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COLECÇÃO REVIVENDO
N.° 4
COELHO NETTO
A BICO DE PENA
LELLO & IRMÃO
EDITORES
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Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
«REVIVENDO»
É o título de uma encantadora colecção que os
editores LELLO & IRMÃO lançam no mercado,
no intuito de reviverem livros que o público
consagrou.
N.o 1 - COELHO NETTO, miragem, 4.
a
edição. »
2 —JOÃO GRAVE, o PASSAÈo, 2
a
. edição. »
3 —ANATOLE FRANCE, JOCASTA, l.a edição. .»
4 —COELHO NETTO, a bico de pena, 3
a
. edição. »
5 — JOÃO GRAVE, JORNADA ROMÂNTICA, 2.a edição. »
6 — PINTO DA ROCHA, TALITA, 3.
a
edição. »
7 - COELHO NETTO, ÁGUA DE JUVENTA. 3.
a
edição. »
8 - JOÃO GRAVE, REFLORIR, 3.
a
edição. »
9 — COELHO NETTO,
ESFINGE, 3.
a
edição. »
10 —MÁRIO SETTE, VIGIA DA CASA GRANDE, l.
a
edição.
NOVOS VOLUMES SE SEGUIRÃO
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A Bico de Penna
COELHO NETTO
Obras de COELHO NETTO
Sertão.
A Bico de Penna.
Água de Juventa.
Romanceiro.
Theatro, vol. I (O Relicário, Os Raios X,
O Diabo no corpo).
Theatro, vol. II (As Estações, Ao Luar,
Ironia, A Mulher, Fim de Raça).
Theatro, vol. IV (Quebranta, comédia
em 3 actos, e o sainete Nuvem).
Theatro, vol. V (O dinheiro, Bonança, e
o Intruso).
Fabulario.
Jardim das Oliveiras.
Esfinge
Inverno em Flor.
Apólogos, contos para crianças.
Miragem.
Mvsterios do Natal, contos para crianças.
O Morto.
Rei Negro.
Capital Federal.
A Conquista. Tormenta.
Tréva. Banzo.
Turbilhão.
O meu dia.
As Sete Dores de Nossa Se-
nhora.
Balladilhas.
Pastoral
Vida Mundana.
Patinho torto.
Ás quintas.
Scenas e perfis.
NO PBÉLO; Feira livre.
Immortalidade. O Paraíso.
Bazar. Theatro lyrico.
A propriedade alteraria e artística está garantida em todos
os países que aàheriram á convenção de Berne (Em
Portugal pela lei de 13 de março de 1911 No Brasil
pela lei n.° 2577 de 17 de janeiro de 1912).
LAVRADORES
Entre as sabias máximas dos etruscos, esses cria-
dores da riqueza do campo latino, maximas que
Plinio, mui judiciosamente, appellidou «oracula»,
uma das mais concisas devia ser escripta em taboas
que fossem levantadas em altos postes, fincados nas
encruzilhadas, nos ferteis outeiros, entre as
plantações, impondo-se como preceito a todos os
agricultores que, de passagem, de manhan, em rumo
aos talhões e, á tarde, recolhendo á casa, vissem e
meditassem as suas singelas palavras : «Máu é o
lavrador que compra aquillo que a terra lhe pode
dar».
Esses povos de tanta rusticidade, quasi barbaros,
dedicando-se exclusivamente á terra com um amor
avárc, vendo num torrão uma riqueza, numa
semente de trigo ou de linho õ pão ou o fio,
considerando o alqueive como a melhor fortuna,
esposando a leira pela qual viviam sacrificando aos
deuses para que lhes não faltassem com a. rega
fecunda nem lhes demorassem nos canteiros as
geadas esterilisadoras.
6 A BICO DE PENNA
gozando deliciosamente o suave aroma dos fenos
cortados, alegrando-se com o lourejar da seara,
ondulante, extasiando-se com o fresco cantar das regas,
ao mugir melancolico dos gados, ao zumbir dos enxames,
tinham noções exactas da verdadeira economia e da
sciencia facil e tão pouco praticada do bem viver. «Máu é
o lavrador que compra aquillo que a terra lhe póde dar».
Assim tiravam elles da terra o barro e as ripas com
que edificavam a casa e modelavam o forno, a lenha que
queimavam, o trigo que amassavam e coziam, o linho
que as mulheres fiavam e com que teciam os vestidos e a
lençaria domestica, a fruta, o azeite e o vinho.
Nos pastos engordavam o armentio que lhes fornecia
os bois robustos que, ao doce cerrar da tarde, lentamente,
pelos caminhos cheirosos, levavam o pesado carro das
colheitas, a vacca de ubres pejados, a rez para o corte e a
ovelha que se despia da lan para vesti-los.
A agua era bebedouro no remanso e, correndo,
escachoava na azenha d'onde sahia repartindo-se em
azequias que iam abeberar as raizes; e, isolados nos seus
casaes, tinham os lavradores todo o necessario para a
vida e das sobras abundantes faziam commercio levando-
as ás feiras periodicas.
A terra não se recusa a criar a semente qualquer que
ella seja : prometta arvore frondosa ou seja o simples
germen de um arbusto; o seu seio acolhedor é uma
grande maternidade — ali acham abrigo favoravel todas
as plantas : a seiva que alimenta o jequitibá não deixa
inanida a relva, circula de uma a outra distribuindo-se
equitativarnente.
BICO DE PENNA 7
Uma das causas da decadência do nosso lavrador é a
mania rotineira da monocultura. A propósito d'essa
contumacia intransigente já houve quem declarasse que a
nossa desgraça era o café. Toda a confiança do lavrador
funda-se nessa cultura : o café é o senhor absoluto da
terra, só elle tem o direito de vida, só as suas flores
trescalam, só a sua folhagem, que já cingiu a coroa, é
bella — por elle veiu o negro da Africa, por elle veiu o
colono da Europa.
As machinas, que se installam nas fazendas, são para
beneficiar o café ; os ladrilhos que entram vão dilatar os
terreiros ; o adubo que se caldeia vai para o cafesal; o
melhor gado trabalha nos eitos ; a gente mais robusta é
para lá destacada. Ali fuzilam as melhores enxadas, a
melhor agua corre para os tanques de lavagem e, como
para que lhe não saia das vistas o precioso grão, o
fazendeiro aconchega ao domicilio a casa das machinas e
as tulhas, para que sempre ouça o frêmito das
Lidgerwood, para que sempre veja o enxame de cascas
voando dos ventiladores, para que sempre tenha, a
acariciar-lhe o olfacto, o cheiro acro das sementes novas.
Se ha moinho para triturar o milho é um pobre
casebre esquecido num fundo de grota ; se ha paiol é uma
minaria — só o café tem agasalho digno em taboas lisas,
sob telhados, entre muros fortes. Se alguém, mostrando
uma faixa de terra, lembra ao lavrador a vantagem de
uma plantação de cereaes ou de canna ou indica uma
baixada humida como excellente vargedo para um
arrozal, elle sorri superiormente declarando : « Não vale a
pena, isso é quitanda. O café dá para tudo». O resultado é
que não ha residencia mais desprovida que a do fazen-
8 A BICO DE PENNA
deiro — elle compra os cereaes para a despensa, a
carne, o toucinho, o fubá, o milho e a forragem para
os animaes.
Entretanto no quintalejo do colono europeu
viceja a horta sempre fresca de rega, o milho
apendôa-se, enfeixam-se touceiras de canna, sobem
verdes latadas de vinha e de gordas aboboras,
verdeja em estendal a rama da batata, o feijoal
enfestôa espiraladamente as hastes dos milhos e
ainda no chiqueiro grunhe o cevado, coincham os
bacorinhos, a cabra lá está de peitos rijos,
ruminando ; na casa, pendente das cordas,
defumando-se, os salpicões, o chouriço, o lardo e a
um canto, em largas vasilhas, a carne em salga.
A. previdência do camponio europeu, que vem
da miséria, tão bem descripta por Michelet, tendo de
realisar prodigios de trabalho para fecundar va-
geiros e safaros terrenos eriçados de pedregulho, co-
lhendo uns galões de vinho, que não bebe, umas me-
didas de trigo, que não come, umas estrigas de Unho,
que não veste, porque tudo é para o mercado
ficando-lhe apenas a brôa e o canhamo de que se
nutre e com que se cobre, sempre a pensar nos
invernos, guardando avaramente todo o ramalho que
encontra, aproveitando todas as migalhas, deve ser
um exemplo para o lavrador brasileiro.
Posto que, com a fertilidade da terra e a
amenidade do clima, o colono vá, aos poucos,
relaxando ainda assim com a idéa fixa de tornar á
pátria levando o necessário para viver regaladamente
no seu campo natal, trabalha e accumula, passando
sobria-mente porque, pelo habito e ainda pela
ambição, o melhor da colheita e da criação desce ao
mercado
A BICO DE PENNA
9
mais proximo, quando não é vendido ao proprio
fazendeiro.
E o preço do café mantem-se miseravel, mal dá
para o custeio da fazenda, e o plantador, sem
recursos num mar de abundância, com os terreiros
cobertos, as tulhas attestadas e ainda os galhos
vergados de fruto, sahe a procurar capitães para
acudir ás necessidades da lavoura : ao salario do
colono, á provisão da despensa e, como sempre
viveu em fortuna, sem preoccupação de miseria, não
se retrahe—mantém, como d'antes, a mesa farta, os
quartos de hospedes preparados, veste a familia com
esplendor, confiado na alta do precioso producto,
certo de que, com um simples movimento na praça,
resgatará o seu compromisso hypothecario, saldará
os seus débitos particulares, ficar do-lhe ainda
capital bastante para abastecer a casa e beneficiar a
terra no anno proximo de compensadora carga,
lindamente annunciada pela florecencia.
Infelizmente, porém, a sua illusão desfaz-se e os
dias correm. Vai-se-lhe a ultima nota e só, diante do
cofre aberto e vasio, o grande senhor rural
comprehende a sua miseria e, com as folhas que
arranca ao bloco do annuario, vão-se-lhe as
esperanças.
E que succede? O colono, submisso e risonho
emquanto recebe regularmente a feria, torna-se
altivo e hostil á falta de um pagamento. O
fazendeiro, sitiado pelos seus proprios homens,
vendo aproximar-se o dia do vencimento da letra
fatal, esmorece. O café baixa a mais e mais, as
noticias do commis-sario são desesperadoras — que
fazer ?
Lá fora, na colônia, o administrador procura,
debalde, convencer os trabalhadores a voltarem ao
10
A BICO DE PENNA
serviço — negam-se, exigem o pagamento immediato,
ameaçam com o cônsul, com o ministro, alguns até no rei
falam e logo, ingratamente, rompem referencias
despeitadas á miséria da terra, á incl-mencia do sol, á
aspereza dos outeiros; lamentam as fadigas, as privações ;
referem-se a moléstias imaginárias, arrependidos de
haver deixado a pátria, linda e rica, com as suas vinhas e
os seus trigaes côr de ouro. E o fazendeiro, emparedado,
sem esperança de salvação, vê, com terror, chegar a data
tremenda.
Lá fora o cafezal murmulha com o vento, jorram as
águas soltas pelos canaes, o gado muge disperso e na
casa, a portas fechadas, a familia reunida despede-se,
chorando, d'aquellas veneradas paredes que foram
levantadas pelos avós, d'aquellas terras amadas, para
recomeçar a vida, onde? no desconhecido,
aventurosamente, miseravelmente e com o humilde
vexame dos decahidos.
Os optimistas dirão que exagero e eu respondo-lhes
que traio a verdade para não a mostrar tão desoladora
como se me apresenta. ífão sou, porém, do numero dos
desesperados, dos que vêem perdido o campo, dos que
não confiam na terra, não! Ha um mal que tende a
desapparecer, porque vai sendo substituído por um bem
— o mal é o lavrador por herança, o que entrou na vida
pela porta doirada, o que não conheceu o trabalho e foi
sempre um mimoso da Sorte ; o que achou a arvore
carregada, tendo apenas o trabalho de estender a mão e
colher.
Criado na abastança, entre negros humildes, vendo-se
obedecido em todos os caprichos, senhor d'homens, teve
uma grande e espantada surpresa,
A BICO DE PENNA
11
só comparavel á que teria um pastor que visse, de
repente, tresmalhar todo o seu rebanho, quando, a 13 de
maio, os negros, deixando os ferros, sahiram para a
estrada livre, ansiosos de liberdade.
Sem expediente, só, diante do vasto domínio, como
em ermo mal assombrado, o fazendeiro julgou-se
perdido. Ouvindo, porém, falar em colonos, tratou de
adquiri-los. Despachou emissários para contractá-los por
qualquer preço, comtanto que não se perdesse a colheita
nem o matto subisse suffocan-do a lavoura. E os colonos
chegaram, a fazenda perdeu a sua antiga feição feudal —
o systema modificou-se radicalmente, passando o senhor
a patrão: o acto humilhante da compra foi substituído
pelo compromisso reciproco do contracto.
Esse foi o primeiro golpe no fazendeiro antigo ou,
dizendo melhor — foi a morte do valho regimen de
trabalho. O pagamento das primeiras ferias foi feito com
mal contida indignação. Aquelles que acudiam á chamada
com as suas cadernetas eram como ladrões que
assaltavam. Essa mesma revolta cessou e o fazendeiro
julgou-se, de novo, feliz quando viu chegar o primeiro
carro da safra a transbordar pelos caminhos o café em
bagas purpurinas.
A terra, essa continuava submissa e fecunda, bella e
fiel escrava ! e, confiado nella, o fazendeiro, á primeira
difíiculdade, -sem energia para vencê-la, sem animo para
affrontá-la e não podendo privar-se dos gozos habituaes
— o seu descanço, a mesa lauta, o seu verão nas praias, o
sen inverno na cidade, faustosaniente installado,
confiando a fazenda ao administrador, recorria ao
emprestimo, prendia-se á hypotheca e, d'essa hora em
diante, enlaçado
12 A BICO DE PENNA
pela constrictor, lá foi indo para a miseria, aos
arrancos, torturado, ansiado, até a hora dolorosa do
abandono da casa.
Para salvar a lavoura ahi está o fazendeiro novo,
typo perfeito do homem de acção, intelligente e
energico, emprehendedor e activo. D’esse não fica na
varanda mollemente estendido no pliant ou na rede,
ouvindo o cantarolar guaiado das lavadeiras
no
riacho e o zumbir monotono das abelhas errantes.
Cêdo está de pé, prompto para sahir, a cavallo ou de
troly, e lá vai, ao ar fino da manhan, rompendo as
nevoas que se desenrolam, fiscalisar o trabalho.
Caminha pelos torrões que o arado levanta ou pela
terra fofa que espera a sementeira, olha, examina,
indaga. Entra no cafezal, dirige a carpa ou anima a
colheita, lança uma vista de olhos ao gado no pasto,
sobe ao moinho e, sem maior attenção á poeirada
loura que se desprende da mó, toma o fubá entre os
dedos, experimenta-o. Corrige uma falta, activa um
serviço, attende a uma reclamação, despacha um
próprio e ei-lo na casa das machinas at-tento á
pesagem, depois nas tulhas e já o vêem a correr á
estrebaria examinando as baias para que não falte a
ração aos animaes e pára junto ao chiqueiro, chega
ao paiol, percorre a abegoaria, vendo como
interessado, não confiando no administrador, que é
apenas um intermediario entre elle e os colonos.
Se, pelo céu, se vão arrumando nuvens de chuva
e ha café nos terreiros, elle é o primeiro a lançar
mão do rodo dando o exemplo para que se ajunte e
recolha e, á noite, na sala vasta, emquanto a esposa
acalenta o pimpolho, debruçado sobre um livro, cer-
A BICO DE PENNA
13
cado de jornaes e revistas, lê, annota observações
sobre a terra, respigando o que lhe convém, aqui,
ali: uma machina util, uma sementeira rica, um novo
adubo, certo processo de enxertia e, ao primeiro
bocejo, levanta-se, abre uma janella, respira lar-
gamente o ar puro da noite, sentindo em torno a
terra viva e forte, tratada carinhosamente como
animal de raça, fecundando, florindo, frutificando ao
esplendido luar silencioso.
Dirão sorrindo : «Mas não ha vida mais material,
Deus do céu !» ííão ha vida melhor nem ha vida
mais calma,
Que falem os errantes, esses que palmilham, sem
destino, as estradas que d'antes pisavam como
senhores e que agora vão trilhando como banidos.
Essa é a vida feliz do lavrador intelligente para o
qual a crise é apenas um accidente e não um
descalabro.
Saiba o lavrador aproveitar a terra e o elemento
novo que a fecunda e a lavoura, no Brasil, será, em
pouco, urna das mais prosperas e compensadoras do
mundo. Para isso, porém, é necessário que não fique
simplesmente nessa illusão do café, porque a
agricultura não se limita nem se pôde limitar a uma
producção unica. O paiz do vinho é o paiz do azeite,
é o paiz do pão, é o paiz do linho e é o paiz da fruta.
Da nossa agricultura pode, e com razão, dizer-se que
dá apenas para encher uma chicara porque, em
verdade, toda ella se reduz ao café, ao sul, e ao
assucar, ao norte.
O AMIGO URSO (1)
«Lorsqu'on voit deux grands peuples se
faire une guerre longue et opiniâtre, Cest
souvent une mauvaise politique de penser
qu'on peut demeurer spectateur tranquille; car
celui des deux peuples qui est le vainqueur
entreprend d'abord de nouvelles guerres, et
une nation de soldats va combattre contre des
peuples qui ne sont que citoyens.»
MONTESQUIEU.
Mestre urso, senhor de toda a parte da montanha que
olhava para o ííorte, fez constar aos seus vizinhos do sul
que resolvera e jurara, á fé inquebran-tavel de urso, não
permittir que pisassem a montanha, senão como
hospedes, quaesquer animaes de outras regiões, ainda que
lhe fôsse preciso, para manter a independência d'aquellas
altitudes, deixar a ultima felpa nas garras do estrangeiro,
porque entendia que Deus criara aquella eminencia
maravilhosa para os animaes que nella haviam nascido.
(1) O Monroismo, a proposito da questão entre o Brasil e a
16
A BICO DE PENNA
Logo que foi conhecida a resolução do urso poderoso
reuniram-se todos os animaes da vizinhança e, em festa
estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor
do norte, que ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.
Pouco tempo depois um dos animaes, cuja toca (que
tinha a fôrma perfeita d'um tonel e por tal lhe chamavam
— a cuba) fora descoberta por um caçador do tiltramar
que a cercara convenientemente para garantir-lhe a posse
e manter em obediência o morador, resolveu revoltar-se
contra as continuas vexações e pôz-se a roer o cercado
pondo abaixo o tapigo. Veiu, porém, o caçador e o
animal, posto que fraco, não mostrou arreceiar-se do
inimigo e esperou-o de frente, com audacia tão grande
que mais parecia loucura.
Lutavam os dois quando o urso, que espiava de longe,
lambendo as patas, notou que o cançaço e as muitas
feridas, pelas quaes escorria o sangue de ambos, ia-os
enfraquecendo ; sorriu, então, e levantou-se descendo
vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o
animal brigavam com desespero.
Ficou á espreita e, em dado momento, levou sor-
rateiramente para o lugar do combate uma malga de leite
e lá a deixou, recolhendo a pata.
Succedeu o que era de esperar : o caçador, que não
dera pelo urso e muito menos pela sua traça, no furor da
peleja, deu com o pé na malga e lá se foi o leite.
Levantou-se a fera aos urros protestando contra a affronta.
O caçador quiz ainda provar-lhe que não vira a malga,
escondida, como estava, entre as hervas do campo, mas o
urso a nada attendeu e, ven
A BICO DE PENNA
17
do o adversário arquejante, vermelho de sangue,
com as roupas em frangalhos, achou a occasiâo
excellente para cahir-lhe. em cima e, assim pensando,
logo executou.
O caçador, que era brioso, apezar de reconhecer
a grande superioridade do antagonista inopinado,
não desertou a liça ; travaram-se. Mas que podia
fazer o desgraçado, já exgottado e consumido por
um longo combater, contra aquelle que vinha, fresco
e bem nutrido, dos alcantis da montanha Foi
subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso
logo espichou o corpo a pretexto de descançar um
bocado.
Os animaes vizinhos alvoroçaram-se de alegria
vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, gó
o da cuba não via com bons olhos aquelle corpanzil
immenso estirado ali, logo á entrada da sua moradia,
tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar,
primeiro para agradecer-lhe o soccorro, depois para
pedir que lhe deixasse livre o terreno.
Ouviu o urso a reclamação lambendo vagarosa-
mente as patas, ao fim disse :
«Amigo, se eu aqui não viesse, tu ainda estarias
a lutar com o caçador. Para livrar-te d'elle
sacrifiquei uma malga de leite e tu não levas em
conta o meu prejuizo. Queres que me vá embora e
se o
caçador tornar ? São, deixa-me ficar por aqui, e
dá-me alguma coisa, porque estou com fome». E
dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba,
como senhor na varanda da sua casa.
Entraram, porém, os vizinhos a murmurar contra
aquella occupação :
«Afinal, que lucrava o animal ? passar de um
18
A BICO DE PENNA
senhor a outro ; isso pouco valia e, se o urso não se
intromettesse na luta, talvez que o animal já se houvesse
libertado do caçador que o mantinha sob o seu domínio,
não porque d'ello tirasse proventos, que só despezas lhe
dava, mas por amor prorio e habito ».
O urso não andava bem e, crescendo as
murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes,
porém, de partir, chamou o animal e disse-lhe :
«Eu parto, volto á minha montanha, mas fico de lá
com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não
quero historias com vizinhos nem negoios sem o meu
consentimento. O mundo está cheio de perfidias e tu és
ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descança». Efoi-se.
Lá trepou á montanha e, deitado, tem os olhos no
animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que
o gato deixa em liberdade, mas que lhe sente o peso bruto
das patas e os ferrões das presas se vai a entrar no buraco
ou se se aproxima d'al-guma fresta.
Um dia o guanaco, que vivia em litiio com o tapir por
causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas
finanças desbaratadas, quando avistou mestre urso no
viso da montanha. O guanaco, que não é covarde, mas
que é prudente, desconfiou da-quella visita e poz-se em
guarda ; o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um
aceno da pata, pedindo que chegasse á fala, porque tinha
a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O
guanaco foi indo, vagaroso e matreiro, e, corno havia um
fundo abysmo na montanha, deixou-se ficar á margem,
pedindo ao urso que falasse. E o urso disse :
A BICO DE PENNA
19
— Amigo guanaco, eu sei que andas muito
preoccupado com essa questão de terras que o teimoso
tapir insiste em affirmar que são d'elle. Nao sei se são, sei
que tens os olhos nellas porque te convém e como eu
sympathiso comtigo, que és um, excellente guanaco,
venho dar-te um conselho. Tu não podes entrar em
contenda com o tapir que, apezar de andar entresilhado, é
ainda animal de força ; ha um meio, porém, e magnifico,
de arranjarmos isso. Os meus ursinhos são muito
expansivos, nem ha no mundo animaes tão expansivos
como elles e, como a borracha é também expansiva, elles
andam com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de
expansão, eu organiso uma companhia que arrendará as
ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e habitadas
pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico á espera. É natural
que o tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos ; não
te importes — eu estou lá em cima para o que der e vier.
Se a coisa fôr por diante — o que não é provável, porque
eu conheço o tapir : aquillo é só parola e guincho —
descerei dos meus alcandores e procurarei acalmar a
questão, mostrando que os meus ursos empataram grossos
cabedaes na empreza e que não os podem perder. Demos
que o tapir se enfune e queira reagir — contra um
guanaco um tapir é um tapir, mas que é um tapir quando
lhe surge pela frente um urso ? Pensa e resolve, mas não
digas que falaste commigo. Torno para o cimo da
montanha e lá fico ás tuas ordens. Adeus, respeitos á
senhora.
E bambo, lá se foi mestre urso sorrindo, muito
contente com a sua idéa. Mestre guanaco desceu para os
seus campos pensando na proposta generosa
20 A BICO DE PENNA
ao vizinho quando, detendo-se a margem de uma
clara fonte, ouviu uma voz que o chamava :
— Guanaco amigo.
Guanaco levantou a cabeça e deu com um grande
e alteroso condor pousado no pincaro de um penedo.
Que queres de mim, irmão condor ?
Ouvi toda a conversa que tiveste com o
vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho:
Não te fies no urso. O que elle te propôz, a titulo de
beneficio, é uma traição e não queiras servir de porta
á ganancia insaciavel d'esse animal que, por muito
jurar, já nos não merece confiança. O que elle quer é
metter uma cunha nos dominios que nos pertencem
para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los.
Juntos poderemos resistir á sua ambição desmedida e
ai! de nós, porém, se elle conseguir collocar em
nossas terras um só urso ! No dia seguinte os campos
que percorres, os alcantis, em que tenho o meu
ninho, serão fójos de feras e nós não teremos terras
nem aguas, tudo será do urso que lá tem captivo,
preso por uma corrente á sua penha, o animal que
elle pretendeu libertar das mãos do caçador.
Se o tapir não tem razão vamos chamá-lo á
razão, mas com calma e estou certo de que virá ; não
queiras porém que, mais tarde, quando a montanha
despejar sobre os nossos vailes e campos a avalanche
ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor
que franqueou as terras livres ao invasor insaciavel.
Diz o urso que a montanha ó dos montanhezes ...
Acautela-te, guanaco ! palavras de urso
A BICO DE PENNÁ
21
não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fabula do
leão. Hoje será a companhia estabelecida nas terras
litigiosas, amanhan serão os teus terrenos, depois os
meus, depois os dos nossos irmãos e elle ficará
senhor da montanha e nós seremos escravos vis
dentro da pátria que pretendes trahir. Eu falo como
condor : vejo longe. Lá da altura passeio os olhares
pela terra e sei o que nella se faz. Se queres o
captiveiro deixa entrar o urso.
Ouviu o guanaco e ficou a pensar mirando-se na
corrente e mirava-se quando do alto o urso, que
espreitava, rugiu :
Então, guanaco amigo ? vai ou não vai?
E o condor, que levantava o vôo, bradou do espaço :
— Olha o trust do territorio ! Olha o trust da
montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda á
cunha da perfidia. Cuidado !
Foi-se e o urso, lambendo as patas, ficou a olhar
o guanaco, que pensava.
Então, amigo guanaco ?
Espera um instante, amigo urso.
UM SABIO
Foi em meados de março de 1883, numa triste,
lutuosa noite de quaresma, que cheguei a S. Paulo.
As ruas estavam apinhadas de povo que espera-
va, com ânsia devota, a passagem d'uma procissão.
A espaços, dobravam sinos plangentes e mulheres,
sob negros biocos, passavam á pressa, surdamente,
como sombras que desusassem.
O carro, depois de fazer grandes voltas lentas,
deixou-me á porta do Hotel da Bôa Vista, na
esquina da ladeira do Porto Geral. Os hospedes
d'esse casarão taciturno eram, quasi todos,
estudantes e, escusado é dizer que me fizeram as
honras da casa, não como os árabes costumam
acolher nas tendas áquelles que os procuram, mas
como os gallos antigos dos poleiros recebem os
frangos novos.
Não me demorei muito tempo no salão onde o
agudo Erico, de mãos para as costas, os óculos
brilhando no nariz afiado, ia e vinha criticando, com
furor, aquella «miseria moral»— toda uma popu-
24
A BICO DE PBNNA
lação abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas,
pondo no ar puro um fortum insupportavel de suor e
de banha. Não, o Estado devia intervir energica-
mente oppondo-se áquellas scenas ridiculas e
improprias d'uma cidade civilisada. Outro
acadêmico, esguio e louro, sahiu em defeza da
religião e do sen ritual, demonstrando a necessidade
d'esse culto externo. Brico fitou o adversario e
fulminou-o com um dito violento que provocou
verdadeira conflagração.
Alguém, rompendo, então, o grupo, lembrou-se
de pedir a minha opinião. «Sim, concordaram todos:
que fale o calouro !. . .» Tremi e teria, certamente,
de soffrer a pena ridicula que me impunham se o
Erico não houvesse annunciado sisudamente :
Lá vai a procissão, senhores. Vamos vêr as
pequenas.
E o bando de hereges abalou, deixando-me
naquella sala immensa e obscura a ouvir os tristes
sons da marcha fúnebre que lá ia. Eecolhi ao meu
quarto com a minha saudade.
No dia seguinte, cedo, Erico, que era meu
vizinho, bateu á minha porta, chamando-me :
Ó amigo, é sol nado ; venha contemplar o
grande Buddha eburneo !
Não comprehendi áquellas palavras mysteriosas,
mas sahi e Erico, muito grave, levou-me pelo
corredor, em silencio, até á sala. Ali, fazendo-me
chegar a uma das janellas, disse, mostrando-me a
casa fronteira :
Vê você esse pardieiro fechado ? é o templo
de Buddha, o grande Sabedor, o Sete Chaves, o
Homo Sapiens. O vulgo ignaro chama-lhe Juatino,
Á BICO DE PENNA
25
ò conselheiro Justino. Celibatario e civilista, esse
homem conhece todas as leis, menos as naturaes —
é assim que detesta a mulher e o vinho, a musica e
as
flores, a rhetorica e a salada de pepinos. Vive ali
com os livros como S. Jeronymo vivia em Bethleem.
E, fitando-me com pequeninos olhos, agudos como
estyletes : Conheces S. Jeronymo? Pensas, talvez,
que é o marido de Santa Barbara, porque apparecem
sempre juntos nas invocações ? Não, criatura
serodia, essaalliança é iniqua — o santo nunca quiz
saber d'esse sexo compromettedor e, se escreveu á
Paula, não passou d'isso. Mas deixemos as
divagações. Olha, espera o Buddha e, se tens
relogio, acerta-o pela sua sahida ; nove e meia, nem
mais, nem menos um segundo.
Effectivamente eu olhava quando vi sahir da casa
indicada um homem amarello, magro, secco e rijo,
de preto ; os mesmos oculos que, de longe, lhe
escaveiravam o rosto como duas orbitas fundas e
vasias, eram escuros.
Grave, sem olhar para o nosso lado, seguiu com
um bambcleio de corvo, dobrou a esquina e lá foi.
— Viste ? pois, meu amigo, se annotas a tua
vida, regista no teu diário este grande
acontecimento. Esse homem sombrio, que parece um
inquisidor, é o grande, o incomparavel Justino, mais
sabio que Hermes, mais virtuoso que S.
to
Antonio,
mais secco d'alma do que um arenque defumado. É
lente ; um dos mais respeitados da academia pelo seu
grande saber. As suas prelecções são verdadeiras
derrubadas de bibliothecas. Se um novo cataclysmo
fizesse desapparecer o mundo e tudo que nelle
existe, esse homem, recolhido a uma arca, quan-
26
A BICO DE PENNA
do as aguas baixassem, recomporia toda a sciencia
do Direito, desde as leis mais profundas até á mais
reles chicana.
Erico, o fecundo Brico, que, pela sua grande força
de generalisação, não conseguira sahir do curso
annexo, onde era considerado o « ancestral maior »,
deu uma volta pela sala, chuchando um dente, e
tornou ponderoso, resumindo numa expressão, já
usada por Eschynes com relação a Demosthenes, toda
a sua admiração pelo civilista : « É um monstro !»
Mas, vê tu, continuou com intimidade, espalmando a
mão no meu honíbro : é um rochedo, não produz uma
linha, não tem um conceito, ninguém lhe attribue uma
phrase. E explicou : O homem é como a planta.
Queres esterilisar uma arvore? aduba-a em demasia ;
cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as
folhas, mas as flores raream e quasi nunca vem fruto.
O accumulo de sciencia mata as fontes da
imaginação e da critica. Quasi que estou a dizer que a
ignorancia é preferivel. Um homem como aquelle
vale por uma congregação e, que deixa ? a memoria
rapida de uma vida, nada mais. Toda a gente affirma
que tem um grande talento e eu affirmo como toda a
gente, mas affirmo por affirmar, porque do talento
d'esse homem vejo apenas os livros, ás centenas,
muito bem arrumados nas immensas estantes. É um
carregador de idéas, um estivador de pensamentos:
transporta-os dos compendios, dos tratados, para as
memorias dos alumnos. Ou melhor : é uma
alfandega, entende você? uma alfandega onde os
autores estrangeiros descarregam as suas mercadorias
e onde os jovens estudantes as
A BICO DE PENNA
27
vão buscar. É isso ! Não, a sciencia não é a esterilidade.
Sabio não é simplesmente o que estuda, o que armazena,
enthesoira — é o que produz. O que elle é, em verdade, é
um excellente methodo, isto sim, um methodo de vida e
de estudo : honra e memoria, ascetismo e rijeza.
Erico deixou-me apressado ao ouvir tinir a campainha
que annunciava o almoço, mas, a meio do caminho,
voltou dizendo-me :
— Olha, é verdade — hoje não ha aula, mas o
homem, para não transigir com o habito, lá vai a um
passeio de uma hora, certamente fazendo uma prelecção
erudita, á meia voz, para os botões da sua sobrecasaca.
Vem almoçar, são horas.
O Justino que eu vi nessa memorável manhan de
quaresma, encontrei, dez annos depois, uma tarde, á porta
de um ourives da rua Quinze de Novembro — muito
grave, de preto, óculos escuros, o cabello muito
empastado e luzente, a tez côr de velho marfim. Vendo-o,
passou-me rapidamente pela imaginação esse typo tão
fielmente retratado pelo incomparavel Queiroz na
Correspondência de Fradique Mendes — o conselheiro
Pacheco, o -do immenso talento.
Não julguem, porém, os admiradores do grande
mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja capaz de
medir o seu alto valor moral pelo estalão do Pacheco da
satyra, não ! O que eu analyso é o typo physico, é aquelle
vulto severo e rispido do homem de negro,
methodico,reservado, taciturno.
28
A BICO DE PENNA
O saber de Justino lampejava nas suas prelecções
e, se elle não deixou, em corpo perfeito, uma obra
que leve o seu nome mais longe do que o levará a
memoria ingrata dos homens, ahi estão as suas
apostillas, que serviram a quasi todos os que legislam
para o paiz, como clarões passageiros do seu espirito,
mas não sei porque, acho que o grande Pacheco devia
ser como o finado Justino e, na assembléa, espetando
o dedo para confundir com uma phrase forte a
opposição rumorosa, devia ter aquella mesma grave
figura que dava, nas aulas, ao grande mestre o ar
divino e ornithoide de um Thot veneravel silvando
sciencia do alto d'um poleiro, com o bico muito
curvado e as negras azas encolhidas e immoveis.
Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando
foi imposta a sua jubilação, provocada por um as
somo irreflectido e injusto da mocidade, a minha
penna, que sempre foi fiel aos moços, trahiu-os nesse
dia alliciando-se ao mestre, porque do seu lado, so
bre estar a Razão, estava também a tradição do
prestigio do velho convento.
E agora venho trazer veneradamente ao seu
tumulo o meu preito de antigo alumno e de
admirador do grande estudioso, do energico
disciplinador e do homem exemplar que viveu
moralmente fechado num programma rigido e secco,
só comparavel á velha casa em que acabou e que, no
meio das construcções modernas da cidade, parecia
um protesto forte do passado, ultimo remanecente
ferrenho do archaismo, achatado entre as
construcções esbeltas do presente.
Como a casa era o homem, que Deus tenha.
FANTASIA DE INVERNO
Vento gelado, gélido vento amaina o teu furor, já
que traiçoeiramente conseguiste penetrar em meu
coração, que és tu que por lá andas : bem sinto o teu
Mui, bem ouço os teus gemidos. Ai! de mim... És tu
mesmo que andas a desfolhar as minhas ultimas
illusões e a crestar as verdes folhas das minhas
ultimas esperanças.
Como se contrahe um mal de morte á beira
d'agua azul de lagoa tranquilla, admirando um
nenuphar aberto, assim ganhei a melancolia que me
re-ranse olhando o limpido céu de inverno abotoado
no pallido e triste plenilunio.
Fazia frko, um frio navalhante e eu, esquecido,
extasiado naquella serenidade, deixei-me ficar á
janella enamorado da noite e foi, então, que me
invadiste, como invades e varejas uma ruina fendida
em mil abertas e taliscas e agora, no meu coração,
30
A BICO DE PENNA
gemes e regelas, vento gelado, gelido vento, que andavas
errando á luz do luar.
Meu pobre coração ! Quando, outr'ora, me falavam
em valles floridos, em collinas marchetadas de
margaridas e rosas, em campos palhetados de botões de
ouro, em vivas águas recobertas de açucenas brancas, eu
sorria superiormente como sorriria um deus a quem um
mortal narrasse aventuras mesquinhas. É que eu tinha o
meu coração mais rico em flores do que os jardins
maravilhosos de Viviana e agora ... Ai! de mim ! só ha
despojos e como poderiam resistir as flores meigas ao
vento de inverno que, traiçoeiramente, penetrou em meu
coração, onde sempre havia a doce, a tepida temperatura
de uma primavera ideal ? !
Meus sonhos, que será feito de vós? Como andam no
ar nocturno, em torvelinhos fantasticos, folhas e flores
orfanadas, assim andais nas lufadas do vento gelido.
Amanhan o sol tornará ao céu — eu mesmo o verei
seguir, rompendo as nevoas como um noivo preguiçoso
que abre vagarosamente o cortinado e, a contra-gosto,
deixa o leito nupcial; eu o verei surgir e verei a terra
revestir-se de luz e, florida e contente, louvá-lo pela boca
harmoniosa dos seus passaros. Acompanharei, com
olhares invejosos, a corrida sonora dos límpidos regatos,
ouvirei as cantilenas dos camponios e, talvez, sinta o calor
benefico do sol que reanima, mas .. . chegará o sol ao meu
coração ? Sim, é natural que chegue — elle não é da raça
dos homens que só attendem aos que a Fortuna acerca. As
mesmas minas vêm-n'o chegar, o pantano recenna-se com
elle, as cavernas rece-
A BICO DE PENNA
31
bem-no no intimo, é para todos e para tudo que a sua luz
rebrilha, mas . . . será também para os corações.? Diz-me
a alma que não.
Ai! de mim . . . Como poderei viver com tal inverno
gelado ?
Lua, lua perversa, pallido fantasma, foste tu que assim
sacrificaste a minha vida. Quizeste um companheiro que,
parecendo vivo, não fosse mais que um cadaver e
encantaste o meu coração, reduzindo todos os sonhos que
nelle havia a verdadeiros e melancolicos espectros.
Foste tu, foi o teu halito, ou melhor, foi a exhalação
do teu corpo nevado, livida e funerea lua, que
transformou um campo de flores em campo de neve.
E se vier o degelo que pranto copioso inundará meus
olhos ; que dilúvio transbordará de mim . . . Para conter
tantos sonhos e tantos amores é preciso que o meu
coração seja do tamanho do mundo.
Quem me mandou a mim contemplar luares em maio,
ao frio ? Quem me mandou a mim fazer vigília a
defuntos?
Bem fazem os indifferentes que, embora appareças,
com a linda côr com que a morte irônica te enfeita,
fecham as janeiras e entregam-se aos travesseiros. Esses
estão livres do assombramento, mas eu, curioso, lá me
deixei ficar a olhar-te e tu . . .
D'ahi. . . quem sabe ! Talvez não sejas tu a culpada,
lua merencorea, porque, em verdade, quando eu te fitava,
meu pensamento estava em outra face, mais linda do que
a tua, mas também fria e indifferente.
Quem sabe se não foi a tristeza d'esse pensamento
que me poz no coração tamanha melanco-
32
A BICO DE PENNA
Lia? Se foi... aquelles olhos doces, com um só
olhar, desfarão a tristeza, Desfariam, devo eu dizer,
desfariam se, um breve instante, se volvessem para o
meu rosto, mas . .. são tão frios, tão frios que ...
Ai! de mim ... O inverno passará depressa, o
verão tornará risonho, mas no meu coração nunca
mais, nunca mais ! haverá sol de estio nem flôres da
primavera.
JSÍoite, eu também ando a carregar um astro
morto : o teu, matou-o o tempo ; o meu, matou-o o
amor.
O PARADOXO CONTEMPORANEO
Sobre a nudez forte da Verdade o
manto diaphano da Phantasia.
EÇA DE QUEIROZ.
Não ha esperança — tudo é verdura. Nunca a
terra se mostrou assim prospera : não ha memoria de
outra tão inclemente fecundidade. Dir-se-á que um
Deus andou semeando e abençoando a se-menteira,
porque não ha sol que a esturrique, não ha geada que
a creste, não ha lagartas que a destruam. As proprias
formigas mal apparecem nos trilhos e, por preguiça
ou porque as contenha o mesmo Deus propicio,
satisfazem-se com as folhas seccas que o vento
espalha ou com as varreduras dos paióes.
O que era vageiro pedrento e maldito onde
estalavam, fendidas, as relhas dos arados e os bois
robustos arriavam arquejantes deixando na terra
secca, estampada em suor, as marcas dos seus
corpos, é hoje campo de fertilidade. Varzeas estereis,
onde apenas lograva viver o sapo da miseria, os-
tentam-se vicejantes, cobertas de verde e alta al-
34 A BICO DE PENNA
catifa que é o arrozal que aponta. As mesmas rochas
safaras geram prodigiosamente — a crosta que as forra
vale por um alfobre. Vêm-se penhascos floridos e, nos
sulcos dos carros que, mezes atraz, passaram lentos,
rinchando, recolhendo a colheita, os grãos perdidos
proliferam : ha milhos crescendo nos caminhos,
empennachando-se nos andurriaes ou, flexiveis,
dobrando-se graciosamente no fundo das grotas, entre os
inhames, onde a agua brilha e canta.
Em todo o torrão ha uma roça, em todo o canto viceja
uma horta. O colono tem necessidade de arrancar os
legumes que ameaçam invadir a casa ; vergam as latadas,
pelas cercas de espinheiros em flor trepam as ramas do
feijoal, os repolhos gordos afundam na terra, a couve flor
desabrocha corno um polypeiro immenso e lá vão
braçadas de folhas tenras para os estabulos, para a
possilga, para o aprisco, para o corveiro e ainda sobram
aterradoramente.
As cannas empinam-se e curvam-se em arco,
estirando-se na terra para, adiante, lévantarem-so de
novo; o milharal farfalha ao vento como a chamar os
colhedores, as vagens seccas cascavelam, aboboras
abandonadas desenvolvem-se monstruosamente sob as
frescas folhagens protectoras e, quem olha os pomares,
hesita entre as duas cores que se casam — a verde das
folhas e a amarella dos pomos.
Os galhos vergam e, como não ha mãos que bastem á
colheita, sob as arvores acenosas os frutos que apodrecem
vão formando um nateiro fecundante.
A BICO DE PENNA
35
Não ha esperança ! O cafesal parece adornado de
coral — os frutos em cereja encarreiram-se, acumulam-se
nos ramos pendentes e os rios ahi vão regando, o sol reluz
e cria, o vento leve encarrega-se de limpar os galhos,
levando-lhes as folhas seccas, e borboletas, besouros,
libellulas e abelhas, que pousam de flor em flor,
conduzem o germen da fecundação, vão multiplicando a
abundância, fazem uma semeadura aérea ou melhor:
realisam as nupcias floraes como sacerdotes alados que
visitam os lares verdes e juntam os casaes aromalissi-
mos, conduzindo a alma amorosa d'um a outro, em beijos.
Não ha memória de tão inclemente fertilidade.
Com o frio a esperança do lavrador é a geada. Ao
crepusculo, quando as nevoas se vão adensando, ei-los
todos de olhos alongados : Virá a geada? Cahe a noite
taciturna, estrella-se o céu onde não paira uma nuvem ; o
frio augmenta. Noite fria e limpida é annunciadora de
geada. As crianças ti-ritam, os velhos abeiram-so do fogo
estendendo tre-mulamente ás chammas as mãos
engelhadinhas e o vento sopra rispido.
Oh ! como ó alegre a voz do vento ! Corta, vento de
inverno ! Corta, ceifador nocturno, corta ! E o homem
bemdiz o vento que zune. Bem haja o bom vento ! Bem
haja o bom vento!
Curioso lá vai o lavrador á janella, entreabre-a, espia
e tirita: noite estrellada e gelada. Ainda bem! Ainda bem!
exclama esfregando as mãos. Temos geada! Temos
geada! annuncia contente e todos sorriem á ideia d'uma
devastação. Deitado, ouvindo as gambás que vão e vem
pelas telhas, ei-lo
36
A BICO DE PENNA
a sorrir, pensando: «É a geada bemdita que está
cahindo. Árnanhan. os campos serão outros. Eu
ficarei reduzido a um terço, outros perderão mais e a
safra de todo o Estado, com o beneficio d'esta noite,
ficará em menos da metade do que se espera e ainda
será muito. Felizmente o inverno ahi está e ha um
Deus no céu. Mais um anno de fartura como este e
seria um dia a lavoura do Brasil.
Não ha quem resista. Antigamente, com o que
dava um alqueire de terra, uma família vivia
fartamente ; hoje, com a abunüancia, o fazendeiro
pena em miseria. O que o eornpromette ó o excesso :
todos plantam, todos colhem : não ha compradores.
Annuncia-se uma feira, açode gente de toda a
parte a disputar as barracas ou com as lonas e os
esteios para armar a sua tenda. Levanta-se tão densa
poeira nas estradas com a chegada dos carros, das
tropas, das recuas, das manadas, dos rebanhos e
ainda da gente que as mesmas torres das igrejas
desapparecem abrumadas.
No campo da feira amontoam-se os ceirões e as
cangaihas, empilham-se os jacas e os côíos, enfileiram-
se as capoeiras, atravancam-se os largos cestos. O
cercado de animaes referve e, como não ha divisões,
saltam os pôtros, os burros escoucinham, marram os
touros, coincham os bacorinhos, grunhem os grandes
cevados acaçapados, fossando a lama, cacarejam as
gallinhas, grasnam os patos, arruinam os pombos e
todas essas vozes não chegam a abafar as dos homens,
das mulheres e das crianças que apregoam
esgueladamente o que trazem das suas roças.
A BICO DE PBNNA
37
Quem entra numa feira, vendo a multidão que
vai e vem, imagina que o commercio corre animado,
engano — só lia ali vendedores, de sorte que o
sertanejo, que deixou o seu sitio longínquo, á beira
da serra, para offerecer na feira os frutos do seu
pomar e o gado novo da sua caiçara para, com o
producto, comprar novos ferros e chita e madapolão
para os seus, ali está de cocoras, macambusio, o
cachimbo nos beiços, os olhos perdidos longe, no
céu da sua banda, lá para os lados da serra onde a
sua gente, pobre gente ! o espera com as compras
tão necessarias . . . até um remedio lhe pediram e o
mísero nem para o remedio faz.
E dissolve-se a feira : lá tornam todos com os
frutos murchos, com os animaes cançados,
maldizendo a abundancia porque todos têm e não
compram.
Isto acontece ao pequeno lavrador que ara,
semeia, aduba e colhe, que tosa a ovelha, que munge
a vacca, que enforma o queijo e bate a manteiga
auxiliado pela familia. Imaginai o desespero do
grande plantador que vê, em volta da casa, formigar
uma nova villa de colonos. È a exuberância que o
desgraça, é a fartura que lhe traz a miséria.
Lá vai vagarosamente, apparecendo,
desapparecendo por entre uns outeirinhos
avelludados, um comprido e pesado trem de carga
— café. Dos sertões feracissimos descem
diariamente tropas numerosas ; são campainhas
tinindo desde a madru-drugada até a noite, ás vezes
pela noite adiante e tropeiros bradando — café.
Pelos rios, em balsas, descem milhares de arrobas
que vão ter ás peque-
38
A BICO DE PENNA
ninas estações onde embarcam para o porto .Os
horisontes são verdes — onde acaba o cafésal começa o
céu, e as arvores, sobrepujadas pelos frutos,
achaparram-se : é a maravilha da fertilidade, a praga
arruinadora do excesso.
No porto, á medida que vão chegando os wa-gons
entulhando os armazens, vai o preço descendo e, como
entram sempre novos trens carregados, mais baixa o
valor da mercadoria; é quasi uma miseria o que
offerecem, não vale a pena vender; o melhor é
conservar o café em casa, mas como? onde ? se não ha
tulhas e se o fazendeiro tem a colônia a murmurar
reclamando a paga! Que vá o café, que vá! e os campos
cada vez mais verdes. Oh! a inclemencia do verde!
Como se vivia bem no tempo passado! O pouco que
a terra dava era vendido a peso de ouro e o fazendeiro
que colhesse o que hoje colhe um sitiante poderia viver
regaladamente como um rajah: o fruto tinha valor real,
as tulhas eram thesouros, os engenhos eram verdadeiras
casas de moeda. Agora as machinas poderosas não
preparam em seis mezes, trabalhando dia e noite, todo o
café da colheita, as moendas, jorrando rios doces, não
espremem toda a canna, parte perde-se nos carros ou
amontoada nas eiras, e, se a deixam na terra, apendôa; o
leite apodrece nas queijarias, a fruta encarquilha-se ou
transforma-se em lama nos pomares. É demais ! Corta,
vento de inverno! Corta, ceifador nocturno !
Criar ! E vale a pena criar ? Com a abundancia o
gado anda farto e luzidio : no chiqueiro do pobre
cevam-se varas de porcos, as vaccas mal pó-
A BICO DE PENNA
39
dem caminhar embaraçadas pelos ubres apojados, e assim
as cabras, as ovelhas igualmente. Por muito haver pouco
vale e, como o preço offerecido não compensa, os
homens resolvem deixar os animaes no campo esperando
confiadamente o tempo da miséria, que ha de vir, Deus é
grande !
Levanta-se o lavrador, sahe pé ante pé guiado pela
claridade tênue da lamparina do oratorio, accesa diante
das imagens como a lembrar-lhes o pedido feito, com
fervor, por todos ; lá vai. Chega á janella, corre o
ferrolho. Que frio ! sorri contente, tintando e espia —
noite serena, céu estrellado e a geada!
É cedo, talvez ; nem bruma — o luar galvanisa as
frondes tornando-as de prata e as vozes da natureza
cantam, sussurram dentro da noite; o aroma das flores
passa nas auras, a água rola no moinho. O lavrador ali
fica a olhar, sem sentir o frio que corta como á espera da
geada que não vem, a ouvir, sem comprehender, o que lá
fora dizem as arvores alegres. Torna ao leito desanimado.
A esposa, que o viu sahir, espera-o sentada, com o rosario
entre as mãos enclavinhadas :
Gia?
Ainda não.
Pode ser que pela madrugada . . .
Não creio. É Deus que nos abandona. Emfim, seja
feita a sua vontade. Deita-se. Queria que sentisses o
cheiro das flores.
_ Que flores ?
Não sei, mas é um aroma que entontece. Essas malditas
flores estão annunciando outras cargas. Aqui so o fogo.
40
A BICO DE PENNA
Cala-se e, d'olhos abertos, fica a penaar na
monstruosa queimada salvadora: uma eliamma viva
que crescesse com o vento e que fosse arrasando os
campos de milho e canna eo cafésal e subisse á
matta e seccasse as fontes deixando a terra vazia e
estéril, coberta de cinzas, durante annos. Só isso.
Faria um aceiro protegendo apenas o cafésal
novo, o mais que fosse, que o incêndio levasse e o
pouco dos annos vindouros salvaria o prejuizo dos
tempos copiosos. Só o fogo !
Mas para isso seria necessario que todos os
fazendeiros entrassem no accordo sinistro tomando,
cada qual, um archote e ateiando o incêndio que,
vindo de pontos diversos, ás lufadas vermelhas,
deixasse apenas, em cada fazenda, como pequenas
ilhas, dois ou tres alqueires de culturas verdes.
Escassearia o producto e cresceria o preço.
Mas o fogo estimula, o fogo arde e fecunda como
o beijo. Haveria, no primeiro tempo, um espasmo
lethargico da terra, mas, com a primeira chuva, todas
as sementeiras repontariam viçosas, com ansia maior
de vida e a producção seria mais acabrunhadora.
Que fazer ?
Um silvo atravessa o silencio. São os comboios.
Lá vão elles, caminho do porto, lá vão ! É
madrugada. O gado ínuge, balem as ovelhas.
Atroadorarnente começam a trabalhar as machinas
beneficiadoras e o fazendeiro, fatigado da vigília,
salta da cama, abre largamente a janella. Uma poeira
empana os ares : é a palha do café que vôa e que lá
vai estrumar o alqueive e, purpureo, immenso,
implacavel, sobe no céu, victoriosamente, o sol.
A BICO DE PENNA
41
Douram-se os montes, donram-se os campos, o
orvalho rebrilha nas folhas — tudo reverdeceu com
a noite e o fazendeiro, taciturno, pensa na miseria
quando o administrador, descendo a galope do lado
do engenho, estaca a bestinha diante da varanda e
diz :
— Patrão, vou mandar colher aquelle resto de café
do pedregal, porque as flores já estão vindo aos
galhos.
Elle estremece, fita o empregado e, sem
comprehender bem as palavras que ouve, encolhe os
hombros indifferente. Fruto e flor . . . Mas é a
perdição, Deus do céu ! É a perdição ! Fruto e
flor . . . Terra maldita !
E o sol vai subindo no céu e abelhas zumbem
visitando as flores novas annunciadoras da
abundancia futura que será a fallencia, a definitiva
desgraça, Ainda frutos e já flores.
E ha ainda quem gabe a terra cafeeira, a terra
roxa da côr da agonia.
BALÕES
Dizia-me, uma tarde, com muita gravidade, o
conspicuo commendador Juvencio, lamentando o
desastre de que foi victima Augusto Severo :
Meu amigo, a verdade é que todos nós te
mos o nosso balão. Aqui nesta sala só ha aeronau-tas.
Vendo o ar de espanto com que recebi a sua
affirmação, o commendador, tirando estrondoso pigarro
da formidavel guela — que é um abysmo, segundo dizem
na praça — avançou a poltrona juntando aos meus os
seus joelhos enormes onde as rótulas são verdadeiras
sacadas.
Ouça, meu amigo. O senhor é ainda muito
novo, vê o mundo atravéz de illusões ; eu tenho vivido
muito, conheço todos os segredos da vida. A
alma não tem mysterios para mim. Eu é porque
não tenho tempo, senão o senhor havia de vêr o
bello estudo que me sahia da penna, apojado de no-
44 A BICO DE PENNA
tas, farto de observações, com os nomes, com as datas,
completo e irrefutavel. Todos nós temos o nosso balão.
Vê aquella criança que ali está ao eólio da ama, toda
enfolhada em rendas ! tem o seu balão.
Aquella criança !
É como lhe digo; e lá está elle, ou antes, lá estão
elles tumidos, retesando o corpinho da rapariga, não vê ?
Os peitos da ama ?
Naturalmente. O pai tem um balão e ha quem
affirme que é obra fina : tem dado excellentes resultados
nas experiencias — é a tal machina de chocar.
De chocar !?
Pois não. Elle entende que tudo pôde ser chocado,
é uma simples questão de estufa : choca pintos, carneiros,
bichos de seda, café, crianças . . .
Como crianças . . . ?
Sim, senhor : crianças. O filho do Amadeu é um
produeto da sua machina, pelo menos é o que dizem.
Como foi, não sei, mas a coisa é publica.
E o Amadeu ?
O Amadeu está também ás voltas com o seu balão,
que é uma historia de pesca na Amazônia para exploração
do xarque do peixe-boi.
É extraordinario !
É natural, meu amigo. Vê ali a menina Alice a
conversar com o Lino ? está a encher o seu balão e Deus
queira que lhe não saia hoje mesmo dos lábios o famoso
Lachez tout / Não vê a quantidade de gaz que ella está
para ali a consumir ? a falar, a sorrir, a mostrar o pé, a
descobrir os dentes ? Tudo
A BICO DE PENNA
45
aquillo é gaz e do bom e o Lino começa a oscillar. Eu
d'aqui estou a ouvir as pulsações do motor. O amigo
ha de vêr, em breve, a ascensão. — Mas o Lino não
é partido para a menina Alice.
Porque? No casamento, como em politica, não
ha partidos, ha conveniencias : casa ? elege? é quanto
basta.
O Lino é impetuoso, violento ...
— Já sei, o amigo receia a explosão? Mas o
senhor não sabe que o marido é um baião captivo !
Hão ha perigo. Demais, a menina Alice é segura,
não é das que alijam o lastro: quando ella vir as
coisas mal paradas ...
Appeila para o divorcio.
Qual divorcio ! Appeila para os proprios
encantos e .. . Mas vamos adiante. Conhece aquelle
calvo que ali está, no vão da janella ?
E o Simas. Tem também balão !
Politico ; tem cabido muito, volta e meia é
uma queda, já até cahiu uma véz no ridículo, quando
pronunciou na camara aquelle famoso discurso
aífirmando que a crise do assucar era uma
consequencia natural da crise do café, e propondo,
como medida atilada, que se desse o café de graça ao
estrangeiro porque, como não se bebe café sem assu
car, eile seria forçado a vir buscar esse genero ao
mercado e então far-se-ia a alta do assucar, alta que
daria para indemnisar o fazendeiro.
O plano não deixa de ser engenhoso.
Mas é idiota. Temos ali outro aeronauta. Está
a insuflar um apparelho que, se nada vale na
apparencia, é uma preciosa machina, de construcção
muito solida e com excellente motor.
46
A BICO DE PENNA
—Quer falar da baroneza ?
— Sim! a baroneza vai para os sessenta annos.
É um balão pratico.
— Tem duas ascensões : a primeira com o
Pimentel, coitado ! Ella tinha dezoito annos e uma
belleza de atordoar e o Pimentel era maduro,
resultado ? veiu lá de cima pondo sangue pela boca,
deixando um lastro de quinhentos contos e duas
fazendas no oeste. A segunda foi com o barão que,
apezar de mais cauteloso, não poude, ainda assim,
evitar a queda.
Mas dizem que . ..
Que elle cahiu de outro balão. Sim, pode ser,
porque fazia experiencias com diversos. Não affirmo
— o certo é que, apezar dos precedentes desastrosos,
o nosso amigo está a querer metter-se na barquinha.
Diga antes : barcaça.
Ou isso. E todos aqui, sem excepção . . .
Quer dizer que o senhor também . . . ?
Pois não, não fujo é regra : também tenho o
meu.
E qual é, commendador?
É . . . a imbecilidade humana.
E, releve a minha indiscrição : como
consegue equilibrar-se?
Facilmente : manobrando. Se tenho contra
mim um poderoso, humilho-me ; se tenho um fatuo,
lisonjeio-o ; se é um timido, apavoro-o ; se é um
ousado, acorçôo-o ; se é um pobre, desprezo-o ; se ó
uma mulher, louvo-lhe a belleza e assim me vou
mantendo sempre a favor do vento, buscando a
A BICO DE PENNA
47
corrente da sympatliia, que é corno um mar de
leite para navegar-se.
E nunca cahiu, commendador ?
Sim, sim, já levei um tombo : metti-me num
balão vagabundo que anda agora pelos theatros e
cahi na cama onde estive três mezes, entre a vida e a
morte. Felizmente curei-me.
E está prompto para outra ?
Isso não : a experiência foi rude. Contento-me
agora com os balões praticos.
Pois eu confesso que não tenho balão algum.
O senhor ?
Eu mesmo, commendador.
Mas chamaram-nos para o chá. íamos pela
galeria vagarosamente, respirando o perfume que
entrava, com o luar, pelas janellas abertas. O
commendador insistia em demonstrar-me que todo o
homem tem o seu balão, quando ouvimos um
chuchurrear que parecia vir da sala. Voltamo-nos e
vimos o Lino de braço com a formosa Alice que
parecia mais linda, com uma côr mais viva nas faces
finas. Detivemo-nos á janella. Os dois passaram e eu
fiquei a olhar o plenilunio immenso e branco, que
brilhava.
Ouviu o Lachez tout ! ? sussurrou elle com
malicia, mostrando-me, com o beiço esticado, o
jovem casal que lá ia.
Sim. Pareceu-me um beijo. Mas que linda
noite, commendador.
Elle lançou um olhar indifferente ao céu, e,
encolhendo os hombros, disse, arrastando-me pela
galeria clara :
A lua não é balão que preste. E quer o amigo
48
A BICO DE PENNA
Baber ? não se metta com ella — os que de lá cabem
vão dar com os ossos no hospicio. Arranje, de
preferencia, uma estrella... mesmo de café concerto.
E, rindo, entramos de braço no grande salão
illuminado, onde resplandecia a mesa florida,
carregada de pratas e crystaes. E, sempre malicioso,
o commendador segredou-me :
—Parece que o Lino usa carmim nos labios ?
—Porque !
— Veja as faces da Alice.
Effectivamente : eram duas rosas.
DIVAGANDO
Entrando, de manhan, no meu escriptorio, vi o
velho calendario murcho, a oscillar com a aragem na
parede fronteira á minha mesa de trabalho. Só lhe
restava uma folha. Para que arrancá-la se nada mais
havia atraz d'aquelle numero que representava
apenas uma recordação ! Que o misero levasse
aquella ultima folha para o lixo.
Outro calendario, novo e gordo, carregado de
folhas, como uma arvore na primavera, foi substituir
o velho bloco lentamente consumido e foi somente
essa substituição que me fez sentir o tempo, porque
não notei differença alguma na manhan : nem mais
moça, nem mais velha. No alto o mesmo azul, no
azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as
mesmas andorinhas ; na terra as mesmas arvores, as
mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante
a noite, o mundo silenciosamente vencera outro
marco.
50
A BICO DE PENNA
E porque só o calendário aceusava a passagem
destruidora do tempo ?
Indiferentemente, todas as manhans, eu lhe arrancava
uma folha e a lançava á cesta dos papeis. E que
representava aquella folha morta ?
Quem lhe escrevesse o inventario teria de encher
resmas e resmas de paginas largas registando a campanha
dos homens «pelo ventre », como diz Epicuro : vidas e
mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e
enterramentos, marchas de exercitos e convenios
pacificos, cerimonias rituaes e con-ciliabulos covardes,
inventos e desillusões, sonhos desfeitos e utopias
realisadas, travessias de aguas e de areaes estereis,
ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra á cata
do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos,
ânsias desesperadas, ambições voracissimas, e,
superiormente, a marcha tranquilla dos astros luminosos.
Tudo isso continha a miserável folha morta que eu
atirava, com desprezo, á cesta dos papeis inúteis. Cada
uma d'ellas representava um dia.
Ai! de mim, cada uma d'ellas era como um recibo que
eu dava de um dia que vivera e como elles são
avaramente contados, como o dinheiro de Shylock, era o
meu capital de alento que assim se exgot-tava. Era, pois,
de mim mesmo que eu arrancava aquellas parcellas — o
calendário era apenas um symbolo, o que eu ia destruindo
era o meu proprio sêr.
E fiquei a olhar o papelão, onde estava estampado
aquelle numero, que era tudo quanto restava do velho
calendario. Occorreram-me, então, as palavras do
philosopho : << A vida é como um rio que corre sobre um
leito eterno — o tempo ».
A BICO DE PENNA 51
Nós somos as aguas que passam, aguas, como as do
Nilo santo, de origem mysteriosa. Para onde correm
ellas? para a eternidade, que ó um oceano sem praias. As
margens são de vario aspecto — aqui frondosas, ali
estereis, acolá sombrias, illumi-nadas além.
Ha gottas de água que descem desde a nascente, pelo
meio claro do rio, rolando em tumulto, reflectindo o sol e
as estrellas, numa alegria sem fim : são as vidas ligeiras e
inúteis ; que bem fazem ? que destino cumprem ? correm,
engrossam apenas o caudal e passam.
Outras, como se se houvessem petrificado para
conservar em carcerula uma centelha astral, crystallisam-
se em diamantes impereciveis e refulgem no seio das
aguas — a luz é a inspiração perenne, o genio crystallisa
o esplendor em obras immorre-douras. Outras remansam-
se junto á raiz d'uma arvore e transformam-se em seiva e,
subindo, des-abrocham em flor e metamorphoseam-se em
fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas,
transbordam com as cheias, são repeilidas pelo fluxo do
rio e alastram alagando as margens, formam nateiros
pingues onde reponta a messe de ouro. Essas são as gottas
generosas, são o enxurdeiro da fecundação, o tremedal da
abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e
discorre cantando ; o lodo é negro e parado.
Que nasce no rio ? a nymphéa ; o centro é esteril, só
as margens tranquillas verdejam e o nateiro é todo trigo, é
todo linho, é todo azeite. Queres tu ser a gotta que vai na
derrama fertilisante ? não, por certo — preferes, sem
duvida,
52
A BICO DE PENNA
ser a gotta ligeira e despreoccupadà que desce na
correnteza para o oceano do eterno silencio. O ideal
é a «facilidade » — feliz é o que corre sem encontrar
tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos
pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz
ainda é a bolha ephemera de espuma que Tive
apenas o tempo necessario para reflectir o azul do
céu e o verde formoso da paizagem.
Como são desiguaes os desejos ! Vede como
variam nas almas os ideaes. Cada qual trata com
mais empenho de illudir o tempo.
O menino imagina-se um homem — é guerreiro
e, brandindo armas, que são brinquedos, affronta
inimigos imaginários, ou ó artifice e trabalha
ajustando a ferramenta : aplaina, serra, prega e pule ;
ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e
colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser
mãi — ei-la tartamudeando caricias á boneca e nina-
a, e veste-a, e affaga-a. Chega-a ao collo aga-
salhando-a, alisa-lhe os cabellos, fecha-lhe as
palpebras e, á noite, cabeceando de somrio, não ha
convencê-la a deixar a filha : leva-a nos braços o
dorme com ella chegada ao coração.
O menino julga-se capaz de realisar a conquista
do mundo e orgulha-se 'da sua força e da sua
agilidade levantando pesos, lutando ou subindo
lentamente ás arvores, como um esquilo. A menina
já se imagina seduetora e, dengosamente, ensaia a
faceirice. Um corre aos ninhos, corre a outra aos es-
pelhos, e que fazem ? sonham com o amanhan, é o
A BICO DE PENNA
53
instincto que os impelle atravéz do tempo ao destino
prescripto.
Para eompleníento da illusão o menino põe-se a
repuxar o labio, a retorcer as guias de um bigode
imaginario, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando
um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano. A menina
reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o
cabello, adelgaça a cintura, toma attitudes languidas e,
quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a
familia : são com-padrios, crianças que nascem, projectos
de bapti-sados, mesas de lauto festim ; ou intrigas na
vizinhança, rusgas no casal e até (horresco referens !)
allusões ao divorcio por incompatibilidade entre os
cônjuges. É uma comedia da vida por marionettes
animadas. Esses querem avançar.
Agora vede mais adiante — outra face da illusão : os
que procuram retroceder : É o homem que se
encalamistra, é a dama que se maquilha; (1) que fazem?
procuram reparar « des ans l’irreparable owtrage »; são
os regressivos.
Ha aqui um cabello branco indiscreto, ha ali uma ruga
denunciadora, a pelle encarquilha-se, perde a frescura,
vão-se os olhos tornando ternos, os labios já não são tão
roseos, que fazer ? pedir soccorro ao artificio — e são
tintas, pomadas, pastas, lapis, ferros de feitios
complicados, toda uma pharmacia, toda uma cutelaria no
toucador.
O homem recorda, então, o tempo em que era
(1) Se. alguém possue um bom vocabulo portuguêe que possa
sbstituir esse frrancelho », queira dar-se o ineommodo de m’o remetter
registrado.
54
A BICO DE PENNA
um trefego rapaz agil e forte. Ah ! dançava toda uma
noite sem sentir fadiga, excedia-se em
extravagancias, sem jamais soffrer as consequencias.
Uma noite em claro . . . que era isso ! Bom tempo !
A dama relembra os seus quinze annos viçosos, o
sen primeiro namoro, os dias do seu noivado. Como
era feliz ! tudo lhe sorria e os espelhos eram mais
puros. Porque não havia de tornar esse tempo
amavel?
E os velhos, os que já não podem esconder as
injurias do tempo ? esses tornam á infantilidade. O
próprio tempo como que os transforma — tornam-se
tartamudos, ficam desdentados, caminham á custa de
apoios, alimentam-se como os petizes e até vão
engelhando : — a velhice é a caricatura da infancia.
Os extremos tocam-se.
Certos povos entendiam que era uma caridade
matar os velhos. Que ficavam elles fazendo na vida?
Pobre ruinas, antes que aluissem o melhor era deitá-
las abaixo e os velhinhos, como era de uso o
sacrificio, resignavam-se, e, arrimados aos
mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os
fenos, ouvindo, pela derradeira vez, as vozes alegres
dos pássaros, lá iam para o enteio, desejando a paz
aos que ficavam e abençoando os pequenitos.
Que nos importa mais um anno ? Isso de idade é
grave para os velhinhos. Quando o copo está cheio
basta uma gotta d'agua para que transborde. Para nós
outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos
importa essa gotta que cahiu da clepsydra ?
A BICO DE PENNA 55
A vida é como aquella collina encantada do conto
maravilhoso — para alcançar-lhe tranquillamente o viso é
mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em
frente.
Ai! dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na
melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam,
como viram os irmãos de Parisada, vêm lapides tumbaes e
illusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no
além ! e que de novo caminho nos seja suave.
UM SIMPLES
Não sei se ainda vive, no fundo das suas terras
mineiras, cuidando a horta e o pomar que tinha uma
escancarada voragem em torno da qual florejavam
laranjaes, o prudente, acautelado Fraga. É natural
que viva porque, como o seguro morreu de velho,
Fraga ha de ir além do século que nasceu com elle.
Não o levarão moléstias nem desastres : acabará
socegadamente, sentado no limiar da sua casa,
olhando as arvores que plantou, sem agonia e sem
peccado, como uma lâmpada que se extingue á
mingua de oleo.
O Fraga, que me foi apresentado numa tarde
brumosa, á hora doce da Ave-Maria, annunciada
pelos sinos da velha e escavacada cidade, tão rota
nas suas terras como uma fidalga que houvesse sido
assaltada em caminho por um rol de bandidos e
ficasse sem uma moeda e sem uma joia e crivada de
58
A BICO DE PENNA
golpos atirada, como morta, ao fundo de um vallado,
era um homem alto, magro, ossudo que, ao
appareeer na varanda alpendrada da casa colonial,
me fez lembrar o typo esgalgado do cavalleiro D.
Quixote.
Recebeu-nos com a bonliomia patriarchal que
caracterisa a gente hospitaleira de Minas e,
recolhendo-nos á sua sala, alva, caiada de fresco,
onde reluzia a mobília negra, de jacarandá
esculpido, offereceu-nos café e fumo.
No interior da casa senhorial crianças faziam
alegre algazarra e, no pateo, fronteiro á varanda, o
gado domestico, que chegava dos pastos, mugia
baixinho.
Veiu o candieiro, que um negro suspendeu a um
ferro e, dentro do circulo de luz, em volta da mesa
redonda, sobre a qual havia um vaso cheio de cravos
frescos, entabolamos conversa e, de assumpto em
assumpto, falamos de viagens e foi, então, que o velho
Fraga emittiu a sua opinião de homem prudente, que
prefere ir devagar, pousando em ranchos, com a sua
tropa espalhada no campo e os camaradas estendidos
em pelles, á beira d'um fogo, tocando e cantando até á
chegada do somno, a metter-se num wagon de
comboio, trancado, opprimido, com a poeira a entrar-
lhe pela boca e a empanar-lhe os olhos.
— Olhe, meu amigo, os homens percorreram
todos os mares sem o vapor e trilharam toda a
superficie da terra sem as locomotivas. Para levá-los
pelas aguas os navios eram como grandes aves
viageiras — á hora da partida abriam as azas largas e
lá iam sem risco de explosões e, em terra, eram
A BICO DE PENNA
59
os carros de bois que rodavam, eram os cavalleiros
que passavam a galope, eram os elephantes
carregando ás costas familias inteiras, e camelos que
trotavam pelos areaes abrasados. A viagem era
vagarosa, mas a gente tinha a certeza de chegar ao
seu destino.
Para civilisar o mundo o homem não precisou
d'essas complicadas « mechanicas », agora que está
tudo prompto é que os taes progressistas se lembram
de estender trilhos e de aquecer caldeiras, para que ?
Olhe, meu amigo, depois de jantar o meu feijão
podem vir os melhores manjares d'este mundo
porque eu nem os provo — estou farto. É assim
também com as taes «mechanicas ».
Agora que o mundo está conhecido de pólo a
pólo é que vêm vapores, estradas de ferro, o diabo.. .
Porque não inventaram essas coisas antes ? Com que
companhia de vapores se entendeu Moysés para
transportar os israelitas atravéz do Mar Vermelho ?
Em que comboio fugiu Nossa Senhora para o
Egypto ? Os primeiros effectuaram a travessia a pé e
a Virgem fez a viagem montada num jumento.
Historias ! E veja o amigo : Quem viaja a cavallo ou
em carro de bois sente um ale-grão doido quando vê
na estrada, ao longe, outro cavalleiro ou quando
ouve o rincho de outro carro de bois ; e no trem ? Se
a gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em
sentido contrario, só tem uma coisa a fazer : é
encommendar a alma ao Creador, porque está frito.
Não, meu amigo. Deus não quer pressas, devagar se
vai ao longe. O dia continuada ter as mesmas 24
horas, nem mais, nem menos; os infantes nascem
com o mesmo tempo
60
A BICO DE PENNA
e, se se precipitam, não resistem. Não contrariemos
as leis divinas.
O meu amigo, para prolongar a conversa, que
nos interessava, perguntou ao excellente velho:
«Que faria se fosse forçado a mudar-se para terras
distantes ? » Fraga cruzou as pernas, enclavinhou as
mãos nos joelhos e disse tranquillamente :
— Eu tenho ahi uma cadeirinha ainda em estado
de servir, possuo excellentes animaes de sella, bons
carros e gado de primeira ordem. Se tivesse de
mudar-me arranjava a cadeirinha para a velha,
mettia a criançada em um carro coberto, mettia
noutro as criadas, arrumava os cacarecos em dois ou
tres, fazia uma bôa matalotagem e, com o rebanho
entregue aos rapazes, que são de confiança, uma
manhan, com a fresca, antes do sol, sahia por ahi
fora, devagar. Água não falta por essas terras de
Deus. Quando o sol apertasse, buscava a sombra das
arvores, com a tarde retomava o caminho e, á noite,
se houvesse rancho, muito bem, se não houvesse,
melhor. Havia de chegar a são e salvo, isso havia !
affirmou.
O que está dando cabo do mundo é justamente
essa pressa ambiciosa. Para que havemos de correr ?
Quem vai no seu passo, chega ao fim da vida
descançado e sem remorso de haver pisado muita
criaturinha inoffensiva. Eu, que aqui estou, nunca
me apressei para nada — vou devagarinho e vou
vencendo, e assim parece que a velhice também vem
chegando devagar. Os senhores de agora querem vêr
muito, querem saber muito — que lucram com isso ?
Aquella arvore que está ali fora nunca se arredou
d'aquelle lugar — ali nasceu, ali,
A BICO DE PENNÁ
61
todos os annos, fica coberta de flor ; ali dá os seus
frutos, os passarinhos já a conhecem ; não é feliz?
Não sei, disse eu.
— Garanto que é. A felicidade é a flor da
satisfação. Quem se contenta com o que tem, é mais
que venturoso, porque não conhece o desejo que
gera a inveja e a ambição. Quantos soes bastam para
aclarar o mundo ? um. Tudo que Deus fez anda
devagar ; depressa andam as criações do diabo,
como os ventos que destróem, e os raios que
fulminam. Vamos devagar, nada de trens, nada de
vapores. Volta e meia é um desastre ... Para que ?
Levantou-se, acompanhamo-lo á varanda. A lua
subia lenta e branca no céu, os grillos cantavam na
herva, um aroma de flores agrestes perfumava o ar e,
no interior da casa senhorial, onde se fizera silencio,
uma voz meiga cantava a ninar crianças.
Pois é como lhe digo : trens não me apanham.
Tenho a minha bestinha viageira, dócil ao freio e
de bom passo, que me leva a toda a parte, sem risco.
Eu, quando penso nos túneis, fico todo arripiado.
Deus me livre ! Para sepultura basta a que
me espera no cemiterio. E não sou tatu ! concluiu.
Euskin, o grande estheta, o visionario que
sonhou a Saint George's Guild, essa herdade modelo
onde o homem, sem o auxilio de machinas agricolas,
semeava e colhia, e a mulher cardava a lan, levava a
maçaroca ao fuso, fiava-a cantando e depois,
estendendo a trama no tear, punha-se a urdir o
tecido, como a Arachné pagan; Ruskin, o adorador
da natureza, não só fugia aos trens, como
62
A BICO DE PENHA
os combatia, não permittindo sequer que os objec-tos que
lhe eram dirigidos (como os livros que o seu editor lhe
enviava de Orpington para Londres, que eram transportados
em carroças) fossem despachados nos armazens das gares.
Ruskin, comparando o passado com o presente, mostra
um camponio de outr'ora viajando a pé, de uma cidade a
outra, atravéz dos campos floridos, bebendo nos limpidos
regatos, repousando á sombra das verdes arvores, ouvindo
os pássaros, contemplando os largos horisontes de verdura
viçosa, ou de alegres colunas, com moinhos que
bracejavam e, disseminadamente, como grandes moutas
brancas, bandos de ovelhas pastando. Além do exercicio
salutar, tinha elle a impressão, e que gastava as solas dos
seus fortes sapatos ferrados. O camponio de hoje, para
fazer uma curta viagem, compra um bilhete, mette-se em
um wagon e, inerte, lá se deixa levar aos solavancos. Fuma
para distrahir-se, trava conversa com um desconhecido, que
lhe incute na alma rustica idéas subversivas ; na primeira
estação, para fazer alguma coisa, bebe ; bebe adiante e lá
vai, cochilando ou viciando a alma no wagon, ou bebendo
nas gares, e chega ao seu destino bebedo, com uns
schillings de menos e o germen de um crime na alma. A
estrada de ferro é como uma grande lagarta que destróe a
belleza da natureza. Se atravessa um campo queima-o com
as fagulhas que lança ; as florestas abatem-se para que ella
passe ; arredam-se os rochedos, deventram-se as
collinas, desviam-se as aguas — o progresso é assim um
destruidor da graça. E Ruskin não menciona os
A BICO DE PENNA
63
desastres: os choques de comboios em rampas ou dentro
do tuneis negros, os descarrilamentos, os esmagamentos
de criaturas, e todos os mais horrores, que formam o
sinistro cortejo de taes engenhos.
Têm razão os dois homens : o velho Fraga com a sua
simplicidade, aferrando-se aos habitos patriarchaes, e o
autor dos Modem Painters defendendo a natureza. Não ha
como o burro para uma viagem pittoresca, mas
francamente, para vencer distancias, com a urgencia que a
nossa vida complicada exige-o vapor parece-me
insufficiente e só conseguiremos alguma coisa no dia em
que a electricidade fôr applicada á tracção nas vias ferreas
e os balões scindirem os ares, não um a um, mas aos
enxames, em revoadas, como grandes pombos correios.
Desastres... Que valem desastres? Rolem comboios,
estourem balões, cubra-se a terra de destroços,
escureçam-se os ares com retalhos de aeronaves, a
Humanidade irá por diante, contente, herpica, indifferente
ás victimas, que são as offerendas á victoria.
E os filhos do velho Fraga e os discipulos do grande
Buskin comprarão bilhetes nas gares e nas estações
aéreas e irão, contentes, percorrendo centenas de
kilometros por hora na terra ou no espaço e pensando no
tempo em que o pai viajava pelos andurriaes mineiros ao
chouto d'uma besta preguiçosa o o mestre subia ás
collinas para contemplar as nuvens douradas do
crepusculo que elles verão, não mais acima das cabeças,
mas debaixo dos pés, como amplo e flammejante tapete
estendido no
64
A BICO DE PENNA
espaço, superior ao que Clytemnestra estendeu no
palacio de Argos para receber o atride victorioso. E
nesse tempo maravilhoso os homens, ainda
insatisfeitos, pensarão em Progresso, mas no fundo
d'uma aldeia, haverá sempre um burrinho nedio e um
velhinho que o monte dizendo, como hoje diz o
velho Fraga : « Que prefere o seu asno a todos os
comboios electricos da terra e a todos os balões do
espaço ».
E Deus que nos conserve esses simples que são a
Poesia suave do passado no turbilhão da vida
contemporanea.
AWAY!
Michelet compara os dias a pontes que, uma vez
atravessadas, abatem desapparecendo no abysmo do
tempo. Ninguém retrocede — a Fatalidade lá está
para cortar a retirada. Não ha exemplo de um só
homem que tenha, da velhice embranquecida e
gelada, recuado aos claros dias da mocidade.
Mal passamos a ponte, sem que ouçamos o
fragor da queda, sentimo-la aluir-se, vêmo-la
desapparecer no vértice fundo, onde pullulam
milhões de vidas.
Do outro lado os mais fortes deixam pegadas
eternas, os semeadores deixam germens esparsos
que darão aos vindouros sombra e fruto, os tristes
deixam lagrimas que formam nateiros fecundos,
mas nenhum regressa áquella barranca adorada cuja
paizagem, á distancia, esbatida na saudade, como
que se torna mais fagueira, porque ninguém vê os
curtos e agudos espinhos nem os calháos afia-
66
A BICO DE PENNA
dos, mas a massa de verdura iuponente, a sempre
viçosa e admiravel ifatureza e a estrada lisa e brana,
ora larga, ora angusta, entre penhas alcandoradas ou
frescos vergeis floridos.
Eindo, em tumulto alegre, acenando com palmas e
flores, vão as crianças atravéz da ponte. Que lhes
importa que alua aquella passagem que as conduz ao
futuro ? Não voltam os olhos porque não têm
saudades, correm ansiosas, aligeirando cada vez mais
os passos porque entendem que a felicidade está além,
no brumal distante e lá vão ! Mas acompanhai o
velhinho e vê-lo-eis voltar-se, a todo o instante,
diminuindo os passos, porque um minuto que avança
na manhan apressa o esplendor, um segundo que passa
no crepúsculo leva á desesperança. A ascensão é lenta,
o mergulho é instantaneo.
Para os que agora entram na vida o tempo é
festivo. Anno novo ! Anno novo ! Ai! dos que
caminham carregados de annos! Para esses os novos
dias serão um fardo pesadissimo que ainda mais os
curvará na estrada.
Lá vão elles tardigrados, arquejando, com os
corações transbordantes e os olhos marejados.
Quantos abysmos vencidos e, no fundo d'elles,
quantos sonhos, quanta ventura, quanta illusão
perdida.
Quiz Deus nascer nos últimos dias do anno como
para tornar a sua creche um diversorio bemdito onde
as almas repousem e tomem o viatico da esperança
com que se alentem na Terra.
E ali, na gruta pauperrima, entre o jumento e o
boi, sobre a palha olorante que Jesus se exhibe.
A BICO DE PENNA
67
Chegam-se todos os crentes ao tugurio, ourem os
cantos angelicos, escutam a egloga dos pastores e
contemplam a Santa Família que rodeia o
predestinado Martyr. Os mais afflictos sentem-se
allivia-os na suave companhia e recobram a
coragem para a jornada fatal. Emquanto adoram o
Infante esquecem os tormentos e pensam na
redempção futura, no prêmio magnifico que lhes
está reservado no céu e, retomando o cajado, lá vão
contentes, ao longo da estrada luminosa.
Anno Novo ! Que veremos nós além da ponte de
S. Sylvestre ? Chegarão todos á outra margem?
Quantos se abysmarão com a trilha oscillante? ! Que
desappareçam ! o Tempo não se fatiga e, para os que
chegam, lança novas passagens e logo as retira como
o soldado do castello recolhia a levadiça á entrada
do ultimo falcoeiro e do ultimo montaraz, quando o
senhor tornava, com estrondo de charamelas e ladrar
de matilhas, das montarias que fizera com a gente
nobre do seu solar.
Nem todos atravessarão a ponte que nos vai ligar
ao anno proximo, mas para que a vida continue,
basta que passe um casal, como o que sahiu do
Paraíso no dia do peccado e esse, entretido com o
amor, nem dará pelo silencio propicio, nem se
lembrará da mortualha que ficou atraz.
O melhor é seguirmos despreoccupadamente —
não imitemos a mulher de Loth. A ponte é fragil,
Deus assim a fez para que não retrocedêssemos e
pudéssemos conhecer todos os bens, e todos os
males da vida.
Se nos fosse dado permanecer num mesmo sitio,
á sombra acceitosa da mesma arvore redolente
68 A BICO DE PENNA
e frutifera, com um claro arroio para nossa sede
serpeando á volta do nosso descanço, ficariamos
satisfeitos com essa soeegada e doce existencia ? não!
Haviamos de querer avançar e falariamos com a
mesma ansia com que falou o astuto Ulysses
desligando-se dos encantos de Ogigya e das seducções de
Calypso á medida que ia prendendo, com fortes pregos
de bronze, os grossos troncos de cedro e de tecca da sua
jangada :
« Oh ! Deusa, não te escandalises ! mas ainda que
não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa,
nem reino, eu affrontaria alegremente os mares e a ira
dos Deuses ! Porque, na verdade, oh Deusa muito
illustre, o meu coração saciado já não supporta esta
paz, esta doçura e esta belleza immortal. Considera, oh
Deusa, que em oito annos nunca vi a folhagem d'estas
arvores amarellecer e cahir. Nunca este céu rutilante
se carregou de nuvens escuras ; nem tive o
contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao
doce lume, emquanto a borrasca grossa batesse nos
montes . . . Deusa, ha oito annos que não olho para
uma sepultura, não posso mais com esta serenidade
sublime ! Toda a minh'alma arde no desejo do que se
deforma e se suja e se espedaça e se corrompe. Oh!
Deusa immortal, eu morro com saudades da morte» !
Não é essa, em verdade, uma perfeita e saliente
representação da eterna e insaciavel curiosidade do
Homem que nem com o Bem se contenta e vai
caminho do Mysterio só para vêr «algo nuevo»
como o navegador ? Se isso ó próprio da condição
humana, vamos ao nosso destino de curiosos, mas
A BICO DE PENNA
69
vamos contentes, cantando e rindo, como os
companheiros de Taillefer, em Hastings.
Deixemos que o abysmo atrôe com o rolar dos
destroços da ponte atravessada — ó o nosso passado que
rola, é o dia de hontem que lá fica e que nunca mais
avistaremos. Deixemo-lo no abysmo e vamos para o
amanhan, para a linda e refulgente ponte de crystal que
reluz ao sol entre as duas margens — a do que foi e a do
que vai ser.
Que ha nos longes ? nevoas ; e dentro das nevoas ? a
gloria, talvez, talvez . . . Que importa ! vamos vêr « algo
nuevo » !
DECADENCIA
Da vida de duas princezas — uma alleman, outra
russa — que cahirarn em miséria, deram os jornaes
o triste romance. A primeira, fugindo na mesma
noite do casamento, preferiu ao marido, um
príncipe, certo bohemio desabalado que, depois de a
haver empobrecido, abandonou-a com uma filha
pequenina e enferma nos braços.
A desgraçada, repellida pela familia, cuja coroa
ficara indelevelmente mareada, errou, faminta e
tiritante, pelos campos até que a criança lhe morreu
achegadinha ao collo mirrado e, sem lar e sem pão,
com uns sordidos andrajos sobre o esqueleto, foi,
uma noite, bater á porta d'um hospital pedindo, a
chorar, que a recebessem por misericordia.
Receberam-n'a tomando-a por uma pobre mulher,
viuva de algum operario e, só na hora extrema,
quando a desvairada se desprendia do mundo, os
enfermeiros souberam quem ella era.
72
A BICO DE PENNA
A outra, menos romântica, perdeu-se em operações
financeiras : atirou-se á jogatina da bolsa sacrificando
milhões derublos, empenhando as jóias, o mobiliario, a
seda, os linhos, até que se achou, uma manhan, sem um
azinhavrado kopeck. Como não era mulher fragil e
conservava no coração um resto de esperança, preferiu
continuar a viver, mesmo com soífrimento, a mergulhar
no Neva ou a queimar os miolos, se os tinha, com um
tiro.
Procurou emprego como a Krotkaia de Dostoiewsky
e, como não lhe foi facil encontrá-lo em uma repartição
do Estado, aceitou, com resignação, o lugar de servente
de pedreiro e, como no tempo do fastigio subia, com
pelliças caras sobre os hombros, as escadarias de
marmore dos palácios moscovitas, pôz-se a subir as
escadas oscillantes que levavam aos andaimes
equilibrando na cabeça, sobre a rodilha dos cabellos
louros, que haviam, em tempos prosperos, sustentado
uma coroa, o cocho acogulado de barro.
Acabou em negra miséria, envelhecida, callejada
naquele rude trabalho, ao sol e á neve.
Entre nós ha de ser difficil apparecer um desses casos
lamentaveis, porque não temos príncipes, mas podemos
apontar muitos decahidos que, se não têm nas veias o
sangue azul, tiveram nos cofres ouro bastante para, com
habilidade, se quizes-serri, arranjar o colorido cyanico
que é um nobre privilegio dos descendentes de reis.
Um d'esses decahidos acabou, no Hospício Nacional
de alienados. Eu o conheci já na miseria, mas ainda são,
integro de espirito. Chamava-se Pinheiro, por
antonomasia — Chicote.
A BICO DE PENNA
73
Fui-lhe apresentado, uma noite, por um academico,
em cuja casa elle costumava pernoitar. Era um homem
sympathico, distincto, dotado de uma voz insinuante,
conversando como um gaulês.
Nessa noite, minutos depois da sua apresentação,
falando-se do passado, o sempre bon vieux temps, elle,
que se achava sentado em uma canastra, levantou-se e,
sacudindo os cabellos, compridos e soltos como uma
juba, poz-se a pásseiar pelo quarto acanhado, em silencio,
estalando os dedos. De repente, detendo-se, cravou em
mim os olhos que fulguravam, e disse com um momo :
— Meu amigo, no Brasil ninguém vive, isto é uma
ocára, comprehende ? uma ocára insipida. Para quem
nunca atravessou os mares o Eio tem encantos, mas para
quem viveu lá fora, isto não passa de uma aldeia sórdida e
triste, com um lindo céu e algumas arvores.
E, inspirado, entrou a descrever a vida alegre, agitada,
em Paris — os boulevards illuminados, o Bois, á tarde, os
lagos no inverno recortados pelos patinadores que
deslisam graciosamente sobre a neve rutila, os theatros,
os cabarets . . .
Depois Londres com o seu movimento e o seu
nevoeiro, as costas azues do Mediterraneo, Nice e toda
essa Italia artistica e languida, as ilhas classicas, a Grecia,
Constantinopola, Jerusalém, os desertos, que sei! Falou-
me do mundo descrevendo pittorescamente, e com
saudade, toda a sua longa e lenta viagem — noites em
Govent Garden e noites á beira do Mar Morto, numa
tenda, entre beduinos.
Depois o Egypto, depois a Hespanha com amo-
74
A BICO DE PENNA
res e serenatas. Agitava-se, ia e vinha sacudindo, de
instante a instante, a cabeça, com os olhos muito
brilhantes. Eu ouvia pasmado e, eomo não conhecia
a estranha historia da sua vida, tomava-o por um
louco.
De vez em quando procurava os olhos do
academico que m'o apresentara e nada nelles
descobria que denunciasse incredulidade : o rapaz
ouvia, com respeito, as descripções fantasticas que
ia fazendo aquelle homem, cujo casaco estava no
fio, cujas botinas gastas iam e vinham pelo soalho
sem ruido como se fossem forradas de algodão.
Depois referiu-se á Arte recordando as suas
detidas visitas aos mais notaveis museus, com uma
opinião sobre cada epoca e sobre cada um dos
grandes mestres da pintura e da esculptura. Falava
com acerto como se repetisse as palavras de um guia
bem compilado. Por fim chegou á mulher e sobre
todas teve uma phrase — desde a robusta camponia,
linda e graciosa no seu vinhal do Douro, com as
cores vivas dos seus trajos, que recordavam a
fantasia alegre dos sarracenos até á branca e delicada
miss, figura mystica, d'uma doçura divina, como
anjos das illuminuras medievaes. E a todas amara e
guardava ainda o sabor d'aquelles beijos que
recebera, uns que sabiam a mosto, outros que
deixavam na boca a impressão delicada d'um gosto
de violeta.
Mas quando, de volta d'essa viagem, elle
reentrou a barra do Bio de Janeiro, a celebrada barra
que não tem rival no mundo, a sua tristeza começou
a manifestar-se. O enthusiasmo cahiu em morna
melancolia e elle tornou á canastra, cruzou as
A BICO DE PENNA
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pernas e, depois de haver explorado inutilmente os
bolsos, pediu-me um cigarro. Dei-lh'o e isso foi
pretexto para que discorresse sobre o fumo, falando
de Cuba e das suas ricas plantações. Não era um
homem, era a própria geographia.
O grande sino de S. Francisco pôz-se a bater
vagarosamente as dez horas e o homem levantou-se.
O acadêmico insistiu com elle para que ficasse.
Não, estava uma noite linda, ia aproveitá-la.
Tomou o chapéu e a bengala, despediu-se e foi-
se, cabeça alta, .bambaleando o corpo. Quando os
seus passos perderam-se na escada eu disse ao meu
amigo :
Esse sujeito é doido, não?
Não. Esse homem foi um verdadeiro nababo.
Descendente de uma familia abastada herdou uma
grande fortuna e, logo que entrou na posse dos seus
haveres, resolveu satisfazer a ambição da sua
mocidade : ver o mundo e sahiu a realisar essa
viagem admiravel da qual nos deu, ha pouco, as
linhas geraes e, ainda assim, muito apagadas, porque
elle hoje está com a melancolia : ha luar, é sempre
assim.
É, então, um lunatico?
Não sei, diz que o luar reaviva-lhe as
recordações. Pensas, talvez, que foi dormir ? não, foi
andar e anda até de manhan. Vai a pé a Botafogo,
fica horas e horas a passeiar ao longo do cães,
falando só, ou falando ao mar ; detem-se diante de
certas casas, olha demoradamente, depois segue
cantarolando, como para disfarçar tristezas. É
sempre assim, quando ha luar.
Chama-se Pinheiro, Pinheiro Chicote. Dizem, que,
76
A BICO DE PENNA
de volta da Europa, enamorou-se de uma formosissima
senhora e desposou-a. A principio, por vaidade, abriu os
seus salões, recebendo com fausto ; levou a mulher aos
bailes da corte, aos espectaculos no Provisorio, a garden-
parties, de repente retrahiu-se ; nunca mais a senhora foi
vista em parte alguma, e entraram a dizer que, numa
scena violentissima de ciume, o marido levantara contra
ella o chicote ferindo-a no rosto e no collo. O povo
entrou, desde então, a chamá-lo Pinheiro Chicote,
juntando-lhe ao appellido, como antonomasia
estygmatisante, o nome do instrumento vil, com que
ferira a linda dama.
Nunca se referiu á esposa nas palestras que commigo
tem tido, conheço taes factos por outras pessoas que o
alcançaram ainda no tempo brilhante.
A senhora morreu, dizem uns ; outros affirmam que o
abandonou e que ainda vive ; não sei. Elle é o que vês —
um misantropo, com essa erudição de viagens e um pouco
de poesia melancolica no coração. De resto — bom
homem, posto que, algumas vezes, tenha verdadeiras
crises de máu humor tornando-se insupportavel. É de um
orgulho desmesurado : soffre fome para não pedir e, se
apanha algum dinheiro, vai, a correr, para a estação das
barcas, sentir-se no mar. Tem a nostal-gia das aguas que o
levaram a todos os pontos do mundo onde havia alguma
coisa que vêr, e admirar ; e tem, talvez, um remorso que
lhe tira o somno, que o irrita ou que o prostra em longa e
muda melancolia, dias seguidos. Fala seis línguas, e é um
critico de arte admiravel. Onde mora ninguém sabe,
dorme, ás vezes, aqui, outras vezes em casa
A BICO DE PENNA
77
do Rodrigues, e nas noites de luar caminha. É tudo
quanto sei.
E que faz ?
Nada. Já lhe quizeram dar um emprego, rejeitou
com desprezo. Quer a sua independência absoluta, não
sabe obedecer.
Annos depois, uma tarde, achava-me eu no largo da
Carioca, á espera do bonde, quando ouvi uma gritaria e
gargalhadas estrondosas que vinham da rua de Santo
Antônio. Voltei-me e vi apparecer, á frente de uma
grande malta de garotos, roto, brandindo furiosamente um
velho guarda-chuva, o Pinheiro Chicote.
Estava envelhecido e magro, o casaco era um trapo, as
calças pretas, poídas na barra, reluziam. Caminhava
apressado, gesticulando ; de repente, sentindo perto os
pequenos que diziam chufas, que lhe atiravam
immundicies, que o puxavam pelas mangas, pelas abas do
casaco, voltou-se e foi um chorrilho de obscenidades. Um
policia interveiu defendendo-o e elle lá foi, atirando os
braços, com acenos ameaçadores, e desappareceu na rua
Gonçalves Dias, perdido na multidão que subia apressada.
Recolhido ao Hospicio foi, emfim, libertado pela morte.
Esse grande desgraçado que, para uns, soffria as
torturas de um remorso, e para outros, era apenas um
nostálgico da fortuna, vivia do passado : na maior miseria
sustentava-o a recordação dos dias felizes que, no dizer
do Dante, constitue a provação maior. Para elle era a
felicidade.
78
A BICO DE PENNÁ
Olhar as águas verdes e irrequietas do mar era
para o infeliz um consolo. Por ellas seguira outr'ora,
moço e rico, e ellas o viram feliz em tantos portos
diversos, gastando a mãos largas ; por ellas tornara
para agasalhar-se na patria tendo por companheira
uma senhora de esmerada educação e de fascinadora
belleza. Fora injusto e cruel com ella, as erynnias
vingaram-n'a e o misero Pentêu pôz-se a errar pela
cidade, pobre e solitário, ao luar e ao sol, revendo os
sitios em que fora feliz : aqui certo balcão d'um
antigo prédio, que fora seu, talvez, de onde ao lado
d'ella, olhara tanta vez aquellas mesmas estrellas do
céu ; adiante, um jardim onde deixara uma
lembrança do sou carinho numa arvore que vira
pequenina e que, então, abria uma copa frondosa ; os
montes, os campos, o mar, o mar sobretudo.
Essa insistencia da visão das coisas antigas devia
ir abalando o pobre espirito. Não foi a miseria que
levou ao desespero a alma orgulhosa, altiva e
soffredora do miserando, foi a saudade, foi a
lembrança da ventura que, a principio, o sustentava
como a hera sustenta as ruínas, mas que, insinuando-
se por todas as frinchas e taliscas, acabou por estalar
aquellas fracas resistências dando com a pobre alma
na loucura. E que fazia o louco ? não vociferava, não
investia, não ameaçava — só, mo-nologando, ia e
vinha pelos compridos corredores apontando coisas
imaginárias, sorrindo, admirando. Ás vezes corria
— não julgassem que ia praticar alguma maldade,
não ; ia tomar o comboio para Jerusalém ou o trenó
para atravessar a steppe e, sorrindo, acenava adeuses
fugindo na loucura para
A BICO DE PENNA
79
aquelle passado, na visão suave do que fora, dentro
do eterno sonho.
Nas noites de luar accendiam-se-lhe os olhos,
tremia e, pallido, sem poder conciliar o somno, não
se aquietava em quanto não lhe permittiam ficar
junto a uma janella olhando, atravéz das grades, a
lua branca, no céu.
Que lhe recordaria o astro meigo ? talvez um
amor no deserto ou, quem sabe ? a sua brutalidade
de ciumento.
Que descobriria na lua triste ? seria elle um dos
predestinados de que fala Raymundo Correia no seu
Plenilunio ? talvez. A lua . . .
Ha tantos olhos nella arroubados,
No magnetismo do seu tulgor ?
Lua dos tristes e enamorados,
Golphão de scismas fascinador !
Astro dos loucos, sol da demência
Vaga, noctambula apparição!
Quantos, bebendo-te a refulgencia,
Quantos por isso, sol da demência
Lua dos loucos, loucos estão !
D. JOÃO DE MARAÑA (1)
Na, lapide de uma tumba rasa, que serve de limiar á
portaria da igreja da Caridade, em Sevilha, lê-se, em
letras gastas pelo contínuo roçar dos pés, este epitaphio
sombrio : «Aqui yace el peor hombre que fue en ei
mundo».
Diz Mérimée que taes palavras, ditadas no momento
da morte por aquelle que debaixo dellas repousa, como se
quizesse ficar sob um perpetuo estygma ou sob um
perpetuo annuncio, ou foram suggeridas por humilde
arrependimento ou inspiradas por desmarcado orgulho.
O corpo que ali jaz foi o de galhardo fidalgo
destemido e affrontoso, horror de Sevilha e de
Salamanca, herdeiro da fortuna e da nobreza dos condes
de Marana, infame rausor de virgens, profana-
(1) Reininiscencia de uma novella de Mérimée.
82
A BICO DE PENNA
dor de claustros, grande acutilador e matador de
homens.
D. Carlos de Marana, vencedor dos Alpuxarras,
era de antiga e illustre casa seviihana, famosa nas
chronicas esforçadas do tempo das grandes guerras.
Depois de muito talhar mourisma, destroçando
aduares, escalando muralhas e levando, á frente da
sua mesnada afoita, a cavallaria do Islam batida e
confundida, mui cangado de «montear» os cães de
Mafamede e não menos enfastiado de aventuras,
resolveu recolher ao seu palacio, nos arredores da
cidade, no silencio sombrio d'um parque de velhas
arvores, com muita terra de semeadura para o fundo,
onde verdejavam olivedos e vinhas.
Os famulos, com as contínuas e demoradas
soridas do fidalgo, ficavam a cochilar no immenso e
soturno palacio e, de tempos a tempos, acordados
pelo mordomo, lá iam aos salões. Abriam
largamente as janellas ao sol e ao ar, sacudiam a
densa poeira que encobria os quadros, açacalavam
as armas das panoplias, bruniam os marmores dos
moveis, batiam as tapeçarias, mas o senhor não
tornava e, de novo, o palácio recahia no silencio,
fechado á luz como solar abandonado e maldito.
Ás vezes, um cavalleiro, coberto de pó, com as
armas sem brilho, refreiava, diante da grande casa
armoriada, o ginete esfalfado, apeava e, com o
punho da espada, batia de rijo na porta principal,
chapeada de ferro, como a de uma fortaleza. O som
estrondava longamente. Acudiam, a correr, os
famulos sobresaltados, olhavam pelo postigo
gradeado e, reconhecendo o cavalleiro, com esforço
faziam
A BICO DE PENNA 83
rodar a porta emperrada e pesada, de cujos gonzos, no
lento girar dos quicios, cahia, como a farinha da mó, uma
vermelha poeira de ferrugem.
O cavalleiro penetrava, era acolhido com alegre
alvoroço, dava-se-lhe do melhor vinho e da melhor fruta
e, á noite, em volta da grande mesa, ao chammejar da
lenha, seccando canecos, elle narrava á boa gente
domestica os feitos maiores do senhor, que lá ia, ao longo
das praias, repellindo para o mar o ismaelita corrupto,
levando-o, á ponta de lança, como o campino, na lesiria,
apua a pampilho o touro. E até noite alta, quando o fogo
morria, os famulos, em silencio, maravilhados e
orgulhosos, escutavam as descripções das proezas do
lidador. Na manhan seguinte o cavalleiro apressado
montava um animal robusto e, com outro á dextra e
machos resistentes, lá ia levando novas armas ao campeão
que pelejava e vencia a peito descoberto.
Veiu, porém, o fastio da vida errante e incerta e o
fidalgo com mais d'uma ferida no corpo e um grande
talho d'alfange na face acobreada, entrou no seu palacio e,
suspendendo o montante e o morrião, despindo a couraça
abolada, que foi brilhar, como um trophéo, entre as
luzentes armas dos Marafia, mandou abrir, de par em par,
todas as portas e janellas, e, nesse dia, velhos morcegos,
que se haviam acolhido, como em ruinas, aos angulos
d'aquelles salões, deslumbrados pelo grande sol que
entrava fulgurante, puzeram-se a esvoaçar pesadamente,
indo de encontro ás telas, ferindo-se nas ascumas, aos
trissos, e foi para a gente domestica uma divertida e
ruidosa caçada.
84
A BICO DE PENNA
D. Carlos, porém, habituado á vida agitada dos
acampamentos, sentindo-se muito só naquella immensa
morada, pensou em tomar esposa. Como, pela vida que
adoptara, andasse sempre longe, não conhecia as damas
sevilhanas, despindo, porém, as armas e cobrindo-se de
velludos, com um gracioso florete ao flanco, antes
adorno que defeza, fez-se o mais assiduo galanteador
nos salões da nobreza, procurando, com sagacidade,
uma donzella que fosse, em tudo, digna do seu nome e
de seu amor. Achou o que buscava, não no esplendor da
cidade, mas no retiro virtuoso de um paço de velha
nobreza, calmo no seu recato, todo em sombras
d'arvores, á beira do Guadalquivir.
D. Ignez, nascida e criada naquelle pensativo
solar, onde apenas viviam damas, que o pai lá lhe
ficara em guerras, na costa do mar, junto do filho
que o seguira, muito moço ainda, mas já ardente em
batalhas, era d'uma pallida belleza, mais branca do
que as imagens do seu oratorio contiguo ao quarto
em que dormia, fechado a ferros como uma cella de
monja ou o ergastulo de galé.
O primeiro homem que os seus olhos calmos
contemplaram com a demora de um olhar foi D.
Carlos, o guerreiro acerrimo, junto de quem ella
ficava como um lirio fraco e languido perto de
annoso roble. De vê-la a pedi-la não houve demora e
logo se annunciou pelas casas armoriadas o
casamento do conde batalhador com a delicada filha
dos fidalgos de Beira d'Agua.
As bodas, como convinha a duas familias de
tanta prosapia, foram sumptuosas. Tres dias duraram
as festas e a gente dos campos desceu a
A BICO DE PENNA 85
admirar a riqueza e a fulgurancia do palacio dos
Maraña.
Annos tristes passaram sem esperança de
herdeiro. Uma manhan, porém, D. Ignez, a chorar e a
tremer nervosa, deu ao conde a noticia grata de que
se achava fecunda, e, mezes depois, na hora da tarde,
com o canto dos frades que enchiam a capella,
nasceu, robusto e lindo, o varão que devia, honrar e
continuar a gloria das duas casas.
Levado á pia com solemnidade — dobravam
alegremente os sinos como nos dias grandes da
religião — recebeu o infante o nome de João e
cresceu entre os cirios e as rosas da capella, onde a
mãi; que o tinha por dom divino, com elle
desapparecia a rezar.
O conde, taciturno, medindo os vastos salões a
duras e largas passadas, murmurava contra aquelle
vergar d'alma, e, quando, longe das vistas da mulher,
achava o filho curvado, a folhear velhos livros
cheios de üluminuras devotas, lá o arrancava com
violência e, trancando-se com elle na sala d'armas,
ia-lhe apontando, um a um, os retratos de.,: avós,
citando-lhe os seus feitos, descrevendo batalhas e,
ora brandindo uma espada, ora embraçando um
escudo, ora enristando uma lança, arremessando-se e
recuando, aos brados estrondosos, dava-lhe ao vivo
o exemplo dos combates quando, na confusão da
peleja, os ginetes acobertados chocavam-se com
estridor e as lanças voavam em estilhas de encontro
aos aceiros rijos. E, como o menino, em cujas veias
ardia o sangue bravo dos he-roes de duas temiveis
linhagens, se fosse inclinando áquelle gosto que
renascia no pai, deu-lhe o fidalgo
86
A BICO DE PENNA
um destro mestre de armas e, assim, entre esfiar de
rosarios e botes e arremettidas, devoções no oratorio e
retinir de espadas no salão ou no parque, foi crescendo o
mancebo que devia continuar, com honra e denodo, a
tradição dos Maraña.
Vendo-o o conde desenvolto e robusto, resolveu
despachá-lo para Salamanca, onde florecia a
Universidade.
D. Ignez, ao despedir-se do filho, encheu-lhe os
bolsos de rezas e amaletos, pedindo-lhe que se lembrasse
sempre do quadro que havia na capella domestica,
representando as almas do Purgatorio, soffrendo nas
chammas, espicaçadas por demônios negros, entre
monstros esvoaçantes.
Que a não esquecesse nas suas orações, para que a
sua alma não chegasse a penar como penavam as da tela
sinistra. D. Carlos, cingindo-lhe uma espada de boa
tempera, lembrou-lhe a honra dos Marana que elle ia
continuar e engrandecer. E o moço partiu.
Em Salamanca fê-lo o demônio encontradiço com o
estudante mais estroina da Universidade, D. Garcia,
nobre e airoso moço que andava esfarrapado por gosto e
blasphemava por basofia.
Ligaram-se os dois. De dia dormiam pelos grabatos
das baiúcas ou nos alcouces das marafonas, entre restos
de orgias ; á noite, traçando as capas, com a guitarra e a
espada, lá iam pelas ruas e calejas acordando as virgens
que acudiam aos seus cantares seductores.
Bara era a noite em que D. João, recolhendo, não
referia ao companheiro um novo crime — ou de
deshonra, descrevendo, com lascivia cynica, a
A BICO DE PENNA
87
belleza profanada, ou de morte, commentando o golpe
com que prostrára o desconhecido na tréva deserta de
uma esquina.
Tantos e tão seguidos foram os seus crimes que, a
conselho de D. Garcia, que temia um levante dos
burgueses e a rispidez do corregedor, abandonou
Salamanca, passando-se a Flandres a offerecer a sua
espada e sua lealdade ao férreo duque d'Alba.
Tornando, porém, a Sevilha, onde o palacio, por
morte dos fidalgos, reentrára no antigo silencio, uma
noite, num fim de orgia, gabou-se D. João de haver
ultrajado no amor toda a casta de homens. Eolára com
mulheres no estrame do pastor serrano e em damascos de
leitos reaes ; tivera mesmo nos braços, mia e ardente,
áquella que, em Boma, todos inculcavam como amante do
Santo Padre. Só lhe faltava, na lista dos trahidos, um
nome — o de Deus. Foi, então, que alguém se lembrou de
o excitar ao derradeiro e mais hediondo ultraje e, para
enraivecê-lo, sorrindo com incredulidade, desafiou-o a
rematar a lista infame com o nome que faltava.
Pallido, oscillando, ergueu D. João o cântaro
espumante e emprazou os companheiros para um festim
que seria presidido por uma freira. Beberam todos e o sol,
entrando pelas janellas enrama-das de trepadeiras,
dispersou-os.
Na manhan do dia seguinte estava D. João no leito quando ouviu
tanger de sinos e lembrou-se que ali perto, na vizinhança, a
curtos passos da sua residência, erguia-se um convento de
freiras, casa de muita pureza, de onde jamais sahira para o mun-
do o echo mais leve do mais leve escandalo. Ali
88
A BICO DE PENNA
quiz elle ensaiar a seducção e, vestindo-se ás pressas,
com austeridade, encaminhou-se ligeiramente para o seu
posto.
Entrou e, seguindo, com ar contricto, por entre bancos
e genuflexorios, foi ajoelhar-se junto ás grades que
separavam as freiras e as noviças da multidão dos devotos
do officio da manhan. Logo, lançando o olhar arguto ao
gyneceu sagrado, poude vêr entre as monjas uma ainda
moça e de perturbadora belleza. Tanto, porém, que deu
com ella, bateu-lhe o coração e a si mesmo, baixinho,
lançou esta pergunta : «Onde vi eu este rosto ? » e a
freira, por seu lado, tremia e baixava os olhos corando,
com o que mais se lhe avivava a formosura.
Attentando na face da religiosa lembrou-se de certa
donzella de Alcalá, herdeira de um nome puro que elle,
em delirio sensual, enxovalhara. O nome subiu-lhe aos
labios : «Thereza»; com elle, porém, na mesma
lembrança, veiu toda a tragédia que rematou tristemente
aquelle caso de amor : o velho pai, que os surprendera,
ferido de morte no vão d'uma escada, um lacaio a
escabujar em sangue e ella fria e pallida, cabida como
morta e seminua sobre os linhos do leito profanado.
Thereza tremia, mas o amor, que não lhe deixara o
coração, subiu como um fogo abafado que um sopro de
brisa ateia e logo rebrilha e chammeja.
Houve entre ambos o entendimento dos olhos,
corresponderam-se com as centelhas das pupiilas e, mais
tarde, pondo D. João o jardineiro do seu lado, facil lhe foi
falar á monja e logo a rendeu, combinando-se, entre os
dois, a fuga para a noite proxima. Uma liteira bem fechada
e guardada por
A BICO DE PENNA
89
homens bravos viria esperá-la a par do muro, numa viella
deserta ; o jardineiro guiá-la-ia ao caminho e, para que
não succedesse, no caso de ser elle interrogado, dizer o
que sabia, um dos lacaios devia emmudecê-lo para
sempre. Com tal recado dera-lhe o conde um dos punhaes
mais finos da panoplia veneravel, arma que os de Marana
só haviam utilisado, com lealdade e bravura, defendendo
a Fé, defendendo a Patria ou defendendo a honra.
D, João não viveu as horas que o afastavam do
momento alegre e de vaidoso triumpho em que devia
apparecer entre os companheiros, conduzindo pelo braço
a esposa do Senhor. Chegada que foi a noite, lá se foi elle
postar no sitio mais escuro, á espera que soasse a hora
determinada.
Era pelo começo do outono ; um vento frio picava e
as corujas passavam no ar brumoso com chirrio lugubre.
Impaciente ia e vinha o fidalgo, quando ouviu um
çoro de vozes tristes que pareciam entoar um canto
religioso. Devia ser no convento, pensou — alguma prece
nocturna. Mas não, era um canto merencoreo, de morte, e
elle, que olhava, viu apparecer ao longe uma procissão
sinistra.
Duas longas filas de penitentes negros, com cirios,
encapuchados em cogxílas, precediam lentamente um
esquife forrado de velludo e trazido aos hombros de
monjes de longas barbas brancas e armados como
guerreiros.
Apezar do vento as chammas dos. cirios conser-
vavam-se direitas e as estamenhas dos homens
mantinham-se immoveis, duras como as roupagens de
pedra das estatuas e, sendo elles numerosos, não
90
A BICO DE PENNA
se ouvia, entretanto, o mais surdo rumor de passos.
A procissão encaminhava-se para uma velha igreja
arruinada e desprezada. Como o primeiro penitente
passasse junto do fidalgo, cuja curiosidade ia crescendo
sempre, elle dirigiu-lhe a palavra perguntando : « Quem
era o que levavam a enterrar ? »
O farricoco levantou a cabeça e o nobre moço viu
dois olhos que pareciam arder e um rosto agudo,
macilento e marmoreo como o de um morto e o estranho
andejo disse sinistramente :
Senhor, é o conde D. João de Marana.
Elle sorriu affectando indifferença, certo de que o
informante, que o reconhecera, quizera zombar do seu
animo e foi com a procissão como attrahido.
O cortejo seguia no mesmo andar pausado e surdo, e
achava-se ainda a alguns passos da igreja quando, entre
os velhos muros, reboou tristonha e funebre, a voz grave
do orgão e logo, no limiar, appareceu um grupo de padres
entoando caverno-samente o De profundis.
Deposto o esquife no eenotaphio, formaram alas os
penitentes para a vigilia funerea. Então, já aterrado com
todo aquelle cerimonial, o conde adiantou-se e dirigiu-se
a outro penitente, perguntando-lhe :
Quem ali jazia? e o homem, em voz cava,
respondeu como o primeiro :
Senhor, é o condo D. João de Marana.
Allucinado, o moço fidalgo arremetteu e, querendo
empurrar os penitentes, a sua mão impetuosa passou
atravéz dos corpos como por um fumo negro. Subiu, em
desvario, os degraus do cenotaphio, chegou ao esquife.
A BICO DE PENNA
91
E esse momento na torre do mosteiro soava
vagarosamente a hora do sinistro ajuste. Thereza, ansiosa
e medrosa, devia vir pelo jardim silente suppondo-o
escondido na sombra quieta das arvores.
Violentamente descobriu o rosto do cadaver,
inclinou-se e viu: Era elle que ali estava estendido,
as,mãos duramente enclavinhadas no peito, livido, hirto e
frio ; era elle proprio, bem lhe haviam dito os penitentes :
era D. João de Marana, filho do conde Carlos, rausor de
virgens, roubador e matador perverso. Em torno,
sombriamente calados, immoveis, velavam os penitentes
negros.
Curvavam-se-lhe as pernas, um suor frio escorria-lhe
da fronte, faltava-lhe o ar. De repente levantou-se na
igreja uma grita estrondosa e medonha : «A nós, o
infame! A nós, o dilapidador ! A nós, o devasso !» E, de
toda a parte : das ruinas dos nichos, dos vãos dos velhos
altares, dos escombros do coro, quebrando, com estrepito,
as lages sepulcraes que assoalhavam a nave, surgiam
sombras pallidas e nellas ia o conde reconhecendo as suas
victimas amorosas e as que haviam cahido a golpes de
espada e punhal — lindas moças conspurcadas, velhos
cujas barbas brancas esvoaçavam, mancebos d'uma graça
inda infantil e todas mostravam as feridas sangrentas ou
vociferavam contra o enganador que as manchara e
esquecera.
A velha igreja enchia-se, atroavam os clamores e, nas
cimalhas, nos florões dos capiteis, nas cornijas, demonios
rubros, de cornos em brasa, riam com esgares,
balançando-se suspensos das caudas, brandindo garfos
que chammejavam.
92
A BICO DE PENNA
Na manhan seguinte alguém passando, por acaso,
pelas ruinas da igreja viu, cahido entre os destroços
d'um muro, o moço nobre — a seu lado jazia a
espada núa e humida do orvalho. Não lhe acharam
no corpo ferimento algum.
Recolhido ao palácio ali esteve, entre a vida e a
morte, longas e tristes semanas, a cuidado de um
velho dominicano e, melhorando, viram-n'o os
famulos sahir, envelhecido e curvado, seguindo com
o religioso para desconhecido sitio.
Tempos depois todos os bens dos Marafia eram
convertidos em esmolas e mais um frade rezava no
coro dos dominicanos.
REHABILITAÇÃO
Baptista Tornielli, escrevendo ao Aretino, disse,
com deslavada e cynica subserviência : «Non sapete
voi, che con la penna vostra in mano havete
soggiogato piü prineipi, ch
ogni altro potentissimo
principe con 1'arme ? La penna vostra a quale non
mette terrore, a quale non é formidabile ? » O
proprio Aretino deixou dito em uma carta : «... la
maggior parte de i gran maestri non temono 1'ira di
Dio, e temeranno il furore de la mia penna ».
Quando a morte alliviou Veneza d'aquelle
discolo que a depravava, choveram os epitaphios e,
em todos elles, transparecia o odio que o grande
diffamador criara em torno da sua pessoa detestada
e temida.
Entre os muitos, citados pelos biographos, ha
este que resume a vida abocanhadora do «sozzo
cane» :
94
A BICO DE PENNA
Oui Kiace l'Aretin--poeta tosco
Clic disso mal d'ogum, fisor cl:e di Dio
Scaandosi coi dir : non Io conosco.
A palavra, posta a serviço de uma idéa generosa,
folgara como astro, empregada por um vilão é como a
centelha do pantano. Os mesmos vocabulos que o
Areímo, como um volcão de lama, arremessara de
Veneza sobre as reputações manchando-as, são
esplendores nos versos de Dante e Petrarcha.
Victor Hugo, na Reponse à un acte d'accusation, um
dos golpes mais rudes vibrados contra o pedantismo
classico, fez uma brilhante defesa do vocabulo humilde,
d'esses miseros e desprezíveis termos do populacho, que
não entram nos diccionarios para que não maculem as
nobres expressões de estirpe, descendentes de sonoros
verbos gregos ou latinos ou, mais remontadas ainda,
podendo mostrar a sua origem nos livros da india
veneravel ou da Persia heroica.
Elle desceu ao patois e foi buscar a farandula da
gyria, penetrou o argot mysterioso e trouxe para o
esplendor da sua estrophe os vocabulos esmolambados,
descalços, sordidos, cambaleantes que os poetas
escrupulosos e os prosadores brazonados evitavam como
se evita nas ruas um bebedo que resmunga, aos trancos,
ou um mendigo esfarrapado.
Toda palavra tem uma missão, é um sêr :
Car le raôt, qu'on le sache, est un être vivant . . .
e o grande poeta, o denodado renovador, acabando com
os preconceitos, num generoso impulso, enri-
A BICO DE PENNA
95
queceu a lingua francesa com aquela horda formidavel
que fazia pensar numa avalanche de barbaros, como os
hunos grosseiros de Attila, rompendo fragorosamente
pelos períodos molles, estrondando nos versos
alambicados, com a brutalidade de invasores poderosos
que trouxessem um sangue novo e pullulante para
trasfegar nas veias dessoradas dos consumidos nobres dos
glossarios.
B, como nos tempos rudes, um scytha, coberto de
pelles cerdosas, com grandes e desabridos gestos,
vozeirando, tramando, rugindo, saltava do cavallo ardego
para sentar-se no throno d'um monarcha effeminado,
gasto pelas orgias, assim os rudes filhos do povo, os
termos resoantes do calão da plebe, subiam a escadaria de
marmore da estrophe e iam impor-se anonymos, sem
etymologia conhecida, eollocando-se orgulhosamente
entre um verbo, cujo radical vinha dos tempos da Iliada e
um adjectivo contemporaneo de Fábio Pictor.
Sombre peuple, les mots vont et viennent en nous. Les
mots sont les passants mystérieux de 1'âme.
Que é a idéa sem a palavra ? uma alma errante. Julgais,
talvez, que ha homens mudos ? engano : ha homens carceres :
as palavras lá andam dentro d'elles como galés em um presidio.
Algumas logram, ás vezes, evadir-se e sahem coxeando,
tartamudeando, como se ainda lhes pesasse a grilheta. A palavra
é, pois, o corpo da idéia e porque havemos nós de repellir essas
criaturas do sentimento, da impressão do povo ? Não lhes
perguntemos de onde vêm — são os garotos do pensamento,
mas
96
A BICO DE PENNA
quantos d'esses garotos têm conseguido a consagração
dos lexicons ?
Os clássicos não admittiam a promiscuidade, lá diz o
poeta na sua Besposta fulminante : queriam que os
vocábulos apresentassem certidões, que lhes mostrassem
as raizes da arvore genealo-gica e, se desconfiavam da
bastardia de algum d'elles, logo o repelliam com desprezo
e rebuscavam um substituto digno, de sangue azul, que
fosse o introductor do pensamento na circulação.
Se o termo se tornava antiquado esqueciam-n'o — era
como um invalido, quando não o enterravam pondo-lhe
como epitaphio o lemma : archaico. E ninguém ousava
exhumar o cadaver que lá ficava, não apodrecendo, mas
immobilisado como uma múmia entupida de resinas e
envolta em ligaduras, com a idéa que representara, ao
lado, como o escaravelho egypcio, symbolo da alma
immortal.
Victor Hugo não só adoptou o baixo dialecto como
reanimou os archaismos e quantos d'elles brilham nas
suas estrophes, remoçados como o Fausto, ligando o
passado ao Futuro ?
II n'y a qu'un môt pour dire les choses, creio que é de
Elaubert este admirável axioma e aquelle escriptor que
quizer apresentar o povo com verdade terá de lançar mão
do seu vocabulário. Gautier recornmendava
insistentemente a leitura dos diccionarios : « Lisez les
dictionnaires !» e Victor Hugo disse :
...........Chacun a quelque ehose en 1'esprit ;
Et tout homme est un livre oü Dieu luimêrae écrit. Chague
fois qu'en mes mains un de ces livres tombe, Volume oü
vit une ame et que scelle la tombe.
A BICO DE PENNA
97
Eis a razão porque elle, procurando traduzir a vida
das suas personagens, serviu-se da linguagem peculiar a
cada uma.
Eu mesmo — e sirvo-me do exemplo — senti
detestavel impressão a primeira vez que vi um indio em
um nucleo de catechese.
Atravessando a floresta ia eu imaginando, com
delicia, encontrar um homem reforçado e mi tendo
apenas, em torno dos rins, um enduape de pennas e, na
cabeça altiva, um kanitar tremulante e calculem a minha
decepção quando me achei diante do cacique dos tembés,
que arfava apertado numa farda de capitão da guarda
nacional.
Dá-se o mesmo com a expressão — ella, para
impressionar, não deve vir disfarçada, os mestres antigos
comprehendiam assim. O euphemismo ó o envilecimento
da idéa.
Il n’y a qu’un môt pour dire les choses ... o mais é
artificio e, se o povo tem a sua vida especial, as suas
emoções proprias, porque não havemos nós de as traduzir
com o cunho forte e ríspido da sua origem ?
As expressões populares são sempre representativas
— ou são satyricas como as caricaturas ou
onomatopaicas — tomemo-las e demos-lhe um lugar nos
diccionarios, introduzamo-las na obra d'ar-te porque, ao
lado dos grandes quadros mysticos dos mestres do
Renascimento, podem figurar os desvarios de Goya, e
Callot não perde apparecendo entre as verdes paizagens
de Tadema nem em confronto com as finas carnes
amorosas das mulheres de Cabanel.
A rehabilitação do baixo vocábulo deve-se, em
98
A BICO DE PENNA
França, ao mais nobre dos poetas contemporaneos que
levou para a lingua a mesma idéa democratica da
igualdade apregoada na vida social pelo programma da
Republica.
Todas as palavras são nobres porque vêm da alma ou,
como disse o grande paladino dos simples :
Car le môt, c'est le Verbe, et le Verbe, Ceat Díeu.
A SORTE
A bruma viera cedo apressando a noite, a noite maior,
e trazendo o frio, o bom frio do S. João. Não havia uma
estrella, certamente Jesus as escondera para que o essenio
bravio, que acabou ás mãos de Mennaei, no fundo do
cárcere de Machaerous, perto das cavalhariças de
Herodes, onde brilhavam, como de neve, as tresentas
eguas brancas da Arábia que Vitellio arrebanhou,
maravilhado, não se aproveitasse de alguma para, com
ella, incendiar o mundo. Não havia uma estrella, em
compensação, de instante a instante, alguém bradava no
terreiro annunciando um balão. Corriam todos contentes,
em chalrada ruidosa, as crianças empurrando os velhos e,
na varanda, ao frio, ficavam a olhar o fogo errante que lá
ia oscillando, aos boléus, em direcção ás montanhas.
A fogueira alta ardia no terreiro espalhando um rubro
clarão que chegava ás arvores tingindo-as
100 A BICO DE PENNA
de sangue e tornando a folhagem rutilante. Por
vezes, ao abater dum tronco encarvoado, fagulhava
um enxame de faiscas alegres que estraiejavam e
morriam. As crianças levantavam alarido saltando e
batendo as palmas : «As abelhas de S. João ! As
abelhas de S. João !»
Súbito, um foguete arrancava e lá subia serpen-
teando, explodia : dois, três estouros ou eram bom-
bas que estrondavam. Feixes de canna, rimas de
batatas e de carás esperavam a um canto, perto de
uma aroeira, a hora do pagode, como dizia tio Chico.
Violas e cavaquinhos preludiavam e, lá dentro,
na casa illuminada, era um ir e vir de gente apres-
sada em torno da mesa florida, onde já os grandes
bolos tostados, os cremes, as gelatinas, os sequilhos
empilhados, os alfenins alvissimos e as compoteiras
desafiavam a gula da petizada e mesmo dos ta-ludos
que rondavam aquelle altar esquecendo o outro,
armado numa saleta, entre folhagens, onde S. João,
cercado de cirios e de rosas, com o cajado e o
melote ao hombro, seguido do cordeirinho, estendia
a mão como a abençoar.
As velhas faziam-lhe a corte : volta e meia lá
estava uma espevitando os cirios, afastando um
galho pendido ou contemplando, com enlevo, a
imagem. Outras chegavam e, de mãos enclavi-
nhadas, ficavam um instante a olhar, com um
movimento tremulo dos labios. Só a dona da casa,
muito occupada com a ceia, não se detinha ante o
santo — quasi que nem olhava, tendo-o por uma
«divindade domestica», um intimo com o qual não
fazia cerimonias. As outras que pedissem á vontade,
ella não precisava ; tinha-o todo o anno em
Á BICO DE PENNA
101
casa e, quando quizesse alguma coisa, era só abrir o
oratório e rezar um terço.
No peitoril d'uma janella, ao sereno, um copo de
agua esfriava — alguém ali o deixara, com um ovo
dentro, para vêr a sorte á meia noite. Tiravam-se os
primeiros cantos, logo interrompidos pelas
gargalhadas... recordações alegres de outros annos.
« Quá, genti!» e lá iam os tangedores, dobrados
sobre os instrumentos, ponteando com bravura, qual
mais ágil, qual mais faceiro, repinicando os bordões
que resoavam cheios, pondo um arripio em todas as
raparigas. Mas a noite esfriava deveras ; uma
aragem gelada vinha de fora. Pipocavam foguetes,
crepitava a fogueira ; mas era inverno bravo, os
dedos estavam duros. «Genti, issu assim não vai.»
Tio Chico entendeu as falas e foi logo, pressu-roso,
buscar o restilo para animar o povo. «Sim, que
encarangados elles não podiam mesmo tocar coisa que
prestasse e a noite estava dura. Elle proprio, que não era
friorento, estava ali fazendo de forte, só Deus sabia
como.» E lá foi o codorio, no mesmo copo de vidro
grosso, de mão em mão, e era um pigarrear satisfeito em
todo o bando. «Agora pega, genti! mas pega oiim
sustância, nada d'afrouxá. Oia ca genti não sabe si chega
p'r'o anno !» « Cruz ! Credo !» rebateram o agouro. Have-
mos de chegar, porque não? O santo não tá ahi? qui mais
! Deixa di fala ansim. Que a morte tem de vir, todo o
mundo sabe, mas o melhor ó não fala nella. Que venha
quando Deus quizé». «E que seja bem tarde !» disse um
dos violeiros e Casimiro, que era folião, accrescentou
com a sua voz
102
A BICO DE PENNA
cheia : «Permitia Deus que ella, quando tive di vi p'ra
mim, dê uma topada no caminho e fique concertando o
pé uns bons par de annos ...» Houve riso e um «Pois sim
!» atirado num muchocho.
Mas uma das violas rompeu e as outras, em concerto,
com os trêmulos dos cavaquinhos e os graves dos
violões, deram o signal da dança.
Uma a uma, graciosamente, foram as moças cedendo
aos convites dos rapazes e, em pouco, os pares
revoluteavam e era um sorriso só em todos os rostos, um
só brilho em todos os olhos e que aroma na sala, de
canella e de lirios, lirios das aguas, dos que nascem no
meio das lagoas, nos remansos dos rios, tão brancos, que
até dizem que são restos da lua cheia que ficam nas aguas
e que vêm á tona, de noite, pedindo á lua que os recolha.
As velhas, sentadas pelos cantos, enlevavam-se nas
graças das filhas e, quem sabe lá se aquelles sorrisos, que
lhes franziam mais os rostos encarquilhados, não se
referiam ás suas reminiscencias, ao bom tempo d'antanho,
quando, novas e lindas como aquellas que ali dançavam,
cingidas, por braços de rapagões, ai! d'elles, ouvindo-lhes
as palavras iam, quasi sem sentir o chão, fazendo voltas
airo-sas e leves como se os mancebos fortes as levassem
ao collo, carinhosamente, por um sonho fora. Ai! tempo.
E as violas zangarreavam alegremente e lá fora, com
a grita das crianças, ia morrendo a fogueira. E a bruma
crescia como o fumo de uma fogueira maior que ardesse
longe, no céu, talvez, para recreio dos anjos.
A BICO DE PENNA
103
Mas, genti, quê dê Luzia ?!
A esta exclamação lançada, de improviso, no meio da
sala que refervia, detiveram-se todos entreolhando-se
pasmados. Os violeiros, que afinavam os instrumentos,
levantaram as cabeças fitando a dona da casa que, de
braços cruzados, olhava ora para um, ora para outro como
á espera de uma resposta. A mocinha ali não estava, não
estava lá dentro : dançara uma polka, a primeira, com o
Firrniano, isso dançara, mas não a viram mais.
Quem sabe se ella foi-se deita ? Já olharam no
quarto f
Não está ! affirmou a dona da casa com a voz
opprimida.
Já as senhoras se haviam espalhado pela casa,
invadindo os aposentos, chamando a mocinha. Tio Chico
chegou á varanda e poz-se a bradar para o terreiro, onde a
fogueira morria esquecida:
Luzia ! Luzia !
Nada ! Um balão fugia pelo ar escuro levado pelo
vento ; longe o risco de fogo de um foguete coriscou no
negrume; as arvores buliam devagarinho e, no silencio,
ouvia-se bem a queda da água no moinho, perto.
Luzia ! Onde se terá mettido essa rapariga ?
Chegaram outras pessoas á varanda, olhando,
chamando.
As moças cochichavam reunidas e já pesavam
suspeitas sobre a mocinha quando, de novo, a voz de Tio
Chico se fez ouvir :
Que ó aquilo ali em baixo ? Vocês não es-
104
A BICO DE PENNA
tão vendo um vulto ali para os lados dos bambus?
Sim. Parece. E [o velho bradou de novo:
«Luzia !» Um cão poz-se a ladrar na sombra. «É
gente! é. .V E é gente conhecida. O Tigre que
calou a boca é porque é gente de casa». As senho
ras romperam pela varanda afflictas quando um
dos violeiros disse : « Vem gente ali, e é mulher. »
« Luzia !»
— Eh ! responderam.
Que é que você anda fazendo lá fora com essa
noite, menina ?
Era ella. Vinha devagarinho com um punhado de
lirios na mão e coroada de lirios. Entrou calada,
sorrindo timidamente, a brincar com as flores.
Cercaram-n'a e a dona da casa avançou sem po-
der conter a furia:
Que é que você foi fazer lá fora, pequena ?
Onde estava você ? Fala.
Tio Chico quiz intervir, já disposto a perdoar a
escapada, mas a mulher, de pé diante da mocinha,
com as mãos nas cadeiras, olhava-a a resmungar
ameaças. Luzia, de olhos baixos, esmagava os lirios
alvos sem dizer palavra, com um sorriso triste no
rosto moreno e lindo.
Poi uma velha quem descobriu o segredo :
Que horas são ? perguntou.
Vai para uma, disseram.
Então está ahi, Luzia foi á fonte. Pois vocês
não estão vendo que ella está cheia de açucenas ?
A rapariga levantou vivamente a cabeça e fitou a
indiscreta:
A BICO DE PENNA
105
Pois fui mesmo, disse altiva ; fui e que mal
ha nisso! Cada qual sabe de si e Deus de todos.
Fui!
E, nervosa, desatou a chorar.
Foi bom assim porque a gente que a cercava
sentiu um grande allivio, fôram-se as suspeitas e as
companheiras, que a julgaram mal, como se as
picasse o remorso, cercaram-n'a carinhosamente
con-solando-a : «Que não chorasse ! D. Anna não
estava zangada. Tinham dado falta, não a viam, não
a achavam em casa . . . Aquillo era um matto
perigoso, podia ter acontecido alguma coisa, ficaram
afflictos. Era natural. Ninguém estava zangado. »
Abafando os soluços ella foi seguindo entre as
companheiras para o interior da casa. Os violeiros,
querendo acabar com aqtiellas tristezas, deram o
signal para uma quadrilha e Tio Chico foi logo
dizendo que era a ultima, antes da ceia, e como D.
Anna, muito ansiada, ainda falasse do grande susto
que lhe pregara a filha elle, que estava alegre, fez-
lhe uma festa brejeira no rosto gordo :
Está bom, não falemos mais nisso ; a pequena
foi á fonte vêr a sorte, já está ahi, com a graça de
Deus. Vai vêr a ceia, anda ; sem isso não teremos
comida senão lá para a madrugada.
Com uma noite fria assim ! até póde apanhar
uma coisa no peito.
Qual, historia ! em noite de S. João não ha
molestias. Vai, anda. Olha, a gente está fraqueando
que até faz pena.
Dançava-se com enthusiasmo a terceira parte da
quadrilha, marcada, aos berros, pelo Gustavo da
Boca nova quando um tiro estrondou no terreiro.
106
A BICO DE PENNA
Os cães ladraram com fúria, mas quasi ao mesmo tempo,
uma das moças, que olhava para a varanda, exclamou
corando :
— Mundico, gente !
Um rapaz desempenado estava parado á porta, de
botas, chapéu á banda, o chicotinho enfiado no punho,
sorrindo. Foi um alvoroço na sala, desfez-se a quadrilha ;
correram todos para o recem-vindo e quando Tio Chico
viu o rapaz, alegre como estava, abriu largamente os
braços e caminhou para elle :
Quê, homem ! Você por aqui! Quando chegou ?
Hontem e aqui estou que ó o mesmo que dizer que
ainda não preguei olho. E tia Anna ? E Luzia?
As duas appareceram e foi um espanto ruidoso :
Meu Deus, Mundico ! Quando chegou ? Vo
fez exame ? Foi feliz ? Como está gordo !
E a velha mirava-o, sorrindo. Luzia, mais retrahida,
sorria também, mas de olhos baixos.
Toma alguma coisa, rapaz ; um pouco de vinho,
um pouco de canna, café ?
Nada ! Nada. Não estavam dançando ?
Sim.
Uma quadrilha ?
Estávamos na terceira parte.
Pois vamos continuar. Não ha por ahi uma dama ?
E voltava-se lançando o olhar em torno. Tens par,
Luziazinha !
— Eu, não.
Então, anda cá.
—Mas falta um vis-à-vis, disseram.
A BICO DE PENNA
107
Arranja-se. Tio Chico, titia . . . Venham.
O que ?
—É para completar aqui o negocio, tenham
paciência.
Os dois velhos, quasi empurrados pelo rapaz, foram
tomar lugar e os violeiros romperam. O Gustavo gritou
logo, já rouco : En avant ! E Mundico, inclinando-se
disfarçadamente para a prima, perguntou baixinho :
Então !
Então ? ! Então é que elles desconfiaram. Eu bem
dizia a você que estava demorando muito.
Ghâine de circumstancia só para as madamas!
esguelou o Gustavo.
E as violas repinicavam com furia.
A NOVA RAÇA
Quem conheceu o fazendeiro, o grande senhor
de terras e d'almas, mais poderoso do que os
soberbos ricos homens da idade media,
difficilmente, e com pena, o reconhecerá no
agricultor actual, sombra triste d'um fastigio morto,
ruina melancolica d'uma grandeza extincta.
D'antes, quem passava a porteira d'uma fazenda,
que era como pequena cidade encravada entre
arvores, quasi todas com a sua capella erguida no
centro de jardim florido, tinha a certeza de encontrar
abundância e alegria : os paióes regorgitavam, o
gado cobria os vargedos uberrimos, as maquinas
nublavam os ares com a poeira do café e a
escravatura, numerosa e forte, espalhada pelos
outeiros, punha a nota de vida em todos os cantos,
mesmo no fundo das grotas sombrias, onde a agua
limpida manava, negros faziam luzir os ferros
agricolas, cantando banzeiramente as suas saudades
d'Africa,
110
A BICO DE PENNA
A mesa, copiosamente abastecida, dava a illusão
opipara de banquetes. Chegasse quem chegasse, lá
encontrava um talher e acolhida amavel e, á hora em que
a sopa vinha, a ferver, das immensas cozinhas, ou o sino
badalava alegremente ou um negro possante sahia á
varanda, com uma buzina, soprando stentoricamente,
para que os viajantes, que passavam nas estradas
proximas, apressassem os animaes e chegassem a tempo
de poder refazer-se sob o tecto hospitaleiro da grande
vivenda rural.
As festas eram fantasticas. Não será nestas linhas
escassas que hei de descrever tão sumptuosos regalos e só
a penna abundante de um Simão Machado poderia
bosquejar taes maravilhas do passado — eu não tenho as
cores vivas de que se servia o pintor das procissões
mineiras, no tempo rico do transbordamento do ouro.
Dizer fazendeiro correspondia a dizer nababo e
quando, na cidade, apparecia um d'esses homens de tez
queimada, largo chapéu de palha, calças fofas, de brim
branco, casaco folgado e anneis e ourama lampejando,
corria na assistência um murmurio de assombro e todos
os olhos deslumbrados cravavam-se no homem que, pelo
habito de tratar soberanamente a escravatura humilde,
julgava-se, em toda a parte, um superior e, quando mettia
a mão nas algibeiras fundas, sacava maços de notas
gordas e, ás vezes, ouro reluzente, apanhado á beira dos
seus córregos, que elle trazia, como amostra, para
offerecer á venda.
Um filho de fazendeiro tinha foros de principe — era
uma entidade quasi sobrenatural, um como
A BICO DE PENNA
111
Aladino dos contos árabes. As cooottes punham-lhe
cerco, os fornecedores disputavam a honra de pagar-lhe o
champagne estroina, o credito escancarava-se ao mais
extravagante dos seus caprichos, e adulado, vangloriado,
sempre com uma turba a formar circulo em volta da sua
pessoa, lá ia elle, orgulhoso, debicando amores, provando
todos os prazeres, a espalhar notas, com a mesma
prodiga-lidade com que um rijo vento do outono dispersa
folhas seccas.
Era isso no tempo em que o café valia o seu peso em
ouro. Ah ! o bom tempo ! Hoje, o fazendeiro é um typo
de que se não fala e, quem o vê, não imagina que está
diante de um descendente dos Cresos ruraes, dos famosos
senhores rústicos, cujos lindes territoriaes iam além da
linha do horisonte.
Muitas das antigas fazendas são hoje taperas ermas —
o matto reconquistou, palmo a palmo, o terreno que lhe
fora tomado. Vêem-se casarões immensos com as
paredes fendidas, os telhados cobertos de herva, os paióes
em ruinas lugubres e, ás vezes, estalando os soalhos
podres, pullulantes de tortulhos, varando os tectos
carunchosos, uma forte e verde arvore irrompe á grande
luz, sacudindo victoriosamente a sua rica folhagem, que
farfalha aos ventos e abriga os passarinhos.
Perguntem pelo fazendeiro — foi desalojado pelo
credor e, á luz alegre d'uma manhan, com algumas
reliquias num velho carro de bois, abandonou, com a
familia, o solar agreste, lançando-se aventurosamente a
uma vida nova, como um naufrago que se salvasse nu da
perfida procella.
112
A
BICO DE PENNÁ
Não julguem que exagero — copio fielmente
quadros da decadencia.
O fazendeiro que ainda resiste vive, como o triste
propheta hebreu, desferindo lamentosos threnos — sem
animo e sem esperança, espera resigna-damente a
chegada da Miséria. À terra debalde produz, debalde os
campos cobrem-se de flores, de que vale tanta uberdade
para que tanto esmalte nas campinas e nos outeiros, se o
producto depreciado não dá, sequer, para o custeio da
propriedade, que tudo consome ?
Os que lucram são aqnelles que lá andam pelos
lançantes dos morros, homens, mulheres e crianças
louros, como os temidos germanos de Tácito — são
os conquistadores, que entraram submissamente
como colonos e que, com a vida sobria,
accumulando os salarios, vão conseguindo impor-se,
adquirindo lotes de terras, que elles mesmos
revolvem e semeam. São os donos futuros, é a
geração nova, que se impõe pela força e pela
perseverança.
No dia em que o fazendeiro exgotta o ultimo
recurso o colono levanta a cerviz e é vê-lo, então,
dominando, como para desforrar-se do tempo da
obediencia passiva, ditando leis, assediando a casa
senhorial, a exigir com armas e affrontas.
Quando li as palavras acerbas do livro presago
de Graça Aranha, senti que o meu patriotismo,
revoltado, protestava contra aquelles augurios crueis
do allemão Milkau;
« É provavel que o nosso destino seja transfor-
A BICO DE PENNA
113
mar, de baixo a cima, este paiz, de substituir por outra
civilisação toda a cultura, religião e as tradições de um
povo. É uma nova conquista lenta, tenaz, pacifica em seus
meios, mas terrivel em seus projectos de ambição. É
preciso que a substituição seja tão pura, e tão luminosa,
que sobre ella não caia a amargura e a maldição das
destruições. E por ora nós somos apenas um dissolvente
da raça d'este paiz. Nós penetramos na argamassa da
nação e a vamos amollecendo, nós nos misturamos a este
povo, matamos as suas tradições e espalhamos a
confusão!. . . Ha uma tragédia na alma do brasileiro,
quando elle sente que não se desdobrará mais até ao
infinito. Toda a lei da criação é criar á própria
semelhança. E a tradição se rompeu, o pai não transmittirá
mais ao filho a sua imagem, a lingua vai morrer, os velhos
sonhos da raça, os longinquos e fundos desejos da
personalidade emmudeceram, o futuro não entenderá o
passado ».
Hoje, porém, posto que reaja com toda a força, com toda a
energia do meu instincto patriotico, diviso, atravéz d'aquella
prophecia, um fundo de verdade : o Brasil vai sendo
transformado, não absorvido. Os inimigos não vêm em
esquadras, apparelhadas bellicosamente: chegam em grandes
levas, que enxameam as proas dos transatlânticos, vêm dos
paizes regorgitantes, sanem do aperto das grandes cidades e,
como soffreram toda a sorte de torturas, desde o frio, nos
lagedos dos cães, até as fomes nas baiucas em que se
accumulavam, ás dezenas, confundindo os hálitos e os
gemidos ; desde a affronta dos poderosos até o desprezo dos
proprios parentes mais aquinhoados pela fortuna, ou
114
A BICO DE PENNA
vindo o nome do Brasil e, talvez, lendas que ficaram
dos venturosos tempos do ouro, demandam
ansiosamente a terra do sol e das flores, onde não ha
invernos que tranzam nem miséria que mate, onde
sobram campos aos pastores e ainda existem regiões
inteiramente virgens, nem trilhadas nem vistas por
homens civilisados, onde só caminham hordas de
bugres e feras fremem, ao luar, em manadas
sanguinarias.
Chegam, são acolhidos pelo clima tepido, que é
uma caricia natural, respiram, a largos pulmões, o
puro ar das florestas, dessedentam-se nas limpidas
aguas dos arroios que murmuram, contemplam os
grandes rios, admiram, extasiados, as borbulhantes
cachoeiras e, contentes com o que vêm, dão graças a
Deus pela redempção e vão immediatamente
tratando do estabelecimento, que é o primeiro passo
para a conquista.
Fazem-se colonos e, como já conhecem a
miseria, trabalham ambiciosamente, acorçoados pela
fertilidade. Ha casa, o mealheiro é commum, e como
a familia vive com sobriedade, os lucros crescem,
em pouco tempo.
O fazendeiro, ao contrario, habituado ao fausto,
á vida pródiga, não somma as despezas e, á medida
que a crise augmenta, vai dissipando com mais
largueza, como para atordoar-se. O seu dinheiro
transfere-se do cofre para as arcas dos colonos, em-
pilhando-se até o dia em que elle se encontra sem
vintém e assediado pelos avaros trabalhadores que
lhe sugaram a fortuna.
Esse é o dia tragico, o dies irae: o senhor
abandona a propriedade absorvida pela hypotheca,
os
A BICO DE PENNA
115
colonos tornam-se pequenos proprietários e começa a
expansão na terra.
Os berços lá estão ao fundo das casas — são os novos
homens. Onde, antigamente, chorava, em farrapos, o
crioulinho nú, filho do escravo, vage agora o bambino
rosado e louro, abençoado por este sol admiravel. Vai-se
a lingua cruzando — vocabulos exoticos resoam
estranhamente em phra-ses portuguesas, é a lenta invasão
da palavra ; já se não ouve o resôo soturno dos tambores
nagôs ; agora é o estrepitar das castanholas, ou o sonoro
adufar nas soalhas dos pandeiros napolitanos.
Nos terreiros de congáda dança-se a tarantella e as
tradições brasileiras vão desapparecendo. Pouco a pouco
uma nova raça surge e a humilima e dessorada geração,
enfraquecida pela abastança desordenada, cede aos sadios
o terreno, como os romanos da decadência cederam aos
robustos barbaros.
Mas o caldeamento se fará sem prejuizo da Patria — a
nação não perecerá, porque os que vão nascendo, á
medida que os pais enriquecem e afor-moseam a terra,
vão-lhe ganhando affeição, amam-n'a e, começando por
defenderem a casa, acabam defendendo a fronteira e
quando, desapparecido o ultimo decadente, viver, rija e
formosa, a nova gente, sobre esse diluvio, como o
Espirito de Deus nas águas da catastrophe, ha de pairar a
lingua, a doce lingua portuguesa, enriquecida, sem
duvida, com expressões adventicias, e baixando sobre a
terra a raça que ha de ficar, a Pátria reapparecerá mais
bella, mais graciosa e mais rica, prompta para todas as
sementeiras, como reappareceu o mundo
116
A BICO DE PENNA
depois dos quarenta dias de calamidade, tendo como
prova de alliança não o iris fulgurante, mas a bandeira
auri-verde, que é o symbolo da nacionalidade.
O que se está realizando — é possivel que eu veja
como optimista — é a lei da selecção e não uma
conquista — os fortes hão de prevalecer e queira Deus
que assim seja, para gloria da Terra e orgulho dos nossos
filhos.
A raça desanimada que ahi está, essa é que não póde
subsistir. Homens que choram em presença do perigo não
merecem as honras do triumpho.
Venham os novos brasileiros, appareça e domine a
gente nova e robusta.
Foram os barbaros que renovaram o mundo
Occidental : venceram, mas foram assimilados pelos
vencidos e, para fazer a assimilação das hordas que
chegam, basta-nos o nosso Sol.
PALPITES
Ó mulher, onde metteste o dinheiro ?
Que dinheiro, homem de Deus ?
Não te queiras fazer fina ! Eesponde e deixa-
te de historias. Que fizeste do dinheiro que estava no
pé de meia ?
No pé de meia não havia vintém. O que havia
no pé de meia foi-se na barrella.
No pé de meia havia duzentos e tantos mil réis
em muito boas notas, que eu lá guardei. Vamos,
deixemo-nos de brincadeiras: Onde metteste o
dinheiro?
Se eu te digo que não havia vintém ...
Vintém não havia, havia notas, já te disse,
Onde estão?
Foram por agua abaixo, na lavagem.
Mau! mau! Olha que não estou disposto a rir.
Quem sabe se a senhora quer imitar o ministro ?
Imitar, digo mal, porque elle queima. Va-
118 A BICO DE PENNA
mos, diga onde poz o dinheiro, se não quer que eu faça
aqui uma das minhas. Depois . . . Aqui d'El-Rei!
Homem, queres que eu seja franca ?
Sem duvida.
Pois o dinheiro ... o dinheiro . . . levou-o o
burro.
Que burro, senhora ? Para que quer um burro
duzentos e tantos mil reis?
Foi o burro. EUe não levou os duzentos mil
reis de pancada, foi levando aos poucos.
Como ? Então o burro entrava no quarto,
abria a meia, tirava o dinheiro que queria . . . ?
Homem, mulher, tu pensas que eu sou idiota ?
Quem tirava não era o burro, Manoel.
Então quem era ?
Era eu.
Tu ? Então que historia é essa do burro ? —
É que era o burro que o levava. Tu nunca
jogaste no bicho ?
Eu ? A senhora bem sabe que eu não tenho
vicios.
Pois foi o burro do jogo que levou o dinheiro.
O caso foi assim : Conheces a mulher do
Cunegundes, uma ruiva, que tem dois filhos
pequenos?
Conheço. Mas que vem cá fazer a mulher do
Gunegundes !
Ouve. Como sabes o Cunegundes está de
cama ha uns pares de mezes. Emquanto teve saúde
foi um homem de trabalho, atirava-se a tudo
para ganhar a vida — trazia a casa farta, a mulher
limpa, os pequenos sempre bem vestidos ; a
moléstia, porém, acabou com tudo isso. O pobre
homem para não morrer á mingua, aprendeu a fazer
cha-
A BICO DE PENNA
119
rutos, mas os charutos dão pouco. Que eram cem
charutos por dia para uma familia como aquella? A
Adelaide andava varada, pallida: os pequenos, rotos,
descalços, pediam pão de casa em casa ; até fazia
pena. Quanta vez eu aqui lhes dei comida. Ah ! meu
amigo, quando um pai de familia cahe numa cama...
Pois sim, mas vamos ao burro.
Vamos. As coisas estavam nesse pé quando,
um bello dia, a Adelaide, que não tinha um casaco
decente para chegar á janella e andava sempre a
chorar, a lamentar-se, pedindo a morte para ella e
para os filhos, appareceu risonha e mais contente do
que d'antes e, todos os dias, eu, por entre as reixas
da janella, via chegar gente com embrulhos para a
Adelaide: eram queijos, caixas de vinho, fazendas e
a Adelaide a deitar luxo até que um dia sahiu de
carro como a senhora do doutor.
E o pobre do marido a fazer charutos.
A fazer ? a fumá-los, e dos bons, deitado em
lençóes de linho, com fronhas de renda nos
travesseiros : um luxo de principe. Eu fiquei a
banzar e, como não sou maliciosa, disse commigo:
«A Adelaide tirou a sorte.» E um dia, apanhando-a a
geito, disse-lhe em ar de pagode:
Então, sua felizarda, sempre apanhou um
bilhetinho premiado, hein ? !
Ella ficou muito espantada e respondeu :
Ifão senhora : eu não jogo na loteria. Ah!
já sei porque a senhora fala — é porque me vê an
dar assim, apezar da moléstia do Cunegundes,
coitado ! Que quer, minha amigai quem não tem
cão, caça com gato.
120
A BICO DE PENNA
Que gato ?
Espera, homem. «Emquanto o Cunegundes
tinha saúde e força eu não me preoccupava, mas
veiu a doença e, a senhora sabe, as crianças têm
fome e o homem da venda não fia, principalmente
quando sabe que o dono da casa está entrevado no
fundo de uma cama. Procurei trabalho. Só me
appareciam charutos; desanimei. Foi então que uma
comadre minha, cujo marido anda longe, apanhando
borracha nos sertões do Amazonas, disse-me que eu
aventurasse alguma coisa no touro. Aventurei. A
primeira marrada custou, isso custou, mas hoje . . . E
desatou a rir, só para que eu lhe visse os dentes
obturados a ouro, como lá diz o outro. Piquei a olhar
para ella e, com franqueza, estranhei aquella alegria,
porque a Adelaide era alegre, mas agora dá umas
gargalhadas . .. « Então a senhora vive á custa do
touro ? »
É verdade, respondeu ella.
— E seu marido ?
Ah ! meu marido não sabe. Para uma mulher
ser feliz no jogo do bicho deve guardar segredo,
principalmente para o marido. A senhora porque não
tenta ? Tu sabes que não gosto de bois, não gosto de
touradas. Boi só vacca, esaa mesma cosida. E disse-
lhe :
Não, D. Adelaide, eu não gosto de bois.
Não gosta ! A senhora diz isso porque ainda
não experimentou. Eu também não gostava e hoje
não posso passar sem elle. Experimente,
experimente — e dobrou-se toda noutra gargalhada.
Fiquei pensando e depois que ella sahiu resolvi
experimentar.
A BICO DE PENNA
121
Tu ?
Então? No primeiro dia mandei pedir porco ;
deu o burro ; no segundo dia mandei buscar
elephante, deu outra vez o burro. Desconfiei de tanto
burro. Diabo ! isso não é um jogo, é uma estrebaria !
Quem sabe se não é Deus que me está mostrando o
caminho da felicidade ! pensei. Á noite sonhei que
estava agarrando um burro pelo rabo. Foi naquella
noite em que te agarrei, não te lembras ?
Sim, mas eu não sou burro.
Nem eu te agarrei pelo rabo. De manhan,
muito cedo, fui ao pé de meia e mandei comprar no
burro . . . couce ! E ... de couce em couce, meu
velho, fiquei a tinir. A Adelaide vive regaladamente
á custa do touro, eu com o burro só consegui
amofinações e miserias.
Então os duzentos e tantos mil réis foram
todos no burro ?
Todos.
Muito bem.
Antes eu tivesse jogado no touro — ainda
hontem deu.
Se a senhora tivesse jogado no touro ia agora
mesmo, como um fuso, para o olho da rua, entende?
O touro dá todos os dias, mas se me constar que a
senhora joga em semelhante bicho eu faço um banze
dos diabos nesta casa. Touro não é bicho que entre
em casa de familia, está ouvindo ?
E a Adelaide ?
Que tenho eu com a Adelaide?
Ella não joga em outro.
Por que o marido está entrevado, mas eu
122
A BICO DE PENNA
não estou, com a graça de Deus. Emfim — no burro pode
jogar uma ou outra vez, pouco, com touros é que não
quero negócios. Se eu souber que me entrou touro aqui
em casa a senhora vai para o olho da rua em dois tempos.
É o que lhe digo. (E foi; todos os jornaes noticiarem o
caso commentando-o). O homenzinho, que apertara os
cordões á bolsa, levando para a Caixa Economica o que
d'antes deixava nas meias, começou a desconfiar dos
lautos jantares que a mulher lhe apresentava — eram
verdadeiros festins — e, farejando os pratos, perguntava
desconfiado :
Mulher, isto é burro ?
Tudo é burro, pelo moderno.
Então agora não dá couces ?
Qual! está manso como cordeiro.
Pois sim, mas não te fies.
Depois appareceram sedas, chapéus, costumes de
panno francês, jóias, camorotes do lyrico.
É burro ? !
Então ! que ha de ser?
Olha lá, mulher — acho muita carga para um
burro só.
A culpa não é minha ... se elle dá.
Um dia, porém, o homem entrou em casa justamente
na occasião em que a mulher fazia jogo e viu. Que viu
elle 1 Sei apenas o que os jornaes disseram : que elle
travou d'um pau e desancou a mulher. Sem razão disse a
coitada ao delegado, explicando o caso : na occasião em
que o marido entrou no quarto ella abria a porta de
espelho do guarda casaca e o homem tomou por uma
desobediência o que era a sua própria imagem.
A BICO DE PENNA
123
Eu permitti que
nhor doutor, mas o que
nada.
Então que era ?
Ora ! que havia
laide.
ella jogasse no burro, se-eu
lá vi de burro não tinha
de ser ? palpites da Ade-
ROMANCE TRISTE
Poetas . . . Poetas são como as abelhas que
buscam apenas na flor a substancia com que fazem o
mel. Que lhes importa que, depois da visita ao
nectario, a flor murche e feneça ? outras ha pelo
bosque perfumado e para essas outras vão ellas
aligeirando as azas.
Donzella, que dais ouvidos ás canções do poeta,
julgais ingenuamente que elle vos pertence, que
nunca mais se apartará do juramento feito aos
vossos pés, com os olhos nos vossos olhos,
procurando, talvez, surprender a vossa alma ?
engano vosso — para que elle vos abandone basta
que uma outra appareça.
Foi Zeuxis, se me não trahe a memoria, que, para
realisar na tela um typo de belleza, reuniu na sua
officina varias donzellas, aproveitando de cada uma
a linha ou a côr mais pura, o garbo ou a languidez, a
esbelteza e a curva graciosa e, depois de
126
A BICO DE PENNA
rematada a figura, era um complexo maravilhoso e
as moças, que se haviam prestado a ser modelos,
deixaram no painel do artista um pouco do proprio
corpo. D'esta ficaram os olhos, d'aquella ficou a
fronte, os cabellos d'uma despenhavam-se
ondulando sobre os alvissimos e redondos hombros
doutra, as mãos eram de tal, os pés d'uma outra, era
a boca d'um rosto, o nariz d'outro e assim a obra per-
feita era como o mel das abelhas — o conjuncto do
sabor de múltiplas corollas. Fazem assim os poetas.
Um conheço eu que, depois de me haver lido
uma admiravel composição em sonoros
alexandrinos, toda consagrada á gloria de uma
mulher ideal, dizendo-lhe eu o nome da criatura
inspirador», fes? um momo dobrando lentamente o
papel em que fulguravam os lindos versos :
Estás louco. A boca, effectivamente, é d'ella,
mas os olhos . . . Ah ! se visses os olhos de . . . Duas
violetas, meu amigo ! Duas violetas ! Nunca vi
olhos d'aquella côr !
Mas Fulana, objectei, tem uns pés de saloia.
Sim, os pés são hediondos mas eu, na poesia,
refiro-me aos pés imperceptiveis da Cesira. Conheces
Cesira? ah ! meu caro .. .
De sorte que na tua poesia ha quatro mulhe-
res... !
Cinco, aliás : a graça é da Olympia, ninguém
anda como a Olympia ; é uma deusa.
Mas isso é um gynecêu em alexandrinos,
homem.
O poeta não ama a mulher, ama a belleza,
concluiu o meu amigo com solemnidade.
A BICO DE PENNA
127
Não pensava assim o que morreu entre as arvores
amigas. Foi um amoroso fiel e calado, não gemia o
seu tormento, continha-o no coração e, de quando
em quando, lá o exhalava em estrophes. Emquanto a
criatura amada viveu na mesma cidade em que elle
morria abafou medrosamente o seu segredo, como
Arvers ; ella, porém, paxbiu para outros climas, para
outros braços e o solitario, num derradeiro esforço,
deixou o seu retiro e publicou a sua historia
dolorosa. No frontispicio do livro, como a legenda
sinistra, poz elle uns versos do Cancioneiro de D.
Diniz que resumem toda a sua agonia :
Quizo ben, amigos, e quero e querrey
Hunha mulher que me quis, e quer mal,
E querrá ; mays non vos direy eu qual
A mulher ; mays tanto vos direy,
Que quis ben, quero, e querrey tal mulher
Que me quis mal sempre, querrá, e quer.
Fomos companheiros em Lambary. Ella também
lá estava. Uma vez, á tarde, conversavamos no
cottage do parque, ouvindo as cigarras, quando elle
se pôz a falar no fallecimento da sua velha mãi, uma
bôa e resignada velhinha, que era o seu amparo
moral no mundo. Nunca pensara na morte emquanto
ella vivera, mas na mesma tarde do enterro, voltando
do cemiterio, começou a ser perseguido por aquella
idéa fatal. Sabia que estava perdido, era como um
edificio que ia, aos poucos, cahindo e, na sua
qualidade de ruina, só acolhia tristezas. Emfim ! e,
resignado, encolheu os hombros.
128
A BICO DE PENNA
— Mas tu tens aproveitado muito aqui, com as
aguas.
Voltou para o meu rosto os olhos tristes e, com
um sorriso melancoico, disse com a sua voz rouca :
— Com as auas . . .
Súbito um riso crystallino rompeu alegremente o
silencio crepuscular. Ergueu-se o poeta de olhos
cravados num caminho que se ia enchendo de
festivo barulho. Um bando garrulo de moças
appareceu e, entre ellas, esbelta e loura, com uns
olhos que fulguravam, a boca mais vermelha que as
rosas sangüíneas, onde um sorriso tinha residecia,
ella, a mysteriosa criatura amada. Como se quizesse
martyrisar o desgraçado, chamou-o, a rir, tomou-lhe
o braço e lá o foi levando por entre as flores, a
inebriá-lo com o seu perfume de mancenilha.
Nessa noite, no salão do hotel, o poeta recitou
um apologo : «0 sapo e a estrella».
Era uma vez uma estrella . . . E vai
um sapo, o idiota, Logo apaixou-
se ao vê-la.
O apologo foi recebido com applausos geraes,
mas num vão de janella, houve quem murmurasse,
disfarçando um sorriso : « 0 sapo . . . coitado ! é elle
. . . » E a estrella andava trefegamente pela sala
reunindo pares para urna quadrilha.
E elle, triste, do fundo da sua melancolia de
moribundo, ficava-se a contemplá-la, como o sapo
contemplava Sirius. Não lhe falava do seu amor ; e
que lhe havia de dizer se ella era a propria imagem
da Vida e elle . . . sempre a tossir, ouvindo as
A BICO DE PENNA
129
lastimas dos que auguxavam a sua morte proxima. Que,
ao menos, a deixassem ali, perto d'elle. «É a luz da minha
ultima hora», suspirou, uma vez, disfarçando a magua
num sorriso.
Á volta, no trem, elle queixou-se : «Vai recomeçar o
meu soffrimento ...» E voltou os olhos marejados para o
banco em que ella estava — era o apartamento. No hotel
viam-se a toda a hora e elle estava sempre a ouvir-lhe a
voz, mesmo quando adoeceu pediu que lhe conservassem
a poria entre-aberta e, como se alvoroçava quando, pelo
corredor, vibrava o riso crystallino da formosa
indiferente!
No Rio viu-a uma tarde, na rua do Ouvidor, toda
vestida de azul:
Chapeu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azues o pára-sol e as luvas, Senhorita,
Como um lotus azul por um deus animado,
Passa, toda de azul, por mil bocas bemdita,
Vendo-a não se vê mais nada que o azul tontcia . . .
Como num sonho azul logo nos vem á ideia
Um pedaço de céu azul passeiando a terra.
Um dia ella partiu para o campo e de lá a cruel,
escrevendo a ama amiga, pedia-lhe que dissesse ao poeta
que certamente elle ficaria curado com aquol-ies puros
ares da serra, bebendo aquellas frias águas que manavam
das penhas e o leite gordo que uma bôa mulher trazia,
todas as manhans, á porta do hotel. Elle que fosse, que a
fosse vêr para convencer-se : estava outra, ella mesma
achava-se bonita.
E o misero, soffrendo, lançou-se afoitamente ao trabalho : em
oito dias concluiu uma peça, entregou-a ao emprezario e
partiu. Lá esteve e, em-
130 A BICO DE PENNA
quanto a sentiu perto, louvou a terra e os ares,
falando em resurreição : « Eevivo aqui — sinto-me
outro». Ella, porém, desceu e, desde logo, todas as
virtudes dos ares puros e das aguas limpidas
desappareceram. Voltaram os soffrimentos — a
febre, a insomnia, os suores nocturnos até que, um
dia, os jornaes annunciaram a partida da bem amada
para a Europa.
Esse amor era uma misericórdia, a presença da
criatura era o amparo d'aquella vida, tanto que ella
partiu começou a destruição. A Morte, encontrando
o coração ferido, foi abalando as ultimas
resistencias, uma, porém, reagia — era a esperança
de que ella voltasse. Mas não, deixou-se ficar em
outras terras, nos braços de outro. Bem que a sua
Musa presaga soluçara :
Ella nunca terás nem seu amor.
Desequilibrado, sem esse animo forte, o poeta
cahiu. Tornou-se-lhe, então, a vida um rosario de
dores e as que menos o torturavam eram as que lhe
pungiam o corpo — a alma, essa soffria mais
acerbamente. E começou o desfallecimento — o
solitário achou-se sem o seu « sonho », tudo era
deserto em torno; nem o seu faceiro sorriso, que era
a alegria dos seus olhos, nem a sua voz que era a sua
melodia predilecta, nem o aroma que ella esparzia
como se deixasse no ar um sulco de perfume. Lá
longe ! Como chegar até lá . . .1 Esses poetas, têm,
ás vezes, sonhos extravagantes . . . Quem sabe? !
Abatido, quiz ainda voltar ao sitio que ella lhe
recommendára como sendo um lugar de belleza e
A BICO DE PENNA
131
saude. Foi, apeou á porta do mesmo hotel rústico que ella
habitara, percorreu vagarosamente os caminhos que ella
percorrera, agasalhou-se á sombra da sua arvore
predilecta e teve visões de amor, viu-a ao longe, sentiu-a
entre as flores sylvestres :
Tudo de luz se inunda e, dominando tudo
Cheio da prppria luz, sobresahe na paizagem
O correcto perfil d'essa que me não ama.
Esse perfil não estava na paizagem — estava no
coração, era uma miragem passional, mas . . . Esses
poetas, esses poetas! quando amam são capazes de tudo e
quem sabe se o desgraçado, sem esperança de tornar a
vê-la, não fez como aquella escrava do conto que, para
juntar-se ao filho morto, cravou um punhal no coração?
Elle não precisava lançar mão de uma arma para
realisar esse desejo sinistro — a Morte estava dentro
d'elle e bastou que deixasse a fera sahir da jaula, onde a
continham os cuidados, para que, em um momento, o
martyrio findasse. E agora . . . ?
Talvez que, em breve (não vem longe a primavera) a
ingrata, que habita um velho castello de França, receba a
visita da alma peregrina.
Uma noite, apoiada ao balcão, olhando o céu, ouvi
cantar um rouxinol nos roseiraes em flor. Será tão lindo e
tão sentido o canto que ella, apezar de indifferente,
voltará o rosto para ouvi-lo e, ouvindo-o, não imaginará
que, no passaro dolente, palpita a alma saudosa do que
viveu por ella, do que morreu de amor.
Ah ! o soneto d'Arvers, o soneto d'Arvers...
132
A BICO DE PENNA
É bem possivel que, quando chegar á França a
noticia da morte do poeta, seguida dos
commentarios sobre a sua paixão funesta, ella,
deixando no collo a carta annunciadora, exclame,
penalisada, na lingua que adoptou:
» Quelle est done celte fimme?» et na comprendra pas.
O GALLO
Todo curvado e attento, a olhar as entranhas
sangrentas d'um gallo, o meu amigo Galracho,
aruspice e rosa-cruz, venerador de Peladan, sar nos
cartões de visita e primeiro official do correio, na
lucida manhan de janeiro, emquanto o Menino se-
guia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa
pela intenção e hygienica pelos resultados, tirava
augurios no fundo recondito de um quarto discreto,
onde se empilham caixotes nos quaes, á guisa de
altar, as victimas palpitam e mostram nas visceras
os arcanos do futuro.
Galracho, em robe de chambre sacerdotal, com
um facalhão ingles, de lamina luzente e larga,
lembrava um sacrifieador do antigo tempo.
Quando entrei, sentindo os meus passos no
soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me com os
seus olhos de myope, desarmados das poderosas
lentes. Não me reconheceu de prompto, mas ou-
134
A BICO DE PENNA
vindo-me a voz, tranquillisou-se e acenou
mysteriosamente para que eu encostasse a porta afim de
que a senhora, que é alegre e incredula, não interrompesse
a cerimonia com o seu riso e com os seus commentarios
mordentes.
Galracho suava em bicas naquella estufa esoterica e
deposito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo pela
claraboia, dourava a victima gorda em torno da qual
esvoaçavam gulosamente, des-respeitosamente moscas
zumbidoras e o aruspice, com as mãos mais vermelhas do
que as de um magarefe, tomava notas ligeiras numa larga
folha de papel toda manchada de sangue.
Que diabo fazes tu aqui, Galracho ?
Não vez ? estou tirando augurios, como os nossos
pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas entranhas d'este
gallo como se o lesse nos mesmos livros da sybilla.
Estava agora justamente interpretando o fígado. Ah ! meu
amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em grande
e abatido desalento — as coisas não nos sorriem. Vamos
ter moléstias este anno, moléstias mortaes e muitas.
Epidemias ? !
Epidemias . . . não digo. Ha muita gordura no
figado, vê — o gallo está gordo de mais.
Divino é que elle está !
—. . . e a enxundia confunde as linhas do mysterio.
Não te posso dizer se teremos epidemias ; affirmo-te,
porém, que teremos molestias.
Isso também eu affirmo, mesmo sem olhar as
entranhas do bicho.
Olha aqui a moella. Que vês nella ?
Eu ... eu vejo que o gallo morreu em jejum,
A BICO DE PENNA
135
ou, antes, tendo illudido a gana com uns granisos e
areia.
Sabes que quer dizer isto ? Sabes ?
E a voz de Galracho silvava e os seus olhos de
myope faiscavam.
Quer dizer que não atiraste milho ao poleiro.
Não, quer dizer que vamos ter fome ! fome!!!
Não a fome que soffreram os lydios, mas . . .
Uma fome modesta, assim como quem diz:
meia ração.
Isso : meia ração ; meia ração ó bem dito.
Vamos passar á meia ração. E Galracho cocou a
cabeça intrigado : O diabo é a gordura ! Quasi que
não posso interpretar com tanta banha. Mas cá está a
fome, cá está !
Olha, Galracho, faze como José ; previne-te
— enche a despensa e o gallinheiro, põe-te em
guarda e não esqueças o meu talher.
Mas o grande amigo saltou electrico, arripiado,
numa inspiração.
Olha o fel: a politica: está tumido e negro.
Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah ! meu amigo,
no anno passado, consultando as entranhas
d'umapata...
Tão gorda como este gallo ?
Não, mais magra, (era uma pata propria para
o mysterio) eu annunciei todas as calamidades que
nos haviam de flagellar. Disse que o presidente seria
substituido . . .
E foi, realmente.
Disse que haviamos de perder um grande
homem.
Perdemos varios, a pata foi sobria ; é verdade
que estava magra.
136
A BICO DE PENNA
Prognostiquei o nascimento do Augusto.
Tua senhora, em outubro, já se sentia mal e, em
março, avisado amigo, levamos o lindo Augusto á pia.
É verdade ! Vi tudo na pata.
É extraordinario. E agora no gallo ?
Vejo todo o anno em que entramos. Chamo a tua
attenção para aquella gordura que se vai fundindo ao
calor do sol.
E que diabo ó aquillo na tua sombria sciencia ?
Aquillo ? pois não vês ? a gordura é dourada, não
é ? pois é um projecto de conversão do papel moeda.
Em ouro, comprehendo.
E Galracho meditou e disse :
E pôde ser também uma tentativa revisionista.
E sobre o Codigo Civil, que diz o gallo ?
Tem muita gordura, meu amigo, e a gordura é o
embaraço. Vou agora consultar uns velhos livros
sybillinos para ordenar o oráculo. Espera-me um instante
no meu gabinete, tens lá a rede, livros e uma caixa de
musica com doze peças.
Dirigi-me ao gabinete, tomei um livro ao acaso — era
um romance venusino com gravuras que fariam
humilhação aos camapheus antigos, dei corda á caixa de
musica e afundei mollemente na rede, ouvindo o repinicar
do Trovador e deliciando-me com uma historia d'alcova,
ardentemente illustra-da. Despertei em sobresalto,
sacudido pelo amigo Galracho que me chamava para o
almoço.
— Doce somno! exclamei esticando-me nas pontas
dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.
A BICO DE PENNA
137
A caixa emmudecera e o livro jazia escancarado sob
a rede expondo uma scena lubrica aos olhos pudibundos
do ledor d'entranhas.
Lá fomos ao almoço e, emquanto roíamos azeitonas e
barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco e molle,
levantou-se uma questão. Galracho affirmava que as
entranhas do gallo gordo haviam-lhe augurado um
successo estranho e tão novo que elle, apezar de haver
consultado todos os mestres da sciencia, não conseguira
decifrar. E Galracho estava, em verdade, sombrio e
preoccu-pado e, tão distraindo estava que, com vagar,
soprava para o prato toda a polpa das azeitonas e engulia,
com gosto, os caroços. Uma terrina, fumegante e
cheirosa, appareceu e occupou, com grandeza e brilho, o
centro florido da mesa. Galracho meditava. emquanto a
senhora ia enchendo os pratos com uma canja, toda lente-
joulada d'olhos d'ouro e com paio ás rodellas. Cheirava e
espalhava por toda a casa o seu appetitoso cheiro.
Galracho, disse eu, baixa á realidade : deixa lá o
transcendente, toma a tua colher e atira-te á canja. Deixa
lá o successo : que venha e, para que não nos encontre
fracos, comamos e bebamos.
Não, meu amigo, não; o que eu achei no gallo não
me sahe da cabeça. Ali ha successo e grande !
Então que foi ? dize lá !
Que foi! que havia de ser ? um ovo, homem, achei
um ovo.
Superfetação . . .
Qual superfetação!
Velhice ... e eu ia comendo.
138
A BICO DE PENNA
Qual velhice ! Um ovo authentico . . . num
gallo. Este paiz está perdido, meu amigo;
irremissivelmente perdido. Nem Deus o salva !
Por causa do ovo ?
Então ? Queres ver?
E, arrebatadamente, Galracho deixou a mesa,
correu ao santuário e eu ouvi um urro, um
verdadeiro urro e logo o aruspice reappareceu
tremendo de terror sagrado, com os cabellos em pé,
livido, bradando:
Que é do gallo ?
E a senhora, serenamente, sorrindo, mostrou a
terrina que rescendia dizendo ao esposo alarmado :
Está aqui, homem, não te apoquentes —
aproveitei-o para a canja ; estava tão gordo . . .
O gallo prophetico ! Estamos perdidos !
E Galracho deixou-se cahir pesadamente no sofá
e poz-se a dizer com uma voz tão soturna, rolando
uns olhos tão apavorados : « Estamos perdidos !
Estamos perdidos !» que eu, francamente, não
descancei emquanto não me vi livre do diabo do
gallo gordo e carregado de vaticinios.
AS ARVORES
Li algures que, na China, quando nasce um in-
fante, os pais plantam uma arvore. Á medida que a
criança vai crescendo, vai a arvore ganhando vigor e
belleza ; e quando o petiz, ainda mal seguro nas
pernas, sahe, arrastando pela cauda um minúsculo
papagaio de papel de arroz, pintado a cores, a sua
verde irman, lá de longe, acena-lhe com todos os
seus ramos viçosamente cobertos de folhas e, se é
precoce, recamados de flores.
Para alentá-lo tem o jovem chim os cuidados
domésticos — os pais não o perdem de vista e a ama
tartara, solicita e carinhosa, segue-o a toda a parte,
protegendo-o, ao sol, com a sua sombra, equi-
librando-o com os seus braços, animando-o com o
seu canto monótono e, á noite, depois de o
adormecer com uma historia maravilhosa, deita-se-
lhe junto ao berço de laça, em fina esteira e, ao mais
leve resmungo, ei-la de pé, debruçada, a examinar
140
A BICO DE PENNA
a cocedra macia, a sacudir o mosquiteiro ou a balançar,
de leve, o berço delicado. De manhan, lá o leva ao ar
puro, aos jardins, a correr na relva ainda humida e,
quando o sol aquece, vai ficar á beira dos lagos que
parecem dormir um somno doce e eterno e sobre os quaes
as aves, que se reflectem ligeiramente, passando e
fugindo no ar, são como iterativos sonhos.
A arvorezinha tem apenas o sol e as chuvas que a vão
nutrindo e, nos tempos seccos, duas vezes ao dia, ao
partir e ao chegar das pombas domesticas, a rega do
velho tankia melancólico. Ninguém a agasalha — dorme
exposta ao tempo, ao clarão dos luares, e cresce, enfolha-
se, frondeja e florece.
O jovem chim deixa os braços da ama e, seguindo
para um kiosque forrado de seda, alto como um tai,
agasalhado discreta, silenciosamente num bosque de
bambus, entrega-se a um velho letrado que lhe fala dos
grandes espíritos do império : Laótseu propagando a
doutrina de Taó, Confucio ditando aos discípulos as
sabias leis puras da moral dos lamas contemplativos que
descem do Thibet, como uma corrente beneficiadora,
fazendo crescer nas almas a esperança e, por desfastio, de
quando em quando, lá lhe põe ante os olhos uma peça
dramatica composta por alguma das mulheres do régio
liarem para os cômicos da corte.
Depois são as armas — é um espadachim que lhe
transmitte a sua ágil sciencia, manejando uma espada ou
enristando uma lança ; depois o mestre de equitação que
aderença um alfario ardego, até que, um dia, moço e
lindo, gracioso e robusto, para continuar a gloria da sua
casa, os pais, depois de
A BICO DE PENNA
141
muitas consultas, resolvem dar-lhe por esposa uma
princeza mandchú, senhora de terras vastas, ricas
em arroz e em arvores de laça.
Contratada a alliança, determinado o dia dos
esponsaes, é logo chamado um artista perito para
construir o leito nupcial. E a arvore que, Ia fora,
toda se enfeita ao sol, a arvore plantada no dia do
nascimento do noivo, alta e forte, verde e em flor, é
sacrificada como uma victima. Recebe no tronco um
golpe fundo, outro logo, ainda outro, cava-se uma
cinta d'onde escorre, como sangue novo e sadio, a
seiva loura, saltam aparas e a madeira ringe,
estrepita, estala, oscila e pende. A fronde ainda re-
siste, mas a uma leve aragem, derreia-se langui-
damente e, ao peso da folhagem, inclina-se com
fragor atroante e tomba com sonoro farfalhar de
folhas e de galhos.
É depois arrastada, entra na officina, é serrada,
acepilhada, torneada e vai, pouco a pouco, sob os
ferros do artista, tomando a feição graciosa de um
leito. Os embutidos enfeitam-n'a, os vernizes
emprestam-lhe brilho resplandecente, o ouro
enriquece-a em filetes de caprichosas voltas e, no
respaldar, o dragão emblemático de rútilas escamas,
contorce-se, de olhos fuzilantes, com as garras de
ouro esmagando crysanthemos e lirios sobre um
fundo vago, indefinido, onde voam garças.
É nesse leito que se reúnem os membros da nova
familia. A arvore torna-se assim como um elo
humano — o seu destino é nobre, a sua genitura é
poetica e, á proporção que sobe, vão os pais
sentindo que ó tempo de cuidar das bodas e ella,
toucando-se de flores, parece estar a chamar a linda
142
A BICO DE PENNA
noiva, que deve repousar nos seus braços e gerar no
seu collo.
Eis ahi um culto poético que, se não garante a
eternidade do vegetal, estabelece, ao menos, a
obrigação do replantio, Assim, na China, emquanto
nascerem infantes, nascerão arvores. Um pimpolho
que engatinha indica que ha uma ramaria a dar
sombra e flor, um tronco forte, não longe, destinado
a ser o thalamo sagrado — e ganha a natureza com
essa tradição poética, criada, sem duvida, por um
philosopho budhista, defensor de animaes e
florestas.
Por que não havemos nós de imitar, no amor,
essa gente barbara, que vive confinada entre as altas
muralhas, além das quaes não chega a civilisação?
Se um bruto mongol entrasse em uma das nossas
mattas e encontrasse o lenhador derrubando
velhissimos troncos, não para aproveitá-los em uteis
construcções, mas para reduzi-los a achas,
certamente, e com razão, tomá-lo-ia por um barbaro.
Pois esses bárbaros constituem legiões — do
extremo Norte ao estremo Sul do Brasil o machado
trabalha desapiedadamente, sem descontinuar,
devastando.
Quem percorre o interior paulista vê, ao longo
das linhas férreas, altas trincheiras de lenha — é o
tributo florestal. As locomotivas, como os dragões
das lendas medievaes, exigem esse repasto cruel. A
tarasca de Ehódano reclamava virgens ; o monstro
de ferro exige o cedro, e a selva despovoa-se em
proveito do que chamam — o progresso.
A área estcrilisada pelo machado é immensa —
o calculo feito por um distincto engenheiro, o dr.
A BIOO DE PENIU
143
João Pedro Cardoso, assombra e prova, com
algarismos irrefutáveis, que se os lavradores não
tratarem, em tempo, de sustar a depredação, dentro
em breve uma grande área do riquissimo Estado de
S. Paulo não será mais que vageiro esmarrido.
Com a morte das arvores desapparecem as fon-
tes: rios que rolavam águas abundantes derivam
agora em filetes rasos e tão escassos que uma quente
semana de verão á bastante para seccá-los ; a caça
rareia. Estrangeiros, que percorrem o interior,
voltam impressionados com a ausência de passaros
— não se ouve um gorgeio, não se vê um ninho —
tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem
um oasis, sem uma arvore, mas os tocos adustos,
que apontam á flor da terra, attestam a existência
anterior de florestas grandiosas — levou-as o
machado, arrasou-as o fogo, e, sobre, o terreno, nú e
safaro, cresce a herva maninha que apenas serve de
abrigo á serpe. O ar vicia-se, o mesmo clima
modifica-se, e isso é notado pelos velhos moradores
d'esses lugares, d'antes bem regados e sadios, e hoje
seccos, ingratos e insalubres, onde o homem não
vive nem a sementeira vinga.
Além das estradas de ferro, que devoram as
florestas, grande numero de fabricas não queima
outro combustivel senão a lenha, e já não falo na
que se consome nos fogões domesticos.
O lenhador vive folgamente, sem preoccupações
— não tem o cuidado do lavrador que se alarma
quando, no tempo da florada, o sol abrasa ou
grandes chuvas assolam ; não lhe importa a geada,
as larvas são-lhe indifferentes — sempre é tempo
para destruir e o mercado é sempre lucrativo.
144
A BICO DE EENNA
Um ferro de bom gnme, o carro e quatro juntas
de bois bastam ao que vai á floresta, e quem
atravessa as estradas ouve monotamente os golpes
do machado, de repente um grito de aviso e logo o
estrondo da queda d'arvore talhada.
Parece, entretanto, que já se vai sentindo a
necessidade do replantio ; os mesmos «fazedores de
desertos », como muito bem lhes chamou Euclides
da Cunha, começam a comprehender o mal que
fizeram, mas não se atrevem a repará-lo, porque é
mais difficil construir que destruir — emigram,
talvez com remorsos, passam adiante, d'olhos
compridos, consultando os horisontes rasos, e onde
descobrem verduras frondosas, ahi ficam, afiam os
ferros, armam ranchos e entram em exercicio.
Dizem-me que ha leis decretadas em favor das
arvores, affirmam-me que o Congresso já se
preoccupou com essas míieras autochtones, mas
quem ha de fazer respeitar a lei ? Onde estão os
nossos guardas florestaes, a nossa policia das mattas
e dos campos ? Ninguem os viu até hoje. O homem,
que atravessa a trilha com a caçadeira e um cão, é
um pobre matuto que vai bater a macéga ou o
cerrado, vêr se levanta uma perdiz. As arvores não
tem defensores.
As municipalidades evitam, com esperta
prudencia, a luta. O fazendeiro declara que as
mattas lhe pertencem, são seus bens, pôde mandar
destrui-las se assim lhe convier. Que lhe importa a
manutenção dos mananciaes que abeberam a cidade
ou a villa ? a lenha é tão sua como o café e o milho,
a cana e o feijão, o arroz, a batata e a mandioca que
elle colhe e manda ao mercado, e o lenha-
A BICO DE PENNA
145
dor errante é um voto certo e será um terrivel
capataz da opposição se a municipalidade lhe sahir
ao encontro prohibindo-lhe a faina cruel.
E, dia a dia, vão os bosques desapparecendo. A
região privilegiada e formosa das arvores será, em
breve, mais arida e mais núa do que a Lybia esteril.
Os mais bellos especimens da nossa flora riquissima
somem-se reduzidos a cinzas e os animaes emigram,
fogem : uns pela terra, outros pelos ares, buscando
novos abrigos, e a terra alhanada, deserta, com uma
hirsuta felpa de capins re-sequidos, estende-se,
plana e solitaria, ao sol que a queima, cheia de cepos
tostados, que são como fragmentos de columnas,
restos de um fastigio morto, escombros de uma
gloria estincta, ou cippos fun-raes num cemiterio.
O arvoredo é o grande chimico de Deus.
Felizmente o alarma, que repercute em todo o
Estado, vai despertando a attenção dos que ainda se
interessam pela sorte d'esta terra formosa, rica e
desgraçada.
URBANO DUARTE
As ideias apparecem-nos como a Verdade — nuas ;
somos nós, os escriptores, que as vestimos e, como cada
qual tem a sua feição propria, pôde a mesma idea, tratada
por varias pennas, ser jovial como uma canção,
meditativa como um provérbio, gloriosa como um
epinicio, passional como uma ode saphica, dolente como
uma elegia, lubrica como uma fescennina, sentenciosa
como uma máxima ou comica como uma tabarinada.
Tudo está no gosto do revestimento.
Vejamos, por exemplo, uma caveira que suggere, a
quem quer que a veja, a idéa da morte — ponhamo-la
sobre uma erma, á beira dum caminho bem trilhado e
façamos desfilar por elle um grupo de poetas.
Dirá o primeiro :
«Eis um espelho de bom aço. Se as mulheres o
tivessem nas suas camaras não haveria vaidade.
148
A BICO DE PENNA
Bem inspirada andou a Magdalena que o tomou para seu
uso quando se fez troglodyta arrependida. Este é o
espelho que a Verdade deve trazer na mão. Pois sim,
senhores — Não somos lá grandes coisas !»
Dirá outro : « Ser ou não ser, eis a questão . . . »
Outro : « Concha da idéa, sahiste do oceano tormentoso
da vida, jazes vazia na praia deserta do nada. Dentro de ti,
porém, como dentro das conchas, ha um rumor constante
que é o éco immorre-douro da agitação de onde vieste.
Na concha é o estuar da vaga, em ti é o referver da idéa.
Ondas, maiores que as do pensamento, tormentas, mais
deseneadeiadas do que as da consciência, não as tem o
mar largo. Vós que passais encostai ao ouvido o craneo
tabido e ouvireis o éco da vida que por elle passou — são
os espectros dos sonhos, das ambições, das angustias, dos
gozos que assombram a ruina. Evoé ! pela eternidade da
agitação ! »
Outro :
— « Poste, talvez, como uma flor de aroma e os
beijos procuravam-te ansiosos, hoje, fanada e secea, jazes
no esquecimento e no abandono. Onde andarão as
abelhas que te buscavam ? Que outro nectario as prende ?
És como um caule secco de onde, uma a uma, todas as
petalas cahiram ».
Outro :
—« Pulvis ! poeira e só. A carne levou-a o verme, o
arcabouço rolará na terra até á reversão total. Eis o que
somos. E já que o fim é tão triste, porque nos havemos de
amofinar com a ambição e a vaidade ? »
Outro:
A BICO DE PENNA
149
— « Nichos vazios, que é dos olhos que rolavam
ansiosamente dentro do vosso âmbito, como leões
em jaulas apertadas ? Boca, que é da vossa
humidade ? que é do vosso perfume ? que é da
vossa melodia ? Ouvidos, que é dos vossos
andarilhos que levavam ao cérebro todos os
recados... ? Ah ! pobre craneo, já não te abrasa a
paixão, és como uma velha lampada sem oleo.
Quantas vezes, trazida pela Luxuria, a insomnia
hospedou-se entre os teus muros ! Quantas vezes,
como em antro de lamias, esfervilharam em ti
espectros delirantes ? Foste, como cafurna orgiatica,
abrigo de succubas e todo o corpo que encimaste
soffreu agitadamente com os teus delirios. Agora
repousas, só os insectos viajam pela abobada deserta
e os ventos silvam atravessando é teu bojo vazio.
Mas se o amor viveu em ti e com ventura, foste feliz
e eu invejo-te, carcassa».
Outro : — « Não somos nada neste mundo ».
Finalmente: « Eis, fazes bem; o teu rictus é
como um recibo ironico. Durante a vida pagaste
caro o teu tributo, foi uma cilada que teus pais
armaram-te. Quem eram elles ? talvez não os hou-
vesses conhecido. Fazes bem em rir, mas como a
vida exige a hypocrisia e tu, sendo caveira, aridas
por entre os vivos, dias antes do desastre que te
levou os musculos e os outros enfeites, devias ter
ido a um dentista para que te arranjasse essa boca...
porque, com franqueza, esses molares estão
indecentes e tu devias gastar muito algodão nas
covas que elles apresentam : não são dentes, são
verdadeiros armazéns. Com o algodão com que os
tamponavas poderia uma fabrica tecer panno para
150
A BICO DE PENNA
um regimento. Se é para mostrar os dentes que ris,
podes limpar a mão á parede».
Ha disparates nesses eommentarios, pois são taes
disparates que constituem a harmonia. Homens ha
que se commovem, até ás lagrimas, com a claridade
pallida da lua cheia, outros dão para o derriço e
sahem afinando violões á procura de alguma dama
descuidada ou paciente cfue lhes ouça as loas;
outros, finalmente, dão para valentias e, ardidos, de
sobrecenho carregado, brandindo cacetes, investem
provocadoramente desafiando e, se a policia não
açode a tempo, os jornaes, no dia seguinte, registam
fracturas e contusões e autos de flagrante. Ainda se
ha de escrever uma monogra-phia sabia com este
claro titulo :
Da Influencia da lua cheia sobre os espiritas
Os nossos chronistas são, em geral,
contemplativos (mea culpa ! mea culpa !) e vestem
todas as idéas de melancolia, torcem o mesmo riso e
descobrem em tudo um estygma de dôr — poucos
são os que riem. Dir-se-á — somos um povo triste e
o chronista, que reflecte a alma do povo, não pôde
andar ás gargalhadas. Nao sei se somos um povo
triste, sei que somos um povo timido.
O brasileiro é naturalmente expansivo, mas
profundamente desconfiado e a verdade da
affirmativa, que faço sem receio da contestação,
tiro-a do seguinte caso commum :
À BICO DE PENNA
151
Chega-se a uma casa e, pouco a pouco, vêm
surgindo os membros da familia, todos mais ou
menos reservados, de olhos baixos, como receiosos;
por fim apparece o pimpolho chuehando o dedo e
trata logo de encolher-se entre os joelhos da maman.
A conversa vai indo arrastada, por monosyllabos,
com grandes pausas, até que o chefe, vendo o
embezerramento do petiz, chama-o á ordem:
Então, que é isso? Tira o dedo da boca.
O pequeno amúa e o hospede, para dizer alguma
coisa, affirma — « que o menino tem um olhar
revelador e parece muito bomzinho..» Espanto dos
pais :
Bomzinho ! isto .. . ahn ! É porque o se
nhor não sabe. Elle é porque está fazendo cerimo
nias, o senhor ha de vêr.
Effectivamente, d'ali a instantes está o pequeno a
cavalgar a bengala do hospede, estão as meninas ao
piano, a dona da casa faz o histórico da vizinhança,
o chefe reclama as chinelas e todos, á vontade, riem,
galram, mostram que têm sangue e que não são
mudos, muito pelo contrario, como dizia o outro.
O brasileiro é isso : « um povo que faz
cerimonias » e os chronistas sempre o apresentam
em momentos cerimoniosos, raros são os que no-lo
mostram como elle verdadeiramente é — em calças
fofas e largas chinelas, rindo de mãos nas ilhargas,
como riam os bons velhos de Brantôme e Des
Periers.
152 A BICO DE PENNA
D'esses raros chronistas um dos mais fieis era
Urbano Duarte, o excellente, o alegre companheiro
que se finou na estação do riso.
Conversávamos uma vez, no bom e guloso
tempo do Babélais, aquelles opiparos e intellectuaes
jantares ! a propOsito de chronicas, era do grupo o
torturado Pompeia, que então andava a burilar os
seus rendilhados períodos das Canções sem metro,
quando, a propOsito de estylo, alguém lembrou-se
de fazer a apologia da Fôrma. Urbano,
encarQuilhando as palpebras, sumindo, ainda mais,
os olhinhos miúdos, sorria; de repente, pondo-se de
pé, disse peremptoriamente :
— não concordo. A chronica deve ser um flagrante
da vida, e eu desafio a todos vocês a que me
apresentem um homem, seja uma besta ou um genio,
que, na intimidade, fale essa linguagem que vocês
lhe emprestam. Eu tomo os meus burguezes nos dias
communs, no trabalho ou na cadeira de balanço da
sala de jantar, com as calças brancas e o paletó de
alpaca ou em mangas de camisa, á fresca, em quanto
esperam o jantar, ouvindo os seus canarios. Vocês só
apresentam typos endomingados, num estylo de
sobrecasaca e cartola, com muita agua de Colonia no
lenço e muita severidade nos modos. Vocês não
conhecem o homem — o homem é isso que eu
descrevo ; o resto, meus amigos, arranjo. Vocês
inventaram essa historia da «tristeza do povo » e
aferram-se a ella. O brasileiro não é triste; o
brasileiro é o povo mais pândego do mundo. Querem
a prova ? Sempre que eu conto uma das minhas
anecdotas encontro um sujeito
A BICO DE PENNA
153
que me diz, sorrindo maliciosamente ; «Seu
maganão, aquillo foi com o F . . . hein ? » Protesto
— que não, nem conheço o F . . . e o homem,
sempre com o rizinho malicioso: «Não conhece,
hein? ora morda-me o dedo se é capaz ». Isso prova
que o facto que relatei foi um reflexo da realidade.
Eu não invento — transcrevo. Tristes . . . tristes
somos nós ».
Effectivamente. .. tristes somos nós e elle era dos
nossos. Atravessou a vida a fazer rir, que elle não
ria, as suas chronicas eram verdadeiras mascaras e,
com a atroada carnavalesca, como se a Morte
quizesse, em homenagem a esse dispensador de
prazer, dar-lhe a extrema illusão no derradeiro
momento, elle volvia os olhos humidos para a
esposa e para os filhos, que era para esses entes que
elle, calando as dores, ria atravéz das paginas,
incessantemente, com a regularidade de uma
machina hilariante e, para não entristecer a meiga
companheira . . . talvez ainda sorrisse.
A sua própria Dôr sahia disfarçada e quem diria
que era um gemido de moribundo que vinha, ás
vezes, com tão ruidoso tintinabulo pelas columnas
dos jornaes afora?
Bem podia elle dizer com Stecchetti:
Ben ritornato carneval gioeondo;
Eccomi serio : ecoo repiglio il mondo,
La maschera bugiaria.
Oa! non tradire il mio dolor segreto.
Pallido aspetto mio! Mostrati lieto,
Che Ia folia ti guarda.
CIUME
Um missionario que por ali passou, demorando-
se dois dias sob as palhas podres dum velho curral,
porque nenhum dos moradores, para que o santo
homem não desse pelos torpes vicios que
ennegreciam as suas vidas, tão livres como as dos
animaes, quiz hospedá-lo ou apenas visitá-lo, sahiu
aterrado d'aquella aldeia, mais encharcada em pec-
cados do que a impura Sodoma e, nos campos,
sacudiu, com horror, a poeira das sandalias.
A igreja cabia em ruinas e pastores, nas horas
mais abrasadas, recolhiam os seus rebanhos á
sombra fria das lages da velha nave e ficavam
profanando o sagrado muradal com cantares de
amor, senão com o mesmo amor. O cemiterio jazia
desamparado, sem muro ou sebe que o protegesse
contra os animaes e não havia uma cruz em todo o
vasto terreno tomado pelas hervas bravas.
Os sacramentos eram ali desconhecidos. As
156 A BICO DE PENNA
crianças ficavam com os nomes que lhes davam os
pais sem que o baptismo os confirmasse e
purificasse ao mesmo tempo a almazinha maculada;
não havia noticias de casamentos e, na hora
extrema, ninguém se lembrava de reclamar uma
vela e a presença de um padre para que a alma,
prestes a partir, não sahisse em trevas e carregada de
peccados.
O missionario resumiu a sua impressão numa
phrase : « E uma grande possilga». E era. Todavia,
se o santo homem tivesse seguido um trilho sinuoso
que, por entre velhas arvores, levava ao alto de um
outeirinho alegre, teria encontrado os lirios d'aquelle
tremedal: dois velhinhos e tão puros que, até se
dizia, á boca pequena, que recebiam no seu casebre
visita de anjos e de santos.
Effectivamente, uma tarde, um velho zagal, que
recolhia com o fato de cabras trefegas, viu, no
caminho do outeiro, um lindo moço louro, com azas
mais brancas do que as das garças, subindo
vagarosamente em direcçao ao casebre. Era um anjo
do Senhor e, como os velhinhos nem sequer desciam
ao mercado, logo se murmurou na aldeia que o
mesmo Deus os sustentava milagrosamente
mandando-lhes, por anjos, agua pura e manjares.
Em verdade não se póde desejar vida mais santa
do que a que levavam as duas criaturas perdidas em
tão escuro marnel de crimes. Sempre juntos, elle e
ella, não desciam ao povoado para que os seus
trêmulos pés não tocassem a terra d'aquelles
caminhos malditos nem os seus olhos esmorecidos
vissem o rosto d'um d'aquelles hereticos. Viviam na
moradia solitaria e tão arredados da impureza
A BICO DE PENNA
157
da aldeia como se estivessem a mil leguas de
distancia.
Contente com elles, já por serem virtuosos e,
principalmente, porque conservavam a virtude em
tão depravado meio, quiz o Senhor recompensá-los
generosamente com uma acção de grande
misericordia. Assim, uma tarde, estavam os dois
velhinhos, como de costume, sob uma velha
mangueira, plantada e tratada por elles, onde as
cigarras e os g aturamos cantavam ao cerrar do dia,
quando um velhinho, mais velho que elles,
abordoado a um bastão florido, com uma sacola ao
flanco, appareceu-lhes, como por encanto, pedindo
agasalho, exactamente como fez Júpiter, outr'ora,
procurando, como peregrino, a Philemon e Baucis.
A velha reconheceu promptamente o bom Deus
sob o miseravel disfarce e, numa emoção que a
agitou suavemente, sorrindo com lagrimas e tão
tremula que. nem podia juntar as mãos
engelhadinhas, poz-se a louvar o Creador, clamando
que era indigna de receber na sua miseria Aquelle
que governava os mundos e premiava a justiça.
Mas o Senhor, tranquillisando-a, disse-lhe :
« Que se ella se commovia por vê-lo ali, á sombra
da velha mangueira, mais se commovia a sua
Bondade por ter, naquella terra tão envilecida, duas
criaturas sans que lhe abrandavam a colera
suspendendo-lhe o movimento de vingança que
mereciam gente e terra tão vis ». E, aceitando a
offerta dos velhinhos, sentou-se com elles á mesa
frugal da ceia e participou, com appetite, da brôa e
d'um pedaço de anho que era tudo que havia no
armario polire.
158
A BICO DE EENNA
Ao fim do repasto — já noite negra, posto que o
outeirinho resplandecesse porque nelle estava a
propria Luz — o Senhor disse aos seus hospedes
que lhe pedisem uma graça. Os dois hesitaram,
encolhidos de vexame, e foi o mesmo Deus quem,
de novo, falou :
Quereis tornar á mocidade ? Dar-vos-ei a
mesma força e a mesma belleza que tinheis quan
do, na antiga ermida, em presença do cura, vos
recebestes como esposos.
O velhinho sorriu esfregando as mãos a pensar
naquella mocidade ardente e tão bem vivida ! Ah !
como era bom ser moço, poder andar, correr, bailar,
subir ao monte, ter força no braço e ligeireza nas
pernas. Ah ! como era bom ser moço !
Por baixo da mesa o seu joelho magro e tremulo
tocou o joelho trêmulo da velhinha e o Senhor
esperava pacientemente com um doce sorriso na
face veneravel. Então a velhinha falou :
Senhor, o que a Vossa Divina Graça nos
offerece ó, em verdade, um presente divino, só o
mesmo Deus, como sois, poderia fazê-lo ; mas se a
criaturas vis, como somos, quizesseis permittir a
sinceridade, eu vos agradeceria o que nos offere-ceis
com um não respeitoso. Ser moço é, em verdade, um
grande bem, mas não depois de haver
sido velho. O que torna a vida agradavel é a
esperança e que esperança podemos nós ter quando,
com a experiencia de cem annos pesados, sabemos
que tudo é illusão ? Não, Senhor — não queremos
voltar á mocidade. A vida é um livro que se não
relê. Já que nos permittis a escolha, ouso pedir-
vos que nos concedais a Graça de morrermos sem
A BICO DE PENNA
159
ansia, no mesmo minuto, para que um não tenha de
chorar o outro e não soffra a agonia, mesmo rapida,
da solidão e da saudade. Esta é a graça que vos
pedimos, Senhor.
E, Deus, commovido, prometteu aos velhos que
assim como desejavam se havia de cumprir. Disse e
logo um clarão illuminou o casebre deslumbrando
os velhinhos que entraram a tremer e, quando os
olhos tornaram a vêr, o recinto estava como dantes
— em silencio e sobre a mesa ardia escassamente a
candeia das vigilias.
— Queres vêr que foi sonho ? exclamou a velha.
— Sim, foi sonho, affirmou o velho ; mas lá
estava um prato, conservando ainda um pouco de
pão e um pouco de anho, prova de que um terceiro
ali havia estado e esse terceiro fora o mesmo Deus
que os visitara.
Tu devias ter pedido a mooidade, disse
baixinho o velho ; e a velha, firme na sua idéa :
Foi melhor o que pedi.
Uma semana depois achavam-se os dois velhos
sentados sob a mangueira, gozando o fresco da tarde e
ouvindo as cigarras e os gaturamos, quando uma nuvem
lhes passou pelos olhos. Ouviram uma doce musica,
sentiram um aroma gratíssimo e inclinaram-se, um sobre
o outro, conservando-se sentados e immoveis, sob a
velha mangueira cheia de cigarras e de gaturamos. Logo
dois anjos desceram e tomaram as almas dos velhinhos
subindo eom ellas ao céu, todo estrellado e com um luar
que lu-
160
A BICO DE PENNA
zia como se se houvesse preparado no Paraíso uma
grande festa para os receber.
Os corpos lá ficaram vazios, no banco, sob a velha
mangueira, junto ao casebre do outeirinho e ali o tempo
os ha de consumir sem que os da aldeia dêem pela morte
d'aquelles justos.
Subiam os anjos com as almas e, de repente, o que
levava a da velha,
!
ouviu-lhe a voz dôce a perguntar :
E elle!
Vem perto, nos braços de um cherubim, descança.
Não é uma virgem que o vem trazendo ?
Não, é um cherubim.
Ah!
E subiam. Apezar do vôo ligeiro dos anjos levaram
toda a noite a subir até que avistaram a porta esplendida
do céu, onde uma turba de seraphins desfolhava flores e
esparzia aromas.
A alma da velha, sempre preoccupada, não se
aquietava entre os braços de seu conductor, indifferente
aos esplendores celestiaes, só perguntando pela outra.
«Vem ahi», respondia o anjo sorrindo e assim chegaram á
presença dos Thronos que guardam a entrada do Paraíso.
Um d'elles adiantou-se e, tomando a alma da velha,
levou-a a um grande santo que se movia entre retortas e
alambiques em um immenso laboratorio.
O santo trancou-se com a alma da velhinha e, ao cabo
de uns minutos, abrindo de par em par as portas
rutilantes, declarou que havia encontrado entre as
virtudes, que eram magnificas, 55 % de ciume.
A BICO DE PENNA
161
Levantou-se uma discussão entre os anjos : um
bradando que o ciume era um feio peccado, porque
A base do amor deve ser a confiança reciproca,
outros affirmando que o ciúme era a mesma essencia
do amor. Deus decidiu a favor da velha recebendo-a,
a sorrir, á sua direita e foi a vez de ser examinada a
alma do velho.
Não foi longa a operação e o santo, encarregado
do laboratorio etliereo, abrindo as portas, declarou,
carrancudo, que havia encontrado vestígios de um
amor impuro.
A alma da velha estremeceu á direita de Deus. E
o santo continuou com precisão a expor o crime
divulgado pela analyse :
« Certa noite, na primavera, no caminho do
outeiro, descia uma moçoila para a fonte, com a
bilha ao hombro, quando esta alma toda se agitou
num desejo ardente e ...» As virgens coraram e,
batendo azas, fugiram espavoridas e a alma da velha
tremia á direita de Deus e soluçava :
Ah ! antes eu não viesse ao céu ! Antes eu
não viesse porque conservava a illusão única da
minha vida. A Eachel! A Eachel! Estou a vê-la,
a desavergonhada, com a bilha ao hombro, a
caminho da fonte. Antes ou não viesse ao céu.
E a alma do velho, entre os dedos do santo,
tremia, num grande medo. E os juizes declararam —
« Que aquelle peccado merecia ao penas infernaes ».
Ia o santo soltar a alma peccadora quando a
outra, a da velha, pôz-se a gemer afflicta, rojando-se
aos pés de Deus :
Para o inferno não, Deus de misericordia !
Para o inferno não, meu Senhor !
162
A BICO DE PENNA
Louvo a tua caridade, disse o Senhor
commovido, porque tens pena d'aquelle que te
trahiu. ífão queres que pague nas chammas o seu
crime ?
Ah! Senhor, não é pelas chammas, não. Pouco
se me dá o fogo que lá arde . . .
Então porque é ? perguntou o Senhor e os
anjos, cheios de curiosidade, cercaram a alma
chorosa da velhinha :
Ah ! Senhor, a falar verdade : é porque
sempre ouvi dizer que o inferno está cheio de
mulheres bonitas.
O PASSADO
Depois de um anno bem longo de apartamento
encontramo-nos peito a peito num abraço forte que,
por muito apertado, como que nos espremeu o
coração fazendo com que nos subisse aos olhos uma
humidade que o nosso pudor de homens logo
seccou.
Não nos ficava bem chorar na gare d'uma
estação atulhada de gente, com tantos olhos curiosos
voltados para o nosso lado, porque o povo começa a
interessar-se pelos seus poetas e ali estava o maior
da nossa geração : Bilac.
Olhei-o depois, vagarosamente e, a principio,
pareceu-me o mesmo rapaz robusto e sadio do bom
tempo. Ah ! o bom tempo ! Pouco a pouco, porém,
(meus olhos estavam deslumbrados pela emoção)
comecei a notar nos cabellos negros do fino cantor
das Virgens mortas uns sulcos de rara alvura, uns
164 A BICO DE PENNÁ
fios claros como uma teia que se tramasse naquelle
esplendido negror.
Diabo ! disse commigo numa explosão de
egoismo, somos da mesma idade e se elle tem esse
«signal dos tempos » eu o devo ter também e,
machinalmente, passei a mão pelos cabellos como se
quizesse sentir os mortos, os arrefecidos fios entre
os que ainda conservam o tom louro da mocidade.
Não os senti, não podia senti-los, e, confesso,
fiquei com um pequenino orgulho como se houvesse
reconhecido a minha resistência maior. Mas o
amigo, o irmão, como nos fossemos lentamente
dirigindo para o carro, lançou também um olhar
perscrutador á minha cabeça e, como eu,
ufanamente, alisou os seus cabellos negros e
luzidios. E puzemo-nos a falar dos amigos distantes.
Emquanto o carro rodava, ia eu pedindo noticias
de um e de outro, de certos lugares amados e o
poeta referia-se aos homens com tristeza, quanto ás
bellezas da terra sempre as mesmas, talvez maiores,
realçadas por um anno de copiosos aguaceiros e de
soalheiras abrasadoras. Só os homens mudam.
Mas tu estás o mesmo.
E tu ? ! . . .
Como mentíamos ! Eu vira-lhe os cabellos
brancos e elle também descobrira os meus.
Mentíamos ambos.
Quando nos concentramos, no meu gabinete,
entre livros, discorremos largamente sobre os dias
passados — dias de esperança, sem preoccupações,
sem tormento. Havia difficuldades, mas com que
A BICO DE PÊNNA
165
garbo as vencíamos e o riso era o clarim com que
sahiamos a pelejar, entretanto . . .
Francamente, suspirou o poeta, se Deus me
propuzesse voltar á mocidade com a condição de
repassar os soffrimentos que curti, eu lhe diria :
— Muito obrigado, Senhor !
— Hão querias ?
— Não.
Pois eu daria alguma coisa para tornar a esse
tempo.
Houve um silencio entre nós, interrompido
estrondosamente por um dos meus filhos que entrou
cavalgando uma bengala. Emquanto a criança
circulou pelo gabinete estivemos calados, logo,
porém que, ao appello tartareado do irmão mais
moço, esfusiou pela porta, aos brados, galopando,
voltamos ao nosso assumpto.
— Queres saber ? Trazes apenas da travessia que
juntos fizemos as impressões amaveis. Ha memorias
que repellem as recordações amargas. Se houvesses
lentamente descido pelas barrancas escalavradas
d'um abysmo, rasgando as carnes nas arestas da
pedra, deixando as roupas, que são as illusões,
(porque nós andamos vestidos de illusões) nos
espinhaes, sangrando, arquejando, simplesmente
porque na altura o ar era mais fresco e cheiroso e de
lá os horisontes pareciam mais amplos e nas bordas
dos rochedos viste flores de côr admiravel e ninhos
cheios de pássaros, quererias voltar ao soffrimento o
aos receios da descida ? não, por certo. Pois a nossa
vida, no passado, foi isso, senão foi peior.
— Nem tanto.
166
A BICO DE PENNA
Teríamos de rever os amigos mortos e passariamos
pela dôr de os perder de novo, seriamos pungidos pelas
mesmas desillusões.
E os gozos ?
Gozo ! O gozo é o prazer tranquillo que nunca
tivemos. O homem que janta, ás pressas, num hotel de
estação, não aprecia o que come. O nosso prazer era um
delírio e queres a prova ? somos dois entediados.
Eu, não.
Tu, não ? E deixaste o Rio e vieste procurar o
silencio d'uma cidade do interior. Que é isso senão
indifferença ? O teu prazer hoje é tranquillo, como
convém. Tens a esposa, os filhos, o aconchego seguro,
pensas no amanhan — és homem, emfim. E que eras tu ?
um visionario que vivias accumulando utopias e colhendo
desenganos. Queres saber ? Eu não olho para o passado
com saudade, senão com tristeza e pena do que lá deixei,
que foi muito, foi tudo, devo dizer.
Demais, para recordar esses dias extinctos, não careço
da memoria — tenho os achaques. Pensas que venho por
essas serras acima por gosto ? Não sou alpinista. Venho
empurrado por esse mesmo Passado que me deixou
assim, como vês. Se me dissessem — volta ao passado e
virás suavemente pela vida sem molestias, caminhando
sobre libras esterlinas, livre das perfidias, da inveja, do
odio mesquinho e das discussões políticas, eu ainda
pediria alguma coisa ao bom Deus . . . ?
?
Que me fizesse bronco, mais bronco que um
penhasco, para não ser perturbado na minha feli-
A BICO DE PENNA
167
cidade pela intelligencia. Não ha coisa peior, meu amigo.
O «Porque ? » é peior que o abutre de Prometheu ; querer
saber é o diabo. Não ha nada como a indifferença dos
lorpas e das coisas. Viver como a agua que corre
cantando por entre ribas verdes sem se preoccupar com o
destino — se vai direita ao mar ou se tem de rebalsar-se
num açude para depois descer a uma azenha e virar a mó.
Isso é que é. Mas viver a vida vivida com todas as suas
vicissitudes, nunca ! E queres saber 1 para mim deve ser
esse o supplicio infernal. Morre um desgraçado e, na
outra existencia, é condemnado a repassar todos os
soffrimentos que o atormentaram na primeira provação
— dores, falta de agasalho, dias de solidão, noites de
insomnia, intrigas, o diabo .. .
E tu que não falas d'um só momento feliz, porque
os tivemos.
Gottas de agua no absyntho.
Que pessimismo, homem. Isso é influencia do dia,
que está taciturno, com essas nuvens pardas. Vamos dar
uma volta pela cidade. Conheces Campinas ? Já aqui
estiveste ?
Sim, em 1892, horas apenas.
Pois vamos dar uma volta.
Sahimos. O dia era triste, nublado ; nos telhados das
casas corvos negros, pousados numa im-mobilidade de
figuras de bronze, concorriam para a melancolia que nos
ia encharcando a alma. Em uma das praças cantava a
água d'um chafariz. Começou a polvilhar uma neblina
fria, que ia abrumando o horisonte. Amiudamos os
passos, corremos curvados, com as golas dos casacos le-
168
A BICO DE EENNA
vantadas. Quando nos refugiamos na Minerva
justamente o caixeiro chegava para o muito conhecido :
«Que ha de ser ? »— a chuva cahiu forte, aos jorros,
ruflando na vidraçaria e o poeta, sacu-dindo-se, muito
cauteloso, arripiado e arrependido de haver sahido sem o
guarda-chuva, resmungou contra o tempo perfido :
— Diabo ! esta molhadela agora . . .
«— Quê ? estás impressionado !
Então ? Que pensas ? Julgas, talvez, que somos
ainda aquelles doidos que affrontavamos aguaceiros
como o famoso que apanhamos desde o largo do Eocio
até á rua do Biachuelo uma noite de carnaval ? Pois sim !.
. . Hoje os médicos nem querem que eu apanhe sereno. E
tu? O caixeiro serviu-nos dois grogs. Lembras-te da tua
volta do rio d'Ouro, quando lá foste com Moysés Frontin
para a maravilha da agua em seis dias ? parecias um
d'aquelles barbaros de Árminio descriptos por Tácito.
Se me lembro ! molhado até os ossos.
E nada, hein ?
Fome apenas.
Bom tempo !
E o poeta, talvez para não cahir em contradicção, poz-se a
mexer lentamente o seu grog, mas bem que lhe notei certa
ondulação do peito como se elle houvesse engulido um suspiro.
Por fim, não se contendo, disse :
Estamos velhos, meu amigo.
Eu affirmei num aceno, descorçoado. E, calados,
ficamos a ouvir a chuva que jorrava grossa.
NAS AGUAS DO MAR
O pulpito da sua maior eloquencia não tinha
entalhes preciosos nem recamos classicos, por elle
não andara o formão nem a goiva o cavara ; por elle
não se ennastravam folhagens nem anjos o
rodeavam, em coros jocundos, soprando tubas ou
tangendo harpas — o pulpito de sua maior
eloquencia foi um bruto e desconforme penhasco,
negro e calvo, fincado nas areias de beira-mar. Da
sua base a onda fervia e o verde e pútrido sargaço
formava uma orla verde. Ali pousavam as gaivotas
nos dias azues, ali refugiavam-se as procellarias
quando os grandes ventos conflagravam os mares,
d'ali falou o santo aos peixes.
Não era Antônio um frade do abysmo, posto que
as fundas águas de esmeralda também possuam
congregações religiosas. Heine faz menção de dois
ou tres bispos marinhos, que deram á costa nos frios
littoraes do Norte, arrojados á praia por
170
A BICO DE PENNA
algum vagalhão herético ou colhidos na rede d'um
pescador ousado.
Antônio, nascido em Lisboa, era frade paduano e
a razão que allegam os seus biographos, explicando
o seu capricho de pregar aos peixes, é ponderosa. Os
homens, incredulos e desattentos, faziam ouvidos de
mercador ás suas santas palavras. Debalde elle os
chamava para a virtude, debalde lhes promettia a
bemaventurança, os ingratos achavam maior prazer
no vicio e preferiam a vida terrena, que conheciam,
á outra que era apenas uma hypothese de
pregadores. «Mais vale um pássaro na mão que dois
voando », diziam e a igreja ficou ás moscas.
Eis porque o santo resolveu pregar aos peixes.
Logo que elle surgiu no cimo do penhasco
acardumou-se o mar que, de verde que era, ficou
colmado de prata — robalos, badejos, sardinhas,
pescadas, baleias monstruosas, tubarões vorazes,
linguados, raias, polvos, enguias, todos os
representantes do povo escamoso, acudindo
apressadamente dos antros, subiram á tona do mar
placido e ouviram devotamente a pregação do frade.
Antônio falou com muita inspiração referindo-se
aos gozos enganadores e ephemeros da vida e,
quando alludiu ao céu, foi tal o poder da sua palavra
inflammada que os peixes entraram a flagellar o mar
com as barbatanas, que é assim que os peixes
manifestam o seu enthusiasmo. Alguns, mais
sensiveis, ficaram com os olhos marejados, e,
convertidos, levantaram um grande e atroante
clamor, pedindo o baptismo.
Desceu Antônio do penhasco e, como os cate-
A BICO DE PENNA 171
chumenos estivessem na melhor das pias, limitou-se a
pronunciar as palavras sacramentaes, dando a cada um o
nome que lhe subiu á boca naquella hora milagrosa e foi
assim que os peixes ganharam os nomes porque são hoje
conhecidos nos mercados.
Finda a pregação, despediu o santo o seu auditorio e
desceu do saxeo pulpito. Foi, então, uma alegria immensa
no mar. Os peixes, confiando na promessa de paz que
lhes fizera o santo, sahiram contentes nadando á flor das
aguas que o luar fazia de prata.
As baleias golfavam trombas espumosas, os botos
viravam as mais arriscadas cambalhotas, as raias
saltavam cahindo de chapa na agua, com es-trepito, e as
sardinhas, aos milhares, toldavam o mar semelhando ilhas
brancas e resplandecentes que fulguravam ao luar. Só um
velho espadarte, desconfiado e prudente, em vez de sahir
em trium-pho apregoando a bondade do propagandista e a
facundia do orador, como faziam os seus irmãos, desceu a
metter-se na lapa mais funda, entre as mais enredadas
algas, buscando, com difficuldade, encravar-se nos
labyrintos de coral, e quieto, lá se deixou ficar a vêr em
que paravam as modas.
Ali jazia mestre espadarte quando viu passar uma
gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda, com pressa,
como se fosse ligeiramente a algum negocio urgente.
Irman tainha, perguntou o matreiro peixe, onde
vais tão taful e com tamanha azáfama e açodamento ?
Onde vou ? Que pergunta ! Vou gozar o luar
172
A BICO DE PENNA
que lá em cima esplende e vou aspirar o aroma que chega
dos jardins da terra.
E não receias o anzol e a rede do pescador ?
O anzol e a rede ? Pois não ouviste o sermão do
santo, irmão espadarte ?
Ouvi, irman ; ouvi e aqui estou nesta lapa porque
não ha outra mais funda por estes mares ; e acho que
farias bem se te deixasses ficar entre as lages em que
nasceste. Deixa lá o luar, deixa lá o perfume ; enlapa-te,
irman tainha, enlapa-te.
Pois desconfias do santo irmão, espadarte ?
O santo é homem e eu sou peixe, irman.
Que tem isso ? Ah ! minha irrnan, bem se vê que
és muito nova. O Deus dos homens, minha irman, morreu
por elles e não por nós. Eorani os homens que o
trouxeram á terra com os seus pedidos de misericordia. E
que fizeram os homens ? pregaram-n'o em uma cruz. Que
devia acontecer depois de tamanha ingratidão ! devia
baixar sobre os homens um castigo tremendo, não é
verdade ?
— Sim.
Pois, minha irman, o castigo baixa, mas é
sobre os peixes, que nada fizeram. Quando os homens
commemoram o sacrificio do seu Deus ati
ram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação
por esses mares que . . . não te digo nada. Se nós
tivessemos um Deus poderíamos ter uma quaresma
e nela tiraríamos justa vingança dos homens, mas
nós somos peixes, não temos Deus, não temos politica,
não temos nada.
— Então achas que Santo Antônio . . . ?
Eu acho que Santo Antônio quer pregar-
nos alguma. Palavras de tal homem a peixes .. .
A BICO DE PENNA
173
uhm ! Isso é isca ! Minha irman, quando um superior
desce assim a intimidade com a canalha . . . desconfia
d'elle : o menos que pôde pedir é a vida. Para o homem o
reino do céu dos peixes ... é o escabeche. Enlapa-te,
irman tainha, e deixa lá andar em cima quem anda.
Pela manhan uma sardinha passou desgarrada e
espavorida diante do velho espadarte :
Que é isso, irman sardinha ? Onde vais assim
aforçurada !
Ih ! irmão espadarte ... o sermão do frade ... o
sermão do frade.
Lindissimo! Admirável! Um primor de fôrma.
Uma isca perversa ! As redes varreram o mar de
praia a praia e, como nós confiávamos na promessa de
paz, a pesca foi avultada, nem sei mesmo se ainda haverá
peixes que continuem a especie nestas aguas.
De outros não sei, mas que ha espadartes e
sardinhas garanto — sardinhas porque atravessam as
malhas por serem pequeninas, espadartes porque não se
fiam em palavras. Palavras, palavras, palavras . . . E
parecia que a alma de Ham-let se havia encarnado no
atilado peixe.
Desde então nunca mais quizeram os peixes ouvir
sermões. E por essas e outras vão os milagres rareando
e... não apparecem eleitores em dias de eleição.
UM CONVENTO FLUCTUANTE
No porto de Taganrog entrou um navio bem
curioso: o grande veleiro Pohrov!-Pressiyatya-
Bogoradiz, que nâo é senão um convento fluctuante.
Toda a equipagem é composta de monges do monte
Athos ; o capitão é o P. Gerassin, superior da Ordem.
Os marinheiros monges trazem vestes ecclesiasticas,
porém, apropriadas ao serviço.
O navio é pintado de negro e tem na proa uma
grande cruz.
A bordo o capitão diz missa todos os dias.
Em geral, ahi se observam rigorosamente todas as
regras do convento. O accesso ao navio é interdicto ás
mulheres. A carga compõe-se de óleos sagrados e de
objectos religiosos.
Os monges e os officiaes são de nacionalidade
russa, mas navegam sob o pavilhão turco.
Noticia transcripta.
Quem leu as paginas admiraveis consagradas
pelo Visconde Melchior de Vogüé á Montanha
Santa, que fôrma o fecho de um dos promontorios
chalcidicos, rematando, em contraforte abrupto, uma
das linguas de terra que, como os tentaculos de um
polvo immenso, partem da antiga peninsula ma-
176
A BICO DE PENNA
cedonica para o mar, não vê sem interesse a curta
noticia da peregrinação dessa nau monastica,
abrindo as velas aos mesmos ventos que levaram
Argos em tempos mais fortes e mais jocundos, ao
som de cantos, com a flor dos pelasgos, á conquista
do ouro nas terras de Etes.
O monte Athos, cuja sombra, espalhando-se nas
aguas calmas do Egêu, chegava, no dizer de Plínio, a
escurecer as praias de Lemnos, viu formigar a seus
pés a chusma asiatica que Xerxes conduzia
fragorosamente ; viu mais duma vez, em noites
claras, passarem, em cardumes, brincando e
cantando na vaga, as encantadas filhas de Nerêu ;
viu nascerem cidades em torno do seu corpo, viu-as
cahirem esboroadas pelas catapultas ; teve, mais
duma vez, ensejo de admirar as aguerridas phalanges
macedonicas, e, uma manhan, olhando d'alto um
punhado de homens, que formigavam na sua base,
descobriu entre elles Dinócrates, que propunha
talhá-lo d'alto a baixo numa figura monstruosa na
qual o futuro maravilhado visse a imagem do moço
Alexandre, dominador do mundo.
As florestas seriam a cabelleira encaracolada e
verde do heroe formoso, as nuvens formariam a sua
chlamide translúcida ; fontes rebentariam copiosas
das dobras dó seu manto ; nos seus hombros, pelas
suas coxas cresceriam cidades, na palma das suas
mãos, estendidas e abertas, quadrigas disputariam o
premio da corrida e a seus pés fervilhariam
emporios colossaes.
O sorlu ue Dinócrates passou o o monte, aspero,
escabroso e altivo, manteve-se o mesmo do
A BICO DE PENNA
177
antigo tempo, monstruoso e severo como o descreveu
Diodoro.
Morreram os deuses, o crepúsculo escureceu o
esplendor da Heilade e o monte lá está, de pé, nas terras
que hoje são da Romelia, onde voaram, em tempo de
Trajano, as aguias do Capitólio, levadas, como gerifaltos,
pelos vexillarios de Boma e quem agora o governa é o
turco bárbaro que lá mantém, numa aresta de rocha, entre
vinhas agrestes e ríspidos cardos seccos, o seu
representante.
O monte é hoje um silencioso eremiterio : cobrem-no
mosteiros atorreados, alguns construidos nos primeiros
dias do seculo IX, ern pleno esplendor byzantino, outros
mais recentes, mas todos rijos, de grandes blocos de
granito, lembrando as construcções cyclopicas das
primeiras eras.
Nelles habitam os homens santos, os homens virgens
que se afastaram, para o sempre, do mundo segregando-
se nos alcandores, onde não chegam as seducções
enganadoras do seculo.
Nas epocas da prosperidade d'essa thebaida alpestre
mais de dez mil monges entoavam antipho-nas pelos seus
meandros, no fundo dos valles onde se despenham
torrentes, nos visos dos cimos, nos pendores dos
abysrnos, no seio das mattas escuras. Hoje esse numero
está reduzido a seis mil skitas, administrados pelo
conselho dos cinco ou epistatia, que elege annualmente,
tirando alternativamente d'um convento e d'outro, o
prothatos, ou magistrado supremo do estado monastico.
A população do monte Athos, diz Melchior de
Vogüé, é exclusivamente composta de religiosos
subordinados á regra de S. Basilio. O uso da carne,
178
A BICO DE PENNA
do fumo, dos banhos lhes é desconhecido. Usam
invariavelmente habito negro, de lan, conservam toda a
barba e o cabello que trazem em trancas sob altos gorros,
de tecido grosseiro, copiando a fórma do fez.
Seguindo a antiga crença nazarena, não cortam os
cabellos : Non tangei caput novaeula, como diziam os
nazires. «A particularidade mais curiosa da sua regra é a
prohibição feita a toda a mulher, a toda a criança, a todo o
animal fêmea de penetrar no território do Athos. Essas
prohibições pueris, para não dizer revoltantes, nunca
foram infringidas desde que foram ditadas, ha mais de
dez seculos : ellas contribuem, mais que tudo, a dar um
caracter de singular estranheza a esse canto de terra,
posto fora da natureza, tão longe quanto poude levar o
furor ascetico».
É com tal gente que vai tripulada a náu que surgiu no
mar do Azov, não com a celeuma alegre que os marujos
levantam quando sentem na ara-gem o tepido perfume da
terra proxima, mas ao som triste dos canticos religiosos.
Sebastião Brandt, o grave jurisconsulto de Strasburgo,
auctor do Narrenschiff, ou navio dos loucos, não foi tão
longe com a sua tresloueada fantasia. As lendas bretans
falam de barcos espectros, que passam surdamente nas
brumas dos dias polares e nos quaes a companha é toda
de sombras e a bandeira é uma alva mortalha, e vive a
lenda do navio do Hollandês errante, acossado por mil
A BICO DE PENNA
179
tormentas, vogando incerto por todos os mares. Mas que
são essas criações da satyra e do medo, essa ironia e essas
superstições comparadas á verdade, que pôde ser vista
diante do porto rumoroso da cidade fundada por Pedro o
Grande ?
Lá está o navio. É um mosteiro sobre aguas : a sua
tripulação é toda de monges, a sua carga consiste em
oleos santos e em objectos religiosos.
Emquanto está ancorada a maruja mystica póde
cuidar serenamente do culto : o gageiro deixa o cesto de
gavea, deixa o timoneiro a canna do leme, fecha o piloto a
bitacola e, com os pannos ferrados, as vergas estendidas
em cruz, a náu atrôa os hymnos. Sobe-lhe do bojo, em
espiraes ceruleas, o fumo aromatico dos thuribulos, tine,
retine a campainha e a hóstia, branca e pura, eleva-se
entre os dedos salitrados do prothatos navegador, á luz do
céu nevoento, defronte da cidade moskovita.
Mas . . . vendidos os santos oleos e os rosarios de
sandalo, as nominas e as verônicas, as reliquias, e, talvez,
antigualhas byzantinas, e aberto largamente o panno
sigamos, mar em fora, a náu inonas-tica.
Lá vai, proa altiva, rompendo a vaga, galgando o
macaréu. Lá vai! Range a mastreação, silva o vento nas
enxarcias e, em torno do cabrestante, passam os monges
os cabos. Eia ! mãos bentas, ala ! iça ! Aos turcos a
chalupa ! Ala ! e o prothatos, energico, brada á companha
hirsuta que, marinhando por mastros e mastaréus,
surgindo nas escotilhas, caminhando na rede da
bujarrona, em faina ligeira, põe o navio á feição do vento
até que elle ganha a abordada e parte. Lá vai!
180
A BICO DE PENN A
Se não mentem as bailadas do Norte, que se
referem á existencia de cathedraes e mosteiros
submarinos, onde officiam bispos e cantam, em coro
de nacar, escamosos monges e freiras de olhos
d'esmeralda, quando a náu monastica passar na
vizinhança de taes templos e conventos, os sinos
bimbalharão sob as águas ceruleas e as sereias
christans ajoelharão devotamente nos genuflexorios
de coral, sobre esponjas macias.
Não é a peregrinação dos monges que eu lamento
— o mar tem encantos que absorvem a alma, quem
viaja sonha, mas a terra ? Á terra que se adivinha
como uma fellah pudica, encolhida sobre o verde
tapete das aguas, toda envolta em gaze, mostrando
vagamente os seus contornos, os relevos do seu
corpo ondulante ; a terra que se vai avistando, ainda
indecisa, despindo-se com o vagar pudico de uma
noiva, deixando vêr alvuras ; e depois as torres
agudas que apparecem, zimborios que rebrilham,
vidraes faiscando ; por fim a cidade que se vê linda,
alegre, resplandecendo, ora em verdes planicies ou
em avelludados outeiros, com o casario alastrando
ou subindo, em rebanho, pelos flancos das
eminências e lá, no referver da vida, o espectaculo
novo para aquelles olhos cançados de vigilias á luz
tremula das lâmpadas absconsas, da grande, forte e
inevitável germinação.
Não lhes arderá na alma o desejo, filho do
instincto, que é o pastor do rebanho dos sentidos?
Não lhes pulsará o coração ansioso batendo, como
machina apressada, a impellir o corpo para o seu
destino ? O polo magnetico do amor não os attrahirá
da terra ?
A BICO DE PENNA 181
Não, não é a peregrinação pelos mares que eu
lamento. As sereias deixaram as ondas que d'ellas
apenas conservam a perfídia; as sereias estão hoje
em terra firme e têm as suas grutas de coral, não
erguidas pelos phalansterios, mas estofadas pelos
armadores ; o que eu lamento é a chegada aos
portos, é a visão da terra seductora.
Uma mulher que passa na praia cantando leva-
lhes os olhos e manda-lhes o seu perfume ! Oh ! o
aroma da carne ! Outras caminham ao longe e, á
noite, á hora calada das estrellas e das ardentias,
quando no porto adormecem as docas, sulca as aguas
mansamente um barco e nelle, unidos, dois vultos
trocam heij os. O monge que vela escuta o crepitar
dos lábios ardentes, debruça-se á amurada, olha e,
extasiado, não se pôde tirar daquella contemplação
allucinante.
Ao longe a cidade, recamada de luzes, fulgura e
um hausto grande, quente, rumoroso como um ar
que o, hausto que é a confusão de todos os suspiros
que sobem, hausto que é a grande respiração
voluptuosa dos que amam, chega ao navio ascetico e
os monges levantam-se atordoados como
perseguidos por um sonho máu.
Que é ! Que é ! indaga o protathos. E todos,
lividos, perturbados, tremulos, estendem os braços
magros mostrando a cidade ao longe, cravejada de
luzes, subtilisando o perfume embriagador da
volupia. É a cidade ! É a cidade !
O protathos dá o signal da partida fugindo com
pressa ao peccado e, á primeira luz da manhan,
pannos todos abertos, bojando á aragem, lá vai a náu
velejando a fugir á mulher, levando, porém, como
182
A BICO DE HENNA
um presente satanico, a acidia, essa melancolia que é uma
saudade do mundo, essa tristeza mortal que é uma revolta
da carne e que foi assim definida por Frei Luiz de
Granada :
«He uma frouxeza e caliimento de espirito para bem
obrar, e particularmente he uma tristeza e fastio das
coisas espirituaes ».
E, recolhendo a náu ao porto do Egêu, voltando os
monges ás asperezas da sua montanha, mais a acharão
deserta e triste, intratável e mesquinha. Mas a regra
ferrenha será transgredida, não pela presença da Mulher,
mas pela obsessão do Feminino apenas e de leve
percebido nos rapidos surgimentos naquelles portos onde
o amor era livre, na terra e no mar, não só entre os casaes
humanos que trocavam beijos, mas até entre os animaes.
E, no monte, os delirantes, contorcendo-se
raivosamente nos grabatos das cellas, não distinguirão no
murmulho do arvoredo o delirio do amor e, se
distinguirem, por certo não communicarão ao protathos
para que elle, em ira feroz, não conclame as
congregações para abaterem, a machado, as depravadas
arvores, unicos viventes que ousam, com desfaçatez,
cumprir o preceito divino da procreação naquelle
eremiterio da esterilidade.
Pobre náu de sombras, mais tragica do que a dos
espectros alvos, que passa envolta em nevoeiros pelos
tristes mares mudos da região dos polos.
Pobre náu de agonia !
A MORTE DO ESTADISTA (1)
Não ha morte que mais commova do que a do
guerreiro : basta que a noticia circule para que a multidão
se levante empolgada pelo enthusiasmo e deplore, com
verdadeiro sentimento, a perda do heroe. O que,
entretanto, a agita e abala não é propriamente a queda do
vingador intrépido da Patria, mas a série de
circumstancias, o conjunto épico que a torna
extraordinaria.
Imagina-se o momento, compõe-se a rhapsodia, á
guisa das de Homero, concorrendo cada imaginação com
o seu subsidio : «Ei-lo soberbo, sofrean-do o ginete
árdego que escarva o solo, á frente dos exercitos
estendidos em linha de batalha.
«Ao sol que sobe, claro e quente, rebrilham as
(1) Dr. Síllvano Brandão, eleito pára à vice-presidencia da
Republica.
184
A BICO DE PENNA
linguas agudas das bayonetas, fulgem os canhões,
scintillam os metaes das fardas. As bandeiras des
fraldadas palpitam ansiosamente como aves ba
tendo as azas em ensaios de vôos ; relincham os
coroeis, vibram os clarins estridulos e elle olha
firmo, com a espada a flammejar no punho, attento
aos passos do inimigo.
«Subito, ao longe, d'entre as hervas, um golfão de
fumo explúe, outro, mais outro . . . Atrôa o pavido
silencio, turva-se o espaço luminoso. Estrale j a e ronca a
metralhada rasgando os ares, detonam bombas, crepita a
fusilaria e, d'um lado e doutro, o incendio cresce, o
armistrondo rebôa.
«Gritam, guaiam, clamam os feridos, gemem os
moribundos e, num momento, ao soar dos clarins,
movem-se os cavalleiros erguendo as compridas lanças,
fórmam-se os pelotões e elle, acenando aos soldados,
parte, á rédea solta, levando no rastro do seu ginete a
multidão frenetica.
«Lá vai a avalanche em desabalada investida atravéz
do fogo cruento, rompendo as sebes de aceiro, deixando a
planicie assoalhada de cadáveres, os vallados entupidos
de mortos, os mameis encardidos de sangue. Mas uma
bala silva—empal-lidece o heroe, oscilla incerto na sella,
pende-lhe no punho a espada, cerram-se-lhe os olhos e os
companheiros, que o vêem sem alento, acódem em seu
soccorro. É tarde! a morte turva-lhe a vista, mas a alma
heróica sobe-lhe ainda aos labios para o derradeiro
commando, pedindo que prosigam e emmudece
abandonando o corpo enlanguecido.
«A soldadesca, ao saber do desastre, assanha-se ainda
mais querendo vingar o general ousado e
Á BICO DE PENNA
185
áquelle cadaver, que é recolhido á tenda, fazem os
exercitos uma oblação de sangue, só voltando ao
acampamento quando o inimigo, espavorido. abandona a
acção refugiando-se, desbaratado, entre as
suas trincheiras».
Morre assim o guerreiro, choram-n'o todos os olhos,
lastimam-n'o todos os corações, mas comparai a sua
morte á d'esse homem que se finou depois de tão longa
agonia.
O guerreiro, cahindo entre os bravos, leva na alma a
consoladora certeza de que a patria o glorificará, porque
os actos da sua vida não se reservam em segredos ; o
homem de Estado vai duvidoso da justiça, entretanto, se
aquilatarmos os feitos d'um e d'outro, o guerreiro terá de
ceder ao estadista.
Na guerra, a commoção de todos inflúe na coragem,
ha o estimulo electrisante dos clarins, ha o pean das
musicas guerreiras, as vozes que bramam, a artilharia que
incita, o fumo que embriaga, e, acima de tudo, a força
poderosa do instincto de batalha que arrasta, impelle o
mais enfraquecido.
O scenario é vasto, o publico é o universo e no silencio
d'um gabinete onde chegam, como projecteis tremendos
que vão direito á honra, os reclamos do povo faminto, os
apodos das facções adversas, os protestos da imprensa, as
accusações dos grupos despeitados, os pedidos das
camarilhas e os compromissos que trahem a
honorabilidade do governo, as campanhas politicas, as
urdiduras da intriga, as guerrilhas de campanario, as
exigencias absurdas dos directorios, as alicantinas
eleitoraes, todas as tramas da administração eivada de
vicios antigos, nos quaes o homem de Estado se debate
186
A BICO DE PENNA
como a mosca na teia da aranha perfida, elle só tem um
estimulo — o dever.
Se resolve uma questão cria sempre desaffectos, se
aplaina uma difficuldade dão-n'o por acompadrado, se
consegue um beneficio, accusam-n'o de interessado, se
protella uma resolução affligem-n'o com injurias, se
procede com energia bradam contra o tyranno, se anda
com calma e doçura increpam-n'o de pusillanime.
Deixam-lhe os cofres vazios e exigem que os
abarrote. Se restringe os gastos passa a ser miseravel ; se
desattende, por insufficiencia, aos con-tractos anteriores,
logo lhe assacam os mais infames apodos e não o deixam
em paz um só minuto — os amigos com a amizade, os
inimigos com os ataques.
Sabe o guerreiro o que tem a fazer : o estadista tem
sempre necessidade de modificar os seus planos para
attender ás conveniências. Um é o absoluto conductor da
batalha ; outro ó um instrumento do partido : o primeiro
só tem um fim : vencer ; o segundo precisa attender á
victoria e aos meios de consegui-la fechando, muitas
vezes, os olhos ao saque como fez Caio Mareio dentro
dos muros de Corioles.
Esse que se finou esteve na trincheira, de pé, até á
ultima hora. Já a molestia o minava, já elle sentia os
primeiros crueis symptomas do mal que, antes de o levar,
o torturou penosamente, e lá estava trabalhando em
silencio, em prolongadas vigilias, para recompor o Estado
cuja administração lhe fora confiada.
Quem via o seu trabalho, quando elle o fazia ?
A BICO DE PENNA
187
ninguém. Vêm-n'o todos agora, e applaudem. Elle,
entretanto, dirigia a batalha formidável na qual os
exercitos eram de homens pacificos contra a miseria,
contra a esterilidade. Elle ordenava os semeadores nos
campos, os lenhadores nas florestas, os mineiros nas
minas, os machinistas nas machinas, os faiscadores nos
corregos, a justiça no seu tribunal, a instrucção nas
escolas, a honra e a fortuna nos lares e a integridade nas
lindes do territorio do Estado.
Não viam ou não queriam vêr emquanto elle agia, foi
necessario que, com a quebra do seu corpo, a vista se
alargasse francamente pelos beneficies que elle fizera
para que então o applaudissem e venerassem.
Essas victorias sem brilho são as mais fecundas e esse
que morreu de fadiga, sacrificado pelo dever, foi o
vencedor de um inimigo terrivel — a inercia, porque deu
aos mineiros, povo forte e nobre, mas que parece viver
ainda numa época pastoral, como os hebreus em Ur, a
consciencia da sua força e o incitamento para o progresso
e, mais feliz que o pastor energico do povo de Deus,
suecumbiu na cidade formosa que sonhara para ser o
centro da vida do poderoso e riquissimo Estado, que vive
acabrunhado e pobre dando, entretanto, ao mundo que o
explora, os thesouros do seu ventre inexgotavel. Esse que
foi honesto, trabalhador e leal bem merece que lhe dêm
por mortalha a bandeira da sua terra, porque por ella
morreu heroicamente, abnegadamente e . . . pobre.
E esse heroismo da honra vale bem o da temeridade.
SIM E NÃO
Nestes civilisados tempos, esterilisados por mui
civilisados que são, sem ideal e sem crença, que é a
«fórma» mais nobre e mais alta do ideal, com muita
cultura e muita chateza — porque o que se ganha em
superfície perde-se em elevação — o homem, esse ser
«amante e pensante », perdeu as qualidades que o
tornavam a maravilha maior da criação — um pouco de
divindade dentro de um pouco de argila — e passou a ser
uma obra artificial como as machinas beneficiadoras ou o
garrulo phonographo.
Nos bons tempos d'antanho, tempos simples e
heróicos, quando os anjos, nas horas douradas e calmas
da tarde, nas epocas de aroma e sabor, que eram a da
ílorecencia e a do fruto, encolhendo as azas, vinham
sentar-se sob a vinha dos lares, bebendo com sede
humana a agua fresca pelo gargalo vermelho das urnas
que as moças, como Ra-
190
A BICO DE PENNA
chel, graciosamente lhes offereciam e aceitando a brôa, o
anho e o vinho da refeição frugal dos patriarchas, a vida
era, talvez, mais rude, em compensação a alma era mais
pura e tinha toda a sua força de criação que os tempos
foram consumindo.
O patriarcha era um nomade — se a terra do seu
habitat se lhe tornava ingrata ou se a fonte, com os
calores, ficava em marnota, logo ordenava a partida e,
tomando um bordão, reunindo a sua gente, lá ia, entre os
lentos carros toldados de pelles, onde se acolhiam as
mulheres e as crianças, com um rebanho numeroso a balar
e a mugir na coda da caravana, guiado por pastores, que
eram, ao mesmo tempo, homens de guerra, olhando
attentamente as terras, provando as águas, á escolha de
um sitio de fertilidade e belleza onde estendesse a pelle
das tendas e cravasse os moirões dos curraes.
O « homem» era um ser de vontade, pensava e agia
por si — era o sacerdote e o juiz, o patrono e o’caudél:
officiava e julgava, abençoava e conduzia ao combate. O
altar era um monte de pedras coberto de musgo ; o
tribunal era a soleira da própria casa e havia crença e
havia ordem. Com duzentos bois, uma centena de vaccas,
um lote de ovelhas e rafeiros possantes e, para trazerem
em ordem esse armentio, uns rapagões alentados, o
patriarcha era um rei no deserto e, se siiecedia sahir-lhe ao
encontro algum ras, o senhor de campo e monte, com
muitas lanças, embargando-lhe o passo, bradava á sua
grey.
O pampilho do pastor transformava-se em lança, o
corno de reunir o gado resoava como tuba de
A BICO DE PENNA 191
guerra, e toda a bucólica, perdendo o seu encanto sereno,
mudava-se em epinicio.
E a terra ficava em poder do mais forte como premio
da victoria ; era a prisioneira e os triumphadores, como
não havia vaidade, em vez de levantarem arcos. festivos e
de abalarem o silencio com arengas e apologias
celebrando a batalha, bem conduzida e bem terçada,
recolhiam os despojos, enterravam os mortos e, passando
e repassando o arado pelo solo, que as patas dos ginetes
haviam calcado, semeavam cantando e as festas
triumphaes quem as fazia era a primavera.
Os homens não tinham livros, muito eram os tijolos
cozidos em que gravavam os fastos da raça e as
observações que faziam na terra e no céu ; não tinham
tribunas, não tinham jornaes, não tinham escolas. A
sabedoria era pouca e bastava : saber a epoca de lançar a
semente, a epoca mais favorável ao corte das arvores,
quando convinha mondar, podar, armar um carro, laçar
um touro, aderençar um potro, tosar a ovelha, aguçar um
ferro de lança, cavar um pilão, fiar uma estriga, dobar um
novello, desviar um golpe, vibrar uma funda, triturar as
hervas benéficas, sonhar e cantar os hymnos religiosos,
eis em que consistia todo o saber humano. E os homens
tinham saude e alegria e as mulheres tinham virtude e
belleza — o céu era o mesmo, o mesmo era o sol e as
estrellas brilhavam, talvez mais claras, dentro da noite.
Rolaram seculos e os homens foram inventando e
applicando — e, á medida que inventavam e applicavam,
iam perdendo a energia : a escripta atrophiou a memoria,
a machina atrophiou o musculo,
192
A BICO DE PENNA
o artificio matou a belleza. o sophisma foi batendo o
bom senso, a polvora inutilisou a bravura. A
sciencia reduziu toda a aeção humana a funcções
nervosas e musculares, sangüíneas e lymphaticas,
productos de mais ou de menos bile, de mais ou de
menos phosphoro.
O furor de Ajas, cantado por Homero, podia ser
combatido por um colagogó e a Iliada não existiria.
Hesiodo foi um ingrato cantando as pierides, quando
devia ter enaltecido a massa cinzenta. Em uma caixa
de phosphoros Jonkopings ha mais idéas do que em
todo o Parnaso grego de onde decorreu, como uma
clara e sonora fonte, toda a anthologia. Com a
substancia que gerou o Gorgias, de Platão, os
petizes do nosso tempo accendem cigarros ás mesas
dos botequins e, sobretudo, para confuiicr o mundo e
abastardar a Humanidade, a Palavra domina.
A Palavra — eis tudo, eis o mal grande ; a
Palavra que vôa e que é aguia ou corvo, borboleta
ou mosca, e a Palavra escripta, que é diamante
eterno ou gotta de água ephemera, luz ou brasa,
gloria ou diífamação, epopéa ou mofina.
Em verdade — quaes são os verdadeiros polos
do mundo senão estas duas palavras : sim e não, que
resumem toda a vida ? Estes dois monosyllabos
essenciaes, que respondem a todas as necessidades
da existencia, dispensam a lingua e, em qualquer
gesto, numa contraccão subtil ou num ligeiro aceno
logo se manifestam — basta uma oscillação
A BICO DE PENNA 193
de cabeça para que se aííüme unia veidade ou se
negue uma graça.
No olhar, o sim é brilho ; o não é chanima que arde.
Sim, é fecundo : não é esteril; sim corresponde ao estio ;
não corresponde ao inverno ; sim é vida, não é morte.
Todas as demais palavras não passam de modificações
d'esses monosyllabos — são como os recamos com que o
logista, para dar mais valia e realce aos objectos, costuma
enfeitá-los.
No amor: a mulher que vos unge com a luz
enternecida dos seus olhos, que vos envolve com o halo
dos seus braços, que vos acaricia com o seu mais suave
sorriso, que, pouco a pouco, brandamente, vai inclinando
a cabeça, como uma arvore inclina o seu ramo florido,
para que vos chegue á boca o beijo dos seus lábios, que
faz com todos esses movimentos cheios de meiguice e de
graça ? diz sim. Aquelle que, para responder ao vosso
pedido afflicto, explica que a política vai mal, que as
terras estão esgotadas, que as chuvas são poucas, que ha
falta de braços, que o paiz está á beira de um abysmo, vai
desembrulhando lentamente um involucro de palavras
inúteis dentro do qual ha apenas — não.
A criança sorrindo, estendendo os braços, está a dizer:
sim; amuando está a dizer — não. Na politica — o parcial
do governo, que se levanta com muita gravidade e,
longamente, discorre horas e horas sobre um projecto,
despejando palavras ocas, pouparia um traoalho inutil se
logo dissesse — sim ; o opposicionista verberando,
citando, apostrophan-do, lamentando, não faz mais que
encher um não ! para que retumbe.
194
A BICO DE PENHA
Vede duas obras compactas sobre uma these
controvertida, um autor é materialista, é
espiritualista o outro. Que ha nas mil e tantas
paginas atochadas dos pretenciosos volumes ? sim
em um, no outro o.
Trava-se uma guerra, ferem-se batalhas,
succumbem milhares de homens, arrazam-se
cidades, sossobram navios ... Se quizerdes saber
porque assim se hostilisam as duas nações perguntai
a um philosopho lacônico e elle vos dirá — « Queria
uma o sim, a outra respondeu que não e do sim e do
não veiu a guerra que as maltrata».
Simplificada a vida-em duas palavras sóbrias,
para que ha de o homem gastar tanto tempo com tão
ôca facundia ? Palavras são folhas que cahem, só o
tronco subsiste — ou ó verde e é sim ou é socco e é
não.
Lycurgo exercitava os jovens espartanos, não em
discursos vazios, mas na precisão eloqüente e, essa
raça de austeros silenciosos, que brandiam na guerra
uma espada curta, dizendo como Agis « que era de
tamanho sufficiente para alcançar o inimigo »,
também nas suas respostas só empregavam as
palavras striotamente necessárias : a prolixidade é
um vicio da decadencia.
Assim o homem que se tornou atheu para não
perder tempo em orações, que inventou a escripta
para descançar a memória, que inventou a machina
para poupar o musculo, que inventou a polvora para
alliviar-se do peso das armaduras, que negou o
«ideal» para não sahir do real, onde tine a moeda
que é o encanto da vida, esse adorador fanatico da
inercia que vive a poupar o esforço, não descança
A BICO DE PENNA
195
e, falando ou escrevendo, trabalha mais do que todos os
patriarchas do velho tempo e, não contente com o que a
boca infatigavel jorra, durante as horas do dia, em
discursos, em controvérsias, em palestras, em
maledicencia, em conchavos, em declarações, ainda pôz o
phonographo a pairar, conservando, como embalsamadas,
as proprias vozes dos mortos.
E a razão que allegam os avaros da hora em defeza
d'esse instrumento é a falta de tempo. Não sobra tempo
para leituras, que os minutos são poucos para negocio e
chalreio e assim, emquanto o homem estiver ao balcão
vendendo ou a almoçar á pressa ou a espairecer na
varanda, um phonographo lhe irá servindo, como em
conserva, as noticias do dia, berrando os telegrammas da
ultima hora, os discursos do parlamento, as vendas da
bolsa ; outro lhe exporá as ultimas novidades scientificas;
outro dissertará sobre a nova philosophia, o ultimo,
rangendo, irá vagarosamente narrando as peripécias do
romance em voga. E é isto a civilisação : o culto da
palavra. Ah ! os homens sóbrios do bom tempo ! os
patriarchas das primeiras eras !
Mas, ó plumitivo incoherente e ingrato, que seria de ti
se não fosse a palavra ! Que vens tu fazendo por essas
paginas fora senão desmentindo o teu sermão ? Dá conta
do teu recado com um sim ou com um não.
Se não fosse a palavra, ingrato, onde irias tu buscar
assumpto para tanto? no instituto dos mudos talvez, que foram,
sem duvida, os autores d'es-se falso adagio que diz que « o
silencio é de ouro. » De ouro, pois sim, mas estou certo de que
elles o
198
A BICO DE PENHA
trocariam, de bom gosto, pelo cobre mais azinhavado do calão
mais reles.
Louva a palavra, plumitivo, louva a palavra sonora.
Para gloria da palavra, basta este vocábulo : «Amo !»
cantando docemente na boca duma mulher. Louva a
palavra e pede aos homens que a louvem e, quanto á vida
dos patriarchas, deixa lá : sempre se viaja com mais
facilidade e commodida-de em um wagon de primeira do
que no melhor carro de bois do tempo de Jacob.
Isso de lamentar o tempo . . . words, words, words.
E vês, ingrato ? ainda para remate do teu trabalho
veiu em teu auxilio a palavra.
UM MODELO DE MARIDO
Mieulx est de ris.
RABELAIS.
Lembro-me sempre d'ella e d'ella guardam doce
lembrança, doce e apimentada, por vezes, todos
quantos a conheceram e saborearam, nos famosos e
prolongados jantares do Andarahy, aos sabbados, os
excellentes piteos, cujos segredos lá foram para a
Eternidade com a alma virtuosa que abandonou, por
uma indigestão de pepinos, o corpo anafado da que
se chamava cerimoniosamente D. Bertholeza
Couceiro e na intimidade Totó, sem mais nada.
A excellente senhora, que Deus tenha ! expirou
nos braços do inconsolavel marido numa noite triste
de agosto e as suas ultimas palavras foram ainda de
bondade, recommendando um peru que engordava
para ser servido no próximo jantar, tão tristemente
adiado por motivo tão triste.
Com a morte da admirável matrona cessaram os
jantares e, aos sabbados, os antigos comensaes
198 A BICO DE PENNA
do Andarahy, espalhados pelos hotéis, trincando
bifes corneos, lamentam, com sentimento, aquelle
desastre que os privou da delicia hebdomadária dos
mais louros e cheirosos vatapás que jamais
alastraram terrinas, dos peixes fritos mais deliciosos
que jamais rechinaram em sartans, sobre azeite de
gergelim, das almondegas, dos caranguejos em
cascos, das sopas de ostras, das tortas fofas de
camarões ou de mariscos das . . .
Como eu invejo os santos ! Se lá no assento
ethereo ha uma cozinha, muitos dos bemaventurados
já terão soffrido as dolorosas conseqüências da gula,
porque nenhum, mesmo aquelles sóbrios ascetas que
se contentavam com um gafanhoto ou com uma
secca raiz, resistirá aos acepipes em que era
inimitavel a bôa D. Totó, mestra em temperos.
De todos o que mais sentiu a sua morte foi o
Gouceiro. Ainda hoje o pobre homem, sempre que
se senta á mesa, com o guardanapo tarjado entre as
dobras do pescoço gordo, suspira com tanta angustia
que as folhas tenras da alface voam dos pratos como
sopradas por um rijo vento do outono e, aos
sabbados, ha lagrimas dignas. Quantos cozinheiros,
d'um e d'outro sexo, têm passado por aquella
cozinha tão celebrada no antigo tempo ! Quantos !
Mas os segredos, esses não tornam.
Gouceiro lembrou-se de tomar um medium para
a cozinha e, todas as noites, com muita gravidade,
entre panellas e frigideiras, invocava o espirito da
esposa para que se communicasse com o medium
ditando receitas. Cheguei a acreditar que o viuvo
fizera alguma porque o espirito arranjou uma tal
salada de ovos duros, mariscos, beterraba e espe-
A BICO DE PENNA
199
ciarias que o bom homem quasi rebentou e emmagreceu a
caldo chilro durante uma semana de cama, drogas e dieta.
Contando-me elle o caso eu observei:
Gouceiro amigo, os espíritos são ubiquos e
vêm tudo, não pôde haver segredos para os immateriaes.
Tu és homem e fragil, Couceiro amigo, e
nunca houve no mundo, especialmente nesta patria, que
um sol perverso abrasa, tantas seducções
como agora. Viste algum palmo de rosto e ...
Couceiro levantou-se e roncou espalmando a mão
gorda no peito generoso:
Juro-te que sou puro como uma vestal! Vivo para a
finada — sou tão fiel áquelle tumulo
que . . . nem sei mesmo. Queres que te diga ? . . .
E o meu nedio amigo e amphytrião nos saudosos
tempos esbogalhou os olhos radiados de sangue e,
depois de uma pausa sisuda, disse : Eu sou o mo
delo dos maridos.
Notei que os seus olhos saltados iam-se marejando e
quiz fugir ao assumpto melindroso e commovente ; elle,
porém, insistiu.
Não, agora has de ouvir-me ; quero provar a um
amigo, como tu, que sei cumprir os deveres que a viuvez
impõe. Eu sou um Achilles, entendes ? Em coisas de
virtude sou, todo inteiro, um Achilles, palavra de honra !
Mas . . . has de ter o teu calcanhar, Gouceiro ;
todos temos.
Sim, tenho calcanhar. Mas, que diabo vou eu fazer com
o calcanhar ? Digo-te e juro-te pelas minhas barbas que sou
uma vestal. Não ha dois Gouceiros no mundo; não ha ! A alma
da minha
200
Á BICO BE PENNA
mulher, d'aquella grande amiga, que era também tua
e dos outros, dos ingratos que me abandonaram, vive
nesta casa e governa-a, eu sinto-a. Mas o que tu não
sabes é que os olhos de Bertholeza me acompanham,
elles que são tudo quanto resta do seu corpo que a
terra comeu com uma voracidade incrível. Ah ! que
Bertholeza devia ser saborosa, tanto lidou com
temperos que ficou, sem duvida, saturada e a terra
— como nós, que também somos terra — aprecia o
que é bom.
Quando fui ao cemitério para a exhumação ia
certo de encontrar ainda um resto de carne, d'aquella
carne tão tenra e tão branca ; pois, meu amigo, só vi
ossos, limpos, mais chupados do que os ossinhos das
gallinhas de molho pardo que ella fazia e que eram
uma verdadeira delicia. Ossos e cabellos, nada mais.
Tomei o esqueleto adorado e apertei-o de encontro
ao peito.
Ah ! quem a viu e quem a visse ! nem parecia a
minha, a nossa Bertholeza, que era uma senhora de
peso e medida. Depois de apertar aquelles queridos
ossos encerrei-os em uma urna e trouxe-os para a
minha companhia. Todas as manhans lá ia eu á sala
e, curvando-me, beijava a urna, dizendo : «Bom dia,
Bertholeza». Antes de deitar-me ia desejar-lhe uma
boa noite. Assim vivemos alguns mezes, eu e os
ossos.
Um dia, porém, tive uma idéa, uma idéa que só
podia nascer no espirito de um marido fiel como eu
me prezo de o ser, Eneaixotei os ossos e despachei-os
para Londres com uma carta a Harrison & Brothers.
Mezes depois recebi o resultado da minha
encommenda e vais vê-lo, Couceiro, então,
A BICO DE PENNA
201
tomando a lapella do seu casaco, disse-me : Estás
vendo estes botões ?
Sim, Couceiro, estou vendo.
São de ossos humanos, ossos de Bertholeza.
Os botões do collete, os das calças, os das ceroulas,
os da camisa, os do sobretudo, são da mesma
materia. Os cabos das facas e dos garfos com que
como, o cabo do meu guarda-chuva, o castão da
minha bengala, a piteira em que fumo, o cinzeiro, o
tinteiro, as minhas canetas, o meu porta-cartões, o
cabide em que penduro a minha roupa, as peças do
meu xadrez, tudo, tudo foi feito em Londres, por
Harrison & Brothers, com os ossos da minha sempre
chorada mulher. Olha estes suspensorios ? foram
tecidos com os seus cabellos e os seus dentes estão
todos aqui, menos os postiços.
E Couceiro, abrindo a camisa, mostrou-me sobre
o vello hirsuto e negro do peito, como uns ovinhos
de lagartixa bem aninhados, quatro molares presos a
um fio de ouro.
Eu, pasmado, não dizia palavra : olhava e
admirava.
Que outro homem seria capaz de proceder as
sim, dize, tu que conheces os homens ? Garanto-
te que se mais não fiz foi porque os ossos para mais
não deram. O meu desejo era que elles me fizessem a
casa e os moveis e, se eu tivesse obtido a
pelle macia e alva de Bertholeza, mandaria fazer
camisas e ceroulas, mas que queres ? os ossos eram
poucos e a pelle foi devorada pelos bichos. É as
sim que vivo — sou uma urna. Esta é a memoria
do corpo ; da alma como me hei de esquecer ?
Logo de manhan, quando me trazem o choco-
202
A BICO DE PENNA
late ou o mingáu, suspiro por ella e sempre que faço
alguma refeição lembro-me d’aquelle espirito gentil. Aos
sabbados, então, choro copiosamente. É possivel que a
alma ciumenta se tenha querido vingar algumas vezes,
mas só com ciúme das cozinheiras. Lembro-me que, um
dia, no tempo d'aquella cabocla Sebastiana, gabei, com
enthusiasmo, um peixe de forno, dizendo — « que parecia
preparado por minha defunta mulher». Pois palavras não
etam ditas e já eu engasgava com uma espinha
atravessada na guela. Fiz tudo : virei o prato, engoli
farinha,, invoquei S. Braz, tossi, nada ; foi preciso chamar
um cirurgião. Outra vez foi com um polme de ervilhas,
em verdade maravilhoso ! — louvei-o e fui para a cama
com uma congestão de figado da qual não sei como
escapei. Bertholeza não tem ciúme da Mulher — eu posso
admirar a belleza, o que ella não permitte ó que eu elogie
as cozinheiras. Eis o caso.
Para não ceder ás tentações ando com os ossos, sirvo-
me d'elles para tudo : é com os meus botões que converso
e os botões, como sabes, são ella e, sempre que se vai
gerando em meu espirito alguma idéa menos digna, assim
como os eremitas, sentindo o demonio, levantavam a
cruz, eu esfrego os botões e logo se dissipa o sortilegio e
assim vivo puro e só, sem pensar no peccado que nos
estraga o corpo e põe-nos a alma á boca do inferno.
Outros maridos, menos escrupulosos, contentam-se com o
ligeiro luto de um anno e com algumas missas mandadas
dizer, mais para a sociedade do que pela alma das suas
defuntas; o meu luto aqui está nos
A BICO DE PENNA
203
ossos : trago-os no corpo e uso-os em tudo e as missas
digo-as eu mesmo, á mesa, duas, ás vezes tres por dia,
sempre que como.
A mesa é um altar, já alguém disse — pois é diante
d'esse altar e com as lagrimas dos meus olhos que eu rezo
pedindo a Deus que trate a alma da finada com todo o
carinho da sua misericórdia. E agora sê franco e dize se
ha no mundo outro homem como eu, fiel á esposa apesar
de ser ainda um bom partido e bem disputado ?
Ha ahi uma viuva que me faz ardentes propostas com
os olhos, ainda luminosos, sempre que me encontra.
Estive para corresponder, mas lembrei-me do finado e
disse aos meus botões : «Nada, elle é capaz de fazer-me
alguma lá pelo outro mundo, para vingar-se de eu lhe
haver tomado a mulher...» e recuei. Depois, francamente,
nunca gostei de objectos comprados em segunda mão —
trazem sempre alguma coisa dos primitivos donos. Uma
vez, ainda era viva Bertholeza, comprei uma cama em um
leilão de antigüidades ; pois meu caro, fizemos tudo para
pô-la em estado de servir, não houve meio — á noite, mal
nos deitavamos, sentíamos umas cócegas, depois umas
dentadas e teríamos sido devorados em vida se eu não me
resignasse a passar adiante, com prejuízo, o tal movei
precioso. Com a viuva podia acontecer o mesmo. Não, já
agora levo a minha cruz ao Calvario.
Mas . . . Ha partidos novos, Couceiro, e
excellentes. Tu és um homem conhecido, rico, ainda
forte.
Quarenta e oito feitos.
Então ?
204
A BICO DE PENNA
Não quero. Lembro-me sempre do meu avô.
Que houve com o teu avô ?
Eu tive duas avós, uma direita em tudo, outra
torta, também em tudo. Meu avô, já era avô tres
vezes, meu e dos meus irmãos, quando, perdendo
minha avó, casou com a outra que podia ser sua neta
e o resultado foi apparecer um tio que escandalisou
a familia.
Porque ?
—Ora .. . porque appareceu durante a ausencia
do meu avô. Parece que a senhora minha avó quiz
fazer uma surpreza ao velho. E fez.
E elle?
Elle era um idiota (salvo seja) e reconheceu a
criança, até achou nella traços da familia. No anno
seguinte veiu uma tia . . . e ainda depois da morte de
meu avô, um anno depois, nasceu-lhe um filho, o
caçula. Hão, eu fico com os meus botões e com os
outros ossos e, como, tendo a mesa farta e bem
temperada, sou um homem feliz, contento-me com
as cozinheiras.
EMMANUEL
Foi em Belém, no Pará, em julho de 1899, que o
vi pela ultima vez em companhia da formosissima
Istella Montagna, uma mulher alta e branca, de
neve, em cuja alvura realçava, em contraste, o
negror dos olhos e dos cabellos.
Não era uma grande artista, sentia-se bem a sua
fraqueza ao lado do possante interpretre de
Shakespeare, era uma divina carne, uma flor de
volupia, um estimulante lubrico dos sentidos. O seu
porte airoso e, ao mesmo tempo, flexivel, dava-lhe o
aspecto delicado de um grande lirio quando ella
apparecia, como no Hamlet, toda branca, na sua
candida túnica, os olhos parados, desfolhando mal-
me-queres e caminhando, como uma somnambula,
para a morte nas águas.
Emmanuel adorava-a com a fúria ciumenta de
italiano que sabe amar e admirar. Era preciso vê-lo
no Othello, na scena da camara : avançava como
206
A BICO DE PENNA
um abutre para o ninho da pomba e como que todas as
desconfianças sopitadas explodiam naquelle momento
misturadas com o seu amor ardente e sensual.
Como elle admirava a filha de Brabantio, como sentia
a mulher cuja belleza ia fanar-se na morte e o arrojo com
que arremettia era bem o de um impulsivo, o de um
homem que sabia, ao certo, que se não executasse, de
prompto, a sua resolução, fra-quearia diante da formosura
vencedora.
E era bem isto, o grande trágico : um amoroso e um
impulsivo. Na tragédia, quem examinasse detidamente a
personalidade do actor, acharia estas duas qualidades — a
vehemencia no amar e a violencia na vingança.
No Rei Lear, por exemplo, que era o seu melhor
trabalho, no qual, até hoje, ninguém o excedeu, quando
não era um violento, um homem de rebentina, era um
domador da fúria. Na scena da divisão do reino o velho
mal se continha no throno at-tendendo á direita, á
esquerda, irrequieto, agitado, alegrando-se ruidosamente
com as respostas de Goneril e de Begana e insurgindo-se,
aos berros, com a ingênua simplicidade eloqüente de
Gordelia.
A sua sahida era como uma rajada de borrasca — a
corte seguia-o num torvelinho como se elle a fosse
arrastando impetuosamente. Era bem o homem que
encarnava a personagem, a «alma » do poeta adaptava-se
perfeitamente ao individuo que a carregava.
Nas scenas subsequentes d'ease doloroso poema que
Florence O'Brien denominou, com tanta propriedade :
uma noite de tempestade (a stormy
A BICO DE PENNA
207
night) era sempre o impulsivo que apparecia até o
final em que irrompia o grande amoroso, que se
abrandava sentindo a presença d'aquella filha tão
ingratamente repellida do seu coração e que, quando
a encontrava assassinada, feroz na sublimidade do
sentimento, como o leão que arrasta para a floresta a
companheira morta, vinha trazendo o cadaver aos
arrancos, porque já lhe negavam auxilio os braços
debeis, aos gritos surdos que eram verdadeiros uivos
e, repousando a filha, hirta e má, ajoelhava-se perto,
numa agitação de agonia, chamando-a, apalpando-a,
querendo vêr-lhe os olhos vitreos, sem poder
comprehender aquella catastrophe, até que,
desesperado, desenganado, não podendo supportar a
dôr ia, aos poucos, pendendo e cahia morto sobre o
corpo amado.
Emmanuel era sublime em todas as scenas d'essa
estupenda agonia, porque elía lhe dava ensejo de
mostrar as duas forças da sua alma elastica : a força
de arremesso e a força de retracção — a violencia e
o amor. Ninguém definiu melhor esse typo do velho
rei bretão do que Victor Hugo. Não o esculpiu num
bloco, talhou-o numa pedreira virgem. Depois de
haver descripto Gordelia, diz o poeta gigante na sua
linguagem gigantesca :
«Et quelle figure que le père ! quelie cariatide !
C'est l'homme courbé. Il ne fait que changer de
fardeaux, toujours plus lourds. Plus le vieillard
faiblit, plus le poids augmente. Il vit sous la
surcharge. Il porte d'abord 1'empire, puis
1'ingratitude, puis 1'isolement, puis le désespoir,
puis la faim et la soif, puis la folie, puis toute la
nature. Les nuées viennent sur sa tête, les forêts
1'accablent
208
A BICO DE PENNA
d'ombre, rouragan s'abat sur ea rmque, Forage
piomb Bon manteau, Ia pluie pese sur ses épaules, il
marche plié et hagard, comme s'il avait les deux
genoux de la nuit sur son dos ...»
Ninguém encarnou melhor esse typo, sempre
colossal e barbaro, do que Emmanuel, dando-nos
perfeita essa espécie monstruosa da paleontologia do
soffrimento e do amor.
Foi nessa tragédia que o vi em toda a sua
grandeza, foi nella que o senti e que o admirei com
mais enthusiasmo e mais lagrimas, e mais tarde, em
um banquete offerecido a Bodolpho Bernardelli, no
salão theatro S. Pedro, conversando com o grande
trágico que, então, se me revelou um erudito,
comprehendi que elle não só representava aquellas
scenas como as soffria todas, porque não as com-
mentou como grandezas litterarias, discorreu sobre
ellas sentindo, com acabrunhamentos e ansias, como
se fosse contando, em dolorosa confidencia, os
martyrios da sua própria vida, os transes agudos da
sua atormentada existência. E não esqueço o ar
resignado com que elle lançou toda a culpa sobre o
desventurado : «Eh ! um imprudente ! . . .» E,
encolhendo os hombros, ficou de olhos no chão,
esmagando nervosamente entre os dedos pequeninas
migas que encontrava na toalha.
Vi outros artistas interpretando esse tremendo
papel, nenhum, porém, conseguiu dar-me a
verdadeira impressão da realidade, da vida que eu
obtinha de Emmanuel e mais do que ao seu talento
attribuo á sua constituição moral aquella
maravilhosa «realisação» da epopeia sinistra do
poeta maximo.
A BICO DE PENNÁ
209
Emmanuel era admiravel no Othello, era revoltante
no Shylock, era amoroso no Romeu, mas em todos esses
papeis sentia-se o actor. No Rei Lear via-se a criação, era
a prpria figura ancestral d'a-quelle, que, conforme rezam
as chronicas, «no anno do mundo 3105, sendo Joás Eei de
Jerusalém, subiu ao throno da Bretanha, succedendo a
Bal-dud, principe de grande poder e de muita sabedoria e
bondade. Leir chamava-se e, governando o seu povo com
muita cordura, criou para o seu reino uma epoca de
prosperidades deixando, entre outros benefícios, a cidade
forte de Caeirler, fundada pelo seu braço».
Ho theatro moderno, Emmanuel sentia-se acanhado,
opprimido — a sua voz, que dialogava, no escampo, com o
trovão, soava estrondosamente nos salões, o seu proprio
corpo como que se não sentia ageitado no trajo
contemporaneo — os seus gestos eram largos, os seus
movimentos rispidos. Imaginai um d'aquelles esforçados
guerreiros que, como Oiiveiro ou Guido, sahiam a pelejar
cobertos de aço e manejando armas que dois dos nossos
coevos nem sequer alçariam, despindo o aceiro pesado e
vergando a casaca cerimoniosa. Toda a altivez
desappareceria e, em vez de airoso e galhardo, o homem
atorreado apparecer-nos-ia ridículo, atirando as pernas
leves, abanando com os braços, desiquilibrado e timido, a
servir de chacota a quantos o vissem. Não era ridículo o
actor porque suppria com o talento a falta de disposição,
mas o artificio saltava aos olhos, o esforço era por demais
visivel e o vexame tornava-o quasi humilde e lá ia elle
procurando um plano inferior, como envergo-
210 A BICO DE PENNA
nhado de mostrar-se com costumes que não eram
seus.
Conhecendo profundamente os antigos, falava
dos gregos com verdadeiro enthusiasmo e, certa vez,
no seu camarim, conversando-se sobre Sophocles,
Emmanuel levantou-se e, descrevendo o typo de
Edipo, esse grande avô de Lear, a traçar largamente
as scenas, pôz-se a murmurar o grande monólogo do
desventurado. Ao fim, com um movimento
descorçoado, juntou as mãos e, de olhos no céu,
suspirou : « Não é possivel.. . Não é possivel... »
Eepresentava-se nessa noite O Grande Industrial do
incomparavel senhor Ohnet e o contra-regra veiu
preveni-lo. Emmanuel deu de hombros e,
lentamente, como se fosse a um sacrifício, lá
caminhou vergado para a scena.
Era um antigo, educado á antiga. O seu mesmo
porte, altaneiro e robusto, inculcava-o um homem
de rija tempera, um homem da idade forte. Novelli é
incontestavelmente mais correcto, falta-lhe, porém,
a fougue de Emmanuel, aquelle impeto indomavel
que o arrojava na acção transformando-o, de
simples interprete, em personagem viva.
Nos ultimos tempos a vida do grande actor ia
cahindo nas peripecias do Romance Comico, de
Scarron. Em Manáos, disseram-me, viveu
enclausurado em uma cazinha modesta onde
escondia, com ciume, o seu thesouro de amor. Aos
que o iam visitar elle apparecia como Shyloek :
primeiro entreabrindo desconfiadamente a janella,
depois franqueando a porta e acolhendo, a contra-
gosto, na sua sala onde tudo era desordem. A mulher
raramente apparecia e elle falava, sorria, lançando,
de
v
A BICO DE PENNA
211
espaço a espaço, um rápido olhar á porta como para
fiscalisar a prisioneira.
Era um sensual, dirão ; não sei — sempre o
conheci assim, acompanhado por uma mulher
formosa que mais se impunha pela côr da pelle, pelo
brilho dos olhos, pela massa sombria de cabellos,
pelas linhas ondulantes do corpo do que pelo talento.
À primeira — Virgínia Reiter, abandonou-o,
segundo a versão que correu, por não poder suppor-
tar a sua cólera ciumenta ; houve outra, que também
o repelliu — a ultima foi a alvissima Nella
Montagna e essa, se os de Manáos não exageravam
quando descreviam a sua vida atribulada, esteve,
algumas vezes, ameaçada de representar ao vivo a
scena cruel da camara de Desdemona. Não sei se o
acompanhou até á ultima hora ou se, como as outras,
para não acabar ás mãos do terrivel ciumento,
deixou no seu lugar uma grande saudade.
Lembro-me de a ter visto, uma vez, no Pará.
Emmanuel magoara um pé e soffria ; fui visitá-lo.
Uma criada recebeu-me introduzindo-me em uma
sala que estava muito longe de ser um primor de
gosto. Ali fiquei relendo velhos jornaes que se acha-
vam sobre uma mesa, onde era tanta a poeira que se
poderia nella semear. Por fim ouvi passos lentos,
arrastados e Emmanuel appareceu-me de robe de
chambre, barba crescida, os cabellos arrepella-dos,
coxeando, amparando-se ao hombro da formosa
mulher, mais branca do que nunca. Não sei porque,
lembrei-me do cego Edipo seguindo vagarosamente,
soffredoramente levado por Antigone.
Ali estive algum tempo a ouvir o grande artista
que, então, andava com um desejo forte de repre-
212
A BICO DE PENNA
sentar Macbeth. «Se voltar ao Brasil comprometto-
me a trazê-la», disse-me referindo-se á tragedia
macabra e amorosa, festejando o rosto alvo e macio
da companheira, ameigou-a : E tu farás a Lady . ..
Tem as mãos lindas, não acha ? E, com a pequenina
mão marmórea pousada na sua mão de athleta,
esperava a minha opinião. Eu affirmei: — que, em
verdade, era maravilhosa e ousei levantar os olhos
para os olhos negros. Creio que Emmanuel rugiu.
Felizmente elle não podia correr e foi por isso que a
tanto me atrevi.
Não poude o artista realisar a promessa
magnifica confirmada no dia em que d'elle me
despedi para subir as grandes águas, em direcção ao
Amazonas, depois de o ter ouvido, ainda uma vez, a
ultima, não em scena, mas no salão de um club,
onde elle disse, como sabia dizer, o canto v do
Inferno, de Dante.
Descança, grande espirito, repousa nessa região
mysteriosa de onde viajor algum logrou jamais
voltar e se lá, cemo conjecturou, em hora de
saudade, o grande épico, se consente memoria d'esta
vida, certo estarás repassando o monologo sinistro
do principe sombrio e vendo o que nelle existe de
verdade : « Morrer . . . dormir . . . dormir ! sonhar
talvez !. . . »
E com que sonharás tu, alma que fôste o espelho
de outras almas ? Com que sonharás tu ? com a tua
Arte? com a Patria azul ? com as terras que
percorreste ? com todos os povos que viste ? . . .
Ah! não, sonharás com cilas: com Ophelia, com
Desdemona, com Portia, com a suave Cordelia, não
as abstracções do poeta, mas as lindas mulheres
A BICO DE PENNA
213
que as fizeram viver a teu lado, quando conspiravas
contra a infâmia rebuçado na velha capa de Hamlet,
quando rugias sob a couraça do mouro, quando
exigias a divida de carne, sentado a um canto do
tribunal, afiando voluptuosamente a faca na sola do
velho papuz, quando, coroado de urzes, com um
junco por sceptro e um bobo por companhia,
affrontavas a tormenta no descampado. Sonharás
com ellas e, se sonhares, pobre espirito amoroso,
mísero espirito ciumento, como te ha de ser dolorosa
a bemaventurança com as reminiscencias d'esses
amores.
LUAR
A tarde ia muito fresca, muito doce, toda azul,
sem névoas. Já o sol mergulhara por traz dos cerros
que resplandeciam como zimborios e cuspides d'uma
rica cidade de lenda, toda d'ouro puro, sob velarios
tendidos de purpuras attalioas e os últimos raios
solares abriam-se em leque flammejante sobre as
lombadas accesas.
As arvores, d'um desenho forte, em nitidos
relevos, realçando todos os detalhes, pareciam
cravadas na lamina esbraseada do occaso, como
bordadas a retroz negro em tela de seda cham-
marreada. Um silencio do êxtase ia adormecendo o
campo raso e extenso que se esbatia em linhas in-
decisas, nas quaes, a espaços, resaltava, em tom mais
claro, o sapé d'uma choça com o terreiro aberto em
meio do pomar, como um resto de luz na penumbra
serena do crepusculo.
A estrada direita, alvacenta, desapparecia no
216 A BICO DE PENNA
bambual que vergava em movimentos demorados,
afflictivos, d'ansia e por ella tardo, tristonho, cabeça
baixa, as mãos juntas d'encontro ao peito, vinha
vindo um negro.
Á varanda, reverdecida de ipoméas, chegava, na
aragem, o cheiro doce das açucenas que abriam ; os
grillos começavam o seu canto nas hervas. Era a
hora das juritys : quem fosse ao açude havia de vê-
las á beira d'agua, trefegas, esvoaçando assustadiças
com turturinos doridos.
Empallidecia. Os cerros tornavam-se escuros,
perdiam a côr dourada e uma nevoa fina, rala, subia
da terra, envolvendo-os. Longe, num canto do pasto
onde frondejavam paineiras altas, o gado mugia
deitado ou esfregando-se voluptuosamente pelos
troncos. Borboletas nocturnas vinham vindo da
matta pesadamente, em vôo incerto, as azas bambas,
atordoadas, como se houvessem acordado, nuvens
de mosquitos esfarinhavam-se no ar. O céu tornava-
se violeta, num esmaecido e lustroso tom de
porcellana antiga. Estrellas piscavam, aqui, ali,
dispersas
Em casa, como se o poderoso mysticismo da hora
contivesse as almas, todos guardavam silencio, as
próprias crianças, reunidas a um canto da sala,
brincavam baixinho, cochichando e o velho Estevão,
com a sua apiançada dyspnéa de asthmatico, estirado
na cadeira, braças abandonados, olhos entre-
cerrados, deixava-se afagar, com volúpia, pelo ar
puro e fresco que entrava, ás bafagens, como em
halitos regulares.
Naquelle silencio religioso um som triste
permanecia insistente como zumbido lugubre que
im-
A BICO DE PENNA
217
pressionava — vinha do lado da estrada, mas os
meus olhos estavam retidos na contemplação da
matta que negrejava alta, dominando a collina, com
as suas grandes arvores cerradas e immoveis.
A lua nascia cedo e era de lá que cila devia surgir
como um grande pássaro que ali tivesse o seu ninho
macio e sahisse, pela hora da noite, remontando
silenciosamente aos ares, todo branco na escuridão
ferruginea. Morcegos esvoaçavam aos trissos
rispidos, passavam d'esfusio, confundindo-se com as
ultimas andorinhas.
O velho Estevão queixou-se do frio, pediu que
fechassem a porta e logo poz-se a tossir. Deixei-me
estar. Olhava a matta soberba que era um
empastamento negro no fundo esmaecido do céu
vesperal. Mas o som triste attrahiu-me. Voltei-me
para o lado da estrada que amarellecia entre as duas
bandas do campo e olhava quando ouvi a voz
arquejante do Estevão : «Ahi vem o poeta !»
ífa collina accendiam-se as casas dos colonos. O
céu, sobre a matta, esclarecia, ficava d'uma côr
melancolica e no pasto, longe, scintillavam
vagalumes como se homens andassem por ali
fumando, apparecendo, jdesapparecendo, escondidos
pelas moitas negras.
O som vinha vindo, cada vez mais soturno. Um
raio de luz amarella estendeu-se na varanda e uma
voz saudou : « Bôa noite !». Outras vozes
responderam e houve um alarido alegre de crianças.
A natureza, passada a transição do crepusculo,
parecia acordar, transformada para vida mais calma.
A Luz androgyna voltava para a terra o seu flanço
feminino — era a hora criadora, a hora ma-
218
A BICO DE PENNA
ternal da lua, hora silente e de amor, hora de iniciação. O
meu espirito perdeu-se em sonhos, reminiscencias de
leituras affluiram-me á memoria — eras velhas da
Humanidade, mysterios do culto astral, scenas do rito
pagão, tão cheio de encantos.
Erqui os olhos. A matta começava a branquear como
se um véu fino viesse baixando de leve sobre as frondes,
fluctuando, tênue e solto, entre os galhos. Eeappareciam,
mais negros, os contornos do arvoredo, destacavam-se os
altos e sobranceiros jequiti-bás e, d'olhos fitos,
hypnotisado pela magia d'a-quella solemnidade extatica,
eu olhava.
A luz infiltrava o seu esplendor na densidão florestal ;
appareciam clarões alvissimos. Lembrei-me, então, dos
mystas de Orphêu, todos de alvas tunicas, com harpas
soantes, coroados d'hera, caminhando maciamente entre
os fortes carvalhos da Thessalia divina, graves,
silenciosos, seguindo os passos do grande iniciado
delphico para o valle feliz e aromal do Tempé.
A suggestão poderosa da reminiscencia trouxe a
illusão completa. Era o paganismo poético que eu revivia
naquelle suave minuto rápido de sonho. Diana evocava
em minh'alma o seu culto. A Lua, antiga e fiel
companheira das peregrinações e dos amores humanos, a
Lua dos thracios selvagens, a triplice Hecate
sanguinolenta empolgava-me como se o seu poderoso
philtro se fosso espalhando pelo sangue das minhas veias,
fazendo-me passar, como a natureza, numa transição
suavissima, da grande Luz das idéas novas para o frio
pallor dos ideaes primitivos.
Eu ali estava com o mesmo enlevado respeito e
A BICO DE PENNA
219
o mesmo encantamento com que, na rocha escura e
escalvada da agreste Samaria, o pastor emorita do
tempo de Yokanan e de Jesus, vendo o primeiro
clarão do astro nocturno, ficava de pé, com o queixo
na volta do cajado nodoso, entre as cabras do seu fato
e, ao ascender da lua no céu livre e pallido, bradava
atroadoramente como por uma buzina : « Eschmún !
Eschmún !» acenando com a grossa e pesada lan de
ovelha que lhe servia de agasalho na caverna fragosa.
Astarté dos phenicios, branca, celestial amiga dos
navegadores . ..
Eu estava assim enlevado quando o som soturno
subiu de perto. Um vulto caminhava rente com a
varanda : era Terencio, velho africano que ali estava
tocando o seu urucungo. Ás vezes sapateava
resmungando e lá ia d'olhos no céu.
Era o «mina», o homem da selva negra, que
festejava ritualmente o astro contemplativo ; era o
barbaro que celebrava, á sua maneira, o culto da
natureza luminosa como, talvez, ainda celebrem nos
mattos bravos ou no terreiro das aringas os seus
irmãos africanos. Calou-se de repente e houve um
silencio maior e, sobre as arvores, a lua immensa
surgiu, alastrando a campina vasta de claridade. . De
repente, Ohristina, abrindo a porta, sahiu á varanda
entre as crianças que saltavam e riam e, levantando
nos braços o pequenino Carlos, que ria gostosamente
derreando-se, mostrou-o á grande lua serena :
— Olha lá em cima, meu filho ! olha ...!
E, sacudindo-o, poz-se a cantarolar:
220
A BICO DE PENNA
Lua, luar
Tomai este menino
E ajudai-me a criar ...
As crianças, aos saltos, com as eamisolinhas
tufadas, repetiram :
Lua, luar . ..
Por fim Christina, em frenesi amoroso, apertou o
filhinho nos braços e, beijando-o com voracidade,
sacudindo-o, agarrado ao collo, lá foi com elle, a
correr. As crianças ficaram brincando e o velho
negro, sentado no ultimo degrau da escada, voltou
ao seu urucungo e ao seu canto e eu deixei-me estar
olhando, olhando e, como eu, no terreiro, uma
mulher, de branco, olhava o céu e a lua — alguma
colona talvez . . . que pediria ella ?
Quando deixarão de atravessar as almas
entristecidas esses queridos espectros das primeiras
crenças !. . .
ARTE
Acompanhai um grupo de homens a uma galeria
de pintura, entrai com elle, tanto que chegardes ao
salão logo o vereis dispersar-se buscando cada qual,
não a pura emoção esthetica, mas a representação de
uma «realidade » conhecida. Não é o instincto do
Bello que os conduz, é o instincto da Critica.
Um, que foi militar, mas quo nunca
desembainhou a espada, senão em vesperas de
revista para esfregar a lamina com uma camurça,
detem-se, muito grave, de olhos apertados, em frente
de uma « batalha», commentando, com a sciencia
dum estrategico, a posição do exercito, as attitudes
das figuras : explicando os diversos apetrechos
bellicos, analysando a expressão de cada um dos
combatentes.
Outro, que viajou commodamente em um
paquete do Lloyd Bremen, estaca diante de uma
«ma-
222
A BICO DE PENNA
rinha», a comparar o navio que veleja a todo o panno por
um vasto e roleiro mar, cortando o quadro em diagonal,
como para mostrar o flanco no qual a onda se acapella,
com o outro em que fez a travessia e recorda calado
aquelles dias, aquellas noites de viagem, vendo na tela
uma referencia ao passado feita com o propósito de
despertar reminiscencias boas.
Outro, com as mãos nos joelhos, fica acocorado a
olhar uma natureza morta: perdizes e lebres. O homem é
caçador e busca nos animais o tiro apenas. Mais adiante,
certo cavalheiro, de ar sizudo e oculos de grossas lentes, o
sobrecenho carregado, fita umas lindas arvores — está a
classificá-las, descobre-lhes as famílias, como que lhes
fala, porque, emfim, na sua qualidade de botanico, é quasi
um intimo.
Mais longe, um saloio rebarbativo coca o queixo e,
risonho, confessa que — «repolhos d'aquelle tamanho
nunca os teve na sua horta » e toda a sala murmura
approvando, criticando. Só, diante do uma paizagem
mystica — um trecho de campo á hora crepuscular sobre
um fundo violete de colunas nubladas — um rapaz, por
vezes eleva os olhos como em extase, torna depois com
elles ao assum-pto, eleva-os de novo, um instante,
gosando introspectivamente a visão ou tirando da
natureza exterior, material, a mesma essencia subjectiva,
o que ha de suggestivo, de divinamente poético em toda a
realidade. Esse é o unico que gosa, os mais olham,
comparam as simples representações de factos, de coisas
e de aspectos.
A verdadeira Arte é desinteressada como o ver-
A BICO DE PENNA
223
dadeiro amor e procura na natureza não o que ella tem de
útil, mas o que ella tem de Bello — d'ahi
essa constante tentativa dos artistas para alcançarem o
que se convencionou chamar o Ideal, que ó para a Arte o
que Maya é para a mythologia hindu — a suave, a eterna
illusão.
A poesia que é, afinal, a alma de toda a Arte —
melodia na musica, emoção na pintura, expressão na
esculptura, symbolismo na architectura, graça na dança, é
uma idyosincrasia e, por isto mesmo, variavel. Ha uma só
poesia, mas os meios de representação multiplicam-se —
não ha aspectos, lia impressões.
A poesia de Hesiodo differe essencialmente da poesia
de Barbier, como a do Dante diverge da de Lamartine,
todavia ninguém ousará negar ao autor dos lambos e ao
poeta sentimental da Queda de um anjo o sentimento
lyrico, que é a fonte da verdadeira Poesia.
Se compararmos uma tela de Fra Angélico com uma
fantasia de Callot acharemos em ambas a mesma essencia
poetica, a interpretação é feita, porém, de accordo com a
personalidade de cada um. O motivo dorico de um coro
antigo o a Adelaide de Be-ethoven, uma canção de
galiongis do Bosphoro e o Adeus ao cysne do Lohengrin,
são variações diffe-rentes dos mesmos sons. A escala é
uma só.
O que varia substancialmente é a fórma, a essencia é
immutavel; para senti-la, porém, é necessário não ficar
superficialmente na representação, mas descer á intenção.
Vêr não é olhar, é comprehender : é sentir com os olhos.
O artista fiel não deve imaginar a natureza,
224
A BICO DE EENNA
deve senti-la. Ruskin, o grande revolucionário da Arte
inglesa, pensava assim : «Para que mentir, se a realidade é
admiravel ? » Na esthetica ruski-niana tudo é Bello. O
«Bello é a assignatura de Deus nas suas obras ».
A belleza é caprichosa. Para transformar toda uma
paizagem basta um raio de sol e o mesmo trecho de
bosque, visto em horas differentes póde, na tela, com a
poesia própria dos momentos — porque cada hora tem a
sua expressão — dar impressões diversas, interpretado
por artistas de genio.
A côr é sempre um reflexo da luz e não a realidade da
visão ; a palheta é um relógio e os pincéis variam como os
ponteiros seguindo o esplendor ou as sombras.
A luz de um quadro ó sempre motivo de controversia.
Os que não sabem vêr revoltam-se indignados contra
certas ousadias — um fundo de serras côr de rosa, uma
agua arroxeada, certo tom violete escorrendo pelo tronco
rugoso de velha arvore, uma nuvem coruscando no
occaso como lingua de fogo, a nevoa azul deixando vêr,
em transparência suave, a natureza que adormece ; perfis
de choças, rochedos esbatidos, bosques que se confundem
em uma unica mancha d'um tom cinereo-escuro, e lá ao
fundo, destacando-se vivamente, aguda e branca, uma
torre fina.
Essas temerárias ousadias ferem a visão commum e
provocam protestos : «Não ha taes cores, montes côr de
rosa, aguas como feitas de violetas diluidas, nuvens de
fogo, ares azues, absurdo, erro, asneira !» E, por mais que
o artista affirme que viu aquelles aspectos, que copiou
fielmente aquel-
A BICO DE PENNA
225
les effeitos de luz, a revolta continua, simplesmente
porque o critico não teve a fortuna de admirar, na
realidade, aquellas magnificencias que lhe parecem
exageradas, como se a Arte pudesse exceder em belleza a
natureza.
O que os olhos não vêem, o espirito não pode
compreender, affirmam os intransigentes ; entretanto,
aceitam, sem discutir, todas as affirmações da Sciencia. O
mar que os nossos olhos vêem é uma verde planície e
ninguém hesita em aceitar a sua curvatura ; os astros que
a nossa vista alcança são pequenos pontos luminosos e
não ha quem nelles não veja outros tantos mundos. Uma
refracção na tela á absurda, um poente de ouro é fantasia
e a analyse do espectro é uma verdade que todos acatam
porque traz o prestigio da Sciencia.
Toda a obra de Arte que commove é verdadeira,
porque só a verdade impressiona e suggere, assim, pois,
faça-se a critica com a emoção, não com a preoecupação.
Ninguém analysa o sol que atravessa os escassilhos
da folhagem, nenhum critico ousará achar escandaloso o
verdigal dos fetos na orla bronze-negra d'uma floresta
nem se dirá que uma garça de neve pousada em uma boia
escura foi um arranjo da natureza. Entretanto, taes
motivos, num quadro, fariam logo a critica vociferar
contra o convencionalismo. Em arte só ha um fim — é o
Bello, e quem o attinge, impõe-se.
Todos os processos, todas as escolas dirigem-se para
a mesma conquista da verdade esthetica. Que importa que
o artista tenha uma das três preoccupações: da côr, da luz
ou da linha ? Vejamos se
226
A BICO DE PENNA
satisfaz na realisação, se nos transmitte o seu «as-
sumpto», se nos faz sentir emoção, que ó o fim
essencial da obra de arte.
Seja a maneira adoptada a de Perugino ou a do
Caravajo, traga a suavidade de Fra Angélico ou as
sombras carregadas do Espagnoletto ou seja o
assumpto de pura idealisação : uma virgem aerea
entre lirios esguios fluctuando em brumas ceruleas,
fugindo e deixando um rastro de luz fina no
caminho percorrido, mãos postas, olhos extasiados,
uma aureola a illuminar-lhe a cabeça, pequena como
a das figuras quasi fluidas dos preraphaelitas.
Não entremos a desfazer em analyse o trabalho,
pedindo o claro escuro, diluindo as sombras ou
reclamando proporções para as flores, transparência
para as aguas, musculos fortes para a figura —
contentemo-nos com a impressão.
Essa pintura dos preraphaelitas, como a musica
de Wagner, é uma «ideação » — ambas são falsas
para os que não admittem a intervenção duma arte
no dominio de outra, porque, dizem elles, julgam
poder dispensar a palavra — impondo-se como
expressivos poemas de côr e de som. Eu sou dos que
não indagam se a invasão é admissível — preoccupo-
me apenas com a emoção que me causa e,
interpretando, goso e gosando satisfaço-me.
A proposito da exposição do artista brasileiro
Aurélio de Figueiredo, que foi, durante alguns dias,
hospede de Campinas, muito se discutiu a nova
maneira que vai avassalando os velhos processos da
pintura. Entre os 38 quadros expostos no salão do
Centro de Sáeneias, Letras e Artes, dez filiam-se á
luz — são quadros de esplendor — em todos el-
A BICO DE PENNA
227
les brilha o sol, em uns com o rigor da manhan, em
outros com a saudade crepuscular e essa luz farta
derrama-se esplendidamente pelas tolas,
transfigurando a paizagem que, olhada de repente,
oífus-ca, mas contemplada, sentida, expondo todos
os seus detalhes, transmitte o sentimento que nunca
mais nos deixa e que fica no espirito, forte, eterno,
como a «idéa » de um poema ou o « som d'uma voz
adorada», ou, como diz melancolicamente o poeta
saturnino :
Vinflexion des voix chéres qui se semi íties.
Diante de um dos quadros intitulado Tarde
fluminense disse alguém, com sinceridade :
Sim, eu sinto bem a hora, sinto o tramonto do
sol, que deixa um resto de luz rosea nas montanhas,
vejo que é a tarde, mas ... não comprehendo essa
côr. Acho tudo bonito, mas não percebo ; não sou
capaz de exprimir o que sinto. Nunca vi uma
montanha côr de rosa.
Mas já procurou vêr uma montanha á hora do
oceaso, com os restos da luz que se vão diluindo em
sombra ?
Não. Sinto a tarde, isso sinto . . .
E quantas vezes terá o senhor detido o andar
olhando um céu afogueado, arvores polvilhadas de
ouro, aguas lampejando como lâminas de prata,
lombos de rocha faiscando e depois tudo ar roxeado...
?
Sim, sim.
Então ? Se visse isso rnosmo em um quadro
que diria ?
228
A BICO DE PENNA
— Não sei.
Esse «não sei . . . » diz tudo,
Nessa nova «maneira» do artista ha o triumpho
esplendido da luz. A natureza é clara e é justamente essa
alacridade que parece defeito, o que nós condemnamos é
justamente a verdade — ó o sol que veste de purpura os
rochedos, que chammeja nas nuvens, que recena os
arbustos, que scintilla nas aguas e que polvilha de bruma
dourada os ares finos. Os nossos olhos como que não
sentem a impressão da arte, os quadros são como os
postigos e o que vemos entre a moldura, como na
abertura d'uma janella, é a propria natureza luminosa — é
a manhan, é o meio-dia, é a tarde. É a luz, emfim, em
todos os seus aspectos, a côr em todos os seus matizes.
E a falta dos tons fortes, os toques pastosos, as
manchas largas á espátula, as tintas superpostas, toda essa
grossa placagem que dá ao quadro a rugosidade áspera de
cascas esborcinadas, é substituída pela suavidade
harmônica dos esbatidos, pelos contrastes que não ferem,
como não ferem na natureza, pela doçura que ha em toda
a verdade, quer ella seja uma flor, quer seja um penhasco
anfractuoso e nú.
Demais o que ha nessa pintura luminosa, que logo
impressiona, é a poesia das coisas que se espalha de todas
aquellas telas como o perfume se evola de um ramo de
flores — com a naturalidade de uma respiração.
A Arte não é a copia servil, é o sentimento ou a
adoração da Natureza, como disse Ruskin. A obra de Arte
não é bella por isto ou por aquillo, é
A BICO DE PENNA
229
bella porque é bella. As regras são apenas caminhos
e que nos importa que o artista tenha seguido por
uma trilha por elle mesmo aberta se chega ao ponto
em que se acham os mestres ?
Em Arte só ha um processo mau — é o do
trivialismo, e infelizmente é esse o que mais
admiradores tem.
O POETA
Os criticos de profissão devem estar afiando os
ferros para a autopsia do gigante afim de que o
mundo, que estremeceu abalado com a queda do
colosso, possa conhecer o segredo da força que
impulsionava aquella formidável figura epica que,
durante tanto tempo, fazendo soar uma lyra estranha,
maravilhosa pelo prestigio, como as de Orphêu e de
Amphião, moveu, a seu talante, as multidões
insubmissas e as coisas inconscientes, agitou as al-
mas e as florestas, as paixões e as tormentas fazendo
com a natureza o que Prospero, o mágico, fazia com
a sua ilha e com as forças elementares, passivas e
obedientes á voz d'essa poesia alada : Ariel.
Quem estudar a fauna prodigiosa do naturalista
de Medan pasmará da sua estupenda faculdade de
analyse : o que Buffon e Aubudon fizeram com os
animaes elle fez com a natureza, com a differea,
porém, de que os primeiros restringiam as
232 A BICO DE PENNA
suas observações ao critério scientifico e elle viu e
descreveu com a larga visão da Poesia, sem se
preoccupar com o estreito limite, rompendo,
devassando todos os horisontes e todos os
mysterios.
A sua obra é uma visão apocalyptica — ao lado
de cada homem está uma besta monstruosa. Aqui é a
Terra superficial, geradora dos frutos e das flores, a
Terra do pão e das rosas, o campo da seara e o
jardim das violetas. É a Terra do sabor e do aroma,
do alimento e do gozo : a besta fecunda, estendida
ao sol e á neve, a ruminar sementeiras e mortos,
devolvendo a cinza em estriga e em corolla,
colorindo as camelias com a pallidez das virgens
mortas, carminando as papoulas com o sangue
absorvido.
É a besta tranquilla, a esphynge imperturbavel
que devora o homem e o lar — consumidora e
prodiga. Por sobre ella vão os arados, cantam os
lavradores, chiliam os pardaes, resplandece o sol,
alargam-se as sombras quietas, desce o crepúsculo,
pallejam os luares e a besta serena vê passar, uma
após outra, gerações e gerações de rusticos, de avós
a netos pisando-a, rasgando-a, conspurcando-a, até o
dia fatal em que a sua boca escancara-se e fecha-se
sobre o corpo gelado do camponio morto.
Ali é a Terra profunda, a Terra dos Telchinos, a
terra obscura, o antro. É a besta spelea, o minotauro
sinistro, a mina. Parece dormir e os homens, como
os anões das lendas scandmavas, lá vão ao intimo
abscondito, penetram, excavam, tiram-lhe as
riquezas e o monstro consente até que, em dado
momento, como aquelles dragões flammivomos dos
barditos medievaes, sopra um halito
A BICO DE PENNA 233
explosivo e as galerias aluem como se as garras da fera se
plantassem nos homens subjugando-os, esmagando-os,
triturando-os.
Subito uma agua jorra, é como a baba lubrificante que
escorre. Os que podem fugir correm alucinados ás
caçambas e sobem ouvindo os gemidos das victimas e,
alcançando o grande ar luminoso, respiram, gratos áquella
resurreição ; mas lá os espera outra besta — a miseria,
que os desnuda e os deixa ao frio, que os consome e os
esqueletisa, que os prostra, que lhes rouba os filhos, que
lhes prostituo as mulheres, que os converte em assassinos.
Outra « besta » — o mar, que o diga Lazare. Outra, o
bosque, o Paradou, espécie de Mylitta babylonica, Éden
no qual as arvores, as aguas, o ar, a luz, os passaros, os
insectos, são outros tantos po-deres lascivos, ministros da
eterna força irrecursiva que junge os corpos tirando delles
a eternidade da especie, como do attrito dos lenhos, na
mão do sacerdote aryano, saltava, viva e alegre, a
esplendida centelha que mantinha perenne no altar, o
corpo terreal e fulgurante de Agni.
Outra — a locomotiva, espécie de bôa dos tempos
humidos do planeta, quando ainda a crosta da terra era
molle e fria como o barro que esjaera a plasmagem do
artista. Lá vai a correr, arquejando, atravéz da névoa das
manhans e da escuridão das noites, com o seu grande olho
cyclopico a brilhar, o seu rostro rente aos trilhos, bufando
fumo, lançando brasas, a assustar os rebanhos com os
seus urros, cortando os campos, atravessando cidades,
mettendo-se ariscamente pelas locas, subindo aos montes,
descendo aos valles, beirando rios, lançan-
234
A BICO DE PENNA
do-se afoitamente sobre abysmos, ora alegre, ora
exhausta, vivendo como se tivesse alma, morrendo como
se tivesse vida.
Outra o commercio ; outra a guerra ; outra a Arte . .. e
toda a obra, emfim, do admiravel artista, é uma scena de
pygmeus em torno de um animal monstruoso.
A mesma Naná, como muito bem notou Lemaitre,
que é senão a « besta » do vicio ?
«Naná est une belle bete au corps magnifique et
malfaisant, stupide, sans grâce et sans cosur, ni méchante
ni bonne, irresistible par la seule puis-sance de son sexe.
Cest Ia «Venus terrestre » avec de «gi'os membres
faubouriens ». Cest Ia femme rèduite á sa plus simple et
plus grossiere expression».
Zola apresentava-se como um reformador filiado ao
processo de Balzae quando, em verdade, elle foi o grande
decorador do romantismo : o edi-íicio estava prompto e
sustentado pelas cariatides que fizeram a revolução de
1830, elle entrou e, levantando os andaimes, começou a
ornar as paredes com os frescos soberbos da sua «Historia
natural e social de uma família no segundo imperio».
Mesmo se lhe quizermos notar os processos e essa
estranha psyehologia das coisas vamos encontrá-la
esboçada, á maneira larga de Miguel Ângelo, por Victor
Hugo — nos Trabalhadores do mar, o oceano ; em Notre
Dame, a cathedral etc. — são as coisas vivas, as coisas
animadas, os monstros que Zola desenvolveu
classificando na mesma <<familia » todos os achados que
foi fazendo na vida — desde o mercado até Lourdes, na
serie das Cidades,
A BICO DE PENNA
235
Os que se preoccupam miudamente com as analyses
meticulosas podem notar os defeitos na grande arte
decorativa do possante autor dos Rougon-Macquart — eu
contemplo-a á distancia, abandonando os detalhes
fatigantes e só demorando a vista nos que revelam uma
impressão poética como a estropeada selvagem dos
cavallos famintos, na De bácle ou a morte de Albina,
entre flores.
Zola era um sincero : descrevia monstruosidades
porque a sua visão poderosissima augmentava tudo,
dando proporções collossaes ás menores coisas. Esse «
naturalismo » que deu o Moysés é o mesmo que gerou o
Inferno — é o naturalismo dos gênios. A verdade é uma,
mas sentida diversamente.
O luar que para Musset era um incentivo poetico,
porque é suggestivo, para o burguês é apenas pretexto
para um passeio, á fresca : para o bandido é um cumplice;
para o sensual é um amavio ; para o melancolico é um
motivo de tristeza ; para o alegre é o melhor incitamento
á troça.
Zola via a natureza atravéz de um sonho pantheista.
Elle era dos poucos que não acreditavam na voz
prophetica que gemeu doridamente nas praias da
Thessalia — para elle o grande Pan vivia. Poeta e poeta
dos fortes andou sempre dentro d'uma illusão, seguindo
um sonho ao qual resolvera dar o doce nome de Verdade.
Foi um pessimista, e, por isto, rudes foram os ataques com
que a Critica, mais d'uma vez, o foi perturbar na sua grande
officina, esse castello de Médan de onde, todos os annos, sahia
uma obra divina e satânica, como do solar do conde de Rai-
236
A BICO DE PENSTÁ
mond, numa noite sinistra, fugiu, aos gritos,
Melusina, a mulher-serpente.
Nos livros do poeta ha esse dualismo — a cauda
serpentina é enorme, mas prestai attenção e
descobrireis em todos elles o busto e, dentro, um
coração meigo pulsando com enternecimento como
batia o da castellan, que, tornando á pena, enchia os
ares de gemidos e orvalhava a terra de lagrimas
pensando nos pequeninos filhos e no amor que
deixara.
Em Raimond é a curiosidade a causa do
Sortilegio ; em Zola é a imaginação, essa
curiosidade do Ideal.
Sei que a Critica aprecia a parcella e na obra de
um grande espirito procura, não só os largos traços
como as pequeninas e mesquinhas insignificancias
e, como os corvos, passa indifferente pelas bellezas,
baixando immediatamente, com alegres crocitos,
mal sente o fortum da carniça. Falo da pequena
critica, a das varejeiras, que estão para os corvos
como os chacaes estão para os leões.
Não vejo em Zola o homem da preferencia salaz.
Mas se elle só foi repellido porque nos apresentou
Naná, porque havemos de adorar Longus, com a sua
Lycenion, Ovidio com os seus Amores, Vatsyayana
com os seus conselhos, Apuleio com a sua
Metamorphose, Theocrito com a sua Feiticeira . A
volupia é mais excitante do que a lascivia : ha
seducção maior nos encantos que se adivinham, do
que na nudez que se ostenta descomposta e
impudica.
Ha exagero, mas sejamos leaes : o exagero é a
qualidade propria do escriptor, ó a sua maneira
A BICO DE PENNA 237
— como elle exagera o mal exagera o bem, como exagera
o homem exagera a natureza. Para Montsou aquella
gente, para Sedan aquelles soldados e aquelles animaes
fantasticos, para Coupeau aquella monstruosidade do
Assomoir, para aquella vermina aquelle planturoso
mercado do Ventre de Paris com os seus taboleiros, com
as suas barracas onde parece accumular-se toda a
producção das hortas fartas dos arredores da cidade.
A mesma virtude é exagerada como no padre Mouret,
o mystico.
O estylo de Zola é formidavel. Elle não tinha a
preocupação das miudezas, posto que, por vezes, se
divertisse em detalhar ; a sua intenção era o assumpto e,
diante da tela immensa, lançava o desenho com a pressa
fogosa de um delirante e, enchendo-o com as tintas,
procurava, á força de côr, a verdade imaginada e, quando
contemplava os seus horisontes como que ainda os
achava apertados e lá ia com elles para mais longe,
impellindo-os como se afastasse um biombo que
atravancasse um aposento.
O que torna talvez monótona a grande obra é o forte
tom marcial que d'ella sobe — é o mesmo hymno que
regula a vida d'aquella gente — no campo e na cidade,
nas minas e nas igrejas, nas greves e no amor, na guerra e
na balburdia dos mercados, nos boulevards e nas chans
campestres. O rythmo é o mesmo e tem-se a impressão
de um cinematographo variegado, de grandes proporções,
ora trazendo scenas epicas, ora apresentando episodios
domesticos ou mostrando o trabalho agríicola, a luta
tremenda do camponez com a terra, ao
238
A BICO DE PENNA
som da Marselheza, tocada estrondosamente e sem
descontinuação.
Esse defeito do poeta épico desapparece por vezes e é
quasi sempre attenuado pelo enthusiasmo que desperta
ainda que prejudique, em certos lances, a emoção. Isso,
porém, vem ainda provar que o grande escriptor era um
extraordinario poeta que se deixava arrebatar pela musa,
seguindo-a nos vôos arrojados.
Bem differente do tranquillo Daudet, que tão bem
descrevia os homens e a vida, sem arrancos, com
sentimento justo, com as proporções exactas. Um via a
natureza e o homem e copiava-os, outro cantava-os com a
voz forte com que os aédos e os ollans dos tempos
heroicos referiam os feitos dos guerreiros e descreviam as
carnificinas e as quedas estrondosas dos muros das
cidades.
Sei que a critica vai analysar a obra do romancista, eu
fico contente com a minha admiração pelo poeta.
A DIRECÇÃO DO BALÃO
Craveiro, da extincta e florida firma de Craveiro
& Rosas (chá, cera, rape e sementes) era homem de
muita carne, de bom sangue, catholico e
conservador. O pai, além de haver sido um dos
esteios do partido, fora, na mocidade, conservador
d'um museu, onde, diziam as más linguas, encon-
trara a excellente senhora D. Brigida, modelo de
honestidade e de magreza. O que lhe sobrava em
virtude escasseava em carnes.
Até os vinte annos Craveiro Júnior, que nascera
intanguido, foi um mocinho amarello e magro, muito
sujeito a bronchites e a colicas, sempre a tossir e a
gemer pela casa, atabafado e molle. A mãi atirava-
lhe para os hombros derreados todas as lans que
encontrava ; o pai obrigava-o a trazer baetas sobre a
pelle e D. Seraphina, todas as noites, fazia-lhe uma
gemmada substancial com canella e cravo e punha-
he aos pés, sob as cobertas, duas
240
A BICO DE PENNA
botijas com agua a ferver, tanto que, uma vez, estando
Craveiro a dormir quando a solicita senhora lhe chegou ás
plantas o aquecedouro, o rapaz, mim assombro, saltou da
cama berrando que descera ao inferno, como Orpheu ; e
pôz-se a esfregar os pés, ás gadanhadas, mostrando
bolhas que lhe haviam feito os ardentes ladrilhos do reino
de Belzebuth. Ápezar de todos os cuidados Craveiro
continuava a amarellecer e a definhar, sempre a tossir,
mastigando pastilhas, engulindo xaropes:
Não era bonito, tinha sardas e cravos (não fosse elle
Craveiro), os cabellos eram negros, mas raros, e a fronte
ia-se-lhe alargando com a idade, o que maravilhava o
velho que, ao contemplar a vastidão d'aquella testa, lisa e
côr de marfim, que ia subindo a pique, dizia, com enlevo
e orgulho — que era o talento, o fogo vivo do genio que
esturricava a raiz do cabello como as chammas, em
agosto, lavrando por um cerro, consomem, até ás raizes,
as plantas que o vestem.
Ápezar da prophecia do velho, o apregoado talento do
rapaz era difficil, o só escorria, em fio escasso, em dias
de festa domestica, arriscando, á mesa, um brinde
trêmulo. Quando se falou em mandar Craveiro aos
estudos, D. Brigida oppoz-se aterrada aconchegando o
filho aos ossos do peito :
Medicina, Brigida ; aventurou pacatamente o
velho.
Deus me livre ! O que ? para o pobre menino ter
de estudar em defuntos e passar toda a vida á cabeceira
de doentes, com risco de apanhar alguma coisa !? Deus
me livre !
— Bem. Engenharia, então.
A BICO DE PENNA
241
Que engenharia, homem ! Você parece maluco !
Para um dia cahir d'uma ponte ou ficar debaixo d'um
tunel.
Então . . . direito.
Nada ! Pode, como promotor, accusar um sujeito
de maus bofes, que mais tarde queira tirar vingança . . .
Então, filha, só o seminário. Vamos mettê-lo no
seminario.
D. Brigida sorriu desvanecida, mas veiu logo um
suspiro contrariar o prazer :
Sim, padre, isso era outra coisa, mas ... e os
jejuns ? Elle podia lá com os apertados jejuns ! ?
Não. Olha, queres a minha opinião ? mette-o no
commercio, dá-lhe sociedade na loja. Elle que venda chá,
dizem que o chá ataca os nervos, mas é historia : o chá é
inoffensivo, a cera é grata ao Senhor e as sementes são a
riqueza da terra.
E o rape ? e as lanternas ? e os fogos ?
E verdade. Mas seu Rosas pôde encarregar-se
d'essas coisas. Divida-se a casa em duas secções —
uma para o pequeno, outra para seu Eosas.
E assim fez-se. Craveiro encarregou-se da 1.a secção
e o Rosas lá foi para a dos explosivos e dos
estemutatorios.
Nos primeiros tempos a vida foi uma maçada tediosa
para o mancebo : o dia todo ao balcão ou no escriptorio a
vender cirios, barrigas, pernas, chá verde, chá preto, chá
padre, abóboras e fuchsias. Pouco a pouco, porém,
habituando-se, Craveiro deu em pandear — aos vinte e
cinco annos era, todo elle, uma só, immensa barriga. Foi
necessario alargar a porta do escriptorio para que o
homem pas
-
242
A BICO DE PENNA
sasse. A mãi, alvoroçada, exigiu um exame medico
e a sciencia, em lenta e minuciosa analyse, achou
apenas toucinho. Foi uma alegria em casa.
Um dia, chovia a jorros, Craveiro bocejava no
escriptorio com a fronte lisa sobre a mão, quando
duas senhoras, acossadas pelo aguaceiro, entraram
precipitadamente na loja. Era no tempo dos balões
tufados, ahi pelos fins da guerra. A que parecia mais
velha trazia um balão de pequeno diâmetro ; a outra,
porém, com as gotteiras que pingavam da saia, fez
na casa um circulo maior que a roda massiça de um
carro de bois.
Era uma criaturinha viva, d'um moreno quente e
avelludado, olhos mais negros que jaboticabas
maduras e com uma pequenina boca que era mesmo
um botão de rosa. O collo era alto e arfava, as mãos
eram finas e arrepanhavam o mantelete com um
brilho rico de anneis.
Craveiro, vendo-a, sentiu um tumulto no coração
amadurecido para o amor e, como as duas senhoras
se conservassem de pé examinando plantas, elle
comprehendeu, com muita subtileza, que ellas não
queriam saber de dhalias nem de azáleas, senão d'um
pouco de agazalho até que a chuva es-tiasse ; e
offereceu cadeiras. Agradeceram e sentaram-se. A
mais velha accommodou o balão ; a mais nova,
porém, por mais que batesse, por mais que
aconchegasse, não conseguiu submetter os arcos
rebeldes de crenolina, que ficou rebeldemente
empinada e enfunada expondo á curiosidade lubrica
de Craveiro os pequeninos pés da linda morena e um
palmo de meias côr de rosa que eram uma tentação,
ou melhor duas tentações.
A BICO DE PENNA
243
Craveiro perdeu a cabeça e, de olhos gulosamente
abaixados, admirava ; os caixeiros ouviam-lhe os roncos
e viam-lhe o fogo das pupillas incendiadas. Felizmente
chovia e os fogos lá estavam na secção pyrotechnica do
Rosas. Por fim a chuva serenou e as duas senhoras, com
muitos sorrisos e agradecimentos, sahiram.
Craveiro não se conteve, tomou, á pressa, o casaco e
abalou, a largas pernadas, chapinhando nas poças,
escorregando no lodo, a vêr a direpção que tomavam os
balões.
Oh ! aquella morena ! Aquellas meias côr de rosa !...
Via-a ao longe, muito tufada no grande balão que
bambaleava, via-a e forcejava por alcançá-la. Mas a
barriga ! aquella barriga . . .
Num cruzamento de ruas perdeu de vista a linda
criatura. Ficou a olhar pasmado : onde se teria mettido !
Pôz-se a rondar o ponto em que se sumira a belleza, a
olhar as casas, a tossir, a pigar-rear . . . e nada ! E ali
esteve até tarfte. Já escurecia quando, com o desespero na
alma, o desven-turado resolveu voltar ao negocio, mas, ai
d'elle ! já não era o mesmo homem calmo, sisudo,
despreoccupado — tornou-se frenetico, deu em berrar
com os caixeiros, em atirar murros á secretaria e, em
casa, á noite, cercava-se de papeis e punha-se a riscar, a
calcular e em tal lida, ia, ás vezes, até á madrugada,
suspirando e bufando.
O pai interpellou-o uma noite sobre aquellas vigílias
que lhe compromettiam a saúde e Craveiro, sem tirar os
olhos do papel, respondeu seccamente :
— Estou vendo se descubro uma coisa . . .
De sorte que o velho, quando D. Brigida sus-
244 A BICO DE PENNA
pirava attribulada com tantas noites em claro e
trabalhosas, dizia-lhe com uma ponta de orgulho :
Deixa lá o rapaz, está com a sua descoberta.
Eu, quando te dizia que elle devia estudar para
engenheiro, tinha as minhas razões.
E Craveiro, sobre um complicado desenho que
representava o cruzamento das ruas, collocava dois
feijões pretos e um feijão cavallo — os feijões
pretos representavam as duas aerostaticas senhoras,
o feijão cavallo era elle e tanto mexia com os taes
feijões que perdia a calma e acabava a pesquiza
atirando formidaveis murros á mesa e, já deitado,
esmagando os travesseiros, lançava ainda
exclamações que atroavam a casa : « Eu hei de
descobrir, custe o que custar. Eu hei de descobrir !».
E, tanto insistiu na famosa descoberta que, um dia,
foi postar-se no tal cruzamento, perguntando a todos
que passavam :
O senhor (ou a senhora) não viu por aqui um
balão com umas meias côr de rosa ? Nao sabe que
direcção tomou ?
Arrancaram-no d'ali, á noite. Estava louco.
Os pais quizeram conservá-lo em casa, mas
Craveiro berrava com tal furor que a vizinhança,
alarmada, recorreu á policia e o infeliz foi internado
em um hospicio. O Eosas passou a dirigir as duas
se-cções, D. Brigida finou-se ralada de tristezas, o
velho seguiu-a pouco depois, e Craveiro lá ficou no
hospicio colculando e engordando até que as banhas
o prostraram a um canto do cubiculo, pesado e
inerte.
Com os annos, porém, foi-se-lhe desvanecendo a
mania e os medicos pensavam em dar-lhe alta e
A BICO DE PENNA 245
teríamos cá fora o estupendo corpanzil do antigo
negociante se um incidente não o compromettesse.
O medico passava a visita quando, justamente
diante de Craveiro, voltou-se para o pharmaceutico
que o acompanhava :
Então, hein f temos o balão.
Craveiro estremeceu e arregalou os olhos,
maravilhado.
Parece que sim, doutor.
Onde ? bradou o louco, num rugido.
!
Onde ? Em Paris.
Em Paris ? ! um balão ? com meias côr de
rosa ?
Como ?
Sim, senhor : meias côr de rosa. Acharam
sempre, hein ?
Acharam ; e foi um patricio nosso, mas ...
Que historia é essa de meias côr de rosa ?
Craveiro teve um sorriso malicioso e, affagando
a papada, murmurou :
É cá uma coisa, doutor. Se eu, naquelle dia,
tivesse descoberto a direcção ... Ah ! não lhe conto
nada ...
Que direcção ?
A direcção que tomou o balão; eram dois.
Um do Severo, disse o pharmaceutico.
Qual Severo ! Um era d'uma senhora magra,
já idosa, a mãi, creio. Mas o das meias !...
Que meias?
Que meias, hein ? que meias ?
Poz-se a ranger os dentes, fechou
ameaçadoramente os punhos e ... foi mettido em
camisola de
246
A BICO DE PENNA
força. E agora a fúria é contra o medico, porque entende
o infeliz que foi elle (pobre dr. Brochado !) quem
descobriu o balão ou antes — a direcção que tomou a
dama que o vestia. E lá está.
APOLOGIA
Que sôe o hymno de Archiloco a cujos accentos
estavam tão habituados os ares finos e azues da Olympia
que, mal auletrides e cytaredos o rompiam, entre as
nuvens doiradas da poeira da arena revolvida, logo os
ecos o iam redizendo antes mesmo que os cantores o
entoassem.
Que sôe o hymno de Archiloco celebrando a victoria
dos athletas que, com o poder do músculo robusto e agil,
conquistaram a gloria que fica perpetuada na inscripção
tabular.
Os tempos são outros. Já os poetas não se levantam
entre o povo, com a lyra enramada de oliveira pallida, o
olhar ardente de inspiração, saudando os heroes da luta.
Hoje a poesia é gemedora e fraca : arrula e suspira, não
freme como nas eras pujantes, quando muito atita, porque
lhe falta o heroismo de outr'ora que fazia do poeta um
glorificador.
248
A BICO DE PENNA
O homem definha e com a consumpção que lhe
vai entibiando o corpo, a alma se lhe torna fraca,
pusillanime, sem fé.
Já que os cantores contemporâneos preferem a
mollicie do amor á valentia da peleja, um beijo ao
arremesso seguro dum disco de bronze ; o abraço
languido á formidavel tensão nervosa que exige um
pugilato ; a caricia de um olhar humido ao flammejar
dos olhos de antagonistas que se medem ; um
gorgeio de mulher voluptuosa ao rouco bramir do
auriga que, no estádio, excitava as parelhas da
rapida quadriga ; uma promessa lasciva ao desafio
heroico, genios do passado e tu, maior de todos,
moço thebano, cantor sagrado dos grandes feitos de
Epharmosio, vencedor nos jogos pythicos, neméus e
isthmicos, empresta o teu gênio immortal a um dos
vates que melhor compõem a estrophe, com a
imagem que a illumina e com a rima que a enfeita,
para que elle dignamente descante o renascimento
do culto e da belleza do Homem.
Salvo ! salve ainda heróes do pareo forte que
vindes levantar, com o vosso exemplo, a alma
abatida dos mancebos patrios.
Um povo não se robustece na inercia. A mesma
arvore, prisioneira pelas raizes, tem o vento como
lanista que a obriga a exercitar-se : abalam-se-lhe os
galhos, retorce-se-lhe a coma, a captiva debate-se
violentamente como o leão que passeia na jaula e
salta corcoveando para expandir a sua força
nervosa.
A BICO DE PENNA
249
O rochedo cravado tem o mar que o fustiga. A terra é
como a Atalanta do espaço : corre vertiginosamente e, se
se perde do sol que a vence, deixando-a nas brumas do
inverno, é porque se curva para apanhar os frutos do
outono que o Hippómenes flammejante lhe atira.
O homem, que se devia impor pela força, como a
mulher impõe-se pela graça, porque elle deve ser como o
cedro e ella como a palmeira, copia os ade-manes
femininos e, a pretexto de ser esbelto, ama-neira-se,
fugindo a todo o exercicio, com receio de que se lhe
callejem as mãos ou se lhe tufem os musculos
endurecidos como os do Hercules Parnesio e o resultado é
termos uma mocidade dessorada, tibia, muito
encalamistrada, muito oleosa e trescalante, mas incapaz
de um acto de energia, passiva por fraqueza, humilde por
desalento.
A culpa, em verdade, não é dos moços, senão dos pais
que os criam nos réfolhos domésticos, atabafados, para
que o ar não lhes dê tremuras, para que o sol não lhes
creste a cutis, e, d'esse choco o que sahe é uma ninhada a
piar medrosa e transida, que encara a vida com medo e, á
primeira difficuldade, encolhe-se e deixa-se morrer
covardemente.
Se os governos das sociedades modernas não
entendem, como o rispido Lycurgo, que o infante é um
bem da pátria que o deve affeiçoar, desde a idade mais
tenra, ao destino que lhe cabe, que é o de ser um cidadão
util na paz, como elemento de prosperidade e na guerra
como elemento de defeza, cuidem, ao menos, de mostrar
aos pais que os exercidos são a melhor medicina e a
moral mais san — ganham com elles o corpo e a alma,
desenvolvem-
250
A BICO DE PENNA
se a força e a coragem, uma que é o fruto da
robustez, outra que é a flor da energia.
Felizmente parece que a mocidade já se vai
insurgindo contra o regimen desmoralisador.
Coalha-se o mar de embarcações esguias que
disputam a carreira na arena verde e mobil; corpos
arrojam-se ao encontro da vaga e lá vão por ella ás
braçadas rijas, ora levantados nas cristas
espumantes, ora desapparecendo nos sulcos; as
bicycletas affrontam os andurriaes, trepam ás serras,
descem aos valles, atravessam florestas em viagens
longas, de Estado a Estado ; a pela elastica, parte
como uma bala da cesta dos fundibularios ; cruzam-
se floretes e sabres em punhos de esgrimistas ;
turmas flanqueam as parallelas, correm outras ao
lawn-tennis. Ali é um trapezio que oscilla, além é
um corpo que volteia na barra ; mais longe vai o
ginete sorvendo o ar dos prados frescos, levando um
cavalleiro louro e moço e no campo, sobre a herva
rasa, correm os teams, disputando a bola que bate,
salta e vôa perseguida, indo d'um a outro, repellida,
em ansia desensoffrida de victo-ria que dá á face dos
luctadores a côr alegre e formosa da saude.
É exercitando-se n'esses jogos energicos que o
homem aprende a vencer na vida. O hoplita dançava
a pyrrhica sob o peso derreante das armas.
O grego era um povo estheta que admirava o
corpo formidavel de Sostrato dormindo nú, estirado
na herva verde e cheirosa do Parnaso. O grego
A BICO DE PENNA
251
corria aos gymnasios para applaudir os gladiadores.
A Hellade atroava quando um mancebo conquistava,
em Argos, a taça de bronze e as coroas ornavam a
thymele trágica como a borda da biga triumphante.
Hoje, porém, raros são os que prestam culto á
robustez. As raças succumbem anemicas : o Adão
actual não se parece com o collosso de argilla dura
cuja ossada era de rude granito — é uma figurinha
de terra-cota, mais para a peanha do que para a
arena.
Nem todos os pais querem vêr os filhos nesses
exercicios — a maioria prefere vêr os seus murados
pimpolhos, muito apertados em umas casacas que
lhes dão o ar de grandes gafanhotos negros, fazendo
numa sala voltas subtis de valsas.
Felizmente, porém, começam a apparecer os
jovens reaccionarios, os que se revoltam contra essa
vida abafada e molle de plantas de estufa e correm,
com o peito forrado por uma camisa de malha, os
braços nús, as pernas nuas, ao ar livre reforçando-se
ao sol que é o grande juiz e o apologista da força.
É preciso pensar um pouco no Homem, que é o
responsavel pelo mundo, que é o fiador do Progresso.
Não basta que sobre as vertentes das collinas e nas
verdes planicies cresçam palácios de nobre
architectura, alastrem relvedos de parques, refuljam
serenos lagos ; que, por toda a parte, circulem
activamente os vehiculos electricos, que haja monu-
252
A BICO DE PENNA
mentos nas praças, centros de sabedoria, casas de
diversão, casernas e hospitaes. É necessario que haja
homens, homens que não fiquem avassalados pelas
maravilhas, homens que não sejam ridiculos ao lado
das magnificeneias, homens, emfim, dignos da
cidade, do paiz em que nasceram e no qual brilham
pelo esforço e pelo espirito.
Que diria o estrangeiro que, ao saltar no cães
d'uma cidade toda de mármore, com avenidas de
cedro, faiscante de focos electricos, visse pelos
degraus dos templos, nas raízes robustas das
arvores, nos perystillos dos palácios, uma população
enfesada, a tiritar de frio, macillenta e livida?
Sorriria ou daria por mal empregada tanta belleza.
Pois temos um meio de evitar esse ridículo depri-
mente e o meio é bello e nobre e nos foi dado por
um povo que é um dos orgulhos da humanidade —
o inglês. Acceitemo-lo e tornemo-nos dignos d'esta
grande pátria, que é, como um jardim exuberante de
Titania . .. habitado por pygmeus.
PALAVRAS DE UM STEGOMYIA
Andava eu, á tarde, a espairecer no meu
pequenino jardim, onde as angélicas apendoadas
promet-tem, para dias proximos, varas floridas de
fazerem inveja ao proprio S. José, quando um
mosquito (stegomyia fasciata) imaginando-se, talvez,
rouxinol, entrou a perseguir-me esvoaçando em
torno da minha cabeça com um zumbido enfadonho,
só comparavel aos exercicios de violino do meu
melodioso amigo Eleutherio.
Esbordoei-me a valer, não para castigar o corpo
peccador com as macerações que valem por
maçagens espirituaes, porque robustecem a alma em
graça e favor divino, mas para vêr se apanhava o
terrivel e desafinado stegomyia. O animalejo,
porém, que era astuto e agil, fugia á bordoada rindo-
se da furia com que eu ia enrubecendo a cara e,
principalmente, as orelhas.
Desanimado, retrocedia deixando o jardim,
254 A BICO DE PENNA
áquella hora delicioso, quando mo pareceu ouvir, não
mais o enfadonho zumbido, mas palavras, palavras claras
como as que sáhem da boca dos homens.
Voltei-me espantado á procura do meu interlocutor
mystciioso e só vi o Jacintho, que regava um canteiro de
violetas, calado como o proprio silencio.
«O senhor pôde ouvir-me em particular ? »
interrogou a voz mysteriosa. É estranho ! exclamei,
sentindo um arripio em todo o corpo e os ca-bellos
crescerem-me na cabeça.
Quem me falaria ? Que invisivel ser aereo andaria a
divertir-se commigo á hora santa em que os sinos
espalhavam, na serenidade da tarde, os dobres religiosos
das Trindades ? Demonio ? não ! demônios não ousam
affrontar a voz dos sinos e poucos são os que se atrevem a
fazer diabruras á luz do sol. (Faço excepção de ti,
demonio de olhos claros e cabellos luminosos, tu não te
preoccupas com os sinos nem com o sol, mesmo a
primeira vez que te vi foi em uma igreja, na missa das
onze e a manhan era das mais radiantes. Falo dos
demonios do inferno e tu ... tu és um demoninho do céu).
Mas deixemos idyllios satânicos, vamos ao caso
mysterioso. Quem me falaria
1
?
Procurava eu o mysterio quando, de novo, ouvi a
estranha voz :
O senhor pôde ouvir-me em particular ?
Quem lhe fala sou eu, Stegomyia fasciata, vulgo
pernilongo, um seu criado.
Era o mosquito.
Não se espantem os leitores — já no tempo de
A BICO DE PENNA
255
Esopo e depois nos dias de Babrius os animaes falaram e
com o bom Lafontaine, isso, então, nem se fala !. . . até
em frances se exprimiam, como dizia, maravilhado, o
admirável Salema. Assim, pois, não ha motivo para
estranheza no que lhes vou contar.
Requestado, com tanta gentileza, pelo Stegomyia, não
quiz ficar por baixo de um reles mosquito e respondi,
também fidalgamente :
Pois não, meu amigo, estou ás suas ordens. Quer
conversar aqui mesmo ou prefere o meu gabinete, mais
agasalhado e discreto?
Aqui mesmo, senhor. Peço-lhe apenas que nos
aproximemos d'aquelle sabugueiro em flor para que eu
descance em uma folha e possa falar com a calma
necessária, porque o que tenho a dizer é grave e reclama
attenção.
Pois vamos lá para o sabugueiro.
E fomos. Stegomyia partiu á frente, zumbindo, mas
quando cheguei ao arbusto, foi um trabalho para
descobrir o illustre animalejo e, se elle mesmo me não
houvesse chamado, d'entre miudas florinhas, eu teria
desistido da interessante entrevista que vou tentar
descrever, omittindo pequeninos episodios como, por
exemplo, as ciladas que contra o meu interlocutor armou
uma aranha esperta, que o descobriu de longe e desceu,
ligeira, por um fio, não logrando, porém, o seu perverso
intento porque Stegomyia, que vê longe, safou-se
chamando-me para junto de uma sempre-viva vermelha.
Meu amigo, já que sabe o meu nome, quero
que também saiba onde nasci e. o que faço neste
256
A BICO DE PENNA
ingrato mundo, onde só podem viver em paz os grandes.
As moscas, por exemplo, que são mais impuras que nós,
porque nascem nas estrumeiras, não soffrem as
perseguições de que somos victimas.
Nasci numa gotta d'agua, eu e mil e tantos irmãos que
andam soltos por esses ares. Não conheci meus pais.
Logo que senti forças para voar deixei a gotta d'agua, subi
ao macio espaço e comprehendi immediatamente que o
homem era o meu peior inimigo porque, tendo fome e
procurando o nariz vermelho dum sujeito, não sei como
escapei ao murro com que o perverso poz as próprias
ventas em sangue. Voei e tive de esperar pacientemente
que todos dormissem para, então, regalar-me á vontade. O
grande crime : chupar um pingo insignificante de sangue,
muitas vezes bem ordinario : mais água que sangue, como
o leite das vaccas ; outras vezes tão carregado de
micróbios que é um nojo bebê-lo, só mesmo por
necessidade. Mais do que nós sugam as pulgas e quem é
que as persegue com medidas hygienicas, os taes
preventivos que nos põem tontos, principalmente uns pós
que fazem uma fumaça dos diabos á qual não ha
mosquito que resista ?
Os nossos filhos — e dizem que os homens são
humanos ! — não chegam, muitas vezes, a vêr a luz do
sol — matam-nos ab-ovo : despejando as tinas,
estancando as poças, não deixando água, nem mesmo nos
jarros, só para que não tenhamos lugar para a criação da
prole. É justo ? Deus disse : «Crescei e multiplicai-vos »
e os homens, contrariando a ordem expressa do Senhor,
querem quo diminuamos, mais do que isso : que
desappareça-mos e empregam todos os meios para que a
ini-
A BICO DE PENNA
257
quidade se realise. E porque? porque uns sabios
afíirmaram que os transmissores da febre amarella
somos nós.
Ora, francamente, ou taes sábios não enxergam
uma pollegada adiante do nariz ou querem imitar
aquelle lobo da fabula, porque a verdade ó que nós
entramos nessa historia de febre amarella como
Pilatos no Credo. Dizem elles :
«O mosquito é o transmissor certo e talvez o
único da febre amarella, do impaludismo (febres
intermittentes), etc.
O mosquito transmissor da febre amarella, muito
commum nas nossas habitações, é o stegomyia
fasciata, conhecido geralmente pelo nome de —
mosquito ou pemilongo rajado ».
Eis a aceusação. Agora vou eu, em meu nome e
em nome de todos os meus irmãos, produzir a
defeza que o senhor me fará o obsequio de tornar
publica :
O mosquito é o transmissor. O que transmitte é
aquelle que faz passar além ou de um corpo para
outro, no caso vertente, alguma coisa, que aqui é o
germen da tremenda pyrexia. Entre mosquitos — e o
senhor póde consultar a estatistica da nossa
mortalidade — nenhum foi jamais victimado por
essa doença, própria do homem. O que acontece é o
seguinte — nós (e, como nós, muitos d'esses que se
dizem philantropicos) vivemos á custa do sangue
humano, assim quiz o Senhor que fosse e assim ha
de sempre ser : o homem é, pois, o nosso hotel. Ora,
se o senhor entrar, um dia, no seu hotel e comer um
bife dum cogumellos (eu detesto os gallicismos
porque sou jacobino) que lhe ponha no-
258
A BICO DE PENNA
estômago uma carga soffrivel de toxicos, culpa o bife ?
não, atira a responsabilidade p»a os eogu-mellos que o
envenenaram, não ó verdade ! Pois comnosco é o que se
dá : nós somos o bife, os cogu-mellos são o sangue
humano. Se alguém tem direito a queixar-se não é o
homem, é o mosquito que bebe cada sangue que é mesmo
uma immundicie.
Eu já bebi um sangue que era só cerveja, bebi, digo
mal, provei e, enjoando, porque detesto bebidas, fui
procurar outro sangue mais sóbrio e encontrei-o em um
rapaz. Mal comecei a sugar-lhe a nuca, que era alva como
a de uma mulher, senti que a cabeça do rapaz oscillava.
Estava na mona por inoculação de ebriez, dirá o senhor
— engano : estava com uma congestão e morreu, horas
depois. Fui eu o transmissor da moléstia ? não. Eu podia,
quando muito, ter transmittido uma bebedeira, não acha ?
mas congestão, nunca !
Porque não cuidam os homens de purificar o sangue ?
Ha tantos purificadores — o mercúrio, o iodureto, o
arsenico e ainda outros. Não ! enchem-se de molestias o
depois querem que os mosquitos, que comem sardinha,
arrotem garôpa, como vulgarmente se diz. Não — o
mosquito não transmittiria a febre amarella se a não
encontrasse no sangue.
E não fica nisso, ha de vêr — dir-se-á amanhan que o
mosquito é o transmissor de todas as molestias physicas,
mesmo de algumas moraes, vehiculo nefando dos
germens nefastos á vida e á moral. Assim, se certa dama
incorrer em grave falta, ninguém attribuirá o peccado á
sua cabecinha leviana nem ao seu temperamento
abrasado, mas aos mosqui-
A BICO DE PENNA 259
tos e como hoje, de accôrdo com a doutrina de Lombroso
e tutti quanti, não ha mais criminosos, senão degenerados
de varias categorias, não haverá, igualmente, impudor,
mas dentadag de mosquitos. E será freqüente ouvir-se :
«Coitada de fulana, uma senhora tão séria, para o que
havia de dar. Aquillo foi algum mosquito que a mordeu
levando virus de amor». E quando se der algum desfalque
também se poderá dizer :
— Veja você, o Cabedello, um exemplo de ho-
nestidade. Quem diria ! Eu, custa-me a acreditar. Para
mim ali andou pernilongo. E o mosquito passará a ser o
bode expiatório ou o burro de carga de toda a pouca
vergonha !
Se tivessemos um laboratório de analyses os
amarellentos podiam ficar descançados porque não lhes
iríamos á pelle, mas o mosquito, como o poeta, prend son
bien ou il le trouve. E ainda berram.
Berrem contra os que apanham febre amarella,
berrem contra a sujeira, contra o dosaceio, contra os
comedores que nada fazem e não estejam a descarregar a
culpa sobre o mosquito.
Ha mosquitos em Paris, em Londres, em Bruxellas,
em todas as cidades, em todo o mundo e porque não se
manifesta universalmente a febre amarella ? Respondam
— é que em todo o mundo são mais os actos do que as
palavras.
Saneem a cidade e hão de vêr que o mosquito, sem
perder os seus habitos de sangne-suga, será tão
inoffensivo ao homem como as andorinhas que chilream
á beira do seu telhado.
Uma criança, mamando no peito de uma ama
inficcionada, não só ganha o mal como, passando
260
A BICO DE PENNA
ao peito doutra ama, logo o transmitte. A culpada é
a criança innocente ? não, culpada é a ama. É o caso
do mosquito.
Agora, meu senhor, por quem é, defenda-nos,
escreva sobre nós, não é vergonha para a sua penna
descer a um bichinho tão infimo — o grande
Virgílio escreveu o Gulex.
E adeus ! Prometto em meu nome e em nome de
todos os stegomyias que, se escrever sobre nós,
poderá, d'ora avante, dormir sem mosquiteiro,
palavra de pernilongot
E eu, para não ser mordido, prometti ao
stegomyia reproduzir as suas palavras e cumpro a
minha promessa.
BURRO OU CÃO
Burro ou cão ? E Melchisedec da Silva, de mãos
nos bolsos, media, a largas passadas, o seu quarto de
sábio e celibatario com uma duvida no espirito, mais
incoercivel que a de Hamlet: Burro ou cão ?
A mascara de burro, um primor, lembrava a
cabeça asinina que Puck fez crescer sobre os
hombros de Bottom ; a de cão era tão perfeita que o
velho Pachá andava pelos cantos eriçado,
desconfiado, a roncar. Melchisedec não se decidia e,
hesitante, queimava charutos e era tanta a fumaça no
aposento que as estantes, altas e atochadas de
preciosos volumes, desappareciam abrumadas pelo
fumo, menos denso, entretanto, do que a duvida que
escurecia o claro espirito do profundo psychologo.
Burro ou cão ?
Quando entrei para consultar o meu esclarecido
amigo sobre um aphorismo complicado de Mencio,
o espanto reteve-me á porta, sobre um velho atras
262
A BICO DE PENNA
de ethnographia que servia de capacho. Não vi
Melchisedec, o que vi foi uma espécie de Anubis, de
pyjama, contemplando-se a um espelho com serenidade.
O velho Pachá bufava trepado na mais alta estante, com
os olhos rebrilhando como duas brasas. Por fim o
cynocephalo voltou-se para o meu lado, e, em vez de
ladrar, disse-me com intimidade : «Entra, homem » ; e
logo reconheci a voz do meu erudito amigo que, para
tranquillisar-me, retirando a mascara, mostrou-me o seu
rosto magro e pallido onde a barba crescida punha uma
arripiada sombra.
Que capricho é esse, Melchisedec ? O sabio
encolheu os hombros estreitos e sentou-se cançadamente,
com um suspiro. Vais sahir fantasiado ?
De novo encolheu os hombros com indifferença. Por
fim, depois de alisar a fronte vasta, perguntou-me :
Que dizes : burro ou cão ? !
Burro ou cão ? ! não te comprehendo,
Melchisedec.
Intimamente eu sentia um alvoroço contando com
uma nova e arguta subtileza philosophica e cravei os
olhos na face macilenta do austero homem.
Não me comprehendes ?
ão.
Pois não ha difficuldade alguma na minha
pergunta. Senta-te e ouve.
Sentei-me e dispuz-me a ouvir a palavra, sempre
fecunda, do grande e desconhecido commentador dos
moralistas chinezes.
Sabes que fui, de novo, preterido por um mocinho
chamado Alfredo, filho de um chefe politico
A BICO DE PENNA
263
que dispõe d'uma centena de votos por ahi algures.
Estou vivendo dos meus livros e, levantando o braço
direito, o mesmo que elle eleva para os céus, á noite,
para apontar as constellações luminosas, mostrou-
me uma das estantes, consideravelmente desfalcada.
Estás vendendo os teus livros, Melchisedec ? !
exclamei pasmado e indignado.
Alguns. Que hei de fazer? o senhorio e o
estômago são exigentes. Mas vamos ao caso : fui
preterido e queres saber porque ?
Porque não levaste empenho.
Talvez tenhas razão, mas eu attribúo á fama
que vocês, meus amigos, criaram em torno do meu
nome : que sou um homem de estudos, que tenho o
meu bocado de philosophia, que penso, que escrevo
a lingua sem grandes erros compromettedores . . . e
que sou independente. Estudos e inteireza de
caracter são duas qualidades más para quem precisa.
O regimen é dos mediocres . . . e dos bajuladores :
burro ou cão, não te parece ? Na face magra de
Melchisedec tremeu um sorriso triste. Aquelle
rapazote, que foi nomeado secretario do legação, foi
meu alumno durante três mezes. Quando se
inscreveu na secretaria ainda escrevia omenajen e
affirmava que a primeira missa no Brasil fora rezada
na igreja da Candelária. Lá está na Europa e Deus o
tenha por lá muito tempo para que a lingua não
soffra com os seus constantes ataques. O governo
entende que, como elle vai viver no estrangeiro,
pôde, perfeitamente, dispensar o portugues.
O regimen é dos mediocres e dos engrossadores,
264
A BICO DE PENNA
como agora se diz. Um homem secco, como eu, não
pôde engrossar, mas também não me convém morrer
á mingua. Preciso arranjar alguma coisa. Com a
minha cara estou certo de que não consigo um lugar
de porteiro nem mesmo de varredor. Tenho aqui
duas mascaras, qual d'ellas devo levar: a de burro ou
a de cão ? Qualquer d'esses animaes tem cotação : o
ignorante impõe-se, o servil consegue tudo. Estamos
no carnaval e estou aqui ensaiando os papeis de
burro e de cão e amanhan, optando por um ou por
outro, lanço-me por ahi á aventura, subo as escadas
da primeira secretaria, dirigo-me ao ministro e zurro
ou gano.
Tu estás pessimista, Melchisedec.
O que estou é convencido de que isto é o paiz
dos analphabetos e dos zumbridos. Olha que é um
crime saber lêr, meu caro. Vivi a absorver sciencia e
litteratura e hoje não tenho uma camisa decente. Que
é o carnaval ? a vida voltada pelo avesso, não te
parece ? Todo homem tem em si uma feição que se
occulta sob as conveniencias. A-thero, que é mais
triste que uma missa de sétimo dia, só se fantasia de
palhaço e tem graça, faz rir a valer — ninguém dirá
que, sob aquella mascara comica, está a cara
consumida do mais taciturno homem que o sol
cobre. Ha quarta-feira de cinzas Anthero recomeça a
pensar no suicidio. As crianças, que são verdadeiros
diabretes, trocam, de bom grado, o mais rico trajo de
principe, pela ganga ra-buda de um diabinho ; os
velhos, são, em geral, rapazes lépidos. Eu vou virar-
me pelo avesso ruos-trando-me burro ou cão e,
quem sabe lá ? é até possivel que se dê dommigo o
que se dá com o An-
A BICO DE PENNA
265
thero : que os soleeismos me açudam em borbotões e que
a minha espinha so torne mais flexivel do que um junco.
Queres, em summa, a verdade? vou exercitar-me, vou
aproveitar os três dias de irresponsabilidade para despejar
asneiras, afeiçoando-me aos bar-, barismos indispensáveis
e para lamber todas as mãos e todos os pés que me
apparecerem. A vida é dos que mais fingem — tudo está
em saber disfarçar.
O rapazote não está a percorrer cidades, de embaixada
em embaixada, a rir-se, e com razão, das minhas
preoccupações espiritualistas ? E eu que faço ? não tenho
uma códea para roer e durmo sobre um catre duro, como
um penitente. A sociedade deu-me o diploma de sabio,
pois bem : faço agora questão de merecer o titulo de besta
e só me considerarei feliz no dia em que ouvir á minha
passagem, coisa que se pareça com isto : «Ali vai o maior
camelo d'esta terra !» No dia afortunado em que tal coisa
se der, poderás procurar-me porque serei uma influencia
no paiz. A duvida que me retém é esta : Como devo ir : de
burro ou de cão ?
Eu estava pasmado e o meu espanto cresceu de ponto
quando Melchisedec enfiou na cabeça a mascara de burro
e sobraçou um grosso volume :
Que diz você ? roncou. Estou bem assim ?
Eu acho que tu o que estás é doido, Melchisedech.
Não te pergunto se estou doido, pergunto-te se
estou bem como burro.
Isso estás.
266
A BICO DE PENNA
Pois então, meu amigo, prepara-te para a
surpreza.
Que vais fazer ?
Vou ao ministro. Ponho-me de quatro pés,
subo as escadas, ornejo diante do reposteiro, entro,
escoucinho, e .. .
E sahes corrido a pauladas como aquelle
burro da fábula que se metteu a fazer caricias.
Então vou de cão. Filho, irrompeu de repente,
eu preciso fazer pela vida, isto assim é que não pôde
continuar. É preciso transigir ? transijo. Os homens
querem a mediocridade lisonjeira, seja feita a
vontade dos homens.
Vais renegar a sciencia, relapso ?
A sciencia ? tudo ! o que eu quero é um
emprego. Vou passar o resto da vida disfarçado em
asno ou em cão ou alternativamente : em cão e em
asno. Viverei como Pelle de burro — em publico
besta quadrada, em casa, com o ferrolho corrido,
philosopho espiritualista. E que pensas ? A maior
parte dos fantasiados que por ahi anda esmóe uma
idéa. Despe o princez, desmacaro-o e talvez
encontres debaixo da belbutina um desgraçado que
se atordoa ou um infeliz que tem fome. Já alguém
observou que o carnaval, nos tempos de crise, é sem-
pre deslumbrante —é que a loucura é proporcional
ao desespero. Ha homens que bebem quando têm
maguas. Dizem que é a festa da Polia, a apotheose
da Hypocrisia é que é. Como eu quantos haverá
ámanhan nas ruas ? Emfim, nada tenho com os
outros. Dize lá — como devo ir : de burro ou de
cão?
A BICO DE PENNA 267
Não sei, Melchisedec.
Vou de cão . . .
Se os senhores encontrarem pelas ruas um
sujeito pequenino, magrinho, com uma cabeçorra de
cão, lastimem-n'o : é Melchisedec que anda
cynicamente a mendigar emprego ou a ensaiar-se
para um alto cargo.
Pobre Melchisedec ! não sabe o misero que a
gralha pôde disfarçar-se em pavão, mas o pavão...
esse é que nunca se disfarçará em gralha. Com caeça
de cão ou de burro elle ha de ser sempre o mesmo
philosopho, o mesmo erudito, incompativel com as
propinas gordas. Em todo o caso não lhe matemos a
esperança — deixemo-lo illudido nesses tres dias de
illusão.
— Burro ou cão ... que animal! ?!!
MANOEL VICTORINO
A infancia de Manoel Victorino parece moldada
no versiculo do evangelista : « nonne hic est fabri
filius ! » Não era elle, como Jesus, filho de um
artifice ? Não foi em uma officina que passou os
seus primeiros annos serrando, acepilhando a
madeira, afeiçoando-a a movei, lixando-o,
envernisando-o, com os pés afogados em
maravalhas, entre operários, seguindo os conselhos
paternos como o syrio misericordioso ouvia as
palavras do carpinteiro que, á sombra da vinha
domestica, enxameada de abelhas, escavacava, a
enxó, o lenho dos montes ?
A mesma cidade natal, alta, em formosa situação
dominando o mar liso, com a sua população mixta e
a sua verdura tão viçosa nos eidos e nos pomares,
lembra a Galiléa messiânica, que Ammiano
comparou ao Paraizo pela doçura do ar, pela pureza
cerulea do céu, pelo perfume das flores, pela belleza
languida das mulheres.
270
A BICO DE PENNA
Ali cresceu o infante no trabalho, entre os irmãos e os
operarios — com o homem simples que vinha do povo,
com o tronco sahido da floresta : o primeiro, conservando
ainda todas as tradições puras do passado ; o segundo
ainda a exhalar o perfume silvestre das resinas — os
representantes robustos das duas grandes forças humildes:
a plebe e a selva.
Ali cresceu em virtuosa actividade e d'ali sahiu para o
Sanhedrin tornando-se, em pouco tempo, o mais arguto e
o mais brilhante dos doutores.
Do passado não se desligou jamais renegando-o por
vergonhoso. O seu prazer era mostrar, na sala nobre da
sua residencia, a cadeira que fizera na officina paterna :
era o seu brazão de orgulho.
Conhecendo a vida, porque a vivera desde o grau mais
modesto até o solio mais alto, de cima, como se o coração
lhe houvesse ficado na raza planície de onde partira, tinha
sempre os olhos abaixados para o soffrimento dos que
fervilham obscuramente na miseria desconhecida e era
por elles que a sua palavra resoava ferindo toda a gamma
das angustias ; era por elles que a sua penna, forte como
uma clava e delicada como um plectro, rodopiava
demolidora ou vibrava suavemente a harpa das elegias ;
era por elles que o seu genio criava e a sua mesma força
vinha d'aquella humildade tanto que, quando um
adversario, querendo abatê-lo, referiu-se, com desprezo, á
sua origem, vimo-lo sahir mais alto d'aquella modestia. O
Nada deu mais grandeza a seu filho e do opprobrio da
accusação rebentou o esplendor da defeza, como das
chagas de Jesus sahiu a gloria da sua doutrina.
A BICO DÈ PENNA
271
O povo devia amá-lo porque elle era o seu mais
legitimo representante. ífo passado tinha apenas para
mostrar a porta de uma officina, mas, estendendo a
penna, apontava o Futuro, cujas ondas ia apartando para
levar a Chanaan os que confiavam no seu prestigio e na
sua coragem.
Morreu pelejando, cahiu na trincheira e, como o
soldado fiel que, ao sentir-se ferido, procura, na confusão
da batalha, a bandeira pela qual verteu a ultima gotta de
sangue, elle, na agonia, pediu ansioso : «Abram as
janellas ! deixem-me vêr o sol. Quero morrer vendo a
luz!»
Era o combatente que procurava com os olhos a
bandeira sob a qual pelejara. Queria vê-la, ainda uma vez,
como se pudesse levar para a sombra do tumulo a sua
visão, a visão esplendida do céu azul, da manhan
illuminada em ouro pelo sol que subia. E foi,
effectivamente, o seu labaro, a Luz, na sua fulguração
mais bella : a Verdade.
Pela Verdade foi que elle surgiu entre os guerrilheiros
da santa campanha da abolição. Era ainda estudante,
conservava, talvez, nas mãos os callos da ferramenta
quando lançou o seu grito de guerra correndo a juntar-se
aos propagandistas da redempção. O que elle foi como
abolicionista dizem-n'o os seus escriptos, repete-o o povo
rebuscando na memoria as palavras flammineas com que
o seu patriotismo ou, melhor, a sua philantropia
verberava a exploração cruel da gente negra.
Vencida a primeira batalha logo empenhou-se, com o
mesmo atrevimento, em outra, e foi dos que mais lutaram
esquecendo interesses, e só visando o triumpho ideal e,
até a hora em que estrugiram os
272
A BIGO DE PENNA
clarins da victoria, ninguém o viu desfallecer,
ninguém o encontrou repousando.
Como o Macchabeu estava sempre nos pontos
mais arriscados e foi a sua ânsia nobre do refazer a
cidade do Futuro que o matou. Ficou sob as ruinas
quando, a grandes camartelladas, procurava
desempecer os lugares ainda tomados por
construcções defeituosas para nellas fazer subir o
edificio novo e admirável que sonhava.
O hebreu, filho de Matathias, cahiu sob o
pachyderme monstruoso que, partindo das alas
syrias, incitado pelo cornaca, esmagava no campo a
gente israelita. Cravando-lhe a espada no ventre o
heroe não mediu a força nem poude escapar a tempo
á queda da mole viva, e foi por ella apanhado.
Assim elle, na luta, sem olhar as consequencias,
ouvindo apenas a voz do patriotismo, affrontou o
perigo e, quando quiz recuar, as forças depauperadas
negaram-lhe a necessária energia e o vencedor ficou
sob o peso do vencido.
Era um typo de raça, um dos ultimos
representantes d'esses heroes em que tão fertil tem
sido a gloriosa Bahia, que reúne nos seus filhps o
brilho dos athenienses e a audácia dos
lacedemonios.
O seu enterro foi uma apotheose, todas as
representações populares acompanharam ao frio
silencio o despojo do grande homem como se nelle
vissem um viatico que se recolhia. Foi a
homenagem respeitosa com que- os soffredores
quizeram honrar aquelle envolucro de onde sahia,
em clarões, como do sarçal montesino, o verbo
eloquente da defeza e os protestos altivos contra o
Erro.
Á BICO DE PENNA
273
Cora Manoel Victorino desappareeeu mais uma das
glorias que nos orgulhavam.
Homem multiplo, elle era o sabio e o poeta, o
fundibulario e o artista, o eyclope e o miniaturista.
De volta da sua viagem á Europa, reassumindo a
cathedra de lente e tornando á clinica, arrebatava o seu
auditorio de alumnos com a belleza da phrase, sempre
culta, com que desandava todos os segredos da sciencia e,
á cabeceira dos enfermos, maravilhava os collegas com as
audacias de alta cirurgia, recompondo, por meio da
autoplastia, faces corroídas ou propondo e realisando
resecções e ablações que pareciam loucuras. Terminada a
operação, deixando o allivio áquelle que gemia,
purificando as mãos que haviam chafurdado em sangue e
em ichor, sentava-se á mesa e o cirurgião desapparecia e
no seu gabinete tudo se transformava : o tabix do
esqueleto cobria-se de carnes, um sangue entrava a
colorir os labios que se entrea-biam, onde só havia o
rictus sinistro, olhos accendiam-se nas orbitas vazias,
voltava o sorriso á face; o gesto, o movimento
accionavam o que era inércia e o symbolo triste da Morte
apparecia sob a feição risonha da propria Viaa : era a
Musa inspiradora ! E a mão que, minutos antes, havia
retalhado a carne, esborcinado a pústula, lá ia, obediente á
inspiração divina, traçando o período scintillante, onde a
idéa fulgurava facetada carinhosamente pelo capricho
requintado de um artista magnififico. Mas se o barbariso
se levantava nas ruas, se partiam justas queixas do meio
do povo opprimido, elle deixava a sua torre de marfim e,
subindo
274
A BICO DE PENNA
ao posto de combate, com a fúria de um lapitha, era
vê-lo lá de cima a arrojar catapultuosamente penhas
sobre penhas, como a ave monstruosa da lenda persa
que, remigiando na altura, de azas largas, para
vingar-se, guindava penhascos até perto do sol e, lá
de cima os deixava cahir, destruindo com elles
esquadras nos mares, e aldeias em terra.
Morreu pobre como o homem da cabeça de ouro,
de Daudet que, depois de haver enriquecido meio
mundo com as preciosas lascas do craneo, um dia,
querendo comprar um par de botinas, levou os dedos
á cabeça, que era o seu thesouro, e tirou-os
ensanguentados, com umas miseráveis estrias de
ouro .. . «Il y a par le monde de pauvres gens qui
sont condamnés à vivre de leur cerveau, et payent en
bel or fin, avec leur moelle et leur substance, les
moindres choses de Ia vie. C'est pouf eux une
douleur de chaque jour ; et puis, quand ils sont las
de souffrir . . . » e assim termina a Legende de
Vhomme à la cervelle d'or.
O que morreu tinha ainda uma copiosa riqueza
na grande mina, mas dava-a toda aos que a pediam.
Aquelles labios não sabiam dizer não ! E lá ia elle a
todos os trabalhos, mostrando-se em todos os
lugares, na hora do combate ou no instante da cari-
dade— fulminando ou implorando, batendo-se pelos
opprimidos ou pedindo para os pequeninos e para os
valetudinarios.
Na sua casa da rua Leite Leal, nas Laranjeiras,
disse-me elle uma noite, a propósito da litteratura:
«que era uma carreira ingrata, menos ingrata, to-
davia, que a política. Não me aconselhava a deixá-la
porque eu poderia responder com o mesmo
A BICO DE PENNA 275
conselho e elle teria de calar-se e concluiu : esses
idealismos são sempre fataes. A política é também uma
poesia ».
Toda a vida d'esse extraordinário lutador de rija
tempera, mas desprovido de couraça, porque não tinha o
egoismo para defender-lhe o corpo nem a indifferença a
reforçar-lhe o coração, residia no cérebro, que
funccionava como um pharol mostrando ora a luz branca
da paz, ora a luz verde da esperança ou o clarão
sanguineo do combate.
A tempestade rugia em torno d'elle, tremenda, os
vagalhões assaltavam o seu rochedo cuspindo-lhe a baba
salgada da injuria, e elle, indifferente, continuava a
alastrar o mar procelloso com o clarão salvador do seu
gênio — por elle fugiam os navios evitando a costa
tenebrosa salteada de rochedos e as alcyones vinham
bater as azas de encontro á sua luz como se tentassem
fazer a tréva, mas só conseguiam maguar-se e cahiam
palpitantes nas rochas do seu pedestal. As procellarias
gritavam, longe, na vaga, receiando affrontar o esplendor
e todos os monstros marinhos, que esperavam a carniça
dos naufragios, olhavam, com ódio impotente, aquella
fulguração bemdita que abria na ferruginea densidão uma
clara estrada por onde os navegantes pudessem levar
seguramente os barcos frageis.
Como não visse clarão de sol e a noite se prolongasse
pelo dia o pharol não se apagava e, aclarando,
resplandecendo, ia sendo minado na base pelos vagalhões
assaltantes e, repentinamente, fragorosamcnte, eis que a
torre desaba deixando em negra escuridão a costa e o mar
sinistro onde agora
276
A BICO BÉ PENNÂ
erram, entreehocando-se, os navios perdidos e
alcyones, monstros e procellarias festejam, com
alegria selvagem, a catastrophe.
Misero e grande luzeiro, tiveste a sorte de
Prometheu e mais do que o grande piedoso que viu
apenas as filhas de Oceanus chorando
lamentosamente em torno do seu presidio, tu tiveste
toda a Patria a chorar em volta do teu corpo, e se,
como na linda poesia do grande lyrico das
Levantinas, as lagrimas que a tua morte arrancou
corressem em um só caudal por elle iria fluctuando o
teu esquife, como uma bari divina descendo na
correnteza de um rio de saudade.
O VIOLINO (1)
No recesso mais temeroso de embrenhada
floresta, onde o sol era tão raro como os
passarinhos, avultava, calada e sinistra, alta e de
muros de ferro, cercada por um fosso no fundo do
qual luzia uma água morta, logradouro de rans que,
desde o cahir das noites, alteravam o silencio com
um lugubre coro, a alcaçova do genio.
Homem algum, eavalleiro ou lenhador, por mais
atrevido que fosse, jamais chegara áquelle
encantado sitio ; as mesmas águias temerárias, ainda
acossadas pelas tormentas, evitavam, espavoridas,
as ameias da mansão ; só as estriges e os vampiros
chirriavam, trissavam esvoaçando em volta das
(1) Improvisado no Club Campineiro, na noite do concerto do
violinista Diaz Albertini, e escripta a pedido de vários admiradores
do extraordinário artista, para que fique como lembrança da
encantadora festa.
278
A BICO DE PENNA
torres sombrias onde tinham os seus ninhos bem
agasalhados.
Um exercito de gnomos e enxames de sylphos
vigiavam a terra e o ar e, á beira dos rios, nas pedras
das fontes, nixes e ondinos, com os cabellos verdes
emmaranhados de algas, faziam a guarda silente das
aguas e ai! de quem se aventurasse pelos meandros
de tão fechado bosque ! Aquelle que chegava a
avistar o viso d'uma das torres não olhava jamais o
sol que redoura os campos.
Tão tristonha morada, perdida na selva, devia ser
como um cárcere. Quem a visse, quem a percorresse,
não lamentaria o sequestro do mundo. Os salões,
que eram incontaveis, variavam no feitio e na
riqueza. Neste, os muros eram todos de prata ;
noutro eram de claro crystal ou de onix negro e
rebrilhante. Os tectos resplandeciam como céus
recamados de pedras finas. O ladrilho era todo de
porphyro, de aventurina, de topasio e de jalde.
Fontes aromaticas, golfando sonoramente,
refrescavam, perfumavam todos os aposentos e os
jardins immensos, de aléas semeadas de mica,
estavam sempre floridos e por elles, festivamente,
cantavam legiões de pássaros mimosos e graciosas
corças e antilopes, juntos, á beira dos lagos
espelhentos, olhavam pensativamente os cysnes que
nadavam.
Não havia, entretanto, em toda a immensa al-
caçova, a sombra de uma ancilla — todo o serviço
era feito mysteriosamente e a única criatura que
habitava a vastidão era a mimosa e linda princeza
Eudalia,
A EICO DE PENNA 279
Filha de reis, tinha Eudalia cinco annos quando,
uma tarde, passeiando entre as aias nas alame
das do parque real, foi arrebatada por uma águia
que, sem dar tempo a que acudissem, voou, voou
tão alto que, quando sahindo do espanto
em que ficaram, ergueram os olhos, nada mais
viram no espaço senão as nuvens que se
accumulavam.
Foi uma consternação na corte e em todo o reino.
Emissários sahiram propondo prêmios a quem
descobrisse o paradeiro da princeza. Por fim
lembrou-se o rei, para animar as pesquizas, de
offerecer a mão de Eudalia e a coroa real a quem a
conquistasse ao gênio, porque um feiticeiro, con-
sultando os seus grandes livros magicos, chegou a
descobrir que o rausor era um gênio e dos mais
poderosos. Foi tudo em vão.
Cobriu-se a corte de luto, mas com o correr dos
annos, Eudalia foi esquecida — só a rainha a
chorava quando, atravessando a câmara deserta, via
a cama de fios de prata em que d'antes sorria a
princezinha.
Eudalia, emtanto, crescia feliz na merencorea
alcaçova da selva. ífada lhe faltava — os seus
desejos eram immediatamente satisfeitos.
A principio espantava-se de vêr a mesa servida
sem que apparecessem criados, de ouvir musicas e
cantos, de achar flores na sua camara, de ser levada
suavemente d'um a outro ponto sem vêr, sem sentir
os braços que a transportavam ; pouco a pouco,
porém, habituando-se á vida de encantos, achava
naturaes e simples todos os prodigios.
O genio, esse, só de longe em longe lhe appare-
280 A BICO DE PENNA
cia, porque andava, quasi sempre, errando. Era um
lindo mancebo louro, de olhos azues, mas triste, de
uma tristeza que se communicava á alma da formosa
Eudalia, já então moça e linda.
Quando elle permanecia no castello, tempo tão
curto e tão feliz para Eudalia ! ella cercava-o de
carinhos, tomava-lhe ao collo a formosa cabeça e,
ameigando-o, asseteava-o com perguntas sobre a sua
vida, sobre o mysterio d'aquella residencia ; elle,
porém, mantinha o mutismo, e para evitar mais
perguntas, pretextava uma viagem e levantava-se á
pressa. Sempre, porém, que tinha de sahir, chamava
Eudalia e recommendava-lhe que respeitasse o salão
que era fechado pela porta de bronze.
Succedeu, porém, que, sendo, d'uma das vezes,
mais longa a demora do gênio e conhecendo Eudalia
todas as maravilhas do solar, cresceti no seu coração
o desejo de vêr a sala prohibida. Que estranhos e
admiráveis thesouros haveria lá dentro!
Durante quatro dias com as suas noites Eudalia
lutou contra a curiosidade para não faltar á promessa
que fizera ; no quinto dia, porém, caminhando ao
longo do corredor que levava á sala do mysterio,
desejou, com ânsia, vêr o que nella se continha e,
como todos os seus desejos eram immediatamente
satisfeitos, logo sem rumor, escancarou-se a porta
pesadissima.
Eudalia, com o coração sobresaltado, entrou no
recinto, que era illuminado por uma claridade azul e,
correndo os olhos pelas paredes nuas, nada viu que
reclamasse a sua attenção e sorriu dizendo com-
A BICO DE PENNA 281
sigo mesma : «Foi, sem duvida, para experimentar-
mo que elle prohibiu que eu aqui entrasse ...»
Caminhando, porém, deu, a um canto, com um
toro de madeira e num dístico estas palavras :
«Pedaço do tronco de Haiín, a arvore do Bem e do
Ma Perto estava um fino arco, com estes dizeres
em letras de ouro : «Arco de Eros, o Amor ».
Pendente da parede um nastro de filamentos : «
Clinas do cavallo Pegaso » : ao lado quatro fios
compridos : «Cabos da náu Argos» ; não longe um
«osso da cauda de um delphim », um « baculo de
pastor aryano » e « os quatro cravos da cruz de
Christo, os que pregaram os membros do Messias e o
que cravou a legenda ironica no cruzeiro ».
Eudalia sorriu vendo aquelles disparatados
objectos, e ainda sorria quando sentiu que alguma
coisa lhe cabia aos pés — olhou e viu finissima serra
de diamante e logo uma voz lhe disse :
« Serra o toro de Hain e tira duas laminas bem
finas, dá-lhes a forma de um gracioso tronco de
mulher com a cintura bem justa — terás o Bem do
amor e o mal do Ciúme. Adapta-lhe, na parte
superior, o baculo do pastor aryano e na parte
inferior o osso da cauda do delphim, que conservam
toda a bucolica dos eampos e toda a melancolia dos
mares. Crava na volta do baculo, dois em cada lado,
os cravos da cruz e terás os pontos cardeaes do
soffrimento. Prende nos cravos e liga-os ao osso do
delphim os quatro eabos da náu Argos nos quaes
silvaram os quatro grandes ventos de Eolo. Toma o
arco de Eros e nelle estira, de ponta a ponta, as finas
clinas brancas de Pegaso, que é o Ideal que arrebata.
E, com o Amor e o Ideal, repassa os ca-
282
A BICO DE PENNA
bos retesados da náu Argos e terás uma companhia
na solidão em que jazes».
Calou-se a voz e Eudalia ficou largo tempo a
pensar no seu conselho até que se resolveu a
executar o que ella lhe dissera. E assim fez.
Dias e dias passaram sem que ella sentisse,
entretida, como estava, naquelle emprego, até que,
ao cabo d'uma semana trabalhosa, realisou o seu
desejo. Tinha o objceto nas mãos e, passando e
repassando o arco pelos finos cabos, notou que
alguma coisa gemia torturadamente.
De novo a voz falou no mysterio :
«Abre dois S na caixa do instrumento — um
será o sorriso, outro será o soluço».
Assim fez Eudalia e, de novo, repassando
suavemente o arco, teve como uma visão angElica.
E os primeiros accordes abalaram de tal modo a
alcaçova que todo o encanto desappareceu e a
pesada mole aluiu com estrondo e todos os gnomos,
sylphos, nixes e ondinos que assombravam a
floresta desappareceram da noite para o dia.
Justamente no momento em que soavam os
primeiros accordes o gênio chegou ao castello e
descobriu a desobediência de Eudalia. Para vingar-
se, então, por haver uma mulher desvendado o seu
segredo, brandiu a sua vara de encanto destruindo a
alcaçova e arrasando a selva e, furioso, pronunciou
estas palavras cruEis :
«Vivias feliz, desobedeceste á minha ordem —
soffre para o todo sempre, alma curiosa, encerrada na
própria carcerula que construiste ».
E a alma de Eudalia, abandonando o divino
corpo que habitava, passou-se para a caixa do
nsgr^ ime.mszr&smm
A BICO DE PENNÀ
283
objecto que pacientemente construirá com tudo quanto
encontrara na mysteriosa sala fechada pela
porta enea.
Annos e annos correram. Ninguém mais se lembrava da
alcaçova do gênio quando, uma tarde, um menestrel errante,
parando, para repousar entre as augustas ruinas, ouviu um
piar mimoso. Baixou os olhos e, entre as urzes fortes que
livremente cresciam, enfestoando a pedra ennegrecida,
descobriu um objecto de extravagante feitio. Tomou-o
curiosamente, pôz-se a examiná-lo e viu que alguma coisa
havia dentro delle — um pássaro, talvez. Não ! Ao lado jazia
um arco, o arco de Eros. O menestrel, sem atinar com a
utilidade de taes objectos, ia-os já abandonando quando uma
voz suave pôz-se a dizer :
« repousa o instrumento sobre o coração e agita-lhe as
cordas com o fino arco que empunhas e ouvirás todas as
melodias — desde o canto inno-cente da ave, porque
muitas pousaram na arvore do Paraiso, até o ululo dos
ventos que sopraram, vergando os cabos da náu Argos.
Nelle acharás a poesia suave dos campos e a epopéa
grandiosa das tormentas no mar, a voz do Amor e todos os
soffrimentos que resumem os cravos que pregaram
Christo e o seu opprobrio. Ouvirás, emfim, quanto cabe
entre os dois pólos do Sorriso e do Soluço que têm as suas
passagens nos dois S talhados na caixa rubra, porque foi
feita toda ella com finas lâminas tiradas da Arvore do
Bem e do Mal.
«O que tens, menestrel, é o sacrario de todas as vozes
e, dentro do sacrario, jaz a alma que afina a melodia
dando-lhe a expressão. Como o ar que
284
A BICO DE PENNA
atravessa um jardim florido leva o perfume das
flores, assim os sons que repassam atravez d’uma
alma levam o sentimento».
Ouviu o menestrel e, tomando o arco docemente,
extasiadamente, pôz-se a afflorar as cordas do
instrumento.
E foi assim que, na terra, appareceu o violino.
VIGILIA
«MADRID, 18.
«Hoje, pela manhan, foi preso um
Indivíduo que atirou grandes e pesados
ramos de flores á carruagem da princeza
D. Maria Thereza, irman de sua
magestade ò rei Afíonso.
«Verificando-se que os ramos só
continham flores e que o indivíduo era
um simples enümsiasmado, foi elle
posto em liberdade >.
(Telegramma d'0 Paiz).
Á primeira luz da manha ei-lo de pé, pallido,
com fundas e roxas olheiras, dobrado de fadiga,
exgottado pela vigília da noite longa, rolando
sofredoramente, pavidamente, no leito real de
baldaquino armoriado.
Que noite angustiada! Não padeceria mais um
réu que, na véspera do supplicio, estirado no socco
grabato, olhasse, de instante a instante, o alto e
gradeado respiradouro á espera do primeiro alvor da
madrugada mortal. Misero principe !
De volta das festas, ancioso por um instante
286
A BICO DE PENNA
de silencio e socego, recolhe-se á sua câmara
tapeçada. As paredes sombrias estão cobertas de
retratos dos grandes, dos fortes reis da Hespanha :
de Affonso o poeta até Carlos v o senhor do mundo
e outros e outros perdendo-se na penumbra, uns
vestindo velludos, outros acobertados de aço e, entre
elles, como a própria bravura iberica, o genio
guerreiro da peninsula, o Campeador, com as mãos
apoiadas no punho do montante, os olhos além,
como a perscrutar o horisonte. E todas as figuras
parecem fitar, com pena, o jovem rei, em cujas veias
um sangue fraco circula com o vagar d'uma
aguazinha de arroio que vai seccando.
Lá fora, além dos muros espessos do palacio,
velam as sentinellas armadas contendo o povo
generoso que acclama o moço monarcha. E elle
ouve as vozes confusas da populaça, ouve os sons
das charangas que passam, o troar dos vivas que
reboam e, de instante a instante, como a recordar a
grande religiosidade da terra de Santo Ignacio e do
Santa Thereza, os sinos bimbalham alegremente
porque a Igreja celebra igualmente, com jubilo, a
ascenção ao throno de mais um defensor da Pé. E
elle ouve, escuta.
Vai a noite seguindo o seu curso, recama-se o
céu de estrellas, a lua apparece, lua de Maio, clara o
linda, d'uma doce luz transparente. Um clarão
amarelleoe o espaço como o livor d'um incendio. É
que toda a cidade resplandece illuminada festejando
o acontecimento de que é elle o protagonista. Elle é
a causa unica d'aquella alegria, foi para honral-o que
outros principes deixaram os seus reinos seguidos de
números a comitiva;que
A BICO DE PENNA
287
os embaixadores chegaram apressados, com presentes, de
todas as partes do mundo ; que os comboios se
multiplicaram para conduzir os homens curiosos do
fulgurante espectaculo.
Todos os palácios têm hospedes de estirpe. Os
grandes de Hespanha receberam e agasalharam
representantes das nobres cortes, os hoteis regorgitam de
forasteiros, as modestas locandas foram disputadas e todo
esse movimento de sympathia fá-lo tremer apprehensivo.
Onde estariam elles ?
Pouco a pouco a cidade vai escurecendo. Ainda
passam grupos, e, ás vezes, uma estropeada de animaes.
O leito lá está a esperá-lo.
Dormir ! ? E se alguém houvesse penetrado no
palácio aproveitando-se d'uma distracção da guarda, que
anda com a attenção nas festas, esquecida dos seus
deveres ou, quem sabe? talvez mancommunada com os
assassinos? Póde estar alguém ali dentro, á espera da hora
silenciosa, com um punhal prompto para o crime.
A tremer, lento e canto, ei-lo a correr os cantos,
descalço, contendo o coração. Afasta os pesados
reposteiros, olha, inclina-se para espiar atraz dos moveis ;
desconfia e estira-se no soalho atapetado e olha para
baixo da cama. Ha lá uma sombra, treme, recua e insiste
— não, talvez se haja enganado. Volta a olhar : sim, foi
engano. Levanta-se e, dando com um dos retratos,
estremece. A figura de um guerreiro formidavel parece
sorrir com pena d'aquelle mancebo fraco que anda, em
pontas de pés, de canto a canto, espiando, perscrutando,
examinando.
Ah ! aquelle era da raça dos valentes que, ao
288
A BICO DE PENNA
brado dos esculcas, montava o ardego ginete e, descendo
a viseira e enristando a lança, arremettia feroz contra as
hostes soberbas. Aquelle não tremia e, só com um brado,
fazia recuar o inimigo mesquinho. Elle descendia
d'aquelles heroes magnifi-cos, era um rebento d'aquella
raça viril de conquistadores afoitos, mas pobre d'elle ! se
para ser rei da Hespanha fôsse-lhe necessario revestir
todo o aceiro d'aquellas armaduras, peça a peça, desde o
morrião até os sapatos de ferro e afivelar a espada,
embraçar o escudo, empunhar a lança, então o mundo
veria que a raça dos reis acabou no dia em que o ultimo
alfageme, açacalador de armas finas, deixou morrer o
fogo na sua forja. E a noite segue.
Já os sinos não bimbalham festivamente. De espaço a
espaço, no silencio, um d'elles bate as horas lugubres. O
palacio dorme — lá fora velam as sentinellas armadas
como as guardas d'uma alcaçova sitiada.
E elle é o rei! Sente na fronte a impressão da coroa,
ouve ainda as vozes que entoaram a sua glorificação, vê o
povo contido pelas alas militares e o sol, o admiravel sol
fazendo brilhar as polidas lâminas das bayonetas que o
defendem. É o rei!. ..
Deita-se medrosamente, encolhido. Uma zoada
enche-lhe os ouvidos como se nelles tivesse as abelhas
d'uma colmeia assanhada.
Repentinamente eriçam-se-lhe os cabellos, um
fremito percorre-lhe o corpo, escancellam-se-lhe os olhos
... que viu ? Uma das figuras das telas como que se
moveu levantando o braço rijo e, como o velho Eviradnus
do poeta, deixando a armadura no palácio sinistro, lançou
fora do quadro a mão
A BICO DE PENNA 289
calçada em guante agitando uma lança aguda. Foi
illusão... O velho rei lá está immovel, olhando-o
serenamente, com a piedosa ternura com que um avô
contempla o pequenino neto. Foi illusão. Deita-se e, sem
somno, fica-se a repassar todos os acontecimentos do dia.
Elle é rei! rei e senhor de toda aquella terra tradicional,
rei d'aquelle povo heróico que, tantas vezes, em
esforçadas batalhas, em arriscadas expedições, levantara
gloriosamente o pavilhão catholico.
É rei e senhor nas cidades velhas como Toledo e nos
campos fecundos, nas águas do mar que ainda refervem
sobre os destroços da frota carregada de ouro e nas
montanhas onde rolou o precioso sangue de Rolando e de
Oliveira, em cujas penhas parece haver ficado o éco
clangoroso do olipliante do paladino ; nos valles ferteis
onde loureja o trigo e reverdece a vinha e nas covas
asturianas onde se refugiaram os companheiros de
Pelagio. Elle é rei!
Na sua infAncia diziam-lhe que elle governaria outros
povos de ilhas longínquas, umas nos mares da Asia,
outros nos mares da America . . . Depois chegaram
homens feridos, rotos, sangrando e nunca mais lhe
falaram de taes ilhas ... Também, para que mais
territorio? para que mais povos se elle tem a Hespanha e
os hespanhóes ?
E elles ? Onde estariam elles, os inimigos ? Com
certeza, durante as festas, alguns, mais atrevidos,
tentaram chegar ao seu carro e teriam realisado o seu
intento se a tropa os não tivesse contido e porque não
havia elle de os conhecer, a todos ? Que fazia a policia
que os não prendia ? e os carrascos da Hespanha ? Ah!
não,a Hespanha não os
290
A BICO DE PENNA
tinha . . . E, como havia elle, o rei, de livrar-se
d'aquelles homens que desejavam o seu sangue ?
Morrer ! Morrer quando começava a reinar . . . E,
ante os seus olhos, como numa dança fantastica,
cruzam-se, rebrilhando, laminas frias de ferros
mortaes. Sacode-se o infante, ergue-se e a visão
horrivel desvanece-se subitanea.
Ali mesmo em palácio devia haver conjurados...
Aquelle velho lacaio que vira seu pai, o finado rei,
ensaiar os primeiros passos nas alamedas do parque
real. . . Não, pobre velho ! Se elle o olhava com
aquelles olhos cheios de piedade . . . Porque lhe
havia de querer mal, o bom velhinho ? Não ! Mas os
outros ? os alabardeiros ? os pagens, que, á noite,
atravessavam sorrateiramente os longos corredores,
cosendo-se com as paredes como se não quizessem
ser vistos ? Mesmo entre as damas algumas ha que
lhe despertam suspeitas . . . E os guardas? serão
todos fieis ao juramento que prestaram ? Aquelles
brados que quebram o silencio da noite morna não
serão um signal convencionado ? Porque não ha de
elle conhecer todos os conspiradores ! Oh ! a
incerteza cruel! a duvida tremenda ! a eterna
suspeita . . .
E aquelle homem que rompeu a multidão para
arrojar ao collo da princeza os dois grandes ramos
de flores ! Seria mesmo um representante do antigo
e generoso povo de Hespanha que estremecia os
seus reis dando a vida por elles ? Sim, era um
humilde homem do povo que, querendo provar aos
soberanos a sua fidelidade, talvez até com o intuito
de demonstrar que, apezar da sangrenta propaganda
do anarchismo, ha ainda na Hespanha homens
A BICO DE PENNA 291
fieis á tradição, resumira as suas despezas para
reunir as pesetas necessárias á acquisição d'aquellas
flores de Maio com que, enthusiasmado, saudou a
princeza Maria Thereza.
A cavalheiresca cortezia não foi retribuída pela
dama gentil, mas por um solicito agente da
segurança que logo se apoderou do homem. E os
dois ramos foram repellidos do carro e, examinados
cuidadosamente, os homens da policia nelles apenas
encontraram flores — rosas, lirios, amaryllis,
fuchsias e, circumdando, folhas de tenue e recortada
avenca e era tudo.
O homem, de pé, entre esbirros, olhava
acompanhando, com pena, a destruição dos lindos
ramos : as pétalas espalhavam-se pelo chão, eram
pisadas brutalmente e elle olhava, calado,
lembrando-se de que, para comprar aquellas flores,
privara-se de tanta coisa . . . tanta ! E ali estava
preso, maltratado, ameaçado como um criminoso.
Por fim, demonstrada a sua innocencia pelas
mesmas flores, deram-lhe liberdade. O misero ficou
ainda algum tempo cabisbaixo, a olhar, e foi
necessario que o mandassem sahir para que se
resolvesse a tomar o chapéu e partir.
Desceu as escadas vagarosamente, um sorriso
triste franziu-lhe os labios e, em baixo, detendo-se,
ficou a pensar nas flores, as lindas flores, que lá
estavam em cima amarfanhadas pelas mãos brutas
dos agentes. Por fim, resolutamente, mergulhou na
multidão e desappareceu.
Este episodio, que lhe fora narrado por um
aulico, açode ao espirito do jovem rei e, pensando
no homem simples, cuja bondade fora tão mal
remune-
292 A BICO DE PENNA
rada, Affonso sente o coração travado o uma voe,
como da consciencia, diz-lhe no intimo da alma :
«Esse homem nunca mais trará flores á passagem
dos reis — é um despertado e tem razão ... Se o
vises no teu caminho evita-o. E lembra-te, agora que
és rei, que os odios do povo nascem sempre de
injustiças como essa que foi commettida com o teu
subdito».
Às sentinellas bradam e, como o rei se recline
nos travesseiros, á escuta, ouve uns tremulos de
guitarras e vozes que entoam uma seguidilha alegre.
É uma serenata que recolhe, rapazes. E sozinho,
triste, entre as hirtas figuras dos seus rispidos
antepassados, o jovem rei da Hespanha vai
esquecendo o enthusiasta das flores para
acompanhar aquella alegria da mocidade, ultimas
notas da festa nocturna que lá vão pelas ruas
adormecidas, fazendo estremecer de amor nos leitos
pivros as lindas moças enamoradas, como no tempo
romantico de D. Juan Tenorio e, deixando-se cahir
pesadamente no leito, o rei suspira, invejando os
mancebos que podem andar livremente, á noite,
pelas ruas, cantando amores, ao luar.
RESURREIÇAO
Ave Maria ! dobre a finados. O sol agonisa. Em
torno delle, no leito do occidente, prostram-se as
nuvens, como odaliscas, recolhendo, com anciã, a
herança luminosa dos ultimos esplendores.
Ei-las garridamente rolando na copiosa purpura
que escorre. Todo o occaso encarde-se e, á mesma
terra, chegam restos da luz que esmaece no azul. As
nuvens ficam vaidosas, qual mais dourada ou mais
vermelha, escabujando nas ondas sanguineas que,
como um rastro, o sol deixa na altura. Iblis, porém,
espreita as descuidadas e, tanto que o guerreiro
tomba, logo se precipita no céu com a sua horda
rapace roubando a claridade ás nuvens
resplandecentes.
Rouba com furia, deixando-as pallidas como
cadáveres e estende pelo céu livido o crépe negro da
noite, prega-o seguramente com os cravos das
estrellas, espalha sobre elle a cal funeraria da Via
294
A BICO DE PENNA
Lactea e, aqui, ali, punhados de nebulosas e, a lua,
como um fantasma melancólico, vestindo o sudario
branco, salie pelos ares tristes peregrinando
solitariamente.
Veste-se a terra de luto e Iblis, sempre
parodiando o Senhor, abre o sinistro aviario
soltando nos ares os voadores trágicos. A estrige
chirria, trissa o morcego, a phalena esvoaça e
myriades de insectos enxameam a sombra como
uma poeira viva : são miniaturas de vampiros,
abelhas satanicas que fazem o seu mel com o sangue
da flor humana.
Meia noite ! Iblis domina. O silencio é geral —
só as aguas, que trilham o seu viajar eterno, passam
chorando pelos cavados leitos pedregosos. É a
morte. Eis, porém, que no oriente apparece uma
nesga rosada — desprende-se o crépe, rasga-se o
funereo velario. Canta um gallo no campo, um sino
vibra. Matinas ! É a resurreição — a aurora.
Eesurge o sol como uma semente que se abre : É
um renovo primeiro, tenro, mal rompendo a
densidão das nuvens, mas radia como uma haste que
vai lançando as folhas, cresce, aclara, esplende,
brilha, aquece rútilo, flammeja, sobe no céu, impõe-
se e, como sob uma arvore é a sombra que se
espalha, sob o sol é o clarão dourado que irradia.
Vivo, lá vai, emtanto, a caminho da morte. O
occaso é o alvo do oriente. A estrada da vida vai em
rumo direito á sepultura e a sepultura que é ? o
canteiro de Deus.
A BICO DE PENNA
295
Resurge ! esta é a ordem indefectivel, este é o
imperativo divino. A morte é um novo principio.
Para onde vão os rios ! Vão ter ao mar, sobem ao céu,
baixam em chuvas e em orvalho, entranham-se na terra e
reapparecem em vigor na planta, em sabor no fruto, em
aroma na flor ; seccam na planta, mirram no fruto,
exhalam-se na flor e morrem. Vão renascer adiante, em
outros seres, na eterna resurreição, porque Deus, no
Paraizo, fez uma só sementeira para toda a eternidade.
Não choremos a morte. Quem chora o somno ? Quem
lamenta uma criança que dorme ? espera-se que desperte.
Pois do somno maior espere-se a resurreição.
Esperar o céu é ter consciência da eternidade. Mas o
céu é o aniquilamento pela inércia, é a morte pela
esterilidade. O fim universal é a producção : Deus é
acção.
A piedade pela morte é um sentimento do egoismo
humano. Porque se lamenta o homem que geme ?
simplesmente porque o gemido é a exteriorisação do
soffrimento como a lagrima. E quem nos diz que as
coisas não soffrem ? A pedra bruta ferida responde ao
golpe flammejando, arma-se de raios como a nuvem, tem
cordas de fogo, que arroja ; a arvore lacrimeja quando o
machado a fende e entre os animaes, que tão pouco nos
merecem, ha as mesmas manifestações que caracterisam
a dôr — a ave chora o ninho destruido, o pachyderme
atroa a floresta com o rugido lamentoso quando encontra
ferida a companheira. A dôr é universal.
O que torna os simples e as coisas brutas supe-
296
A BICO .DE PENNA
riores ao homem é a resignação e essa resignação é,
talvez, urna prova a favor da utopia — o homem
orgulha-se da sua intolligencia, mas que sabe o
homem da vida ? que ella é o principio da morte e
espera-a com tristeza — os animaes e as coisas
esperam-n'a com indifferença e, talvez, com anciã,
porque sabem que ella é um aperfeiçoamento.
A arvore não chora a folha secca que cahe —
deixa-a ir desprendida : se ella fica nas suas raizes
ali apodrece e a sua essencia, a seiva, volta ao tronco
mais forte e renasce na flor e no fruto ; se o vento a
leva para longe, em, qualquer sitio que caia, acha
meio de renascer regressando ao esplendor solar
mais perfeita e mais linda.
A carniça que tresanda sob enxames de moscas é
um viveiro embryonario—onde alveja um arcabouço
ha a semeadura fecunda — a sanie purifica-se no
túmulo e o que foi nojo volta como delicia. O verme
repugnante colora-se e desdobra as azas marchetadas
durante o periodo da immobilidade — a larva jaz
como morta no casulo antes de ser borboleta. Entre
uma pagina e outra ha uma pequenina solução de
continuidade, longa como um bater de palpebras —
é a morte.
Em todas as religiões ha um deus que succumbe
e renasce e os exegetas vêm nisso uma reproducção
do mytho solar. Os mesmos gregos, tão indifferentes
á morte, choravam entoando o hino lamentoso por
occasião dos funeraes de Adonis. O Christianismo,
ampliando as tradições antigas, não podia deixar
A BICO DE PENHA
297
essa poesia da morte e fez della, não um simples
episodio, mas o motivo essencial do seu culto.
Toda a cerimonia do rito tristonho converge para uma
apotheose á resurreição ; as traições, as angustias, a
agonia do horto, a marcha para o Calvario, a crucificação,
a morte, são os degraus que levam á gloria suprema. O
céu escurece quando a cabeça do martyr pende sobre o
peito, faz-se noite em Jerusalém. Eedoura-se o céu ao
grito das mulheres annunciando o desapparecimento do
corpo.
O mysterio reproduz-se no rito como no mundo ; a
vida ó uma continuação. Cada existência individual
representa o progresso de uma série de vidas — o homem
é uma accumulação. « Onde estão os mortos? pergunta
Schopenhauer, e responde: aqui entre nós. Apezar da
morte, a despeito da pu-trefacção, elles e nós estamos
unidos » e Pompey Gener accrescenta : «Assim se
liarmonisam o que nós poderiamos chamar a perpetuidade
da materia e a perpetuidade do espirito — uma
produzindo fôrmas a mais e mais perfeitas, a outra
fornecendo obras cada vez mais consideráveis. A herança
das capacidades engendra seres cada dia mais aptos a
pensarem, mais susceptiveis d'um grande nivel
intellectual porque á capacidade e á aptidão que cada um
recebeu cila ajunta o que adquiriu pela observação e pelo
calculo. De sorte que, pela herança conservadora e pelo
progresso individual, a Humanidade encaminha-se
gradualmente para a perfeição ».
Essa certeza da vida progressiva atravez da morte não
basta para consolar a mãi que vê o filhinho morto,
estendido entre rosas e ciriaes, no
298
A BICO DE PENNA
caixãozinho enfeitado de franjas e galões dourados. Maria
sabia que Jesus havia de resuseitar, que sahiria da cova,
ao terceiro dia, entre anjos, na gloria esplendida da luz
divina ; entretanto, desfizeram-se-lhe os olhos em agua e,
emquanto durou o martyrio, não se despegou dos pés da
cruz, na attitude sublime e muda do Stabat.
Viesse um cherubim á terra e dissesse á mãi infeliz
que velava o cadáver do filhinho : « Secca o teu pranto,
elle é anjo no céu ...» ella, por certo, cahiria de joelhos e,
de mãos postas, pediria o filho, preferindo vê-lo junto ao
collo, a sugá-lo, a sabê-lo no céu, com uma harpa de ouro
nas pequeninas mãos, entoando hymnos ao Senhor.
O que faz a morte triste é o egoismo humano.
O mundo é um grande tumulo, tendo á cabeceira a
cruz de Christo e nós vivemos de exhumações — somos
como essa Amina no conto oriental. A morte restitue-nos
a vida, a semente é que nos dá o pão e o linfeo, subindo
transformada da cova em que a deixamos. A vida é uma
ressurreição perenne.
VALENTIM MAGALHÃES
Foi o meu primeiro adversario.
Quando estreei no Eio, em 1885, publicando na
Gazeta um conto, puramente descriptivo, intitulado :
Pai do céu, Valentim, que, então, redigia as Notas á
margem, estranhou o meu estylo super-abundante,
troçou a minha adjectivação excessiva que
prejudicava, sobremodo, a idéa, abafando-a : «A
floresta não deixava vêr as arvores».
Eu, que estava no pleno viço dos meus saudosos
vinte annos, melindrei-me com as observações do
critico e, ardendo em fúria, cheguei a pensar em
desforço violento e escandaloso. Mas um estupendo
poeta epico (que acabou porteiro d'uma secretaria),
lembrou-me, como mais digno, o duello : um duello
de morte, á espada, num bosque. Applaudi a
lembrança d'aquelle que devia ser o rivar de Camões
se não tivesse degenerado em empregado subalterno,
e juntos fomos procurar certo roman-
300
A BICO DE PENNA
cista (que não medrou, por motivos que a Historia
Litteraria não registra) e estabelecemos, com crueza,
as condições do encontro : um de nós devia ficar no
campo. Esse um, está visto, seria o critico.
Felizmente nesse tempo o meu appetite era
famoso e foi necessário adiarmos a discussão
sangui-nosa para irmos ao jantar.
Á mesa, devorando, a calma baixou sobre os
ardegos espiritos e, ao café, já se não falava em
duello. O épico superiormente forte, do alto da sua
soberba lyra de sete cordas, sagrou-me o «primeiro
prosador americano », o romancista augurou-me um
futuro deslumbrante e, com um vinho, cujo veneno
até hoje me róe as entranhas, bebemos á grande
Arte, desancamos toda a cafila de imbecis (que eram
os escriptores feitos. Vingai-vos, novos de hoje !) e
sahimos para a noite estrellada, carregados de
glorias, cheios de elogios e de ensopado com repolho.
Os tempos correram levando, pouco a pouco, as
minhas illusões. Eu começava a vêr a realidade
agreste. O epico esquecera as estâncias que não lhe
davam, sequer, para o almoço de assobio; o
romancista lançara ao fogo as paginas admiráveis do
seu estupendo estudo psychologico ; só eu me
conservei imprudentemente fiel a Apollo, vivendo
como Villon e como aquelles povos da fábula que se
nutriam do aroma das flores.
Andava accesa uma grande guerra digna de ser
cantada por um aêdo. A gente litteraria dividira-se
em dois-campos — em um d'elles tinha sua tenda,
que era a semana, Valentim Magalhães, no outro
A.BICO DE PENNA
301
avultava o pavilhão vermelho do Murat, rispido como um
Ajas — era a Vida Moderna, revista notável, não só pelas
formosíssimas producções dos seus collaboradores como
também pelas gravuras terrificas que estampava.
Eu, que ainda guardava rancor ao critico, alistei-me
na hoste de Murat e, força ó dizer, as batalhas foram
soberbas e, se a victoria nem sempre nos sorriu, podemos
dizer, com orgulho, que não recuámos de adversários,
armados pelos deuses, como Achilles, que se chamavam :
Bilac, Raymundo Corrêa, Alberto de Oliveira, Fontoura
Xavier, Eilinto de Almeida, Aluizio Azevedo, Luiz
Delphino, Julia Lopes e o chefe : Valentim Magalhães.
A furia sonorosa de Ajax-Murat retumbava em
alexandrinos formidaveis, Arthur Azevedo compunha os
seus delicados contos em verso, como essa formosa Soror
Martha ou trazia-nos scenas de Molière, vertidas com a
firmeza perfeita com que elle transporta d'um idioma para
outro as obras primas da poesia dramática e eu ... sei lá !
eu vingava-me esvasiando tinteiros.
Bom tempo ! Como havia onthusiasmo ! Como todos
nós acreditavamos no futuro! Um dia Murat appareceu-
me livido, bradando contra o publico ignominioso que
não entendia o nosso jornal. Com-prehendi. A Vida
Moderna estava morta. Também, com tantos dragões,
com tantas catastrophes na sua primeira pagina. Emfim...
Entramos para a Maison Bouge e lá ao fundo, num salão
obscuro, bebemos funebremente uma lutuosa cerveja
preta.
A Semana continuou. Eu, sempre confiante, com um
maço de originaes debaixo do braço, pro-
302
A BICO DE PENNA
curava um canto socegado para escrever o meu primeiro
romance. lios botequins não era possivel, com a lufa-lufa
dos freguezes, os berros dos caixeiros, toda a balburdia
ruidosa do commercio, da politicagem, da maledicencia e
da litteratice. E assim andava eu errando quando, um dia,
me apresentaram Valentim Magalhães.
Guardei certa reserva digna, elle expandiu-se, sorriu e
— é desvanecimento! — falou de todos os meus trabalhos
publicados n'A Vida Moderna. Lêra-os . . .! Sorri também
e, caminhando, fomos até a porta do Londres e o meu
«cordeal inimigo» apresentou-me a Alberto de Oliveira e
a Lucio de Mendonça e ficamos a conversar á porta até
que o poeta jurista nos convidou para um grog honesto.
Entretivemo-nos a falar de Arte até as cinco horas da
tarde e Valentim, que não perdia tempo, pasmou de que
assim o tivéssemos agarrado. Levantou-se
apressadamente. Antes, porém, de despedir-se, sem
phrases rebuscadas, offereceu-me a Semana. Eu mirei-o
espantado.
E a luta ?
Que luta ? A luta foi maravilhosa, que diabo !
Podemos falar, com orgulho, das nossas batalhas contra o
inimigo commum : a indifferença publica. Pensa, talvez,
você que não senti o desapparecimento d'A Vida
Moderna? Senti e muito, não só como escriptor que presa
as boas letras, mas também como proprietário de jornal,
porque o publico, interessado na polemica, buscava, com
ansiedade, a Semana e a leitura já se ia tornando um
habito. Nós estavamos criando o leitor. O Murat fez
prodigios, vocês portaram-se como valentes.
A BICO DE PENNA
303
Agora, se queres continuar, lá tens a Semana.
Aquilo é uma casa de artistas onde não cabem
inimizades. Se o soneto do adversário é bom vai
para a primeira pagina e com o louvor que merece.
Effectivamente era assim.
Nas lutas em que o vi, varias vezes, empenhado,
sempre contra adversários temiveis: Sylvio Homero,
Murat, Mallet, Valentim guardava sempre uma
attitude correcta, fugindo, com gentileza, ás
retaliações e aos doestos e só ficando no terreno da
discussão, no assumpto da polemica.
No periodo mais brilhante da sua vida litteraria
que foi, incontestavelmente, o das Notas de margem,
elle teve fulgurações. Por vezes a sua replica, rapida
e aguda, lembrava as vibrantes represalias de
Camillo, o seu colorido tinha vida, a sua fórma, se
não brilhava pelo bem polido das facetas, era forte e
de bom quilate. Era um polemista nervoso, que
esgrimia com elegância e firmeza, atacando com
lealdade e defendendo-se com graça. Teria, talvez,
ficado como um typo original e unico em a nossa
litteratura se a grande febre de produzir, o immenso
desejo de desdobrar-se não o houvesse afastado do
verdadeiro terreno, no qual o seu espirito se sentia á
vontade.
No conto, no romance, no theatro não foi o
mesmo homem vigoroso que nos havia apparecido
na polemica e creio que só uma vez a sua alma de
tempera acerada conheceu o desalento: foi quando a
Critica, que esperava o momento para vingar-se,
arremetteu impiedosa contra a Flor de sangue,
romance que bem pouco valor tem e que, longe de
304
.A BICO DE PENNÀ
ser um florão para o morto, é uma falha na sua obra
pertinaz de batalhador.
Valentim via bem o real para o commentario, sabia dar
a exacta impressão de uma leitura, achava, ao primeiro
olhar, a parte fraca de um escriptor ou de uma obra, e,
emistando a lança, era terrivel o golpe que vibrava, mas
a imaginação não o levava longe e, observando para o
conto ou para o romance, elle, o minucioso, o homem
da lente, que não perdia um detalhe, por mais
insignificante que fosse, esquecia-se de tudo e,
encantado, enamorado da própria obra, não lhe via os
defeitos. Foi o que se deu com a Flor de sangue. O
nome de Valentim Magalhães ha de ficar como um
symbolo — outro não houve de mais coragem, de mais
tenacidade, de mais perseverança. Quando todos
desanimavam querendo pendurar as lyras ou atirar ao
vallado os buris com que lavravam periodos elle
chamava-os, levantava-lhes o animo, falava-lhes das
suas lutas e, rindo, travava-lhes do braço e lá os ia
levando para a Semana e só os deixava quando lhes
arrancava a promessa de novos versos e de novas
paginas do prosa. Foi, sobretudo, um agitador e muito
do que por ahi ha deve a sua origem áquelle eterno
confiante, áquelle fiel appollineo que, mesmo
abandonado, sem publico, costumava tanger a lyra para
seu proprio gozo.
Foi elle o instituidor dos concursos litterarios que
nos trouxeram tantos artistas magníficos que viviam
ignorados na província e mesmo na capital. João
Eibeiro, o poeta-philologo, publicou o seu primeiro
conto, S. Bohemundo, uma joia, na Semana.
tivemos o Caso do abbade, de Garcia
A BICO DE PENNA
305
Redondo. São Luzo forçou a popularidade com o
Seraphim tristonho. Francisca Julia, Julia Lopes, Julia
Cortines, Zallina Eollin, Adelina Vieira, foram
apresentadas ao grande publico pela folha de Valentim.
Antônio Salles, o doce Luiz Bosa, Luiz Edmundo, e
tantos outros poetas de merecimento estrearam n'aquellas
paginas sempre fulgurantes onde resplandeciam as
chronicas de Bilac e de Filindal, o puro e devotado
Felinto de Almeida, alma rara de homem, alma
sensibilissima de poeta.
Carlos Malheiro Dias, que ó hoje uma das glorias da
litteratura portuguesa, a quem se quer dar o sceptro de
ouro do principe harmonioso da fôrma, o admiravel
Queiroz, eram dos mais assíduos freqüentadores da
Semana e, como se não bastassem á revista semanal
tantas glorias, deve-lhe ainda a litteratura o haver ella ido
buscar ao silencio em que se deixou ficar, depois da
morte da Gazetinha, esse soberbo poeta, talvez o maior da
America—Luiz Delphino, tão avaro em abrir os seus
thesouros diante dos quaes a gente tem a illusão de estar
debruçado, como nos poemas da índia, á beira de
prefulgentes abysmos de pedrarias, em cujo fundo, entre
fulvos leões de ouro, parthenias de virgens nuas dançam
serenamente uma ronda sagrada, ao som de lyras tangidas
por deuses.
O escriptor que morreu foi um chefe de movimento, foi
o corypheu de uma theoria de poetas e de prosadores que
hoje sustentam, com brio, a gloria litteraria da Pátria e, se
lhe não bastasse a sua copiosa bagagem para garantir-lhe
o nome, elle viria á frente d'essa brilhante phalange, claro
e puro,
306 A BICO DE PENHA
como o de um guia que alumiou o caminho para a
caravana.
Os que ainda se interessam pela vida intellectual
do paiz devem sentir o desapparecimento d'esse
robusto espirií o, que, apezar da indifferença, lutando
esforçadamcnte pela vida, sempre achava uma hora
no dia para pensar e escrever, appellando, com a sua
palavra insinuante, para os que se deixavam vencer
pelo desanimo para que voltassem á luta, retomando
as lyras silenciosas.
Valentim é um dos obreiros do grande periodo
litterario do Brasil e este louvor não lhe negarão os
seus proprios inimigos, se é que deixou alguns, não
creio porque, como eu, todos devem estar
convencidos de que elle nunca vestiu armaduras
senão para defender, como bom paladino, a Arte que
era a sua dama ideal, o seu amor supremo.
Eu, que vivi dentro da agitação fecunda desse
bom tempo, devo também ao morto de hontem, ser
hoje . . . um homem que não tem onde cahir morto,
porque tomou a serio a litteratura ingrata.
O NEY
Realisou-se, no cemitério de S. João Baptísta, no
Rio, a piedosa cerimonia da exlmmação dos ossos
de Paula Ney.
Eu estava presente quando as «maxillas do
sepulcro ? se fecharam sobre o corpo do generoso
bohemio. A tarde era linda, fresca e dourada. O
arvoredo funereo estava cheio de cigarras e, no alto
e negro cruzeiro, brilhava ainda uma faixa de sol.
Éramos poucos, todos amigos do que ia ficar no
seio da terra e, silenciosamente, como se
adubassemos o alqueivo quo recebera a semente,
iamo-nos transmittindo a pá de cal antes que a terra
incubadora rolasse fechando o tumulo. Depois
recuamos e os coveiros começaram o seu triste
serviço.
As cigarras cantavam, alegres coephoras que,
dos altos ramos funeraes, diziam adeus áquelle
irmão que também atravessara a vida descuidado,
sem pensar nos invernos agrestes que trazem a fo-
308
A BICO DE PENNÁ
me. Cantavam, nem deviam chorar porque a morte
fora para o exeellente rapaz um descanço — tão
consumido andava elle e tão triste, como um
principe que houvesse perdido o seu reino.
Nos ultimos tempos tornára-se melancolico,
silencioso ; raro em raro atrevia um commentario.
Encostado á porta do Paschoal, olhos parados e
tristes, ficava horas contemplando a multidão,
negando-se aos convites. A alguém que com elle
insistia, uma tarde, para que fosse beber um
vermouth, respondeu :
Obrigado, meu amigo — não posso aceitar :
estou sem espirito ; e encaramujou-se amuado.
Dias antes da morte, indo eu visitá-lo, chamou-
me para junto do leito em que jazia, estendeu-me a
mão fria e magra — mão generosa que era como
uma ponte de misericórdia entre a riqueza e a
miseria, porque recebia dos banqueiros para dar aos
pobres, e ficou a olhar-me — enternecido e mudo,
com os olhos a encherem-se-lhe de lagrimas. Disse,
por fim, em voz surda e áspera, arrancada, a custo,
do fundo do peito :
Estou acabando, meu amigo. A Morte, em
mim, está procedendo por partes : estou assistindo
a uma mudança. Ella começou pelos extremos :
tenho os pés frios, tão frios que não os sinto — es
tão mortos. Parece que estou soterrado em neve
até á cinta. Não como, não tenho appetite. Isto
cá por dentro está vazio — os organs essenciaes já
perderam a energia, a Morte levou-a. Estou agora
sentindo que arrastam alguma coisa no meu co
ração. Ah ! não ha de ser fácil a remoção nesse
organ, é que nelle eu tenho os moveis mais pesados.
A BICO DE PENNA
309
O coração era o gabinete de trabalho de minha
alma. Imagina o mundo de affeições que eu nelle
tenho . . . ! E suspirou : Como deve pesar o meu
amor de filho, velho amor que nasceu commigo e
que a saudade foi, aos poucos, augmentando !
Minha pobre mãi! E os outros amores ! meus filhos,
ella, vocês, o sol, as crianças . .. tudo isto !
Quando sahem das casas os moveis pesados, os
soalhos, por onde são arrastados, estriam-se de
sulcos. É o que se está dando no meu coração. A
Morte é brutal, meu amigo. Que execução dolorosa !
Como ella arrasta e como é lugubre o vazio que se
vai fazendo em mim . . .! Nunca imaginei que a
minha vida acabasse assim, com um mandado de
despejo. Sorriu tristemente e recostou-se nos
travesseiros altos. Depois, tocando na garganta,
continuou : Ouves a minha voz ? está rouca. Tu que
a conheceste sonora deves ter pena da sua miseria
actual. A Morte quiz levá-la inteira, não poude e fez
com ella o mesmo que se faz a um grande movei:
desarmou-a e lá a vai levando aos pedaços. Foi
primeiro o timbre — estou fanhoso ; foi depois a
ductilidade, estou aspero — resta-me o sarrido : falo
como um asthmatico. Em pouco a Morte estará no
cérebro abarcando as idéas e a divina Fantasia, que
occupa o altar-mór. E triste morrer assim, aos
arrancos. Cahir fulminado ! eis o meu ideal.
Emfim... Quedou, cruzando as mãos. Que ha de
novo ? perguntou de repente, repuxando as cobertas.
A poesia indigena continua a proliferar ? E a
política? E as mulheres ?
Tudo como deixaste, Ney.
Não é possivel. A imbecilidade deve ter pro-
310
A BICO DE PENNA
duzido alguma coisa nova. Fala-me dos imbecis para
que eu saia da vida sem saudade. Abriu os olhos
como em ansia e, surdamente, soerguendo-se,
exclamou : Meus filhos ! Que ha de ser d'elles ? Ah !
meu amigo, o que dóo na morte é o desprendimento:
os amores são as nossas raizes. Eu vou tranquillo —
já dei balanço na vida : tenho um grande saldo a
favor da alma e a benção d'um sacerdote honesto.
Mas os pequenos ? A Caridade anda muito atarefada
e falta-lhe um reporter . . . como eu. Emfim . .. !
Deus está lá em cima e eu, que tanto consegui dos
homens, hei de conseguir alguma coisa do Senhor,
não te parece ?
Quando me despedi elle exclamou, conservando
a minha mão : Adeus ! Eu disse : «Até logo ! » O
moribundo sorriu : Até logo ! Vais suicidar-te ?
Adeus ! Adeus !
De repente, com os olhos rebrilhantes, como se
nelles houvesse renascido a antiga centelha, fitou-
me e, rindo, com todo o corpo a tremer, pediu-me :
— Olha,, vê se conténs E. -Sei que elle anda a
compor um necrológio para recitar á beira do meu
tumulo, volta e meia está aqui a rondar-me, a beber
inspiração. Comprehendes que na minha posição de
defunto, que é, com pouca differença, a mesma da
victima do retrato a óleo, tenho de aturar resignado,
mas vocês, meus amigos, que vão apanhar a maçada
de uma viagem ao cemiterio . . . Não ! Aquelle
canalha, que nunca conseguiu impingir-me um
discurso, ó muito capaz de aproveitar-se da minha
morte para vingar-se. Mas a pilhéria é que eu não
ouço. Em todo o caso, por causa das duvidas, não o
deixes falar se não de-
-
A BICO DE PENNA
311
pois que os coveiros houverem entupido a minha
cova.
E rimos. Dois dias depois extinguía-se
serenamente o grande espirito. As suas ultimas
palavras foram ainda de piedade e fantasticas.
Voltando-se para um dos amigos que o cercavam,
rouquejou, referindo-se ás crueldades praticadas em
Canudos :
— Que hei de eu dizer ao Eterno quando elle
interrogar-me : «Ney, como é que em teu paiz ha um
homem que enfurna mulheres e crianças para matá-
las a kerozene !» Confesso que, pela pri-vez na
minha vida, quero dizer, na morte, ficarei sem
resposta. Logo depois, vagarosamente, arque-jando,
murmurou : D'aqui a pouco estarei como o meu
alfaiate : cadaver.
E assim desappareceu o gênio da pilheria.
Paula Ney, cuja vida foi sempre mysteriosa, era
conhecido em uma roda muito restricta — o
bohemio, esse era intimo do povo : o banqueiro e o
operario, a matrona e a cocotte, o fidalgo e o
mendigo tratavam-no com a mesma familiaridade
— era o Ney, o alegre Ney, que fazia rir, mas o
verdadeiro Ney que enxugava lagrimas, que levava
criancinhas doentes aos consultorios dos medicos,
que guiava os cegos nas ruas, que visitava enfermos
em verdadeiras tocas de miseria, que fazia enterros á
sua custa e que defendia os animaes com o carinho
piedoso de um brahmine, esse só era conhecido no
reduzido grupo dos companheiros.
Certa vez trabalhavamos, na typographia
Reynaud, onde era impresso O Meio: Mallet,
escrevendo de pé, com o grande chapéu
mosqueteiro, um immenso charuto a fumegar ao
canto da boca;
312
A BICO DE PENNA
eu redigindo vagarosamente uma nota escandalosa ;
Ney, a vociferar contra a «sandice universal» quando
assomou á porta uma velha, muito encarquilhada e
timida.
Ney, logo que deu por ella, precipitou-se e lá se
ficou todo curvado cochichando, a gesticular com o
pincenez. De repente bramiu :
Não senhora ! Ha de ser no sabbado, neste
sabbado, senão... e rugiu ameaçador: metto-o
na cadeia, a ferros. A ferros ! Vá e diga-lhe isto :
a ferros ! E, tomando a velha pelo braço, inclinou-
se e berrou-lhe ao ouvido : Olhe, minha senhora,
isto é uma canalha. Mulher não é melão que a gente
cala para vêr se está maduro. Diga-lhe que no
sabbado, ás quatro horas, quero encontrá-lo prompto
para a cerimonia. Os papeis estão arranjados,
o padre está falado, no sabbado ! Nem que chova
raios, entendeu? senão demitto-o e metto-o na
cadeia, a ferros. Elle sabe que sou homem para mais.
Vá. O veu eu levo para salvar a moralidade do caso.
E despediu a velhinha. Interrompendo, então, o
nosso trabalho, esbravejou : Commigo está enga
nado !
Mallet voltou-se curioso :
Que é ? De que se trata ? Quem é essa velha,
Ney ?
Hein ? a velha ? quem é ? homem, com
franqueza ... Sei que é uma velha que a compulsória
obriga a ser virtuosa. Procurou-me, ha dias, lavada
em lagrimas, pedindo-me que lhe salvasse a filha,
linda pequena que abalara de casa com um
amanuense. Puz os meus galfarros em campo e
A BICO DE PENNA
313
consegui descobrir o terno casal num chalet, no
Engenho Novo.
Entrei pelo ninho amoroso como o próprio
symbolo da Honra e bradei: «Olá, amiguinhos, não
comprometiam, a um tempo, com tamanho
desplante, a grammatica e a moral: o verbo amar é
regular, nada de excepções arbitrarias...» E,
intimando os pombinlios em nome da Lei, trouxe a
pequena e dei ao marmanjo quinze dias para tratar
dos papeis, sob pena de ser demittido e posto a
ferros, numa fortaleza. Ah ! porque se fôr preciso,
vou a S. Christovam, lanço-me aos pés do impera-
dor pedindo justiça. O typo anda a adiar a coisa e
hontem foi pedir moratória, a pretexto de falta de
dinheiro. Ha de casar no sabbado, mesmo porque eu
sou o padrinho e a pequena não tem tempo a perder.
Ha de casar no sabbado !
Mas que diabo teus tu com isso, Ney ?
Que tenho ! hom'essa ! Não tenho nada. Mas é
um desaforo. Que tenho !. . . Tenho irmans, sabe
você ? tenho irmans.
Effectivamente, no sabbado, ás 2 horas da tarde,
o Ney apresentou-se na typographia enfarpellado
para o casamento e com um lindo ramo do cravos
brancos.
Cabem-lhe perfeitamente as palavras com que
Philarète Chasles traçou o caracter estranho do
poeta do Intermezzo:
« Heine est peuple ; il est bohemien, et il 1'avoue :
bonhomme et médisant, il en convient. Mais il est
homme. Il est même vulgaire à bon escient et j'aime
mieux cela. II pleure, il rit, il se desole. Redoutable
et toujours présente, mobile, incertaine
314
A BICO DE PENNA
et s'égarant sans cesse, eu luivit, éclate et flamboie,
comme le feu follet sur les marais, la flamme de la
passion sincere ».
Os que leram a noticia da trasladação dos seus
ossos e que só conheceram o Ney das satyras
explosivas e dos paradoxos flammejantes, muito
devem ter pasmado sabendo que a Provedoria da
Misericordia resolveu realisar aquelle meigo
transporte em lembrança dos muitos e grandes
benefícios prestados á santa instituição pelo grande
es-troina, que parecia rir de tudo e que passava os
dias ás portas das lojas da rua do Ouvidor, não raro a
pedir para os outros.
Generoso Ney ! só os que privaram comtigo
podem falar da tua caridade, mas não serei eu quem
desvende os teus segredos. Descança em Deus, tu
que foste o melhor de todos nós, o mais escandaloso
e o mais meigo, o mais implacável e o mais terno —
abelha dourada que distribuia o mel e as ferroadas
com a mesma liberalidade.
Descança em Deus, puro espirito.
O PEIXE (1)
Logo que se espalhou a noticia da prisão de Jesus—
nesse tempo não havia jornaes de grande (nem de
pequena) tiragem, mas havia mulheres — os discipulos,
que eram apontados, em Jerusalém, como cúmplices do
nazareno, trataram de acaute-lar a vida, não porque
receassem perdê-la — que era a vida amargurada que
levavam comparada á outra, de tranquillidade e gloria,
que lhes promet-tera o Mestre excellente ? — mas porque
tinham uma missão a cumprir, que era a de levarem aos
mais remotos e rudes confins da terra a doce palavra
tomada nos labios do proprio Deus.
A policia do sanhedrin, açulada por Malchus, que
perdera uma orelha, varejava os Mans das estradas,
invadia os bazares que referviam nas ver-
(1) De uma synopsce talmudica . . .
316 A BICO DE PENNA
des e floridas vertentes do monte das Oliveiras,
trazia vigiada a cazinha de Simão, na Bethania,
onde ainda durava o suave cheiro do oleo com que
Maria ungira os pés do moço amado e mantinha
acedas nas immediações das granjas de Gethsemani,
de onde o vento trazia um cheiro aborrecido e
morno de azeite novo.
Os mesmos galileus, d'antes tão dedicados ao
filho do carpinteiro, bandearam-se covardemente e,
como conheciam os lugares preferidos de Jesus,
prestavam-se a guiar os esbirros, já subindo com
elles aos velhos cedros da collina, sob cuja fronde, á
tarde, quando os immensos galhos se cobriam de
pombas, os que deixavam os pilões e os tanques,
lustrosos de oleo, iam repousar um momento
olhando, ao longe, as aldeias caladas, que as nevoas
azues iam, pouco a pouco, abrumando, ou desciam
ás margens escarpadas e rumorosas da pedrenta
torrente do Cedron, onde moças cantavam entre
linhos alvos, córados nas hervas cheirosas.
Jerusalém, a cidade maldita, era um perigoso
sitio para quantos haviam acompanhado o mancebo
divino que, trilhando as estradas de areia ou os
caminhos pedregulhosos dos montes, espalhara, por
toda aquella região amoravel, a doutrina do amor e
milagres.
Cephas, muito compromettido, offereceu-se para
agasalhar os companheiros em Capharnaum, na sua
miseravel cabana de adobe, á margem do lago de
Genezareth. Não havia riqueza, mas o Senhor, mais
de uma noite, cobrindo o rosto com o seu alvo
manto, dormira tranquillamente sobre um estrame,
perto das redes que tresandavam á ma-
A BICO DE PENNA
317
resia e, de manhan, quando os primeiros barcos,
desusando na areia, molhavam as negras proas na
agua transparente, abrindo os olhos, abençoara
aquelles muros ennegrecidos de fumo e aquelle tecto
onde as cegonhas costumavam parar olhando os
espaços azues que o sol ia dourando.
Entre os galileus, estariam a salvo da
perseguição e, cumprida a dolente prophecia,
sahiriam todos, cada qual a seu rumo, a espalhar a
semente bem-dita que o divino apostolo lhes deixara
na alma.
A proposta do pescador foi aceita, e como a
noite era negra e alta, logo foi resolvido que deviam
aproveitar o somno da cidade para a fuga ; e
fugiram, não diz a tradição como fizeram a viagem,
ora atravessando campinas estéreis, sem água e sem
sombra, ora galgando alcandores de rochas mias
que, ao sol, ardiam e queimavam como brasas, ou
passando em desfiladeiros altos, de pedra negra,
fervilhantes de viboras que silvavam ameaçadoras á
beira das luras. Chegaram a Capharnaum ao cahir da
tarde, quando os barcos recolhiam lentos com o
peixe vivo saltando no fundo da quilha, num resto
de agua que rolava.
Os pescadores, tanto que Oephas lhes dirigiu a
palavra, logo o acclamaram com alvoroço e,
esquecendo a pesca e a ceia que os esperava, quente
e cheirosa, nos lares, ás ultimas luzes da tarde
dourada, sentados em circulo na areia, pediram ao
companheiro noticias do lindo moço que tantos
milagres fizera naquellas paragens de simplicidade.
E Cephas, suspirando, com os olhos voltados para
os lados de Jerusalém, annunciou-lhes a prisão do
Messias.
318 A BICO DE PÈNNA
Foi tinia consternação entre a bôa gente. Alguns,
mais exaltados, falaram em partir para a cidade vil,
com armas. Forçariam as portas, assassinariam os
guardas e iriam arrancar Jesus ás mãos dos seus
algozes. Oephas, porém, que tinha experiencia da
vida, agitou a cabeça lustrosa, dizendo :
— Amigos meus, as coisas parecem muito faceis
quando as olhamos de longe. Também tive impetos
de levar tudo a gume de espada, cheguei mesmo a
decepar a orelha de um soldado recalci-rante e teria
debandado a guarda se o Mestre me não houvesse
detido, dizendo-me, com a sua voz doce e
persuasiva: «Que não me oppuzesse á realisação da
prophecia». Embainhei a espada contendo a furia e
deixei-me ficar para um canto remoendo o meu odio.
Depois chegaram legionarios cobertos de ferro, com
lanças e, querem vocês saber? foi preciso que um
gallo cantasse três vezes entre as oliveiras de uma
herdade, para que eu recuperasse o animo que me
havia abandonado.
Ninguem imagina o effeito que produz no
espirito de um homem a presença da policia — é
preciso ter sentido o que eu senti, eu que, vocês
sabem, não sou medroso. Affronto com calma as
mais desabaladas tempestades e, mais de uma vez,
atravessei, sozinho, o bosque de liberiade onde ha
foras que atacam. Mas a policia . . . Não sei. Não
somos os depositarios da palavra divina, continuou
Cephas — se perecêssemos, quem espalharia entre
os homens o germen da nova doutrina? Sei que vão
crucificá-lo e, se não fosse a missão de que fui por
elle incumbido, teria reclamado uma cruz, menor
que a d'Elle, porque sou um discipulo, mas
A BICO DE PENNA 319
com os mesmos cravos, no Calvario. Não devo, é
preciso que me sacrifique pela sua Ordem —sou
apostolo, tenho de viver.
E todos, em torno, lamentaram commovidamente
a sorte d'aquelle discípulo fiel que, por amor da
doutrina e da salvação dos homens, deixava de
morrer no monte, ao lado de Christo e, sem parar,
ferindo os pés nas pedras e nos espinhaes dos
asperos caminhos, abalara de Jerusalém a largas
pernadas para refugiar-se em Capharnaum.
Ora, em Capharnaum os rebanhos eram raros e,
quando se abatia uma rez, era um acontecimento de
que se falava longamente desde Magdala até
Chorazin. O lago nutria as populações que lhe
ficavam á beira — peixe e frutas, mais não havia.
Sabia disso Cephas e, caminhando vagarosamente, á
brisa fresca da tarde, para a sua cabana toda aberta
em frinchas, com herva brava pelos muros, foi
preparando o espirito dos companheiros :
— Olhem, amigos meus, aqui não ha os recursos
fáceis de Jerusalém, isto é uma pobre aldeia de
pescadores — ha o bom peixe das águas, a bôa fruta
dos pomares e alguma caça gorda, no tempo dos
patos, e é tudo. Tenham vocês paciencia, é pelo
amor de Deus.
E, empurrando a porta da cabana, notou que ella
resistia como se a houvessem pregado ; forçou-a mais
rijamente, e lá a levou dentro com fragor.
Um ar humido, tresandando a bolor, fez com que
o apostolo recuasse e, como um pescador
apparecesse com um feixe de palhas embebidas em
resina, levantando uma chamma rubra e crepitante;
um bando de morcegos desprendeu-se das vigas
320
A BICO DE PENNA
e voou, perdendo-se nos ares melancolicos, toldados
de brumas, que era o triste momento do cahir da
noite.
Cephas entrou seguido dos companheiros e como
não houvesse pescado nem lume, um velho
offereceu-se generosamente para fornecer-lhes a
ceia e logo, pela filha, uma linda moça morena e
forte como um cedro novo do Libano, lhes mandou
duas fundas malgas onde, em molho corado e
perfumado a coentro, appareciam as postas dum
peixe alvo e gordo, que cheirava appetitosamente.
Sentaram-se os discipulos e, devorando,
recordavam as passagens felizes do bom tempo —
as tardes á sombra do cedro do Olivete ou á beira
das fontes onde se reuniam as raparigas, á hora em
que os trituradores esmagam as azeitonas nas
grandes fabricas de azeite de Gethsemani, os
passeios á Bethphagé, as subidas á Bethania.
Alguns, ainda agarrados ao mundo, pensavam, com
saudade, nas bellezas da cidade vil — nos seus
palácios, nos seus banhos, nos seus mercados e no
formigar constante de homens que, de manhan, á
hora dos primeiros sons das buzinas romanas,
entravam cantando, com os jumentos carregados de
frutas, moças com amphoras de leite, gomores de
farinha e gigos de ovos, outras com aviarios de
junco, as cabeças graciosamente ornadas de lirios,
um ramo do rosas como a mostrar a divisão dos
seios.
Lá fora, a lua silenciosa illuminava de alvo o
lago adormecido e foi o mesmo Cephas o primeiro a
falar no Mestre :
A esta hora que fará Elle ? suspirou.
Talvez pense em nós.
A BICO DE PENNA
321
E nós aqui comendo este saboroso pescado, que é
o melhor de toda a Palestina.
Eu comeria de bom grado um pouco de carneiro.
E eu um bolo de farinha e mel ou um punhado de
tamaras.
Contentemo-nos com o peixe, que outra coisa não
ha nestes lugares que o Senhor visitou e amou e
lembremo-nos de que se fazemos este sacrifício, que ha
de ser contado no céu, o Mestre amado sof-fre a injuria,
sangra, expira, talvez, entre os soldados boçaes do
romano e a cafila cruel dos sabujos do Sanhedrin.
Um largo e profundo suspiro abalou os velhos muros
da cabana e as colheres raparam as malgas, onde apenas
restavam as espinhas chupadas e, como nada mais
houvesse, os discípulos desceram á fonte e Cephas,
juntando as mãos, com os olhos no céu, disse cheio de
uncção devota :
Seja tudo pelo amor de Deus!
E, emquanto se demoraram em Capharnaum, Cephas
e os seus companheiros não comeram mais que peixe do
lago . . .
É por isso, para commemorar o sacrificio dos
apostolos que, durante a quaresma, o peixe é de preceito.
Emfim, se não é por isso (bem póde ser que não seja,
porque essa tradição é muito contestada), deve ser por
outro motivo, bem desagradavel aos peixes, que nada
fizeram e que na semana santa teem a vida por um fio e
custam os olhos da cara.
UM AUDAZ
A vida extraordinaria d’esse robusto e alegre
Steelman é das que se prestam ás urdidas e complicadas
paginas dos romances de aventuras, com imprevistos
maravilhosos, rasgos admiraveis de energia e audacia e
prodigios a cada passo.
Steelman tem sido tudo, conhece todos os gozos e
não ha dôr nova para os seus nervos. Foi tatuado na
Tartaria : desenharam-lhe nas costas os mysterios da vida
de um lama e inscreveram-lhe no peito, com um
sortimento de finas e compridas agulhas, em tres
espaçados mezes de tortura, um dos quatro livros da
moral de Confucio.
Em Smirna teve uma cultura de balsamo ; foi pastor
de camelos no Teheran ; cortiu pelles numa aldeia
pestifera da costa do Mar Vermelho ; conduziu hostes
negras d'uma aringa ao deserto onde destroçou um bando
rapáce de beduinos que incendiava as culturas e furtava o
gado; prego um um
324
A BICO DE PENNA
templo buddhista ; passou sob a terra, nas margens
do Ganges, com uma plantação de aveia a brotar
sobre o túmulo em que o. encerraram, vinte e tantos
dias, sem soffrer, sem sentir, dormindo
tranquillamente «no seio da morte ».
Numa povoação thíbetana, que era um immenso
oasis de palmeiras, esteve mi, com uma leve tanga
em torno dos rins, as mãos rijamente ligadas por
uma corda de fibra de coqueiro, a cabeça curvada
sobre um cepo, sob o gladio reluzente e curvo de um
fanatico.
Livrou-o da morte um prodigio do qual ficou
referencia memorável numa lage, em caracteres
eternos, gravados fundamente, a ferro. Na occasião
em que o carrasco, agarrando, a mãos ambas, o
alfange largo, derreava o corpo para vibrar o golpe,
uma cegonha, passando no ar, deixou cahir do bico
uma flor sobre a cabeça da victima.
O carrasco ficou como de pedra, a olhar ; a
multidão tremeu e, repentinamente, com uma
algazarra que chegou ás montanhas, onde os
penitentes queimavam lenhas aromaticas, entre
cedros frondosos, as mulheres, numa furia,
descabelladas, aos ululos, arremetteram, derrubaram
o carrasco, romperam, a dentes, as cordas rijas e,
carregando Steelman, mi e pallido, entraram com
elle no povoado, acclamando-o, e com a noticia do
caso, appare-ceram adoradores, houve idéa de erigir-
se um templo ao homem da tez rosada, moveram-se,
dos mais fundos desertos, peregrinos com presentes
e Steelman ficou como um deus, adorado,
principalmente pelas mulheres, que lhe pediam fios
de cabellos e da barba loura, razão pela qual esse
homem admi-
A BICO DE PENNA
325
ravel é calvo como Sócrates e glabro como um
hierophanta.
Nessa terra de trato rude e velhissimos costumes
andou elle, dois annos, representando uma divina
hypostase, e, o que maior tédio lhe punha nalma era não
poder caminhar livremente porque, se apparecia nas
viellas, com ansia de ar, logo o povo, correndo
atropelladamente para forrar-lhe o caminho com as
tangas, prostrava-se no pó da terra, secco e immundo,
com um murmurio de reza, beijando-lhe os pés mis, as
canellas nuas, todo o seu corpo nú e elle tinha de seguir
vagarosamente, rompendo aquella difficil muralha de
homens, de mulheres e de crianças, babujado por aquellas
bocas, beliscado por todos os dedos que não lhe deixavam
um pello curto nas carnes.
Só os cães se animavam a fitá-lo, alguns mesmo
rosnavam farejando-lhe as pernas e elle voltava á sua
choça derreado, com o braço direito pendido e
esmorecido de tanto sacudir bençãos sobre as cabeças
devotas, sobre os mirrados campos para que se cobrissem
de milho, sobre as aguas escassas para que não cessassem
de correr e ainda pelos ares para que os não toldassem as
nuvens de gafanhotos.
Fugiu, com ódio e nojo, áquella gente espessa
descendo o rio num barco de couro... com uma rapariga e,
chegando a uma cidade, já inglesa, onde havia gin e
policia, respirou largamente, com satisfação, quando se
viu entre as mãos de quatro policemen severos por causa
da sua nudez divina, contraria á moral e ás leis
britannicas.
Metteram-no em uma prisão sordida onde passou uma
semana, entre um fakir bebedo e uma ve-
326
A BICO DE PENNA
lha do deserto, adoradora de víboras, que chorava e
cantava versos de Firdusi.
Steelman, na possilga, não se cançou de render graças
a Deus que o livrara d'aquelle martyrio da adoração,
restituindo-o á vida, com as suas leis exigentes, os seus
cárceres sujos, as suas inflexíveis justiças e os seus grogs.
Na Russia, Steelman comprometteu-se no nihilismo
alliando-se, em pacto tremendo, com os impulsivos do
otehafanié. Fez-se apóstolo da regeneração, adorou o
mujik e preparou uma bomba que explodiu á beira da
linha ferrea dois segundos depois da passagem d'um trem
imperial e, uma tarde, á margem do Neva, depois d'um
conflicto, foi espesinhado por um esquadrão de cossacos
ficando sobre a neve, com o corpo em pandarecos, e uma
costella a pedir solda.
Na Polônia, em Varsovia, foi do partido dos
libertadores e escreveu pamphletos com o pseudonymo
de Kosciusko. Foi membro da Mafia, na Italia ; na
Inglaterra alistou-se na « Salvation army»; em França
ateiou uma jacquerie, abafada a tempo. Apedrejou
conventos na Hespanha, dirigiu uma greve de cocheiros
em Portugal, tentou incendiar o harem de
Constantinopla...
Mas a sua aventura maior foi em Dakar. Saltando
nesse porto com a sua insaciável curiosidade de homens e
de paizagens, foi seguindo, ao acaso, por entre choupanas
e lixo, repellindo cães e negrinhos, a vêr, a informar-se,
debuxando no seu álbum trechos da terra secca e
miserrima, negralhões em camisolas folgadas, negras de
grandes e pendu-
A BICO DE PENNA
327
rados beiços, tetas molles e chatas e carapinhas altas
como cocares.
As casas, umas locas, eram acaçapadas, algumas
arriavam os muros frageis fendidos, arrimando-se ás
arvores. Uma poeira quente embaçava o ar e, do
labyrinto lobrego d'aquella immeusa aringa, sahiam
porcos grunhindo, cães gafados, ladrando, lotes de
negrinhos nús aos saltos, rinchavelhando.
Steelman ia seguindo, a olhar, mas, amollecido
pelo bochorno, sentindo as pernas vergarem-se, já se
decidia a voltar quando viu, por entre as arvores,
alvejar uma casa, á cuja frente uma latada verde
cobria de sombra duas mesas toscas e dois
compridos bancos mal acepilhados.
Um homem de rotundo ventre, barbudo e
sardento, fumava á porta. Steelman adiantou-se e
percebeu, com alegria, que a casa era uma tasca. Lá
estavam as garrafas, as latas de conservas, pencas de
frutos e, no seboso balcão, uma pipinha de crystal
com aguardente. Pareceu-lhe aquillo um oasis
providencial e logo, dirigindo-se ao gordo homem,
que era francês, pediu cerveja e charutos. Só havia
cerveja e infame. Steelman resignou-se e,
amesendando-se, tirou o casaco, arregaçou as
mangas da camisa e bebeu, depois estirou-se em um
dos bancos e adormeceu. Quando acordou a luz era
branca, cantavam cigarras, e uma brisa cheirando a
florestas, sacudia as palmas dos coqueiros.
De repente, pallido, d'olhos arregalados,
boquiaberto, Steelman ficou como se houvesse
avistado um leão ou uma serpente. É que uma idéa
irrompera, súbita como uma pontada : o paquete !
Ergueu-se assustado, pagou a cerveja choca e deitou
328 Â BICO DE PENNA
a correr seguido de cães que ladravam e de
moleques que riam, chegando á praia esfalfado
justamente quando a lua, irnmensa e amarella, como
de cera, subia pelo céu vazio : o paquete era um
pequenino ponto no horizonte que logo
desappareceu ficando no seu lugar, á flor das aguas,
uma estrellinha a brilhar.
As muitas e arriscadas aventuras deram a
Steelman uma resignação invejável — duas pragas
surdas e um leve encolher de hombros e o grande
homem retrocedeu lamentando apenas a falta de
charutos e o seu inseparavel Homero.
Caminhando pelas ruellas apagadas, onde
começava o despejo, chafurdando em lodo, pisando
flaccidas iinmundicies, que se esparrimavam
mollemente sob os seus pés, chegou ao albergue
onde o francês, na doçura da noite morna, com o
cachimbo nos beiços, já bebedo, afagava a carapinha
duma negra lubrica.
Entrou, contou a sua desgraça e pediu ceia e
cama. A negra, num assomo de pudor, encolheu-se
toda, escondendo nudezes e o frances, com um
espanto grande no carão barbudo, pôz-se a
resmungar — que fora mesmo uma desgraça aquella
partida do paquete e que, para ceia, só podia arranjar
umas bananas fritas em azeite. Steelman comeu as
bananas e dormiu num catre, forrado de palha, num
quarto contiguo ao do alberguista de onde, até
adormecer, revoltado com aquella mollicie, ouviu a
negra gemer e o homem fungar como um suino no
lodo.
Cedo, ainda escuro, Steelman saltou do catre,
escancarou a porta e sahiu á procura d'agua. Não
A BICO DE PENNA
329
havia agua, tudo era seccura e miseria. As arvores
pareciam cobertas de cinza, a terra era todo um cineral, as
mesmas casas pareciam feitas de cinza amassada. Rugiu
com odio e, em assanhada revolta, responsabilisando a
França por aquelle desconforto, jurou, no seu intimo, tirar
uma desforra tremenda conflagrando a negrada da
Senegambia contra o governo da grande Republica, que
assim deixava uma das suas colônias sem agua para um
banho e sem um charuto.
Effectivamente, recolhendo ao albergue, meditou um
vasto plano de conspiração que, numa hora de matança e
de fogo, acabasse com a dominação francesa. Eedigiu a
proclarnação e os primeiros decretos, lançou as bases de
uma constituição liberal na qual, como legislador
supremo, permittia a polygamia e a nudez e, com as suas
notas no bolso, sahiu a tramar.
Sabendo, por velha experiencia, que não ha povo, na
face da terra, que se não julgue opprimido, Steelman
dirigiu-se ao primeiro negro que encontrou, agachado
junto a um poço, cocando as pernas. Chamou-o com
mysterio e expoz-lhe a sua idéa. O negro, pasmado,
esfolava, escalavrava os gambitos com as unhas sem
perceber palavra e foi necessário que o grande homem lhe
dissesse claramente — que era preciso acabar com os
franceses, queimar as casas dos franceses, não deixar na
terra negra memoria alguma dos franceses, juntando ás
palavras, como se as illustrasse, a mimica mais precisa e
feroz, para que o «comedor de carne de porco », saltando
e ululando, lhe atirasse os braços ao pescoço,
oommovido. E logo sahiu a concitar os
330
A BICO DE PENNA
companheiros e, em pouco, toda a população, reunida
num bosque, ouvia a leitura da proclamação sediciosa.
Facas reluziram, fimbos entrechocaram-se e, com um
juramento solemne, todos comprometteram-se a dar cabo
dos brancos antes que outro sol luzisse e uma negra, com
louvavel patriotismo, rasgando a saia, que era de riscas
vermelhas, offere-ceu um trapo para bandeira. Steelman
foi acclamado salvador da Senegambia e senhor absoluto
de terra e mar, desde as carvoeiras do porto até as minas
do sertão.
Infelizmente, porém, um negrote mais enthusiasta ou
mais bronco, sem paciência para esperar a hora propicia
da meia noite, logo á tardinha, com um facalhão afiado,
vociferando contra a França despotica, sahiu á procura de
franceses. Foi preso e, ante ameaças de torturas e de
morte, denunciou a conspiração sem omittir a leitura da
proclamação e o episodio da bandeira.
Steelman, vendo-se perdido, ganhou a floresta e,
durante noventa e tantos dias de trabalhos e sustos, de
miserias e dores, caminhou pelas brenhas, ouvindo silvos
de serpentes e fremitos de tigres, nutrindo-se de frutos e
de raizes, saciando-se em pantanos até que alcançou uma
feitoria portuguesa, de onde poude passar a terras
d'Europa, como cozinheiro num brigue.
Esse homem raro que conhece toda a terra e que nella
tem sido tudo, encontrando-me, nas vésperas da sua
repentina partida, disse-me, com verdadeiro terror : «Meu
amigo, só agora, ao fim de trinta e tantos annos
largamente vividos neste vas-
A BICO DE PENNA
331
tissimo e descontente planeta, que tenho percorrido,
como aquelle heróe do conto suabio, «sem conhecer o
medo » vim tremer neste ponto superior da terra, onde as
arvores são sempre verdes e os homens sempre
amarellos.
Fui adorado por um povo forte e guerreiro que, antes
de queimar resinas a meus pés, tentou arrancar-me a
cabeça dos hombros ; fui pastor de camelos, curtidor de
couros, ras de uma horda nihilista, socialista, anarchista e
tudo mais que acaba em ista e que procura destruir a
ordem social; preguei num templo, passei um mez num
tumulo, tentei sublevar povos, fuzilei homens e leões,
pisei constituições e serpentes, cavalguei principes e
zebras, fiquei tostado aos soes africanos, tiritei em covas
de esquimós, combati na China por uma religião
desconhecida e defendi os christãos na Armênia, gemi em
cárceres, tres vezes a corda deu volta ao meu pescoço, fui
tatuado, estive para soffrer uma operação decisiva que me
desclassificaria e resisti a tudo sem empallidecer.
Confesso-lhe, porém, que não me atrevo a ficar neste paiz
excellente onde vim conhecer o que me parecia uma
palavra van — o medo. Saio d'aqui com medo, meu
amigo, varado de medo. »
E porque ? perguntei.
Porque ? ! Pois não sabe que, seduzido por um
homem, consenti em alistar-me e sou hoje eleitor?
Francamente lhe digo — os que me admiram, os que
andam a escrever louvores á minha coragem, não sabem
que ha politicos e eleitores nesta terra ou, se sabem,
ignoram como aqui são feitas as eleições. Com uma
cédula eleitoral, recebi uma
332
A BICO DE PENNA
caixa d'armas, dois cunhetes, uma camisa de malha,
o recibo que me garante sete palmos de terra no
cemiterio do Caju . . . e outros papeis. Não ! antes a
fera e os barbaros.
E o intrépido Steelman tomou passagem para o
Amazonas, constando que vai viver entre anthro-
pophagos. Os jornaes, annunciando a sua partida,
subordinaram a noticia ao titulo : « Um audaz ». Um
audaz . . . Pois sim !
A PROPOSITO DE FESTAS
Em torno do circulo eterno são vários e
differentes os caminhos da vida, mas as regiões que
elles percorrem são invariavelmente as mesmas. A
primeira : brumal, o ponto de partida, é a região da
infancia que coincide com a ultima : nivosa, região
da velhice, como se fosse uma aurora daquella noite,
um esbatimento suave d'aquella sombra. Segue-se :
floreal, a região luminosa e alegre da adolescencia,
depois germinal, a fulgurante e calida região da
idade adulta que se inclina, em crepusculo, para a
treva tristonha.
Ha uma larga e fácil estrada central, sem um
desvio, que liga os pontos extremos — é o caminho
afortunado. Por elle seguem os felizes, os que fazem
a travessia com descanço, sempre por sombras
gratas. Ainda assim nem sempre os peregrinos
alcançam a desejada meta porque não faltam
ciladas,
334
A BICO DE PENNA
não raream abysmos. As mesmas flores admiraveis que
enfeitam a perfumam as margens estillam veneno, as
aguas limpidas dos lagos occultam serpentes e sob as
folhagens que se adensam em macios tapetes trescalantes,
ha vórtices que devoram os caminheiros incautos.
E quantos são os que se aberram, uns por ousados,
outros por curiosos, ainda outros por ambiciosos
abalsando-se e perdendo-se nos invios caminhos! Ah ! os
invios caminhos . . . ! Esses são estreitos — uns
pedregosos, outros apuados de espinhos, outros alagados
por immensos mameis, outros ainda accidentados e todos
estéreis, com raras fontes e arvores escassas, mas como
vão por varios sitios, sempre com horizontes novos, umas
vezes ladeando a estrada larga, outras vezes subindo em
acclives fatigantes pelas serras escabrosas, descendo a
floridos valles, são os que o destino escolhe para os
poetas, não só para que os cantem como também para
que, com os seus cantos, dêem coragem á turba numerosa
dos infelizes que os trilham.
A estrada larga é mais facil, mas não é mais bella ; a
regularidade da sua belleza torna-a monótona. Os
aspectos dos caminhos variam de instante a instante, os
mesmos perigos encantam e o orgulho de os vencer já
constituo um incentivo.
Ha um lago, é necessário atravessá-lo, a empreza não
é facil, antes, porém, do arrojo o caminhante contempla
extasiado as maravilhas que tornam o sitio admiravel e,
emquanto os olhos gozam, o soffrimento adormece . . .
depois . . . á aventura ! E, por todos esses caminhos
vários, a Humanidade desfila em rumo ao seu destino.
A BICO DE PENNA
335
As regiões, com os seus climas, com os seus aspectos
próprios, essas não variam.
O feliz lembra-se vagamente da nevoa tenue de que
sahiu para uma doce luz. O’a alegre passagem ! Como
andava ligeiro e contente ! como tudo lhe parecia
delicioso ! Não tinha cuidados nem tristes pensamentos,
seguia cantando, por entre flores. Depois o sol, o vivo sol,
os frutos córados vergando os ramos das arvores, um
momento de repouso num sitio aprazivel, um encontro
idyllico, por fim a doçura da tarde, o silencio da noite e o
serão em volta do fogo.
Felizes são os que podem achegar-se á lareira, felizes
são os que sabem accumular o necessário combustivel
para a noite gelada. São como centelhas em torno do
coração dos velhos as cabecitas louras dos netinhos
garrulos, e, elles, buscando-os, sentem-se rejuvenescidos,
vendo nos cabellinhos annelados como lampejos do sol
da mocidade, o passado, tudo que foi, o irregressivo
tempo.
Como os felizes, gozam os infelizes — não á lareira,
mas á beira d'um fogo, ás vezes mais vivo e mais alegre.
Pois não é verdade que as criancinhas pobres riem mais
francamente? E vendo-as os avó-zinhos recordam os
transes difficeis, mas os próprios espinhaes florecem, o
próprio cardo dá a sua flor e não ha vida miseravel que
não tenha, lá no fundo, como um lirio em águas de paul, a
sua poesia.
No extremo são todos os mesmos e, quando a noite
escurece, quem pôde saber, na multidão dos velhinhos
trêmulos e engelhados, todos com as mesmas rugas na
face e com as mesmas saudades no coração, quaes foram
os que vieram pela estrada fa-
336 A BICO DE PENNA
cil e quaes os que tiveram de vencer os tropeços dos
caminhos escabrosos ? Na morte ? quem os
distingue ? são todos os mesmos pobres velhinhos.
O que lhes resta no fim da vida é essa saudade
grande chamada tradição. E que é a tradição? É o
lume que as gerações se transmittem, o fogo sagrado
que a Alma dos povos, como a antiga vestal, deve
conservar sempre vivo. Todos os que viajam nos
caminhos da vida trazem da peregrinação uma
lembrança ou nelles deixam uma recordação.
Os poetas passam e deixam os seus hymnos, os
prophetas deixam as religiões. Aqui fica a memoria
de um amor, ali a ruina de um templo.
Os velhos, á noite, falam aos moços do que
viram e elles, que vêm ? que encontram ? tudo
arrazado : a Poesia morta, a Belleza extincta e fazem
a viagem sem uma impressão, sem uma alegria, sem
um oasis onde se reunam confraternisados e
repousem celebrando o culto do Passado.
Não ha memória de um só homem que tenha
começado a viagem partindo da segunda região —
todos vêm da nevoa infantil, todos sahem do mesmo
ponto para que gozem todos os climas e tenham
todas as impressões e é por isso que se perpetua no
mundo o amor da Humanidade, porque «em tudo ha
um pouco do passado ».
Nós caminhamos sobre tumulos. Como os
antigos guerreiros para tomarem de assalto os muros
das cidades iam subindo pela mortualha, fazendo de
cada cadaver o degrau da escada, nós vencemos á
custa do que foi — o dia de hontem é que nos deixa
no amanhan, a noite, que é a morte, é que nos
A BICO DE PENNA 337
traz o dia. Nas escadas, entre os degraus, ha um vacuo
como os tumulos.
E porque havemos de ser ingratos com esse Passado
ao qual tudo devemos ? Quem o não lastima ? Quem o
não invoca ?
Comme nous voudrions, ne füt-ce qu'un moment,
Revenir en arrière et, frissonants d'ivresse,
Parcourir de nouveau le meandre charmant
Que creuse, en s’ecoulãnt, dans nos cceurs la jeunesse !
A alma rumina — no fim da vida ella apenas se
alimenta de saudades.
E ha quem diga que o mundo não carece de poesia !
A Poesia é o espirito, é a mesma alma da
Humanidade. Calem-se os poetas e o mundo, com a sua
agitação frenética, ficará como um grande corpo de
convulsionario rebolcando-se, inconscientemente.
Agindo, o homem só attribue o seu trabalho á
mechanica do corpo — é a mão que escreve, burila,
debuxa, cava, semeia, vence, erige, destróe e abençoa.
Mnguem, no momento da acção, se preoccupa com a
alma, ella, emtanto, é a idéa na phrase, a expressão na
figura, o sentimento na paizagem, a intenção no braço do
cavador, a direcção na dex-tra do semeador, o esforço no
punho do soldado, a symetria no escopro do architecto, a
furia no montante e o amor no gesto que perdoa e sagra.
Assim no progresso só se vê o producto material,
ninguém penetra o segredo das coisas, que é a Poesia,
criadora de Deus e da Liberdade, ubiqiia como o proprio
Deus.
338
A BICO DE PENNA
A poesia não está só nos poemas, em tudo ella existe:
sob a chlamyde e sob a blusa, sob a farda e sob o amicto
— ella é a alma. Guia, ella tem um Norte, o Ideal. E é
porque ella o indica que a Humanidade caminha.
Todos os povos veneram a sua Poesia, seja ella a
Iliada ou os Mebelungen, seja a simples farandula no
campo florido ou a suave vigília em torno d'um presepe.
Essa poesia simples, popular, que nos vem de eras
perdidas, modificando-se, sem todavia perder a belleza,
constitue, entre os homens, um elo forte, robustecendo
nelles o sentimento patriótico.
Quem não terá visto o emigrado triste, sentado
pensativamente no limiar da casa em que se installou no
paiz novo, suspirar, olhando o céu estreitado, em noites
santas, a pensar nas festas que se celebram nos campos
da sua terra ? Será o europeu mais rude do que nós
outros? não, entretanto, apezar da intensa cultura
intellectual que o distingue, é elle o povo mais
conservador das tradições, mais respeitador das coisas do
Passado e esse respeito dá-lhe mais resistencia á crença,
prende-o mais á terra, conforta-o no desalento. Assim
como elle traz a sua religião, traz a sua poesia.
Só nós, povo de hontem, povo infante, que ainda nos
achamos na primeira região : brumal, por uma vaidade
ridicula ou por um triste indifferentismo, que demonstra
o nosso desinteresse pelas coisas patrias, deixamos que
pereçam essas tradições ingenuas, uns allegando que
ellas são restos de um culto pagão, superstições
deprimentes, abusões aviltantes ; outros por entenderem
que o tempo é escasso para os negócios lucrativos e que
essas festas
A BICO DE PENNA
339
infantis revelam ingenuidade e falta de ponderação.
Que o brasileiro é um povo triste sabem-no quantos
visitam este alegre paiz, poucos, porém, ousam dizer a
verdade, que elle é . . .
Em tudo quanto produzimos o que logo se nota é a
absoluta falta de sinceridade, nem pôde haver tal virtude
quando há imitação. A nossa Poesia é um reflexo — os
nossos poetas vivem a gemer, não porque soffram, senão
porque está em voga o gemido. Se a Arte se nubla com o
nephelebatismo, surgem os nephelebatas e já temos os
symphonistas, os decadistas e uma serie de bardos em ista
que não valem um caracol.
A verdadeira, a genuina Poesia brasileira raramente
apparece e é preciso ter um grande nome para lançar á
publicidade quatro ou cinco estrophes de puro lyrismo
sem mescla de estrangeirice.
Somos um povo novo, devemos ter alegria e cantá-la.
Só a Poesia espontânea vive, o arrebique é fragil. Não é
inspiração que nos falta e a natureza abi está a offerecer-
nos copiosas fontes, mas ... a França attrahe-nos e, como
nos vestimos á francesa, também poetames á francesa. E
vamos deixando morrer as tradições.
Antigamente, como eram divertidas essas festas de
junho : Santo Antônio, S. João, S. Pedro. Quem as gozou
deve lamentar a geração de agora, triste geração, triste e
presumida, que não conheceu o encanto de uma noitada,
em torno da fogueira crepitante, a ouvir trovas e
vaticinios, emquanto as nevoas se confundiam com o
fumo dos fogos e os estralos das bombas faziam com que
não fosse ouvido o leve e amoroso rumor de um beijo.
340
A BICO DE PENNA
Oh ! o passado, as festas do passado . . . !
Quem escreve estas linhas faz a travessia da vida
por trilhos difficeis e muito lhe tem custado vencer
certos tramites pedregosos, mas não inveja os moços
afortunados que vão pela estrada larga, mas sem
encantos, saturados de philosophias e com mais
descrença e mais tédio na alma do que o frenetico
Timon de Athenas.
Elle soube ser criança : na idade de brincar
brincou e, ainda hoje, diante de uma fogueira,
lembran-do-se do velho tempo, só não se arriscará a
saltá-la para não cahir ... no ridiculo.
Mas o brasileiro começou pelo fim. É um povo
que sahiu da noite, como as estriges. Quando entrará
elle na região da alvorada ? E quando chegar á
velhice, que dirá elle ás novas gerações, elle que
nada leva, elle que vai destruindo e apagando o que
recebeu dos bons velhos d'antanho, a crença, o amor
e as tradições ?
Merencorea velhice vai ser a tua, povo de velhos
que ainda baibuciam.
A ARVORE (1)
Dans les villes et dans les écoles 1'esprit
subtil et vaia peut rire de «1'àme de
1'arbre». Oa n'en rit pas dans le dê-sert,
dans les clitnats cruéis du nord ou du
midi, ou 1'arbre est un sauveur.
On y sent bien le frère de 1'bomme.
MlCHELET.
Quem, como eu, teve um dia a fortuna de dormir
agasalhado por uma floresta, mais antiga que a cruz
nesta formosa e moça região da America, sentiu, por
certo, a mesma impressão poderosa que avassalou o
meu espirito quando, ao morrer da luz forte, ao
nascer da luz branda, desde a beira do rio até o
intimo da selva, correu um sussurro manso como o
suspiro amoroso da vegetação.
Os nossos canoeiros, acocorados em torno d'um
(1) A propósito da primeira Festa das arvores realisada em Araras
(S. Paulo) no dia 7 de Junho de 1902.
342
A BICO DE PENNA
fogo de versas, as mãos estendidas acima da
chamma, que as aveimelhava como se as
trespassasse, falavam baixinho. A agua lenta e cheia
do rio desusava com leve murmúrio, e, por vezes,
longe, um pio d'ave nocturna feria o silencio. As
nossas redes oscillavam de galho a galho fazendo
farfalhar a folhagem.
Esfriava. Docemente, no céu limpido, ia a lua
subindo. Já a densa fronde alta estava toda forrada
d'alvo e, insinuando-se pelos escassilhos,
atravessando as abertas, a claridade mystica escorria
pelos troncos, alastrava a alfombia, brilhava na agua
ou estendia-se no recesso do arvoredo ribeirinho
figurando maravilhosas estractuias: Aqui, um adyto
de capella, com o altar atoalhado, os nichos brancos,
como de marmore; ali ruinas de castellos ; as franças
semelhavam muralhas aluidas, parapeitos ameados,
tones que subiam talhadas em setteiras. E clarões,
salteando o negror, criavam perspectivas funebres e
fundas recuando aquellas fantasmagorias selvagens.
Além era uma alvura que se destacava,
perpendicular e esguia, fincada na tréva como um
cippo solitario. Mais longe, disseminadamente,
esplendores colgando o negrume e a agua lisa e
dormente do rio espelhava todos aquelles aspectos
estranhos iecoidando-me as descripções romanticas
do Eheno, onde os poetas vão abeberar a musa
elegiaca, ao longo das margens tradicionaes em que
perduram, como arcabouços do passado, muros
negros de castellos e elfos e ondinas, á noite,
esvoaçando ou bailando, redizem lendas do velho
tempo ou entoam bailadas melancólicas que fazem
tremer o
A BICO DE PENNA
343
barqueiro retardatario ou assombram e enlouquecem o
afoito caçador furtivo.
Meus companheiros dormiam. Eu velava extasiado,
olhando o céu por entre os ramos, e parecia-me que as
estrellas eram flôres que desabrochavam na coma
altissima d'aquellas arvores. Por vezes, como se alguma
se desfolhasse deixando cahir uma petala esplendida, uma
centelha descia tremula, bruxoleando e perdia-se.
Vagadume errante, ardentia alada dos oceanos de
verdura.
Então senti bem a vida grande e mysteriosa das
arvores.
A espaços era um crepitar, depois um estalido secco, e
logo um halito — era a brisa que passava. Seria a brisa ou
o suspiro da selva presaga? Pobres arvores acolhedoras,
prisioneiras da terra, bem senti que vivieis e vós, porque
nos vieis ali, quizes-tes guardar reserva, como o caçador
surprendido pela fera que, de bruços, contém a respiração
emquanto sente o inimigo a farejá-lo. A vossa alma, que
os gregos personificaram na hamadryade, não ousou
deixar o recesso dos cernes, lá se ficou encolhida porque
o homem cruel estava perto.
Debalde o luar magnífico brilhava, debalde as auras
passavam, não procurastes corresponder ao appello do
mysterio e a noite correu serena e casta, só os arbustos
amaram, elles, os pequeninos. Bem os senti que se
abraçavam na sombra, junto ás raízes dos jequitibás
portentosos. Pela madrugada, um perfume forte, acre,
estonteante, veiu até mim, perturbador como uma
seducção. Vinha de longe, era a respiração offegante das
arvores que se amavam na brenha virgem, era o aroma
nupcial da flo-
344 A BICO DE PENNA
resta, a exhalação erótica dos vegetaes. Era o amor
poderoso e eterno da natureza, o amor fecundo, o amor
criador que passava em effluvio pelo bosque,
multiplicando a belleza, a graça, a força e o beneficio.
E porque se acautelavam tão pudicamente as arvores
mais proximas ? porque sentiam o homem, o homem
cruel, o encarniçado inimigo da sua generosa especie. Oh,
se têm alma as arvores !
Alma é amor e que maiores provas de amor queremos
que nos dê a arvore? Ella é a purificadora do ar que
respiramos ; ella é que nos garante a fonte que jorra para
a nossa sede e para a rega dos campos. Ella é a fiandeira
de soes — cahem-lhe na copa os raios caniculares e ella,
desfiando a flamma, dá apenas o calor ao que se achega á
sua sombra. Ella é a medicina ; ella é a belleza cercando a
moradia em que vivemos ; ella é a nossa confidente
discreta porque é sob os seus ramos que abrimos
francamente o coração deixando livres as saudades e as
reminiscencias. Assim é a arvore viva.
Morta, ella é tudo — o principio e o fim : berço e
esquife, e, entre esses dois pólos, tudo mais é floresta : a
casa e o templo, o leito nupeial e o altar, o carro que
trilha os campos, o navio que sulca os mares, o cabo da
enxada e a haste da lança, tudo é madeira, tudo é arvore,
floresta.
Matai a arvore e tereis o vageiro.
A terra tem os seus nazires : Sansão tosquiado é
impotente para a vingança, as regiões devastadas tornam-
se desertos. E que vemos nós por todo este vasto Brasil
que era uma floresta frondosa ? a destruição inclemente.
E porque vai tão encar-
-
A BICO DE PENNA
345
niçadamente o homem á arvore, que foi a primeira
geradora do lume nos tempos remotos do pastor aryano?
porque a arvore é um ser bruto, insensível e mudo.
Ah ! que se attentasses bem, lenhador, á morte
d'arvore, tal não dirias, homem de coração. Ao primeiro
golpe do machado todo o collosso treme e os passarinhos,
como a gente de uma cidade abalada por um terremoto,
logo desertam os ninhos. Vai o segundo golpe ao mesmo
lanho, afunda-o — eis a seiva a correr, é o sangue que se
esvai; outro golpe e começa a arvore a gemer surdamente,
doridamente — a sua folhagem agita-se como a acenar á
clemencia, os seus ramos debatem-se, mas o lenhador, a
mais e mais empenhado na crueldade, redobra os golpes e
canta.
Em torno da que agonisa as outras parecem tremer
como ovelhas num pateo de matadouro e, como se de
uma a outra corra a noticia cruel, toda a floresta vibra
prevendo a mesma sorte.
Por fim, a um golpe mais rijo, um estalo responde —
é o stertor da arvore. E o lenhador recua e fica a olhar.
Lá vem pendendo a frondosa cabeça, inclina-se e um
fragor levanta-se na matta. Derruba-se hirta, roçando de
raspão nas companheiras, a arvore ferida e cahe
estrondosamente esmagando os arbustos gerados á sua
sombra. Cahe e agonisa e leva dias agonisando até que se
lhe vão seccando as folhas, encolhendo, mirrando... Então
sim está morta a arvore.
E para que a sacrificas, homem de coração? para o
fogo. E sóccas a fonte da qual a victima era
346
A BICO DE PENNA
ccmo a nympha piotectora, e esterilisas o terreno que ella
fecundava alimentando-o, como o pelicano, com o seu
proprio sangue que ia nas folhas, que ia nas flores, que ia
nos frutos. E, com a morte das arvores, lá se vão os
animaes e, em pouco, a que os descobridores viram como
a região favorecida da fartura e da belleza não será mais
que um campo arrazado, secco e triste, cavado em
valletas que foram leitos de rios, brecado em grotas que
foram nascentes e desamparado ao sol esterilisador.
Felizmente começa a reinvidieação e coube á criança
iniciar a santa empreza. Para responder ao machado ahi
está a enxada nas mãos débeis dos infantes.
A semente é como a esmola e a Terra é como Deus :
dai-lhe um grão e ella vos responderá com a centena ;
plantai um renovo e ella vos gratificará com o milhão e
ainda com premios maiores que são o ar puro, a agua, a
sombra, a medicina e com a sua telleza. Assim a arvore
demonstra a sua gratidão.
Não tem alma e é grata ! Não tem alma e vinga-se .. .
Eu, que tive a fortuna de dormir agasalhado por uma
floresta, posso dizer-vos, crianças heroinas do
renascimento, semeadoras bèmditas da segunda geração
floral: Fazei o bem ás arvores que ellas saberão
corresponder á vossa caridade e lembrai-vos de que a
festa que celebrais é o inicio de uma Redempção.
Renovar a flora é robustecer a Patria da qual as
florestas são os reservatorios de vida e de fortuna.
A GLORIA
O caminho tornava-se a mais e mais apertado e
sombrio. Arvores de coma espessa esgalhavam a
larnaria densa interceptando a passagem da luz. O
solo, pedregoso e secco a principio, ia-se tornando
em molle alagadiço — vasto balseiro onde
apodreciam folhas mortas. Aves sinistras voejavam
pesadamente de galho a galho, negras, de enormes
garras, com os bicos aduncos manchados de sangue.
No interior havia um choro perenne — talvez
alguma fonte occulta a lacrimar.
De quando em quando um réptil apparecia —
ora enroscado á beira da trilha estreita, vibrando a
lingua bifida ou molle, oscillando pendente d'um
ramo, como uma ponta de cipó.
O ar era humido e tresandava á podridão. Não
havia outro rumor senão o do ramalhar do arvoredo
e o do choro mysterioso que vinha, como um
348
A BICO DE PENNA
funebre presagio, do recesso do bosque. E o peregrino
seguia.
Era um lindo mancebo louro — os cabellos cahiam-
lhe em bucres sobre os hombros, as suas mãos eram
brancas e finas, o seu andar airoso. Seguia cantando, sem
impressionar-se com o horror do sitio. Animava-o a
esperança de que, além d'aquella morta paragem,
resplandecia no céu um sol eterno. Para alcançar, porém,
o largo e formoso paiz da luz sempre viva, quantos
sacrifícios teria ainda de soffrer ?
Ia caminhando, a cantar, quando, d'um calvo rochedo,
desceu crocitando uma revoada de corvos famintos.
Abriu o farnel e, para conter os voracissimos animaes,
atirou-lhes a metade das provisões que levava. Foi o
bastante para que, de todos os lados, acudissem, com
uma grasnada aterradora, centenas d'aves vulturinas,
umas negras, outras vermelhas como se houvessem
tingido as pennas em sangue.
O peregrino, sem descorçoar, abriu a governita e
desfez-se de tudo quanto levava e, emquanto os monstros
debicavam gulosamente as provisões, lá ia elle, sempre a
cantar, feliz com a esperança de vêr-se, em breve, livre
d'aquella passagem temerosa.
Mas, d'entre o bosque uma voz silvante, que parecia
retalhar o silencio, poz-se a dizer atravéz de casquinadas
sarcasticas :
« — Que ha de ser de ti, mancebo imprudente !
Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem ?
Muito tens ainda que andar e que soffrer. Desfazes o teu
alforge, cedes tudo aos abutrese
KmzmMsmm
Mwsmm
A BICO DE PENNA 349
com que nas de saciar a tua fome quando ella apertar ? A
floresta é esteril, as arvores que vês nada produzem.
Volta, ainda é tempo ; retrocede antes que se desfaçam as
tuas pegadas, que são o roteiro que te restituirá á vida
feliz que abandonaste por um sonho ingrato. Não
prosigas.
Quanto mais avançares, mais difficil se te tornará o
regresso ao lar abandonado onde vivias feliz, entre os
teus, á sombra das tuas arvores sempre em flor. Não te
ülndas ! Essas aves bravias que vês, gordas, tão gordas
que mal podem voar de um galho a outro, nutrem-se de
imprudentes como tu. Outros, que têm ousado a travessia,
teem ficado pelo caminho e, apodrecendo, vão formando
esse atascal escuro em que chafurdas.
Retrocede em tempo para que não tenhas a mesma
sorte dos que te precederam.
Deixaste a luz tranquilla, vais em busca da claridade
maior, mas, antes d'ella, infeliz, estão os horrores da
selva mephitica, estão as perfidias, estão as maldades. As
aves escarninhas zombarão de ti — seguirás perseguido
pela assuada atroa-dora de todas e muitas, baixando,
virão bicar-te as carnes como fizeram outr'ora ao filho de
Japéto. Eetrocede, imprudente. »
O peregrino ouviu a voz que vinha, como um oraculo,
do fundo tenebroso do arvoredo e, indifferente, sorria.
Que lhe importava o soffrimento, se lá ao longe, alem da
floresta, estava a compensação?
O terreno tornava-se mais encharcado — um cheiro
acre de sangue subia do tremedal. Por vezes um craneo
rolava ou eram tíbias que se levantavam hirtas entre as
hervas do paul.
350
A BICO DE PENNA
Que importava ? Já os seus olhos divisavam uma
restea de luz, além. Antes da tarde lá estaria : era a aberta
que levava aos campos elysios.
Os outros haviam desanimado, elle não se deixaria
vencer pela cobardia. Que esvoaçassem as gordas aves
carniceiras, á noite todas se recolheriam ás suas cavas,
aos seus ninhos nos penhascos e elle, então, seguiria
socegadamente, a correr, vencendo distancias.
Pensava assim quando um novo bando d'aves
precipitou-se das frondes galrando. Nada mais lhe restava
e como havia o infeliz de saciar os abutres ? As aves
adejavam ameaçadoramente em torno da sua cabeça
loura, investiam com estrondoso bater d'azas. Elle
procurava espantá-las, agitando a capa que levava e que
era o seu único agasalho ; as aves, porém, rasgaram-na
com as garras e ás bicadas reduzindo-a a tiras ; depois
atiraram-se-lhe ao corpo, estraçalharam-lhe as roupas e
elle sentiu nas carnes o aculeo dos primeiros bicos.
Pensou, então, que se atirasse aos seus perseguidores
um pedaço de carne, emquanto elles a disputassem,
poderia caminhar tranquillo. Mas onde havia de
encontrar, n'aquella esterilidade, a carne de que carecia
para repastar os abutres? Deteve-se um momento,
encostado a uma arvore, em attitude de defesa. A arvore,
porém, estillava venenosa resina, cujo aroma matava.
O peregrino sentia-se abalado : vertigens seguidas
enfraqueciam-no, perturbava-se-lhe a vista, vergavam-se-
lhe as pernas. Notou, então, que havia mais perigo
n'aquelle refugio do que no meio
A BICO DE PENNÀ
351
agitado das aves vorazes e, atordoado, lançou-se
afoitamente a caminho.
Seguia quando se viu, de novo, cercado pelos
monstros. Foi então que resolveu engodá-los atirando-
lhes tassalhos da própria carn9, e arrancando da cinta
uma adaga afiada, pôz-se a retalhar o corpo, jogando aos
animaes postas ensanguentadas.
Foi uma alegria satânica no bando alado e, como se o
cheiro do sangue fresco chegasse além, outras aves
surgiram precipitadas, com um galrar horrendo, e,
emquanto disputavam a carne, que elle lançara, o
peregrino seguia.
Não estava longe o termo da viagem — lá brilhava,
por entre a luzida folhagem, a luz sem crepúsculo, o
esplendor sem occaso. Mais um pouco de animo e
venceria aquella passagem onde tantos haviam
succumbido. Lá ia.
Repentinamente, a mesma voz, que lhe falara á
entrada da floresta, tornou com mais sarcasmo, vindo,
como um canto de pássaro, da ramaria mais alta d'uma
arvore frondosa e negra.
« Volta, peregrino ousado. Vê que já se te tornou
necessário o sacrifício. É com a tua própria carne que vais
comprando os passos n'esse caminho, teu sangue
encharca o terreno e, dentro em pouco, não terás
resistencia para o menor movimento. Ahi vem a noite ;
repousa um instante e, quando as aves adormecerem,
retrocede. Não tens saudade da terra em que naseeste ?
Aqui tudo é hostil; lá tudo é propicio. Aqui as arvores
envenenam, o ar que se respira é nauseabundo, a agua,
longe de applacar a sede, augmenta-a e é como um fogo
que abrasa as entranhas. Se sahires do alaga-
352
A BICO DE PENNA
diço em que te vais enxurdando encrontrarás o
pedregulho agudo que te rasgará os pés e os espinhos que
te romperão as carnes. Volta ! espera a noite e volta.
A esta hora os teus, que além deixaste, gozam os
favores da primavera cheirosa. Teus filhos brincam,
porque são innocentes e, como lhes disseste que levarias
brinquedos quando regressasses, fazem castellos
dourados saltando na relva. O mais novo chama por ti na
sua linguagem indecisa, alongando os olhinhos para o
lado em que o sol morre. Tua esposa suspira — talvez
que o coração, que adivinha, lhe esteja a contar os teus
soffrimentos. Espera a noite e volta.
Não te illudas com o sonho. A vida é a tranquillidade
e mais feliz é o pastor que tem um pouco de queijo negro
e água da fonte e não deseja senão a madrugada e as
estrellas do que o millionario que ambiciona — e tu és o
maior dos ambiciosos. Volta !»
O peregrino ouvia, mas os seus olhos não se tiravam
do ponto luminoso que fulgurava ao longe. Ia-se-lhe o
sangue pelas muitas feridas, doíam-lhe os pés, a fadiga
tornava-o vagaroso, ainda assim lá ia elle sorrindo e
cantando.
«Mais um pouco, dizia, mais um pouco, e viverei
como a propria Vida — meu nome ficará como um
esplendor eterno. Que importa a dôr ? O que soffre é o
corpo, mas para que quero eu o corpo senão para que
conduza a alma ? e é ella que vai á victoria. A
tranquillidade, sim, a tranquillidade é deliciosa, mas o
grande Bem lá está, já o diviso d'aqui. Mais um esforço e,
antes da noite, estarei
A BICO DE PENNA
353
repousando no campo de flores immarcessiveis — e lá se
renovará o meu corpo, um sangue mais forte me encherá
as veias, sangue eterno, feito de luz, como esse que
purpurina o céu nas claras manhans e nas tardes
luminosas.
Que importa a carne que vai ficando pelo caminho no
bico e nas garras dos abutres ? Que importa o sangue que
jorra das feridas abertas ? A gloria é uma ascensão e eu
faço como os que tentam remontar ás nuvens : alijo a
carga inutil. Eia ! um pouco mais e será minha a
victoria».
Caminhava, mas um novo bando d'aves poz-lhe
cerco; não hesitou : retalhou-se e, atirando a um lado e a
outro o pasto vivo, foi seguindo.
Já era escuro na brenha, sinistro, lá longe, porém,
fnlgurava sempre o perfido esplendor e nelle levava o
caminhante os olhos postos.
«Mais um pouco ! Que me não traiam as forças agora
que estou a chegar ao termo da jornada. Que me fique nas
veias uma só gotta de sangue e com ella irei ao extremo
da viagem ».
Mas os olhos empanavam-se-lhe, dobravam-se-lhe os
joelhos, vacillava indo d'encontro ás arvores e aos seus
ouvidos chegava um rumor confuso como o do longinquo
bater do mar.
Deteve-se encostado a um tronco, olhando. Os abutres
cercaram-no, a principio medrosos ; mas o primeiro
avançou, logo outro o seguiu, outro, mais outro e,
atirando-se todos ao corpo do peregrino, começaram ás
freneticas bicadas.
Elle ainda tentou reagir, mas falleceram-lhe as forças,
os braços penderam-lhe molles ao longo do corpo aberto
em chagas. Passou-lhe, então, na sau-
354
A BICO DE PENNA
dade, a visão do lar que abandonara. Lembrou-se da
terra amiga que deixara, da esposa, dos pequeninos
filhos, mas a visão foi rápida, porque logo os olhos
se voltaram para o ponto luminoso que parecia estar
tão perto, a uns passos curtos d'aquelle sitio de
morte.
Subito, de todos os meandros do bosque
romperam risos sarcásticos e o peregrino, só então,
chorou, porque, em verdade, doiam-lhe mais
aquelles risos do que as bicadas das aves.
Esmorecia. Ia-se-lhe o corpo curvando e tombou
no atascal e, no momento em que exhalava o
derradeiro suspiro, pareceu-lhe ouvir a voz oracular
que sahia do bosque repetindo as palavras que
dissera :
«Que ha de ser de ti, mancebo imprudente ?
Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem?
Muito tens ainda que andar e soffrer ...»
Era outro que vinha ousadamente, trilhando o
mesmo caminho ingrato que levava á gloria.
Que perecesse aquelle, outros que perecessem, o
caminho ha de ter sempre andejos que por elle
sigam, affrontando tormentos, d'olhos postos no
além, na eterna luz que fulgura.
INDICE
PAG.
Lavradores ......................................................................... 5
O amigo urso ............................................. .... 15
Um sabio............................................................................ 23
Fantasia de inverno............................................................ 29
O paradoxo contemporaneo ............................................... 33
Balões ....................................................................... . . 43
Divagando.......................................................................... 49
Um simples........................................................................ 57
Away 1 . . ................................................................ 65
Decadência.......................... .............................................. 71
D. Joào de Marafla............................................................. 81
Rehabilitaçào ..................................................................... 93
A sorte................................................................................ 99
A nova raça........................................................................ 109
Palpites. ......................................................................... 117
Romance triste................................................................... 125
O gallo ............................................................................... 133
As arvores. . . .......................................................... . 139
Urbano Duarte.................................................................... 147
Ciúme................................................................................. 155
PA8.
Sim e não..... ........................................................................ .-189
Um modelo de marido............................................................197
Emmanuel................................................................................205
Luar .......................................................................................215
Arte ..........................................................................................221
O poeta ..................................................................................231
A direcção do balão................................................. ' . . 239
Apologia............................................................................. 247
Palavras de um stegomya................................................... 253
Burro ou cão ? ................................................ ... 261
Manoel Viotorino .............................................................. 269
O violino............................................................................ 277
Vilia ................................................................................ 285
Resurreição . . .-........................................................ 293
Valentim Magalhães.......................................................... 299
O Ney................................................................................ 307
O peixe...........................................................: . . . 315
Um audaz .......................................................................... 323
A propósito de festas......................................................... 333
A arvore............................................................................. 341
A gloria.............................................................................. 347
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