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Proteção do Patrimônio na UNESCO:
ações e significados
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O autor é responsável pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como
pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem
comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao
longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas
autoridades, nem tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites.
© UNESCO 2003 Edição publicada pelo Escritório da UNESCO no Brasil
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Proteção do Patrimônio na UNESCO:
ações e significados
João Batista Lanari Bo
edições UNESCO BRASIL
Conselho Editorial da UNESCO no Brasil
Jorge Werthein
Cecilia Braslavsky
Juan Carlos Tedesco
Adama Ouane
Célio da Cunha
Comitê para a Área de Cultura
Jurema de Souza Machado
Sílvio Tendler
Mary Garcia Castro
Tradução: Lúcia Tunes
Revisão: Jair Santana Moraes
Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite
Diagramação: Fernando Brandão
Projeto Gráfico: Edson Fogaça
Copyrigth ©2003, UNESCO
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Representação no Brasil
SAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6,
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar.
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 321-3525
Fax: (55 61) 322-4261
Rua, Maria das Graças
Avaliação das ações de prevenção de DST/Aids e uso indevido
de drogas nas escolas de ensino fundamental e médio em capitais
brasileiras / Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay.
 Brasília : UNESCO, Ministério da Saúde, Grupo Temático
UNAIDS, UNDCP, 2001.
256p.
1. Aids  Brasil 2. Educação  Brasil 3. Drogas  Brasil
I. Abramovay, Miriam II. UNESCO III. Título.
CDD 362
Bo, João Batista Lanari
Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significa-
dos / João Batista Lanari Bo. – Brasília : UNESCO, 2003.
186p.
ISBN: 85-87853-62-7
1. Cultura. 2. Patrimônio cultural. I. Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura –
UNESCO. II. Título.
CDD 363
5
SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................... 9
Prefácio................................................................................................... 11
Abstract .................................................................................................. 15
Introdução ............................................................................................. 17
1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO:
OS EXEMPLOS FRANCÊS E BRASILEIRO ................. 21
1.1 O exemplo francês ............................................................. 22
1.2 O exemplo brasileiro ......................................................... 26
1.3 O conceito de patrimônio natural.................................. 30
1.4 Observações complementares ........................................ 32
2. CONVENÇÃO DE 1954 PARA A PROTEÇÃO
DA PROPRIEDADE CULTURAL EM
CASO DE CONFLITO ARMADO ..................................... 35
2.1 Breve histórico .................................................................... 36
2.2 Convenção de Haia de 1954: gênese e comentários .. 39
2.3 Segundo Protocolo: março de 1999 .............................. 41
2.4 Exame de casos ................................................................... 44
2.5 Conclusão parcial ............................................................... 48
3. CONVENÇÃO DE 1970 CONTRA O TRÁFICO
ILÍCITO DE BENS CULTURAIS ....................................... 49
3.1 Comentários sobre o texto da Convenção ................... 51
3.2 Conseqüências ..................................................................... 54
3.3 Os Estados Unidos e a Convenção de 1970 da UNESCO .. 56
3.4 O Brasil e a Convenção de 1970 da UNESCO .......... 58
3.5 Conclusão parcial ............................................................... 60
6
4. PROCESSO EM CURSO PARA O
ESTABELECIMENTO DE CONVENÇÃO
SOBRE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL SUBAQUÁTICO .............................................. 62
4.1 Antecedentes ....................................................................... 65
4.2 Principais pontos em discussão ...................................... 68
4.3 A Quarta Reunião sobre Projeto de Convenção ........ 71
4.4 Interesse brasileiro e conclusão parcial ........................ 74
5. AÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO INTANGÍVEL
OU IMATERIAL ....................................................................... 77
5.1 Evolução do tema na UNESCO .................................... 79
5.2 As Recomendações de 1989 e as ações presentes...... 82
5.3 Conclusão parcial e perspectivas para o Brasil ........... 85
6. O HOMEM E A BIOSFERA: UM CONCEITO
DINÂMICO DE PATRIMÔNIO ......................................... 89
6.1 A emergência de um conceito ......................................... 91
6.2 O capítulo brasileiro do MAB ........................................ 95
6.3 O Futuro do MAB ............................................................. 98
7. CONVENÇÃO DE 1972 DO PATRIMÔNIO
MUNDIAL: INTRODUÇÃO E QUESTÕES
ATUAIS ...................................................................................... 101
7.1 Breve descrição da Convenção ..................................... 103
7.2 Os critérios e seus limites .............................................. 107
7.3 A questão da soberania e a Convenção ...................... 112
7.4 O caso do Parque Nacional Kakadu, na Austrália ... 119
7.5 Conclusão parcial ............................................................. 123
8. CONVENÇÃO DE 1972 E OS SÍTIOS HISTÓRICOS
E CULTURAIS: EXPERIÊNCIA BRASILEIRA........... 127
8.1 Antecedentes ..................................................................... 128
8.2 A UNESCO e a evolução do patrimônio no Brasil 135
7
8.3 Monitoramento e estado atual dos sítios ................... 139
8.4 Conclusão parcial ............................................................. 146
9. CONVENÇÃO DE 1972 E OS SÍTIOS NATURAIS:
PERSPECTIVAS PARA O BRASIL................................... 151
9.1 Antecedentes ..................................................................... 153
9.2 Parque Nacional de Iguaçu: sítio em perigo .............. 158
9.3 Novas candidaturas .......................................................... 162
9.4 Conclusão parcial ............................................................. 169
CONCLUSÃO GERAL................................................................... 171
BIBLIOGRAFIA GERAL .............................................................. 175
NOTA SOBRE O AUTOR ............................................................ 185
9
APRESENTAÇÃO
Sabemos como um incêndio pode destruir em poucas horas
 às vezes em poucos minutos  o patrimônio histórico e cultural
acumulado numa Igreja barroca, construída no século XVII.
Aquilo que durante séculos conservou-se e contribuiu para a
construção da identidade dos indivíduos da região, desaparece sem
deixar vestígios. Objetos de culto, sítios arquitetônicos, obras de
arte  todos são vulneráveis a acontecimentos imprevistos, a
instabilidades repentinas.
Desde sua fundação, em 1946, a UNESCO vem dedicando
boa parte de sua energia e tempo a promover uma ampla discussão
sobre meios e ações de proteção ao patrimônio cultural e natural
de todas as nações. É preciso criar condições não apenas para que
as Igrejas sejam preservadas, mas também diversas outras
manifestações e tradições. O resultado desse esforço  algo que
está em contínua evolução, como deduzimos da leitura do texto
que se segue  é uma rede de convenções internacionais
desenhadas para proteger o patrimônio, além de uma série de
iniciativas e projetos como vistas a materializar os objetivos
delineados. Todo esse esforço, é importante ressaltar, tem como
meta complementar e apoiar as políticas decididas por cada país
que visam a proteger seus patrimônios.
A amplitude da própria noção de patrimônio aqui utilizada
 de monumentos históricos a tradições orais e populares, de
tesouros subaquáticos a parques e reservas naturais, entre outros
 demonstra a atualidade da UNESCO enquanto agência da
família das Nações Unidas dedicada à reflexão e proposição de
ações de proteção no campo da cultura e meio ambiente. Ambos
os campos, registre-se, incluem-se no contexto das políticas sociais,
como conclui o trabalho a que nos referimos.
O leitor encontrará uma descrição detalhada dos processos
que levaram às Convenções e sua implementação, bem como dados
10
sobre a participação e o interesse do Brasil. Destaque-se os
capítulos relativos à Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial,
sem dúvida uma das iniciativas da UNESCO de maior visibilidade
perante a opinião pública. Além disso, são discutidos aspectos
conceituais que fundamentaram os trabalhos da UNESCO,
sobretudo no que tange à cultura. Uma introdução inspirada em
autores franceses e brasileiros reforça esse último item.
Trata-se, enfim, de trazer ao público brasileiro, de forma
coordenada, esse rico e vasto acervo de realizações da UNESCO
voltadas à proteção do patrimônio cultural e natural.
Jorge Werthein
Diretor da UNESCO no Brasil
11
PREFÁCIO
Augusto C. da Silva Telles
A análise da evolução da política cultural da UNESCO
e sua repercussão na política cultural do Brasil são assuntos
da maior relevância na atualidade. A publicação Proteção do
Patrimônio na UNESCO: ações e significados para o Brasil, do
diplomata João Batista Lanari Bo, conselheiro na
representação brasileira da UNESCO, é resultante de trabalho
apresentado no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio
Branco. O texto é do maior interesse para todas as pessoas
voltadas para a conceituação e a evolução da política cultural
brasileira em face da UNESCO nos últimos decênios. Com
base em extensa bibliografia brasileira e internacional, em
documentação do Ministério da Cultura e, principalmente,
do Itamaraty e da UNESCO, o autor analisa, sucessivamente,
as convenções e os programas instituídos pela UNESCO e
subscritos pelos países constitutivos, em especial pelo Brasil.
São estudados os antecedentes, as discussões e críticas
ocorridas nas Assembléias Gerais, assim como as
conseqüências desses programas e convenções na política
cultural brasileira.
As convenções e recomendações propostas pela
UNESCO, subscritas e adotadas pelo Brasil, são detidamente
analisadas: a Convenção para a Proteção da Propriedade
Cultural em Caso de Conflito Armado, realizada em Haia, em
1954; a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Bens Culturais,
de 1970; a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural
Subaquático, realizada em Paris, em 2001, mas ainda não
ultimada por questões políticas; as recomendações sobre
patrimônio intangível ou imaterial, discutido e definido desde
1989; e a Convenção sobre Patrimônio Cultural O Homem e
12
a Biosfera, de 1971, mais conhecida pela sigla inglesa MAB.
Com maior profundidade e detalhamento, comenta, ao longo
de três parágrafos, a Convenção sobre Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural, de 1972.
O estudo começa pela conceituação de patrimônio
e para isso utiliza, a partir de bibliografia atualizada,
exemplos franceses e brasileiros com uma ampla gama de
significados, desde bens consagrados pela história da arte
clássica até bens atuais, inclusive objetos que, conforme o
autor, apresentam contundência imediata, como os
campos de Auschwitz e Dachau.
As convenções e recomendações acima referidas são
estudadas detidamente, com os antecedentes que as
propiciaram e, com maior profundidade, suas conseqüências
na política cultural do Brasil. Assim, a convenção sobre o
tráfico ilícito de obras-de-arte resultou em maior controle
do comércio, bem como das importações e exportações de
objetos de arte ou de artesanato, de propriedade pública ou
particular, preservados ou não pelas legislações federal,
estaduais e municipais. Com referência ao patrimônio cultural
subaquático, as discussões mais intensas  anota o autor 
concentraram-se sobre o controle das pesquisas e da proteção
dos bens encontrados nas águas territoriais, ou fora delas, e
na competência dos Estados costeiros, em relação aos países
responsáveis pelas pesquisas subaquáticas.
O texto mostra que a preservação do patrimônio
intangível ou imaterial vem sendo discutida na UNESCO
desde 1989, quando foi aprovada pela Conferência Geral a
resolução sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular
e, em 1998, instituída a premiação bienal intitulada Obras-
Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade. É
registrado também que reuniões e simpósios foram realizados
ao longo de todos esses anos, com a previsão da convocação
de uma convenção para a preservação do patrimônio
13
intangível. Mostra o autor que, no âmbito brasileiro, o assunto
está muito mais adiantado, com a promulgação do Decreto
nº 3.551 de 2001, que prevê o registro de bens culturais de
natureza imaterial que constituem patrimônio cultural
brasileiro.
O Programa de Preservação de Patrimônio Natural O
Homem e a Biosfera (MAB) é talvez, segundo o autor, o
programa da UNESCO mais bem-sucedido: até o ano de 2001
foram estabelecidas 391 reservas da biosfera em 94 países.
Essas reservas visam à conservação de ecossistemas e de
paisagens, além de estimularem o desenvolvimento
sustentável. A Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente, de 1992, realizada no Rio de Janeiro, propôs novas
alternativas de ação que, segundo o autor, visaram à geração
de ações de preservação da diversidade biológica e do
combate à desertificação, entre outros fins.
O autor acentua que a Convenção de 1972 do
Patrimônio Mundial foi a convenção da UNESCO de maior
repercussão política entre os Estados-Partes. Sua criação
deveu-se principalmente aos precedentes ocorridos em 1959,
com a ameaça que pairou sobre os templos de Abu Simbel e
de Philae no Alto Nilo, quando o governo egípcio resolveu
construir a barragem de Assuam. Assim, informa o autor
que, com o apoio e a orientação do Icomos, foi organizado o
projeto da Convenção. Adiante historia as medidas tomadas
pela UNESCO até a criação do Comitê do Patrimônio
Mundial, com seu regulamento e a eleição dos países
participantes de sua direção e, em seguida, a designação dos
organismos assessores  além do Icomos, a IUCN, para os
bens naturais, e o ICCROM, para os estudos de conservação
e restauração de bens culturais. O autor estende-se
longamente sobre os critérios adotados pelo Comitê, com
referência aos bens culturais, aos bens naturais e aos bens
mistos; analisa em seguida a situação dos bens culturais e
14
naturais indicados pelo Brasil e frisa a importância das missões
enviadas pela UNESCO para a análise dos sítios inscritos e o
estabelecimento de medidas a serem tomadas com relação a
Ouro Preto, Olinda e, principalmente, Brasília.
O texto termina enfatizando a importância da
preservação dos bens culturais e naturais para a criação de
um Estado moderno, da nação brasileira.
Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2002
15
ABSTRACT
This book illustrates how the conventions on World
Cultural and Natural Heritage have been implemented in
Brazil. It examines the historical background of this issue,
especially in what concerns the first important international
instrument on world heritage, the Hague Convention of 1954
(ratified by Brazil in 1958), as well as the World Heritage
Convention of 1972. The latter had enormous economic and
political repercussions and mobilized many resources for its
implementation.
The book has different approaches for examining the
concept of world heritage, focusing on the themes of culture,
history, nature and environment. It also analyses the selection
process of Brazilian sites that apply for the World Heritage
listing. This includes urban areas, biosphere reserves, as well
as many other historical, cultural or natural sites (including
those belonging to the World Heritage in Danger listing).
The different variables that affect the protection of the
world heritage, as proposed by UNESCO and the World
Heritage Centre, are also examined in this book. It also focuses
on the potential for co-operation between agencies within the
Ministries of Culture and Environment. This co-operation also
includes agencies at the State and Municipal levels, as well as
the private sector. All of these institutions are involved in
selecting new candidates for the World Heritage list.
17
INTRODUÇÃO
A palavra patrimônio vem do latim e significa, segundo o
Dicionário Aurélio, herança paterna; riqueza, na acepção figurativa;
ou ainda, complexo de bens (...) suscetível de apreciação
econômica, no sentido jurídico. Ao acrescentarmos os adjetivos
cultural, histórico ou natural, delimitamos, em termos conceituais,
os domínios particulares do presente trabalho.
No âmbito da UNESCO, a noção de patrimônio vem se
configurando em debates e negociações iniciados desde a sua
fundação, em 1948. Alimentada por aportes externos, dos Estados-
Membros e de entidades não-governamentais, por acadêmicos e
juristas, a definição do termo, tal como adotada em textos oficiais,
é ampla: inclui monumentos históricos, conjuntos urbanos, locais
sagrados, obras-de-arte, parques naturais, paisagens modificadas
pelo homem, ecossistemas e diversidade biológica, tesouros
subaquáticos, objetos pré-históricos, peças arquitetônicas e
tradições orais e imateriais da cultura popular. Sugere, ainda, uma
postura de proteção a quem possui o patrimônio, seja ele particular
ou órgão público.
Uma nação, entendida como uma comunidade de aspirações
comuns (Anderson, 1991), constitui-se por meio de instâncias
de identificação, entre elas o patrimônio coletivo. Pode-se
reconhecer a nação brasileira, por exemplo, no conjunto
arquitetônico e artístico de Ouro Preto. Em conseqüência, os
Estados modernos são levados, como forma de legitimação, a
proteger seu patrimônio, seja ele cultural, histórico ou natural.
Esta é uma vocação cujas implicações legais, políticas e econômicas
estão presentes em todas as organizações governamentais
contemporâneas. Tal vocação projeta-se no cenário internacional,
onde atua a UNESCO, cujo mandato abrange ciência, educação,
comunicação e cultura.
18
A partir da vontade dos Estados-Membros da UNESCO, foi
elaborado um conjunto particular de iniciativas de proteção ao
patrimônio  considerado, a exemplo do que ocorre nos cenários
nacionais, como bem público. A descrição desse processo, no que
toca ao exame do interesse brasileiro sobre tais temas, é o principal
objetivo deste trabalho, bem como verificar de que forma vocações
intrínsecas de cada Estado para a proteção do patrimônio foram
articuladas em nível internacional e avaliar a participação do Brasil
nesse processo.
Uma nação torna-se o que ela é na medida em que se
apropria do seu patrimônio (Gonçalves, 1996, p. 24), uma vez
que as políticas de preservação se propõem a atuar, basicamente,
no nível simbólico, tendo como objetivo reforçar uma identidade
coletiva (Fonseca, 1997, p. 11). Selecionar e proteger sítios
históricos e naturais, eleger e preservar objetos culturais
representativos, são atividades que os Estados executam no plano
nacional, sobretudo a partir da segunda metade do século 20. No
plano internacional, as convenções e os programas implementados
pela UNESCO estabeleceram uma rede de proteção balizada por
critérios universalmente aceitos, que visa sobretudo colaborar com
os esforços nacionais de preservação do patrimônio.
Tal como ocorre com a ação normativa dos demais
organismos internacionais, os instrumentos gerados na UNESCO
implicam um sistema de deveres e obrigações aos quais se
submetem, por vontade própria, os Estados-Membros. O objetivo
foi construir um quadro de referências que servisse de parâmetro à
comunidade de nações e estimulasse intercâmbios e programas de
cooperação para dinamizar a proteção ao patrimônio. Atuando sobre
contextos específicos  guerra, fundo do mar, pilhagens e tráfico
de bens culturais, proteção ao meio ambiente, cultura oral e popular,
monumentos e conjuntos históricos , a UNESCO buscou
diversificar o escopo de aplicação do conceito de patrimônio por
meio da ação normativa no âmbito do seu mandato. Aos países
importa avaliar se a aceitação das obrigações emanadas desses
instrumentos é benéfica e útil para a gestão interna do patrimônio.
19
Este trabalho pretende examinar o processo de gestação
desses instrumentos, sua implementação e impacto no Brasil, e
propõe-se a desenvolver os seguintes temas:
Evolução do conceito de patrimônio: os exemplos
francês e brasileiro;
Convenção de 1954 para a Proteção ao Patrimônio em
Caso de Conflito Armado;
Convenção de 1970 contra o Tráfico Ilícito de Bens
Culturais;
Convenção de Proteção sobre Patrimônio Cultural
Subaquático;
Patrimônio Oral e Intangível;
Programa O Homem e a Biosfera; e
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial e a
experiência brasileira.
Serão utilizados como fontes: a documentação da UNESCO
(reuniões, relatórios, pareceres, Web page) e da Delegação do Brasil
na UNESCO; artigos em revistas especializadas; bibliografia sobre
patrimônio, no Brasil e na França; e depoimentos de funcionários
e representantes.
À distribuição dos capítulos corresponde o peso específico
de cada tema em relação ao conjunto do trabalho. Além do exame
da evolução conceitual da noção de patrimônio, restrita a uma
seção, cada capítulo trata de um contexto onde se desenvolveu a
atuação da UNESCO. Entretanto, à Convenção de 1972 do
Patrimônio Mundial, sem dúvida o instrumento de maior destaque
e importância para o Brasil, foram destinados três capítulos. Ainda,
no que toca à Convenção de 1972, o objetivo consiste em examinar
os aspectos relevantes da evolução política daquela Convenção e
o caso particular brasileiro, nas vertentes cultural e natural.
Não serão destacados nesta monografia os detalhes físicos
e históricos de cada sítio brasileiro inscrito na lista do Patrimônio
Mundial, cujas descrições se encontram nas Web pages da UNESCO,
20
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
e do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Cabe ainda um breve esclarecimento sobre a utilização do
conceito de patrimônio natural nesta monografia e no âmbito da
UNESCO. Embora os critérios para a seleção e a conservação do
patrimônio natural baseiem-se em parâmetros científicos distintos
dos sítios históricos e culturais, será considerado  a exemplo do
padrão seguido na UNESCO  que a proteção do patrimônio
natural justifica-se, além das razões baseadas em critérios
ambientais e científicos, pelo aspecto simbólico. Para ilustrar o
argumento, recorde-se que a nação brasileira se reconhece também
na diversidade biológica que caracteriza o País, da floresta
amazônica à caatinga nordestina.
A par da Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial, será
examinado o Programa O Homem e a Biosfera, administrado
pelo Setor de Ciências da Organização e conceitualmente ligado à
noção de patrimônio. A recente designação da Reserva da Biosfera
do Pantanal e, logo em seguida, da inscrição da Área de Conservação
do Pantanal na lista do Patrimônio Mundial, indica a proximidade
entre as duas ações e o interesse em abordá-las nesta monografia.
21
1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE
PATRIMÔNIO: OS EXEMPLOS
FRANCÊS E BRASILEIRO
O atual estágio de complexidade da aplicação do conceito
de patrimônio, do qual as ações da UNESCO são exemplo, é
resultado de intensa evolução histórica. Diversos estudos acerca
dos fundamentos e da significação do patrimônio no seio das
sociedades podem ser consultados. De corte transdisciplinar, tais
trabalhos incorporam conteúdos de estética, história e sociologia
política, à luz das múltiplas dimensões que decorrem da análise
contemporânea da importância do patrimônio.
Segue-se uma breve introdução ao tema. apoiada em teóricos
franceses, tendo em vista o papel paradigmático que a França
desempenhou na evolução histórica do patrimônio. Em seguida,
focalizamos trabalhos de estudiosos brasileiros, visando situar o
conceito no Brasil. A produção teórica sobre o assunto é vasta, e
ultrapassa em muito um trabalho que tenciona abordar a proteção
do patrimônio na UNESCO e seus significados para o Brasil.
Apesar de voltadas para a experiência de apenas dois países, nos
seus aspectos histórico e cultural, este comentário tenciona extrair
algumas interpretações que transcendam seus contextos
específicos, tornando-as úteis para a conceituação do tema
patrimônio na presente monografia.
A noção de patrimônio no espaço multilateral da UNESCO
sempre esteve exposta a grande diversidade de concepções. Embora
22
o risco de dispersão e enfraquecimento institucional esteja presente
quando uma organização internacional se propõe a atuar em campo
tão variado, o acervo de realizações que a UNESCO exibe demonstra
que significativos aspectos da noção de patrimônio e suas aplicações
evoluíram da esfera interna de cada país para um nível internacional.
Ao debater e sugerir ações, os agentes que participam desse esforço
na UNESCO têm atrás de si um rico acervo de reflexões, balizadas
por suas experiências nacionais, que substancia e orienta a política
de patrimônio da Organização.
1.1 O EXEMPLO FRANCÊS
A sedimentação histórica da noção de patrimônio na França,
1
como apresentada por Jean-Pierre Babelon e Andre Chastel (1994, p.
11), estrutura-se em torno de seis eixos explicativos. Embora o sentido
atual da palavra, em sua acepção comum, indique, de forma vaga,
algo relacionado com bens e tesouros do passado, a pesquisa
histórica revela existirem diferentes camadas de significados, relativas
a estágios distintos nos quais a noção de patrimônio se desenvolveu.
Tais estágios relacionam-se com uma longa e caótica história da
propriedade francesa, dos bens franceses, da sensibilidade francesa
no passado. Os eixos explicativos  o religioso, o monárquico, o
familiar, o nacional, o administrativo e o científico  detalham as
circunstâncias em que se forjaram os sentidos atribuídos ao patrimônio.
Assim, no campo religioso, a idéia de patrimônio encontra
sua origem no conceito cristão de patrimônio sagrado da Fé.
1
A bibliografia primária para essa informação inicial, no que tange ao caso
francês, consistiu de dois livros, a saber: LAllégorie du patrimoine, de Françoise
Choay (traduzido e lançado no Brasil pela Companhia das Letras), e La notion
du patrimoine, de Jean-Pierre Babelon e André Chastel. O o primeiro foi
publicado em 1992 (e reeditado em 1996 e 1999); e o segundo, impresso pela
primeira vez em 1980 na Revue de lArt, foi lançado em livro em 1994.
23
A sacralidade incorporada aos objetos aos quais se atribui o
testemunho dos primórdios do cristianismo  as relíquias  justifica
o culto e a devoção a esses objetos. Preservados em espaços
definidos, sejam templos, tumbas ou locais sagrados, tais
fragmentos simbolizam a presença de uma memória, associada à
prática social da religião. Juntamente com corpos de santos e
mártires, também conservados como patrimônio religioso,
terminam por irradiar, pela própria força da piedade popular, o
patrimônio mais precioso da comunidade secular (Babelon,
Chastel, 1994, p. 13 e 17). A veneração funda o patrimônio, que
se estende ao espaço da igreja, ao edifício da catedral e ao centro
religioso da cidade. Resistindo às vagas iconoclastas, da Reforma
às guerras, o patrimônio religioso consolida seu estatuto estético
no Renascimento e sobrevive à Revolução Francesa: Esses
góticos, embora de um gosto bárbaro, podem interessar (...) eles
são preciosos como antigüidades.
2
O eixo monárquico de formação do conceito de patrimônio
decorre, a exemplo do religioso, da necessidade da eleição de
objetos e lugares como instâncias de mediação entre o soberano
e seus súditos. Contudo, a monarquia não poderia perdurar sem
fabricar seus próprios objetos sagrados. Inicialmente imbricado
com a religião, o patrimônio monárquico evolui para considerações
de ordem cultural  são bibliotecas e arquivos reais a proteger e,
posteriormente, monumentos e castelos, nestes últimos incluindo-
se coleções de obras-de-arte. Note-se, entretanto, que os próprios
reis não tiveram muito respeito pelo seu próprio patrimônio
monumental (Babelon, Chastel, 1994, p. 28 e 39). A natureza do
regime monárquico, com suas incertezas e turbulências, ou mesmo
conveniências imediatistas de construção, pode gerar,
simultaneamente à proteção, um desejo de destruição do
2
Declaração do Comissário da Assembléia encarregado de listar objetos e
estátuas guardados em prédios de culto parisienses, em 1792, citado por
Babelon e Chastel (1994, p. 25).
24
patrimônio, como no caso de Luís XIV. Ainda não estamos no
século 20 e o patrimônio não dispõe de sistema legal de proteção.
O patrimônio monárquico não deixa de ser um patrimônio
familiar. A nobreza, por seu turno, organiza-se igualmente a fim
de proteger seus bens e propriedades. Além dos castelos, signos
exteriores de riqueza e poder, a noção de bem patrimonial
também pode ser ligada, sob o Ancien Régime, a objetos de arte,
objetos de recordação, a arquivos. Conscientes da relevância
cultural de suas posses, os nobres, e mais tarde os burgueses,
sujeitam-se a permitir que suas coleções sejam visitadas pelos
curiosos que se dirigiam até elas (Babelon, Chastel, 1994, p. 53).
Com o passar dos anos, entretanto, acirram-se as contradições
internas da organização social e política do Ancien Régime. No final
do século 18, um acontecimento de repercussões globais introduz
transformações profundas na concepção de patrimônio, mormente
no que tange à sua apropriação coletiva: a Revolução Francesa.
Babelon e Chastel chamam de nacional à etapa que se
inaugura com a Revolução. Reconhecer e classificar o patrimônio
 o que foi feito pelos Comitês revolucionários de 1790 a 1792 
foi uma das materializações do sentimento nacional que se forma
no novo sistema político.
3
Embora a gestação de tal sentimento
tenha sido dramática em razão dos fundamentos religiosos,
monárquicos e aristocráticos da sociedade (e do patrimônio), seus
efeitos foram duradouros. Com a Revolução Francesa, indicam
os autores, firma-se junto à noção de patrimônio a idéia de serem
necessárias políticas públicas para preservar e valorizar os bens
representativos da nação. Tal processo leva, no século 20, à
consolidação dos instrumentos legais de proteção ao patrimônio,
já agora classificado como bem público.
3
Babelon e Chastel (1994, p. 57-69) descrevem com detalhes o processo
legislativo revolucionário na Convenção Nacional e seus desdobramentos no
que toca ao patrimônio.
25
Não obstante, a evolução do tema, política e juridicamente,
está longe de ser sido linear e sem contradições. Françoise Choay
(1992, p. 75) lembra que
a obra conservadora dos comitês revolucionários parte de dois
processos distintos: o primeiro, cronologicamente falando, foi a
transferência dos bens do clero, da coroa e dos emigrantes para a
Nação; o segundo, é a destruição ideológica que visou uma parte
desses bens, a partir de 1792, particularmente sob o Terror e sob
o governo da Saúde Pública, e que suscita uma imediata reação
de defesa.
À desapropriação revolucionária seguiram-se, a exemplo do
que ocorrera antes nas Reformas na Inglaterra, um vandalismo
predador e uma reação conservadora.
Babelon e Chastel referem-se aos estágios administrativo e
científico como etapas nas quais, tendo a noção de patrimônio se
consolidado, o Estado e a sociedade procuraram corrigir
assimetrias e desequilíbrios na administração do patrimônio,
explicitados com intensidade no curto intervalo histórico da
Revolução Francesa. Tais etapas cobriram o século 19 e as
primeiras décadas do século 20.
A arqueologia da noção de patrimônio construído, sua
evolução a partir do Renascimento até o presente, quando políticas
de conservação impõem-se em face da crise nas grandes
concentrações urbanas, representa uma das principais
preocupações da obra de Françoise Choay (1992, p. 31). A
percepção moderna do patrimônio começa com a distância
(histórica) que o observador do Quatroccento, pela primeira vez,
estabeleceu entre o mundo contemporâneo a que pertence e a
longínqua Antigüidade da qual ele estuda os vestígios. Os estudos
e as descrições produzidos nesse período permitiram algo inédito
 o reconhecimento objetivo do valor histórico dos monumentos
da Antigüidade. Depois do Quatroccento, proliferam os conteúdos
estéticos que injetam energia inusitada na produção artística a partir
26
de uma nova leitura das obras do passado. Preservar monumentos
expressa, doravante, a ênfase na continuidade do presente com as
realizações de gregos e romanos. O patrimônio transforma-se em
alegoria da História.
Mas a modernidade acarreta novos riscos. Os efeitos
perversos da indústria cultural, sobretudo os advindos do turismo,
começam a ameaçar a gestão do patrimônio  situação paradoxal,
pois se trata, por um lado, de valorizar o patrimônio como ativo
econômico e, por outro, de expô-lo à banalização e à predação:
Culto ou indústria, as práticas patrimoniais estão ameaçadas de
autodestruição pelo próprio destaque e sucesso de que desfrutam:
mais precisamente, pelo fluxo exagerado e irresistível dos
visitantes do passado (Choay, 1992, p. 169).
As sociedades e os Estados são capazes de eleger Auschwitz
e Dachau como sítios do Patrimônio Mundial da UNESCO 
monumento à memória cuja contundência é imediata , mas são
igualmente responsáveis por uma ânsia contemporânea de
classificar e selecionar peças de patrimônio arquitetural e urbano,
sintoma que pode ser decifrado
como uma alegoria do homem, ao amanhecer do século 21:
incerto quanto ao rumo para onde o levam a ciência e a técnica,
em busca de um caminho onde estas possam lhe dar espaço e
tempo para deixá-lo investir em si mesmo, de uma maneira melhor
e diferente (Choay, 1992, p. 199).
1.2 O EXEMPLO BRASILEIRO
A literatura brasileira sobre patrimônio é significativa. Além
do acervo de estudos da Revista do Patrimônio, publicada, salvo
curtos períodos, desde a criação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Sphan), em 1937, pesquisas de
27
fôlego têm sido editadas.
4
Não obstante a formação social e
histórica relativamente nova do País, comparada aos europeus, a
contribuição dos estudiosos brasileiros é densa e original.
José Gonçalves (1996, p. 38 e 89) emprega método calcado
na psicanálise e na filosofia da linguagem para situar o conceito
de identidade nacional. Podemos definir este conceito,
inicialmente, como o repertório de traços culturais por meio dos
quais os membros de uma nação se identificam. Ressalta o autor,
ao examinar o caso brasileiro, que tal definição abriga um conjunto
de narrativas por meio das quais intelectuais nacionalistas e outras
categorias sociais concebem a cultura brasileira enquanto um
objeto permanente de desejo e de busca. Os intelectuais que se
destacaram no comando institucional do patrimônio no Brasil,
liderados por Rodrigo Mello Franco de Andrade, na primeira e
heróica fase, e por Aloísio Magalhães, em curta porém profícua
administração, praticaram um discurso de apropriação da cultura
brasileira movidos pelo desejo de preservar fragmentos escolhidos
dessa cultura. Tais discursos, ao buscar e selecionar o que a
sociedade deveria considerar como patrimônio, produzem como
conseqüência, ao mesmo tempo em que pressupõe, a possibilidade
mesma de sua perda. A possibilidade da perda do patrimônio é
ao mesmo tempo a causa e o efeito da proteção.
Selecionar e salvar da perda e da degradação material
fragmentos da história artística e arquitetônica, como é o caso do
barroco brasileiro, significa eleger pontos de contato com o
passado, de modo a permitir à sociedade contemporânea
identificar-se e estabelecer uma continuidade imaginária com o
conjunto patrimonial da cultura brasileira. Se por um lado, será
sempre necessária a constatação da possibilidade da perda para
4
Dois livros serão utilizados como referência primária para os comentários
que se seguem. Ver: José Reginaldo Santos Gonçalves (1996) e Maria Cecília
Londres Fonseca (1997).
28
que tais sítios e objetos sejam eleitos, por outro, ao elegê-los, os
intelectuais alertam a sociedade quanto à possibilidade da perda
desse patrimônio. Tombá-los, designá-los legalmente, significa, em
última análise, dar um nome jurídico a essa possibilidade.
A criação do Sphan em fins de 1937, em pleno Estado Novo,
institucionalizou a prática do tombamento, visando à busca da
identidade nacional por meio da preservação e da conservação do
patrimônio físico. A participação de intelectuais como Mário de
Andrade e Lúcio Costa permitiu ao novo órgão entrar em sintonia
com a interpretação modernista da cultura brasileira e incorporar
uma noção abrangente de patrimônio,
5
de obras-de-arte e
arquitetônicas, assim como manuscritos, fotografias e artefatos
indígenas  algo distante de uma perspectiva monumentalista e
sacralizadora do patrimônio (Weffort, 1997, p. 8). A ação de
Aloísio Magalhães, no final da década de 70, seguiu nessa trilha e
retomou as idéias contidas no texto encomendado a Mário de
Andrade para introduzir a legislação do patrimônio em 1937. Para
José Gonçalves, essa nova etapa, caracterizada pela designação e
preservação de saberes e fazeres culturais, atualiza em um novo
registro a retórica da perda subjacente ao discurso de
conservação dos monumentos e igrejas barrocas.
Cecília Londres Fonseca (1997, p. 12), por sua vez, sublinha
os aspectos político e ideológico que permeiam as ações
institucionais em relação ao patrimônio:
5
O número 26 da Revista do Patrimônio, organizado por Ítalo Campofiorito,
celebrou os 60 anos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) com uma seleção de artigos publicados nos dez anos iniciais da Revista
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com relação ao modernismo
presente no Sphan, Cecília Londres Fonseca (1997, p. 98-99) identifica, para
caracterizá-lo, dois aspectos: o caráter ao mesmo tempo universal e particular
das autênticas expressões artísticas e a autonomia relativa da esfera cultural
em relação às outras esferas da vida social.
29
os intelectuais que estão direta ou indiretamente envolvidos com
uma política de preservação nacional fazem o papel de mediadores
simbólicos, já que atuam no sentido de fazer ver como universais,
em termos estéticos, e nacionais, em termos políticos, valores
relativos, atribuídos a partir de uma perspectiva e de um lugar no
espaço social (grifos da autora).
O Estado convoca os intelectuais que, por seu turno, se
encarregam de delimitar um espaço de legitimação da ordem social
por meio da invocação de fragmentos do passado. O período de
Rodrigo M. F. de Andrade à frente do Sphan foi fundamental
para a consolidação de políticas públicas referentes ao patrimônio
no Brasil,
6
mas o desafio será estabelecer uma política de
preservação democratizada, no sentido de que seja efetivamente
apropriada, enquanto produção simbólica e enquanto prática
política, pelos diferentes grupos que integram a sociedade
brasileira (Fonseca, 1997, p. 261).
A breve passagem de Aloísio Magalhães no comando do
patrimônio no Brasil deixou indicações de uma reflexão sobre a
noção do patrimônio que apontava na direção dessa
democratização. Dizia Magalhães (apud Fonseca, 1997, p. 176)
que o Patrimônio atuava de cima para baixo, e, de certo modo,
com uma concepção elitista... Quem faz uma Igreja sabe o valor
do que faz. Mas quem trabalha com o couro, por exemplo, nem
sempre. Em sua gestão, procurou conferir um estatuto de
patrimônio histórico e artístico nacional à produção cultural dos
contextos populares e das etnias afro-brasileira e indígena.
Episódio marcante dessa orientação foi o processo que levou ao
tombamento da Casa Branca, terreiro ligado à tradição Nagô, na
Bahia. A pesquisa de Cecília Londres Fonseca (1997, p. 5) revela,
para este e para os demais processos de tombamento, os pontos
6
Registre-se que o Conselho Consultivo do Patrimônio tombou, no final de
2000, o Estádio Mário Filho, o Maracanã, espaço coletivo por excelência.
30
de contato entre o mundo das palavras e o mundo das coisas 
ou seja, a relação entre discurso e prática na implementação da
política de patrimônio no Brasil.
Voltaremos a esses autores e ao patrimônio histórico e
cultural brasileiro no Capítulo 8 desta monografia.
1.3 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO NATURAL
A evolução do conceito de patrimônio natural seguiu, durante
muito tempo, percurso ligado ao aspecto científico das questões
referentes ao meio ambiente. Este é um dos principais fundamentos
para a proteção, ao qual juntou-se posteriormente o valor simbólico,
tal como mencionado na Introdução. Embora o exame
pormenorizado desse aspecto escape aos propósitos da presente
monografia, registre-se que as iniciativas estatais de proteção à
natureza tiveram sua origem em 1872, nos Estados Unidos, quando
foi regulamentado o primeiro parque natural, Yellowstone. Quase
um século mais tarde, em 1965, durante conferência na Casa Branca,
em Washington, a criação de uma Fundação do Patrimônio
Mundial para proteger sítios naturais e históricos lança as bases
para negociações com vista a instrumento internacional de proteção
que contemplasse os dois aspectos.
A UNESCO, graças a sua vocação interdisciplinar,
desempenha um papel pioneiro na convergência das vertentes
natural e cultural no conceito de patrimônio. Às preocupações com
o meio ambiente juntaram-se os objetivos culturais de preservação,
tendência cristalizada na Convenção do Patrimônio Mundial, em
1972, para cuja lista foram previstos sítios culturais e naturais. Em
1978 foi inscrito na lista do patrimônio o primeiro sítio natural
7
7
Hoje a balança ainda pende para o patrimônio histórico e cultural, que conta com
529 sítios inscritos, em detrimento do patrimônio natural  138 sítios  e dos
chamados sítios mistos, que alcançam 23 inscrições.
31
 o mesmo Parque Yellowstone. Sublinhe-se, entretanto, que a
proteção ao patrimônio natural na UNESCO não se propõe a ter o
alcance e o detalhamento dos instrumentos inspirados em
preocupações científicas do meio ambiente, sobretudo a partir da
Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, que gerou Convenções
abrangentes como a da Diversidade Biológica e a do Combate à
Desertificação. A Convenção de 1972 antecipara-se a esses acordos
enfatizando a função simbólica da proteção.
A aproximação entre as noções de patrimônio cultural e natural
tem sido objeto de reflexão em diversos países, sobretudo os
desenvolvidos.
8
A percepção de que a paisagem também é um objeto
cultural, na medida em que exibe, além dos atributos físicos, resultado
de diversas ações humanas, está presente em inúmeras ações estatais
de proteção. Muitos sítios naturais incluem em suas propostas para
inscrição na lista da UNESCO a presença de populações indígenas
integradas ao meio ambiente. Em outra vertente, o conceito de cultural
landscape, que valoriza paisagens construídas segundo tradições
culturais, como é o caso das plantações de café cubanas, tem sido
empregado para balizar candidaturas de sítios no âmbito da
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial.
A questão do patrimônio natural interessa ao Brasil, porque
a tendência, como é o caso particular das inscrições brasileiras na
lista do Patrimônio Mundial, é aumentar as solicitações para sítios
naturais e mistos em detrimento dos sítios culturais e históricos.
Recorde-se que a Constituição brasileira de 1988 distinguiu, pela
primeira vez, patrimônio cultural e natural, sendo este último
subordinado à denominação ambiental. Somada à preocupação
com os fragmentos de história, de Ouro Preto a Brasília, agregou-
se a relevância científica da proteção à diversidade biológica dos
8
Na França realizou-se em 1994 o colóquio Patrimoine culturel, Patrimoine
naturel, que contou com a participação de especialistas e administradores de
diversos países. Os textos e debates do encontro foram publicados pela
Documentation Française, em 1995.
32
biomas brasileiros, fato já observado nas candidaturas recentes
provenientes do Brasil. Este tópico será desenvolvido no último
capítulo desse trabalho.
1.4 OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES
À guisa de conclusão do presente capítulo, assinalamos que a
noção de patrimônio não pode ser sintetizada em uma formulação
homogênea e definitiva, já que ela se articula política e socialmente
nos diferentes contextos nacionais. O modelo francês, sem dúvida
calcado na densa experiência histórica de um país desenvolvido, apóia-
se na longa tradição política centralizadora que o país mantém.
Igualmente centralizada, mas apoiada em menor tempo histórico e
com diferenças significativas, em função do desenvolvimento
socioeconômico, situa-se a experiência brasileira.
O presente estágio de proteção ao patrimônio nos países anglo-
saxões, por seu turno, originou-se de um modelo de natureza
descentralizada. Nas sociedades asiáticas, como China e Japão, a
própria noção de conservação, sobretudo de obras arquitetônicas,
não implica necessariamente ações de proteção por parte do Estado.
Destruir um templo e construir outro com as mesmas características
é, em princípio, uma ação legítima.
9
Nos países africanos a noção de
patrimônio, que incorpora tradições distintas e estranhas ao cenário
europeu, foi influenciada sobretudo pela descolonização recente.
Cada noção de patrimônio, com a respectiva historicidade
que a informa, molda um tipo de ação estatal. Um dos desafios da
ação da UNESCO é conciliar os diversos eixos interpretativos do
patrimônio e propor ações internacionais que reforcem os esforços
nacionais de proteção.
9
Pressouyre (1996, p. 12) discute o critério de autenticidade exigido para os
sítios históricos pela Convenção do Patrimônio Mundial à luz da aplicação
do instrumento em diferentes contextos culturais.
33
Ao longo de pouco mais de meio século, a Organização
estimulou e acolheu debates técnicos e encontros multilaterais
que resultaram em três convenções de proteção ao patrimônio:
Conflito Armado, Tráfico Ilícito e Patrimônio Mundial, esta última
de maior repercussão. Além disso, foi aprovado pela Conferência-
Geral de 2002 o instrumento relativo ao subaquático  que ainda
não entrou em vigor  e foi realizada a primeira reunião de peritos
governamentais sobre projeto de convenção para patrimônio
imaterial. A UNESCO implementou, ainda, programa pioneiro
na área de meio ambiente, criando as Reservas da Biosfera. A
gênese e os contextos dessas ações, que contribuíram para
sedimentar uma noção ampla e diversificada de patrimônio, serão
desenvolvidas no decorrer do presente trabalho.
35
2. CONVENÇÃO DE 1954 PARA A
PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE
CULTURAL EM CASO DE
CONFLITO ARMADO
Em 14 de maio de 1954, em Haia, 45 países firmaram o
primeiro instrumento normativo internacional significativo para
a proteção do patrimônio  a Convenção de Haia, de 1954, para a
proteção da propriedade cultural em caso de conflito armado.
Criada na esteira da 2ª Guerra Mundial, a Convenção consolidou
uma série de práticas e regras voltadas à proteção de monumentos
e bens culturais em áreas em conflito, iniciadas no século 19. Por
outro lado, acrescentou a esfera cultural aos esforços normativos,
em escala internacional, do Direito Humanitário. O Brasil (em
1958) e mais 102 países ratificaram a Convenção. Entre os que
assinaram, mas não completaram a adesão, destacam-se a
Dinamarca, o Japão, a Inglaterra e os Estados Unidos.
À Convenção seguiu-se, na mesma data, um Protocolo
dedicado a disciplinar a exportação ilegal de bens culturais,
ratificado por 82 países. Nos anos 90, modificada a cena
internacional com o fim da Guerra Fria, uma nova dinâmica
instaurou-se na eclosão dos conflitos levando os países a
negociarem um segundo Protocolo, concluído em março de 1999,
que ainda não está em vigor. O 2
o
Protocolo passa a vigorar três
meses depois do vigésimo depósito de instrumento de ratificação,
quando formará, junto com a Convenção e o 1
o
Protocolo, um
código de proteção ao patrimônio em caso de conflito armado.
36
O Brasil, embora não tenha assinado o 2
o
Protocolo, terminou a
avaliação interna no âmbito do Executivo e encaminhou o
instrumento à apreciação do Congresso.
2.1 BREVE HISTÓRICO
A literatura especializada enumera diversos exemplos de
abordagem do assunto, a partir dos gregos, na Antigüidade. Jiri
Torman (1996, p. 4) lembra o historiador Políbio, que prevenia:
futuros conquistadores devem aprender a não pilhar as cidades
que subjugaram (...) as leis e o direito de guerra obrigam o
vencedor a arruinar e destruir fortalezas, fortes, cidades,
populações, navios, recursos (...) embora alguma vantagem possa
resultar disso, ninguém pode negar que permitir uma destruição,
sem sentido, de templos, estátuas e de outros objetos sagrados é
ação de um louco.
Torman, que escreveu o texto mais abrangente sobre a
Convenção de 1954 até hoje publicado, cita igualmente Cícero e
Santo Agostinho entre os ilustres comentadores que se detiveram
a respeito da destruição do patrimônio. Embora essas reflexões
se preocupassem com os efeitos das guerras, configura-se nessa
tradição o esboço de um quadro que situa, de um lado, a
irracionalidade destrutiva das guerras e, de outro, a consciência
acerca da proteção de bens que remetam a algum tipo de herança
cultural, principalmente a religiosa.
Templos e tumbas, patrimônio cultural e religioso por
definição, são alvos cuja importância estratégica vai além de
considerações puramente materiais, constituindo-se, sobretudo,
em objetivos simbólicos. Mesmo nos conflitos contemporâneos,
nos quais o saque de uma Igreja não justificaria, em termos de
riqueza, nenhum assalto armado  ao contrário dos tempos antigos
, o patrimônio religioso é destacado como objetivo militar.
37
Exemplos recentes, como na ex-Iugoslávia, demonstram a
permanência dessas práticas e a relevância do aspecto simbólico
nos conflitos armados.
As preocupações terminaram por transformar-se em
codificações, das quais a Convenção de 1954, juntamente com
seus Protocolos, é o último estágio. Recorde-se, por exemplo, a
Paz de Westfalia, de 1648, que em diversas cláusulas solicitava
retorno de arquivos e objetos artísticos aos seus locais de origem.
Em época mais próxima, a vitória sobre Napoleão em 1815
obrigou a França a restituir obras-de-arte obtidas em suas
conquistas, pois sua remoção por meio da força era contrária a
todo princípio de justiça e aos costumes da guerra moderna
(Boylan, 1994, p. 3). Paulatinamente, os comentadores do Direito
Internacional, ao tratar do Direito de Guerra, passaram a incluir
o tema no âmbito das preocupações de caráter humanitário,
destacando sua função mitigadora dos excessos das guerras.
A partir de meados do século 19, desenha-se um esforço
jurídico para a contenção, ou pelo menos, o abrandamento, dos
efeitos degradantes dos conflitos. O objetivo é proporcionar o
máximo possível de proteção à população civil e, secundariamente,
a propriedades e ao patrimônio público, ao mesmo tempo em que
se atendem aos requerimentos militares. Clausewitz já havia
sublinhado, recorda Torman, tanto o princípio da proporcionalidade
em relação à condução da guerra como a necessidade de restringir
o esforço bélico a alvos genuinamente militares.
Em 1863 o exército dos Estados Unidos regulamentou
instruções de campo que tiveram grande influência na futura
codificação de leis da guerra. Conhecido como Lieber Instructions,
o código indicou no seu artigo 35 que
obras clássicas de arte, bibliotecas, coleções científicas ou
instrumentos preciosos, como telescópios astronômicos, assim
como hospitais, devem ser protegidos contra qualquer dano evitável,
mesmo quando estejam dentro de lugares fortificados enquanto
estão sendo sitiados ou bombardeados (Torman, 1996, p. 7).
38
Ainda no âmbito americano, o Tratado de Proteção de
Instituições Científicas e Artística e Monumentos Históricos,
conhecido como Pacto Roerich em referência ao seu inspirador,
Nicholas Roerich, deve ser lembrado. Assinado em 1935, em
Washington, pelos países da União Pan-Americana, o pacto trata
da proteção do patrimônio em caso de guerra e prevê medidas
preventivas a serem tomadas antes da eclosão dos conflitos.
Finalmente, devem ser lembradas as Conferências de Haia
de 1899 e 1907  que Torman julga como o estágio mais importante
antes da Convenção de 1954  sobretudo a segunda, de 1907, que
produziu a 4
a
Convenção de Haia sobre Leis e Costumes de Guerra.
Nesta, a proteção ao patrimônio avançou em áreas inéditas, como
o uso de sinais específicos para designar sítios religiosos, científicos,
artísticos ou instituições de caridade, dos quais deveriam ser
notificados previamente os inimigos para que fosse evitada, na
medida do possível, sua destruição durante bombardeios.
Note-se que, segundo Wilfried Fiedler (1996), uma das
características peculiares do século 20 é o fato de que algumas das
regras de Direito Internacional formuladas cem anos antes em
Haia continuem a ser discutidas e eventualmente aplicadas ainda
hoje, como no caso das pilhagens durante a 2ª Guerra
1
. Fiedler
justifica o argumento lembrando o artigo 56 da 4
a
Convenção, o
qual estipula que as propriedades estatais dedicadas à religião, à
ciência, à arte e à caridade devem ser tratadas como propriedades
privadas, sujeitando quem as destruir ou danificar a procedimentos
legais. Tal referência consuetudinária era aceita pela comunidade
internacional à época da 2ª Guerra e é, portanto, aplicável ainda
1
Os saques nazistas durante a 2
a
Guerra são um assunto freqüente na imprensa.
Mencione-se, a título de exemplo, o número hors série intitulado Le Trésor
Nazi da publicação Historama, Paris, janeiro de 1978. Em 1997 a Direction des
Musées de France organizou o colóquio Pillages et Restitutions: le destin des oeuvres
dart sorties de France pendant la Seconde Guerre Mondiale, cujas contribuições foram
reunidas em livro com o mesmo título, Paris: Ed. Musées de France, 1997.
39
hoje a processos de restituição para conflitos ocorridos antes da
entrada em vigor da Convenção de 1954.
Além do chamado tesouro nazista, conjunto de saques de
proporções inéditas na história das guerras, que resultou na
condenação de líderes nazistas em Nuremberg, surgiu, após a
unificação da Alemanha, a questão da retorno do patrimônio alemão
apropriado pelo exército soviético, que se aplicaria à 4
a
Convenção
(Fiedler, 1996, p. 182). Embora os parâmetros legais do texto de 1907
estivessem desatualizados em relação à tecnologia militar já na 1ª
Guerra, seus autores conceberam-no baseado em critérios  leis das
nações e usos entre países civilizados, leis humanitárias, imperativos
de consciência pública  adaptáveis a circunstâncias externas em
mutação, razão de sua importância na evolução do Direito de Guerra.
2.2 CONVENÇÃO DE HAIA DE 1954: GÊNESE E
COMENTÁRIOS
A 2ª Grande Guerra ultrapassou em poder destrutivo todos
os conflitos anteriores, dada a escala planetária e o grau de avanço
tecnológico dos armamentos. Embora os potenciais beligerantes
tenham acordado no período do pré-guerra compromissos de evitar
por todos os meios alvos não-militares, desde população civil até
monumentos históricos e artísticos, o controle rapidamente esvaiu-
se, sobretudo a partir de 1942 (Boylan, 1994, p. 6-7). O forte trauma
social e psicológico que se seguiu  e influenciou sobremaneira a
criação do próprio sistema das Nações Unidas, do qual faz parte a
UNESCO  motivou a comunidade internacional a mobilizar-se na
busca de instrumentos de contenção e regulação mais efetivos do
Direito de Guerra. Em 1949 foi negociada nova Convenção de
Genebra sobre Direito Humanitário, na qual o tema da proteção ao
patrimônio não foi abordado. Para tratar de patrimônio cultural, a
instância natural era a UNESCO, cujo ato constitutivo passara a
vigorar em novembro de 1946.
40
Em 1949 a Conferência-Geral adotou, por iniciativa da
Holanda, resolução solicitando ao Secretariado da Organização
que fossem iniciadas consultas com vista à proteção de todos
objetos de valor cultural. Participaram do esforço representantes
do Conselho Internacional de Museus, conhecido pela sigla em
inglês Icom e especialistas em Direito Internacional. O Icom, por
sinal, já havia ensaiado um modelo de Convenção análoga em 1936,
inviabilizada pela guerra que se aproximava. Após projetos e
consultas, 56 países compareceram à Conferência, que concluiu,
em 14 de maio de 1954, a Convenção.
O novo instrumento, cujo objetivo é manter um equilíbrio
entre os grupos favoráveis aos aspectos humanitários e aqueles
preocupados com as exigências militares, terminou pendendo em
favor do segundo. Um participante chegou a afirmar que a nova
Convenção era mais conservadora do que a prudente moderação
pedia (Torman, 1994, p. 23). Além disso, a Convenção, a exemplo
dos demais instrumentos na área do Direito Humanitário
celebrados após a 2ª Guerra, evitou tratar dos armamentos
nucleares. Não obstante, foram concentradas em um único texto
as diversas provisões espalhadas em diferentes instrumentos legais,
sedimentando um marco no reconhecimento, pela comunidade
internacional, da validade da proteção ao patrimônio cultural. Tal
feito teria desdobramentos na ação normativa da própria
UNESCO, inclusive no que se refere à proteção ao patrimônio
em circunstâncias distintas do objeto da Convenção de 1954.
2
A Convenção consta de 40 artigos, divididos por sete
capítulos. No artigo 1º, a propriedade cultural é definida em três
diferentes categorias conceituais: bens móveis ou imóveis que tenham
2
As duas demais Convenções de proteção ao patrimônio em vigor  sobre
Tráfico Ilícito (1970) e sobre Patrimônio Mundial (1972)  são exemplos desses
desdobramentos, assim como a Convenção sobre Patrimônio Subaquático,
recentemente aprovada, e o presente debate relativo a possível Convenção
sobre Patrimônio Intangível.
41
valor artístico, histórico, científico ou cultural, como monumentos
históricos, coleções científicas ou obras-de-arte; estabelecimentos
como museus, bibliotecas e arquivos; e centros que contenham
monumentos, como zonas arqueológicas ou áreas históricas.
Inspirando-se em conceitos derivados dos textos de
Genebra, a Convenção previu a proteção ao patrimônio, seja em
abrigos temporários durante os conflitos, seja durante transporte
em meio a hostilidades (artigo 3º). A Alta Parte Contratante que
ocupa territórios assume, igualmente, obrigação de proteger o
patrimônio do Estado ocupado. O Capítulo 2 criou o conceito de
proteção especial, pelo qual um Estado pode solicitar à UNESCO,
após consulta às Altas Partes Contratantes, uma lista temporária
de refúgios para o depósito de bens culturais, cuja localização o
Estado solicitante compromete-se a desmilitarizar.
De especial importância foi a decisão de incluir na
Convenção os conflitos de caráter não-internacional, objeto do
artigo 19, dada a dificuldade de defini-los. Embora um tanto
imprecisa, a norma constituiu-se importante antecedente (Torman,
1994, p. 209). Foi celebrado igualmente em Haia, na mesma data,
o Protocolo para a Proteção de Propriedade Cultural em caso de
Conflito Armado, com dois propósitos: prevenir a exportação
ilegal de bens culturais durante os conflitos e instar todas as Altas
Partes Contratantes a preservar, até o fim das hostilidades, qualquer
bem cultural apreendido. O Protocolo previu também que os bens
apreendidos não poderão ser retidos como reparações de guerra.
2.3 SEGUNDO PROTOCOLO: MARÇO DE 1999
Diversos fatores concorreram para a percepção de que a
Convenção de 1954 mostrava-se insuficiente diante da escalada
de conflitos, sobretudo com o desmoronamento da estrutura
internacional a partir da queda do muro de Berlim, em 1989. A
nova dinâmica assumida pelos eventos levaram a Conferência-
42
Geral da UNESCO a adotar, em 1991, resolução em que se
reconhecia explicitamente que o sistema de proteção ao
patrimônio, em caso de conflito armado, não era mais
satisfatório. No ano seguinte a Holanda circulou proposta de
reforço da aplicação e implementação da Convenção de 1954,
dando início a uma série de reuniões de peritos e representantes
de Estados que iria culminar, em março de 1999, na conclusão
do 2
o
Protocolo da Convenção de Haia para a Proteção de
Propriedade Cultural em caso de Conflito Armado.
3
As reuniões  cinco de peritos governamentais e três de
Estados-Partes  foram influenciadas pela persistência do
conflito na ex-Iugoslávia no decorrer da década de 90 e pela
evolução do Direito Humanitário. Nelas destacam-se os dois
protocolos (1977) às Convenções de Genebra de 1949 e o
estabelecimento de um Estatuto para o Tribunal Penal
Internacional, em 1998.
O desenrolar dos entendimentos foi lento. O Summary
Report
4
da Conferência Diplomática, que concluiu em 1999 o 2
o
Protocolo, após quase duas semanas de debates, revela o esforço
de compromisso e focalização em questões substantivas que o
presidente do encontro, o holandês Adrian Bos, foi capaz de
articular. Além da suscetibilidade de alguns países, em razão de
envolvimento histórico em zonas conflituadas, a continuada
resistência dos participantes militares a medidas que implicassem
maiores responsabilidades e sanções não deve ser omitida.
Embora ainda não tenha entrado em vigor, o 2
o
Protocolo
traz modificações consideráveis em aspectos nos quais a
Convenção de 1954 não se revelou consistente. A criação de um
Comitê Intergovernamental para a Proteção da Propriedade
3
Discussion paper distribuído pela Delegação dos Países-Baixos na UNESCO
em junho de 1992.
4
Disponível na Web page da UNESCO, seção Culture/Legal Protections.
43
Cultural, disposta no artigo 24, com 12 membros eleitos a cada
quatro anos, dotou o Protocolo de uma efetiva estrutura para
sua implementação, além de envolver mais diretamente os
Estados-Partes na aplicação do texto. O Comitê será encarregado
de conceder a proteção destacada para o patrimônio em perigo,
de supervisionar a execução das medidas previstas no protocolo
e de examinar pedidos de assistência. Deverá reunir-se uma vez
por ano e será assistido em bases permanentes pelo Secretariado
da UNESCO.
Outros pontos  como a definição mais precisa de
necessidade militar para justificar ataques a sítios protegidos,
evitando abusos ou má-fé  e um conjunto de regras mais
restritivas contra violações de propriedades culturais, prevendo
processos de acusação, extradição e definição de responsabilidades
individuais, também representam novidade, em sintonia com a
evolução do Direito Humanitário. Entretanto, como sublinha Jan
Hladík (1999, p. 527), o novo instrumento não fez qualquer
avanço, por modesto que fosse, em suas provisões penais além
daquelas já existentes, como tampouco não contribuiu, de
maneira substancial, para uma melhor proteção da propriedade
cultural em conflitos armados não-internacionais.
Saliente-se, ainda, o reconhecimento do Comitê
Internacional do Escudo Azul, organização conhecida pela sigla
em inglês ICBS, em diversos dispositivos do Protocolo, embora
ao final da Conferência tenha sido cancelado o artigo que provia
proteção especial aos membros do Comitê. A nova entidade,
criada em 1996 com a participação de quatro entidades vinculadas
ao patrimônio cultural reconhecidas pela UNESCO  Conselho
Internacional de Museus (Icom), Conselho Internacional de
Sítios e Museus (Icomos), Conselho Internacional de Arquivos
e a Federação Internacional de Bibliotecas  tem como objetivo
dotar as mencionadas organizações de um braço operativo capaz
de agir com rapidez diante das ameaças de destruição do
patrimônio em caso de conflito armado (Des Portes, 1996).
44
2.4 EXAME DE CASOS
Embora a aplicação da Convenção seja limitada, dada a
complexidade de fatores subjacentes aos conflitos armados, sua
pertinência é indiscutível.
Um exemplo das dificuldades de sua aplicação refere-se aos
Estados Unidos, que embora não tenham ratificado o texto de
1954, obedecem aos seus parâmetros legais e estariam em
condições de tornar-se Estado-Parte, caso houvesse número
adequado de países e recursos suficientes para sua
implementação, nos países e na UNESCO. A experiência da Guerra
do Golfo revelou que foi um tratado muito importante para nós,
conforme declarou o responsável pelo Direito Internacional do
Advogado-Geral do Exército norte-americano, acrescentando
que decidimos não atacar propriedades culturais durante a Guerra
do Golfo de 1991 (Parks, 1996). Referindo-se aos aviões
estacionados por Saddam Hussein ao lado do Templo de Ur, frisou
que poderíamos destruir os aviões (...) mas sofreríamos uma
tremenda perda em matéria de propaganda. Disse ainda que, com
o fim da ameaça soviética, o Pentágono não mais se opunha à
ratificação, aguardando apenas uma decisão do Senado.
O efeito persuasivo que a Convenção parece ter provocado
não é confirmado por arqueólogos norte-americanos, que
insistem não apenas sobre o bombardeio do Templo de Ur, mas
também sobre pilhagens em grande escala após o cessar-fogo
(Russel apud William, 2000, p. 11-12). Note-se que o Conselho
de Segurança da ONU vetou sistematicamente todos os pedidos
relacionados à proteção do patrimônio cultural, tal como
importação de material fotográfico para inventário de peças
remanescentes, bloqueando virtualmente a ação da UNESCO.
Só restou à Organização prestar limitada assistência por meio
de seu escritório em Aman, assim como prevenir o mercado
internacional de antigüidades sobre a amplitude do comércio
ilegal em virtude da desestabilização no Iraque.
45
A Convenção de 1954 já foi invocada em diversos conflitos,
como a guerra entre Honduras e El Salvador, em 1969, entre Índia
e Paquistão, em 1971, no Chipre entre Grécia e Turquia, entre Irã
e Iraque em 1980, e os sucessivos eventos na ex-Iugoslávia, a partir
de 1991. Além do Iraque, o problema da exportação ilegal de bens
culturais em regiões afetadas por conflitos armados é
particularmente grave no Camboja e no Afeganistão, assunto
tratado no âmbito da Convenção de 1970 sobre Tráfico Ilícito de
Bens Culturais e objeto do Capítulo 3. Também, no que toca à
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial, verifica-se ação
complementar à Convenção de Haia de 1954, em particular no
Oriente Médio, em Jerusalém, e na ex-Iugoslávia.
O caso de Jerusalém é especial: inscrita na lista do
Patrimônio Mundial em 1981, por iniciativa da Jordânia, passou à
lista de sítios em perigo, por proposta da mesma Jordânia, em
1982.
5
Ambas as decisões foram tomadas por votação dos
Estados-Membros do Comitê do Patrimônio Mundial, embora a
questão da soberania da cidade não tenha ainda sido solucionada.
Em 3 de outubro de 2000, entretanto, o Presidente do Grupo
Árabe na UNESCO encaminhou ofício ao diretor-geral
protestando contra pedido israelense de inscrição do centro
histórico de Jerusalém na lista do Patrimônio Mundial, indicando
que essa medida estaria em contradição com a Convenção de
Haia de 1954.
6
A comunicação cita resoluções da Conferência-
Geral lembrando a Israel sua obrigação de respeitar a Convenção
de 1954, e conclui que o pedido significa na verdade intenção de
impor a soberania israelense àquela cidade. Alega o referido
5
Os procedimentos relativos à Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial
serão examinados no Capítulo 7 do presente trabalho. A Web page do Centro
do Patrimônio Mundial (www.unesco.org/whc/) contém as informações
básicas sobre as discussões no Comitê acerca do Centro histórico de Jerusalém.
6
Ofício MO/0010/DG/Jerus/3, de 3/10/2000, distribuído às Delegações
Permanentes da UNESCO.
46
presidente que, para solicitar inscrição na lista do patrimônio, Israel
teria que fazê-lo como potência ocupante e não como país
detentor da soberania sobre o sítio.
Os eventos trágicos de outubro de 2000 na Cisjordânia e na
Faixa de Gaza, deflagrados a partir da visita de políticos israelenses
liderados por Ariel Sharon ao Santuário Sagrado Muçulmano,
vizinho ao Muro das Lamentações Judaico, revelam a intensidade
da carga simbólica de que se reveste o local.
7
A Conferência-Geral
da UNESCO tem manifestado reiteradamente preocupação sobre
escavações arqueológicas e conservação de monumentos em
Jerusalém e arredores.
8
Fontes palestinas afirmam que, ao contrário
das violações de direitos humanos, pouco se conhece sobre a
sistemática violação de Israel das regras internacionais relativas à
proteção da propriedade cultural durante conflitos armados,
inclusive em áreas fora de Jerusalém (Oyediran, 1997). Israel ratificou
a Convenção de Haia de 1954, juntamente com o Protocolo, em
1958, e participou da Conferência Diplomática que concluiu o 2
o
Protocolo. Em setembro de 2000, o diretor-geral do Ministério dos
Negócios Estrangeiros israelense comunicou à UNESCO que
aceitava inspeção dos locais sagrados e históricos da cidade feita
por especialista designado pela Organização, desde que a visita fosse
isenta de considerações políticas, em razão de nossa preocupação
pela preservação do patrimônio mundial em Jerusalém.
9
O
prolongado estado de conflito na área tem impedido, entretanto, a
realização de tal levantamento.
7
Ver, a título de exemplo, Sharon Visit Sparks Rioting at East Jerusalem
Shrine. International Herald Tribune, 29/9/2000. p. 5.
8
Na Conferência-Geral de 1999 foi adotada, nesse sentido, a Resolução 28. O
Conselho Executivo da UNESCO, por sua vez, vota regularmente Resolução
instando o diretor-geral a enviar peritos a Jerusalém a fim de verificar o estado de
conservação dos sítios sagrados e as iniciativas arqueológicas israelenses. Em 20
de outubro de 2000, em sua 160
a
sessão, o CE adotou resolução semelhante.
9
Anexo III do documento do Conselho Executivo da UNESCO nº 160 EX/
14, de 13/9/2000.
47
A situação na ex-Iugoslávia é igualmente objeto de
preocupação. Os sucessivos conflitos que atingiram a região na
década de 90 tiveram forte impacto sobre o patrimônio cultural.
Bibliotecas, manuscritos, mesquitas, igrejas, centros históricos,
foram bombardeados ou dinamitados, estratégia que estaria
relacionada à chamada limpeza étnica, inclusive nos episódios
mais recentes em Kosovo. Fatores culturais e religiosos seriam o
principal critério para a seleção de alvos, sejam humanos ou
materiais (Riedlmayer, 1999, p. 2). A destruição, em 1993, da
mesquita de Aladza, na cidade de Foca, na Bósnia e Herzegovina,
construída em 1551, seguida de violências de toda sorte contra a
população civil, sobretudo a feminina, parece corroborar tal visão.
Mesmo as pilhagens de bibliotecas parecem ter sido planejadas
de modo a eliminar a memória coletiva das vítimas.
Em 1992, o Comitê de Peritos estabelecido pelo Conselho
de Segurança da ONU produziu, em seu Anexo XI, relatório sobre
a destruição da Propriedade Cultural na ex-Iugoslávia. São
mencionados como exemplos os casos do centro histórico de
Dubrovnik, sítio inscrito na lista do Patrimônio Mundial da
UNESCO, e o da ponte de Mostar, construída no século 16 e
símbolo de ligação entre as comunidades croata e muçulmana na
Bósnia e Herzegovina. O relatório recomendava a aceleração dos
processos contra os responsáveis pela destruição, referindo-se às
Convenções de Genebra de 1949 e à Convenção de Haia de 1954
como instrumentos aplicáveis essenciais. O Tribunal Penal
Internacional para a ex-Iugoslávia, criado em 1993, já incluiu em
seus processos referências a Mesquitas e Igrejas Católicas, pilhadas
e destruídas nos mesmos locais onde construções associadas com
a religião sérvia ortodoxa permaneceram intocadas.
10
10
The International Criminal Tribunal for the Former Iuguslavia, case No. IT-
00-39-I against Momcilo Krajisnik, disponível na Web page do Tribunal.
48
2.5 CONCLUSÃO PARCIAL
A situação de guerra foi o palco para a primeira ação
normativa da UNESCO de proteção ao patrimônio cultural. Pode-
se afirmar que o valor universal da proteção tem na Convenção
de Haia de 1954 seu marco de origem. A despeito das limitações
e dificuldades práticas de sua aplicação, não resta dúvida de que
sua sistematização teve desdobramentos não apenas no campo
específico do Direito de Guerra, materializado no 2
o
Protocolo,
mas também em outras instâncias da proteção ao patrimônio.
É importante, do ponto de vista brasileiro, manter o
equilíbrio de ação na comunidade internacional em todas as
vertentes do processo destinado à proteção da propriedade
cultural, participando dos processos negociadores e
implementando as obrigações e deveres das convenções das quais
é signatário. País tradicionalmente engajado em articulações que
visam à distensão e ao desarmamento, cabe igualmente manter
atuação coerente em nível multilateral, participando nos processos
e decisões relativos à proteção do patrimônio cultural em caso de
conflito armado.
49
3. CONVENÇÃO DE 1970
CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO
DE BENS CULTURAIS
Em 1970 a Conferência-Geral da UNESCO aprovou o
texto final da Convenção sobre as Medidas que Devem ser
Adotadas para Impedir e Proibir a Importação, a Exportação e
a Transferência de Propriedades Ilícitas de Bens Culturais.
Noventa e cinco países são hoje Estados-Partes da Convenção,
entre eles, no grupo conhecido como países importadores, os
Estados Unidos (1983). O Brasil (1973) e a grande maioria dos
países exportadores aderiram à Convenção ainda na década
de 70. Entre os importadores que se recusam a aceitar o texto,
destacam-se Suíça e Alemanha. Embora relutantes, ratificaram a
Convenção a França (1997), a Inglaterra (2002) e o Japão (2002).
A Convenção de 1970 é um instrumento jurídico
estabelecido a partir do interesse dos países em desenvolvimento,
tradicionalmente vítimas de pilhagens de bens culturais. Resultou
de longa discussão que visa consolidar a noção de proteção ao
patrimônio no comércio de bens culturais e reconhecer
implicitamente a especificidade de cada contexto que caracteriza
um determinado patrimônio e a legitimidade de cada país em
protegê-lo.
Como antecedentes, em 1956, mencione-se a
Recomendação da Conferência-Geral da UNESCO sobre
Princípios Internacionais que Deverão Aplicar-se a Escavações
50
Arqueológicas. Voltada para a regulamentação da pesquisa
arqueológica, a Recomendação inclui dispositivos sobre
escavações ilegais e comércio ilícito de bens. Em 1964, a
Conferência acordou Recomendação diretamente ligada à
questão do comércio ilícito de bens culturais. E em 1968, decidiu
a Recomendação sobre medidas para a proteção de patrimônio
móvel (Askeroud, Clément, 1997, p. 143-157).
O texto traz em seu bojo vinculação entre patrimônio e
identidade nacional, pois
as criações arquitetônicas, estátuas e frisos, monólitos, mosaicos,
cerâmica, pinturas esmaltadas, máscaras e objetos de jade,
marfim e incrustações de ouro  na verdade, tudo aquilo que
foi roubado, desde os monumentos até o artesanato  são mais
do que decorações e ornamentos (...) são testemunhos da
história, a história da cultura de uma nação cujo espírito é
regenerado e perpetuado por eles (MBow apud Askeroud,
Clément, 1997, p. 61).
Como se vê nas palavras de seu antigo diretor-geral,
Amadou MBow,
1
a UNESCO procurou traduzir uma ansiedade
dos países recém-descolonizados em fundamentar os atributos
de suas nacionalidades.
Hoje, não resta dúvida de que a Convenção exerceu
inegável influência na conscientização do problema e no combate
ao tráfico ilícito de bens culturais. O aumento do número de
museus, vinculados ao turismo cultural; a publicidade conferida
aos leilões de obras-de-arte e antigüidades, inclusive pela Internet;
o incremento da demanda por antigüidades, em particular as
provenientes da África e da Ásia; e a vulnerabilidade de algumas
regiões instáveis  como Afeganistão, Camboja e Tibet  a roubos
1
Amadou Mahtar MBow foi diretor-geral da UNESCO entre 1970 e 1988.
51
e pilhagens do patrimônio cultural e histórico;
2
indicam a
atualidade e a pertinência da Convenção de 1970 que, embora
limitada ao campo do Direito Internacional Público e válida para
os Estados que a ratificaram, foi instrumento pioneiro e é o
marco legal de referência em relação ao tráfico ilícito de bens
culturais.
3.1 COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO DA
CONVENÇÃO
Com um total de 26 artigos, a Convenção tenciona não
apenas definir os limites do comércio lícito, regulando a
exportação e a importação dos bens culturais, como também
estimular os Estados-Partes a reforçar o controle interno do
mercado de bens culturais. Por controle interno entende-se
estabelecimento de legislação adequada, penalidades a roubos e
saques de sítios arqueológicos e promoção de cooperação
internacional para intercâmbio de informações. À UNESCO
compete articular-se com os Estados de modo a viabilizar
capacidades nacionais de implementação da Convenção e a
coordenar contatos com outras organizações internacionais,
como a Interpol e a Organização Mundial de Aduanas. Frise-se
2
A título de exemplo, mencionem-se Sur la piste du trésor des rois afghans
(Le Figaro Magazine, 12/8/2000) e o editorial, na primeira página, do Le Monde,
de 28/2/2001, intitulado En Afghanistan, les talibans font aussi mourir les
statues, ambos sobre a dispersão e a destruição do patrimônio cultural e
artístico naquele país, em particular do acervo de estátuas budistas de
inspiração greco-romana do Museu Nacional do Afeganistão. Em março de
2001, a destruição das gigantescas estátuas do Buda Bamiyan gerou extensa
cobertura na imprensa internacional. A pilhagem e o tráfico de antigüidades
na região prosseguem, como indica o artigo Saving the antiquities (Newsweek,
14/5/2001). A respeito da pilhagem do acervo tibetano, A Culture in urgent
need of repair (Financial Times, 13/8/2000).
52
ainda a participação ativa do International Council of Museums
(Icom) como organização auxiliar na implementação e
publicidade da Convenção.
3
O artigo 1º define patrimônio cultural de forma ampla: a
expressão patrimônio cultural, como diz o texto, significa
propriedade que, para cada Estado, com base em motivos religiosos
e seculares, possui valor arqueológico, pré-histórico, literário,
artístico ou científico. Os objetos culturais são divididos em 11
categorias. Três dessas categorias (itens c, d e e) referem-se a
antigüidades, que incluem produtos de escavações arqueológicas,
elementos resultantes de desmembramentos de monumentos
artísticos, históricos ou arqueológicos e objetos que tenham mais
de cem anos, como inscrições, moedas e selos gravados. O item g
define, em quatro subcategorias, os bens de interesse artístico, sem
limite de tempo. Quanto ao mobiliário, objeto do item k, fica
estipulado prazo mínimo de cem anos para a proteção da Convenção.
O artigo 4º amplia ainda mais a definição de patrimônio
cultural, prevendo situações em que um Estado possa considerar
algum bem como parte de seu patrimônio, mesmo que não tenha
sido produzido por seus nacionais.
Os artigos 6º e 7º lidam com a exportação e a importação do
patrimônio cultural. Como aponta Patrick J. OKeefe (1997, p. 23),
a drafting history da Convenção explica as interpretações diferentes
entre alguns países sobre a operacionalização jurídica do texto, em
especial sobre o que é requerido de fato aos Estados no que se
refere à importação de bens culturais, objeto do artigo 7º.
Alguns países, como o Canadá e a Austrália, preferem
referir-se ao curto e incisivo artigo 3º como central no texto. Nele
é definido que são ilícitas a importação, a exportação e as
3
O Icom tem publicado a série Cent Objets Disparues/One hundred Missing Objects,
que detalha, com fotos e descrição pormenorizada, bens culturais roubados
em Angkor, Camboja (duas edições, 1993 e 1997), América Latina (1997) e
África (1994 e 2000).
53
transferências de propriedade de bens culturais que se efetuem
infringindo as disposições acordadas pelos Estados na Convenção.
A essa interpretação mais geral opõe-se a visão minimalista dos
Estados Unidos, que entende que o artigo 7º é o principal
parâmetro para a interpretação, na medida em que dispõe sobre a
proibição de importação de bens roubados, exprimindo com
detalhes as obrigações dos Estados onde se situa o importador.
Registre-se que os norte-americanos têm papel relativamente ativo
na implementação do instrumento, como será desenvolvido abaixo.
A Convenção requer dos Estados a proibição de exportar
bens do patrimônio cultural sem a emissão de certificado de
exportação apropriado. Como a medida é de difícil aplicação pelos
Estados exportadores à luz de problemas estruturais, que vão
desde a inexistência de registros de bens culturais a dificuldades
de controle alfandegários, a Convenção prevê obrigações para os
Estados com respeito à educação da população e dos servidores
públicos (artigo 10), à criação de inventário cultural e à
promulgação de legislação adequada (artigo 5º).
Finalmente, o artigo 8º estipula que os Estados estão
obrigados a impor sanções penais ou administrativas aos
responsáveis por infringir as proibições relativas à exportação
(artigo 6º, alínea b) e importação (artigo 7º, alínea b).
Antes de examinar os desdobramentos da Convenção fora
do âmbito da UNESCO, cabe mencionar que a Conferência-
Geral estabeleceu em 1978 um Comitê Intergovernamental para
a Promoção do Regresso do Patrimônio Cultural aos seus Países
de Origem, órgão adjunto da Conferência, formado por
representantes de 22 Estados, com eleições realizadas a cada dois
anos, renovando-se metade dos representantes. O Comitê atua
como conselheiro e fórum de negociações para casos envolvendo
países que não aderiram à Convenção e para questões que tenham
ocorrido antes da entrada em vigência do instrumento. É nesse
Comitê que são discutidos casos de difícil solução, inclusive
aqueles que envolvem países não-signatários da Convenção,
54
como o pleito levantado pela Grécia, referente ao retorno dos
frisos de mármore do Partenon atualmente em exibição no
British Museum, em Londres.
4
3.2 CONSEQÜÊNCIAS
Talvez a principal conseqüência da Convenção tenha sido
uma progressiva
mudança de atitude. Ao adotar esse instrumento, a comunidade
internacional aplica uma pressão moral, não apenas sobre aqueles
preocupados com a proteção do patrimônio cultural, mas também
sobre aqueles que tratam de objetos culturais, mesmo em Estados
que não fazem parte da Convenção (Clément, 1995, p. 255).
A adoção, por vários museus, em países desenvolvidos, de
códigos de ética para aquisição a de bens culturais, inspirados no
Código de Ética Profissional adotado pelo Icom em 1986, é
indicativo dessa tendência.
No plano jurídico, o desdobramento mais importante foi a
celebração, em 1995, da Convenção Unidroit sobre Objetos
Culturais Roubados ou Ilegalmente Exportados, negociada desde
1984 a pedido da UNESCO no âmbito do Instituto Internacional
para a Unificação do Direito Privado, organização
intergovernamental com 57 países sediada em Roma. O objetivo
foi complementar a Convenção de 1970, de modo a melhor
enquadrar o mercado de arte, conferindo uma maior transparência,
e obrigando os diferentes atores a demonstrarem mais clareza e
responsabilidade nas transações (De Roux, Paringaux, 1999, p.
313). Dada a diversidade e a precariedade das legislações nacionais,
4
Comite Intergouvernemental pour la promotion du retour de biens culturels a leur pays
dorigine ou de leur restitution en cas dappropriation illégale, Dixième Session, Rapport
du Secrétariat, Paris, 25-28 janeiro de 1999, documento da UNESCO.
55
que não obrigam os comerciantes de arte a revelar os
proprietários anteriores de um objeto antes de vendê-lo, a
Convenção da Unidroit estipulou que o detentor de um bem
roubado ou pilhado deve não apenas devolver o objeto ao seu
legítimo proprietário  como, de resto, previsto na Convenção de
1970 da UNESCO, artigo 7º  mas que, para receber uma
indenização equivalente, a qual pode não ser necessariamente
igual ao preço pago, deve provar que tomou todas as precauções
e coletou informações disponíveis para assegurar-se da origem
do objeto e, portanto, do caráter legal da transação (Askeroud,
Clément, 1997, p. 51).
A Convenção da Unidroit estendeu a proteção contra o
comércio ilícito do patrimônio cultural ao Direito Internacional
Privado, utilizando, aliás, a mesma categorização ampla de bem cultural
empregada na Convenção da UNESCO. Os países importadores
tendem a ver na Convenção da Unidroit uma tentativa equivocada
de regular o mercado de arte internacional. O referido instrumento
entrou em vigor em 1998, depois da ratificação de cinco Estados.
Até novembro de 2002, ratificaram ou acederam apenas 18 países,
inclusive o Brasil (1999), mas nenhum dos chamados
importadores. Entre os países europeus com fortes mercados de
arte, a Itália foi o único que ratificou, enquanto na França e na
Suíça o assunto é ainda objeto de debate no Parlamento e na opinião
pública (De Roux, Paringaux, 1999, p. 315-318).
Vale mencionar, também quanto aos desdobramentos da
Convenção de 1970 da UNESCO, o Anexo XI da Convenção de
Nairobi da Organização Mundial de Aduanas (WCO) (1977), que
trata da cooperação entre aduanas no marco das ações contra o
tráfico de obras-de-arte, antigüidades e outras formas de
propriedade cultural. Pelo Anexo foi estabelecido um diretório
central de informações sobre comércio ilícito de bens culturais,
tendo em vista intercâmbio de informações com a UNESCO e
com a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol).
Esta, com escritórios nos 177 países que a integram, participa
56
regularmente dos workshops organizados pela UNESCO sobre
roubo e tráfico ilícito de bens culturais, além de outras ações, como
se pode verificar no seu site na Internet.
5
Finalmente, registre-se, em nível regional, a Convenção
sobre a Defesa do Patrimônio Arqueológico, Histórico e Artístico
das Nações Americanas, conhecida como Convenção de São
Salvador, negociada no âmbito da OEA e concluída em 1976, além
de instrumentos como a Convenção para Retorno de Objetos
Arqueológicos, Históricos e Artísticos dos Países Centro-
Americanos (1995), e a Decisão 460 sobre Proteção e Recuperação
de Bens Culturais da Comunidade Andina (1999).
3.3 OS ESTADOS UNIDOS E A CONVENÇÃO DE
1970 DA UNESCO
Os Estados Unidos são o único país de expressão, importador de
arte, a ratificar a Convenção. Nossa legislação competente, a
Convenção sobre a Lei de Implementação de Propriedade
Cultural, autoriza o Presidente a receber solicitações de outros
Estados-Partes que procuram os órgãos de controle de importação
dos EUA sobre certos materiais arqueológicos ou etnográficos
(Kourupas, 1995, p. 232).
Tais palavras, proferidas em 1995 por representante da
Agência de Informação dos Estados Unidos (Usia), indicam o
interesse de Washington na Convenção, embora negociada e
avalizada por uma organização internacional, a UNESCO, da qual
não fazem parte desde 1984. Na Declaração emitida quando da
ratificação, em 1983, consta que, com base nas boas relações
exteriores, devem os norte-americanos prestar assistência aos países
que solicitam retorno de bens culturais roubados ou pilhados.
5
http://www.interpol.int/
57
Trata-se do maior mercado de arte no mundo, de um país
tradicionalmente defensor do livre comércio, que inclusive resiste
à ratificação da Convenção da Unidroit. Mas quanto à Convenção
de 1970 da UNESCO são os Estados Unidos, sem dúvida, atuantes,
embora continuem sendo provavelmente o maior importador ilícito
de bens culturais, dada a dimensão de seu mercado. Em 1983, no
mesmo ato que regulamentou a Convenção no plano interno, foi
criado um Comitê de Consulta sobre Bens Culturais, composto
de nove pessoas, entre representantes de museus, arqueólogos e
peritos em mercado de arte.
O Comitê assessora o presidente na resposta às solicitações
dos Estados-Partes da Convenção e a Usia processa os pedidos.
A partir de recomendações do Comitê restringiram-se
importações de bens culturais de diversos países, como Bolívia
(têxteis Aymará de Coroma), Guatemala, Canadá, São Salvador
e Malí. Com o Peru foi celebrado Memorandum de
Entendimento específico, em 1997. A publicação La prevención
del tráfico ilícito de bienes culturales  Un manual de la UNESCO para
la implementación de la Convención de 1970 relaciona, da página 291
à 300, essas iniciativas. Estão em curso negociações bilaterais,
com objetivos análogos, com a China e o Canadá.
Sublinhe-se ainda que alguns casos de importação ilícita de
bens históricos e arqueológicos tiveram grande repercussão na
imprensa norte-americana, como o relativo aos têxteis Aymará,
tecidos de uso religioso comprados por vias duvidosas (De Roux,
Paringaux, 1999, p. 155-169). Outro caso, embora não tendo sido
objeto de medida do Comitê, mas sem dúvida influenciado pela
Convenção de 1970, foi a devolução, pelo prestigioso Metropolitan
Museum of Art, do tesouro de Lydie, coleção de centenas de objetos
pilhados em tumbas durante os anos 60, em Usak, na região da
Anatólia Central, Turquia. Depois de resistir 25 anos à pressão do
governo turco e submeter-se a longo processo judicial, o MET,
como é conhecido o museu de New York, acabou cedendo e
devolvendo as peças, em 1993, creditando o erro da compra a um
58
funcionário de escalão inferior. Em 1981, Thomas Holving (apud
De Roux, Paringaux, 1999, p. 261), diretor do MET entre 1967
a 1977, declarou em livro de sua autoria que na sua gestão o
MET havia comprado mais objetos contrabandeados do que
qualquer outro museu, até a adoção da Convenção da UNESCO
de 1970.
3.4 O BRASIL E A CONVENÇÃO DE 1970 DA
UNESCO
A legislação brasileira, por meio do Decreto-Lei nº 72.312/
73, promulgou a Convenção de 1970, da UNESCO.
Anteriormente, o comércio ilícito de bens culturais fora objeto
da Lei nº 4.845/65, que regulava a saída de obras-de-arte e de
peças de interesse histórico, científico e etnográfico. Para peças
de mais de cem anos, era necessária a autorização do Conselho
do Patrimônio, vinculado ao, então, Sphan. Em 14 de agosto de
1992, o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (hoje Iphan)
publicou a Portaria nº 262, na qual ficou vedada a saída do Brasil
de bens tombados, obras-de-arte e peças de interesse histórico
e cultural produzidos no Brasil ou no exterior (desde que tenham
aspectos brasileiros como tema) até o fim do período imperial.
Autorizações para casos excepcionais, além de seis meses, ficam
a critério do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
O Brasil é tido como um exportador incipiente de bens
culturais, pois o tráfico ilícito no Brasil ocorre, principalmente,
dentro de suas próprias fronteiras (Horta, 1996, p. 46).
Internamente, colecionadores e antiquários estimulariam roubos
de peças, sobretudo em igrejas e pequenos museus de cidades
do interior, mas a quantidade exportada ainda seria considerada
pequena. A listagem de peças roubadas na América Latina
publicada pelo Icom em 1997, relaciona, entretanto, sete peças,
59
a maior parte do período barroco (Des Portes, 1997, p. 52-56).
Uma das peças listadas, reproduzida em publicação feita por
ocasião do trigésimo aniversário da Convenção, é um diadema
da tribo Kaapor, roubado do Museu Emílio Goeldi, no Pará, em
1995. O problema não atinge proporções maiores em razão do
espaço limitado que as obras brasileiras ocupam no mercado
internacional de arte e antigüidades.
A importação de bens culturais também não representa,
no mercado brasileiro, volume comparável ao dos países
desenvolvidos e mesmo alguns de países asiáticos. Não obstante,
como a expansão dos negócios internacionais de objetos
artísticos e culturais afigura-se irreversível a julgar pelos dados
disponíveis das últimas décadas (a cifra de transações das duas
principais casas leiloeiras, Sothebys e Christies, aumentou cerca
de 800% entre os anos fiscais 1979-1980 e 1989-1990).
6
é de se
esperar que o mercado brasileiro aumente também seus números
(Askeroud, Clément, 1997, p. 25).
Se agregarmos ainda a possibilidade de utilização do
território brasileiro como rota alternativa de contrabando, não
resta dúvida de que a Convenção de 1970 e os demais
instrumentos de controle ao tráfico ilícito de bens culturais 
como a Convenção da Unidroit  são úteis e importantes para o
País. A única lacuna, nesse contexto, está no fato de que o país
não se inclui, ainda, entre os 38 países que aderiram à Convenção
de Nairobi da Organização Mundial das Aduanas.
6
Segundo cifras obtidas pela Divisão do Patrimônio da UNESCO, a Sothebys
passou de um volume de negócios de cerca de 242 milhões de libras em
1979-1980 para quase 2 bilhões em 1989-1990; e a Christies, no mesmo
período, aumentou de 25 milhões de libras para 168 milhões. Nesta última
verificou-se que a maioria das vendas foi feita nos Estados Unidos, na
Inglaterra e na Suíça.
60
3.5 CONCLUSÃO PARCIAL
Segundo Patrick OKeefe (1997, p. 1),
Parece haver uma demanda crescente por antigüidades; não apenas
por aquelas de qualidade destinada a museus mas, em sentido mais
amplo, por aquelas próprias para decoração. Sob as atuais condições,
isso só pode levar ao roubo das coleções e, de maneira mais
significante, ao agravamento de uma já ampla destruição de sítios e
monumentos importantes para a história da humanidade.
O mercado de arte, que abarca desde antigüidades até
produções contemporâneas, possui um vigor evidente, sobretudo
nos países de elevada renda per capita. À necessidade política e
social de os Estados legitimarem-se pela guarda e exibição dos
objetos culturais, sobrepõe-se o desejo dos colecionadores
individuais: os colecionadores se vêem como prestadores de um
serviço público ao reunirem lindos objetos produzidos por
criadores do passado (OKeefe, 1997, p. 3).
José Gonçalves (1996, p. 25) identifica, nas coleções, um
mecanismo compensatório:
é a distância espacial ou temporal em relação àquilo que eles
(os objetos) significam  que pode ser o passado, o popular, o
primitivo, o exótico, o autêntico  que os faz desejáveis, e,
conseqüentemente, alvos de práticas de apropriação, restauração
e preservação (...) tais práticas são estruturalmente articuladas
por um desejo permanente e insaciável pela autenticidade,
pela autenticidade que é efeito de sua própria perda.
Malgrado as boas intenções, a aventura espiritual que se atribuem
os colecionadores pode estar fundada, voluntariamente ou não, em
roubos e pilhagens
7
(OKeefe, 1997, p. 3-4). O fato é que os objetos
7
Sobre pilhagens e casas de leilões, a publicação de Peter Watson (1997) denuncia
relações entre pilhagens de antigüidades e casas de leilão. Registre-se ainda o caso
do futuro Museu do Quai de Branly, em Paris, dedicado às artes primeiras, cuja
61
que circulam no mercado de arte possuem alto grau de elasticidade
econômica, à luz dos fatores muitas vezes difusos que ocorrem na
formação de preços do setor, que incluem aspectos de difícil
previsibilidade, desde a subjetividade dos colecionadores até o
interesse especulativo dos intermediários. Ademais, note-se que a
relação entre a fixação de preços no mercado de arte, por meio de
leilões e galerias, e a lavagem de dinheiro praticada pelo crime
organizado pode ser, a julgar-se pela imprensa e por publicações
investigativas sobre o assunto, um fenômeno de proporções cada
vez mais graves (De Roux, Paringaux, 1999, p. 48).
A Convenção de 1970 da UNESCO constitui o primeiro
esforço relevante em ordenar o comércio de bens culturais e assim
contribuir para a proteção do patrimônio, em particular o das
nações menos favorecidas. Sua eficácia, sobretudo em nível estatal,
como museus e entidades públicas voltadas para a cultura,
mostrou-se, apesar das dificuldades, pontual e positiva.
8
Seus desdobramentos, tanto os referentes à Convenção da
Unidroit, quanto os demais instrumentos internacionais e legislações
nacionais, vieram confirmar a oportunidade da ação normativa da
UNESCO. Embora não tenha como meta o retorno de todos os objetos
roubados ou pilhados ao seu país de origem, tarefa evidentemente
impossível, a Convenção, além de ter gerado uma mudança de atitude,
permitiu que fossem criados os elos entre os países que perderam o
rastro de seus tesouros, principalmente na África e na Ásia, e os países
importadores (Bouchenaki
9
apud De Roux, Paringaux, 1999, p. 324).
Contribuiu, enfim, para a delimitação da legalidade no mercado de
obras-de-arte e antigüidades, proporcionando melhor proteção e, em
conseqüência, favorecendo o acesso público ao patrimônio cultural.
inauguração está prevista, pelo governo francês, para 2003, e que contaria com
peças provenientes de pilhagens na Nigéria, compradas em mercado clandestino,
conforme matéria publicada no Le Monde, em 18/11/2000, intitulada Jacques
Chirac critiqué au sujet des arts premiers devant LUNESCO.
8
O site da UNESCO relaciona casos em que a Convenção foi utilizada com êxito
(http://www.unesco.org/culture/legalprotection/index.html).
9
Mounir Bouchenaki, ex-chefe da Divisão de Patrimônio da UNESCO, atualmente
é diretor adjunto para Cultura.
63
4. PROCESSO EM CURSO PARA O
ESTABELECIMENTO DE
CONVENÇÃO SOBRE
PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL SUBAQUÁTICO
O desenvolvimento de novas tecnologias para a exploração
do fundo do mar, a popularização dos esportes submarinos, a
ação predatória dos caçadores de tesouros e a demanda crescente
do mercado de antigüidades são os principais fatores a estimular
a criação de mecanismos de proteção ao patrimônio cultural
subaquático. No plano interno, diversos são os países que dispõem
de legislação, inclusive o Brasil.
1
A entrada em vigor da Convenção
da Lei do Mar da ONU (Unclos), em 16 de novembro de 1994,
ensejou a negociação pelos Estados, no âmbito da UNESCO, de
instrumento internacional para a proteção de bens culturais
localizados nos oceanos.
Depois de quatro encontros e longos debates, de 1998 a
2001, a 31
a
Conferência-Geral da UNESCO aprovou, em
novembro de 2001, o texto da nova Convenção, que entrará em
vigor após a vigésima ratificação. Trata-se de desdobramento da
política de proteção ao patrimônio na UNESCO, direcionada para
o espaço subaquático. Note-se que os Estados Unidos, fora da
1
Lei nº 7.542, de 26/7/1986, alterada pela Lei nº 10.166, de 27/12/2000. A
Norma nº 10/2000, do Comando da Marinha, relaciona as Normas da
Autoridade Marítima para Pesquisa, Exploração, Remoção e Demolição de
Coisas e Bens Afundados, submersos, encalhados ou perdidos.
64
UNESCO desde 1984, compareceu a todas as reuniões de peritos
governamentais na qualidade de observador, sem direito a voto,
mas sempre com delegação numerosa. A quarta reunião, que
contou com cerca de trezentos participantes, só logrou acordar
texto final da Convenção depois de três semanas de negociação.
Embora a necessidade de proteção ao patrimônio
subaquático afigure-se indiscutível, fato que fundamenta o esforço
da UNESCO em ampliar a aplicação do conceito de proteção para
outros domínios, é difícil prever como e quando se dará a efetiva
implementação da Convenção. Na sessão da Conferência-Geral
que tratou do assunto, uma minoria de países desenvolvidos
indicou dificuldades em ratificar o texto caso este fosse adotado
por votação com maioria simples, como preconizam os estatutos
da UNESCO, o que terminou ocorrendo. A votação final registrou
87 votos a favor, 4 contra (Turquia, Grécia, França, Federação
Russa e Reino Unido) e 15 abstenções, inclusive do Brasil.
O principal ponto de discórdia gira em torno do tema da
jurisdição do patrimônio subaquático, em particular aquele
localizado na plataforma continental. De um lado, Estados
costeiros tencionam assumir papel primordial na coordenação do
controle das atividades relacionadas ao patrimônio, enquanto, de
outro, as chamadas potências marítimas insistem no princípio
de liberdade de ação fora das águas territoriais.
À luz da geografia do País e da participação brasileira no
longo processo negociador da Unclos, é desnecessário ressaltar o
interesse nacional no assunto, sobretudo no que se refere a aspectos
ligados à plataforma continental e à zona econômica exclusiva.
2
2
O Brasil depositou instrumento de ratificação da Unclos em 22 de dezembro
de 1988. Conforme a Convenção do Mar, os Estados Costeiros exercem
soberania integral no Mar Territorial de 12 milhas náuticas; exercem soberania
com respeito a recursos naturais e a certas atividades econômicas nas duzentas
milhas náuticas da Zona Econômica Exclusiva; e exercem soberania também na
exploração econômica, sob circunstâncias específicas, de até duzentas milhas
náuticas da Plataforma Continental, contadas a partir da costa.
65
4.1 ANTECEDENTES
Em 1956, as Recomendações da UNESCO sobre Princípios
Internacionais Aplicáveis a Escavações Arqueológicas incluíram
os sítios subaquáticos, embora apenas aqueles localizados em águas
territoriais e no interior dos países, em rios e lagos.
3
No final de década de 80, a Associação de Direito
Internacional (ILA), iniciou estudos visando à elaboração de
acordo internacional. Em 1995, a Conferência-Geral aprovou
resolução solicitando ao diretor-geral organizar uma reunião de
especialistas, em cooperação com a ONU e a Organização
Marítima Internacional, a fim de compatibilizar a evolução do tema
na UNESCO com a complexa estrutura jurídica já implantada.
No ano seguinte o Icomos concluiu a Carta Internacional sobre a
gestão do patrimônio subaquático, definindo os parâmetros de
pesquisa arqueológica e preservação de bens e sítios submersos.
Finalmente, em 1997, convencidos de que caberia um instrumento
internacional para regular a proteção do patrimônio, os Estados-
Membros da UNESCO solicitaram que fosse organizado o
primeiro encontro de peritos governamentais, realizado em 1998.
Vale igualmente mencionar o tratamento que o tópico
obteve no âmbito do Direito do Mar. Em 1958, na Conferência
de Genebra, primeiro evento internacional no Pós-Guerra sobre
o assunto, o patrimônio subaquático foi excluído das quatro
Convenções sobre Lei do Mar ali produzidas (Brown, 1997). A
Unclos III, conferência da ONU que concluiu a Convenção da
Lei do Mar, em 1982, dedicou dois dos seus 320 artigos ao
patrimônio cultural. Apesar de insuficientes, obtidos por meio de
solução de compromisso entre visões distintas e acordados no final
da Conferência, os artigos, o 149 e o 303, foram determinantes
3
Conferência-Geral da UNESCO, 28
a
sessão, 1995, item 7.6 da agenda
provisória, citada por Clément (1996, p. 313).
66
para impulsionar o debate em torno do tema no âmbito da
UNESCO (Maarleveld, 1998, p. 214; Prott, Planche, Roca-
Hachem, 2000). Tal aspecto foi claramente reforçado depois da
entrada em vigor da Unclos, em 1994 (Clément, 1996, p. 310).
O artigo 149, composto de um só parágrafo, versa sobre
Objetos históricos e arqueológicos, enquanto o artigo 303, com
quatro parágrafos, recebeu o título Objetos históricos e
arqueológicos encontrados no mar.
Segundo Maarleveld (1998, p. 204-217), a dificuldade de se
elaborar um instrumento internacional sobre patrimônio
subaquático já é visível nos parâmetros desses curtos e vagos
artigos da Unclos: a definição de patrimônio cultural é incompleta,
pois foi utilizada a limitada noção de objetos em vez de sítios
arqueológicos, assim como foi enfatizado o controle do tráfico
de tais objetos, quando teria sido preferível regulamentar os
procedimentos de escavação. Outro ponto particularmente
controverso foi a menção, no artigo 303, da prática consuetudinária
da lei do salvamento.
É importante distinguir o controle da escavação
arqueológica, baseado em critérios técnicos de preservação do
patrimônio, da lei do salvamento, em vigor sobretudo nos países
anglo-saxões. Lastreada em pragmática lógica econômica, a lei
assegura um percentual àqueles que recuperam bens ameaçados
de perda em caso de afundamento da embarcação, o qual pode
chegar a 90% do total do que lograrem salvar. A extensão
automática dessa prática ao patrimônio cultural subaquático seria
inaceitável para muitos países, pois poderia legitimar e incentivar
a exploração predatória de sítios de valor histórico, uma vez que a
indústria do salvamento atua sob a motivação do lucro
(Johnston, 1993, p. 394; Prott, Planche, Roca-Hachem, 2000).
Nos Estados Unidos, a despeito de a Lei de Navios
Naufragados Abandonados, assinada pelo presidente Reagan em
1987, ter encorajado a proteção de sítios e parques históricos
subaquáticos, a exemplo de algumas legislações européias, diversos
67
casos terminaram sendo decididos judicialmente, com resultados
diversos (Maarleveld, 1998, p. 204-217). De um lado, estão os
caçadores de tesouros, como é conhecido o setor da indústria
de salvamento dedicado ao patrimônio cultural; de outro, museus
e arqueólogos. Os primeiros têm sido favorecidos, dado seu poder
financeiro e a tolerância de agências reguladoras norte-americanas,
sobretudo em nível estadual (Johnston, 1993, p. 398; Meide, 1997).
A Convenção negociada na UNESCO, que envolve países
desenvolvidos, dotados de recursos e equipamentos para pesquisa, e
países em desenvolvimento, com dificuldades para implementar por
si sós a proteção ao patrimônio subaquático, confronta-se igualmente
com a questão. O Brasil enfrenta situação semelhante, tendo, em um
primeiro momento (em 1986) adotado legislação restritiva à pesquisa
e à exploração de bens submersos de valor artístico, de interesse
histórico ou arqueológico. Em dezembro de 2000, porém, foi
promulgada uma nova lei que altera os artigos sobre esse aspecto da
legislação anterior. O Comando da Marinha considera que uma
previsão de ressarcimento poderia dinamizar a pesquisa e a exploração
arqueológica no Brasil, hoje em nível muito reduzido.
Voltando à Lei do Mar da ONU, ressalte-se que, no que
se refere à jurisdição, o artigo 303 limita-se a tratar da soberania
do Estado Costeiro apenas na zona contígua, não abordando os
demais aspectos. Sublinhe-se que o tema da jurisdição na
plataforma continental e na zona econômica exclusiva foi objeto
de complexa e delicada negociação na Unclos, como se pode
observar na Parte XIII da Convenção do Mar, relativa à pesquisa
científica marinha. Malgrado as lacunas relativas ao patrimônio
subaquático, o quarto parágrafo do artigo 303 deixa em aberto a
possibilidade de que novos instrumentos internacionais venham
a preencher áreas não cobertas, pois esse artigo [303] não
prejudica outros acordos internacionais e normas de direito
internacional relativo à proteção de objetos de natureza
arqueológica e histórica. Tal abertura, no entender do
representante da Itália, é indicativa da atmosfera que tornou
68
possível a Unclos e, em si mesma, um estímulo para que novo
entendimento fosse articulado com vista à Convenção sobre
Proteção do Patrimônio Subaquático.
A seguir serão examinados desdobramentos mais recentes
desse processo negociador.
4.2 PRINCIPAIS PONTOS EM DISCUSSÃO
Após a Segunda Reunião de Peritos Governamentais, em
1999, o Secretariado da UNESCO recolheu comentários de 17 países
ao projeto de texto e elaborou quadro sinóptico para ser utilizado
como documento de base na terceira reunião. Esse quadro foi
atualizado para a quarta reunião  analisada no próximo item 
acrescentando-se contribuições resultantes do terceiro encontro e
sugestão de texto para negociação, elaborado pelo presidente de
todas as reuniões, o dinamarquês Carsten Lund.
4
Esses documentos
fornecem resumo detalhado das divergências, permitindo obter 
por meio de breve comparação e observações colhidas durante a
terceira reunião  visão geral das posições dos diversos atores.
Podemos identificar, grosso modo, duas cisões entre os
negociadores. A primeira diz respeito à competência sobre o
patrimônio encontrado na plataforma continental e zona econômica
exclusiva, ou seja, como equacionar a jurisdição sobre as
descobertas.
5
No grupo dos países que defendem a jurisdição do
4
(UNESCO, 2000). Encaminharam comentários Argentina, Austrália, Canadá,
Egito, Finlândia, França, Grécia, Itália, Japão, México, Holanda, Nova Zelândia,
Noruega, Espanha, Suécia, Inglaterra e Uruguai. O segundo documento é o
CLT-2001/CONF.203/INF.3  Fourth Meeting of governmental experts on the draft
Convention on the protection of the underwater cultural heritage  consolidated working
paper, de março de 2001.
5
Referindo-se às duas primeira reuniões na UNESCO, o Report do secretário-
geral da ONU sublinhou: As grandes diferenças nessas reuniões versaram
sobre a questão de jurisdição sobre o patrimônio cultural subaquático em
zona econômica exclusiva ou na plataforma continental dos Estados. A maioria
69
Estado Costeiro, destacam-se a Argentina, o Canadá e a Austrália,
dentre os mais vocais, e a maioria dos países, com tonalidades
distintas, inclusive o Brasil. No segundo grupo, integrado, com
pequenas variações, pela Noruega, Reino Unido, Alemanha, Países-
Baixos, Japão e Estados Unidos  este na qualidade de observador
 , entendia-se que não caberia determinar jurisdição sobre o
patrimônio encontrado fora das águas territoriais, devendo o Estado
Costeiro e o Estado sob cuja bandeira filia-se a embarcação que
efetua as pesquisas partilharem o controle e a propriedade do
patrimônio recuperado. Itália, Grécia e Espanha situam-se, embora
com diferenças, em estágio intermediário.
A segunda cisão refere-se ao grau de tolerância com a
exploração comercial do patrimônio subaquático encontrado e ao
percentual a ser retido obrigatoriamente pelo Estado em cuja
jurisdição se acha o patrimônio. Os Estados Unidos e a Inglaterra,
sobretudo o primeiro, com grande número de empresas e institutos
voltados à pesquisa submarina, apoiaram uma proposta mais liberal,
de modo a incentivar os agentes privados. A principal resistência
encontrava-se, além dos arqueólogos representados pelo Icomos,
nos países onde a atividade de pesquisa é coordenada e financiada
principalmente pelo Estado, como Espanha, Itália, Grécia e
Portugal. Para o Icomos, uma regulamentação excessivamente liberal
pode atrair exploradores sem habilitação suficiente para, do ponto
de vista científico, gerenciar escavações arqueológicas.
O quadro sinóptico preparado pela UNESCO para a terceira
reunião apresentou, para os artigos 5º e 7º, três opções para tratar
diretamente da jurisdição. A primeira reafirma a primazia dos
Estados Costeiros e as demais propõem, de formas distintas, a
partilha da responsabilidade sobre o patrimônio descoberto.
dos especialistas apoiou a jurisdição de Estados costeiros (...) já que, em sua opinião,
isso estava de acordo não apenas com a Unclos, mas também com o
desenvolvimento estimulado pela Unclos. Parágrafo 524 do Relatório do Secretário-
Geral da ONU, 54
a
sessão da Assembléia-Geral, 30 de setembro de 1999.
70
Na Terceira Reunião de Peritos Governamentais, ainda no
ano 2000, o tema foi objeto de acirrado debate, com seguidas
referências a provisões da Unclos e à Autoridade Internacional
dos Fundos Marinhos (ISBA), criada em 1994, depois da entrada
em vigor da Unclos. Aos Estados Costeiros afigurar-se-ia aceitável
a solução que contemplasse algum tipo de mecanismo de
cooperação entre as partes, desde que mantida sua palavra final.
Não obstante, alguns países, como a Noruega, assumiram posições
francamente partidárias da liberdade marítima e manifestaram
preocupação com qualquer tipo de ampliação da jurisdição dos
Estados Costeiros.
6
Na leitura de vários atores envolvidos nas negociações, a
questão da jurisdição é central para que seja obtido compromisso
entre as partes. Mesmo o problema da liberdade comercial, que dividiu
os participantes na terceira reunião, poderia ter sua negociação
facilitada caso se encontrasse a fórmula da soberania do patrimônio
subaquático. O projeto de texto preparado inicialmente pelo
Secretariado da UNESCO compões-se de 25 artigos e um anexo
com 36 regras. Alguns itens, como a vinculação de acordos regionais
à Convenção, a regulamentação da proteção em rios e lagos, as
atividades que afetam incidentalmente o patrimônio, além de
adaptação aos parâmetros da Unclos, permaneceram como pontos
polêmicos, porém negociáveis. Algo mais difícil, mas também
superável, foi a questão dos navios de guerra, que acarretou intensos
debates, sobretudo por iniciativa espanhola.
Houve consenso em outros aspectos, como o prazo
mínimo de cem anos para um bem ser considerado patrimônio
6
A Noruega foi representada no encontro pelo diretor do Departamento de
Assuntos Legais do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Bastante ativo na
reunião, o diretor levantou dúvidas quanto à necessidade de uma Convenção
internacional para o patrimônio subaquático, entendendo que bastava um
protocolo adicional à Unclos, e questionou a pertinência da UNESCO como
instância multilateral de negociação sobre o tema.
71
cultural subaquático. O anexo, balizado por recomendações do
Icomos, trata de regras técnicas relativas a procedimentos
arqueológicos, tendo sido praticamente acordado durante a
terceira reunião, à exceção da cláusula relativa à exploração
comercial mencionada acima.
Ainda durante a Terceira Reunião, a delegação espanhola
propôs aos países ibero-americanos a celebração de um Convenio
para la Protección del Patrimonio Cultural Subacuático Comum,
instrumento pelo qual a Espanha procurava assegurar um canal
privilegiado em relação ao patrimônio subaquático de origem
hispânica, sobretudo os galeões e seus carregamentos valiosos. O
tema foi objeto de gestões em várias instâncias, e a reação inicial
dos países indica que dificilmente possa ser negociado qualquer
instrumento antes de concluída a Convenção internacional.
Preocupada com o avanço da capacitação técnica dos caçadores
de tesouros, a Espanha quer garantir a proteção desse patrimônio
por meio de um entendimento regional ou mesmo bilateral, uma
vez que a Chancelaria espanhola já havia proposto acordos com o
Uruguai, a Colômbia, a República Dominicana e o Panamá. O
tratamento especial a navios de guerra incluído no Convênio é
outro fator que dificulta o entendimento.
Ao Brasil foi também proposto instrumento bilateral, depois
da Terceira Reunião. Note-se que a delegação portuguesa não foi
consultada sobre a sugestão espanhola de Convênio com a
Comunidade Iberoamericana de Naciones.
4.3 A QUARTA REUNIÃO SOBRE PROJETO DE
CONVENÇÃO
A Quarta Reunião, como assinalado, levou três semanas (em
duas etapas, março e julho de 2001) para concluir as negociações.
Embora tenha representado progresso considerável em relação
aos três encontros anteriores, na medida em que chegou a um
72
texto ainda em tempo de ser aprovado pela 31
a
Conferência-Geral,
não foi possível aos peritos governamentais chegar a um consenso
sobre a questão da jurisdição, decidindo-se por meio do voto. A
natureza das divergências nesse particular foi o motivo da votação.
A decisão foi frustrante, em certa medida, uma vez que as
regras de procedimento aprovadas no início do encontro acenavam
com a possibilidade do voto desde que esgotadas as tentativas
de consenso. A preferência  aprovada na votação final e
consagrada no texto  aglutinou-se em torno de sugestão
apresentada pela Argentina, Austrália e Canadá, refeita e endossada
por mais nove países. A proposta visou substituir os artigos 10 e
11 do texto consolidado de trabalho preparado pelo presidente
do encontro, criando mecanismo de notificação e coordenação
entre os Estados-Partes da Convenção. Os objetivos são assegurar
a proteção ao patrimônio subaquático e delegar ao Estado Costeiro
o papel principal na condução das atividades na plataforma
continental e zona econômica exclusiva.
As demais delegações não previram em suas propostas
nenhum direito preferencial aos Estados Costeiros referente ao
patrimônio subaquático localizado na plataforma continental e zona
econômica exclusiva. A Noruega, no espectro oposto, enfatizou a
necessidade de cumprimento e obediência às regras técnicas
do Anexo pelos atores interessados, deixando explícita, contudo, a
liberdade de qualquer Estado-Parte efetuar pesquisas.
Além do Estado Costeiro e do Estado de Bandeira  país
ao qual filia-se a embarcação de pesquisa , demonstraram
interesse também em compartilhar a coordenação das atividades
de pesquisa os Estados que dispõem de um elo verificável,
histórico ou cultural, com o patrimônio subaquático. A Espanha
insistiu nesse ponto, propondo emenda  apoiada, entre outros,
pela Federação Russa, Estados Unidos, Reino Unido, Japão,
Suécia e Alemanha  pela qual seria estabelecido um conceito
amplo de Embarcações e aeronaves do Estado, que incluiria
não apenas navios de guerra, mas todas embarcações e aeronaves
73
operadas ou de propriedade de um Estado quando do
afundamento. A delegação portuguesa alinhou-se entre as mais
ativas na oposição à emenda  que foi afinal rechaçada , por
considerar que ela introduziria uma noção de propriedade
desnecessária e inadequada para os propósitos da Convenção.
O conceito de elo verificável, tomado no âmbito mais restrito,
foi, por outro lado, aceito por consenso.
No que se refere às regras do Anexo, logrou-se obter
consenso sobre a possibilidade de ressarcimento financeiro para
o pesquisador do patrimônio subaquático, por meio de
entendimento articulado entre a Itália e a Irlanda.
Sublinhe-se, ainda, que a Espanha propôs-se a entabular
entendimentos com os países do Grupo Latino-Americano e
Caribe (Grulac), nos primeiros dias da reunião, com vista a possível
acordo regional. Registre-se que aquele país, apesar das diversas
tentativas, não conseguiu firmar ainda nenhum instrumento
bilateral com os países da região. O encontro não se realizou, à
luz das divergências, não apenas no que toca ao tema da jurisdição,
mas também quanto à proposta espanhola de navios de guerra. A
Convenção aprovada prevê, entretanto, a possibilidade de que
acordos regionais e bilaterais venham a ser celebrados, respeitados
os parâmetros do instrumento original.
Sobre o item relativo a navios de guerra, para o qual México
e Portugal sugeriram eliminação pura e simples, foi elaborada
fórmula de consenso, pela Espanha e Argentina, aceitável para a
maioria do plenário. Uma vez aceita, eliminou-se o último
obstáculo para a votação do texto.
O texto acordado na Quarta Reunião de Peritos
Governamentais terminou sendo adotado integralmente na 31
a
Conferência-Geral da UNESCO. O Brasil, em razão de dúvidas
quanto a questões de soberania previstas na Constituição, optou
por incluir-se entre os que se abstiveram. Possível assinatura e
retificação brasileira do instrumento deverão ser objeto de
discussão e entendimento entre os diversos setores interessados,
74
do Comando Naval ao Ministério da Cultura e ao Itamaraty,
cabendo ao Congresso Nacional a decisão final.
4.4 INTERESSE BRASILEIRO E CONCLUSÃO
PARCIAL
Com uma costa de mais de 8.500 km, a maior rede hidrográfica
do mundo e uma tradição náutica que, por um lado, remonta a
uma das maiores aventuras do homem na Terra (as Grandes
Navegações) e, por outro, se manifesta num dos mais
diversificados conjuntos de embarcações populares, o Brasil está
assistindo passivamente ao desaparecimento desse importante
patrimônio cultural (Lopes, Serra, Maureau, 1990, p. 6).
7
O alerta do Serviço do Patrimônio da Marinha é
pertinente. As operações de resgate de navios afundados têm
se revelado altamente lucrativas, malgrado o alto custo que as
caracteriza. Um caso típico é o da Web page eBay, especializada
em vendas de objetos artísticos, que iniciou, em setembro de
2000, uma série de leilões online de milhares de peças de
porcelana produzidas na região do Vietnã nos séculos 15 e 16,
até então desconhecidas do mercado de arte.
8
Recuperadas
a partir de 1993, quando foi localizada a embarcação Hoi An,
as peças deverão gerar dezenas de milhões de dólares, a exemplo
de tesouros anteriores encontrados no Sudeste asiático e no
Mar da China. O governo vietnamita reteve apenas 10% da
descoberta, de acordo com informação da empresa que efetuou
7
A publicação foi realizada pela Archenave  Comissão de Arqueologia, História
e Etnografia Naval  e pelo Sphan/Pró-Memória. Sublinhe-se que o caso mais
notável até hoje em termos de patrimônio subaquático no Brasil foi a descoberta
da nau Sacramento, no litoral próximo a Salvador, na década de 80.
8
O site www.eBay.com, na rubrica Treasures from the Hoi An Hoard, previu
prazo de três a cinco meses para o leilão, a partir de setembro de 2000.
75
a operação. Caso não o fizesse, corria o risco de perder o
tesouro para grupos de exploradores ilegais que ameaçavam
o local, ainda segundo a informação da eBay. Do ângulo da
UNESCO, um décimo seria muito pouco para o Estado
Costeiro, sobretudo quando se trata de obras que integram seu
patrimônio cultural.
As porcelanas de origem asiática são um dos alvos
principais dos caçadores de tesouros. Mesmo no Brasil, na
Baía de Guanabara, estima-se existir rico acervo de porcelana
chinesa, que viajava para a Europa a bordo da nau portuguesa
Rainha dos Anjos, naufragada em 1722.
9
A proteção do
patrimônio subaquático defronta-se, portanto, com um mercado
de antiguidades ávido, uma tecnologia de sensoriamento cada
vez mais acurada e caçadores com alcance global.
10
Quando
Jacques Cousteau popularizou o uso do Scuba, aparelho de
mergulho inventado na 2ª Guerra Mundial, a divisão do trabalho
entre arqueólogos e mergulhadores tornou-se distinta, com o
primeiro suposto em aportar conhecimento erudito para a
classificação dos objetos (Maarleveld, 1998, p. 207). Hoje a maior
parte da exploração orienta-se pelo lucro, apesar das exceções,
ameaçando a integridade dos sítios arqueológicos e
comprometendo a pesquisa científica.
11
9
A nau transportava o enviado papal Carlo Mezzabarba de volta da China. A
informação é de explorador que contactou a Divisão do Patrimônio da
UNESCO, em janeiro de 2000, a fim de solicitar recursos para pesquisa.
10
(William, 1997, p. 13). O artigo narra a trajetória de Bob Marx, filho de Groucho
Marx e caçador de tesouros, que trabalhou em 62 países e looked at em cerca
de 2.500 navios afundados, boa parte na América Latina e no Caribe.
11
As matérias LAtlandide des Andes (Le Figaro, 25/8/2000), sobre vestígios de
uma civilização pré-inca no lago Titicaca, e Black Sea Discovery Evokes Biblical
Story of Noah (Herald Tribune, 14/9/2000), sobre restos de embarcações no
Mar Negro, são exemplos do potencial de pesquisa arqueológica. Em alguns
casos, os arqueólogos sugerem o isolamento da área onde foram encontrados
vestígios, tendo em vista escavação futura com mais recursos e tecnologia.
76
O pesquisador Donald Keith
12
elaborou um modelo,
baseado em método da indústria petrolífera para dimensionamento
de jazidas, com vista a estimar o número de sítios e navios
afundados ainda a serem descobertos. Segundo o estudo, e
levando-se em conta o número de sítios explorados, mantida a
atual taxa de pesquisa e prevendo-se evolução tecnológica
compatível, estariam esgotadas em cerca de quarenta anos as
possibilidades de novos achados. Embora hipotético, tal dado
reforça a percepção de que a conclusão da Convenção sobre o
Patrimônio Cultural Subaquático afigura-se inadiável. Além da
necessidade de disciplinar a pesquisa submarina, a Convenção, ao
introduzir mecanismo regulador que permite a todos os Estados,
sobretudo os Costeiros, participar das descobertas, promoverá
distribuição mais eqüitativa dos benefícios culturais advindos dos
tesouros do fundo do mar.
Ao Brasil, a Convenção importa tanto no aspecto da
arqueologia subaquática, no âmbito de museus e órgãos
governamentais ligados ao patrimônio, quanto na sua pertinência
em relação à jurisdição da zona econômica exclusiva e da
plataforma continental, cuja vigilância é de responsabilidade da
Autoridade naval. Podemos inferir que o interesse brasileiro na
Convenção de Proteção ao Patrimônio Cultural Subaquático vai
além do aspecto específico da proteção ao patrimônio, na medida
em que o novo instrumento contribuirá para consolidar aspectos
jurisdicionais estabelecidos pela Unclos. Cabe, agora, iniciar o
debate interno para verificar o momento adequado e a
oportunidade da adesão brasileira ao novo instrumento.
12
Keith, Donald, Going, going  Gone ! Texto inédito incluído em Prott, Planche
e Roca-Hachem (2000, p. 265-279), com publicação prevista no The Manual
for Historical Archeology, Majesky and Orser Editors.
77
5. AÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO
INTANGÍVEL OU IMATERIAL
Os quatro primeiros capítulos examinaram, além de conceitos
introdutórios, as Convenções de Proteção ao Patrimônio Cultural
em caso de Conflito Armado e contra o Tráfico Ilícito de Bens, em
vigor, e a Convenção de Proteção ao Patrimônio Cultural Subaquático,
recém-aprovada. No Capítulo 6 abordaremos as Reservas da Biosfera,
primeiro ensaio da UNESCO com vista à conservação do patrimônio
natural. Posteriormente, será revista a Convenção do Patrimônio
Mundial, de 1972. Resta um aspecto do patrimônio cultural em que a
UNESCO  embora ainda não tenha patrocinado codificação de
instrumento específico  atua desde 1952, com o objetivo de articular
ações em escala internacional: trata-se do patrimônio intangível ou,
conforme a notação da legislação brasileira, imaterial.
No âmbito da Organização, o texto mais abrangente,
resultado de longas negociações, encontra-se nas Recomendações
sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, aprovadas na
Conferência-Geral de 1989. A 31
a
Conferência-Geral da UNESCO
autorizou o diretor-geral da Organização, em novembro de 2001, a
convocar reuniões de peritos governamentais para negociação com
vista à futura Convenção de Proteção ao Patrimônio Intangível.
A primeira reunião ocorreu em setembro de 2002.
As Recomendações de 1989 serviram de base para que a
UNESCO criasse, em 1998, a premiação intitulada Proclamação de
78
Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade,
prevista para aprovar apenas uma candidatura por país, de dois em
dois anos. A Proclamação, cuja primeira seleção realizou-se em 2001,
resultou de empenho especial do atual diretor-geral da UNESCO,
Koichiro Matsuura, que assumiu o cargo em novembro de 1999. A
iniciativa não exclui a possibilidade de que venha a ser negociada
convenção internacional específica sobre patrimônio intangível 
ou seja, a Proclamação insere-se na estratégia da Organização de
retomar o foco sobre o tema com vista à futura ação normativa.
O Brasil, a exemplo de numerosos países, preocupou-se
em proteger as tradições de sua cultura popular, desde a
Constituição até a regulamentação em Decreto. Na Carta de 1988,
o artigo 216 estabelece que o patrimônio cultural brasileiro é
constituído de bens de natureza material e imaterial, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da identidade brasileira.
Em 18 de agosto de 2000, o presidente da República assinou
o Decreto nº 3.551, instituindo o Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria
o Programa Nacional do Patrimônio e dá outras providências. A
simultaneidade das duas ações, nos planos interno e externo, torna
particularmente oportuno para o Brasil acompanhar os
entendimentos na UNESCO.
Antes de examinarmos o histórico do assunto na UNESCO,
convém transcrever a mais recente e ampla definição de patrimônio
intangível adotada na Organização (2000):
A totalidade das criações de base tradicional de uma comunidade
cultural, expressadas por um grupo ou por indivíduos e reconhecidas
como o reflexo das expectativas de uma comunidade na medida em
que refletem sua identidade cultural e social; seus padrões e valores
são transmitidos oralmente, por imitação ou por outros meios. Suas
formas são, entre outras, língua, literatura, música, dança, jogos,
mitologia, rituais, hábitos, artesanato, arquitetura e outras artes. Além
desses exemplos, serão levadas em conta também, as formas
tradicionais de comunicação e informação.
79
5.1 EVOLUÇÃO DO TEMA NA UNESCO
A definição da UNESCO incorpora aspectos
tradicionalmente ligados ao conceito de patrimônio intangível,
como artesanato popular e dança e, virtualmente, à toda forma de
saberes e fazeres
1
transmitidos culturalmente no âmbito das
comunidades. Resulta de reavaliação ocorrida no âmbito das
ciências humanas, sobretudo na antropologia e nos estudos
multiculturais, do estudo das tradições culturais populares e sua
transmissão. Tal processo exerceu clara influência em quase meio
século de debates na UNESCO. O relato que se segue examina os
desdobramentos institucionais da discussão sobre o tema, em
particular a paulatina separação entre as questões gerais do folclore
e os aspectos da propriedade intelectual a ele associados.
No ano de 1952 foi adotada a Convenção Universal do
Direito do Autor (em inglês, Universal Copyright Convention),
que estabeleceu, pela primeira vez, os parâmetros de proteção a
direitos autorais, em consonância com a Convenção de Berna,
voltada para a proteção de obras artísticas e literárias. No plano
nacional, diversos países, em especial os africanos e latino-
americanos, passaram a adotar a legislação de Direito do Autor
como forma de proteger manifestações folclóricas.
2
Em 1967, a possível relação entre folclore e copyright foi
discutida durante a Conferência de Estocolmo sobre a Convenção
de Berna, com o objetivo de criar mecanismos internacionais de
proteção a expressões folclóricas. Tendo em vista a dificuldade
conceitual do tema, os negociadores preferiram acrescentar o
1
A expressão é de Mário de Andrade, em seu anteprojeto para o Iphan, em
1936 (apud Fonseca, 1997, p. 172). Aloísio Magalhães, diretor do Sphan em
1979-1981 retomou a expressão, conforme depoimento de Joaquim Falcão,
membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan, ao autor.
2
(Sherkin, 1999). A autora considera que a adoção da Convenção Universal do
Direito do Autor, em 1952, marca o início do intimate, international relationship
between copyright and folklore.
80
artigo 145 como provisão genérica à Convenção. Embora esse
artigo seja o único registro de intenção codificada em nível
internacional sobre proteção ao folclore, nele não é mencionada
a palavra folclore. O texto refere-se ao caso de obras não
publicadas onde a identidade do autor é desconhecida e prevê
apenas que a legislação do país de origem designará a autoridade
competente para representar o autor e proteger e fazer cumprir
seus direitos nos países da União.
Em 1972, depois da conclusão da Convenção do Patrimônio
Mundial, a Bolívia submeteu pedido para que fosse estabelecido
um Protocolo específico sobre patrimônio imaterial, não tendo
obtido consenso.
3
Uma das razões foi a dificuldade de conciliar
propósitos de proteção com propriedade intelectual. No decorrer
da década de 70, a UNESCO, além de promover dois encontros
sobre tradição oral, manteve consultas com o Comitê
Intergovernamental do Direito do Autor, órgão da Universal
Copyright Convention, e com o Comitê Executivo da Convenção
de Berna, com vista a equacionar a proteção internacional do
folclore no âmbito do Direito do Autor.
Não obstante os esforços e o empenho político dos
Estados-Membros da UNESCO, sobretudo os latino-americanos,
africanos e asiáticos, o tema foi considerado pelos dois Comitês
como sendo basicamente cultural, fora do alcance do campo de
proteção do Direito do Autor. Embora houvesse consenso de que
manifestações folclóricas precisam de proteção, seria irrealista
supor uma solução baseada em acordo internacional, com
provisões pensadas para aplicação comercial, como é o caso do
copyright, incompatíveis com obras pertencentes à tradição popular
e sem autoria definida.
3
(Sherkin, 1999, p. 4). Segundo a autora, a motivação da Bolívia, um país dos
mais ativos em relação ao tema do patrimônio intangível na UNESCO, pode
estar fundado no sucesso comercial da canção andina El condor pasa, gravada
por músicos ocidentais (sic) no início dos anos 70.
81
Configurava-se uma divisão entre os dois modos de
tratamento, que iria se acentuar nas décadas seguintes. A partir
do final dos anos 70, as duas organizações passaram a tratar do
assunto com óticas distintas, demarcando dois campos conceituais:
o primeiro refere-se à questão geral do folclore, que inclui desde a
compreensão do fenômeno até políticas de preservação e
revitalização, preocupação própria do mandato da UNESCO; o
segundo, ligado ao aspecto da propriedade intelectual das manifestações
folclóricas, caracterizou-se como tema da Organização Mundial
da Propriedade Intelectual (Ompi).
A exemplo da década anterior, foi intensa a atividade sobre
o tema, com reuniões de peritos e decisões do Conselho-Executivo
e da Conferência-Geral da UNESCO, ocorridas nos anos 80.
Em 1982, UNESCO e Ompi organizaram reunião de peritos
governamentais, sobre os aspectos da propriedade intelectual do
folclore, a fim de desenhar modelos de legislação nacional de
proteção às expressões da cultura popular, sobretudo no que toca
à exploração econômica e à cobrança de direitos, objetivo afinal
não alcançado.
4
Em 1984 realizou-se a última reunião à qual a
Ompi se associou como co-organizadora. Apesar de se dispor
participar de encontros futuros, a Ompi alegou, para se recusar a
co-patrocinar novo conclave em 1985, que reuniões conjuntas
sobre aspectos da propriedade intelectual das expressões
folclóricas só fariam sentido quando a questão da preservação do
folclore tivesse sido esclarecida.
Para a UNESCO, ficou claro que os esforços deveriam se
concentrar na questão geral do folclore  tema ainda relativamente
novo, amplo e à espera de maior precisão metodológica  para
viabilizar metas e propostas em relação ao assunto.
4
Segundo Sherkin, embora o resultado do encontro tenha sido fruitful,
nenhum Estado-Membro da UNESCO adotou a legislação sugerida.
82
Embora não fosse essa a posição inicial da maioria dos
Estados-Membros, prevaleceu a visão de que a proteção ao folclore
não deveria ser considerada do ponto de vista do Direito do Autor,
já que a maior parte do material folclórico estava no âmbito do
domínio público e, portanto, fora do contexto comercial, objeto
da Universal Copyright Convention. O formato da ação normativa,
que tendia para uma Convenção, passou para um nível menos
comprometedor, algo que não criasse obrigações e deveres.
Utilizou-se, então, a forma de Recomendação, que precisaria apenas
de aprovação da Conferência-Geral. Com efeito, em 1989, o órgão
máximo deliberativo da UNESCO aprovou as Recomendações
sobre a Salvaguarda de Cultura Tradicional e Folclore.
5.2 AS RECOMENDAÇÕES DE 1989 E AS AÇÕES
PRESENTES
Separado o aspecto da propriedade intelectual, que, de certa
forma, impedia o progresso do tema, a UNESCO pôde então
desenvolver um tratamento interdisciplinar para o patrimônio
intangível, elegendo seis áreas prioritárias: definição, identificação,
conservação, preservação, disseminação e proteção. O principal
objetivo do texto de 1989 é recomendar aos Estados-Membros
que estabeleçam medidas legislativas para fins de salvaguarda do
folclore, observando os princípios e as medidas acordados na
Conferência-Geral. São enumeradas sugestões de políticas culturais
relativas à criação de inventários e de tipologias de manifestações
folclóricas; estabelecimento de arquivos e museus para o
patrimônio imaterial; estímulo à produção artística e à vinculação
do folclore com a educação; apoio à divulgação e ao intercâmbio
de tradições e experiências. Na seção dedicada à proteção,
sublinhou-se a importância das ações de proteção não ligadas a
aspectos de propriedade intelectual. Foram previstas medidas
concernentes à cooperação internacional.
83
As Recomendações, embora constituam a principal
referência internacional sobre o tema, não provocaram, de início,
uma reação ativa nos Estados-Membros. Alguns autores sustentam
que o texto necessita de definições mais acuradas e precisas,
sobretudo com o objetivo de torná-lo mais acessível e útil aos
interessados, como os próprios produtores culturais, pesquisadores
e funcionários ligados à proteção do folclore. Também a falta de
um mandato específico da UNESCO para implementar suas
provisões limitou a capacidade de a Organização encorajar e
promover ações em conjunto com outras entidades. Além disso,
a UNESCO teve sua autonomia financeira restringida a partir da
segunda metade da década de 80, com a saída dos Estados Unidos
(1984), fato que limitou a criação de novos programas. A
Proclamação de Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível
da Humanidade, por exemplo, está sendo custeada por recursos
extra-orçamentários, já que implica gastos como Organização de
reuniões, material de divulgação e assistência técnica de preparação
de candidaturas.
5
Em artigo recente, a responsável pela unidade de
patrimônio intangível na UNESCO, Norika Aikawa (1999, p. 2),
relaciona algumas modificações no cenário internacional que
teriam influenciado a renovação do interesse pelo tema. Com o
fim da Guerra Fria, os países egressos do comunismo
experimentaram drásticas mutações políticas e sociais, levando
os grupos étnicos que atingiram a independência a valorizar sua
identidade cultural como forma de afirmação política. A rápida
expansão da economia de mercado, em especial por meio das
novas tecnologias de informação, gerou uma percepção
5
O Documento 160 EX/15, de 15 de setembro de 2000, preparado para a
160
a
sessão do Conselho Executivo da UNESCO, relata as ações do diretor-
geral a fim de obter fundos público e privados para a Proclamação. O Japão,
país que atribui particular relevo à preservação do patrimônio intangível, é o
principal doador.
84
homogeneizante da cultura, estimulando nos Estados, sobretudo
nos que não fazem parte do núcleo desenvolvido do mundo
ocidental, um sentimento de retorno aos valores simbólicos
enraizados na memória coletiva de suas comunidades, como
forma de diferenciação e de valorização de sua identidade. Esse
novo contexto, se foi capaz de gerar novo estímulo para a
utilização das Recomendações de 1989, vem revelando, por outro
lado, as limitações do texto.
No decorrer da década de 90, a UNESCO organizou
encontros em nível regional na África, na Ásia e no Pacífico,
nos Estados árabes, na América Latina e no Caribe, culminando
com o Fórum Mundial para Proteção do Folclore, realizado na
Tailândia em 1997. Em 1999, igualmente articulada com reuniões
regionais, foi realizada conferência conjunta pela Smithsonian
Institution e a UNESCO para a reavaliação das Recomendações
de 1989, reforçando a percepção de que as mudanças geopolíticas
que se sucederam depois da Guerra Fria requeriam novos
instrumentos internacionais sobre o patrimônio intangível.
A necessidade de desenvolver um mecanismo normativo
de proteção à cultura tradicional e folclore foi reconhecida na 30ª
Conferência-Geral, em 1999, que aprovou resolução apresentada
pela República Checa, Lituânia e Bolívia, solicitando à Organização
que preparasse estudo sobre a viabilidade de instrumento standard-
setting para a proteção do patrimônio intangível.
A consultora Janet Blake (2001, p. 2) sugeriu cinco
alternativas para o exame dos Estados-Membros:
1) convenção internacional com nova abordagem para
responder às necessidades de proteção ao patrimônio
imaterial;
2) uma nova Convenção baseada na Convenção do
Patrimônio Mundial de 1972, ou seja, destinada a eleger
marcos especiais de referência, tal como são eleitos os
sítios do patrimônio mundial;
85
3) revisão da Convenção de 1972 para incluir patrimônio
intangível;
4) protocolo adicional à Convenção de 1972; e
5) nova Recomendação com previsão de medidas legais e
administrativas.
Seu relatório foi avaliado e a 31a Conferência-Geral, em 2001,
autorizou o início oficial dos entendimentos. Realizaram-se encontros
preparatórios, inclusive no Rio de Janeiro, em janeiro de 2002, e um
grupo de juristas designados pelo diretor-geral elaborou projeto de
convenção inspirado na Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial.
Em setembro realizou-se a Primeira Reunião de Peritos Governamentais
sobre o projeto, que esteve longe de alcançar consenso sobre aspectos
básicos do futuro texto, embora tenha apresentado rica troca de
percepções. Novo encontro está previsto para o primeiro semestre de
2003, mas a previsão de exame final do projeto na próxima
Conferência-Geral, em novembro de 2003, parece improvável.
5.3 CONCLUSÃO PARCIAL E PERSPECTIVAS
PARA O BRASIL
O tema do patrimônio intangível vem sendo tratado na
UNESCO praticamente desde o início das atividades da
Organização, motivado por interesse, sobretudo, dos países em
desenvolvimento. Malgrado as diversas iniciativas de regulamentação
internacional, a Organização não foi capaz, em um primeiro momento,
de articular instrumento normativo que servisse de referência para
ações de proteção e de preservação do patrimônio intangível. A
progressiva separação entre as questões gerais do folclore e o aspecto
da propriedade intelectual permitiu que o tema fosse abordado de
maneira mais precisa, evitando a complexidade decorrente de possível
aplicação de Direito do Autor. As Recomendações de 1989, embora
de pouco efeito prático, indicaram o quadro inicial de ação da UNESCO.
86
Por outro lado, evolução paralela das Ciências Humanas
nesse período concorreu para uma modernização do conceito de
patrimônio intangível, tornando-o mais amplo, dinâmico e
integrado nas comunidades de origem, evitando a chamada
folclorização do patrimônio.
No âmbito da UNESCO, a expectativa dos Estados-
Membros é de que seja iniciada negociação de uma Convenção
que incorpore o sistema de Proclamação de Obras-Primas do
Patrimônio Intangível posto em prática no ano 2000, ao mesmo
tempo em que exerça ação normativa de preservação e conservação
em consonância com a legislação nacional.
Estudiosos da matéria chamam a atenção para a diferença
dos níveis de proteção dos patrimônios tangível e intangível
(Berryman, 1991, p. 10). Enquanto o primeiro beneficia-se de
aparato variado  as convenções celebradas no âmbito da
UNESCO, objeto da presente monografia, são a face internacional
desse conjunto , para o segundo ainda não se chegou à
formalização jurídica compatível. Uma nova etapa institucional
em relação ao tema iniciou-se no Brasil, a partir da publicação do
Decreto nº 3.551/00. Cabe ao país integrar-se ao esforço que a
UNESCO coordena, a fim de sintonizar sua política cultural com
a nova fase pela qual atravessa o tema na comunidade das nações.
Sublinhe-se que o decreto brasileiro evitou tratar da questão do
Direito do Autor, concentrando seus objetivos na regulamentação
do registro e do inventário do patrimônio imaterial.
6
A nova legislação nacional cria quatro Livros de Registro
de bens imateriais do patrimônio cultural  dos Saberes, das
Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares. Por não
tencionar estabelecer algo rígido ou imutável, está prevista a revisão
periódica das designações a cada dez anos. Trata-se de instrumento
6
Depoimento de Joaquim Falcão, integrante da Comissão Patrimônio Imaterial,
na qual foi proposto o decreto, ao autor.
87
que visa a constituir um inventário das tradições populares como
estratégia para dinamizar sua conservação e transmissão.
7
Nas
palavras de Aloísio Magalhães (apud Fonseca, 1997, p. 171), o
acervo imaterial constitui-se de uma
vasta gama de bens  procedentes sobretudo do fazer popular 
que, por estarem inseridos na dinâmica viva do quotidiano, não
são considerados como bens culturais nem utilizados nas
formulação das políticas econômica e tecnológica. No entanto, é
a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e
se descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade.
Participar das atividades da UNESCO no âmbito do
patrimônio imaterial  não apenas do Programa Proclamações de
Obras-Primas, cujo prazo para novas candidaturas vai até 2002,
mas também das negociações internacionais com vista ao
estabelecimento de uma Convenção sobre Patrimônio Intangível
 afigura-se, portanto, oportuno e compatível com a política
cultural brasileira, em especial no que toca ao registro de bens
culturais imateriais. Associar-se a essas iniciativas permitirá o
acréscimo da esfera internacional à proteção interna, além de
proporcionar oportunidades de interação com os esforços de
proteção nos diversos contextos nacionais.
7
Ver a publicação de Sant´Anna (2000) em que são relacionados artigos, atas de
reunião, antecedentes e o projeto legislativo referente ao Decreto nº 3.551/2000.
89
6. O HOMEM E A BIOSFERA:
UM CONCEITO DINÂMICO DE
PATRIMÔNIO
Antes de examinarmos a Convenção do Patrimônio Mundial,
de 1972, convém informar um bem-sucedido programa de
conservação do patrimônio natural estabelecido na UNESCO a
partir de 1971: O Homem e a Biosfera, conhecido pela sigla em
inglês, MAB. Distinto das demais ações de proteção ao patrimônio,
ligadas ao Setor de Cultura, o MAB tem seu secretariado anexo à
Divisão de Ecologia, área de Ciências. No âmbito deste trabalho, o
programa pode ser classificado como um desdobramento da política
de proteção levada a cabo pela UNESCO.
Voltadas à conservação da biodiversidade, à promoção do
desenvolvimento sustentável e à manutenção de valores culturais
associados ao uso de recursos biológicos, as reservas são zonas
delimitadas no interior dos países e internacionalmente
reconhecidas pelo Programa MAB. Cada uma delas tem por
objetivo cumprir três funções complementares:
1) conservar os recursos genéticos, espécies, ecossistemas
e paisagens;
2) estimular o desenvolvimento sustentável, social e
econômico; e
3) apoiar projetos demonstrativos, de pesquisa e educação,
na área de meio ambiente.
90
O programa celebra 31 anos em 2002 com números
consideráveis: 425 reservas da biosfera em 95 países.
Muitos dos sítios naturais inscritos na lista do Patrimônio
Mundial  70 em 42 países  estão dentro de reservas da biosfera,
geralmente maiores em tamanho. A inscrição na lista do patrimônio
obedece a critérios estabelecidos na Convenção de 1972, relativos
ao valor excepcional e universal que determinado sítio apresenta
e que o qualifica como patrimônio da humanidade. Saindo do
âmbito da UNESCO, sublinhe-se que 71 áreas em 44 países são
designadas total ou parcialmente como reservas e,
simultaneamente, como sítios da Convenção de Terras Úmidas,
conhecida como Ramsar.
Escolhidas com base em parâmetros científicos que vão
além do objetivo da proteção, as reservas tencionam desenvolver
um modelo de gestão unindo governos e sociedades locais com
vista a implementar as três funções citadas acima. A seleção é
feita a partir de propostas dos Estados-Membros, seguida de
avaliação por comitê de especialistas que assessora o MAB.
Anualmente, durante a reunião do Conselho Internacional de
Coordenação do programa, composto por representantes dos
Estados, são designadas novas reservas. Participam desse processo
comunidades locais, organizações não-governamentais,
autoridades e peritos em questões ambientais.
As reservas são áreas regidas pelas legislações nacionais dos
países, e devem incluir três esferas de zoneamento. A primeira é a
zona central (core zone, conforme terminologia inglesa empregada
pelo MAB), um ou mais núcleos que abrange áreas previamente
protegidas, como parques nacionais ou estaduais, reservas
biológicas públicas ou privadas, estas últimas desde que
reconhecidas por lei específica. As zonas centrais voltam-se
sobretudo à pesquisa e conservação.
A segunda é a zona de amortecimento (buffer zone), que
prevê, além de ações educacionais, iniciativa econômicas com
utilização limitada de recursos para desenvolvimento de
91
comunidades locais. E a terceira é a zona de transição (transition
areas), que admite atividades de maior monta, respeitadas as
condições naturais da região.
O Brasil possui seis reservas em seu território: Mata
Atlântica, Cinturão Verde de São Paulo, Cerrado, Pantanal,
Caatinga e Amazônia central. Algumas delas, como a do Pantanal
e Amazônia Central, estão entre as maiores reservas da rede. Será
examinada, a seguir, a evolução do programa no contexto das ações
internacionais na área do meio ambiente, bem como o caso
particular das reservas brasileiras.
6.1 A EMERGÊNCIA DE UM CONCEITO
Em 1968, em uma iniciativa pioneira sobre meio ambiente
no contexto internacional, a UNESCO promoveu a Conferência
Intergovernamental de Peritos sobre a Base Científica para o Uso
Racional dos Recursos da Biosfera. A Conferência da Biosfera,
como ficou conhecida, contou com a participação da ONU, FAO,
e de organizações não-governamentais, como a União Mundial
pela Natureza (IUCN). Com mais de trezentos delegados de
sessenta países, teve como principal conquista o reconhecimento
de que a utilização e a conservação dos recursos terrestres e
aquáticos teriam que ser equilibradas e proporcionais, e que
modelos interdisciplinares deveriam ser elaborados para atingir
tal meta. Esta teria sido a primeira ocasião, em encontro
intergovernamental, na qual foi empregada a idéia de
desenvolvimento sustentável.
1
1
(UNESCO. 2000). O pioneirismo da UNESCO na utilização do conceito de
desenvolvimento sustentável foi sublinhado igualmente pelo professor José Israel
Vargas, ex-presidente do Conselho Executivo da Organização e atual delegado
permanente do Brasil, em depoimento ao autor.
92
A Conferência da Biosfera precedeu em quatro anos a
reunião promovida pela ONU em Estocolmo, realizada em 1972,
considerada como a principal precursora da Conferência do Rio,
em 1992. Dentre as recomendações do encontro de 1968, constava
solicitação de que a UNESCO implementasse pesquisa sobre o
homem e a biosfera, indicando que o programa deveria levar em
conta problemas específicos dos países em desenvolvimento.
Nos anos seguintes, as discussões orientaram-se no sentido
de articular uma rede mundial de parques nacionais, reservas
biológicas e outras áreas protegidas, de modo a reforçar não apenas
a conservação desses sítios, mas também estimular iniciativas
educacionais e científicas.
Em 1971, na primeira reunião do Conselho Internacional
do Programa MAB, a expressão reservas da biosfera foi utilizada
para designar áreas de recursos logísticos básicos nas quais
experimentos poderiam ser conduzidos com fins de treinamento
e educação. Posteriormente, com a incorporação de contribuições
das Ciências Sociais, foi agregada dimensão socioeconômica ao
projeto, à luz da constatação de que o desenvolvimento das
condições da população do entorno da zona central era elemento
fundamental para o sucesso das reservas.
No decorrer da década de 80 o Programa MAB aperfeiçoou
o conceito de Reserva da Biosfera, diferenciando-o das demais
ações de proteção do patrimônio natural pela combinação do
objetivo básico de conservação como o uso de rede mundial de
reservas como base de pesquisa e intercâmbio, tendo em vista a
promoção do desenvolvimento e educação ambiental.
Com mais de duzentas reservas em 54 países, entretanto, o
programa teve sua capacidade financeira abalada com a saída dos
Estados Unidos e Inglaterra da UNESCO, em 1984, os quais,
apesar de continuarem participando dos diversos esquemas de
cooperação por meio dos Comitês Nacionais MAB, deixaram de
contribuir para o orçamento geral da Organização. Em 1990,
embora o número das reservas beirasse os trezentos, o nível de
93
qualidade era desigual dada a escassez de recursos em vários países,
desgastando assim a credibilidade de rede.
A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente,
realizada no Rio de Janeiro, em 1992, propiciou uma estrutura
jurídica internacional que delineou novas alternativas de ação com
vista ao desenvolvimento sustentável. As metas e os instrumentos
acordados durante a Conferência, sobretudo a Agenda 21 e as
Convenções da Diversidade Biológica e do Combate à
Desertificação, tiveram particular impacto no futuro das reservas
da biosfera, na medida em que estas, pela experiência acumulada na
aplicação de políticas integradas de conservação e desenvolvimento,
podem ser consideradas como um laboratório de implementação
de políticas de desenvolvimento sustentável, em particular no que
tange aos novos instrumentos acordados na Eco-92.
Em 1995 realizou-se, no contexto do MAB, a Conferência de
Sevilha, com o objetivo de atualizar o programa em relação ao novo
quadro institucional e redefinir prioridades tendo em vista um eficiente
aproveitamento do potencial da Rede Mundial de reservas. Com
representantes de mais de cem países e 15 organizações internacionais,
a Conferência produziu dois importantes documentos.
O primeiro é um Estatuto Legal que, apesar de não ser um
binding text, como são as Convenções, define princípios e critérios
de designação de novas reservas, prevê revisão periódica da lista a
cada dez anos e estabelece regras de funcionamento da Rede
Mundial. O segundo apresenta uma série de dez recomendações
conhecidas como Estratégia de Sevilha. Esta relaciona parâmetros
de gerenciamento das reservas e seus componentes, enfatizando:
1) a contribuição das reservas para a implementação dos
acordos internacionais relacionados com o meio ambiente;
2) ampliação do conceito para áreas urbanas e regiões costeiras;
3) fortalecimento de cooperação regional e inter-regional;
4) aplicação de modelos ecossistêmicos, em especial na
zona de transição;
94
5) aspectos culturais e humanos; e
6) reforço do papel das reservas na solução de conflitos de
interesses sociais e econômicos.
Em novembro de 1995, os Estados-Membros da UNESCO
aprovaram ambos os documentos, endossando formalmente as
decisões de Sevilha. A nova orientação teve impacto igualmente no
plano interno dos países, levados a reverem suas estratégias em
relação a cada reserva individual e à rede nacional. O Programa
MAB ampliou o escopo de suas atividades de intercâmbio,
procurando se articular com as demais instâncias administrativas
multilaterais em ação na segunda metade da década de 90, em
especial os secretariados das novas convenções geradas na Eco-92.
A percepção de que o conceito de reservas da biosfera
parece ter antecipado, em alguma medida, noções que informam
a Convenção da Diversidade Biológica (CDB)  e que fazem das
reservas um espaço sob medida para contribuir na implementação
da CDB  acrescentou consistência às ações do MAB. Em workshop
sobre o tema realizado em Bratislava em 1998 (Bridgewater, 1998),
por exemplo, os palestrantes abordaram aspectos característicos
das reservas e sua relação com a CDB, como monitoramento de
diversidade biológica e educação ambiental, além de examinar
experiências em reservas localizadas na Hungria, Eslováquia e Peru
à luz do instrumento acordado no Rio de Janeiro.
O documento mais significativo sobre o potencial de
cooperação veio à tona no início do ano 2000, produzido pelo
secretariado do MAB, que utilizou o modo de tratamento
ecossistêmico adotado pela Conferência das Partes da CDB no
contexto das reservas da biosfera (Bridgewater, 2000). Para ilustrar
cada um dos 12 princípios de gestão derivados do modelo
ecossistêmico, discutidos pelo órgão técnico subsidiário (SBSTTA,
conforme sigla em inglês) da CDB em fevereiro de 2000, a
publicação extraiu exemplos de ações implementadas nas reservas.
Discorrendo sobre cada um dos princípios, foram expostos o
95
processo de seleção que levou à escolha de uma ou mais reservas,
as justificativas científicas e sociais para a delimitação das zonas e
as aplicações do modelo de gerenciamento do Programa MAB.
Dessa forma, foi possível equacionar a série de iniciativas ocorridas
no contexto das reservas com as diretrizes do tratamento
ecossistêmico da CDB.
6.2 O CAPÍTULO BRASILEIRO DO MAB
A Lei nº 9.985  Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC), de 18 de julho de 2000, tratou,
em seu Capítulo VI, sobre as reservas da biosfera. A exemplo de
outros países, o Brasil incorporou em sua legislação o programa
O Homem e a Biosfera, definindo a reserva como
um modelo, adotado internacionalmente, de gestão integrada,
participativa e sustentável dos recursos naturais, com os objetivos
básicos de preservação da diversidade biológica, o
desenvolvimento de atividades de pesquisa, o monitoramento
ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento sustentável
e a melhoria da qualidade de vida das populações...
No artigo 4
o
indica-se que as reservas serão geridas por um
Conselho Deliberativo, formado por representantes de
instituições públicas, de organizações da sociedade civil e da
população residente, conforme se dispuser em regulamento e no
ato de constituição da unidade. Sublinhe-se que a tramitação do
projeto de lei que resultou no SNUC, que demorou oito anos e
foi objeto de longos debates e ampla consulta, veio a consolidar
um arcabouço normativo até então disperso e confuso.
2
2
José Sarney Filho, apresentação da brochura de divulgação do SNUC, editada
pelo MMA após a sanção da lei em outubro de 2000.
96
As unidades de conservação são divididas em dois grupos, de
Proteção Integral e de Uso Sustentável, o primeiro com cinco
subdivisões, entre as quais as reservas biológicas e os parques naturais,
e o segundo com sete. Dentre as últimas, ressalte-se as Áreas de
Proteção Ambiental (APA), criadas ainda na década de 70 pela antiga
Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), que assimilaram
conceitos básicos das reservas.
3
No SNUC, como assinalado, a reserva
da biosfera foi objeto de capítulo à parte, embora o ingresso de
Reserva brasileira na rede da UNESCO tenha se dado relativamente
tarde, em 1991, com a Reserva da Mata Atlântica.
Com cerca de 290 mil quilômetros quadrados, estendendo-
se por cerca de cinco dos oito mil quilômetros de costa brasileira, a
Reserva da Mata Atlântica atravessa quase mil municípios, do Rio
Grande do Sul ao Ceará. Sua Fase V  ou seja, a quinta ampliação
da área original  foi aprovada pelo Bureau do MAB em 2002.
Junto ao Ministério do Meio Ambiente funciona o Conselho
Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, que é composto
por 38 participantes em constituição paritária entre membros do
governo e da sociedade civil. Diversos Estados criaram, por sua vez,
Comitês Estaduais para gerir respectivas seções da área designada. A
homologação da reserva, ao acrescentar a chancela da UNESCO,
consolidou uma série de medidas tomadas nos anos 80 pelos Estados
de São Paulo e Paraná (Roca, Costa, 1998, p. 52). Apesar dos números
expressivos em termos de território e adesão institucional, é
importante notar que restam apenas 7% da cobertura original da
Mata Atlântica, situadas em partes fragmentadas e esparsas.
3
Conforme depoimento ao autor do ex-diretor do Ibama, Celso Schenkel, as
APAs foram propostas pelo então secretário Paulo Nogueira Neto, o qual teria
inicialmente tentado indicar, ainda no período militar, reservas da biosfera brasileiras
para o MAB/UNESCO. Tendo sido impedido de encaminhar o pedido, sob a
alegação de risco de ingerência de organismo internacional na soberania
brasileira, o secretário adaptou o conceito na regulamentação das APAs.
97
Em 1993 foram aprovadas mais duas reservas, a do Cinturão
Verde de São Paulo  incorporada à Reserva da Mata Atlântica 
e a do Cerrado, no Planalto Central. Esta última teve sua Fase III
homologada pelo Bureau do MAB em setembro de 2001. Na
mesma reunião, foram aprovadas as Reservas da Caatinga e
Amazônia Central.
A estratégia elaborada pelas autoridades ambientais brasileiras
prevê a criação de pelo menos uma reserva e um sítio natural do
patrimônio mundial para cada ecossistema brasileiro, como foi o
caso da Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal, Amazônia e Caatinga.
O caso do Pantanal é paradigmático, esperando-se que as indicações
reforcem o reconhecimento internacional dos esforços do governo
brasileiro em prol da conservação e manejo do seu patrimônio
natural. A estratégia baseia-se em expectativas de fluxo internacional
de recursos para cada região, em particular do BID.
4
A reserva do Pantanal inclui cerca de um terço das terras
úmidas do Pantanal e abrange regiões vizinhas dos principais rios
da área. A proposta conta com 15 zonas centrais, das quais
quatro são parques nacionais (Pantanal, Chapada dos Guimarães,
Emas e Serra do Bodoquena), três são parques estaduais, cinco
são reservas particulares e o restante são áreas protegidas sob
outras designações. Completam a reserva seis zonas de
amortecimento e uma zona contínua de transição, em um total
de mais de vinte milhões de hectares, nos Estados do Mato Grosso
4
Proposal for the Pantanal Biosphere Reserve, preparada sob a coordenação do
Ministério do Meio Ambiente, em outubro de 2000. Correspondências do
ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, datada de 31/10/2000, e do
secretário da Biodiversidade e Floresta do MMA, de 30/10/2000, ambas
dirigidas ao secretário do MAB, Peter Bridgewater, estimam que a designação
da reserva do Pantanal auxiliará na captação de recursos na ordem de 400
milhões de dólares, provenientes do BID, para programa de valorização,
proteção e uso sustentável daquela região.
98
e Mato Grosso do Sul. A proposta da Reserva do Pantanal só foi
oficializada após coordenação entre os Ministérios das Relações
Exteriores, Meio Ambiente, Transportes e Defesa, tendo em vista
a necessidade de acerto interno em relação às questões de
jurisdição, sobretudo nas áreas fronteiriças.
5
A Área de
Conservação do Pantanal, que inclui o Parque Nacional do
Pantanal, foi igualmente selecionada, poucos dias após, como sítio
do Patrimônio Mundial.
6.3 O FUTURO DO MAB
Com quase três décadas de existência, o Programa MAB
alcançou expansão considerável. Mais de 120 Comitês Nacionais
foram criados, compostos de representantes dos governos e
cientistas. Além da interação com as Convenções internacionais
na área ambiental, de importância crescente para o programa  e
da CDB e Desertificação, mencione-se a Ramsar, voltada à
proteção de terras úmidas  destaque-se a sinergia com a
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial.
Ao longo de sua existência, o programa desenvolveu
diversas iniciativas de cooperação com universidades e
organizações não-governamentais, envolvendo formação de
recursos humanos, monitoramento e pesquisa em vários setores
das Ciências Biológicas, assim como atividade editorial. A
cooperação sub-regional entre reservas tem sido estimulada. No
plano sul-sul, existem projetos de concessão de bolsas de estudo
pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo e Sociedade
5
Depoimento do secretário da Biodiversidade e Floresta do Ministério do Meio
Ambiente, José Pedro Costa, ao autor, em junho de 2000. Na página 9 da
proposta relativa ao Pantanal foi indicado que, para uma faixa de 150 km ao
longo da fronteira, eram permitidas todas as ações que assegurassem a
integridade do território, e a segurança nacional seria mantida como
estabelecida pela Constituição brasileira.
99
Cousteau. Com o suporte dos Estados Unidos, o Programa
Integrado pela Vigilância das Reservas da Biosfera (Brim) pretende
aperfeiçoar o intercâmbio científico entre os diferentes sítios.
As reservas da biosfera são utilizadas, em virtude do lastro
institucional da chancela da UNESCO, como alavanca para
empréstimos internacionais, sobretudo por meio do Global
Environment Facility (GEF), seja para projetos em reservas, seja para
preparação com vista a novas designações. Além disso, como indicado
no caso do Pantanal, podem ser úteis como parâmetro para
organismos financeiros multilaterais, como o BID e o Bird, tendo
em vista empréstimos direcionados a projetos dentro das reservas.
O crescimento do MAB, entretanto, levantou algumas questões.
Antecedendo a 16
a
Sessão do Conselho de Coordenação, em 2001, o
secretariado do programa divulgou um texto base para discussão, no
qual solicita contribuições sobre o futuro desenvolvimento do MAB.
Foram abordados vários pontos, dentre os quais: a necessidade de
intensificar e ampliar relações com órgãos e entidades externos,
sobretudo os secretariados das Convenções de Diversidade Biológica,
Ramsar e Desertificação; capacidade de atuar em cenário institucional
mais complexo e competitivo; maior transparência de processo interno
de decisão relativo a designação de novas reservas; percepção do
programa como excessivamente científico e desconectado da
realidade; e carência de recursos financeiros e humanos à luz da
contenção orçamentária da UNESCO.
Após a Conferência do Rio, em 1992, o tema do meio
ambiente ampliou seu espaço na agenda internacional, seja por
meio de organismos internacionais, governos ou organizações
não-governamentais. Ao MAB cabe focalizar sua ação e utilizar
com eficiência suas vantagens comparativas em relação aos
demais programas, sendo a principal delas, sem dúvida, a Rede
Mundial de Reservas e a experiência acumulada em 30 anos de
condução do projeto.
Embora o relatório final não descreva em detalhes a
discussão em plenário sobre o futuro do programa, pela
100
intensidade da participação depreende-se o interesse dos
delegados, em sua maioria representantes do Comitês Nacionais
MAB, na contínua evolução do programa no âmbito de seus países.
Ao oferecer um modelo de gestão que articula Ciências Físicas
com Sociais, tendo em vista a preservação adequada e sustentável
do patrimônio, o programa gerou acervo de realizações
descentralizadas que adquiriu autonomia. O desafio para o futuro
do MAB está em como articular este impulso local com incentivos
e iniciativas a partir dos órgãos supranacionais de condução, o
secretariado e o Conselho de Coordenação, de modo que o
intercâmbio internacional siga mantendo-se como uma das
ferramentas atraentes para a gestão sustentável.
Ao Brasil,
6
que acumula rica experiência com as reservas que
dispõe, cabe reaproximar-se dos órgãos deliberativos do MAB, em
particular do Conselho de Coordenação do programa, apresentando
sua candidatura, fato que permitiria maior participação na condução
do programa. O Brasil integrou o Conselho em duas oportunidades,
de 1977 a 1983 e de 1986 a 1993, estando em condições, portanto,
de pleitear nova representação.
6
Sobre assuntos relativos ao Brasil, destaque-se a publicação de Clüsener-Godt
e Sachs, 1995, volume 15 da série Man and Biosphere Series, com 13 artigos
de especialistas brasileiros. No âmbito da cooperação sub-regional, têm sido
publicados documentos de trabalho, como o nº 25, em 1998, pelo Comitê
MAB da Argentina, La implementacion de reservas de la Biosfera: la experiencia
latinoamericana.
101
7. CONVENÇÃO DE 1972 DO
PATRIMÔNIO MUNDIAL:
INTRODUÇÃO E QUESTÕES
ATUAIS
A Convenção do Patrimônio Mundial, concluída em 1972,
é, dentre as convenções de proteção ao patrimônio negociadas na
UNESCO, a que possui maior repercussão política e econômica
nos Estados-Partes e mobiliza mais recursos. Contando hoje com
730 inscrições de valor universal excepcional em 125 países, a lista do
Patrimônio Mundial reúne sítios naturais e históricos, mistos e
culturais. Na última reunião do Comitê do Patrimônio Mundial,
em junho de 2002, foram acrescentados nove novos sítios. Em
junho de 2002, 172 Estados haviam assinado Convenção. O Brasil
acedeu em 1977.
É, portanto, um instrumento bem-sucedido, que gerou
ações de cooperação internacional, estimulou desenvolvimento e
auto-estima de comunidades locais, incentivou o turismo e,
sobretudo, contribuiu para a preservação dos sítios. A proteção
proporcionada pela Convenção é fundada no reconhecimento
internacional do valor do patrimônio, baseado em critérios
acordados pelos Estados-Partes, pela primeira vez sedimentados
em um conceito de patrimônio que abrange o cultural e o natural.
Respeitando as legislações nacionais, a Convenção de 1972
estabelece mecanismo complementar à proteção local, sem contudo
interferir ou impor algum tipo de medida coercitiva. Ao inscrever os
sítios que se encontram em seu território na lista, o país solicitante
102
reconhece, sem prejuízo da soberania territorial e dos direitos de
propriedade, um patrimônio mundial cuja proteção cabe à
comunidade internacional participar. Os sítios, cuja deterioração
ou degradação revelarem-se como de risco para sua integridade, são,
depois de esgotados esforços de assistência e cooperação, inscritos
na lista de sítios em perigo. Embora esteja prevista a possibilidade de
exclusão da lista, até hoje não se verificou nenhum caso.
O evento que deflagrou a ação internacional de proteção ao
patrimônio cultural foi a ameaça que pairou sobre os templos de
Abu Simbel e Philae, no Alto Nilo, quando o governo egípcio tomou
a decisão de construir a barragem de Assuan. Em 1959 a UNESCO,
motivada por solicitação do Egito e do Sudão, lançou campanha de
arrecadação de fundos visando evitar a inundação dos sítios. A
campanha, que teve um brasileiro, Paulo Carneiro, entre seus
coordenadores, logrou transferir para lugar seguro, peça por peça,
os mencionados templos. Seguiram-se ações semelhantes em Veneza
e Borobudur (Indonésia), entre outros locais internacionalmente
reconhecidos, levando a Organização a iniciar estudos, com o apoio
do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), para
projeto de convenção de proteção ao patrimônio.
Em paralelo, desenvolvia-se nos Estados Unidos a
percepção de que os sítios naturais deveriam ser objeto de proteção
conjunta com locais históricos e de relevância cultural. Os norte-
americanos, motivados pelos vastos espaços naturais em seu
território, foram o país pioneiro em regulamentar a proteção de
seus parques. Em 1968 a União Mundial pela Natureza (IUCN),
iniciou processo de consultas com vista ao estabelecimento de
acordo internacional de proteção.
Após a Conferência de Estocolmo da ONU sobre Meio
Ambiente, em 1972, ambas as propostas, a cultural e a natural,
convergiram para um único texto. Em 16 de novembro de 1972, a
Conferência-Geral da UNESCO adotou a Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. O instrumento
tornou-se operacional em 1976, após ratificação de 20 Estados.
103
Na 19
a
sessão da Conferência-Geral, em 1976, realizou-se
a primeira Assembléia-Geral da Convenção, quando foi eleito o
Comitê do Patrimônio Mundial e instituído o Fundo do
Patrimônio. Em 1977, em Paris, na primeira reunião do Comitê,
foram estabelecidas as diretrizes operacionais (operational guidelines),
na qual foram definidos os critérios de atribuição do caráter
universal excepcional dos sítios. Como salienta Léon Pressouyre
(1996, p. 9), o conjunto de instrumentos acordados entre 1972 e
1976, envolvendo os Estados-Partes, órgãos assessores, juristas e
técnicos da UNESCO, resultou de equilíbrio entre um certo
número de princípios e de restrições e são os textos básicos
da Convenção do Patrimônio Mundial. Não obstante, o autor
interroga-se, em seu curto porém instigante livro, se o texto resistiu
aoteste de tempo, considerando sobretudo o mal
funcionamento político e científico da Convenção. Retornaremos
posteriormente a essas questões.
Em 1992 foi criado o Centro do Patrimônio Mundial, a fim
de assegurar um acompanhamento sistemático dos sítios cobertos
pela Convenção para que eles sejam conhecidos e para mobilizar os
recursos necessários (Valderama, 1995, p. 367). Tal modificação,
que implicou na designação de um diretor exclusivo (anteriormente
os assuntos da Convenção eram tratados pelos setores de cultura e
ciências do secretariado da UNESCO) e pessoal próprio, foi, na
visão de Pressouyre, extremamente positiva. Com o Centro, foi
possível desenvolver e ampliar métodos próprios na implementação
da Convenção, ao mesmo tempo em que permitiu relativa
autonomia, no âmbito da estrutura da UNESCO, às ações
relacionadas com a lista do Patrimônio Mundial.
7.1 BREVE DESCRIÇÃO DA CONVENÇÃO
A Convenção contém 38 artigos. Nos dois primeiros, define
o tipo de sítios naturais e culturais que os Estados-Partes podem
104
submeter à apreciação do Comitê do Patrimônio Mundial.
Explicita, a seguir, o papel dos signatários na proteção e
preservação não apenas dos sítios inscritos na lista, mas dos
respectivos patrimônios nacionais. No artigo 6, § 1, encontra-se a
cláusula relativa aos limites da Convenção no que tange à soberania
dos Estados-Partes:
Embora respeitando, plenamente, a soberania dos Estados em
cujo território o patrimônio cultural e natural, mencionado nos
artigos 1º e 2º, está situado, e, sem prejuízo do direito de
propriedade estabelecido pela legislação nacional, os Estados-
Partes desta Convenção reconhecem que tal patrimônio constitui
um patrimônio mundial, para cuja proteção é obrigação da
comunidade internacional, como um todo, cooperar.
A Convenção estimula os Estados a integrarem a proteção
do patrimônio aos programas de desenvolvimento regional;
descreve igualmente a função do Comitê do Patrimônio Mundial,
a forma de eleição e o mandato dos seus 21 países, escolhidos
dentre os signatários da Convenção; prevê exame periódico do
estado de conservação e gerenciamento dos sítios; e explica a
utilização e a gestão do Fundo do Patrimônio Mundial, além das
condições e modalidades de assistência financeira internacional.
Nos artigos 8º e 13, ambos no capítulo referente ao
funcionamento do Comitê, estão indicados os órgãos assessores
(advisory bodies) da Convenção, encarregados de auxiliar na
preparação de candidaturas, elaboração de relatórios e coordenação
de apoio técnico: são o Icomos, para sítios históricos e culturais;
IUCN, para os naturais; e o Centro Internacional de Estudos pela
Conservação e Restauração de bens culturais (ICCROM). Os sítios
mistos são acompanhados conjuntamente pelo IUCN e Icomos.
Cabe aqui algumas observações no que toca aos órgãos
assessores. À exceção do ICCROM, são organizações
independentes e não-governamentais, com representações e
associados em praticamente todas as regiões do mundo. Dispõem
105
de estrutura básica relativamente pequena, mas contam com a
contribuição de especialistas e cientistas de renomadas instituições,
fato que contribui para conferir credibilidade às iniciativas e
pareceres. Ciosos do seu papel, alertam constantemente os
Estados-Partes quanto a eventual participação de outras entidades
nas deliberações do Comitê do Patrimônio, percebidas como não-
independentes.
1
Ademais de estarem autorizados a participar das
reuniões do Bureau (composto por sete países integrantes do
Comitê) e do Comitê do Patrimônio, organizam regularmente
seminários e workshops de interesse da Convenção, fato que os
torna depositários de um know-how imprescindível para a política
de patrimônio mundial da UNESCO.
2
Para figurar na lista do patrimônio os sítios devem responder
a um ou mais critérios de seleção definidos na diretrizes
operacionais, documento que é uma espécie de anexo técnico da
Convenção. Os critérios são regularmente revistos pelo Comitê,
que se apóia em reuniões de peritos, organizadas pelo Centro do
Patrimônio em sintonia com os órgãos assessores. Nas diretrizes
está indicado igualmente que o objetivo da Convenção de 1972
não é listar todos os sítios do patrimônio, pois cabe aos Estados
realizarem seleção interna a fim de eleger aqueles que sejam
efetivamente representativos, no plano universal, de aspectos e
características nacionais. Os países são convidados a apresentar
1
Conforme consta no relatório da Sessão Especial do Bureau do Comitê do
Patrimônio Mundial, ocorrida em outubro de 2000, o Icomos expressou sua
preocupação sobre o fato do Centro recorrer, cada vez mais, a outros
especialistas e instituições fora dos Advisory Bodies, especialmente as agências
de cooperação bilateral e as organizações não-governamentais que impõem o
envolvimento de especialistas nacionais os quais podem não ser,
necessariamente, considerados como independentes.
2
Como, por exemplo, Krestev (1996), organizado pelo Icomos e realizado em
Sofia, em outubro de 1996, que contou com a participação de representantes
e especialistas de inúmeros países. O Icomos publicou os Symposium Papers
em 1996, em volume de 645 páginas.
106
um equilíbrio entre candidaturas naturais e culturais, bem como,
com relação àqueles Estados que já estão com grande número de
sítios inscritos  caso de alguns europeus, como Itália (37), França
(27) e Espanha (36)  espera-se redução e mesmo suspensão de
novas propostas. Os Estados-Partes devem ainda submeter lista
tentativa dos sítios que pretendem indicar.
O parâmetro básico para designação de sítio cultural é a
autenticidade. Além disso, são seis os critérios: constituir-se em
obra-prima do gênio humano; representar conjunto de
influências considerável, nos monumentos, na arquitetura, nos
conjuntos urbanos e paisagens; aportar testemunho único de uma
civilização ou tradição cultural; oferecer exemplo eminente de
construção arquitetônica; constituir-se em exemplo de ocupação
humana de território; e ser materialmente associado a tradições,
idéias, crenças e obras artísticas.
Os sítios naturais devem obedecer à premissa básica da
integridade. Ademais, devem seguir um ou mais dos seguintes
critérios: ser exemplo representativo de estágio histórico do
planeta, incluindo traços vitais, processos geológicos e
desenvolvimento de formas terrestres; corresponder a testemunho
de evolução ecológica e biológica em curso, de flora e fauna,
aquática ou terrestre; representar fenômenos ou zonas de beleza
natural excepcional; conter habitações naturais representativas,
em particular de espécies ameaçadas.
Os sítios mistos são aqueles inscritos com base em critérios
culturais e naturais. Atualmente são 23 os sítios inscritos na lista
sob essa categoria. Em outra vertente, destaque-se os sítios
considerados como cultural landscapes (paisagem cultural), que
contêm acervo de ações humanas sobre determinado contexto
natural. O número de inscrições nesse item é igualmente 23,
como por exemplo as plantações de café em Cuba e os terraços
de arroz nas Filipinas.
Uma sucinta classificação dos sítios por categoria, de acordo
com informação extraída da Web page do Centro, indica a
107
diversidade do patrimônio mundial protegido pela Convenção:
Propriedades naturais, fósseis, reservas da biosfera, florestas
tropicais, regiões biogeográficas, propriedades culturais, sítios
humanos, sítios industriais, paisagens culturais, sítios de arte em
rocha, cidades históricas, propriedades mistas.
7.2 OS CRITÉRIOS E SEUS LIMITES
Os critérios das diretrizes operacionais  apresentados acima
de forma resumida  foram selecionados, após longos debates,
pelo seu valor científico. Embora a Convenção pretenda-se
universal, seria inevitável que tais critérios, apesar de concebidos
como flexíveis e abertos, terminassem gerando contradições entre
processos de inscrição. Essas questões foram minuciosamente
debatidas por Léon Pressouyre (1996, p. 11-31) em seu estudo,
escrito vinte anos depois da operacionalização da Convenção.
Note-se que o Comitê do Patrimônio iniciou amplo processo de
consultas, no fim do ano 2000, para reformulação das diretrizes.
Os parâmetros básicos de autenticidade e integridade, por
exemplo, embora correspondam a intenções claras dos
idealizadores da Convenção, terminaram levantando questões
quando de sua aplicação. A exigência de autenticidade física do
patrimônio, conceito tipicamente eurocêntrico, revelou-se
problemática até mesmo para monumentos localizados no
continente de origem. Os constrangimentos aumentam, porém,
no Japão, no qual, frisa o autor, os templos mais antigos são,
periodicamente, restaurados de maneira idêntica, a autenticidade
sendo, essencialmente, ligada à função, e, em segundo lugar, à
forma, mas, de jeito nenhum, à matéria. A questão deixou de ser
apenas acadêmica a partir do momento, lembra Pressouyre, que o
governo japonês ratificou a Convenção, em 1992 A partir daí o
debate passou para a arena política, com resultados favoráveis ao
Japão, que conta hoje com 11 sítios inscritos na lista.
108
Os limites do ponto de vista centrado na concepção européia
ficaram evidenciados quando da indicação do centro histórico de
Salvador e do Santuário do Bom Jesus de Congonhas, conforme
salienta Pressouyre (1996, p. 19), pois estes dois sítios, onde o
encontro de culturas resultou em novas formas, nos faz deplorar a
falta de um critério onde a noção de influência não seria lida em
seu sentido tradicional e quase colonialista. Ainda em relação ao
Brasil, saliente-se o papel pioneiro da designação de Brasília, em
1987, o primeiro sítio representativo do patrimônio contemporâneo,
cujo relatório foi preparado pelo próprio Léon Pressouyre.
Uma visão crítica da Convenção de 1972 e sua evolução,
entretanto, é apresentada pela pesquisadora Patricia Falguières
(1997, p. 297-304), sobretudo para o patrimônio cultural, em
colóquio realizado em 1994 na França. Segundo ela, os
idealizadores da Convenção, ao proporem-se à incomensurável
tarefa de elaboração dos critérios científicos de inscrição na lista,
terminaram produzindo um tipo de improvisação conceitual
que prejudicaria a própria legitimidade da ação de proteção.
Avaliar sítios com vista a criar uma série de valor universal
baseada na autenticidade e no caráter exemplar desses sítios
revelou-se um desejo equivocado de coerência estética, razão
pela qual historiadores e especialistas em arte e arquitetura estão
presentes entre os críticos mais ferozes da convenção.
A excessiva e arbitrária justaposição de critérios
heterogêneos, salienta a autora, veio a estabelecer uma lista do
patrimônio semelhante a um inventário casuístico e sem
classificações cruzadas que permitiriam a apreensão da síntese
da evolução estética do patrimônio mundial. Os princípios de
classificação que orientam a inscrição do patrimônio na lista,
que deveriam basear-se em princípios e normas, são, ao contrário,
artifícios, puros efeitos de agenciamentos conseguidos durante a
negociação (não só entre nações, mas também, entre instâncias de
autoridades, entidades, competências culturais, etc.), e, desse modo,
109
a constituição de um inventário universal, se torna dependente,
essencialmente, da arte política (Falguières, 1997, p. 304).
No registro específico do patrimônio natural também não
faltam especialistas a apontar reparos:
Nos países do sul, as políticas de preservação afirmam, com
veemência, o caráter patrimonial de espécies (leão, elefante, tartaruga),
de espaços, e de ecossistemas (floresta primária, mangue, etc.) (...)
lá, como em outros lugares, essas declarações nem sempre levam
em conta as exigências da ecologia, nem as necessidades das
sociedades interessadas (Cormier-Salem, Roussel, 2000, p. 106-110).
Por um lado, a percepção dos significados atribuídos ao
patrimônio natural varia de acordo com o ponto de vista social
e geográfico, das camadas urbanas às comunidades locais. Por
outro, a lógica científica que preside a seleção de um sítio tende
a isolar e privilegiar alguns aspectos da biodiversidade em
detrimento de outros, muitas vezes sem argumentos consistentes.
Em conseqüência, as inscrições na lista do patrimônio na
verdade, ultrapassam, em grande medida, o plano restrito da
proteção da biodiversidade, para se tornarem objeto de interesses
sociais, econômicos, jurídicos e políticos, difíceis de serem
controlados (Cormier-Salem, Roussel, 2000, p. 110).
O Comitê do Patrimônio, não obstante, tenta responder a
essas críticas:
Uma Estratégia Global para uma Lista de Patrimônio Mundial
equilibrada e representativa foi adotada pelo Comitê de Patrimônio
Mundial em 1994. Seu objetivo é o de assegurar que a Lista reflita a
diversidade cultural e natural mundial, de grande valor universal.
Conferências e estudos, visando à implementação da Estratégia Global,
foram realizados ou estão sendo planejados na África, na região do
Pacífico, na região árabe, no Caribe, na Ásia central e no Sudeste asiático.
3
3
Texto extraído da Web page do Centro do Patrimônio Mundial.
110
No início de 2001 o documento da UNESCO que definiu a
estratégia de prazo médio da Organização  de 2002 a 2007 
reiterou o compromisso do Comitê de identificar regiões sub-
representadas na lista e categorias de patrimônio que reflitam
melhor a diversidade cultural e natural de povos e regiões.
Numerosos eventos têm sido realizados com o objetivo de
substanciar a estratégia global definida em 1994. No documento
citado, propõe-se também o Centro do Patrimônio a rever métodos
de trabalho e reforçar parcerias com responsáveis pelo
planejamento regional e urbano, tendo em vista a integração do
conceito de conservação em estratégias de desenvolvimento
sustentável. Entretanto, a lentidão do processo decisório
multilateral no Comitê em materializar em ações práticas o acervo
de sugestões geradas, aliada a limitações de recursos, tem
proporcionado uma certa frustração de expectativas, sobretudo
de países em desenvolvimento.
Na 24
a
sessão do Bureau do Comitê do Patrimônio, em junho
de 2000, foram apresentadas conclusões de alguns Grupos de
Trabalho sobre aspectos específicos da Convenção, entre eles um
sobre Representação Igualitária no Comitê  que propôs novos
mandatos e aceleração na mudança dos integrantes  e um sobre
Representatividade da Lista do Patrimônio. Neste último, estimulado
sobretudo por países africanos e árabes, foi elaborada proposta
detalhada, que inclui sistema de pontuação para os Estados de modo
a estimular indicações por parte daqueles sub-representados. A
restrição voluntária de novos pedidos de inscrição dos países
excessivamente representados, em comparação à maioria dos Estados-
Partes, é um aspecto fundamental da proposta. Outro ponto é a
preocupação com o financiamento da capacidade institucional dos
países menos favorecidos em selecionar e preparar candidaturas.
4
4
O relatório do grupo encontra-se no documento WHC-2000/Conf. 202/10,
de 15/5/2000, divulgado por ocasião da 24
a
sessão do Bureau do Comitê do
Patrimônio Mundial.
111
Na reunião do Comitê do Patrimônio na cidade de Cairns,
em dezembro de 2000, acordou-se redução da freqüência de reuniões
do Bureau (ao invés de duas, apenas uma por ano, em abril) e do
Comitê (uma vez em junho/julho, ao invés de novembro/
dezembro). O novo ciclo, que começará a valer em 2002, permitirá
ao Centro do Patrimônio ganhar fôlego a fim de rever o Plano
Estratégico de implementação da Convenção e preparar alternativas
no que tange aos critérios de inclusão na lista. A partir de 2001
serão realizadas consultas aos Estados-Partes tendo em vista a
elaboração de projeto das novas diretrizes operacionais, a ser
discutido posteriormente pelo Comitê do Patrimônio Mundial.
Um dos pontos dessa revisão, entretanto, já está definido: serão,
no máximo, trinta inscrições admitidas anualmente na lista do
patrimônio. Além disso, cada país poderá apresentar apenas uma
candidatura por ano, exceção feita a extensões de sítios já inscritos e
propostas transfronteiriças. A título de comparação, recorde-se que
nessa mesma reunião foram aprovados 61 novos sítios. A questão da
representatividade, citada acima, e da soberania, no caso de sítios
inscritos na lista em perigo, que veremos a seguir, figuram entre os
principais pontos debatidos na revisão das diretrizes.
Existe um consenso quanto à preocupante escala que a lista do
patrimônio alcançou, que gerou dúvidas metodológicas e insatisfações
políticas. A desaceleração que se avizinha com as medidas anunciadas
é inadiável, tendo em vista seja feita reavaliação da Convenção de
1972, inclusive no plano interno de cada Estado-Parte. Uma das
instâncias para este exercício são os Relatórios Periódicos, realizados
por região, que visam ao levantamento abrangente das condições atuais
de cada sítio. Em cada relatório estão previstas reuniões nacionais e
regionais, workshops e missões in loco. Na América Latina, cujo processo
foi iniciado em 2002, está prevista conclusão do relatório em 2004.
O Brasil situa-se, no quadro da lista do Patrimônio Mundial
no início de 2001, em uma posição intermediária, com 17 sítios
inscritos (10 culturais e 7 naturais), equivalente à Austrália, que
também conta com 14 inscrições (13 naturais e 1 cultural). Na
112
América Latina, apenas o México está mais bem representado (22
sítios, 20 culturais e 2 naturais), sendo que a Argentina conta com
7 inscrições (4 naturais e 3 culturais) e o Peru com 10 (3 naturais
e 7 culturais). Entre os países de dimensões análogas, registre-se
que o Canadá possui 13 sítios inscritos (10 naturais, 3 culturais);
os Estados Unidos, 20 (14 naturais e 6 culturais); a Federação
Russa, 16 (6 naturais e 10 culturais); a China, 28 (4 naturais, 24
culturais); e a Índia, 23 (5 naturais, 18 culturais).
Uma rápida leitura desses números indica que há espaço
para o Brasil aumentar sua lista, em particular no que toca aos
sítios naturais.
7.3 A QUESTÃO DA SOBERANIA E A CONVENÇÃO
Léon Pressouyre (1996, p. 9) considera que
as principais restrições provocadas pela Convenção estão ligadas à
noção de soberania. Em seu preâmbulo e em seu espírito, a
Convenção declara que as propriedades do patrimônio natural e
cultural mundial pertencem a toda humanidade e estão colocadas
sob a proteção desta. Entretanto, ela reconhece que as propriedades
estão situadas dentro de Estados soberanos que, depois de as terem
identificado e solicitado sua inclusão na lista, se comprometem,
garantindo que elas serão legadas às futuras gerações.
Como sublinha o autor, esta é uma contradição fundamental,
incontornável em um instrumento que sobrepõe um sistema de
classificação do patrimônio mundial, inspirado em valores
consensualmente acordados, a ordens jurídicas particulares dos
Estados-Partes. O objetivo da Convenção é acrescentar uma esfera
internacional de proteção aos esforços internos que os países
realizam. Entretanto, a diversidade de contextos político-jurídicos
sobre as quais age a Convenção, sem falar no caso das regiões
desestabilizadas ou objeto de disputa, podem produzir
113
circunstâncias nas quais venham a se revelar algumas fraquezas
no texto. Tais dificuldades atingem não apenas a Convenção de
1972 do Patrimônio Mundial, a qual implica em concessões
relativamente leves por parte dos Estados a ela associados, mas
também a qualquer instrumento internacional que exerça algum
controle ou influência sobre processos internos de decisão.
São três as situações em que a questão da soberania mostra-
se mais complexa, conforme a visão de Pressouyre (1996, p. 10).
A primeira diz respeito ao choque da soberania, que afeta
sobretudo Estados com estrutura federativa. O autor lembra que
os Estados Unidos têm sido criticados, pois adotaram
interpretação restritiva da Convenção fazendo com que as
propriedades inscritas na lista do patrimônio Mundial fossem
federally owned, coincidindo rigorosamente a atribuição de valor
universal com os limites da propriedade federal. A segunda questão
refere-se à transferência de soberania sobre sítios inscritos, que
não foi expressamente prevista na Convenção, e que ocorreu em
casos como a unificação do Iêmen, em 1990, e da República Federal
da Alemanha, além de situações ainda mais problemáticas, como
a fragmentação da ex-URSS e da ex-Iugoslávia.
A terceira circunstância  e a mais grave  é quando ocorrem
conflitos internos e desestabilizadores nos países, com
conseqüências para a integridade dos sítios. Um exemplo claro
foi em 1991, quando delegados (sérvios) de um Estado signatário
da Convenção (a ex-Iugoslávia) negaram-se a assumir os prejuízos
causados ao Centro Histórico de Dubrovnik, na Croácia. O sítio
ficou inscrito na lista em perigo até 1998, quando as áreas atingidas
foram reparadas. Outro caso é Angkor, no Camboja, um dos sítios
históricos mais conhecidos do Patrimônio Mundial, inscrito na
lista em perigo desde 1992 devido aos distúrbios internos naquele
país. A relativa estabilidade nos últimos anos, entretanto, ainda
não convenceu o Comitê do Patrimônio a mudar de posição, tendo
em vista as seguidas pilhagens do patrimônio artístico que ainda
ocorrem no local.
114
Quanto ao Afeganistão, objeto de inúmeras ações da
UNESCO  sobretudo após o conflito que se seguiu ao episódio
de 11 de setembro de 2001  foi acordada uma decisão original.
O Comitê do Patrimônio, em sua 26
a
sessão em junho de 2002,
indicou pela primeira vez um sítio daquele país para inscrição na
lista, As ruínas arqueológicas de Jam. Na mesma sessão,
entretanto, o sítio foi inscrito na lista em perigo, a fim de alertar a
comunidade internacional sobre as dificuldades de conservação e
preservação, e também habilitar o Centro do Patrimônio a
direcionar recursos de assistência técnica.
O caso mais agudo na questão referente à soberania no
âmbito da Convenção são os cinco sítios naturais da República
Democrática do Congo (RDC), inscritos na lista de sítios em
perigo entre 1994 e 1999.
5
As razões que levaram a tal estado são
várias  guerra civil, áreas ocupadas por milícias, fluxo de
refugiados de Ruanda, conflito com países vizinhos, descontrole
administrativo e desastres ecológicos. Embora tenham sido
realizadas missões de inspeção e despendidos recursos de
assistência técnica, com anuência do governo congolês, o quadro
geral permanece incerto.
A ação do Comitê do Patrimônio na RDC ocorre em um
cenário bastante complexo, objeto igualmente de preocupações
de organismos internacionais e entidades não-governamentais.
Uma das possibilidades aventadas é a realização de viagem do
diretor-geral da UNESCO ao Congo e aos vizinhos Uganda e
Ruanda, com o objetivo de reforçar a proteção e conservação dos
sítios por meio de compromissos entre os respectivos governos e
assim contribuir para a distensão regional.
5
O relato sobre os sítios da RDC está no item IV-5 do Report of Rapporteur da
24
a
Sessão do Bureau do Comitê do Patrimônio Mundial, realizada em junho
de 2000, disponível na web page do Centro do Patrimônio.
115
Ainda no que se refere à implementação da Convenção em
zonas afetadas por conflitos internos, foi proposta reunião
específica do Comitê do Patrimônio sobre o tema, durante o
encontro de dezembro de 2000, em Cairns. A questão do princípio
de soberania dos Estados-Partes e a necessidade ou não de
consentimento do Estado nas situações em que o Comitê considera
haver situação de perigo para o sítio foi objeto de intenso debate.
Recorde-se ainda que um sítio de forte carga simbólica, como
Jerusalém,
6
com complexos desdobramentos quanto ao tema da
soberania, tem sido um item constante na agenda do Comitê desde
sua inclusão na lista em perigo, em 1982.
Ao lidar com porções de territórios, muitas vezes em grande
escala, como são os parques naturais dos grandes países, caso do
Brasil, ou com situações específicas, como a de Jerusalém, a
Convenção de 1972 pode sugerir, à primeira vista, que sua ação
normativa teria algum tipo de ingerência sobre o gerenciamento
interno da soberania territorial. A inclusão do patrimônio na lista
de sítios em perigo seria o grau máximo de ingerência, a qual,
embora não incorra em nenhum tipo de sanção direta ao Estado-
Parte, pode produzir efeitos negativos no que se refere à imagem
do país em termos de sua capacidade de administrar o patrimônio
histórico e natural. Tais decisões, entretanto, são lastreadas em
laudos técnicos e debates nas reuniões do Comitê e do Bureau,
com participação dos Estados-Partes, seja como membro do
Comitê, seja como observador. O Parque Nacional do Iguaçu,
primeiro sítio natural inscrito pelo Brasil, entrou na lista em perigo
em 1999, assunto que será visto no Capítulo 9.
6
O caso de Jerusalém na Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial foi
mencionado no Capítulo 2 dessa monografia, item 2.4, tendo em vista sua
relação com a Convenção de 1954 para Proteção da Propriedade Cultural em
caso de Conflito Armado.
116
O § 4º do artigo 11 da Convenção trata da lista de sítios em
perigo, remetendo às diretrizes operacionais a regulamentação do
procedimento. Nestas, do § 80 ao § 93, menciona-se apenas que será
mantida cooperação com o Estado no qual se localiza o sítio,
inexistindo a obrigatoriedade, pelo Comitê, de qualquer tipo de
consulta prévia formal para inscrever o sítio na lista em perigo.
Veremos abaixo o caso do Parque Nacional Kakadu, na Austrália,
quando os limites dessa prerrogativa do Comitê foram postos à prova.
Os sítios podem ser também inscritos na lista em perigo
por iniciativa do próprio Estado-Parte. Além de reunião específica
a ser eventualmente realizada sobre o problema do consentimento
ou não do Estado-Parte em zonas afetadas por conflitos, o tema,
no seu aspecto geral, será debatido igualmente por ocasião da
revisão das diretrizes operacionais.
Atualmente são 33 sítios na lista em perigo, menos de 5%
do total, a maioria de países em desenvolvimento e em geral
inscritos com o objetivo de levantar fundos de assistência técnica
para preservação. Entre as exceções estão dois parques naturais
nos Estados Unidos, Yellowstone e Everglade, inscritos desde 1995
e 1993 na lista de sítios em perigo.
7
Recorde-se que a Convenção
de 1972 foi poupada quando da saída dos norte-americanos da
UNESCO, em 1984, apesar do esforço de setores no Congresso
francamente hostis à participação em organismos multilaterais.
Quando o tema é debatido nos hearings em Washington, não faltam
vozes a questionar a submissão da soberania americana às decisões
7
Ambos os parques foram inscritos na lista em perigo devido a desastres
ecológicos e persistência em atividades danosas. Sublinhe-se que na recente
campanha presidencial o tema veio à tona, sobretudo em relação a Yellowstone,
com acusações do então candidato George W. Bush ao governo democrata
(do verde Al Gore) de negligência na administração deste e outros Parques.
Sob essa administração, os parques estão em situação pior do que nunca (...)
o deságüe de esgoto sem tratamento nos lagos e córregos de Yellowstone, as
relíquias da Guerra Civil encharcadas por causa de um vazamento de um
telhado em Gettysburg, declarou Bush (New York Herald Tribune, 15/9/2000).
117
do Comitê do Patrimônio Mundial, tidas como produto do um
país, um voto e portanto levando-se em pouca consideração o
interesse na decisão ou na capacidade de implementá-lo.
8
Cabem aqui alguns breves comentários gerais sobre a
questão da soberania e os instrumentos multilaterais modernos.
Para inserir-se na esfera internacional, e assim articular apoios e
participar das ações de cooperação entre as nações, os países têm
necessariamente de ceder algum grau de autonomia. Ao ratificar a
Convenção de 1972, os Estados-Partes não abrem mão de sua
soberania, mas aceitam, por exemplo, submeter-se a inspeções
internacionais sobre o estado de conservação dos sítios. Como
sublinhado no início deste capítulo, ter parte do acervo natural e
cultural reconhecido e inscrito na lista do patrimônio mundial
tem efeitos positivos  orgulho nacional, auto-estima das
comunidades, incentivo ao turismo, acesso a financiamentos
internacionais  , mas gera igualmente obrigações.
É preciso frisar, também, que a Convenção integra conjunto
de instrumentos multilaterais gestados na era moderna, os quais
são resultado de novas e abrangentes concepções jurídicas.
A crescente interdependência entre as nações, como é
sabido, terminou influenciando inevitavelmente a relação entre
8
A afirmação é da ex-embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Jeane
Kirkpatrick, em recente hearing no Congresso norte-americano, em 18/3/1999,
que discutiu proposta de emenda (H. R. 883) dando ao Congresso poderes
para aprovação das designações de sítios para a Convenção de 1972 do
Patrimônio Mundial. O debate, disponível na Web page do Congresso, é
indicativo das posições dentro do governo, salientando-se apoio à Convenção
por parte do Executivo (Departamentos do Interior e do Estado). Entretanto,
segundo o diretor do Centro do Patrimônio Mundial, Francesco Bandarin,
em reunião com representantes dos países do Grulac/UNESCO, em 25/1/
2001, o Congresso aprovou legislação no ano 2000 suspendendo pagamento
da contribuição anual dos EUA ao Centro, cerca de 500 mil dólares, fato que
irá afetar o orçamento do órgão a partir de 2001 (para dar uma idéia, registre-
se que o orçamento do Centro para 2001 alcançou 4,38 milhões de dólares,
dos quais cerca de três milhões provenientes do Estados-Partes).
118
instrumentos e organismos internacionais, de um lado, e a
soberania dos países, de outro. De modo geral, observa-se grau
mais acentuado de intervenção internacional nos Estados
nacionais. Para beneficiar-se da interação com o exterior, os
Estados são obrigados a ceder e compartilhar informações: no
campo econômico, por meio de processos de integração sub-
regional e regional, como demonstram o Mercosul, a União
Européia e Alca; no Direito Humanitário, com as ações da ONU,
como no Timor; e, finalmente, no que tange aos valores, onde se
incluiria a Convenção de 1972 (valores cultural e natural), também
se verifica aumento de instrumentos internacionais e ações
correspondentes. A estrutura jurídica internacional que se forjou
após a Eco-92 é um dos sintomas mais evidentes, no contexto do
meio ambiente, dessas novas concepções.
A antiga noção westfaliana [de soberania territorial] sofreu
mudanças drásticas nos últimos anos, frisa Hans Corell (2000, p.
93-103), assessor legal da ONU. Como tem sido aceito há muito
tempo, prossegue, soberania territorial não atribui ao Estado
uma liberdade ilimitada de ação. Além das determinações relativas
a direitos humanos contidas na Carta das Nações Unidas, o
respeito ao Direito Humanitário e às liberdades fundamentais
passaram a ser fonte de preocupação crescente, significando
que a ordem legal internacional tornou-se mais abrangente do
que no passado. Embora os instrumentos firmados no âmbito
das Nações Unidas  como a Declaração de Relações Amigáveis
de 1970  reiterem o compromisso de não intervir em questões
de jurisdição doméstica de qualquer Estado, não resta dúvida de
que o conceito de soberania territorial, conclui o autor, não é
mais um conceito pela proteção do soberano (...) tornou-se um
conceito pela proteção de povos, e, por que não, de indivíduos.
Embora tais considerações tenham sido feitas acerca de
questões de segurança humana, são pertinentes também em
relação à Convenção do Patrimônio Mundial, que foi negociada e
é administrada no âmbito da UNESCO, órgão das Nações Unidas
119
para educação, ciência, cultura e comunicação. A Convenção
integra, portanto, o conjunto de instrumentos balizados pela
evolução jurídica no contexto multilateral da ONU. Suas
obrigações e efeitos têm sua legitimidade baseada também nos
rumos e decisões tomadas nesse contexto.
Ao Brasil, além do aspecto específico na Convenção de 1972
quanto à proteção do seu patrimônio, interessa igualmente
participar do conjunto de iniciativas legais geradas no âmbito das
Nações Unidas. Tal interesse se justifica pela nossa postura legalista
tradicional e mesmo, sob o ângulo realista, pelos limites da nossa
capacidade de se impor no cenário internacional.
7.4 O CASO DO PARQUE NACIONAL KAKADU,
NA AUSTRÁLIA
Em tempos recentes, o teste mais difícil para a Convenção
de 1972 foi, sem dúvida, o projeto de construção de mina de urânio
em um enclave no Parque Nacional Kakadu, na Austrália, iniciado
em 1996. A perspectiva de inclusão do parque na lista de sítios
em perigo, após recomendação do relatório da missão chefiada
pelo próprio presidente do Comitê do Patrimônio Mundial, em
1998, encontrou forte oposição do governo australiano. Em julho
de 1999 foi realizada a Terceira Reunião Extraordinária do Comitê
do Patrimônio Mundial, que decidiu pela não inclusão do sítio na
lista, mas fez rigorosas exigências de monitoramento a fim de
garantir sua integridade.
9
A dimensão política que a questão tomou, inclusive em nível
de primeiro escalão dos Estados-Partes integrantes do Comitê do
Patrimônio à época, entre eles o Brasil, justifica seja feita essa
breve recapitulação.
9
O material relativo à 3
a
Reunião Extraordinária do Comitê está disponível na
web page do Centro do Patrimônio Mundial.
120
A Austrália foi um dos primeiros países, em 1974, a ratificar
a Convenção do Patrimônio Mundial, e é o único Estado parte
que adotou legislação específica para regular as obrigações
decorrentes do mencionado instrumento. O Parque Nacional
Kakadu foi inscrito na lista em 1981, com extensões autorizadas
em 1987 e 1992, com base em critérios naturais e culturais,
constituindo-se portanto em sítio misto. Situado ao norte do país,
com quase 20 mil quilômetros quadrados, o sítio apresenta, além
de cobertura florestal e biodiversidade singular, uma reserva
arqueológica e etnológica única no mundo. A região, hoje habitada
por aborígenes, registra traços de presença humana de 40 mil anos.
Em 1996 o governo australiano autorizou a empresa
mineradora Energy Resources of Australia (ERA) iniciar a
construção de mina de urânio em Jabiluka, situado em um enclave
dentro do parque, em área considerada como não protegida. Note-
se que funciona em setor contíguo, considerada igualmente pelo
governo como fora do território classificado como parque
nacional, outra mina, também de urânio, Ranger. Esta começou a
ser explorada antes da inscrição do sítio na lista do patrimônio.
Pressionado por uma coalizão de organizações não-
governamentais, e mobilizado pelos órgãos assessores, IUCN e
Icomos, o Bureau do Comitê do Patrimônio Mundial decidiu, em
junho de 1998, enviar missão ao sítio, chefiada pelo então presidente
do Comitê, o italiano Francesco Francioni. A missão terminou seu
relatório às vésperas da 22
a
Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial,
em Quioto, dezembro de 1998, recomendando 12 itens, entre eles a
interrupção voluntária da construção da mina e a suspensão do projeto
de exploração de urânio em Jabiluka.
No que tange às questões relativas ao meio ambiente, o
relatório da missão levantou dúvidas
sobre a criação de um modelo hidrológico, no momento da concep-
ção do plano de gestão da água para o sítio de mineração, sobre a
eficácia do processo de concretagem para a estocagem de resíduos, e
sobre os possíveis impactos nos ecossistemas da bacia hidrográfica.
121
No plano cultural, o relatório lembrou que a construção da
mina poderia ameaçar  cultural, espiritual e socialmente  as
populações indígenas do parque, e instou ao governo australiano
a estabelecer um diálogo mais intenso e permanente entre o
governo e os proprietários tradicionais da concessão de mineração
de Jabiluka, população aborígene mirrar.
Uma leitura prima facie poderia qualificar esta última
recomendação, entre outras, como exacerbação das prerrogativas
da Convenção de 1972, ao propor, de forma excessiva, ações
internas a um governo soberano. A impressão baseia-se também
no fato de que a Austrália é um país desenvolvido, com instituições
democráticas e regime legal em vigor, além de ser um dos Estados
mais empenhados na Convenção.
No âmbito interno australiano, a matéria foi objeto de
intenso debate no Comitê encarregado de assuntos de meio
ambiente no Senado, que publicou investigação própria do assunto
com 24 recomendações, entre elas a seguinte: O Comitê
recomenda que o projeto da mina de urânio de Jabiluka não deve
ter prosseguimento porque é irreconciliável com os importantes
valores naturais e culturais do Parque Nacional de Kakadu
(Austrália, 1999, p. 68).
A maioria do referido Comitê estava constituída, quando
do exame do assunto, de representantes do Partido Trabalhista,
em oposição ao governo, juntamente com os verdes. Na mesma
publicação consta registro da posição contrária às referidas
recomendações, provenientes dos senadores ligados ao Partido
Liberal, no poder desde 1996, mas minoria naquele Comitê. Frise-
se que desacordos científicos, seja no que tange a aspectos
antropológicos, seja quanto à preservação ambiental, complicaram
ainda mais a questão.
10
10
O documento do Senado australiano fornece um quadro da discussão entre
os cientistas. Registre-se, entretanto, que o Comitê do Patrimônio solicitou
parecer do supervising scientist Peter Bridgewater, sobre as questões ambientais
122
A Terceira Reunião Extraordinária foi programada para
julho de 1999 a pedido da Austrália, que se julgou prejudicada em
razão de desconhecer o relatório da Missão quando da
apresentação deste em Quioto, em dezembro de 1998. A campanha
que se seguiu tinha, de um lado, ambientalistas, senadores
trabalhistas e o Comitê do Patrimônio Mundial; de outro, o
governo australiano e a empresa mineradora. O primeiro-ministro
australiano, John Howard, encaminhou carta aos mandatários dos
países integrantes do Comitê do Patrimônio àquela altura (inclusive
Brasil) nos seguintes termos: Solicito-lhe, encarecidamente, seu
interesse pessoal nessa questão e espero que seu governo possa
apoiar a posição da Austrália na reunião de 12 de julho.
A polarização do debate parece ter alertado os Estados-
Membros do Comitê sobre a prioridade de manter-se a Convenção
de 1972 enquanto instrumento que expressa a vontade dos Estados-
Partes. A questão foi além do contexto inicial, que versava sobre o
impacto socioambiental de um investimento econômico em um sítio
do Patrimônio Mundial. A classificação do Parque Kakadu na lista
de sítios em perigo poderia ser percebida como resultado de
excessiva influência dos órgãos assessores e de organizações não-
governamentais sobre o Comitê. No futuro, todos poderiam ser
alvo de pressão semelhante, em particular países como o Brasil,
com cinco sítios naturais na lista àquela altura e tendência a aumentar
essa cifra. Por consenso, os Estados-Partes decidiram pela não
inclusão de Kakadu na lista de sítios em perigo.
O Comitê do Patrimônio solicitou, entretanto, fosse feito
detalhado acompanhamento da instalação de Jabiluka, incluindo
levantadas pelo relatório da missão. Bridgewater, australiano de nascimento,
secretário do Programa o Homem e a Biosfera e chefe da Divisão de Ecologia
da UNESCO, concluiu (em abril de 1999) que ao contrário das opiniões
expressas pela missão, os valores naturais do Parque Nacional de Kakadu
não estão ameaçados pelo desenvolvimento da mina de urânio de Jabiluka, e
o grau de certeza científica que se aplica a essa avaliação é bastante alto.
123
aprovação de associações representativas dos aborígenes,
avaliação minuciosa do impacto ambiental e compromisso de
que a nova mina jamais operaria simultaneamente com a
anterior, Ranger, que seria desativada. Em abril de 2000 o
governo australiano apresentou extenso relatório, disponível
na Web pageEnvironment Australia online, informando sobre a
evolução do projeto e as providências correlatas. O assunto,
todavia, continua sob exame, à luz das exigências formuladas
na Terceira Reunião Extraordinária.
O episódio demonstrou que a Convenção de 1972 pode ser
instrumentalizada politicamente, com conseqüências imprevisíveis
e eventualmente desgastantes. Não só no contexto internacional,
mas também no âmbito da política interna australiana, já que a
inclusão na lista em perigo seria vista como uma vitória do Partido
Trabalhista  fato em princípio indesejável, dada a natureza
supranacional do instrumento. A inclusão de Kakadu na lista não
significaria a proibição expressa de construir a mina, já que a
Convenção não tem poderes para tal. Caso o projeto fosse levado
adiante, entretanto, incorreria em alto custo político, sobretudo
interno, para o governo australiano.
7.5 CONCLUSÃO PARCIAL
A Convenção de 1972, no entanto, está longe de ser um texto
estático do ponto de vista jurídico, pois proteger o patrimônio não
significa isolá-lo da realidade em que se insere, salienta o embaixador
José Israel Vargas
11
em prefácio à recente publicação sobre Patrimônio
Mundial no Brasil (Tirapeli, 2000). A percepção de que a inclusão de
um sítio na lista do patrimônio corresponderia a uma espécie de
entronização e isolamento daquele sítio é, pois, incorreta. O processo
11
Delegado permanente do Brasil na UNESCO.
124
de seleção e inscrição no âmbito da UNESCO tem como objetivo,
ao contrário, participar em uma realidade dinâmica e assim contribuir
para o progresso social e econômico das nações.
A documentação das reuniões promovidas no âmbito da
Convenção de 1972, disponível na Web page do Centro do Patrimônio,
revela um rico acervo de iniciativas, interpretações e resultados, que
atingem número expressivo de países. Os encontros regulares, do
Bureau e do Comitê, por si só produziram material de interesse não
apenas para estudo sobre o tema na UNESCO, mas também quanto
aos desdobramentos em termos de políticas públicas nos Estados-
Partes. Nesse sentido, não seria demasiado afirmar o papel de
protagonista que a Convenção do Patrimônio Mundial desempenha
na divulgação das atividades de proteção do patrimônio na
comunidade internacional.
Não obstante, as atividades e programas da Convenção podem
eventualmente criar embaraços aos Estados-Partes, sobretudo em
relação à questão da soberania. As soluções políticas encontradas,
entretanto, têm procurado contornar, com graus variáveis de êxito,
as dificuldades encontradas. A essas questões é preciso acrescentar a
administração do inevitável crescimento da lista do Patrimônio
Mundial, na qual alguns temas, como a representatividade cultural na
lista, por um lado, e a rotatividade desejável do Comitê do Patrimônio,
por outro, ainda estão à espera de soluções.
Cabe aos Estados-Partes, por meio de suas agências
encarregadas de implementar a Convenção, reforçarem o
gerenciamento de seus sítios e a participação nas ações do
Patrimônio, de modo a prevenir que circunstâncias como as que
ocorreram em Kakadu venham a ganhar contornos indesejáveis.
12
12
Um exemplo de atividade que deve ser acompanhada é aquela que o Centro
do Patrimônio está patrocinando  a pedido do Comitê  juntamente com o
Icomos, a IUCN e o International Council on Metals and the Environment
(ICME), relativa a reuniões nas quais são analisados casos sobre atividades
de mineração e os sítios do patrimônio.
125
Neste último aspecto sublinhe-se o seguimento às atividades do
Bureau e do Comitê, nas quais os países que não são membros
podem participar como observadores.
O Brasil integrou o Comitê do Patrimônio Mundial durante
quase 20 anos, entre 1980 e 1999, fato que dificulta eventual pleito
para as próximas vagas. Entretanto, é importante reiterar a
necessidade de acompanhamento das reuniões e deliberações, à
luz do número e dimensão dos sítios brasileiros inscritos.
No que toca ao acompanhamento dos assuntos gerais da
Convenção, é de fundamental importância que os órgãos
brasileiros interessados no tema  Itamaraty, Iphan/MinC e
Secretaria da Biodiversidade e Florestas/MMA  além de instâncias
estaduais e municipais, incluindo os administradores diretos dos
sítios, articulem a participação e promovam a defesa dos interesses
brasileiros. A próxima Revisão Periódica dos sítios da América
Latina, bem como a elaboração de novo conjunto de diretrizes
operacionais da Convenção são oportunidades que se apresentam
no curto e médio prazos.
A inscrição do Parque Nacional do Iguaçu na lista de sítios
em perigo  e com a solicitação do Comitê do Patrimônio Mundial
de relatório especial sobre Brasília  além das perspectivas de
aumento de sítios naturais brasileiros na lista, impõe necessidade
particular de acompanhamento do assunto. Examinar esses tópicos
será objeto de exame dos próximos e dois últimos capítulos.
127
8. CONVENÇÃO DE 1972 E OS
SÍTIOS HISTÓRICOS E
CULTURAIS: EXPERIÊNCIA
BRASILEIRA
A recente publicação simultânea de dois livros sobre os
sítios do Patrimônio Mundial no Brasil, ambos muito bem editados
e ilustrados, confirma a percepção de que o País dispõe de um
conjunto amplo e significativo de sítios históricos e culturais na
lista.
1
O impacto que tal conjunto tem na sociedade brasileira
pode ser medido pela freqüência com que a UNESCO é
mencionada na imprensa em relação a aspectos desses sítios, sejam
eles positivos ou negativos. Em época mais próxima, basta recordar
a mobilização nas cidades de Diamantina  inscrita na lista em
1999  e Goiás Velho  em dezembro de 2001  para demonstrar
o forte efeito que a candidatura à lista do Patrimônio Mundial
tem nas comunidades locais.
Tal efeito baseia-se no reconhecimento do valor excepcional
universal do sítio, que significa a legitimação de uma instância
internacional  a UNESCO  lastreada em pareceres de especialistas
brasileiros e estrangeiros. De imediato, o prestígio de pertencer à
lista do Patrimônio Mundial produz dividendos políticos e
1
São eles: Tirapeli, Percival. O Patrimônio da Humanidade no Brasil. São Paulo:
Metalivros, 2000; e Bicca, Briane (coordenadora). Patrimônio Mundial no Brasil.
Brasília: Caixa Econômica Federal, 2000. Ambos foram lançados em
dezembro de 2000.
128
econômicos, além de reforçar a auto-estima da população. As
ações de proteção do patrimônio, entretanto, continuam sob a
responsabilidade dos Estados-Partes, em nível federal, estadual e
municipal. Embora tenha repercussão sobre a administração local,
a ação da UNESCO projeta-se sobretudo no plano simbólico, já
que os recursos concedidos pela Organização a título de assistência
e treinamento de pessoal são, no caso brasileiro, marginais.
A Convenção de 1972 não tem como objetivo prioritário,
aliás, desembolsar recursos. A meta é contribuir para os esforços
de proteção e agregar dimensão internacional ao contexto local.
Recorde-se que o termo simbólico, no sentido antropológico,
refere-se ao conjunto de valores culturais e históricos realçados
pelo reconhecimento do sítio, que servem de referência para a
sociedade. A seguir, serão examinados os antecedentes que levaram
à inscrição desses sítios, em especial a relação com a proteção do
patrimônio implementada pela ação brasileira; ações da UNESCO
e estado atual dos sítios; e as perspectivas de futuras inscrições, à
luz das tendências atuais do Comitê do Patrimônio Mundial.
8.1 ANTECEDENTES
Os sítios culturais e históricos brasileiros na lista, com as
respectivas datas de inscrição, são os seguintes:
Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Ouro Preto (MG) 
5/9/1980;
Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico de Olinda
(PE)  17/12/1982;
Ruínas da Igreja de São Miguel das Missões (RS)  9/12/
1983;
Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Salvador (BA) 
6/12/1985;
Santuário do Bom Jesus de Matosinhos  Congonhas (MG) 
6/12/1985;
129
Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília
(DF)  11/12/1987;
Parque Nacional Serra da Capivara (PI)  13/12/1991;
Conjunto Arquitetônico e Urbanístico do Centro Histórico de
São Luís (MA)  3/12/1997;
Centro Histórico da Cidade de Diamantina (MG) 
30/11/1999; e
Centro Histórico de Goiás (GO)  18/12/2001
À exceção do Parque Nacional da Capivara, sob a
responsabilidade do Ibama, órgão do Ministério do Meio
Ambiente, os demais sítios são da esfera do Iphan, ligado ao
Ministério da Cultura.
Uma primeira leitura da lista brasileira indica que a maioria
dos sítios, seis em um total de dez, foi inscrita entre 1980 e 1987.
Em 1991 foi designado o Parque da Capivara, em 1997 São Luís e
em 1999 Diamantina. Esse hiato não passou despercebido pelos
observadores internacionais:
Precisamos ouvir a voz do Brasil, comentava-se nos corredores do
Comitê do Patrimônio Mundial em 1997. Em pouco mais de dez
anos, ela só se fez ouvir uma vez, em 1991, com a inscrição de
Capivara (...) Nos anos precedentes, o Brasil não só propôs a
inscrição de seis bens culturais (...) como provocou discussões
apaixonadas dentro do Comitê, contribuindo para a ampliação e o
aprofundamento dos critérios de inscrição (Halévy, 2000, p. 16).
Frise-se que o Parque Nacional da Capivara tem
características de rock art site, um subgrupo dentro da categoria de
sítios históricos e culturais, conforme a classificação do Centro
do Patrimônio, fato que o distingue dos demais e que condiciona
a avaliação e o debate em torno da inscrição.
Jean-Pierre Halévy, autor desse comentário, lembra as
candidaturas de Salvador e Bom Jesus do Matosinhos como
momentos fecundos da evolução do conceito de patrimônio no
130
âmbito do Comitê, quando foi debatido se os fenômenos de
mestiçagem e aculturamento estariam subavaliados na Convenção
de 1972.
2
Destaca também que o Brasil ao propor a candidatura
de Brasília, cidade e arquitetura do século 20, abriu uma brecha
nunca mais superada, senão de forma indireta pela Bauhaus alemã,
em 1999, mas que, a partir de então, o Comitê do Patrimônio
Mundial e o Brasil parecem ter seguido caminhos diversos.
Enquanto o Comitê elaborava em 1994 sua estratégia
global, com vista a tornar a lista mais equilibrada e representativa,
o Brasil passava, no âmbito da gestão do seu patrimônio, por
um difícil processo de discussão conceitual e de mudanças
institucionais, fato que poderia explicar seu longo silêncio nas
instâncias do Comitê (Halévy, 2000, p. 16).
Ouro Preto e as quatro inscrições na década de 80 evidenciam
o resultado de um trabalho que começou em 1937, com a publicação
do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro, ainda em vigor, que criou
o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), ligado
ao então Ministério da Educação e Saúde. Liderados por Rodrigo M.
F. de Andrade, um grupo de intelectuais lançou-se à tarefa de
inventariar e consolidar conceitualmente o tombamento de bens
artísticos e culturais brasileiros. Apoiando-se nas influências do
movimento modernista do início do século 20, a ação da Sphan
superou a tendência eclética da cultura brasileira do final do século
19 e promoveu a redescoberta dos valores brasileiros imantados
nas cidades históricas e monumentos, em especial no conjunto
artístico e arquitetônico de Ouro Preto. Otto Maria Carpeaux (apud
Gonçalves, 1996, p. 122) assinala que esta foi a terceira redescoberta
de Ouro Preto (depois dos bandeirantes, em 1698, e dos intelectuais
boêmios do Rio de Janeiro, em 1893), mas aquela que revelaria ao
Brasil moderno sua consciência histórica.
2
Halévy cita o texto de Léon Pressouyre, no mesmo trecho a que se refere no
Capítulo 7 sobre a Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial.
131
A afirmação lembra o destaque conferido por Françoise
Choay à ruptura do Quatroccento no que tange ao significado da
Antigüidade no século 14 e a importância desse momento para a
conscientização histórica do patrimônio. No plano especificamente
brasileiro, o tombamento de Ouro Preto fundamentou e
legitimou as ações posteriores do Sphan. O barroco mineiro
é percebido como emblemático, como a primeira manifesta-
ção cultural brasileira, possuidor da aura da origem da cultura
brasileira, ou seja, da nação. Daí o valor totêmico que se cons-
trói, sendo identificado, sistematicamente, como representa-
ção do autêntico, do estilo puro (Santos apud Fonseca,
1997, p. 99-100).
Além disso, não podemos esquecer que Ouro Preto e
outras cidades históricas de Minas são usadas como espaço
simbólico que dão concretude e autenticam os celebrados eventos
da Inconfidência Mineira (Gonçalves, 1996, p. 122). Em 1980 o
Brasil conseguiria afirmar, ao inscrever o sítio na lista do
Patrimônio Mundial, essa consciência histórica do patrimônio, e
promover o que seria a quarta redescoberta de Ouro Preto.
As candidaturas e aprovações de Olinda, Bom Jesus do
Matosinhos, Salvador, São Luís do Maranhão e Diamantina são,
em parte, tributárias, vistas do ângulo da UNESCO, da afirmação
de Ouro Preto  principal representante da civilização mineira, como
dizia Rodrigo M. F. de Andrade
3
 diante do Comitê do Patrimônio.
Embora as duas últimas tenham sido apresentadas no final
da década de 90  e por iniciativa dos governos estadual e
municipal, sobretudo no caso de São Luís do Maranhão, dado o
3
A maior concentração de monumentos que integram o patrimônio histórico
e nacional está localizada em Minas Gerais (...) O legado que nossos
antepassados nos deixaram, dessas venerandas cidades, vilas e povoações, tem
de ser computado, portanto, como as manifestações mais autenticamente
expressivas da civilização mineira.
132
silêncio brasileiro no Comitê do Patrimônio no período  ,
ambas contêm traços predominantes da cultura luso-brasileira
característica do período colonial, do qual indubitavelmente Ouro
Preto é o representante que mais se destaca. Apesar de ter sido
fundada por franceses e ocupada por holandeses, a inscrição da
capital maranhense foi justificada, conforme se lê no relatório da
21
a
sessão do Comitê do Patrimônio, considerando-se que o
Centro Histórico de São Luís do Maranhão é um exemplo notável
de uma cidade colonial portuguesa que se adaptou, com sucesso,
às condições climáticas da América do Sul.
Um caso especial foi a candidatura das Ruínas da Igreja de
São Miguel das Missões, um dos Sete Povos das Missões Jesuíticas.
Estimulada pelo Bureau do Patrimônio Mundial, envolveu
entendimentos com a Argentina, já que se trata de um conjunto
transfronteiriço, e foi precedida de uma campanha internacional
da UNESCO em favor da preservação das Missões Jesuíticas
Guarani, em 1978 (Telles, 2000, p. 24). Embora corresponda a
circunstância histórica distinta dos demais sítios, inclusive no que
toca ao estilo arquitetônico  chamado de barroco missioneiro
 São Miguel das Missões representa a vertente luso-brasileira do
universo ibero-jesuítico do sítio. Ao aprovar a segunda etapa da
inscrição, relativa ao setor argentino (1984), o Comitê do
Patrimônio convidou o Paraguai e o Uruguai a aderirem à
Convenção, tendo em vista esforço integrado de proteção na área.
Ambos o fizeram, em 1988 e 1989, respectivamente, e em 1993
foi inscrito na lista o sítio das Missões Jesuíticas La Santisima
Trinidad de Parana and Jesus de Tavarangue, no Paraguai.
Augusto Silva Telles lembra que em 1983 o Brasil apresentou
lista tentativa de sítios históricos e culturais suscetíveis de serem
inscritos e recebeu missão liderada por Michel Parent, então
presidente do Icomos, com a finalidade de analisar e opinar sobre
as indicações. Resultou daí uma lista com sítios posteriormente
aprovados  Salvador, Bom Jesus do Matosinhos, São Luís,
Diamantina e o Plano Piloto de Brasília  e relação hipotética a
133
explorar  Convento de Santo Antônio em João Pessoa; Mosteiro
de São Bento e Palácio Gustavo Capanema no Rio de Janeiro;
Conjunto da Pampulha e Tiradentes em Minas Gerais; além de
uma fazenda de café, um engenho de açúcar e alguma edificação
representativa do ciclo da borracha. A este grupo foi acrescentado,
em 1999, o centro histórico da cidade de Goiás, por iniciativa do
governo de Goiás.
A novidade desse mapeamento cultural delineado pela lista
foi o acréscimo, além do patrimônio luso-brasileiro, das obras
da arquitetura modernista brasileira, expressas no seu grau máximo
por Brasília. Poucos anos depois, em 1987  também estimulada
pelo governo local  a candidatura da capital brasileira inaugurou,
como assinalou Jean-Pierre Halévy, a inscrição de bens
contemporâneos na lista e consolidou as propostas dos
Congressos Internacionais de Arquitetura (Ciam), incorporadas
por Lúcio Costa no seu projeto, relativas a características próprias
de circulação, setores diferenciados de ocupação, áreas livres e
massas arbóreas.
4
Basta recordar o famoso discurso de André
Malraux  que, dentre outras atividades, foi figura fundamental
no classement (tombamento) moderno francês  , quando da
inauguração de Brasília, para situar o prestígio da cidade brasileira
enquanto expressão da utopia modernista, aspectos reconhecidos
pela decisão do Comitê do Patrimônio.
As duas vertentes  que podemos chamar, embora de
forma um tanto resumida, luso-brasileira e modernista 
presentes na atual relação de sítios inscritos e na lista tentativa,
4
(Choay, 1992, p. 225). A autora nota que au Brésil, cependant, les membres du
Ciam sont à la origine de la archicteture vernaculaire. A exceção brasileira refere-
se à vanguarda arquitetônica européia do século 20 presente no Ciam, que
chegou a militar contra a conservação de monumentos antigos. Choay cita
o Plano Voisin (1925), de Le Corbusier, que rasait le vieux Paris, ne laissant
subsister quune demi douzaine de monuments (p. 94). Lúcio Costa nos anos 20,
em visita a Diamantina, despertaria sua admiração pela arquitetura colonial
(Fonseca, 1997, p. 99).
134
são dominantes no que tange ao perfil do patrimônio histórico
e cultural brasileiro classificado na UNESCO. A proposta relativa
ao centro histórico da cidade de Goiás enfatiza, por seu turno, o
aspecto da arquitetura vernacular brasileira, fruto da ocupação
do Brasil central pelos bandeirantes. Entretanto, a avaliação
inicial do Icomos apresentada na 23
a
sessão do Bureau do
Patrimônio, em junho de 2000, ressaltou que o aspecto austero
da arquitetura de Goiás deveria ser melhor definido em
comparação às cidades mineiras, sobretudo Diamantina.
5
O Bureau do Patrimônio Mundial, em sua sessão no ano
2000, julgou procedente a observação do Icomos e retornou a
proposta à parte brasileira para reavaliação e aprofundamento
conceitual sobre a arquitetura vernacular, a fim de justificar o
caráter universal excepcional do sítio. A proposta foi reescrita pelo
professor Silva Telles e o assunto teve parecer favorável do Icomos
e do Bureau, em sua 25
a
sessão, em de junho de 2001. Obtidas as
recomendações positivas, o sítio foi inscrito na lista do Patrimônio
Mundial durante a reunião do Comitê de dezembro de 2001, na
Finlândia. O Comitê, como mencionado anteriormente, é a
instância final do processo de seleção.
Parecem estar perto do limite os fundamentos históricos
que nortearam as designações de sítios brasileiros até o presente.
Relacionada, por um lado, à conceituação que presidiu a
implantação da proteção do patrimônio no Brasil, na fase heróica
de Rodrigo M. F. de Andrade, e, por outro, ao exemplo modernista
de Brasília, a apreciação do Comitê do Patrimônio Mundial acerca
de candidaturas brasileiras deverá exigir doravante novo esforço
5
Segundo o relator do Icomos que examinou a proposta do centro histórico
de Goiás, não houve consenso entre os especialistas que analisaram o dossiê
sobre o caráter excepcional universal do sítio, sendo, para reapresentação do
pleito, de especial importância destacar as diferenças entre Diamantina e
Goiás, pois em caso contrário o Icomos e o Bureau poderão considerar que a
primeira já representaria esse tipo de arquitetura vernacular.
135
conceitual por parte de autoridades e especialistas para definição
do sítios brasileiros passíveis de serem inscritos na lista. Propostas
que apresentem exclusivamente patrimônio edificado deverão
encontrar dificuldades na apreciação pelo Icomos e órgãos
decisórios da Convenção de 1972.
O exemplo do Parque Nacional Serra do Capivara  inscrito
inicialmente na categoria cultural, foi objeto de proposta brasileira
para transformação em sítio misto, a ser decidida em junho de
2003  poderá servir de referência para a busca de alternativas. A
vertente dos sítios mistos, que contenham atributos da natureza e
registros humanos e possam ser inscritos com base em critérios
culturais e naturais, afigura-se, no caso brasileiro, promissora.
Nesse particular, poderiam ser considerados sítios representativos
da herança étnica brasileira. Em outro registro, das paisagens
culturais, caberia explorar caminhos indicados pelo relatório Parent,
no caso da paisagem cultural do Rio de Janeiro, por exemplo, ou
de fazendas de café e engenhos de cana-de-açúcar. Voltaremos a
esse tópico posteriormente.
8.2 A UNESCO E A EVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO
NO BRASIL
Cecília Londres Fonseca (1997, p. 17), ao notar que os quase
mil bens tombados pelo governo brasileiro funcionam mais
como símbolos abstratos do que como marcos efetivos de uma
identidade nacional com que a maioria da população se
identifique, lembra também que, no exterior, o Brasil continua
sendo valorizado sobretudo pelos seus recursos naturais, pela sua
natureza tropical  salvo nos meios intelectuais e nos organismos
internacionais de cultura, como a UNESCO. A autora fez essas
observações em um contexto no qual procurava evidenciar os
limites das políticas públicas de preservação, as quais, embora
sejam uma causa justa, tendem a ser consideradas como um
136
fardo por mentes mais pragmáticas, na medida em que atingem
grupo reduzido no conjunto da população brasileira.
A UNESCO, além de instância de legitimação internacional
do patrimônio brasileiro, exerceu, em alguns intervalos, influência
na condução do setor, como se depreende das menções à
Organização no estudo da autora. Ao historiar a evolução política
da questão do patrimônio no Brasil, Cecília Londres lembra que
foi à UNESCO que o Sphan recorreu, a partir de 1965, para
reformular e reforçar sua atuação, visando a compatibilizar os
interesses da preservação ao modelo de desenvolvimento então
vigente no Brasil.
A gestão de Rodrigo M. F. de Andrade chegara ao fim, e
com ele a imagem do Sphan como protagonista de batalhas
memoráveis em defesa do interesse público relativamente ao
patrimônio, contra proprietários e setores insensíveis da Igreja e
do poder público. Não obstante, tal imagem
foi substituída, em consonância com as diretrizes da UNESCO,
pela figura do negociador, que procura sensibilizar e persuadir
os interlocutores, e conciliar interesses: ou melhor, que procura
demonstrar que os interesses da preservação e os do
desenvolvimento não são conflitantes, mas, pelo contrário, são
compatíveis (Fonseca, 1997, p. 160).
O Brasil ingressava em nova era político-econômica, com
os governos militares, e a UNESCO foi chamada com o objetivo
de demonstrar a relação entre valor econômico e valor cultural.
Uma curta fase de transição, em que o poder supostamente
persuasório do organismo internacional foi convocado a cooperar
com a ação governamental orientada por um determinado modelo
desenvolvimentista.
Entretanto, a crescente participação de outros setores do
governo federal na política de preservação, por meio da Seplan, e
a criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), em
1975, sinalizaram insatisfação com o Iphan (novo nome do Sphan).
137
Assinala Cecília Londres Fonseca (1997, p. 16) que essas
iniciativas partiam do pressuposto que a estrutura e a experiência
do Iphan, mesmo com a colaboração da UNESCO, era insuficiente
para atender às novas necessidades de preservação.
Foi por meio do CNRC que Aloísio Magalhães firmou sua
atuação no patrimônio brasileiro, articulando projetos que
colocavam
entre parênteses modelos de interpretação já prontos, inclusive
os quadros conceituais das diferentes disciplinas, e procuravam,
através de uma perspectiva interdisciplinar, apreender a dinâmica
específica de cada processo cultural estudado, formulando, a
posteriori, tipologias e modelos.
Magalhães adotou visão que considera a cultura como fator
estimulante e inerente ao desenvolvimento econômico, visão que,
embora tivesse pontos de contato com as concepções então
elaboradas na UNESCO sobre desenvolvimento, entrava em
confronto com a ideologia desenvolvimentista que predominava
nos anos 70 (Fonseca, 1997, p. 168).
Vale aqui comentário sobre o que a autora qualificou como
as diretrizes da UNESCO. As diretrizes estão espalhadas em
diversos tipos de documentos  como, por exemplo, aqueles
obtidos por consenso em reuniões internacionais  e constituem
um conjunto genérico de princípios, reformulados periodicamente,
que decorrem do complexo processo decisório da Organização e
da tentativa de acomodar rigor científico ao planejamento de suas
ações em prol do desenvolvimento. Na citação acima, as
diretrizes são relacionadas com as capacidades de conciliação
e negociação  típicas características de um imaginário
diplomático. Seria precipitado e inadequado considerá-las
enquanto um corpo coerente de doutrinas aplicáveis aos Estados-
Partes. Dada a diversidade dos contextos nacionais, é tarefa
praticamente impossível formular e executar tal proposta, embora
por vezes lacunas institucionais nos países e uma certa exacerbação
138
das funções atribuíveis a uma organização internacional possam
gerar situações nas quais diretrizes da UNESCO possam ser
transpostas praticamente sem ajustes para políticas nacionais.
No caso em tela, as diretrizes não constituíam, certamente,
um conjunto coeso e efetivo de propostas em relação ao patrimônio,
aplicáveis a um país como o Brasil  mesmo em contextos mais
reduzidos, o alcance da UNESCO como formulador de políticas
será provavelmente limitado. Na melhor das hipóteses, o conjunto
de princípios que formula pode funcionar eventualmente como
referência para alguns países elaborarem suas legislações, o que não
era o caso do Brasil, cujo marco legal é de 1937.
A participação da UNESCO na transição de orientação do
patrimônio brasileiro sinaliza mais um sintoma do vácuo causado
pelo fim da fase heróica do Sphan  e a eventual legitimação
internacional que poderia aportar a alguns atores nacionais em
fase de mudanças institucionais  do que um suposto conjunto
de propostas. Desnecessário ressaltar, enfim, que o papel da
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial baseia-se sobretudo
no espaço multilateral de interação e legitimação que é capaz de
proporcionar aos Estados-Partes, e não na sua capacidade de
intervenção na condução dos assuntos internos.
Aloísio Magalhães mudou o enfoque do patrimônio no Brasil,
porém sua morte em Veneza  poucos dias antes de reunião do
Bureau do Patrimônio Mundial, na qual iria defender a candidatura
de Olinda, inclusive apresentando gravuras de sua autoria sobre
aquele sítio  encerrou prematuramente sua atuação. É de se esperar
que os desdobramentos de suas ações, caso pudesse levar adiante
seus projetos, tivessem repercussão igualmente no que toca à
participação brasileira na Convenção de 1972. Como apontado no
Capítulo 5 desta monografia, suas concepções têm solo comum
com os projetos da UNESCO no campo do patrimônio imaterial.
A eventual influência das diretrizes da UNESCO teve,
enfim, vida curta. Na década de 90 os corredores do Comitê do
Patrimônio Mundial, como salientou Jean-Pierre Halévy,
139
conviveram com o silêncio brasileiro. Na medida em que se
retomou o exercício democrático, nos anos 80, a questão do
patrimônio voltou à agenda política e em conseqüência prevaleceu
a tendência a tornar-se desnecessário o aporte internacional como
forma de legitimação interna.
Por outro lado, a crescente descentralização administrativa
da gestão do patrimônio brasileiro, como aponta Cecília Londres,
realçou a questão do tombamento nacional de bens, fato notável
em país das dimensões do Brasil, provocando mais um
distanciamento da esfera multilateral. Com as mudanças
institucionais no início dos anos 90, acentuaram-se ambas as
tendências, situação que prevalece até hoje, quando ocorre um
certo desinteresse do governo brasileiro no acompanhamento dos
temas que afetam o País no Comitê do Patrimônio Mundial, no
aspecto particular do patrimônio histórico e cultural.
A mobilização observada nas candidaturas recentes 
Diamantina e centro histórico de Goiás Velho  acrescido da
perspectiva futura de propostas ainda em gestação, como Rio São
Francisco e Parati, indica claramente, por outro lado, o impacto e
o prestígio de associar-se a proteção local do patrimônio à esfera
internacional.
8.3 MONITORAMENTO E ESTADO ATUAL DOS
SÍTIOS
Cabe assinalar, quanto à análise das ações da UNESCO
sobre o patrimônio histórico e cultural brasileiro, que a assistência
financeira da Organização, entre 1982 e 2000, tem alcance limitado.
Nesse período, a Organização desembolsou, para auxiliar a
preparação de candidaturas brasileiras à lista, cerca de 47 mil
dólares; na área de cooperação técnica, 273 mil dólares;
treinamento, 550 mil dólares; e assistência emergencial, 50 mil
dólares (em 1998, em razão de enchentes em Ouro Preto); e 57,7
140
mil dólares (em 2002, também em função de enchentes, em Goiás
Velho, logo após a inscrição na lista). Grosso modo, tais recursos
equivalem a pouco mais de 50 mil dólares por ano no período
mencionado. Note-se que a contribuição anual brasileira específica
do Centro do Patrimônio Mundial alcança cerca de 75 mil dólares,
equivalente a 1% do pagamento do Brasil à UNESCO.
No início da década de 90 foram realizadas missões de
monitoramento em seis sítios brasileiros, cujos resultados foram
encaminhados em 1995 ao governo brasileiro.
6
São relatórios
relativamente curtos, realizados com recursos humanos e
financeiros limitados, e cautelosos ao propor recomendações ou
fazer críticas. Escritos por peritos ligados ao Icomos, demonstram
conhecimento sobre a implementação dos parâmetros básicos da
Convenção de 1972, mas não alcançam densidade suficiente para
provocar impacto relevante nas administrações locais.
Em relação a Ouro Preto, o relatório, feito em 1991,
recomendou a elaboração de um plano de desenvolvimento urbano
e um plano mestre para o centro histórico, além de estudo sobre
impacto do turismo. No que toca à conservação, reconheceu
esforços de manutenção e preservação, mas chamou atenção sobre
indústria de alumínio instalada perto da cidade, bem como
adensamento do tráfico e expansão urbana. Em 1995 foi concedido
auxílio de vinte mil dólares, no seguimento do relatório, para
consolidação das encostas do Morro de Santa Casa, desde que a
reacomodação dos habitantes que viviam naquele local fosse feita
em condições aceitáveis. Em 1996 o diretor do Centro do
Patrimônio dirigiu carta ao delegado permanente do Brasil junto à
UNESCO para alertar, baseado em denúncia que recebera, sobre
siderúrgica da empresa canadense Alcan Aluminium que se
instalara perto da cidade, sem esclarecer se era a mesma mencionada
no relatório de 1991 (e encaminhado oficialmente em 1995).
6
Os relatórios foram remetidos ao governo brasileiro em abril de 1995, cada um
deles precedido de carta do diretor do Centro do Patrimônio Mundial à época.
141
O exame de Salvador, feito em 1992, recomendou fosse
formulado plano por zonas de modo a integrar a área histórica ao
centro da cidade, bem como estudadas alternativas de investimento
para habitação naquela área. Apesar de a área apresentar sinais de
deterioração física, o relatório do perito detectou grande vontade
política do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac),
órgão local do patrimônio, para realizar reformas.
Quanto a Olinda, o monitoramento reiterou que, malgrado os
progressos da administração municipal, ainda era preciso aperfeiçoar
a descentralização administrativa e melhorar a receita da prefeitura,
liberando investimentos para habitação. Recomendou, em especial, a
criação e desenvolvimento do Parque de Salgadinho, que
proporcionaria espaço de lazer à população e inibiria invasões.
Criticou uma certa inoperância do IBPC (nome, àquela altura, do
Iphan), lembrando as condições problemáticas da cidade em termos
de solo e topografia, além das invasões e excesso de turistas.
O Parque da Capivara e as Ruínas de São Miguel mereceram
comentários genéricos, com a ressalva de que são sítios distantes
de adensamentos urbanos. Em ambos foram feitas recomendações
para incremento do turismo, sublinhando-se, no caso das Missões
Jesuíticas, estímulo à realização de reuniões com países do
Mercosul para gerar circuitos de turismo cultural. Note-se que a
UNESCO acumulou variado acervo de experiências no que tange
ao turismo cultural, podendo por conseguinte não apenas propor
como mesmo liderar iniciativas nesse sentido.
7
A pouca repercussão desses relatórios, entretanto, está ligada
não apenas à limitação dos recursos investidos na ocasião pela
UNESCO, mas sobretudo à eventual desarticulação entre as
autoridades brasileiras, locais e federais, relacionadas com o patrimônio.
7
Ver, por exemplo, a publicação Tourism Management in Heritage Cities, sobre
seminário internacional realizado em dezembro de 1998 em Veneza, editada
pela UNESCO. A Divisão do Patrimônio da UNESCO desenvolve atividades
desse tipo em diversas regiões.
142
É evidente que a ação da UNESCO não substitui o
gerenciamento do sítio, tarefa complexa que se desdobra em nível
municipal, estadual e federal. Ao mesmo tempo em que se faz
necessário mais empenho por parte da Organização  o que se
espera venha a ocorrer com a realização da Revisão Periódica dos
sítios latino-americanos, em 2003  , a parte brasileira poderia
articular esforços internos de recuperação de sítios históricos para
intercambiar experiências com a UNESCO.
Nesse sentido, cabe registrar que o Programa Monumenta,
atualmente em fase inicial, desenvolvido pelo Ministério da Cultura
(MinC) com recursos do BID  cerca de duzentos milhões de dólares
 e parceria da UNESCO, por meio do seu escritório de representação
em Brasília, poderá repercutir favoravelmente junto aos sítios
históricos brasileiros inscritos na lista do Patrimônio Mundial.
O Programa Monumenta é talvez o mais ambicioso projeto
de recuperação de áreas históricas sob proteção federal no Brasil,
atingindo, segundo o Boletim informativo do MinC, Cultura Hoje (15/
11/2000), vinte cidades, algumas delas com sítios do Patrimônio
Mundial, Salvador, Olinda, Ouro Preto, São Luís, Brasília, Diamantina
e Congonhas. Os recursos visam a recuperação sustentável dos
centros históricos, e serão concedidos com a contrapartida
orçamentária dos municípios, que assinaram acordo de cooperação
com o MinC. A parceria da UNESCO foi articulada e negociada pelo
escritório de representação da Organização em Brasília.
O projeto beneficiará, portanto, áreas protegidas no âmbito
da Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial. Será útil e
oportuno, do ponto de vista da análise da ação da UNESCO no
Brasil, avaliar o papel da Organização, quando da Revisão Periódica
dos sítios, no âmbito do referido programa.
Mencione-se, por fim, o caso de Brasília, igualmente objeto
de monitoramento, em 1993. Dentre as recomendações, constam:
criação de um comitê permanente com autoridades nacionais e
locais para discutir projetos de relevo; conservação de zonas não-
construídas para distinguir Brasília e áreas povoadas de seus
143
arredores; construção de centro cultural perto dos ministérios,
como previa o projeto original de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
Quanto à conservação, o relator da UNESCO considerou
o estado geral adequado, com as seguintes observações: leis
estavam sendo publicadas para proteção do sítio sem afetar o
desenvolvimento; por ser organismo vivo, e ainda em
desenvolvimento, é natural que hajam pressões em diversos
aspectos, mas a legislação e as normas de proteção deveriam levar
em conta a realidade de uma cidade que requer conservação e
desenvolvimento; outro fator a beneficiar a conservação é a política
da terra, uma vez que o GDF é o dono do solo.
Dentre as recomendações, foi sugerido a criação de um
fórum de conservação sobre Brasília. O Comitê aprovou, em
1997, auxílio de trinta mil dólares para seminário sobre
conservação do sítio, mas o GDF cancelou o evento e solicitou
uso daquele recurso para exposição promocional sobre Brasília,
afinal não realizada.
Posteriormente, em junho de 2000, o Centro do Patrimônio
dirigiu carta à Delegação Brasileira encaminhando material coligido
pelo escritório da UNESCO em Brasília e pela representação do
Iphan/Centro-Oeste contendo série de denúncias sobre
desvirtuamento do plano original de Lúcio Costa na atual
administração do GDF. Em dezembro daquele ano, na 24
a
sessão do
Bureau do Patrimônio Mundial, em Cairns, o representante do Icomos
enfatizou a necessidade de uma missão para investigar os relatórios
sobre as ameaças ao meio ambiente do sítio, parecer que foi aceito
pelo Bureau, o qual solicitou ao Estado-Parte que fornecesse um
relatório sobre as questões acima levantadas, até 15 de abril de 2001.
O observador do Brasil presente à sessão lembrou que,
embora a cidade esteja enfrentando desafios devido ao crescimento
populacional, o que levou a uma certa tensão na periferia, o centro
da cidade que compõe o Patrimônio Mundial não foi afetado,
negativamente, por nenhum dos novos desenvolvimentos,
144
apontando ainda que a recomendação adotada pelo Bureau naquela
sessão não refletia a situação do sítio. Tais observações foram
publicadas no relatório da sessão preparado pelo Centro do
Patrimônio. Na 24
a
sessão do Comitê, realizada imediatamente depois
da do Bureau, a
delegação brasileira foi confrontada com números da população das
cidades adjacentes e do Plano Piloto equivocados. Essas falhas
motivaram protestos da delegação quanto à imprecisão dos números
e a confusão entre Plano Piloto, cidades-satélite e cidades do Entorno.
8
O relatório solicitado pelo Comitê do Patrimônio, realizado
pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação
do governo do Distrito Federal (GDF) e pelo Iphan, foi
encaminhado na data solicitada, prevendo-se exame pelo Icomos e
posterior avaliação pelo Bureau do Patrimônio, em sua reunião de
25 de junho de 2001.
Embora o Plano Piloto da capital não tenha sido submetido
diretamente a pressões demográficas significativas nos últimos dez
anos, o crescimento populacional das cidades-satélite e regiões anexas
atingiu mais de 30% no período citado. O fenômeno, segundo o
relatório, refletiu-se na infra-estrutura do Plano Piloto, sobretudo
nos aspectos de transporte e meio ambiente, ameaçando a integridade
do sítio. Tanto o Iphan  que está elaborando o Plano de Conservação
 e o GDF  que termina o Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano  comprometeram-se a tomar medidas estratégicas de
planejamento, envolvendo participação da comunidade, consolidação
da legislação e coordenação entre agências governamentais.
O Bureau decidiu enviar missão à Brasília, constituída por
representantes do Centro do Patrimônio Mundial e do Icomos,
realizada em novembro de 2001. Sua avaliação foi no sentido de sugerir
série de medidas de monitoramento dos aspectos mais sensíveis
8
Relatório da delegação brasileira presente à sessão, em 29/12/2000.
145
quanto à preservação do Plano original, como zoneamento urbano,
meio ambiente, e crescimento populacional. A recomendação final
excluiu, entretanto, inclusão do sítio na lista em perigo, parecer acatado
pelo Comitê em sua sessão de dezembro daquele ano, em Helsinque.
A possibilidade de inclusão de Brasília na lista de sítios em perigo
foi afastada, mas não se pode excluir no futuro tal desdobramento, à
luz da disposição inicial de exigir resposta do governo brasileiro. O
assunto deverá voltar à pauta do Bureau do Patrimônio em 2004. Dado
o comprometimento das autoridades, exposto no relatório e confirmado
na missão do Centro, é provável que Brasília continue fora de eventual
inclusão na lista de sítios em perigo.
Há que se ter presente, contudo, que não interessa à parte
brasileira sequer a menção ao sítio tal como colocada na reunião de
Cairns, sendo necessário, por conseguinte, manter coordenação
entre as esferas federal e distrital para verificação e transmissão de
informações corretas, a fim de prevenir com antecedência fatos
como este. A utilização da Convenção do Patrimônio Mundial em
eventual polarização política no contexto brasiliense, como sugere
o noticiário na imprensa, não se afigura, em princípio, desejável.
9
Entretanto, cabe ao Comitê zelar pela conservação do sítio, na
medida em que este foi inscrito na lista do Patrimônio, o que pode
induzir a pressões políticas no plano interno.
O caso de Brasília ilustra a necessidade de maior
articulação do governo federal com a administração distrital, não
apenas no que diz respeito ao Iphan, como também ao Itamaraty.
Revela, também, o impacto que o tema alcança na opinião
pública. A hipótese de o sítio vir a ser incluído na lista em perigo
teria evidentemente alto custo político, daí a necessidade e a
conveniência de harmonização das agências governamentais
envolvidas a fim de que se evite tal possibilidade.
9
A cobertura do assunto chegou à primeira página no diário Correio Braziliense
nas datas próximas à entrega do relatório, nos dias 10 e 14 de abril de 2001.
146
8.4 CONCLUSÃO PARCIAL
Sublinha Jean-Pierre Halévy que
O Brasil é um dos raros países a apresentar uma gama completa
de patrimônio, da pré-história a Brasília. Completa e sem rupturas.
Entre os homens da pré-história brasileira e os povos indígenas
que aqui habitavam no momento da chegada dos portugueses é
possível identificar uma continuidade. Entre os índios e os
brasileiros, essa continuidade é uma certeza,
E prossegue afirmando que a originalidade primeira do
Brasil é a unidade da cultura brasileira, baseada em
fundamentos inconscientes e alcançada quase sem se dar
conta. Interroga-se, a seguir, sobre a definição de valor
universal que deve ser atribuído a um sítio para ser inscrito na
lista do patrimônio. A universalidade, segundo ele,
não é a generalização, em escala planetária, de uma determinada
maneira de proceder, a uniformização que implica a globalização.
Pode-se dizer que o valor universal é aquele que, por meio das
diferenças, de singularidades extremas, faz pressentir a unidade
da humanidade. Afinal, a Convenção do Patrimônio Mundial não
está fundada nesse postulado? O Brasil poderia lançar uma bela
luz sobre esse debate.
O Brasil teria forjado o que Halévy (2000, p. 18-19) chamou
de dupla universalidade, nas dimensões exterior e interior, uma
redescobrindo as condições primitivas do homem sobre a Terra pela
pobreza e pelo isolamento, e a outra procurando definir seu lugar no
conjunto das nações. A tensão resultante dessa ambivalência explicaria
a dificuldade de decifrar a realidade brasileira mais recôndita. E
também a dificuldade encontrada para comemorar o Quinto
Centenário do Descobrimento: o brasileiro não sabe se está do
lado dos índios, dos europeus ou dos negros. Ou melhor, ele sabe
que é os três ao mesmo tempo.
147
A citação é longa, mas pertinente no âmbito desta
monografia, na medida em que desenvolve um exercício de
reflexão sobre a cultura brasileira e sua inserção no processo
evolutivo da Convenção de 1972 sobre Patrimônio Mundial. Trata-
se de um texto introdutório a publicação recente (dezembro de
2000) sobre o Patrimônio Mundial no Brasil, com o objetivo de
estimular nos brasileiros a procura e a seleção de novos parâmetros
e novas propostas de inscrição na lista.
O pluralismo cultural que caracteriza o Brasil, objeto de
extensa literatura no País, pode ter na Convenção de 1972 um
instrumento de apoio e divulgação no Brasil e no exterior. A
perspectiva descortinada por Halévy é ambiciosa, na medida em
que propõe um painel histórico de onde os responsáveis pela
política do patrimônio elegeriam pontos de contato com as três
etnias formadoras do Brasil. A síntese operada em território
brasileiro, com suas turbulências e suas riquezas, constituiria em
si mesma valioso patrimônio de caráter universal, digno de ser
considerado como parâmetro conceitual.
O Brasil poderia, no entender de Halévy, demonstrar novas
alternativas para a Convenção do Patrimônio Mundial. Eventual
inscrição do centro histórico de Goiás na lista seria a última, nessa
linha de raciocínio, a basear-se principalmente na
representatividade de um conjunto arquitetônico representativo
da formação histórica brasileira.
Entretanto, seria prematuro considerar tal perspectiva como
exeqüível, pelo menos em curto e médio prazos. Afigura-se
prioritário e realista consolidar as ações do patrimônio no Brasil,
seja em termos de restauração e preservação dos sítios já
tombados e inscritos na lista, seja em termos de assimilação de
crescimento urbano, como é o caso particular de Brasília. Vimos
como a Convenção de 1972 pode desempenhar papel importante
na conservação do Plano Piloto da capital federal.
Em se tratando das culturas negra e indígena, será
fundamental promover reflexão na sociedade brasileira, sobretudo
148
por meio da articulação de órgãos como a Funai e a Fundação
Palmares com setores acadêmicos, além do Iphan e Ministério do
Meio Ambiente, antes de coordenar, juntamente com o Itamaraty,
eventual candidatura brasileira. A Reserva Florestal Costa do
Descobrimento, sítio sobre o qual falaremos no próximo capítulo,
inclui centros históricos e população indígena, constituindo-se
portanto em uma primeira experiência nessa direção.
No momento, a evolução mais provável e factível para
novas candidaturas brasileiras à lista do patrimônio que
contenham elementos históricos e culturais aponta para a
categoria de sítios mistos, levando-se em conta, sobretudo, o
potencial brasileiro e o interesse que a Secretaria de
Biodiversidade e Florestas do MMA tem demonstrado em relação
à Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial, tema que será
também desenvolvido no próximo capítulo. As propostas de
Parati e do Rio São Francisco poderiam explorar esse potencial.
Os exemplos do engenho de açúcar e fazenda de café
estariam incluídos na categoria cultural landscape, variante que o
Brasil ainda não explorou. Nesse contexto, foi formado grupo
de trabalho com representantes dos Ministérios da Cultura e
Meio Ambiente com o objetivo de avaliar e preparar a proposta
relativa à paisagem cultural do Rio de Janeiro, que incorporaria
sugestões do relatório Parent e agregaria o Parque Nacional da
Tijuca, o Pão de Açúcar e o Jardim Botânico.
Trata-se de candidatura evidentemente importante, que
poderá consolidar uma parceria entre os dois ministérios tendo
em vista futuras propostas.
10
A candidatura foi aceita pelo Bureau
do Patrimônio Mundial, em sua reunião de março de 2002, e
deverá ser examinada pelo Comitê em junho de 2003.
10
Conforme depoimentos ao autor do secretário da Biodiversidade e Florestas
do MMA, José Pedro Costa, e do secretário do Patrimônio, Museus e Artes
Plásticas do MinC, Octávio Elíseo Alves de Brito.
149
Rodrigo Mello Franco de Andrade, o pioneiro do
patrimônio no Brasil, já alertava, na introdução ao primeiro
número da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
que o Decreto-Lei de 1937 prevê não somente a proteção a
monumentos históricos e obras artísticas, como também a
paisagens e sítios dotados pela natureza ou agenciados pela
indústria humana.
151
9. CONVENÇÃO DE 1972 E OS
SÍTIOS NATURAIS:
PERSPECTIVAS PARA O BRASIL
O imaginário europeu foi pródigo em descrever a natureza
luxuriante ao falar sobre as terras do Novo Mundo, verdadeiro Éden
na inspiração de inúmeras obras na literatura, na pintura ou na música.
No caso brasileiro, recorde-se o trecho da carta do Piloto Anônimo
 um dos três documentos de testemunho da descoberta do Brasil,
ao lado de Pero Vaz de Caminha e mestre João Faras  que fala dos
bons ares e da paisagem exuberante das novas terras, destacando
igualmente os cabelos longos e negros e os corpos formosos das
belas nativas (apud Klein, 2000, p. 7). O trecho inaugurou uma visão
que concebe a paisagem brasileira mesclando exaltações naturais e
etnográficas, na qual sobressai uma natureza sensual e diversa.
Nos dias de hoje o olhar estrangeiro sobre as riquezas
naturais do Brasil ainda guarda, de certa forma, o mesmo
assombro desses viajantes, dos cientistas aos iconógrafos que
percorreram o País, em particular no século 19.
1
Quem buscar,
descobrirá os muitos viajantes que estiveram na terra tropical em
expedições arriscadas, desvelando territórios que tempos depois
seriam transformados em parques nacionais (Klein, 2000, p. 7).
Franz Post, Debret, Rugendas, para lembrar os artistas mais
1
A expressão é de Barbara Freitag (Portela, 2000, p. 225).
152
conhecidos, ao lado de biólogos e zoólogos, como Humboldt,
Maximiliano de Wied e Von Martius, produziram um amplo
testemunho de fauna e flora que permanece subjacente na
percepção idealizada da biodiversidade existente no Brasil. A
dimensão conservacionista que se agregou, em especial no que se
refere às ações e convenções internacionais sobre meio ambiente,
atualizou a percepção para parâmetros científicos contemporâneos.
A implementação da Convenção de 1972 do Patrimônio
Mundial em relação aos sítios naturais no Brasil é, no plano
simbólico, expressão a um só tempo de preocupação e fascínio
com a exuberância da natureza brasileira. Canaliza, por um lado,
desejo da comunidade internacional de conservar porções
representativas de uma das biodiversidades mais ricas do planeta,
adicionando a esfera multilateral de proteção à legislação interna.
Desperta nos brasileiros, por outro lado, reações contraditórias,
entre os que alertam sobre a submissão parcial do controle da
gestão do território nacional decorrente da inscrição dos sítios na
lista, e aqueles que enxergam no mesmo ato de inscrição
manifestação da capacidade gerencial moderna do meio ambiente,
positiva para alavancar recursos no exterior e para o turismo.
Para o Brasil, a tendência atual é inscrever sítios naturais na
lista do patrimônio, à luz: do menor número destes em relação
aos sítios históricos e culturais; da magnitude do acervo natural
brasileiro; da possibilidade de inscrever sítios mistos, com
relevância para os atributos naturais; e do déficit geral de sítios
naturais na lista (563 culturais, 144 naturais e 23 mistos em 125
países). Uma das questões que surge de imediato é sobre a
capacidade brasileira de designar e administrar novos sítios, na
medida em que a Convenção de 1972 impõe parâmetros de
conservação e manutenção, sob pena de inclusão do sítio na lista
em perigo, como foi o caso do Parque Nacional de Iguaçu.
Recapitularemos, inicialmente, os sítios brasileiros que integram
o conjunto do Patrimônio Mundial, e sua relação com o conjunto
de parques e demais áreas de proteção existentes no Brasil.
153
9.1 ANTECEDENTES
Atualmente são sete os sítios naturais brasileiros inscritos
na lista do Patrimônio Mundial, a saber:
Parque Nacional do Iguaçu  (PA), inscrito em 5/12/1986;
Costa do Descobrimento reservas da Mata Atlântica
(BA e ES), em 29/11/1999;
Reservas da Mata Atlântica do Sudeste  (PA e SP)  em
29/11/1999;
Parque Nacional do Jaú  (AM)  em 28/11/2000;
Área de Conservação do Pantanal  (MT e MS)  em
28/11/2000;
Zonas Protegidas do Cerrado: Parques Nacionais Chapada dos
Veadeiros e Emas  (GO)  em 14/12/2001; e
Ilhas Atlânticas Brasileiras: as reservas de Fernando de Noronha
e Atol das Rocas  (PE e CE)  em 14/12/2001.
A primeira observação que cabe fazer é sobre a diferença
temporal entre as datas de inscrição. O Parque Nacional do Iguaçu
entrou para a relação da UNESCO em 1986, inspirado mais na beleza
natural impactante que exibe, acrescida de registro conservacionista,
do que nos atributos de biodiversidade, como passou a prevalecer
nas inscrições brasileiras a partir de 1999. Na descrição de Iguaçu
exposta na Web page do Centro do Patrimônio Mundial, lê-se:
O parque compartilha com o Iguazu National Park na Argentina
uma das maiores e mais impressionantes cataratas do mundo, com
cerca de 2.700 metros de comprimento. Muitas espécies raras e
ameaçadas da flora e da fauna vivem no parque, entre outras, a
lontra gigante e o tamanduá gigante. As nuvens de chuva
produzida pela queda dágua contribuem para o crescimento da
vegetação luxuriante.
O processo de seleção do Parque de Iguaçu, ocorrido no
início da década de 80  período em que não havia se consolidado
154
a política ambiental no Brasil  correspondeu a um prolongamento
da área de proteção do lado argentino da fronteira, inscrita na
lista do patrimônio desde 1984. Embora os parques tenham
administrações distintas, tratava-se, no ângulo do Comitê do
Patrimônio, de um sítio transfronteiriço, cuja indicação foi
estimulada sobretudo pela oportunidade de se criar um espaço
contínuo de preservação com o Parque Nacional Iguazu argentino.
Em 1999, a ênfase nas novas inscrições deslocou-se para a
riqueza biológica, com os atributos de beleza passando para
segundo plano. A Web page do Centro descreve as reservas da Mata
Atlântica do Sudeste nos seguintes termos:
As reservas da floresta atlântica do sudeste, nos Estados de Paraná
e São Paulo, contêm alguns dos melhores e maiores exemplos de
floresta atlântica no Brasil. As 25 áreas protegidas que formam o
sítio (cerca de 470.000 ha no total) revelam a riqueza biológica e
a história evolucionária das últimas florestas atlânticas
remanescentes. Desde as montanhas cobertas por densas florestas
até a wetland, ilhas costeiras com montanhas e dunas isoladas, a
área compreende um rico meio ambiente natural de beleza cênica.
Em 1992 ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, que alterou substancialmente
a ação dos Estados sobre seus patrimônios naturais, consolidando
mudanças institucionais iniciadas nos anos 70 e 80. Os resultados
da Eco-92 exerceram influência igualmente sobre a Convenção
de 1972. Em 1992 foi criado o Ministério do Meio Ambiente
(MMA), incorporando estruturas da antiga Secretaria do Meio
Ambiente da Presidência da República (Semam) e posteriormente
anexando o Ibama. As transformações internas e externas tiveram
repercussão na estratégia nacional de conservação e, em
conseqüência, no processo que levou a inscrição dos novos sítios
naturais na lista, a partir de 1999. Tal estratégia  que em termos
gerais prevê a proteção de áreas representativas dos biomas
brasileiros  é talvez a principal motivação para novas inscrições
155
na lista do patrimônio, conforme se depreende com o recente
aumento de sítios naturais, e da lista tentativa do Centro, na qual
constam oito sítios naturais potenciais no que toca ao Brasil.
A referida estratégia informa também a expansão das
reservas da biosfera no Brasil, como se mencionou no Capítulo
6. A conseqüência foi uma nova interação entre o Programa MAB
e a Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial com os objetivos
da política de meio ambiente no Brasil. Cabe aqui uma
esclarecimento, ainda que breve, desses objetivos.
Em artigo recente, três cientistas brasileiros resumiram a
evolução dos critérios para estabelecimento de áreas protegidas
no Brasil (Cavalcanti, Pinto, Silva, 2000). Apesar de o escopo da
análise ultrapassar os objetivos da presente monografia, vale
mencionar alguns aspectos relevantes, tendo em vista a relação
com a lista de sítios naturais da Convenção de 1972. Sublinhando
que os grandes parques e reservas brasileiros, em especial na
Amazônia, são um desenvolvimento recente dos últimos vinte
anos, o estudo salienta, contudo, que as oportunidades para criar
novas áreas protegidas no Brasil se tornarão, cada vez mais,
limitadas. As razões derivam principalmente de fatores
socioeconômicos e disponibilidade de terras públicas. Trata-se então
aplicar novos conceitos  entre eles landscape ecology e biodiversity
corridor  para consolidar as zonas protegidas e reforçar a conexão
no contexto de uma matriz de áreas florestais sob proteção.
Dados do MMA de 1998 indicam haver no Brasil pouco mais
de mil áreas protegidas, em nível federal, estadual ou municipal, ou
cerca de 7% do território, com a porcentagem caindo para 3%
consideradas as zonas sob proteção restrita. Note-se também que,
segundo lista preparada pela ONU em 1997, seria 8% o porcentual
de áreas terrestres protegidas no mundo, quase 12 milhões de
quilômetros quadrados. Além disso, no Brasil, ressaltam os autores,
muitas das áreas de grandes dimensões sofrem com falta de
planejamento e respectivas ações, fatos que prejudicam os objetivos
de proteção. Em uma época na qual os governos tendem a cortar
156
cada vez mais seus investimentos e reduzir pessoal  e com
crescente resistência, de setores diversos, a intervenções estatais
sobre uso da terra  impõe-se a necessidade de selecionar e
direcionar as ações governamentais.
São sugeridas estratégias para manter e fortalecer o sistema
de proteção florestal, que incluem:
1) a adição de valor às áreas, de modo a estimular e
ampliar interesses dos stakeholders na proteção;
2) estímulo à consciência pública e à aceitação política
acerca da importância do sistema;
3) o emprego de critérios ecológicos, em particular aquele
adotado pelo governo brasileiro no seu projeto de
conservação e uso sustentável para o Global
Environmental Facility (GEF), o qual, baseado em
consultas à comunidade local, cientistas e ONGs,
procurou definir prioridades de conservação a partir do
cruzamento de dados biológicos com a ocupação da terra
e pressões demográficas; e
4) finalmente os corredores de biodiversidade, conceito
que lembra o Programa O Homem e a Biosfera da
UNESCO, e que procura levar em consideração a matriz
de hábitats que formam a paisagem e suas interações,
especialmente em relação à manutenção da relação entre
as unidades paisagísticas.
A implementação desse conjunto de sugestões gerou ações
no Cerrado, no Pantanal, na Floresta Atlântica, na Amazônia, na
Caatinga e nas zonas marinhas e costeiras, os biomas brasileiros.
Vimos como a designação de reservas da biosfera no Brasil vem
procurando seguir essa lógica, que também se aplica ao caso dos
sítios naturais do Patrimônio Mundial. A inscrição na lista do
Parque Nacional do Jaú e da Área de Conservação do Pantanal
adicionou valor turístico e ampliou a consciência pública a respeito
da conservação. Por sua vez, a inclusão das reservas da Mata
157
Atlântica do Sudeste e a Costa do Descobrimento  reservas da
Mata Atlântica  sublinhou o uso de novos critérios ecológicos e
aplicações interdisciplinares.
Desnecessário frisar que a designação desses sítios não
interfere no seu manejo, feito de acordo com a legislação brasileira,
e que significa tão-somente o reconhecimento da comunidade
internacional, por meio da Convenção de 1972, dos esforços de
proteção que cada Estado parte realiza em seu território. A
existência de legislação adequada é uma das condições para
inclusão na lista do patrimônio.
A despeito de conhecidas dificuldades estruturais, o Brasil
tem tradição na proteção ambiental. Com efeito, já em 1876 o
engenheiro e abolicionista André Rebouças, inspirado pela criação
do Parque de Yellowstone, sugeria ação semelhante para Sete Quedas
e Ilha do Bananal. Em 1937 e 1939 foram estabelecidos os primeiros
parques  Itatiaia, Iguaçu e Serra dos Órgãos. Hoje o País conta
com 42 parques nacionais, 21 deles abertos a visitas. A Lei nº 9.985
 Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
(SNUC), de 18 de julho de 2000, já mencionada no Capítulo 6,
prevê categorias complementares, definidas como: áreas de proteção
ambiental, áreas de relevante interesse ecológico, parques nacionais,
estações ecológicas, reservas biológicas, reservas ecológicas, reservas
extrativistas, florestas nacionais e reservas particulares.
A demarcação de áreas protegidas tem com objetivo
contribuir para o desenvolvimento sustentável do País, elegendo
porções do território aptas à preservação e utilizando-as como
espaço privilegiado de pesquisa, em um contexto imune, em tese,
a pressões políticas e econômicas.
Os parques nacionais são áreas que possuem ecossistemas
totalmente inalterados ou parcialmente modificados pela ação
humana, de interesse especial do ponto de vista científico, cultural,
recreativo e educativo. O recente reconhecimento do Parque
Nacional do Descobrimento e do Parque Nacional do Pau-Brasil
 voltados à proteção não apenas dos recursos naturais, como
158
também do patrimônio de significação histórica e cultural  sinaliza
igualmente articulação com a Convenção de 1972, já que logo
depois, em dezembro de 1999, foi inscrito na lista do patrimônio
o conjunto Costa do Descobrimento  reserva da Mata Atlântica.
A candidatura relativa ao Parque Nacional Chapada dos
Veadeiros, inscrita na lista em 2001, insere-se igualmente na
estratégia de eleger pelo menos um sítio representativo de cada
bioma brasileiro, no caso o Cerrado do Planalto Central. Após
avaliação da União Mundial pela Natureza (IUCN) sobre o parque
no ano 2000, que considerou insuficiente o pedido, foi
acrescentado o Parque Nacional das Emas, também em Goiás, à
proposta. A IUCN emitiu parecer favorável após sua ampliação e
o Comitê acolheu favoravelmente a proposta, na sessão de
dezembro de 2001, em Helsinque.
A inscrição dos sítios naturais na lista acompanha, portanto,
a política de conservação ambiental brasileira, conferindo
visibilidade internacional a áreas selecionadas. Ao fazê-lo,
entretanto, amplifica a exposição das dificuldades internas
inerentes à implementação dessa política. Uma das questões, à
luz da escassez de recursos, é o dilema entre a expansão de áreas
protegidas e a consolidação das existentes. Cabe ao governo
brasileiro articular-se como um todo para permitir que a designação
dos parques nacionais na lista do patrimônio seja feita de forma
realista e proporcione benefícios à sociedade. A coordenação prévia
para as propostas que se avizinham é necessária e inadiável, como
veremos adiante, após o exame do caso de Iguaçu.
9.2 PARQUE NACIONAL DE IGUAÇU: SÍTIO EM
PERIGO
Em julho de 1999, a 23
a
sessão do Bureau do Patrimônio
Mundial recomendou a inclusão do Parque Nacional de Iguaçu
na lista de sítios em perigo. A decisão deu-se após uma série de
159
advertências sobre ameaças à integridade do parque, concentradas
sobretudo na reabertura ilegal da Estrada do Colono, em 1997, e
no sobrevôo com fins turísticos de helicópteros a baixa altitude.
A questão da estrada já era do conhecimento do Comitê  em 1986,
quando da aprovação do sítio, o delegado brasileiro presente à sessão
informou ao Comitê do Patrimônio Mundial que a estrada que
atravessava a zona selvagem desse Parque Nacional, levada ao
conhecimento desse Comitê pela IUCN, havia sido fechada.
A posição do Bureau baseou-se em relatório da IUCN, que
mencionou também a construção da hidrelétrica Salto das Caixas,
que poderia igualmente causar dano ao parque. O relatório
concluiu sugerindo a inclusão do sítio na lista em perigo sobretudo
em razão da reabertura da estrada. A 23
a
sessão do Comitê do
Patrimônio, realizada em dezembro de 1999 em Marrakesh, acatou
a recomendação da IUCN endossada pelo Bureau.
Após três anos, por ocasião da 25
a
sessão do Comitê, em
dezembro de 2002 na capital finlandesa, o sítio foi retirado da lista
em perigo. Vale a pena examinar a evolução do tema para avaliar o
impacto da Convenção de 1972 em uma questão interna brasileira.
A partir de 2000, as sessões posteriores do Bureau e do
Comitê mantiveram a decisão de incluir o sítio na lista em perigo
 sem referir-se à hidrelétrica  uma vez que a parte brasileira não
logrou convencer a IUCN e os Estados-Partes acerca da
proximidade de uma solução. Com 18 quilômetros de extensão, a
estrada permite aos usuários evitar a volta ao parque para atingir
a fronteira, trajeto que acarretaria percurso de 130 quilômetros.
A comunidade local, espalhada em 17 municípios, apóia, em
princípio, o uso da estrada. Foi fundada uma entidade, a Associação
de Integração Pró-Reabertura da Estrada do Colono, com
representantes dos municípios adjacentes ao parque, que estimou
perdas em torno de R$ 4 bilhões entre 1986 e 1997. Note-se que
estava sendo feita cobrança de pedágio pelos municípios,
procedimento ilegal, segundo o MMA.
160
O fato de ter sido classificado como patrimônio em perigo
adicionou mais um elemento à polêmica  demonstrado pela
referência seguida à UNESCO na imprensa, especialmente a
paranaense
2
 caracterizando portanto um caso crítico no que
toca à implementação da Convenção de 1972 no Brasil.
A recomendação do Bureau, de 1999, é a seguinte:
A Estrada do Colono foi reaberta, ilegalmente, em maio de 1997.
O Ministério Público Federal está, presentemente, processando
as comunidades locais daquela área pela reabertura da estrada, e
as agências federais e estaduais por não terem mantido o
fechamento da estrada. A maioria da população local desejava
manter o uso da estrada porque ela encurta, em cerca de 130 km,
a distância entre as comunidades ao sul e norte do parque. A
estrada nortesul divide o parque em dois e resultou na abertura
de sua cobertura ao longo da maior parte de sua extensão. Essa
estrada levou à destruição de partes da floresta, interrompeu o
movimento da vida selvagem entre as seções oriental e ocidental
do parque, e provocou um grande impacto sobre o valor do
Patrimônio Mundial do sítio. A comunidade acadêmica e de
pesquisa expressou uma preocupação especial em relação à
preservação do jaguar que pode estar ameaçado de extinção, uma
vez que seu hábitat foi separado por essa estrada. A estrada está
levando a um aumento do assoreamento de riachos e rios e à
alteração de sistemas de drenagem, além de agravar o impacto
sobre os valores de Patrimônio Mundial. A estrada também abriu
o parque para a extração ilegal de madeira e da caça e pesca ilegais.
Esta foi a posição do Comitê do Patrimônio em relação o
assunto, reiterada na 24
a
sessão, em Cairns, dezembro de 2000.
Os esforços do governo federal são reconhecidos, bem como a
resistência da comunidade local. A ameaça à integridade do parque,
entretanto, é sublinhada, na medida em que a estrada expõe
2
Artigos do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (PA), de 17/11/2000  STF
determina reabertura da Estrada do Colono  e 18/11/2000  Ibama vai
impor regras para uso da Estrada do Colono.
161
perigosamente espécies animais, além de causar alterações
ambientais danosas ao equilíbrio ecológico. Para os que
acompanham as deliberações do Comitê, dos representantes dos
Estados-Partes aos técnicos da IUCN, não há dúvidas de que se
trata de uma tensão federativa, com o Poder Executivo
questionando, por vias legais, a abertura de uma estrada cuja
construção foi decidida em nível municipal e que atravessa
território protegido por legislação federal.
Em maio de 2001 o Supremo Tribunal Federal decidiu em
favor da União, autorizando o Ministério do Meio Ambiente e o
Departamento de Polícia Federal a tomar medidas cabíveis para o
fechamento da estrada. O fato foi comunicado ao Comitê do
Patrimônio Mundial, e o assunto foi objeto de exame com vista à
retirada do sítio da lista em perigo. Em princípio, como ocorre
em casos semelhantes, o Comitê preferiu aguardar algum tempo a
fim de permitir consolidação das medidas tomadas. Como as
informações prestadas foram consideradas suficientes, o sítio
terminou sendo removido da lista em perigo em 2002.
A questão dos helicópteros afigura-se também superada,
apesar de a parte argentina levantar eventualmente o assunto. Em
14 de novembro de 2000 o diário argentino Clarín publicou
entrevista do governador Jaime Lerner, do Paraná, reiterando
decisão de suspender definitivamente o sobrevôo. No relatório
da sessão em Cairns já não havia menção a helicópteros. Segundo
o MMA, estão em curso estudos sobre o impacto ambiental dos
vôos de helicóptero, já restritos a altitude mínima de 300 metros,
tal como acordado com o governo argentino.
Outro ponto a preocupar foi o vazamento de óleo da
Petrobrás ocorrido em julho de 2000 no Rio Iguaçu e suas
eventuais conseqüências para o parque, ponto manifestado pela
Delegação da Argentina junto à UNESCO. Queria a parte
argentina, com o Brasil, assistência técnica emergencial, afinal
desnecessária à luz do relatório apresentado pelo Ministério do
Meio Ambiente e considerado suficiente pelo Centro do
162
Patrimônio. Este, não obstante, continua atento ao tema, como
indica correspondência do diretor do Centro ao governo brasileiro,
datada de 20 de dezembro de 2000, quando foi solicitado, além de
relatório sobre progressos de eventual fechamento da Estrada do
Colono, atualização de informações sobre o vazamento.
O monitoramento efetuado pelo Comitê foi, portanto,
equilibrado e não insinuou nenhum indício de ingerência na
soberania brasileira. Manteve-se, entretanto, em uma linha rigorosa
de acompanhamento, com o objetivo de preservar a integridade
do sítio, sem dúvida um dos mais famosos da lista. Quanto à
estrada, a inclusão na lista em perigo tendeu a favorecer o governo
federal, na medida em que acrescentou mais uma instância de
pressão contra o funcionamento atual da estrada.
Como observado no Capítulo 7, os sítios considerados em
perigo muitas vezes passam por um longo processo de revisão
até voltarem ao status anterior. Recorde-se também que os
dispositivos previstos na diretrizes operacionais da Convenção
de 1972 relativos à lista de sítios em perigo visam, do ponto de
vista do Comitê, contribuir para a gestão adequada dos sítios.
Inserida nesse processo está igualmente a possibilidade de que se
encontre margem de entendimento entre as partes, eventualmente
por via judicial, de modo que sejam encontradas soluções e o
conflito possa ser contornado.
9.3 NOVAS CANDIDATURAS
A lista tentativa do Centro do Patrimônio relativa ao Brasil
relaciona os seguintes sítios naturais: Parque Nacional Serra da
Canastra; Parque Nacional Serra do Divisor; Estação Ecológica
de Anavilhanas; Reserva Ecológica Raso da Catarina; Estação
Ecológica do Taim; Reserva Biológica do Atol das Rocas; Parque
Nacional Serra da Bocaina; e Parque Nacional do Pico da Neblina.
Na categoria sítios mistos, constam: Complexo Vale do Ribeira;
163
e Área de Proteção Ambiental Cavernas do Peruaçu. Frise-se que
a lista é submetida pelo Estado-Parte, de acordo com o artigo 11
da Convenção, tendo em vista futura proposta de sítios localizados
em seu território. Sua função é a de servir como instrumento
auxiliar de planejamento para inscrições. Na prática, contudo, a
lista tende a funcionar como um registro de intenções, podendo
ser modificada a qualquer momento para novas inclusões. A cidade
histórica de Goiás, por exemplo, foi incluída na lista tentativa quando
sua candidatura já se achava em preparação, uma vez que a motivação
se deu mais no plano estadual do que no âmbito do Iphan.
As questões mais complexas e relevantes surgiram em
relação a duas propostas, uma concluída com sucesso  a do Parque
Nacional Fernando de Noronha, inscrita com o nome de Ilhas do
Atlântico Brasileiro  e outra referente ao Parque Nacional da
Serra do Divisor, ainda sob consideração no âmbito do governo
brasileiro. Ambas propostas são de iniciativa da Secretaria de
Biodiversidade e Florestas do MMA. Nos dois casos registraram-
se posições distintas de setores do governo brasileiro com respeito
à oportunidade da inscrição na lista do Patrimônio Mundial.
O Parque Nacional Fernando de Noronha foi proposto
juntamente com o Parque Nacional do Jaú e a Área de Conservação
do Pantanal, em 1999. Trata-se de uma área exemplar no que tange
a grandes sistemas montanhosos submarinos de origem vulcânica,
acrescida de elevada diversidade biológica. A missão de avaliação
da IUCN, que esteve no parque em fevereiro de 2000, reconheceu
esses atributos, ressaltando ainda que o sítio dispõe de uma
história de ocupação interessante que deixou um rico patrimônio
cultural.
3
A posição estratégica conferiu grande importância
militar ao arquipélago, e em conseqüência uma rede de dez
3
IUCN. Evaluation UICN des propositions dinscriptions de sites naturels et mixtes sur
la liste du patrimoine mondial, Rapport au Bureau du Comité du patrimoine
mondial, 24 ème. Session, 5 mai 2000. O relatório sobre o Parque Fernando
de Noronha está nas páginas 29 a 32.
164
fortalezas  que exibem hoje diferentes estágios de conservação
 foram edificadas ao longo do litoral da ilha principal. Se
considerarmos o tamanho do território, cerca de 17 quilômetros
quadrados, trata-se, sem dúvida, da maior densidade de construções
militares no mundo. A possibilidade de propor Fernando de
Noronha como sítio misto não foi considerada, entretanto, pelas
autoridades brasileiras, a julgar-se pelo relatório da IUCN.
Não obstante, a recomendação final foi devolver a proposta ao
Estado solicitante a fim de que fossem fornecidas informações
suplementares, uma vez que a candidatura baseou-se nos quatro critérios
para sítios naturais e o documento preparado pela parte brasileira foi
considerado insuficiente. O Bureau, na sua 24
a
sessão em julho de
2000, acatou a sugestão, conforme registrou o relatório do encontro:
A IUCN informou ao Bureau que o sítio havia sido inscrito dentro
dos quatro critérios para sítios naturais, mas que a informação
fornecida não fora suficiente para justificar sua indicação. O
Bureau decidiu deferir a indicação para que o Estado-Parte
pudesse providenciar informações complementares como base
para a inscrição do caso. O observador do Brasil informou ao
Bureau que seu governo pretende apresentar uma indicação
revisada para uma área maior.
O observador a que se refere o relatório era o secretário
da Biodiversidade e Florestas do MMA, José Pedro Costa, presente
ao encontro. Sua proposta previu a inclusão no conjunto do Atol
das Rocas, reserva biológica que consta da lista tentativa brasileira,
e do arquipélago de São Pedro e São Paulo, ao norte de Fernando
de Noronha, com o objetivo de ampliar o escopo da proteção
ambiental e reforçar a candidatura.
Entretanto, informação posterior indicava que a Comissão
Interministerial para os Recursos do Mar (Cirm) estava
coordenando esforço científico no sentido de identificar o bioma
das áreas da Zona Econômica Exclusiva, desdobramento previsto
pela Convenção do Mar da ONU, em particular no que toca aos
165
processos ecológicos correspondentes relativos à Fernando de
Noronha e adjacências. Em conseqüência, foi sugerido o
adiamento da proposta brasileira para aquele sítio, tendo em vista
fosse feita avaliação mais abrangente de sua oportunidade.
Determinadas regiões, em especial parques marítimos ou
aqueles situados em zonas fronteiriças, requerem o
acompanhamento de outros setores do governo, além do meio
ambiente, em todas as etapas do processo, tendo em vista os
desdobramentos que a inscrição do sítio irá acarretar. A
necessidade de que seja alcançado consenso interno  ou seja, a
precisa definição das competências  é fundamental para
encaminhamento dessas propostas, assim como para as futuras
revisões e providências que se fizerem necessárias.
O Cirm criou Grupo Especial de Trabalho para avaliar a
proposta de inclusão do sítio na lista do Patrimônio Mundial. Foi
obtido consenso favorável a novo pedido de inscrição, com a
extensão do Atol das Rocas e Arquipélago de São Pedro e São
Paulo. O acerto interno foi obtido em tempo hábil para permitir
encaminhamento oficial da solicitação ao Centro do Patrimônio.
A candidatura foi finalmente aprovada na 25
a
sessão do Comitê,
em Helsinque, dezembro de 2001.
Tal coordenação será também imprescindível no caso do
Parque Nacional da Serra do Divisor, incluído na lista tentativa
do Centro do Patrimônio e sobre cuja inscrição manifestou-se
favoravelmente o MMA. Situado no extremo ocidental brasileiro,
a noroeste do Estado do Acre e na fronteira com o Peru, o parque
tem um perímetro de 500 quilômetros e cerca de 843 mil hectares,
com acesso vedado  por enquanto  ao público.
4
Criado em 1989,
no final do governo Sarney, foi uma das respostas às pressões de
4
O Guia Philips dos Parques Nacionais do Brasil (2000, p. 88) indica, na seção
referente ao Parque da Serra do Divisor estarem em estudos planos para a
implantação de turismo e educação ambiental.
166
entidades ambientalistas na década de 80, sobretudo após o
assassinato do seringueiro Chico Mendes. Dotado de uma riqueza
excepcional no que toca à biodiversidade, permanece praticamente
intocado. Reúne, em suma, todas as variáveis complexas e
específicas que caracterizam o universo amazônico. Situa-se,
entretanto, na fronteira, e pode provocar, quanto a uma possível
inscrição na lista do patrimônio, reações das mais diversas.
O presidente Fernando Henrique Cardoso lembrou, em seu
discurso na 4
a
Conferência dos Ministros da Defesa das Américas,
realizada em Manaus, outubro de 2000, o fascínio que a região
amazônica desperta em todo o mundo, inclusive no Brasil,
sentimento que poderia levar a posições extremas e nem sempre
racionais. Por um lado, no exterior, recorde-se as campanhas feitas
em vários países desenvolvidos, especialmente nos anos 80, que
consideravam a Amazônia como pulmão do mundo e patrimônio
universal (frise-se que o contexto em que foi utilizada a palavra
patrimônio, tal como ONGs e a imprensa o fizeram, não tem
nenhuma relação com a Convenção de 1972 do Patrimônio
Mundial). Por outro, no Brasil, saliente-se a postura defensiva que
vê nas iniciativas que envolvam atores externos  como é o caso
da Convenção de 1972  tentativas mais ou menos disfarçadas de
internacionalização da Amazônia.
Não é difícil entender as razões que levam o governo
brasileiro a conceder atenção especial à região, fato realçado pela
realização da conferência supracitada. Riquezas naturais, inclusive
no subsolo, reserva de água potável  commodity de custos
crescentes  baixa densidade populacional, longas fronteiras e
perigos externos, como narcotráfico e guerrilhas, caracterizam a
Amazônia. A preocupação com a soberania territorial é evidente
e incontornável. Em 1978 foi assinado o Tratado de Cooperação
Amazônica, que relaciona os oito países da região, e em 1989 foi
acordada a Declaração da Amazônia, na qual foi reiterado o
direito soberano de cada país administrar livremente seus recursos
naturais. No plano da segurança, o programa Calha Norte e o
167
projeto Sipam/Sivam são as principais ações em curso, com a
ressalva de que não se trata de reforçar militarmente a região,
mas de levar a presença do Estado aos pontos mais remotos da
fronteira amazônica e criar melhores condições de vida para a
população local.
5
A inclusão do Parque Nacional da Serra do Divisor na lista
do patrimônio implica em um potencial de situação embaraçosa
para o Brasil, na medida em que incorreria, segundo uma visão
mais restrita, em limitação da soberania e prejuízo a eventuais
operações de fronteira. Implícita nessa argumentação está a
preocupação de que a inscrição do parque na lista da UNESCO
venha a inibir no futuro ações do governo brasileiro na região.
Fica claro, portanto, a necessidade de harmonização de posições
internas antes do encaminhamento da proposta.
Vimos no Capítulo 7 como a concepção de soberania
modernizou-se face à evolução do Direito Internacional. Para
inserir-se internacionalmente, é preciso que os países façam
concessões como as previstas na Convenção de 1972, desde que,
naturalmente, seja vantajoso. A concessão, nesse caso, seria
submeter o gerenciamento do parque à fiscalização internacional,
sob pena de inclusão do sítio na lista em perigo.
A prioridade amazônica tem como pilar a necessidade de
fazer chegar o Estado nas regiões mais remotas, como destacou o
presidente da República, e a designação do Parque da Serra do
Divisor na lista do patrimônio poderia apontar, caso equacionada
satisfatoriamente, nessa direção. Recorde-se que o Parque Nacional
do Jaú, na região central amazônica, foi inscrito em dezembro de
2000, constituindo-se no primeiro sítio representativo daquele
bioma na lista do patrimônio. Não obstante, será preciso, no caso
da Serra do Divisor, dissipar dúvidas quanto à eventual
5
Discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na 4
a
Conferência dos
Ministros da Defesa das Américas, Manaus, outubro de 2000.
168
vulnerabilidade futura da soberania em caso de inscrição, tendo
em vista a proximidade com a fronteira. Às Forças Armadas
incumbe a missão constitucional de proteger o território brasileiro,
necessitando portanto operar em áreas fronteiriças. Cabe às
diversas instâncias governamentais interessadas confrontarem suas
posições a fim de verificar a oportunidade e o momento adequado
de encaminhamento da proposta.
O Ministério do Meio Ambiente é favorável à inscrição do
Parque da Serra do Divisor na lista do patrimônio. Estão previstos
recursos significativos do Programa Proecotur para aplicação em
equipamentos turísticos, e a inscrição irá evidentemente beneficiar
o investimento. Além disso, a área apresenta, segundo o MMA, a
maior diversidade de espécies entre todas as áreas protegidas
brasileiras, o que reforça o propósito de agregar a dimensão
internacional de proteção.
Sublinhe-se também preocupação da Funai em relação à
Serra do Divisor, região na qual existem chances de haver tribos
não contatadas ou ainda em processo de reconhecimento étnico,
inclusive na área protegida. Ademais, registram-se movimentos
de comunidades indígenas do Peru ao longo da fronteira,
pressionadas pelo narcotráfico e pela exploração ilegal de madeiras.
Reportagem que a Folha de S. Paulo publicou, em 2 de janeiro de
2001, informa que a Polícia Federal encontrou evidências de que
madeireiros peruanos estão atuando em território brasileiro, no
oeste do Acre. A reserva indígena Kampa, dos índios Ashaninkas
 que se distribuem dos dois lados da fronteira , adjacente ao
parque, no Alto Juruá, teria sido invadida. As árvores mais
procuradas são o cedro e o mogno. Casos como este demonstram
a porosidade da fronteira e a dificuldade de administrá-la.
Não há dúvida, enfim, de que a inscrição do Parque Nacional
da Serra do Divisor terá que ser precedida de amadurecimento
interno no governo brasileiro, à luz das múltiplas dimensões da
questão. A inclusão do sítio na lista do Patrimônio Mundial irá
acrescentar mais uma, na medida em que o parque terá que se
169
submeter a revisões periódicas  conduzidas por peritos
estrangeiros, com acompanhamento das autoridades brasileiras 
e seu gerenciamento será constantemente testado, sobretudo no
que tange à capacidade de reação diante de situações críticas. Não
se trata de abrir mão da soberania territorial, mas de submeter-se
a parâmetros adotados consensualmente pelos Estados-Partes da
Convenção de 1972, que podem levar, entretanto, a certos
constrangimentos internos.
9.4 CONCLUSÃO PARCIAL
A tendência de aumentar o número de sítios naturais
brasileiros na lista do patrimônio afigura-se previsível. Coincide,
em princípio, com os objetivos da política para o meio ambiente
coordenada pelo MMA, em particular no que toca à consolidação
das unidades de conservação ambiental e ao estímulo do
desenvolvimento sustentável, de acordo com as características
regionais brasileiras. Poderá, caso bem-sucedida, agregar valor
importante para a administração dos parques, contribuindo para
captação de recursos no exterior e incrementando o turismo.
A expansão da fronteira econômica no processo de
desenvolvimento brasileiro, como o demonstra o caso particular
da Amazônia, impõe sejam estabelecidos mecanismos que
proporcionem uma estratégia de longo prazo, de modo a evitar a
degradação ambiental provocada pelas atividades econômicas de
caráter imediatista. O zoneamento eco-econômico será,
obviamente, o instrumento inicial, operando como um indutor
seletivo de prioridades regionais (Franco, 1995, p. 50). A
designação de parques nacionais na lista do Patrimônio Mundial
poderá vir a ser, uma vez bem-conduzida e administrada, um dos
vetores dessa estratégia.
Não obstante, o caso do Parque Nacional do Iguaçu mostra
que a inclusão na lista também pode ser um fator a mais de pressão
170
no cenário interno. Torna-se fundamental, em conseqüência,
coordenar posições e articular a coerência interna de modo a
prevenir situações embaraçosas, que possam influenciar
negativamente esforços de preservação.
A eventual candidatura do Parque Nacional da Serra do
Divisor, pela sua localização geográfica, deverá ser precedida de
consenso nas áreas do governo interessadas. Desnecessário enfatizar
a dimensão das repercussões diante de eventual crise caso o Parque
do Divisor venha a ser inscrito na lista do Patrimônio Mundial sem
o necessário apoio dos órgãos governamentais interessados.
171
Mais do que o poder militar e estratégico, a capacidade de
influência do Brasil depende de uma espécie de soft power que
deriva com a identificação com as boas causas nas mais variadas
áreas das relações internacionais. Esse soft power será tanto mais
decisivo quanto maior for a coincidência com os ideais que
professamos e a realidade interna do país.
O trecho foi extraído de artigo na revista Política Externa,
de agosto de 2001, de autoria de Gelson Fonseca, atual
Representante brasileiro junto à ONU, e Benoni Belli, intitulado
Novos desafios das Nações Unidas. A proteção do patrimônio
no âmbito da UNESCO, podemos agregar, seria uma das boas
causas a que se refere o artigo. O presente trabalho insere-se no
escopo sugerido pela citação.
Inicialmente, a evolução conceitual do patrimônio foi objeto
de breve retrospecto, baseado em autores contemporâneos na
França e no Brasil, além de considerações específicas sobre o
patrimônio natural. Embora não tenha sido tarefa dessa seção
cobrir o tema em toda sua amplitude e citar todos os autores
importantes  basta lembrar lacunas como John Ruskin e Aloïs
Riegl  buscou-se situar o assunto em uma perspectiva histórica
de modo a ilustrar os fundamentos da noção de patrimônio.
Podemos afirmar que o Brasil, malgrado o período histórico
relativamente curto a partir da colonização portuguesa, dispõe de
densa tradição sobre o assunto.
Por seu turno, a noção de patrimônio na UNESCO adquiriu,
com a evolução do tema, significado amplo e diversificado  abrange,
como sublinhado na Introdução a este trabalho, monumentos
históricos, conjuntos urbanos, locais sagrados, obras-de-arte,
parques naturais, paisagens modificadas pelo homem, ecossistemas
e diversidade biológica, tesouros subaquáticos, objetos pré-
históricos, peças arquitetônicas, e tradições orais e imateriais da
CONCLUSÃO GERAL
172
cultura popular. Ao Brasil, podemos concluir, interessa acompanhar
esse tratamento amplo do tema, à luz da diversidade que caracteriza
o País e das obrigações legais, no âmbito da legislação brasileira, de
proteger nosso patrimônio, cultural e natural.
A ampla noção de patrimônio alcança sobretudo valores
culturais, mas a importância conferida ao meio ambiente após a
Eco-92 reforçou a dimensão científica à proteção do patrimônio
natural na UNESCO. Vimos como se deu a implementação do
Programa o Homem e a Biosfera, pioneiro na área ambiental ao
introduzir a idéia de desenvolvimento sustentável.
Voltando ao patrimônio cultural, foram examinadas
igualmente a ação da Organização na elaboração dos instrumentos
de proteção em caso de conflito armado  conseqüência da 2º
Guerra  e contra o tráfico ilícito de bens culturais, que afeta
sobretudo países em desenvolvimento. Mencionou-se também a
proteção ao patrimônio subaquático, com a recente aprovação da
Convenção, e o patrimônio imaterial, em fase inicial de negociação,
podendo gerar também instrumento específico de proteção. Tais
assuntos  que são tratados pela área cultural da UNESCO,
subdividida em seções específicas  merecem, por parte do Brasil,
acompanhamento atento e equilibrado, de modo a promover a
defesa de nossos interesses e contribuir para a implementação da
política de proteção no espaço multilateral da UNESCO. Em
particular, para um país como o Brasil, sublinhe-se a relevância
de instrumento internacional relativo ao patrimônio subaquático.
Ao longo dos anos, desde a sua criação, a UNESCO atuou
como instância multilateral de reflexão  incorporando
contribuições de cientistas, historiadores, acadêmicos, juristas e,
mais recentemente, das chamadas organizações não-
governamentais  e de ação, sobretudo normativa  por meio da
interação com os Estados-Membros. No que toca ao patrimônio,
essa combinação entre reflexão e ação gerou  e continua a
estimular  convenções internacionais, resoluções da Conferência-
Geral, programas de cooperação, e transferência de conhecimento.
173
País vasto, dotado de um pluralismo cultural vigoroso, ao
lado de uma natureza rica e variada, não há dúvida que tais
elementos estimulam seja feita coordenação interna para assumir
uma política coerente em todas essas instâncias e permitir
participação coesa nas ações da UNESCO, tendo em vista nosso
interesse em reforçar o sistema multilateral como um todo.
Atenção especial foi conferida à Convenção de 1972 do
Patrimônio Mundial  tema afeto a uma instância específica, o
Centro do Patrimônio Mundial  que é sem dúvida o instrumento
de maior visibilidade e que movimenta mais recursos na área do
patrimônio. Foram examinadas as vertentes cultural e histórica,
por um lado, e a natural e mista, por outro, privilegiando e
procurando analisar o oportunidade de o Brasil inserir-se nesse
processo. Verificamos que tal oportunidade manifesta-se
sobretudo pelo estímulo que pode aportar à implementação das
políticas cultural e ambiental no Brasil. Tais fatores indicam a
pertinência de um acompanhamento ativo desses temas.
Vale recordar que a defesa de nossos interesses passa
também pela atenção às obrigações decorrentes da Convenção de
1972, sobretudo no que toca à eventual inclusão de sítios
brasileiros na lista em perigo. O caso do Parque Nacional Iguaçu,
no qual o governo federal está sendo obrigado a tomar medidas
que afetam os contextos estadual e municipal, e o de Brasília, que
exigiu esforço adicional de informação a fim de evitar-se embaraço
político indesejável, mostram que a implementação da Convenção
de 1972 implica igualmente articulação interna com vista a
neutralizar ou atenuar possíveis efeitos negativos, especialmente
em relação à opinião pública. É necessário, portanto,
institucionalizar espaço de coordenação que permita quebrar a
inércia entre esferas administrativas e atenuar ou neutralizar a
tensão federativa resultante desses episódios.
Outra conclusão deste trabalho, no que toca aos sítios
históricos e culturais, é que seria oportuno e desejável maior
coordenação entre as agências interessadas, no âmbito dos
174
Ministérios da Cultura e Meio Ambiente, além de instâncias estaduais
e municipais, inclusive da sociedade civil, a fim de preparar de forma
consistente novas candidaturas à lista do Patrimônio Mundial. No
caso dos sítios naturais, não resta dúvida que é preciso articular
consenso entre as áreas ambientais e aquelas voltadas à defesa e
segurança, além de setores específicos, como a Funai, para adequado
encaminhamento das propostas de novas designações.
Ao Itamaraty, pelo seu papel constitucional, cumpre a
função de coordenar as diversas posições internas com vista a
uma desejável harmonização, em particular no caso da Convenção
de 1972. Nesta, o selo da UNESCO confere prestígio e
proporciona dividendos turísticos e econômicos, mas exige
igualmente atenção para cumprimento adequado das obrigações.
O objetivo desse trabalho foi, enfim, examinar as variantes
em que a proteção de patrimônio é implementada na UNESCO, e
o conjunto de dividendos que tais ações podem gerar no Brasil.
Um Estado moderno não pode abdicar de desenhar e implementar
políticas públicas de proteção ao seu legado histórico, e suas
riquezas culturais e naturais. É do interesse brasileiro, em
conseqüência, acompanhar e participar das ações, sobretudo as
normativas, no âmbito da proteção ao patrimônio na UNESCO.
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Diplomata desde 1980, serviu em Nova York, Tel Aviv e
Pequim. Atualmente está lotado na Delegação do Brasil junto à
UNESCO, onde acompanha assuntos ligados à proteção do
patrimônio. É professor da Faculdade de Comunicação da Unb
desde 1982.
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