes. Com uma vasta
população e fundamentos pobres, há grandes hiatos nas condições
geográficas, na distribuição da população e dos recursos naturais, bem
como no desenvolvimento urbano-rural e inter-regional. E há também
sérias contradições entre o desenvolvimento sócio-econômico e a
população e as pressões dos recursos ambientais. Para retirar as forças
produtivas do estado de subdesenvolvimento faz-se mister um prazo
longo; é uma tarefa urgente e árdua para a China. Por isso, precisamos
sempre focalizar a tarefa central da construção econômica, considerar
o desenvolvimento como primeira prioridade e resolver todos os
problemas através do desenvolvimento. Entretanto, nosso crescimento
deve ser baseado em nossa própria força e firmes reformas e inovações,
esforços especiais para transformar o modelo de desenvolvimento
econômico, adaptação da estrutura econômica, melhoria da qualidade
e eficiência do crescimento econômico, e, especialmente, economia de
recursos e proteção ambiental. A China não irá nunca transferir seus
problemas para outros países, nem a se desenvolver apoderando-se do
alheio. Para conseguir a industrialização e a modernização, a China
de forma alguma adotará o método da adaga e da espada cintilantes,
mas trilhará um caminho novo com as características chinesas. A China
está agora incansavelmente fazendo explorações e esforços visando a
esse objetivo.
2. D
ESENVOLVIMENTO CHINÊS HARMONIOSO
No processo de promover o desenvolvimento científico, a China
faz esforços efetivos para construir uma sociedade socialista
harmoniosa. Desenvolvimento científico e desenvolvimento
harmonioso são complementares e integrados um ao outro. Então,
202
Wang Weiguang
com o que se parece a harmoniosa sociedade que a China procura
construir? Falando de uma forma genérica, é uma sociedade com
democracia e império da lei, da eqüidade, da justiça, da honestidade,
da fraternidade, do vigor, da vitalidade, da estabilidade, da ordem e
da harmonia entre o homem e a natureza. Especificamente, significa
democracia popular promovendo por completo a estratégia de gerir
os negócios do estado de acordo com a lei verdadeiramente aplicada,
e com os fatores positivos sob todos os aspectos mobilizados; os
interesses de todos os setores da sociedade bem coordenados, e diversos
problemas sociais resolvidos da maneia correta; a igualdade e a justiça
social efetivamente salvaguardadas; mecanismos adequados de
organização social; administração do social aperfeiçoada, e ordem social
favorável; todo o povo vivendo em igualdade e fraternidade, com
boas relações, contente, trabalhando em paz e harmonia entre o homem
e o homem, bem como entre o homem e a sociedade e entre o homem
e a natureza; enfim, é um caminho de desenvolvimento harmônico,
que evita a polarização e eventualmente alcança a prosperidade comum.
3. D
ESENVOLVIMENTO PACÍFICO DA CHINA
O desenvolvimento chinês é parte do desenvolvimento mundial.
O desenvolvimento pacífico está em acordo com os interesses
fundamentais do povo chinês e também com os requisitos objetivos
para o desenvolvimento e o progresso da sociedade humana. O PCC
e o governo chinês afirmaram claramente que a China seguirá
firmemente o caminho do desenvolvimento pacífico, um compromisso
e uma declaração solenes para a sociedade internacional e para todo o
povo do mundo. A idéia central é: a China não é e nem quer ser
hegemônica, e se baterá por um ambiente internacional pacífico para
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
203
seu próprio desenvolvimento e manterá a paz mundial com esse
desenvolvimento. Domesticamente, trabalhamos denodadamente na
construção de uma sociedade harmoniosa; internacionalmente,
esforçamo-nos por construir um mundo de paz duradoura e
prosperidade comum. Como força principal no desenvolvimento do
socialismo com características chinesas, os comunistas chineses
assumiram o princípio fundamental do desenvolvimento científico,
harmonioso e pacífico como o conceito maior, e esse princípio
fundamental é a perspectiva científica do desenvolvimento.
III - O DESENVOLVIMENTO DA CHINA E A “AMEAÇA
CHINESA
Nós sempre acreditamos que não existe só uma forma de
crescimento para todos os países do mundo, e a forma chinesa de
desenvolvimento só se aplica às condições nacionais da China. As
“características chinesas” que temos enfatizado referem-se
especificamente às características do caminho do desenvolvimento
chinês. Nós respeitamos profundamente as diferenças do
desenvolvimento humano e a diversidade das civilizações, e acreditamos
firmemente nas características chinesas formadas e criadas na exploração
do caminho para o desenvolvimento da China e as civilizações do
sistema plenas de vitalidade. A China trilha, sem titubeios, seu próprio
caminho do desenvolvimento. Ela não copiará outros países, nem
pedirá a outros países que copiem o seu modelo de desenvolvimento,
por razão alguma. O caminho singular da China para o
desenvolvimento obteve cada vez mais compreensão e aprovação por
parte do mundo, e cada vez mais pessoas empregam o conceito “modelo
chinês”, para se referir ao sucesso da China e o desenvolvimento. Aqui
204
Wang Weiguang
eu cito alguns. O economista americano Joseph Stiglitz acredita que a
China é a formação de um “novo modelo econômico” e “é diferente
do modelo chinês anterior, e também diferente dos atuais modelos
dos países ocidentais”. Leimo, um consultor sênior dos Goldman Sachs,
dos Estados Unidos, publicou um relatório intitulado “Consenso de
Pequim”, que sistematicamente explana sobre as experiências e o
significado do desenvolvimento chinês. Ele disse: “embora outros países
não possam repetir o modelo chinês, alguns conteúdos do modelo
valem a pena estudar”. O Diretor Geral da OMC, Supachai, disse:
“os grandes feitos econômicos da China deveriam ser fonte de
inspiração para outros países em desenvolvimento”. O economista
indiano, Aggawala, antigo perito do Banco Mundial, comentou em
seu novo livro que “a China prontamente se aproveitou da experiência
de outras partes do mundo para formular sua própria política de
desenvolvimento integrada com sucesso à sua própria prática ... A
China oferece ao mundo mais idéias sobre desenvolvimento e relevantes
experiências sobre sistema”. E o que é de suma importância, tais estudos
e revisões ainda são numerosos. Eles não apenas contribuem com
idéias e sugestões para a China explorar ainda mais seu próprio caminho
de desenvolvimento, como se constituem em referência para o mundo
entender a China e em apoio a seu desenvolvimento.
Entretanto, na comunidade internacional nos últimos anos, um
pequeno número de pessoas levantou a chamada teoria da “ameaça
chinesa”, do “novo colonialismo chinês”, da “ameaça representada pelo
investimento estrangeiro chinês”, etc. Não importa se causadas por
dúvidas, preocupações ou quaisquer outras razões, acredito que esses
comentários não possuem base factual.
Contudo, recentemente temos visto algumas mudanças nas
atitudes da comunidade internacional a respeito do desenvolvimento
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
205
chinês, que se tornaram mais objetivas, positivas e racionais. Em
particular, noto que grandes mudanças têm ocorrido na visão de
algumas instituições internacionais e de gente de visão, bem como na
opinião da mídia. Por exemplo, a revista britânica The Economist
publicou um relatório especial, em 15 de março de 2008 sobre a fome
chinesa de recursos naturais e neocolonialismo. O artigo citou um
grande número de fatos e dados e os sentimentos de muitos
funcionários graduados, africanos e latino-americanos, e de empresários
que refutavam a ameaça chinesa e o neocolonialismo. Ele argumenta
que o investimento chinês em mineração na América Latina e na África
e a compra de minérios não a torna neocolonialista. As empresas
chinesas deram o melhor de si para empregar trabalhadores locais, e
gozam de boa reputação; elas não empregaram métodos de competição
injusta contra as empresas ocidentais e em nenhuma circunstância
expulsaram suas contrapartidas ocidentais. O artigo afirma que, embora
o comércio da China com a América Latina e a África esteja crescendo
rapidamente, a China é apenas seu terceiro maior parceiro comercial,
atrás dos Estados Unidos e da União Européia; quanto a investimento,
a posição da China é ainda mais atrás. É digno de nota o fato de que o
artigo afirma que o crescimento estável e duradouro da China criou
uma “expansão cíclica” e até cunhou um termo novo: superciclo.
Ultimamente, instituições internacionais, como o Banco
Mundial, o Banco Americano de Desenvolvimento, a OCDE e a
Comissão Econômica para a América Latina, publicaram relatórios
especiais e confirmaram os fatos de que o desenvolvimento da China
é benéfico para a América Latina; a busca da China por recursos
naturais estimula as exportações da América Latina, e não há indícios
de que a China tenha expulsado a América Latina de outros mercados,
e o assim chamado neocolonialismo é inteiramente sem fundamento.
206
Wang Weiguang
O relatório publicado pela OCDE algum tempo atrás argumenta que
“é a primeira vez na história da América Latina que acontece uma
grande virada: a América Latina pode ser beneficiada por três grandes
máquinas de crescimento no mundo, em vez de apenas um; nos anos
80, os Estados Unidos eram sua maior parceira comercial, e nos anos
90 o investimento da Europa como segunda máquina de crescimento
estimulou o desenvolvimento latino-americano. Agora, no alvorecer
do novo século, a ascensão da Ásia, da China em particular, trouxe a
terceira força motriz para a máquina do crescimento. Esse relatório
também argumenta que “embora outros países em desenvolvimento
considerem a ascensão da China tanto como uma ameaça quanto como
uma oportunidade, na América Latina a China parece ser, ao invés,
um “anjo comercial”, e um “excelente ajudante” ou uma “mina de
exportação de commodities”. Os impactos do comércio chinês na
América Latina são positivos: diretamente, pelo grande volume das
exportações, e indiretamente, pelo aperfeiçoamento dos termos de
comércio”. “O impacto da China sobre a economia mundial está
crescendo; ninguém no mercado deseja que esse país diminua o ritmo,
e para a América Latina essas são notícias alvissareiras!”
IV. PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO CHINÊS
Embora a China se encontre hoje em um novo ponto de partida
histórico, estamos também inteiramente conscientes de que ainda somos
um país em desenvolvimento, que não superamos o estado de
subdesenvolvimento, e precisamos de esforços árduos de longo prazo
para alcançar a modernização.
A industrialização e a urbanização da China estão longe de estar
completas. Em 2006, a taxa de participação do trabalho agrícola no
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
207
emprego total foi de 42,6%, muito mais alta do que a dos países
industrializados, e também mais alta do que a de alguns países em
desenvolvimento. O nível de urbanização na China é menor do que o
da média mundial, e espera-se que chegue a 47% por volta de 2010 e
60% por volta de 2020, ainda significativamente menor do que o dos
países desenvolvidos. Embora o problema da alimentação e da habitação
da população chinesa tenha sido resolvido, de uma forma geral a renda
dos residentes e o nível de consumo são relativamente baixos. Mesmo
em 2020, se calculado à base de uma taxa de crescimento de 7-8% ao
ano, o PIB per capita da China andará perto de US$ 4 500, existindo
ainda um fosso na comparação com o nível médio, de US$ 4 900 dos
países de renda média do mundo em 1999.
A produtividade global permanece baixa; as possibilidades de
inovação independente, muito poucas; o modo de crescimento é
extenso; as restrições relacionadas com população, recursos e meio
ambiente são enormes; o sistema de economia de mercado não é
perfeito: persistem obstáculos estruturais e institucionais que retardam
o desenvolvimento; e o avanço da reforma em ares difíceis se defronta
com problemas profundamente enraizados.
Ainda estão presentes as características da economia dual campo-
cidade; os fundamentos da agricultura permanecem fracos, as áreas
rurais ainda engatinham em matéria de desenvolvimento e este está
longe de ser equilibrado. Atualmente, a relação da renda comparando
a cidade e o campo é de 3.33:1, e a diferença de PIB per capita entre as
regiões oriental, central e ocidental é também muito grande.
Nosso crescimento econômico é conseguido a um custo
excessivamente alto, e o meio ambiente, a conservação de energia, a
redução de emissão de gases, e a proteção ambiental tornaram-se
primeira prioridade em nosso desenvolvimento. A adesão à política
208
Wang Weiguang
estatal básica de conservação dos recursos e do ambiente é vital para
os interesses imediatos do povo e para a sobrevivência e
desenvolvimento da nação chinesa.
Devemos acelerar também o desenvolvimento social com ênfase
na melhoria do bem-estar do povo. Os sistemas de serviço público,
abrangendo cuidados médicos e de saúde, habitação, qualidade
ambiental e seguridade social são ainda fracos. E devem ser envidados
mais esforços para melhorar a educação, promover o emprego,
regulamentar a distribuição de renda, etc.
Embora a situação econômica da China em geral seja favorável
na etapa atual, ainda restam alguns problemas de monta. Por exemplo,
precisamos continuar a fortalecer e aperfeiçoar as regras
macroeconômicas; promover ainda mais o desenvolvimento de alguns
pontos vulneráveis, aumentar a oferta efetiva; otimizar a estrutura de
investimento e controlar a demanda excessiva. Ao mesmo tempo, de
acordo com a nova situação e os problemas, manter a paz corretamente,
ponto focal e força da regulamentação macroeconômica, e conservar
a boa tendência de um rápido e tranqüilo desenvolvimento.
A China apresenta agora muitas condições favoráveis à
consecução do desenvolvimento, seu objetivo. Por um longo período
no futuro a China manterá seu ritmo de crescimento econômico
rápido; ela possui um grande mercado doméstico, bem como grandes
e crescentes recursos de mão-de-obra; o aperfeiçoamento da reforma
e da abertura aumentará grandemente o vigor do desenvolvimento;
guiada pela perspectiva científica, a China adotará com seriedade o
caminho do desenvolvimento científico e realizará desenvolvimento
abrangente, equilibrado e sustentado da economia e da sociedade.
Considerando tudo, o desenvolvimento da China terá um futuro
brilhante. Como o relatório do 17º Congresso do PCC descreveu,
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
209
quando a meta de construir uma sociedade moderadamente próspera
sob todos os aspectos for atingido, a China, um vasto país socialista
em desenvolvimento, com uma civilização antiga, terá basicamente
realizado a industrialização, com sua força significativamente
aumentada e seu comércio doméstico ocupando lugar entre os maiores
do mundo. Será um país cujo povo estará rico e gozará de melhor
qualidade de vida e de meio ambiente. Seus cidadãos contarão com
direitos democráticos mais abrangentes, exibirão melhores padrões
éticos e almejarão alcançar melhores realizações culturais. A China
possuirá melhores instituições em todas as áreas e a sociedade chinesa
ostentará maior vitalidade junto com estabilidade e unidade. O País
será ainda mais aberto e amistoso para com o mundo lá fora e trará
maiores contribuições à civilização humana.
Países tão vastos como a China e o Brasil têm ocupado posição
importante e desempenhado papel central na comunidade
internacional. Junto com outros países em desenvolvimento, devemos
fortalecer nossa união, nossos intercâmbios e nossa cooperação,
aprender um com o outro, desenvolvermo-nos lado a lado e trabalhar
incansavelmente na busca da paz mundial, da prosperidade comum,
de um mundo multipolar e de relações democráticas internacionais.
Recentemente, li um artigo sobre o Neodesenvolvimentismo, escrito
por um economista brasileiro e antigo Ministro da Fazenda, Luiz
Carlos Bresser Pereira, de grande inspiração. Espero poder, no futuro,
ler mais trabalhos como aquele e ter mais oportunidades para
intercâmbio de idéias e para discussão.
Senhoras e senhores, gostaria, para concluir, de lhes fazer uma
breve apresentação da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
A Academia Chinesa de Ciências Sociais (ACCS) é uma
instituição de pesquisa, diretamente subordinada ao Conselho do
210
Wang Weiguang
Estado, no campo das humanidades e das ciências sociais. Desde sua
instituição, em 1977, possui uma história de 30 anos. Nesses 30 anos,
a ACCS esteve sempre à frente dos tempos, caminhando lado a lado
com a reforma e a abertura, e a arrancada para a modernização. Em
cada etapa importante do desenvolvimento econômico e social chinês,
a ACCS trouxe contribuições positivas e desempenhou papel
insubstituível na promoção da emancipação das mentes e nas inovações
teóricas, na formação e desenvolvimento das teorias sobre economia
socialista de mercado, na construção da democracia e de sistemas legais
e de uma cultura socialista avançada, na implementação de uma Visão
Científica do Desenvolvimento, e na construção de uma sociedade
socialista harmoniosa. Hoje o governo apresentou maiores
esclarecimentos sobre nossos deveres, que são: tornarmo-nos a mais
alta instituição acadêmica no campo das humanidades e das ciências
sociais, e, também, um elo importante formulador de políticas para o
País. De acordo com tais obrigações, minha Academia tem elaborado
estudos sérios das mais importantes teorias e de temas práticos sobre
desenvolvimento econômico e social, e se empenha para o
estabelecimento de um sistema inovador para as humanidades e as
ciências sociais. Com um bom número de realizações no campo da
teoria, trouxemos novas contribuições para o desenvolvimento
econômico, político, cultural e social do País.
Após trinta anos de desenvolvimento, a ACCS é constituída
hoje por cinco Divisões – Divisão de Literatura, História e
Humanidades; Divisão de Economia; Divisão de Estudos Sociais,
Ciência Política e Direito; Divisão de Estudos Internacionais e Divisão
do Marxismo – e trinta e cinco institutos de pesquisa (inclusive dois
centros de pesquisa). As atividades de pesquisa cobrem as principais
disciplinas e campos das humanidades e das ciências sociais, constituindo
A reforma, a abertura e a rota do desenvolvimento chinês
211
um relativamente completo sistema de disciplinas nessas áreas; com as
mais abrangentes disciplinas e maior ênfase nos estudos acadêmicos,
tornou-se um centro nacional de pesquisa para as humanidades e as
ciências sociais. A ACCS conta com mais de 3 100 membros fazendo
pesquisa profissional, entre os quais se incluem 1579 no nível de
pesquisador sênior. Estabelecemos laços acadêmicos com mais de 100
países e regiões, e mais de 200 instituições de pesquisa e sociedades
acadêmicas mundo afora, que se tornaram importantes centros e janelas
para o intercâmbio da Academia Chinesa de Humanidades e Ciências
Sociais com o exterior.
A ACCS tem mantido boa cooperação com muitas instituições
acadêmicas no Brasil. Mandamos várias delegações ao Brasil em visita
de caráter acadêmico e recebemos alguns bem conhecidos intelectuais
e políticos brasileiros. Em dezembro de 1995, o Presidente Fernando
Henrique Cardoso foi convidado a fazer uma conferência na ACCS
durante sua visita oficial à China, e deixou profunda impressão nos
intelectuais da Academia. Além disso, alguns trabalhos acadêmicos
famosos foram traduzidos por nossos intelectuais e publicados pelas
editoras da ACCS, como, por exemplo, Desenvolvimento Econômico
Latino-Americano, do Professor Celso Furtado, Imperialismo e
Dependência, do Professor Theotônio dos Santos, etc. Para fortalecer
nossa cooperação e intercâmbio acadêmicos com o Brasil, vamos assinar
um acordo de cooperação com a brasileira Fundação Alexandre de
Gusmão.
Senhoras e senhores,
Tão logo pus os pés no solo deste País, fiquei impressionado
com o interesse de nossos parceiros nas relações sino-brasileiras.
Recentemente, essas relações fizeram um progresso considerável. A
China e o Brasil estabeleceram parceria cooperativa estratégica,
212
elevando a cooperação bilateral a um nível sem precedentes, com
fortalecimento das relações políticas, rápido desenvolvimento das
relações econômicas e do comércio, e com freqüente intercâmbio
cultural e educacional. Recentemente os dois governos entabularam
seu primeiro diálogo estratégico e trocaram pontos de vista sobre os
principais temas internacionais e sobre cooperação bilateral, criando
condições favoráveis ao desenvolvimento das relações bilaterais. Nós
acreditamos firmemente que, com o crescente intercâmbio e o
entendimento entre nossos governos, as empresas, a academia e outras
instâncias da vida de ambos os países, a China e o Brasil terão uma
ainda mais bela expectativa de cooperação no futuro.
Muito obrigado.
Wang Weiguang
213
CHINA: DIMENSÕES ESTRATÉGICAS
Gilberto Dupas
1
A China é um gigantesco fenômeno que, nos próximos trinta
anos, tanto pode disputar a hegemonia mundial com os EUA como
espalhar tremores intensos pelo mundo afora. Responsável por boa
parte do crescimento dos mercados mundiais dos anos recentes, o
casamento estratégico da China com os EUA fez disparar o preço das
matérias-primas, enquanto gerava reservas internacionais em dólares
que sustentaram o gigantesco déficit norte-americano. Com o estouro
de parte da bolha imobiliária, que sustentava parte das altas taxas de
consumo naquele país - e a crise econômica espalhando-se pelo mundo
- resta descobrir se a demanda endógena chinesa, somada à da Índia,
será suficiente para manter elevado o crescimento mundial, ou ele
terá que se acomodar num patamar mais baixo.
Até aqui o estonteante crescimento chinês foi benéfico para a
economia mundial, em especial para os países da periferia, condenados
a exportar produtos básicos. Nesses sete últimos anos, os preços das
principais commodities metálicas (níquel, cobre, alumínio e zinco)
haviam subido em média 200%; os das energéticas (gás, petróleo e
carvão), 115%; e os das agrícolas (milho, soja, açúcar e café), 50%. Isso
1
Gilberto Dupas é Coordenador-Geral do Grupo de Conjuntura Internacional da
USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor
de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso, Atores e Poderes na Nova Lógica
Global e Ética e Poder na Sociedade da Informação, todos pela Editora Unesp. Foi
professor visitante da Universidade de Paris (II) e da Universidade Nacional de Córdoba
e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES).
214
Gilberto Dupas
tinha sido suficiente para garantir um crescimento médio das
exportações de Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Peru e Venezuela em
200%, o que permitiu um aumento das reservas internacionais de
Argentina, Brasil e Venezuela ao redor de 200%, transformando vários
países da América Latina de devedores em aplicadores líquidos de
recursos no exterior. Será que esse quadro continuará? Ficamos muito
a depender de como se comportará a China no médio e longo prazo.
Há sérias dificuldades para China e Índia manterem as trajetórias atuais
de altíssimo crescimento. Supondo que essas duas nações apenas
pretendessem atingir, em dez anos, um padrão de vida medido na
paridade do poder de compra
2
(PPP) equivalente à média atual do
Brasil e do México, países ainda pobres, seria necessário à economia
global gerar nesse período um PIB adicional de cerca de US$ 11 trilhões
(26% do total), ou seja, próximo do atual PIB dos EUA, o que
provocaria um impacto brutal em recursos naturais, matérias-primas,
poluição ambiental e efeito estufa em nível planetário (vide Quadro
1). Não podemos esquecer, também, a possibilidade de graves tensões
sociais e políticas na própria China.
2
O conceito de PIB, medido em PPP, é útil para lidar com o potencial do mercado
interno ou o “padrão de vida” das populações. Ele relativiza o poder de compra dos
indivíduos a partir das diferenças expressivas nos preços relativos, de modo a poder
estimar paridades entre diferentes países. Por exemplo, se dois indivíduos moram em
uma habitação de três cômodos e metragem semelhante, um deles nos arredores de
Bombaim (Índia) e o outro em Manhattan (Estados Unidos), supõe-se que – em
termos relativos – eles tenham o mesmo “conforto”. No entanto, o primeiro gasta
cinco vezes menos em dólares que o segundo; e isso é levado em conta no cálculo do
PPP. É o que explica por que o PIB per capita da Índia é de 817 dólares e, medido em
PPP, chega a 3.827 dólares. O conceito do PPP, portanto, permite uma comparação
entre países que leve em consideração o poder de compra médio relativo das respectivas
populações e dá ao PIB assim medido uma dimensão mais realista vista sob a ótica da
capacidade de demanda. No entanto, a utilização do PPP para estimativas do PIB pode
conduzir a distorções importantes, especialmente quando se trabalha com cenários de
longo prazo.
China: Dimensões Estratégicas
215
Com relação às previsões sobre o futuro chinês, há de tudo.
Em ensaio preparado para o National Bureau of Economic Research
em junho de 2007, Robert Fogel - diretor de centro de pesquisa da
Universidade de Chicago – projeta, a partir de metodologia que
considero equivocada, seu cenário provável para 2040: PIB (em PPPs)
da China em US$ 123 trilhões, dos EUA em US$ 42 trilhões e da
União Européia em apenas US$ 15 trilhões. Isso significaria uma China
brutalmente hegemônica, com 40% do PIB global, e uma decadência
plena da Europa. China mais Índia e Sul da Ásia (exceto Japão) seriam
então 64% da economia do mundo! São os absurdos a que levam
projeções de longo prazo contendo vícios de origem. O fato de o
Banco Mundial e o FMI, a partir de 1991, fazerem suas medições
baseados na PPP, praticamente triplicou o valor do PIB chinês. Mas
em 2005, inseguro quanto à metodologia utilizada, o próprio Banco
Mundial reviu-a produzindo novos cálculos a partir de uma amostra
de preços de 1.000 produtos em 146 países, incluindo a China pela
primeira vez. Em conseqüência disso, o PIB chinês foi reduzido para
5,3 trilhões contra a estimativa anterior de 8,9 trilhões. No outro
extremo, há céticos radicais que ainda consideram uma falácia as atuais
estatísticas oficiais chinesas. Lester Thurow, aplaudido professor do
Massachusetts Institute of Technology (MIT), em artigo aqui publicado
em 2007, garante que o crescimento real da China tem sido entre 4,5
a 6%, e não de 10%. E conclui, com convicção, que somente o século
XXII talvez seja o da China.
Como se vê, as análises sobre a China são bastante contraditórias
e mostram ainda baixa compreensão sobre toda a complexidade do
“milagre chinês”. Organizações internacionais criticam o “arremedo
de democracia” do País - comparada aos “padrões ocidentais”- e um
Estado centralizador e autoritário. Em relatório recente, a OECD
216
Gilberto Dupas
afirma que o maior obstáculo para a China ser uma força global em
ciência e tecnologia é o predomínio estatal em Pesquisa &
Desenvolvimento. Mas reconhece os impressionantes avanços desde
os anos 70 que dão aos chineses o segundo lugar em pesquisas
inovadoras, apenas atrás dos EUA. Um bom sintoma desses avanços
são as espantosas revelações de que hackers a serviço do Exército de
Libertação do Povo estariam invadindo sistemas-chave sensíveis dos
governos norte-americano, alemão e britânico. Mas é justamente o
Estado e a política chineses – com suas idiossincrasias – que fazem
possível, até aqui, o grande fenômeno de crescimento e de inovação; e
permitem manter sob controle uma massa enorme de “novos miseráveis
com telefone celular”, entretidos pela possibilidade de uma ascensão
social que não é fácil e que, ao quebrar as antigas lógicas de amparo
estatal, geram também um novo tipo de miséria. O filme “Em busca
da vida”, de
Jia Zhang-Ke, é um precioso ensaio impressionista sobre
essa delicada questão.
O FATOR CHINA
O óbvio, no entanto, é ser a China o novo fenômeno da
economia global. Um país de altíssimas taxas de crescimento, um motor
da economia mundial que com ela se articula intensamente. Esse país
é, de longe, o maior beneficiário da globalização. Apesar do
surgimento de alguns bolsões de miséria absoluta, a ascensão média da
renda dos seus pobres e miseráveis é sensível, ajudando a criar um
mercado interno em grande expansão e melhorando o desempenho
global dos indicadores sociais do mundo todo. No período 1981-
2004, o número de miseráveis no globo - com renda diária menor que
US$ 1,08 - decresceu 33,8% totalmente devido ao desempenho da
China: Dimensões Estratégicas
217
China, Se a retiramos da amostra, este número se mantém estável. O
mesmo fenômeno ocorre com o número absoluto de pobres (renda
menor que US$ 2,15 por dia). Com a China, o seu crescimento é
desprezível. Retirando-se este país do total global, o número aumenta
em 33% (vide Quadros 2 e 3). Como conseqüência dessa elevação da
massa de renda, as vendas no varejo têm crescido intensamente. De
uma variação anual de 13% no final de 2005, este número atingiu 20%
em fins de 2007, já ocasionando significativa pressão inflacionária (vide
Quadro 4). Em 1978, o seu comércio externo era de apenas US$ 21 bi;
em 2002, passou para US$ 325 bi; em 2007 atingiu US$ 1.200 bi. Seu
nível de importação também é impressionante, tendo crescido de US$
295 bi para US$ 956 bi de 2002 a 2007 (Quadro 5). É enorme o acúmulo
de reservas decorrente: de US$ 230 bi em 2002 para US$ 1.530 em
2007, tendo elas crescido 50% apenas no ano passado e transformando
o País em um dos maiores investidores internacionais (Quadro 6),
além de continuar recebendo crescente investimento estrangeiro direto
em seu território (US$ 75 bilhões em 2007) (Quadro 7). As pressões
dos grandes países para uma depreciação do yuan que torne as vendas
chinesas menos agressivas têm tido algum resultado, provocando uma
redução da relação yuan X dólar de 8,20 em 2005 para uma previsão
de 7,1 em 2008 (Quadro 8). Os grandes parceiros comerciais da China
são, pela ordem, UE, EUA, Japão, ASEAN, Hong Kong e Coréia do
Sul, num processo de integração das cadeias produtivas globais que
envolve intensamente grandes corporações internacionais fabricando
produtos finais ou componentes na China (vide Quadro 9). Seu PIB
igualou o da França e do Reino Unido e está se aproximando do da
Alemanha, mantendo uma taxa de expansão muitas vezes maior que o
de ambos. Com sua mão-de-obra ainda extremamente barata e bem
qualificada, a China transformou-se no grande produtor mundial de
218
Gilberto Dupas
bens de consumo durável para as corporações mundiais; isso gera ao
País um superávit de US$ 200 bi anuais com os EUA, que ela aplica
em grande parte em títulos do próprio Tesouro americano. A sua
ciência e tecnologia, após 20 anos de reforma, começa a jogar
importante papel na inovação, e não só na cópia. O valor adicionado
da produção local tem crescido significativamente e suas exportações
em alta tecnologia já estão em quase 25% do total.
A China detém 75% da produção mundial de brinquedos, 58%
da do vestuário e cerca de 29% de todos os telefones celulares. Seu
mercado interno absorveu rapidamente 330 milhões de telefones
celulares, 22 milhões de PCs e a utilização da Internet subiu de 620.000
usuários em 1997 para 94 milhões em 2004. É o mercado para alta
tecnologia de mais rápido crescimento em todo o mundo. Em poucos
anos o idioma mais utilizado na Internet talvez seja o chinês. Há
possibilidades de que o País venha a desenvolver suas próprias normas
de controle da world wide web em concorrência direta com os EUA.
Um sinal das marcas globais chinesas na alta tecnologia foi a compra
da divisão de PCs da IBM. Em 2008 a China substituirá a Alemanha
como campeã mundial de exportações. No entanto, as empresas
estrangeiras só cobrem 13% do mercado interno chinês. Em 2008 a
China será o terceiro maior produtor mundial de automóveis; irá
ultrapassar a Alemanha e, certamente, estabelecerá uma larga base de
produção global.
Mas, ao lado desse espetacular desempenho, há imensos
problemas. A enorme reserva de mão-de-obra rural chinesa, disposta
a trabalhar a preços irrisórios, foi uma das condições essenciais para o
atual modelo de crescimento do País. A enorme demanda urbana de
mão-de-obra nos parques industriais, na construção civil e nos serviços
tenta abrigar um fluxo anual de 10 milhões de pessoas que migram a
China: Dimensões Estratégicas
219
cada ano do campo para as cidades, buscando escapar da pobreza e
acessar novas oportunidades; elas se entrosam com as populações
suburbanas, dando origem a núcleos periféricos que - além de “cidades-
dormitório” - também se instalam como produtores de hortaliças, carnes
e roupas para a população das cidades. Porém, uma das conseqüências
desse processo é a fragilização dos laços entre o cidadão e seu município,
rompendo um elo da cadeia que lhe permitia receber os benefícios sociais
do Estado. Com isso, já existe um exército de cerca de 80 milhões de
chineses miseráveis – que tende a aumentar - dispostos a trabalhar pelo
País afora como semi-escravos em tarefas informais de baixíssima
remuneração. Essa realidade tem graves efeitos por ser inédita em uma
nação que, à época do regime comunista, tinha uma pobreza horizontal
intensa; mas a cada cidadão o regime garantia uma vestimenta, duas
tigelas de arroz diárias, educação e saúde básicas.
O frágil equilíbrio desse complexo processo de engenharia social
é agravado pelo fato de que a China precisa alimentar 25% da população
mundial com apenas 7% das terras aráveis; de que seu déficit energético
é imenso; e de que é necessário produzir uma dezena de milhões de
novos empregos por ano, num quadro de imensa desigualdade de
rendas. Acentuam-se enormes disparidades: há um volume de
desempregados de 40 a 200 milhões, dependendo das estimativas e
metodologias; as empresas estatais são deficitárias; o sistema bancário
é precário; há imensos problemas de saúde pública e a AIDS é endêmica
em algumas províncias.
O pujante quadro chinês assenta-se, pois, sobre um barril de
pólvora de tensões sociais. Os cientistas sociais não estão em condições
de prognosticar o desenvolvimento da situação na China. Se ajustes
políticos mais radicais forem necessários, é a classe média emergente
que mais tem a perder com eventuais distúrbios políticos.
220
Gilberto Dupas
Isso exige uma enorme competência de governança, o grande
desafio para esta nova geração de dirigentes do PCC, num país onde
o papel do Estado ainda é muito maior que o do mercado. Por
enquanto, os sucessos são impressionantes. Deng Xiaoping, ao lançar
sua reforma, não podia mais se associar às soluções dos Tigres Asiáticos,
já que a conjuntura que havia permitido os NICs havia se alterado. O
mundo industrializado reintroduzira práticas protecionistas em regime
de intensa globalização, e a China teve que inventar seu caminho
original de industrialização tardia. A estratégia principal chinesa
consiste em apropriar-se de soluções tecnológicas existentes e montar
sua rede de corporações globais, inclusive comprando canais e
estruturas já existentes, como fez recentemente com a Lenovo. Amplos
investimentos mundiais também têm sido feitos, aproveitando sua
gigantesca reserva em moeda externa, para buscar garantir suprimentos
de matérias-primas e obter expertise em setores que interessam ao País.
A economia de mercado na China ainda é um processo em andamento.
O governo reformista chinês tende a aplicar um processo gradual de
privatização de baixo para cima, ao contrário do que aconteceu no
Leste Europeu. Amaury Porto de Oliveira lembra que foi só em final
de 1993 que o PCC formalizou a decisão de construir uma “economia
socialista de mercado”, anunciando-a simbolicamente como decorrência
do princípio marxista que recomenda privilegiar cada momento com
“o novo que brota, em vez do velho que fenece”. Ele avançou com
combinações inovadoras na relação capital público-privado e foi
deixando o novo tomar conta do velho; quatro anos após, o capital
público já era minoritário e caíra para 30% no setor industrial. O
modelo chinês é extremamente aberto ao exterior; estimativas norte-
americanas indicam que 74% do seu PIB vêm do comércio
internacional, contra apenas 23% do Japão. E as suas exportações estão
China: Dimensões Estratégicas
221
cada vez mais incorporando valor e tecnologia. Estratégias estão sendo
montadas para integrar nesse processo os 53 centros de tecnologia
criados pelo Programa Torch, em 1988, para remodelar o sistema de
inovação do País. Mais de 60% das 800 universidades chinesas situam-
se no interior ou nos arredores desses centros - alguns incluindo
investimentos internacionais - incorporando técnicos de alta
especialização e funcionando como incubadores de empresas. Um dos
resultados foi a Legend, agora transformada em Lenovo, que surgiu
graças à interação de pesquisa universitária com capital de risco estatal.
Finalmente, é preciso ressaltar o crescente entrosamento da China
com o mundo chinês da orla asiática do Pacífico. Hong Kong hoje é
o coordenador do complexo manufatureiro do Delta do Rio das
Pérolas. Taiwan é uma das principais conexões das manufaturas chinesas
com as várias cadeias produtivas globais. E Cingapura ajuda a compor
o “Circulo Chinês”, um conglomerado de forças econômicas que tem
a China como pivô. Esse complexo agora dá o salto das manufaturas
OEMs (para terceiros) em direção a marcas originais (OBMs). Com
isso, a margem de lucro e os empregos aumentam e há mais
possibilidade de se formar alianças ampliadoras de mercado.
As novas lideranças chinesas, até aqui, têm se mostrado à altura
dos desafios. A ideologia desapareceu quase completamente como
instrumento de legitimação. O objetivo passou a ser “fortalecer e
enriquecer” a China e reconduzir o País ao seu lugar de direito entre
as nações. Esta política combinou-se com o reconhecimento de que a
estabilidade e, com ela, a sobrevivência do PC no poder, só seria
alcançável por meio do desempenho econômico. Declaração de Deng
Xiaoping: Tentativa e erro determinam sua estratégica política. As
duas declarações de Deng Xiaoping “não importa se um gato fosse
preto ou branco, desde que cace ratos” e “a economia de mercado é
222
Gilberto Dupas
boa” expressam de forma sintética a marcante estratégia da China.
Com Hu Jintao e Wen Jiabao, a cúpula do partido é ocupada por
tecnocratas da assim chamada quarta geração de líderes, cercados de
engenheiros e cientistas de boa formação e não mais de guardiões da
doutrina impoluta. Métodos de head-hunting para encontrar as
melhores cabeças para os cargos disponíveis substituíram o antigo
sistema de nomenklatura.
Por motivos compreensíveis, o que importa à liderança política
não é democracia e sim estabilidade. Por isso a máxima prioridade
para os tecnocratas da direção do PC é manter todas as rédeas
firmemente nas mãos e sufocar qualquer sinal de insatisfação da
população. Distúrbios locais, dada a estreita inclusão da China no
mercado mundial e nas cooperações multilaterais, também
prejudicariam o Ocidente.
A China tem melhorado sensivelmente sua posição internacional
na negociação de questões econômicas e comerciais. A crescente
solvência da China para investir em mercados de capital e aproveitar
oportunidades de compra de empresas cria situações como as
reclamações do mercado financeiro internacional por conta da
proibição, pelo governo americano, da venda da petrolífera americana
Unocal ao gigante chinês de energia CNOOC. O País avança forte
também no setor de tecnologia de ponta. A Europa decidiu – mediante
algumas reservas – desenvolver o sistema de navegação por satélite
Galileu em cooperação com a China. O Japão e a China conseguiram
se entender em torno da adoção de um padrão comum de telefonia
celular de quarta geração. Desde a década de 80 há esforços conjuntos
entre EUA e China na área da física de alta energia. Por razões
estratégicas e de lucro a China deverá reinvestir parte de seu excedente
financeiro nos negócios de energia e matéria-prima. O petróleo é o
China: Dimensões Estratégicas
223223
fator que motiva o avanço da China em direção à África, e não apenas
no Sudão. Ela travou uma pequena luta de poder com o Japão em
torno da exploração de gás natural no Mar da China Oriental, e pela
produção de petróleo russo na Sibéria. Com o Irã cultiva relações
especiais devido às reservas de gás deste país, o que inviabiliza uma
atitude solidária esperada pelo Ocidente na questão nuclear. Isto já
aponta para uma tendência do futuro: os países produtores de petróleo
terão que fazer concessões às empresas de energia da China, pouco
eficientes em diversas áreas, no que diz respeito à prospecção e
produção de novas fontes de energia. As consideráveis reservas
financeiras da China poderão ser úteis neste sentido. Na verdade, não
se trata de possuir ou controlar as reservas de energia, mas sim de
usufruir e dividir os lucros que podem ser auferidos por ocasião de
aumentos de preço de energia e das matérias-primas.
Os novos caminhos chineses os transformaram rapidamente de
mercado potencial em concorrentes. Com algumas tentativas bem
sucedidas de absorção de grupos empresariais americanos e os
primeiros modelos de automóveis na Feira do Automóvel em
Frankfurt, os sinais da competitividade global da China se multiplicam.
Os chineses permanecem parceiros calculistas: os empresários e
políticos sabem reconhecer a incapacidade dos seus interlocutores
ocidentais de lançar um olhar sóbrio e claro sobre a China e disso
tiram vantagens. E as complicações das leis de proteção à propriedade
intelectual criam espaços para que o País recupere atrasos sem gasto
de capital.
O governo chinês coloca-se diante de três grandes desafios
estratégicos: ultrapassar o modelo de industrialização baseado em alto
consumo de energia, grande poluição e elevado investimento por outro
baseado em tecnologia, baixo consumo de recursos naturais e reduzido
224
Gilberto Dupas
impacto ambiental; superar a rota do conflito ideológico como forma
de ascensão; e construir uma sociedade socialista harmoniosa e
democrática. Também nesse último capítulo há enormes problemas.
A China cresce hoje porque um governo forte pode impor linhas
gerais inteligentes na economia e na política. A visão chinesa de
democracia não é, e nem poderia ser, a ocidental; da mesma forma
que “socialismo de mercado” é um termo ambíguo e contraditório.
Tendo que lidar com desafios políticos e sociais imensos, o governo
usa de todos os seus recursos simbólicos e fala, inclusive, em pavimentar
o caminho para a democracia com o lançamento de grande número
de programas de “educação moral”, linguagem que lembra o velho
Mao.
Na questão do poder internacional, a China não tem nenhuma
ilusão em disputar o poder militar com os EUA. Seu objetivo é tornar-
se um pólo econômico mundial alternativo ao pólo americano. Joshua
Cooper Ramo, cientista político norte-americano com livre trânsito
nos círculos intelectuais da RPC fala que a China procura criar núcleos
de poder assimétrico que dariam ao País – no caso de um indesejado
confronto com os EUA – vantagens de excelência manufatureira do
tipo que os EUA tiveram na Segunda Guerra Mundial. Uma das idéias
em estudo é concentrar legiões de especialistas em pontos-chave de
uma eventual guerra cibernética, aplicando princípios revolucionários
no campo militar que eles chamam de “acupuntura bélica”.
O fato é que, apesar de “sócios” com fortes interesses comuns
na economia global, são intensas as rivalidades entre os EUA e a China;
e o vertiginoso crescimento do País é visto com receio por parte
expressiva das lideranças ocidentais. Wang Jisi, Reitor na Universidade
de Pequim e Diretor do Instituto de Estudos Estratégicos
Internacionais do PC chinês, é muito realista ao reconhecer que a
China: Dimensões Estratégicas
225
supremacia global dos EUA só declinará a muito longo prazo. Jisi
conclui, pois, que uma cooperação com Washington é de vital
importância para a China. Por outro lado, acha que os EUA precisam
da China para controlar o terrorismo, a proliferação nuclear, o Iraque
e o Oriente Médio. Mas adverte que, apesar de toda a sua força, os
EUA não são invencíveis e precisam de ajuda e alianças. Para ele, os
EUA colaboraram muito para o esfriamento das relações China-Japão.
No caso da Coréia do Norte, acha que os americanos não tinham
escolha e aceitaram o auxílio de Pequim para acalmar as ameaças de
Pyongyang. Já nas divergências sobre Taiwan, a China as encara como
uma questão interna e pede aos EUA que não se envolva.
As relações EUA-China permanecem, assim, com grandes
paradoxos. Não há confrontação, como foi com a Rússia na Guerra
Fria. Mas os chineses querem uma relação entre iguais; e ela é muito
assimétrica em função da projeção de poder dos dois países. Se os
EUA crescerem apenas a 2% ao ano – metade da taxa atual - ainda
serão duas vezes maior do que a China em 2025, se ela continuar a
crescer a 8%. Portanto, ela precisa de paz para trabalhar seu complexo
projeto. A China é o dragão equilibrando-se sobre uma fina corda; se
os EUA a balançarem demais, os dois sofrerão. Por outro lado,
fracassos dos EUA no Oriente Médio e no combate ao terrorismo na
Ásia implicam para a China em risco de falta de petróleo e insegurança
nas fronteiras do oeste.
A atual situação armamentista do País não fundamentaria os
receios americanos, japoneses ou australianos da prioridade chinesa
para a construção de uma potência militar. Embora haja dúvidas sobre
a veracidade dos gastos em armamentos, a China parece estar mais na
defensiva, com planos em marcha para renovação tecnológica do
armamento, principalmente das forças armadas, visando sua utilização
226
Gilberto Dupas
estratégica e maior alcance. Mesmo as compreensíveis preocupações
japonesas e americanas sobre Taiwan parecem exageradas. A China
precisaria contar com um poderio naval de alto mar com capacidade
agressiva, amplamente móvel, operacionalmente flexível, coisa que não
possui ainda. O seu poderio aéreo sobre o mar é muito limitado, sem
vários porta-aviões e ampla força armada submarina. A China, como
potência terrestre, não poderá ameaçar o domínio das frotas americana
e japonesa sequer sobre os mares costeiros, quanto menos no Pacífico
Ocidental ou nos acessos ao sudeste asiático, visando à penetração no
Oceano Índico. Mesmo que aumentasse consideravelmente o número
dos 69 submarinos, dos cerca de 20 destróieres e das aproximadamente
40 fragatas com as mais modernas embarcações e sistemas de
armamento, a nova potência naval chinesa de longe ainda não seria
páreo para a americana, porque não disporia de escudo aéreo nem de
bases para além da sua costa.
Até o momento, a China possui cerca de 30 mísseis
intercontinentais para ogivas nucleares, 100 mísseis de médio alcance
para ogivas nucleares convencionais e cerca de 450 a 500 mísseis de
curto alcance que, a partir de sua localização próxima ao litoral defronte
à ilha, têm alcance até Taiwan. Ali, as posições dos mísseis são
particularmente vulneráveis a partir do mar e do ar. A força aérea
chinesa possui cerca de 1.000 caças e 700 caças-bombardeiros de diversos
tipos, mas a marinha só tem aproximadamente 20 aviões de combate
baseados em terra. Para um controle tático do espaço aéreo limitado
ao litoral, isto pode ser suficiente, mas não para repelir operações
navais ofensivas e desembarques para além da área litorânea.
O domínio das áreas adjacentes é uma necessidade estratégica
imperiosa, na verdade, uma condição básica para a independência
política e a influência internacional da China. Certamente continuaria
China: Dimensões Estratégicas
227
a ser assim mesmo se Taiwan voltasse ao controle de Pequim ou se,
pelo contrário, a China reconhecesse a independência de Taiwan. Na
perspectiva geopolítica-estratégica, o conflito taiwanês, visto em
Pequim como questão-chave central da soberania e da integridade
territorial chinesa, mas também a longo prazo da própria segurança
da China, não pode ser reduzido a tendências agressivas de Pequim.
Esse conflito tem uma dimensão estratégica no Pacífico Ocidental e
na periferia do sudeste asiático.Trata-se da expansão ou limitação dos
interesses marítimos chineses e americanos, mas também do Japão e
da Austrália, aliados dos EUA.
Em resumo, a China sente-se hoje simultaneamente forte - pelo
imenso sucesso econômico - e vulnerável por suas limitações e porque
percebe os EUA espreitando para desestabilizá-la. Todo esse quadro,
evidentemente, oferece uma oportunidade estratégica importante tanto
para a Europa como para a América Latina ajudarem a abrir espaços
para acomodarem a China no mundo global e em seus fóruns
multilaterais, tentando fazer de sua presença um fator de progressiva
estabilidade. Antes de tudo, é preciso reconhecer a qualidade e o peso
desse novo e decisivo player e promover alianças que o comprometam
progressivamente com a boa ordem internacional.
A CHINA E A OMC
A enorme expansão da China é um fenômeno paradoxal. Sua
competência estratégica faz possível que o País se beneficie de muitos
dos espaços que o mundo globalizado torna factíveis; e evita boa parte
dos danos que a abertura radical acarreta a grandes nações da periferia.
Mas a lógica das cadeias produtivas globais faz dos EUA e da China
verdadeiros irmãos siameses. Os produtos de empresas norte-
228
Gilberto Dupas
americanas - ou chinesas - fabricados a preços baixos na China mantêm
a inflação dos EUA sob controle, mas são responsáveis por 30% do
seu gigantesco déficit comercial de US$ 700 bi. Mas os chineses
destinam boa parte desse saldo para a compra de títulos do Tesouro
norte-americano, ajudando a financiar seu rombo. O próprio
embaixador dos EUA na OMC reconhece que os dois países juntos
foram “responsáveis por 50% do crescimento do PIB mundial nos
últimos 4 anos”. O que não impede as freqüentes estocadas norte-
americanas na questão de Taiwan, nas relações da China com o Japão,
nas pressões para a desvalorização do yuan, nas críticas à política de
direitos humanos, nas exigências de maior abertura e contra a tolerância
a produtos copiados. Uma boa caricatura dessas contradições foi a
visita do presidente Hu Jintao aos EUA em 2007. Após visitar a Boeing,
onde anunciou os 2 mil aviões que o País irá necessitar nos próximos
15 anos – e comprou 80 deles por US$ 5,2 bi – Jintao foi recebido na
Casa Branca com a rudeza reservada atualmente aos não-”alinhados”.
O The Washington Post lista os constrangimentos pelos quais passou
o presidente chinês, incluindo ser puxado pela manga do paletó por
Bush, “como uma criança perdida a quem se indica o lugar”. O hino
nacional anunciado foi o da República da China, nome oficial do
inimigo Taiwan.
A questão é que a dinâmica da economia e do comércio mundiais
dependem da China. Esse país entrou na OMC em 2001 após longa
batalha. Há cerca de 10 anos, quando a China ainda lutava por seu
ingresso, os EUA resistiam alegando desrespeito chinês aos direitos
humanos. Eram tempos mais suaves, sem Iraque e Guantánamo. Nessa
época, em Seminário no Instituto de Estudos Estratégicos em
Washington sobre a admissão da China, o convidado principal era
um importante ministro chinês, que teria trinta minutos para falar.
China: Dimensões Estratégicas
229
Ele usou apenas cinco, para dizer algo como: “Precisamos entrar na
OMC. Vamos perder mais do que ganhar no curto prazo, pois
teremos que fazer concessões. Vocês resistem. Pois lembrem que somos
um trem carregando 1 bilhão de pobres. Cabe a vocês ajudarem a
mantê-lo nos trilhos. Se criarem grandes obstáculos, e o trem virar,
serão 1 bilhão de chineses a se espalhar mundo afora. Não vou perder
mais tempo com conversas, tenho que negociar”. Para pasmo geral o
dirigente chinês levantou-se e saiu.
Imenso gorila em loja de cristais, a China está na OMC. É
importante lembrar que ainda hoje os chineses desenvolvem pelo menos
cinco estratégias simultâneas. São abertos em tudo que lhes convém,
haja vista terem se transformado no “chão de fábrica” das grandes
corporações globais. Mas também são altamente fechados no que lhes
interessa. Tecnologias de ponta – como as que os transformaram num
dos maiores lançadores de satélites de telecomunicação e no primeiro
pretendente a uma internet alternativa – são intensamente desenvolvidas
nos cerca de 60 centros de pesquisa criados a partir de 1988 pelo
programa Torch; o que dá ao País condição de adicionar cada vez
mais valor às suas exportações. Por outro lado, com seus US$ 1.500
bilhões de reservas, para ganhar tempo a China compra pacotes
tecnológicos inteiros no exterior, como fez com a área de lap-tops da
IBM. Ao mesmo tempo, o País continua sendo o maior “copiador”
do mundo, abarrotando os mercados mundiais com imitações. Agora,
está na OMC; e pode fazê-la mais flexível às suas estratégias.
Lembremos o dogma da OMC: “abertura irrestrita de mercados
favorece a todos”. Sabemos que essa tese se sustenta só como discurso
hegemônico. Num mundo sem barreiras, ganha quem é mais
competitivo; o que ocorre habitualmente com os mais fortes. Esses,
aliás, assim se tornaram porque protegeram intensamente – e protegem
230
Gilberto Dupas
– seus mercados. A presença heterodoxa da China na OMC, com seu
enorme peso e os interesses mundiais nela envolvidos, pode abrir novos
espaços para os países da periferia. Não cabe, porém, ingenuidades: os
chineses estarão sempre perseguindo apenas o que lhes interessa. Mas
não há dúvida de que – como o mundo precisa muito mais deles do
que de nós – as concessões que terão que ser feitas para acomodar os
chineses poderão criar brechas que interessem ao Brasil e a outros
grandes da periferia. O “bom mocismo” nunca abriu espaços na área
internacional, especialmente no comércio. Valem aí habilidade,
pragmatismo e “reservas de poder”. A presença da China pode ajudar
a flexibilizar uma excessiva rigidez relativa ao bordão da liberdade
radical de comércio e radicalizar conceitos de reciprocidade. Para isso,
é claro, ela própria precisa conseguir manter seu próprio trem político
e social nos trilhos, o que pode ser tarefa difícil até para um exímio
dragão equilibrista.
*
A China tem, portanto, uma dimensão estratégica fundamental
associada aos caminhos futuros da lógica global. Para além de todos
os fatores que analisamos nas páginas anteriores, vale ainda lembrar
que ela tem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU,
é potência nuclear desde 1964 e ingressou no círculo das potências
espaciais há bastante tempo. Seu orçamento militar cresce a taxas de
dois dígitos e ela lidera uma crescente zona de influência regional no
sudeste asiático e na Ásia central, além de ser a segunda maior reserva
de divisas do mundo e o receptor do maior volume de investimentos
estrangeiros diretos. Sua dinâmica de crescimento induz de forma
determinante todo o desempenho mundial. Nesse momento crítico
China: Dimensões Estratégicas
231
de desaceleração das grandes economias centrais, mais uma vez a China
será chave. Enquanto que as projeções da ONU para 2008 apontam
para um crescimento dos EUA entre -0,1 e 2,0% e da Zona do Euro
entre 1,0 e 2,5%, para a China elas apontam um número entre 8,0 e
10,1% (vide Quadro 10).
Pelos argumentos que enumeramos neste texto, não parece
razoável que taxas como essa se mantenham por muito tempo sem
que turbulências ocorram. O cenário estratégico intermediário mais
benévolo para a economia global talvez seja um crescimento chinês
mais moderado, da ordem de uns 6% ao ano, conduzido por um
Estado ainda forte e centralizador, com competência para controlar
as intensas tensões políticas e sociais que o capitalismo gera, permitindo,
aos poucos, processos democráticos mais intensos. Será necessário
muito talento para conduzir um processo dessa complexidade.
232
Gilberto Dupas
ANEXOS
Quadro 1
IMPACTOS DE CHINA E ÍNDIA NO PIB GLOBAL
Quadro 2
China: Dimensões Estratégicas
233
Quadro 3
Quadro 4
234
Gilberto Dupas
Quadro 5
Quadro 6
China: Dimensões Estratégicas
235
Quadro 7
Quadro 8
236
Gilberto Dupas
Quadro 9
Quadro 10
China: Dimensões Estratégicas
237
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
DUPAS, Gilberto. “China e Índia afetando as novas realidades globais”. Texto
apresentado em palestra na Fundação Alexandre de Gusmão, 09 a 11 de maio de
2007.
__________. Atores e poderes na nova ordem global: assimetrias, instabilidades e
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CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em
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MACRO China: síntese gráfica trimestral do comércio bilateral e do
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OLIVEIRA, Amaury Porto de. “Tentando compreender a China”. Revista
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C:\DUPAS\Div 1999 a 2008\div 2008\china-dimensões estratégicas - IPRI (2).doc
239
CHINA: DIMENSÕES ESTRATÉGICAS
Gilberto Dupas
1
Prezados amigos,
Infelizmente, uma situação imprevista, decorrente de tratamento
médico a que estou sendo submetido, impediu-me de estar hoje com
vocês. Segue uma síntese dos pontos de meu texto que me parecem mais
relevantes na reflexão sobre as questões estratégicas globais que envolvem
a dinâmica da China.
A China é um gigantesco fenômeno econômico e político que
pode levá-la, nos próximos trinta anos, tanto a disputar a hegemonia
mundial com os EUA como a espalhar tremores intensos pelo mundo
afora. Responsável por boa parte do crescimento dos mercados
mundiais dos anos recentes, o casamento estratégico da China com os
EUA fez disparar o preço das matérias-primas, enquanto gerava reservas
internacionais em dólares que sustentaram o gigantesco déficit norte-
americano. Isso, até aqui, foi benéfico à economia mundial, em especial
aos países da periferia, condenados a exportar produtos básicos. Nesses
seis últimos anos, os preços médios das principais commodities metálicas
subiram em média 270%; os das energéticas, 115%; e os das agrícolas,
70%. O que foi suficiente para garantir um crescimento das exportações
1
Gilberto Dupas é Coordenador-Geral do Grupo de Conjuntura Internacional da
USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor
de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso, Atores e Poderes na Nova Lógica
Global e Ética e Poder na Sociedade da Informação, todos pela Editora Unesp. Foi
professor visitante da Universidade de Paris (II) e da Universidade Nacional de Córdoba
e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES).
240
Gilberto Dupas
de Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Peru e Venezuela na média de
220%; e um aumento das reservas internacionais de Argentina, Brasil
e Venezuela ao redor de 240%, transformando vários países da América
Latina de devedores em aplicadores líquidos de recursos no exterior.
Esse quadro começa a se alterar. Há sérias dificuldades para a China
manter sua trajetória atual de altíssimo crescimento, entre as quais o
impacto planetário brutal em recursos naturais, matérias-primas,
poluição ambiental e efeito estufa; e, evidentemente, o desaquecimento
dos EUA e da economia mundial.
Com relação às previsões sobre o futuro chinês, há muitos
disparates. Em ensaio preparado para o National Bureau of Economic
Research em junho de 2007, Robert Fogel - diretor de centro de
pesquisa da Universidade de Chicago – projeta, a partir de
metodologia baseada em PPP (Purchase Power Parity), que considero
equivocada para este fim, seu cenário provável para 2040: PIB da
China em US$ 123 trilhões, dos EUA em US$ 42 trilhões e da União
Européia em apenas US$ 15 trilhões. Isso significaria uma China
insuportavelmente hegemônica, com 40% do PIB global, e uma
decadência plena da Europa. China mais Índia e Sul da Ásia (exceto
Japão) seriam então 64% da economia do mundo! São os absurdos a
que levam projeções de longo prazo contendo vícios de origem.
Outro exemplo. O fato de o Banco Mundial e o FMI, a partir de
1991, fazerem suas medições baseados em PPP praticamente triplicou
o valor do PIB chinês. Mas, em 2005, inseguro quanto à metodologia
utilizada, o próprio Banco Mundial reviu-a. E reduziu o PIB chinês
em PPP de 8,9 trilhões para 5,3 trilhões. No entanto, partindo dos
números de PIB convencionais, se os EUA crescerem apenas a 2%
ao ano – metade da taxa atual - ainda serão 60% maior do que a
China em 2025, se ela continuar a crescer a 8%.
China: Dimensões Estratégicas
241
Como se vê, as análises sobre o futuro da China são bastante
contraditórias e mostram baixa compreensão sobre a complexidade
do “milagre chinês”. Organizações internacionais criticam o “arremedo
de democracia” do país - comparada aos “padrões ocidentais”- e o
Estado centralizador e autoritário. Mas é justamente o Estado e a
política chineses – com suas idiossincrasias – que fazem possível até
aqui o grande fenômeno de crescimento e de inovação; e permitem
manter sob controle uma massa enorme de “novos miseráveis com
telefone celular”, entretidos pela possibilidade de uma ascensão social;
e que, ao quebrar as antigas lógicas de amparo estatal, geram também
um novo tipo de miséria.
A China detém 75% da produção mundial de brinquedos,
58% do vestuário e 30% de todos os telefones celulares. Sua ciência e
tecnologia, após 20 anos de reforma, começam a jogar importante
papel na inovação, e não só na cópia. O valor adicionado da produção
local tem crescido muito e suas exportações em alta tecnologia já estão
em 25% do total. Mas, ao lado desse espetacular desempenho, há
imensos problemas. Por exemplo, a enorme reserva de mão-de-obra
rural chinesa, disposta a trabalhar a preços irrisórios, foi uma das
condições essenciais para o atual modelo de crescimento do país. O
que está começando a mudar. Mas os chineses, além de estarem se
transformando em concorrentes internacionais de peso com marcas
próprias, sabem reconhecer a incapacidade dos seus interlocutores
ocidentais de lançar um olhar sóbrio e claro sobre a China; e disso
tiram vantagens.
Não podemos esquecer, também, a possibilidade de graves
tensões sociais e políticas na própria China. O frágil equilíbrio desse
complexo processo de engenharia social é agravado pelo fato de que a
China precisa alimentar 25% da população mundial com apenas 7%
242
Gilberto Dupas
das terras aráveis; de que seu déficit energético é imenso; e de que é
necessário produzir uma dezena de milhões de novos empregos por
ano, num quadro de imensa desigualdade de rendas. As empresas estatais
são deficitárias, o sistema bancário é precário, há imensos problemas
de saúde pública e a AIDS é endêmica em algumas províncias. O
pujante quadro chinês assenta-se, pois, sobre um barril de pólvora de
tensões sociais, para as quais não há bons prognósticos. Se ajustes
políticos mais radicais forem necessários, será a nova classe média que
terá mais a perder com eventuais distúrbios políticos. Tudo isso exige
uma enorme competência de governança e é um imenso desafio para
esta nova geração de dirigentes do PCC. As novas lideranças chinesas,
até aqui, tinham se mostrado à altura dele. A ideologia desapareceu
quase completamente como instrumento de legitimação. O objetivo
passou a ser “fortalecer e enriquecer” a China e reconduzir o país ao
seu lugar de direito entre as nações. Esta política implicou no
reconhecimento de que a estabilidade e, com ela, a sobrevivência do
PC no poder, só será alcançável por meio do desempenho econômico.
O que importa não é a democracia, e sim estabilidade. Por isso, a
máxima prioridade é manter todas as rédeas firmes e sufocar duramente
qualquer sinal de insatisfação da população. Um exemplo recente das
dificuldades está na questão do Tibet e das Olimpíadas.
Enfim, o governo chinês coloca-se diante de três grandes desafios
estratégicos: ultrapassar o modelo de industrialização baseado em alto
consumo de energia, grande poluição e elevado investimento por outro
baseado em tecnologia, baixo consumo de recursos naturais e reduzido
impacto ambiental; superar resíduos de tensões ideológicas; e construir
uma sociedade socialista harmoniosa e mais democrática. Também aí
há enormes problemas. A China cresce hoje por que um governo
forte pode impor linhas gerais inteligentes na economia e na política.
China: Dimensões Estratégicas
243
A visão chinesa de democracia não é, e nem poderia ser, a ocidental;
da mesma forma que “socialismo de mercado” é um termo ambíguo e
contraditório.
Por outro lado, a China não tem nenhuma ilusão em disputar
o poder militar com os EUA. Seu objetivo é tornar-se um pólo
econômico mundial alternativo ao pólo americano. Ela procura criar
núcleos de poder assimétrico que dariam ao país – no caso de um
indesejado confronto com os EUA – vantagens de excelência
manufatureira do tipo que os EUA tiveram na segunda guerra mundial.
Uma das idéias em estudo é concentrar legiões de especialistas em
pontos-chave de uma eventual guerra cibernética. As relações EUA-
China permanecem, assim, paradoxais. O PC chinês é muito realista
ao reconhecer que a supremacia global dos EUA só declinará a longo
prazo. E ele precisa de paz para trabalhar seu complexo projeto. Por
outro lado, fracassos dos EUA no Oriente Médio e no combate ao
terrorismo na Ásia implicam para a China em risco de falta de petróleo
e insegurança nas fronteiras do oeste.
A atual situação armamentista do país não parece fundamentar
os receios americanos, japoneses ou australianos da prioridade chinesa
para a construção de uma potência militar. Mesmo as compreensíveis
preocupações japonesas e americanas sobre Taiwan parecem exageradas.
A China precisaria contar com um poderio naval de alto mar com
capacidade agressiva, amplamente móvel, operacionalmente flexível,
coisa que não possui. O seu poderio aéreo sobre o mar é muito limitado
pela falta de porta-aviões e de ampla força armada submarina.
Em resumo, a China sente-se hoje simultaneamente forte - pelo
imenso sucesso econômico - e vulnerável por suas limitações e por
que ainda percebe os EUA espreitando para desestabilizá-la. Antes de
tudo, o mundo precisa incorporar a qualidade e o peso desse novo e
decisivo player e promover alianças que o comprometam
progressivamente com a boa ordem internacional, abrindo espaços
pra acomodá-lo no mundo global e em seus fóruns multilaterais,
tentando fazer de sua presença um fator de progressiva estabilidade.
O cenário estratégico intermediário mais benévolo para a ordem global
talvez seja um crescimento chinês mais moderado, da ordem de uns
6% ao ano, conduzido por um Estado ainda forte e centralizador,
com competência para controlar as intensas tensões políticas e sociais
que o capitalismo geral, permitindo aos poucos processos democráticos
mais intensos. Será necessário muito talento para conduzir um processo
dessa complexidade.
Obrigado.
Gilberto Dupas
244
245
A China enfrenta muitos desafios no momento, e eles derivam,
na maior parte, de problemas domésticos e também internacionais,
recentemente originados do rápido desenvolvimento do País.
Certamente ainda subsistem aqueles desafios, no campo tradicional
da segurança, que já existiam há muito tempo, como as forças
separatistas em Taiwan e a situação instável na Península da Coréia.
Entretanto, há um amplo consenso no sentido de que os desafios no
terreno da segurança não-convencional estão se deslocando para o
centro das preocupações chinesas, incluindo-se aí os crimes além-
fronteira, a escassez de recursos, a poluição ambiental, a mudança
climática, possíveis surtos de epidemia, etc. Escapa ao objetivo deste
trabalho analisar todos esses desafios. Ao invés disso, o foco se
concentrará em dois casos: um, o desafio das ameaças terroristas; o
outro, o desafio da demanda superando a oferta no setor energético.
* Diretor e professor do Shanghai Center for International Studies e do SCO (Shanghai
Cooperation Organization), do Centro de Estudos de Xangai, Decano do Centro de
Estudos Judaicos de Xangai (CJSS) e Vice-Diretor da Sociedade Chinesa de Estudos
sobre o Oriente Médio. É Consultor Sênior para Assuntos Antiterror do Município de
Xangai e do Ministério de Segurança Pública da República Popular da China. Foi indicado
pelo Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como membro do Grupo de
Alto Nível da Aliança de Civilizações das Nações Unidas, em 2005, e indicado como
Alto Representante das Nações Unidas. Publicou livros e artigos sobre uma variedade de
temas, como “The Jews in China”, “2003: US War on Iraq”, “From Silk Road to ASEM:
2000 Years of Asia-Europe Relations”, “A Comprehensive Studies on Shanghai
Cooperation Organization”, “SCO and China’s Role in the War on Terrorism”,
“Contemporary International Crises”, “China’s Success in the Middle East” , etc.
DESAFIOS E RESPOSTAS: PERSPECTIVAS DA ESTRATÉGIA
CHINESA ANTITERROR E DA ESTRATÉGIA DE
DESENVOLVIMENTO DE ENERGIA DO ALÉM-MAR
Pan-Guang*
246
Pan-Guang
I. DESAFIOS DE UMA CHINA QUE CRESCE: OS CASOS DAS
AMEAÇAS TERRORISTAS E A ACELERAÇÃO DA DEMANDA
DE ENERGIA.
A
S AMEAÇAS TERRORISTAS
Com a reforma e a abertura se desenrolando sob a liderança de
Deng Xiaoping, a China experimentou um rápido crescimento
econômico nos anos 80 do século XX. Ao mesmo tempo, houve o
concurso de diversas influências externas na China. Algumas atividades
violentas e terroristas, na maioria das vezes com motivação econômica,
ocorreram nas regiões costeiras orientais, onde a economia e as conexões
por mar encontravam-se mais desenvolvidas. Entretanto, surgiram
atividades como tráfico de drogas, geralmente no noroeste
(Afeganistão-Xinjiang). Após 1996, com o apoio dos Talibãs e da Al-
Qaeda, organizações religiosas extremistas e terroristas na Ásia Central
constituíram redes além-fronteira. Certas organizações relacionadas
com a campanha do ET (Turquestão Oriental), como o Movimento
Islâmico do Turquestão Oriental, tornaram-se muito atuante dentro
desse grupo exclusivo .
Evidências hoje tornadas públicas mostraram Osama bin Laden
dizendo-lhes: “ Eu apoio a jihad de vocês em Xinjiang”.
1. Depois de 11 de setembro, o grupo do ET foi duramente
golpeado na guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, onde suas
bases foram destruídas. Entretanto, acompanhando a guerra liderada
pelos norte-americanos no Iraque, o grupo de alguma forma se
reorganizou, coincidindo com o ressurgimento dos Talibãs e da Al-
Qaeda, e as condições de segurança na Ásia Central se deterioraram
novamente. O que merece especial atenção é o fato de que os grupos
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
247
terroristas estão agora revendo suas estratégias, com alguns recorrendo
a novas abordagens e apresentando aparência nova. Certos grupos
estão surgindo e expandindo suas organizações com o alistamento de
membros dentre as massas inferiorizadas. Hizb-ut-Tahrir torna-se
muito influente na Ásia Central, embora tenha-se estabelecido na
Jordânia em 1953. Este partido, que tenta instituir um Califado Pan-
Islâmico, mantém estreitas ligações com a Al-Qaeda, com seus planos
focado na subversão da ordem estabelecida. Embora não tenha sido
listado como um grupo terrorista por parte de alguns países, esta
organização não obteve permissão legal para se registrar como um
partido político em nenhum dos países do Oriente Médio ou da Ásia
Central, permanecendo, assim, na clandestinidade. Fazendo crescer o
número de seus membros através de atividades filantrópicas e de meios
do tipo venda de pirâmides, o partido está ganhando apoio
rapidamente na Ásia Central, particularmente na zona rural de
Fergana, assolada pela pobreza, onde a taxa de desemprego atinge
80%, e diz-se que somente no Uzbequistão há hoje centenas de milhares
de seus membros, e mais de dez mil em Xinjiang.
Ao mesmo tempo, na nova onda de ataques terroristas varrendo
o mundo na esteira da guerra do Iraque, a formação de um cinturão
terrorista estendendo-se do Oriente Médio, da Ásia Central e
Meridional até o Sudeste da Ásia é um desenvolvimento muito
perigoso. Organizações e atividades terroristas na Ásia Central, na
Ásia Meridional e no Sudeste da Ásia estão começando a se assemelhar
àquelas do Oriente Médio, principalmente em termos de conexões
intelectuais, redes de organizações e abordagem de atividades. Um
estado de coisas muito preocupante é que o Sudeste da Ásia, localizado
na ponta oriental desse cinturão, tornou-se uma área de alto risco de
ataques terroristas freqüentes nos últimos anos.
248
Pan-Guang
Certos grupos terroristas intimamente relacionados com a Al-
Qaeda, como o Jamaah Islamiyah, Kumpulan Mujahidin Malaysia, e
o Abu Sayyaf planejaram uma série de atividades terroristas. Um
especialista observou que Jamaah Islamiyah, como principal agente
da Al-Qaeda no Sudeste da Ásia, está agora funcionando num âmbito
mais amplo, estendendo-se da Tailândia Meridional, da Malásia, de
Cingapura, da Indonésia e das Filipinas, até à Austrália.
2. Lee Kuan Yew, Ministro sênior do Gabinete de Cingapura,
observou recentemente que é muito preocupante ver que embora os
230 milhões de muçulmanos no Sudeste da Ásia tenham por tanto
tempo sido tolerantes e de vida tranqüila, mudanças recentes indicam
que o extremismo e o terrorismo estão procurando oportunidades e
deitando raízes entre eles.
3. A China está preocupada com as atividades terroristas no
Sudeste da Ásia, visto que elas estão intimamente relacionadas com a
segurança chinesa. Primeiramente, as atividades terroristas na região
são uma ameaça à segurança da imensa população de origem chinesa
que ali vive. Segundo, o terrorismo no Sudeste da Ásia já afetou os
turistas chineses e os trabalhadores em engenharia na região. Por
exemplo, Bali, que vivenciou repetidas explosões, é um local favorito
dos turistas chineses. Além do mais, trabalhadores chineses na área de
engenharia nas Filipinas, foram mais de uma vez tomados como reféns
pelo Abu Sayyaf, tendo um deles sido assassinado. Terceiro, se as
atividades terroristas marítimas tomarem como alvo os petroleiros
no Estreito de Málaca, o que é uma possibilidade bem realística, a
segurança da energia chinesa estará ameaçada, uma vez que mais de
60% do petróleo importado passa por aquele Estreito. Isso tem
conexão com as discussões a seguir, em outro desafio à segurança da
energia chinesa.
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
249
Recentemente, os chineses têm estado cada vez mais sujeitos a
ataques terroristas. Só no ano de 2004, quinze cidadãos chineses foram
mortos por esses ataques. Em 3 de maio, engenheiros chineses que
trabalhavam no porto paquistanês de Gwadar foram atacados por
carros-bomba que deixaram três mortos e nove feridos.
4. Em 10 de junho, um grupo de terroristas afegãos atacou um
canteiro de obras perto de Kunduz onde os chineses estavam ajudando
na construção, causando a morte de onze trabalhadores chineses e
ferimentos em quatro. 2. Em outubro, dois engenheiros chineses foram
feitos reféns, e um deles foi morto nessa ação terrorista cometida pela
Al-Qaeda, segundo foi confirmado depois pelas autoridades
paquistanesas.
A
CELERAÇÃO DA DEMANDA POR ENERGIA
Avanços no desenvolvimento dos recursos petrolíferos
domésticos libertaram a China de sua dependência do óleo estrangeiro
nos meados dos anos 60, e a introduziram na arena da auto-suficiência
em petróleo, fato de que o País se orgulhou. Na verdade, a produção
de petróleo cresceu tão rapidamente que a China, mais tarde, exportava
o produto, atingindo um pico de 6.21milhões de toneladas em 1985.
Entretanto, tudo isso tinha acabado no início dos anos 90. A China
tornou-se um importador líquido de petróleo outra vez. A mudança
de exportador de para importador ocorreu principalmente por causa
do crescimento rápido do consumo. De 1978 a 2000 o consumo total
de energia na China mais do que dobrou, passando de 57 144 tec
(toneladas do equivalente da cola) para 128 000 tec.
1. O consumo de petróleo que na maioria dos casos assumiu a
proporção de 20% do consumo total de energia, também saltou em
250
Pan-Guang
quantidade correspondente. O ponto crítico ocorreu em 1993,
quando a China importou um total líquido de 9.91milhões de
toneladas de petróleo cru e de produtos de petróleo refinado. As
importações em 1994 e 1995 caíram para algo em torno de 3.30 e
8.75 milhões de toneladas. Por volta de 2000 a China importava
em torno de 70 milhões de toneladas de petróleo, quase um terço
de seu consumo total: 220 milhões de toneladas. Em 2006, a China
importou 145.18 milhões de toneladas de petróleo cru, mais de
40% de seu consumo total, estabelecendo outro recorde na história.
1. A China hoje supera o Japão como o segundo maior país
consumidor de energia, perdendo apenas para os Estados Unidos.
Espera-se que por volta de 2010 a China possa importar 180 a 200
milhões de toneladas de petróleo cru, mais de metade de seu
consumo total.
Em termos de quotas geográficas, a China atualmente
importa petróleo e gás de mais de 30 países do Oriente Médio, da
Ásia Central, da África, da América Latina, do Sudeste Asiático,
da Austrália e da Europa. Conforme evidenciado pelos números
das importações dos últimos anos, esses países incluem,
particularmente, a Arábia Saudita, o Irã, Angola, a Rússia, Omã,
o Sudão, o Iêmen, a Indonésia, a Austrália, a Tailândia, a Malásia,
o Congo, o Cazaquistão, a Venezuela, a Líbia, etc. Conforme
mencionado anteriormente, mais ou menos 60% das importações
chinesas de energia vêm do Oriente Médio, passando pelo inseguro
Estreito de Málaca.
Com a crescente dependência do País em importação de
petróleo, os preços altos têm atrapalhado o desenvolvimento
econômico da China e até causado um impacto negativo sobre a
vida social. Primeiro, os altos preços reduzem as rendas de
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
251
exportação da China, diminuem sua taxa de crescimento econômico,
aceleram a taxa de inflação, e aumenta o pagamento, por parte da
China, de moeda estrangeira. Segundo, como resultado indireto,
sobem os custos de produção, prejudicando a indústria leve orientada
para a exportação, o que, a longo prazo pode causar considerável
dano à competitividade chinesa. Terceiro, o declínio econômico
em outras partes do mundo reduz a demanda por produtos
chineses. Quarto, os altos preços do petróleo levaram à inflação
dos preços para uma quantidade de produtos com desconto,
causando sério impacto no dia-a-dia do povo. Por exemplo, o
aumento nos custos do transporte pressionou para cima os preços,
por exemplo, do transporte público e privado, da aviação, do
turismo, do lazer, da construção e dos bens imóveis, bem como
das necessidades do dia-a-dia. A carga dos gastos com as coisas do
lar tornou-se, decididamente, muito maior.
Entrementes, com o forte aumento no consumo de energia, a
poluição ambiental e o desperdício de energia estão aumentando,
apresentando um mundo de sérios desafios para o governo e para a
sociedade. Como resultado do crescente consumo de carvão e de
petróleo, a China tem assistido ao aumento da emissão de seu gás de
estufa (GHC). Diz-se que a China é, atualmente, o número dois em
termos de emissão de GHC, perdendo apenas para os Estados
Unidos, e, possivelmente, devendo ultrapassar os Estados Unidos
dentro em breve. Tais desenvolvimentos, ao mesmo tempo em que
afetam a qualidade de vida do povo chinês, dão origem, por sua vez,
a crescente pressão internacional. Por enquanto, o consumo chinês
de energia para cada dólar GDP é três vezes maior do que a média
mundial, e a perda econômica como conseqüência da baixa taxa de
utilização da energia atinge a cifra de US$ 120 bilhões por ano.
252
Pan-Guang
II. RESPOSTA ÀS AMEAÇAS TERRORISTAS: ESTRATÉGIA
ANTITERRORISTA E DIPLOMACIA CHINESAS
Mesmo antes do 11 de setembro, com o objetivo de enfrentar
esses desafios terroristas que ameaçavam a segurança e a unidade da
China, as autoridades chinesas começaram a formular seriamente uma
estratégia antiterrorismo, de forma a garantir a estabilidade de Xinjiang.
Dentro desse contexto, foi organizada em Xinjiang uma unidade
militar antiterror com o apoio fiscal do governo central, a primeira
entre as províncias da China, e em vista de o extremismo do Turquestão
Oriental ser do tipo transfronteira, as autoridades chinesas
reconheceram que a estratégia antiterrorismo precisava incluir
mecanismos para a cooperação internacional. Na verdade, esses se
tornaram uma das forças motrizes dos Cinco de Xangai – processo da
Organização de Cooperação de Xangai (SCO)(OCX). Pela perspectiva
chinesa, é de particular importância que a China possa, dentro da
estrutura da SCO, contar com o apoio dos outros cinco Estados-
membros e dos quatro Estados observadores, em sua campanha contra
o terrorismo. Falando de modo geral, antes do 11 de setembro, embora
a China tenha assinado e ratificado a maioria das convenções e tratados
internacionais contra o terrorismo, sua participação em atividades
internacionais sobre o tema tinha sido muito pequena.
Pouco depois do 11 de setembro, a China estabeleceu seu Grupo
Nacional de Coordenação Antiterrosismo (NATCG) e o Secretariado,
chefiado por Hu Jintao, à época Vice-Presidente. O Ministério de
Segurança Pública também lançou, simultaneamente, um escritório
antiterrorismo responsável pela pesquisa, planejamento, orientação,
coordenação e empreendimento da agenda nacional antiterror. O
escritório do NATCG era subordinado ao escritório antiterror do
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
253
Ministério da Segurança Pública. Além disso, todas as províncias
aderiram, organizando seus próprios grupos e escritórios de
coordenação antiterrorismo, com Pequim, Xangai, Guangdong,
Xinjiang e o Tibet na vanguarda. Em vista desses esforços expandidos
a China realizou notável feito no fortalecimento de seu mecanismo
antiterror a partir do 11 de setembro.
Primeiro, foi instituído um sistema de advertência prévia e de
prevenção. O objetivo de tal sistema é monitorar atividades de grupos
terroristas, de forma a prevenir ataques com bastante antecedência
através de meios tais como o corte das conexões relacionadas com
financiamento para os terroristas. No caso de os ataques se tornarem
iminentes, a expectativa é de esse sistema emitir alguma forma de alerta
de última hora. O encontro de cúpula da APEC, reunido em Xangai,
em outubro de 2001, foi um evento apenas quarenta dias depois do 11
de setembro. Foi, certamente, um teste rigoroso da competência
antiterrorismo das autoridades chinesas, particularmente de seu sistema
de advertência prévia e de prevenção. A ausência de problemas durante
o evento provou, de alguma forma, a eficácia do sistema.
Segundo, um sistema de resposta rápida está sendo planejado
agora. A missão de tal sistema é, em caso de ataques terroristas, tomar
medidas severas e rápidas para remover ou conter as causas de tais
ataques, restringir seus resultados, e agir no sentido de uma solução
imediata do problema. A China aperfeiçoou muito, nos últimos
anos, suas forças antiterror de resposta pronta. Elas são empregadas
agora não apenas em Xinjiang, mas também em quase todas as cidades
capitais de província, além de terem tido seus armamentos
significativamente aperfeiçoados. A China tem realizado cada vez
mais exercícios antiterrorismo nos últimos anos. Um dos importantes
exercícios militares antiterror é o Grande Muralha 2003, ocorrido
254
Pan-Guang
em setembro de 2003, que o Presidente Hu Jintao inspecionou
pessoalmente.
Terceiro, um sistema de controle das conseqüências e de
administração está sendo instituído agora. Esse sistema tem como
foco o controle dos danos, perdas físicas e humanas, em seguida
a ataques terroristas ou no início dos mesmos. Ele procura conter
a capacidade destruidora dos ataques e restaurar a normalidade.
A esse respeito, a China, aproveitando a experiência das
autoridades da Cidade de Nova York ao lidarem com o 11 de
setembro, procura melhorar a coordenação da polícia, dos
bombeiros, das forças armadas, dos grupos civis de resgate e do
pessoal médico na eventualidade de um ataque terrorista.
Treinamento e exercícios em diferentes níveis já foram executados
com essa finalidade.
Quarto, um sistema de educação de massa e de mobilização
está sendo elaborado. Esse sistema tem como foco a popularização
do conhecimento antiterror, de habilidades no combate ao
terrorismo, etc., de forma a aumentar a conscientização com
respeito à ação terrorista e a capacidade de resposta da população
em situações de emergência. Esse sistema está assegurado por meio
de ação sobre leis, regulamentos e instituições, ao mesmo tempo
em que complementa os três sistemas anteriores.
Diversas autoridades na China desenvolveram uma série de
programas de educação e treinamento entre cidadãos civis em grande
escala. Um grande número de escolas acrescentou antiterrismo a
seus currículos, ao mesmo tempo em que alguns institutos e
universidades criaram centros e projetos de pesquisa antiterror.
Além disso, o Congresso Chinês está também trabalhando numa
futura lei antiterror. Esse sistema é especialmente importante no
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
255
contexto de uma China como anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008,
em Pequim, e da Exposição Mundial de 2010, em Xangai.
Os últimos anos dão testemunho da China participando
ativamente da cooperação internacional antiterrorismo,
particularmente a partir do 11 de setembro. A participação chinesa,
que assume cada vez mais seu papel nas campanhas internacionais
antiterror, desdobra-se nos quatro níveis descrito a seguir.
Primeiro, a China apoiou ativamente e participou da aliança
internacional contra o Talibã e a Al-Qaeda. O papel proeminente
dos chineses é manifesto no compartilhamento de informações, no
desbaratamento das fontes de financiamento dos grupos terroristas,
ao hipotecar apoio aos esforços antiterror dos paquistaneses, ao
combater atividades criminosas além-fronteiras, relacionadas com
organizações terroristas, etc. Conforme mencionado
anteriormente, os terroristas do Turquestão Oriental (ET) foram,
por muito tempo, treinados, armados e financiados por
organizações terroristas internacionais, a Al-Qaeda principalmente.
Portanto, a campanha chinesa contra o movimento do Turquestão
Oriental é um elo chave nas campanhas internacionais antiterror.
Segundo, a China, sempre favorável a um papel preponderante
das Nações Unidas nos negócios internacionais contra o terror,
tomou parte ativa nos esforços dentro da estrutura da ONU, o que
inclui a criação de um sistema legal internacional antiterror. Após o
11 de setembro, a China apoiou as Nações Unidas e seu Conselho
de Segurança na aprovação de diversas resoluções, no reforço de
resoluções relevantes, na adesão aos tratados, como a Convenção
Internacional para Restringir as Explosões Terroristas, e no
estabelecimento de negociações e diálogo sobre antiterrorismo com
os países envolvidos com, ou interessados no assunto.
256
Pan-Guang
A China contribuiu significativamente com o processo de
reconciliação nacional no Tadjiquistão, conduzido pelas Nações
Unidas, e com o processo de reconstrução pós-guerra no Afeganistão.
Terceiro, a China tem promovido a cooperação internacional
antiterror através de mecanismos multilaterais, como SCO, APEC,
ASEM e o Fórum Regional da ASEAN. Conforme observado
anteriormente, o Shangai Five – SCO, que tinha como alvo as três
forças do mal, desde seu início, em 1996, desempenhou
consistentemente um papel central nos combates antiterror na Ásia
Central. Em 15 de junho de 2001, menos de três meses antes do 11 de
setembro, os líderes dos seis Estados-membros da SCO assinaram a
Convenção de Xangai para o Combate ao Terrorismo, ao Separatismo
e ao Extremismo. Essa Convenção, como primeiro tratado
internacional sobre terrorismo no século XXI, criou o arcabouço legal
para o combate ao terrorismo e outras forças do mal, para os membros
da SCO e sua coordenação com outros países, Apenas três dias após o
11 de setembro, acontecia um comunicado conjunto, lido no dia 14
de setembro, pelos líderes dos seis membros da SCO, que tinham
comparecido ao encontro de primeiros-ministros em Alma-Ata. Ele
expressava a determinação do grupo multilateral de acompanhar todos
os países e organizações internacionais em empreender uma guerra
sem tréguas contra todas as ameaças de terrorismo ao redor do mundo.
1. A partir daí, todos os estados membros do grupo tomaram
parte na cooperação internacional Convenção de Xangai para o
Combate ao Terrorismo, ao Separatismo e ao Extremismo. É correto,
portanto, dizer que, sem o apoio dos membros da SCO, a guerra dos
Estados Unidos contra o terrorismo no Afeganistão não teria se
desenrolado com a tranqüilidade com que ocorreu. A SCO deu grandes
passos em direção à sua própria consolidação após a guerra do Iraque.
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
257
O lançamento oficial do Comitê Executivo da Estrutura Regional
Antitrrorismo (RATS), da SCO, em 17 de junho de 2004, representa
outro grande passo com o objetivo de facilitar a segurança e a
cooperação antiterror no âmbito da SCO. O antiterrorismo foi um
tema importante na agenda das reuniões anuais de cúpula da SCO,
em 2005, 2006 e 2007. Centenas de soldados da China, da Rússia e de
outros estados membros participaram do exercício conjunto
antiterrorista Missão de Paz 2007 , na Rússia. Na história da República
Popular da China, essa é a primeira vez em que um número tão grande
de soldados atravessa o oceano para se engajar em exercícios
antiterroristas.
Nas duas semanas anteriores à reunião de cúpula da APEC 2001,
em Xangai, a China, como anfitriã do evento, não mediu esforços
para conciliar as partes em disputa e obter um consenso na forma de
uma declaração antiterrorismo por parte dos líderes da APEC. Na
reunião de cúpula da ASEM, em Copenhagen, em setembro de 2002,
o Primeiro- Ministro Zhau Rongki discorreu sobre a posição da China
em relação ao terrorismo, o que contribuiu para o consenso dos
delegados participantes, os quais aprovaram uma declaração
antiterrorista e um plano de cooperação. 1. Em seguida, foi realizada
uma conferência antiterror em Pequim, em setembro de 2003. Em
outras áreas, de há muito vem acontecendo cooperação entre a China
e os países da ASEAN sobre temas não-convencionais, tais como
medidas contra o tráfico de drogas. Um mecanismo muiltilateral de
cooperação antidrogas começou a funcionar em 2001, entre a China,
o Laos, a Tailândia e Myanmar. O terceiro encontro de cúpula da
China e dos membros da ASEAN, em novembro de 2002, emitiu o
“Comunicado Conjunto da China e da ASEAN com Relação à
Cooperação sobre Temas Não-Convencionais de Segurança”, que deu
258
Pan-Guang
início à cooperação plena na região em matérias que incluem o
terrorismo.
Conforme advertiu o Primeiro-Ministro Zhu Ronji, a China
continuará a ajudar os países da ASEAN a combater as atividades
terroristas.
Quarto, a China desenvolveu um mecanismo bilateral
antiterrorismo com outros Estados. Entre os países que até agora
iniciaram cooperação regular antiterror com a China, ou que com
ela entabularam negociações a respeito desses temas, estão incluídos
os Estados Unidos, a Rússia, a Índia, o Paquistão, o Reino Unido, a
França, a Austrália e a Alemanha, para nomear apenas os mais
significativos. Tomemos a cooperação China-Estados Unidos como
exemplo. Inicialmente essa cooperação antiterror, após o 11 de
setembro, tinha como foco o intercâmbio de informações, a
extirpação dos fundos de financiamento do terrorismo e apoio aos
esforços paquistaneses na luta contra o terrorismo. Em outubro de
2001, a China, a instâncias dos Estados Unidos, fechou suas fronteiras
de mais de 92 km com o Afeganistão para agir em coordenação com
as ações militares americanas. No Afeganistão, o exército norte-
americano capturou 22 ativistas do ET (Turquestão Oriental) de
nacionalidade chinesa. Essa cooperação cresceu ainda mais após o
encontro de cúpula entre a China e os Estados Unidos. Existe agora
em funcionamento, entre os dois países, um mecanismo bilateral
antiterror que inclui um grupo de trabalho para financiamento
contra o terrorismo. Em agosto de 2002, os Estados Unidos
acrescentaram oficialmente o Movimento Islâmico ET à sua lista de
organizações terroristas. A abertura de um escritório do FBI em
Pequim, em novembro de 2002, é outra medida positiva que reforça
a cooperação entre os Estados Unidos e a China no combate ao
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
259
terrorismo e a diversos crimes transfronteiras. Recentemente, a China
e os Estados assinaram, também, acordos sobre a segurança de cargas
e da aviação civil.
III. RESPOSTA À ACELERAÇÃO DA DEMANDA POR
ENERGIA
Em face do desafio da segurança da energia, a China tem feito
ajustes em sua política energética e em sua estratégia de
desenvolvimento.
1. A produção de energia na parte ocidental é estimulada,
enquanto a da parte oriental encontra-se estabilizada. Para garantir
produção doméstica adequada, alguns campos de petróleo e de gás da
China oriental, começam a declinar, dando vez aos campos emergentes
da parte ocidental, com estes últimos se tornando novo foco de
desenvolvimento de energia. Entrementes, a produção, como o gás
produzido no oeste, é transportada para a parte oriental do País como
uma medida correspondente. O desenvolvimento energético torna-
se, portanto, um componente chave da estratégia nacional chinesa para
o desenvolvimento da parte ocidental.
2. A estrutura do consumo de energia é remodelada. Na
composição chinesa, a proporção de carvão deve cair do nível atual de
65-69%, enquanto os do petróleo, do gás, o da energia hidráulica e o
da nuclear devem baixar dos níveis atuais de, respectivamente, 20-
25%, 3%, 6% e 1%. A expectativa é de que por volta de 2020 o carvão
represente 54%, com o petróleo aumentando para 27%, o gás para
9.8%, e as energias hidráulica e nuclear para 9.1%. Sem dúvida, novas
fontes serão também desenvolvidas, bem como será promovida a
tecnologia do carvão limpo.
260
Pan-Guang
O sistema nacional de reserva está sendo construído. O
armazenamento de energia estratégica não apenas controlará a perda
econômica nacional causada por qualquer interrupção inesperada do
fornecimento de energia, como ajudará na estabilização desse mercado
quando os preços subirem de repente. A China iniciou, desde a virada
do século, o processo de construção de seu sistema de reserva de energia
estratégica.
A economia de energia torna-se uma das primeiras prioridades.
O governo chinês está tomando diversas medidas para mudar a
situação, como promulgar a “Lei da Energia Renovável”, a “Lei do
Carvão”, reforçar os critérios de conservação de energia nos prédios,
mudar os motores a gasolina nos veículos para motores a diesel,
popularizar a tecnologia de hibridização do gás de carvão, desenvolver
critérios de economia em veículos de fabricação recente, desativar
dispositivos que consomem demasiada energia, etc. Ao mesmo tempo,
é importante restringir rigorosamente a emissão de GHG, fechar,
sempre que possível, o que quer que cause poluição exagerada,
popularizar o uso de fontes de energia limpa e com baixo teor de gás
carbono, e realizar a eliminação do gás carbono.
3. É dada ênfase ao desenvolvimento da energia ativa no além-
mar. Ao mesmo tempo em que se mantém fiel ao princípio de se
apoiar principalmente nas fontes domésticas, a China adotou a posição
de desenvolver petróleo e gás no exterior, na esperança de diversificar
seus canais de importação de energia. Este assunto será abordado aqui
com destaque.
Um objetivo primordial da estratégia chinesa de
desenvolvimento de energia no estrangeiro é garantir a diversificação
das importações de gás e de petróleo e de suas rotas de transporte.
Para alcançar este objetivo, é necessário ir além da mera compra dos
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
261
produtos energéticos, e engajar-se no desenvolvimento dos mercados
internacionais de energia e de transporte. Com início nos anos 90, as
empresas chinesas começaram a marcar presença no investimento e no
desenvolvimento do mercado internacional de energia. CNPC,
CNOOC e SINOPEC, como empresas chinesas líderes no marcado
mundial de energia, investiram em dezenas de grandes projetos pelo
mundo afora. Em geral, as operações das companhias chinesas no
estrangeiro são orientadas em cinco direções: o Oriente Médio, a Ásia
Central-Sibéria, a Indonésia-Austrália, a África e a América Latina.
Menção especial deve ser feita aos notáveis resultados obtidos
por projetos no Cazaquistão, no Sudão, na Venezuela, na Austrália e
no Irã.
O primeiro e mais ativo agente chinês em sua empreitada
petrolífera no estrangeiro, é a Corporação Nacional de Petróleo da
China (CNPC). No primeiro momento, para surpresa de suas
contrapartidas estrangeiras, a CNPC havia, no prazo de apenas alguns
poucos anos, investido 15.6 bilhões de RMB, por volta do ano 2000,
no Oriente Médio e no Norte da África, na Ásia Central e na Rússia,
bem como na América do Sul. De suas concessões no Cazaquistão, no
Azerbaijão, no Sudão, no Iraque, na Venezuela, no Peru, etc., obteve
sua cota de petróleo de 5.05 milhões de toneladas em 2000, além da
cota de gás, de 480 milhões de metros cúbicos.
1. Na etapa inicial, alguns dos notáveis projetos internacionais
da CNPC, em matéria de petróleo, incluíam a compra de 60% da
Kazakh Aktyubinskmunaigaz Production Association, que controla
três campos petrolíferos com reservas estimadas em 1 bilhão de barris;
a compra de 51% do campo da Kazakh Uzen, com reserva estimada
de 1.5 bilhão de barris; a assinatura de um contrato de 22 anos de
participação na produção para desenvolver o campo de petróleo
262
Pan-Guang
iraquiano Ahdab, com reservas calculadas em 1.4 bilhão de barris; a
compra de 40% da Greater Nile Petroleum Operating Company,
sudanesa, para desenvolver os campos de Heglig and Unity, com
reservas calculadas em 8,5-12.5 barris; a aquisição de seis ativos
indonésios de gás e petróleo com produção anual prevista de 6.24
milhões de barris. 1. Na América Latina, a CNPC primeiro investiu
US$ 30 milhões de dólares no Peru. Em seguida, em 1997, investiu
US$ 1.1 bilhão na Venezuela, após ganhar as concorrências de dois
grandes projetos petrolíferos. Desde a virada do século, a CNPC tem
investido cada vez mais em todas as partes do mundo. Tomemos como
exemplo o Cazaquistão: depois de anos de operação nesse País, a
CNPC tem agora capacidade para produzir mais de cinco milhões de
toneladas de petróleo por ano, além de acumular experiência na
cooperação com os parceiros do Cazaquistão. Em outubro de 2005, a
CNPC adquiriu, com sucesso, a Petro Kazakhstan (PK), uma
companhia petrolífera cazaquistanesa com matriz no Canadá,
realizando maiores avanços em investimentos no mercado de energia
da Ásia Central.
Gozando de vantagens geográficas, a Ásia Central-Sibéria
desempenha um papel de importância especial na estratégia chinesa de
desenvolvimento de energia no estrangeiro. Diferentemente das outras
quatro direções, esta é uma fonte de suprimento que não precisa de
proteção de nenhuma marinha. Essa fonte próxima obviamente é de
grande importância estratégica para a segurança energética da China.
Após vários anos de construção, o oleoduto do Cazaquistão à China
finalmente entrou em operação, em maio de 2006. O oleoduto tem
capacidade prevista para transportar 20 milhões de toneladas por ano,
o que será um grande salto, comparado com as atuais 500 mil toneladas
transportadas por ferrovias. Com a conclusão da segunda fase do
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
263
oleoduto, a capacidade final de transporte alcançará 50 milhões de
toneladas por ano. O Presidente Nursultan Nazarbayev observou,
durante a cerimônia de inauguração: “Hoje estamos dando início à
operação desse oleoduto de 1 000 km de extensão, e gastos no valor de
US$ 800 milhões. Toda a região se tornará dinâmica, e a economia se
desenvolverá, como conseqüência”. 1. Este é o primeiro oleoduto na
história da Ásia Central que vai até à China e pode alcançar o Oceano
Pacífico, via China. Para a China é também um avanço em sua estratégia
de desenvolvimento de energia no estrangeiro, visto que é seu primeiro
oleoduto que vai para o oeste, o primeiro oleoduto transfronteiras
envolvendo a China. Convém observar que esse oleoduto segue
exatamente a antiga Estrada da Seda, que um dia promoveu o
intercâmbio entre o Ocidente e o Oriente. Hoje, esta Estrada adquiriu
uma nova face, atuando como uma ponte de energia eurasiana ligando
estreitamente a China e a Ásia Central, a Ásia Central e a Ásia Oriental,
e mesmo o Oriente Médio e a região do Pacífico da Ásia.
CONCLUSÃO
1. Em futuro previsível, a China continuará a ser um membro
ativo da coalizão internacional antiterror, e a desempenhar um papel
significativo na cooperação internacional antiterrorismo, embora não
endosse algumas das ações unilaterais dos Estados Unidos, conforme
se viu na guerra do Iraque. Contudo, deve-se observar que a estratégia
chinesa antiterror não adota orientação global(izante), como a dos
Estados Unidos. A China ainda tem como foco suas próprias regiões
e as regiões vizinhas, pois esta estratégia tem também como objetivo a
manutenção da estabilidade da própria China e a criação de um
ambiente favorável a seu desenvolvimento. Mas, fica cada vez mais
264
Pan-Guang
claro, evidentemente, que a participação da China é indispensável aos
esforços internacionais antiterror, seja no interior da Eurásia, do
subcontinente sul-asiático, da Ásia oriental, do Sudeste da Ásia, ou do
Oriente Médio. Portanto, embora a estratégia antiterror da China não
tenha orientação global, sua influência e significado têm-se revelado globais.
2. Com o rápido crescimento econômico da China,
particularmente com sua demanda de energia em ritmo acelerado, o
desenvolvimento de energia no estrangeiro está se tornando cada vez
mais estrategicamente significativo para a China. Na perspectiva
chinesa, três pontos são importantes: antes de tudo, garantia de
segurança e estabilidade é um pré-requisito para a segurança e o
desenvolvimento da energia. Quanto a isso, a China e todos as outras
partes envolvidas possuem interesses comuns em aspectos tais como o
combate ao terrorismo e ao extremismo, a prevenção da proliferação
de armas de destruição em massa, o enfrentamento conjunto de ameaças
não-convencionais à segurança, como o tráfico de drogas, o
contrabando de armas, a imigração ilegal, os crimes transfronteiras, a
poluição ambiental, a escassez das fontes de água, e os incidentes
emergentes relacionados com a saúde pública. Segundo, dado que
existem investimentos cruzados e participação cruzada de ações nas
operações comerciais, há uma crescente coincidência de interesses entre
as empresas e os Estados engajados no desenvolvimento de energia.
Como acionistas no mercado internacional de energia, todos os
participantes deverão seguir as regras comuns do jogo e agir de maneira
responsável, se querem colher o fruto de seus negócios. Significa isso
que toda ação de visão curta que venha a prejudicar os interesses alheios,
está sujeita a se voltar contra seu autor, como bumerangue, e apenas a
reciprocidade assegurará desenvolvimento sustentável e prosperidade
para todos os envolvidos.
Desafios e respostas: perspectivas da estratégia chinesa antiterror e da estratégia de
desenvolvimento de energia do além-mar
265
Finalmente, embora oleodutos de direções diferentes levem a
diferentes destinos, e pareçam, num primeiro momento, competitivos,
eles se encontram, no final das contas, interligados, formando uma
rede global de suprimento de energia que encurta consideravelmente
as distâncias dos transportes. Encarada com esta perspectiva ampla, a
cooperação internacional em matéria de energia terá futuro promissor.
Table I-1 GDP growth rate and contribution rate by country and region
Instituições formais e ações governamentais públicas, para lhes
dar forma, começaram a caracterizar a região. Os laços regionais asiáticos
já não são mais preponderantemente o produto de conexões de mercado
de baixo para cima. Pelo contrário, depois da crise, a maioria dos
governos asiáticos tem tomado medidas coletivas e individuais para
aumentar suas atividades econômicas, inclusive o aplo a uma arquitetura
regional aperfeiçoada e integrante. Também, todos os governos mais
importantes reforçaram suas reservas externas com volumes maciços. A
China agora lidera o mundo com reservas acima de um bilhão de dólares.
FTAs bilaterais e minilaterais, virtualmente inexistentes na Ásia no tempo
da crise, tornaram-se um instrumento preferido do Estado para a
provisão de controle político sobre o comércio e para o aperfeiçoamento
dos laços comerciais regionais (AGGAARWAL, 2006: PEMPEL E
URATA, 2006). Ao mesmo tempo, os governos criaram ou reforçaram
T. J. Pempel
267
Notes: 1. The woruld growth rate was calculated by the IMF using purchasing power parity weighting.
2. Each country or region’s contribution rate was calculated using 2006 prices and purchasing power parity weighting.
3. Figures may differ from those found elsewhere due to revisions, differing source data, and other factors.
4. East Asia includes the ASEAN10, China, the ROK, Hong Kong and Taiwan.
5. Developing countries are as defined by WEO (IMF).
Sources: WEO (IMF), national statistics.
268
T. J. Pempel
de verdade capaz de desviá-lo ou de lidar com suas conseqüências
devastadoras. A partir daquela época, uma série de iniciativas
governamentais começaram a mobilizar coletivamente recursos
regionais destinados a tornar menos provável qualquer crise futura.
Como conseqüência, mudou toda a natureza do regionalismo da Ásia
Oriental. Três mudanças de maiores proporções na natureza desse
regionalismo devem ser destacadas. Em primeiro lugar, no final dos
anos 90, a maioria avassaladora dos elos que ligavam
1
a Ásia era de
natureza econômica, mais do que política, e era fortemente dominada
por empresas sediadas no Japão. Em segundo lugar, as poucas
instituições formais que existiam, além e acima desses elos econômicos
e corporativos, a mais notável das quais a Associação das Nações do
Sudeste da Ásia (ASEAN), o Fórum Econômico da Ásia do Pacífico
(APEC) e o Fórum Regional da ASEAN (ARF), estavam muito
tenuemente institucionalizados e desempenhavam papéis limitados na
ligação dos vários estados entre si. Em terceiro lugar, os laços regionais
na Ásia estavam longe de ser asiáticos. Ao contrário, muitos envolviam
liames do outro lado do Pacífico com países importantes, mas
visivelmente não-asiáticos. Os mercados e os laços militares americanos
eram, particularmente, componentes críticos do regionalismo asiático
(que antecedeu a crise). O resultado foi que tal regionalismo, da forma
como existia, era muito poroso em seus limites externos e de caráter
visivelmente pan-Pacífico. Tudo isso mudou. Hoje, o regionalismo
da Ásia Oriental é tão governamental e político quanto econômico.
Um grupo de novas instituições foi criado através da Ásia,
particularmente no campo das finanças. E o novo regionalismo é mais
Chinacêntrico e exclusivamente asiático do que antes
Durante a maior parte do século XIX e a primeira metade do
século XX, o Leste da Ásia era uma porção do globo profundamente
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
269
fragmentada. O colonialismo, a Guerra Fria e os problemas
relacionados com a construção nacional fizeram com que poucos
governos da região estivessem ansiosos por estabelecer entre si laços
próximos, e a cooperação regional ampla era mínima. Os olhos dos
líderes políticos e dos negócios estavam, ao invés, voltados mais
francamente para os problemas e os mercados domésticos. A exceção
honrosa era a ASEAN, criada em 1967, e esta era apenas uma sub-
região da Ásia Oriental, mais extensa. A ausência de elos regionais
mudou como conseqüência das sucessivas ondas de investimento
estrangeiro direto (FDI), desencadeadas primeiro pelo valor ascendente
do yen japonês (com suas cotações mais altas em 1971 e 1985), e,
subseqüentemente, de ações semelhantes no estrangeiro por parte de
empresas sediadas na Coréia do Sul, em Taiwan e, eventualmente, em
Hong Kong e em Cingapura. Os investimentos corporativos,
entretanto, eram conduzidos, em grande parte, pelas decisões dos
negócios individuais, mais do que pelos acordos governamentais
(HAMILTON, 1996; KATZENSTEIN e SHIRAISHI, 1997, 2006;
PEMPEL, 2005, inter alia). Por todo o período dos anos 70, e com
velocidade crescente no início dos anos 90, cada vez maiores volumes
de investimento – porções substanciais com origem no Leste da Ásia –
teceram uma malha densa de cruzamentos de redes transnacionais de
produção, de corredores de investimento, de zonas de processamento
de exportação e de triângulos de crescimento ao longo da região. Eles,
por sua vez, geraram aumentos substanciais do comércio intra-regional
e uma escalada da interdependência econômica regional. Conforme
observado anteriormente, foram os investimentos e as corporações
que serviram como forças motrizes desses laços regionais, deixando a
institucionalização formal bem tênue, e os comandos governamentais
de cima para baixo pouco numerosos (GRIECO, 1997). Diversos
270
T. J. Pempel
órgãos anteriormente institucionalizados, inclusive a ASEAN, a
APEC, e o Fórum Regional da ASEAN, operaram na Ásia Oriental
de antes da crise, mas todos possuíam apenas um mínimo de legalização,
com quadro de pessoal muito reduzido, e, conseqüentemente, de ação
limitada para exercer firme controle sobre os governos diante de
quaisquer esforços para as disputas envolvendo os Estados-membros
(KAHLER, 2000a).
Nessa rede emergente, as corporações e o capital japoneses
ocuparam enormes posições. Uma mistura de ajuda externa, de
empréstimo bancário, de proeza tecnológica, de investimento externo
direto e poder dentro do Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB),
bem como a crença generalizada, na maior parte da Ásia, de que o
modelo de economia japonês fornecia uma réplica alternativa ao laissez
faire do capitalismo anglo-americano, contribuíram, em combinação,
para posicionar o Japão no topo incontestável da hierarquia regional
(MACINTYRE E NAUGHTON, 2005). Inquestionavelmente
Taiwan, Hong Kong e a Coréia do Sul estavam se tornando
importantes exportadores de capital na região, contribuindo para a
densidade das diversas redes de produção regional. Mas tais atividades
por parte de empresas não-japonesas eram limitadas, relegando-as a
posições secundárias, satélites da posição central ocupada pelo Japão.
Desde quando as novas políticas começaram, em 1979, o
crescimento econômico da China tinha sido fenomenal, tornando-a
segunda maior economia na Ásia, mas o PIB do Japão permanecia,
ainda, dez vezes maior, e sua renda per capita aproximadamente noventa
vezes maior do que a da China quando rebentou a crise. A China não
era, então, membro do WTO, e tinha dificuldade em assumir alguma
liderança nos desenvolvimentos econômicos na região (PEMPEL, 1999a,
p. 72), Os laços regionais asiáticos refletiam a proeminência do Japão.
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
271
Uma terceira característica da pré-crise foi a natureza Pacífico-
asiática da maioria dos órgãos que envolviam a Ásia Oriental. Os
dois exemplos mais emblemáticos do regionalismo aberto foram a
APEC (o fórum da Corporação Econômica Ásia-Pacífico) e o ARF
(Fórum Regional da ASEAN). A APEC congrega as economias de
21 membros, inclusive dois não-Estados, Hong Kong e Taiwan, além
de diversos Estados geograficamente de fora da Ásia Oriental,
incluindo-se os Estados Unidos, o Canadá, o México e a Rússia. O
ARF, por sua vez, voltado para a segurança, compreende vinte e
quatro membros, a maioria dos quais também na APEC.
Diferentemente da APEC, porém, o ARF inclui os, de outra
maneira, raramente regionalizados DPRK e a geograficamente
distante União Européia, ao mesmo tempo em que exclui, não por
engano, a asiático-oriental Taiwan. Contrastando com isso, a ASEAN
(Associação das Nações do Sudeste Asiático), com dez membros do
Sudeste Asiático foi o primeiro órgão regional (criado em 1967),
mas no contexto de hoje é visto mais como sub-regional, por não
incluir países-membros pertencentes à Ásia Setentrional. Igualmente
notável era o fato de que diferentes instituições regionais ostentavam
uma filiação porosa, e não coincidente, de membros. Os limites
exteriores de muitas das instituições regionais do Sudeste Asiático
eram, então, grandemente trans-Pacíficos, enquanto diferentes
orientações institucionais produziam afiliações distintas e não-
coincidentes.
A CRISE E SUAS CONSEQÜÊNCIAS NA REGIÃO
A crise econômica asiática atingiu a região com a força e a
velocidade dos tsunamis, apanhando a maioria das autoridades e das
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T. J. Pempel
instituições existentes despreparadas. Sem dúvida, o FMI e os Estados
Unidos demoraram muito a responder aos primeiros sinais da
crise na Tailândia, e nem a APEC ou a ASEAN agiram de forma
alguma. O Japão, ao contrário, por instigação de Sakakibara
Eisuke, então Vice- Ministro das Finanças para Assuntos
Internacionais, procurou tomar a frente na criação de uma
mobilização regional de recursos financeiros com sua proposta
de um Fundo Monetário Asiático (AMF). Esse AMF atrairia
recursos para aliviar a crise de liquidez que varria a Ásia Oriental,
com o Japão desempenhando, por muita diferença, o papel
principal. Para grande pesar do Japão, a oposição dos Estados
Unidos, da China e do FMI rapidamente desmantelou aquele
esforço (AMYX, 2004). Entretanto, uma vez baixada a poeira
política e econômica, muitos governos asiáticos permaneceram
interessados no revigoramento da proposta, com a esperança de
encontrar um mecanismo regional para mobilizar os vastos
recursos financeiros asiáticos e estabelecer laços financeiros mais
profundos ao longo da Ásia.
No mesmo sentido, os governos asiáticos também ficaram
ansiosos por criar instituições que pudessem lhes permitir maior
controle sobre as condições dentro das quais suas economias
haviam de funcionar, agora que as economias asiáticas tinham
conseguido ocupar fatias muito maiores do PIB global.
Adicionalmente, em vista da ação norte-americana durante e após
a crise, surgiu um viés preponderante no sentido de uma resposta
que fosse mais asiática do que Pacífico-asiática.
As mudanças resultantes alteraram a natureza dos laços em
todos os três fronts. Os laços econômicos através da Ásia se
aprofundaram e se expandiram. Entretanto, enquanto a presença
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
273
financeira e manufatureira do Japão tinha servido de âncora para
as redes de produção em expansão durante o período pré-crise,
sua década de desaceleração econômica, combinada com a trajetória
contínua de grande crescimento e ativo engajamento regional,
corroeram a antiga proeminência regional do Japão que não
enfrentava concorrência. Igualmente, o Sudeste da Ásia tornou-
se menos atraente como destino para o capital de investimento,
enquanto que a China rapidamente ganhou o lugar de honra como
praça econômica regional em muitas cadeias globais de produção.
Como mostra claramente a Tabela 1, a Ásia Oriental (sem o Japão)
representava uns 37% do crescimento do PIB mundial, em 2006,
e daquela cifra, exatos 29.4% representavam o crescimento da
China (enquanto o Japão, ao contrário, representava. meros 2.6%
do crescimento mundial).
O comércio intra-Ásia Oriental continua a crescer, à medida
em que os laços econômicos se expandem, saindo de
aproximadamente 43% em 1966, para 55.3% em 2005. Mas,
conforme deixa claro John Ravenhill (2008) , a maior parte desse
comércio representa um redirecionamento das redes de produção
em resposta à rápida expansão econômica chinesa e sua capacidade
de atrair novos investimentos às expensas de seus vizinhos. A
partir da crise, a China tornou-se cada vez mais atraente do que
era, como alvo do investimento regional procedente de fora; ela
é hoje o centro processador mais atraente da Ásia Oriental,
recebendo produtos de importação de muitas partes da região e
exportando-os para os países mais ricos da região bem como para
o estrangeiro. Os laços econômicos regionais também começaram
a se expandir para fora do comércio, em direção às finanças e a
outras áreas.
274
T. J. Pempel
Instituições formais e ações governamentais públicas, para lhes
dar forma, começaram a caracterizar a região. Os laços regionais asiáticos
já não são mais preponderantemente o produto de conexões de mercado
de baixo para cima. Pelo contrário, depois da crise, a maioria dos
governos asiáticos tem tomado medidas coletivas e individuais para
aumentar suas atividades econômicas, inclusive o apelo a uma arquitetura
regional aperfeiçoada e integrante. Também, todos os governos mais
importantes reforçaram suas reservas externas com volumes maciços. A
China agora lidera o mundo com reservas acima de um bilhão de dólares.
FTAs bilaterais e minilaterais, virtualmente inexistentes na Ásia no tempo
da crise, tornaram-se um instrumento preferido do Estado para a
provisão de controle político sobre o comércio e para o aperfeiçoamento
dos laços comerciais regionais (AGGAARWAL, 2006; PEMPEL E
URATA, 2006). Ao mesmo tempo, os governos criaram ou reforçaram
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
275
uma diversidade de processos e órgãos regionais, inclusive o processo
da ASEAN+3 (APT), a Iniciativa Chinag Mai (CMI), a iniciativa
Mercado de Ações Asiático (ABMI), a Organização de Cooperação de
Xangai (SCO), Cúpula da Ásia Oriental (EAS), e as Conversações do
Grupo dos Seis (SPT), para mencionar apenas algumas das manifestações
mais imediatas (PEMPEL, 2005a, 2005b). Em suma, os governos se
tornaram mais ativos e mais institucionais regionalmente em sua
abordagem da região como um todo (PEMPEL, 2005).
Com algumas honrosas exceções, o processo ASEAN+3 tem sido
o modelo predominante para boa parte da arquitetura regional
subseqüente. O formato do APT começou no meado de 1995, quando
a ASEAN se uniu à China, ao Japão e à Coréia oferecendo uma
contrapartida asiática para, juntamente com a União Européia, formar
o Encontro Ásia-Europa (ASEM). Porém, começando no início de 1997,
no auge da crise, os governos da ASEAN fizeram pressão para apoiar o
papel independente do APT, transformando-o, de uma mera série livre
de encontros entre funcionários graduados, em encontros regulares de
ministros de finanças e economia, e, eventualmente, criando um encontro
anual de chefes de Estado. Essa cúpula de treze nações tornou-se, desde
então, a mais importante máquina de promoção da cooperação regional
numa variedade de problemas regionais.
Finalmente, o novo dinamismo do regionalismo da Ásia
Oriental mudou de preponderantemente abertos e de natureza
Pacífico-asiática, para laços que são mais fechados, com afiliação mais
freqüentemente restrita apenas a asiáticos. A APEC pan-Pacífica
tornou-se moribunda após a crise; o ARF tem sido incapaz de criar
algo que se aproxime de uma comunidade de segurança regional que
vá além de medidas limitadas para conquistar confiança. Contrastando
com isso, desde a crise tem sido predominantemente os países do APT
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T. J. Pempel
que têm estado no centro dos novos laços regionais. O APT foi a
força motriz por trás do CMI e da EAS; dos onze países do EMEAP
(Encontros Executivos dos Bancos Centrais do Pacífico Asiático
Oriental) que levaram a ABMI a excluir os das partes orientais do
Pacífico (p. ex., os Estados Unidos, o Canadá e outros membros da
APEC). O CMI foi também o mecanismo que desencadeou a Rede
Via-2 de Formuladores de políticas (NEAT) formada na esteira da
crise financeira. A exceção mais notável a esse modelo de exclusividade
têm sido as FTAs: muitas delas têm sido exclusivamente asiático-
orientais, mas quase outro tanto envolve elos com Ásia Oriental e
com Estados não pertencentes à Ásia Oriental. Além disso, mas
claramente sem relação alguma com a crise em si mesma, as
Conversações do Grupo dos Seis, que lida com o programa nuclear
da DPRK (República Democrática e Popular da Coréia) representam
um novo processo regional que inclui os Estados Unidos.
Levando tudo em consideração, então, a arquitetura regional
da Ásia Oriental tornou-se, inquestionavelmente, mais abrangente,
densa, e mais controlada pelo Estado do que antes de irromper a crise.
A CHINA E A REGIÃO
A crise causou um impacto particularmente forte nos líderes
chineses. Como mostra Steinberg (2008), uma das mais importantes
conclusões a que eles chegaram foi a necessidade de acelerar as ações
afastando-as do socialismo de estado em busca de maior integração
nos processos econômicos globais.
Da mesma forma, e tão importante, eles foram rápidos em
mostrar um novo entusiasmo pelo regionalismo na esteira da crise.
Pela maior parte do período pós-guerra, a China tinha estado cética
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
277
em relação a qualquer abordagem da região como uma coletividade,
em vez de dar preferência ao avanço dos interesses chineses através da
combinação de relações bilaterais e de instituições globais. Com a crise
econômica e a adesão da China à OMC, em 2002, entretanto, o País
começou a reconhecer explicitamente quanto o vigor regional poderia
aumentar a influência da China. Edward Friedman (2006, p. 126)
efetivamente argumenta que a adoção do regionalismo por parte da
China deveu-se grandemente ao fato de ter visto os esforços do bloco
Estados Unidos-Japão para criar um mecanismo financeiro asiático
para amenizar tais crises. O CCP, conclui Friedman, determinou que
a cooperação financeira regional poderia desafiar a hegemonia
americana, bem como repelir a influência do Japão. Desde então, a
China tem sido atuante na apresentação de propostas ao CMI, ao
mercado asiático de ações e ao Encontro de Cúpula da Ásia Oriental.
Tem sido também excepcionalmente atuante numa variedade de
empreendimentos diplomáticos do Via II, como o CSCAP e o
NEACD – tipicamente fazendo forte lobby por trás dos bastidores
para definir as agendas e redigir as conclusões dos relatórios de ambos.
Tem sido também a primeira organizadora dos Formuladores de
Políticas da Ásia Oriental, que tiveram início por causa do relatório
do EAVG para o APT.
A reforçada musculatura econômica da China permitiu-lhe
desempenhar um papel influente na tarefa de dar forma às instituições
econômicas regionais (SHAMBAUGH, 2005, p. 7). Mais de metade
do volume total de comércio da China é dentro da região da Ásia
Oriental. O País está bem posicionado como principal plataforma
exportadora de bens acabados para mercados norte-americanos e
europeus. Ultimamente, tem sido a locomotiva solitária do mercado
intra-regional e a maior depositária do FDI regional. Igualmente, a
278
T. J. Pempel
maior parte do FDI que entra se origina na Ásia Oriental, enquanto
a China está também tornando-se uma exportadora de FDI para o
restante da região.
Um dos mais importantes sucessos da China em combinar seu
poder econômico com sua estratégia regional veio com sua proposta,
no Encontro de 2000 da ASEAN, de uma FTA ASEAN-China. Essa
proposta ajudou a passar a imagem de que a ascensão da China podia
gerar uma cooperação econômica win-win com o Sudeste da Ásia no
que poderia vir a ser um mercado de 1.7 bilhão de pessoas. O que é
muito importante, os negociadores chineses ofereceram uma safra
imediata de tarifas mais baixas para os produtos agrícolas procedentes
do Sudeste da Ásia em direção à China. Visto que as exportações
agrícolas são tão importantes para as estratégias de crescimento da
maioria dos países do Sudeste da Ásia, particularmente para seus
membros mais recentes, a manobra chinesa foi particularmente hábil
do ponto de vista político. O Primeiro-Ministro Japonês Koisumi,
foi, no mesmo encontro, pego desprevenido, e apenas pôde propor
discussões sobre uma parceria econômica abrangente, que não aconteceu
antes de 2007 (e que excluía quaisquer concessões em matéria de
liberalização por parte do Japão). O hábil lance chinês produziu
imediatamente resultados, visto que o comércio da ASEAN com a
China deu um salto de 60% em relação a 2004 (WEATHERBEE,
2006, p. 275). Além do mais, isso ressaltou até onde o Japão, os Estados
Unidos e a Coréia, embora mais ricos, foram impedidos de fazer
manobras semelhantes, devido ao poder de seus lobbies agrícolas
domésticos no contexto de sistemas políticos democráticos.
Fora do Sudeste Asiático, um dos maiores sucessos chineses
veio da instituição de laços intra-regionais com a ROK. Apesar da
velha amizade da China com a Coréia do Norte, ela normalizou as
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
279
relações com o sul em 1992, anunciando uma parceria de cooperação
abrangente. Desde então, e com crescente velocidade após a crise, os
dois países têm cooperado em matéria de comércio, investimento,
turismo, intercâmbio educacional e cultural, além de outras áreas.
Em 2003, a China superou o maior mercado de exportação dos Estados
Unidos e da Coréia do Sul, e foi o destino número um das remessas
coreanas de FDI.
Igualmente importante tem sido o aumento dos laços entre
Taiwan e a RPC. Hoje, a China compra aproximadamente 40% das
exportações de Taiwan, e tem, desde 2002, mais da metade de seu FDI
injetado na China (ROSS, 2006, p. 143). Aproximadamente meio
milhão de taiwaneses agora vivem no continente, e as duas economias
estão se tornando cada vez mais entrelaçadas. É importante observar
que essas relações são, em sua maior parte, bilaterais, e não regionais
por natureza, embora os produtos oriundos de fábricas de propriedade
taiwanesa na RPC freqüentemente penetram em outros mercados
asiáticos. Mas as políticas de ambos os governos têm sido pelo menos
tão contrárias ao aprofundamento dessa integração quanto o têm as
forças do mercado em geral
Tão entusiástico apoio chinês ao regionalismo econômico e
financeiro tem sido grandemente no contexto de um regionalismo
para “asiáticos apenas”,que deveria agir para limitar a influência dos
Estados Unidos na região. Por isso, a China ter preferido o APT e a
EAS a órgãos pan-Pacíficos como a APEC.
Mas, é igualmente importante [observar] que a China tem evitado
apoiar quaisquer órgãos regionais que façam uma de duas coisas –
desafiar sua soberania em matéria de defesa e segurança, e, de uma
forma com isso relacionado, permitir que Taiwan se associe a qualquer
órgão regional.
280
T. J. Pempel
A China tem sido a favor apenas de Medidas que Estabelecem
Confiança dentro do ARF, mas tem resistido a manobras por parte
de países do Sudeste Asiático para expandir as atividades do ARF
para abranger diplomacia preventiva ou solução de conflitos. Ao mesmo
tempo, a pronta anuência da China a um Código de Conduta nos
Mares do Sul da China, e de um iminente engajamento no Fórum
Regional da ASEAN e de outras instâncias, diminuíram as tensões
que um dia marcaram as relações de segurança entre a China e o Sudeste
da Ásia (TAY, 2006, p. 7).
Além disso, a China tem sido irredutível em sua decisão de
impedir a participação taiwanesa, governamental ou através de ONGs,
nos órgãos regionais (e globais), uma posição nitidamente anti-regional,
Com ainda maior vigor, desde a crise e do sucesso eleitoral do DPP
em Taiwan, a China tem procurado isolar Taiwan de qualquer e de
todos os fóruns internacionais e regionais, até mesmo daqueles que
não exigem a condição de Estado para filiação, além de se opor à
assistência regional taiwanesa em assuntos que digam respeito a saúde
pública e a ajuda em caso de calamidade (FRIEDMAN, 2006, p. 129-
30).
Dois outros órgãos regionais, ambos no campo da segurança,
mais do que no econômico, devem à China sua existência e boa parte
do sucesso que alcançaram. Em primeiro lugar, o Conversações do
Grupo dos Seis, destinado a lidar com a crise nuclear na Península da
Coréia, tem estado sob a presidência da China desde o início. A decisão
de abordar o problema nuclear através do Conversações do Grupo
dos Seis foi uma vitória marcante do multilateralismo sobre o
bilateralismo e para a negociação sobre confrontação.Conquanto os
primeiros estágios das conversações tenham visto pouca negociação
de fato, a assinatura da Declaração Conjunta da Quarta Rodada das
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
281
Conversações do Grupo dos Seis, em Pequim, em 19 de setembro de
2005, proporcionaram um grande avanço no processo de há muito
emperrado, e estabeleceram as condições básicas para uma eventual
solução do problema.
O processo multilateral, que havia começado em agosto de 2003,
parecia estar produzindo resultados positivos quanto ao abrandamento
das posições de confronto de ambos, Estados Unidos e República
Democrática Popular da Coréia . O processo também ganhou força
quando os Estados Unidos demonstraram (em respostas às pressões
tanto do Japão quanto da China) uma disposição explícita de reverter
sua posição anterior de obstinada fidelidade às suas exigências de que
a República Democrática Popular da Coréia entregasse todos os
dispositivos relacionados com armas nucleares como pré-requisito para
as negociações de verdade, e , ao invés, engajaram o Norte num
intercâmbio substancial.
Então, no início de julho de 2006, a República Democrática
Popular da Coréia fez testes com uma série de mísseis que provocaram
uma forte resolução de condenação por parte do Conselho de Segurança
das Nações Unidas. Em 9 de outubro, a República Democrática
Popular da Coréia realizou um verdadeiro teste nuclear, e, em menos
de uma semana, o Conselho de Segurança das Nações Unidas fez passar
unanimemente uma resolução ainda mais forte condenando suas ações.
Ela prometeu um segundo teste logo depois Nos meados do outono
de 2006, as complicadas e coincidentes alianças no Grupo dos Seis,
que tinham caracterizado os três primeiros anos de negociações, haviam
mudado para um alinhamento de cinco contra um, com os Estados
Unidos, a China, o Japão, a República da Coréia e a Rússia apoiando
a resolução e concordando em impor diferentes níveis de sanções contra
o comércio, viagens e transporte da República Democrática Popular
282
T. J. Pempel
da Coréia (além das sanções formais sobre o comércio de uma variedade
de quaisquer bens tecnológicos e artigos de luxo (entrevistas
confidenciais com participantes indicam que a China aparentemente
suspendeu certa assistência militar à República Democrática Popular
da Coréia, não perceptível nas estatísticas típicas de comércio, como
forma de exprimir seu descontentamento com o comportamento do
Norte)).
Acontecimentos recentes sugerem um movimento real tendente
à solução dos muitos problemas que as conversações têm ressaltado.
Numerosos pontos de fixação poderiam facilmente impedi-los de
eventualmente alcançar esse objetivo de uma completa e verificável
desnuclearização da Península da Coréia, e da normalização das
relações entre a República Democrática Popular e seus vizinhos
(inclusive os Estados Unidos), e das relações bilaterais, inclusive as
entre o Japão e República Democrática Popular da Coréia, bem como
entre esta e a República da Coréia. Mas todos os participantes tiveram
pressa em indicar que a hábil e às vezes forte liderança da China tem
tido atitude crítica a qualquer sucesso que eles tenham obtido até
agora.
Um outro fórum regional de segurança merece menção, isto é,
a Organização de Cooperação de Xangai (SCO)(OCX), embora ela se
encontre geograficamente fora da Ásia Oriental. Mas com a Rússia e
a China como dois de seus membros centrais, vale a pena observar, ao
menos brevemente, que a SCO começou em 1996 (como os Cinco de
Xangai) e foi lançada com seus atuais seis membros em 15 de junho de
2001. A SCO tem seu foco na segurança militar interna. As forças
militares dos seis membros têm feito exercícios conjuntos anualmente,
ao mesmo tempo em que tem ocorrido também acordo sobre
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
283283
cooperação econômica, particularmente no campo da energia (website
da SCO em http://www.sectsco.org/html/00026.html) .
A SCO preocupa-se, em primeiro lugar, como o Conversações
do Grupo dos Seis, com problemas de segurança, especificamente
identificados como terrorismo, separatismo e extremismo. Seus
estatutos explicitamente estabelecem que ´”não é uma aliança dirigida
contra outros Estados e países regionais, e adere aos princípios da
abertura”. Não obstante, isso traz como conseqüência dificultar para
os Estados Unidos ou os países da OTAN, atualmente envolvidos
militarmente no Afeganistão, pensar tão facilmente em ulteriores ações
na Ásia Central. Fornece, também, uma possível resposta aos avanços
dos Estados Unidos no emprego de seus sistemas de defesa com mísseis.
Tanto o Conversações do Grupo dos Seis quanto a SCO
fornecem exemplos no campo da segurança da China tomando
audaciosas iniciativas institucionais multilaterais para resolver
problemas potenciais que lhe dizem respeito, mas também que dizem
respeito (e nem tão proximamente) aos países vizinhos.
E em combinação com as diferentes atividades em que se
envolveu, em matéria de comércio e indústria, parece claro que a China
está ansiosamente assumindo uma posição de liderança na região da
Ásia Oriental.
CONCLUSÃO
Este ensaio procurou examinar a cambiante arquitetura regional
na Ásia Oriental a partir da crise de 1997-98 e o papel desempenhado
pela China naquelas mudanças. Ressaltou os importantes movimentos
em direção à institucionalização regional em matéria de economia e
de finanças como esforços para mobilizar os ativos coletivos regionais
284
T. J. Pempel
para afastar qualquer reincidência da crise anterior. Em seguida à crise,
e em grande parte como resposta ao que era percebido como exagerada
intervenção do FMI, os governos da Ásia tomaram uma série de
medidas destinadas a prevenir qualquer recorrência. Muitas dessas
manobras foram mais simbólicas do que reformadoras do mercado: o
CML, o ABF e ABML, por exemplo. Além disso, os governos,
inclusive o da China, expandiram grandemente seus fundos de reserva
estrangeiros e deram início a uma série de acordos bilaterais e
minilaterais, muitos dos quais estão exercendo impactos significativos
no mercado. E, coisa pelo menos tão importante quanto, os governos
asiáticos começaram a se encontrar regularmente nesses e em outros
fóruns, como a EAS, para encontrar formas de cooperação em assuntos
financeiros e outros. Tudo isso sugere um potencial considerável para
a futura institucionalização regional. Na maioria dos casos, essas novas
iniciativas regionais excluíram a participação dos Estados Unidos
(embora isso não seja verdade no caso de alguns FTAs, nem no das
organizações regionais existentes, como ARF e APEC). Em tudo isso
a China tem sido uma atuante e regular pautadora de agenda, e suas
ações progrediram no sentido de reforçar seu papel como uma líder
regional (e eventualmente, como no Conversações do Grupo dos Seis,
global)).
A ascensão da China foi constante e abrupta. O fato de ela ter
optado por abordagens, a seus vizinhos, em geral pacíficas, regionais
e multilaterais, deve ser muito aplaudido. Até agora a China tem
mostrado pouco desejo de forçar a barra sobre seus vizinhos, acedendo,
com freqüência, por exemplo, à liderança nominal da ASEAN, ou
menosprezando sua própria habilidade para influenciar o
comportamento da República Democrática Popular da Coréia.
Conquanto tal comportamento de forma alguma garanta
A China e o Emergente Regionalismo Asiático
285
semelhantemente ações benévolas daqui a uma década ou duas, aqueles
que se preocupam com a ascensão de uma China ansiosa por subverter
a ordem ou enveredar pelo progresso de seus interesses pela via militar,
podem, talvez, ficar tranqüilos, a julgar por sua atual trajetória.
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T. J. Pempel
289
Até o início da década de 80, regionalismo era um conceito que
encontrava pouca aplicabilidade na Ásia. Exceção feita à ASEAN
(Associação das Nações do Sudeste Asiático), criada em 1967 por cinco
países de pequena projeção política e econômica na época – Indonésia,
Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia
1
– que buscavam proteger
seus territórios da disputa entre as grandes potências. Os casos de
aproximação interestatal no continente eram não apenas escassos, como
também pouco coesos. Mesmo durante o período de influência
japonesa no pós-Guerra – decisivo para definir o modelo nacional-
desenvolvimentista que norteou a condução de algumas economias
no leste asiático (notadamente Coréia do Sul e Taiwan) –, o Japão
pouco contribuiu para a formação de processos regionalistas que
levassem à integração econômica e à cooperação em temas políticos
ou de segurança entre as décadas de 60 e 80. Como resultado desta
falta de ímpeto para os projetos regionalistas, até 2000, quando a região
já estava empenhada em diversos planos de integração, China, Japão e
Coréia do Sul eram as únicas economias, dentre as 30 maiores do
mundo, que ainda não participavam de nenhuma área de livre comércio
e não tinham concluído acordos bilaterais.
1
Hoje outros cinco países também compõem o bloco (Vietnã, Laos, Camboja, Brunei
e Myanmar), totalizando dez nações-membro.
A POLÍTICA REGIONAL DA CHINA E OS
PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO NA ÁSIA
Isabela Nogueira
290
Isabela Nogueira
Foi somente no final dos anos 80 que o leste asiático, apesar de já
estar incluído em grande parte dos foros multilaterais, passou a ocupar-se
também da integração regional. No curto espaço de pouco mais de uma
década, o regionalismo asiático passou por dois períodos distintos de
impulso no seu processo de consolidação, catalisados pela emergência da
China e pela crise asiática.
O primeiro impulso regionalista na Ásia ocorreu na virada da
década de 80 para a de 90, quando os desapontamentos com os mecanismos
multilaterais de comércio – paralisados por conta da relutância dos países
desenvolvidos em liberalizar a agricultura e abrir o setor têxtil – e o impulso
na formação ou fortalecimento de outros blocos de cooperação econômica
– como o Mercosul, Pacto Andino, União Européia e o surgimento do
NAFTA – levaram o Primeiro-Ministro da Malásia, Mahathir Mohamed,
a propor a integração político-econômica do nordeste com o sudeste
asiático, num foro chamado de East Asia Economic Cooperation (EAEC).
No entanto, uma vez que excluía do debate regional os Estados Unidos,
a proposta da Malásia sofreu forte oposição de Washington e jamais
avançou. No seu lugar, surgiu a APEC (Cooperação Econômica da Ásia-
Pacífico), um bloco mais amplo, que ligaria os países asiáticos aos da América
banhada pelo Pacífico.
Na segunda fase deste impulso regionalista, já na segunda metade
da década de 90, além novamente dos impasses nas rodadas multilaterais
de negociação – cujo ápice foi a Conferência Ministerial de Seattle, de
1999 –, a crise asiática (1997-98) transformou-se num dos maiores
propulsores do regionalismo na região, ao expor a necessidade de criação
de mecanismos próprios que gerenciassem crises e suprissem o papel
considerado insatisfatório dos organismos multilaterais. Desta vez, assiste-
se não só aos primeiros acordos comerciais bilaterais envolvendo o leste
asiático, mas, especialmente, à ambiciosa proposta de integração econômica
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
291
entre a ASEAN, Japão, China e Coréia do Sul, um processo conhecido
como ASEAN + 3.
Pouco antes deste rápido envolvimento econômico da região,
mudanças na conjuntura geopolítica internacional serviram de pano de
fundo à cooperação político-estratégica. Terminada a Guerra Fria, além
da recomposição do relacionamento sino-soviético, as tropas norte-
americanas e soviéticas promoveram uma saída paulatina da região. Com
o fim dos cordões de contensão que impediam o avanço de qualquer uma
das partes na Ásia, os problemas de segurança para a ASEAN migraram
quase que exclusivamente para as tensões e disputas que envolvessem a
China, potência emergente e com a qual diversos países nutrem disputas
em torno das ilhas Spratly. É neste contexto que a ASEAN mobiliza-se
para a construção do primeiro foro de cooperação estratégica da Ásia: o
Foro Regional da ASEAN (ARF), uma tentativa de engajar as potências
na segurança regional.
Estes processos concomitantes de integração econômica e política
na Ásia vieram acompanhados do robusto crescimento econômico e
modernização da China. A partir de 1978, com a descoletivização da
agricultura, criação de áreas econômicas especiais para captação de
investimentos e tecnologia e uma seqüência de reformas as quais não nos
cabe reconstruir aqui, a economia chinesa passou a crescer, em média,
9,4% ao ano durante as duas décadas seguintes. Paralelamente, o
relacionamento econômico da China com os vizinhos asiáticos cresceu
igualmente a taxas expressivas. O objetivo do presente artigo é, justamente,
avaliar as mudanças que o rápido crescimento chinês e a inserção
internacional do País trouxeram para o regionalismo asiático, em especial
a partir da última onda de rápido desenvolvimento do regionalismo na
região, na segunda metade da década de 90. Dado o grande número de
atores e as diferentes dinâmicas envolvidas no regionalismo na Ásia, iremos
292
Isabela Nogueira
focalizar nossa análise no caso da ASEAN, foro regional mais antigo,
exclusivamente asiático, e em torno do qual se têm organizado as iniciativas
regionalistas mais ambiciosas da Ásia, notadamente o ARF, ASEAN + 3
e as diversas propostas de livre comércio com a ASEAN.
Este artigo está dividido em cinco partes, além desta introdução.
A primeira ocupa-se da caracterização do regionalismo asiático,
destacando o forte princípio da soberania e da não-intervenção, seu
caráter reativo e o efeito da crise asiática. A segunda parte reconstrói
alguns aspectos da política externa chinesa, com destaque para o
relacionamento com a ASEAN, e avalia a verticalização produtiva em
curso na Ásia, tendo a China como ponto focal. A terceira parte avalia
os blocos de caráter econômico, como a área de livre comércio entre
China e ASEAN, além da ASEAN+3 e a Iniciativa Chiang Mai. E a
quarta parte acompanha a evolução da cooperação político-estratégica
entre China e ASEAN por meio de estudos de caso como o ARF. A
parte cinco sumariza algumas das principais conclusões.
1. REGIONALISMO ASIÁTICO: CARACTERÍSTICAS E
ELEMENTOS CATALISADORES
O leste asiático é uma região em que a presença e os interesses
da maioria das grandes potências se encontram, política e fisicamente.
A freqüência e intensidade das interações entre eles, bem como suas
influências nos países da região, têm um efeito direto nas realidades
políticas. Por conta disso, os pequenos países da região não têm
qualquer esperança de trazer algum impacto neste padrão de influência
dominante das grandes potências, a não ser que ajam coletivamente e
desenvolvam seus objetivos comuns. É nesse sentido que a cooperação
regional da ASEAN representa também um esforço consciente de
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
293
seus países-membros de tentarem reafirmar sua posição e contribuir
com seus próprios conceitos e objetivos no processo de estabilização
de um novo equilíbrio de poder na região.
2
A ASEAN foi criada com base num princípio defensivo, uma
vez que buscava, por meio do agrupamento de pequenas nações no
sudeste asiático, ganhar algum peso político que evitasse disputas entre
as grandes potências (Estados Unidos, União Soviética e China) dentro
dos seus territórios. A autonomia dos pequenos países do sudeste
asiático parecia ameaçada pela política de contenção ao comunismo
empregada pelos Estados Unidos, conforme ficara evidente na guerra
do Vietnã, e, especialmente, pelas mudanças geopolíticas em curso,
com a emergência das rivalidades entre chineses e soviéticos. A idéia
por trás da pretensão de se estabelecer um regionalismo centrado na
ASEAN era, segundo Acharya (2001), não exatamente prevenir que
as grandes potências interviessem nos assuntos internos da região, mas
contribuir para que seus interesses fossem levados em consideração
quando as grandes potências fizessem suas escolhas.
Além do caráter reativo, o regionalismo na Ásia tem como forte
característica o princípio da não-intervenção em questões internas,
princípio este que esteve presente desde a fundação da ASEAN, em
1967, até seu desdobramento mais recente, com a criação de uma área
de livre comércio com a China. De maneira formal, a não-intervenção
ficou clara no Tratado de Amizade e Cooperação, assinado em 1976,
em Bali, que definiu os princípios para o bloco.
3
A intenção do tratado
2
Malik, Adam (1975). “Regional Cooperation in International Politics”, in Regionalism
in Southeast Asia. Jacarta: CSIS, citado por Acharya, op. cit.
3
São eles: 1 – Respeito mútuo pela independência, soberania e integridade territorial de
todas as nações; 2 – Direito para que todos os Estados orientem sua existência interna
livres de interferências externas e coerção; 3 – Não-interferência nos assuntos internos;
4 – Resolução de disputas e diferenças de uma maneira pacífica; 5 – Renúncia ao uso da
força para solucionar questões internas. Disponível em: http://www.aseansec.org/
294
Isabela Nogueira
era reforçar o princípio da não-intervenção tanto para potências fora
do bloco (notadamente Estados Unidos, União Soviética e China)
como também para os próprios membros da ASEAN.
Na prática, o princípio da não-intervenção na Ásia tem sido
aplicado com freqüência por meio da recusa dos países-membro em se
manifestar sobre ações de outros governos. A não-intervenção também
prevê o apoio exclusivo ao governo oficial dos países vizinhos, sem
possibilidade de defesa ou manifestação de apoio a grupos separatistas
que busquem desestabilizar o governo de outro país. Exemplos de
aplicação deste princípio são a não-resposta da ASEAN à repressão
militar contra movimentos pró-democracia na Tailândia em 1992 e a
entrada de Myanmar na ASEAN em 1997, apesar das pressões
ocidentais quanto à legitimidade do regime político.
O impulso recente que vamos analisar neste artigo no
regionalismo asiático não é um caso isolado; ao contrário, insere-se
em um contexto global de redefinição das tendências regionalistas.
Desde meados da década de 80, o ressurgimento destes esquemas
regionalistas pelo mundo levou autores como Hurrell e Fawcett (1996),
Palmer (1991) e Rosecrance (1991) a concluir que um novo formato
de organizações regionais, cuja intensidade só poderia ser comparada
à “onda regionalista” da década de 60, estava se formando. Pouco
antes do fim da ordem mundial polarizada, velhas instituições regionais
de caráter político reemergiram
4
e alguns agrupamentos de segurança,
ainda que pouco institucionalizados, foram criados.
5
Nas Américas, é
também ao longo da década de 80 que são criados esquemas de
cooperação ou integração econômica, como o Mercosul, Pacto
4
Hurrell (1995) cita o caso da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da
Organização da Unidade Africana (OUE).
5
Como a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) e o Fórum
Regional da Associação das Nações do Sudeste Asiático (FRA).
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
295
Andino, Comunidade e Mercado Comum do Caribe (Caricom). Já
os esquemas macroregionais de bloco – com o fortalecimento da União
Européia e o surgimento do NAFTA, ligando Estados Unidos, México
e Canadá – proliferam as áreas de livre comércio no mundo
desenvolvido. E por fim, na Ásia, há o expressivo avanço do mais
amplo acordo já posto em prática na região: a APEC (Coordenação
Econômica da Ásia e do Pacífico), que se estende da Austrália até o
Japão. Em suma, o processo de fortalecimento de agrupamentos
regionais asiáticos não está restrito ao continente, mas se insere em
iniciativas que se repetem mundialmente e que figuram o surgimento
do “novo regionalismo” em escala global.
A onda regionalista no leste asiático experimentou seu primeiro
ápice no final dos anos 80 como conseqüência de fatores globais e,
principalmente, regionais. Os receios quanto à estabilidade do regime
global baseado no GATT, a falha das negociações do Uruguai e a
criação do NAFTA em 1994 podem ser entendidos como estímulos
adicionais para a criação da APEC e para o aumento da cooperação na
ASEAN. No entanto, os dois principais acontecimentos associados à
segunda e mais forte onda do regionalismo são a emergência chinesa,
que discutiremos na seção seguinte, e a crise financeira asiática do
final de 1997, fato recente que mais contribuiu para dar impulso ao
regionalismo e para promover o desenvolvimento dos acordos de livre
comércio com a ASEAN, o projeto regional que mais interessa à China.
Desde 1997, como impacto da crise financeira, os governos dos
países asiáticos estão empenhados em uma colaboração regional sem
precedentes em termos financeiros e de comércio por conta da resposta
insatisfatória do Ocidente à crise e das ingerências do FMI nas
economias locais (compartilham dessa visão MOORE, 2004;
RAVENHILL, 2002; HAACKE, 2002). Os autores concordam que
296
Isabela Nogueira
três subprodutos da crise terminaram por alterar a forma como o
regionalismo asiático está sendo formatado. Em primeiro lugar, causou
insatisfação entre os asiáticos a postura norte-americana de anexar aos
pacotes do FMI de ajuda financeira uma série de condicionantes sobre
como os países afetados deveriam conduzir sua política
macroeconômica, comércio exterior e controlar os capitais externos.
O mesmo vale para a performance considerada insatisfatória das
instituições econômicas internacionais como FMI, mais dispostas a
anexar dispositivos sobre obrigações às contribuições do que a prevenir
ou atenuar efeitos das crises. Em segundo lugar, também causou muita
indisposição entre líderes asiáticos o discurso dos organismos oficiais,
em especial Banco Mundial e FMI, que apontaram como causa da
crise o modelo de desenvolvimento fortemente estatal empregado pela
maioria dos países da região. A postura dos organismos internacionais,
endossada por muitos economistas liberais norte-americanos, foi vista
como outra tentativa de ingerência nas economias asiáticas. E, por
fim, os governos asiáticos também ficaram desapontados com a reação
das instituições regionais existentes à época da crise, fundamentalmente
APEC, o mais amplo fórum regional da época.
A seqüência de exigências norte-americanas e do FMI para
conceder os empréstimos reforçou a percepção de que os governos
asiáticos não possuíam qualquer mecanismo bem articulado para se
protegerem contra decisões unilaterais da potência hegemônica em
momentos de crise. As tentativas do Japão nesse período, para
promover o uso do iene na região, podem ser vistas como um destes
esforços para oferecer alternativas à liderança norte-americana no
campo financeiro. Para Ravenhill, a proposta japonesa de criação de
um Fundo Monetário Asiático é o melhor exemplo desta tentativa de
se construir uma coalizão regional que balanceasse o poder financeiro
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
297
norte-americano (discutiremos a questão mais adiante). Dentre as
condicionantes para conceder ajuda financeira, a que causou maior
desconforto entre os asiáticos foi a pressão para aumento do livre
trânsito de capitais. O Tesouro norte-americano, na figura do então
secretário Lawrence Summers, defendia que o capital deveria ser livre
para mover-se para os lugares e para as atividades onde sua utilização
seria mais eficiente. Um mercado não regulado, para os liberais como
Summers, puniria por si só os investidores e credores que falhassem
na busca por um comportamento econômico mais prudente.
Economistas como Milton Friedman, George Schultz e Willian Simon
também defendiam que se os investidores internacionais percebessem
que não haveria um plano especial para resgatá-los da crise, teriam
mais cuidado ao definir onde investir o seu dinheiro (GILPIN, 2001,
p. 271-274).
Além das exigências atreladas aos pacotes de ajuda, os organismos
internacionais (notadamente FMI e Banco Mundial) e o governo
Clinton passaram a defender que os países do leste asiático deveriam
adotar um modelo baseado no livre mercado e uma intervenção mínima
do Estado na economia. Os liberais apregoavam que o modelo
nacional-desenvolvimentista asiático teria levado a pelo menos três
distorções, que por sua vez teriam gerado a crise: 1 – laços íntimos
entre políticos locais, bancos e indústrias; 2 – atuação única do sistema
bancário no financiamento da produção, sem ajuda do mercado de
capitais; 3 – ausência de transparência nos acordos financeiros
envolvendo governo, empresas e bancos. As provocações dos liberais
reacenderam um debate que já havia sido iniciado no começo da década
de 90 sobre o modelo asiático de desenvolvimento e o controle de
capitais. Em seu relatório anual sobre desenvolvimento (World
Development Report) de 1992, o Banco Mundial apontou que não
298
Isabela Nogueira
havia qualquer “milagre” no desempenho das economias asiáticas. Ao
contrário, o rápido crescimento se justificaria pelas políticas pró-
mercado destes países, que garantiram altas taxas de poupança e
investimento, educação e uma política macroeconômica bastante
prudente. Mais especificamente, as economias asiáticas teriam seguido
uma política macroeconômica de baixos déficits fiscais, inflação
controlada e déficit externo em níveis modestos. Além disso, o
crescimento baseado nas exportações teria promovido eficiência ao
garantir que a produção doméstica atendesse aos padrões internacionais
de qualidade e tecnologia, o que por sua vez teria ajudado a elevar a
produtividade. Os críticos do relatório e muitos economistas asiáticos
(em especial, os japoneses se posicionaram contra a visão do Banco
Mundial) apontaram que o diagnóstico apresentado era parcial e
ilustrava apenas um segmento do pensamento econômico. O debate
estendeu-se ao longo dos anos e foi ainda mais inflamado pelas novas
críticas dos organismos internacionais depois da crise asiática.
Como terceiro resultado da crise, o ritmo de evolução dos dois
principais blocos regionais, notadamente APEC e ASEAN, alterou-
se profundamente. A percepção geral, segundo Ravenhill, era de que
a APEC, o bloco até então escolhido para ser o foro regional mais
relevante da Ásia, não teria condições de atender às demandas restritas
dos países asiáticos, conforme teria ficado claro no pós-crise. Como
conseqüência dos efeitos da crise, a APEC foi marginalizada e os
governos do leste asiático estão concentrando seus esforços ou em
acordos bilaterais ou na ASEAN + 3, que exclui toda a Oceania e os
países da América do Norte e do Sul presentes na APEC. O bloco do
Pacífico, que no começo dos anos 90 parecia avançar consideravelmente
em função da adoção de reuniões anuais e de um cronograma de
implementação de uma zona de livre comércio, enfrentava problemas
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
299
desde 1995. A partir deste ano, Japão e Estados Unidos agravaram
suas divergências sobre qual seria o ritmo de liberalização em
determinados setores (causaram divergências especialmente pesca e
madeireiro) e mesmo durante a crise asiática o bloco continuou
centrado e ocupado exclusivamente com os temas de liberalização
comercial. A postura irritou governos asiáticos afetados pela crise,
que passaram a culpar os países membros ocidentais pelo foco restrito
aos debates sobre liberalização.
6
Na visão de Ravenhill, ainda que os
pronunciamentos de líderes da APEC tenham mostrado alguma
sensibilização pelos efeitos da crise, o bloco não forneceu soluções de
financiamentos alternativos ou propostas de recuperação dos países
afetados que fossem além do apelo para aumento da liberalização e
desregulação de suas economias.
2. A PERSPECTIVA CHINESA: OPÇÕES ESTRATÉGICAS E
ARRANJOS PRODUTIVOS REGIONAIS
Em paralelo ao esvaziamento da APEC, são diversos os autores
que convergem para a visão de que a cúpula do partido comunista
chinês fez uma escolha estratégica em favor do fortalecimento da
ASEAN e suas variações em detrimento de um regionalismo baseado
no foro do Pacífico.
7
A opção chinesa vai ao encontro de tendências
regionais recentes de fortalecimento de blocos na Ásia que excluam
6
A questão sobre quais prioridades os líderes da APEC deveriam perseguir é motivo de
grande divergência entre os membros. De um lado, os membros ocidentais e alguns
aliados como Cingapura e Hong Kong defendem que a liberalização comercial deveria
ser o mote de atuação da APEC. De outro lado, a maior parte dos membros do leste
asiático acredita que a APEC deveria dar prioridade a duas questões fundamentais:
facilitação do comércio entre membros e cooperação técnica. Para mais detalhes, ver
Ravenhill (1996).
7
Compartilham desta visão Haacke, Ravenhill e Moore, todos op. cit.
300
Isabela Nogueira
nações e orientações ocidentais, e justifica-se, para Moore, em diversos
fatores. Primeiro, em função da sua composição, uma vez que na
ASEAN + 3 estão ausentes, na forma de representação própria, tanto
Taiwan quanto Hong Kong, ambos representados separadamente da
China na APEC. Além disso, Estados Unidos, Austrália e Nova
Zelândia também estão excluídos da ASEAN + 3, isso sem contar os
países da América Latina e a Rússia, todos também membros da APEC.
No entanto, apesar do seu apoio à formação da ASEAN + 3, a
China está claramente concentrando seus esforços na formação de
uma área de livre comércio exclusiva com o bloco (ASEAN com China,
também conhecida como ASEAN + 1). Na reunião da ASEAN de
Brunei, em 2001, o Primeiro-Ministro Zhu Rongji propôs a criação
de um grupo de estudos que definiria as linhas de um acordo de livre
comércio. As negociações avançaram muito rapidamente, e, em
novembro de 2002, foi assinado o Acordo-Quadro sobre Cooperação
Econômica, que previa o estabelecimento de uma zona de livre
comércio entre a China e os seis membros originais da ASEAN (Brunei,
Cingapura, Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia) até 2010 e com os
outros quatro membros mais recentes (Camboja, Laos, Myanmar e
Vietnã) até 2015.
O interesse da China no estabelecimento de uma área de livre
comércio com os países do sudeste asiático é duplo: de um lado visa
aumentar sua influência política na região e, de outro, quer garantir o
suprimento de matérias-primas, bens agrícolas e componentes para a
indústria chinesa. Segundo Moore e Haacke, a China tem uma série
de motivações para buscar uma relação econômica mais próxima com
o sudeste asiático, mas a principal delas está na competição,
especialmente com o Japão, para dar forma ao regionalismo asiático.
O endosso enfático da China ao papel regional da ASEAN deve ser
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
301
analisado, neste sentido, também como uma tentativa de o País
contrabalancear a influência do Japão e dos Estados Unidos no leste
asiático. O objetivo é aprofundar os laços políticos e econômicos com
a ASEAN e garantir seu espaço de influência, utilizando-se de sua
influência econômica como um instrumento para definir seu papel de
líder regional. Na visão de Moore, a partir da segunda metade da década
de 90, o regionalismo ganhou impulso também em função da rivalidade
entre China e Japão. Quem saiu na frente na disputa foi o Japão, por
meio da proposta de criação do Fundo Monetário Asiático. Mais
recentemente, a China tem promovido a expansão da ASEAN + 3 e
intensificado a criação da zona de livre comércio entre China e ASEAN,
iniciativa que mais se aproxima da formação de um bloco asiático. Por
não enfrentar as oposições à liberalização de temas agrícolas que
tradicionalmente são feitas por Japão e Coréia do Sul, a ASEAN + 1
com China tende a caminhar mais rápido do que os demais.
Isso quer dizer que o comportamento da China frente à ASEAN
é motivado não pelos interesses econômicos convencionais e imediatos.
8
Além da influência política, o fornecimento de produtos primários e
insumos é uma necessidade estratégica. Apesar de os chineses estarem
fortemente posicionados na África para extração de minérios e
aumentando seus laços para compra de alimentos não-processados em
países como o Brasil, os vizinhos asiáticos menos desenvolvidos tendem
a ser opções estratégicas, dada a proximidade e os laços, especialmente
no fornecimento de petróleo, óleos vegetais e borracha.
8
Segundo relatório submetido pelo grupo ASEAN-China sobre Cooperação Econômica
(disponível em: www.ASEANsec.org/newdata), uma área de livre comércio entre o
bloco e a China traria um efeito econômico muito modesto, com um aumento do PIB
da ASEAN em 1% e do PIB chinês em apenas 0,3%. Em termos de efeitos no comércio,
uma zona de livre comércio com a ASEAN traria para a China menos benefícios
econômicos do que qualquer outro cenário de liberalização econômica, fosse ele a
APEC ou uma zona de livre comércio entre China, Japão e Coréia do Sul.
302
Isabela Nogueira
A resposta dos países da ASEAN às pretensões chinesas, no
entanto, não está sendo uniforme. De um lado, a proposta chinesa levou
a um fortalecimento reativo da ASEAN, que procura, por meio da
cooperação intra-bloco, contrabalancear o ímpeto chinês, conforme
discutiremos na seção seguinte. De outro lado, o interesse de alguns
estados da ASEAN na proposta chinesa de criação de uma área de livre
comércio sugere que há disposição para cooperar diretamente com o
poder emergente. Nos dois casos, os países da ASEAN parecem estar se
protegendo das incertezas causadas pela reconfiguração de poder na
Ásia.
Tais reconfigurações de poder estão acontecendo
concomitantemente a uma ampla reconfiguração produtiva na região.
Os países da ASEAN, juntamente com Taiwan e Coréia do Sul, estão
compondo um processo de verticalização produtiva, muitas vezes centrada
na China, que engloba fornecimento de peças, componentes, bens
primários e uma ampla rede de investimentos cruzados. Esta verticalização
da produção na região, com a China servindo de “fábrica final” para a
produção de bens que abastecem em grande medida as economias centrais
(notadamente Estados Unidos e União Européia, mas também a própria
China, cuja demanda interna cresce espetacularmente), está levando ao
estabelecimento de uma “correia de transmissão” que conecta, financeira
e comercialmente, o leste asiático à China e esta, por sua vez, às economias
centrais (EUA e EU, e também o Japão).
9
9
Todos os dez países asiáticos analisados realizam mais comércio dentro da própria
Ásia do que com Estados Unidos ou Europa individualmente, apesar das diferenças
substanciais entre os países – para o Japão este percentual está na casa dos 30%, contra
mais de 50% para Cingapura e Taiwan. Mas uma ressalva aqui é importante: apesar
dos volumes maiores, o comércio com Europa e Estados Unidos inclui produtos de
maior valor agregado. O comércio intra-asiático, em função do seu caráter
complementar ao processo produtivo, inclui mais peças e componentes em detrimento
a produtos acabados.
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
303303
A integração comercial e produtiva tem ficado evidente no
aumento da fatia asiática no total importado pela China (ao passo que
com relação às nações centrais, cresce mais rapidamente a participação
chinesa como fornecedora de bens).
10
Isso quer dizer que as importações
chinesas estão deixando de ser feitas majoritariamente a partir dos países
centrais e passaram a se concentrar nos vizinhos asiáticos semi-periféricos
(gráfico 1). Atualmente, a Ásia é de longe o maior fornecedor para a
China, sendo responsável por 65% do total das importações do País.
11
A
especialização da produção dentro da própria Ásia levou a um aumento
da parcela das importações da China que vêm da própria região,
transformando o País em um dos principais destinos das exportações dos
outros países asiáticos semi-periféricos. Com isso, as importações chinesas,
que no começo da década de 80 estavam concentradas nos países centrais
(61,9% do total, contra apenas 15% na Ásia), passaram a se concentrar na
Ásia (aqui incluído também o Japão), que em 2007 passou a representar
64,8% do total importado pela China, contra 8,5% dos Estados Unidos e
14,6% da União Européia (gráfico 1).
No mesmo período (de 1980 a 2007), a importação da China de
produtos japoneses caiu de 26,5% para 14,0% do total importado,
enquanto a partir da América do Norte o recuo foi de 19,6% em 1980
para apenas 8,5% em 2007. Na mão contrária, a participação de Taiwan
no total importado pela China, que em 1980 era zero, saltou para
10,6% em 2007, e a participação sul-coreana passou de também zero
para 10,9% no mesmo período. Por fim, os países que compõem a
ASEAN responderam por 11,3% do total importado pela China em
2007, contra 3,4% em 1980.
10
Entre 1980 e 2003, a fatia chinesa no total importado pelos Estados Unidos passou
de 0,5% para 11,3%, no Japão de 3,1% para 18,8% do total importado, e na União
Européia de 0,7% para 6,9%, segundo dados do FMI.
11
Dados da consultoria Dragonomic Research & Advisory.
304
Isabela Nogueira
Gráfico 1 – Importações da China por região
(do total importado, em %)
Em resumo, enquanto as exportações chinesas crescem em direção
à tríade desenvolvida, suas importações crescem principalmente a partir
dos países semi-periféricos do leste asiático. Holst (2003) caracterizou essa
Fonte: Dragonomics Research & Advisory
*Nota: Além dos números referentes a Hong Kong, “China” aparece nas
estatísticas de comércio exterior, segundo a consultoria Dragonomics,
representando volumes temporários de exportação e importação que buscam
capturar vantagens tributárias.
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
305
dinâmica como um “comércio triangular” entre China, leste asiático em
desenvolvimento e os países centrais, também denominado por Belluzzo
12
de “‘correia de transmissão’ de demanda”. Também a composição das
importações feitas a partir da ASEAN mostra que há um alto grau de
verticalização da produção dentro do continente, dado que uma parcela
crescente daquilo que é importado pela China é componente ou peça de
um produto final a ser exportado, conforme mostram as tabelas 1 e 2.
13
Tabela 1 - Grupo dos principais produtos exportados pela
ASEAN para a China (2005)
Fonte: ASEAN Trade Database
12
Luiz Gonzaga Belluzzo – “O Avanço da China no Comércio Internacional”, FSP,
14/03/2004.
13
A porcentagem daquilo que os economistas chamam de “imports for processing”
passou de 35% do total importado no começo dos anos 90 para 50% em 1997, e tem
permanecido neste nível desde então, como é o caso dos circuitos eletrônicos integrados
e dos microprocessadores, todos componentes de alta tecnologia.
306
Isabela Nogueira
Tabela 2 - Grupo dos principais produtos importados pela
ASEAN da China (2005)
No entanto, há uma grande controvérsia com relação à
tendência comercial da China no relacionamento com a ASEAN,
em parte explicada por complicações estatísticas,
14
mas também por
Fonte: ASEAN Trade Database.
14
Em primeiro lugar, há as diferenças entre as medidas em c.i.f. (“cost-insurance-
freigh”), utilizadas para as importações, e f.o.b. (“free-on-board”), para exportações,
que dão uma vantagem de cerca de 5% para os valore sem f.o.b. Em segundo lugar,
acredita-se que haja um número não-desprezível de “over” ou “under-invoicing” nas
transações comerciais, utilizadas como forma de mover capitais para além das fronteiras
chinesas (em especial dada a conta de capitais fechada na China).
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
307
marcados interesses políticos. Desde 2003, os dados coletados pela
ASEAN registram déficits expressivos no relacionamento com a
China (tabelas 3 e 4 e gráfico 2), ao passo que as estatísticas chinesas
mostram uma ASEAN superavitária. Segundo estatísticas coletadas
pela China,
15
em 2007, a ASEAN de fato tomou o lugar do Japão
como maior mercado em crescimento para as exportações chinesas.
Na comparação de 2007 em relação a 2000, a ASEAN foi responsável
por 7,3% do total do crescimento das exportações chinesas, ao passo
que o Japão respondeu por 6,9%, Coréia do Sul por 5,1% e Taiwan
por 2,1%. No entanto, segundo dados chineses, apesar do forte
crescimento das importações a partir da China, a ASEAN registrou,
em 2006, superávit comercial de US$ 17,8 bilhões na relação bilateral,
contra déficit de US$ 9,9 bilhões registrado pela ASEAN Trade
Database.
Observando as estatísticas da perspectiva do sudeste asiático, a
China ocupa hoje apenas o quarto lugar na lista dos principais parceiros
comerciais da ASEAN (atrás de Japão, Estados Unidos e União
Européia, tabela 3), e desde 2003, o bloco do sudeste da Ásia acumula
déficits comerciais crescentes em relação aos chineses (tabela 4, gráfico
2), chegando a US$ 8,8 bilhões em 2005 e US$ 9,9 bilhões em 2006, e
ocupando o lugar do Japão como principal pressão deficitária sobre a
balança comercial da ASEAN. As tabelas e o gráfico a seguir,
elaborados com números da ASEAN Trade Database, mostram que
quem tem garantido a folga nas contas externas dos países da ASEAN
são Estados Unidos e União Européia, com os quais o bloco registrou
superávits muitos expressivos, de, respectivamente, US$ 32,6 bilhões
e US$ 28,3 bilhões em 2006.
15
Compiladas pelo Ministry of Commerce of China (MOFCOM).
308
Isabela Nogueira
Tabela 3 - Comércio da ASEAN por principais parceiros (2006)
Valor em US$ milhões; fatia em %
Tabela 4 - Saldo comercial ASEAN segundo país ou região de
destino (1993-2006)
US$ milhões
Fonte: ASEAN Trade Database.
Fonte: ASEAN Trade Database.
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
309
Gráfico 2 - Saldo comercial ASEAN segundo país ou região de
destino (1993-2006)
3. A COOPERAÇÃO ECONÔMICA NO REGIONALISMO
ASIÁTICO
3.1 O
LIVRE COMÉRCIO INTRA-ASEAN E ASEAN + 1 COM CHINA
Nos seus primeiros 30 anos, a ASEAN avançou modestamente
no processo de criação de uma área de livre comércio e de
estreitamento dos laços comerciais entre membros. De 1970 até 2003,
o comércio intra-bloco representou, quase que constantemente, apenas
20% do comércio exterior total da ASEAN. Neste período, ainda
que houvesse alguns pontos de melhora, como a partir de 2003, quando
o comércio intra-ASEAN passou a representar cerca de 25% do
comércio total, o resultado ainda é modesto se comparado com outros
blocos do mundo.
310
Isabela Nogueira
A Área de Livre Comércio da ASEAN foi formalmente lançada
no encontro de líderes de Estado do bloco de janeiro de 1992, em
Cingapura, e definiu-se como objetivo reduzir as tarifas de bens
manufaturados em 15 anos, com início previsto para janeiro de 2003.
Uma Área de Investimento da ASEAN (AIA – ASEAN Investment
Area) também foi lançada em 1998, com o objetivo de atrair
investimento estrangeiro direto por meio da eliminação de barreiras e
da liberalização das regras de investimento. Esta consolidação do
projeto de um bloco asiático foi acompanhada pela expansão da
ASEAN de seis para dez membros – Vietnã em 1995, Laos e Myanmar
em 1997 e Camboja em 1999. A perspectiva mais avançada de
integração da ASEAN foi delineada, em junho de 2004, pelo secretário-
geral da ASEAN, Ong Keng Yong, que apresentou as diretrizes para
a criação de uma Comunidade Econômica da ASEAN, com a
formação de um mercado único e com livre fluxo de bens, serviços e
investimentos em 2020.
16
Assim como a crise asiática, analisada na seção 1, a emergência
da China e seu ímpeto de integração econômica terminaram
funcionando como um catalisador fundamental para a formação de
uma área de livre comércio intra-ASEAN. Na tentativa de melhorar
o desempenho comercial intra-bloco antes da abertura para a China, a
ASEAN intensificou as negociações que visavam estreitar os laços
econômicos entre os países membros, conforme veremos a seguir.
Se no comércio intra-bloco da ASEAN houve poucas alterações
nos últimos 30 anos, nas relações extra-bloco as mudanças foram
expressivas, especialmente por conta do avanço da China no comércio
16
Os setores definidos como prioritários para a criação da Comunidade Econômica
Asiática são eletrônicos, tecnologia da informação, produtos de madeira e borracha,
têxteis e vestuário, agronegócio, motores para veículos e produtos de saúde.
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
311
bilateral com a ASEAN. O movimento mais incisivo do governo chinês
no sentido de promover a aproximação bilateral ocorreu em novembro
de 2000, quando o Primeiro-Ministro chinês, Zhu Rongji, propôs a
criação de uma Área de Livre Comércio entre China e ASEAN
(ACFTA – ASEAN-China Free Trade Area) durante a Cúpula da
ASEAN. Quatro anos após a proposta do Primeiro-Ministro Zhu, o
acordo para formação da área de livre comércio foi assinado entre
China e ASEAN. A meta estabelecida foi a de iniciar a redução tarifária
e consolidar a criação da área em 2010, na prática antecipada por uma
sucessão de reduções tarifárias antes do cronograma. O acordo, no
entanto, excluiu produtos sensíveis para o comércio bilateral, como
ferro, aço, automóveis e açúcar, e também não fornece mecanismos
de solução de controvérsias para prevenir o uso de barreiras não-
tarifárias e outros obstáculos ao comércio.
17
Até o início das negociações
com a China, a ASEAN nunca havia negociado acordos comerciais
com países fora do bloco.
O ímpeto chinês para estabelecer uma área de livre comércio
com a ASEAN levou a uma intensificação nas negociações intra-bloco,
que visam estreitar os laços econômicos entre os países membros antes
da abertura comercial para a China. Na cúpula de novembro de 2004,
quando foi assinado o acordo que prevê a liberalização tarifária com
a China a partir de 2010, a ASEAN antecipou sua liberalização interna
para 2007, três anos antes da data prevista. Onze setores importantes,
incluindo automóveis, têxteis, eletrônicos e produtos de saúde,
iniciaram a redução tarifária em 2007 nos casos das seis nações mais
desenvolvidas do grupo (Brunei, Cingapura, Indonésia, Malásia,
Filipinas e Tailândia), e no caso dos quatro países menos desenvolvidos
17
Oxford Analytica, 03/12/2004. “ASEAN: Extra-regional integration dominates
summit”.
312
Isabela Nogueira
(Camboja, Laos, Myanmar e Vietnã) o prazo previsto é 2012. Estes
setores representam cerca de 50% do comércio intra-bloco.
Além dos efeitos na própria ASEAN, o ímpeto chinês para
aproximar-se do sudeste asiático está provocando reações em outros
países da Ásia. Em reação à proposta chinesa, o presidente da Coréia
do Sul, Kim Dae-Jung, sugeriu, na cúpula seguinte da ASEAN (2001),
a formação de um grupo de estudo que avaliasse a possibilidade de
formação de uma área de livre comércio entre o País e o grupo. A
proposta da Coréia do Sul é, em grande parte, uma resposta à iniciativa
dada pela China e seguida pelo Japão. De maneira geral, as reuniões
de cúpula da ASEAN estão sendo acompanhadas por um número
crescente de países. Depois da adesão de China, Japão e Coréia do Sul
em 1997, a Índia começou a participar das reuniões de cúpula em
2002. Em novembro de 2004, foi a vez de Austrália e Nova Zelândia.
Todos estes seis países já iniciaram negociações bilaterais para estreitar
seus laços econômicos com a ASEAN. As negociações para a formação
de uma área de livre comércio Japão – ASEAN foram marcadas para
ter início em 2006. A meta é iniciar a redução tarifária em 2012. No
caso da Índia, a meta é criar uma área de livre comércio a partir de
2016, e com Austrália e Nova Zelândia a meta é para 2017.
3.2 E
XPERIÊNCIAS REGIONALISTAS MAIS AMPLAS: ASEAN + 3 E INICIATIVA
CHIANG MAI
A crise financeira asiática, como já discutido, alterou o centro
de gravidade do regionalismo econômico do leste asiático e o fez migrar
da APEC para foros exclusivamente regionais. A crise deixou evidente
o despreparo da APEC para lidar com crises financeiras e desafios da
coordenação produtiva e monetária, bem como a fraqueza da ASEAN,
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
313
formada apenas por países sem expressão política ou econômica. A
alternativa seria buscar saídas regionais para problemas regionais,
por meio da criação de novas vias de diálogo e coordenação
econômica que incluísse também as duas potências regionais: Japão
e China. É sob este pano de fundo que nasce a ASEAN +3, formada
pelos dez membros da ASEAN mais três países do nordeste asiático
(Japão, China e Coréia do Sul), que deveria reverter o imobilismo
da APEC e a pouca expressão política e econômica da ASEAN. A
primeira reunião de cúpula da ASEAN + 3 foi realizada em Kuala
Lumpur, em dezembro de 1997, com encontros subseqüentes
anuais. O processo de institucionalização do grupo desenvolveu-
se rapidamente, com o estabelecimento de rodadas ministeriais e
encontros de cúpula anuais, e a formação do Grupo de Visão do
Leste Asiático, formado por especialistas dos treze países, que
definiram os objetivos de longo prazo do grupo. O objetivo mais
ambicioso da ASEAN + 3 é formar uma zona de livre comércio
no leste asiático, mas, até agora, o principal avanço neste sentido
foi a mobilização dos ministros das Finanças dos países interessados
para que realizassem estudos sobre o impacto da zona sobre suas
economias.
O ceticismo quanto ao futuro de uma área de livre comércio da
Ásia formada a partir da ASEAN + 3 ainda é grande. Ainda que o
grupo tenha avançado no sentido formal – com aumento do diálogo
e das reuniões de cúpula entre os 13 países envolvidos –, há ampla
oposição à abertura do setor agrícola por parte do Japão e Coréia do
Sul, choque com alguns membros do grupo de Cairns (Tailândia e
Filipinas), apelos por parte dos países mais pobres (Vietnã, Camboja,
Laos e Myanmar) para aumento dos programas conjuntos de
desenvolvimento, e, fundamentalmente, antagonismos entre os dois
314
Isabela Nogueira
principais membros, China e Japão, com relação ao exercício de poder
no bloco.
De qualquer forma, sob o impulso da criação da ASEAN +3,
houve a formação do primeiro foro em que o sudeste e o nordeste
asiático atuaram como um ator único no relacionamento com atores
externos. Em 1996, nasceu a ASEM (Ásia-Europe Meeting), um
processo informal de diálogo e cooperação entre Ásia e Europa, que
desde a sua fundação promove encontros a cada dois anos. A falta de
coesão sobre os objetivos da reunião e de uma agenda de trabalho
efetiva limita a ASEM a um encontro protocolar entre líderes asiáticos
e europeus. Na reunião de 2002, por exemplo, os participantes haviam
concordado em estabelecer uma agenda efetiva de parceria econômica,
e durante a preparação para a reunião seguinte, de 2004, em Hanói,
Vietnã, foi proposta a criação de um fundo monetário da ASEM
composto não apenas de reservas em dólar, mas fundamentalmente
em euros e ienes. O objetivo do fundo seria criar um sistema financeiro
plurinacional balanceado e que promovesse aproximação entre asiáticos
e europeus. Na reunião de 2004, no entanto, as negociações não
avançaram e ficou definido apenas que a proposta será reavaliada
futuramente. De qualquer forma, trata-se de uma iniciativa pioneira,
em que os países asiáticos unem-se para dialogar com um bloco
econômico já estabelecido.
Na seqüência da série de propostas para o estreitamento do
relacionamento econômico e comercial entre ASEAN e o nordeste
asiático, em maio de 2000, os ministros das finanças dos treze países-
membro acordaram um grande arranjo de moedas para prevenir uma
nova crise financeira. A chamada Iniciativa de Chiang Mai (referência
à cidade na Tailândia onde o encontro aconteceu) é considerada o
primeiro passo em direção à integração monetária da Ásia, que num
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
315
futuro ainda distante poderia eventualmente levar à união monetária.
A Iniciativa estabeleceu os primeiros parâmetros para cooperação em
áreas como monitoramento do fluxo de capitais, mecanismos de
suporte monetário e reformas financeiras internacionais. Busca-se não
apenas trocar informação sobre fluxo de capitais e monitorar possíveis
abalos financeiros, mas principalmente pretende-se estabelecer arranjos
financeiros regionais que complementem os instrumentos multilaterais
existentes e evitem abalos sistêmicos como a crise asiática.
18
Chiang Mai criou os procedimentos de troca bilateral que, em
tese, permitem gerar uma rede de empréstimos para fornecer moeda
na quantidade necessária em eventuais crises futuras. Na prática, os
treze países envolvidos concordaram em executar uma série de trocas
de moedas entre seus bancos centrais caso uma ou mais moedas da
região sofram pressões especulativas. As trocas incluem as reservas
internacionais trilhardárias deste países.
19
Há ainda negociações ou
acordos de troca estabelecidos bilateralmente, como no caso de Japão
e Filipinas. Até agora, a China já concluiu acordos bilaterais de troca
(swap) com Tailândia (dezembro de 2001), Japão (março de 2002),
18
A proposta do Japão de criação do Fundo Monetário Asiático (FMA), logo após a
crise asiática, em 1997, foi lançada pelo Vice-ministro das Finanças Eisuke Sakakibara,
mas sofreu forte oposição dos Estados Unidos e do próprio FMI, que previam a
esvaziação de funções do Fundo. Defensores da idéia de um Fundo Monetário Asiático
apresentavam dois argumentos fundamentais para justificar sua criação. Em primeiro
lugar, o FMA abriria possibilidades de empréstimos regionais de menor escala e que
reforçariam o papel do FMI como credor apenas em última instância. Neste caso, a
intenção seria a de fortalecer os laços de países do nordeste asiático e do sudeste por
meio da colaboração financeira. Em segundo lugar, dada a necessidade de
estabelecimento de regras, os empréstimos do FMA poderiam ser concedidos sem a
necessidade de contrapartidas, como a definição de metas de inflação e superávit primário.
Regras menos intrusivas na condução macroeconômica das nações asiáticas tendem a
ser mais bem aceitas do que empréstimos que impliquem no estabelecimento de metas
e na interferência sobre a política econômica (DESKER, 2004, p. 120).
19
Somente as reservas de China, Japão e Coréia do Sul já somavam mais de US$ 2
trilhões ao final de 2007.
316
Isabela Nogueira
Coréia do Sul (junho de 2002) e Malásia (outubro de 2002). Muitas
destas trocas, no entanto, ainda dependem do aval do FMI para serem
concretizadas. Se a linha de crédito exceder em 10% do total
provisionado, o empréstimo precisa, antes, de aval do Fundo
(DESKER, 2004).
4. A COOPERAÇÃO POLÍTICO-ESTRATÉGICA NO
REGIONALISMO ASIÁTICO
Na década de 90, a reconfiguração da política internacional,
promovida pelo fim da Guerra Fria, leva à primeira grande mudança
nos rumos da ASEAN desde sua criação. Em 1990, quando Moscou
anunciou sua intenção de remover praticamente toda sua frota
estacionada na Baía de Cam Ranh, emergiu a forte ameaça que a China
poderia representar aos países da região, dada a ausência de uma linha
de contenção entre as grandes potências. A saída soviética reduziu a
utilidade das bases norte-americanas na Ásia e, em 1992, os Estados
Unidos anunciaram um plano de segurança para o leste asiático que
previa a redução de 12% do contingente na região. Sem a ambição
soviética na Ásia e com a expressiva diminuição do efetivo norte-
americano no sudeste asiático, a ameaça chinesa, que sempre esteve
fortemente presente desde o nascimento da ASEAN, tornou-se, então,
o principal desafio geopolítico e regional para o sudeste asiático.
Não por acaso, justamente no início da década de 90, a ASEAN
mobiliza-se para a construção de um foro asiático de debate de questões
político-estratégicas. A primeira reunião de trabalho do Foro Regional
da ASEAN (ARF - ASEAN Regional Forum) aconteceu em Bangcoc,
em 25 de julho de 1994, com 18 membros, incluindo Malásia,
Indonésia, Brunei, Cingapura, Tailândia, Filipinas, Vietnã, Laos,
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
317
Estados Unidos, Canadá, Japão, China, Coréia do Sul, Austrália, Nova
Zelândia, Nova Guiné e União Européia. Myanmar, Camboja e Índia
juntaram-se ao grupo no final de 1997, elevando o número total para
21. Em 2000, foi a vez da Coréia do Norte ser aceita, para depois, por
vontade própria, negar-se a participar dos encontros subseqüentes. O
ARF tornou-se, então, o primeiro foro de discussão multilateral de
questões de segurança da Ásia, apesar de compreender um número
expressivo de países não-asiáticos.
Na questão do quadro de membros associados do ARF, é
preciso fazer duas ponderações. Em primeiro lugar, em função da
pressão exercida pela China, Taiwan não se tornou membro. Apesar
da participação da ilha em regimes multilaterais de ênfase econômica,
como a APEC, a China traçou uma distinção firme entre cooperação
regional econômica e de segurança e se opôs à entrada de Taiwan no
ARF. Em segundo lugar, a inclusão de nações não-asiáticas no foro
deve-se, segundo Acharya, a uma tentativa da ASEAN de comprometer
(engage) os principais atores internacionais na segurança da região.
Segundo o então Ministro das Relações Exteriores da Malásia,
Abdullah Badawi, o conceito do ARF “demanda o desenvolvimento
de amizades ao invés da identificação de inimigos. A natureza dos
problemas de segurança na Ásia-Pacífico são tais que eles não se tornam
gerenciáveis por meio do velho método da intimidação e da força”
(ACHARYA, 2001, p. 173).
Além do temor de conflito entre grandes potências, as diversas
disputas territoriais envolvendo países asiáticos eram outra fonte
fundamental de tensão e que acabaram por impulsionar a cooperação
político-estratégica. A disputa pelas ilhas Spratly é vista por muitos
governos da ASEAN como a principal ameaça de conflito no sudeste
asiático no pós-Guerra Fria, além de representar um teste para a
318
Isabela Nogueira
unidade e normas da ASEAN quanto à solução pacífica de disputas.
O arquipélago de Spratly consiste em um conjunto de 230 pequenas
ilhas, bancos de areia e barreiras de corais localizados no sudoeste do
Mar do Sul da China, numa vasta área de 250 mil quilômetros
quadrados. Sua importância está tanto na localização quanto nos
recursos naturais disponíveis. Além de ser um ponto estratégico para
algumas das rotas marítimas mais importantes do mundo, a região é
fonte rica de petróleo, manganês e pescados. As ilhas são ocupadas
pela China apesar de estarem, fisicamente, em territórios de países da
ASEAN. As disputas mais proeminentes são com Filipinas, Malásia e
Vietnã.
20
Apesar da oposição chinesa, a ASEAN conseguiu colocar a
disputa pelas ilhas na agenda do ARF. No entanto, as tentativas para
se negociarem códigos de conduta para a região têm avançado muito
pouco, uma vez que o governo chinês continua pressionando
abertamente por negociações bilaterais. Em outubro de 1993, China e
Vietnã assinaram acordo bilateral que prevê o não-uso da força na
região e um esforço conjunto para não haver retrocesso nas negociações
bilaterais. Outro acordo bilateral entre China e Filipinas foi assinado
em agosto de 1995 e prevê a cooperação em pesquisa marítima,
operações de resgate e proteção ambiental, bem como a promoção da
segurança dos navegadores da região.
Apesar das tentativas iniciais para desacelerar o ritmo das
negociações, Evans (2003) destaca que o governo chinês jamais
manifestou o desejo de rejeitar o ARF. Ao contrário, houve
20
O primeiro incidente violento entre a China e um país da ASEAN em torno das
ilhas Spratly ocorreu em 1995, quando a marinha da Malásia abriu fogo contra um
barco de pesca chinês que invadiu o espaço marítimo de Kuala Lumpur. Esse tipo de
incidente voltou a se repetir em torno do Mischief Reef, ocupado pela China em 1995,
apesar de ser parte do espaço marítimo das Filipinas.
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
319
manifestação formal da China de apoio para que a ASEAN mantivesse
o papel central na determinação dos temas em discussão e para que as
reuniões de cúpula fossem realizadas apenas em países-membros da
ASEAN. No terceiro encontro do ARF, em julho de 1996, a China
formalizou o pedido para tornar-se parceiro de diálogo (“dialogue
partner”), na seqüência de diversas adesões em outros foros regionais,
como Shanghai Five (hoje Shanghai Cooperation Organization,
SCO),
21
em 1995, ASEM (Ásia-Europe Meeting), em 1996, e ASEAN
+ 3, em 1997. No mesmo encontro, o governo chinês concordou em
aderir à comissão militar conjunta que dialogaria e até realizaria
exercícios conjuntos, para assim buscar atenuar os receios da região
com relação às pretensões militares das grandes potências.
A partir de 1997, o envolvimento chinês no ARF é crescente.
Neste ano, o País promoveu a realização de reuniões do Grupo Inter-
Sessões de Suporte em Pequim e nas Filipinas e aceitou, depois de
muita resistência, a entrada das ilhas Spratly na pauta de discussões do
ARF. No ano seguinte, o presidente da mesa diretora do encontro
do ARF parabenizou a China pelos seus esforços para encontrar uma
solução para as disputas de fronteira com a Índia e pela criação do
antigo Shanghai Five, bem como enfatizou o papel que Japão e China
tiveram durante a crise asiática, ao evitarem a desvalorização de suas
moedas. Em 1999, a China aceitou participar do ARF ao lado dos
21
Hoje chamado de Shanghai Cooperation Organization, o SCO é um foro
intergovernamental de segurança composto por China, Rússia, Cazaquistão,
Quirquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão. Oficialmente, trata-se de um foro criado
para gerar cooperação política, econômica e cultural entre os membros, a fim de
aumentar a confiança e garantir a segurança, paz e estabilidade da região. O site oficial
da organização é http://www.sectsco.org/ Na prática, o interesse da China na Ásia
Central deve-se às importantes reservas de petróleo e gás abundantes na região. Extensos
gasodutos têm sido construídos a partir dessas ex-repúblicas soviéticas, cortando grande
parte do território chinês até a costa.
320
Isabela Nogueira
Estados Unidos, apesar das tensões que se seguiram ao bombardeio
da sua embaixada em Belgrado. E em 2000, a China concluiu as
negociações com a Coréia do Norte para a participação do País, pela
primeira vez, numa reunião do ARF.
Apesar de a China ter, gradualmente, aceitado o perfil
multilateral do ARF e estar desempenhando um papel um pouco mais
ativo (especialmente por meio do apoio para que as questões ligadas à
ASEAN sejam a preocupação central do ARF), Morada acredita que
o País continua sentindo-se “desconfortável” em relação ao foro.
Acharya tende a concordar com a posição, uma vez que, para o autor,
“a China preocupa-se com o papel de diplomacia preventiva dado ao
ARF em função do risco de violação do princípio da não-interferência.
Esta situação reflete a preocupação chinesa quanto ao uso do ARF
numa crise no estreito de Taiwan (...). A China insiste que a construção
de confiança deve continuar sendo a função primordial do ARF”
(ACHARYA, 2001, p. 177). Na questão de resolução de conflitos, a
oposição chinesa é clara. No encontro de Brunei, o representante chinês
afirmou que o ARF “não é o ambiente adequado para a solução de
disputas e que o modo mais eficiente de solucionar os problemas do
Mar do Sul da China é por meio de negociações bilaterais”
(ACHARYA, idem).
Morada ressalta que os laços políticos e de segurança da China
com a ASEAN avançaram mais rapidamente por outras vias
regionalistas que não o ARF, em especial por meio dos diálogos na
ASEAN + 3, um foro essencialmente econômico. O sexto encontro
da ASEAN + 3, em Phonom Penh, em novembro de 2002, marcou o
primeiro avanço formal nas negociações em torno do Mar do Sul da
China. A Declaração de Phonom Penh busca assegurar o
gerenciamento pacífico de conflitos territoriais e estabelecer um código
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
321
de conduta informal entre os atores que seja baseado no não-uso da
força, moderação e na passagem livre pela região. A declaração diz
que ASEAN e China promoverão o diálogo entre seus ministros e
oficiais responsáveis pela defesa, informarão sobre qualquer exercício
militar na região e darão tratamento humanitário a qualquer pessoa
em perigo ou vítimas de desastres no Mar do Sul da China. Os dois
lados também cederam em questões consideradas importantes para
cada ator a fim de chegarem ao documento final. Atendendo às
demandas de Filipinas e Vietnã, a China concordou em assinar
expressamente que não promoverá o povoamento de ilhas desertas,
uma prática que visa garantir a soberania sobre o território. Já a
ASEAN concordou em incluir a frase “baseado em consenso” ao se
referir ao código de conduta para o Mar do Sul da China.
Apesar de a Declaração de Phonom Pehn ser um avanço em
relação a qualquer outro documento já assinado entre China e ASEAN
no que se refere ao maior contencioso de segurança do relacionamento
bilateral, o documento não prevê qualquer mecanismo de coerção
caso alguma das partes infrinja o acordo. Mais importante ainda, a
declaração não toca no problema fundamental: a soberania sobre as
ilhas e o território marítimo. Dos três princípios que norteiam a
cooperação estratégica no ARF, apenas a construção de confiança
(“confidence building”) tem avançado minimamente - tanto a diplomacia
preventiva quanto a resolução de conflitos parecem permanecer sem
qualquer resultado significativo. Em suma, o ARF não tem sido capaz
de avançar além das medidas de busca por mais transparência e troca
de informações. Os exemplos empíricos que vimos na seção anterior
sugerem que nos processos de formação regional em que há interesses
econômicos ou estratégicos objetivos, como no SCO ou ASEAN +
3, tende a haver maior disposição do governo chinês para discutir a
322
Isabela Nogueira
cooperação regional também nos temas de segurança. Nos foros de
cooperação econômica em geral, a China tem atuado como um
importante catalisador dos processos de formação regional de blocos,
ao contrário de sua postura nos blocos exclusivamente de segurança.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regionalismo asiático passou, durante a década de 90, por
mudanças fundamentais na sua configuração e no seu ritmo de
formação. Com o fim da Guerra Fria e das tensões sino-soviéticas e
entre norte-americanos e soviéticos, diluiu-se também a rede de
contenção que limitava o avanço agressivo das potências pela região.
Sem a ambição soviética na Ásia e com a expressiva diminuição do
efetivo militar norte-americano, o temor de que a China viesse a
disputar militarmente territórios que reivindica para si tornou-se, para
os países do sudeste da Ásia, o principal desafio geopolítico.
Paralelamente, assistiu-se ao surpreendente desempenho econômico
chinês, que passou a funcionar como um importante catalisador da
integração econômica. Por fim, no final da década de 90, a crise asiática
foi o terceiro elemento a trazer mudanças substantivas ao regionalismo
asiático, ao deslocar a prerrogativa da APEC de ser o principal foro
de discussão e gerenciamento de problemas regionais para as iniciativas
centradas na ASEAN, como ARF, Iniciativa Chiang Mai e o ASEAN
+3.
Este envolvimento da China nos esquemas produtivos e nos
projetos regionais centrados na ASEAN está produzindo efeitos
variados sobre o regionalismo asiático. Em primeiro lugar, o ímpeto
chinês para a formação de uma área de livre comércio serviu como
catalisador para a integração intra-ASEAN e como impulso inicial
A Política Regional da China e os Processos de Integração na Ásia
323
para as negociações entre ASEAN e Coréia do Sul e ASEAN e Japão
para integração comercial. Os interesses da ASEAN no comércio intra-
bloco cresceram fortemente na década de 90 em resposta à emergência
da China. Ademais, a verticalização da produção na Ásia, com a
consolidação da China como base manufatureira final para a produção
de bens que abastecem boa parte das economias centrais ocidentais,
está redefinindo o comércio intra-regional, aumentando os fluxos de
comércio intra-asiático, mas sem reduzir os temores da ASEAN com
relação às ameaças do poderio econômico da China sobre suas
economias nacionais.
Se nas questões de integração econômica a China parece
fortalecer os mecanismos regionais, agilizando o processo de formação
de áreas de livre comércio e provocando uma mudança expressiva no
sistema produtivo integrado do sudeste asiático, o mesmo não se repete
nos temas estratégicos. Quando o escopo passa a ser a segurança, a
China segue enfatizando a busca por saídas bilaterais e enfraquecendo
iniciativas regionais mais amplas, como no caso do ARF. Somente
nos casos em que há um interesse econômico subjacente emerge a
disposição do governo chinês para negociar a cooperação também nas
questões de segurança. Caso clássico é a Organização de Cooperação
de Xangai (SCO na sigla inglesa), bloco formalmente criado para
promover a cooperação entre membros, mas cujo interesse primordial
da China é energético.Esse comportamento, em realidade, parece ser
uma característica das nações hegemônicas ou com tais pretensões:
um grande ímpeto na reorganização da ordem produtiva, sob sua
égide, buscando a ampliação do seu espaço econômico e das suas
possibilidades de acumulação, ao mesmo tempo em que visa manter
(ou criar) uma governança política muito própria, de preferência não-
compartilhada ou exclusivista. É evidente que há sempre contra-
324
Isabela Nogueira
tendências (ou limites externos) impostos a tal movimento, e que, no
caso asiático, dependerão do arranjo que os demais poderes regionais
(Japão) e externos (Estados Unidos) estão em vias de construir.
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Isabela Nogueira
China:
Perspectivas e Desafios
329329
CHINA
Helio Jaguaribe
DADOS GERAIS
A China é o país mais populoso do mundo, com mais de 1
bilhão de habitantes, terceiro maior território nacional do
mundo, com 9.573 mil km2, e 3
o
PIB do mundo, 13% da
população economicamente ativa trabalha para a indústria ou a
mineração, a indústria é pública. A China é o único país,
atualmente, em que a população deriva basicamente de seu
paleolítico e neolítico. Conhece-se a história da China desde o
séc. XXVIII aC. Nela se registra a existência de três soberanos
originários Fu Hai, Shen Nug e Hang-Ti que foi o primeiro
imperador.
A área cultivada da China representa apenas 10% do total.
O país dispõe de minério de ferro (2% do mundial) cobre,
chumbo, zinco, reserva de petróleo da ordem de 2.660 milhões
de m
3
, 3% do total mundial. População extremamente
homogênea, 93% do grupo HAN. Embora a China popular seja
agnóstica, a população tem apreciáveis contingentes de seguidores
do budismo e de taoísmo.
330
Helio Jaguaribe
INTERCAMBIO COMERCIAL
Quadro 1 - Milhões US$
A China é o terceiro importador de produtos brasileiros,
absorvendo 9% de nossas exportações. Do lado das importações, a
China ocupa o 2º lugar, com 15,2% do total.
As exportações brasileiras para a China são predominantemente
(75%) de produtos básicos, destacando-se soja em grão (da ordem de
US$ 2.8 bilhões) e minério de ferro (da ordem de US$3.7 bilhões).
Ante esse quadro, as exportações chinesas para o Brasil se situam em
mais elevado nível tecnológico, com produtos químicos (da ordem de
US$1,3 bilhões) e máquinas e aparelhos mecânicos (da ordem de US$
2.3 bilhões).
O Brasil tende a ter um saldo comercial favorável, da ordem
anual de US$ 6,3 bilhões.
China
331
GOVERNO
A China é regulada pela Constituição de 1982.
O órgão superior é o Congresso Nacional do Povo (CNP),
com 2.900 membros, com mandato de 5 anos. Elege o Comitê
Permanente, o Presidente da República e o 1º Ministro. Este
recomenda membros para o Conselho de Estado pelo CNP. As
políticas públicas são propostas pelo Partido Comunista chinês. A
China dispõe de um grande exercito moderno, nuclearmente equipado.
A educação pública tem ênfase nas ciências.
QUESTÃO DE TAIWAN
Taiwan é considerada uma província rebelde, mas parte
integrante da China. O governo chinês se propõe incorporar Taiwan
por meios pacíficos. Já deixou claro, entretanto, que promoverá
uma intervenção militar se Taiwan se declarar independente.
CHINA E MUNDO
É cada vez mais relevante o significado da China no mundo.
Com o 3º PIB do mundo e um exército moderno de 1 milhão, com
armas nucleares, a China é uma superpotência, com maior peso que a
Rússia e forma, no mundo, um bipolarismo estratégico, de que depende
a preservação internacional de um regime multipolar com os Estados
Unidos.
A política internacional da China é pacifica e é por via pacifica
que pretende a reunificação de Taiwan. A China já deixou claro,
todavia, que intervirá militarmente na ilha se esta se declarar
332
Helio Jaguaribe
independente. No mundo contemporâneo, a bipolaridade de China
e Estados Unidos é a principal condição de sustentação de um mundo
multipolar.
CHINA – BRASIL
O Brasil mantém um Acordo de Cooperação Cientifica e
Tecnológica com a China desde 1982. Esse acordo é particularmente
ativo em matéria agrícola (cooperação com EMBRAPA) e relevante
em matéria de satélites. É importante o programa sino-brasileiro de
desenvolvimento em biotecnologia: milho transgênico, feijão resistente
a herbicidas, soja transgênica, batata tolerando o vírus Y, arroz
resistente a herbicidas, etc.
POLÍTICA CHINESA DO BRASIL
A China representa para o Brasil, ademais de um importante
parceiro comercial, uma relevante condição para a preservação de um
multipolarismo internacional propício à preservação de nossa
autonomia internacional. Daí uma significativa posição pro-China
internacionalmente adotada pelo Brasil. A essa posição política se
deve a reconhecimento pelo Brasil (objetivamente contestável), de que
a China seja uma economia de mercado. Essa expressão tecnicamente
se aplica à China apenas na medida em que o centralismo autoritário
chinês se utiliza do mercado para suas transações correntes. É assim
que a China se considera uma economia socialista de mercado. A
expressão “economia de mercado”, sem outras qualificativas, implica
numa liberdade de mercado não existente na China.
China
333
ADMINISTRAÇÃO DA ESCASSEZ
Embora o desenvolvimento econômico da China seja o da mais
elevada taxa mundial, mantendo-se, no curso dos últimos 30 anos, em
torno de 10% ao ano, o ponto de partida chinês era extremamente
baixo, o que ainda mantém a China num nível de relativa escassez.
Essa escassez é administrada com muita sabedoria. Entre as
medidas usadas pela China para essa administração da escassez haveria
que destacar duas, de particular relevância. A primeira, diz respeito
ao emprego de mão-de-obra. Esta continua basicamente agrícola. Em
todas as comunas chinesas, entretanto, vigora um sistema orientado
para uma sustentável industrialização. As comunas dispõem de oficinas
para produzir a maior parte de seus utensílios de trabalho e assegurar
a manutenção e o reparo de máquinas agrícolas. As equipes ocupadas
com essas tarefas formam o contingente a partir do qual são
selecionados os trabalhadores encaminhados para o setor industrial.
Outra técnica de administração de escassez consiste na
construção, nas comunas rurais, de habitação para três gerações, pais,
filhos, avós, assim assegurando o amparo da velhice por meio da família.
Também na mesma orientação, nas comunas rurais chinesas os
banheiros e serviços sanitários são concentrados em prédios próprios,
dispensando as habitações rurais de terem banheiros individuais, com
a correspondente redução de seu custo.
DEMOCRACIA
A China, se autodenominando democracia popular, adota um
regime de governo em que são eletivos os cargos municipais e
selecionados pelo PCC os cargos mais elevados.
O regime daí resultante não é, obviamente, democrático e sim
uni-partidarista. Observe-se, entretanto, o fato de que, de um modo
geral, o país é bem administrado. Cabe reconhecer a ocorrência, na
China, de um “autoritarismo esclarecido”, a exemplo do despotismo
ilustrado da Europa do século XVIII.
Quadro 2 Quadro 3
Em 2007, a pauta de exportação brasileira para a China manteve-
se concentrada em produtos básicos, com 73,7% do total de vendas
realizadas valor apenas 0,2 p.p. inferior ao registrado em 2006. Em
comparação às exportações totais do Brasil para o mundo, a pauta
exportadora para a China é significativamente distinta. Em 2006 e 2007,
produtos de maior valor agregado representaram a maior parcela do
total das vendas brasileiras para o mercado internacional, com 65,9% e
68,6%, respectivamente.
Helio Jaguaribe
334
Quadro 4 Quadro 5
Exportações brasieiras para a China – As brasileiras à China
registraram aumento de 27,9% em 2007, comparado com o ano anterior.
Importações brasileiras da China - Principais produtos ou
famílias de produtos - Janeiro a dezembro/2007
Quadro 6
China
335
Quadro 6
Quadro 7
Helio Jaguaribe
336
337
Vou procurar, neste trabalho, equacionar a política africana
da China na abertura do século XXI, à luz do conceito de “grande
estratégia”, crescentemente em voga entre os especialistas das
Relações Internacionais. Segundo eles, grande estratégia é bem mais
do que a clássica estratégia militar. Tomam-se em conta, na
abordagem da defesa nacional, e para além das preocupações
puramente militares, métodos e objetivos políticos e econômicos.
Na China, é possível acompanhar o surgimento na década de 90,
entre os dirigentes do Partido Comunista Chinês (PCC), de um
nítido consenso quanto à necessidade de usar os recursos de vários
tipos à disposição do regime, a fim de dar resposta coordenada aos
desafios que se levantavam diante do projeto de rejuvenescimento
do velho País.
1
Um exame mais detido permite datar de 1996 a
consolidação de um programa multifacético de trabalho, com dois
objetivos principais: (l) assegurar no plano internacional as
condições necessárias ao prosseguimento tranqüilo da edificação
de uma China próspera e desenvolvida; (2) reduzir a possibilidade
de os EUA, ou terceiros países com o apoio americano, frustrarem
o projeto chinês.
1
Alves, Ana. “The Resurgence of China’s Third World Policy in the 21
st
Century”,
In Daxiyangguo. Lisboa: Instituto do Oriente – ISCP (n.11, 1º sem. 2007). Ana
Alves, pesquisadora do Instituto, apresenta neste bem construído artigo, uma análise
de formação do consenso em causa.
A CHINA CONSTRÓI UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
COM A ÁFRICA
Amaury Porto de Oliveira
338
Amaury Porto de Oliveira
Esses dois objetivos vinham ganhando consistência desde o início
da década, em reação à hostilidade desencadeada no Ocidente pelo
trágico episódio de Tiananmen (1989). Sobrevindo à sombra do
desmoronamento do “socialismo real” na Europa do Leste, o episódio
forçou a cúpula dirigente do PCC a um profundo balanço das
possibilidades de êxito das reformas lançadas dez anos antes por Deng
Xiaoping, bem como à avaliação crítica do que havia de aleatório ou
fundamental no desmoronamento da União Soviética. A principal
conclusão desse abrangente exame foi a de que a única maneira de o
PCC manter-se no poder era o aprofundamento das “Quatro
Modernizações” e a garantia de um entorno geográfico de paz e
tranqüilidade. Fato positivo nessa perspectiva era a verificação de que
os “novos países industriais” do Leste Asiático não haviam
acompanhado a reação hostil do Ocidente. O comportamento da
Coréia do Sul e de Taiwan havia, inclusive, compelido o Japão a romper
a frente dos industrializados, anunciando, na cúpula do G-7
(HOUSTON, 1990), sua decisão de suspender as sanções contra a
China.
Coube, ainda, a Deng Xiaoping, já quase nonagenário, dar forma
às duas principais adaptações da vida chinesa àquelas conclusões da
cúpula dirigente. A primeira foi a introdução de um sistema colegiado
de governo. Deng despiu-se voluntariamente de todas as suas
prerrogativas de dirigente máximo e institucionalizou no País, ao ensejo
do XIV Congresso do PCC (1992), o governo da “geração”.
2
Um
sistema de governo oligárquico, que, no caso da China, repousa no
2
Para uma investigação em torno da “geração” como forma colegiada de governo, na
China, cf. Porto de Oliveira, Amaury. “Governando a China: a quarta geração de
dirigentes assume o controle da modernização” In: Revista Brasileira de Política
Internacional. Brasília (vol.42 n.2 jul/dez 2002)
A China constrói uma parceria estratégica com a África
339
Comitê Central do PCC, instância em que se congrega a elite política,
econômica, científica e militar do regime. A cada cinco anos, os mais
diversos grupos e corporações do País enviam seus delegados ao
Congresso nacional do partido, e, desse aglomerado, saem os duzentos
e tantos membros do Comitê Central, com mandato até o próximo
congresso. Os membros do PCC elegem dentre eles vinte e poucos
membros do Birô Político, os quais, antes de se espalharem pelo País,
designam nove dos seus membros para um Comitê Permanente,
sediado em Pequim, como a face pública da geração e o executor das
tarefas práticas da governança. Tal como institucionalizado por Deng,
os membros do CP do BP - grupo onde figuram o Secretário Geral,
o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Chefe do
Legislativo - têm um mandato máximo de dez anos e são aposentados
compulsoriamente ao completarem 70 anos. A primeira dessas equipes
colegiadas, que se tornou conhecida como Terceira Geração, sob a
direção de Jiang Zemin, passou sem problemas, em 2002, o cetro do
Poder à Quarta Geração, que vem sendo dirigida por Hu Jintao. No
XVII Congresso do PCC, realizado em outubro de 2007, ajustamentos
de pessoas foram feitos no CP, prenunciando uma nova passagem
tranqüila do Poder à Quinta Geração, no Congresso previsto para
2012.
Os governantes da República Popular da China (RPC) não são
eleitos em pleito popular, mas tampouco são usurpadores do Poder.
Chegam aos seus altos postos através de uma demorada construção de
folha-de-serviços ao Partido e ao Estado, continuamente submetidos
ao julgamento dos seus pares. Os raros que alcançam o nível de
membro do Comitê Permanente dificilmente o conseguem antes de
cinqüenta e poucos anos. Deng Xiaoping praticamente remodelou o
partido, que saíra bastante fragilizado da Revolução Cultural
340
Amaury Porto de Oliveira
desfechada por Mao Zedong. O PCC é, hoje, organização poderosa
de mais de 80 milhões de membros, majoritariamente jovens e
profissionalizados, que demonstram extrema proficiência na
implementação da grande estratégia do regime. Embora mantendo-se
idealmente preso às aspirações revolucionárias do movimento liderado
por Mao Zedong, o PCC veio a atuar de forma predominantemente
nacionalista. Cabe à organização, não a eventual líder carismático, a
responsabilidade pela grande estratégia de afirmação nacional.
A outra iniciativa de Deng Xiaoping, com repercussões de monta
na grande estratégia do regime, foi a integração da diáspora chinesa na
obra de modernização e desenvolvimento do País ancestral. Mao Zedong,
após haver tentado, sem êxito, usar as colônias de “chineses do ultramar”
para promover revoluções pelo Sudeste Asiático, chegara a uma solução
de equilíbrio com os vizinhos, estabelecendo barreiras formais entre
aquelas colônias e a população da RPC. Deng Xiaoping cuidou, desde o
início, de desfazer tais barreiras, criando incentivos para que os empresários
da diáspora viessem cooperar com as “Quatro Modernizações”, e,
sobretudo, com a integração da economia chinesa modernizada no
mercado global. As “zonas econômicas especiais” (ZEE), abertas logo em
1979, permitiram a transferência maciça de pequenas e médias empresas
de Hong Kong e Taiwan para as províncias de Guangdong e Fujian, base
da transformação do Delta do Rio das Pérolas na “oficina do mundo”, de
que se fala hoje. Mas foi após o famoso circuito de Deng pelas cidades do
Sul e Xangai, em 1992, que o grande capital da diáspora assumiu o papel
de mediador na grande barganha entre a RPC e o capital transnacional,
barganha responsável pelo excepcional crescimento da economia chinesa
nos últimos três lustros. Calcula-se que dois terços dos capitais investidos
na edificação da infra-estrutura de estradas, etc., sobre a qual avança a
China, venham da diáspora.
A China constrói uma parceria estratégica com a África
341
Preocupados em não deixar o crescimento da China causar
temores entre os seus vizinhos, os dirigentes chineses puseram em
marcha, nos anos 90, uma política de boa vizinhança, de maneira a ir
dando solução negociada aos litígios que pudessem existir com os países
situados ao longo da extensa linha fronteiriça da China no coração da
Ásia. Tornou-se essa política conhecida como “diplomacia zhoubian
(periférica)” e não tardou que ela tomasse dimensões globais. A frustração
de Pequim com a derrota da sua primeira candidatura a sediar as
Olimpíadas é, geralmente, citada entre os determinantes da
universalização da diplomacia zhoubian. O fato foi que os altos
governantes chineses passaram a percorrer o mundo, martelando uma
versão da ordem mundial distinta da que vinha divulgando Washington.
Os chineses insistiam em três pontos: (a) todos os países, grandes ou
pequenos, são iguais, e potência alguma pode ditar o comportamento
deles; (b) é necessário barrar a monopolização do poder mundial,
instituindo um poder colegiado de países, com as Nações Unidas como
a base institucional; (c) a nova ordem precisará incluir a idéia de um
relacionamento econômico de novo tipo, de modo a assegurar aos países
em desenvolvimento a ajuda externa à respectiva modernização. Onde
esses pontos encontravam eco, buscavam os chineses obter o
estabelecimento de uma “parceria”, rotulada “parceria estratégica” quando
era mais profundo o entendimento. Em 1993, o então Vice Primeiro-
Ministro Zhou Rongji propôs, no Congresso brasileiro, o
estabelecimento da parceria estratégica Brasil-China. E em 1996, num
périplo por vários países africanos, o Secretário-Geral Jiang Zemin,
discursando na Organização da Unidade Africana (OUA), em Adis
Abeba, lançou a idéia do Foro de Cooperação África-China (FOCAC).
Uma parceria estratégica da China com todo o continente africano,
que iria ser formalmente instalada em 2000.
342
Amaury Porto de Oliveira
RADIOGRAFIA DO PARCEIRO AFRICANO
Quem é esse parceiro estratégico que a China passou a cultivar
com grande empenho? O segundo maior continente do globo, com
mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, incluídos os territórios
insulares (há onze deles, seis dos quais independentes). Abriga o
conjunto cerca de 700 milhões de habitantes, distribuídos no presente
entre 54 países de tamanhos e riquezas bem distintos entre si. O Deserto
do Saara divide a massa continental em duas regiões bem marcadas: a
África do Norte, arabizada, e a África Sub-saariana,
predominantemente negra, com exceção das terras meridionais, onde
houve uma colonização de povoamento holandesa e inglesa. A África
do Norte tem história milenar de relacionamento com os povos
europeus da margem oposta do Mediterrâneo, enquanto a África Sub-
saariana só veio a ser penetrada de forma sistemática, por desbravadores
europeus, a partir do século XIX. Os desdobramentos correspondentes
ficaram simbolizados pela Conferência de Berlim (1884-85), na qual
potências européias e os EUA estabeleceram os princípios que iriam
reger a chamada “partilha da África”, isto é, os meios e modos como
os países líderes da Revolução Industrial disporiam, a seu talante, das
riquezas naturais do continente africano, a fim de dar sustentação ao
desenvolvimento do mundo industrializado. A China não faz segredo
de que sua parceria com a África visa, também, a assegurar o acesso às
riquezas naturais africanas, como aporte de valor para o
desenvolvimento econômico chinês. Mas é bem diferente a maneira
como começam a trabalhar os chineses, do que foram as práticas dos
colonizadores ocidentais. Meu objetivo central neste ensaio é,
precisamente, estabelecer tal diferença. No processo FOCAC, os
chineses buscam cooperação com todos os países africanos, e, nos seus
A China constrói uma parceria estratégica com a África
343
contínuos périplos pelo continente, os dirigentes de Pequim visitam,
regularmente, capitais do Norte e da área Sub-saariana. Como tenha
eu, no entanto, o propósito de estabelecer comparações entre métodos
de abordagem, será conveniente limitar minha análise à África Sub-
saariana, que foi o alvo efetivo das potências do Congresso de Berlim.
Um bom ponto de partida para o trabalho de comparação
pretendido pode ser encontrado no Volume 3 da trilogia de Manuel
Castells sobre a “Era da Informação”. Por coincidência, esse volume
foi originalmente publicado, nos EUA, em 1996. O ano em que se
consolidou, na China, a idéia de uma grande estratégia para o regime,
e também o ano em que Jiang Zemin propôs na OUA, em Adis Abeba,
o início de uma parceria estratégica China-África. A essa altura, a
RPC já tinha quatro décadas de relações com países africanos, havendo,
inclusive, ajudado materialmente alguns dos movimentos
independentistas do continente e na construção de obras de infra-
estrutura, como estradas-de-ferro e outras. Mas o FOCAC, nascido
da proposta de Jiang Zemin, iria representar um tipo de cooperação
completamente novo, na sua abrangência e propósitos. A obra de
Castells é anterior a essa reentrada em cena dos chineses, e a preocupante
radiografia que ele apresenta do estado da África Negra, na década
final do século XX, descreve apenas o resultado de um século de
implementação dos desígnios da Conferência de Berlim.
“Nas duas últimas décadas – escrevia Castells em 1996 – enquanto
uma economia global e dinâmica se instaurava em boa parte do mundo,
a África Sub-saariana experimentava um processo de significativa
deterioração de sua posição relativa no comércio, investimentos,
produção e consumo em relação a todas as demais áreas do globo, e
concomitantemente seu PIB per capita sofreu uma queda durante o
período de 1980 a 1995. No início da década de 90, a receita conjunta
344
Amaury Porto de Oliveira
de exportação de seus 45 países, com uma população de cerca de
quinhentos milhões de habitantes, atingiu apenas US$ 36 bilhões em
valores atuais, registrando queda em relação aos US$ 50 bilhões
auferidos em 1980. Essa cifra corresponde a menos da metade das
exportações de Hong Kong no mesmo período. Sob uma perspectiva
histórica, de 1870 a 1970, durante a incorporação da África à economia
capitalista, sob o período neocolonialista, as exportações africanas
tiveram crescimento acelerado, com sucessivos aumentos da
participação no total de exportações dos países em desenvolvimento.
Em 1950, a África respondia por mais de 3% das exportações mundiais;
em 1990, contudo, por cerca de 1,1%. Em 1980, a África era o destino
de 3,1% do total das exportações mundiais; em 1995, esse número
caiu para 1,5%”.
3
Não é preciso esforço especial de interpretação para concluir,
dos números acima, que o comércio internacional da África Sub-
saariana floresceu enquanto esteve a serviço das metrópoles coloniais.
Iria perder vigor à medida que era tomado em mãos por Estados
independentes, na segunda metade do século XX. Esses Estados foram
herdando economias voltadas para o exterior, fortemente concentradas
na exportação de commodities primárias (92% do total das exportações),
principalmente agrícolas (cerca de 76% da receita das exportações em
1989/90, com o café e o cacau representando 40% dessa receita). Os
termos de troca no comércio internacional deterioraram-se a partir
de meados dos anos 70, e os novéis Estados africanos foram
encontrando dificuldade para desenvolver-se, inclusive sob a ação
perversa das políticas de ajuste inspiradas pelo FMI e pelo Banco
Mundial. Enquanto no Leste e Sul da Ásia, a razão entre exportação
3
Castells, Manuel. A Era da Informação: Vol. 3 – Fim de Milênio. São Paulo: Paz
e Terra, 1996 (p.108)
A China constrói uma parceria estratégica com a África
345
de bens manufaturados sobre o total das exportações saltava de 28,3%
(1965) para 58,5% (1985), na África Sub-saariana essa razão caía, no
mesmo período, de 7,8% para 5,9%.
A linha de trabalho das “potências de Berlim” está, hoje, sob o
comando dos EUA. Não se pode dizer que os objetivos estratégicos
perseguidos pelos americanos sejam o oposto dos buscados pelos
chineses. Trata-se, nos dois casos, de incrementar a produção de
hidrocarbonetos na África, assegurando um maior fluxo dos mesmos
para as respectivas economias; de financiar grandes projetos de infra-
estrutura que facilitem os dois objetivos anteriores; e de promover
um ambiente de paz e prosperidade na África, com reflexos positivos
para o resto do mundo. As divergências aparecem na natureza dos
agentes econômicos responsáveis pelos investimentos financeiros, com
a maior presença do Estado nos investimentos chineses, e, mais do
que tudo, na preocupação central de Washington com o que os anglo-
saxões chamam state-building. Tradicionalmente, e não apenas na
África, os EUA, comportando-se como líderes hegemônicos do
mundo, buscam ter voz sobre quem vai dirigir tal ou qual país. Já os
chineses, extremamente ciosos da defesa da soberania nacional,
procuram trabalhar com os regimes africanos como a História permite,
ou permitiu, que eles sejam. Exigem apenas que o outro lado não
mantenha relações diplomáticas com Taiwan. Uma expressão prática
dessa maneira distinta de tratar os regimes em posto na África Sub-
saariana, na virada para o século XXI, é a pressão de Washington para
que eles se democratizem, vale dizer, aceitem a rotatividade na direção
da república de coalizões de forças político-econômicas escolhidas em
votação popular ampla e secreta. A partir de 1988, quando dois
atentados terroristas, atribuídos à Al-Quaeda, destruíram as
Embaixadas americanas no Quênia e em Tanzânia, essa tarefa auto-
346
Amaury Porto de Oliveira
assumida dos EUA complicou-se ainda mais, com a necessidade de
combater o terrorismo.
Não faltam análises críticas, inclusive de acadêmicos e políticos
americanos, dessa busca por Washington de modelar as estruturas
institucionais da África. É o caso de artigo muito citado dos
professores Princeton N. Lyman e J. Stephen Morrison. O Professor
P. N. Lyman, senior fellow do Conselho de Relações Exteriores e ex-
Embaixador dos EUA na Nigéria e na África do Sul, organizou, em
2007, uma coletânea de ensaios, tendo como tônica, precisamente, as
insuficiências e contradições da estratégia dos EUA em relação à África
Negra. Ele critica a estreiteza e inanidade da fixação na luta contra o
terrorismo: “Em vez de concentrar-se na liquidação de células da Al-
Quaeda, é preciso atacar os problemas fundamentais do continente: a
destituição econômica; as fissuras étnicas e religiosas; a frágil
governança; a débil democracia; e a multiplicação dos abusos aos direitos
humanos – causas todas do florescimento do terrorismo. Cabe,
também, eliminar os obstáculos persistentes no seio da Administração,
em Washington, à implementação de uma estratégia africana coerente”.
4
Exemplo concreto da frustração trazida pelo tipo de abordagem
usada pelos EUA, na África, são os acontecimentos recentes no Quênia.
Um país de 37 milhões de habitantes que, embora sem recursos
minerais de monta, é considerado o principal centro financeiro e
econômico da África Oriental graças às suas exportações agrícolas (café
e chá, principalmente); ao turismo; e à posição de porta de entrada
para o comércio internacional de alguns países vizinhos. O Quênia
4
Lyman, Princeton N. & F. Stephen Morrison. “The Terrorist Threat in África”. In:
Foreig Affairs. vol.83 n.1 (jan/fev 2004) cf. também Beyond Humanitarianism
Lyman, Princeton N. &Patricia Dorff (eds.). Washington. Council on Foreign
Relations, 2007
A China constrói uma parceria estratégica com a África
347
foi escolhido por Washington para ser um dos seus “países-âncoras”
na África Sub-saariana. Com a Nigéria e a África do Sul, serviria de
pilar sobre o qual repousar o empenho americano de instalar a
democracia e a economia liberal no Continente Negro. Quando, em
dezembro de 2002, cinco milhões de eleitores foram às urnas, no
Quênia, para pôr fim a 24 anos do governo ditatorial de Daniel arap
Moi, o sonho americano pareceu em vias de realizar-se. O novo
Presidente, Mwai Kibaki, foi recebido por George W. Bush na Casa
Branca (o primeiro Chefe de Estado africano a merecer essa honraria),
e o Quênia passou a ser continuamente citado como o pioneiro de
uma nova era na África. Em dezembro de 2007, no entanto, quando
se tratou de decidir sobre novo mandato, uma camarilha em torno de
Kibaki fraudou brutalmente a contagem dos votos. Observadores da
União Européia atestaram isso, mas George W. Bush saudara
precipitadamente a “vitória” de Kibaki. A diplomacia americana acabou
juntando-se, com embaraço, à busca internacional por um
compromisso entre governo e oposição, que se espera seja capaz de
sustar as matanças étnicas no Quênia. Ficou claro, porém que a real
preocupação dos EUA é com a “preservação da estabilidade política”,
não com a consolidação da democracia.
O retrocesso queniano torna oportuno um retorno à cintilante
radiografia da África Negra, produzida por Manuel Castells. Buscando
respostas para a pergunta premente de por quê o Estado-nação segue
predatório na África, enquanto se tornou motor de desenvolvimento
no Leste Asiático, Castells inspira-se em africanistas, como Basil
Davidson e Jean-François Bayart, para contestar a explicação
reducionista em voga da “hostilidade entre etnias”. É certo que conflitos
étnicos multiplicam-se na África, mas as complexas relações entre etnia,
sociedade, Estado e economia não podem ser ignoradas. A maioria
348
Amaury Porto de Oliveira
das definições sociopolíticas hoje usadas nem sequer existiam antes da
colonização. Foram os administradores franceses e britânicos que
ordenaram a paisagem humana dos territórios sob seu domínio,
utilizando seus próprios conceitos, e, em conformidade com os
mesmos, comandando movimentos migratórios e as anotações nas
certidões de nascimento e cédulas de identidade. As decisões
governamentais eram tomadas com base nas idéias de que os africanos
viviam em “tribos” e a “lealdade tribal” era o grande componente da
vida política local; mas, o que a história concreta produziu não foi o
predomínio do tribalismo, e, sim, a generalização da política do
clientelismo. Como acentua Castells:
“Uma vez estabelecida a estrutura destinada aos chefes tribais, o Estado
costumeiro tornou-se um mecanismo fundamental de controle sobre a
terra e a mão-de-obra, de modo que pertencer a uma tribo era o único
meio de acesso a recursos de qualquer natureza e a única forma reconhecida
de intermediação junto ao Estado moderno e juridicamente instituído, o
elo de ligação com os vastos recursos do mundo exterior, o sistema
internacional de riqueza e poder. Após a independência, as elites
nacionalistas da África simplesmente ocuparam o vazio deixado pelas
mesmas estruturas do Estado moderno, juridicamente instituído pelos ex-
colonizadores (...) A etnia transformou-se na principal via de acesso ao
controle estatal sobre os recursos. Porém eram o Estado e suas elites que
criavam e recriavam a identidade e lealdade étnicas, e não o contrário”.
5
Observações e comentários da mídia internacional, que vão
surgindo a propósito da situação no Quênia, validam a análise de
5
Castells op. Cit. (pp.132-133)
A China constrói uma parceria estratégica com a África
349
Castells. A decisão de personagens em torno de Kibaki de fraudar o
resultado das eleições e reempossar o antigo Presidente, na calada da
noite, apenas repetiu a dificuldade que têm os grupos políticos africanos,
no poder, de passar adiante o governo, visto como o acesso à posse
das riquezas nacionais. No Quênia, desde a época de Jomo Kenyatta,
fundador do regime, os amigos do Chefe ficam com tudo. Que esses
amigos sejam, majoritariamente, da mesma etnia, é decorrência, antes
de mais nada, do nepotismo reinante. Um correspondente americano
recolheu desabafo do candidato derrotado nas últimas eleições, Raila
Odinga: “Não se trata de raça. Kibaki representa uma pequena
camarilha que vem se encarregando da distribuição injusta dos recursos
do Quênia.” Na mesma correspondência, o jornalista explicou o
incêndio de um vilarejo por membros de etnia vizinha, comentando
que o ataque pouco tivera com rivalidades étnicas ou com a disputa
eleitoral. Os incendiários queriam a terra.
A CONVERGÊNCIA SINO-AFRICANA
Conforme ressaltado mais atrás, os chineses da atualidade,
diferentemente dos americanos, não se preocupam com a questão do
state-building nos seus contatos com a África. Os chineses trabalham
com o governo em posto, sem tentar modificá-lo. Mas nem sempre
foi assim. No tempo de Mao Zedong, para quem os motores da ordem
mundial eram a guerra e a revolução, a China ajudou movimentos
contestatórios africanos a pelo menos tentarem mudar o regime em
vigor. Deng Xiaoping, no entanto, trouxe visão mais positiva do
mundo, buscando uma ordem mundial assentada na paz e no
desenvolvimento. No tocante à África, as novas preocupações chinesas
vieram a encontrar eco em transformações domésticas, tendentes a
350
Amaury Porto de Oliveira
mobilizar a resistência de estudantes, intelectuais, sindicatos, grupos
religiosos e outros aos regimes ditatoriais que se eternizavam no poder,
sem capacidade de superar a deterioração social e econômica que
prolongava as limitações da era colonial. Na década de 90, uma
onda democratizante percorreu a África, contribuindo para a
aproximação com a China de Deng. Nos dois lados da equação,
decisões pragmáticas iam tomando o lugar de posicionamentos
ideológicos.
O Centro de Estudos das Relações Transnacionais da China,
com sede em Hong Kong, vem dedicando atenção a esse tema das
transformações domésticas na China e na África e do mútuo reforço
dos dois movimentos. Mesmo os percalços encontrados no caminho
podem acabar tendo efeito positivo. Foi o caso das manifestações
estudantis de Nanquim, ocorridas em 1989, alguns meses antes dos
trágicos acontecimentos de Tiananmen. Nos dois episódios,
estudantes protestavam contra decorrências das reformas de Deng,
sendo que em Nanquim a insatisfação era com o alegado
favorecimento de estagiários africanos, que gozariam de facilidades
não disponíveis para os nacionais. Em ambos os casos, a
movimentação estudantil foi reprimida com violência, com
repercussões negativas no exterior. Segundo um estudo do Centro
de Hong Kong, manifestações de desagrado de governos africanos
com sinais de racismo no tratamento dado a seus estudantes,
contribuíram para a decisão de Pequim de atalhar o mal-estar,
estendendo à África a sua diplomacia zhoubian. O Diretor do
Centro, Professor David Zweig, trouxe também à baila, num
seminário em Hong Kong, o papel de empresários e comerciantes
chineses, que se permitiam criticar o “comportamento passivo” das
Embaixadas da China na África, diante das grandes possibilidades
A China constrói uma parceria estratégica com a África
351
de trabalho existentes naquele continente. Zweig rotulou de
“difusão do descontentamento” a atitude dos empresários e
comerciantes, que estariam, na verdade, dando vazas a insatisfações,
de maneira impraticável no interior da China.
6
A relativa liberdade diante do governo central, arvorada na
África por homens de negócios chineses, está muito na base das críticas
que surgem, ali, em relação aos resultados a esperar do trabalho chinês
no continente. Pequim procura regulamentar o comportamento dos
seus empresários, e, ainda em novembro de 2006, baixou os “Nove
Princípios para Incentivar e Estandardizar Investimentos Empresariais
no Ultramar”. Mas homens de negócios tendem a comportar-se como
homens de negócios. Dão prioridade aos seus lucros sobre o respeito
aos interesses do Estado e dos trabalhadores, no país onde atuam.
Companhias privadas representam, cada vez mais, parcela substancial
das empresas chinesas em operação na África, e é hipocrisia de
concorrentes criticá-las por não estarem contribuindo de forma mais
avisada para o desenvolvimento futuro das economias africanas.
Resultados deste outro tipo espera-se que surjam, a mais longo prazo,
da convergência de interesses e trabalho no nível dos governos. O
Financial Times dedicou todo um suplemento (24.01.08)
7
a esse tema.
Pôs em contraste a inanidade e passadismo da cúpula Euro-Africana,
de dezembro de 2007, com o dinamismo e abertura para o futuro da
cúpula Sino-Africana, de novembro de 2006: “Os contornos de uma
nova ordem ainda estão sendo traçados, mas a crescente presença da
6
cf. Li Anshan “Transformation of China’s Policy Towards África”. Hong Kong:
Center on China’s Transnational Relations Working Paper n.20 cf. também
Moumouni, Guillaume. “Domestic Transformations and Change in Sino-African
Relations”. Hong Kong: Center on China’s Transnational Relations Working
Paper nº 21
7
Wallis,Wlillian “Drawing contours of a new world order” Suplemento do Financial
Times (24-jan/2008) disp. em http://www.ft.com/reports/africachinatrade2008
352
Amaury Porto de Oliveira
China na África já está abalando a velha e esgarçada ordem dominada
pelos cautelosos doadores ocidentais e as antigas potências coloniais.”
Em artigo escrito para esse mesmo suplemento, o Presidente do Senegal
acentuou que as relações econômicas entre países baseiam-se hoje em
interesses mútuos, e a realidade é que “a União Européia e os EUA
não podem competir com a China”.
Realçar as vantagens da cooperação com a China, em contraste
com o oferecido pelas antigas metrópoles coloniais, é uma constante
do discurso chinês em direção à África, desde o tempo dos projetos
concebidos no quadro dos Oito Princípios da Ajuda Chinesa,
formulados por Chu En-lai no espírito da Conferência de Bandung.
Ainda que hoje não seja tão sóbria a cooperação, segue a mesma
sendo estendida com a preocupação de marcar diferença com a
ajuda dos países ricos, e em meio a um notável desinteresse pelas
definições políticas dos países assistidos. Mesmo quando Pequim
ajudou materialmente a luta anticolonial, nunca procurou
promover regimes comunistas na África. Sem se deixar envolver
na complexidade das disputas internas, entre personalidades e
facções dos países africanos, os chineses dão primazia à edificação
de economias nacionais, usando as soluções chinesas apenas como
pontos de referência. Recorrem à expressão win-win para
caracterizar os projetos bilaterais, que supostamente trazem
benefício para os dois lados. Em que pese aos acidentes de percurso
que possam surgir na marcha da cooperação sino-africana; aos
atrasos e dificuldades que inevitavelmente ocorram na
implementação de projetos de infra-estrutura que mexem com
interesses concorrentes, a atuação mundial da China vem dando
aos líderes africanos mais alertas a oportunidade de cuidarem com
independência das suas casas.
A China constrói uma parceria estratégica com a África
353
No artigo acima citado, o Presidente Abdoulaye Wade disse
isso com clareza:
”A China está ajudando a África a responder às exigências da economia
de mercado com mais eficácia do que os capitalistas ocidentais (...) A
abordagem chinesa das nossas necessidades é simplesmente mais
apropriada do que a lenta e, por vezes, sobranceira resposta dos investidores
europeus post-coloniais, das instituições de doadores e das organizações
não-governamentais. Na realidade, a África tem muito a aprender com o
modelo chinês de desenvolvimento econômico acelerado”.
8
SEGURANÇA E DESENVOLVIMENTO
Nem todos os Chefes de Estados africanos terão visão tão
positiva da cooperação com a China quanto a externada pelo Presidente
do Senegal. Muitos deles, inclusive, apreciarão oportunísticamente o
trabalho com os chineses, na medida em que lhes proporciona
investimentos e créditos sem o incômodo dos “condicionamentos”
atados, em geral, à ajuda do Ocidente. Conforme já observei, não se
pode dizer que EUA e China persigam objetivos opostos na África,
mas são, sem dúvida, distintas, as abordagens e as prioridades. Vou
procurar dar uma idéia das duas estratégias, sintetizando o exercício
sob a fórmula: segurança versus desenvolvimento.
Começarei evocando um ensaio publicado na Survival, de
dezembro de 2003,
9
no qual o autor examinou as repercussões, na
8
Wade, Abdoulaye. “Time for the west to practise what it preaches”. Suplemento do
Financial Times (23-jan/2008) disp. em http://www.ft.com/reports/
africachinatrade2008
9
Stevenson, Jonathan. “Africa’s Growing Strategic Resonance” in Survival vol.45
n.4 (Winter 2003/2004)
354
Amaury Porto de Oliveira
África Sub-saariana, da atitude desafiadora assumida pela Al-Quaeda
na abertura do novo século. Os EUA viram a conveniência de reduzir
sua dependência em relação aos hidrocarbonetos do Oriente Médio,
e a África surgiu como valiosa fonte alternativa de petróleo e gás
natural. As grandes transnacionais do setor intensificaram suas compras
de blocos na terra firme e ao largo da costa, em regiões como o Golfo
da Guiné, criando a ilusão para os países da área de que iriam receber
investimentos de valor desenvolvimentista. As companhias preferem,
no entanto, orientar suas novas compras para o largo da costa, em
encraves mais resguardados de pressões de tipo trabalhista. Algum
investimento na terra firme não deixa de ser feito, em projetos
logísticos, como o oleoduto destinado a escoar, pela costa dos
Camarões, o petróleo a ser extraído do Chade. De propriedade da
Esso em parceria com duas outras transnacionais, esse oleoduto foi
construído com a ajuda do Banco Mundial e será operado por uma
sociedade de subsidiárias da Exxon Mobil Corp., de Angola e do
Chade. Mas o autor do ensaio, especialista em antiterrorismo do IISS
de Londres, considera problemático apoiar na desejável diversificação
dos suprimentos energéticos uma nova abordagem da cooperação com
a África. As estratégias energéticas das grandes potências dependem
menos da escassez absoluta dos insumos do que das oscilações de custo
e confiabilidade das fontes. Uma queda acentuada no preço do petróleo,
por exemplo, é suficiente para alterar prioridades. Sem falar em que
as enormes vantagens competitivas dos países industrializados, diante
dos produtores africanos, seguirão permitindo aos primeiros que
obtenham barganhas sem dar muito em troca aos segundos.
De todo modo, o crescente envolvimento de grandes
transnacionais no petróleo e gás da África cria para as potências
ocidentais a necessidade de acompanhar mais de perto a evolução do
A China constrói uma parceria estratégica com a África
355
continente, em particular nos aspectos da segurança. Levar isso ao
nível da erradicação das causas do terrorismo, vedando aos terroristas
o acesso às regiões-chaves da África, exigiria a revitalização dos Estados
abortados do continente e um saneamento geral. Tarefa que está longe
de ser posta em marcha de maneira conseqüente. Os neo-conservadores
de Bush tentaram fazer alguma coisa. O próprio Presidente visitou,
em 2003, cinco países da África Ocidental e Central, prometendo
aplicar 15 bilhões de dólares em cinco anos, para enfrentar um dos
piores problemas da África Sub-saariana: o flagelo do HIV/AIDS.
Dois dos países visitados, Nigéria e África do Sul, foram erigidos,
com o Quênia, à posição de países-âncoras da ação regeneradora que
os EUA se propunham. Mas, como lembra J. Stevenson, no ensaio a
que me estou referindo, Nigéria e África do Sul não demonstraram
entusiasmo com a idéia de servir de veículo para o trabalho americano.
Mais efetiva vem sendo a ajuda no campo da saúde. O Plano
Presidencial de Emergência para o Tratamento da AIDS (PEPFAR,
na sigla inglesa) vai poder apresentar resultados positivos ao concluir
sua primeira fase em setembro de 2008, e o Presidente já solicitou
novos fundos ao Congresso. Agora em fevereiro, George W. Bush
efetuou novo giro, visitando Benin, Gana, Libéria, Ruanda e Tanzânia,
países que têm mostrado bom desempenho político.
Cumpre aqui falar um pouco da Nigéria, o segundo maior país
da África em extensão, com cerca de 140 milhões de habitantes. É o
maior produtor de petróleo do continente (sexto do mundo) e sua
economia só fica ali atrás da da África do Sul. Em 1999, um acidente
de avião livrou a Nigéria de três décadas de ruinosa ditadura militar e
pareceu que ia firmar-se uma era de democracia e prosperidade, sob a
liderança civil de um ex-general de religião cristã, Olusegun Obasanjo.
Em dois mandatos seus, avanços foram feitos no tocante à boa
356
Amaury Porto de Oliveira
governança segundo as normas das instituições de Bretton Woods, e a
Nigéria acumulou encômios internacionais. Mas o bom desempenho
macroeconômico apoiou-se quase só na benesse do petróleo em alta,
sem real correção das deficiências sociais. A apropriação do produto
nacional pelo grupo no poder continuou a processar-se em conformidade
com os usos do nepotismo africano, e mais de 70% da população segue
vivendo com menos de um dólar por dia. Obasanjo tentou o terceiro
mandato, mas diante da firmeza do Legislativo resignou-se a designar
um substituto, eleito e empossado em 2007. Tal como iria repetir-se no
Quênia, a contagem dos votos parece ter sido violentamente fraudada,
mas não existindo no caso nigeriano um opositor de peso, não
sobrevieram matanças étnicas. Em compensação, tomou vulto a indústria
dos seqüestros no Delta do Rio Níger, onde se situam as principais
regiões petrolíferas. O seqüestro de técnicos e executivos estrangeiros é
prática antiga ali, usada tradicionalmente como forma de protesto
político. Nos últimos anos, o crime organizado vinha ampliando a
prática dos seqüestros, e, depois das eleições de 2007, ao que descreveu
reportagem do Wall Street Journal (07.06.07), aumentaram os mesmos
drasticamente, virando uma espécie de rebelião contra o governo federal.
Dois meses antes dessa reportagem, The Economist havia dedicado
um longo e extremamente crítico artigo às eleições nigerianas,
sublinhando a certa altura: “Na maior parte do Delta, tornou-se difícil
distinguir entre políticos, gangsters e insurgentes.”
10
Tudo isso vem
afetando a produção petrolífera da Nigéria, que em junho de 2007 foi
de apenas 750 mil b/d, numa capacidade de três milhões de b/d. As
decrépitas refinarias do País chegaram a operar, em 2004, com apenas
um terço do seu potencial.
10
“Briefing Nigeria’s Elections “Big men, big fraud and big trouble” The Economist”
Londres, April 28
th
2007
A China constrói uma parceria estratégica com a África
357
Os repetidos retrocessos na difusão da democracia na África
pedem uma releitura da mencionada onda liberalizadora dos anos 90.
Todd J. Moss, do Center for Global Development, de Washington,
fez isso em livro recente.
11
A transição para a independência – lembra
ele – foi acompanhada, em quase todos os países africanos, pela eleição
de um governo nacional. Em casos extremos, como Angola e
Moçambique, a guerrilha independentista ocupou diretamente o
governo central, mas, mesmo quando houve eleição, a tendência
predominante foi impedir a constituição de oposição legal efetiva, o
que resultou numa sucessão de golpes de Estado para obter o rodízio
no poder. Em meados dos anos 80, eram muito poucas as democracias
multipartidárias na África (Botsuana e Maurício brilhavam como
exceções). Na década seguinte, porém, sobreveio a vaga de eleições,
em decorrência de mudanças políticas tanto no interior do continente
quanto no plano internacional. Com o fim da Guerra Fria, cessara a
rivalidade entre Washington e Moscou pela amizade dos regimes
africanos e a preocupação com os direitos humanos ganhou precedência
nas agendas ocidentais. No âmbito continental, o crescimento e
rejuvenescimento das populações; a insatisfação com o manejo das
economias e o mau atendimento das necessidades básicas, tudo isso
foi impulsionando no sentido da democratização dos sistemas. Mas
avançar por aí será processo longo e complexo. Uma das razões é que
as sociedades do continente dispõem já de velhas estruturas de
autoridade, nas quais a legitimidade do mando é assegurada por
caminhos distintos da prática eleitoral montada historicamente no
Ocidente. São inúmeras as clivagens culturais, físicas e sociais que
orientam as instâncias políticas na África, e, por via de conseqüência,
11
Moss, Todd J. African Development Boulder: Lynne Rienner, 2007
358
Amaury Porto de Oliveira
as trajetórias que determinam quem é o chefe. Conforme já ficou
visto, será também simplista reduzir essa complexidade a diferenças
étnicas. Na experiência histórica ocidental, a aspiração pela democracia
costuma ser associada ao fortalecimento de uma classe média próspera
e educada, desenvolvimento bastante raro na África. A pressão pela
abertura política decorre, ali, como no caso da Nigéria, da frustração
da juventude com a falta de empregos e escolas, além do desencanto
com a corrupção das elites. E descamba facilmente na violência.
Clivagem de importância magna é a religião. Não que haja
incompatibilidade entre democracia e definição religiosa. A Etiópia
é um exemplo africano de populações cristãs e mulçumanas
convivendo há séculos pacificamente. Mas é fato da vida, exaustiva
e inconclusivamente debatido na mídia e escritos acadêmicos, que
o império americano está em rota de colisão com o
fundamentalismo islâmico. Na África, a primazia que os EUA
passaram a dar à luta antiterrorista tem tirado eficácia ao que
poderia ser uma substancial ajuda ao desenvolvimento econômico
do continente. O consenso internacional de que a África é a mais
necessitada das regiões do globo, em termos de ajuda humanitária,
vê-se frustrado pela convicção concomitantemente explicitada, em
conciliábulos de potências com histórico colonialista, de que vastas
zonas africanas são campos apropriados de batalha na luta
antiterror. Em 2007, os EUA reuniram sob um comando único, o
AFRICOM, todas as suas operações militares no continente. A
área coberta por esse comando cobre duas grandes regiões: a Bacia
do Golfo da Guiné e, na outra costa, o Chifre da África. Ligando
as duas, estende-se uma faixa de países do Sahel, agregados pela
chamada “Parceria Trans-Saárica de Contra-Terrorismo”.
Destacamentos de combatentes da Mauritânia, Mali, Niger e Chade,
A China constrói uma parceria estratégica com a África
359
vêm sendo treinados por oficiais americanos para assegurar a defesa
dos “espaços subgovernados” da África profunda, conforme
explicado aos jornalistas.
Dos três países escolhidos pelos EUA para servirem de âncora
na consolidação da democracia, na África, o único que tem
correspondido à expectativa é a África do Sul. A explicação reside na
própria história política do País. A luta dos sul-africanos pela obtenção
e preservação do direito às suas opções políticas não tem dependido
da boa disposição de líderes ocasionais. Desde 1912, a direção da luta
foi assumida por um partido de vocação revolucionária, o Congresso
Nacional Africano (CNA). Ao longo de quase um século, passando
por fases insurrecionais e períodos de clandestinidade, o CNA
conduziu a batalha pela independência e pela liquidação do apartheid,
e tem sido, desde 1994, o depositário do poder governamental. Tanto
Nelson Mandela quanto Thabo Mbeki foram líderes do CNA, antes
de serem aceitos como Presidentes da República. E já é dado como
certo que Jacob Zuma, eleito líder do CNA na 52ª Conferência
Nacional, em dezembro de 2007, conquistará a presidência do País,
em 2009. Tal como Mbeki, Zuma é um produto do CNA, organização
a que ambos se filiaram na adolescência. São grandes, contudo, as
divergências entre eles, no tocante às definições econômicas do regime.
Mbeki mostrou grande simpatia pelas receitas do liberalismo
americano, enquanto Zuma tem opções mais radicais, com o apoio
dos sindicatos e dos comunistas. Qualquer, porém, que venha a ser a
evolução da África do Sul nos próximos anos, Mbeki, que não pode
concorrer a um terceiro mandato, terá deixado importante legado
para o bom funcionamento das instituições jurídicas de toda a África
Sub-saariana. Ele foi o grande promotor de um ideário que busca
recuperar, para os Estados africanos, a responsabilidade na definição
360
Amaury Porto de Oliveira
e aplicação, na África, dos valores da democracia, dos direitos humanos,
da paz e da boa governança, de forma consistente com o desenvolvimento
econômico e na perspectiva da reinserção da África no mundo globalizado.
No final dos anos 90, Mbeki pôde dar forma ao ideário acima, através do
MAP (Millenium Partnership for the African Recovery), um plano de
desenvolvimento continental, para o qual ele obteve o apoio de outros
líderes africanos, em especial Obasanjo, da Nigéria. O Presidente Wade,
do Senegal, havia proposto um plano paralelo, o OMEGA, que veio a
ser fundido com o MAP, na cúpula da OUA, em Lusaka (2001). Dessa
fusão nasceu a NAI (New African Initiative), posteriormente ampliada
no NEPAD (New Partnership for African Development). Mbeki foi
também o articulador da transformação da OUA na União Africana,
uma evolução que pode ser vista como o abandono do pan-africanismo
de inspiração americana, concebido por próceres da geração de Nkrumah,
em favor de fórmulas integracionistas inspiradas no processo europeu.
12
Não é raro encontrar, na imprensa internacional, comentários que
tendem a ver a constituição do NEPAD e da UA como indicações de que
a África está buscando institucionalizar-se em termos liberais, divergentes,
por definição, das fórmulas chinesas. São conclusões apressadas, que
revelam desconhecimento das novas realidades da China. Como será
impraticável estender-me aqui no assunto, vou transcrever sugestivo
comentário de autor que é, no momento, um dos mais abalizados
intérpretes da aproximação China-África:
“A primeira das expressões institucionais do pan-africanismo, a
Organização da Unidade Africana (OUA), foi vista por muitos como
12
Uma boa análise das iniciativas de Thabo Mbeki é a do professor da Universidade de
Brasília. Döpcke Wolfgang. “Há solução para a África? Thabo Mbeki e seu partnership
for African Development”. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília
(vol.45 n.1 jan/jun 2002)
A China constrói uma parceria estratégica com a África
361
desvirtuando a preocupação com os direitos humanos, originalmente
presente na solidariedade continental africana, de modo a fazer dessa
preocupação um bastião de apoio a ditadores e ações iliberais. Mas a
instituição sucessora, a União Africana (UA), também manipulou a
noção de solidariedade, fazendo dela uma força de transformação
continental, só que em sentido oposto ao dos apoios acríticos do
passado. Isso fica bem evidente quando se consideram os novos
preceitos, que autorizam a intervenção da UA nos assuntos internos
dos Estados africanos, se se caracterizarem situações de genocídio,
por exemplo. O governo chinês tem clara percepção da importância
retórica do pan-africanismo para os líderes africanos, e não deixa de
incorporar as preocupações correspondentes nos seus
pronunciamentos políticos, nos documentos do FOCAC e em medidas
concretas como o financiamento de projetos do NEPAD ou a oferta
de um novo edifício para sediar a UA, em Adis Abeba”.
13
A China não somente se ajusta à evolução do pan-africanismo,
como cuida também de orientar sua ajuda para o campo do
desenvolvimento, mais interessante para os africanos do que o da
segurança. Recapitule-se o caso do petróleo. Tanto os EUA quanto a
China adquiriram, na virada do século, especial interesse pelas reservas
ainda não exploradas dos hidrocarbonetos africanos. Dos EUA se diz
que pretendem estar importando da África, na altura de 2015, cerca
de um quarto do seu consumo doméstico de hidrocarbonetos, e o
blackagendareport.com, semanário afro-americano que circula na
internet,
14
explica o novo comando militar do Pentágono, o
AFRICOM, como destinado tanto à luta contra o terrorismo quanto
13
Alden Chris. China in Africa. London: Zed Books, 2007 (pp. 31-32)
14
Artigo disp. em http://www.blackagendareport.com
362
Amaury Porto de Oliveira
à proteção preventiva dos novos investimentos energéticos. Houve,
inclusive, comentários de imprensa, segundo os quais a verdadeira
razão do último circuito de Bush por países africanos foi negociar em
qual dos visitados será instalada a sede do AFRICOM. A China
mobiliza-se com grande empenho por essas mesmas reservas africanas,
que numa perspectiva de segurança energética nacional são, talvez,
mais importantes para ela do que para os EUA. Suas armas são o
comércio, a ajuda técnica e os investimentos. A parcela mais rica e
acessível das reservas africanas já está ocupada pelas corporações
ocidentais, mas ainda há boa margem para trabalho, inclusive em zonas
julgadas inóspitas por companhias capitalistas, presas a exigências de
rentabilidade ou de tempo de retorno do capital. Uma vantagem das
petrolíferas chinesas é que, sendo estatais, podem trabalhar com um
horizonte mais distante e expectativas menores de lucro. Elas têm
podido, assim, obter concessões de exploração em áreas vistas pelas
transnacionais como de risco inaceitável ou de valor declinante. Foi o
caso no Gabão, de onde as corporações haviam-se retirado, e a China
pôde assinar vários contratos, em 2004. No mesmo ano, a CNPC obteve
direitos de prospecção no Lago Chade, no Norte da Nigéria, área
desprezada pelos grupos ocidentais. Por esse acordo, a China encarregou-
se, também, da recuperação de uma velha refinaria nigeriana. O Sudão,
onde as dificuldades são de tipo político, é o grande sucesso dos chineses,
que praticamente criaram a indústria petrolífera no País, dotando-se de
uma fonte cativa de algo como um milhão de b/d de petróleo. Em
alguns casos, como a Etiópia ou a Somália, o investimento petrolífero
chinês parece tão desesperado, que só pode ser compreendido como
jogada a prazo longo, ou, como dizem alguns observadores, um exercício
de aprendizado, de coleta de conhecimentos sobre a geologia africana e
a maneira de trabalhar na África. O que está sempre presente nessa
A China constrói uma parceria estratégica com a África
363
estratégia de troca de ajuda material por matérias-primas é o valor
desenvolvimentista do investimento chinês. No Sudão, cerca de três
bilhões de dólares foram investidos, desde 1999, na construção de uma
refinaria, um porto, um hospital em Cartum, uma ponte sobre o Nilo
e diversos outros projetos. Algumas vezes, a obra é tão recôndita, que
somente as populações locais podem apreciar todo o seu valor. Foi o
caso com a ligação rodoviária entre Brazzaville e Pointe-Noire, estrada
de extrema necessidade, mas que nenhum doador, antes dos chineses,
concordara em enfrentar.
AJUDANDO A CONSTRUIR A NOVA ÁFRICA
À medida que a economia mundial vai avançando pelo século
XXI e se intensifica a globalização, a presença da China começa a ter
de ser vista, inovadoramente, não como a atuação de um corpo
econômico nacional, e, sim, como a ponta de lança de unidade bem
maior e mais complexa: a economia asiática. Em primeiro lugar, torna-
se mais correto falar de Círculo Chinês, em vez de simplesmente China.
Para efeitos práticos, economia chinesa é, hoje, o amálgama das
economias de Hong Kong, Taiwan e da diáspora chinesa do Sudeste
Asiático. Algo como dois terços do crescimento chinês é financiado
através das cadeias produtivas que dão forma a esse amálgama. Em
segundo lugar, o Círculo Chinês atua como a vanguarda das economias
da Índia, Coréia do Sul, e, em boa parte, até do Japão. Nesse contexto,
a China e a Índia adquirem especial relevo. São dois gigantes por suas
populações e presença geográfica, que vêm crescendo aceleradamente
há pelo menos dez anos, ambos dotados de importantes mercados
domésticos (um trilhão de dólares anuais na China e 250 bilhões de
dólares na Índia), mercados esses sustentados por classes médias em
364
Amaury Porto de Oliveira
expansão e crescentemente educadas. Nos últimos anos, instituições
como o Banco Mundial e a OCDE vêm-se debruçando na análise do
impacto que China e Índia já estão tendo sobre o resto do mundo,
inclusive, muito particularmente, sobre a África.
“Com a China e a Índia (as ‘Locomotivas Asiáticas’) integrando-se
aceleradamente na economia mundial – acentua um estudo recente da
OCDE
15
-, torna-se cada vez mais claro que os países menos
desenvolvidos vão ser significativamente afetados, de várias maneiras.
O gigantismo das Locomotivas Asiáticas, suas taxas fenomenais de
crescimento, a necessidade de recursos naturais das duas, seu poderio
econômico e político em fortalecimento, tudo isso mostra que elas
vão remodelar a economia mundial e proporcionar concorrência, mas
também oportunidades, através dos continentes: para os países
desenvolvidos, para os não desenvolvidos e para os emergentes.”
No tocante em especial à África, o estudo observa que as gigantes
asiáticas vão-lhe oferecer modelos de crescimento econômico e métodos
para a identificação de mercados potenciais, rivais comerciais e fontes
de financiamento.
Sem perder de vista esse fundo de cena mais amplo e rico, contra
o qual avança o trabalho chinês na África, vou, no entanto, cuidar,
nesta seção final, de descrever em linhas gerais os esforços específicos
da China na grande barganha – matérias-primas vs desenvolvimento –
que está recolocando a África no mapa da economia global, num
quadro de rápidas mudanças do comércio e das finanças internacionais.
Cabe acentuar, de início, a intensidade dos contatos sino-africanos no
15
Goldstein, Andréa et. al “What’s in it for Africa?” The Rise of China and Índia
Development Centre Studies, 2007
A China constrói uma parceria estratégica com a África
365
nível dos governantes. O Ministro do Exterior da China abre sua
agenda anual de contatos externos com um circuito de capitais
africanas, mudando o roteiro, evidentemente, a cada ano. Nos meses
subseqüentes, a prática vem sendo de périplos do Presidente da
República, do Primeiro Ministro e outras autoridades do Estado e
do PCC, que vão sendo respondidos por visitas de governantes e
líderes partidários do lado africano. Além dos encontros bilaterais,
sucedem-se as reuniões multilaterais de foros sino-africanos, e as
conversas à margem de sessões dos foros mais amplos. No já citado
artigo para o Financial Times, o Presidente do Senegal comentou:
“Eu obtive mais, numa conversa de uma hora com o Presidente Hu
Jintao, na suíte executiva do meu hotel em Berlim, durante a recente
sessão do G-8 em Heiligendam, do que durante todo o bem organizado
encontro dos lideres mundiais, no plenário.”
Vou organizar minha apresentação do trabalho chinês com apoio
num caderno do FMI, dado a público em outubro de 2007, sob a
responsabilidade de Jian-Ye Wang,
16
pesquisador do Departamento
Africano daquela instituição. O estudo procura quantificar o
relacionamento econômico da China com a África, de forma didática:
A – O
COMÉRCIO DE MERCADORIAS:
Tomou impulso a partir de 2000, crescendo a uma taxa anual
superior a 40% até 2006. Nesse último ano, o continente como um
16
WANG, Jian-Ye. “What Drives China’s Growing Role in Africa”? (out/2007).
International Monetary Fund. disponível em http://www.imf.org/external/pubs/
ft/wp/2007/wp07211.pdf
366
Amaury Porto de Oliveira
todo exportou US$ 28,8 bilhões para a China (contra importações de
US$ 26,7 bilhões), sendo que a África Sub-saariana absorveu cerca de
85% das exportações continentais. Estimativas preliminares sugerem
que os termos de comércio melhoraram de 80 a 90 por cento em
favor da África, no período 2001-2006. Apesar do rápido crescimento,
o comércio África-China é relativamente pequeno no contexto global.
A China recebeu 16% das exportações totais da África, e, embora seu
comércio redondo com o continente africano ainda seja menor do
que com o Oriente Médio, a diferença está diminuindo. Os chineses
deram-se por alvo elevar a 100 bilhões de dólares, até 2010, seu comércio
nos dois sentidos com a África.
B – ODA
E PERDÃO DE DÍVIDAS:
Contando-se desde 1956, a China contribuiu até 2006 com US$
5,7 bilhões para mais de 800 projetos de ajuda à África. A ODA chinesa
segue os princípios estabelecidos por Chu En-lai no começo dos anos
60 (doações, empréstimos sem juros ou a juros baixos, prazos longos
de pagamento). Há, também, programas de ajuda técnica, com ênfase
em tecnologia agrícola e treinamento em instituições chinesas. Pequim
dá preferência na sua ODA a projetos sociais e humanitários como
hospitais, escolas, moradias populares e instalações esportivas, mas
também usa a ODA para projetos de infra-estrutura. Há uma grande
disposição para perdoar dívidas. Na primeira cúpula do FOCAC
(outubro de 2000), o governo chinês comprometeu-se a não cobrar os
atrasados de 156 empréstimos feitos a países africanos, num total de
US$ 1,3 bilhão. A liquidação foi feita e na cúpula de novembro de
2006 foi anunciado o perdão de outra soma igual. No correr de 2007,
A China constrói uma parceria estratégica com a África
367
foram assinados acordos para o perdão das dívidas de 33 países menos
desenvolvidos da África.
C – I
NVESTIMENTOS DIRETOS ESTRANGEIROS:
Segundo o Serviço Nacional de Estatísticas da China, os IDE
chineses na África foram de US$ 392 milhões, em 2005, mas as cifras
oficiais podem não captar toda a magnitude dos fundos chineses que
fluem para a África. É pouco clara a linha divisória entre comércio e
financiamento de projetos por instituições financeiras e o investimento
direto de empresas chinesas. Sem falar em que as empresas privadas
costumam recorrer, para parte importante dos seus financiamentos, a
lucros retidos e outros arranjos informais, em vez de aos mercados de
capitais e empréstimos bancários. Os IDE fluem nos dois sentidos,
entre a China e a África, sendo de notar que uma grande parte dos
fluxos africanos têm origem em Maurício, sugerindo que vêm de fora
da África. Também digno de nota é o crescimento de investimentos
de firmas da África do Sul no mercado chinês.
D – C
ONTRATAÇÃO DE OBRAS E OUTROS SERVIÇOS:
A África é um importante mercado para construtoras chinesas,
que empreendem a construção de estradas, pontes, escolas, centros
comerciais, edifícios para residências ou escritórios, usinas de energia
e serviços de água. De 2000 a 2006, firmas chinesas foram contratadas
para a construção de mais de 6.000 quilômetros de estradas de rodagem,
3.000 quilômetros de ferrovias e oito grandes ou médias centrais
elétricas. Segundo as estatísticas chinesas, o valor total das “obras
contratadas”, “contratação de mão-de-obra” e “consultoria” atingiu a
368
Amaury Porto de Oliveira
US$ 9,5 bilhões, em 2006, na África, equivalentes a 31% dos projetos
contratados pela China no exterior. No tocante a comércio de serviços,
cabe destacar o crescente intercâmbio de turistas. Dezessete países
africanos figuram na lista chinesa de destinos incentivados.
E – P
APEL DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ESTATAIS:
O trabalho chinês na África vem-se sofisticando e torna-se
preciso tomar em conta centros de decisão diversos dos do governo
central. É o caso de duas instituições financeiras estatais, mas com
políticas próprias: o China Exim Bank e o China Development Bank
(CDB), ambos ligados ao trabalho com a África. O primeiro manobra
a janela de crédito preferencial (US$ 5 bilhões) e o segundo o fundo
de apoio aos IDE (US$ 5 bilhões). Os dados disponíveis sugerem que
as operações comerciais primárias do Exim foram maiores, em 2006,
do que as das instituições semelhantes dos grandes países
industrializados. O impacto das suas atividades de empréstimos
(comerciais e favorecidos) na África vem sendo bem maior do que o
das linhas de crédito abertas pelo governo. O CDB, criado em 1994,
dedica-se, sobretudo, à construção da infra-estrutura na China, mas
tem-se voltado crescentemente para projetos da Iniciativa de Ação
Global, em cujo âmbito foi lançado o Fundo de Desenvolvimento
China-África.
F – P
APEL DO SETOR PRIVADO:
Até 1985, o comércio exterior da China era conduzido
exclusivamente por empresas estatais. Essas tradings desapareceram e
o comércio exterior foi liberalizado. As firmas privadas ou mistas
A China constrói uma parceria estratégica com a África
369
dominam, hoje, as atividades de exportação e importação na China,
embora o papel delas ainda seja pouco compreendido fora do País.
Nos últimos anos tem aumentado o número de pequenos empresários
chineses que viajam ou mesmo emigram para a África em busca de
oportunidades de negócios, algumas vezes associando-se a grupos locais.
A mídia dá mais destaque às operações das estatais do petróleo ou da
mineração, mas milhões de dólares estão sendo investidos na África
por esses empreendedores privados: na agricultura, processamento de
alimentos ou manufatura leve. Estabelecer a diferença entre a IDE
efetuada por estatais ou por empresas privadas é cada vez mais difícil,
e, na verdade, irrelevante. À medida que o governo chinês reestrutura
suas estatais e vende as ações correspondentes, torna-se difícil descrever
a estrutura acionária de muitas das maiores companhias chinesas. Elas
gozam de grande autonomia operacional e baseiam crescentemente
suas decisões de investimento em considerações de rentabilidade.
Reduz-se, também, a diferença na facilidade de acesso a fundos com
apoio governamental. Em 2005, a China e o PNUD estabeleceram
em conjunto um Conselho de Negócios China-África, com a finalidade
de promover investimentos privados chineses nos Camarões, Gana,
Moçambique, Nigéria, África do Sul e Tanzânia. Nesse contexto, os
empreiteiros chineses compensam a menor ajuda que recebem de
Pequim, em termos de contatos oficiais e informações sobre as
tendências do mercado, levando adiante, com maior eficiência, a
implementação dos projetos.
Após essa visão panorâmica de como vai a China, desenvolvendo
a parte, por assim dizer, concreta, dura, da sua grande estratégia de
cooperação com a África, resta dizer alguma coisa sobre o aspecto do
soft-power, ou, mais precisamente, sobre os efeitos que a ajuda chinesa
370
Amaury Porto de Oliveira
possa estar tendo ou seja de desejar que tenha, na vida política e no
bem-estar social dos povos africanos. É a qualidade e intensidade desses
efeitos que vai permitir dizer se a cooperação com a China foi, afinal,
mais importante para os africanos do que o século de subordinação às
potências do Congresso de Berlim. O Presidente sul-africano Thabo
Mbeki parece ter tido isso em vista quando acentuou, na cúpula sino-
africana de novembro de 2006, ser necessário assegurar que os
investimentos chineses e os recursos gerados pelos empreendimentos
mistos sino-africanos fossem efetivamente direcionados para responder
aos grandes desafios internos da África, através da ampliação e
diversificação da base econômica do continente, mas também do
desenvolvimento apropriado das aptidões locais e das tecnologias postas
à disposição dos seus povos. E o Presidente Hu Jintao já estava
respondendo, de certo modo, a essa preocupação, quando prometeu,
na mesma cúpula, empenhar-se, nos três anos seguintes, além de toda
a conhecida cooperação econômica, em oito itens típicos da formação
de recursos humanos:
- treinar 15.000 profissionais africanos;
- ceder à África 100 especialistas agrícolas de alto nível;
- abrir na África 10 centros especializados na demonstração
de tecnologias rurais;
- construir 30 hospitais no continente;
- criar um fundo de 300 milhões de yuans para a difusão do
ACT (Artemisinin Combination Therapy), combinação de
ervas chinesas para o tratamento da malária, graças à
construção de 30 centros para a prevenção e tratamento dessa
doença;
- despachar para a África um corpo de 300 jovens voluntários;
- construir 100 escolas rurais no continente;
A China constrói uma parceria estratégica com a África
371
- aumentar o número de bolsas governamentais para
estudantes africanos, das duas mil em 2006 para quatro mil
por ano, a partir de 2009.
17
Mas o assunto não acaba aí. Fazer valer o soft-power exige
uma abordagem sutil e complexa, na qual incentivos econômicos e
a política da não-interferência sejam conduzidos sob a retórica de
uma cooperação mutuamente satisfatória. No caso da China diante
dos atuais regimes africanos, há duas situações que pedem atenção
especial: a credibilidade da ação chinesa e a legitimidade do regime
beneficiado. São dois pontos que os rivais da China não deixam de
explorar. Como confiar em que os chineses vão efetivamente ajudar
os africanos a avançarem por um caminho de justiça social, quando
a própria China se vê às voltas com sociedade crescentemente
desigual? E não estará a ajuda chinesa, na sua preocupação de não-
interferência nas opções políticas do ajudado, simplesmente
contribuindo para o fortalecimento de regimes de legitimidade
duvidosa? À medida que se amplia a presença chinesa na África,
tomam corpo situações desse tipo. No Delta do Rio Níger, por
exemplo, trabalhadores chineses da indústria petrolífera já foram
seqüestrados por movimentos que contestam a “apropriação ilegal”
de recursos nacionais pelas autoridades centrais, cuja legitimidade
é também contestada. A reação tradicional das “potências de Berlim”
a esse tipo de situação é a tomada de partido, interessadamente, em
favor desta ou daquela facção interna, com o que se estimulam
rebeliões e golpes de Estado. Até que ponto poderão os chineses
resistir a entrar por esse caminho?
17
cf. Lee, Margaret C. et. al China in Africa Nordiska Afrikaininstitutee Current
African Issues n.35 (2007)
372
Amaury Porto de Oliveira
No último lustro, com a extensão por Pequim da sua diplomacia
zhoubian à grande área da velha Tricontinental (o não-alinhado mundo
ásio-afro-latino americano), bem avaliar o crescimento do soft-power chinês
tornou-se problema de importância para as chancelarias do mundo
industrializado. Mas é visível a tendência delas a exagerar a “ameaça”
econômica e potencialmente militar da China, subestimando, por outro
lado, os avanços intelectuais, diplomáticos e culturais que se acumulam. É
comum ver insinuado que, mais dia menos dia, a China repetirá o destino
de potências em processo histórico de fortalecimento e desafiará a ordem
internacional vigente. Por enquanto, a China é o membro permanente do
Conselho de Segurança com a maior contribuição para as operações onusianas
de observadores militares, de policiamento e de manutenção da paz, através
do mundo. Os próprios chineses começaram, porém, a preocupar-se com
os efeitos negativos, para a imagem da China, da cooperação com os chamados
“regimes réprobos”, e um animado debate foi posto em marcha, nas altas
esferas do regime, em torno, basicamente, da conveniência de rever a diretiva
de Deng Xiaoping, conhecida como “a estratégia dos 24 ideogramas”, que,
entre outras coisas, mandava “marcar tempo, escondendo nossas capacidades
e jamais reivindicando a liderança”. Chegara a hora de a China mostrar
com mais determinação suas opções no campo internacional.
Nesse contexto, foi bem-vindo para os chineses o apelo feito em
Pequim, em setembro de 2005, pelo então Vice-Secretário de Estado
americano, Robert Zoellick, no sentido de que a China adotasse posições
diplomáticas mais construtivas, de maneira a tornar-se um “baluarte
responsável” da ordem internacional. O assunto foi discutido com os
americanos, em abril de 2006, por ocasião da visita do Presidente Hu Jintao
aos EUA, e em agosto seguinte, entre chineses, numa grande Conferência
Central sobre o Trabalho de Relações Exteriores, para a qual foram
convocados os membros do Birô Político, Ministros de Estado,
Embaixadores, Governadores, Secretários provinciais do PCC, Diretores de
estatais e altas patentes do ELP. Desdobramento que diz respeito à África foi
a remoção, para a Embaixada em Pretória, do Embaixador Zhiong Jianhua,
diplomata com experiência de trabalho nos EUA e que parece ter sido
encarregado de oordenar a atividade dos diplomatas chineses no continente
africano. Infelizmente, não disporei de espaço para registrar os resultados
dessa movimentação. O número em curso de Foreign Affairs tem um bom
artigo sobre a nova diplomacia chinesa em relação a regimes ditatoriais
18
, com
observações interessantes, em particular, no tocante à participação de Pequim
no desanuviamento da crise na Península Coreana e na obtenção de atitude
mais cooperativa do governo de Cartum, na Questão de Dafur.
A China constrói uma parceria estratégica com a África
373
18
Kleine-Ahlbrandt, Stephanie & Andrew Small. “China’s New Dictatorship Diplomacy”
in Foreign Affairs vol. 87 n.1 (jan/fev 2008).
375
CHINA: PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Henrique Altemani de Oliveira*
INTRODUÇÃO
A literatura nacional e ocidental apresenta clara tendência em
considerar a Crise Financeira Asiática de 1997/1998 como um fenômeno
essencialmente econômico ou como um exemplo de pânico financeiro
em economias vulneráveis. Numa visão muito difundida na época e
apresentada com relativa sensação de triunfo, advogava-se que o Século
da Ásia já tinha sido abortado no nascimento e que “os valores asiáticos”
estariam, então, confirmados como inferiores aos do Ocidente.
Uma década após, no entanto, pode-se, com maior segurança,
afirmar que a crise teve como principais resultados o estímulo ao
desenvolvimento do regionalismo asiático, a consciência da necessidade
de definição e estabelecimento tanto de instituições multilaterais quanto
de acordos bilaterais de livre comércio, de forma a possibilitar a redução
de dependências tanto do Fundo Monetário Internacional quanto das
instituições econômicas internacionais. Ou, mais do que isto, a
recuperação asiática, em conjunto com o forte desenvolvimento chinês,
passou a apresentar um novo regionalismo, centrado na economia
chinesa e colocando desafios à economia política internacional,
fortemente dominada pelos interesses americanos.
1
*
Professor do Departamento de Política, Coordenador do Centro de Estudos sobre a
China e do Grupo de Estudos Ásia-Pacífico da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (GEAP-PUC/SP).
1
Quanto à crise em si, veja-se OLIVEIRA, Henrique Altemani (2000). “A Crise
Asiática e a China”. IN: OLIVEIRA, Amaury Porto; CANUTO, Otaviano &
376
Henrique Altemani de Oliveira
Hellmann (2007, p. 839) aponta que o explosivo crescimento
econômico asiático liderado pela China introduziu um desafio sem
precedentes: como acomodar a primeira região não-ocidental, de
sucesso comprovado desde a Revolução Industrial, num mundo em
crescente interdependência, mas ainda não-convergente.
Nesta linha de pensamento, Ikenberry (2008), por exemplo,
desenvolve o raciocínio de que o crescimento da China inevitavelmente
levará o momento unipolar dos Estados Unidos a um fim, mas não
necessariamente provocando uma violenta luta pelo poder ou a
derrocada do sistema ocidental. No seu entendimento, a ordem
internacional liderada pelos Estados Unidos permanecerá dominante
até mesmo com a integração da cada vez mais poderosa China.
Joshua Ramo (2004) considera que o que está se passando na
China não representa algo essencialmente doméstico, mas o início de
um processo de revisão do quadro mais amplo do desenvolvimento
internacional, da economia, da sociedade, e, por extensão, da política.
Enquanto Estados Unidos enfatiza políticas unilaterais definidas em
função da defesa de seus interesses, China está reunindo recursos para
eclipsar os Estados Unidos em muitas áreas essenciais dos negócios
internacionais e construindo um ambiente que deixará a ação
hegemônica americana mais difícil.
Em contraposição ao Consenso de Washington, Ramo trabalha
com a perspectiva de um Consenso de Pequim. Este Consenso seria
decorrente do fato de que, além do desenvolvimento interno, as novas
idéias da China estão provocando um efeito gigantesco no plano
OLIVEIRA, Henrique Altemani. Dissonâncias Sino-Japonesas diante da Crise
Financeira Asiática. Coleção Documentos, Série Assuntos Internacionais, no. 57,
IEA/USP, São Paulo, julho de 2000. Pp.: 29-48 e OLIVEIRA, Henrique Altemani
(1999). O cenário internacional e o Brasil no ano 2020. Parcerias Estratégicas, 6: 194-
215, Março de 1999. Quanto à avaliação da crise, veja-se HELLMANN, Donald C.
China: Perspectivas e Desafios
377
externo ao apresentarem um caminho para outros países que estão
almejando não só o desenvolvimento, mas também um posicionamento
na ordem internacional de uma forma que lhes permita serem
realmente independentes para proteção de seu modo de organização
de vida em sociedade e suas escolhas políticas, em um mundo com um
único e poderoso centro de gravidade.
O XVII Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC),
realizado em outubro de 2007, referendou o pensamento básico de
Hu Jintao em termos da concepção científica do desenvolvimento e
de uma sociedade harmônica. A estes dois princípios agregou-se um
terceiro que poderá adquirir maior proeminência em um futuro
próximo: a democracia.
2
A par da continuidade do dinamismo econômico chinês crescem
as preocupações em relação às ponderações do fator “China Ameaça”
e à retomada e ampliação de medidas protecionistas em conjunto com
a possibilidade de afetar negativamente a imagem internacional da
China. No que se refere ao plano tecnológico, destaca-se uma maior
aposta no projeto espacial, com destaque ao lançamento, no começo
de 2007, de um míssil com capacidade de destruição de satélites.
Com base nestas ponderações prévias, este breve texto objetiva
reunir alguns elementos sobre a estratégia de inserção regional/
internacional da China que possam embasar uma reflexão sobre o
atual processo de redefinição do sistema internacional do Pós-Guerra
Fria, e, igualmente, sobre o processo de definição e implementação da
Política Externa Brasileira. A análise estará dividida em três segmentos,
englobando uma reflexão sobre o discurso de um “mundo harmônico”,
2
Direcionada ao reforço do papel do PCC, à maior visibilidade dos demais partidos
existentes na China, à necessidade de ampliação da cooperação entre estes partidos e à
intensificação da participação popular na elaboração de políticas.
378
Henrique Altemani de Oliveira
seguida pelas implicações do desenvolvimento espacial chinês e o
terceiro segmento sobre os principais relacionamentos bilaterais da
China.
Em decorrência de uma extensa produção direcionada às
questões econômicas do desenvolvimento chinês e do restrito espaço
disponível para esta breve análise, o presente texto, apesar de reconhecer
sua importância, não aborda as questões econômico-comerciais.
O DESENVOLVIMENTO HARMÔNICO
Na seqüência dos incidentes de Tiananmen (1989), com a
percepção de que a China passaria a enfrentar intensos conflitos
internos, começou a ser divulgada na mídia e em análises políticas e
acadêmicas a perspectiva de um possível “Colapso da China”.
No entanto, a simbólica viagem de Deng Xiaoping (1992) às
Províncias do Sul serviu para demonstrar o controle da situação doméstica,
o apoio político interno ao prosseguimento das Modernizações e a
vigorosa retomada do processo de abertura e de reformas econômicas,
fazendo com que a perspectiva de colapso começasse a ser paulatinamente
substituída pela “Teoria da China Ameaça”.
Esta teoria da ameaça apresenta, claramente, duas considerações:
a da segurança estratégica e a econômica. No plano da segurança,
destacam-se as considerações de uma estratégia armamentista, venda
ou transferência irresponsável de armas ou de tecnologias militares e a
presença de conflitos históricos e inconcebíveis reivindicações
territoriais no seu entorno imediato. Sob outra perspectiva, pode-se
refletir que esta tese da ameaça representa, também, a consciência
regional e internacional de que a China apresenta um projeto político
e está reunindo condições reais de assumir um papel de relevância nos
China: Perspectivas e Desafios
379
assuntos regionais e internacionais. Neste sentido, a percepção de que
a China, ao ampliar seu espaço, necessariamente está deslocando ou
reduzindo capacidades de outros atores.
No plano econômico, as preocupações centram-se, em especial,
no caráter competitivo da economia chinesa em decorrência de diversas
vantagens comparativas. Agrega-se ainda, neste plano econômico, a
hipótese de que a ameaça é reforçada com dificuldade natural de
acomodação e assimilação no processo de desenvolvimento, as
diferentes camadas sociais, e os diversos espaços territoriais, retomando-
se a perspectiva do colapso.
Partindo do princípio de que era (e é) extremamente preocupante
para Pequim o perigo de que o rótulo de ameaça pudesse ser um fator
que deslegitimasse a China como um ator internacional, facilitando a
emergência e imposição de constrangimentos que pudessem
comprometer tanto o desenvolvimento econômico quanto estratégias
de política externa, em especial no estabelecimento de vínculos políticos
com diferentes países e regiões, a China adotou, inicialmente, a
estratégia do conceito de “ascensão pacífica”.
Visualizado como um possível instrumento de redução dos
constrangimentos decorrentes desta teoria, a proposta de pensadores
chineses, em 2003, da idéia da “ascensão pacífica” da China, apresentava
o objetivo de propiciar uma visão mais confiável e crível do futuro
cooperativo de suas relações externas. Na realidade, objetivava difundir
a idéia de que, ao contrário do observado historicamente na ascensão
de outros poderes, a China seria exceção à regra de que haveria uma
tendência a desorganizar o sistema internacional. Ainda que endossado
pela liderança chinesa, logo o conceito demonstrou ser contra-
produtivo, ao realçar a questão do crescimento/ascensão da China,
sendo abandonado em 2004.
380
Henrique Altemani de Oliveira
Assim, a partir de 2006, e com a oficialização no XVII Congresso
do PCC, passou-se a utilizar o conceito de “desenvolvimento
harmônico”.
3
Na realidade, trata-se de um conceito de “Harmonia”,
raciocinado nas perspectivas domésticas e externas, tanto em espaços
menores quanto no plano global, ou seja, sociedade harmônica, mundo
harmônico, região harmônica, Leste Asiático harmônico etc. E, no
que se refere ao relacionamento externo chinês, associado igualmente
a uma “nova diplomacia”.
O conceito apresenta, em primeiro, a conjunção entre “mundo
harmônico” e “sociedade harmônica”, na consideração de que as
questões domésticas e internacionais devem ser visualizadas como um
todo. Em segundo, “mundo harmônico” correlaciona-se com paz e
desenvolvimento. Neste sentido, a China respeita as diferentes
civilizações, os diferentes modos de produção e persegue ideais de
igualdade, respeito, benefício mútuo e harmonia entre as diferenças.
E, em terceiro, ainda que aparente ser abstrato, estabelece um roteiro
para a prática diplomática voltada não só à garantia da paz e do
desenvolvimento, mas, também, à cooperação.
Como base deste novo posicionamento retórico de oposição
à divulgação do fator ameaça, e até num sentido defensivo e reativo
está, a partir da experiência histórica de humilhações a que esteve
submetida no seu passado recente, o fato de a China ter apreendido
a noção de que pode continuar a ter problemas externos se não se
igualar, em termos de poder, às potências existentes. Mas aprendeu,
igualmente, o quão importante é a paz e estabilidade a partir das
crises pelas quais passou com a guerra civil e com a Revolução
3
A análise do conceito de “desenvolvimento harmônico” está embasada no texto de
Yuan Peng, Diretor do Instituto de Estudos Americanos do China Institutes of
Contemporary International Relations (CICIR).
China: Perspectivas e Desafios
381
Cultural. Assim, o desejo de uma China com poder para não ser
novamente submetida, mas em conjunto com um profundo interesse
por paz dentro e fora do País.
Considera-se que o conceito de desenvolvimento harmônico e
de nova diplomacia decorre, essencialmente, do reconhecimento
explícito da mudança de status da China e da busca de uma estratégia
diplomática de inserção que corresponda exatamente a este novo e
recente posicionamento internacional.
Yuan (2007) aponta que o fator América é ainda importante,
mas muito menos significativo do que era nos anos 90. Em primeiro,
pelo fato de a balança de poder entre China e Estados Unidos ter se
alterado. Os Estados Unidos permanece potência, mas a China está
crescendo muito mais fortemente, com interesses diversificados em
todo o mundo.
Em segundo, a estrutura do poder internacional está em processo
de mudanças, com o surgimento de novos atores e/ou fatores erodindo
a influência americana: União Européia, Rússia, Japão, Índia, Brasil e
ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) estão todos
crescendo dramaticamente; a América Latina e a África estão se
tornando ativos novamente; atores não-estatais estão desempenhando
um papel sem precedentes na vida econômica e política internacional.
Terceiro, a China desenvolveu um novo padrão de interesse,
especialmente em termos comerciais, e trabalha com múltiplos
parceiros, incluindo União Européia, Estados Unidos, Japão e
ASEAN. Como a influência dos Estados Unidos sobre a estratégia
diplomática da China diminuiu, o status de outros países e regiões
tende a se ampliar. Enfim, como Estados Unidos e China se tornaram
incrivelmente interdependentes, eles têm que agir mais em conjunto e
apresentar um relacionamento mais estável.
382
Henrique Altemani de Oliveira
Na nossa visão, a mensagem básica da retórica do
desenvolvimento harmônico é a necessidade dos diferentes atores
internacionais reconhecerem não só o direito chinês ao
desenvolvimento, mas o fato de que a China está crescendo e isto
tem que ser aceito com harmonia pelo Sistema Internacional de forma
a garantir um ambiente de paz, de desenvolvimento e de cooperação.
Neste sentido, o princípio da “não-interferência nos assuntos
internos” deveria ser mais respeitado e o relacionamento
internacional deveria estar alicerçado na perspectiva de interesses
mútuos e de “coexistência pacífica”. E, no plano interno, o fato de
que o desenvolvimento rápido e localizado gera distorções que
deverão ser corrigidas harmonicamente para englobar o conjunto
da sociedade chinesa.
DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO ESPACIAL
De acordo com a concepção científica do desenvolvimento, as
preocupações com o espaço ocupam um lugar especial na estratégia
chinesa. De um lado, as necessidades de avanços em novos materiais,
nanotecnologia, componentes eletrônicos e sistemas de comunicação
e de informação estimulam as ações direcionadas ao espaço. Em
conjunto com as amplas oportunidades comerciais pacíficas, a falta de
uma efetiva cooperação internacional no que se refere à organização
do espaço propicia seu uso para defesa e segurança.
A China iniciou seu projeto espacial em 1999, lançando a
primeira nave tripulada (Shenzhou V) em 2003 e dois anos depois o
Shenzhou VI levou dois astronautas a bordo, completando cinco dias
de vôo espacial. Está previsto para 2008 o envio da nave Shenzhou
VII. Mas, em termos orçamentários, pode-se considerar que o projeto
China: Perspectivas e Desafios
383383
chinês é extremamente modesto: US$ 2 bilhões frente ao orçamento
americano de US$ 16 bilhões.
No entanto, o teste
4
realizado em 11 de janeiro de 2007, de um
míssil anti-satétile (ASAT na sigla em inglês) para destruição de um
satélite (Fengyun-1C) surpreendeu a comunidade internacional.
Ainda que a China assegure que seu teste não visava ninguém
em especial, o uso de um ASAT suscitou uma série de questões. Em
primeiro, há mais de uma década que a China pressiona em torno da
necessidade de controles no que se refere à presença de armas no espaço,
apesar da falta de reciprocidade dos Estados Unidos. Ao contrário,
documento
5
recente dos Estados Unidos reafirma a intenção de
Washington de permanecer como o poder espacial dominante do
mundo. Neste documento, que apresenta nova versão atualizada das
diretrizes americanas de política espacial, está explicitamente descrito
que os Estados Unidos não apoiarão qualquer proposta de acordo
internacional capaz de reduzir sua liberdade de ação no espaço, em
defesa de seus interesses nacionais.
De outro lado, Estados Unidos e Japão continuam
desenvolvendo um sistema de defesa de mísseis, interpretado pela China
como ameaçador aos seus interesses, em especial no caso de um conflito
sobre Taiwan. Estas questões, sem dúvidas, estão na base da decisão
chinesa de ampliar suas capacidades de defesa e de dissuasão.
No entanto, outras questões devem ser consideradas.
Aparentemente os interesses chineses não são nem de protestar contra
4
Divulgou-se, posteriormente, que a China já tinha antes realizado três testes sem
êxito, entre setembro de 2004 e fevereiro de 2006.
5
O texto completo do U.S. National Space Policy document, publicado em 10 de
Outubro de 2006 é encontrado no website da White House Office of Science and
Technology Policy, http://www.ostp.gov/html/US%20National%20S
pace%20Policy.pdf)
384
Henrique Altemani de Oliveira
as políticas espaciais americanas nem de desenvolver uma corrida
armamentista para se equiparar às forças americanas. É muito mais
parte da estratégia de contenção em decorrência da reconhecida
fraqueza militar chinesa. E, de acordo com Tellis (2007, p. 45), as
armas que a China procura neutralizar não estão no espaço, mas são
as forças navais e aéreas que os Estados Unidos operam nas
proximidades da China. No espaço estão os sensores que encontram e
fixam o alvo para estas forças e o sistema nervoso que conecta os
elementos de combate, possibilitando ações coesas. Note-se que,
atualmente, não há meios para banir ou controlar o uso do espaço
para tais propósitos militares.
As análises chinesas das operações militares americanas nas
Guerras do Golfo Pérsico, Kosovo e Afeganistão demonstraram que
os Estados Unidos tinham um trunfo decorrente desta complexa e
sofisticada rede de sistemas de comando, controle, comunicações e
inteligência computacional operando sinergicamente no espaço.
Conseqüentemente, o desenvolvimento de habilidades para neutralizar
os sistemas espaciais americanos poderia permitir a uma China
militarmente mais fraca deter, atrasar, ou mesmo anular, as superiores
capacidades americanas de ataque. Em termos bem objetivos, a
conclusão é que o Pentágono é extremamente dependente do espaço
para o sucesso de suas ações militares e que esta dependência espacial
representa uma fraqueza estratégica, já que é passível de ser neutralizada.
Bao Shixiu (2007, p. 9) aponta que “uma efetiva defesa ativa
contra um formidável poder no espaço pode forçar a China a ter uma
assimétrica capacidade contra o poderoso Estados Unidos. (...) Uma
estratégia efetiva ativa de defesa (...) poderia também incluir capacidades
anti-satélites e sistemas espaciais de ataques por armas, se necessário.
Em essência, China manterá os mesmos princípios para a militarização
China: Perspectivas e Desafios
385
do espaço e de uso de armas espaciais como fez com as armas nucleares.
Isto é, desenvolverá anti-satélites e armas espaciais capazes de
efetivamente eliminar um sistema espacial do inimigo, de forma a
constituir uma estratégia de defesa confiável e crível”
A emergência das potentes capacidades contra-espaciais da China
deixa as operações militares americanas na Ásia muito mais arriscadas,
pelo simples fato de a China ter passado a apresentar a possibilidade
de anular os Estados Unidos num conflito regional, apesar de sua
inferioridade convencional. Tellis (2007) considera que esta situação
não pode ser neutralizada por acordos de controle de armas, nem por
uma tentação, presente nos Estados Unidos, de ver os programas
contra-espaciais em termos morais. A ação chinesa decorre de condições
objetivas que definem o relacionamento entre os dois países: objetivos
políticos competitivos, que provavelmente persistirão mesmo com a
solução do conflito sobre Taiwan.
Representando o interesse chinês, Bao Shixiu, ex-Diretor da
Academia de Ciências Militares do Exército de Libertação Popular da
China, defende a tese de que os Estados Unidos, ao se recusar a discutir
um tratado internacional sobre o uso do espaço, busca manter um
status de hegemonia no mesmo. Dessa forma, a China não pode aceitar
a monopolização do espaço exterior por outro país. Bao (2007, p. 4-5)
aceita que o programa espacial da China não é transparente em muitos
aspectos, da mesma forma que o dos Estados Unidos também não o é.
Acrescenta, ainda, que, na realidade, muitas das tecnologias espaciais
são inerentemente de uso dual, e que, conseqüentemente, é muito
difícil distinguir suficiente e efetivamente as intenções e capacidades
no espaço. Em conseqüência, sem algum tipo de entendimento mútuo
sobre o controle de armas no espaço, a suspeita irá dominar as relações
entre China e Estados Unidos.
386
Henrique Altemani de Oliveira
O discurso moralista insinuado por Tellis apresenta-se muito
claramente na análise de Elizabeth Economy (2007). “Os líderes da
China atravessaram o globo pregando o evangelho da ascensão pacífica
do País, freqüentemente com grande efeito: China fará as coisas
diferentemente do que Estados Unidos e anteriormente os poderes
europeus fizeram, não poluindo o meio ambiente, não colonizando
países para ter acesso a seus recursos naturais e não interferindo na
soberania dos outros países”. Acrescentando uma série de problemas
atuais como os do meio ambiente, direitos humanos, apoio financeiro
a países párias do Sistema Internacional e de problemas domésticos,
como a ausência de democracia, a falta de transparência, Economy
finaliza conclamando à urgente necessidade de os Estados Unidos
retomarem as rédeas da situação: “Devemos finalmente parar de falar
sobre a ascensão pacífica da China ou do Consenso de Washington
versus o Consenso de Beijing. O único consenso pertinente é o
alicerçado em uma clara compreensão da ascensão da China e a urgência
que traz para uma real liderança dos Estados Unidos”.
Em uma perspectiva mais moderada, o IISS (2007, p. 78-79)
pondera que o crescimento da economia chinesa é dependente desta
infra-estrutura orbital e que uma aparente desconexão entre
planejadores militares e políticos poderá criar um risco para a
continuidade do próprio desenvolvimento econômico chinês. E que
a atual tensão poderia gerar uma oportunidade para o desenvolvimento
de uma nova e compartilhada compreensão entre China, Estados
Unidos e outros países para abandono da estéril linguagem sobre
controle de armas e não-militarização do espaço e a busca de uma
aproximação mais cooperativa. A análise é concluída, no entanto, com
o reconhecimento de que, atualmente, não são detectados sinais de
vontade política para tal processo cooperativo.
China: Perspectivas e Desafios
387
BALANÇO ESTRATÉGICO
Os objetivos de Pequim, amplos e bem conhecidos, são o
desenvolvimento econômico e a estabilidade política interna, o que
pode ser obtido assegurando e ampliando os acessos da China a
mercados e recursos no exterior e, ao mesmo tempo, evitando conflitos
externos e tensões. Assim, desde Deng Xiaoping, mantém-se a
perspectiva de que uma economia forte é a fórmula para atingir alto
nível de desenvolvimento da população e maior segurança a longo
prazo.
Estes objetivos estão vinculados a uma prática diplomática de
rejeição de qualquer tipo de pressão ou influência no que refere a seus
arranjos políticos e sociais internos, assim como a reflexões sobre a
legitimidade do papel exercido pelo Partido Comunista Chinês (PCC).
Uma outra questão, mais controversa, mas que também deriva dos
objetivos apresentados, é a intenção declarada de adquirir uma estatura
de poder regional e internacional de forma a poder assegurar a
continuidade do crescimento e a segurança.
Com esta gama de interesses e de pretensões é óbvio que as
relações com os Estados Unidos têm um lugar especial neste processo.
Sem dúvida, o papel exercido na região possibilita a visão apresentada
por Zhai & Wang (2007) de existência na Ásia-Pacífico de um super-
poder e múltiplos grandes poderes, sendo que, no presente século, os
Estados Unidos apresenta uma perda relativa de poder na região, em
especial pela ascensão da China, possibilitando, inclusive, pensar que
estes dois atores são os únicos que detêm capacidade de influência
multidimensional no padrão estratégico regional.
O crescimento chinês, secundado pela ampliação dos laços
econômicos e pela sua ofensiva diplomática em relação ao Sudeste
388
Henrique Altemani de Oliveira
Asiático, à Ásia Central e igualmente ao Sul da Ásia, tem ampliado a
percepção de que seu engajamento agressivo na Ásia contrasta com a
política de relativa negligência dos Estados Unidos. Assim, entre o
“crescimento chinês”, inclusive com as hipóteses de que estaria sendo
reconstruído um sistema sino-cêntrico, e o relativo “declínio dos
Estados Unidos”, pode-se deduzir que a China está assumindo um
papel regional mais importante, possibilitando a percepção de um
papel mais central.
No relacionamento sino-americano, diversos são os pontos
antagônicos, como a diferenciação de sistemas políticos e conflituosas
relações comerciais, ou a simpatia americana por Taiwan e a
aproximação chinesa com estados párias, para que se possa pensar num
relacionamento harmonioso. No entanto, a China mantém seu
posicionamento tradicional de considerar que um relacionamento
positivo com os Estados Unidos é fundamental para a continuidade
do processo de desenvolvimento, e, inclusive, para a garantia da
segurança regional, enquanto que nos Estados Unidos não há consenso
sobre se o crescimento chinês é bom com alguns efeitos negativos, ou
mau com alguns benefícios esparsos. Apesar de uma série de acusações
e ameaças de recorrer à Organização Mundial do Comércio, constata-
se uma elevada e mútua importância econômica. Mas, de outro lado,
os Estados Unidos se ressente da possibilidade de Pequim poder
deslocá-lo estrategicamente, enquanto que a China suspeita dos
interesses americanos de conter seu crescimento ou de tentar mudar
seu sistema político.
Neste sentido, o teste do ASAT, de um lado, demonstra um
avanço nas possibilidades chinesas de dissuasão das tentações de uma
ação mais enérgica contra a China, ao mesmo tempo em que amplia a
capacidade chinesa sem deslocar o papel exercido pelos Estados Unidos.
China: Perspectivas e Desafios
389
Mesmo assim, a China mantém sua estratégia de não
confrontar diretamente os Estados Unidos, enquanto busca
estabelecer uma rede de relacionamentos com outros Estados que
possam prover um grau de apoio quando isto for necessário. Foot
(2007, p. 94) acrescenta que a China não é parte nem procura construir
coalizões anti-hegemônicas. Conseqüentemente, outros países
emergentes como Brasil, Índia ou Rússia não devem esperar uma
cooperação sustentada por parte da China nesta questão, assumindo
que estejam interessados em formar tais coalizões. Esta posição
provavelmente poderá ser alterada somente quando a China estiver
convencida de que está sofrendo uma hostilidade clara por parte
dos Estados Unidos.
A crise nuclear da Coréia do Norte e a atuação chinesa na
coordenação das negociações entre os seis Estados participantes (Six
Party Talks) ilustram bem esta ampliação do papel estratégico chinês
no Leste Asiático, assim como o fato de não ser mais rotulado de
“competidor estratégico”, mas como “sustentador responsável” no
sistema internacional. A crise ilustra, igualmente, algumas
preocupações em relação à estabilidade regional e ao balanço
estratégico, com a percepção chinesa de que os programas de mísseis
balísticos de longa distância e de armas nucleares da Coréia do Norte
pudessem (MOORE, 2008, p. 12-15):
a. forçar uma intervenção norte-americana ou de outros poderes
em sua vizinhança. Ainda que esta hipótese aparente ser
improvável no momento, as possibilidades permanecem reais
para a China;
b. prejudicar as relações da China com a comunidade
internacional. Desde os incidentes de Tiananmen, trabalha-
390
Henrique Altemani de Oliveira
se arduamente para a melhoria da imagem internacional,
fazendo, inclusive, parte deste esforço, a organização dos
Jogos Olímpicos para 2008 e o acesso recente à OMC;
c. incentivar um realinhamento na balança regional de poder,
com a possibilidade de Japão, Coréia do Sul e mesmo Taiwan
buscarem acesso a artefatos nucleares ou ampliarem a
cooperação militar com os Estados Unidos, inclusive
participação em seu projeto de defesa de mísseis. No Japão,
ampliaram-se as pressões sobre o governo para um maior
rearmamento ou mesmo se transformar num poder nuclear.
Ainda que com menor intensidade, a nuclearização da Coréia
do Norte pode pressionar a Coréia do Sul a mudanças em
suas posições oficiais sobre armas nucleares. Mais
preocupante, ainda, são os reflexos em relação a Taiwan. De
um lado, a ampliação de ameaças favorece pressões taiwanesas
para co-participar mais ativamente com Estados Unidos e
Japão do desenvolvimento do sistema de defesa de mísseis
em andamento. De outro, a possibilidade de retomada de
seu programa nuclear. Mesmo sem um direcionamento claro
para reforço de capacidades nucleares, a China receia,
igualmente, que a ação norte-coreana possa incentivar tanto
uma corrida por armas convencionais no Leste Asiático
quanto realimentar a presença americana na região e revigorar
as alianças com o Japão, Coréia do Sul e mesmo com Taiwan.
Para Hughes (2007) todos os três podem, eventualmente,
ter a capacidade tecnológica para desenvolvimento de armas
nucleares, mas esta capacidade ou é demorada ou pode
constituir uma alternativa frágil à dissuasão nuclear norte-
americana ampliada.
China: Perspectivas e Desafios
391
Este conjunto de preocupações é ainda complementado com
incertezas no relacionamento bilateral com a Coréia do Norte, com a
probabilidade de colapso interno norte-coreano levando a migrações
maciças e as ameaças à estabilidade regional provocando
desestruturação econômica.
Quanto a Taiwan, agrega-se, ainda, a atual retomada de pressões
para admissão na Organização das Nações Unidas, porém, com uma
novidade em relação às tentativas anteriores: qualifica-se como
República de Taiwan e não mais como República da China.
No pós-Crise Asiática notam-se transformações profundas no
Leste Asiático: em primeiro, o desenvolvimento de um mercado intra-
asiático, anteriormente inexistente. Ainda que a Ásia mantenha-se
dependente de mercados e de recursos externos, pela primeira vez
detecta-se a importância do mercado regional e o forte crescimento
dos fluxos internos. Em segundo, o fato de que é toda a Ásia que está
crescendo e não somente alguns países. Em terceiro, a forte tendência
de estabelecimento de acordos bilaterais de livre comércio e a ênfase
em organizações multilaterais regionais, em especial APEC,
ASEAN+1, ASEAN+3 e a Comunidade do Leste Asiático, com
agregação de mais três novos membros (Índia, Austrália e Nova
Zelândia). Todas estas transformações, ainda que possam ser creditadas
a diversos fatores, apresentam um lugar comum que é a presença chinesa
em decorrência de seu forte crescimento econômico e de seu esforço
em estabelecer relações com os países limítrofes ou da região.
Zhai & Wang (2007) advogam a tese de que o Leste Asiático
apresenta quatro diferentes modelos que irão, no futuro, moldar a
ordem na Ásia-Pacífico: o modelo americano de hegemonia, o modelo
chinês de Ásia-Pacífico harmônica, o modelo ASEAN de cooperação
regional e o modelo dos atores não-estatais. Enquanto os Estados
392
Henrique Altemani de Oliveira
Unidos procura reforçar sua hegemonia, a China procura reforçar as
parcerias com as principais forças estratégicas da região; quando se
trata de cooperação, apóia o papel de liderança da ASEAN no Leste
Asiático e busca construir parcerias e boas relações com os países
vizinhos.
Dentro desta linha de raciocínio destaca-se, exatamente, este
esforço chinês de aproximação: de um lado com a Rússia e os países
da Ásia Central, e, de outro, com a Índia.
Somente nos últimos anos observou-se uma aproximação China-
Rússia mais consistente. Do lado russo (FERDINAND, 2007a), as
desilusões e as crescentes desconfianças em relação ao estilo ocidental
de democratização foram um forte incentivo para esta aproximação,
enquanto que os chineses já eram céticos. Isto significa que os líderes
dos dois países apresentam um ponto de vista similar no que se refere
ao papel chave que o Estado deve desempenhar no desenvolvimento
de suas economias, assim como de suas políticas, para encarar o desafio
de competir com o resto do mundo.
Expressão desta melhoria de relacionamento é a participação
conjunta na Organização de Cooperação de Shanghai (OCS). A OCS
é importante como resultado da iniciativa diplomática chinesa, sendo
a primeira organização na qual a China detém um papel de liderança.
Os membros da OCS enfatizam que a organização não está formatada
contra qualquer terceira parte (interprete-se Estados Unidos),
apresentando o objetivo de simplesmente contribuir para a segurança
de uma importante região. A China, além dos óbvios interesses
econômicos na região, em especial pela importância no fornecimento
de hidrocarbonetos, almeja, também, ampliar sua influência política,
o que pode ser interpretado como uma forma de contrabalançar a
presença americana na região.
China: Perspectivas e Desafios
393
Além dos membros permanentes (China, Rússia, Cazaquistão,
Quirquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão), a OCS conta com a
presença da Índia, Irã e Paquistão com o status de observadores, sendo
que Indonésia, Turquia e Belarus também estão solicitando esta mesma
posição.
O forte crescimento econômico e a maior importância
estratégica, regional e internacional, da China e da Índia, reforçaram
a visão, em Pequim e New Delhi, de que o continente asiático
permanece como a arena mais apropriada para suas ambições, mesmo
que ambos tenham ambições maiores. A razão clara e objetiva para
esta percepção é que, economicamente, suas possibilidades decorrem,
de forma mais imediata, do fato de estarem incluídos ou não no
dinamismo econômico asiático e que, política e estrategicamente,
necessitam solucionar, em primeiro lugar, o conjunto de conflitos
que detêm na região para poderem manter suas ambições
internacionais.
Neste sentido, a Índia, com sua estratégia de Look East Policy,
volta-se para a Ásia, enfatizando o relacionamento com a ASEAN,
com o Japão, solicitando a participação em organizações multilaterais,
e, principalmente, buscando regularizar, apesar das diferenças
históricas, seu relacionamento com a China.
A Índia reconhece que a China cresce de uma forma que não
está desestabilizando a Ásia e nem o mundo, sendo evidente que à
medida em que a China se torna mais arbitrária ou assertiva, isto crie
desequilíbrios ao redor do mundo. Considera, igualmente, que a China
tem sido hábil em controlar a aparente contradição entre ser
politicamente autocrática e economicamente aberta. A questão
preocupante é se, num futuro próximo, uma China com maior poder
não irá tentar modificar as regras do Sistema Internacional a seu favor.
394
Henrique Altemani de Oliveira
Chellaney (2007) propõe, então, a necessidade de composição de uma
aliança entre Rússia, Japão e Índia para contrabalançar o poder chinês
crescente. Mas, em decorrência dos problemas entre Rússia e Japão,
num primeiro momento há a necessidade de reforço do relacionamento
bilateral Japão-Índia, visto como um importante pilar do equilíbrio
de poder na Ásia.
Tanto o acordo de cooperação nuclear assinado pela Índia com
os Estados Unidos quanto a presença indiana na reunião de dezembro
de 2005 da Comunidade do Leste Asiático foram considerados com
parte da estratégia americana e japonesa de contar com a Índia na
perspectiva de contenção do poder crescente da China.
O acordo de cooperação nuclear com os Estados Unidos, no
entanto, provocou uma forte divisão no espaço indiano. A questão
básica é que os dois países apresentam expectativas diferentes. A Índia
esperava que o acordo removesse todas as sanções às importações de
tecnologias avançadas.
6
Os Estados Unidos, por sua parte, pretendia,
com o acordo, transformar a Índia no seu mais recente aliado estratégico
na Ásia, mas ao preço de vincular seus interesses aos dos Estados
Unidos. Assim, a questão chave é: “Índia será um Japão para os Estados
Unidos (em outras palavras, um aliado) ou será um parceiro estratégico?
Um aliado tem que seguir o líder, enquanto na parceria há ao menos
a aparência de igualdade. Índia preferiria permanecer como um parceiro
estratégico e não assumir uma dependência em segurança do estilo
japonês em relação a Washington” (CHELLANEY, 2007, p. 31).
Ramani (2007) considera que qualquer ação voltada para o
estabelecimento de uma aliança estratégica com um poder hegemônico
unipolar se dará às custas da estabilidade nas proximidades da Índia e
6
Desde 1974, época do primeiro teste nuclear, os Estados Unidos tem constantemente
controlado o fluxo de tecnologias avançadas para a Índia pelo controle das exportações.
China: Perspectivas e Desafios
395
irá cercear a possibilidade de escolhas para o País. Considera como
verdadeira a premissa de que a China privilegia seus interesses nacionais,
mas que os esforços do presente regime chinês estão direcionados,
primeiramente, para a sustentação de seu desenvolvimento econômico.
Ainda que não se esteja explicitando diretamente, está implícito
que a China é hoje um ator internacional com uma diversidade ampla
e variada de interesses e parcerias correspondente à sua importância
econômica, estratégica, política e diplomática. Assim, não se pode
omitir o fato de que a China também apresenta políticas específicas
direcionadas ao Oriente Médio, à África e à América Latina.
Aparentemente, no que se refere às expectativas econômicas, enquanto
fontes de abastecimento, há um relativo maior interesse pelo Oriente
Médio e África do que pela América Latina.
No caso africano, a política chinesa para a África transcende a
mera questão de recursos. Enquanto a crescente necessidade por
matérias-primas e energia é importante para o engajamento na África,
não é, com certeza, o único fator ou mesmo o mais importante. Antes,
para se entender as políticas e motivações da China, é crítico assumir
uma visão mais ampla, considerando-se a estratégia chinesa com vistas
a um posicionamento global, suas perspectivas de desenvolvimento
sustentável de sua economia, e a necessidade de apoio político em
relação à importante questão da reunificação de Taiwan e de prevenção
de secessão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando-se que o retorno da República Popular da China
à comunidade internacional, no início dos anos 70, ocorreu sob o aval
americano e que o início de seu processo de modernização e reformas
396
Henrique Altemani de Oliveira
também contou com este aval, seja para desestruturar de vez o império
soviético, seja, posteriormente, para debilitar a economia japonesa e
com a condição dos Estados Unidos como potência isolada no pós-
Guerra Fria, não é de surpreender que os Estados Unidos ocupe o
principal lugar nas preocupações chinesas.
Para esta ponderação está-se pressupondo que a China apresenta
atualmente uma expressão no cenário internacional que não detinha
na Guerra Fria. E muito mais do que isso: demonstra, clara e
enfaticamente, o objetivo de se transformar em ator com peso regional
e internacional, em função da necessidade de não ser mais humilhada.
Considerando, igualmente, o reconhecimento americano das
potencialidades chinesas e, inclusive, o fato de ser o único ator que
poderá, no futuro, ameaçar sua supremacia internacional, também
não é surpresa que haja uma relativa acomodação entre os dois. No
entanto, não há expectativa de manutenção de cooperação ao longo
do tempo.
Assim, além das necessidades de manutenção do processo de
desenvolvimento, de acesso a tecnologias e de modernização das forças
armadas, a estratégia chinesa, numa perspectiva pacífica ou harmônica,
é buscar adquirir maior peso político regional e internacional. Daí,
então, a ênfase no relacionamento com praticamente todas as regiões.
Esta estratégia marca, também, o caráter não-reformista da
inserção chinesa ao praticamente apresentar tendência de
aproveitamento pragmático das regras vigentes para busca de ampliação
de capacidades econômicas e/ou de poder, seja por lhe propiciar
condições de dar continuidade aos seus objetivos primários, seja por
postergar a possibilidade de choques com as demais potências.
De qualquer forma, a República Popular da China, a curto
prazo, depara-se com dois grandes desafios. Um, não tratado nesta
China: Perspectivas e Desafios
397
reflexão, é como manter a harmonia interna frente a assimetrias
(entre grupos sociais e províncias) geradas pelo rápido
desenvolvimento.
O outro é exatamente como evitar a ampliação de
questionamentos externos que possam passar de pressões para conflitos.
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YUAN, Peng (2007). “A Harmonious World and China’s New
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China: Perspectivas e Desafios
401
Jun. Acessado em 18/02/2008 no site: http://www.cicir.ac.cn/en/
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YUAN, Peng (2007). “A Harmonious World and China’s New
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ZHAI, Kun & WANG, Zaibang (2007). “Strategic Balance in the Asia-
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Aug. Acessado em 18/02/2008 no site: http://www.cicir.ac.cn/en/
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ZHAI, Kun & WANG, Zaibang (2007). “Strategic Balance in the Asia-
Pacific Region(2)”. Contemporary International Relations, 17 (4), Jul/
Aug. Acessado em 18/02/2008 no site: http://www.cicir.ac.cn/en/
publication/cir_article_detail.php?IngID=733
403
CHINA, UM DEPOIMENTO JORNALÍSTICO
Ana Paula Campos
Luiz Eduardo Garcia
Em setembro de 2007, a Globo News - canal de notícias a cabo
da Rede Globo - enviou uma equipe de TV à China para gravar uma
série especial de programas sobre o País. A série China Além da
Muralha é a mais aprofundada e extensa produção jornalística brasileira
sobre o país asiático. Em sete episódios, os programas abordam temas
centrais como economia, comportamento, sociedade, a identidade dos
chineses de Hong Kong, cultura, os desafios da economia que mais
cresce no mundo e as Olimpíadas de Pequim 2008.
Além dos espetaculares avanços da economia chinesa, a realização
da 29ª edição dos Jogos Olímpicos em Pequim atrai uma multidão de
jornalistas estrangeiros para a China. E tal qual a preparação para o
maior evento esportivo do planeta, nossa viagem pelo gigante asiático
também exigiu dedicação, negociação, planejamento e leitura. Foram
dois anos de estudo sobre uma das culturas mais antigas do mundo,
três meses de produção, um mês de viagem pela China e nove meses
de edição dos programas.
Com a importante ajuda do Embaixador da China no Brasil,
Chen Duqing, fizemos contato com a CARFTE – Chinese
Association for Radio, Film and TV Exchanges – que destacou uma
equipe para nos assessorar antes e durante nossa estada na China.
Por cerca de dois meses, houve uma intensa troca de faxes e e-mails
entre nossa equipe e o pessoal da CARFTE. Através dessa associação,
conseguimos autorização para filmar em lugares como a Cidade
Proibida, a Grande Muralha e a Praça da Paz Celestial. Os pedidos
404
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
de entrevistas com autoridades chinesas também foram encaminhados
à associação.
Além da pré-produção dos programas, o pacote de serviços também
incluía a presença de representantes da CARFTE junto à nossa equipe
durante os 22 dias em que percorremos cinco cidades chinesas (Pequim,
Xangai, Chengdu, Shenzhen e Cantão). Devido ao fato de ter trabalhado
no serviço em português da Rádio China Internacional, a funcionária
aposentada Zhao Gang foi designada para a tarefa de nos acompanhar
durante toda a viagem. Nos dez dias que passamos em Pequim, a equipe
da CARFTE ganhou o reforço de uma jovem funcionária da associação
que, apesar de só falar mandarim, era extremamente habilidosa em traduzir
o código de conduta da capital do poder.
Neste texto, preparado especialmente para esta Conferência
sobre a China, apresentamos nossas impressões sobre a riquíssima
experiência que vivemos ao conhecer de perto um país e um povo tão
singulares.
1 - PRIMEIRAS IMPRESSÕES
A impressão mais marcante que se tem ao chegar à China é a do
desenvolvimento acelerado. Há canteiros de obras em praticamente
todas as esquinas, guindastes e tratores podem ser vistos em toda parte
e um batalhão de operários trabalha sete dias por semana num dos
projetos mais ousados de reconstrução urbana do mundo. Estes sinais
evidentes do desenvolvimento chinês renderam imagens
impressionantes e fundamentais para retratarmos o momento histórico
pelo qual o País está passando.
A Pequim que encontramos era uma cidade em franco processo
de transformação. A capital chinesa está sendo remodelada para sediar
China, um depoimento jornalístico
405
os Jogos Olímpicos este ano com o ambicioso objetivo de se tornar a
“jóia da coroa”, ou seja, a cidade que representa toda a força e poderio
da economia chinesa. A China quer se exibir orgulhosa e provar que
merece um lugar de destaque entre as maiores potências do mundo.
As velhas e históricas construções estão sendo substituídas por
modernos arranha-céus, erguidos em velocidade recorde, como nos
contou, espantado, o correspondente da TV Globo na China, Pedro
Bassan, que acompanhou a construção de um shopping center, ao
lado do apartamento onde mora, em apenas oito meses.
No entanto, constatamos como é complicado fazer o nosso
trabalho, repleto de exigências técnicas, num cenário tão agitado. Todas
as gravações de entrevistas ao ar livre, nas quais se utiliza microfones
de lapela mais sensíveis aos ruídos do ambiente, eram interrompidas
pelo som de martelos e britadeiras, não importando o dia da semana.
Foram muitas as vezes em que foi necessário parar o trabalho e esperar
por alguns minutos de silêncio. Até mesmo em ambientes fechados,
como o apartamento de uma empresária que entrevistamos na cidade
de Cantão, no sul do País, os ruídos do crescimento chinês nos
alcançavam.
O recém adquirido apartamento da empresária Vikki Chen fica
numa área da cidade com muitas construções antigas e pobres. É
justamente em bairros como aquele que o ritmo das obras é mais
intenso e o barulho também. Devido à explosão do setor de construção
civil na China, os parâmetros da população mudaram e chegam a ser
surpreendentes: para muitos chineses, um prédio já é considerado
antigo com apenas oito ou nove anos de existência.
O projeto de reconstrução de Pequim privilegia a criatividade
e a ousadia de arquitetos e designers. Uma construção se destaca na
paisagem da capital: a nova sede da CCTV, a TV estatal chinesa - um
406
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
prédio com mais de sessenta andares (230 metros de altura) desenhado
pelos arquitetos holandeses Kem Koolhaas e Ole Scheeren. Desafiando
a lei da gravidade, duas torres inclinadas se encontram no alto do
edifício, que ganhou o apelido de Pernas de Calça. Aliás, muitas das
novidades arquitetônicas de Pequim recebem nomes curiosos que
normalmente fazem alusão ao arrojo dos projetos. Dar apelidos a
prédios parece ser um hábito dos chineses. O Teatro Nacional de
Pequim, por exemplo, é chamado de Ovo de Ganso, o Estádio
Nacional, principal palco das Olimpíadas, de Ninho de Pássaro, e o
Centro Aquático Nacional, de Cubo D’Água. O Centro de
Comunicações das Olimpíadas está fadado a ganhar também um
apelido, já que a construção lembra um sistema integrado de
computador.
O impacto causado pela beleza das modernas construções da
nova Pequim não é uma unanimidade entre os chineses. As gerações
mais velhas reagem com estranheza ao surgimento de uma capital com
ar futurista. Ao passarmos pelo Ninho de Pássaro, a senhora Zhao,
nossa guia chinesa, fez o seguinte comentário em seu esforçado
português:
- Essa construção não combina com a cidade, destoa. Não é
bonita.
Perguntamos se outras pessoas compartilhavam da opinião dela
e ela respondeu:
- Os mais jovens gostam, mas os mais velhos não.
Parece que a atmosfera de uma velha Pequim vai deixar saudades.
As principais vítimas do dragão faminto, que é o boom
imobiliário chinês, são os hutongs, antigas construções da capital,
compostas por uma edificação de um pavimento geralmente dividida
por várias famílias, que compartilham, ainda, um pátio interno, a
China, um depoimento jornalístico
407
cozinha e o banheiro. Moradia de gente rica de outrora, os hutongs
são, atualmente, habitados por pessoas pobres. Lembram um pouco
os nossos cortiços ou favelas, principalmente pela falta de saneamento
básico e também por terem se tornado atrações turísticas.
Num famoso hutong em Pequim, conhecemos um velho
calígrafo chinês, há 60 anos morador solitário de uma casa humilde.
Perguntado sobre a pressão das construtoras sobre prédios antigos
como o hutong em que mora, ele disse que vive assustado com a
possibilidade de perder sua casa, um risco que se mostra iminente
diante da pujança da reconstrução da capital chinesa.
2 - OS CHINESES
Não é apenas uma enorme distância geográfica que separa
brasileiros e chineses. Os orientais, em geral, ainda são grandes
desconhecidos por aqui. A falta de familiaridade fica mais evidente na
dificuldade que temos de distinguir entre chineses, japoneses, coreanos
e outros povos asiáticos. Esse desconhecimento em relação à China -
causado, entre outras coisas, pelo espaço ainda restrito que os temas
chineses desfrutam na imprensa brasileira - abre caminho para o
surgimento de uma série de “pré-conceitos” e expressões repetidas a
esmo.
Bastam algumas horas em solo chinês para que muitas afirmações
se transformem em única interrogação: afinal, onde está essa gente tão
diferente de nós? Chegamos a Pequim, primeira escala da nossa viagem,
preparados para todo tipo de surpresa. Mas a maior delas foi justamente
constatar que muito do que tínhamos ouvido sobre os chineses
simplesmente não se confirmaria. Ao contrário, fomos surpreendidos
ao encontrar uma gente hospitaleira, alegre e muito trabalhadora.
408
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
Desde o começo do processo de produção da nossa série
jornalística, tivemos como objetivo mostrar as transformações
ocorridas na China sob o olhar dos chineses. Como a vida dos mais
de 1 bilhão de habitantes do País havia mudado passadas três décadas
da revolução econômica comandada por Deng Xiao Ping? Muito mais
do que estatísticas e gráficos mirabolantes (e isto há em abundância na
China), queríamos obter depoimentos de quem vive aquela realidade
em constante e frenética mutação.
O primeiro desafio, então, seria encontrar chineses dispostos a
abrir as portas de suas casas para uma equipe de televisão brasileira.
Inicialmente, recorremos à ajuda de jornalistas brasileiros na China.
Fizemos várias tentativas - o intérprete de um repórter, o motorista
de outro – todas em vão. Partimos para a China com a árdua tarefa de
mostrar o dia-a-dia dos chineses – o que significava conseguir entrar
na casa de uma família com toda a parafernália intimidadora que carrega
uma equipe de TV – e apenas uma entrevista marcada.
Logo no primeiro dia de gravação, um dos “pré-conceitos”
começou a ruir: o de que seríamos controlados, vigiados e limitados
em nossas atividades. Ao contrário, nossas acompanhantes se
esforçaram para atender a todos os nossos pedidos e em nenhum
momento censuraram nosso trabalho. Um minuto a mais de gravação
além do que já havia sido previamente combinado, uma entrevista
inesperada, o acesso a áreas até então restritas. Ainda que não
entendessem algumas especificidades do trabalho jornalístico para
televisão, estavam sempre dispostas a colaborar.
Dessa forma, conseguimos mostrar como diferentes gerações
viveram as profundas mudanças na sociedade chinesa. É fato que alguns
foram mais beneficiados que outros na distribuição de riquezas. De
acordo com a ONU, 130 milhões de chineses vivem abaixo da linha
China, um depoimento jornalístico
409
da pobreza. Mesmo assim, desde 1981, 500 milhões de pessoas deixaram
de ser miseráveis no País.
Ao mesmo tempo em que protagoniza o maior fenômeno de
redução da pobreza do mundo, a China ostenta uma enorme e crescente
desigualdade entre ricos e pobres. No entanto, todos os chineses que
entrevistamos, do jovem pobre que planta milho para alimentar a
família ao herdeiro de um riquíssima rede de restaurantes, foram
categóricos ao afirmar que as condições de vida melhoraram nos
últimos anos.
Os relatos mais contundentes foram feitos pelos mais velhos
que, no curto intervalo de trinta anos, trocaram uma China comunista
e devastada pela pobreza e a fome por uma China em constante
processo de transformação e cada vez mais aberta ao mundo. São
freqüentes os casos de chineses que se perdem ao andar nas ruas de
Pequim ou de outras cidades devido à velocidade assustadora da
transformação do País.
A vida da família que entrevistamos em Cantão vem mudando
no ritmo acelerado do processo de crescimento econômico chinês. A
empresária Vikki Chen chefia a família formada pela mãe aposentada,
a irmã que trabalha com ela e o filho de três anos. Em oito anos,
Vikki e os parentes mudaram de casa quatro vezes, sempre para
melhor:
- Antes, eu vivia com a minha mãe e minha irmã em uma casa de
30 metros quadrados. Em seguida, mudamos para uma de 35 e, depois,
outra de 86. Agora estamos nos mudando para um apartamento de
230 metros quadrados – conta ela.
Na família Chen estão representados todos os capítulos da
história recente da China. Enquanto a mãe lembra dos tempos pós-
Revolução Cultural em que a comida era racionada pelo governo e
410
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
em que ela e os sete irmãos mal podiam fazer uma refeição por dia,
Vikki colhe os frutos de uma vida de sacrifícios recompensados: nos
últimos quinze anos, ela trabalhou sete dias por semana, aprendeu
inglês sozinha e construiu uma carreira de sucesso e um belo
patrimônio, usufruindo das vantagens do modelo econômico chinês,
o socialismo de mercado com características chinesas.
A empresária faz parte de um novo grupo da sociedade cada
vez mais numeroso. Os divórcios no País aumentaram 20% em 2007,
e uma das causas desse aumento, segundo especialistas, pode ser a
política do filho único, que teria criado várias gerações de chineses
com dificuldades de compartilhar uma vida a dois.
Mas este não é o traço mais marcante da sociedade chinesa que
ainda pode ser considerada conservadora e machista. Esta foi a nossa
percepção ao entrevistarmos uma típica família de classe média de
Pequim. Apesar de marido e mulher ocuparem a mesma função num
banco estatal, ambos concordam que ela está mais apta a cuidar das
tarefas domésticas, além de considerarem natural que a esposa abdique
do progresso na carreira em prol da vida familiar. Trata-se, neste caso,
de um casal na faixa dos 30 anos, com um filho ainda criança, e com
educação de nível superior, uma situação que nos pareceu um tanto
retrógrada, levando-se em consideração que a família mora na capital
do País e não no interior.
O casal também aproveita os bons ventos do desenvolvimento
da China e já é dono de três imóveis, incluindo o apartamento de dois
andares onde vivem em um condomínio de prédios recém-construído
na capital. Como toda família de classe média, eles sonham em construir
uma casa maior, objetivo que facilmente alcançarão em alguns anos,
tendo em vista o nível de aquecimento da economia do País, e garantir
uma educação de qualidade para o filho.
China, um depoimento jornalístico
411
3 – A JUVENTUDE
A nova geração de chineses vive numa China completamente
diferente da que viveram seus pais e avós. Visitamos, em Pequim,
uma faculdade particular de Administração e Economia, onde
conhecemos jovens chineses que pouco se distinguem dos jovens
ocidentais. Na verdade, os estudantes estão muito acostumados a lidar
com estrangeiros já que as universidades do País são muito procuradas
por jovens de vários países que querem aprender o mandarim.
Tivemos contato com um grupo de 10 moças e rapazes entre os
quais metade se comunicava conosco em inglês fluente. Com exceção
da aparência e do comportamento mais infantil, se comparados à
juventude brasileira, os desejos daquele grupo são muito característicos
da geração à que pertencem: consumir, viajar, principalmente para os
Estados Unidos, estudar e ter uma carreira de sucesso.
Nossa visão sobre os jovens chineses só ficou completa depois
que visitamos uma escola pública em Pequim, onde conhecemos o
ambiente competitivo em que vivem as crianças chinesas.
Diferentemente do que acontece no Brasil, a corrida por uma vaga
em uma universidade na China tem início no ensino fundamental.
Entrevistamos crianças de nove e dez anos de idade que falam inglês
fluentemente e que têm uma rotina puxada de estudos na escola e em
casa. A descrição que fizeram do seu dia-a-dia nos deixou chocados:
depois de passar dez horas em sala de aula elas ainda têm que estudar
quando voltam para casa e só têm tempo para brincar nos fins de
semana. O próprio governo já demonstrou preocupação com os
freqüentes casos de estresse entre crianças. Apesar disso, ficamos
positivamente impressionados ao encontrar na China crianças que,
apesar da pouca idade, dominam uma língua estrangeira.
412
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
A nossa visão sobre infância e juventude na China envolve a
idéia de compensação. Com base em relatos dos jovens que nos
concederam entrevista, concluímos que a aparência e a atitude
infantis dos estudantes universitários podem ser resultado de uma
inversão de experiências. Como a infância na China é marcada por
muitas cobranças, é na juventude que os chineses parecem recuperar
o tempo que não puderam gastar com brincadeiras e outras
atividades de lazer.
Política, definitivamente, não é um assunto que envolva os
jovens chineses e o cenário econômico favorável pode ser apontado
como uma das causas do desinteresse deles por questões dessa
natureza. Perguntados sobre a possibilidade de votarem em eleições
diretas para presidente, todos disseram que a realização de uma
votação ampla na China seria muito complicada por conta do
tamanho da população. Existe no País uma noção comum de que o
modelo chinês de “democracia” será diferente do adotado pelos
países ocidentais. Além da população gigantesca, muitos chineses
com quem conversamos - pessoas de classes, idades e escolaridade
distintas - deixaram claro que o voto direto não é uma prerrogativa
pela qual pretendam lutar.
A juventude chinesa tem orgulho do seu País, considera a China
uma nação prestes a reconquistar um lugar de destaque entre as
potências globais e quer contribuir para seu futuro. No entanto, a
declaração de um estudante universitário de 21 anos demonstra o grau
de desinformação e uma visão cruel de um grave problema do País: a
desigualdade social.
- Eu acho que as pessoas ricas tiveram mais sorte para ganhar
mais dinheiro, e as pessoas pobres não tiveram muita sorte – disse o
jovem.
China, um depoimento jornalístico
413
O jornalista inglês James Kynge, ex-chefe do escritório do jornal
Financial Times na Ásia e autor do livro “A China sacode o mundo”,
explicou, em uma entrevista gravada em Pequim, a importância do
dinheiro na sociedade chinesa atual:
- As coisas estão mudando tão rapidamente que muitas pessoas
estão desorientadas. Eles não sabem onde estão espiritualmente. E esse
vácuo foi criado pela fuga rápida do comunismo, do autoritarismo e
do controle para uma economia e sociedade mais livres e diversificadas.
As pessoas não sabem onde estão espiritualmente e o que tem
acontecido é que o dinheiro está preenchendo este vazio. O que temos
aqui no momento é uma economia altamente materialista. Dinheiro é
uma coisa muito falada aqui.
4 - CONTATOS COM AUTORIDADES
Para pré-produzir, obter autorizações, viajar e gravar sete
programas de TV na China tivemos que aprender a lidar com as
autoridades chinesas e com costumes e tradições bem diferentes dos
nossos. Em relações de trabalho, os chineses são protocolares,
cerimoniosos, mas eficientes e concentrados nos resultados. Nosso
primeiro contato com uma autoridade foi um encontro, em Brasília,
com o embaixador da China no Brasil, Chen Duqing. Logo na entrada,
uma pergunta do Conselheiro de Imprensa confirmou as nossas
expectativas:
- Quem é o chefe?
Já estávamos preparados para seguir o protocolo adotado pelos
chineses nestas situações. A hierarquia é levada muito a sério por eles.
O coordenador de esportes da Globo News, Henrique Lago, também
presente no encontro, foi orientado a sentar-se à direita do
414
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
Embaixador, posição destinada ao convidado mais importante. Com
a chegada do Embaixador à sala, mais uma lição: nunca esqueça de
levar cartões de visita, se possível, com um lado escrito em mandarim.
Nos contatos de trabalho, a troca de cartões é uma formalidade
indispensável, e, em geral, acontece junto com o primeiro aperto de
mão. Para os chineses, o cartão é um sinal de status por revelar a
posição ocupada pelo interlocutor e a importância dele dentro da
organização que representa.
Ao final da reunião, outra lição. É aconselhável levar presentes
para encontros formais com chineses, já que eles, certamente, lhe
presentearão generosamente com produtos típicos, uma prática
caracteristicamente oriental. Saímos da Embaixada da China com uma
sacola lotada de brindes valiosíssimos para a nossa pesquisa, DVDs,
livros e guias sobre a China, e tratamos de providenciar para a nossa
viagem uma mala especialmente carregada de brindes que foram úteis
na hora de retribuir a hospitalidade com que fomos recebidos.
A negociação para nossa ida à China foi longa e marcada por
encontros, visitas e jantares. Os chineses são excelentes anfitriões e as
refeições, uma verdadeira celebração, em que beber não é uma atitude
a ser evitada. Ao contrário, os brindes se repetem várias vezes durante
o encontro. Isto porque, segundo os chineses, depois de algumas doses
a pessoa se mostra como é de verdade, uma estratégia eficaz de
conhecimento de parceiros de negócios. Porém, considerando o alto
teor alcoólico de algumas bebidas chinesas, recomenda-se moderação
nessas horas.
Uma simpática expressão foi ouvida durante todo o período
em que acertamos os detalhes de nossa ida à China. Freqüentemente,
nossos pedidos eram respondidos da seguinte maneira:
- Você é um “amigo de China”.
China, um depoimento jornalístico
415
5 – GUANXI
O sucesso em qualquer atividade na China pode ser
potencializado por um bom guanxi, o equivalente chinês à rede de
relacionamentos que garante o contato com pessoas cuja ajuda pode
ser decisiva para uma carreira bem-sucedida, por exemplo. Para
construir um guanxi, é preciso conhecer alguém respeitado e digno
de confiança que servirá de credencial para o ingresso em determinados
círculos. Os chineses dão muito valor ao relacionamento pessoal e
reconhecem seus interlocutores com base no guanxi que eles
apresentam,
Considerado um dos valores mais tradicionais da cultura chinesa,
o guanxi também é associado ao tráfico de influência e à corrupção.
Divergências à parte, pode-se afirmar que este é um conceito que
permeia as relações na sociedade chinesa e que a sua compreensão é
indispensável a um maior entendimento da dinâmica social no País.
Nossa experiência comprova na prática que ter um bom guanxi é o
ponto de partida para qualquer negociação. Mesmo assim, ouvimos
vários depoimentos de alunos do MBA da CEIBS – China Europe
International Business School, em Xangai - todos empresários e
executivos ocidentais e chineses que atuam no País - com o objetivo
de obter uma definição mais precisa para este conceito. Abaixo listamos
algumas declarações:
- Uma dica que eu dou sempre é para que os estrangeiros
aprendam bastante com o guanxi. É como o chinês que,
quando vai para o exterior, tem que aprender um pouquinho
sobre os costumes e a cultura do lugar. Aqui na China nós
preservamos bastante o guanxi.
416
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
- Para que uma empresa estrangeira entre no mercado chinês,
ela precisa ter um guanxi com pessoas do governo, ou mesmo
para abrir rotas no mercado chinês.
-O guanxi não é necessariamente algo bom ou ruim. Eu prefiro
dizer que o guanxi não é algo tão valorizado assim como se
coloca fora da China. É muito importante, tem que ser
preservado, cultivado, mas muito do que se fala fora da
China sobre o guanxi tem certo viés de exagero.
- Guanxi é uma rede de relacionamentos onde as pessoas
formam uma espécie de corrente. Não é tão diferente do
conceito de network ou de rede de relacionamentos que existe
no Ocidente, mas eu diria que é um processo um pouco
mais adiantado, mais profundo do que simplesmente ter bons
contatos.
Mesmo com um sólido guanxi, existe o risco de eventuais
surpresas causadas por inesperadas mudanças nos termos negociados
até mesmo por escrito. Assim como em vários países, o governo
chinês cobra taxas de equipes de cinema e televisão para autorizar
as filmagens em locais considerados patrimônios históricos. No
nosso caso, os valores foram acertados com antecedência e as
gravações confirmadas por escrito. Mesmo assim, na véspera da
gravação em alguns pontos turísticos fomos avisados por telefone
que os preços haviam sido reajustados devido à proximidade dos
Jogos Olímpicos. A explicação não nos convenceu, e, depois de
uma longa renegociação, pagamos apenas o que havia sido
previamente combinado.
China, um depoimento jornalístico
417
O episódio revelou uma face do funcionamento da máquina
estatal chinesa, complexa, gigantesca e de difícil controle.
6 - JORNALISMO NA CHINA
O governo chinês se prepara para receber 30 mil jornalistas
estrangeiros durante os Jogos de Pequim, um acontecimento inédito
no País. As autoridades fazem questão de anunciar que todos os
jornalistas são bem vindos e que terão liberdade total para trabalhar.
Em janeiro de 2007, entrou em vigor uma lei que formaliza as
declarações do governo e permite à imprensa internacional cobrir,
sem restrições, qualquer assunto no País. A lei é tão minuciosa que
um dos artigos destaca que os jornalistas poderão entrevistar qualquer
pessoa sem necessidade de autorização prévia e desde que ela concorde
em ser entrevistada, uma prerrogativa trivial para o trabalho
jornalístico.
Graças à nova legislação, fomos autorizados a filmar na Praça
da Paz Celestial, local até então proibido para jornalistas e que pode
voltar a ser fechado à imprensa depois das Olimpíadas, data prevista
para o fim da vigência da lei.
Durante as filmagens na praça, em momento algum fomos
incomodados pelas equipes de segurança que vigiam ostensivamente o
local. Só depois de quase uma hora de trabalho, nos demos conta de
que estávamos sendo acompanhados por um agente do governo.
Simpático e sorridente, o homem vestido de preto, debaixo de um sol
escaldante, aproximou-se discretamente do nosso grupo e disse que
ficaria por perto para qualquer eventualidade.
De fato, a impressão era de que o agente secreto estava ali para
nos proteger e não para defender os interesses do seu País, tamanha a
418
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
descontração de sua postura diante da função que exerce. O seu
único pedido foi para que anotássemos os nomes dos integrantes da
equipe em um caderno. De resto, nosso encontro “ocasional” foi
tão agradável quanto inusitado e pontuado por uma amigável
conversa em inglês.
Todas as entrevistas com autoridades chinesas foram
intermediadas pela equipe da CARFTE que solicitou o envio dos
nomes das pessoas que gostaríamos de entrevistar e a relação de
perguntas, o que não impediu que as questões improvisadas fossem
respondidas durante as filmagens. E uma curiosidade nas relações
com a imprensa, mencionada pelos correspondentes brasileiros que
trabalham na China, foi o fato de que, salvo raras exceções, os
representantes do governo designados para falar com os jornalistas
são sempre vice-diretores ou vice-presidentes, nunca os principais
chefes.
O trabalho da imprensa num país comunista comandado por
um partido único há quase 60 anos tem as suas peculiaridades.
Mesmo com o discurso oficial garantindo que a imprensa estrangeira
é livre na China, nossa experiência mostrou que os trâmites são
mais complicados. Nosso acesso direto a autoridades e a
determinados locais era restrito e só foi possível com a ajuda da
CARFTE, que cobra taxas para prestar serviços a órgãos de
imprensa do mundo todo. Diferentemente do que acontece no
Brasil, onde entrevistas e gravações são tratadas diretamente com
as assessorias de imprensa ou com as próprias fontes, na China
sempre há um intermediário.
Organizações não governamentais, como Human Rights
Watch e Repórteres Sem Fronteira, não concordam com as regras
impostas aos jornalistas e também afirmam que a liberdade não é
China, um depoimento jornalístico
419
tão ampla quanto anunciada. Os repórteres que trabalham na China
têm que conviver ainda com alguns mecanismos de censura. O acesso
a alguns sites na Internet é bloqueado, como o da rede britânica de
comunicação BBC e da enciclopédia eletrônica Wikipedia. Além disso,
ouvimos relatos de jornalistas que tiveram a conexão à Internet
suspensa, inexplicavelmente, em momentos de atividade profissional
intensa.
Poucas autorizações nos foram negadas, como a permissão
para irmos ao Tibet. Outro detalhe importante: o serviço de
acompanhamento da equipe só incluía as cidades que visitamos na
chamada China Continental. As negociações para nossa ida à Região
Administrativa Especial de Hong Kong foram feitas diretamente
com o Escritório de Relações com a Imprensa do governo local. O
contato com os moradores de Hong Kong nos fez enxergar
claramente que existe dentro da China um outro “país”
completamente diferente do que conhecíamos até então.
De maneira geral, os chineses reagiam com curiosidade à nossa
presença nas ruas, seja gravando ou apenas circulando com nosso
equipamento a tiracolo. Em diversas ocasiões, nos vimos cercados
por uma pequena multidão enquanto gravávamos em pontos
turísticos como o Bund, em Xangai, ou a Muralha da China. Não
foram raros, também, os pedidos de chineses que queriam tirar fotos
ao nosso lado, lembranças que também quisemos registrar com nossas
máquinas. Mas ainda não sabemos ao certo se o que atraía os olhares
dos chineses em nossa direção era o fato de sermos uma equipe de
televisão, o que geralmente desperta a atenção popular, ou se o
chamariz era a nossa aparência ocidental. Independentemente do
motivo, os chineses sempre se aproximavam de nossa equipe com
simpatia, educação e muita curiosidade.
420
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
7 - CURIOSIDADES
Já dissemos aqui que muitos mitos e lendas sobre os chineses não
resistiram aos primeiros dias de nossa estada na China. No entanto,
isso não significa que não existam diferenças entre brasileiros/ocidentais
e chineses e nem que essas diferenças não mereçam um registro. O
choque cultural existe, mas não é a hecatombe que esperávamos
encontrar. Ainda assim, rendeu momentos divertidos e também aflitivos.
O tom branco da pele é cultivado pelos chineses,
principalmente as mulheres, como sinal de status social. A
pele bronzeada indica a origem das pessoas, revela a natureza
do trabalho delas, a longa exposição ao sol no trabalho na
lavoura. Isto ajuda a explicar o ar de interrogação da
aposentada que nos acompanhava ao constatar que a repórter,
que todos os dias surgia maquiada no saguão do hotel, tinha
sardas no rosto. “Isto não sai, não tem como limpar?”,
perguntou ela. A explicação de que a sensibilidade da pele
clara associada à exposição ao sol era a causa das manchas
não pareceu satisfatória.
Os chineses são fascinados por carros, preferencialmente os
importados. A quantidade de carros de luxo circulando pelas
ruas de cidades como Pequim, Xangai e Cantão é
impressionante. Segundo dados oficiais, há quase três milhões
de veículos nas ruas de Pequim, onde mais de mil carros são
licenciados diariamente. Ao mesmo tempo, o trânsito na
China é caótico, o que não é tão difícil de entender levando-
se em consideração a “inexperiência” dos motoristas chineses.
Há trinta anos, as bicicletas reinavam absolutas na China,
China, um depoimento jornalístico
421
mas hoje, apesar de ainda numerosas, disputam espaço com
a enorme frota do País. Os condutores chineses, que até
pouco tempo atrás apenas pedalavam, agora conduzem seus
carros com aparente desconhecimento das regras básicas de
trânsito seguro, buzinando muito, fazendo ultrapassagens
arriscadas e desrespeitando os sinais.
Já tínhamos sido alertados pelos próprios chineses que
conhecemos aqui no Brasil para as excentricidades da culinária
chinesa, em especial a pimenta. Por isso, nos restaurantes
tivemos todo o cuidado de ressaltar que nossa comida deveria
ser preparada sem pimenta. Mas logo percebemos que os
parâmetros chineses para mensurar o que está ou não
apimentado são muito diferentes dos nossos. Os pratos
supostamente sem o condimento sempre vinham à mesa
picantes, o que nos leva a concluir que a tolerância dos
chineses à pimenta é muito superior à dos brasileiros.
Pequim e Xangai são duas cidades-símbolo da China, apesar
de serem muito diferentes. A presença do Estado é marcante
na capital, onde se concentram milhares de prédios públicos,
todos fortemente protegidos por guardas. Por ser o centro
nacional do poder e também devido à minuciosa preparação
para os Jogos Olímpicos, Pequim é limpa, organizada e
disciplinada. Os sinais mais evidentes de pobreza só
apareceram em Xangai, onde estrangeiros como nós são muito
assediados por pedintes na porta dos hotéis. Xangai parece
descolada do restante da China. A cidade assume a sua vocação
cosmopolita, com uma vida mais liberal, menos vigiada. Mas
também foi o único lugar em que nossa equipe foi
diretamente abordada por agenciadores de prostitutas.
422
Ana Paula Campos & Luiz Eduardo Garcia
Barganhar é uma regra na China, principalmente nos
mercados e feiras livres. Uma boa e insistente negociação
pode resultar em uma redução drástica no preço do
produto desejado. Munidas de calculadora, as
vendedoras chinesas (a maioria das atendentes e
balconistas é mulher) mostram na máquina o preço da
mercadoria para facilitar a comunicação com
estrangeiros. Em seguida, é a vez de o comprador fazer
sua oferta, operação que se repete até que o negócio
seja fechado ou que alguma das partes desista. Não é
preciso se intimidar: oferecer até um décimo do suposto
valor do produto faz parte do jogo.
Resistir à tentação de comprar é praticamente impossível
na China. No entanto, o pagamento pode ser bem mais
complexo caso o comprador não tenha dinheiro suficiente
no bolso. Cartões de débito e de crédito, cada vez mais
indispensáveis em outras partes do mundo, ainda são
objetos pouco usados no comércio chinês, o que parece
ser apenas uma questão de tempo. Na única vez que
tentamos pagar nossas compras com cartão de crédito
num grande shopping de Pequim, tivemos que percorrer
os corredores até chegar a um caixa onde os cartões seriam
aceitos. Mas a falta de familiaridade da atendente com
essa forma de pagamento era visível. As compras
acabaram sendo pagas em dinheiro vivo. Até mesmo na
hora de quitar a conta do hotel em Xangai, a maior
cidade da China, o cartão foi recusado. Não é por acaso
que a maioria dos comerciantes chineses tem uma
máquina para contar notas.
China, um depoimento jornalístico
423
8 - CONCLUSÃO
Depois de 22 dias na China, tivemos a oportunidade de conhecer
as histórias pessoais que estão por trás das estatísticas fabulosas
divulgadas diariamente nos jornais de todo o mundo sobre o
crescimento irrefreável do gigante asiático. Um traço comum dos
chineses é a dedicação e o envolvimento de cada cidadão, não
importando a classe social ou o nível educacional, com a construção
de uma grande potência.
Constatamos também que, comparado a outros países, o
desconhecimento brasileiro em relação à China é preocupante e pode
representar um atraso em áreas estratégicas, à medida em que a nação
asiática vem mantendo altas taxas de crescimento econômico e
assumindo uma posição de destaque cada vez maior no cenário
internacional.
Assim como o Brasil, a China tem muitos desafios a serem
vencidos, como a redução da pobreza e da poluição, mas acreditamos
que isto não impede que o exemplo chinês forneça soluções para
questões cruciais ao desenvolvimento do nosso País, como o
planejamento de longo prazo e o forte investimento em infra-estrutura
e educação.
Durante a era Mao (1949-1976), embora a China almejasse o
crescimento econômico, eficiência e desenvolvimento econômico eram
preocupações apenas secundárias, e o mercado não desempenhava papel
importante na organização geral do sistema econômico. Sob a economia
planificada, dois mecanismos – suave confinamento ao orçamento e panela
de ferro – ajudavam a incluir as relações econômicas entre as relações
sociais e políticas. Suave confinamento ao orçamento significa que as
atividades de uma organização econômica (seja uma empresa ou governo
de esfera inferior) não estão circunscritas por seus próprios recursos.
Quando os recursos são infriores aos custos, ocasionando déficit, a
empresa ou o governo de esfera inferior podem contar com a ajuda de
uma organização de fora (por exemplo, um governo de esfera superior).
O princípio da sobrevivência dos mais hábeis não se aplica a esse sistema.
Panela de ferro significa emprego garantido para toda a vida. Não
importando se a tarefa foi cumprida ou não, não haverá desemprego.
Suave confinamento ao orçamento e panela de ferro não levam,
obviamente, à maximização da competição e da eficiência. Tornaram-
se, entretanto, os pilares do sistema de economia planificada.
Transformaram-se nos dois pilares do sistema de economia planificada
porque tal sistema dá pioridade à subsistência humana e à igualdade
entre unidades econômicas, com prejuízo da eficiência. Visto
425
1
Shaoguang Wang é Professor catedrático do Departamento de Governo e Administração
Pública da Universidade Chinesa de Hong Kong e Professor da Escola de Política Pública
e Administração da Universidade de Tsinghua.
CHINA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Shaoguang Wang
1
426
Shaoguang Wang
que a economia chinesa estava profundamente entranhada na sociedade
e sujeita a princípios mais morais do que econômicos durante a era
Mao, ela deveria ser denominada economia moral. Em tal economia
moral comunas e brigadas, em áreas rurais, e unidades, nas cidades,
eram não apenas instituições econômicas, mas também sociais e
políticas. Elas não só proporcionavam oportunidades de emprego a
seus membros e lhes pagavam os salários (ou pontos de trabalho),
como também proviam outros benefícios sociais (cuidados diários,
jardim de infância, escola, assistência médica, pensão do Estado, seguro-
velhice, serviços relativos a sepultamento e a funerais) para os membros
de suas famílias. Em outras palavras, eram a comuna e a brigada que
proporcionavam bem-estar aos indivíduos. Não havia necessidade de
provisão direta, por parte do Estado, dessas políticas sociais. Essa
situação continuou até à primeira fase da reforma econômica, nos
anos 80.
DESAFIOS
Após o lançamento da reforma econômica, a ideologia mestra
do governo chinês mudou. Os formuladores de políticas abandonaram
a busca por segurança e igualdade básicas e focalizaram o
desenvolvimento como prioridade, perseguindo exclusivamente o
desenvolvimento econômico. Embora os formuladores de políticas
insistissem em que a eficiência vem primeiro, mas a justiça deve ser
levada em consideração, na verdade a justiça foi negligenciada. Para
obter eficiência, maximização e desenvolvimento geral rápido, todos
os outros aspectos, como igualdade, emprego, direitos e interesses
dos empregados, assistência à saúde, meio ambiente e defesa nacional
tiveram de servir a este objetivo. Àquela época, líderes em todos os
China: Desafios e Perspectivas
427
níveis aceitaram a teoria do “efeito gotejamento”, advogada pelos
economistas neoliberais, que pregavam que se o bolo continuasse a
crescer, todos os outros problemas estariam resolvidos.
O bolo econômico chinês de fato cresceu, e muito. Nos últimos
30 anos, O PIB chinês vem crescendo à taxa de 9.7% ao ano, em média.
Em retrospecto, pode ser dito que a reforma e a abertura chinesas
trouxeram benefícios para todos. Dificilmente há uma família cujo
bem-estar não haja melhorado a partir de 1978. Uma revisão cuidadosa
da história recente, entretanto, revela que a reforma chinesa passou,
na verdade, por quatro fases distintas. Na primeira (1979-1984),
surgiram esporádicos mercados de consumo de bens, que
desempenharam um papel muito limitado na economia como um todo.
Ainda era muito forte a interferência governamental, e o sistema e as
relações extramercado ainda predominavam. Na segunda fase (1985-
1992), surgiu um conjunto de sistemas de mercado inter-relacionados,
como o mercado de commodities, o de trabalho, o de capitais, o de
moeda estrangeira e o de terras. Nessa fase, os princípios do mercado,
como trocas equivalentes, lei da oferta e da procura e competição
começaram a desempenhar um papel na economia, mas aqueles
princípios não influenciaram os campos não-econômicos. Na terceira
fase (1993-1999), a sociedade de mercado surgiu como o fator
dominante. Os princípios do mercado começaram a influenciar as
arenas não-econômicas, e a ameaçar tornarem-se o mecanismo
predominante de integração de toda a sociedade (inclusive da vida
política). Finalmente, os anos posteriores a 1999 constituem uma nova
fase.
As três primeiras fases da transformação arruinaram os
fundamentos da economia moral. A relação financeira entre os
governos de diferentes níveis mudaram do todo mundo comendo do
428
Shaoguang Wang
mesmo panelão para comendo em cozinhas separadas. A relação entre
as finanças governamentais e as empresas estatais mudou do suave
confinamento ao orçamento para o orçamento fortemente controlado.
Nas áreas rurais, aos camponeses era outorgada a liberdade de
produção. Com a desintegração do sistema de comunas e a introdução
do de responsabilidade geral, os aldeões não mais eram responsáveis
pelos indivíduos. Nas cidades, a reforma do sistema de emprego
destruiu a panela de ferro dos trabalhadores urbanos. Em vista de as
comunidades rurais e as unidades urbanas terem sido destituídas das
funções sociais, transformando-se em meras instituições econômicas,
os agricultores e os trabalhadores foram forçados a sobreviver com
reduzido direito a assistência e segurança (social). Conseqüentemente,
o bem-estar dos indivíduos veio a depender quase inteiramente do
fator dinheiro.
Karl Polanyi está absolutamente certo quando pondera que um
mercado emergente e em fase de auto-ajustamento tende a ser
destrutivo.
2
Quando um mercado tenta transformar os seres humanos
e o meio ambiente em meras commodities, inevitavelmente destruirá a
sociedade e o meio ambiente natural.
Embora a China tenha experimentado, talvez, o maior
crescimento econômico do mundo, a busca de uma taxa de crescimento
de PIB elevado trouxe consigo muitos sérios desafios. Antes de a
China se transformar numa sociedade de mercado, esses desafios não
eram tão evidentes, porque então a reforma era mais ou menos um
jogo win-win, e todos os estratos sociais eram beneficiados pela
reforma. A única diferença é que alguns grupos sociais devem ter
obtido ganhos relativamente maiores do que os dos outros.
2
Karl Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of
Our Time, (Boston: Beacon Press, 2001).
China: Desafios e Perspectivas
429
No início dos anos 90, como a China estava ingressando na
fase da sociedade de mercado, aqueles desafios tornaram-se cada vez
mais evidentes. Os dois maiores desafios eram o crescimento da
desigualdade de renda e da falta de segurança humana.
A China costumava ser uma sociedade igualitária com
desigualdade de renda, após o País ter-se dedicado a uma série de
reformas econômicas direcionadas para o mercado. Na virada do
século, a distribuição geral de renda na China já havia se tornado
muito mais desigual do que em qualquer outra época de sua história
(Figura 1). Embora o nível de desigualdade de renda ainda fosse
menor do que o da maioria dos países latino-americanos e da África
Sub-saariana, ele tinha já ultrapassado a desigualdade encontrada na
maioria das economias em transição na Europa Oriental, bem como
em alguns de seus enormes vizinhos asiáticos (como a Índia, o
Paquistão e a Indonésia). Pelo mundo a fora, nas duas últimas décadas,
riqueza e renda tornaram-se mais concentradas. O que realmente
distingue a China de todos os outros países ´é o fato de que o
crescimento da desigualdade lá é, de longe, o maior entre todos os
países para os quais existem dados para comparação (BANCO
MUNDIAL, 1997a, p. 7-8).
430
Shaoguang Wang
Figura 1: Indicadores de Gini da desigualdade de renda na China,
1981-2002
3
A desigualdade geral de renda na China pode ser dividida em
quatro partes: desigualdade entre os setores rural e urbano; entre
regiões; no interior do setor rural e no interior do setor urbano.
Pesquisas têm revelado que a maioria das sérias disparidades de renda
na China são as entre regiões e as entre a cidade e o campo.
4
A principal corrente de economistas acredita que, juntamente com
o crescimento econômico, a operação do mercado de per si tende a
produzir convergência da renda regional. Eles prevêem um padrão com
a forma de um U invertido para o desenvolvimento regional no caminho
Fonte: Martin Ravallion and Shaohua Chen, “China’s (Uneven) Progress
Against Poverty,” World Bank Policy Research Working Paper No. 3408
(June 16, 2004).
3
O Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade relativa, variando de 0, igualdade
absoluta, a 1, desigualdade absoluta.
4
Li Shi and Zhao Renwei , “Zhongguo jumin shouru fenpei zai yanjiu” (análise da
distribuição de renda dos residents chineses), http://www.usc.cuhk.edu.hk/
wk_wzdetails.asp?id=597ÿUNDP, China Human Development Report 2005:
Searching for Equitable Human Development (Beijing: UNDP, 2006)
China: Desafios e Perspectivas
431
do crescimento, isto é, os hiatos regionais tendem a crescer nas fases de
desenvolvimento e decrescer nas fases ulteriores.
5
O Caso da China,
entretanto, não corrobora a hipótese do U invertido. A Figura 2 mostra
a mudança de traçado do coeficiente de Gini para o PIB provincial de
1978 a 2005. No máximo, ele produz uma curva em forma de U.
Medido pelos preços constantes, o PIB provincial per capita
convergiu nos primeiros anos das reformas, mas a tendência foi
revertida nos meados dos anos 80. Como as forças do mercado estavam
desempenhando um papel cada vez maior na economia chinesa, os
anos 90 assistiram a uma grande explosão da desigualdade regional.
6
Figure 2: Coeficientes de Gini da renda per capita provincial
(preços constantes de 1978)
7
5
Jeffrey Williamson, “Regional Inequality and the Process of National Development:
A Description of the Patterns,” Economic Development and Cultural Change, Vol.13,
No. 4 (1965): 3-45
6
Shaoguang Wang and Angang Hu, The Political Economy of Uneven Development:
The Case of China (Armonk, NY: M.E. Sharpe, 1999).
7
Se não houver indicação em contrário, todos os dados apresentados neste trabalho
procedem do banco de dados do autor.
Nota: UW refere-se a “não medido pela população”; W refere-se a “medido
pela população”
432
Shaoguang Wang
Como outros países do terceiro mundo, a China possui um
sistema dual de economia. Quando lançou sua iniciativa de reforma,
em 1978, a divisão entre o campo e a cidade já era bastante profunda.
A renda per capita dos residentes no campo era mais de duas vezes
(2.6) maior do que a dos residentes rurais (Figura 3) Nos primeiros
anos da reforma, o fosso que separava o campo da cidade se estreitou.
A partir de 1984, entretanto, esse fosso começou a se alargar
novamente. Porém, antes de 1992 ele ainda era, de alguma forma,
menor do que em 1978. A segunda fase da reforma foi caracterizada
pela polarização do crescimento entre a China moderna e os setores
tradicionais. Graças ao aumento de preços [por causa] da requisição
de grãos por parte do governo, a polarização cessou
temporariamente, em 1966 e 1967. Mas após 1968, o fosso recomeçou
a se aprofundar. Por volta de 2003, a divisão campo-cidade atingiu o
auge. Todos os ganhos dos anos anteriores da reforma tinham sido
perdidos. Em comparação com outros países em desenvolvimento,
a disparidade da renda nacional da China pode não ser a maior do
mundo, mas o fosso entre a cidade e o campo encontra-se entre os
maiores. Essa é a característica mais distintiva da distribuição de renda
chinesa.
8
8
UNDP, China Human Development Report 2005: Searching for Equitable Human
Development
China: Desafios e Perspectivas
433
Figura 3: Divisão cidade/campo (campo como 1.00)
Na sociedade moderna povo vive de sua renda. Entretanto,
algumas pessoas não podem trabalhar (as crianças, os idosos, os doentes,
os deficientes e as senhoras grávidas); Algumas pessoas possuem
emprego, mas sua baixa renda é insuficiente para manter a si próprias
e suas famílias (devido a possuírem filhos em excesso ou à perda do
consorte). Algumas pessoas são vítimas de acidente de trabalho e ficam
inutilizados. Algumas pessoas querem trabalhar, mas perdem sua
capacidade para tal. Por diferentes razões, algumas famílias possuem
apenas limitado espaço vital, o que atrapalha a vida familiar normal
(especialmente o crescimento de seus filhos). Todo mundo pode,
eventualmente, ficar doente, e todo mundo está envelhecendo. Numa
palavra, a sociedade moderna é cheia de riscos, e todos podem vir a se
encontrar numa situação desesperadora. Embora as famílias e algumas
organizações sem fins lucrativos possam reduzir os danos, elas não
podem proteger a população contra todos os riscos.
434
Shaoguang Wang
Antes da reforma econômica, as comunas e as brigadas rurais,
bem como as unidades de trabalho urbanas costumavam acolher o
povo. Depois que as comunas, as brigadas e as unidades foram
desbaratadas, o governo teve de forçar a sociedade inteira a se
responsabilizar por, e providenciar a segurança econômica básica para
a população. Entretanto, nos anos 80 e 90, o governo chinês
negligenciou essa responsabilidade. Tomemos a assistência à saúde
como exemplo.
Quando o Professor Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel
de Economia em 1998, pronunciou sua conferência na Universidade
Chinesa de Hong Kong, em fevereiro de 2005, ele, mais uma vez,
elogiou o sistema de assistência médica durante a era Mao.
9
E Sen não
é nenhum admirador irrestrito de Mao. Em seu livro de 1987 intitulado
Fome e Ação Pública, ele condenou a fome chinesa (1959-1962) sob
Mao como um episódio terrível, no qual a ausência de mecanismos
democráticos levou a um aumento vertiginoso das taxas de mortalidade
num período muito curto. No mesmo estudo, entretanto, admite
que a China teve muito mais justa distribuição de comida e de recursos
médicos (inclusive serviços médicos no campo) do que a Índia, o que
possibilitou à China de Mao desfrutar uma grande e decisiva vantagem
sobre a Índia em termos de estado de saúde de seu povo.
10
Antes de 1980, a base econômica da China era fraca, e o nível
material de vida era baixo. Não obstante, no campo da saúde a China
era modelo para todo o mundo subdesenvolvido. Há dois indicadores
que são comumente utilizados internacionalmente para medir o estado
9
Amartya Sen, “Global Causes of Violence,” a lecture delivered at the Chinese
University of Hong Kong, February 18, 2005
10
John Dreze and Amartya Sen, Hunger and Public Action (OxfordÿClarendon
Press, 1987), p. 205.
China: Desafios e Perspectivas
435
da saúde de uma nação. Um é a expectativa média de vida; o outro é
taxa de mortalidade infantil (IMR). Quando os comunistas chegaram
ao poder, em 1949, os indicadores de saúde da China estavam entre os
mais baixos do mundo. Por volta do final dos anos 70, a China tinha
se transformado numa nação com um dos mais abrangentes sistemas
de redes de saúde, com 80 a 85% de sua população desfrutando acesso
aos cuidados básicos de saúde. Em menos de 30 anos, a expectativa de
vida tinha saltado de aproximadamente 35 para 68 anos, e a taxa de
mortalidade infantil havia baixado de 200% para 42%.
A partir do início das reformas pós-Mao, a China experimentou
vinte anos de crescimento econômico sustentado; a ciência e a
tecnologia fizeram considerável progresso; e, acima de tudo, a despesa
per capita com saúde aumentou enormemente. Em tais circunstâncias,
era de se esperar maior progresso nos cuidados com a saúde. Os
resultados, entretanto, foram decepcionantes. Alguém pode objetar
que a expectativa de vida beirava os 70 anos, e que os demais avanços
ocorreriam com mais vagar. Entretanto, a tendência em cinco países
ou regiões no Pacífico asiático aponta em outra direção. De 1980 a
1998, a expectativa média de vida na China ganhou dois anos, enquanto
a Austrália, Hong Kong, o Japão, a Nova Zelândia e Cingapura, que
partiram de bases mais elevadas, aumentara 4 a 6 anos em sua média de
expectativa de vida. O Sri Lanka, cuja base havia sido semelhante à da
China em 1980, aumentou em 5 anos sua expectativa média de vida.
Semelhantes disparidades podem ser observadas nas mudanças das taxas
de mortalidade infantil.
11
Como pôde a China dar-se o luxo de instituir um dos mais
justos sistemas de serviços de saúde do mundo e fazer notável progresso
11
Shaoguang Wang, “China’s Health System: From Crisis to Opportunity,” Yale-
China Health Journal, Vol. 3 (Autumn 2004): 5-49.
436
Shaoguang Wang
no que tange à melhoria das condições de saúde de sua população,
durante a era Mao, sendo o País terrivelmente pobre? Por que
será que, apesar de partindo de uma base econômica mais forte,
um nível científico e tecnológico mais elevado e com dispêndio
mais avultado, o desempenho do sistema nacional de saúde tem
sido tão decepcionante sob a égide das reformas econômicas voltadas
para o mercado?
Para responder a essas questões, precisamos, sem dúvida, levar
em consideração uma infinidade de fatores. Mas é evidente que o
sistema de serviços de saúde da China transformou-se de um modelo
para o mundo em desenvolvimento, num embaraço para ela mesma,
por falta tanto de disposição quanto de capacidade, por parte do
governo, para resolver o problema da desigualdade dos serviços
de saúde.
A falta de disposição e de competência para assumir a
responsabilidade pelos serviços básicos de saúde para todos fica
evidente na Figura 4. Antes da reforma econômica, os pagamentos
individuais representavam menos de 20% dos gastos totais do País
com saúde, enquanto as contribuições fiscais do governo e o seguro
social representavam mais de 80%. Nos primeiros anos da reforma
econômica, os gastos sociais começaram a cair aos poucos. Contudo,
a quota das contribuições governamentais continuava crescendo, e
chegou a atingir 40%. O ponto crítico ocorreu nos meados dos
anos 80, quando tanto os gastos governamentais quando os sociais
caíram dramaticamente, e quase atingiram o ponto mais baixo no
limiar do novo século. Por volta de 2002, a quota de participação
do governo nas despesas totais com saúde havia diminuído para
15.21%, e a da seguridade social, para 26.45%. A soma de suas
quotas não chegava a 52%. O retraimento da quota governamental
China: Desafios e Perspectivas
437
e da de seguridade social provocou o aumento do desembolso por
parte da população com os serviços de saúde. Em 1980, esse
desembolso representava apenas 23%, porém de 2000 a 2002 ele
passou a 60%. Em outras palavras, o sistema de serviços de saúde
da China efetivamente tornou-se um sistema financiado
principalmente por fontes privadas, enquanto que as fontes públicas
apenas tapavam buraco aqui e ali. Essa transformação
fundamentalmente transferiu a responsabilidade pelos serviços de
saúde do governo para os indivíduos. De modo geral, nos países
desenvolvidos o desembolso individual representava 27% do gasto
total com saúde; nos países em transição, 30%; nos países menos
desenvolvidos, 40.7%, e em outros países em desenvolvimento,
42.8%. Portanto, em comparação com outros países, o sistema de
saúde da China tornou-se, provavelmente, um dos mais
comercializados do mundo.
12
O problema é que o mercado atende apenas aos consumidores
que têm capacidade de pagar a conta. Além do mais, quaisquer que
sejam os ganhos que as forças do mercado possam gerar, eles são
incapazes de resolver seja o problema da distribuição justa dos
recursos para a saúde, seja o da distribuição assimétrica de
informação entre pacientes, seguradoras e fornecedores. Confiar
no mercado para o financiamento e provisão dos serviços de saúde
inevitavelmente levaria a um reduzido acesso a esses serviços por
parte dos pobres e dos vulneráveis, bem como à ineficiência.
12
Shaoguang Wang, “China’s Health System: From Crisis to Opportunity
438
Shaoguang Wang
Figura 4: Retirada do Estado do serviço de saúde
O serviço de saúde era apenas uma das áreas da segurança humana
invadida pelas forças do mercado. A proteção social e a assistência que
a população em geral, como os camponeses e os trabalhadores, podiam
desfrutar, declinou na maior parte dos anos 90. Demissões em grande
escala, despesas exorbitantes com educação, freqüentes acidentes de
trabalho e outros fatores fizeram milhões de pessoas terem a sensação
de que sua segurança social e econômica estava ameaçada.
Na verdade, segundo um estudo comparativo sobre a segurança
econômica conduzido pela Organização Internacional do Trabalho,
em 2004, a China pertencia à categoria dos países menos seguros.
13
Na
perspectiva do cidadão comum, portanto, a sociedade de mercado
estava pondo sobre seus ombros um peso que ele não podia suportar.
13
International Labor Organization, Economic Security for a Better World, (Geneva:
International Labor Office, 2004).
China: Desafios e Perspectivas
439
SURGIMENTO DO CONTRAMOVIMENTO PROTETOR
Em tal situação, a barra de ouro da reforma do mercado se
esfacelou, e, da mesma forma, o consenso sobre a eficácia das forças
do mercado acabou. Aqueles que saíram feridos na primeira reforma
econômica, ou que muito pouco dela aproveitaram, deixaram de
hipotecar apoio incondicional à reforma voltada para o mercado. Ao
contrário, passaram a questionar qualquer reforma com a etiqueta
mercado. Temiam sair feridos outra vez. Eram hostis aos funcionários
corruptos, que abusavam de seu poder e se apoderavam de fundos do
governo, e desprezavam os sábios arrogantes, que fizeram fortuna, da
noite para o dia, aproveitando-se da reforma. Eles todos perceberam
que a reforma econômica chinesa havia descarrilado e deveria ser
conduzida à trilha do desenvolvimento harmonioso da economia e da
sociedade. Isso deu início ao contramovimento protetor, que pretendia
reinserir a economia na sociedade.
À medida em que mais e mais coisas iam dando errado
imprevisivelmente, os formuladores de políticas começaram a meditar
seriamente na advertência de Deng Xiaoping: “se houvesse polarização
(entre ricos e pobres) ...a disparidade entre nacionalidades, regiões,
classes, governo central e local haveria de aumentar, e, então, tudo
daria errado”
14
. A finalidade do socialismo é tornar todo mundo rico,
e não a polarização. Se nossa política conduzisse à polarização, teríamos
falhado.”
15
Para manter a ordem social e política, o governo chinês
começou a envidar mais esforços direcionados para a segurança e a
igualdade. Se eles tivessem dado ao menos uma pequena atenção à
14
Deng Xiaoping sixiang nianpu (A crônica dos pensamentos de Deng Xiaoping),
(Beijing: the Central Document Press), p 453.
15
Ibid, p. 311.
440
Shaoguang Wang
“justiça a ser levada em conta”, no passado, o slogan agora teria sentido:
reintroduzir a economia nas relações sociais através da
descomercialização. Descomercialização significa tratar os serviços
relacionados com a subsistência humana (como serviços de saúde,
educação, planos de aposentadoria, etc.) como direitos humanos
básicos, e não como commodities comerciais.
A finalidade da descomercialização é fazer com o que o povo
mantenha “sua sobrevivência sem se apoiar no mercado”.
16
Na situação
de desintegração da economia planificada e do sistema coletivo, deve ser
estabelecido um sistema de redistribuição em busca da descomercialização.
Por um lado, a população deve pagar imposto segundo seu nível de renda;
por outro, deve receber os benefícios distribuídos pelo Estado (assistência
social, seguro social e serviços públicos) de acordo com suas necessidades.
Para qualquer indivíduo, não deve existir uma relação necessária entre o
imposto que ele paga e o benefício que recebe. Utilizando o poder do
Estado, a redistribuição deve quebrar a cadeia do mercado e reconectar
todo mundo. Essas mudanças a China vem experimentando recentemente.
Se de 1978 até os meados dos anos 90 a China adotou apenas políticas
econômicas, e não sociais também, agora ela começou a adotar suas políticas
sociais pela primeira vez. A Figura 1 lista um conjunto de políticas sociais
introduzidas nos últimos anos. Antes da chegada do novo século, apenas
a política do “Vá para o oeste”, em 1999, podia ser considerada como
uma política social. A maioria das políticas sociais foi introduzida depois
que Hu Jintao e Wen Jiabao tomaram posse, em 2002. Essas políticas
sociais pertencem a duas grandes categorias. A finalidade da primeira
delas é reduzir a desigualdade, enquanto a da segunda é diminuir a
insegurança humana.
16
Gøsta Esping-Andersen, The Three Worlds of Welfare Capitalism (Princeton:
Princeton University Press, 1990), pp. 21-22
China: Desafios e Perspectivas
441
Tabela 1: Novas políticas sociais, 1999-2007
REDUÇÃO DA DESIGUALDADE
Conforme observado acima, as mais sérias desigualdades de renda
na China são as entre a cidade e o campo. Para reduzir a disparidade
geral de renda, essas duas disparidades precisam ser reduzidas primeiro.
A mais importante medida para reduzir a disparidade de renda
foi aumentar a transferência fiscal do governo central para as províncias,
especialmente as economicamente menos desenvolvidas na China
central e ocidental. Antes de 1993, o sistema fiscal da China era do
tipo comer em cozinhas separadas. O sistema favoreceu o
desenvolvimento das províncias litorâneas porque elas possuíam mais
recursos fiscais, e não tinham que dividir quotas da arrecadação de
impostos com as províncias mais pobres. As províncias da China
central e ocidental, cujas rendas fiscais eram limitadas, sem a
442
Shaoguang Wang
transferência fiscal de fora não poderiam prover semelhantes serviços
públicos à sua população, sem falar na construção de nova estrutura
ou de investimento em novas indústrias. Tal sistema de responsabilidade
fiscal deveria, em grande parte, ser o responsável pelo crescimento da
disparidade regional nos anos 80 e 90.
17
Em 1994, o governo chinês mudou o sistema de responsabilidade
fiscal para o sistema de atribuição de imposto. Essa grande reforma
proporcionou ao governo central a capacidade de extrair recursos
fiscais, e, assim, aumentar a transferência fiscal. Desde 1994, a soma
total das transferências fiscais do governo central tem crescido
constantemente. Especialmente depois de 1999, quando o governo
central chinês introduziu a política do “Vá para o oeste”, o volume
aumentou a cada ano e alcançou 1600 bilhões de yuans RMB em 2007,
correspondente a oito vezes o volume de 1994. Qual área obteve a
maior parte dos benefícios do sistema de transferência fiscal? Segundo
as estatísticas do Ministério das Finanças, durante o período de 1994
a 2005, 10% das transferências do governo central se destinaram às
províncias orientais, 44% às centrais e 46% às ocidentais.
18
Essas
transferências ajudaram a reduzir o desequilíbrio fiscal tanto vertical
quanto horizontal, e, com isso, as desigualdades regionais. Antes da
reforma do sistema fiscal chinês, de 1994, o crescimento da taxa do
PIB nas áreas oriental, central, ocidental e do nordeste era
completamente diferente, variando de 12% a 19.5%; Depois de 1994,
as taxas de crescimento começaram a convergir. Em 2005, essas taxas
17
Shaoguang Wang and Angang Hu, The Political Economy of Uneven Development:
The Case of China.
18
Jin Renqing, “Wanshan cujin jiben gonggong fuwu jundenghua de gonggong
caizheng zhidu” (reforça e melhora o sistema público de financiamento na equalização
do serviço público básico)
http://www.zgdjyj.com/Default.aspx?tabid=99&ArticleId=721
China: Desafios e Perspectivas
443
nas áreas oriental, central, ocidental e do nordeste eram de 13.13%,
12.54%, 12.81% e 12.01%, respectivamente. A diferença tornara-se
muito pequena.
19
A convergência das taxas de crescimento econômico em
diferentes regiões ajudou a evitar o crescimento da disparidade regional,
e até a reduzi-lo. Durante um longo período após 1983 o coeficiente
de Gini de PIB per capita das províncias continuou a crescer. O ponto
crítico foi em 1999, quando o governo central anunciou a política do
Vá para o oeste. Conquanto a disparidade regional continuasse a
aumentar, ela estacionou depois de 2000. Em 2004, a tendência
expansionista se inverteu pela primeira vez desde 1990. Em 2005, a
disparidade regional diminuiu ainda mais (Figura 2). Foi um milagre
para o sistema de transferência fiscal produzir tão notáveis mudanças
em um período tão curto.
20
Com o objetivo de reduzir a disparidade de renda entre o campo
e a cidade, o governo chinês adotou, recentemente, uma estratégia de
duas faces: tirar menos das áreas rurais (shaoqu), por um lado, e conceder
mais às áreas rurais (duovu), por outro. Um dos métodos importantes
para o tirar menos foi a abolição dos impostos agrícolas. O imposto
agrícola é um dos mais antigos da China, com uma história contada
19
Feng Jie & Xuan Xiaowei, “Woguo quyu zengzhang geju he diqu chaju de bianhua
yu yuanyin fenxi” (uma análise d situação atual e das causas do desenvolvimento
regional desigual na China), Working Paper, No. 138 (2006), Development Research
Center of the State Council, PRC
20
Feng Jie & Xuan Xiaowei, “Woguo quyu zengzhang geju he diqu chaju de bianhua
yu yuanyin fenxi.” Also see Economic and Social Commission for Asia and the
Pacific, Economic and Social Survey of Asia and the Pacific 2008: Sustaining Growth
and Sharing Prosperity (New York, Economic and Social Commission for Asia and
the Pacific, 2008), pp. 50-57; C. Cindy Fan & Mingjie Sun, “Regional Inequality in
China, 1978-2006,” Eurasian Geography and Economics, Vol. 49, No. 1(January-
February 2008): 1-18; Kam Wing Chan & Man Wang, “Remapping China’s Regional
Inequalities, 1990-2006: A New Assessment of de Facto and de Jure Population Data,”
Eurasian Geography and Economics, Vol. 49, No. 1(January-February 2008): 21-55.
444
Shaoguang Wang
por milhares de anos. Após a reforma econômica, a quota da agricultura
na economia nacional baixou constantemente, de 31% em 1979 para
12.6 % em 2005. Entretanto, de 1986 a 1996, diversos impostos
agrícolas cresceram proporcionalmente em relação à renda fiscal geral,
de 2.1% do total, para 5.2%. Depois de 1996, a proporção dos impostos
agrícolas na renda fiscal nacional começou a declinar. Entretanto, em
2005 ainda estava na faixa de 93.64 bilhões de yuan, e o nível ainda era
proporcionalmente maior do que o de 1985. Em outras palavras, o
agricultor chinês carregou aos ombros uma carga pesada de impostos
por muito tempo, sem falar na arrecadação ilegal. Na Segunda Sessão
do 10
o
Congresso Nacional Popular, em 2004, o Primeiro-Ministro
Wen Jiabao anunciou a “eliminação do imposto sobre produtos
agrícolas especiais, exceto o fumo, e a eliminação por completo do
imposto agrícola dentro de cinco anos”. Entretanto, já por volta de
2006, todos os impostos agrícolas haviam sido completamente
eliminados.
A estratégia do “dar mais” foi posta em prática com maior
eficácia. Em 1997, o governo central investiu apenas 70 bilhões de
yuans no fundo dos “três temas rurais”. Por volta de 2004, o fundo
atingiu 262.6 bilhões de yuans. Daí em diante, o aumento anual tem
sido da ordem de 60 bilhões por ano. Em 2007, o orçamento do
Ministério das Finanças para os “três temas rurais” foi de 391.7 bilhões
de yuans RMB, o que significa mais de 5 vezes o despendido em 1997.
A estratégia do “tirar menos” e “conceder mais” já deu resultado.
Como mostra a Figura 3, a disparidade da renda per capita entre o
campo e a cidade se estabilizou, de alguma forma, após sua séria
deterioração nos meados dos anos 90. A disparidade na despesa per
capita no campo dos serviços médicos e da educação começou a
diminuir desde 2002. Como o governo central se empenha para que
China: Desafios e Perspectivas
445
as finanças públicas assumam responsabilidade pela educação e pelos
serviços básicos de saúde, espera-se ser possível controlar a disparidade
entre o campo e a cidade, e até revertê-la nos próximos anos.
REDUÇÃO DA INSEGURANÇA
Seguro da renda mínima. O governo chinês vem, recentemente,
dando atenção cada vez maior à segurança econômica, como pode ser
visto em sua política do seguro mínimo de vida. O problema da
pobreza urbana não chamou muita atenção até antes do fim dos anos
90, quando a maioria da população considerava a pobreza como um
fenômeno rural. Entretanto, como o desemprego se tornou cada vez
mais avassalador nos meados dos anos 90, a população descobriu que
as áreas urbanas poderiam, também, sofrer muito com a pobreza.
Em 1997, imediatamente após ter introduzido a política do
“despedir trabalhadores para melhorar a eficiência”, o governo
começou a por em prática o sistema de segurança da renda mínima
em suas cidades. Entretanto, o programa não foi executado com
intensidade nos três primeiros anos, até à segunda metade de 2001,
quando o governo central exigiu que o programa cobrisse mais
trabalhadores pobres nas empresas estatais de grande e médio portes.
Como resultado, o número de pessoas cobertas dobrou dentro de
seis meses, alcançando 11.7 milhões no final de 2001. No ano seguinte,
o governo central mobilizou todo o sistema civil de negócios para
procurar pessoas pobres na cidade, e fez o possível para atender a
todo mundo que necessitasse do seguro. Todos os governos locais
agiram prontamente, e a cobertura cresceu constantemente todo mês.
No fim de 2002, a cobertura total chegou a 20.54 milhões. Nos anos
seguintes, flutuou em torno de 22 milhões. Quase toda a população
446
Shaoguang Wang
urbana pobre credenciada é, agora, atendida pelo sistema de seguro
da renda mínima.
Nos primeiros anos, a taxa de aumento da velocidade da
cobertura era maior do que a da alocação dos recursos de origem
fiscal. Por muitos anos, como a cobertura estava crescendo, o subsídio
médio na verdade diminuiu. Depois que Hu Jintao e Wen Jiabao
assumiram seus postos, o governo, em todas as esferas, aumentou seu
apoio fiscal ao sistema de seguro da renda mínina. Depois de 2001, o
subsídio médio à renda mínima per capita cresceu a cada ano e alcançou
1 000 yuans em 2006, o que significa que mais do que dobrou em
relação ao de 2001.
Conquanto a pobreza urbana seja um grave problema, a rural é
ainda mais aguda. Pelo final de 2006, a população rural vivendo em
extrema pobreza (renda anual abaixo de 683 yuans) era de 21.48
milhões, e a população pobre (renda anual abaixo de 882 yuans), de
85.17 milhões. Se fossem adotados os padrões das Nações Unidas (um
dólar americano por dia), haveria, talvez, mais de 100 milhões de
chineses vivendo abaixo da linha da pobreza nas áreas rurais.
21
Já nos anos 90, algumas províncias relativamente prósperas
tinham começado a instituir o sistema de seguro da renda mínima.
Em 2004, o governo central começou a exigir que os governos locais
com disponibilidade financeira começassem a experimentar o sistema
rural de seguro da renda mínima. Como conseqüência, no final de
2005, 14 províncias já o haviam instituído. No final de 2006, o número
de províncias experimentando o sistema havia aumentado para 22.
No geral, 15 milhões de camponeses tinham direito a atendimento do
21
Wang Lifang, “Woguo gaige kaifang yilai nongcun pingkun renkou shuliang jianshao
2.28 yi” (O número de residentes rurais vivendo em situação de pobreza caiu para 228
milhões a partir de 1978), Xinhua News Net, May 26, 2007, http://
news3.xinhuanet.com/fortune/2007-05/26/content_6156519.htm.
China: Desafios e Perspectivas
447
serviço social na China e recebiam a bolsa regularmente. O número
total desses dois grupos era de 27.23 milhões, isto é, ligeiramente maior
do que o da população que vivia abaixo do nível de subsistência, mas
não incluía toda a população de baixa renda.
Finalmente, em 2007, o governo central decidiu estabelecer o
seguro rural de renda mínima para todo o País. Os camponeses pobres
com direito a esse sistema, especialmente os idosos, os deficientes e os
inválidos são cobertos e têm a garantia do mínimo necessário para
viver no fim do ano.
22
Com essa iniciativa, a população rural mais
pobre, foi, pela primeira vez, incluída no sistema de seguridade social
com o apoio das finanças públicas. Essa é uma mudança histórica para
a China rural.
23
Embora o nível do seguro de renda mínima ainda seja
baixo, espera-se que, como o Estado investe cada vez mais, o sistema
de se aperfeiçoe paulatinamente.
Seguro médico. Na era Mao, quando a China deu grande ênfase
aos princípios igualitários, o governo fez enormes esforços para instituir
um sistema de saúde que provesse para todos os cidadãos os serviços
básicos de saúde a um preço acessível. Por isso, às vésperas da reforma
econômica, embora a qualidade dos serviços médicos não fosse tão
boa, o sistema de saúde do País proporcionava um serviço barato e
acessível a, virtualmente, todos os residentes urbanos, e 90% dos
rurais.
24
Depois da reforma econômica, a mitigação do enorme rigor
fiscal dominou o pensamento que presidiu à reforma do sistema de
22
O governo local será responsável pelo estabelecimento do sistema de vida mínimo
para o campo. O governo central subsidiará o financiamento em situações difíceis.
23
Em novembro de 2006, o subsídio médio mensal do seguro de renda mínima era de
79.5 yuans nas cidades e 22.3 no campo.
24
World Bank, Financing Health Care: Issues and Options for China (Washington
DC: The World Bank, 1997).
448
Shaoguang Wang
saúde na China. Eventualmente, um esquema básico de seguro médico
para os empregados urbanos surgiu em 1999, para substituir o antigo
serviço urbano de saúde. O novo esquema se diferençava dos antigos
por não abranger nem os membros das famílias dos empregados, nem
os autônomos, os empregados em setores informais ou os trabalhadores
migrantes. O novo esquema se desenvolveu rapidamente, com o
número de empregados que aderiram ao sistema crescendo muitas
vezes, de 18 milhões em 1999 para 157 milhões em 2006, mas cobrindo
apenas um quarto dos empregados urbanos em 2006. Essa taxa de
cobertura seria ainda menor se os trabalhadores migrantes tivessem
sido incluídos. É preciso notar, entretanto, que esse esquema básico
de seguro cobria os aposentados, de forma que aquelas pessoas que
possuíam compleição fraca pudessem obter os benefícios desse sistema.
No final de 2006, mais de três quartos dos aposentados estavam
cobertos pelo esquema. A proporção era maior do que a dos
trabalhadores da ativa mais jovens.
Com a preocupação de cobrir tantos residentes urbanos quanto
possível, muitas cidades da China começaram a prover
experimentalmente cuidados médicos a desempregados urbanos para
protegê-los contra doenças originadas por catástrofes. O esquema cobre
todos os que não eram credenciados ao sistema básico de seguro saúde
para empregados urbanos, como as crianças e os idosos. Pelo final de
2007, mais 40.68 milhões de residentes urbanos haviam aderido ao
esquema. Então, em fevereiro de 2008, o governo central decidiu
expandir a experiência para abranger metade das cidades chinesas em
um ano, e a totalidade em 2010.
A China um dia colocou em prática, em suas áreas rurais, o
mundialmente famoso sistema médico cooperativo (CMS). Após a
abolição da Comuna do Povo, em 1983, as famílias substituíram os
China: Desafios e Perspectivas
449
coletivos e se tornaram a unidade básica de produção nas áreas rurais.
Ao mesmo tempo, o governo tomou uma atitude laissez-faire (liberal)
para com o sistema médico cooperativo. Sem apoio da economia
coletiva, o CMS rural rapidamente se desintegrou. Segundo uma
pesquisa realizada em 1985, dois anos após a abolição das Comunas
do Povo, o número de aldeias que ainda praticavam o CMS baixou de
90% em 1979, para 5% então. A cobertura do CMS rural permaneceu
abaixo de 10% até bem recentemente, porque o governo não tinha a
menor intenção àquela época, de bancar o sistema médico rural. Ao
invés, insistia no princípio de que os prêmios fossem pagos
principalmente pelos próprios indivíduos, suplementados por
subsídios angariados coletivamente e apoiados pelas políticas do
governo”.
No início de 2003 o governo chinês mudou sua abordagem ao
CMS. A diferença entre a nova abordagem e o modelo antigo consistia
no apoio proveniente dos fundos públicos. Além dos fundos oriundos
dos beneficiários, o governo local subsidiava os camponeses que
participavam do CMS com fundos públicos. O governo central
também subsidiava os camponeses nas áreas rurais da China central e
ocidental com fundos públicos.
25
A injeção de fundos públicos ajudou grandemente na promoção
do desenvolvimento do CMS. Em 2003, quando o Ministério da Saúde
realizou o Terceiro Levantamento Nacional do Serviço de Saúde, o
CMS só cobria 9.5% da população rural. Quatro anos mais tarde, no
final de setembro de 2007, o novo sistema tinha sido implantado em 2
25
Em 2003, o governo central e o local alocaram, cada qual, 10 yuans por pessoa para
subsidiar os camponeses que participaram do programa no novo sistema rural
cooperativo de assistência médica. http://www.people.com.cn/GB/shizheng/3586/
20030124/913612.html
450
Shaoguang Wang
448 condados, com 726 milhões de participantes, o que representava
86% dos residentes rurais da China.
26
Com os esforços para a instituição de quatro redes de serviços
médicos (p. ex., Sistema Básico de Seguro-saúde para Empregados
Urbanos, Sistema Básico de Seguro-saúde para Residentes Urbanos,
Sistema Básico de Seguro-saúde para Trabalhadores Migrantes, e o
Novo Sistema Rural de Cooperativa Médica), a China agora persegue
seu objetivo de “prover a todos com cuidados médicos básicos antes
de 2010”.
Seguro da terceira idade. Antes da reforma econômica, o governo
chinês provia o seguro da terceira idade via unidades de trabalho para
os empregados em agências governamentais, em instituições públicas,
em empresas estatais e em algumas das empresas coletivas. A
desintegração do sistema de unidades e a diversificação da estrutura
de propriedade obrigou a China a procurar um novo formato para o
seguro da terceira idade. Expandir a cobertura para os empregados
urbanos de empresas não-estatais e para os autônomos sempre foi o
foco da reforma do seguro da terceira idade. De 1989 a 2006, o número
de empregados urbanos cobertos cresceu de 48.17 milhões para 141.31
milhões. A proporção de empregados cobertos no setor formal cresceu
de 35% para 126.6%, o que significa que muitos empregados dos setores
informais também foram cobertos.
27
É de se notar que durante o
mesmo período (1989-2006), os aposentados urbanos cobertos
cresceram de 8.93 milhões para 46.35 milhões, representando 41% e
26
Chen Zhu, “Zai 2008 nian quanguo wensheng gongzuo huiyi shang de jianghua”
(Discursos pronunciado na Conferência Nacional de Saúde de 2008), 7 de janeiro de
2008, http://www.ccms.org.cn/third-xwxx.asp?id=213.
27
No sistema estatístico chinês, empregado (zhigong) é definido como alguém que
obtém o salário de empresas estatais, de empresas urbanas coletivas, ou de companhia
limitada, de cooperativa de investimento, do capital estrangeiro ou de investimento de
Hong Kong, Macau e Taiwan.
China: Desafios e Perspectivas
451
86.6% dos aposentados, respectivamente. Em outras palavras, a maioria
da população que se aposentou nos setores formais participou do
seguro da terceira idade.
O objetivo do seguro urbano da terceira idade é cobrir toda
a população urbana (jiuye renyuan).
28
Nessa perspectiva, o desafio
da cobertura completa ainda é formidável. Pelo final de 2006,
49.9% da população trabalhadora rural participava do seguro da
terceira idade, o que significa que um largo segmento da população
trabalhadora nos setores formais, especialmente os trabalhadores
migrantes, já tinham participado do seguro.. Por exemplo, apenas
14.17 milhões de trabalhadores migrantes tinham cobertura no final
de 2006.
O maior obstáculo para os trabalhadores migrantes
participarem do seguro da terceira idade é que sua conta-seguro só
pode ser administrada localmente. Se eles se mudarem de um lugar
para outro, podem perder o dinheiro em suas contas. Para eliminar
esse obstáculo institucional , em 29 de junho de 2007 o Comitê
Permanente do Congresso Nacional do Povo emanou a Lei do
Contrato de Trabalho, estabelecendo que “o governo deve tomar
medidas para paulatinamente tornar móvel no país inteiro a antiga
conta-seguro da terceira idade”. Isso significa que, no futuro,
quando a China emanar sua Lei do Seguro Social, ele terá permissão
para ser administrado em âmbito nacional. No momento, o
Ministério do Trabalho e Seguridade Social está formulando um
sistema de seguro para trabalhadores migrantes, que irá resolver
um conjunto de problemas relacionados com o seguro para esses
28
No sistema estatístico chinês, população trabalhadora (jiuye renyuan) refere-se a
quem tem mais de 16 anos e ganha a vida com seu próprio trabalho ou negócio.
452
Shaoguang Wang
trabalhadores, inclusive o sistema subseqüente de transferência
trans-região.
29
É maior o desafio de expandir o seguro da terceira idade para a
as áreas rurais. A China possui agora 64% dos 140 milhões de idosos
vivendo nas áreas rurais. Já em 1986, começava a buscar uma forma de
por em prática o seguro social da terceira idade nas áreas rurais. No
final de 1997, 82 milhões de residentes rurais já haviam participado
do seguro da terceira idade. Mas depois de 1998, a reforma do sistema
de seguro da terceira idade parou e retrocedeu, porque os principais
líderes chineses daquele tempo começaram a questionar a viabilidade
de tal sistema. Em julho de 1999, o Conselho do Estado determinou
o encerramento da prática do seguro social rural, e sugeriu que as
áreas rurais com disponibilidade financeira gradualmente mudassem
para o seguro comercial. A mudança de política provocou um rápido
declínio da cobertura nos próximos cinco anos.
O declínio dramático da cobertura do seguro rural da terceira
idade logo chamou a atenção do Congresso Nacional do Povo e da
Conferência Política Consultiva do Povo. Como conseqüência,
sugestões e propostas relacionadas com o seguro social rural
proliferaram, e tornou-se cada vez mais intenso o debate sobre a
necessidade e a viabilidade do seguro rural da terceira idade.
30
É o
29
Wang Wenlong and Xiao Ling, “Laodong he shehui baozhangbu niding
nongmingong yanglao baoxian banfa” (Medidas para o seguro-velhice do trabalho
rural, tomadas pelo Ministro do Trabalho e Seguridade Social), Sina Net, June 10,
2007, http://news.sina.com.cn/c/2007-06-10/175013196219.shtml
30
Com relação à transformação da política rural de seguro-velhice, consultar o artigo
escrito por Zhao Ddianguo, Deputado-chefe do Departamento de Seguridade Social
Rural do Ministério do Trabalho e Seguridade Social, “Nongcun yanglao baoxian
gongzuo huigu yu tansuo” (Revisão do seguro rural para o idoso), Renkou yu jihua
shengyu (População e política de filho único), No. 5 (2002), http://www.fjlss.gov.cn/
ShowInfo.asp?InfoId=425.
China: Desafios e Perspectivas
453
quadro dentro do qual a cobertura do seguro rural da terceira idade
deixou inertes 54 milhões de pessoas desde 2002.
O Relatório do 16º Congresso do Partido indicou que a “China
devia desenvolver o seguro social e o bem-estar social tanto nas áreas
urbanas quanto nas rurais. Lugares com capacidade financeira deviam
experimentar os sistemas de seguro rural da terceira idade, de cuidados
médicos e de seguro de renda mínima”. A 3ª Sessão Plenária do 16º
Congresso do Partido declarou, ainda, que “o sistema de seguro rural
da terceira idade é um sistema em que os prêmios devem ser pagos
principalmente pelas famílias, com suplementação por parte da
comunidade na forma de pools de fundos e por subsídios
governamentais”. Em 2007, uma nova expressão em termos de
documentos de política governamental veio a lume: “busca de diferentes
formatos de seguro rural da terceira idade”. Como conseqüência, alguns
governos locais paulatinamente retomaram os esforços em busca do
seguro social rural apropriado. Nas novas experiências, a mudança
mais importante era no sentido de que o seguro devia ser financiado
pelos indivíduos, o coletivo e o governo, em vez de “pago
principalmente pelos próprios beneficiários, suplementado pelo
subsídio coletivo em forma de pool, com apoio das políticas
governamentais”.
A mudança da obtenção de apoio das políticas governamentais
para subsídios financeiros públicos, deu mais significado ao seguro
social da terceira idade.
31
Hoje, Shandong, Pequim, Jiangsu, Zhejiang,
Anhui, Sichuan, e Xinjiang já lançaram esse novo sistema de seguro
baseado nos subsídios financeiros públicos. Entre aquelas províncias,
31
“Woguo jinnian wenbu tuijin xinxing nongcun shehui yanglao baoxian zhidu”
(Nosso país está melhorando gradualmente o novo sistema social rural de seguro para
os idosos), CCTV Xinwen lianbo (News), January 10, 2006, http://cctv.sina.com.cn/
news/2006-01-10/9058.html
454
Shaoguang Wang
Shandong é a que fez os maiores progressos. Em julho de 2007, 10.67
milhões de camponeses da província haviam participado do seguro
rural da terceira idade.
32
CONCLUSÃO
A China experimenta “uma transformação sem precedentes
em milhares de anos” Mais de uma centúria atrás, o funcionário
Qing Li Hongzhang usou essas palavras para descrever a era em
que vivia. Duas décadas depois, a geração do 4 de Maio tinha,
também, o mesmo sentimento em relação a seu tempo. Contudo,
em termos de fundamentos da economia, de velocidade,
profundidade e amplitude da transformação da estrutura social,
nenhuma outra era pode ser comparada com as duas últimas
décadas. Durante o século XIX, “o Aprendizado Ocidental
Originado no Leste”começou na costa oriental, mas o interior nas
regiões central e ocidental dificilmente foi contemplado. No início
do século XX, o poder comercial do oeste invadiu a China, mas
ele apenas destruiu a atividade artesanal ao longo da costa, enquanto
a economia agrícola tradicional e a estrutura da aldeia – o clã – não
sofreu grande impacto. Após o estabelecimento da República
Popular, a propriedade pública substituiu a privada, e a economia
planificada substituiu o mercado. Mas quase toda a população das
áreas urbanas ficou atrelada às suas unidades de trabalho para
sempre, e a maioria dos camponeses nas áreas rurais dependia de
32
Zhao Xiaoju and Zhao Yongde, “Wosheng nongcun yanglao baoxian canbao renshu
quankuo jushou” (Nossa província possui a maior cobertura de seguro rural para
idosos na China), DazhoTng ribao (Mass daily), July 5, 2007, http://
www.shandong.gov.cn/art/2007/07/05/art_5460_369745.html.
China: Desafios e Perspectivas
455
seus coletivos e de suas famílias. Havia feiras rurais muito limitadas,
mas elas eram apenas os suplementos necessários a uma economia
em geral auto-suficiente. Tal estilo de vida não era muito diferente
do antigo, que se baseava em laços de sangue e de lugar.
No início dos anos 80, a China começou sua transformação
em economia de mercado. No início, o mercado se manteve às
margens da economia chinesa, mas logo as forças do mercado
começaram a erodir a economia pública e planificada. No fim, as
forças da economia de mercado ultrapassaram a economia e
abarcaram toda a sociedade. Dentro de duas décadas, elas se
tornaram tão fortes que dominaram todas as outras áreas: empresas,
famílias e indivíduos. Essas mudanças foram sem precedentes, e as
mais dramáticas da história da China
O poder mágico do mercado. Ele transforma pedra em ouro.
Na economia de mercado, um grande volume de riqueza foi criado.
O povo chinês, que havia enfrentado a escassez material,
rapidamente ingressou numa era de abundância. O povo vivenciou
mudanças com que nunca havia sonhado. Entretanto, o mecanismo
de mercado foi não apenas acelerador da economia, mas também
uma espada de dois gumes. Incansavelmente, ele rompe os laços
morais entre o indivíduo e os diversos grupos sociais, e transforma
gente em criaturas que buscam o máximo lucro no mercado.
Quando as forças do mercado transformaram a sociedade
numa sociedade de mercado, o povo, que anteriormente vivera na
dependência do coletivo, da unidade e da família, foi forçado a
começar a viver de sua própria renda. Paradoxalmente, a sociedade
moderna é cheia de riscos, o que torna difícil para os indivíduos
(especialmente os que vivem nos estratos inferiores da sociedade)
cuidarem de si mesmos. Quando essa rápida passagem para o
456
Shaoguang Wang
mercado rompeu a tradicional rede de segurança social, ameaçou
destruir a sociedade inteira. Essa foi a razão por que a maior parte
da população da China sentiu que, enquanto a economia
prosperava, todas as formas de incertezas também emergiam, e que
o País estava enfrentando uma crise após a outra. Nesse contexto,
como reação às forças do mercado, surgiram os contramovimentos.
Mais e mais pessoas, inclusive os formuladores de políticas,
paulatinamente se deram conta de que o mercado não era o fim
último, mas, no máximo, um meio para aumentar o bem-estar social
do povo. O mercado é necessário, mas tem de estar inserido na
sociedade. O governo deve desempenhar um papel ativo na
economia de mercado, para evitar uma economia descomprometida
e auto-regulamentada. Como diz Karl Polanyi, a expansão do
mercado desencadeia o contramovimento para proteger os seres
humanos, a natureza e as organizações produtivas; uma legislação
protetora e outras formas de intervenção são características desse
contramovimento
Este artigo mostra que o contramovimento já começou na
China, depois do curto pesadelo da “sociedade de mercado” dos
anos 90. Um mercado social está surgindo na China e ainda é o
principal mecanismo para alocação de recursos. Entretanto, através
da distribuição, o governo se empenhará em reinserir o mercado
nas relações sociais e éticas. Mais especificamente, o governo tomará
as medidas efetivas para comercializar os campos que estejam
intimamente relacionados com os seres humanos, o direito à vida,
e permitir que todos os grupos sociais desfrutem dos benefícios
das operações de mercado, tomando a si os custos dessa operação.
As recentes mudanças de política mostram que o governo
chinês possui a vontade política e a capacidade fiscal de agir, como
China: Desafios e Perspectivas
457
uma parteira, em prol do mercado social, embora tanto a vontade
política quanto a capacidade fiscal precisem ainda de reforço. Apesar
de a China ainda enfrentar uma multidão de problemas graves, o
surgimento de políticas sociais assinala um ponto crítico histórico
cujo significado não será nunca suficientemente enfatizado.
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