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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
6
Outubro /Dezembro — 1970
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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Clarival do Prado Valladares
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura — 7º andar Rio de
Janeiro — Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO II
OUTUBRO/DEZEMBRO - 1970
N.º 6
Sumário
ARTES
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
Notas para uma História do Pia
no no Brasil..................................
CIÊNCIAS HUMANAS
GILBERTO FREYRE
PEDRO CALMON ................................
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
HÉLIO VIANNA
MANUEL DIÉCUES JÚNIOR
JOSÉ ALÍPIO GOULART ...
O Brasileiro como Tipo Nacional
de Homem Situado no Tró
pico ........................................... 41
D. João VI ............................................ 59
O Rio de Janeiro nos Séculos
XVI e XVII ................................ 69
Doação da Biblioteca de D. Pe
dro II ....................................... 83
Estrutura Social Brasileira .... 107
Os Quilombos ................................ 129
LETRAS
R. MAGALHÃES JÚNIOR ................................
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO . ,
ANDRADE MURICY ........................................
As Relações entre José de Alen
car e João Caetano .................... 145
A Visita de Mário de Andrade a
Alphonsus de Guimaraens . . 155
O Cão Saudade ..................................... 167
artes
Notas para uma História do Piano no
Brasil
(Século XIX)
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
ELAS virtualidades sonoras de que dispõe, talvez seja o piano um dos mais
nobres e perfeitos instrumentos musicais até hoje inventados. Possibilitou a
criação de obras primas do engenho humano, manifestações inimagináveis de
perícia artística e o encantamento de numerosas gerações.
Daí a sua universal aceitação. Pode ser encontrado em extremos de latitude e
longitude, até nos mais atrasados rincões de qualquer um dos continentes, ou
mesmo em ilhotas perdidas na vastidão dos oceanos. Tem acesso aos palácios e
residências senhoriais, ressoa nos templos, nos teatros, nos salões de concerto, a
bordo de navios, e também ingressa, humilde, alugado ou comprado, nas casas
pobres, ou invade ruidosamente os lugares de diversão por aí afora. A sua voz é
como se fosse um esperanto musical, nem sempre compreendido e amado, mas
pelo menos admitido, tolerado por todos os homens.
Por isso mesmo afirmou Guerra Junqueiro que o destino dos pianos semelha
o dos israelitas: uns e outros «andam espalhados por toda a superfície do Globo,
errantes, sem pátria, cosmopolitas».
Evoluindo de formas primitivas, teve o piano no século XIX um vertiginoso
período de expansão, graças às facilidades industriais desenvolvidas sobretudo na
Europa, ao crescimento da marinha mercante de todos os países e aos novos
mercados abertos com a independência das nações latino-americanas. Atingiu o
fastígio nas primeiras décadas do século XX. O progresso, trazendo novidades
como o fonógrafo, as gravações, o rádio, a televisão, e outras exigências da vida
moderna alte-
(*) Em outubro de 1960, nas edições domingueiras do jornal «O Estado de São Paulo»,
publicamos ensaio versando sobre a História do Piano em terras paulistas. Daquele trabalho,
aproveitamos aqui apenas a parte de Introdução, para dar nexo e sequência a estas páginas inéditas.
P
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
rando hábitos dos agrupamentos humanos, contribuíram para que imper-
ceptivelmente se diluísse a sua supremacia. A ponto de justificar o título de um
livro publicado em 1951, bem na metade do século atual, pelo italiano Beniamino
dal Fabbro: «Crepuscolo del Pianoforte».
Também no Brasil desfrutou o piano de importância considerável, dilatando-
se o seu prestígio pelas diferentes camadas sociais do Reino, do Império e da
República, e abrangendo enorme área de influência. Regiões houve, como Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, e até Mato Grosso, onde, por uma série de
circunstâncias, o predominio do piano na vida familiar e social se fêz notar de
modo acentuado.
As guitarras, os violões, as flautas — portáteis, de fácil aquisição e
aprendizagem — eram instrumentos populares. Já o piano, pelo seu tamanho, pelo
seu custo, e dificuldades de remoção, constituiu o apanágio de grupos
economicamente favorecidos: a burguesia dos centros urbanos e o patriarcado
rural do Primeiro e Segundo Impérios, sem falar na nobreza. Ter piano em casa
representava outrora um sinal de superioridade. Ali estava, a um canto, o símbolo
de que a família era cultivada, ascendera a um estágio superior de educação, se
aproximara dos modelos europeus.
Entre os romanos, os deuses «lares» desempenhavam o papel de protetores
da família e da vida doméstica: tinham oratório, eram venerados, recebiam
oferendas. No Brasil antigo, mereceu o piano atenções, que o tornaram quase
objeto de culto. Era no lar o confidente diário das sinhàzinhas langorosas, o enlevo
dos moços românticos. As mucamas o espanavam e poliam respeitosamente (êle
também era negro. . .). Por cima dele, muitas vezes, como num altar, um vaso de
cristal ou porcelana chinesa descansava sobre finíssimas rendas, sorrindo em flores
e perfumes; quando não era o porta-retrato de um ente querido, — até o qual se
evolava o incenso das harmonias derramadas pelas teclas de marfim e ébano.. . E
para completar o quadro, ocasiões houve em que o piano novato, ao chegar pela
primeira vez a uma vila ou cidade, se viu recebido com reverências, como se fosse
um Bispo ou alta autoridade, com rojões, acompanhamento popular e até lavratura
de um têrmo, tal qual sucedeu em Porto Feliz e Sorocaba.
Instrumento cordial por excelência, ajustando-se à imagem brasileira do
homem cordial, representou o piano onímodos papéis e funções em nossa vida
social. Foi sinal de cultura e ornamento de salão; confidente e passatempo; prenda
doméstica e dote de casamento; vaidade aristocrática e pasmo caipira; empate de
capital e fonte de renda; agente terapêutico e tormento dos neurasténicos .. .
Assim, se existe hoje entre nós uma fecunda e já tradicional cultura
pianística, tal fato se deve àquelas prendadas sinhás e melenudos sinhôs de
outrora, que desde os albores do século XIX exercitaram o piano, transmitindo o
seu gosto de geração em geração; como igualmente se deve aos professores, aos
concertistas, aos compositores; e também
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
aos inúmeros afinadores, aos raros fabricantes locais e aos dedicados lojistas do
ramo, interessados em vender pianos, peças, métodos, partituras, livros e revistas
musicais.
Por todos esses motivos, vale a pena tentar reconstituir, com os poucos
elementos que temos à mão, o ambiente em que vieram atuar os pianos no Brasil
oitocentista, comunicando-nos os benéficos influxos da civilização europeia.
ANTECEDENTES
Antes, porém, torna-se imprescindível relancear os olhos pelos antecedentes
técnicos e históricos do assunto.
Como é geralmente sabido, o instrumento chamado piano-forte teve como
precursores vários outros, de feitios rudimentares, os quais, acrescidos de
inovações em sua forma e estrutura, resultaram no soberbo ma-quinismo atual.
Dois deles foram antepassados diretos: o clavicórdio e o clavicembalo, ou cravo,
ambos conhecidos na Europa desde o século XVI, com variantes e nomes
diferentes em cada país (harpsichord, cla-vecin, spinetta, virginal, manicórdio etc).
Cerca de 1700, Bartolomeu Cristófori, fabricante de cravos em Florença,
introduziu nesse aparelho modificações revolucionárias, que possibilitavam ao
executante diversificar o matiz e a intensidade dos sons: era o «clavicembalo
colpiano e forte». Deriva daí a expressão «piano-forte», logo depois reduzida sim-
plesmente a piano. Silbermann, Broadwood e outros, ainda no século XVIII,
aperfeiçoaram o invento de Cristófori, construindo pianos sempre melhores. Por
fim, já no século XIX, os pianos se impuzeram à preferência geral, banindo de
uma vez o cravo e o clavicórdio. (1)
Ora, Portugal no século XVI, graças à sabedoria de seus reis e ao arrojo de
seu povo, gozava de enorme prestígio político junto às outras nações européias, e
já lhe eram familiares, sobretudo nos terrenos da pintura e da música, as novidades
e os avanços da arte renascentista. Desse modo, referências a instrumentos
primitivos como o manicórdio, o clavicórdio e o cravo, aparecem frequentemente
em vetustos documentos da história lusitana, testemunhando o apreço em que
eram tidos. Tais referências prosseguem e se amiúdam no decorrer dos séculos
seguintes.
Cerca de 1428, o Infante D. Pedro, filho do Rei D. João I, de regresso ao
Reino, encontrou o seu irmão o Príncipe D. Duarte, herdeiro do trono, enternecido
a ouvir a noiva, a Infanta D. Leonor de Aragão, «cantar e tanger o manicórdio.
sem querer saber de caçadas e divertimentos». (2)
Em 1520, partindo de um porto no Mar Vermelho, uma embaixada lusa, sob
a chefia de Dom Rodrigo de Lima, subiu penosamente as montanhas da Abissínia,
em demanda do lendário e inacessível Preste João. Levava em lombos de camelos
variados presentes, como fazendas, cou-
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
raças, pólvora, jóias, imagens da virgem Maria e também um clavi-cordio com o
respectivo executante. A verdade é que o instrumento lá chegou e que o Preste
João, numa entrevista com os portugueses, exigiu deles «que cantassem a um
manicórdio e que bailassem e assim o fizeram» (3)
Damião de Góis (1502-1574), célebre como historiador, viajante,
humanista, poliglota, amigo de Erasmo de Rotterdam e Alberto Durer, foi
igualmente renomado musicista, compunha, cantava e tocava diversos
instrumentos, como registrou Fétis na sua «Biographie Universelle des
Musiciens». Cronista do Rei D. Manuel, o Venturoso, descreveu o prazer daquele
monarca em ouvir constantemente música e se rodear no seu palácio, nos seus
aposentos e até nas caçadas que fazia, de «estremados cantores, e tangedores, que
lhe vinham de todas as partes da Europa.» Tanta era a paixão musical de D.
Manuel, que mesmo nos dias em que «dava audiência havia sempre na câmara em
que estava música de cravo, e cantores». (4)
A musicofilia dos reis portugueses culminou com a ascenção ao trono da
estirpe dos Braganças. D João IV (1604-1656) estudou música na infância com
mestre vindo da Itália, viveu cercado de excelentes artistas, dedicava duas horas
por dia ao cultivo da música, compôs pequenas peças sacras e escreveu
monografias versando sobre temas musicais. O seu maior mérito, porém, foi o de
fundar e manter uma Biblioteca Real de Músicas, «que chegou a ser a maior do
seu tempo, de tal modo enriquecida com preciosidades bibliográficas, que ainda
hoje nos causam assombro» (Ernesto Vieira). O Catálogo, ou INDEX, da livraria
de D. João IV ficou famoso. Nele se encontram abundantes referências a
composições «para cembalo ou manicórdio, clavicembalo ou clavicórdio, espineta
e cravo». (5)
Continuou a música a fruir do real amparo sob D. João V, O Magnânimo
(1689-1750). Do Brasil lhe vinham copiosos proventos da extração de ouro e
diamantes. Pôde assim sustentar uma suntuosa Real Capela, atraiu para Portugal
dezenas de artistas de origem italiana, introduziu na Corte a ópera italiana e
fundou «um seminário destinado ao ensino especial da música». Sua filha, a
inteligente Princesa D. Maria Bárbara, foi discípula em Lisboa do célebre
Domingos Scarlatti e chegou a tocar cravo «com rara perfeição». Persistiu na
prática dessa arte inclusive na Corte de Madrid, para onde se trasladou como
Rainha da Espanha (mulher de Fernando VI), levando ao seu serviço o fiel
Scarlatti, «o maior cravista do seu tempo» e o que mais contribuiu para as técnicas
modernas de execução, fazendo uso constante do cruzamento das mãos. (6)
D. José I, que reinou de 1750 a 1777, manteve em funcionamento o
Seminário de Música, em cujas aulas (conforme se lê nos Estatutos referendados
pelo Rei em 1765), se ensinava, entre outras matérias, a arte de tanger cravo.
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
Sua mulher, a Rainha D. Maria Ana Vitória de Bourdon (avó materna de D.
João VI) tanto gostava de música, que converteu «a câmara do paço em
verdadeiro salão de concerto». A suas ordens, dispunha sempre de uma «sublime
orquestra» e primorosos cantores, muitos deles estrangeiros. E por vezes, na sua
câmara, ela própria cantava e executava «em cravo as tocatas mais dificultosas e
do melhor gosto, que eram as de Scarlatti». (7)
Observe-se que na segunda metade do século XVIII despontaram em terras
lusas inúmeros cravistas, compositores e impressores de músicas para cravos.
Houve também em Portugal hábeis fabricantes de cravos e pianos, com
oficinas montadas em Lisboa, conforme registrou Ernesto Vieira no seu
Dicionário. Em 1745, Manuel Ângelo Vila deu a conhecer num folheto os
diferentes instrumentos, que se julgava apto a construir em casa, por encomenda,
entre eles saltérios, manicórdios, espinetas singelas e dobradas, cravos de penas e
de martelos etc. Manuel Antunes, por volta de 1760, era mestre de uma
manufatura de cravos e passou a construir excelentes cravos de martelos, ou seja,
autênticos pianos, tendo até obtido de El Rei D. José I um alvará concedendo-lhe
privilégio por dez anos para que só êle e seus filhos pudessem fabricar em
Portugal tais instrumentos. Depois de 1770, aparece em Lisboa o nome de Matias
Bostem, que se intitulava «Mestre de cravos da Real Câmara» e foi fecundo
fabricante de cravos e pianos, tendo prosperado na sua profissão .
Muitos dos velhos cravos e pianos de outrora ainda hoje podem ser
admirados nos museus de Lisboa, sobretudo no «Museu Instrumental do
Conservatório Nacional de Música».
NO BRASIL
Vistos todos esses antecedentes, só se pode tirar uma conclusão:
os primeiros clavicórdios e cravos a surgirem no Brasil foram trazidos
pelos portugueses, que tanto as apreciavam na terra natal. E foram os
sacerdotes da Companhia de Jesus, nos seus esforços de evangelização,
os pioneiros dessa tarefa civilizadora, introduzindo-os nos seus colégios,
onde eram utilizados nas festas e cerimônias religiosas. O seu ensino
chegou também a ser ministrado aos pequenos índios, conforme teste
munhou o Padre Fernão Cardim na visitação feita às partes do Bra
sil em 1583.
Diversas outras fontes históricas, dos séculos XVI ao XVIII, comprovam
por diferentes maneiras a existência daqueles instrumentos no Brasil colonial,
servindo não somente a finalidades do culto e do magistério eclesiástico, mas
também ao entretenimento de amadores anónimos.
Usando as palavras de Frei Vicente do Salvador, pode-se dizer que por
muito tempo permaneceram os cravos feito caranguejos, arra-
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
nhando as areias do litoral. À beira-Atlântico jaziam as principais vilas e cidades
brasileiras, abertas ao mar e às encomendas da Europa e como que cerradas aos
enigmas e temores do sertão. Quente e úmido era o clima de todas elas, nada
propício portanto à preservação das madeiras, metais e tecidos que compunham
tais instrumentos, atacados por cupins, fungos e pela oxidação, fato que explica a
ruina e o desaparecimento quase total deles e a sua não existência em nossos
museus atuais. (8)
A chegada ao Rio de Janeiro, em 1808, do então Príncipe-regente D. João,
acompanhado de toda a sua família e Corte, além de milhares de funcionários e
lacaios, produziu profundas modificações no «modus vivendi» dos brasileiros,
com repercussões favoráveis sobre o ambiente musical. D. João VI, como os seus
antepassados, amava a música e da sua predileção compartilhavam outros
membros da família real. Mandou vir da Europa o grande compositor Marcos
Portugal, acolheu com aprazimento o notável pianista austríaco, discípulo de
Haydn, Sigismund Neukomm, que se tornou mestre de música do Príncipe
herdeiro D. Pedro de Alcântara e da sua jovem esposa, Princesa Leopoldina, e
dotou a Capela Real com recursos e a presença de numerosos «castrati» para
abrilhantar as imponentes cerimônias que ali se realizavam. Soube também
proteger o humilde compositor carioca Padre José Maurício Nunes Garcia,
reconhecendo-lhe os méritos excepcionais de artista consumado.
A precipitação com que a Corte de Bragança se retirou de Portugal para
escapar às hostes napoleónicas parece repelir a ideia de que na frota,
sobrecarregada de fidalgos e badulaques, ainda houvesse lugar para o transporte de
cravos ou pianos. Segundo Mário de Andrade («Pequena História da Música»),
«Dão João quando regente mandara vir para o palácio de São Cristóvão uns pianos
ingleses, que foram os primeiros do Brasil». Teriam sido os primeiros, pois Mário
de Andrade não indica datas, nem cita as fontes de que se valeu. (Cabe, aliás, uma
pergunta: os tais pianos foram os primeiros do Brasil, ou foram os primeiros
«pianos ingleses» do Brasil?) .
A permanência de D. João VI entre nós deu início a um verdadeiro «ciclo do
piano». A abertura dos portos e os tratados firmados com a Inglaterra foram os
legítimos fatores que determinaram a entrada maciça de pianos no Brasil.
Dominando, por força dos acordos diplomáticos, o nosso mercado, os ingleses
abarrotaram os portos nacionais com os seus produtos, inclusive pianos. Conta o
historiador Pereira da Silva que em 1808 entraram, somente no Rio de Janeiro, 90
navios de diversas bandeiras, trazendo mercadorias; em 1810, nada menos de 422
navios ingressaram na Guanabara.
Hábeis comerciantes, tendo pela frente portugueses perplexos em terra
estranha e brasileiros embasbacados com as novidades europeias, conseguiram os
britânicos impingir-nos muitos artigos de luxo, de que o Brasil, naquele momento
histórico de crise e transição, não tinha maior necessidade, como foi o caso dos
pianos. Que utilidade ou função social
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
podiam ter pianos num vastíssimo País, essencialmente agrícola, de raros e
rarefeitos núcleos urbanos, onde vegetavam em grande maioria analfabetos e
ignorantes, cercados de negros, bichos e florestas?
Seja como fôr, os pianos foram chegando, tomando posição, ocupando os
seus lugares, como se destinados a uma batalha em prol da cultura. Os sábios e
viajantes estrangeiros, que naqueles anos percorreram a nossa terra, foram
assinalando a presença deles Brasil adentro.
A princípio, como se deduz dos fatos, somente pianos ingleses entraram no
Brasil. O Reverendo R. Walsh, em 1828, pôde ainda ver muitos deles empilhados
na Alfândega do Rio de Janeiro. Posteriormente, com a queda de Napoleão e o
restabelecimento do comércio com a França e o resto da Europa, vieram-nos
instrumentos de variadas procedências. Von Martius. («Viagem pelo Brasil»)
referiu-se aos produtos importados da Áustria, entre os quais pianos. Observa-se
aqui uma influência direta do casamento, em 1817, do Príncipe D. Pedro com a
Arquidu-quesa da Áustria, D. Maria Leopoldina, que era aliás diletante de bom
gosto. Quanto aos pianos norte-americanos (Chickering e outros), demoraram a
aparecer entre nós, sobretudo pela ausência de linhas diretas de navegação entre o
Brasil e os Estados Unidos: os grandes veleiros ianques daquele tempo tomavam
antes o rumo da Europa, para só depois abordarem às plagas sul-americanas. A
supremacia, porém, esteve sempre com os europeus, pois em 1837 Ferdinand
Dénis registrava que «os numerosos pianos de que no Brasil se faz uso são quase
todos importados da Inglaterra e da França».
De certa maneira, faziam os pianos o papel de imigrantes ou escravos.
Companheiros do homem, com êle vinham de terras distantes em veleiros,
sacolejando nos porões, no seu rude travesseiro de tábuas. Desembarcavam nos
portos de destino, onde eram depositados em armazéns no cais, ou abandonados
dentro de suas embalagens nas praias ou nas pedras. Surgia então um comerciante
para ver os documentos, o «passaporte» de entrada, e examinar se haviam chegado
em ordem, se não estavam arranhados, se tocavam bem. Depois, os pianos eram
vendidos. Mudavam de dono e de situação. Iam residir em aristocráticos
sobradões urbanos ou em graciosos solares de chácaras vizinhas às Capitais.
Outras vezes, varando serras, campos e matas, tomavam o rumo do sertão, onde
em ermas fazendas ou buliçosas casas-grandes de engenhos serviam para embalar
os ócios dos senhores. Apareceram também nas vilas sonolentas do interior e, ao
que consta, na fase áurea da borracha, até em ranchos na Amazónia! (9)
Enorme, portanto, foi a difusão dos pianos Brasil adentro, num autêntico
arremedo cultural do fenômeno do bandeirismo. Essa penetração correspondeu, de
certa forma, àquela «propagação de cultura, por meio da técnica acompanhada de
irradiação», mencionada por Gilberto Freyre em «Um Engenheiro Francês no
Brasil»: pois atrás dos pianos
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
(que eram objeto de comércio) seguiam sugestões intelectuais.civilizadoras, com
posteriores influências expansivas sobre os hábitos sociais e os «estilos de vida».
A proliferação dos pianos, aliada ã paixão musical do povo brasileiro,
suscitou interesse em torno de peças, partituras, compêndios e manuais.
Fundaram-se depósitos e lojas especializadas, surgiram as primeiras oficinas e
casas impressoras, editaram-se livros e revistas musicais e nos periódicos os
professores iam anunciando os seus préstimos. Nasciam, assim, ramos novos do
comércio e da indústria (houve mesmo, em São Paulo, Bahia, Olinda e Rio de
Janeiro, fabricação de pianos, rudimentar embora), ao passo que praticamente
desaparecia uma profissão outrora indispensável: a dos copistas de música. Em
compensação, pulularam afinadores de pianos, uns realmente capazes e entendi-
dos, e outros que consertavam o orgulho de Cristófori como quem ferra animais;
às marteladas e aos trompaços. ..
Indagação das mais sugestivas, tendo em vista a enormidade territorial do
Brasil e a deficiência dos meios de condução, é a que diz respeito ao transporte
dos pianos. Pelo pouco que se sabe, e o resto que se imagina, pode-se conjecturar
que nos portos de desembarque e nas cidades eram carregados, suspensos por
paus, aos ombros de negros possantes, ou empurrados em carretas por escravos.
Podiam também ser levados em carroças puxadas por muares. Pelos caminhos do
interior, iam provavelmente encarapitados em carros de bois, em banguês de
carga, em andores ou padiolas, e até mesmo nos ombros fortes de negros, que em
grupos iam ritmando seus passos com o auxílio de gritos e cantos.
Tal qual os viajantes e os tropeiros, participaram os pianos das longas
jornadas pelos sertões, causticados por sol, poeira e chuva. Dormiram em ranchos
à margem dos caminhos, ou abrigados sob toldos em clareiras de florestas.
Atravessaram a vau riachos, ou tiveram de embarcar em balsas e canoas para
transpor cursos caudalosos. E é bem possível que um deles tenha descido os rios
numa monção, com destino à lendária Cuiabá.
O assunto Piano daria, dentro dos fastos da nossa história artística, um mural
de vastas proporções, pleno de cores e detalhes curiosos. Con-tentemo-nos, porém,
nos limites deste estudo, em bosquejar, com rápidas pinceladas, pequenos quadros
regionais, que sirvam para bem caracterizar e ilustrar o tema.
BAHIA
Se foi a Bahia a primeira terra brasileira pisada pelos portugueses, e onde
instalaram a sua primeira Capital, deve ter sido ali também o lugar para onde
foram levados os primeiros cravos e clavicórdios a aparecerem neste Novo
Mundo.
Assim eram carregados os pianos pelas
ruas do Rio de Janeiro, conforme
desenho de F. Biard no seu livro «Deux
Annêes au Brésil», (Paris, 1862)
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
Dos cravos dá notícias o Padre Fernão Cardim, que andou em 1583 visitando
os colégios de seus irmãos jesuítas e as aldeias onde missionavam, além das
acolhedoras fazendas e engenhos cultivados pelos lusos no Recôncavo. (10)
O Padre Anchieta, escrevendo em 1584, corrobora a informação de Cardim:
num dia de festa, no Colégio da Bahia, ouviram-se durante as cerimônias «o
órgão, as flautas, e o clavicórdio e as cítaras» acompanhando a modulação dos
salmos». (11)
Sede da administração, residência do Vice-rei, do Bispo, dos magistrados,
gozou a cidade da Bahia até 1763 das honras e prerrogativas de Capital do antigo
Estado do Brasil. E a música, em suas diferentes manifestações, esteve sempre à
altura daquela dignidade. Acostumou-se o povo baiano, através das centúrias, a
cultivar a música profusa e gostosamente, e aceitou por certo, como natural, a
substituição imperceptível dos velhos cravos por pianos mais modernos.
Ao assomar o século XIX, Thomás Lindley, comandante de um brigue
comercial inglês, viu-se obrigado, por suspeita das autoridades locais, a passar
alguns meses detido em Salvador (1802-1803), onde testemunhou o ardor musical
dos baianos. Bandas de música, concertos, guitarradas, danças dos negros, festas
profanas (como a do Senhor do Bomfim), ou religiosas (como a de N. S. da
Conceição), récitas num teatro canhestro — de tudo pôde êle presenciar. Embora
não fale explicitamente em cravos ou pianos, afirmou que «a few or the superior
classes give elegant entertainements, have family concerts, balis, and cards par-
ties». É justo supor não faltassem a tais reuniões tocatas de cravo ou piano. (12)
Em 1806, sendo Governador o VI Conde da Ponte, D. João de Saldanha da
Gama Melo Torres Guedes de Brito, chegou à Bahia uma esquadra francesa
trazendo a bordo o Príncipe Jerónimo de Bonaparte, que foi recebido com as
honras de estilo e com um jantar de trinta talheres no Palácio, seguido de um sarau
em que o culto e minucioso Conde da Ponte exibiu ao gaulês «o melhor que havia
de instrumental e canto-ria». (13) É óbvio que entre os instrumentos estaria um
cravo ou um piano.
(Observe-se, de passagem, que o pendor musical do Conde da Ponte
transmitiu-se a seus ilustres descendentes brasileiros: seus filhos D. Luis de
Saldanha da Gama, depois Marquês de Taubaté, e D. José de Saldanha da Gama
— nascido na Bahia e pai do famoso almirante Saldanha da Gama — eram
exímios pianistas; outro, D. Francisco, foi «notável músico». Um de seus netos, D.
Antônio Maria Correia de Sá e Benevides, 8
9
Bispo de Mariana, praticava o piano
como um virtuose. Ainda hoje, «no Paço Arquiepiscopal de Mariana conserva-se
o seu piano como relíquia de inapreciável estimação».) (14)
John Mawe, percorrendo o Brasil, colheu por volta de 1810 a informação
segura de que na Bahia «o gosto pela música é generalizado,
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
existindo poucas famílias que não possuam guitarra e, as mais importantes, pianos
fortes.» («Viagens ao Interior do Brasil», pág. 266)
Em setembro de 1817, o negociante gaulês L. F. de Tollenare esteve presente
em Salvador a um grande baile oferecido ao Conde dos Arcos, durante o qual
houve discursos, recitativos, e também um concêrto de piano e flauta. Notou o
forasteiro que «os sons perdiam-se na vastidão daquele local»; mas «a senhora que
executou ao piano fê-lo com graça verdadeiramente francesa». (15)
A britânica Maria Graham, transitando pela Bahia em outubro de 1821, teve
oportunidade de visitar diversas famílias portuguesas, asseverando: «em cada casa
vi, ou um violão, ou um piano, e geralmente ambos». Certa noite, numa reunião
social na residência do cônsul inglês, sucedeu o imprevisto de os rebequistas
designados para as danças saírem mais cedo, fato que não chegou a causar
contratempo, pois «algumas das senhoras se ofereceram para tocar piano e o baile
durou até depois da meia-noite». (16)
Pacificada a Bahia, desfeitas as malquerenças entre brasileiros e portugueses,
após as lutas da Independência, entrou a vida social num ritmo construtivo e
animador. Acompanhou a música a passo igual esse desenvolvimento. Repetiam-
se as festas, os bailes, os saraus. E não havia sinhàzinha que não aprendesse
música e não soubesse fazer cafuné no seu piano. Exemplo: D. Clélia Brasília de
Castro, mãe do poeta Castro Alves, que ao filho genial transmitiu o gosto da
música. Nas «Obras Completas» de Castro Alves podem ler-se, em forma de
imagens poéticas, dezenas de alusões a pianos, teclados, pianistas etc. .
A paixão musical do povo estimulou atividades comerciais e industriais
correlatas. Chegaram a funcionar em Salvador fábricas de órgãos e pianos, como
as de Carlos Tappe e José Salvi, mencionados por Wan-derley Pinho em
«Cotegipe e seu Tempo» (pág. 589) .
Muitos pianos vindos de além-mar não conseguiam nem criar poeira nos
armazéns da Bahia. Pelos caminhos tortuosos do interior, em ombros de negros,
ou embarcados em saveiros, através das vias fluviais do Recôncavo, tomavam o
rumo das casas-grandes dos engenhos, onde eram fidalgamente recebidos e
tratados.
Em 1860, o Arquiduque Maximiliano de Habsburgo, de passagem pela
Bahia, pôde visitar um desses prósperos engenhos de açúcar do Recôncavo,
notando na confortável casa-grande a presença civilizada de um piano. (17)
(Cite-se aqui a observação de Sérgio Buarque de Holanda em «Raízes do
Brasil», de que «o crescimento dos meios de comunicação» ia aos poucos
«atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades (A presença
dos pianos na roça é disso testemunho.)
James Wetherell, que foi vice-cônsul inglês na Bahia, escreveu que por volta
de 1855 o gosto musical achava-se ali amplamente difundido
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
e apurado. Quanto aos pianos fortes, o seu uso era geral e êle fora cientificado de
que podiam ser encontrados a cem léguas da Capital, em pleno sertão, para onde
eram conduzidos em ombros de negros. («Brasil, Stray Notes from Bahia».
Liverpool, 1860, pág. 118).
A amorável terra de Paraguaçu assistiu também, no século XIX, ao lado das
manifestações de amadores, à floração de numerosos professores e concertistas de
fama e valor. No seu livro «Artistas Baianos», Manuel Raimundo Querino traçou-
lhes as biografias. Alguns exemplos ilustrativos: Luis da França Pereira Rebouças,
que deu concertos no Rio de Janeiro auxiliado por Francisco Manoel da Silva;
João Bispo da Igreja, que tocou diante de SS. MM. Imperiais na Corte; João
Amado Coutinho Barata, que estudou no Conservatório de Milão, «só executava
músicas clássicas» e foi como professor de piano «o mais abalizado de seu
tempo», deixando discípulos na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo; Sílvio
Deolindo Fróis, compositor e artista de méritos excepcionais, que estudou na
Europa, onde deu aplaudidos concertos, e foi na Bahia o fundador de instituições
musicais.
PERNAMBUCO
Nos tempos coloniais, encomendar cravos na Europa, ou trazê-Ios, não era
problema para quem morasse em Pernambuco: em relação a outras, era a terra
favorecida pela proximidade do Velho Continente e ali puderam os portugueses
estabelecer-se com todas as vantagens, mantendo um comércio dos mais ativos e
fazendo render ao máximo as suas fazendas de cultura e criação.
Visitando-a em 1584, gabou-lhe o Padre Fernão Cardim os bons ares, as
paisagens, o trabalho fecundo dos 66 engenhos, a honradez da sua gente,
censurando apenas o alto tratamento que os homens abastados proporcionavam a
suas famílias, com luxos, ostentações e prazeres de contínuas festas e banquetes.
Para concluir, disse êle que «em Pernambuco se acha mais vaidade que em
Lisboa».
Indo os jesuítas, certo dia, conhecer os estudantes de humanidades. «filhos
dos principais da terra», foram acolhidos na classe com boa música. «tangendo e
dançando mui bem» vários deles, «porque se prezam os pais de saberem eles esta
arte».
A riqueza da terra, a vaidade dos homens, os estudos de música são fatores
que tornam quase certa a existência de cravos ou clavicór-dios já no século XVI
em Pernambuco, embora sobre a matéria se desconheçam menções precisas.
No século XVII, viu-se Pernambuco perturbado com a presença dos
holandeses. Naquele ambiente de escaramuças e batalhas, de pilhagens, ódios e
mortes, não havia condições para o cultivo musical. Pode-se apenas indagar, à
míngua de mais completas informações, se o Príncipe João Maurício de Nassau,
que aos seus predicados de nobreza e
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
valentia aliava os de artista e homem de bom gosto, não teria trazido da Holanda
cravos e outros instrumentos musicais para o Palácio que mandou construir numa
das ilhas do Recife.
Do século XVIII existem diversas referências a cravistas e mesmo
compositores de obras para cravo, no Recife nascidos ou ali estabelecidos .
Padre Inácio Ribeiro Noya, recifense, nascido em 1688, foi mestre de capela,
compositor, «excelente cantor e tocador de todos os instrumentos». Padre João de
Lima, mestre de capela nas catedrais da Bahia e de Olinda, foi «peritíssimo na
música» e «insigne tangedor de todos os instrumentos». Padre António da Silva
Alcântara, nascido no Recife em 1711, mestre de capela da Catedral de Olinda,
professor de música, tocava toda e qualquer espécie de instrumentos, compunha
músicas para igreja e deixou também algumas sonatas para cravo e outros
instrumentos. Padre Manuel de Almeida Botelho, nascido em 1721 no Recife. de
côr parda, destacou-se em Lisboa como hábil executante «de todos os
instrumentos» e como compositor sacro, havendo também escrito sonatas e tocatas
para cravo. (18)
Com esse lastro secular, não é estranhável que já em 1809 Henri Koster,
demorando-se algum tempo em Pernambuco, pudesse observar em Olinda, tanto
na Igreja, como no seio das famílias, a presença cordial e benquista de pianos,
tocados por senhoras e amadores. (19)
Em 1816, Charles Waterton encontrou o porto do Recife repleto de navios de
todas as nações, descarregando naquela terra «the richest commodities of Europa,
Africa and Ásia». Embora não o diga o autor, é certo que entre aquelas preciosas
mercadorias estavam os pianos ingleses. (20)
Tanto isso é verdade, que em 1821 outra inglesa, Maria Graham. aportando
ao Recife, pôde ver um piano na residência do Governador Luís do Rêgo. Depois,
curiosa em conhecer os hábitos locais, visitou a casa de uma família portuguesa
onde foi achar, no salão, «um belo piano Broadwood». («Diário de uma Viagem
ao Brasil», pág. 138) .
«O piano inglês (assegurou Gilberto Freyre) foi, decerto, uma das peças mais
importantes com que o imperialismo britânico afirmou, aos olhos e aos ouvidos de
brasileiros mal saídos de um longo período de isolamento quase chinês, sua
superioridade técnica ou de indústria». («Ingleses no Brasil», pág. 220) .
Nada obstante, garantiu Vincenzo Cernicchiaro em sua «Storia Delia Musica
Nel Brasile», pág. 65, que em Pernambuco «molti piano-forti furono fabbricati in
una officina, che divenne popolare sul principio del secolo XIX». Tal oficina deve
ter tido origem na curiosidade de algum amador ou afinador, o qual, solicitado
para reparar ou afinar pianos europeus, se especializou no mister, nascendo-lhe daí
a ideia de ganhar dinheiro com a montagem de outros pianos, aproveitando peças
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
velhas, ou fabricando semelhantes por processos rudimentares, ou ainda
importando-as. Quanto às madeiras, o Brasil as possuía, magníficas, de lei, e não
faltariam marceneiros capazes de fazer a armação adequada.
No mais antigo jornal do Brasil e de toda a América Latina, o «Diário de
Pernambuco», aparece a 30 de abril de 1828 o anúncio de um inglês, que ia leiloar
objetos de sua hospedaria, entre eles «hum Piano forte de muito boas vozes».
Outro anúncio, de 21 de abril de 1838, revela-nos que certo senhor Saunders,
morador num sítio, pretendia vender seus móveis, entre os quais um Piano.
(Anote-se que por causa do calor muitas pessoas possuíam sítios fora da cidade,
onde se refugiavam) . No mesmo jornal, outro anúncio, em 25 de maio de 1841,
comunicava que no armazém de Gaskell, Johnston & Co., à Rua da Cruz, 26,
seriam vendidos em leilão nada menos de «seis pianos de lindas madeiras de
mogno e dos melhores authores ingleses», que podiam ser Stodart, Clementi ou
John Broadwood. Em 29 de janeiro de 1842, ainda um anúncio do Recife,
avisando que na Rua das Hortas se alugava um piano inglês. (Gilberto Freyre,
«Ingleses no Brasil») .
Por volta de 1840, um francês João Batista Claudio Tresse fabricava no
Recife órgãos de igreja e consertava e afinava pianos. Outro francês, Hipólito
Lavenére, também reparava pianos e vendia em sua casa cordas para piano
importadas.
Em 1840, desembarcou no Recife o engenheiro Louis Leger Vau-thier, que
construiu o famoso Teatro de Santa Isabel. «Personalidade atraente», conviveu o
francês com a sociedade local, registrando no seu Diário as visitas, festas, saraus e
até concertos a que comparecia, e onde invariavelmente se manifestava a voz de
um piano. Instalou-se, aliás. êle próprio em uma casa confortável e não se
esqueceu de comprar para seu uso «um lindo piano», pois chegou solteiro ao
Recife, mas voltou casado para a Europa, e a sua mulher pernambucana
certamente era pianista ... (21)
Quanto aos professores, parece ter sido anônimo e precário o trabalho deles.
Poucos nomes foram lembrados. Em 1829, no Recife, o italiano Luis Smolzi
lecionava piano e canto. Em 1841, outro italiano, Jacob Maria Bertazzi ali
ensinava piano. Em 1842, surgiu a parisiense Mlle. Zoé Papon, discípula na
Europa de Ponchard e Henri Herz, a qual se tornou estimada entre as famílias
abrindo caminho para outras mestras francesas.
Segundo F. A. Pereira da Costa, «data pois dessa época a vulgarização do
piano entre nós, e tão entusiasticamente, que hoje bem se pode dizer que não há
casa donde não se desprendam os harmoniosos sons de tão belo instrumento; e
ainda mesmo nas cidades e vilas do interior, não raro se deixa de ouvir as suas
vibrações sonoras». (22)
Em 1859, D. Pedro II e sua imperial comitiva, percorrendo o Norte do Brasil,
foram suntuosamente acolhidos pelos pernambucanos. E no Palácio presidencial
do Recife, onde se demoraram vários dias, descobri-
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
ram no salão de música um maravilhoso piano, «raro por seu teclado de
madrepérola e tartaruga», piano esse emprestado para a ocasião por uma família
de prol. (23)
Castro Alves, quando acadêmico de direito no Recife, seduzido pelas graças
da atriz Eugenia Câmara, com ela se asilou numa casinha de arrabalde, na estrada
de Tigipió, para la levando os seus ardores poéticos, os seus livros e também um
piano, pois Eugenia Câmara, mulher de teatro, era pianista e cantora e a música
naqueles ermos servia para embalar o idílio entre o genial adolescente e a
aventurosa dama. (24)
Outro vate, o sergipano Tobias Barreto, que longamente viveu em
Pernambuco, deixou-nos em «Dias e Noites» numerosas alusões a pianos,
provando de sobejo a influência destes na vida local. Vejam-se os poemas ao
menino prodígio Hermenegildo, ao notável pianista portuense Artur Napoleão, e a
curiosa cena evocada em «Ano Bom», contrpondo um piano burguês à viola
sertaneja:
«Era um claro salão. Moças brincavam Pela
entrada feliz do novo ano, Mãozinhas d'anjo
saltitavam cândidas Sobre o teclado d'ótimo
piano.
«Um sertanejo, que presente estava,
De rude trajo e sapatões de sola,
Diz ao dono da casa em tom agreste:
«Capitão, mande vir uma viola...»
«Hilaridade! O bruto continua:
«Não sei que graça tem o tal piano...»
Etc., etc. .
Mário Sette, escritor recifense, conta-nos numa crônica do livro «Barcas de
Vapor» as vicissitudes de um piano presenteado por um Barão a sua filha
(«menina, o seu piano sai hoje da Alfândega. À tardinha estará aqui») . E o piano,
«apoiado nas rodilhas das cabeças» de negros, que em duas filas pelas ruas vinham
ritmando os seus passos ao som de cantos, chegou ao casarão fidalgo. Era um
PLEYEL, com pedais e lanternas dourados e mangas de cristal, e a professora
contratada para ensinar a sinhàzinha. Mlle. Zoé Papon.. . Os anos passaram, as
gerações se sucederam, o Império deu lugar à República, os hábitos mudaram, e o
aristocrático piano teve de andar de déu em déu, e de se contentar, já velho, em
pleno século XX, com uma modesta posição num cinema de arrabalde, para no
fim de tudo se aposentar, descanso integral, numa agência de leilões...
RIO DE JANEIRO
Singular por ter sido fundada no âmago da mais bela baía do mundo,
distingue-se também o Rio de Janeiro como cidade de riquíssimas
<
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
tradições históricas e artísticas. Entre estas últimas, ocupam lugar pri-vilegiado os
cravos e os pianos. Impossível, em poucos parágrafos, dizer tudo quanto o Rio de
Janeiro tem dado ao Brasil em matéria de música Tentemos, porém, ã guisa de
evocação, gizar sobre o assunto um ténue cenário parcial, onde não faltem alguns
elementos essenciais.
Tal como sucedeu em outros recantos do Brasil, devem ter sido os padres
jesuítas, no século XVI, os introdutores no Rio de Janeiro dos primeiros saltérios,
cravos ou clavicórdios, destinados às funções litúr-gicas. Tiveram eles o seu
Colégio na cidade propriamente dita, Morro do Castelo, e outros nas vizinhanças,
com finalidades catéquéticas, qual o da Fazenda de Santa Cruz, oitenta
quilómetros distante.
Logo após a fundação, outras ordens religiosas, como a dos beneditinos, dos
franciscanos, dos carmelitas, também ergueram igrejas e conventos e parece
provável que nos seus templos existissem, além dos órgãos, cravos para auxiliar
as cerimônias, ou o aprendizado de noviços.
Cruzando mares infestados de flibusteiros, ano após ano chegavam do Reino
frotas pejadas de pessoas de todas as condições sociais. e de mercadorias diversas.
Eram nelas que vinham, saracoteando nos porões úmidos, os instrumentos
musicais na Europa encomendados.
Com o passar dos decênios, espontaneamente, desenvolveu-se o gosto
musical em todas as camadas da população, nada impedindo tais manifestações
religiosas e profanas, nem lutas internas, nem o ambiente marcial de prevenção
contra os ataques de corsários franceses, ingleses e holandeses.
Inclusive um potentado, neto de um dos fundadores da cidade, Salvador
Correia de Sá e Benevides, Governador do Rio de Janeiro (pouco depois herói da
libertação de Angola), prezava a música. Regressando de Portugal em 1648, teve
como companheiro de viagem na frota o pernambucano Francisco Rodrigues
Penteado, que era «destro na arte da música». Já na Guanabara, encarregou o dito
Penteado de «instruir nos instrumentos músicos» (incluir-se-ia no número destes
um cravo?) suas duas filhas D. Maria e D. Teresa de Velasco e o filho mais velho,
Martim Correia de Sá e Benevides, que foi mais tarde o lº Visconde de Asseca.
(25)
Por esse tempo, em Portugal restaurado, já reinava D. João IV de Bragança,
melómano e protetor das artes. Assim, os fidalgos, altos funcionários e padres,
que em Lisboa tinham acesso à Corte, voltavam ao Brasil (quando fosse o caso, ao
Rio de Janeiro) impregnados daquele ambiente palaciano, onde as espinetas, os
clavicórdios e os cravos, com os respectivos executantes e compositores, gozavam
de especial estima.
No final do século XVII, as primeiras notícias do ouro das Minas Gerais
atraíram para o Rio de Janeiro as atenções de todos, pois o seu magnifico porto
teria de ser o escoadouro compulsório das riquezas des-
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
cobertas serra acima. Em 1695, o engeheiro Froger, vindo numa esquadra
francesa, já pôde observar a opulência e o luxo reinantes naquele burgo. (26)
A partir daí, a ambição dos habitantes e dos forasteiros, o intenso comércio, e
o contrabando também, concorreram para que se convertesse o Rio de Janeiro na
principal praça portuguesa da América, ali florescendo pompas e vaidades e outras
castas de vícios e pecados. A música, nesse século XVIII, acompanhou o
desenvolvimento da cidade. Surgiram Casas de ópera, como as do Padre Ventura e
do português Manoel Luiz, teatros onde se representaram, com os recursos da
época, verdadeiras óperas. Nas igrejas, mestres de capela, organistas, cantores, e
compositores sacros (como o Padre Manuel da Silva Rosa) procuravam realçar,
com as luzes dos seus conhecimentos musicais, o esplendor das cerimônias. E
alguns salões aristocráticos se abriram, já no tempo dos Vice-reis, para recepções
e concertos, onde não faltavam cravos. (27)
Na Fazenda de Santa Cruz, para as bandas de Sepetiba, onde os jesuítas
possuíam milhares de cabeças de gado e centenas de escravos, o ensino musical
também esteve presente. E com tal eficiência ou fer vor, que se propagou a lenda
de que ali funcionava um . . . Conservatório para os negros dos dois sexos!
Desfeitos os exageros, deduz-se que os inacianos sabiam de fato aproveitar os
pendores dos cativos, dando-lhes adequada instrução musical. Prova disso é que
depois de terem sido expulsos do Brasil e confiscados os seus bens em benefício
da Coroa, foram encontrados na Real Fazenda de Santa Cruz, num inventário feito
em 1768, numerosos instrumentos pertencentes à igreja: rabecas, rabecões, flautas,
violas, charamelas etc, e também «hum ma-nicordio» e «hum cravo». (28)
Acontecimento histórico decisivo para o progresso da cidade foi a
transferência para o Rio de Janeiro, em 1763, da Capital, até então sediada na
Bahia. Teve início a era dos Vice-reis, os quais paternalmente se esforçaram no
sentido de proteger, além do comércio, as letras as artes e as ciências. O setor da
administração pública deu-lhes algumas dores de cabeça. Em 1766, o Vice-rei
Conde da Cunha oficiou a Lisboa provando com documentos que se tornara
obsoleta a estrutura da Alfândega local «pela multidão dos gêneros novos que a
curiosidade dos fabricantes tem ideado, e neste País introduzido». Havia necessi-
dade urgente de um atualizado regulamento de cobranças.
Naquele ano de 1766, vigorava uma antiquíssima «Pauta das Avaliações das
Fazendas, pelas quais se cobram os direitos da Dízima da Alfândega do Rio de
Janeiro», contendo em ordem alfabética extensa relação de gêneros e objetos.
Curiosamente, vinham ali mencionados, em profusão, instrumentos e acessórios
musicais: órgãos, gaitas de roda, harpas, violas marchetadas, trombetas de latão,
rebecas e rebecões (sic). pandeiros, cítaras, berimbaus, cordas de viola etc. E
também estes:
Francisco Manuel da Silva c suas filhas
Quadro de José Correia de Lima,
Museu Nacional de Belas Artes,
Rio de Janeiro
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
«cravos de tocar — grandes — cada um.. . 19$200; cravos de tocar
pequenos — cada um . . . 12$000; cravos de tocar mais pequenos, a esse
respeito, aliás Espinhetas (sic) ... 6$000; espinetas — cada uma
6$000. (Vê-se pelo trecho acima que o conferente não tinha meios para fazer
distinção entre um cravo e uma espineta) . (29)
Considerando esses elementos, não é de estranhar que Sir George Staunton,
passeando pelo Rio de Janeiro em dezembro de 1792, enquanto se abasteciam os
navios ingleses da esquadra que seguia para a China, achasse as lojas da terra bem
providas de artigos e o povo alegre e dado aos prazeres. Pelas tardes calorentas,
viu muitas casas com portas e janelas abertas e pôde observar a respeito das
mulheres: «They amused themselves, in the evenings, in playing on some kind of
musical instru-ments, chiefly the harpsichord or guitar». (30).
Já por esse tempo, famílias havia na Guanabara em que todos os seus
membros eram musicistas, cantando e tocando os mais diferentes instrumentos, e
o cravo também, com gosto e perfeição, como foi o caso da família Leal, tão
gabada por Balbi no seu «Essai Statistique».
Professores, talvez não houvesse muitos. Um deles era mulato, de origem
humilde, paupérrimo, porém conseguira com os seus esforços ordenar-se sacerdote
e com o seu engenho impor-se como compositor sacro. Chamava-se José Maurício
Nunes Garcia. (Rio de Janeiro, 1767-1830). Quando menino, instruira-se no
solfejo com certo mestre Salvador José, e o mais, como verdadeiro autodidata,
aprendera praticamente sozinho, inclusive a tocar cravo. O cravo e o piano ajuda-
ram-no a viver. Narrou o Cónego Januário da Cunha Barbosa que José Maurício
ensinou «muitas senhoras a tocar piano, com estima geral das famílias as mais
distintas, que a isso o convidavam». Mais tarde, escreveu um «Compêndio de
Música e Método de piano-forte», contendo «diversos trechos para piano, que são
os únicos que se conhecem da autoria do velho compositor brasileiro». (31)
A chegada ao Rio de Janeiro, em março de 1808, do Príncipe Regente D.
João e de sua Corte, produziu profundas modificações na vida social brasileira.
Foi benéfica, outrossim, ao modesto Padre José Maurício, que logo viu
reconhecidos os seus múltiplos talentos de orador sacro, mestre de capela,
organista, pianista e improvisador emérito (chegou a entusiasmar Neukomm) e
admirável compositor, uma das glórias do Novo Mundo. Posto em confronto,
certo dia, no Paço de São Cristóvão, com o celebérrimo operista lisboeta Marcos
Portugal, foi convidado a executar ao piano difícil sonata de Haydn. Hábil na
leitura à primeira vista, fê-lo com tal desenvoltura e brilhantismo, que extasiou os
ouvintes.
Teve o Padre José Maurício um filho, que legitimou, educando-o no saber,
nas virtudes e na ciência musical. E foi a música, em horas de aperturas, que
socorreu o ilustrado cirurgião Dr. José Maurício Nunes
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
Garcia Júnior. Mulato, desprotegido, escarnecido, como o pai, para se sustentar
deu aulas de piano quando estudante de medicina e mesmo depois de formado.
(32)
Em tempos de D. João VI, alguns pianistas se salientaram no Rio de Janeiro:
Frei Antônio, franciscano; Simão Portugal (irmão de Marcos), que granjeou a
estima da aristrocracia como professor, a ponto de se utilizar (como contou
Marrocos numa de suas cartas bisbilhoteiras) das seges dos alunos para a sua
locomoção; e Joaquim Félix Bachicha (Baxixa), português, sem rival na sua arte e
do qual afirmou Cernic-ciaro: «era difatti un virtuoso straordinário».
Sobrelevando a todos, surgiu o austríaco Sigismund Neukomm, discípulo de
Haydn, que viveu no Rio de Janeiro de 1816 a 1821, contribuindo fortemente,
com a sua personalidade de homem culto e viajado, de pianista «hors ligne» e
compositor eclético e fecundo, para valorizar e europeizar o ambiente musical da
cidade. Teve a honra de ser professor do Príncipe D. Pedro e da sua jovem esposa
D. Leopoldina, além da Infanta D. Isabel Maria. (33)
Do Palácio São Cristóvão, em 24 de janeiro de 1818, escrevendo para uma
tia na Europa, contou D. Leopoldina: «Toute la journée je suis occupée à écrire,
lire et faire la musique, Come mon Epoux joue pres-que tous les instruments três
bien, je 1'accompagne avec le Piano et de cette manière jai la satisfaction d'être
toujours prés de la persone ché-rie». (34)
Em 1823, Maria Graham teve oportunidade de penetrar nos aposentos
imperiais em São Cristóvão, e reparou que num pequeno quarto interno, ao lado de
apetrechos de caça e outros objetos, repousava o piano do Imperador. Em 1829, o
Reverendo R. Walsh, em visita ao Palácio São Cristóvão, notou que num dos
quartos que abriam para a varanda a Princesa D. Januária (nascida em 1822, filha
de D. Pedro c D. Leopoldina) aprendia piano-forte com o Mestre Portugal (que só
podia ser Marcos Portugal), mas de maneira bem pouco promissora. . . (35)
Na obra de Von Spix e Von Martius, «Viagens pelo Brasil» (I, 102), existe
apreciação referente ao Rio de Janeiro, ano de 1817, de que ali «o piano é um dos
móveis mais raros e só se encontra nas casas dos abastados». Essa opinião parece
não corresponder à realidade dos fatos. Com a abertura dos portos, em 1808, o
comércio tomou considerável incremento, e no cais e nas lojas do Rio de Janeiro
daquele tempo podiam ser achados com facilidade os pianos, que apesar de caros,
e sem poder competir com a guitarra popular, iam sendo aos poucos vendidos a
pessoas de todas as classes sociais. (Os pianos foram uma sorte de especiaria, com
que a Europa, no século XIX, derramou pelos outros continentes a prestidigitação
de suas indústrias . . .) .
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
Nas coleções dos mais antigos jornais do Rio de Janeiro, qualquer leitor
poderá descobrir numerosos anúncios relativos a pianos. Alguns exemplos
colhidos ao acaso em nossas pesquisas:
Gazeta do Rio de Janeiro, 25 de julho de 1810: «Antônio José de Araújo,
morador na rua do Alecrim, nº ' 135, tem para vender hum For-te-piano, francês,
de Erard».
Gazeta do Rio de Janeiro, lº de janeiro de 1812: «Quem quizer comprar um
excelente Piano forte de muito bom Author, fale com Caetano Pirro, na rua de São
Pedro, nº 39».
Gazeta do Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1812: «Vende-se hum excelente
Piano forte, vindo proximamente de Inglaterra: Quem o quiser comprar, dirija-se à
loja de fazenda de José Teixeira dos Santos, na rua do Ouvidor, nº 32, aonde se
tratará do ajuste.»
Gazeta do Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1813: Na rua da Mãe dos Homens,
o Mestre Marceneiro António Soares vendia alguns trastes, entre estes «Hum
excelente cravo de penas de oitava larga de Ma-thias». (Mathias Bostem,
fabricante português de cravos e pianos).
Gazeta do Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1816: «Quem quiser comprar
um bom piano forte, dirija-se à Travessa da Candelária, nº 18, onde o poderá ver
e ajustar com seu dono».
Gazeta do Rio de Janeiro, 7 de abril de 1821: «Em Mata Cavalos nº 11, se
vende hum novo e soberbo piano forte, pronto o dono à decisão de Professores
sobre o seu merecimento».
Também nos elegantes leilões da época, anunciados pelos jornais,
invariavelmente apareciam pianos. Entre os móveis do Comissário Juiz inglês
Henrique Hayne, leiloados por J.J. Dodsworth, no Catete, figuravam dois pianos,
um de Broadwood; outro de Clementi. O mesmo Dodsworth, fazendo leilão no
bairro do Botafogo de bens pertencentes ao ministro austríaco Barão de
Mareschal, apregoou «hum piano forte de Broadwood». (Diário Fluminense, 2 de
novembro de 1829 e 15 de abril de 1830)
E os pianos foram chegando, mais e mais. Eram de autores diversos (autor,
como se dizia, e não fabricante) : JOHN BROADWOOD. STODART, DEBAIN ERARD,
GRAFF.PLEYEL, HENRI HERZ, IBACH. KALK-
BRENNER, CLEMENTI, COLLARD & COLLARD, SCHIEDMAYER, e depois
BECHSTEIN, BLÚTHNER, STEINWEG. CHICKERING. BOESEDORFER, STEINWAY . . .
Pianos de cauda, de meia cauda, pianos armários ou de mesa, pianos de toda a
espécie, para todos os gostos. Pianos da Inglaterra, da França, da Áustria, da
Alemanha, de Portugal, dos Estados Unidos...
Seriam uns de carregação, aptos a resistir aos punhos de aprendizes
desastrados; outros, de média qualidade, ideais para amadores; e finalmente pianos
de luxo, superiores em tudo, próprios para concertos ou para adornar salões
aristocráticos.
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
No Rio de Janeiro, qualquer pessoa da alta sociedade tinha piano em sua
casa, que às vezes era um palácio. . . Nos suntuosos saraus, bailes e banquetes da
época, as harmonias de um piano sempre se faziam ouvir. Solares famosos, como
os do Marquês de Santo Amaro, do Visconde do Rio Sêco, de Braz Carneiro Leão
(todos eles citados por Wan-derley Pinho em «Salões e Damas do Segundo
Reinado) tinham cada qual a sua sala de música, onde no lugar mais propício,
como se fosse um trono a seduzir as atenções, luziam os contornos nobres do
piano.
Também as boas famílias aos seus inculcavam o amor à música e ao piano.
Os Taunay, por exemplo, que eram todos dados à arte. Lembrou o Visconde de
Taunay nas suas «Memórias» (págs. 13, 19 e 54), que pela metade do século
passado êle e sua irmã Adelaide aprenderam piano «num instrumento de mesa, do
autor John Broadwood», tendo sido Isidoro Bevilacqua o professor de ambos. Só
que foi um tanto rebelde ao estudo o menino que seria Visconde e excelente
pianista.. .
Nomes de professores, que se supunham credenciados só por virem da
Europa, também apareciam nos jornais da época. Foram alguns citados por
Vincenzo Cernicchiaro em sua «Storia Delia Musica Nel Brasile». Outros,
nacionais ou estrangeiros, tiveram seus nomes perpetuados nos Almanaques que
então se publicavam, como os de Laemmert.
Dos Açores, com passagem por Lisboa, veio-nos Rafael Coelho Machado,
que fêz carreira no Rio de Janeiro como professor de música, redator de jornais e
autor de várias obras didáticas, entre estas um «Método de Afinar o Piano, com a
história, descrição, escolha e conservação deste instrumento», o qual teve três
edições, «não obstante ser um folheto insignificante», como disse Ernesto Vieira.
Também de Coelho Machado é um «Dicionário Musical», em cuja 2ª edição, Rio
de Janeiro, 1855, consta este verbete algo displicente:
«Piano-Forte, s.m., por abreviatura, chama-se hoje piano: instrumento de
teclado de seis oitavas e mais; é o cravo muito aperfeiçoado. seu uso acha-se
geralmente espalhado, e suas vantagens lhe tem granjeado a estima de que hoje
goza; reunindo em si os poderes da harmonia êle por si só pode apresentar todas as
partes de que ela se compõe e os seus efeitos. Fácil em harmonizar e desenvolver
as melodias as mais complicadas, poderoso nos efeitos da intensidade é sobre êle
que se tem desenvolvido os maiores gênios, os grandes compositores que até ao
pre-sente tem escrito» (Sic).
O piano triunfara no Rio de Janeiro. Já em 1836 o botânico inglês George
Gardner podia afirmar da cidade: «Music is very much culti-vated, and the piano
(...) has now become almost universal» (36). E os missionários protestantes Kidder
e Fletcher, no livro «O Brasil e os Brasileiros», editado em Filadélfia em 1857,
asseveravam: «Pianos, vêm-se abundantemente em cada rua, e ambos os sexos se
tornam seus executantes consumados». Por todos esses motivos, acertou em
cheio
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
Manuel de Araújo Porto Alegre ao apelidar em 1856 o Rio de Janeiro de A Cidade
dos Pianos. (37). Conceito justo, verdadeiro.
Cidade privilegiada, aquela onde até o próprio Imperador D. Pedro II, que
aprendera música no Paço com Fortunato Mazziotti e Isidoro Bevilacqua, e não
tinha pompas nem circunstâncias, gostava de tocar o seu piano, e à primogênita,
princesinha Isabel, já dera mestres de música e piano! (Foram eles I. Bevilacqua
e Pinzarrone) . (38)
Estranhamente, porém, no Conservatório de Música do Rio de Janeiro,
inaugurado em 1848, por esforços de Francisco Manuel da Silva, não se ensinava
o piano em cadeira especial. Note-se que Francisco Manuel, autor do Hino
Brasileiro, era também pianista e estudara com o Padre José Maurício e
Neukomm. Existe no Museu Nacional de Belas Artes sugestivo quadro a óleo,
pintado por José Correia de Lima, no qual aparecem Francisco Manuel e suas
filhas, em trajes de gala, ao lado de um belo piano.
Vários concertistas de fama internacional se exibiram no Rio de Janeiro
durante o Segundo Império. Em 1855, Sigismundo Thalberg, emulo de Liszt e
Chopin, ali deu nada menos do que seis admiráveis concertos, alvoroçando a
população da Capital, que a partir daquele ano, como disse Ayres de Andrade,
passou a compreender «que o piano era mais que um simples instrumento de
salão». (39) Thalberg havia trazido consigo de Paris um «magnífico Erard». Não
era um piano de ouro, mas as suas teclas pareciam diamantes a serem lapidados
em estilhaços sonoros pelos dedos mágicos do virtuose. Desconhecia o Rio de
Janeiro (onde ao tempo existia uma ou outra restrita manufatura de pianos)
rivalidades comerciais semelhantes às da Europa, onde as grandes firmas
fabricantes de pianos não apenas abriam salões próprios de concerto, como
constrangiam os artistas a só darem recitais usando determinada marca, ou autor.
Assim, o terreno era livre para o virtuose escolher o instrumento que lhe
aprouvesse. (40)
Artur Napoleão, nascido em Portugal, fascinou a plateia fluminense em 1857
com o seu estupendo talento de menino prodígio. Revoluteou, depois, qual
mariposa encantada, pelas capitais europeias, colhendo triunfos, e por fim se
aclimatou no Rio de Janeiro, onde veio dar impulso ao movimento artistico local.
Em 1869, foi a vez do norte-americano Louis Moreau Gottschalk, que trouxe
dois pianos Chickering (de Boston) e fez no Rio de Janeiro verdadeira revolução
musical, maravilhando os moradores com a sua arte e com os estrondosos
concertos de centenas de executantes ali promovidos. Compôs as famosas
Variações sobre o Hino Nacional Brasileiro, que executou no Palácio São
Cristóvão para a família imperial, e tanto se apegou à terra, que acabou morrendo
pouco depois na Guanabara mesmo, onde foi enterrado no Cemitério de São João
Batista. (41)
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
Um senhor rural de Valença, nas montanhas fluminenses, Capitão Joaquim
Gomes Pimentel, acolheu Gottschalk em agosto de 1869 na sua Fazenda da Vista
Alegre, onde o pianista convalesceu da febre amarela. Ali, ao que diz a tradição,
encontrou Gottschalk uma velha espineta, nela se divertindo a tocar. (42)
Seria um abencerragem colonial aquela espineta. Nas outras grandes
fazendas da extensa Província do Rio de Janeiro, pertencentes a barões e
milionários, desde Barra Mansa até Campos dos Goitacazes, em meio ao luxo e ao
conforto sempre aparecia um piano de raça. Nesse mesmo ano de 1859, o escritor
Augusto Emílio Zaluar transitando por uma fazenda modelar no Município de
Pirai, do Comendador Joaquim Ferraz, deparou no salão com «um magnífico
piano harmônico dos mais modernos de DEBAIN.» («Peregrinação pela Província
de São Paulo», pág. 29) .
Integrados na vida fluminense, os pianos se transformaram em objetos
obrigatórios, indispensáveis, tanto na rotina doméstica, quanto nos momentos
solenes. Em 1864, José de Alencar, já famoso como político e escritor, contraiu
matrimónio com D. Georgiana Augusta Cockrane, recebendo os noivos, como
presente de núpcias dos pais da moça, «um piano europeu no valor de 1:200$000,
e um faqueiro que custa 100$000». (43)
Mas os pianos, ao mesmo tempo em que ornavam os salões senhoriais, lento
e lento ganharam os bairros mais modestos e os subúrbios da grande cidade do Rio
de Janeiro, tornando-se populares, benquistos em outras camadas sociais (como
outrora a guitarra), animando festinhas, entretendo sinhazinhas e mucamas,
servindo de ganha-pão a professores.. . E foi nesse ambiente socialmente mediano
que despontou a figura de Ernesto Nazaréth (Rio de Janeiro, 1863-1934), que
cresceu com o piano, viveu do piano, e para o piano escreveu algumas das mais
deliciosas composições do populário brasileiro, eternizando em ritmos bem
nacionais a brejeirice carioca e como que fechando com chave de ouro o ciclo do
piano na Guanabara.
MINAS GERAIS
Altas e ásperas eram aquelas paragens, ora espremidas entre contrafortes e
desfiladeiros, ora se dilatando pela vastidão de ondeantes e coloridas campinas.
Inalteráveis viveram as Alterosas, durante séculos, à espera que lhes devassassem
os arcanos. Vieram por fim os rudes bandeirantes, chagaram o duro solo e
bradaram ao mundo: Alvíssaras!, que ali havia ouro para todos.
Muitidões se lançaram, então, no século XVIII, através das montanhas
barrocas das Minas Gerais. Num relance surgiram caminhos e encruzilhadas, e da
terra, junto às faisqueiras, às lavras, às minas, foram brotando arraiais, vilas e
cidades. Atrás dos aventureiros veio a Justiça dei Rei com os seus fiscais, e
apareceu a Igreja com a sua presença
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
apaziguadora. Famílias se formaram, fazendas se abriram, o gado se multiplicou
pelos campos. E nos espigões desde longe podiam ser vistas tropas de centenas de
muares, trazendo de São Paulo provisões pelos meandros da Mantiqueira, e do Rio
de Janeiro, pelo Porto da Estrela, mercadorias da Europa; ou conduzindo serra
abaixo diamantes, barras de ouro e contrabandos, que num átimo embarcavam nas
frotas e velejavam para o Velho Continente.
As grandes distâncias que mediavam entre o Rio de Janeiro e as principais
vilas montanhesas, as escabrosidades dos caminhos acarretando riscos e prejuízos,
as elevadas despesas com a condução, não eram de molde a encorajar um súdito
del Rei que quizesse levar para aquelas alturas o seu cravo, ou piano.
Impossível não era o transporte, pois em 1721, logo após haver o Conde de
Assumar esmagado a sublevação de Filipe dos Santos, nada menos que quatro
pesadas peças de artilharia transitaram (com dificuldades, é certo) da Guanabara
até Vila Rica.
Como os mineiros — brancos, negros, mulatos — eram religiosos e soíam
congregar-se em torno de Irmandades, enriquecendo as suas igrejas com alfaias,
paramentos e o mais necessário ao culto («As Jrmandades, escreveu Saint-Hilaire,
rivalizam entre si e procuram distin-guir-se por esbanjamentos inúteis»), um dos
primeiros cravos a aparecer em Minas teria de ser nesse ambiente. E assim foi. Em
1739, uma igreja de Sabará já possuía o seu cravo atuando em festas religiosas.
Num dos livros da Irmandade local de N. S. do Amparo, daquele ano. consta este
registro: «Pr que paguei ao Ldo. José Soares de tanger o cravo no dia da festa — 2
1/2». (44)
Relacionando os instrumentos em uso nas igrejas mineiras, por volta de
1750-1800, afirmou o Prof. Francisco Curt Lange: «Não faltaram os cravos,
geralmente substituindo os órgãos, inexistentes ou em mau estado, porém
ocupando indubitavelmente seu lugar nas casas de famílias abastadas.» Conseguiu
Curt Lange nas suas pesquisas «comprovar a existência de cravos no Arraial do
Tijuco, em Sabará e em Vila Rica.» (45) E achou uma obra, impressa em Lisboa,
1779, «Novo Tratado de Música Métrica, e Rythmica, o qual ensina a acompanhar
no Cravo, Órgão, ou outro Qualquer Instrumento (...) etc», escrita por Francisco
Ignacio Solano. (Este Solano, diz Ernesto Vieira no seu «Dicionário», viveu na
Corte de Lisboa e foi em Portugal «o nosso mais notável músico didático». O seu
Tratado deve ter ido parar em Minas na bagagem de algum eclesiástico) .
Cravo em Minas, portanto, ou era para uso da Igreja, ou seria luxo de nababo.
Ora, no Arraial do Tijuco, cerca de 1760, o Desembargador João Fernandes de
Oliveira, contratador de diamantes, tinha riqueza para qualquer extravagância.
Para a sua amante, a mulata Francisca da Silva, ofereceu chácara no sopé de uma
serra, com jardim de plantas exóticas, capela, teatro etc, onde se realizaram bailes
e representações.
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
Nada se sabe a respeito, mas é lícito perguntar se não haveria ali também um
cravo. O Prof. Curt Lange não só localizou cravo no Tijuco, como ainda se referiu
à presença de um «hábil cravista» em Diamantina, no século XVIII. (46)
Está visto, porém, que os cravos seriam exceção, objetos raros em Minas
Gerais. A conspiração de 1789 ensejou às autoridades lusitanas extensa perquirição
pelas diferentes comarcas e nenhum cravo apareceu entre os bens sequestrados aos
inconfidentes, quer em suas fazendas, quer em suas casas em Ouro Preto, Mariana,
São José Del Rei, São José, Campanha etc, como se pode ver nos «Autos de
Devassa da Inconfidência Mineira». Vários dos conjurados, aliás, eram homens
cultos, nascidos uns em Portugal, como Tomás António Gonzaga, outros lá
formados, como Cláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto, não
lhes sendo estranhos, como homens de salão e de tertúlias que foram, instrumentos
como o cravo, o clavicórdio, saltério e, outros semelhantes. Mas Gonzaga, em
«Marília de Dirceu», não faz alusão a cravos, e sim a «sanfoninhas». Quanto a
Alvarenga Peixoto, sabe-se pelos «Autos de Devassa» (III, 327), que a filha Maria
Ifigênia tinha um «mestre de música». Como o poeta era excêntrico e perdulário.
pode-se pesquisar se não teria encomendado um cravo para uso da mulher, Bárbara
Eliodora e sua filha na casa de São João Del Rei.
Mesmo após a abertura dos portos, em 1808, quando para as Minas Gerais
principiaram a subir carradas de mercadorias inglesas, poucos pianos lá chegaram.
John Mawe, em 1809, obteve permissão régia para visitar o Distrito Diamantino e
viu na distante Vila do Tijuco as lojas repletas de artigos ingleses. Louvando a
sociabilidade daquele povo, escreveu: «O grande afastamento de um porto de mar
é a causa de não haver ainda no Tijuco um piano. Se não fosse isso, estes
instrumentos aí teriam grande procura, porque as senhoras em geral gostam de
música e tocam violão com muito sentimento e graça.» («Viagens ao Interior do
Brasil», pág. 248) .
Saint-Hilaire, quando lá esteve em fins de 1817, pôde confirmar tal asserção.
À senhora do Intendente Geral das Minas e dos Diamantes, Manuel Ferreira da
Câmara Bethencourt e Sá, que era homem ilustrado e viajara longamente pela
Europa, presenteou com um caderno de músicas. Dias depois, ofertou-lhe o
Intendente, em sua casa, nada menos que um concerto, durante o qual se
executaram variações sobre uma das árias daquele caderno. Infelizmente não diz o
autor qual o instrumento utilizado na ocasião, talvez guitarra, talvez piano. O
Intendente Câmara, aliás, possuía nos arredores do Tijuco a famosa «Quinta dos
Caldeirões», «onde reunira o que naquela época havia de melhor e de mais confor-
tável», e onde «realizava brilhantes saraus, não só de caráter lítero-musical, com o
concurso de sua esposa, D. Matilde da Câmara, e de suas filhas, quando se tratava
de homenagear um visitante ilustre ou de receber a sociedade do Tijuco (...)».
(47)
Piano fabricado com madeiras da terra cm Itu,
SP, cerca de 1850, por Antonio Venerando
Teixeira, cujo nome se lê na placa de meta!
sobre o teclado aberto. Em bom estado de
conservação, constitue autentica raridade.
(Gentileza do Museu Paulista da
Universidade de SÃO Paulo).
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
Mas em 1826, por causa de um incidente, representaram os moradores do
Tijuco ao Imperador e ao Presidente da Província. Nesse documento vem narrado
que certa noite, num casarão da praça principal, havia festa, alegria, e «Senhoras a
cantar com acompanhamento de piano», enquanto lá fora estouravam traques e
bombas, tendo sido os fogos e a festa — com piano, canto e tudo — tomados
como provocação por certa autoridade local demitida do cargo. (48)
(Com relação a um pianista bisonho perdido num vilarejo de montanha,
tocando de ouvido, sem mestres, sem solfas, sem nada, talvez se pudesse dizer que
estaria ainda na idade, não da pedra, mas do piano lascado. . .)
Vila Rica, na qualidade de Capital, centro religioso e de cultura, e entreposto
comercial, também teve os seus pianos. O naturalista austríaco João Emanuel
Pohl, entre 1820-1821, assistiu ali a diversas e animadas reuniões sociais onde se
jogavam cartas, se dançava e se fazia música. Reparou, porém, na escassez de
instrumentos: «Um piano, uma flauta, e um mau violino é tudo quanto aqui se
encontra em matéria de instrumentos musicais». («Viagem no Interior do Brasil»,
vol. 2º, pág. 416).
A observação, é claro, diz respeito apenas àquelas reuniões. Havia em Ouro
Preto bandas de música, órgãos nas igrejas, coros e bastante interesse musical,
apesar das paixões políticas dominantes. Novos pianos foram aos poucos entrando
nas famílias, e aumentou a solicitação não só de professores como de peças
musicais. A ponto de no jornal «O Recreador Mineiro de Ouro Preto», em 15 de
fevereiro de 1848, aparecer anúncio para que particulares subscrevessem a
publicação de doze composições para piano, escritas por Francisco Xavier Bom-
tempo, parente talvez do célebre pianista português João Domingos Bomtempo,
que deu concertos em Paris e Londres. (49)
Noutra vila, Campanha da Princesa, já em 1824, durante os luzidos festejos
com que o povo local quis comemorar o juramento da constituição, se notava a
presença de um piano. Num sarau em casa do Coronel Bressane Leite,
entremeando versos, valsas e contradanças, «tocaram-se muitos bons concertos de
Música, e excelentes sonatas de piano». (50)
Francisco de Paula Ferreira de Rezende, nascido na Campanha em 1832,
conta no seu livro «Minhas Recordações» haver visto, quando menino, um cravo
na terra natal. Seu avô e padrinho, o Comendador Ferreira Lopes, homem
abastado, gostava de música e de dar bailes em casa, sendo o possuidor do único
piano então existente na cidade — e que piano! Nada menos que um «piano de
cauda e de uma cauda tão comprida que ocupava uma boa parte da sala».
Admirava-se o autor de como podia ter la chegado, sendo tão ruins os caminhos e
tão longe o porto do Rio de Janeiro. Mais tarde, como revelou Alfredo Valadão,
dezenas de pianos das melhores marcas foram ter à Campanha.
Ferreira de Rezende, quando Juiz Municipal em Queluz, conheceu de perto o
santo Bispo de Mariana D. António Ferreira Viçoso, que
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
«muito gostava de música; e que não só nas suas horas vagas tocava piano», como
também entoava canções religiosas. Nessa viagem pastoral de 1858, fazia-se
acompanhar D. Viçoso pelo Cónego João Gonçalves, que igualmente era virtuoso
e amava a música, mas ao contrário do senhor Bispo preferia cantar ao piano
ternas modinhas e brejeiros lundus... (Pág. 230, obr. cit.)
Em 1868, passando por São João Del Rei, reparou Richard F. Burton que ali
«toda pessoa educada era mais ou menos musicista», havendo na cidade dois
orfeões e quatro professores de piano». («Viagens aos Planaltos do Brasil».
Minas Gerais se preza também de haver fabricado pianos. Em Itabirito
(conta Nelson de Senna) o Padre Francisco Xavier de Sousa tinha em sua casa
uma oficina, onde montava relógios de igreja e harmónios e onde certo dia acabou
fabricando o seu único piano, o primeiro a ser feito em Minas — e excelente! Foi
esse piano exibido, e premiado com medalha de ouro na Quinta Exposição
Industrial da Província de Minas Gerais, realizada em 1870 em Ouro Preto. Ainda
hoje existe, em poder de parentes daquele padre. (51)
E os pianos passaram a fazer parte das famílias mineiras. Recatados como
elas, preferindo ficar quietos a um canto e calar quando não solicitados, porém
expansivos, cheios de intimidades, depois de postas à prova a confiança e a
lealdade. Encaneceram junto às antigas famílias, ouvindo vozes de coronéis
fazendeiros, de senadores, de cónegos, de sinhás e sinhazinhas. . . E enquanto
estes, mais velhos, tomavam o rumo da eternidade, eles, pianos, mal
compreendidos pelos moços, foram sendo a pouco e pouco empurrados para o
fundo dos casarões imperiais, onde por fim, como fantasmas, se dissolveram nas
sombras do passado.
Carlos Drumond de Andrade, talvez mesmo por ser mineiro, soube adivinhar
num poema sarcástico e piedoso esse estado de espírito causado nos dias de hoje
pelos pianos de outrora — inquietando só com a sua presença, como duendes, as
paredes, o chão, os móveis, todo o ambiente de uma sala velha, mas atual:
«Ai piano enguiçado, Jesus!
Sua gente está morta,
seu prazer enterrado,
seu destino cumprido,
e uma tecla
põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.
É um rato?
É o vento?
Descemos a escada, olhamos apavorados
a forma escura, e cessa o seu lamento».
Etc.
(«A Rosa do Povo»)
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
E assim foi por todo o Brasil durante o século XIX. Pianos no litoral. Pianos
nas montanhas. Pianos nas Capitais e nos vilarejos silenciosos do interior. Pianos
nos engenhos do nordeste ou nas fazendas sulinas de café. Pianos na Amazónia,
no Maranhão. .. Pianos no Rio Grande, em Pelotas, Porto Alegre, e nas coxilhas
gaúchas. Pianos em Cuiabá, no centro da América do Sul.. .
Seria um ror de notícias, respigadas na rosa dos ventos, se quizés-semos dar
um balanço de tudo quanto concerne ao piano nos fastos artísticos nacionais.
Fechemos, por hoje, a tampa do teclado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 — KONSTANTIN GAYMAR, «História del Piano y de sus Grandes
Maestros». Buenos Ayres, 1946, c/ilustrações.
2 — OLIVEIRA MARTINS, «OS filhos de D. João I,» 5» ed., Lisboa,
1926, pág. 128.
3 — FERNÃO LOPES DE CASTANHEDA, «História do Descobrimento e
Conquista da índia pelos Portugueses», Lisboa, 1833, 8 vols., Livro V,
Cap. 28º, pág. 180. PADRE FRANCISCO ÁLVARES, «Verdadeira Informação
das Terras do Preste João das índias». Agência Geral das Colónias,
Lisboa, 1943, pág. 196.
4 — DAMIÃO DE GOIS, «Crónica do Felicissimo Rei D. Manuel»,
Coimbra, Imprensa da Univ., 1926, 2 vols., Parte IV, Cap. 84, págs.
197, 198, 201.
5 — ERNESTO VIEIRA, «Dicionário Biográfico de Músicos Portugue-
ses», Lisboa, 1900, Vol. I, pág. 510, Fétis, «Biographie Univer-selle des
Musiciens», 2ª ed. Paris, 1866, vol. IV, pág. 436. Groves Dictionary of
Music and Musicians», 3ª ed. New York, 1946, vol. II, pág. 781.
6 — ERNESTO VIEIRA, obr. cit., vol. I, pág. 530; vol. II, páginas
63, 286.
7 — GUILHERME DE MELLO, «História Artística», «A Música no Bra-
sil» in Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, Rio de
Janeiro, 1922, vol. I, pág. 1.645.
8 — No Museu Imperial de Petrópolis existe um fino e vetusto cravo,
assim descrito no «Guia do Museu Imperial» (Petrópolis, 1961, 2º edição):
«Cravo. Caixa dourada com decoração na face externa, e tampo com
paisagem feita a olio, pela parte interna. No espelho, lê-se: MATHIAS
BOSTEM FECIT A LISBOA, 1788. Estilo Luis XVI». Esse raríssimo cravo
ornamenta a Sala Dourada do referido Museu Imperial.
9 — Em 1932, viajando pelos sertões do Brasil, HERMANO RIBEIRO DA
SILVA foi encontrar em Conceição do Araguaya, nos limites entre
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
Pará e Goiás, dois alquebrados pianos, «abencerragens daquele fastígio
imoderado da riqueza da borracha». Veja «Nos Sertões do Araguaia,» Ed.
Saraiva, S. Paulo, 1959, pág. 180.
10 — «Tratados da Terra e Gente do Brasil», Editores J. Leite & Cia.,
Rio de Janeiro, 1925, págs. 286, 303, 315, 325, 336.
11 — «Cartas Jesuíticas», Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro,
1933, vol. III, pág. 396.
12 — «Narrative of a Voyage to Brasil», London, 1805, págs. 70-72,
102, 123, 124, 273, 275, 276.
13 — IGNÃCIO ACCIOLI DE CERQUEIRA E SILVA, «Memórias Históricas
e Políticas da Província da Bahia». Bahia, 1931, vol. III, páginas 36
42.
14 — DÍDIO COSTA, «Saldanha — Almirante L. Ph. de Saldanha da
Gama» Rio, de Janeiro, 1957, págs. 14, 48, SACRAMENTO BLAKE,
«Dicionário Bibliográfico Brasileiro», vol. V, pág. 175. Luís MOREIRA DE
SÁ E COSTA S. J. , «Descendência dos lºs Marqueses de Pombal», Porto,
1937, págs. 118, 119.
15 — «Notas Dominicais Tomadas durante uma viagem em Portugal
e no Brasil em 1816, 1817 e 1818», Livr. Progresso Ed., Bahia, 1956,
págs. 308, 309.
16 — «Diário de Uma Viagem ao Brasil», S. Paulo, 1956, páginas
148, 156.
17 — WANDERLEY PINHO, «Salões e Damas do Segundo Reinado»,
2» ed., pág. 46.
18 — ERNESTO VIEIRA, Dicionário cit.; MOZART DE ARAÚJO, «A Mo-
dinhas e o Lundu no Século XVIII», Ricordi Brasileira, S. Paulo, 1963,
págs. 34, 35.
19 — «Voyages dans la Partie Septentrionele du Brésil, depuis 1809
jusqu en 1815». Paris, 1818, págs. 26, 27 e 46.
20 — Wanderings in South América, The North-West of the United
States, and the Antilles». London, 1825, págs. 91, 92.
21 — «Diário Intimo do Engenheiro Vauthier (1840-1846)» — «Pre-
fácio e Notas de Gilberto Freyre». Rio de Janeiro, 1940, págs. 29 e 52.
GILBERTO FREYRE, «Um Engenheiro Francês no Brasil», Livr. José
Olympio Ed., Rio de Janeiro, 1940, págs. 60, 61, 78, 110, 145, 146.
22 — Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambuco,
nº 54, ano, 38º , 1900, págs. 20, 21.
23 — WANDERLEY PINHO, obr. cit., pág. 6S.
24 — PEDRO CALMON, «História de Castro Alves». Rio de Janeiro,
1947, págs. 113, 130, 141.
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PIANO NO BRASIL
25 __ PEDRO TAQUES DE ALMEIDA PAIS LEME, «Nobiliarquia Paulistana
História e Genealógica», S. Paulo, 1953, vol. III, pág. 239. CARLOS G.
RHEINGANTZ, «Primeiras Famílias do Rio de Janeiro», Rio, pág. 394.
26 __ GILBERTO FERREZ, «AS Cidades do Salvador e Rio de Janeiro
no Século XVIII», Rio de Janeiro, 1963, pág. 4.
27 __ Luís HEITOR, «150 Anos de Música no Brasil», Rio de Janeiro,
1956, págs. 18, 23, 25, 26; Luís EDMUNDO, «NO tempo dos Vice-Reis,
1763-1808», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
1932, vol. 163, tomo 109, págs. 313, 319.
28 Arquivo do Distrito Federal, Rio de Janeiro, 1894, lº vol. páginas 73,
77.
29 «Para a História do Rio de Janeiro (Vice-Reinado) século
XVIII», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 254,
janeiro-março 1962, págs. 241, 353, 354, 355, 357, 365, 366, 384.
30 — «An Authentic Account of an Embassy from the King of Great
Britain to the Emperor of China», London, 1798, vol. I, pág. 161.
31 Luiz HEITOR, «Música e Músicos do Brasil», Rio de Janeiro,
1950, pág. 113. Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional
Cantada, Departamento de Cultura, S. Paulo, 1938, páginas 759, n?97.
32 — FRANCISCO CURT LANGE, «Estúdios Brasileiros (Mauricinas)»,
in Revista de Estúdios Musicales, Mendoza, Argentina, abril 1950, nº 3,
Págs. 176 — 191.
33 — Irmã de D. Pedro I, D. Isabel Maria regressou ao Reino em
1821, acompanhando D. João VI. Estudara música também com Marcos
Portugal e dela afirmou ÂNGELO PEREIRA: «era uma grande tocadora de
piano. Possuia muitos conhecimentos de contraponto e acompanhava a
piano em todos os sistemas». Veja «Os Filhos de El Rei D. João VI», pág.
76.
34 — Luís NORTON, «A Corte Portuguesa no Brasil», pág. 406.
35 — REV. R. WALSH, «Notices of Brasil in 1828 and 1829», London,
1830, vol. II, pág. 456.
36 — GEORGE GARDNER, «Traveis in the Interior of Brasil», London,
1846, pág. 8.
37 — GUILHERME DE MELLO, obr. e loc. cit., pág. 47. RENATO
ALMEIDA, «História da Música Brasileira», 2º ed., Rio de Janeiro, 1942,
pág. 355.
38 — HEITOR LYRA, «História de Dom Pedro II», págs. 90, 102. RO-
DOLFO GARCIA, «Os Mestres do Imperador», in Anuário do Museu
Imperial, Petrópolis, 1946, pág. 14.
CARLOS PENTEADO DE REZENDE
39 — AYRES DE ANDRADE, «Um rival de Liszt no Rio de Janeiro», Re-
vista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, Ano I, nº 1, 1962, pág. 27.
40 — «A questão dos pianos é para os virtuoses, nos concertos, tanto
na Europa, como na América do Norte, uma questão muito séria e às
vezes muito embaraçosa. Mais tarde, se verá até que ponto chega por
vezes a rivalidade entre fabricantes» — afirmou ARTUR NAPOLEÃO nas
suas «Memórias». Veja Revista Brasileira de Música, Ano II, nº 4, 1963,
págs. 42, 43.
41 — ESCRAGNOLLE DÓRIA, «Cousas do Passado», Separata do tomo 82,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
1909, pág. 63. FRANCISCO CURT LANGE, «Vida y Muerte de Louis
Moreau Gottschalk en Rio de Janeiro (1869), II Parte, Revista de Estúdios
Musicales, Mendoza, Argentina, nºs. 5/6, 1950-1951.
FRANCISCO CURT LANGE, obr. cit. acima, Revista de Estúdios Musicales,
Mendoza, Argentina, nº 4, agosto de 1950, págs. 101, 102. Anuário do
Museu Imperial, Petrópolis, 1946, pág. 80. RAIMUNDO DE MENEZES, «José
de Alencar», Livr. Martins Ed. São Paulo, 1965, págs. 219, 338.
ZOROASTRO PASSOS VIANNA, «Em Torno da História de Sabará», cit. por
FRANCISCO CURT LANGE, «La Musica en Minas Gerais», Boletin Latino-
Americano de Música, Tomo VI, 1» Parte, 1946, págs. 411, 412.
FRANCISCO CURT LANGE, «A Música Barroca», in História Geral da
Civilização Brasileira, Tomo I, vol. 2", São Paulo, 1960, páginas 130, 135.
JOAQUIM FELÍCIO DOS SANTOS, «Memórias do Distrito Diamantino da
Comarca do Serro Frio», 3º ed., Rio de Janeiro, 1956, páginas 160, 162.
47 — SAINT-HILAIRE, «Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral
do Brasil», São Paulo, 1941, pág. 47. MARCOS CARNEIRO DE MENDONÇA,
«O Intendente Câmara», Rio de Janeiro, 1933, página 223.
48 — JOAQUIM FELÍCIO DOS SANTOS, obr. cit., pág. 455.
49 — FRANCISCO CURT LANGE, «La Musica en Minas Gerais», cit. na
nota 44, pág. 481.
50 — ALFREDO VALLADÃO, «Campanha da Princesa», Rio de Janeiro,
1940, vol. II, págs. 53, 58.
51NELSON DE SENNA, Anuário de Minas Gerais, 1909, vol. III,
pág. 730. Foi citado por F. CURT LANGE, no Boletin Latino-Americano de
Musica, Tomo VI, 1946, págs. 478-480, com fotografias do referido
piano.
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ciências humanas
O Brasileiro como Tipo Nacional de
Homem Situado no Trópico e, na sua
Maioria, Moreno: Comentários em
Torno de um Tema Complexo
GILBERTO FREYRE
OSSA condição nacional — a dos brasileiros — decorre de uma experiência
histórica ainda em desenvolvimento: de um conjunto de fatores étnicos,
culturais, sociais que, dentro de uma ecologia, em grande parte, tropical,
encontraram-se, chocaram-se, entraram em inter-relações de vários tipos e em
relações também diferentes com aquela ecologia. Dessas interrelações e dessas
relações vêm resultando, através de um tempo que em parte se tornou histórico e
continua dinamicamente social, uma sociedade e uma cultura, a princípio,
coloniais, de certa altura em diante, já pré-nacionais e, desde os primeiros anos do
século XIX, antes mesmo de proclamada a independência política do nosso país
como acontecimento histórico, já sociologicamente nacionais ou quase-nacionais.
Processo, o da nossa passagem de uma situação pré-nacional a outra, nacional,
que foi quase inteiramente pacífico, em contraste com o que ocorreu na vizinha
América espanhola e mesmo na América inglesa. Processo que continua.
Continua porque a condição nacional de uma sociedade que, como Estado-
nação, não seja potência, é uma condição sempre em perigo. ameaçam-na mil e
uma torças pacificamente, sutilmente, suavemente, contrárias a esse seu modo
nacional de ser sociedade, algumas dessas forças partindo de dentro para fora da
nação em desenvolvimento, em vez de virem de fora para dentro. Há, quase
sempre, dentro de uma sociedade ou de uma cultura nacional, quem, com a melhor
das intenções, contribua para a substituição maciça de seus valores tradicionais,
desenvolvidos com o tempo ou dentro de um tempo êle próprio já nacional, por
valores importados de outras sociedades e de outras culturas juntamente com
técnicas das chamadas desenvolvimentistas. São valores que, destruindo — se não
forem assimilados — aqueles valores nativos, ecológicos, telúricos, podem dar à
sociedade ou à cultura que as importe e as adote passivamente, aspectos dos
denominados progres-
N
GILBERTO FREYRE
sistas. Mas tornando a cultura ou a sociedade nacional ou para-nacio-nal de tal
modo passivas que a sua condição de nacionais ou para-nacio-nais quase se reduz
a insignificância: o caso extremo, atual, de uma Tcheco-Eslováquia ou de uma
Polônia ou de uma Hungria com relação à União Soviética e o embora relativo —
e não extremo — da mesma espécie, de um Porto Rico com relação aos Estados
Unidos.
Não nos interessa, nestes comentários, considerar, na formação brasileira, de
modo específico, nem os aspectos políticos, nem os aspectos econômicos, nem
mesmo os étnicos, desse processo social; e sim, de modo breve — é claro — os
mais amplos aspectos étnico-culturais, psico-sociais, socio-culturais dessa
formação vista, ou entrevista, na sua totalidade. Mais amplos porque para o
antropólogo como para o sociólogo, o social inclui, entre seus elementos, o que é
político, o que é económico e o que é étnico no complexo formado por uma
sociedade; o cultural também: inclui o que é político, o que é económico, o que é
de origem ou de aparência étnica, numa totalidade cultural afluente ou confluente.
É claro que a alguns especialistas em ciência política ou em ciência
económica ou em ciência etnológica repugna essa subordinação de suas matérias
ao que seja complexamente social e compreensivamente cultural. Há economistas
que consideram o social e o cultural aspectos secundários de um processo
económico. Há também quem repita, diante de qualquer assunto que se relacione
com uma situação social ou com a formação de uma sociedade nacional, as
palavras célebres de Maurras: «politique dabord». Há, ainda, quem pretenda que a
etnia determina as formas sociais de um grupo humano e as suas expressões
culturais. A verdade, porém, é que nas chamadas Ciências do Homem, ou Ciências
Sociais, ou Ciências do Comportamento Humano, o critério mais geralmente
aceito é aquele que faz das sociedades, conjuntos sociais, e das culturas,
complexos culturais dentro dos quais cabem os fatores económicos, políticos e
étnicos. Fatores importantes porém nenhum deles soberano absoluto embora, em
certas circunstâncias, de ação decisiva na formação ou no desenvolvimento de um
sistema nacional de convivência .
Rara a nacionalidade — se é que existe alguma — formada ou constituída
por um só tipo étnico e sócio-cultural de homem. De ordinário, vários são os tipos
bio-sócio-culturais de homem que concorrem, ou têm concorrido, para formações
dessa espécie. Tipos de personalidade contraditórios: dionisíacos e ápolíneos,
extrovertidos e introvertidos, ativos e contemplativos, racionais e intuitivos,
conservadores e inovadores, sedentários e andejos. Tipos de origens históricas
diversas, de adaptações diversas ao mesmo espaço nacional ou a tornar-se
nacional, de especializações também diversas em aspectos do seu comportamento
que contribuam para a unidade, organização ou desenvolvimento nacional: a
especialização agrária, a pastoril, a marítima, a urbana, a rural, a económica, a
intelectual, a artística. Não é só uma jan-
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
gada que se faz com vários paus: também uma nacionalidade se faz com vários
elementos humanos.
Nacionalidade no sentido sociológico de uma sociedade e de uma cultura
organizadas com objetivos nacionais que cheguem até à sua autonomia como
Nação constituída em Estado. Pois embora se saiba de nacionalidades que não
atingem essa plenitude e são apenas minorias étnico-culturais, dentro de conjuntos
imperiais, é em Estados-nações que, de ordinário, se pensa quando se fala em
nacionalidades: assunto magistralmente estudado pelo Professor Carlton Hayes
em obra que se tornou clássica.
Há um complexo nacional formado pelo Brasil — terra, água, espaço físico,
ambiente, ecologia geral; pelo homem que, a princípio como pré-brasileiro,
depois, como brasileiro, vem explorando, através do tempo histórico, essa terra e
essa água, ocupando esse espaço, harmonizando-se com esse ambiente, com essa
ecologia, com essa situação física; pela brasileiridade — digamos assim — que
vem resultando, como conjunto bio-sócio-cultural de técnicas, de modos de vida,
de hábitos de alimentação, de adesão a valores éticos e estéticos, de toda uma
variedade de ligações desse homem, primeiro pré-brasileiro, depois brasileiro,
com o espaço em que se situou, com o ambiente ou a ecologia com que se vem
harmonizando e, também, com o tempo em que, historicamente, vem se
prolongando de indivíduo, em pessoa, de raça em meia-raça, de meia-raça em
meta-raça, de população em sociedade e em cultura: um indivíduo biológico, uma
pessoa humana, uma meta-raça, uma sociedade que já se apresentam com
característicos gerais nacionalmente brasileiros. Há um tipo já nacional de homem
brasileiro para o qual vêm convergindo vários subtipos regionais que podemos
considerar básicos na formação — que ainda se processa — desse tipo bio-sócio-
cultural total.
Tal homem, tal meta-raça, tal sociedade, tal cultura, tal tipo, apresentam
semelhanças com outros tipos nacionais. Mas sua singularidade, como tipo que
possa ser denominado nacional, não é apenas um mito, embora tenha alguma
coisa de mito e até de ficção como todo tipo dos chamados nacionais. Não há
fantasia em pretender-se haver já uma singularidade brasileira que se exprime
num tipo geral brasileiro caracterizado por um conjunto de modos, que lhe são
peculiares, de andar, de falar, de sorrir; por preferências gerais, acima das
regionais (algumas dessas regionais sendo muito expressivas), de paladar; por
uma generalidade de aspecto físico marcada pela predominância de miscigenados,
sobre indivíduos de etnia pura, e de dionisíacos sobre apolíneos, com essas
predominâncias de modo algum significando exclusividade absoluta de aspectos e
de modos de comportamento que excluam os contrários ou dêem, a esses
contrários, o caráter de aspectos e comportamentos antibrasileiros. Há brasileiros
ruivos — nòrdicamente ruivos, até — sem que a esse aspecto corresponda sempre
o modo de comportamento apo-líneo de ordinário associado ao tipo nórdico, do
mesmo modo que há brasileiros de pele preta de um comportamento antes
apolineo — o dos
GILBERTO FREYRE
ingleses clássicos — que dionisíaco, como o da maioria de negros africanos.
Recordo três exemplos: o Arcebispo Dom Silvério, o psiquiatra Juliano Moreira, o
engenheiro Teodoro Sampaio. Três pretos apolíneos: brasileiros e apolíneos.
Enquanto o brasileiro de origem norte-européia Germano Hasslocker foi um quase
puro dionisíaco.
Essa pluralidade antropológica de aspectos físicos, cromáticos, bios-sociais, é
característica do brasileiro sem que falte ao homem, situado em espaço tão vasto
como o do Brasil — considerado esse homem menos como individuo biológico ou
como aparência étnica ou cromática do que como pessoa no sentido sociológico da
expressão — uma unidade geral que surpreende ao observador, tratando-se de
gente, isto é, de homem, espalhado em sub-regiões diversas de um tão vasto
espaço continental, embora quase todo êle favorável a essa unidade pela sua
condição, quase toda, de tropical e de subtropical. Condição à qual pensam alguns
que se vem juntando, nas sub-regiões fisicamente não-tropicais, a situação
sociocultural ou psicocultural de sub-regiões tropicalizadas por contágio com as
subtropicais e tropicais. Essa tropicalização viria importando em crescente
processo de identificação — segundo parece a alguns analistas do assunto — com
uma cultura nacional brasileira de vivências e convivências predominantemente
tropicais.
O homem vivente e convivente não pode ser definido apenas em termos
abstratos, matemáticos, estatísticos. Precisamos de nos defrontar com o que nele
seja o que Unamuno chamava «carne e osso». Precisamos de considerá-lo, o mais
possível, na sua totalidade biossociocul-tural: não só o ser que pensa, sente, sonha,
fala, ri, reza, dança, fabrica, pinta, toca viola, fuma, distinguindo-se, por essas
aptidões humanas, dos demais animais como o que copula, come, defeca, sua,
corre, grita, sobe às árvores, desce às águas, nada, sendo, nessas expressões de
vida, ao mesmo tempo que universal como indivíduo biológico, particular, di-
verso, regional, pré-nacional, como pessoa, isto é, como indivíduo socializado e
aculturado de acordo com uma ecologia, uma cultura, um grupo a que pertença, ou
dentro do qual nasceu ou cresceu; e, de acordo com esses condicionamentos,
praticando atos animais — comendo, copulando, nadando — de diferentes
maneiras biossocioculturais.
É em virtude dessas particularizações de comportamento, decorrentes de
situações ecológicas e culturais particularizadoras da condição humana, que se
pode falar de um homem brasileiro como de um homem francês, de um homem
português, de um homem espanhol, de um homem russo, de um homem mexicano,
de um homem paraguaio, de vários outros homens nacionais; de vários outros
tipos nacionais ou regionais de Homem. Para esse tipo nacional de Homem
brasileiro — ainda em formação mas já bastante definido, antropológica e
sociologicamente — sabemos que têm concorrido, e continuam a concorrer, vários
subtipos regionais, alguns dinamizados em transregionais: o caso clássico do
Bandeirante. O do nordestino. O do próprio gaúcho que se tem pro-jetado sobre o
Brasil Central.
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
Se ao antropólogo Bastos de Ávila — refiro-me ao antropólogo, pai ilustre
do sociólogo também ilustre — o tipo brasileiro de homem conhecido por gaúcho
se apresenta como transitório, e não como básico ou essencial, é que para êle
gaúcho tem um sentido restrito. Não se refere ao rio-grandense-do-sul em geral.
Porque este. o rio-grandense-do-sul, como um subtipo regional total, tem sido
evidentemente um subtipo, além de básico, funcional, na formação da
nacionalidade brasileira, com uma atuação que se tem projetado fora da província
ou do Estado do Rio Grande do Sul e não apenas se afirmado na defesa ou no res-
quardo da fronteira meridional do Brasil formada pelo mesmo Rio Grande do Sul.
Por essa atuação, o rio-grandense-do-sul — de ordinário branco, por vezes com
algum evidente salpico de sangue ameríndio, bem mais raramente tocado de
sangue negro, (sangue, o negro, tão mais comum no brasileiro de Minas Gerais, do
Rio de Janeiro ou do Nordeste) — pode ser considerado subtipo de homem
essencial, dentre os que mais vêm contribuindo para a formação da nacionalidade
brasileira: o Bandeirante, o mineiro, o paraense, o nordestino — no nordestino
incluído o baiano — e, ainda, aquele neobrasileiro do extremo Sul, de origem
italiana ou alemã, que, sob alguns aspectos, vem se tornando paradoxalmente mais
zeloso de tradições brasileiras que o brasileiro mais antigo.
Já está tardando, porém, uma definição quanto possível exata daquelas
expressões antropológicas e sociológicas já utilizadas, ou a ser utilizadas, pelo
autor destes comentários, nesta sua tentativa de apresentação de uma teoria que
muito se presta, conforme as expressões verbais por que seja considerado o
assunto, a confusões de caráter semântico. Devemos, assim, procurar definir
conceitos como o de Homem; o de Homem Situado; o de Ecologia geral; o de
Indivíduo biológico; o de Meta-Raça; o de Pessoa; o de Sociedade; o de
Complexo de Cultura; o de Cultura; o de Tropicalidade adquirida com que se
completa o de Tropicalidade inata; o de Antropologia do Homem situado nos
Trópicos . Alguns desses conceitos são próprios do autor, embora já submetidos à
apreciação de mestres e analistas universitários do país e do estrangeiro e por estes
acolhidos e aprovados: o de Antropologia do Homem situado nos Trópicos,
oficialmente, pelos mestres de Ciências do Homem da Sorbonne; o de Meta-Raça,
por mestres da Universidade inglesa de Sussex; enquanto com o de tropicalidade
adquirida que se acrescente ao de tropicalidade inata coincide, no essencial, o
critério que vem sendo seguido pela Academia Francesa de Ciências (do
Ultramar), da qual o autor tem, aliás, a honra de ser membro. Com o de Ecologia,
do autor, ou brasileiro, coincidem, no essencial, o do Professor Bews, da África do
Sul, e o do Professor Mukerjee, da índia, sem que ao brasileiro falte o que um
estudioso anglo-americano do assunto, o Professor Edmonds, considera a sua
ênfase: ênfase como que extra-sociológica, mas, na verdade, sociologicamente
atenta à repercussão do telúrico sobre o comportamento psicossocial do Homem
ecologicamente situado. Por
GILBERTO FREYRE
conseguinte, ênfase antropo-sociológica. Ênfase no aspecto telúrico da ecologia
que condicionasse a existência e a cultura do homem nela situado.
Consideradas as referidas expressões nos significados, quanto possível
exatos, com que delas se vem utilizando o autor destes comentários, poderão ser
evitadas — repita-se — algumas daquelas confusões semânticas que tanto podem
prejudicar o entendimento em torno de estudos antropológicos e sociológicos. O
critério do autor, em face de estudos sobre assuntos antropológicos combinados
com os sociológicos, vem sendo, em grande parte, o de procurar abordá-los, quer
com relação ao Homem, às Sociedades e às Culturas, em geral, quer com relação
ao Homem, à Sociedade e à Cultura brasileiras, em particular, procurando notar o
que nos encontros de formas e de processos que sejam antropológica e
sociologicamente gerais, polivalentes, com substâncias ecológica, étnica,
etnogràficamente diferentes, entre si, apresenta-se sob configurações existenciais,
sem prejuízo das essenciais. O homem brasileiro apresenta-se sob configurações
existenciais que precisem de ser compreendidas através de análises do que, nelas,
ao essencial, se junte esse existencial, com suas particularidades de espaço e de
tempo. O homem existente, vivente, convivente, concreto, carnal, particularizado,
situado, ambientado . Muito mais este que o étnico. Ou que os étnicos. (1)
Não deve, porém, o autor prosseguir em comentários, embora pertinentes, em
torno do que, sendo consideração antropológica e sociológica do Homem
como homem situado, oriente o estudo do
(1) Sobre a importância, não só da raça, como da côr da pele, para outros povos modernos —
inclusive chineses e russos soviéticos — em contraste com a crescente insignificância de uma e outra
para o brasileiro, veja-se a bibliografia que acompanha o texto da conferência proferida pelo autor na
Universidade de Sussex (Inglaterra) em 1966, em solenidade presidida por Lord Fulton e após a qual foi
doutorado h.c. pela mesma Universidade e saudado pelo Professor Asa Briggs. Essa conferência versou
o tema The Racial Factor in Contemporary Politics e foi publicada pela mesma Universidade. Nela o
autor expôs, pela primeira vez, em termos sociológicos, seu conceito de meta-raça, destacando ser o
brasileiro de hoje um povo para quem o tipo nacional se desenvolve como meta-étnico. A propósito do
que destacou do Brasil que está «increasingly becoming what an inventor of (words would perhaps be
so bold as to describe as meta-racial. That is a society where instead of sociological preoccupation with
minute characterization of multiracial interme-diates or nuance types, between white and black, white
and red, white and yellow, the tendency, or begins to be, for those not absolutely white, or absolutely
black or absolutely yellow, to be described, and to consider themselves almost without discri-mination,
as moreno.» Essa conferência, publicada, suscitou comentários inteligentes e favoráveis à atitude
brasileira para com os preconceitos de raça e de côr, da parte de intelectuais britânicos autorizados ou
idôneos. Infelizmente, o Itamarati ou o Serviço de Informações do Governo brasileiro não soube
ampliar a divulgação, na língua inglesa e noutras línguas, desse trabalho brasileiro prestigiado pela sua
primeira publicação por uma universidade da importância da de Sussex. Explica-se assim que, diante da
indiferença brasileira, elementos menos idóneos ligados à British Broadcasting, de Londres, não
tenham hesitado, em recente programa, em mistificar o público de língua inglesa sobre a situação
brasileira no tocante a preconceitos de raça e de côr.
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
Homem brasileiro como um homem a quem sua situação ecológica, social e
cultural dá característicos que o distinguem de outros homens situados, sem o
isolarem num homem único na sua singularidade, sem insistir em umas tantas
definições daqueles conceitos fundamentais para qualquer tentativa de
apresentação de assunto ou tema antropológico ou sociológico sob critério ao
mesmo tempo situacional e existencial.
Homem, que é, considerado antropológica ou sociologicamente? É um
indivíduo biológico que só adquire realidade plena socializado e aculturado em
pessoa: pessoa humana. Homem situado é o homem concreto, específico, quanto à
sua situação em espaço e em tempo, físicos e sociais. Sua situação racial é parte de
sua situação concreta mas tende a ser quase anulada pela crescente ascendência,
em algumas sociedades — a brasileira é uma delas — da substituição da
consciência de raça, diluída, com a mestiçagem ou a miscigenação, pela
consciência de meta-raça, isto é, pela superação do aquem raça peio além raça.
Conceito, aliás — o de meta-raça — brasileiro. O Indivíduo biológico é, no caso
do Homem antes de social e culturalmente humanizado por um tipo de socialidade
e por um tipo de cultura que façam dele aquela já aludida Pessoa, um homem
apenas em potencial. Pessoa repita-se que é esse indivíduo biológico socializado
em membro — socius — de um grupo e em participante, direto ou indireto, de
uma cultura grupai: tribal, regional, nacional, transregional. Ecologia geral é a
que, vegetal, animal, humana, envolva, como ambiente total, inclusive telúrico, um
indivíduo biológico que esteja sendo, ou já esteja, socializado e aculturado em
pessoa conforme, em grande parte, condições próprias desse ambiente total. Por
Sociedade deve-se entender, em Antropologia Social e em Sociologia, a população
que constitua uma unidade social com organização mais ou menos distinta das de
outras sociedades. Por Cultura entenda-se o conjunto de invenções e de
desenvolvimentos de aptidões humanas, tanto materiais — técnicas de construção,
de abrigo, de caça, de pesca, de agricultura, de transporte, etc, como não-materiais,
tais como crenças e ideias. Como conjunto geral, a cultura pan-humana se
apresenta sob o aspecto de vários e diferenciados conjuntos culturais específicos.
tribais, regionais, nacionais, transnacionais. Exemplos: a cultura maia, a bantu, a
guarani, a cultura francesa, a cultura germânica, a eslava, a ocidental, a islâmica.
Por complexo de cultura deve-se entender uma cadeia de invenções e de
desenvolvimentos, associados funcionalmente, em torno de um motivo central ou
principal como é, por exemplo, o trigo ou o café ou o vinho, podendo-se também
falar de um complexo nacional de cultura desenvolvida, assim inter-relacionada e
funcionalmente, em torno de motivos nacionais de existência, convivência, coesão
e desenvolvimento: o complexo nacional de cultura japonesa, por exemplo.
Tropicalidade refere-se à ecologia tropical sobre a qual se projete uma cultura por
sua vez condicionada, embora não determinada, por essa situação de espaço físico,
como é o caso da cultura indiana e
GILBERTO FREYRE
de grande parte da cultura brasileira. Tropicalidade adquirida é a que, mais
cultural que ecológica, seja adquirida por contágio, de uma cultura ecológica
vizinha, como é o caso de vários valores e usos tropicais que brasileiros de sub-
áreas temperadas vem juntando aos seus valores e usos não-tropicais, numa como
solidariedade com os usos e valores da maioria brasileira, tropicalmente situada e
condicionada. Sendo assim, pela Antropologia do Homem situado no Trópico, da
tese brasileira, deve ser compreendida aquela antropologia especial, originária do
Brasil e consagrada oficialmente por mestres de Ciências do Homem da Sorbonne,
que procura estudar o Homem situado no Trópico dentro das inter-relações de
Ecologia e de Cultura que lhe estejam porventura dando um perfil antropológico,
bio-social, próprio da sua situação. O Homem brasileiro, do qual Álvaro Osório de
Almeida já sugeriu, após investigação memorável, que seria diferente no seu
metabolismo do Homem das áreas temperadas, pode ser considerado exemplo, no
setor fisiológico com repercussões no sócio-cultural de homem moderno,
civilizado, predominantemente, mas não exclusivamente, europeu na sua cultura,
situado no trópico. Homem, o brasileiro, também caracterizado, nesses setores, por
sua crescente, isto é, crescentemente generalizada, morenidade, (2) talvez
protetora de sua maior adaptação ao ambiente tropical: espécie do que teria sido o
urucu para ameríndios de pele menos escura. Tal morenidade, em grupos
numerosos de brasileiros — o nordestino, por exemplo, e também os de certas sub-
regiões do Centro-Sul — vem, resultando, quer do amorenamento pelo sol tropical
até de nórdicos, quer da considerável miscigenação em que se vêm unindo os
sangues europeus, ameríndio e africano, com resultados além de eugênicos,
estéticos. Resultados que já fazem do tipo moreno de mulher ou de homem um
tipo atraente para brancos, por um lado, e para negros puros, por outro.
Quem fôr leitor de periódicos da África negra, para leitores negros africanos
dos nossos dias, verá que neles vêm aparecendo, em crescente número, anúncios
— e a análise sociológica dos anúncios é outra inovação brasileira — de loções ou
pomadas que amorenam a pela preta. Não se trata — note-se bem — do
embranquecimento da pele preta e sim do seu amorenamento por meios artificiais
correspondentes a um ideal estético-cromático de aspecto humano,
particularmente do feminino. Sendo considerável, como parece ser, a
receptividade de pretas africanas a esses anúncios, de caráter principalmente
estético, com implicações extra-estéticas, pode-se concluir que, entre um número
(2) É interessante recordar-se a definição de moreno que aparece em glossário
paraense do começo deste século: «Morem), ad. Eufemismo introduzido depois do advento
da República pelos pardos quando falam uns dos outros. O mulato, o cafuz, o próprio preto
uiraúna, são pessoas morenas... Um moreno (cafuz) magoado pelo epíteto afrontoso de
negro retorquiu que «agora na República não havia mais nem pretos nem brancos: todos
cidadãos.» (Glossácio Paraense, de Vicente Chermont de Miranda, 1» edição 1906, 2»
edição, Belém 1968).
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
nada insignificante de mulheres tanto pretas como brancas, o que domina, contra a
mística da negritude, é o desejo do amorcnamento. É o ideal — já tão brasileiro —
da morenidade. Portanto, um desejo que as aproxima mais da tendência brasileira
no sentido da morenidade que do ideal de pureza de pele intransigentemente preta,
contrário à miscigenação e favorável a um racismo preto africano oposto, de modo
radical, ao racismo branco europeu ou branco anglo-americano ou branco sul-
africano. (3)
Destaque-se, a esta altura, que a atual tendência brasileira para a valorização
eugênica, estética e social da sua gente morena, inclusive para a representação,
como morenos, do Cristo, da Virgem, de Santos, no seu cristianismo, retificando-
se o pendor para a exclusiva apresentação dessas figuras sagradas como arianos,
albinos, louros — pendor tão de Mestre Cândido Portinari e pelo autor destes
comentários, tão denunciado como antibrasileiro e como subeuropeu, o que pôs
em perigo a amizade do autor com o famoso pintor — teve num insigne poeta
português do fim do século passado e do começo deste, quem a ela se antecipasse,
revelando-se morenófilo ostensivamente lírico, «...olha que foram morenas... as
moças mais lindas de Jerusalém e a Virgem Maria, não sei se não seria morena
também.» Palavras de Guerra Junqueiro a uma morena, portuguesa ou, quem sabe,
lusotropical, talvez brasileira, que ele supunha acabrunhada pelo fato de ser
morena numa época, como aquele fim de século, de excessiva glorificação —
excessiva por exclusivista — em Portugal como no Brasil, do tipo albino. róseo,
louro, de mulher.
O brasileiro é uma gente crescentemente morena. Ao vaticínio, porém, de vir
a ser o Brasil, dentro de algum tempo, uma «população de mulatos», falta
idoneidade antropológica. O que é provável e até certo é a maior generalização de
morenos, nessa população, a ponto de tornar-se, pelo ano 2000, a morenidade,
uma predominância barroca-mente, isto é, variamente como diria Camões —
característica do Homem brasileiro com cada dia menor número de
exceções. (4)
(3) O famoso Pele, jogador de futebol, preto retinto porém brasileiramente moreno, assim se
manifestou, em recente declaração (1970), aparecida em revista do Rio de Janeiro, sobre a
insignificância do preconceito de côr no Brasil: «... é muito engraçado o fato de os estrangeiros em
geral sempre que fazem perguntas sobre o Brasil e os brasileiros se preocuparem principalmente com o
problema da côr da pele. Será que não sabem que aqui não há os problemas raciais como cm algumas
outras partes do mundo? Eu por mim não acho que um homem valha pela sua côr e sim pelo que é."
(4) Merece ser recordado aqui o pronunciamento de um intelectual anglo-americano da
inteligência e do saber de Roy Nash sobre o que, no principio deste século, já lhe parecia a tendência
do Brasil para desenvolver-se em avançada democracia étnica: "More than in any other peace in the
world, readmixture of the most divergent types of humanity is there injecting meanning into the e galité
of revolutionary France and the human solidarity of philosophers and class-conscious proletarians.>
Além do que a miscigenação brasileira parecia já a Nash um desmentido à superstição de importar esse
processo biológico em degeneração (The Conquest of Brazil. N. Y. 1926) .
GILBERTO FREYRE
Mesmo porque é possível que esteja para acentuar-se a valorização, quer por
motivos biológicos, quer por motivos estéticos, dessa melani-zação e até de
característicos não-estéticos que a ela possam ser associados. É também possível
que para tornar efetiva essa valorização ou essa preferência — «a côr morena é côr
de ouro», diz já a poesia popular brasileira — possam concorrer meios científicos
já em experimentação, de alteração de formas e de cores de corpo ou da figura
humana, conforme preferências estéticas e conveniências higiênicas ligadas a
condições ecológicas. É um sábio da autoridade e da respon-sabi'idade científica
do Professor Carleton S. Coon quem o informa, em obra notável, The Living Races
of Man, escrita com a colaboração de Edward E. Hunt Júnior e publicada em Nova
York em 1965, «Recent research on the actions of two hormones secreted by the
pineal body» — escreve este sábio mestre de Antropologia Física, à página 317 do
seu tratado — «make it possible that before long people will be able to change
their skin color whenever they like, by simple injections». O Professor Coon
admite que as diferenças raciais mais ostensivas possam vir a ser superadas não
na sua anatomia como na sua fisiologia: inclusive quanto a desníveis de
inteligência acusados pelos QI., através de tests que, entretanto, parecem
corresponder principalmente a adaptações de capacidade mental a um tipo
dominante de cultura. Esse tipo dominante sabemos que atualmente é o europeu
desdobrado no anglo-americano.
Em relação com esse tipo dominante, mas não exclusiva nem
sistematicamente opressor de outros tipos de cultura, é que vem se processando o
desenvolvimento do Brasil, como Estado-nação. Como Estado-nação, o brasileiro
é senhor de vasto, vastíssimo território. Esse brasileiro, como tipo durante algum
tempo mais politicamente nacional do que ecologicamente situado, vem se
tornando cada dia mais consciente tanto de sua ecologia como que nacionalizante,
como da sua definição, através do tempo histórico, em tipo nacional. Consciente,
também, da sua brasileiridade, como conjunto menos de invenções do que de
valores e de usos culturais assimilados ou imitados de outros sistemas de cultura e
crescentemente adaptados a uma ecologia como que, ela própria, nacionalmente
brasileira. Telúricamente brasileira, até. Criadoramente brasileira.
Esse desenvolvimento, podemos os brasileiros considerá-lo satisfatório?
Estaremos já começando a nos desenvolver como um sistema nacional libertado
de europeísmos ou de ianquismos excessivos que desprestigiem a imagem que de
nós próprios devemos fazer como Homem, como Cultura, como Nação situados,
em grande parte, em espaço tropical e, em grande parte, mestiços ou miscigenados
em vez de isto ou aquilo, pura ou exclusivamente? Estaremos considerando nossa
condição de gente, em grande parte, morena, e até amarela, uma
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
condição ecologicamente positiva, em vez de negativa, (5) dado o fato,
estabelecido pelos estudiosos mais profundos do assunto — como H-F. . Blum, em
seu «Light and the Melanin of Human Skin» (New York Academy of Sciences, Sp.
vol. 4 (1948) e N. A. Barnicot, em «Human Pigmentation» (Man, n. 144, (1957)
— de ser a pele escura, isto é, amarela, parda, preta, morena, mais eficiente do que
a alva na resistência ao que haja de deletério nos efeitos, sobre o Homem, da luz
mais intensa dos trópicos, podendo considerar-se saudàvelmente ecoló-gico o
amarelo — «the glossy yellow skin» — da pe'e dos mestiços da América tropical,
em geral — inclusive do Brasil? Sendo, assim, é evidente, a vantagem fisiológica,
sobre brancos alvos, do chamado «amarelinho» brasileiro, a quem o folclore
atribui qualidades que contrastam com a sua côr, aparentemente doentia, e com o
seu franzino de corpo. Precisa o brasileiro de inteirar-se do fato de que a identifi-
cação, em termos absolutos, de faces côr-de-rosa de homem com saúde, vigor,
viço, superioridade física, é um europeismo convencional como é um ianquismo
convencional a associação da estatura elevada ao vigor físico: mito já tão
desmentido pelo vigoroso, enérgico e eficiente tipo nacional que, de arcaico,
passou a moderno, que é o japonês pequeno e amarelo. Donde à elevação de
estatura de americanos dos Estados Unidos, nos últimos decênios, como a de
japoneses após longa permanência nos mesmos Estados Unidos e aí nutridos à
maneira anglo-americana, não se poder atribuir vantagem que valorize de modo
absoluto tal elevação.
O Professor José Bastos de Ávila, em sua excelente Antropologia Física,
publicada no Rio de Janeiro em 1958, do mesmo modo que o autor destes
comentários em trabalho que data de 1936 — intitulado Nordeste e hoje em 4"
edição e recem-aparecido em língua italiana — admite a existência, no Brasil, de
subtipos regionais de Homem brasileiro «mais ou menos fixados, entre os quais o
nordestino parece definitivo», em contraste com o gaúcho do Sul que seria, para
Bastos de Ávila — repita-se — simples «tipo» — deveria dizer subtipo — «de
transição ou de contacto». Repele o ilustre antropólogo a ideia de uma «raça
brasileira» a que por vezes levianamente se referem, sem mais aquela, antes
curiosos da Antropologia que antropólogos autênticos.
(5) Quando esteve no Brasil, o escritor Aldous Huxley perguntou a brasileiros porque não se
fazia, no Brasil, «um filme épico do livro Casa-Grande & Senzala», (do autor destes comentários),
«dando-se «ênfase à mensagem que dele poderia ser extraída.» Essa mensagem, que o Brasil mais que
qualquer outra nação moderna, poderia transmitir a um mundo mais dividido por ódios de raça do que
por antogonismos de classe, seria a que consagrasse o valor da miscigenação, aqui favorecida por uma
quase ausência de preconceito de raça ou de côr entre o grosso da população e prestigiada pelos efeitos
positivos, da mesma miscigenação, como processo biológico com extensas e importantes implicações
sociais. É processo hoje inseparável do que. entre nós, é definição de um tipo nacional, quer de homem,
quer de sociedade, do qual os brasileiros têm já motivos para considerar um tipo, sob vários aspectos
— eugênicos, estéticos, psicossociais, socioculturais — antecipado, de homem e de socie-dade pós-
modernos.
GILBERTO FREYRE
Não existe, a rigor, tal raça. Daí poder admitir-se que, em seu lugar, exista, no
nosso país, uma meta-raça: tese que o autor destes comentários defendeu já, em
conferência em língua inglesa, proferida na Universidade de Sussex (Inglaterra) e
publicada, nessa língua, r,ela mesma universidade.
O máximo a que se pode chegar, neste setor, é a reconhecer um tipo
brasileiro, já nacional, de Homem, que se define mais por característicos
psicoculturais, que lhe seriam próprios, do que por característicos biofísicos
especificamente brasileiros. Admite-se que a esse tipo nacional de Homem possa já
ser atribuída, além de uma média de côr trigueira ou morena, que vá do moreno
escuro ao claro, amarelado — e que permite o uso atual da palavra «moreno», no
Brasil, para designar até indivíduos de côr preta que a delicadeza nacional evita
chamar negros: outra tese defendida naquela conferência em Sussex — uma média
de estatura antes baixa do que alta. Não basta, entretanto, a constatação dessas
médias para poder um antropólogo caracterizar o brasileiro atual como tipo já
racial, novo. O branco brasileiro — o leucodermo da classificação de Roquette
Pinto no seu clássico Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil, publicado no
Rio de Janeiro em 1929 — apresenta dois subtipos de estatura, em tôrno de 1,63 e
1,69. O falodermo — vulgarmente chamado mulato — é, na sua grande maioria.
indivíduo com a estatura média de 1,64. O xantodermo, ou seja o de ordinário
denominado mameluco, apresenta-se com uma média de estatura também mais
baixa do que alta: em redor de 1,63 e 1,69. Todos, portanto, indivíduos com uma
média de estatura abaixo de 1,70. sem que essa predominância de estatura média
venha impedindo o Brasil de produzir atletas de agilidade e do vigor de certos
morenos brasileiríssimos — um deles o hoje famoso Pele — e morenas bem
classificadas em concursos internacionais de beleza. Morenos e morenas meta-
raciais: simplesmente brasileiros.
Por meta-raça entenda-se a superação de uma consciência de raça pela, senão
inconsciência, indiferença, a essa situação puramente biológica. A consciência de
uma morenidade ampla como característica nacional brasileira — embora
admitidos como genuinamente brasileiros albinos, em minoria que procura, por
vários dos seus membros, abrasi-leirar-se cromàticamente amorenando-se ou
bronzeando-se ao sol de Copacabana e de outras praias — é uma consciência que
corresponde à crescente tendência do brasileiro para pensar de si mesmo como um
tipo nacional de homem que, qualquer que seja sua origem étnica predominante, é
um moreno cromàticamente, barrocamente, tropicalmente vário na sua
morenidade. São essas variantes com efeitos e seduções de caráter estético que dão
a uma cromàticamente vária. diversificada, múltipla, morena brasileira,
característicos de um tipo já nacional de mulher. Pois ela se apresenta senão una,
quase una, pelo modo de andar, pelo de sorrir e por um encanto ou uma graça,
comum a todas essas variantes. Encantos que a situam entre os tipos remi-
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
ninos mais atraentes do tempo moderno, com alguma coisa — pode-se sugerir —
de um tipo grego tropicalizado.
A morenidade brasileira, como uma concepção de tipo humano em que a raça
é superada pela meta-raça, apresenta-se inseparável do conceito, também
brasileiro, de lusotropicalidade: um conceito que, ao ser apresentado pelo autor,
teve a apoiá-lo, de modo o mais expressivo, além de imediato, em reunião de
caráter científico do Instituto Internacional de Civilizações Diferentes, a palavra
lúcida e sábia do Professor Marcelo Caetano, da Universidade de Lisboa e a de
vários outros sábios europeus como o Professor Kirkwood, de Oxford. Curioso que
onde o conceito brasileiro de morenidade, combinado com o de tropicalidade, viria
a merecer apoio mais entusiástico seria na Universidade suíça de St. Gau-len,
quando o autor destes comentários apresentou algumas de suas ideias a professores
e estudantes de uma universidade que concilia magnificamente tradição com
modernidade. A um ouvinte, dentre o numeroso público universitário reunido para
ouvir essa conferência de brasileiro, que revelou dúvidas quanto à validade do tipo
mestiço, quer como tipo físico, quer como tipo sociocultural, três outros se
levantaram. a proclamarem que o exemplo brasileiro, como outros exemplos
lusotro-picais, já não permitia tais dúvidas.
Quanto à côr da pele — para voltar-se a este aspecto do assunto com alguma
minúcia — especifique-se, do branco brasileiro, que, homem de pele, em geral,
trigueira ou morena (nº 10 a nº 19 da escala de Von Luschan), a esse moreno de
pele correspondem cabelos, em geral negros, olhos, em geral, escuros e
braquicefalia. Do outrora chamado «mulato» brasileiro, especifique-se que a sua
pele é parda mais ou menos escura — do pardo ao amarelo (nº 20 ao nº 30 da
escala de Von Luschan) — os olhos escuros, e que é mesocéfalo. Do «mameluco»
— expressão crescentemente arcaica, em face do alastramento de sentido da
palavra moreno — pormenoriza-se que se apresenta de pele entre parda e amarela
(do nº 20 ao nº 30 da escala Von Luschan), cabelos negros, olhos escuros, e que é
braquicéfalo. Do negro — outra expressão quase obsoleta no Brasil para designar
tipo étnico — se esclareça que sua pele mais ou menos negra — como pele de
subtipo cromático brasileiro (vai do nº 30 ao n.
9
36 da escala de Von Luschan) —
que seus olhos são escuros, seus cabelos escuros e é braquicéfalo. Compreende-se
que com a predominância estatística, entre os brasileiros atuais, dos de pele ou
aparência morena — parda, parda amarelada, amarela, preta — de cabelos e de
olhos escuros, de braquicefalia, se possa falar no brasileiro como um tipo nacional
de homem predominantemente — embora de modo algum exclusivamente: são
numerosos os brasileiros brancos, alvos, albinos, quando muito apenas amorenados
pelo sol — moreno, havendo algum apoio antropológico para o uso amplo,
elástico, do qualificativo moreno para incluir os vários graus da escala de Von
Luschan: do nº 10 ao 36. Compreende-se, mais, que, com essa extensão do
qualificativo moreno para o homem brasileiro mais típico, quer preto, quer apenas
trigueiro,
GILBERTO FREYRE
ou somente amarelo, esteja a desenvolver-se, inconscientemente, no Brasil uma
como mística de morenidade — com o indivíduo moreno de côr amarelada
dominante em algumas áreas do país — que se opõe, de modo sociologicamente
significativo, a místicas de exclusividade racial: a da negritude e a de branquitude
como expressões específicas de raça ou de etnia pura. Morenidade ou
morenitude.
O Homem brasileiro apresenta-se atualmente, no maior número de casos, um
homem antes baixo do que alto e antes moreno amarelado do que rosado, antes
magro do que redondamente encorpado, sem que tais característicos signifiquem
inferioridade de físico ou de biótipo. É um homem, em casos também numerosos,
mestiço, ou miscigenado, em vários graus de mestiçagem ou de miscigenação sem
que nos seja preciso nos desculparmos dessa condição crescentemente meta-racial
de grande parte da população nacional, perante populações que ainda se ufanem de
ser etnicamente puras e pretendam associar essa suposta pureza a pretensões de
positiva superioridade de sua cultura nacional. O mestiço já não é considerado
uma vergonha para a humanidade mas, ao contrário, por alguns observadores
idóneos — H. G. "Wells foi um deles, Boas foi outro — a antecipação de uma
humanidade que venha a ser menos dividida, do que até agora, pelas chamadas
fronteiras étnicas.
Ao Professor Arnold Toynbee impressionou o que lhe pareceu o aspecto
favorável no grande experimento brasileiro da miscigenação. Em seu contato com
o Brasil, deu êle ao autor destes comentários, a honra de uma visita, durante a qual
este e outros assuntos foram considerados. O Professor Toynbee não vê solução
mais satisfatória para os problemas de conflito entre grupos étnicos que a
miscigenação: a solução brasileira. Solução ampliada da portuguesa, embora
eruditos britânicos de menor porte que o Professor Toynbee, como o Professor
Boxer, talvez desorientados no seu saber histórico por atualíssimas influências
para-politicas, pretendam negar aos portugueses essa constante no seu com-
portamento: constante outrora tão censurada nos mesmos portugueses por outros
Boxers.
Mais do que qualquer outra das grandes populações nacionais modernas, a
população do Brasil de formação principalmente portuguesa, é uma população
miscigenada, com caucasoides e negroides presentes nessa comistão, sem que lhe
tenham faltado ameríndios e sem que lhe falte, há meio século, o sangue japonês.
Mesmo assim, a presença européia, nessa população, vai até 62%. Muito menos
que os 80% que se fazem notar na população da Costa Rica, que os 90% que
avultam na população uruguaia ou os 97% que sobressaem da população argen-
tina, porém superior, como percentagem, ao que é atualmente essa mesma
presença, em qualquer outra população latino americana. Por outro lado, depois do
Panamá, é no Brasil que a presença africana mais avulta como percentagem de
população nacional na América Latina: 11%. Sabe-se, entretanto, que, no século
XVI. o número de negros foi maior, no México, que o de europeus, tendo se
reduzido a menos de 1%, absorvido
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
pela numerosa população mestiça dessa grande república hispânica da América,
onde os europeus são, atualmente, apenas 15% da população, os ameríndios, 29%
e os mestiços — inclusive os descendentes de negros diluídos em mestiços —
55%. A superioridade da cultura mexicana sobre outras culturas latino-americanas
talvez decorra dessa assimilação de sangues e de valores negros africanos que
terão enriquecido os valores ameríndios e europeus.
Da população brasileira, tão miscigenada em várias das subregiões do país, a
mais miscigenada é a do Nordeste, estudada em São Paulo, num grupo
considerado típico de nordestinos, e pelos mais modernos métodos de análise
nesse setor, pelos geneticistas D. F. Roberts e R. W- Hiorns. Calculam eles a
composição desse nordestino típico como sendo 65% portuguesa, 25% africana e
9% ameríndia. Dão conta de sua pesquisa no trabalho «Methods of Analysis of a
Hybrid Popu-lation» (Human Biology, vol. 37, nº 1 (1965). É precisamente este o
subtipo que antropólogos como o autor destes comentários, desde 1937, e Bastos
de Ávila, em livro publicado em 1959, e intitulado Antropologia Física, e. mais
recentemente, Mestre Froes da Fonseca, à base de observações diretas da situação
nordestina, vêm considerando mais estabilizado como subtipo biossocial
brasileiro, embora a todos os três repugne a ideia de haver uma «raça brasileira»
propriamente dita.
Com o êxodo, que, na década 50, chegou a ser impressionante, de nordestinos
para o Centro-Sul — nordestinos típicos e na idade biológica mais vigorosa —
dessa presença de brasileiros grandemente miscigenados em sua situação biológica
e profundamente telúricos em sua condição ecológica — muitos deles,
apresentando-se mais da coloração amarela do que da parda — entre populações,
como as do Centro-Sul, desde o início da Segunda Grande Guerra, quase estáticas
como populações predominantemente caucasoides ou brancas, vem resultando
alterações nada insignificantes, nessa aparente uniformidade albina, à qual se vem
sobrepondo não pouca, embora moderada nos seus graus mais extra-europeus, de
melanização. Se de tal êxodo se pode dizer que vem representando para o Nordeste
um rapto de alguns dos seus melhores elementos biológicos, ou biossociais, por
outro lado, essa migração interna vem pondo, mais uma vez, o brasileiro do
Nordeste em função pan-brasileira como elemento biológica e culturalmente
unificador ou mediador entre expressões extremamente diferenciadas do Homem
do Brasil. Função exercida outrora pelo mesmo nordestino com relação à gente
demasiadamente ameríndia do extremo Norte: gente que, com a considerável
presença nordestina na Amazónia nos grandes dias da borracha. abrasileirou-se em
consequência de acréscimos ao seu número e de alterações às suas predominâncias
de forma e de côr recebidas desses seus já miscigenados compatriotas. Alterações
biológicas a que corresponderam modificações culturais e psicoculturais: as gentes
amazônicas foram, naqueles dias, culturalmente enriquecidas de valores euro-
africa-nos que contribuíram para sua integração, desde então assegurada —
GILBERTO FREYRE
embora necessitada agora de intensificação e de ampliação — ao todo biológico e
cultural caracteristicamente brasileiro. À sociedade brasileira. Ã cultura pan-
brasileira. É uma integração já iniciada que precisa apenas de ser ampliada e
aprofundada.
Abrasileiramento semelhante repita-se que vem se verificando, nos últimos
anos, em certas sub-áreas do Centro-Sul, caracterizadas pela predominância, nas
suas populações e nas suas culturas, de elementos neo-brasileiros.
Abrasileiramento através da já referida presença nordestina, representada
principalmente pelos já referidos machos na flor da vida: homens, muitos deles,
antes eugênicos que cacogênicos, a despeito das anedotas em torno dos por vezes
tão caricaturados «cabeças chatas» ou «paus de arara» ou «amarelos de Goiana».
Nessas sub-áreas, não poucos nordestinos têm unido à função biológica, de
desvirginadores da pureza racial neo-européia, a cultural, de transmissores, a neo-
brasileiros, daqueles usos, daquelas vivências, daquelas experiências,
característicos da sua já longa integração no Brasil. Ao mesmo tempo, alguns
desses nordestinos têm absorvido, de neo-brasileiros, valores e usos suscetiveis de
ser abrasileirados com vantagem para aquele processo de desenvolvimento meta-
racial e, até certo ponto, multicultural, do qual pode-se esperar que venha a
emergir um Homem complexa e plenamente brasileiro, ao mesmo tempo singular
e plural em sua brasileiridade e na sua generalizada, mas não exclusiva,
morenidade .
Estará esse homem como que ecologicamente ideal, agora apenas emergente,
se aprofundando noutras regiões, além da nordestina e de sub-áreas do Centro-Sul
e do Sul, na sua adaptação à ecologia dos espaços que vem ocupando, da natureza
que vem explorando, dos ambientes totais com que vem convivendo? Pode-se
talvez responder que. sob certos aspectos, sim — considerado o Homem brasileiro
como um tipo sociologicamente weberiano de «tipo ideal» — e admitidas
exceções importantes ao que seja sua relativa normalidade de desenvolvimento
ecológico.
Sua natalidade é, atualmente, das mais altas. Sua média de vida vem se
elevando e, diminuindo a excessiva e humilhante percentagem. de indivíduos de
menos de vinte anos na sua população. Suas vitórias sobre a malária vêm se
acentuando, embora, por outro lado, a esquisto-somose continui a degradar grande
parte das águas, outrora saudáveis, do espaço brasileiro mais ligado à presença
humana; e à degradação das águas venha sucedendo a degradação física de
numerosos brasileiros das populações ribeirinhas. Consequências da poluição de
águas que com a do ar é atualmente um problema universal e não apenas
brasileiro.
Hábitos de alimentação e de recreação, métodos e facilidades de educação e
de higiene, quer pessoal, quer pública, vêm — aspectos positivos — nos últimos
decénios, concorrendo para que se aprofunde, no Brasil, aquela adaptação do
homem ao seu meio ou ambiente sem prejuízo de sua civilidade ou da sua
europeidade: civilidade no sentido de vir
O BRASILEIRO COMO TIPO NACIONAL DE HOMEM SITUADO NO TRÓPICO
sua cultura mais civilizada — a de origem europeia — porém não antitelúrica,
ganhando extensão sobre áreas outrora asperamente rústicas e de subculturas não
só telúricas como arcaicas; agrária e pastorilmente arcaicas. Processo de extensão
de formas civilizadas de cultura a áreas menos acessíveis a essa penetração que se
deve à crescente intercomunicação física e cultural entre extremos — os rústicos e
os urbanos — até há pouco tão física e social e culturalmente distanciados uns dos
outros
_ por novas técnicas de transporte e de comunicação. Técnicas tão
importantes num país da extensão do Brasil.
Insista-se, porém, a propósito dessa extensão de formas civilizadas de
cultura, que ela não vem sistematicamente implicando — nem precisa de implicar
— em repúdio às formas telúricas de uma cultura ecologicamente brasileira.
Semelhante repúdio seria desvantajoso à definição de uma cultura brasileira em
termos de autenticidade ecológica. Como ecologicamente brasileira. Sem essa
cultura autenticamente ecológica dificilmente se poderá conceber um homem
genuinamente brasileiro. Ou um tipo efetivamente nacional de homem brasileiro.
(6) Veja-se, do autor destes comentários, o livro, publicado em Lisboa em 1967 com o título
Homem, Cultura e Tempo, o qual reúne traduções — não de todo exemplares como tradução: trabalho
português de Lisboa — de alguns dos seus trabalhos publicados originariamente nas línguas inglesa e
francesa. Entre eles, a sua conferência na Universidade de Sussex, sobre o fator racial na política
contemporânea, e o mais longo «Mistura de raças e interpenetração de culturas: o exemplo brasileiro
no espaço e no tempo». O último é tradução do «basic paper» apresentado, em língua inglesa, por
solicitação da Organização das Nações Unidas, ao seminário internacional sobre «apartheid» reunido
era 1966.
Veja-se também, do autor, seu parecer, escrito por solicitação da Organização das Nações Unidas,
sobre a situação racial na União Sul-Africana comparada com a dos Estados Unidos e a do Brasil e as
possibilidades de redução nestas e noutras áreas de conflitos e tensões interraciais. Esse trabalho se
intitula em francês «Elimination des conflicts et tensions entre les deux raccs. Methodes employés dans
divers pays, notamment ceux ou les conditions se reprochent de plus de la situatioin dans 1'Union Sud-
Africaine.Étude prepare par le Professeur Gilberto Freyre A/AC. 70/3 25 Aôut 1954.»
D. João VI
— Miniatura Interpretativa —
PEDRO CALMON
ILHO da princesa do Brasil D. Maria e do Infante D. Pedro, irmão de D.
José I — sobrinho e tio — nasceu D. João em 13 de maio de 1767. A
esperança, a flor, a glória da família era o primo-gêmito do casal, D. José, sete
anos mais velho, a quem Pombal tratava como Richelieu tratou, na menoridade,
Luís XIII — como o esclarecido príncipe que o ajudaria a esmagar a camarilha.
A camarilha compunha-se dos retrógrados — que não lhe perdoavam o
extermínio da nobreza, agravado pelo racionalismo: tinha um ponto provável de
apoio — D. Maria; uma hipótese remota de retorno: D. João. A ela opôs Pombal o
complicado projeto de substituir, na sucessão do rei D. José, a filha beata pelo neto
florescente. Seria o meio de continuar, depois da morte do rei, a política ilustrada.
Completar-se-ia com o casamento de D. José II com uma princesa de França, o
que equivaleria a desbaratar, com uma só cartada, três partidos: o absolutista da
aliança de Espanha, o conservador da aliança inglesa, o vingativo, da restauração
religiosa.
Saiu-lhe o jogo às avessas.
Recuou D. José I no leito de morte da ideia de deserdar a filha: e esta, mal
subiu ao trono, se libertou do ministro. Em 1788, por fim, desapareceu da cena o
luminoso rapaz que parecia destinado a reformar o Reino com o espírito, a
coragem, a irreverência, senão o ceticismo do século. Não sucumbiu à varíola.
Dela se curou, com muitas pintas na cara gorda, o irmão, D. João — que seria o
VI do nome.
Até aí lhe correra a vida feliz e negligente.
Não lhe deram uma educação razoável; deram-lhe uma formação artística.
Como não precisava saber o que pensavam os sábios, ensinaram-lhe o que
compunham os músicos.
Em vez de o acamaradarem com os filósofos — meteram-no com os frades.
Ao Príncipe herdeiro abria Pombal as portas do século das luzes. A este,
segundo, e manso, retiveram cativos no século XVIII.
F
PEDRO CALMON
O Destino pregou-lhe a peça de o casar sem a sua vontade, de o aclamar
contra a sua vontade, de o manter nessas perigosas alturas a despeito de uma
formidável, insistente, inédita coligação de vontades contrária. Casaram-no aos 17
anos com uma menina de dez.
Foi em 1785.
Sucessor da coroa em 1788, a desordem mental da mãe — perseguida de
terrores místicos — quatro anos depois lhe entregou as rédeas do poder. Melhor é
dizer, o timão do batel acossado pelas iras do mar, pois vários testemunhos afinam
nesta comparação espavorida: a nau portuguesa ameaçava dar nas pedras,
desgovernada e frágil!
Não o consultaram em nenhum dos transes decisivos: sobre as inclinações do
seu caráter, sobre as preferências do seu coração, sobre os escrúpulos de sua
timidez.
Exatamente o que há de involuntário na sua biografia a torna paradoxal;
porque lhe harmoniza as contradições numa discreta unidade de prudência,
introspecção e astúcia; em face de uma geração de titãs. um farrapo de autoridade.
Os titãs são os homens de «93».
Titãs jacobinos e titãs ingleses.
Assiste-se à gestação dos dois impérios, o que a revolução cria em terra, o
que o comércio cria no mar; em meio disso — a decadência humilhada da
tradição. Os seus campeões — os fracos reis que fizeram fraca a forte gente...
Até 1799 resiste à necessidade de usar o título de Príncipe Regente.
Resiste a tudo. Aos franceses, unindo-se a espanhóis e ingleses; a estes e
àqueles, protelando, enganando, subornando; aos afrancesados e anglicanizados
que conspiram; à intriga fértil que lhe entrou em casa, intriga dos adiantados, que
o queriam liberal, dos retardados, que o queriam divino; intriga dos que achavam
melhor a regência máscula da mulher do que a regência tíbia do marido; intriga
dos ambiciosos e dos pusilânimes; mais abaixo, nas camadas populares, a mofa, o
desprezo, o medo; o medo de que a pátria, perdida na África com o rei Quixote, se
perdesse em Portugal com o rei Sancho.
Nessa paisagem — em que se movimentavam os gigantes — imobiliza-se o
moço, escondido em Mafra. Abúlico, melomaníaco, atrasado — era como um
simulacro de soberania que dançava, à guitarra:
Nós temos um rei Chamado
João Faz o que lhe mandam
Comem o que lhe dão, E vai
para Mafra Cantar cantochão
Desconheciam-no.
D. JOÃO VI
Começou a revelar-se sem que o suspeitassem. Tomando o leme, quando os
outros se preparavam para abandonar o barco. Com o secreto heroísmo de quem
não quer, não pode, não deve errar. Percebe que o erro consistia, não nos mapas da
navegação, que lhe apontam os escolhos, mas no seu destino encoberto. A imagem
é de um de seus «homens». «Cito a V. S. estas observações (diz Silvestre Pinheiro
Ferreiro) para que por elas possa avaliar a verdade do que por vezes lhe tenho
escrito sobre a finura de tato que o mesmo Senhor possui na justa determinação do
ponto cardeal sobre que versa qualquer questão». Os estadistas divergiam: com
José Seabra, com Araújo e Azevedo, com Ponte de Lima, levariam a nau Sena
acima, a Paris. Com Rodrigo de Souza Coutinho — a levariam a Londres. E êle a
ancorava em Lisboa.
O seu esforço, de 1795 em diante foi para manter ali fundeada a velha nau
portuguesa.
Antigamente os reis confiavam o poder a ministros que os ofuscavam.
Foram reis enérgicos, que pegavam o touro à unha, como era costume na
casa de Bragança.
D. João — que preferia a missa cantada ao exercício violento — não confiou
a outro marquês de Pombal a sua insegurança e a sua timidez. Em lugar de um
secretário maior de todos, serviu-se de vários, que discordavam entre si. Não os
abateu depois de servido; dividiu-os. Não tendo facções, em que a opinião se
manifestasse, resumiu-se nas correntes que aqueles homens encarnavam. Ainda
não se falava em partido. Mas utilizou — manejando-os — a técnica que se
aplicaria aos partidos. Introduziu no regime que se desmantelava o rodízio (filosó-
fico) — que antedata a alternativa (política).
Cultivou essas tendências, como um general organiza as suas reservas. Teve-
as à disposição, na hora certa: o homem para convencer a França, o homem para
apaziguar a Espanha, o homem para satisfazer a Inglaterra; enfim, o seu homem.
Com a circunstância de ser o galiparla um bacharel, o hispanizante um
aristocrata, o inglesado um mercador.
Mudou de processo, como tinha mudado de conduta.
Já que não podia continuar a guerra à república francesa (a guerra equívoca
do Roussillon) — negociou a paz. Vendeu-a (a ingleses e espanhóis em 1793)
pelo preço de ocasião, a beligerência; comprou-a (a espanhóis e franceses em
1795) pelo preço da bolsa, a neutralidade.
Vendeu-a com as armas, que invadiram a França; comprou-a com os
diamantes, com que subornou o Diretório de Paris. O gosto de negociar, gastando
o seu encaixe, em vez de brigar (o que sacrificaria o resto) marca-lhe o gênio
manhoso e paciente. Recolhe as tropas e despacha os pagadores. O «Avançado»
Araújo distribui em Paris os diamantes. Convence o Diretório; a Assembleia dos
Quinhentos recusa-
PEDRO CALMON
lhe o tratado. 16 milhões, promete D. João à França, como um subsidio. É muito
para a sua avareza, é pouco para a sua tranquilidade. Acomoda a Espanha com
afagos e promessas. Quando, de acordo com a França, Godoy e seus 60 mil
homens investem Olivença, entalado entre a liga franco-espanhola de um lado e a
protetora invasão inglesa do outro lado, aceita a luta para salvar a face; termina-a
para salvar o trono. Atira para a fronteira um exército; mas — refreando-lhe os
ardores — quem o chefia é o duque de Lafões, que tem 83 anos.
O irônico Lafões, numa frase irônica, definiu a situação: os dois governos
eram como duas ozêmolas, espicaçadas por seus almocreves, de um lado a França,
de outro lado a Inglaterra. Que tangessem os guisos; mas, por Deus, não se
fizessem mal.
A pequena «Guerra das laranjas» acabou com as que Godoy mandou a Carlos
IV, à guisa de troféu: que as colheu, no lindo laranjal de Olivença. Selada a paz —
para a França enviou D. João o homem do diálogo; o faustoso morgado de Mateus,
que casara com madame de Flahaut, amante de Talleyrand, amiga de Josefina, essa
flamante «madame de Sousa» que privou nas Tulherias. Diante da corte nova — a
de Bonaparte — o Regente aparece dissimulado e inofensivo, que os generais do
império, Lannes, com uma zoada de esporas, Junot, com uma desenvoltura de
palavra, assustam, oprimem, inutilizam. Imaginam que a sua duplicidade é
renúncia. Que lhe desarticulariam o território, como se fosse um dos Estados
feudais do centro da Europa; e poderia Napoleão compensar, e recompensar, com
os bocados de Portugal a princesa da Etruria. . . e Godoy. Junot fêz-lhe o retrato de
D. João a vésperas da batalha de Austerlitz.
Estavam ambos de bom humor.
— Que impressão lhe causara o Príncipe Regente de Portugal? — Junot falou
por si e por sua mulher, a radiosa Laura, mais inteligente do que êle. — «Stupide
d'abord. Et quant à la laideur. . . Votre majésté pourra peut-être en juger par le
portcait que ma femme en a fait en deux mots, et qui sont du reste fort justes. Elle
dit que le prince du Brésit ressemble à un taureau dont la mère autait eu un
régard d'un orang-outang».
Riram com estrondo.
Chorou Napoleão, em Santa Helena, essa alegria imprudente.
O seu valente sabreur deveria ter dito: — uma raposa espiava naqueles olhos
bovinos.
Vão os heróis prever o que os espera!
O triunfo estupendo de Austerlitz anulou-se com a invasão da península
ibérica. O que Napoleão ganhou, entrando em Viena, perdeu ocupando a Espanha.
Dominou a Europa tendo como reféns os reis, inclusive o dúbio Carlos IV: virou a
maré — quando lhe fugiu D. João,
D. JOÃO VI
na mais audaz, na mais imprevista, na mais importante opção da História moderna.
Sem se deixar bater e prender na guerra impossível, salvou na sua frota os
tesouros, os arquivos, a fina flor da Nação — pondo entre êle e o conquistador o
oceano; com a promessa de responder-lhe — erguendo o grito do império que ia
fundar! Este exatamente o seu segredo; o que ocultava («stupide d'abord») na
inércia sonsa; fingindo-se desamparado, à mercê do inimigo — e de trato com os
ingleses para lhe garantirem a retirada.
De pai a filho, a ideia da retirada se constituíra, na dinastia, uma espécie de
talismã, receitado para as crises agudas.
A primeira notícia desse plano é do padre Vieira, contando a confidência de
D. João IV. Quando, em 1762, correu perigo a independência do pais — Pombal
já tinha pronta, no Tejo, a armada que transportaria a corte para o Belém do Pará.
Vez por outra, os conselheiros do Príncipe Regente lhe lembravam o último
recurso. Mas a resolução formidável foi sua. Tomou-a com firmeza e a executou
implacàvelmcnte. Em poucos dias — dias terríveis de novembro de 1807 —
embarcou, com os seus pertences, os seus valores, os seus papéis. maciçamente —
o Estado, atrás da família reinante, 15 mil pessoas. Numa transmigração sem
precedente; ou cujos precedentes os padres. no púlpito, e José da Silva Lisboa,
foram buscar na fábula, ou na Bíblia.
Os oradores sacros compararam-no a Enéias, carregando o reino às costas; o
economista comparou-o a Moisés, guiando, através do deserto, o seu povo.
Ambas as imagens no seu exagero traduzem o mesmo espanto; sobretudo o
mesmo contraste —• entre a desventura da véspera e esse amanhecer romântico.
Aquilo do «império» em revide à «usurpação»; Portugal recolhido às suas
duas linhas de defesa, a serra de onde baixaram as milícias, a América, que lhe
hospedou a monarquia; em lugar de um país que se entrega — uma civilização
que se expande . . .
Note-se que a corrida de Junot a Lisboa, para capturar o Príncipe antes que
se fizesse ao mar, no xadrez napoleônico, era a jogada fulminante. Eliminou-lhe
os cavalos, suprimiu-lhe as torres, agarrou-lhe os bispos; sem rei nem rainha
caiu no vácuo.
«C'est ce qui m'a perd— reconhece Napoleão no Memorial de Santa
Helena.
Foi o que o salvou — proclama D. João chegando à Bahia sem ministros que
o aconselhassem nem embaixadores que o coagissem; senhor de si; os pés
assentados com alívio na terra, — respirando com volúpia a liberdade.
Transfigurou-se, popular, autoritário, expedito, clarividente. De uma penada —
ouvindo a sugestão lúcida de José da Silva Lisboa — abriu os portos ao comércio
internacional. Aí, o governo era êle. Continuou a ser êle, no Rio de Janeiro,
ocupado
PEDRO CALMON
freneticamente com a montagem do Estado nestes doces climas, angló-filo
enquanto foi necessário, resistindo à Inglaterra quando foi possível; a princípio D.
Rodrigo e seu homem, depois, de novo, Araújo; alternando os ministros (e as
correntes); hábil, otimista, sistemático. Enganar-se-ia, quem procurasse na Quinta
da Boa Vista o Regente assustado de Mafra. Lá estava o soberano que construía o
seu império com a administração forte, com a diplomacia elástica, até com os
tambores de guerra!.. . De Pradt acertou; «si le passage du Roi nºavait eu lieu, le
Portugal perdrait le Brésil de deux manières», tomado pelos ingleses ou libertado
pelos brasileiros. D. João duplamente o ganhou; na integridade (territorial) e na
continuidade (histórica) .
«Imperial Sistema», chama-lhe José da Silva Lisboa.
Na Histoire du Brésil, impressa em 1815, conclui Adolphe de Beauchamp,
que este país seria breve um império.
Foi primeiro Reino Unido (como a Inglaterra).
Sabemos que a novidade — em que subia a colônia antiga ao nível da
metrópole recuperada, não mais o principado do Brasil, que vinha de 1645, mas o
Reino do Brasil unido ao de Portugal, numa coroa, duas nações — lhe foi sugerida
por seus agentes ao Congresso, que organizou a paz depois da queda de Napoleão.
Aconselhara-lhes Talleyrand; que, com isso, potência de primeira grandeza, desde
que nominalmente incorporava os vastos territórios da América (como o tzar da
Rússia incorporara todas as Rússias) — poderia Portugal pleitear com alta voz o
direito, o que só podia pedir em, vozes modestas. Não deixou passar a
oportunidade. Correspondia além disso à sua política americana.
O foragido governo de 1807, batido, e banido, passara a conquistador, em
1808, conquistando Caiena com as suas armas do Pará. Levaria ao Prata as do Rio
Grande do Sul em 1812, se os ingleses nisso consentissem. Já não era o mesmo
Príncipe timorato que perdera Olivença. Era o malicioso interventor nos países
vizinhos. Os liberais de Buenos Aires começam por invejar o Brasil, comercial-
mente independente. A memória de los hacendados, de Mariano Moreno (1810)
— que se apoia no exemplo brasileiro — foi publicada no Rio por José da Silva
Lisboa. Formam o partido carlotista: que pleiteia a regência da princesa Carlota
Joaquina, enquanto estivesse impedido Fernando VII. Parece que D. João acede,
colabora. incentiva; de fato, proibe — que a mulher para lá se transporte; dá-lhe
um competidor, o genro, também espanhol, D. Pedro Carlos de Bourbon. Finge
submeter-se ao que quer o almirante Sidney Smith, resolvido a proteger as
ambições da princesa; acaba fechando-lhe a porta. É um joguete nas mãos de lord
Strangford, que, depois de lhe extorquir o tratado leonino (de 1810), o obrigou a
retirar o exército que «pacificaria» Montevideu (1812). Mas obtém do rei de
Inglaterra que o chame, quando — abusando de seu poderio — o embaixador
pretende forçá-lo a voltar a Lisboa.
D. JOÃO VI
Rebenta-lhe o senso de autoridade, que na conversa diplomática se veste de
ironia e sagacidade.
Conta na correspondência para Stocolmo o ministro sueco (Kontzow) que e
Núncio, monsenhor Caleppi — o prelado tenaz, que escapara em Lisboa aos
franceses, numa fuga novelesca, para continuar representando o Papa junto do
Príncipe — tentou arduamente convencê-lo a rejeitar a cláusula do tratado inglês
que autorizava houvesse cemitério protestante: o cemitério da Gamboa. Em vão.
Apelou monsenhor Caleppi para um argumento novo. A própria Inglaterra, ao que
estava informado, não fazia muita questão disso. Objetou-lhe: o pensamento inglês
era transmitido, na sua corte, pelo embaixador inglês. Cada um, na órbita que lhe
competia... Não se limitou a mandar embora Strangford — depois de lhe obedecer
tantos anos. Fêz vir do Reino a Divisão dos Vonluntários Reais, com que ocupou a
Cisplatina em 1816 e a anexou (pelo voto prudente das localidades) em 1820.
Nas perplexidades dessa era de 20 — disse-se que Palmela era o relógio
adiantado, Tomás António de Vila Nova Portugal o atrasado, D. João VI o
relógio parado.
É uma sátira, que está longe de ser um julgamento.
A sua perspicácia consistiu em sobrepor ao episódico (a revolução liberal) o
permanente (a continuação histórica) . Para que se conservasse em 1821, aqui o
deixou.
Deixou-o de missão traçada.
É o que lhe lembra o filho em 19 de junho de 1822: «se o Brasil se separar,
que seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses
aventureiros». Em verdade (isto é o essencial) — o império estabelecera-se. Para
impedir que fosse revogado — desfe chou-se a Independência.
Proclamou-a José Bonifácio de Andrada e Silva, em 26 de janeiro de 1822,
inaugurando a revolução patriótica. «Quando este país foi esbulhado do benéfico
fundador do Império Brasileiro, o Senhor D. João VI, nosso Rei Constitucional, os
menos perspicazes em política viram no seu regresso para Portugal o
complemento dos projetos que alguns facciosos tinham dantemão secretamente
urdido, para o conservarem debaixo do seu jugo...» A Independência fêz-se —
para que não perdesse a qualidade de Reino, que gozava desde 1815; com o chefe
de Estado no país (D. Pedro) e não na Europa; Unido, talvez: subordinado,
nunca!...
O que o velho Andrada asseverou em nome dos Paulistas «e todos os seus
filhos e netos, que habitam a populosa e rica província de Minas Gerais, o Rio
Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso..«... Queremos ser irmãos, e irmãos
inteiros, e não seus escravos>. E Gonçalves Ledo (que capitaneava na
maçonaria e nas ruas o
PEDRO CALMON
radicalismo): «... o Brasil quer ter o mesmo Rei, mas não quer Senhores nos
Deputados do Congresso de Lisboa: o Brasil quer a sua independência».
O rei velho teria morrido no Brasil (entre a Quinta da Boa Vista e a de Santa
Cruz) se as Cortes de Lisboa não o compelissem a voltar.
Saíra à força da Europa; à força saiu da América.
E quando teve de assinar o tratado que reconhecia o império. reservou ainda
para si o título de imperador. .. Era honorífico, mas nem por isso deixou de coroar-
lhe a biografia. Encerrou-a com o testamento em que ao primogênito (imperador
do Brasil) assegurava a legítima sucessão da outra coroa; que desprezara em 1822,
para «ficar» na terra adotiva; a coroa de Portugal!
Podia ser absurdo.
Arredava a pretensão agressivamente posta pelo segundo filho, o Infante D.
Miguel — a essa sucessão tempestuosa. Ao absolutista — que era o candidato de
Carlota Joaquina — preferiu nos segredos da consciência, no recôndito da
intimidade, nas angústias do epílogo, o constitucional. Preferiu-o com o
pensamento fixado na união; o seu derradeiro tributo à ideia obsessiva — do
«império». .. Finou-se como titular simbólico desse «império» diluído nas brumas
do passado e do poema. . . Diriam que fora um fraco, um hesitante, um vago rei.
Nas suas Memórias, dele só se recorda Metternich (assoberbado pelos problemas
da «sucessão») — para resmungar, grande favor lhe faria não tendo morrido...
Todavia, de todos os reis que lá reinaram, era o único' que se assinava, «imperador
do Brasil e rei de Portugal»!
A exorbitância dissolve-se em utopia. Lenda contra lenda, ante-põe-se à que
se formou literariamente, enxertada nas correntes inversas, dos liberais em
Portugal à cata do «príncipe perfeito», que fosse forte, dos liberais do Brasil, atrás
do monarca ausente, que fosse o instrumento da vontade legislativa. A caricatura
acentuou-lhe os defeitos. A História custou a discernir-lhe os serviços. À medida
que diminuiu na crítica escarninha da geração encabeçada por Oliveira Martins,
cresceu, na séria análise da geração representada por Oliveira Lima.
Em 1908 (note-se bem) como que ressurgiu das profundezas em que o
lançara o preconceito perempto; ressurgiu envolto nas lestas e nas palavras que
celebraram o centenário da abertura dos portos; com o livro em que afinal se lhe
fazia o retrato de corpo inteiro, «D. João VI no Brasil»; e a Exposição Nacional —
que foi como a revisão do século de soberania e desenvolvimento, nos pavilhões
artísticos da Praia Vermelha.
O centenário foi-lhe especialmente propício: porque, sem lhe abrir o
processo, fêz melhor, abriu-lhe os arquivos. O bicentenário
D. JOÃO VI
o nascimento já se comemorou em atmosfera serena: com o aditivo da estátua.
Tinha o busto, à sombra das palmeiras do Jardim Botânico. Mandou-nos
Portugal o monumento, para a beira do cais: o belo bronze mal localizado; em que
se sente prolongar-se o verso grandioso de Fernando Pessoa. ..
Quem o diria?
A menos poética das vidas privilegiadas representa-se, não como a
descreveram os cronistas esmiuçando casos, mas como a imaginou Fernando
Pessoa, esculpindo na estrofe, como se cinzelasse o mármore, o mármore eterno
dos padrões náuticos, o Infante. . .
«Aos pés o mar novo e as mortas eras
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.»
O Rio de Janeiro nos Séculos XVI e XVII
Formação e Evolução Social
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
história social de uma unidade qualquer principia pela verificação de quais
são os elementos humanos que lhe dão ser e lhe fazem a movimentação para
explicá-la e realizá-la. No caso do Rio de Janeiro, por isso mesmo, deveremos
começar pela verificação de quais foram esses elementos e de como se
coordenaram e viveram promovendo a elaboração da sociedade carioca e fazendo-
a funcionar através das idades e no exercício de todas aquelas imensas ações
criadoras que as caracterizam e definem, no tempo e no espaço.
Sendo assim, esse princípio terá de ser aquele do exame de quem, realmente,
era o senhor da terra à altura do conflito que portugueses e franceses mantiveram
na disputa do espaço, visando ambos ao exercício de uma soberania e à fundação
de um poder político que seria a raiz do poder econômico que, em última
instância, era o motor de toda a façanha expansionista e colonial.
Ora, esse elemento inicial foi o gentio, o Tamoyo, que se aliou ao francês e
criou a primeira dificuldade na grande disputa militar. Os cronistas franceses
falam deles com certa simpatia — o padre André de Thevet e Jean de Lery.
Ambos nô-lo descrevem nos ardores guerreiros que os distinguiam e de que deram
excelente demonstração no fragor da luta em que se empenharam servindo aos
seus aliados de França, mas nô-lo descrevem também nos vários motivos
culturais, que lhes davam as características fundamentais — seus usos e costumes,
a língua que falavam, suas instituições, sua dieta alimentar, suas atividades ordi-
nárias no particular da criação dos bens de uso imediato, sua posse efetiva do meio
físico, com que estavam identificados e de que se valiam penetrantemente, como
dominador que não encontrava embaraços e sabia da terra nos seus variados
segredos.
Vivendo pelas ilhas da Guanabara, ou na terra firme do continente,
espalhando-se pelo sertão interior, os Tamoyos não apresentavam, no entanto,
qualquer particularidade cultural que os fizesse com relevo maior que os outros
grupos indígenas que se distribuiam ao longo da vasta costa brasileira. Eram,
como aqueles, tribais. Não haviam, também,
A
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
construído impérios. Suas instituições políticas, simplíssimas. Suas técnicas de
vida não lhes tinham assegurado uma superioridade nem lhes haviam permitido
singularizarem-se em manifestações artísticas, espirituais, como ocorreria com
grupos no Marajó, pela Amazônia interior ou mesmo em outros trechos do Brasil
que nascia para o mundo do mercantilismo .
Vieram depois os franceses. Protestantes e católicos. Homens que se atiravam
sem medo à empresa da formação de um império no período em que ainda não se
fortificara a ideia imperial entre os seus co-nacionais. Participavam de uma
aventura. Como eram e o que os distinguia dos outros povos da Europa? Um
historiador canadense, Leonel Groul, em livro admirável, que intitulou «La
naissance d'une race», utilizando materiais recolhidos por Suite e por Salone, entre
outros, procedeu ao levantamento da contribuição francesa nos primórdios de sua
pátria, identiticando-a no quantitativo, províncias francesas de onde havia
imigrado, nas técnicas de vida que a distinguia na França para explicar-lhe os
procedimentos na empresa da colonização do São Lourenço. Será possível fazer o
mesmo no tocante aos franceses que vieram para a empresa do Rio de Janeiro?
O historiador da façanha foi Paul Gaffarel, em «Histoire du Bresil Français».
O historiador era uma das mais autorizadas autoridades no particular do
empreendimento colonial francês nos séculos XVI e XVII. Sua obra se não é das
mais copiosas vale porque é cheia de autenticidade, porque elaborada à vista das
melhores fontes arquivais. Cabe aqui a pergunta — que nos dirá êle a respeito?
Será conveniente recordar que a colónia a fundar-se seria uma espécie de
refugio dos protestantes, que se sentiam frustrados em suas atividades religiosas, o
que lhes dava, ademais, a condição de meio marginais na sociedade francesa de
então. Lembro-me que, uma feita, com minha mulher, visitei, em Genebra, o
parque da cidade. Logo à entrada, deparou-se-nos, num paredão de pedra branca,
um grupo de figuras que marcaram o calvinismo naquela cidade — todos em
tamanho natural. Calvino era a figura central. Ao seu lado, figurava Villegaignon,
o «Rei da América», como lhe chamavam, o que importava em reconhecer-lhe
aquela qualidade religiosa e atribuir-lhe o pensamento ou o propósito de fazer o
Rio de Janeiro na base da imigração dos protestantes franceses. Certo?
O pensamento oficial foi, evidentemente, este. O Chefe da operação estaria
porém, fiel a esse desígnio. E teria sido possível executá-la como projetada? Não é
do propósito desta aula o exame do tema que estará atribuído. O que cabe aqui
recordar é que, na empresa marítima, comercial à distância e nas tentativas, meio
medrosas, de estabelecer os primeiros núcleos político-econômicos na África e nas
Américas, os franceses, que tinham a iniciativa, eram normandos e bretões. Estes é
que mantinham a tradição, a que se viriam juntar os marselheses. Villegaig-
O Rio DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
non iria buscar, entre eles, os companheiros para a aventura perigosa, distante,
rodeada de incertezas? Para a navegação atlântica, eles foram mobilizados. Para o
empreendimento colonial, não.
Não dispomos de documentação que permita o conhecimento das regiões que
nos deram a primeira contribuição europeia no Rio de Janeiro que despontaria em
breve. Sabemos, todavia, que, sem ter conseguido, entre protestantes e católicos, a
ressonância que imaginara, Ville-gaignon viu-se forçado a aceitar a participação
de elementos desclassificados, aventureiros, gente de má qualidade, que cansara
de suas desventuras na pátria e se dispunha a tentar êxito noutros pedaços do
mundo desconhecido. Mas nem esses mesmos eram quantitativamente expressi-
vos. O Almirante obteve de Henrique II a autorização para abastecer-se nas
prisões de Paris e Ruão. E foi o que fêz. Quando se dirigiu à Guanabara, nos dois
barcos em que viria fazer a conquista, o número dos que o acompanhavam não ia
além de seiscentas pessoas, se é que os algarismos de Gafarei estão exatos. Diz êle
textualmente — «Prés de six-cents personnes étaient à bord des deux navires.» E
destas, duzentas eram tripulantes. Não vinham casais. O quadro, portanto, não
parecia saudável, tendo em vista o plano de colonização. A estes pioneiros, viriam
juntar-se, posteriormente, novos contingentes, trazidos por Bois Le Conte e do
qual constavam já mulheres, cinco moças, apenas aquelas, as primeiras que
chegavam para compor o primeiro estoque étnico, que daria os passos iniciais para
a elaboração de uma sociedade de estrutura francesa como era o desejo de
Villegaignon.
Desta vez, ano de 1556, os colonos e marujos das três embarcações da
expedição somavam 290. Não haviam sido recrutados nas prisões. As instruções
visavam à obtenção de pessoal com qualificação técnica, para os que fazeres mais
imediatos da organização da colônia. Figuravam no contingente quatorze
genebrinos que haviam cedido à divulgação entusiástica que se fizera visando-se à
conquista de mão-de-obra mais rentável. Entre eles, um futuro cronista da
aventura, o nosso muito conhecido e estimado Jean de Lery, que nos daria, com o
descritivo da Guanabara, a história da empresa e nos faria o primeiro retrato da
sociedade francesa e mestiça que pretendera, um dia, criar, nestas bandas do
Atlântico, uma nova França, como se fazia no São Lourenço e nas Antilhas.
A história dessa experiência social francesa acaba aqui. Porque, pouco
depois, esses franceses seriam vencidos pelas forças luso-brasi-leiras, pondo-se
fim à tentativa da França Antártica. Que dela teria resultado, do ponto de vista
social? Recordemos que os colonos eram solteiros. Teriam de ligar-se às mulheres
da terra, com elas procriando e dando origem a um primeiro contingente de
mestiços de que, no entanto, não se aperceberam quantos vêm estudando a
constituição da sociedade brasileira nas suas raízes, portanto nesses momentos
iniciais de sua elaboração quase subterrânea. Tal como sucederia em outros pontos
do
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
litoral brasileiro, nesses contatos fugidios entre franceses, ingleses e mesmo
portugueses, que não vinham para permanecer, pois que estavam de passagem ou
em tráfico mercantil rápido e quase clandestino.
A presença portuguesa, com novos contingentes indígenas, que não eram
Tupinambás, mas Temiminós, trazidos do Espírito Santo, ou Carijós, trazidos da
costa paulista, presença portuguesa, juntamente com mestiços do processo
amoroso verificado no Nordeste, essa é que iria consolidar um domínio político e,
com êle, alicerçar-se na base de uma vida social intensa, que é o fundamento mais
distante e mais autêntico da sociedade carioca.
A presença portuguesa principiou em 1560, com os companheiros de Mem de
Sá e revigorou-se com as demais expedições que vieram, ora diretamente de
Portugal ora foram constituídas na própria colónia brasileira. A princípio eram
soldados que desembarcavam para as refregas militares visando à expulsão do
intruso francês. Os contingentes que chegavam do próprio Brasil vinham do
Nordeste, insista-se. A essas levas iniciais seguir-se-iam as que, com o espaçar do
tempo, estabeleceriam o relacionamento da nova unidade que se construía no Rio e
permitiria, desde o início, a consolidação do domínio soberano, uma vez que o
hiato que existia entre sul e norte desaparecia, passando o Rio, mesmo no
nascedouro, a exercer o grande papel de elemento essencial na argamassagem do
sistema de unidade que explica o Brasil nas suas características continentais.
A história social do Rio de Janeiro tem, assim, suas páginas mais
permanentes desde então. Será momento para lembrar que, com os que
comandaram a campanha contra os franceses, estavam homens de prol, com vida e
experiência de outras Capitanias. O ambiente físico do Rio e possivelmente a
novidade da conquista levaram muitos desses elementos de prol a se radicarem na
Guanabara, obtendo as sesmarias que seriam o elo de fortificação da permanência
e da estabilidade. Os engenhos e as demais culturas de menor porte, mas
essenciais à segurança alimentar local, serviram a essa estabilidade.
Cada barco que chegava, trazendo a mercadoria para o tráfico à distância,
deve trazer também novos povoadores. São unidades mínimas, seguramente, mas
nem por isso devem ser ignoradas como contribuição demográfica, mão-de-obra,
decisão para vencer, força nova para a conquista efetiva do solo e êxito humano
sobre a natureza paradisíaca que todos, enfeitiçados por ela, não se cansam de
admirar, embevecidos, dominados pelo vigor de uma paisagem infinitamente bela.
As notícias sobre essas entradas ou contingentes demográficos são escassas. Pelas
sesmarias que se vão concedendo, tem-se uma ideia de que o Rio desperta
interesse, é provocante.
Ainda há pouco, no retrato cheio de substância, que nos deu Joaquim
Veríssimo Serrão, que examinou todo o material disponível para
O RIO DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
sabermos dos primeiros tempos do Rio de Janeiro, há a confissão de que os
subsídios, para uma notícia mais pormenorizada, mais cheia, mais rica
particularidades ou detalhes, minúcias, são escassíssimos. Em nenhum historiador
carioca ou que se tenha ocupado dos primeiros dias desta maravilhosa cidade de
São Sebastião, encontramos elementos que nos elucidem. Temos de permanecer
adstritos a dados parcos, que, no entanto, autorizam afirmar que o Rio exercia já
um papel ponderável na vida do ultramar sul-americano. A posição geográfica e a
nova de que a terra reagia bem às experiências de sua utilização agrícola cons-
tituíam motivação para explicar esse papel de que nunca se despojou.
Leiam-se as informações jesuísticas, os descritivos de Pero de Magalhães
Gandavo, de Fernão Carim, de Gabriel Soares de Souza e em todos eles o que se
pode colher com certeza é essa importância que o Rio vai adquirindo. Até fins do
século XVI, em trinta e cinco anos de vida, portanto, já estão instalados na cidade
e cercanias, na área propriamente urbana e na rural, que não seria distante do que
era o centro urbano, mais de 150 vizinhos, o que, pelo número de integrantes de
qualquer família ao tempo, autoriza a conclusão simplista de que esses 150
vizinhos equivaleriam a mais de 500 habitantes. As Capitanias vizinhas não
apresentam o mesmo crescimento, vegetativo ou não. A mão-de-obra escrava
africana não parece, no entanto, ter existência numerosa. Os engenhos ainda não
se contavam em número de modo a exigir o braço negro abundante.
Elysio de Oliveira Belchior e Carlos Reingantz, nos livros admiráveis de
pesquisa que são «Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro» e «Primeiras
Famílias do Rio de Janeiro», proporcionam um inventário minucioso sobre a
existência e as características da sociedade carioca em formação. Há portugueses
do Reino, portugueses já nascidos no Brasil, mestiços, estrangeiros, em particular
espanhóis.
Povoadores, conquistadores e primeiras famílias que se constituem no lar
carioca representam o estoque étnico que dá lastro e assegurará a continuidade do
meio social, conformando-lhe a estrutura e autorizando a elaboração de uma
história que será a grande história da vida brasileira pelo papel relevante que o Rio
de Janeiro vai desempenhar incessantemente. Esses conquistadores, povoadores e
primeiras famílias compõem a expressão inicial de uma dramática, representada
no esforço por criar uma cidade, realizar uma façanha política de domínio, e não
apenas de posse passageira, e vencer o meio físico, sobrepondo-se a êle sem
deixar de admirá-lo como paisagem paradisíaca que é realmente, mas dele
retirando todo aquele imenso subsídio que permitirá, com a vitória, a criação de
um novo ambiente, aquele em que a força de execução humana se efetiva pela
decisão de criar e pela energia com que cria. Porque, efetivamente, desde os
primeiros momentos, o Rio de Janeiro vai ser uma empresa difícil, mas de que a
sociedade que nele se organiza não sente temores, antes enfrenta com ímpeto. O
homem carioca, com a
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
cooperação dos outros homens da colônia em evolução rápida, vai domar o espaço
— sobre o pântano, sobre a montanha, sobre o mar, vai construir o seu centro de
comando de um vasto hinterland que conquista e incorpora ao espaço imperial
português.
Ao findar o século XVI, o Rio não é mais uma orla de mar, ponto de refresco
de armadas que demandem o sul ou ponto de apoio para a operação de resguardo
do ultramar sul-americano de cepa portuguesa. O Rio já começa a possuir ou a
escrever o seu destino como centro político — a organização administrativa que se
lhe vai dando, a preferência para que seja, provisoriamente embora, a sede do
governo do sul, o crescimento menos vagaroso que reflete a existência de motivos
atraentes, que não eram apenas os da paisagem física. A cidade cresce pela várzea,
descendo do morro inicial; o sertão próximo cede aos canaviais que darão a
matéria-prima para o primeiro comércio mais ativo nas relações com o Reino.
Como área demográfica, os algarismos, tão dificilmente conseguidos na pobreza
da documentação da época, falam por si — são moradores em número maior de
um milhar. Das Capitanias vizinhas haviam chegado, para integrar-se na sociedade
que se forma, cerca de 40 a 50 chefes de clãs, registra Veríssimo Serrão,
aquinhoados com datas de terra que utilizam prontamente face a dispositivo que
impunha esse aproveita-meno no prazo de um ano, findo o qual perderia o
sesmeiro a concessão autorizada. As chácaras abriam-se aqui e ali, apurou Vieira
Fazenda, o benemérito historiador das Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro.
Os nomes das ruas que se vão abrindo são os nomes dos moradores mais
importantes ou que chegaram primeiro. É esse costume velho que se encontra
espalhado e respeitado por todo esse continente Brasil no período da soberania de
Portugal. Foi assim, por exemplo, na minha minúscula Manáus nos seus dias
iniciais.
O Comércio que o Rio efetua com as Capitanias do Norte, do Sul, com o Rio
da Prata, com Angola e com o Reino toma vulto. Há intensa atividade económica
que significa capacidade e ação dinâmica dos moradores — frutas europeias, além
das frutas regionais, peixes, madeiras, óleos de peixe, farinhas, de grande fama na
África, constituem pequena amostragem do que se produzia e confirmava os
créditos que todos haviam aberto ao Rio. Um comércio autorizado e um comércio
clandestino, com estrangeiros, já entrava nos hábitos locais. As rendas estímam-se
em 2.005$000, com despesa atribuída à defesa, fisco e clero.
A população não se constitui apenas de sesmeiros e servidores do Estado.
Há, igualmente, artesão, pequenos comerciantes, sitiantes de menor porte,
pescadores, trabalhadores que são profissionais de pequena monta, tôda enfim a
gama humana que dá vitalidade a qualquer centro urbano, por minúsculo que seja.
Um médico, e enfermaria mantida pelos religiosos, são garantia à saúde, embora
não se registrem epidemias ou enfermidades que ponham em perigo a estabilidade
do continente habitacional. As Religiões estão representadas não apenas em
igrejas, ermi-
O RIO DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
das mas em pequenos conventos que agasalham e onde se recolhem as
experiências sociais de então. Festividades religiosas começam a dar uma vida
menos agreste ao burgo. O Rio cresce. Civiliza-se? É esse panorama rápido da
cidade que todos amamos ao encerrar-se a décima centúria.
Não cessa, no século XVII, o caminhar do Rio de Janeiro. Sua sociedade vai
assumir papel de maior relevo, afirmando-se como conduta altiva e como decisão
para crescer, multiplicar-se e realizar-se. Seu ímpeto, nesse particular, é decisivo e
reflete a existência de uma consciência poderosa a importar em manifestação de
independência e de ambição, necessária em toda empresa progressista.
Recordemos, inicialmente, que nessa centúria o Rio, aos olhos do poder
central, representado na autoridade que decide de Lisboa, seja o Conselho
Ultramarino, seja o Monarca, assume proporções especiais. E tanto assim que,
logo em 1608, passa a ter governo distinto do governo da Bahia. Não lhe é
subordinado. Em 1619, no Regimento expedido ao Governador dão-se-lhe
poderes mais amplos que os atribuídos aos seus antecessores e, como tal, nesses
poderes concedendo-se-lhe mais a capacidade de decisão e maiores competências.
Em 1641, esses poderes e competência são ampliados pela decisão de que
administre o sul da colônia, que se amplia na sua base física e exige atenções
particulares para que, nessa ampliação de espaço, não se comprometam as
relações entre as Coroas Ibéricas, mas, também, não se perturbem, negativamente,
os interesses da própria colónia no particular do seu crescimento físico e, portanto,
político, social e económico. Ao Ouvidor, em 1647 conce-dem-se poderes
maiores. Em 1648, o Governador, que no momento é Salvador Correia de Sá,
recebe a incumbência ainda maior — exercício de administração sobre Angola,
que vai reconquistar, com a contribuição humana do Rio. Nesse mesmo ano de
1684, o Rio recebe a comprovação de sua importância com a criação de Bispado e
designação de primeiro Bispo. É certo que em 1669 houvera uma diminuição da
importância político-administrativa com uma passageira subordinação à Bahia. Já,
porém, em 1689, essa sujeição deixava de existir, inclusive com poderes especiais
ao governante do Rio.
Outras ocorrências asseguram ao Rio a projeção que vai alcançando e são
elementos a apreciar quando se procura compreender o processo de evolução
social da cidade. É que não se restringindo a sua ação criadora à área natural de
sua séde, alcança os territórios vizinhos, levando-lhes seiva ou dando-lhes o
próprio sêr através de fundações e fixação de novos núcleos que enriquecem a
região — Cabo Frio, Angra dos Reis, Magé, Macacu, Inhomirim, Meriti, Tinguá,
Lagoa de Maricá, Paquera. O litoral da Capitania recebe a contribuição de
povoadores que asseguram a soberania em exercício, defendendo a costa das
incursões de estrangeiros ousados, como sejam franceses, que não se conformam
com
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
a perda da batalha, e holandeses que tentam também não apenas comércio
clandestino, mas a montagem de feitorias clandestinas.
A seiva carioca estua na ajuda militar para a expulsão dos holandeses do
Espírito Santo e na contribuição para as jornadas de recuperação da Bahia. Luta
em Pernambuco. Mais; é-lhe ordenada, e essa ordem recebe cumprimento
imediato, a fundação de um núcleo no Prata, para fixação mais distante da
fronteira, a Colônia do Sacramento. A operação, da mais alta significação política,
resulta em sucesso imediato, seguido do início de conflito de que ainda hoje, a
certos aspectos, sentimos os efeitos e que vai levar a ocupação do Rio Grande de
São Pedro, o Continente, para onde o Rio exportava soldados, colonos e mulheres
como contribuição para o povoamento do extremo-sul.
Ê nessa fase que o Rio principia a sua gigantesca função de porta do sertão
interior, justamente aquele sertão onde se descobre o ouro. Como porta do sertão,
seu porto será frequentado incessante, progressiva e intensamente pelas frotas de
um comércio de proporções ponderáveis para o abastecimento da nova área
econômica, que se incorpora e sobre que também vai exercer jurisdição. A
chegada de imigrantes de Portugal, que se instalam na cidade, vai intensificar-se.
Pelo caminho das minas, haverá a corrida ao mundo maravilhoso do metal
cobiçado. A cidade crescerá. O comércio tomará proporções jamais imaginadas
para tanta rapidez. Do morro inicial, a cidade espraiar-se-á pela várzea, cobrindo
uma área sempre em crescente, que já vai à Lagoa Rodrigo de Freitas, passando
pelo Flamengo, por Botafogo, pelo Catete, em direção a Tijuca e Jacarepaguá, ou
toma a direção interior e atingirá, ainda nessa centúria, o Andaraí, Irajá, Inhaúma,
São Cristovão, Engenho Velho e Engenho de Dentro. A caminhada em direção à
montanha será outra faixa de atração.
Numa sociedade em rápida transformação ou em enriquecimento quantitativo
e qualitativo como a do Rio de Janeiro, será natural a constatação das
irregularidades criadas pela novidade de seu crescimento e de uma conjuntura
meio revolucionária por tantas razões. As denúncias que se comunicam às
atitoridades locais ou do Reino são constantes e envolvem pessoas de prol. As
devassas repetem-se. O escândalo do contrato das baleias é um dos mais
comentados. Os incidentes entre as autoridades, a propósito das respectivas
jurisdições, amiúdam-se. Qualquer providência mais enérgica provoca reações. Os
Prelados não conseguem o aplauso da coletividade que devem organizar e
governar como autoridades religiosas de maior escalão. Quase todos exerceram
suas obrigações provocando a exaltação popular. Dois deles morrem envenenados.
Três tiveram de fugir à violência de seus jurisdicionados. Um outro teve a
residência incendiada. A Câmara, com quase todos eles, manteve questões. A
mesma Câmara enfrentou desmandos de Governadores e de autoridades inferiores.
A soldadesca, expedida da Europa para a guarnição da cidade, mais de uma vez
provocou a censura
O RIO DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
pública e a reclamação à autoridade superior pelo comportamento irre-gular que
exibia. À imposição de impostos mais elevados, ocorria o protesto coletivo, de
que se infere a existência de um alto grau de emotividade pública e um estado de
espírito sensível na defesa dos interesses considerados no seu aspecto mais geral,
de interesses coletivos. A própria justiça não esteve ausente dessa nervosidade que
tanto marcou a psicologia do Rio de Janeiro nessa centúria de formação e de
estabilização social e não pode ser considerada como uma turbulência própria de
uma sociedade sem freios. Um Ouvidor, em 1631 aos choques com o Governador,
foi por êle mandado encarcerar, o que motivou protesto e providência para
libertação do magistrado.
É possível que em tudo isso, que tanta característica assegura à psicologia
carioca, a se elaborar com certa velocidade, numa sociedade que não se eternizava
em atitudes estáticas mas, por efeito de seu intenso enriquecimento, dada a
incorporação constante, de elementos estranhos, que valiam como um subsídio
ético e étnico constante, dinamizava-se sem cessar, é possível que em tudo isso,
dizíamos, já houvesse o despontar de um dos traços mais vivos do carioca, que,
insista-se, não compunha ainda sociedade integrada totalmente, mas sociedade
que se elaborava nervosa, agitada e intensamente, justamente aquele traço
vivíssimo e permanente de seu amor a uma liberdade sem limitações. E tanto
assim, que foi no mesmo Rio de Janeiro que, em 1660, o povo em tumulto, em
distúrbio, falam assim os relatos contemporâneos, depôs seu primeiro magistrado,
o Governador Salvador Corrêa de Sá e Benevides, do clã dos Sás, que tanto se
havia distinguido desde os primeiros dias da terra carioca e, de certo modo,
constituía património local. Depôs o seu primeiro magistrado e aclamou condutor
ou administrador da coisa pública um dos que estavam à frente dos sucessos e era
figura de pro-jeção no meio social e político regional.
Para encerrar esse capítulo da insurgência ou do fervor cívico do Rio, será de
todo propósito registrar que, em 1654, completando sua decisão de afirmar-se, a
Câmara nomeou Procurador no Reino para defesa do que seria a sua causa
legítima, isto é, toda aquela soma de assuntos que diziam respeito à coletividade.
Ora, uma coletividade que em menos de duzentos anos de vida sabia decidir de
seus destinos com tanta altivez e tanta dignidade, como crescera e como se
distinguia das demais coletividades que compunham a paisagem social do Brasil
colônia? A sociedade carioca, que realiza uma atividade de tamanhas proporções,
muito além de suas próprias energias, de que se compunha a essa altura?
Os Índios Tamoios, Temiminós, Carijós, como outros grupos dispersos pelo
interior, eram agora uma contribuição mínima. Já não pesavam, para o cômputo
da população, não tendo participação no quadro demográfico da cidade. A
contribuição africana, representada pelos escravos que chegavam para os
empreendimentos económicos, em particular a cultura canavieira e a fabricação de
açúcar, essa era já expressiva. O mer-
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
cado de mão de obra funcionava em crescente e no século seguinte iria ter maior
importância pela necessidade de braços para o negócio das minas. As guarnições
que chegavam do Reino valiam como contribuição poderosa. Porque, na
generalidade, a soldadesca, findo o prazo do serviço na tropa, permanecia na terra,
enfeitiçada por ela ou seduzida pelas possibilidades de enriquecimento ou de
melhoria considerável de vida sobre a que vivera anteriormente no Reino. Ilhéus,
madeirenses e açorianos, seja na condição de soldados, seja na de colonos,
emigrados desde os primeiros momentos como trabalhadores especializados para
as técnicas da produção de açúcar ou simples colonos desejosos de um pedaço de
espaço para o exercício de sua capacidade, também estavam aportando no Rio.
Os algarismos que representam toda essa contribuição não são algarismos
muito elevados, nem de fácil exame, pela exiguidade de dados que nos permitam
conhecê-los devidamente. Quantos seriam? E o processo de mestiçagem, como
ocorreria? Não temos elementos para a resposta. O que se pode afirmar é que a
cidade crescia no demográfico intensamente.
A passagem ao Brasil não era fácil. Exigia-se passaporte autoriza-tivo. Em
especial, para os emigrantes de Viana e Minho, justamente os que mais
procuravam o Rio para nele fixar-se. Por isso mesmo, já fora solicitado, pelo
Bispo, providência às autoridades reinóis, visando a evitar que se dificultasse a
imigração e autorizando-a ou garantindo-se, aos que deixavam a tropa, o direito de
ficar no Rio.
A sociedade carioca, assim realizada ou integrada, sobressaltava-se de
quando em vez pelos crimes que a abalavam. Os assassínios eram constantes. A
documentação existente é mais ou menos abundante e nos indica um quadro muito
desagradável nesse particular. Como nos fala também das devassas costumeiras,
que deixavam sob reservas homens respeitáveis, autoridades, simples colonos de
menor categoria.
Pelo rendimento da Fazenda Real, em 1700, poder-se-á ter um retrato da
riqueza da cidade — 57:304$769. A despesa era esta: de cará-ter geral,
26:168$670; com a guarnição, 39:308$800 num total portanto, de 65:477,470. Em
1686, o rendimento somara 16:876$666 para uma despesa de 10:074$180. Vencia
o Governador, pelos gráficos relativos a 1693, de ordenado, 400$000; o Alcaide-
mór, 126$000; o Secretário do Governo, 100$000 de emolumentos; o Alcáide-mór
da cidade, 800$000; o Ouvidor, 550$000; os Vereadores da Câmara, 16$000; o
Provedor e Juiz da Alfândega, 800$000.
Em 1700, no entanto, a situação era precária. Alegavam os moradores, com o
aplauso das autoridades, que em nenhum momento se haviam escusado de
contribuir para atender às necessidades do Estado, inclusive aqueles que decorriam
de obrigações assumidas no terreno internacional. Enquanto, exemplificavam, a
propósito da paz com a Holanda, as demais Capitanias deixavam de pagar a sua
contribuição em
O RIO DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
dia o Rio assumira o compromisso e o executava, mesmo com a imposição de
dízimas de alfândega, de que estava isenta mas que sugerira lhe fosse cobrada. E
com energia diziam ao Monarca — «por cujas circunstâncias se fazem dignos de
maior atenção para não serem mais oprimidos». E pleiteavam tratamento mais de
acordo com seu procedimento tão efetivo e tão digno.
Já havia, então, médico do Estado. A Misericórdia atendia aos enfermos e
recebia favores oficiais para que vivesse sem atropelos. As Ordens Religiosas,
representadas pelos Jesuítas, Carmelitas, Franciscanos, Beneditinos, possuíam os
seus hospícios. Irmandades das várias igrejas e capelas recrutavam, na sociedade,
os seus integrantes. Eram poderosas e defendiam valentemente os privilégios e
mercês de que se haviam beneficiado. Contavam-se ainda integrantes das três
Ordens Militares do Reino. Pretendiam tratamento especial, inclusive isenção de
impostos para o que produzissem em suas propriedades agrícolas. Os
recolhimentos também funcionavam. Um, destinado às mulheres honestas da
cidade, fora iniciativa coroada de sucesso, em 1694. proposta pela Câmara
Municipal. S. Majestade autorizara, condicionando o estabelecimento a que «nele
se não recebam mais que até trinta pessoas órfãs e não as que tiverem pai, que
sejam honestas e que as raparigas que ficarem desamparadas e tiverem dote para
casarem se possam aceitar no recolhimento e estar nele até a idade de 25 anos e
quando não vivam honestamente ou sejam inquietas sejam logo despedidas.»
A Mesa do Espírito Santo dos Homens de Negócio do Rio, em atividade
esclarecedora e na defesa dos interesses de seus componentes, coordenava os
profissionais que faziam o comércio. Defendia-lhes as causas. Fazia as vezes dos
sindicatos patronais de nossos dias. Era, desse modo, uma peça atuante no
contexto social da época. Falava linguagem clara, positiva, argumentando com
segurança na defesa do que podia representar o negócio de seus associados e eram
muitas vezes autênticos privilégios.
E por falar em privilégios, estes eram alegados ou eram pleiteados
continuadamente. Desejava-se, assim, criar e manter uma sociedade de classe,
cheia de reservas que importavam em compôr-se de elementos que se
distanciavam e distinguiam entre si num arremedo de nobreza, senão profissional,
pelo menos com uma feição pessoal específica. Os que recebiam hábitos das
Ordens Militares compunham uma espécie de casta. Os oficiais da Câmara de
Vereadores haviam obtido em 9 de outubro de 1644, um privilégio, amplo do tipo
do que fora concedido aos cidadãos do Pôrto. Êsse privilégio fora mantido em 19
de novembro de 1645. Mais: os oficiais de Ordenanças, a 7 de Setembro de 1697,
haviam conseguido receber os privilégios concedidos aos Auxiliares do Reino. A
Santa Casa de Misericórdia gozava dos privilégios atribuídos, por lei, à congênere
de Lisboa.
O grande privilégio, no entanto, já fora outorgado a todos os cidadãos da
grande cidade da Guanabara. A 14 de Outubro de 1670, D. Pe-
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
dro de Portugal reconhecia aos habitantes do Rio de Janeiro os privilégios
centenários, datando de 1490, atribuídos aos cidadãos da velha cidade do Porto.
Estes privilégios haviam sido expedidos por D. João IV, em sinal de
reconhecimento pela lealdade do comportamento dos moradores do Rio na
conjuntura muito grave da Restauração. Concedidos a 10 de Fevereiro de 1642,
seriam confirmados, nos princípios do século seguinte, a 7 de janeiro de 1709 pelo
Rei D. João V.
De que constavam tais privilégios? Por eles: não poderiam ser submetidos a
tormentos, podiam usar armas, seus criados e mais subordinados ficavam isentos
do serviço militar, não sofriam penhor nos próprios bens, assegurados, ademais,
em liberdades amplas, semelhantes às de que gozavam os «infanções» e ricos
homens.
Outro privilégio veio, ainda neste século XVII, pela carta régia de 6 de Junho
de 1647, dando ao Rio o título de Leal e determinando que a Câmara da cidade
substituísse o Governador da Capitania em suas ausências e impedimentos. Tais
Governadores, em 1697, passaram a chamar-se Capitães-Generais, o que
importava em categoria muito maior e portanto reconhecendo-se, ao Rio, a
importância que se assegurára por toda sua vida tão intensa e no bem comum.
A importância do Rio de Janeiro, no decorrer do século XVII, não decorre
apenas de sua situação geográfica. Toda uma história de ação construtiva e de alta
manifestação cívica fora escrita por seus habitantes. O credenciamento perante os
homens do poder em Lisboa vinha desse conjunto de gestos e de atitudes. O Rio
sagrará-se, não unicamente uma cidade-centro política ativo, mas um centro social
em plena ebulição.
A história do Rio de Janeiro tem encontrado, em alguns distritos de sua
existência, historiadores e cronistas cheios do calor humano, necessário para
compreendermos sua posição no quadro da vida nacional. Quero referir-me, para
as duas centurias e mesmo para as demais, a dois nomes que devem ser estimados
pela interpretação saudável que deram a acontecimentos dessa natureza Vivaldo
Coaracy e Miran de Barros Latif, aquele com o «Rio de Janeiro no século XVII», e
este com «Uma Cidade nos Trópicos». Em ambos, a interpretação do fenômeno
carioca como fenômeno social está admiravelmente proposto. Se é certo que
Coaracy fêz um registro cronológico de fatos, sendo de recordar que anteriormente
havia examinado, em artigo em «O Estado de São Paulo», o assunto não na forma
cronológica, mas pelo ângulo dos temas e dos lances característicos, nem por isso
pode ser inferiorizado. Porque realmente, na cronologia carioca do século XVII,
há igualmente uma análise dos sucessos valendo como explêndida contribuição
para o entendimento do que caracterizava o Rio, nos seus variados ângulos, como
integrante da Pátria em formação. Na «Cidade nos Trópicos», seguramente o
interpretativo é mais evidente, mais sensível, permitindo rapidamente a
consciencização do fenômeno carioca como energia criadora e como substância
social.
O Rio DE JANEIRO NOS SÉCULOS XVI E XVII
Em ambos, como em Baltazar da Silva Lisboa, Monsenhor Pizarro, Noronha
Santos, Felisbelo Freire, o Rio desperta para a vida naquela admirável atuação que
lhe assegura, no quadro das unidades que inte-gram a colônia, uma distinção. No
arquipélago brasileiro, seja no de natureza cultural, seja no de natureza
simplesmente psicológica, o Rio representa unidade distinta que só em nossos dias
começamos a com-preender no papel admirável que exerceu para construirmos a
nação. Sua expansão como cidade, como área de desenvolvimento em função de
um espaço maior, a que leva a sua contribuição, ajudando a criá-lo na disputa
imperial ou na disputa contra a natureza difícil, hostil, como força e energia que
assegura a integração interior de vasto sertão, que civiliza com sua diretiva política
ou sua participação social, humana, cultural, como mundo de convergência dos
vários Brasis que se formavam no continente que Portugal defendêra para seu
império ultramarino, mar-cando-lhe a personalidade, projeta-o para o futuro. O
pensamento de Nóbrega sobre o que o Rio representaria estava certo.
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ELÍSIO DE OLIVEIRA BELCHIOR — Conquistadores e Povoadores do Rio de
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AFRANIO PEIXOTO — Cartas Jesuíticas. Rio, 1933.
Doação da Biblioteca de D. Pedro II
HÉLIO VIANNA
M trabalho anterior, publicado no quinto número desta Revista, mostramos
como D. Pedro II, além de herdar livros pertencentes a seus pais, o Imperador
D. Pedro I e a Imperatriz D. Leopoldina, teve os adquiridos por seus dois Tutores,
mediante indicação do Preceptor e dos Professores que cuidaram de sua educação,
durante o período de sua Menoridade. Passando, depois de assumir efetivamente
suas funções majestáticas, em 1840, a organizar pessoalmente sua Biblioteca.
Nessa tarefa ininterruptamente se manteve até 1889, durante quase meio século,
tornando-a, sem dúvida, a maior e melhor do pais, pertencente a um particular, em
seu tempo.
Com a Proclamação da República, tendo de partir para o exílio, dela somente
levou dois volumes: a segunda edição dos Lusíadas, de 1572, em que há a
duvidosa declaração manuscrita: «Luiz de Camões seo dono», e um exemplar de
tradução francesa do Decameron, de Boccacio (1).
Deixou, portanto, no Rio de Janeiro, principalmente no Palácio de São
Cristóvão, em que nascera, na Quinta da Boa Vista, mas também no Paço da
Cidade, situado no Largo do Paço, logo denominado Praça Quinze de Novembro
(2), e em seu modesto Palácio de Verão, em
(1) Conforme bilhete de 15 de novembro de 1889, do Imperador ao Barão de Ramiz, por este
publicado, com nota de 29 de outubro de 1925, reproduzido em fac-simile na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, do Rio de Janeiro, tomo 98, segundo do ano de 1925, volume 152,
página 361. No mesmo ano oferecido o precioso exemplar dos Lusíadas, pelo ex-Principe do Grão-
Pará, D. Pedro de Alcântara de Orléans-Bragança, neto do Magnânimo, àquela instituição.
(2) Na relação dos objetos pertencentes à Família Imperial, em março de 1890, por ordem do
Ministro da Justiça, Manuel Ferraz de Campos Sales, removidos do Paço da Cidade para o de São
Cristóvão, por aquele enviada ao seu colega da pasta do Interior, então ainda Aristides Lobo, não
constam, propriamente, livros, porém «Diversos mapas». Não é de crer, entretanto, que lá não
existissem, antes de 15 de novembro de 1889. Inclusive os do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, lá sediado.
E
HÉLIO VIANNA
Petrópolis (3), muitos livros, mapas, etc, além de quadros, esculturas e outros
objetos de arte, cujo arrolamento vimos isolada e parcialmente fazendo, utilizando
documentos em grande parte procedentes ou ainda pertencentes à Família Imperial
do Brasil (4) .
PREOCUPAÇÕES COM A BIBLIOTECA PARTICULAR DE SUA MAJESTADE
O destino da Biblioteca e de outros bens pessoais do Imperador deposto,
constituiu imediata preocupação do próprio Chefe do primeiro Governo Provisório
da República, o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, conforme tivemos ocasião
de revelar: em ofício de 17 de novembro de 1889, dirigido ao Ministro da Justiça,
Manuel Ferraz de Campos Sales, depois também Presidente da República,
determinou: «Lembro-vos a conveniência de mandar bem guardar tudo o que
pertence e pertenceu ao Imperador, indagando se alguém, por parte de Sua
Majestade (5), tem zelado por isso, responsabilizando-o por tudo, e com
especialidade a Biblioteca» (6) .
Infelizmente, não foram exatamente cumpridas as determinações do
Marechal Deodoro. Sabe-se que muitos objetos foram roubados, nos primeiros
meses após a Proclamação do novo regime, nos Paços da Boa Vista e da Cidade,
antes que fossem devidamente arrolados, como prontamente acontecera no de
Petrópolis, os bens da Família Imperial, neles existentes. Até mesmo carruagens e
animais desapareceram, conforme posterior nota do punho do Conde d'Eu, em
poder de seu neto, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança. Roubos de
livros da Biblioteca Particular de D. Pedro II, foram expressamente mencionados
(7). A estes últimos assaltos atribui-se o suicídio, no início de 1890, do Ajudante
de Bibliotecário do Palácio de São Cristóvão, Inácio Augusto César Raposo, que
se atirou sob as rodas de um trem, próximo
(3) HÉLIO VIANNA — «Arrolamento do Palácio de Petrópolis, em novembro de 1889»,
trabalho ainda inédito. Nessa ocasião, ali se encontraram 830 volumes, encadernados e em brochura.
(4) Principalmente no boletim Cultura, do Conselho Federal de Cultura, do Rio de Janeiro: no
8, de fevereiro de 1968 — «As Belas-Artes nos Paços Imperiais»; nº 12, de junho de 1968 —
«Acréscimo às Belas-Artes nos Paços Imperiais»; nº 20, de fevereiro de 1969 — «Acervo artístico
imperial em 1891 enviado à França». Em Folhetins do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro; de 31 de
maio de 1968 — «Objetos de arte nos Palácios do Império»; de 29 de novembro de 1968: «Aquisições
artísticas de D. Pedro II»; de 6 de dezembro de 1968: «GIOTTO CRIANÇA, escultura comprada por D.
Pedro II»; de 13 de dezembro de 1968: «Quadro de Meissonier para D. Isabel».
(5) Note-se que Deodoro, respeitosamente, mantinha, quanto ao Imperador, mesmo depois de
proclamada a República, o tratamento a que tinha direito.
(6) Hélio Vianna — «Providências de 16 e 17 de novembro de 1889», Folhetim do Jornal do
Comércio, de 16 de junho de 1967. Transcrito na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, em 1970.
(7) Na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume Especial, em
Homenagem à Memória de D. Pedro II (Rio, 1894), págs. XCII/XCIII..
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
à vizinha estação ferroviária que servia à Quinta. Trágico aconteci-mento, que
muito impressionou ao Imperador, conforme registros constantes de seus Diários,
escritos entre 27 de março e 7 de agosto daquele ano (8).
O destino da Biblioteca de D. Pedro II naturalmente preocupou também a
este habitual «amigo dos livros», como a seus herdeiros. É o que se vê em uma
lista de recomendações e perguntas, pelo genro Conde d'Eu, a 26 de abril de 1890
da Europa feitas ao Advogado e Procurador da Família Imperial no Brasil,
Conselheiro José da Silva Costa, encarregado do Inventário da Imperatriz D.
Teresa Cristina Maria, desde 28 de dezembro de 1889 falecida na cidade do Porto.
A propósito, lê-se nesse documento, como tantos outros emprestados, para
que os aproveitássemos, pelo bisneto do Imperador, Príncipe Dom Pedro Gastão:
«Bibliotecas e Museus do Paço de São Cristóvão — Reclamá-los como
propriedade particular». Ao que respondeu Silva Costa, na metade da folha de
papel, para isso deixada em branco: «Conviria ver o que o Governo dá pelo Museu
Mineralógico e pela Biblioteca e hervários».
Quanto a estes, a nota seguinte explicava que os existentes no mesmo Palácio
estavam a cargo do botânico Glaziou, e alguns a êle pertenciam.
Quanto a certos livros e papéis que se encontravam no Palácio de Petrópolis,
já os havia pedido D. Pedro II ao Superintendente da Imperial Fazenda serrana,
Dr. José Calmon Nogueira Vale da Gama, filho do último Mordomo da Casa
Imperial, Visconde de Nogueira da Gama. Foram remetidos para a França, por
intermédio da casa Duvivier, de Marselha, com ordem para enviá-los a Cannes,
onde então residia o Imperador — informou Silva Costa.
Em «Aditamento» àquelas notas, ficou determinado o seguinte: «Está
entendido que também não devem ser vendidos os quadros, livros, nem quaisquer
outros objetos que sejam recordação de família, ou tenham valor artístico. Como o
Visconde de Nogueira da Gama, quando no cargo de Inventariante, requereu a
venda dos bens móveis, convirá que o Sr. Dr. Silva Costa vele para evitar ou
remediar qualquer venda de tais objetos, que infelizmente possa ter-se dado por
consentimento do respectivo Juiz».
ENTENDIMENTOS DE SILVA COSTA COM O MINISTRO DO
INTERIOR, CESÁRIO ALVIM
Não transcorriam sem dificuldades as relações dos membros do Governo
Provisório da República recém-implantada, com os representantes da Família
Imperial.
(8) HÉLIO VIANNA «Diários do exílio de D. Pedro II (1889/1891)», em D. Pedro I
e D. Pedro II Acréscimos às suas Biografias (São Paulo, 1966), págs. 267/268.
HÉLIO VIANNA
Assim, desde março de 1890, conforme já registramos em nota, por ordem do
Ministro da Justiça, Campos Sales, haviam sido transferidos para o Palácio de São
Cristóvão, os objetos a ela pertencentes, guardados no ex-Paço da Cidade, no qual
se pretendia instalar, como até hoje acontece, a antiga Repartição Geral dos
Telégrafos (9), agora pertencente ao Ministério das Comunicações.
Também desejando instalar no Palácio de São Cristóvão o futuro Congresso
Constituinte, mais fáceis foram os entendimentos a respeito, por serem amigos o
novo Ministro do Interior, José Cesário de Faria Alvim, e o Advogado e
Procurador, Conselheiro Silva Costa.
É o que demonstra um bilhete daquele a este, em papel do «Gabinete do
Ministro do Interior», nos seguintes termos:
«Costa
«Sendo urgentíssimo dar começo às obras no Paço de São
Cristóvão, destinadas ao Congresso, peço-te que te entendas com o
Engenheiro Dr. Andrade, encarregado desse serviço, para a remoção
dos objetos pertencentes à ex-Família Imperial, que se acham em
desabrigo nas varandas que circundam o pátio interno.
«Se julgares preciso, procura-me na Secretaria, onde me acho
todos os dias, ao meio-dia em ponto.
«Teu
«Cesário Alvim
«16-6-1890» (10).
No mesmo dia, ao Conselheiro Silva Costa, a propósito escreveu o referido
engenheiro, Eugênio de Andrade:
«Tendo sido, por S. Excia. o Sr. Ministro do Interior, encarregado
de adaptar o Palácio da Quinta da Boa Vista ao Congresso Legislativo
que deve reunir-se em 15 de novembro próximo, rogo a V. Excia. a
extrema fineza de providenciar para que sejam convenientemente
guardados os objetos que se acham nas varandas que circundam o pátio
interno do Palácio, e, bem assim, os que ocupam a sala contígua a essa
varanda. — «Diante da escassez de tempo para a conclusão de obras
grandes, com prazo fatal, sou levado a solicitar a boa vontade de V.
Excia., no sentido de me ser possível, com a máxima prontidão, dar
começo aos trabalhos preparatórios» (11).
(9) Hoje Empresa Bras
:
leira dos Correios e Telégrafos.
(10) Documentos pertencentes ao Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bra-gança,
gentilmente postos à nossa disposição.
(11) Idem.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
Tendo procurado o Ministro Cesário Alvim em seu Gabinete, sem
encontrá-lo, a 19 de junho escreveu-lhe Silva Costa, conforme minuta,
que guardou: «Fui, esta manhã, à Secretaria dos Negócios, hoje chama-
do ___ do Interior (12), para pessoalmente responder à amável carta
e escreveu-me, e da qual foi portador o Sr. Engenheiro Andrade. — Mas depois
de esperar algum tempo, retirei-me; porque os momentos correm-me como fio de
finíssimo ouro, sem duvidar que os seus instantes formam a corrente de claros
diamantes, mesmo porque você é da boa terra, onde eles regorgitam (13) . — Ia
falar-lhe sobre o assunto da sua estimada missiva. Desculpe que ainda vá tomar-
lhe alguns segundos da sua preciosa atenção com a leitura destas linhas e
disponha do — Amigo, obrigado e colega — Silva Costa» (14) .
PRETENSÃO DO MINISTRO BENJAMIN CONSTANT, DE DESAPROPRIAR A
BIBLIOTECA DO IMPERADOR
Essa atmosfera de cordialidade terminaria com a entrada em cena de outro
Ministro, o que havia sido alijado da pasta da Guerra para a esdrúxula e efêmera
da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, o Tenente-Coronel promovido a
General-de-Brigada, Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Antes de pronunciar-se a respeito, já se conheciam suas intenções, conforme
a seguinte carta, pela qual interessou-se o Museu Nacional por adquirir, da
Família Imperial, as «coleções científicas (mineralógicas, etnográficas, etc.)»,
existentes no Palácio de São Cristóvão. Nesse sentido, em papel da Diretoria
Geral do Museu, escreveu o respectivo titular, Dr. Ladislau Neto, a seguinte carta
ao Conselheiro Silva Costa:
«23 julho 1890
Ilimo. Sr. Conselheiro
«Vi por um dos jornais de hoje, que lhe vai ser entregue tudo
quanto se acha no Palácio da Boa Vista, e que tudo aquilo irá a leilão,
em breve. Eu oficiei a 19 do corrente, pedindo ao Ministro da Instrução
Pública a aquisição, para o Museu Nacional, das coleções científicas
(mineralógicas, etnográficas, etc.), e sei que está no espírito e no desejo
do Dr. Benjamin Constant o atender-me. Mas pode haver demora nas
ordens que houver êle de dar a esse respeito, e, por isso, escrevo a V.
Excia., enviando junto a cópia do meu ofício, pedindo a aquisição
supra-referida. Será possível sustar V. Excia. o que se referir a estas
coleções?» (15).
(12) Antes, do Reino; depois do Império; devendo ser, agora, da República,
pois não trata, apenas, do «Interior» do pais.
(13) Alusão ao fato de ser mineiro Cesário Alvim.
(14) Originais igualmente emprestados por Sua Alteza o Príncipe D. Pedro
Gastão.
(15) Idem.
HÉLIO VIANNA
À vista desta carta, não tardaria o aparecimento da arbitrária tentativa oficial
de compra dos «livros, manuscritos, obras, artefatos, todos os objetos, em suma»,
«pertencentes à ex-Casa Imperial» (sic), que oferecessem «interesse em benefício
da Pátria e da sociedade em geral». Fê-lo, em intempestivo ofício do Ministério da
Instrução Pública, Correios e Telégrafos, datado da «Capital Federal», 19 de
agosto de 1890, o respectivo titular, nos seguintes termos:
«Sr. Conselheiro Dr. José da Silva Costa
«Êste Ministério deliberou conservar para o Estado, mediante a
devida indenização, os livros, os manuscritos, as obras, os artefatos,
todos os objetos, em suma, que, existentes no Palácio de São Cristóvão
ou no antigo edifício do Senado (16) e relacionados como pertencentes
à ex-Casa Imperial, ofereçam interesse em benefício da Pátria e da
sociedade em geral.
«Trazendo ao vosso conhecimento a deliberação aludida, a qual o
Governo manterá com firmeza, convido-vos a assistirdes aos trabalhos
da Comissão por mim nomeada para examinar, escolher e indicar
aqueles objetos abrangidos nos intuitos que vos tenho exposto.
«Espero de vosso reconhecido zelo e não menor patriotismo que
não vos recusareis a isso; e previno-vos de que o funcionamento da
Comissão tem de começar desde sexta-feira próxima.
«Saúde e fraternidade.
(a) «Benjamin Constant» (17).
ALTIVA RESPOSTA DO CONSELHEIRO SILVA COSTA
Imediata, digna e categórica foi a resposta no dia seguinte dada ao Ministro
Benjamin Constant pelo Advogado e Procurador da Família Imperial, conforme a
seguinte minuta, que guardou:
«Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1890.
«Ilmo. e Exmo. Sr. General Benjamin Constant Botelho de
Magalhães.
«M. d. Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos —
-----------------------
(16) O antigo Palácio do Conde dos Arcos, hoje, depois de várias transformações,
sede da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ã Praça da
República, ex-da Aclamação.
(17) Original posto à nossa disposição por Sua Alteza o Príncipe D. Pedro Gastão.
Oficio do Ministro da Instrução Pública.
Correios e Telégrafos do primeiro Governo
Provisório da República, General-de-Brigada
Benjamin Constant Constant Botelho de
Magalhães a 19 de agôsôto de 1890 dirigido
ao Conselheiro Dr. José da Silva Cosat, Advo-
gado e Procurador da Família Imperial do
Brasil, comunicando a deliberação de
desapropriar «os livros, manuscritos, obras,
artefatos, etc», existentes no Palácio de São
Cristóvão e no edifício do antigo Senado, que
tivessem «interesse em benefício da Pátria e da
sociedade em geral.
Fac-símile do origina! pertencente ao
Príncipe D. Pedro Gastão de
Orléans-Bragança.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
«Recebi ontem, às 5 horas da tarde, duas comunicações por V.
Excia. firmadas no mesmo dia.
«Em uma delas, informou-me V. Excia. — «ter incumbido o
Engenheiro desse Ministério para, na presença da Comissão que V.
Excia. nomeou, avaliar os prédios, mobílias, utensilios e benfeitorias,
tanto da Fazenda de Santa Cruz como da Quinta da Boa Vista — que
tenham de ser adquiridas mediante inde-nização a quem de direito,
convidando-me a designar pessoa de minha confiança para hoje e
amanhã, em comum ou juntamente, se proceder à avaliação».
«Em outra comunicação, faz-me V. Excia. constar que «deliberou
conservar para o Estado, mediante indenização — os livros, obras,
artefatos e todos os objetos que existem no Palácio de São Cristóvão ou
no antigo Paço do Senado, e relacionados como pertencentes à ex-Casa
Imperial, e que ofereçam interesse em benefício da Pátria e da sociedade
em geral; acrescentando que o Governo manterá com firmeza essa
deliberação e terminando por convidar-me a assistir à escolha e
indicação daqueles objetos».
«Em resposta, cabe-me ponderar a V. Excia. o seguinte.
«Os bens, de que se trata, estão sendo inventariados pelo Juízo de
Órfãos da 2ª Vara desta Cidade, na forma da legislação vigente,
excedendo da competência do Governo resolver sobre o assunto, e do
modo manifestado nas aludidas comunicações . Em vista do que, ouso
esperar que V. Excia. se sirva reconsiderar as deliberações tomadas, que
constituem violenta ofensa irrogada aos direitos que patrocino,
impondo-se-lhes uma prática discordante dos mais correntes preceitos
legais, agravada pela circunstância de se estar a devassar, desde
novembro do ano passado, a correspondência particular e manuscritos
de quem até bem pouco tempo, como Imperador, exerceu dignamente
suas altas e majestáticas funções; e, sem embargo das reiteradas
reclamações feitas contra semelhante procedimento, como se a
propriedade fosse vã denominação na nomenclatura das instituições do
direito privado (18)!
«Quanto à firmeza que aprouve a V. Excia. invocar, con-consinta
que a ela oponha muito formal e respeitosamente a inquebrantável
energia com que costumo desempenhar os meus deveres profissionais,
crente decidido da força da razão e não da razão da força» (19).
(18) Neste ponto fêz o Conselheiro Silva Costa grave acusação, jamais res-
pondida.
(19) Original também gentilmente emprestado pelo Príncipe D. Pedro Gastão de
Orléans-Bragança.
HÉLIO VIANNA
INSISTÊNCIA, DO GOVERNO, NA TENTATIVA DE DESAPROPRIAÇÃO DA
BIBLIOTECA IMPERIAL
Apesar da energia da oposição do Advogado e Procurador da Família
Imperial, não desistiu o governo republicano de sua intenção de adquirir,
inclusive, a Biblioteca Particular do Imperador, com o Conselheiro Silva Costa a
respeito entrando em entendimento mais cordial, como Procurador da Fazenda
Nacional, o Conselheiro e Desembargador Manuel Pedro Álvares Moreira
Villaboim (20), conforme a seguinte carta, àquele dirigida, a 1º de outubro de
1890:
«Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Dr. José da Silva Costa «É certo e
constata-se da carta de V. Excia., datada de hoje, que:
«Tendo eu procurado a V. Excia, para tratar de negócios relativos
à aquisição dos bens do espólio da finada Imperatriz, e especialmente
da Biblioteca e Museu, no Palácio de São Cristóvão, e papéis, que se
acham no Paço do Senado, para onde foram conduzidos de São
Cristóvão (21), ficou entre nós assentado que escrevesse V. Excia, ao
Imperador, perguntando se consentia na aquisição da Biblioteca, Museu
e referidos papéis, por parte do Governo, e em que condições; e que,
obtida a resposta, seria esta a base de ulterior procedimento.
«Que este fato não embaraçaria o processo de Inventário,
pendente até a adjudicação, em ato de partilha, permanecendo os livros
e o Museu e papéis, nos lugares em que se acham, até que fosse tomada
a definitiva deliberação.
«Declaro que assim foi dito e convencionado, hoje, entre nós,
representando V. Excia., como Procurador do Sr. D. Pedro de Alcântara
e de sua Família, e eu na qualidade de Procurador da Fazenda
Nacional» (22) .
PROVIDÊNCIAS DETERMINADAS PELO CONDE DEU
A propósito, disposições foram determinadas e pedidos de informações a
respeito foram feitos ao Advogado e Procurador da Família Im-
(20) Pai do Deputado por São Paulo, em várias Legislaturas da República Velha,
Manuel Pedro Villaboim.
(21) Seriam os papéis constantes do Arquivo da Família Imperial, depois pelo ex-
Príncipe do Grão-Pará, D. Pedro de Orléans-Bragança, e por seu Filho D. Pedro Gastão,
generosamente doados ao Museu Imperial, de Petrópolis, onde se encontram, à disposição
dos estudiosos.
(22) Original também gentilmente emprestado por Sua Alteza o Príncipe D.Pedro
Gastão.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
perial, pelo Príncipe Gastão de Orléans, Conde d'Eu, conforme notas manuscritas,
inteiramente de sua letra, intituladas «Museu e Biblioteca?», do seguinte teor:
«Para serem atribuídos ao Imperador, na partilha, foram ou não
avaliados?
«Se o foram, qual o valor dado na avaliação?
«As informações dadas, até agora, sobre a partilha e o quantum
das tornas (23) devidas pelo Imperador aos herdeiros, por enquanto não
esclarecem tudo.
«Os hervários, se convier poderão ser vendidos; mas não vale a
pena fazer questão disso.
«O que desejamos, é que se separem, do Museu e Bibliotecas, tudo
quanto não deve ser doado com eles, conforme a relação contida em
minha carta de fins de outubro ou principio de novembr(de 1890),
«dirigida ao Dr. Silva Costa, e é, principalmente:
«I —• A Biblioteca Particular da Imperatriz D. Teresa Cristina e
tudo quanto se contenha na respectiva salinha. «II — O mealheiro. «III
— As latas, quaisquer que sejam e seu conteúdo.
«IV — Os manuscritos, inclusive a correspondência de D. João V
(24), que se acha na Biblioteca grande. «V — As fotografias.
«VI — As aquarelas, entre as quais as célebres rosas de Redouté
(25).
«VII — As gravuras, pinturas e desenhos de qualquer ordem,
inclusive os álbuns (o que era mais importante) .
«Desejaríamos que a Sra. Baronesa de Muritiba (26), com o Dr.
Silva Costa, percorrendo os diversos aposentos ocupados
(23) Compensações que um co-herdeiro, mais favorecido na partilha com o recebimento de bens
de maior valor, dá a outro ou outros co-herdeiros, para igualar os quinhões. Reposições.
(24)Relativa ao período de 1736/1742, contém-se essa «Correspondência autografa de D.João V»,
em cinco volumes, hoje pertencentes ao Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança.
(25) Do Pintor belga Antoine Ferdinand Redouté (1756/1809), especialista em flôres. Coleção «de
valor inestimável», conforme informação do Príncipe D. Pedro Augusto de Saxe-Coburgo-Gotha, que
publicamos no boletim Cultura nº 8, citado na nota (4), acima. Pertence hoje ao Conde Francisco
Matarazzo Junior, de São Paulo, de acordo com outro artigo nosso, no mesmo boletim, nº 12, citado na
mesma nota. (26) A segunda Baronera de Muritiba, D. Maria José Velho de Avelar, filha dos Viscondes
de Ubá. foi Dama efetiva da Imperatriz D. Teresa Cristina e da Princesa Imperial D. Isabel, Herdeira
do Trono.
HÉLIO VIANNA
pelo Museu e Bibliotecas, e verificando todos os objetos acima, e os
outros que enumerei na aludida carta, os fizessem desde já separar.
«Seria também oportunidade para descobrir e separar os livros que
o Imperador pediu ultimamente, conforme nota que enviei ao Dr. Silva
Costa, em carta de 24 de janeiro» (de 1891) (27).
Vários dos objetos citados pelo Conde d'Eu foram, realmente, enviados à
Europa, conforme nosso trabalho intitulado «Acervo artístico imperial em 1891
enviado à França», citado na nota (4), acima. Muitos já regressaram ao Brasil,
conforme então anotamos.
GENEROSA DOAÇÃO DO IMPERADOR, EM VEZ DE INDÉBITA
DESAPROPRIAÇÃO
Patriótica e abnegada, foi a resolução de D. Pedro II, tomada a propósito de
sua Biblioteca Particular e Museu. Em vez de vendê-los ao novo governo
brasileiro, como tinha inteiro direito de fazer, por tra-tar-se de propriedades suas,
inclusive por notoriamente não dispor de recursos suficientes para manter-se no
estrangeiro, à altura de sua situação, tendo recusado os auxílios oficiais que nesse
sentido lhe quiseram dar (28), — generosamente preferiu doá-los à Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro (sua cidade natal), ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (associação desde o início de seu Reinado por êle protegida) e ao Museu
Nacional (outra instituição que, como o Jardim Botânico, sempre mereceu
especiais cuidados, de sua parte) .
Como condição única, exigiu que as duas primeiras partes de sua Biblioteca
tivessem o nome de sua mulher: «Coleção Dona Teresa Cristina Maria»; e a
terceira, a do Museu Nacional, o de sua mãe: «Coleção Imperatriz Dona
Leopoldina».
Nesse sentido escreveu ao Conselheiro Silva Costa, conforme registrou em
seu Diário, que abrange o período de 27 de abril a 12 de junho de 1891 (29).
De acordo com a resolução do Imperador, a 6 de julho do mesmo ano dirigiu
o Conselheiro Silva Costa a seguinte carta ao Presidente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, idênticas tendo dirigido
(27) Original, como tantos outros, gentilmente emprestado pelo Príncipe D. Pedro
Gastão.
(28) HÉLIO VIANNA — «Recusas do Imperador a auxílios pecuniários da República»,
Folhetim do Jornal do Comércio, de 5 de janeiro de 1968; transcrito na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 278, de janeiro-março do mesmo ano.
(29) HÉLIO VIANNA Diários do exílio de D. Pedro II (1889/1891)», cit.na nota
(8), pág. 272.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
aos Viscondes de Beaurepaire-Rohan e de Taunay e ao Dr. João Seve-riano da
Fonseca (êste, irmão do já efêmero primeiro Presidente da República, Marechal
Manuel Deodoro da Fonseca):
«Ilmo. Sr. Conselheiro Olegário Herculano d'Aquino e Castro
«Em nome de Sua Majestade o Imperador, e conforme suas
ordens, peço a V. Excia. que, de acordo com os Exmos. Senhores
Visconde de Taunay, Visconde de Beaurepaire-Rohan e Dr. João
Severiano da Fonseca, se sirva separar, dentre os livros do mesmo
Augusto Senhor, aqueles que possam interessar ao Instituto Histórico, a
fim de fazerem parte da respectiva Biblioteca, devendo esses livros
serem colocados em lugar especial, com a denominação de D. Teresa
Cristina Maria; sendo os outros livros destinados à Biblioteca Nacional,
que os colocará em lugar especial, também com igual denominação. Sua
Majestade doa além disso, ao mesmo Instituto, o seu Museu, no que
tenha relação com a Etnografia e a História do Brasil; destinando ao
Museu do Rio de Janeiro a parte relativa às Ciências Naturais, à
Mineralogia, assim como os Herbários, o que tudo deve ser colocado
em lugar especial, sob a denominação de Princesa Leopoldina (30) . Na
esperança de que Vossa Excia. aceitará essa incumbência, antecipo os
devidos agradecimentos e subscrevo-me com a segurança da minha
distinta consideração» (31) .
Agradecendo ao Imperador a valiosíssima oferta, salientou o Presidente do
Instituto, em sessão de 31 do mesmo mês, a raridade e a riqueza das peças
benemèritamente ofertadas, declarando que seriam postas nos novos salões
recentemente cedidos à instituição. Acrescentou que já se tratava de fazer a
determinada separação, só faltando a respectiva arrecadação. Por proposta do
sócio Conselheiro Manuel Francisco Corrêa, aprovou-se, para que constasse da ata
da sessão, um voto de agradecimentos a Sua Majestade o Imperador, cujo texto leu
(32).
INTERESSE DO GOVERNO EM FICAR COM OS MANUSCRITOS DO
IMPERADOR
Provavelmente ainda sem saber da doação da Biblioteca e do Museu do
Imperador, mantinha o governo brasileiro, por intermédio do Ministério do
Interior, o desejo de ficar com os manuscritos que constituíam
(30) Era carta do dia 8 seguinte, retificou que a Coleção dos livros destinados ao
Museu Nacional denominar-se-ia «Imperatriz Leopoldina-», não «Princesa D. Leopoldina .
(31) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 54, do ano de
1891, vol. 84, texto relativo à sessão de 31 de julho do mesmo ano, págs. 223/224.
(32) Idem, pág. 224.
HÉLIO VIANNA
o Arquivo da Família Imperial. É o que se depreende da comunicação a 4 de junho
de 1891, pelo Diretor-Geral dessa Secretaria de Estado, Copertino do Amaral,
dirigida ao Conselheiro Silva Costa, por este guardada, depois entregue aos seus
constituintes:
«Segundo recomendação do Sr .Ministro (33), convém que Vossa
Excia. oficie ao Ministério do Interior, designando uma pessoa para
assistir, nesta Secretaria de Estado, ao processo da discriminação e
inventário dos manuscritos retirados dos palácios do Sr. D. Pedro de
Alcântara, e ora existentes na mesma Secretaria». (34)
O que se não fêz, porque, sabiamente, quis o Imperador que fosse para a
França seu precioso Arquivo, o que, embora só tenha sido feito em 1902, depois
de inventariado, no Castelo d'Eu, pelo historiador Alberto Rangel, por ordem do
ex-Príncipe do Grão-Pará, D. Pedro de Alcântara, também por gentileza deste teve
seus Catálogos publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
volumes LIV e LV, de 1932 e 1933 (aparecidos em 1939, quando Diretor de nossa
Casa dos Livros, o sábio e saudoso amigo Rodolfo Garcia).
Em 1941, atendendo ao desejo antes manifestado por seu pai, resolveu o
Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança doar ao país o precioso acervo, o
que se efetivou em 1948, com grandes consequências para o esclarecimento da
História do Brasil sob o regime monárquico (35).
RESPOSTAS RECEBIDAS PELO CONSELHEIRO SILVA COSTA
Recebeu e guardou o Conselheiro Silva Costa respostas às cartas
que enviou às três pessoas encarregadas de separar os livros doados pelo
Imperador D. Pedro II. Entregando-as à Família Imperial, ainda por
gentileza do Príncipe D. Pedro Gastão aqui as podemos transcrever.
Primeiramente, a do Presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Conselheiro Olegário Herculano d'Aquino e Castro:
«Rio, 8 de julho de 1891
«Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro Dr. José da Silva Costa
«Respondo à carta que V. Excia. me dirigiu em data de 6 do
corrente, dizendo: que estou pronto a cumprir as ordens de Sua
Majestade; e desempenharei a incumbência que me foi confiada, de
acordo com os demais senhores nomeados na referida carta».
(33) Ocupava, então, a pasta do Interior, o Conselheiro Tristão de Alencar Araripe.
(34) Original gentilmente emprestado por Sua Alteza o Príncipe D. Pedro Gastão.
(35) Anuário do Museu Imperial, de Petrópolis, vol. I, de 1940, págs. 326/330; vol.
II, de 1941, págs. 297/298 e 300; vol. VIII, de 1947, pág. 293; vol. IX, de 1948, pág. 254.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
Da mesma data, embora escrita em Petrópolis, foi a resposta do Visconde de
Taunay:
«Acuso, hoje recebida, a Carta oficial de V. Excia., datada aos 6
do corrente mês, relativa à nomeação da comissão encarregada, por
ordem de Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro II, de dar destino à
Biblioteca de S. Cristóvão e, em resposta, cabe-me cientificar, que
procurarei, com o maior acatamento às determinações daquele Augusto
Senhor, desempenhar a parte da comissão que me compete».
Foi a seguinte a resposta do Visconde de Beaurepaire-Rohan:
«Tive a honra de receber as cartas de V. Excia. de 6 e 3 do
corrente, e fico ciente dos Desígnios de S. M. O Imperador,
relativamente à Sua Livraria e Museu, e cumprirei pontualmente Suas
Ordens, entendendo-me para isto com os Excelentíssimos Srs. Visconde
de Taunay, Conselheiro Olegário Herculano de Aquino e Castro e Dr.
João Severiano da Fonseca, como V. Excia. o recomenda.
«Não tenho expressões com que possa agradecer mais esta prova
da confiança de S.M.I.»
Mais discreta que a manifestação dos três conhecidos monarquistas, embora
não menos respeitosa, foi a concordância dada pelo irmão do Marechal Deodoro,
Presidente da República:
«A S. Excia. o Sr. Dr. José da Silva Costa cumprimenta o Dr. João
Severiano da Fonseca, que acusa recebimento de dois ofícios seus,
relativos à honrosa incumbência de S. M. o Sr. D. Pedro d'Alcântara,
que aceita respeitoso e penhorado».
Tinha urgência, o Conselheiro Silva Costa, em que se fizesse a aludida
separação dos bens doados. Daí a carta que a 14 do mesmo mês de julho de 1891
dirigiu ao Visconde de Taunay, em papel em cujo alto está impresso, em
vermelho, o barrete de doutor, tendo em baixo seus sobrenomes:
«Peço-lhe que logo que esteja feita a separação dos objetos que
Sua Majestade o Imperador se dignou oferecer ao Museu, Biblioteca,
etc, se sirva dar conhecimento no meu escritório, para os fins
convenientes, falando com os Drs. Zeferino Otávio Filho ou Carlos
Soares Guimarães.
«Por mais que procurasse vê-lo antes de partir, não o consegui,
portanto despeço por este meio» (36).
(36) Conforme originais gentilmente emprestados pelo Príncipe D. Pedro Gastão.
HÉLIO VIANNA
A 31 do mesmo mês, escreveu o Instituto Histórico ao Imperador,
agradecendo sua generosa doação, em ofício assinado por toda a Dire-toria e
muitos sócios (37).
IMPRESSÕES DO VISCONDE DE TAUNAY, SOBRE A BIBLIOTECA
IMPERIAL
Deu suas impressões pessoais da missão que recebera, o escritor e ex-
Senador do Império, Visconde de Taunay, em artigo intitulado «Na Biblioteca do
Imperador», a 5 de agosto seguinte publicado no Jornal do Comércio.
Nele registrou sua emoção ao nela entrar, com aquele objetivo. Referindo-se
a D. Pedro II, escreveu: «Afigurava-se-me vê-lo levantar-se de alguma das
compridas mesas, carregadas de preciosos álbuns, gravuras, mapas e fotografias,
que, de espaço a espaço, cortam a solene sala, ou antes, aquela sucessão de salas,
cuja ligação ocupa quase toda a extensa frente do palácio, no terceiro pavimento.
«Ali, na misteriosa impassibilidade do livro à espera de consultas, dezenas de
milhares de obras davam incontestes provas do amor, da dedicação, do apreço e
estremecimento que o Augusto Monarca americano consagrava ao estudo e à
meditação».
Aludiu ao «consolo e alento» que ao soberano sempre oferecera sua condição
de constante leitor. E registrou: «Naquele enorme acervo de livros, que abrangem
todas as disciplinas, quantos e quantos volumes não estão com as margens todas
tomadas de notas escritas com letra miúda e apertada? E só nisso, que mundo de
impressões a recolher, a história íntima de todo um Reinado de dez lustros!...
(38)....
«São nada menos de três as Bibliotecas: a da Imperatriz, a do despacho
ministerial e a do Imperador, no segundo andar de S. Cristóvão.
«Por toda a parte, o eloquente «P. II», encimado pela rutilante coroa! Por
toda a parte, porém, também sinais bem evidentes do roubo e da rapina, depois das
terríveis cenas que findaram no Alagoas» (39) .
(37) JOSÉ VIEIRA FAZENDA — «Prólogo» ao Catálogo dos Livros Encadernados doados pelo
Protetor do Instituto, o Senhor D. Pedro II Salas D. Teresa Cristina Maria e Imperatriz D.
Leopoldina (Rio, 1900), págs. V/VI, citando ata de sessão do Instituto.
(38) «Aos Livros Anotados pelo Imperador D. Pedro II», já temos dedicado vários trabalhos
isolados, publicados no Jornal do Comércio e transcritos na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro; — os quais pretendemos coordenar em um só ensaio, com acréscimos relativos a outros, de
que posteriormente tivemos conhecimento.
(39) Aqui se confirmam os roubos sofridos pela Biblioteca Particular do Imperador, depois da
Proclamação da República. E não findaram com a partida da Família Imperial para o exílio, a bordo do
paquete Alagoas.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
E comentou: «Que valem perdas materiais, por maiores que sejam, quando a alma
foi malferida e tem de curtir as angústias da clamorosa injustiça e da negra
ingratidão?
«Ah! para tanto, sim, para tudo isso, é que serviram o estudo, a meditação,
aqueles livros todos, aquela imensa Biblioteca!»
Terminou registrando o seguinte «contraste»: «Ao passo que o Congresso
discute se a Nação deve, como atenuação de crudelíssima iniquidade, enviar ao
mais ilustre dos exilados que um dia houve, 120:000$ anuais, cede êle a essa
Nação mais de 2.000:000$, com o maior desprendimento, a mais admirável
largueza e espontaneidade!» (40) .
DISTRIBUIÇÃO DOS LIVROS DA BIBLIOTECA DO IMPERADOR
Em reunião da Comissão encarregada da escolha dos livros de D. Pedro II
destinados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por sua maioria ficou
resolvido que para êle iriam as obras relativas à História e Geografia da América.
Contra esse critério restritivo mani-festou-se um de seus membros, o próprio
Presidente da instituição. Conselheiro Olegário Herculano d Aquino e Castro.
Alegou, com razão, que muitas não referentes ao nosso continente, também
interessariam à velha e conceituada associação. Com êle concordou seu Secretário,
Henrique Raffard. Argumentou que o Conselheiro Silva Costa havia designado
para a Comissão quatro sócios do Instituto, dos quais apenas um, há pouco tempo
havia deixado de sê-lo. (Aludia ao Visconde de Taunay, que o Repertório da
Revista Trimensal do Instituto, de 1897, deu à pá gina 205, como «despedido»,
isto é, voluntariamente resignatário, naquele mesmo ano de 1891, certamente
devido à divergência de pontos de vista, de que estamos tomando conhecimento) .
Também se haviam separado livros do Imperador para as Bibliotecas do Jardim
Botânico (41) e da Academia de Belas-Artes, que, entretanto, não haviam sido
contempladas na doação imperial. Por proposta do sócio José Luís Alves, figurou,
na ata da sessão, um protesto contra aquela decisão da maioria da Comissão,
felizmente não obedecida. Outro associado, César Augusto Marques, queria que a
propósito se escrevesse ao próprio doador. Mas o Presidente preferiu que isso
fosse feito ao seu médico e companheiro no exílio, Conde de Mota Maia, também
do Instituto. Por proposta do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, escreveu a
Dire-toria do Instituto, a respeito, à citada Comissão. Fê-lo novamente, por
sugestão do Capitão-de-Fragata Garcez Palha, conforme ata da sessão
(40) Quanto ã dotação a ser dada ao Imperador, votada, sancionada, mas nunca recebida,
conforme nosso trabalho mencionado na nota (28) . A avaliação da Biblioteca em 2.000 contos de reis,
adiante novamente aparece em carta de Taunay a D- Pedro II. — O artigo do Visconde, transcrito em
Reminiscências, de 1908, e em Homens e Coisas do Império, de 1924.
(41) Ao que consta, pelo menos em parte já extraviados.
HÉLIO VIANNA
de 6 de novembro de 1891. A 5 de dezembro seguinte, faleceu, em Paris, D. Pedro
II. Não tendo a Comissão respondido ao Instituto, ale-gou-se que este, com aquela
decisão restritiva, «de herdeiro passara a simples legatário». Ainda quanto ao
assunto, fizeram declarações mais dois membros da Comissão: o Visconde de
Beaurepaire-Rohan (aliás parente do Visconde de Taunay) e o Dr. João Severiano
da Fonseca. Ambos surpresos com a divergência aparecida, pois supunham que a
divisão dos livros tivesse sido feita inteiramente de acordo com a vontade do
doador, isto é, com inteira liberdade de escolha, quanto aos destinados ao Instituto.
O segundo, a 9 de dezembro de 1892, chegou a afirmar ter havido «má
interpretação» (42) .
A razão do desentendimento entre o Visconde de Taunay e os demais
membros da Comissão está em sua inteligência de um trecho de carta que recebeu
do Imperador, em resposta à sugestão por êle feita, naquele sentido não aceito por
outros sócios do Instituto.
Assim, de Petrópolis, a 2 de agosto de 1891 escrevera Taunay ao doador:
«Senhor!
«No dia 31 de julho demos começo ao desempenho da honrosa
incumbência de que fomos encarregados por Vossa Majestade, por carta
ao Sr. Dr. Silva Costa».
Depois de comentar a emoção sofrida, conforme já vimos em seu artigo no
Jornal do Comércio, publicado a 5 do mês seguinte, declarou que avaliava a
Biblioteca doada em 2.000 contos de réis, em «avaliação brevíssima, pela rama,
das preciosidades que ali estão reunidas. Dois mil contos? E os inclináveis (sic) e
os exemplares raríssimos, e aqueles livros em pergaminho e letra de mão e
iluminuras?» E sugeriu: «Muita coisa de indiscutível cunho artístico, livros sobre
belas-artes, coleções de gravuras, fotografias, bustos, estátuas, devem também ser
repartidos pelo Instituto Histórico,Museu Nacional e Biblioteca Pública? Eis o que
pergunto a Vossa Majestade, porquanto não pouco poderia ser doado à Academia
das Belas-Artes, achando ali, talvez, mais conveniente colocação» (43).
A esta sugestão, e não a assuntos das cartas seguintes de Taunay, como a
anterior também guardadas no Arquivo da Família Imperial, hoje no Museu
Imperial, de Petrópolis, datadas de 15 e 18 de agosto, respondeu D. Pedro II, em
carta de Paris, 28 de outubro, na qual acusou
(42) José Vieira Fazenda — «Prólogo» citado na nota (37), págs. V/XII, redigidas de acordo
com atas de sessões do Instituto, de 1891 e 1892, publicadas nas respectivas Revistas, correspondentes
a esses anos.
(43) Arquivo da Família Imperial, no Museu Imperial, de Petrópolis, maço 203, documentos
nº 2.250, do «Inventario» de Alberto Rangel.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
recebimento de outra dele, a de 18 de agosto: «Aprovo completamente sua opinião
(sic) sobre o destino de meus livros, que espero ainda rever, antes da minha morte,
como a filhos queridos» (44) . Desejo que, como se sabe, não pôde realizar.
Na carta de 10 de outubro, escreveu o Visconde de Taunay ao Imperador:
«Bastante morosamente vai a distribuição dos livros da Biblioteca
Imperial, pelo limitadíssimo pessoal que o Instituto Histórico e a
Biblioteca Nacional empregam, mas, assim mesmo, a Comissão já fêz
entrega de mais de 4.000 volumes de legislação, e separou para cima de
5.000 obras sobre História e Geografia das duas Américas, destinadas
àquele Instituto. Costumo ir a São Cristóvão todas as têrças-feiras,
embora de cada vez de lá volte mais triste e acabrunhado, pensando no
grande Brasil de outrora e no seu Magnânimo Soberano, o Marco
Aurélio do século XX (sic), na bela frase de Joaquim Nabuco» (45) .
E, mais adiante: «Em relação aos livros que Vossa Majestade mandou
separar, não poucos já foram achados, outros não. Serão breve
remetidos para a Europa» (46).
A separação e entrega dos livros durou 86 dias, entre 4 de agosto de 1891 e
12 de março de 1892. Realizaram-na, sob a direção das personalidades citadas,
servidores do Instituto Histórico e funcionários da Biblioteca Nacional, estes sob
a direção do Chefe de Seção José Alexandre Teixeira de Melo, naquele ano
também lº Secretário do Instituto, conforme «Relatório» de seu sucessor nesse
cargo, Henrique Raf-fard (47).
Terminado o trabalho da distribuição dos que deveriam caber à Biblioteca
Nacional, ao Museu Nacional e ao Instituto Histórico, todavia. não recebeu este
todos os que lhe deveriam ser entregues, conforme se verifica em atas de sessões
de 1894, publicadas em sua Revista, tomo 57,
(44) Publicada pelo filho do Visconde de Taunay, Afonso de Escragnolle Taunay, na Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, transcrita em seu livro Pedro II (São Paulo, 1933),
pág. 240.
(45) Aliás, «aquele que tem por antepassado Marco Aurélio», conforme endereço em
envelope que continha uma fotografia de Vítor Hugo, anexado ao exemplar da L'Art d'Être Grand-
Père, exemplar da Biblioteca do Imperador, hoje do Instituto Histórico. Recortou-o e, na página da
dedicatória do livro, colou-o o próprio D. Pedro II. Consequentemente, a frase de Nabuco, como as
que referem ao «filho» ou «neto de Marco Aurélio», decorrem daquela, autêntica, do poeta francês,
conforme consta de seu Diário de 23 de maio de 1877.
(46) Original no Arquivo da Família Imperial, hoje do Museu Imperial, conforme nota (43)
.
(47) JOSÉ VIEIRA FAZENDA «Prólogo» citado na nota (37), págs. VI/XII redigidas de acordo
com atas de sessões do Instituto, de 1891 e 1892, publicadas nas Revistas desses anos.
HÉLIO VIANNA
volume 90, desse ano. Assim, na de 15 de janeiro, comentou o Presidente da
instituição, Conselheiro Olegário Herculano d'Aquino e Castro, um ofício do
governo, de 20 de novembro de 1893, em resposta a um de 24 de julho do mesmo
ano, sobre livros do Instituto que estavam na Biblioteca Nacional, os quais,
segundo informação desta, a ela pertenciam, de acordo com decisão da maioria da
Comissão encarregada de separá-los e distribuí-los pelas três entidades
beneficiadas. A propósito, comentou que não tinha nenhum conhecimento dessa
aprovação, apesar de ser também membro da mesma. Todavia, houve tempo
suficiente para que concordasse ou discordasse da sugestão a respeito feita pelo
Visconde de Taunay, conforme já assinalamos. Realmente, tendo a Comissão
começado a trabalhar depois de meados de julho de 1891, e o Imperador falecido a
5 de dezembro do mesmo ano, este é que não teria tido tempo de aprovar a
separação e distribuição, como já vimos somente terminada a 12 de março do ano
seguinte.
Noutra sessão do Instituto Histórico, a 20 de abril de 1894, leu-se uma
comunicação do então Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Cassiano do
Nascimento, segundo a qual, conforme havia declarado em carta o Visconde de
Taunay, o Imperador havia aprovado o que, quanto à distribuição de seus livros,
havia sido feito pela Comissão disso encarregada .
Entretanto, no discurso de encerramento dos trabalhos do ano, a 15 de
dezembro, pela primeira vez com a presença do Chefe da Nação, Prudente de
Morais, reiterou o Presidente Conselheiro Aquino e Castro: «Foram até hoje
baldados todos os esforços feitos pelo Instituto para reaver parte dos excelentes
livros que lhe foram doados pelo Senhor D. Pedro II e dos quais se acha de posse
a Biblioteca Nacional». Todavia, a eles tinha inteiro direito a instituição.
Da mesma forma, o «Relatório» do lº Secretário, Henrique Raf-fard,
assinalou que nada se havia resolvido sobre os volumes transportados para a
Biblioteca Nacional, e que, entretanto, eram do Instituto (48).
A propósito, convém lembrar que no agitado governo do Vice-Pre-sidente
Marechal Floriano Peixoto, um mês antes terminado, seria inevitável a má vontade
contra o Instituto Histórico, tido como reduto de monarquistas e de oposicionistas,
por parte do então Diretor da Biblioteca Nacional, o extremado jacobino Raul
d'Ávila Pompéia, pouco depois demitido pelo primeiro Presidente civil da
República (49) .
(48) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, de 1894, volume 90,
págs. 294, 326, 401 e 417.
(49) Quanto a Raul Pompeia, autor do sórdido Folhetim As Jóias da Coroa, em 1882
publicado na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, somente há poucos anos, sem nenhuma
conveniência, posto em livro (São Paulo, Clube do Livro, 1962), redi-miu-se um pouco, quanto ao
Imperador, com a magistral reportagem «Uma noite histórica (Do alto de uma janela do Largo do
Paço)», publicada no Jornal do Co~ mércio, logo após a partida, para o exílio, da Família Imperial.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
LIVROS DO IMPERADOR QUE FICARAM COM O INSTITUTO HISTÓRICO
Quanto aos livros doados pelo Imperador e recebidos pelo Instituto
Histórico, foram relacionados, em 1893, por dois Belli de Leonardi, pai
e filho. O Bibliotecário da casa, Dr. António de Castro Lopes, que em
1892 preparou o Catálogo dos livros da Sala D. Pedro II, impresso no
ano seguinte, foi substituído pelo General Joaquim Costa Matos, autor
do Catálogo da Biblioteca do Exército. No Instituto, catalogou este,
em bases científicas, em 1896 e 1897, grande parte dos livros recolhidos
à Sala D. Teresa Cristina Maria. Em março de 1898, substituiu-o um
dos mais notáveis Bibliotecários que tem tido a veneranda associação, o
Dr. José Vieira Fazenda. Retomando o trabalho do antecessor, pôde
publicar, no ano de 1900, em XIV-512 páginas, o Catálogo dos Livros
Encadernados doados pelo Protetor do Instituto, o Senhor D. Pedro II
_Salas D. Teresa Cristina Maria e Imperatriz D. Leopoldina.
No respectivo «Prólogo», de sua autoria, citando o «Relatório» do 1º
Secretário Henrique Raffard, de 1892, contém-se a estatística da distribuição dos
livros doados pelo Imperador às três entidades beneficiadas, de acordo com artigo
a 1' de março de 1892 publicado no Jornal do Comércio:
A Biblioteca Nacional recebeu:
Da lª Sala de cima ......................... 2.691 volumes
Da 2ª Sala de cima ........................ 4.798 volumes
Da 3ª Sala de cima ........................ 4.705 volumes
Da Sala de Despacho...................... 2.313 volumes
Do Gabinete Particular ................. 1.558 volumes
Da Biblioteca da Imperatriz 8.185 volumes
Obras de Camões............................ 20 volumes
Total, para a Biblioteca Nacional: ................................... 24.270 volumes
O Instituto Histórico recebeu:
Das três Salas e do Gabinete 3.571 volumes
Da Sala de Despacho .................... 1.811 volumes
Da Biblioteca da Imperatriz ... 1.666 volumes
Total, para o Instituto Histórico ........................................ 7.048 volumes
Para o Museu Nacional: .................................................... 352 volumes
Grande total ................................................................ 31.670 volumes
«Posteriormente, o Jornal do Comércio voltou a ocupar-se com o quinhão
que tocou ao Instituto Histórico, e, sob a epígrafe «Coleções do Imperador», deu
mais detalhes, nestes termos: Dessas coleções recebeu o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, o seguinte:
«Livros encadernados. Da Biblioteca do Imperador, 7.048 volumes; da
Biblioteca da Imperatriz, 936; total 7.984.
HÉLIO VIANNA
«Estampas Gravuras e fotografias, 147; litografias, 9; total 156.
«Estampas históricas e retratos, em grandes volumes, encadernados, 6
volumes.
«Panoramas da cidade do Rio de Janeiro, dos quais 2 iguais e 1 diverso,
óleo-gravura, 3 estampas.
«Vista da cidade de Sorocaba (colorida), 1 estampa.
«Vues Pittoresques de la Republique (in-folio imperial), 14 estampas .
«Mapas históricos. Exemplares (grandes volumes encadernados), com 14
mapas, quatro cada um, além de alguns, avulsos, planos e campos de batalha,
plantas de baterias, fortalezas, etc..
«Mapas geográficos — 54 volumes (grandes e pequenos, encadernados,
contendo 390 mapas.
«Avulsos — Classificados, 105 mapas; por classificar, 328; aparelhados para
parede, 32; em moldura, 3; emassados (grandes e pequenos), 814; Cartas do
Brasil, 66; Mapas Celestes, 7; Mapas da América do Sul, em pontos, para cegos,
2; total, 1.047». (Aliás, 1.357).
«Brochuras. Grande número, ainda não contadas».
A última referência, mostra como o total doado ao Instituto Histórico foi
muito maior que o citado, pois o Catálogo feito só se refere a volumes
«encadernados». E quem pesquisa na Biblioteca da mais do que secular
associação, sabe como são numerosos os folhetos, nela existentes, procedentes da
munificência imperial.
Voltando ao Catálogo dos Livros Encadernados doados pelo Pro-tetor do
Instituto, o Senhor D. Pedro II Salas D. Teresa Cristina Maria e Imperatriz D.
Leopoldina, convém lembrar que os respectivos verbetes, tão minuciosos quanto
possível, à luz dos ainda escassos conhecimentos bibliográficos da época, foram
distribuídos, em 512 páginas, na mesma «Tábua de Classificação» final, nas
seguintes Seções:
«Administração Pública Brasileira — Administração Pública Estrangeira —
Agricultura e Economia Rural — Almanaques, Catálogos e .Guias —
Arqueologia e Antropologia — Astronomia e Meteorologia .— Belas-Artes —
Beneficência — Bibliografia — Biografias e Autobiografias — Química, Física e
suas aplicações — Corografia, Hidrografia e Topografia do Brasil — Corografia,
Hidrografia e Topografia em geral — Cronologia — Colonização e Imigração —
Diplomacia — Direito Administrativo, Canônico, Civil, Comercial e Criminal —
Direito Natural e das Gentes — Economia Política e suas aplicações — Economia
Política Brasileira — Enciclopédia — Exposições Nacionais e Internacionais --
Estatística — Ficções em prosa — Geografia e Cosmografia do Brasil —
Geografia Geral e Cosmografia — Guerra, Exército,
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
negócios militares — Hipiatria (cavalos) — História do Brasil (17 páginas) —
História Eclesiástica — História Literária e Científica — História Moderna —
História Natural — História Universal — Indústria e Comércio — Invenções,
descobertas científicas, indústrias, etc. — Instituições — Instrução Pública e
Pedagogia — Legislação Brasileira (Geral, Provincial, Municipal) — Legislação
Estrangeira — Linguística e Literatura — Marinha — Metalurgia e Mineração —
Miscelânia — Música — Necrologia — Nobiliarquia, Genealogia e Ordens
Honoríficas
_ Notícias sobre o Brasil — Numismática — Obras Públicas — Poesia
(16 páginas) — Política — Religião — Revistas, Jornais Literários, Políticos e
Científicos (9 páginas) — Retórica — Saúde Pública — Ciências Matemáticas —
Ciências Médico-Farmacêuticas — Veterinária — Ciências Naturais — Ciências
Filosóficas — Ciências Sociais — TeatroViagens, Explorações, Navegação
(Brasil) — Viagens, Explorações, Navegação (em geral) — Vias Férreas e
Fluviais. Ferro-Carris e Viação em Geral».
Bastariam esses 66 títulos, para mostrar a variedade e riqueza da Biblioteca
Particular do Imperador, embora somente na parte de livros encadernados doados
e catalogados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
LIVROS DO IMPERADOR NA BIBLIOTECA NACIONAL
Vejamos, agora, a maior parte da livraria particular de D. Pedro II, que foi,
como vimos, doada à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A cidade de seu
nascimento, em que viveu mais de 60 anos, dos 66 de sua existência.
Em 1925, por ocasião do Centenário de seu Nascimento, publicaram o jornal
do Comércio e O Jornal, do Rio de Janeiro, edições comemorativas, repletas de
colaborações especiais, firmadas pelos maiores nomes da intelectualidade
brasileira da época. Muitas das quais, de grande valor para o estabelecimento de
sua biografia, que desejava levantar o Instituto Histórico. Que as recolheu na
respectiva Revista, tomo 98, daquele ano, volume 152, aparecido em 1927.
«D. Pedro II e os seus livros», de Aurélio Lopes de Sousa, Bibliotecário, e,
várias vezes, Diretor interino de nossa Casa dos Livros, é, daqueles trabalhos do
Jornal do Comércio, o que agora mais nos interessa.
De acordo com o mesmo, já a 1» de março de 1892 dera aquele periódico
informações sobre a partilha dos livros do Imperador. Ao Instituto Histórico
caberia o que interessasse à História e Geografia da América, à Biblioteca
Nacional o remanescente. (Já vimos que não ocorreu exatamente assim) .
Entretanto, também recebeu o Instituto muitas gravuras, litografias, fotografias e
mapas.
Enganou-se o articulista, ao assegurar que a parte da Biblioteca foi de 50.000
volumes, a do Instituto de 5.605. Como já vimos, foram
HÉLIO VIANNA
outros os respectivos algarismos. À Bibloteca também couberam centenas de
fotografias, principalmente estrangeiras, além de estampas volantes e mapas
avulsos.
Grande conhecedor de seu acervo, com razão assinalou Lopes de Sousa que a
Biblioteca Imperial era essencialmente heterogénea. D. Pedro II, além de
constantemente comprar livros, no país e no exterior, inclusive nas viagens que
realizou, também os recebia, enviados pelos próprios autores, brasileiros e
estrangeiros, com dedicatórias manuscritas nos respectivos exemplares, ou em
cartas a eles anexadas. Estas, quando encontradas nos livros incorporados à
Biblioteca Nacional, foram encaminhadas à sua Seção de Manuscritos, onde ainda
se acham, acrescentamos nós.
A propósito, curioso estudo poderia ser feito, em nossa Casa dos Livros e no
Instituto Histórico, acerca de dedicatórias em livros oferecidos a D. Pedro II.
Talvez venhamos a fazê-lo, distinguindo as impressas, portanto públicas, das
manuais, consequentemente particulares. Servin-do-nos, também, de outros
acervos, como o do Museu Imperial, dos manuscritos que foram do Imperador,
hoje pertencentes a seu bisneto, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança.
Em seu artigo, assinalou Aurélio Lopes de Sousa que, embora se não tratasse
de Biblioteca especializada, a de D. Pedro II continha grande número de raridades,
edições princeps, cimélios, mas não incunábulos. Neste ponto enganou-se o
dedicado Bibliotecário, que em 1931 conhecemos como Chefe da antiga Seção de
Estampas, hoje de Iconografia, onde nos mostrou vários Álbuns dela procedentes.
Além da Crônica de São Jerônimo, do Bispo de Cesaréia, Eusébio Panfílio, de
1483, ganho na visita ao Colégio do Caraça, em Minas Gerais, 1881, vários outros
incunábulos constam da Coleção D. Teresa Cristina Maria, conforme já
assinalamos (50) . Aqui mesmo, páginas atrás, transcrevemos a referência do
Visconde de Taunay aos inclináveis (sic), da Biblioteca Imperial .
Não era o monarca, propriamente, um bibliófilo, com razão assinalou Lopes
de Sousa. Não usou ex-libris. (Mas tinha carimbo especial, às vezes usando tinta
dourada, a «Biblioteca Particular de Sua Majestade Imperial», conforme
verificamos) . O que não impediu que contribuísse para várias edições
excepcionais, conforme também pensamos registrar, em trabalho à parte.
Mesmo não sendo bibliófilo, mas principalmente um estudioso, não deixava
de mandar que o artista Henrique Lombaerts fizesse belas enca-
(50) «Diário da Viagem do Imperador a Minas — 1881», no Anuário do Museu Imperial, de
Petrópolis, vol. XVIII, de 1957 (Rio, 1964), pág. 97. — Hélio Vianna — «D. Pedro II e o Incunábulo
do Caraça», na Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro, do Rio de Janeiro, ano XI, nº 33, do 2°
trimestre de 1968, págs. 135/139.
DOAÇÃO DA BIBLIOTECA DE D. PEDRO II
dernações, para volumes de sua maior estima. Entre eles, o Brasil Pitoresco, do
emigrado francês Charles Ribeyroles, aqui falecido, amigo de Vítor Hugo.
Sob a proteção do Imperador esteve a malograda Empresa Tipo-gráfica Dois
de Dezembro, do tipógrafo, jornalista, livreiro e editor Francisco de Paula Brito,
protetor de Machado de Assis (51) . Foi acionista da Biblioteca Fluminense, cujo
acervo tanto enriqueceu a Nacional. Sob seus auspícios realizou esta, em 1881,
inaugurada na data de seu 56º aniversário, a memorável Exposição de História do
Brasil. Cujo Catálogo, devido a Ramiz Galvão e seus mais notáveis auxiliares,
inclusive Alfredo do Vale Cabral, no volume IX dos respectivos Anais, em dois
tomos e um Suplemento, constitui, até hoje, uma das mais importantes peças da
Bibliografia Brasileira, indispensável em estudos sôbre o nosso país, até aquele
ano, em vários ramos científicos. Tendo sido D. Pedro II um de seus mais
destacados expositores de peças raras.
Também mencionou Lopes de Sousa o hábito de D. Pedro II, de anotar à
margem os livros que lia; do que citou alguns exemplos. Outros a eles já temos
acrescentado, e outros acrescentaremos, em estudo especial.
Aludiu aos dossiers de suas viagens pelo país e ao estrangeiro, como aos
muitos Diários que escreveu. Uns e outros somente conhecidos, em sua totalidade,
depois de doado ao Museu Imperial, de Petrópolis, seu preciosíssimo Arquivo
(52) .
Igualmente citou suas primeiras obras postas em volume, exata-mente no
último ano de seu Reinado. A começar pela edição íntima, impressa na oficina do
jornalzinho de seus netos, D. Pedro de Alcântara (Príncipe do Grão-Pará) e D.
Luís de Orléans-Bragança, o Correio Imperial: uma coleção de suas Poesias, hoje
raríssima. E sua contribuição à Grande Enciclopédie, no mesmo ano de 1889
aparecida em Paris: «Quelques Notes sur la Langue Tupi» (53). Muito maior é sua
bibliografia póstuma, de muitos números podendo ser acrescentada a que
apresentou o bibliógrafo Sacramento Blake, no sétimo e último volume de seu
Dicionário Bibliográfico Brasileiro, aparecido em 1902 (54).
(51) HÉLIO VIANNA — «Paula Brito — o Protetor de Machado de Assis>, na Revista da
Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, do Rio de Janeiro, nº 6, de 21 de julho de 1961, pág. 10.
(52) A primeira tentativa de inventário dos «Diários, Cadernetas de Notas e Apontamentos de
Viagem de D. Pedro II», fizemo-la no Anuário do Museu Imperial, vol. XV. de 1954 (Rio, 1957), págs.
69/82. No vol. XVII, de 1956 (Rio, 1960). apresentamos e anotamos seu Diário de 1862, de que se
tirou separata. Prosseguimos esse estudo, quanto aos Diários imperiais, em vários capítulos do livro D.
Pedro I e D. Pedro II — Acréscimos às suas Biografias (São Paulo, 1966).
(53) AURÉLIO LOPES DE SOUZA «D. Pedro II e os seus livros», no Jornal do Comércio de 2
de dezembro de 1925; transcrito na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 98. de
1925; volume 152 (Rio, 1927), cit., págs. 576/591.
(54) Op. cit., págs. 1/7. Em 1970 reeditada, em off-set, pelo Conselho Federal de Cultura, do
Rio de Janeiro.
HÉLIO VIANNA
Aqui não terminamos nossos estudos sobre a Biblioteca Particular do
Imperador D. Pedro II, iniciados no número passado desta Revista. Outros,
especiais, com ela relacionados, anunciamos em páginas anteriores. Contribuição
maior será, provavelmente, a reservada ao próximo exame dos Manuscritos que
pertenceram à Livraria Imperial, agora de propriedade de Sua Alteza o Príncipe D.
Pedro Gastão de Orléans-Bra-gança, que amavelmente nos permitiu sua consulta.
Estrutura Social Brasileira: Aspectos do Passado
e Transformações do Presente
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
INDA não se fizeram, no Brasil, pesquisas de campo em número suficiente que
permitissem conhecer as características atuais de nossa estrutura social; os
estudos, quase sempre de base teórica, procuram quando muito indicar as
transformações havidas, as mudanças verificadas em decorrência do próprio
processo de evolução de nossa sociedade. Trata-se, todavia, de estudo do maior
interesse para melhor conhecerem-se as modificações que se verificam, ou estão se
verificando, na sociedade brasileira.
As pesquisas empíricas, através do trabalho da utilização de dados primários,
têm abordado o tema, contudo não com a profundidade desejada; antes como
elemento acessório, ou participante, de outros aspectos de pesquisas mais amplas.
Alguns estudos baseados tão só em dados secundários — os do censo ou de
estatísticas periódicas — são ainda insuficientes para um conhecimento adequado
da realidade social que estamos vivendo. Pois o que sucede, de fato, é que há
transformações sensíveis, há modificações importantes, há mudanças naquela
estrutura que recebemos, ou nossos antepassados organizaram, a partir do século
XVI, e que desde então, como era natural, sofreu alterações, algumas bem visíveis,
outras mais lentas. No entanto, a estrutura social é tema de relevo nos modernos
estudos de Antropologia e de Sociologia, pelo que oferece de contribuição para o
conhecimento da sociedade não apenas em sua organização, se não ainda no
relacionamento entre seus integrantes .
1 — O ESTUDO DA ESTRUTURA SOCIAL
Deste tema — o da estrutura social — sabe-se que se tornou hoje em dia um
dos fundamentos de interpretação da sociedade na análise do contexto cultural de
sua formação. E mais: tornou-se o elemento básico de uma teoria modernamente
das mais difundidas, que é o estruturalismo. Assenta justamente o estruturalismo
no conhecimento estrutural da sociedade, procurando, através de sua análise,
interpretá-la e conhecê-la em seus elementos essenciais. Com a irradiação do
pensamento de Claude Levi-Strauss o estruturalismo se tornou, em nossos dias,
como que a
A
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
teoria antropológica e sociológica da moda, superando o funcionalismo ou o
evolucionismo e mesmo o próprio marxismo, como instrumento de trabalho para
modernos intérpretes da vida social e cultural.
E o mais importante do estruturalismo talvez seja o seu aspecto menos
conhecido, no Brasil. É que, difundindo-se sobretudo a partir da década de 50
quando tomaram impulso os estudos de Levi-Strauss, já antes êle se formulara nas
concepções desse antropólogo francês, através das suas pesquisas entre populações
indígenas brasileiras nos fins da década de 30. Na realidade, a formulação teórica
do estruturalismo se fundamentou, basicamente, nas pesquisas sobre o indígena
brasileiro, realizadas por Claude Levy-Strauss, quando de sua permanência no
Brasil; suas primícias, por assim dizer, se encontram nos seus artigos sobre os
Borôro, os Nambikuara, e outros grupos indígenas, e mais tarde nas páginas de
Tristes Tropiques, justamente a obra que projetou aquele antropólogo. Valores
culturais, ou seja aspectos encontrados em sociedades indígenas brasileiras,
levaram o antropólogo francês à formulação de sua teoria antropológica. Teoria,
portanto, que tem suas origens no Brasil; ou seja, na vida social de nossas
populações indígenas.
É certo que não foram de influência indígena os elementos que deram
estrutura à sociedade brasileira. No entrechoque cultural que a partir dos começos
do século XVI, traduziu o processo de colonização brasileira, o elemento
português se tornou o mais importante, e não apenas o mais influente; tratava-se,
antes de tudo, da cultura mais desenvolvida em relação às outras duas: a indígena e
a negro-africana. E além de mais importante, a dominante. Das outras duas, pode
dizer-se, eram as subjugadas, se bem que, apesar dessa sujeição, grande tenha sido
a influência com que penetraram na cultura superior e dominante. O indígena, por
seu próprio estágio cultural, não estava em condições de fazer frente ao elemento
português; vivia ainda em nomadismo, tal como os portugueses encontraram as
populações aborígines, em especial a tupi, no território brasileiro. Da negro-
africana, sabe-se, seus portadores vieram como escravos, e nesta situação tinham
sua cultura condicionada, não podendo influir de modo dominante, e não raro
considerados inferiores. Se bem que — o que indica sua superioridade em valores
de que eram portadores — tivessem influído em vários aspectos da cultura
brasileira; e, de modo particular, na formação da sociedade brasileira pela
miscigenação e pelo aproveitamento de vários elementos de que eram portadores:
na culinária, na música, nas danças, em usos caseiros, em instrumentos
domésticos, na vida social. Inclusive, em características que tomaram certos
valõres integrantes da estrutura dessa sociedade.
2 — ESTRUTURA SOCIAL E OUTRAS ESTRUTURAS
Se é relevante, no estudo de uma sociedade, o conhecimento de sua estrutura,
deve-se considerar igualmente que não se pode ignorar seu relacionamento com
outros aspectos da vivência dessa sociedade. A
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
estrutura económica, a estrutura política, a estrutura religiosa, por exem-plo.Todas
estas estruturas se relacionam na caracterização de uma sociedade, e não apenas,
isoladamente, a social.
Muitas vezes a própria estrutura social está influenciada pela estrutura da
economia, mormente numa sociedade rigidamente estratificada, quando a
identificação em cada classe se faz pelo critério da situação económica. De outra
parte, é possível verificar-se, numa sociedade aberta, sem rigidez de classes
definidas, a influência da estrutura social sobre a economia, ou seja a mobilidade
social permitindo a mudança de posição económica.
De igual maneira, poderíamos compreender que, no Estado, a estrutura
política está intimamente relacionada com a estrutura social; e não só relacionada,
mas fortemente influenciada, pois a estrutura social vai condicionar o
comportamento político, como é o caso das oligarquias, num regime totalitário,
fascista ou comunista. É evidente de tudo isto que, ao se estudar a estrutura social,
muitas vezes se penetra em situações que não são puramente sociais; que são, ao
contrário, de outra natureza, económica, política ou religiosa, mas às quais o
conhecimento da estrutura social está relacionado.
A estrutura social é um conceito dinâmico; mas só pode ser estudada em
determinado momento, isto é, ser focalizada concretamente no instante em que o
pesquisador ou o observador a vê. Daí decorrer todas as dificuldades de sua
compreensão global, e de percepção dos relacionamentos entre as diferentes sub-
estruturas. Talvez por isso Malinowski compara a sociedade a um organismo vivo.
e em conseqüência os elementos que a compõem, no sistema de estrutura,
contribuem para a vida do conjunto. Como conjunto, ou como organismo, o fato é
que tais elementos se relacionam com outros não integrantes da própria estrutura
social.
É, de certo, a mesma ideia que desenvolveu Levi-Strauss, justamente o
antropólogo que pôs em destaque a noção de estrutura social. Para este
antropólogo a estrutura social corresponde ao modelo de um sistema fortemente
totalizado, do qual nenhum dos elementos pode ser modificado sem provocar
mudança em todos os outros. Não se refere a estrutura à realidade empírica, mas a
modelos construídos a partir desta realidade. As relações sociais constituem a
matéria-prima destes modelos. É evidente que os elementos são interdependentes,
e daí a constituição do «sistema» a que não serão estranhos, pelo menos no
relacionamento do complexo cultural que a vida em sociedade exige, outras
estruturas; ou aspectos da culutra global que são considerados igualmente como
estruturas.
É difícil tratar de estrutura social sem nos referirmos a estas outras
estruturas. Não será possível na análise da sociedade isolar um de seus aspectos
ignorando outros. Daí porque muitas vezes, ao se tratar aqui de estrutura social
stricto sensu, se excursiona por outras estruturas. Quando menos para mostrar seu
relacionamento dentro do contexto cultural da sociedade brasileira.
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
3 — OS FUNDAMENTOS DA ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
De modo geral, pela influência e pelo papel da sociedade rural, era ela
confundida com a sociedade brasileira, com esta identificando-se. O que, em parte,
tinha suas razões, pois não possuíamos vida urbana capaz de caracterizar uma
sociedade como tal. E mesmo quando começou a formar-se a sociedade urbana —
isto já no século XIX, com a Corte no Rio de Janeiro — não lhe faltam valores
rurais; muitos dos elementos de vida rural dela participam, até que são adaptados
ou absorvidos e, consequentemente, com as transformações que a nova sociedade
provoca, vão desaparecendo, ou reformulando-se, ou reinterpretando-se.
Vivendo a maioria da população, nos primeiros tempos de modo quase
absoluto, em atividade agrária ou rural, rurais os interesses da classe dirigente,
rurais também os fatores de fixação do homem no meio brasileiro, era natural que
se criasse certa confusão entre a sociedade global e a sociedade rural. O que se
verificou no Brasil não lhe foi peculiar, embora se tenha tornado de importância
considerável em nossa formação; verificou-se igualmente em outros povos.
A fazenda — e como fazenda genericamente idenficamos todos os tipos de
propriedade rural: engenho, fazenda de criação, estância, sítios agro-extrativos,
fazenda de algodão, ou de café, ou de cacau, seringais — se constituiu o centro de
vida em torno do qual se formou e se desenvolveu o Brasil. Era ela centro
econômico, unidade social, núcleo demográfico; constituía o ponto de
convergência de todas as atividades, o ambiente em que o domínio da família
sintetizava todo o poder e toda a influência.
O que, de modo geral, tem sido chamado de ciclos econômicos na vida
brasileira, são, a meu ver, preferencialmente fases de ocupação do território; e com
ela, a implantação de uma sociedade, com sua estrutura muitas vezes adequada à
própria condição do meio, sem prejuízo, é claro, da presença e, sobretudo da
preservação, de alguns elementos comuns a todos os outros; e entre eles, a família.
Da agro-indústria do açúcar ao pastoreio, do extrativismo vegetal ao extrativismo
mineral, da atividade agro-pastoril à agricultura do café, o que encontramos
sempre são os momentos de ocupação humana do território, o seu desbravamento
com a implantação de uma atividade, em geral atendida a vocação ecológica da
terra.
Apesar das diferenças regionais, oriundas da atividade económica e das
formas de vida que se estabeleceram, surgindo peculiaridades que distinguiam uma
região de outra, o fato é que, preservados certos valores comuns, se pôde constituir
o que chamamos de sociedade rural, com tão fortes características que ainda hoje
persistem.
O desenvolvimento das cidades, fenômeno relativamente mais recente, em
que pesem a experiência mineira do século XVIII e, anteriormente, a experiência
holandesa na primeira parte do século XVII
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
no Recife, é que vai mostrar certas diferenciações existentes; e isto como
consequência do surgimento de novos valores, a transformação de costu-mes uma
maior abertura a influências externas, sobretudo europeias. Contudo, muitos dos
valores rurais se incorporaram à cidade, marcando-a suas origens, até que o
crescimento da urbanização e da industriali-zação, já quase em nossos dias, lhe dê
como que foral de emancipação. É justamente com esse crescimento — o da
urbanização e o da industrialização, embora em níveis regionalmente variados —
em ritmo ais acelerado, que o homem rural mais se distancia da sociedade global
de seu lado, começa a identificar-se com a sociedade urbana. Todavia o próprio
crescimento urbano, natural em processo de desenvolvimento faz com que se
estendam até o meio rural suas influências; o inverso, pois, do que antes se
verificava: agora a influência urbana sobre meio rural. Sobretudo, através dos
modernos meios de comunicação. É o quadro já de nossos dias, que estamos
vivendo em nosso tempo.
4 — PATRIARCALISMO E ESCRAVIDÃO
Dois extremos caracterizaram, desde logo, a estrutura que se formava: de um
lado, os grandes proprietários territoriais, donos das terras agrárias ou de criação
ou de extração, colocando-se no alto; de outro lado, no extremo inferior, os
escravos negros e os índios, estes, em geral, não escravizados, mas sujeitados, em
condições primitivas de vida. No meio destes extremos, flutuante, indecisa, quase
sempre dependente, uma população formada por pequenos comerciantes, artesãos,
pequenos colonos, lavradores sem terra, alguns trabalhadores livres.
Patriarcalismo e escravidão completavam-ser e não será estranho dizer que o
escravo se integrava na família. Embora fosse uma propriedade de senhor como o
eram a terra, as lavouras, as instalações da propriedade, na realidade o elemento
escravo participava da família do proprietário. Eram batizados e apesar de não
serem raros os castigos inflingidos aos escravos, a verdade é que, na maioria dos
casos, eram bem tratados. Não se esqueça que o escravo era um bem económico,
alguma coisa que valia dinheiro.
Do patriarcalismo sabe-se quanto foi significativa sua influência na formação
brasileira, sobretudo nos três primeiros séculos, com o domínio quase absoluto do
patriarcalismo rural, e ainda no século XIX com o patriarcalismo urbano, que
abriu, já no fim da centúria, a transição para o burguesismo. O patriarca era o
todo-poderoso não apenas chefe da famíla, pois alongava seu poder, sua
influência, seu domínio, aos parentes, aos afilhados, aos compadres, aos
protegidos, aos escravos. O sistema de parentesco era amplo; e de tal amplitude
que sua extensão quase não tinha limite; caindo na área de domínio do patriarca, a
pessoa se tornava parente. Quando menos compadre ou afilhado na fogueira de
São João.
Daí a importância do parentesco, mais que do mérito, na vida brasileira. Os
empregos, os cargos públicos, as representações políticas
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
cabiam aos parentes. Com o patriarca, o parentesco se alongou ao
patrimonialismo, dentro daquela linha que lhe traçou Max Weber, estruturando a
organização local e, por extensão, provincial e nacional. O certo é que o
patrimonialismo, mesmo decaído o patriarcalismo, persistiu, penetrou pela
República a dentro, chegou aos nossos dias, através do familismo e do compadrio.
E, por paradoxal que pareça, o processo de democratização no Brasil mais fêz
crescer o espírito patrimonialista, sobretudo pelas forças locais no controle do
poder político. Da organização social o familismo se alongou à organização
política, dominando-a. Cabe lembrar, a esse respeito, que o patrimonialismo, em
seu sentido político, se traduziu na chamada «clientela eleitoral». É uma espécie de
apadrinhamento, agora político: o chefe político tem os eleitores sob sua proteção,
apadrinhando-os no pedido de empregos, na obtenção de vantagens, na nomeação
para postos ou posições, na proteção pessoal a ponto de criar uma quase imunidade
e não apenas impunidade. Por sua vez, os auxiliares, ou seja o eleitorado,
correspondem com a fidelidade nas urnas, aceitando seus candidatos sem qualquer
discussão.
Não foi raro — e isto tivemos ocasião de observar na área açucareira do
Nordeste, como foi observado em outras áreas — o escravo que tornado livre
tomou o nome de família do senhor. Era uma maneira de traduzir seu apego à
família do patriarca, a ela considerando-se pertencente. Daí ter se ramificado em
famílias de côr, muita família branca, com seus ares aristocráticos ou fidalgos.
Na estrutura social que se implantou, estes dois elementos se tornaram bem
característicos na organização da sociedade brasileira. Do patriarcalismo, o
declínio só começa a manifestar-se no século XIX, que foi, aliás, quase todo êle de
transição. Pois com a Corte, a abertura dos portos, as novas influências chegadas,
o patriarcalismo começa a ceder em suas bases. Mas nos fins do século, com a
queda do Império, é que declina quase verticalmente para dar origem ao
burguesismo, irrompido principalmente com as novas ideias, não apenas sociais,
mas também econômicas, que se expandem pela sociedade brasileira.
A escravidão viveu quase paralelamente ao patriarcalismo; o declínio de uma
acompanha o do outro. No século XIX, pouco a pouco, a escravidão vai se
enfraquecendo, primeiro com a extinção do tráfico. depois com a emancipação dos
nascituros e a dos velhos, mais tarde com a abolição total. O desaparecimento da
escravidão estimula o crescimento de imigração, que, em ascenção a partir de
1870, quando se inicia o declínio da escravidão sobe acentuadamente depois de 88.
Na década 1890-99, o número de imigrantes entrados no Brasil é o dobro do
volume entrado nos oitenta anos anteriores, de 1808 a 1888.
Contudo, abolida a escravidão, persistem muitas de suas marcas, em especial
no trabalho rural, com os sistemas de pagamento então inventados, e que variam,
em admirável riqueza de formas, desde o trabalho assalariado, pago em dinheiro,
até o trabalho pago em comida, ou em adiantamentos, através da figura do
barracão. De modo que, na
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
estrutura da sociedade, se bem a forma patriarcal se tenha diluido, sob as
influências novas surgidas, o sistema de trabalho nem sempre se distanciou muito
do regime escravo. As variações foram criando formas não escravagistas, mas,
sem dúvida, de sujeição.
Que tal situação existe, com uma vinculação do trabalhador ao proprietário,
temos um testemunho ainda recente, de absoluta insuspei-ção. «Vi como os
homens se vinculam à terra, vinculados aos seus donos» — foi o que disse o
Presidente Medici, em seu recente discurso na SUDENE ( 6 de junho de 1970) .
Êle próprio viu a situação que fixou em palavras fortes, definidoras, se não mesmo
denunciadoras, de uma realidade gravada em cada uma de suas observações, não
por ouvir dizer, nem por leitura de livros alarmistas, mas do que fixou — diz êle
mesmo — «com meus próprios olhos». O que lhe foi dado ver no Nordeste, teria
visto igualmente em outras regiões, onde a situação não é diferente.
5 — OS EXTREMOS DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL
Ser proprietário era título a que todos aspiravam, porque representava por
assim dizer o poder; não apenas o poder económico, mas o poder social e, por
extensão, o poder político. De senhor de engenho que foi nos primeiros séculos o
grande proprietário, porque o açúcar era a base de toda a economia brasileira, dizia
Antonil, no século XVIII, já nos começos da decadência do açúcar, que é título
por muitos aspirado e desejado.
O que se poderia estender depois a outros proprietários: o criador de gado, o
fazendeiro de algodão, o mineiro, o estancieiro, o seringalista, o fazendeiro de
café, enfim, os vários títulos de atividade económica que traduzem a propriedade
da terra. Consequentemente, ser dono de sesmarias, receber uma doação de terras,
que quase nada custava, era aspiração de quem vinha para o Brasil tentar fortuna.
Não raro já dono de fortuna, ou quando não de título honorífico, pelo mérito de
suas vitórias em terras da África ou da Ásia, nas conquistas marítimas. De fato,
recebiam a sesmaria, de modo geral, homens ligados à nobreza em Portugal, ou
militares e navegantes com títulos de vitória, tornando-se a concessão um prêmio a
serviços relevantes prestados à coroa.
A propriedade da terra, portanto, era o extremo alto da estrutura social; e,
através do Império, tal situação se consolidou, estendendo-se mesmo até quase
nossos dias. O quase vai por conta do fato de que o surto urbano, os inícios da
industrialização, os altos postos começaram a criar outros títulos que igualavam,
no ponto mais elevado dessa estrutura, os que se tornavam grandes comerciantes,
grandes industriais, altos funcionários da República. Não sofreu alteração,
portanto, a estrutura em que se fundamentou o processo de formação da sociedade
brasileira.
No outro extremo, com o desaparecimento do escravo, nas vésperas da
República, e a diminuição cada vez maior das populações indígenas
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
nas regiões povoadas e ocupadas, começa a formar-se uma população de
marginalizados, população e:-sa que desfruta condições de vida árduas, mais
talvez que as do escravo, pois este era considerado como valor econômico. De
modo geral, são descendentes dos primitivos escravos; ou trabalhadores rurais sem
terra, vivendo de um efêmero trabalho aparecido na época de colheita ou de
semeadura; ou ainda pobres migrantes que, fugindo das condições de vida do
interior, procuram as capitais, onde não encontram o trabalho adequado,
dedicando-se ao biscate; ou são ainda os que vão engrossar as populações das
áreas marginalizadas das cidades: as favelas do Rio, os mucambos do Recife, as
vila-malocas de Porto Alegre, os alagados do Salvador, a cidade flutuante de
Manaus.
Não deixou de persistir, entre um e outro extremo, uma camada flutuante,
que ora na dependência dos grandes proprietários, ora pendendo para as classes
mais baixas, oscila dentro desta estrutura, sem representar todavia uma autêntica
classe média. Desta não se pode falar tenha existido ou exista, no Brasil, como tal;
faltam as necessárias características para definir, na estrutura da sociedade, como
classe média, essas camadas que encontramos em atividades muito diversificadas,
embora procurando a ascenção social que lhes abra melhores oportunidades.
Contudo, poderíamos dizer que a partir de certo momento começa a formar-se esta
camada média, se bem que ainda não definida, ou, pelo menos, ainda indecisa, em
sua afirmação como tal.
Não quer isto dizer inexista, de modo absoluto, uma classe média; existem
realmente grupos da população que se situam, na escala social, entre os mais
elevados e os mais baixos, não raro sofrendo os efeitos de um ou de outro em sua
própria identificação. Não existe, porém, nestes setores uma consciência de classe
— de classe média, portanto — por isso que oscilam entre os extremos, sobretudo
pela participação, em face da própria condição social, na vida das classes altas.
Porque lhes falta esta consciência de classe, consequentemente para agir como tal,
é que os seus integrantes procuram identificar-se, de modo geral, com a classe
superior, dela participando em certos deveres, mas dela não auferindo todas as
vantagens. Daí a insatisfação social que surge nos setores chamados de classe
média.
6 — A FAMÍLIA NA ESTRUTURA DA SOCIEDADE
O que, todavia, caracteriza a estrutura social, seja no extremo alto, seja no
extremo baixo, no meio rural ou no meio urbano, é a presença de um elemento
constante, que poderíamos situar como o centro de convergência de toda a
formação social do Brasil, e em tôrno da qual se fixou a organização da sociedade:
a familia.
É sobre a família justamente que repousa a formação da sociedade brasileira.
É a família de tipo poruguês, moldada na estrutura que vem da península, e
conservando, inclusive, certos traços ou aspectos que
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
igualmente se prolongam entre nós, de modo a incluir-se entre as características de
nossa formação. De fato, o estudo dessas características permite mostrar como
conservamos aqueles mesmos traços que Clenardo observou para a sociedade
portuguesa do quinhentos: a repugnância pelo trabalho, em especial pelo trabalho
manual; a fidalguia; e a liberalidade de costumes.
O trabalho escravo como mão-de-obra supriu — ou, será melhor dizer,
alimentou — esta repugnância pelo trabalho manual, proporcionando
oportunidade para o ócio; daí a mania de ostentação, a procura de títulos e de anéis
simbólicos, de modo a criar a outra mania: e de fidalguia. Origem nobre que se
procurava nas genealogias, com especialistas em arranjar linhas de família sempre
entroncando com a velha nobreza, o interesse pelas comendas, a compra de títulos
nobres, eis alguns dos aspectos que caracterizavam a fidalguia portuguesa
alongada ao Brasil.
No Império a mesma influência se prolongou, com os baronatos e os
condados, inflacionando de títulos de nobreza a sociedade brasileira, nem sempre
de base fidalga, se considerarmos principalmente que, em nossas origens, a
liberalidade de costumes originou muito mestiço sem quaisquer raízes
aristocráticas. A moral de que ultra equinoxialem non pecavit dominou, por muito
tempo, em que pese o trabalho dos S. J. no sentido de moralizar a sociedade, de
legitimar as uniões ilícitas oriundas das relações amorosas que nasceram do
colonizador com a mulher indígena ou com a mulher africana. A mestiçagem se
intensificou com essa liberalidade de costumes, que aos poucos se foi
modificando, pela ação religiosa, pela sedentariedade que se estabeleceu, pelos
princípios jurídicos implantados, para tornar-se tão só em relações ilícitas, não
raro ainda hoje verificadas.
É de assinalar, todavia, que aqueles amancebamentos ou mancebias, referidos
pelos padres jesuítas em suas cartas do século XVI, não sofreram solução de
continuidade nestes séculos; existem ainda hoje no tipo de família cuja formação
não tem o consenso jurídico nem o sacramento religioso. São os chamados
«amasiados», em que há uma união geralmente estável, respeitando-se o casal
como marido e mulher legalmente constituídos. Esses casamentos duram longos
anos, ou toda a vida. Não raro, a falta de cerimônia, civil ou religiosa, decorre da
ausência de recursos financeiros para «tirar os papéis», isto é, a documentação
indispensável para a celebração da cerimônia.
Essas uniões, chamadas livres, aparecem em número elevado nos resultados
censitários. Um de seus aspectos, embora não se relacionem tão diretamente os
dois fatos, está no alto índice de mães consideradas solteiras encontrado nos
censos brasileiros. As análises do saudoso professor Mortara e de seus discípulos
do antigo Laboratório de Estatística do IBGE, evidenciam os níveis numéricos, e
não raro de expressão social, a que chegam os dois fatos: as uniões livres, não
consagradas pela lei ou pela religião, e as mães solteiras.
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
De base patriarcal e escravocrata, foi o tipo de família que aqui se arraigou,
sob a influência da economia latifundiária. Família que era não apenas unidade
social, pois se alongava a unidade econômica e política. Representava, já o
dissemos, a base da sociedade; e por sua característica patriarcal, unida à sua
natureza patrimonialista, seu poder, e não apenas sua influência, era considerável.
7 — A POSIÇÃO ETÁRIA NA ESTRUTURA SOCIAL
Pode-se dizer, talvez sem muita margem de erro, que em tôrno da família vão
girar aqueles outros aspectos que completam seu papel na vida brasileira: o poder
político, a força econômica, o prestígio social, a posição na sociedade. E sobretudo
aquelas categorias que integram a própria família, de um lado, na distribuição de
suas funções, e, de outro lado, no papel a ocupar pelos sexos. Queremos referir-
nos, particularmente, aos grupos de idade e à distinção de sexo.
Quanto aos primeiros, creio, não houve ainda no Brasil um estudo
sistematizado a respeito das funções exercidas, no quadro social, pelas categorias
de idade, desde as criancinhas de colo ou no começo da vida, passando pelas
crianças em idade escolar, pelos adolescentes, pelos jovens, pelos casados, pelos
velhos. As sugestões que se podem recolher encontram-se, em grande parte, na
obra de Gilberto Freyre, principalmente Casa Grande & Senzala, quando estuda a
posição etária na vida da família patriarcal, e em Sobrados e Mucambos, ao
analisar a mesma posição, já agora no período de decadência do patriarcado rural e
das primeiras manifestações de vida urbana.
A partir dos cinco ou seis anos, a posição do menino começava a
modificar-se, deixando de ser a criancinha pura de antes. Apresentava
os primeiros sintomas de vida ao ar livre, de convivência com os animais
das fazendas, também com os molequinhos filhos de escravas; e iniciava-
se na aprendizagem de uma vida o seu tanto livre, e mais que livre,
quase mesmo libertina. Aprendia nomes feios, sabia certas coisas, não
podia ouvir as conversas dos maiores, gostava de fazer muitas perguntas,
às vezes indiscretas. As diabruras que aprendia levava-as não raro para
casa aperriando pai e mãe, que os consideravam uns diabinhos. No caso
de menina, porém a situação era algo diferente, conservando-se mais
recatada, brincando na casa grande com irmãs e primas, e, se não as
tinha, apenas com suas bonecas; e não raro com as filhas das escravas
domésticas, estas porém mais disciplinadas e, sobretudo, vigiadas em seu
comportamento. '
Desde então — dos 6 anos — e até à adolescência, tanto meninos como
meninas já se iniciavam num vestuário de gente grande; roupas de crianças quase
não as havia. Usavam os pobres meninos trajes imitando os de homens feitos e de
senhoras, roupas quase sempre pesadas, abafantes, anticlimáticas . Daí as não
poucas doenças que
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
surgiam, prolongando-se lamentavelmente em casos de tuberculose precoce, as
tísicas da época, contra as quais eram impotentes os remédios
caseiros __ os chás ou os xaropes. Adolescência quase não havia como
aproveitá-la. Das meninas sabe-se que quase sempre casavam ainda novas: aos 13,
aos 14 anos já estavam casando. E, o que era pior, com senhores de mais de vinte
ou de trinta anos. Daí muita viuvez precoce.
Com a mãe, às vezes com um padre-mestre, que era ao mesmo tempo
capelão da propriedade, aprendiam meninos e adolescentes, a leitura, a tabuada, a
gramática; às vezes o ensinamento se alongava ao latim, em particular quando na
família havia pretensão de ter um filho padre. Pois o sacerdócio dava importância
à família, melhorava-lhe a posição social e constituía, sobretudo para famílias
pobres, um canal de ascenção social. Daí o papel que exerceram os Seminários na
vida brasileira, tanto na espiritual como na social.
Casados sem quase passar por uma verdadeira adolescência, homens e
mulheres iniciavam uma nova etapa de vida tornando-se donos e donas de casa. A
diferença de posição passava a ser mais de sexo: o homem voltado para as
atividades econômicas, extra-domésticas, a mulher dedi-cando-se ao trabalho
doméstico, a supervisionar as atividades de casa, comandando suas escravas e
empregadas. Bem típico, embora de período já de transição, é o quadro que nos
traçou Joaquim Nabuco, ao descrever sua madrinha sentada na sala de jantar,
cercada de mucamas, dando ordens, distribuindo trabalhos, sem se afastar de seu
croché.
Depois, a velhice; velhice nem sempre de longa idade. Muitas doenças até
então não identificadas levavam cedo os chefes de família. Os filhos, já quando se
manifestavam os primeiros achaques de idade nos pais, tomavam a direção da
propriedade, ou o comando da atividade política. Os velhos passavam então a
ocupar uma posição em que se consolidava aquele respeito que eles mesmos,
quando crianças, haviam aprendido: o culto pelos mais velhos, o respeito pela
idade, a impossibilidade de discutir, ou sequer discordar, do mais idoso. Traço
bem nítido de estrutura na sociedade patriarcal, que se alongava também à
distinção de sexo.
8 — O HOMEM E A MULHER NA ESTRUTURA SOCIAL
Este é outro aspecto que se salientava em nossa estrutura: a função exercida
pelo sexo — no masculino, a do homem distinguindo-se da do menino; na mulher,
a das senhoras diferente da das meninas; e ainda mais distintas as posições do
homem, como ser masculino, e da mulher, como ser feminino. Distinção que bem
nítida na estrutura patriarcal alongou-se a grande parte do período de decadência
do patriarcalismo e aos próprios inícios do processo de urbanização; e somente
modifi-cando-se com as transformações mais contemporâneas, em especial nas
zonas de industrialização, para tornar-se — e para êle justamente João XXIII
chamou a atenção em sua encíclica Pacem in Terrís — um dos
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
«sinais do tempo», ou seja, um dos fenômenos que caracterizam nossa época: o
ingresso da mulher na vida pública. «Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da
própria dignidade humana, não sofre mais o ser tratada como um objeto e um
instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de
pessoa, tanto na vida familiar como na vida social» (Pacem in Terris, nº 41) .
O que não sucedia — poderia ter dito João XXIII — na sociedade patriarcal:
não tinha direitos, embora tivesse muitos deveres, entre eles, e principalmente, o
de procriar. Esta era, sem dúvida, a função principal da mulher: procriar. Ter filhos
e criá-los. Se nobre tal função, não poderia, entretanto, ser única, embora o fosse
pela própria estrutura da organização social vigente. Nada era possível à mulher;
nem mesmo aparecer a um visitante; também não lhe era permitido, em muitos
casos, sentar-se à mesa para as refeições com o marido e os homens da casa;
conversar com pessoas estranhas lhe era vedado. Restrições sobre restrições
marcavam a posição da mulher nesta sociedade patriarcal.
Funções, atividades, papéis, distintos dos da mulher eram os do homem — o
senhor absoluto não apenas de seus escravos, mas de sua esposa e de seus filhos.
Capaz, inclusive, de ditar a uma e a outros sentença de morte, com a mesma
naturalidade com que punia seus escravos, mandando aplicar-lhes castigos os mais
diversos. O papel do pai e senhor caracterizava o homem. E por isto o filho, ainda
menino ou adolescente, o imitava: não apenas no vestuário se verificava tal imita-
ção, que se alongava ainda aos modos, aos costumes, aos hábitos. O menino e o
adolescente faziam-se homem antes do tempo.
Da mulher se sabe que na sociedade patriarcal era «uma criatura diferente», e
isto pela maneira como o homem a considerava não lhe dando oportunidade de
colaborar nos seus negócios. Vivia completamente à parte, sem ouvi-la, sem
atendê-la, quase esquecendo de que ela existia como sua companheira. Era
apenas a mãe.
9 — AS TRANSFORMAÇÕES E SEUS FATORES
Ao desagregar da sociedade patriarcal, em suas primeiras manifestações, em
especial com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, e mais acentuadamente a
partir da extinção do tráfico de escravos, em 1850. corresponde o surgimento de
novos elementos através dos quais outros valores começam a implantar-se. De um
lado, é o surto da economia urbana, manifestada na formação de uma sociedade
que traz valores contrastantes com os até então existentes; e, de outro lado, é o
aparecimento dos inícios da industrialização, fundando-se fábricas, sobretudo de
tecidos, que vão dar fisionomia distinta às atividades predominantes até então,
sobretudo pela diversificação. A sociedade urbana e a economia industrial
contribuem para modificar, no quadro estrutural então vigente, os valores até ali
adquiridos e preservados.
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
A família, a idade, o sexo vão sofrer alterações em sua distribuição de
funções e de atividades. De início, lentas, as influências vão pouco a pouco
alastrando-se à proporção que também se alastram as iniciativas de
industrialização, e a vida urbana começa a dar novo contorno à sociedade. Desta
vida urbana participam os novos grandes proprietários, que são os donos de
indústrias, agora também integrando o alto da escala social. O papel das crianças e
o da mulher igualmente recebem influências modificadoras, ao mesmo tempo que
lentamente a estrutura da sociedade começa a adquirir novos contornos nas
relações sociais, nos hábitos, nos costumes, no vestuário, na frequência à rua. Este
último aspecto, aliás, se torna marcante. É talvez o traço mais característico da
transformação na estrutura da sociedade: os serões já não são domésticos, em casa;
transformam-se em saraus em clubes ou associações, ou em festas de ruas, umas
profanas, outras religiosas.
Muitas dessas novas influências haviam sido trazidas pelos imigrantes: a
partir de 1808, com a abertura dos portos,começamos a receber não apenas
visitantes — cientistas, cronistas, jornalistas, escritores — para o conhecimento
dessa sociedade desabrochada em pleno trópico, mas igualmente grupos de
imigrantes europeus, mas não portugueses, os primeiros deles suíços alemães que
se fixaram em Nova Friburgo. Mais tarde, a colonização se alarga, com a
introdução de alemães, italianos, poloneses, sírios, suábios, libaneses, e outros
grupos; e já em nosso século, de japoneses e de holandeses. Também se verifica
imigração para a cidade, sobretudo na segunda metade do século XIX; e em
especial para São Paulo. Ao alvorecer da República um viajante alemão dizia
encontrar em São Paulo uma cidade italiana; como cidade italiana também a
classificou, nos começos do nosso século. Pierre Denis.
Com o imigrante se introduzem novos hábitos e costumes, muitos deles
estritamente sociais, sobretudo os relativos a festas, saraus musicais, orquestras,
teatros; mas há também a influência indireta, que chamaríamos por imitação,
como é o caso dos franceses, que não sendo, como imigrante, uma contribuição
numericamente volumosa, deles recebemos uma influência notável na vida
intelectual e cultural. Sobretudo, na formação feminina através dos colégios de
religiosas, que começaram a ser frequentados pelas filhas de família, já não mais
presas exclusivamente ao ambiente dos engenhos ou dos sobrados urbanos.
O Colégio de padres, para meninos, e o de religiosas, para meninas, têm um
papel considerável não apenas na formação das novas gerações, como igualmente
na posição que uns e outras passaram a ter, superando as restrições até então
vigentes, e a que anteriormente nos referimos. Abre-se oportunidade às moças a
aprenderem a ler, o que era raro no regime patriarcal. Introduziram-se brinquedos
de roda, canções populares, música para dança.
As moças aprenderam a conversar, e não só em português como também em
francês; e aprenderam a dançar a quadrilha, a polca, a valsa,
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
enfim estilos musicais novos, trazidos com a cultura europeia. O piano completava
esta formação; moça prendada incluía também o saber tocar piano. Da dança, do
baile, da festa social, começou a implantar-se um novo rito de passagem para as
adolescentes: a festa de apresentação à sociedade, a festa das debutantes, o debutar
como uma introdução na vida social.
Da França nos vieram professores de piano, modistas, costureiros,
professores de língua, menus para almoços, restaurantes, e não apenas técnicos,
engenheiros, artistas. A vida social se modifica. E bem expressiva do período é o
que uma quadra popular registrava:
O passatempo da noite Hoje
serão já não é; Tudo se quer à
francesa, Chama-se mesmo
soirée.
É evidente que tais influências, a francesa de modo geral, a italiana, a alemã,
a polonesa, a siria, a libaneza, aqui ou ali, onde estavam presentes os imigrantes,
iriam contribuir para as transformações que o século XIX apresenta, inclusive
afetando a estrutura social, com os novos hábitos familiares, com as novas funções
dadas à mulher e ao homem, ao menino e à menina, à criança e ao adolescente. E
iria influenciar de maneira sensível, de modo particular, em São Paulo e no Rio
para o processo de urbanização.
Este — a urbanização, não num sentido ainda nacional, mas particularmente
nas capitais, ou mais exatamente, em algumas capitais — é outro aspecto a
considerar das influências nas transformações que se iniciam no quadro social
brasileiro. Claro que não foi um processo geral ou global; verificou-se mais
acentuadamente em São Paulo e Rio de Janeiro, com facetas distintas em uma e
outra cidade. Ali, por exemplo, a própria imigração acelerou o processo, sobretudo
pelo papel que o italiano exerceu. E ainda de maneira distinta no Rio Grande ou
em Santa Catarina, onde a urbanização nas áreas de imigração teve características
próprias.
Da mesma forma seria o imigrante que impulsionaria em São Paulo o
processo de industrialização. Não trazia o alemão ou o italiano a prevenção contra
o trabalho manual ou técnico, tal como acontecera com o português. De modo que
sua participação no processo de industrialização — claro que indústria de
transformação apenas, e não indústria de base — havia de tornar-se fundamental.
O São Paulo quatrocentão foi superado pelo São Paulo imigrantista.
Isto não exclui também a presença de brasileiros nesse processo. Deles, a
contribuição foi grande. Contudo, vexifica-se de maneira isolada, isto é, uma
iniciativa aqui, outra ali, onde aparecia um espírito novo de empreendimento, às
vezes até com alguma audácia. As fábricas de tecidos surgem em diferentes
cidades do Brasil na segunda metade
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
do século XIX; e ao alvorecer da República, com o encilhamento, o processo se
acelera. E com o crescimento da industrialização, a transformação começa a afetar
a própria estrutura da família. Sobretudo, o trabalho feminino na fábrica. Esta vai
ser, sem dúvida, a grande transformação. A modificação quase completa da
posição da mulher na sociedade. Como também do adolescente, este agora atraído
pelo trabalho industrial, da mesma forma que já estava introduzido no trabalho
agrícola.
10 — DESIGUALDADES E DESEQUILÍBRIOS ESTRUTURAIS
As transformações, por mais profundas que tenham sido em alguns aspectos
da estrutura social, não alteraram substancialmente o que se verificava na
sociedade rural. Ao contrário: as duas — a urbana e a rural — continuaram a viver,
às vezes cada uma por si própria, autônomamente, ouras vezes através de um
sistema de coexistência ou de aproximação. Rural e urbano representam, portanto,
duas faces de um mesmo processo, hoje completando-se pela interreleção que
existe. Contudo, é evidente que, participando de uma mesma estrutura, constituem
um e outro elementos desiguais, mesmo em vários aspectos dessa estrutura.
De fato, são gritantes as desigualdades, no nível social, e não apenas apenas
no nível econômico, entre o rural e o urbano. São mundos cujas desigualdades
refletem profundamente no próprio desequilíbrio que se verifica no processo de
desenvolvimento brasileiro. As condições da vida no meio rural defrontam níveis
do mais baixo teor, contrastando com o conforto e o bem-estar existentes no meio
urbano. Daí o crescimento migratório cada vez mais acentuado, sobretudo quando
crises ou episódios — de natureza económica, ou de condição física — provocam
movimento maior de migração.
O caso do Nordeste, por exemplo; ainda hoje se culpa a seca pela
desigualdade existente no Nordeste, quando na realidade se trata de caso episódico,
não permanente, A causa é profundamente social, e a seca reflete apenas a
incapacidade para resolver os problemas básicos da região. Enquanto não se
modificarem certas condições estruturais da região — umas, de caráter social,
outras, de natureza econômica — é impossível vencer a seca. O episódio climático
é tão só um lado, e este ocasional, das condições e vida das populações nordestinas
dentro de uma estrutura social com elementos inadequados, arcaicos, incapazes,
para nosso processo de desenvolvimento.
Se se observarem os dados estatísticos referentes à origem dos migrantes,
uma constatação se tornará fácil: o maior volume da migração nordestina vem das
áreas consideradas úmidas, onde se implantou, desde os primórdios do Brasil, a
lavoura canavieira, ou seja a área dominada pelos grandes latifúndios. E a grande
propriedade — é o que dizem os entendidos — é fator de expulsão do homem.
Considerando-se o movimento migratório de gente empregada e sub-empregada do
Nordeste
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
para o Centro-Sul, em 1963, verifica-se que subiu a 200 mil pessoas por ano. De
Pernambuco, saíram 92% da zona da mata ou do agreste; de Sergipe, 60% da
região úmida; das Alagoas, 38% e da Paraíba 62%, também, em ambos os casos,
da zona úmida.
Se particularizarmos um caso, o da migração para o Recife, que é a capital
nordestina para onde mais se movimenta o migrante interiorano, os números não
são menos expressivos: 59% procederam da zona cana-vieira, 38% do agreste, e
3% do sertão. Estes dados refletem uma constatação bem significativa, para
evidenciar que a migração não é decorrente das secas, nem seu maior volume
provém das zonas sertanejas, mais diretamente atingidas pelo fenômeno climático.
É bastante verificar, aliás, que, mesmo em períodos normais, sem sêca, nem
enchentes, o contínuo migratório não se interrompe; e nos últimos anos se faz em
várias direções: São Paulo, Rio, Guanabara, Brasília, Belém-Brasília. E o mais
grave é que, não raro, os jornais noticiam um processo migratório dirigido, em que
a vida humana é negociada: nordestinos vendidos como escravos para fazendas
mineiras ou matogrossenses. E ainda não se criaram condições para cercear este
comércio humano, pois continua a verificar-se, segundo denúncias, aqui ou ali,
veiculadas na imprensa.
O problema é portanto, de estrutura. De estrutura ainda não totalmente
transformada, de velho arcabouço feudal ou semi-feudal, dominante no Nordeste,
como, de resto, em outras partes do Brasil. E o grande responsável por tal situação
é a falta de execução de uma reforma agrária autêntica capaz de abrir o acesso à
propriedade da terra a esse mundo de lavradores sem terra. Capaz igualmente de
criar um poder aquisitivo de consumo nessas populações rurais. Capaz assim de
incrementar o processo de relacionamento econômico. Não se trata de ideia de
fundo demagógico; ao contrário: ela se fundamenta no conhecimento da própria
realidade, tanto assim que a reclama, no que se refere ao Nordeste, a SUDENE,
cuja obra tem sido, não raro dificultada por fortes resistências. Esta reforma da
estrutura agrária não é um problema novo; não de agora nela se insiste, tanto
através de estudos de pesquisadores especializados como em pronunciamento de
autoridades públicas. É o mesmo — poderíamos acrescentar — que pedia um
fidalgo descendente dos canaviais pernambucanos, como Joaquim Nabuco, ao
reclamar, nos fins do século passado, a «democratização do solo». Problema,
portanto, não novo; mas já esquematizado e reclamado antes da proclamação da
República.
É evidente que o domínio dos latifúndios se torna responsável pela existência
de formas culturais ainda arcaicas, em contraste com as transformações rápidas, e
até mesmo não raro avançadas, que se verificam no meio urbano. Daí as
desigualdades, os desequilíbrios regionais, e não apenas sociais, com que nos
defrontamos no quadro da estrutura social do Brasil contemporâneo.
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
Os autores, ao estudarem o processo de mudança social ou cultural, são
unânimes em assinalar que a modernização acarreta transformações contínuas,
através das quais se gerem processos de desorganização e deslocamentos;
decorrem daí os chamados problemas sociais, os conflitos entre grupos, os
movimentos de contestação, e também os de resistência à mudança.Uma análise
mais aprofundada da estrutura social brasileira, neste momento, denunciaria esta
situação de modernização ou de mudança; e, em consequência, os desequilíbrios
ou os desajustamentos.
É claro que a rapidez das transformações no meio urbano cria
desajustamentos de natureza social, verdadeiro conflito, por isso que duas, três, às
vezes quatro gerações se confrontam, defendendo cada uma seus valores em pleno
contraste. As gerações mais velhas querem resistir mantendo formas tradicionais,
às mais novas, já antevisando estas, porém, o mundo interplanetário e não mais
apenas o intraplanetá-rio. O «No meu tempo não era assim» já se tornou forma
estereotipada dos mais velhos se referirem aos mais moços.
É certo que esse processo de transformação não se verifica num ritmo único;
varia regionalmente — e mesmo dentro de cada região, com diferenças sensíveis
— atendidas as peculiaridades das diferentes variações de gênero de vida, de
tradições, de formação histórica de nossas diversificadas populações. Variam
igualmente atitudes das instituições tradicionais em face de inovações, quer no
extremo norte, ou no extremo sul, na região agrária do litoral ou na região cafeeira,
na região pastoril do centro oeste ou na região cacaueira. Dentro dessa variedade,
contudo, é possível verificar que essas próprias instituições, através de diferentes
maneiras de funcionamento, aceitam as inovações; claro que mais rápido umas,
menos outras.
11 — O TRADICIONAL E O MODERNO
Um dualismo estrutural constitui o traço mais característico de nossa
sociedade, sobretudo quando a observamos neste momento, ainda sob a influência
de novas transformações. Este dualismo consiste na coexistência de duas
sociedades diferentes no tempo cultural, que convivem no tempo cronológico,
procurando uma aproximação, mas sempre encontrando pontos de atrito:
a tradicional, formada pelas populações rurais, em sua grande maioria de
camponeses sem terra; por núcleos interioranos, apegados ainda à rotina agrícola,
às vezes constituindo cidades ou vilas apenas por título; e ainda por populações
marginais urbanas, quase sempre engrossadas pelo movimento migratório interno;
a moderna, constituída pelos pequenos núcleos industrializados, e pelas
populações urbanas, em capitais ou cidades principais.
Na sociedade tradicional persistem os valores de uma população apegada à
rotina, sem vislumbrar perspectivas novas, em pleno domínio do analfabetismo,
das doenças de carência, da ausência de técnicas
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
modernas de produção. Na moderna apresentam-se os sintomas de uma
industrialização que, embora não acelerada, procura dar novos elementos à vida
humana, ao mesmo tempo que, aberta à influência de novas ideias, sobretudo as
que vêm dos países desenvolvidos, procura imitar hábitos e costumes estranhos.
Não é rigorosamente uma sociedade tecnológica; estará ainda, talvez, longe disso;
nem é uma sociedade plenamente industrializada. É moderna no sentido de aceitar
inovações, de adotá-las rapidamente, de acolher novas modas — e moda, em seu
sentido antropológico, e não apenas no sentido de vestuário feminino ou
masculino.
Alguns aspectos sociais desse dualismo estrutural poderíamos assinalar:
comunidades, valores tradicionais, papéis e grupos de tipo primário, família
extensa, resquícios de patriarcalismo, importância do compadrio, respeito pelos
mais velhos, são traços que denunciam a sociedade ainda tradicional, ou
sumariamente a sociedade rural; associações de tipo funcional, valores modernos,
de modo geral importados, família nuclear, dificuldade de relacionamento entre as
gerações, enfim traços bem marcantes de uma população em processo de transição
social denunciam a presença dessa sociedade moderna, ou, em síntese, a sociedade
urbana.
Poderíamos então dizer que o dualismo estrutural se encontra, no caso do
Brasil, mais acentuadamente na localização que nos próprios elementos dessa
estrutura. É um dualismo mais acentuado entre o urbano e o rural que entre os
elementos que integram a estrutura social. Talvez seja este o aspecto mais sensível,
na estrutura social do Brasil contemporâneo: o choque entre os valores urbanos e
os valores rurais. Choque que, embora não afetando tão profundamente quanto
seria de esperar alguns valores básicos nesta estrutura, constitui, porém, um
aspecto-expressivo da diversidade de posições e de status que poderemos encontrar
na sociedade rural em face da urbana.
Contudo, não se trata apenas de localização, nas igualmente de distinção
social, de diferenciação de posições sociais, no dualismo que se estabelece entre a
sociedade raffiné e sofisticada, no alto da escala, e a massa da população, sem
adequadas condições de vida, com deficiência alimentar, com doenças que
absorvem a capacidade hospitalar. Basta verificar-se o número de contribuintes
físicos do imposto de renda no Brasil para se sentir o dualismo estrutural. Num
total de noventa milhões de habitantes, somente 4 milhões, em números redondos,
pagam imposto de renda; são quase 5% apenas da população. É um índice, por si
só, já de contraste social existente. São duas sub-sociedades, se for possível, assim
dizer, dentro da estrutura social vigente, com nítidos contrastes, com
diferenciações expressivas, que vão das reuniões chamadas de «society» à
mendicância nas ruas das cidades mais desenvolvidas e prósperas, dos hábitos e
costumes requintados à carência de condições de alimentação ou de vestuário, do
que dá testemunho, nos dois casos, o noticiário da imprensa diária. Na realidade, o
distanciamento social não é apenas entre o urbano e o rural; aliás, este
distanciamento vai encur-tando-se cada vez mais, sobretudo pelos modernos meios
de comunicação..
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
O caso do transistor, por exemplo. O rádio de pilha, porque não exige eletricidade,
geralmente ausente no meio rural, está constituindo um elemento de comunicação
rápida, levando ao homem do campo, no mesmo momento, o que se passa na
cidade. Quebra a distância cultural, vencendo tecnicamente a distância física; e
constituindo elemento influente nas transformações que se verificam no meio
rural, de modo a aproxima-lo, pela imitação, ao meio urbano.
O distanciamento se agrava entre as classes ou grupos que vivem em cada
meio. Tanto no meio urbano como no rural sentimos as difiren-ciações que vão
caracterizando a vivência social. No meio rural, por exemplo, é o jovem agricultor,
sem esperança de terra própria para desenvolver sua atividade, sem espectativa de
uma vida melhor, o que tudo se soma para levá-lo à migração em busca da cidade,
na esperança de aí encontrar melhor ambiente, ou seja, emprego, conforto, bem-
estar. O que nem sempre acontece; ou quase nunca acontece. No meio urbano, não
apenas os jovens como os grupos menos influentes, pela ausência de recursos,
tentam meios que não são os mais adequados, nem seriam os normais. Ao
contrário: levados às vezes ao desespero recorrem à violência, ao desatino, ou a
formas de vida por imitação de outros povos. Em todo processo de mudança
dizem os especialistas — tais problemas surgem, se armam, quase nunca se podem
resolver facilmente: o desemprego, a vadiagem, os vícios, a delinquência, os
crimes. São problemas que decorrem da desorganização dos padrões tradicionais, e
ainda não existindo integração nos padrões modernos.
Se tomarmos, como exemplo, a própria organização da família — e esta
constitui elemento fundamental na estrutura de uma sociedade, o esteio mesmo de
sua organização — poderemos ver os aspectos variados que regionalmente se
encontram no meio urbano ou no meio rural. As próprias diferenciações
decorrentes das posições sociais. Formas dicotô-micas surgem, não nacionalmente,
mas regionalmente, com variantes que traduzem um estágio cultural nem sempre
igual ou semelhante em todo o país, como decorrência da situação social. Ao
contrário: o que avulta são justamente as diversidades regionais. Diversidades que
chegam a aspectos não direi pitorescos, mas bem característicos, como o da
escassez de mulher no interior amazônico, criando episódios de casamento suces-
sivo quando morre o marido, com o pedido feito ainda o defunto não enterrado; ou
então numa comunidade interiorana do centro-oeste em que, à falta de padre ou de
juiz, para o casamento, os jovens se juntam com todos os ritos de um cerimonial,
não apenas a partir do pedido de casamento, mas ainda no ato da união entre os
dois, na casa do pai da noiva, na presença de testemunhas e amigos, tal como em
ato solenemente presidido por juiz ou sacerdote.
Dentro da própria vida na grande cidade, com o crescente processo de
urbanização, poderemos encontrar o choque destas formas dicotômicas. A
migração rural na cidade acentua o dualismo ao se relacionarem, no ambiente
urbano, os valores rurais, quase sempre tradicionais, e os
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
modernos, sempre de visão progressista. A dualidade cria o que já foi chamado de
«micro-culturas» dentro da sociedade urbana. A situação da família é bom índice;
migrado em família, o grupo rural conserva seus padrões e os vai transmitindo aos
filhos em contraste com os que eles encontram na cidade. Mesmo modificando aos
poucos esses padrões de origem rural, a sociedade não cria uma nova mentalidade
nos que os conservam. Aí se encontra, aliás, um dos efeitos da urbanização o
surgimento de formas sincréticas de tradicionalismo e de modernismo.
São tais variações regionais, diversidades decorrentes da própria diversidade
brasileira — e somos acentuadamente uma cultura plural — que mais caracterizam
o dualismo estrutural entre o urbano e o rural, completando ou caracterizando o
choque entre as estruturas tradicional e moderna.
12 — A ESTRUTURA SOCIAL CONTEMPORÂNEA
Tornou-se a estrutura da família mais sensível que outras instituições, às
transformações, sobretudo as que se originaram da urbanização, cujo processo
trouxe, na família, a formação de tipo nuclear, desaparecendo, ou apenas
conservando alguns resquícios, da patriarcal. Este momento de transformações
cria, naturalmente, desequilíbrios e perturba a normalidade da vida social.
Nenhuma estrutura é perenemente estável; nem se conserva a mesma, no longo
decorrer dos tempos; por circunstâncias diversas está sempre em mudança,
sobretudo nos momentos agudos ou agitados em que as transformações se
avolumam ou mais ràpidamente se sucedem. Sobretudo na nossa era tecnológica,
com o aceleramento do ritmo de vida.
Bem razão tinha o vaqueiro Riobaldo. na saga consagrada de Guimarães Rosa,
ao registrar, no seu linguajar espontâneo e ingénuo: «o mais importante e bonito no
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas
— mas que elas vão mudando». Riobaldo confirmava o espírito da Criação: Deus
fêz o homem para completar sua obra, e o próprio homem ainda não terminou essa
transformação, que começa nas páginas do Gênesis e se projetará, sem dúvida,
além do nosso tempo. As pessoas vão mudando, porque a mudança é fenômeno
natural, constante, ineludível nas sociedades.
Mudam-se muitas vezes os hábitos ou costumes, procurando-se uma
adaptação do tradicional ao moderno; nem sempre se muda, porém, a mentalidade.
Ao meio moderno não raro o espírito tradicional se conserva. Ê de ver o que se
passa com a família nuclear moderna. Vindos de raízes patriarcais, do tipo de
família extensa, seus integrantes se vão dispersando, constituindo novos núcleos
familiares; dispersam-se, por assim dizer fisicamente, cada um em sua casa. Aos
domingos se reconstitui a família extensa, de moldes patriarcais, com a reunião de
toda a família na casa do mais velho — o avô ou o pai — de maneira a definir a
presença ainda de uma mentalidade embebida das idéias tradicionais.
Claro que, em sociedade como a nossa apegada a aspectos, muitas vezes
puramente externos, de vivência social, a estrutura da família se
ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA
apresenta mais abalada ou ameaçada, face às inovações e às mudanças que se
verificam. E com ela, o trabalho do homem, da mulher, e do jovem; também a
posição dos sexos, com a procura de uma igualdade de oportunidades e também de
ocupações; e ainda os jovens procurando ocupar os lugares das gerações anteriores
numa antecipação prejudicial a eles mesmos.
E como que numa síntese inteiramente contrária ao que era a estrutura
anterior, os vários papeis que cada indivíduo exerce — familiar ou de parentesco,
profissionais e políticos; o homem desdobrando-se em várias atividades sociais, a
mulher multiplicando-se no lar, no trabalho, na vida social, conscientizando-se de
sua dignidade; e um e outro na procura do lazer como uma forma de atenuação das
angústias geradas pela multiplicidade das funções a que são chamados.
Não se trata, a rigor — e neste sentido há exagero em alguns cando é uma
transformação, uma mudança sobretudo de estrutura — de autores — de
desorganização da família; o que, de fato, está se verifi-patriarcal a família nuclear
— com aspectos que lhe são peculiares: mudança ou transformação de
relacionamento entre seus membros — da «casa grande» rural ou urbana, para o
apartamento urbano; também de organização econômica — da economia patriarcal
para a individual, de cada um, sobretudo com o trabalho da mulher — esposa ou
filha; ainda a de ocupação do tempo, já agora com o surgimento do problema de
lazer que não só para os velhos que se aposentam, ou para os sub-empregados,
mas igualmente para as mais diferentes idades, ao mesmo tempo que a
especialização profissional e o planejamento económico — quase sempre, ou
sempre, exclusivamente económico, e consequentemente unilateral — afetam a
situação dos jovens, criando na juventude outra perspectiva, de modo geral
conflitante com o espírito dos mais velhos; igualmente transformação de
mentalidade — da geração mais antiga apegada aos valores tradicionais, baseada
essencialmente em valores oriundos da experiência, para a geração nova, que
acredita no estudo, na pesquisa, na tecnologia para aquisição de conhecimento, na
comunicação de massas, no aperfeiçoamento da ciência, no desenvolvimento da
técnica aplicada; que acredita na realidade da viagem à lua, e lamenta ter nascido
tão cedo pois não terá oportunidade, talvez, de usar o taxi-lunar, e não mais dá
importância ao espírito imaginativo e à criação novelesca, encanto da juventude de
minha geração, de Júlio Verne.
Daí o inevitável conflito entre as gerações, o choque entre pais e filhos, entre
mestres e alunos, entre autores passados e autores atuais, perturbando a estrutura
tradicional para criar uma nova estrutura, tal como os movimentos de terra
modificam a situação do solo; e sobretudo o inevitável deslumbramento que às
novas gerações causa o desenvolvimento tecnológico, acelerado nos últimos
quarenta anos, em contraste com a lentidão do processo de aperfeiçoamento
técnico dos séculos anteriores.
Os Quilombos
JOSÉ ALIPIO GOULART
OM as denominações de quilombo ou mocambo, são conhecidos aqueles
núcleos de escravos fugidos, que se formavam por esses brasis a fora, via de
regra em lugares de difícil acesso: nos píncaros, nas grotas, nos socavãos, no
âmago de expessas e intrincadas florestas. (1) Grafando mocambo, Beaurepaire
Rohan diz ignorar qual venha a ser o étimo daquela palavra; no entanto, afirma ser
quilombo vocábulo integral da língua bunda incorporada ao português do Brasil, e
significar acompanhamento no dizer dos viajantes Capello e Ivens. (2) Renato
Mendonça assevera que mocambo ou mucambo é palavra africana, quibunda,
formada do prefixo mu + kambo, que quer dizer esconderijo. (3)
Aspecto curioso é aquele salientado por Melo Moraes (filho), em artigo
publicado n A República, quando diz que «as associações de negros fugidos,
formando quilombos, eram ignoradas entre outros povos, juntamente com outros
delitos e crimes tais como o de vender pessoas livres, o furto de escravos, a
capoeiragem, exclusivos do Brasil», afirma êle. (4) Não nos parece que assim
tenha sido: pois símiles dos quilombos brasileiros eram os encontrados em Cuba,
com o nome de palenque, aos quais refere-se Fernando Ortiz nestes termos: «A
veces los esclavos fugitivos se reunían y se encontraban en lugares ocultos,
montanosos y de dificil accesso con objeto de hacerse fuertes y vivir libres e
indepen-dientes, logrando en algunos casos el estabelecimiento de cultivos a estilo
africano, y hasta colonizar cuando conseguían, caso frequente, unirse con algunas
negras horras e cimarrones. Los esclavos en tal estado de rebeldia se decían
apalencados y palenque se llemaba su retiro.» (5)
A existência de quilombos imprimia tal receio aos brancos, que qualquer
ajuntamento de escravos fugidos já era como tal considerado, não importando seu
número diminuto. Consoante Provisão de 6 de março de 1741, «Era reputado
quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos.» (6) No art. 20 do
código de Posturas da Cidade de S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul, aprovado
pela Lei Provincial nº 157, de 9 de agosto de 1848, lê-se que: «Por quilombo
entender-se-á a reunião no mato ou em lugar oculto, de mais de três escravos.» (7)
E a Assem-
C
JOSÉ ALIPIO GOULART
bléia Provincial do Maranhão, querendo ser mais realista que o próprio Rei, votou
a Lei nº 236, de 20 de agosto de 1847, classificando «quilombo» a reunião de
apenas. . . dois escravos: «Art. 12. Reputar-se-á escravo quilombado, logo que
esteja no interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em
reunião de dois ou mais com casa ou rancho.»
Nos quilombos, depois de soado o batá-cotô, instrumento infernal e soturno
usado pelos egbás para congregar os fugitivos, formavam-se as rodas de negros
que, em pouco, ao ritmo de palmas e sapateios, entoavam o canto a bem dizer
guerreiro: «Folga negro / Branco não vêm cá: /Se vier / Páu há de levar.» No
baticum de pés e no estrugir de mãos, em ritimação precisa e conjugada, rebrilham
corpos suarados à luz de fogueadas e elevadas chamas. E quando o escravo
extravasa, ao som de uma nostálgica cantiga, a desforra que de há muito se lhe
atravessa a gorja; e que agora solta aos quatro ventos, ao calor de rubras línguas de
fogo erguendo-se de endemoniadas fogueiras, em derredor das quais dançam,
incansáveis, noite a dentro.
Quilombos já existiam no Brasil desde a centúria do descobrimento, e não
apenas da seguinte como de regra se propala. Já relembrou-se o item 13 do
Regimento de 8 de março de 1588, dado por El-Rei ao governador geral do Brasil,
Francisco Geraldes, acêrca de negros de Guiné e Angola alevantados, que por certo
já se armavam em quilombos. E a 1' de maio de 1597, o Provincial da Companhia
de Jesus no Brasil, o padre Pedro Rodrigues, informava por carta ao Assistente-
Geral da Ordem, o padre João Alves, que os negros de Guiné, aquilombados em
algumas serras, eram o primeiro dos três inimigos que hostilizavam os portugueses
na colônia. (8) Refere-se, com efeito, a quilombos de há muito existentes, a ponto
de terem dado mostra de sua agressividade contra os então colonizadores. (9)
viu-se ser opinião de Nina Rodrigues que muito antes de 1630, data fixada por
alguns historiadores para início dos Palmares, «antes parece que de tempos bem
remotos» por aqueles sítios se refugiavam negros das fazendas vizinhas. (10)
Inumeráveis foram os ajuntamentos de tal espécie que se formaram em todo o
território do Brasil, maiormente aonde se apresentou mais denso o acúmulo de
africanos, melhor diríamos, de escravos, como ocorreu nas áreas do açúcar, nas de
mineração, e nas de café, cada uma a seu tempo, sendo impossível tentar-se
levantamento geral dos chamados quilombos, cuja marca ficou indelevelmente
marcada na toponímia nacional, consoante pesquisa do sábio corógrafo Moreira
Pinto. (11) «Quilombo dos Negros» era como se chamava antigo povoado
localizado na zona da Jacobina; e um ajuntamento de escravos é que deu origem à
cidade de Orobó, na Bahia. João de Matos, no seu Descrição Histórica e Geográ~
fica do Município de Curaçá (Juazeiro 1926), lembra a existência de um riacho
denominado «Mucambo». Renato Mendonça estudou a toponímia de algumas
regiões do Brasil, assinalou a constância de nomes de
Os QUILOMBOS
cidades, vilas, povoados, fazendas ou simples acidentes geográficos com o nome
de Quilombo ou Mocambo.
Sôbre o cerne histórico e sócio-cultural dos quilombos, várias têm sido as
interpretações surgidas, umas dando-se como uma reação do negro ao regime de
escravidão propriamente dito, atribuindo-lhe outras o desejo incontrolável do
africano de retornar à prática de seus escalões culturais, longe e isentos da pressão
sobre eles exercida pela cultura europeia do branco. É um equívoco, porém, como
ficou anteriormente dito, julgar-se o negro um inadaptado àquele regime, de vez
que o mesmo era-lhe familiar, a ponto de constituir-se instituição arraigada a
tradicional entre eles, «consagrada em seu direito penal, como penalidade para
diversos delitos graves», como salientou um estudioso do assunto. Tanto assim
que, como informou Nieuhof, a escravidão chegou a ser praticada entre os negros
dos Palmares. E porque não foram os escravos que, tão logo alforriados, ou mesmo
quando apenas foragidos, transfor-mavam-se, por seu turno, em senhores de
escravos, como ficou cabalmente provado. (12)
O prof. Arthur Ramos, sem dúvida uma das nossas maiores autoridades em
negrologia e escravologia, expendeu, no entanto, a seguinte opinião: «O negro
embora sendo mais capaz do que o índio, ao trabalho agrícola, pelas causas
culturais já apontadas, contudo reagiu, por vezes violentamente, ao regime da
escravidão (grifos nossos). Ora, não nos cançaremos de repetir que não foi ao
«regime da escravidão», em si mesmo, que o negro exprobou: sua rebeldia
manifestou-se, com efeito, em razão das «condições de escravidão» que êle veio
encontrar na América, o que é outro aspecto merecedor de atenção. (13)
Edison Carneiro externa uma tese que se desmembrada em duas partes,
discordaremos da primeira e concordaremos com a seguinte. Diz êle, no seu
excelente O Quilombo dos Palmares, que: «A reação do homem negro contra a
escravidão, na América Portuguesa, teve três aspectos principais. . .» (grifos
nossos) . Discordamos do que se contém na parte grifada: poderemos com a
mesma concordar, todavia, se aquele autor, no que diz a seguir, teve a intenção de
circunscrever sua opinião à reação do homem negro contra a escravidão que este
veio encontrar na América Portuguesa, de, vez que esta é a nossa tese. E tanto
mais nos parece tenha sido este o pensamento de Edison Carneiro que o mesmo na
seguinte parte do seu pronunciamento, dizia assim: «A reação mais geral foi,
entretanto, o quilombo.» Para logo acrescentar: «Era uma reação negativa — de
fuga, de defesa.» Sim, de fuga e de defesa contra os maus tratos, contra os
excessos nos trabalhos e nos castigos, jamais contra a «escravidão» propriamente
dita.
Joaquim Ribeiro interpreta o «quilombo» de maneira que nos pareceu
sobremodo extranha: «quilombo (e é esta a sua verdadeira significação histórica)»,
diz êle, ab initio, à guisa de quem esgota o assunto: «quilombo é uma reação
contra a cultura dos brancos, contra seus usos e
JOSÉ ALIPIO GOULART
costumes; é a ressurreição do organismo político tribal; é o retorno, sobretudo, ao
seu fetichismo bárbaro.» Aqui, o nosso Joaquim Ribeiro parece compactuar com
Fernando Ortiz, quando diz este que em Cuba os escravos fugiam e formavam seus
palenques com o objeto de «hacerse fuertes y vivir libres y independientes,
logrando en algunos casos el estabelecimiento de cultivo y estilo africano. . .»
(grifos nossos). Note-se, porém, que Ortiz é cauteloso, restritivo — en algunos
casos — enquanto Ribeiro é amplo, generalizante, definitivo.
Prossegue o nosso patrício asseverando: «O fator religioso ocupava um papel
de extraordinária importância.» E aduz: «O próprio vocábulo «Quilombo» dá-nos a
chave de sua organização», para concluir: «Nos séculos XVII e XVIII, quilombo
designava o reduto religioso, onde se praticavam as cerimônias mágicas.» Em que
base documental sustenta Joaquim Ribeiro sua tese, no entanto? Apoia-se, tão-
sòmente, em uns versos do poeta satírico Gregório de Matos, que dizem assim:
«Não há mulher desprezada... / Gata desfavorecida, / Que deixe de ir ao quilombo /
Dançar o seu bocadinho... / E gastam belas patacas / Com os mestres do
Cachimbo.» E mais: «Que de quilombos que tenho / com mestres superlativos, /
Nos quais se ensina de noite / Os Calundus e os feitiços!» (14)
Ora, não será de admirar que Gregório de Matos tenha usado em seus versos
o vocábulo «quilombo» no sentido de gíria, para designar redutos de candomblés
existentes na Bahia e cuja frequência, se não era geral, o era em esmagadora
maioria, de negros. Não será de todo despresível, do mesmo passo, que se tenha
atribuído o têrmo aos terreiros de macumba, em sentido pejorativo. Isso, portanto,
não confere nenhum conteúdo histórico à palavra, no sentido em que a estamos
tomando. Muito ao contrário, já tivemos oportunidade de arquivar anteriormente,
duas manifestações das mais sérias, acerca dos significados dos vocábulos
quilombo e mocambo, as quais diferem frontalmente da que sugere Joaquim
Ribeiro.
Segue aquele autor dizendo que: «Por aí (pelos versos de Gregório de Matos)
se comprova que o quilombo nasceu do reduto religioso, (grifos nossos) que foi o
núcleo formador da tribo restaurada. Tinha de ser um fenômeno puramente rural.»
«Nos centros urbanos seria impossível episódio igual. As usanças florescem. Os
ídolos esquecidos, os manipanças, os cantos, a vida negro-africana, enfim, ressurge
quase que milagrosamente.» (15)
Se não chegassem para antepôr-se a Joaquim Ribeiro os registros de
Beaurepaire Rohan e de Renato Mendonça, já mencionados, lançaríamos mão a
Ladisláu Batalha quando este, em exposição que faz dos costumes angolenses,
insere trecho que diz assim: «Ahi fizemos Quilombo (isto é, paragem para
descansar, comer e dormir até o romper da manhã). De todas as bandas chegavam
homens, mulheres e crianças (tudo gente preta), que vinha pernoitar ao sereno.
Acendiam fogueiras, desamarravam suas cargas, e entregavam-se, em roda do
lume, ao serviço
Os QUILOMBOS
de fumar, beber e comer peixe seco assado nas brazas, ou ensopado em água e
malagueta.» (16) Não faz Ladisláu Batalha a mais mínima referência a
manifestações de caráter religioso, levada a cabo por ocasião de quilombo. Mais
adiante torna aquele autor português a referir o «quilombo», quando fala pela voz
do amigo (o judeu Ben Zacheu) autor das cartas oriundas de Angola e que
compõem o livro: «Viajam (as quibucas ou caravanas) de sol nado a sol posto,
fazendo Quilombo (isto é, acampamento para comer e descansar) . De noite
acendeu fogueiras em volta da caravana, a fim de livrarem-se dos mosquitos (onde
os há) e se precaverem contra os ladrões e animais ferozes.» (17) Mais uma vez é
totalmente ignorado o aspecto religioso que, se tão importante como queria
Joaquim Ribeiro, teria merecido, com efeito, qualquer referência do autor luso. O
que se verifica é que a significação dada por Batalha ao termo «quilombo»,
coincide com a que nos transmite Beaurepaire Rohan — acampamento para pouso.
O equívoco em relação ao surgimento dos quilombos persiste pelo simples
fato de se admitir como causa o que, na realidade, constitui efeito. Por se admitir
como razão-de-ser o que não passa de consequência. Não será demais insistir-se
no fato de que o «regime escravista» jamais funcionou como combustível para as
explosões do negro no Brasil. O que os tornava rebeldes, indisciplinados, fossem
pretos, caborés ou mulatos, fossem africanos ou mesmo já brasileiros, o que fazia
ferver o sangue dos escravos eram aquelas particularidades do escravismo ameri-
cano, de que já nos ocupamos inicialmente. (18)
Jayme D'Altavilla, escritor alagoano, querendo colocar os pontos nos ii, acaba
por fazer afirmativa que se choca frontalmente com a realidade: «Disvirtuam
alguns escritores», disse êle, «ciosos de novidades, a organização dos quilombos,
emprestando-lhes ritos bárbaros originários da Africa misteriosa e selvagem
Nesse trecho vê-se um Jayme contra-pondo-se energicamente a um Joaquim
Ribeiro, posto não saibamos tenha sido essa sua intenção. A sua sem-razão vem
quando êle afirma: «Mas não será por essa lente desproporcional que encararemos
os intuitos duvidosos de uma organização de homens que fugiam ao cativeiro paca
se tornarem livres.» Quando, no Brasil, o escravo tornou-se livre ao fugir do
cativeiro? Já vimos antes a incongruência dessa ideia. E pasme-se: «Tão livres que
não admitem a escravidão em seu ambiente.» (19) Ora, se não bastassem os
exemplos que já arquivamos de escravos fugidos que, por sua vez, se tornaram
senhores de escravos, é notório o fato da existência de escravidão no Palmares e,
possivelmente no Trombetas, no Pará, e no de Turi-Assu, no Maranhão. (20)
Voltando a Joaquim Ribeiro, além de nossas discordâncias já demonstradas,
queremos aduzir, ainda, o seguinte: disse êle que o quilombo era uma reação do
negro aos usos e costumes dos brancos. Vai, nesse passo, uma generalização
perigosa; pois, ao contrário, há quem afirme que usos e costumes de brancos
praticavam os negros nos mocam-
JOSÉ ALIPIO GOULART
bos, inclusive «europeizando», antes de qualquer missionário, os índios que com
eles entravam em contato, como salienta, muito seguro de si, mestre Gilberto
Freyre.
Não se quer impor, com o que se expôs, a absoluta ausência de pruridos de
cultura africana nos quilombos ou mocambos; e nem tampouco nega-se
peremptoriamente, que «gatas desfavorecidas» como queria Gregório de Matos,
procurassem os meloges, feiticeiros experimentados, que as aliviassem com
auxilio de seus Cazumbi, ou deuses caseiros, dos males que as afligissem. Mas, daí
até dar-se a religião como travejamento básico, como suporte essencial dos
quilombos de escravos fugidos parece-nos, data venia, indisfarçável exagero
prejudicial à veracidade histórica. Ainda mais havendo exemplo de quilombolas
ensinando doutrina cristã. (21)
«Nos séculos XVII e XVIII», diz ainda Joaquim Ribeiro, «o quilombo
designava o reduto religioso, onde se praticavam as cerimônias mágicas.» Se,
como ficou esclarecido, quilombos já existiam aqui desde o século XVI, quando
eram o primeiro dos três inimigos que hostilizavam os portugueses, por quê tão
somente nas centúrias seguintes, quando a assimilação pelos africanos de
elementos culturais europeus, inclusive e acentuadamente religiosos, já caminhava
para a estratificação, por quê, dizíamos, só nos XVII e XVIII séculos é que o
quilombo iria designar reduto religioso? talvez — e aí, sim: — aquele autor queria
referir-se aos terreiros de macumba aos quais, como mencionara Gregório de
Matos, confere-se o cognome de «quilombo»; mas que nada tinha daquele outro do
«mocambo», reduto e ajuntamento de escravos trânsfugas.
A fenomenologia ruralista do quilombo jamais se subordinou à prática dos
ritos religiosos dos africanos, ritos, aliás, por eles observados a bem dizer
soltamente nas cidades, nos batuques, nos candomblés, nas macumbas e em outras
reuniões quejandas, assim como nas senzalas e não raro em terreiros de
propriedades rurais. Se, como disse Joaquim Ribeiro, o quilombo foi, como
realmente foi, um fenômeno rural, deveu-o a razões tais como: a) maiores
concentrações de escravos nas áreas rurais: b) rigorismo desenfreado na aplicação
de castigos, graças a ausência de policiamento; c) condições desumanas de
trabalho; d) maiores ofertas naturais de esconderijos; e) conjunto de condições que
proporcionavam maior número de trânsfugas.
Desde que aceitas, ao cabo, as sementes geradoras dos quilombos, indicadas
pelo autor acima mencionado, chegar-se-á à conclusão de que ditos redutos eram
frutos de uma pré-determinação; isto é, de um arranjo entre escravos que
desejando reviver usos e costumes africanos, em determinado momento pré-
combinado, impulsionados pela força irresistível de sua cultura moral, religiosa,
económica, social, etc, abandonassem seus afazeres e se fossem fixar em local
também pré-estabelecido; e, aí, se entregassem ao ardor de suas saudades até que
surgissem os capitães-de-assalto prendendo-os ou fazendo-os debandar. A
realidade,
Os QUILOMBOS
todavia, era bem outra: o quilombo obedecia a uma geração espontânea, surgindo,
instalando-se e crescendo a pouco e pouco, solidificando-se paulativamente à
medida que, com o tempo, se fosse adensando sua população. Escravos fugidos, ã
cata de mútua proteção e fugindo ao barbarismo do regime escravista do branco,
ajuntavam-se, a bem dizer, numa obediência instintiva à lei do gregarismo
humano. De resto, o que se mencionou como princípio do quilombo nós o
admitimos, tão-sòmente, como um ressurgimento parcial do substrato cultural
decorrente do agrupamento. E, isso mesmo, com as reservas a que nos impõem as
culturas negras diferenciadas que, inevitavelmente, vinham a defrontar-se num
mesmo e só quilombo.
Resta dizer, que os quilombos e em especial os de maiores proporções, não
se constituíam tão-sòmente de escravos naturais de África, mas, de mesmo passo,
de nascidos e criados no Brasil, em os quais as influências africano-culturais posto
não de todo superadas apresentavam-se sobremodo esmaecidas. E também de
gente livre marginalizada tais como desertores, ladrões, assassinos, assim como
índios às vezes, tudo em conluio com escravos.
Ao tomar o fenômeno dos Palmares como paradigma é que muita gente
distinguiu o «quilombo», em geral, com visão torcida.
O quilombo, graças à sua organização, constituía-se em fator altamente
negativo para o equilíbrio econômico e social da região em que se formava, sendo
que, em regra, os escravos costumavam aquilombar-se em local não muito
distanciado das propriedades onde serviam. As consequências econômicas e
sociais do «quilombo» advinham, com efeito, do comportamento espontâneo ou
dirigido de seus componentes; todavia, redundavam nas mesmas anteriormente
analisadas, ao nos determos nas consequências das fugas. Naquele como neste
caso, as repercussões de ordem social é que, a rigor, mais pressionavam sobre as
medidas de repressão a serem tomadas. A prática de atos criminosos pelos quilom-
bolas era o que mais concorria para abreviar sua aventura. Aqui vai um exemplo:
«No relatório datado de 4 de outubro de 1872, Francisco José Cardoso Júnior,
presidente da província de Mato Grosso, assinala que: «A 16 de maio (1871), no
distrito de Rosário e no lugar denominado — Porto Alegre — os escravos fugidos
do quilombo do Rio Mansa do Sul, assaltaram o sítio de Salvador de Almeida
Lara, raptaram duas mulheres e mataram a Manoel António que vivia em
companhia delas.» É claro que os mandaram perseguir e prender.
Quilombos houve como os dos Palmares, o da serra dos Pareci, os do
Trombetas, os de Turi-Assu, e talvez outros, que chegaram a possuir economia
agrícola e industrial organizada, com plantações, criações em larga escala, fiação
de tecidos, artesanato, etc. A produção de tais quilombos chegava a ser negociada
com mercadores estabelecidos, e até mereciam a proteção destes, dadas as
condições razoáveis de preços de venda, num comércio quase exclusivamente de
trocas. Grandes amigos
JOSÉ ALIPIO GOULART
de quilombos, com êstcs negociando largamente, foram os mascates e os regatões.
O item 14 do Regimento de 19 de agosto de 1670, dado ao governador da capitânia
de Pernambuso, Fernando de Souza Coutinho, dispunha que este mandasse
proceder contra «aquelas pessoas de qualquer qualidade ou condições que sejam
que derem ou venderem artilharia, armas de qualquer sorte, pólvora e munições ao
gentio que estiver de guerra com meus vassalos e aqueles que tiverem [eito
mocambos e retirados neles o que é defesa por minhas leis e ordenações...» (22)
Referindo-se aos quilombos do termo de Coroatá, no Maranhão, o presidente
daquela província, Benevenuto Augusto de Magalhães Tac-ques, em «fala» de 20
de agosto de 1857, expunha: «O escravo deserta da casa ou da feitoria do senhor, e
nas matas, que avizinham os nossos rios, forma com outros que se achavam nas
mesmas condições os quilombos, que se reproduzem em vários lugares, muitas
vezes entretidos pelos vizinhos, que com eles comerciam, e que crescem com a
falta de acordo e energia dos lavradores interessados na sua destruição.» (grifos
nossos) (23).
A guerra movida aos quilombolas era uma guerra sem quartel,
impiedosa, desumana e bárbara; a resistência à prisão merecia eliminação
sumária. A ordem para ferir ou matar os mais afoitos partia de Sua
Majestade, ecoando nos Governadores, expressa nos atos de designação
dos comandos de grupos de assalto. Comandos que se premuniam de
tal autorização, imunizando-se, a priori, de qualquer responsabilidade
pelas mortes de escravos que ocorressem por ocasião das investidas aos
quilombos.
Segundo informa Gomes Freire de Andrade, em Bando de 12 de junho de
1701, El-Rei, por Resolução de 1' de março de 1701, o autorizava a continuar
pagando aos capitães-de-mato seis oitavas de ouro por negros aguilombados que
matassem por resistência à prisão: «e da mesma sorte se observava o estilo
praticado de se dar aos mesmos Capitães-do-mato seis oitavas de ouro por cabeça
de negros que por resistir matarem...» No mesmo ato ainda dispunha Sua Alteza
que: «no caso da invasão dos quilombos hajam mortos, ou feridos, não possam
proceder contra os Capitães-do-mato, e mais pessoas que neles se acharem»,
mandando soltar as que por ventura estivessem presas por tal motivo. Só nos casos
em que provadamente as mortes e ferimentos em negros fossem propositais, «não
resistindo os negros» só em tais casos é que a Justiça lhes pediria contas. (24)
Como provar, contudo, não ter havido resistência?
Ato datado de 13 de janeiro de 1763, determinava: «Porquanto têm as
pessoas que costumam ir aos mocambos dúvidas a executar as minhas ordens,
porque acontecendo resistirem os negros dos mocambos, e haver alguma morte ou
ferimento se lhes dar culpa. Ordeno ao Coronel Afonso Barbosa da Fonseca que dê
ordem em virtude desta aos Capitães-do-mato que forem aos mocambos, que não
se lhes entregando logo os
Os QUILOMBOS
negros fugidos e resistirem de maneira, que seja necessário feri-los, e ainda matá-
los, não tendo outro remédio o façam, sem por isso se lhes poder dar em culpa.»
(25) Nas «Instruções» que transmitiu ao Capitão-mor de Entradas Antônio Vaz de
Almeida, datadas de 7 de junho de 1715, recomendava o Marquês de Angeja:
«Nos mocambos em que der o assalto fará todo o cuidado em dispor de forma que
logre a ação sem grande dano da gente que levar consigo.» Mas, «Se os negros que
estiverem no mocambo resistirem poderá mandar atirar sobre eles ainda que se
siga o feri-los, e matá-los; porque neste caso lhe é permitido o podê-lo assim fazer,
e usar contra os ditos negros amocambados de todo o rigor.» (26)
De Dom Luiz de Mascarenhas, governador de São Paulo, é um Bando
expedido da cidade de Santos, datado de 23 de outubro de 1746, no qual autoriza
os Capitães de mato e os Oficiais de ordenança a atirar e matar os escravos
aquilombados que resistirem à prisão: «Que assim os capitães-do-mato como os
oficiais da ordenança que acharem pretos em quilombos armados, estes resistirem,
e se não quiserem render e de outra sorte os não poderem apanhar, os poderão
livremente matar ou ferir, atirando-lhes para esse efeito.. .»
Onde não houvesse capitão-de-mato nomeado, podiam os moradores locais
tomar a iniciativa de atacar os mocambos, desde que se munissem de prévia
licença do Governador. Uma, nesse sentido, foi concedida pelo Conde de Óbidos,
consoante uma Portaria de 21 de maio de 1667, nos seguintes termos: «Porquanto
os moradores das Freguesias de Mara-gogipe e Paraguassu me representaram os
grandes roubos, e danos que recebiam dos negros fugidos, que estão em dois
mocambos na Batata; pedindo-me eles concedesse licença para poderem fazer
entrada nos ditos mocambos, e que o Capitão da Aldeia de Santo Antônio Miguel
de União os acompanhasse com os índios daquela Aldeia: tendo em consideração a
tudo e convindo atalhar-se os danos que recebem aqueles moradores dos negros
fugidos daqueles dois Mocambos. Hei por bem, e lhes concedo licença para
fazerem a entrada que pedem aos referidos Mocambos.» (27)
A Lei de 15 de outubro de 1827, criando os Juízes de Paz, conferiu a estes
magistrados a função de destruir quilombos e providenciar para que se não
formassem novos: «Art. 5º Ao Juiz de Paz compete: ... 6º: Fazer destruir os
quilombos e providenciar a que se não formem.» (28)
Aspectos dos mais curiosos relacionados com os mocambos, é o de que
alguns destes chegaram a manter relações com o mundo dos livres através de
elementos de ligação entre ambos. Isso vem demonstrar, como já se salientou, a
existência de mocambos dotados de organização, posto rudimentar, a ponto de
manterem relações comerciais com o «exterior», quase possuindo
«embaixadores». Palmares foi ótimo exemplo disso e não ficou só. Outros
quilombos também apresentavam condições idênticas, bastando exemplificar com
os termos de uma carta do governador
JOSÉ ALIPIO GOULART
geral Vasco Fernandes César de Menezes, datada de 16 de agosto de 1721, pela
qual ordena a prisão de um «sujeito que tinha correspondência com os negros de
Mocambo que há nesse distrito.»
Há que salientar o estímulo dado à formaçção de quilombos por certas
comoções internas de caráter econômico ou político, promovidas por brancos,
assim como de cunho religioso, levadas a cabo por negros. E até conflitos
internacionais deram azo ao surgimento de ajuntamento daquela espécie. Pode-se
justificar o alegado com exemplos tais como: a revolta de 1835, no Pará; A
Balaiada, no Maranhão; a Guerra dos Mascates, em Pernambuco, e, ainda, a
Invasão Holandesa; a Revolução de 1817; em Alagoas, também a Guerra
Holandesa; na Bahia, ainda a invasão batava, e, mais tarde, as rebeliões negras dos
males e dos aussás, assim como a luta entre os generais Madeira e Labatut pela
libertação da província.
Como não podia deixar de ser, o «quilombo» acabou por incorporar-se ao
folclore caboclo, cujas reminiscências podem ser encontradas, até hoje, na zona da
Jacobina, graças aos quilombos que por lá existiram: trata-se da chamada Festa
dos Quilombos, encontrada, do mesmo passo, em Alagoas, onde Arthur Ramos
registra auto ligado ao fato histórico de Palmares, a que já referimos: «Folga negro
Branco não vem cá...»
NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1) «Entre nós», escreveu Perdigão Malheiro: «Entre nós foi frequente desde tempos antigos, e
ainda hoje se reproduz, o fato de abandonarem os escravos a casa dos senhores e internarem-se pelas
matas dos sertões, eximindo-se assim, de fato ao cativeiro, embora sujeitos à vida precária e cheia de
privações, contrariedades e perigos aí podessem ou possam passar. Essas reuniões foram denominadas
quilombos ou mocambos. No Brasil tem sido isto fácil aos escravos em razão de sua extensão territo-
rial e densas matas, conquanto procurem êles sempre a proximidade de povoado para poderem prover
às suas necessidades, ainda por via do latrocínio.» (Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, Rio de
Janeiro.
2) Beaurepaire Rohan, Dicionário de Vocábulos Brasileiros, 2º ed., Bahia, 1956.
3) Gilberto Freyre, Mocambos do Nordeste, pub. do PHAN, Rio de Janeiro.
4) Melo Barreto Filho e Hermeto Lima. História da Polícia do Rio de Janeiro, pg. 347, Rio
de Janeiro, 1939.
5) "Los principales palenques de los negros, como antes de los indígenas, prossegue Ortiz,
«fueran en las abruptas cordilleras de Oriente y de Pinai del Rio, asi como en la Ciénega de Zapata,
donde varios cayos se llaman aún del negro e de los negros por tal motivo. En Vueltabajo las lomas del
Cuzco, fueron las preferidas hasta los últimos dias de la esclavitud. En Oriente fue celebre el gran
palenque de Moa o del Frijal, a comienzas del siglo passado.» E, para terminar: «.Las armas de los
apalencados no podian ser más primitivas: los machetes de las plantaciones. flechas de madera recia,
estacas elevadas en el suelo, e hasta lanzas de hierro construídas por los mismos negros» no obstante lo
cual los palenques vivieron, renovándose una y otra vez, lo que la esclavitud duro y a su extinción se
debicaron siempre buenas sumas por el gobierno.» (Fernando Ortiz, Los Negros Esclavos. pg. 412,
Havana, 1916) .
6) Perdigão Malheiro, op. cit., pg. 30.
7) Colecão das Leis da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, pg. 94.
Os QUILOMBOS
8) «Os primeiros inimigos», dizia o Provincial «são os negros da Guiné alevan-tados que estão
em algumas serras, donde vem a fazer saltos e dar algum trabalho. . E como que profetizando: "e pode
vir tempo em que se atrevam a cometer a destruir as fazendas, como fazem seus parentes na ilha de S.
Tomé. A rebeldia dos escravos naquela possessão tornara-se ameaçadora por não haver índios no
interior que pudesse contra escravos fugidos. O resultado foi a sanguinolenta tragédia ocorrida na ilha
numa antecipaçã.o dos levantes de S. Domingos, em que os brancos foram assassinados. os engenhos
destruídos, as lavouras perdidas. Teve o regime escravocrata no Brasil maior estabilidade que em
outras regiões do mundo onde existiu, a despeito de episódios isolados a confirmar a regra, como foi o
de Palmares.» E acrescentava o roupeta: «Só podemos explicar essa diferença pela contribuição do
índio, destruidor-mor de quilombos, erigido daí por diante em "Capitão-do-mato», elemento da maior
importância na segurança dos engenhos, juntamente com os mestiços especializados no mister". (Anais
da Biblioteca Nacional. XX, pg. 255. — Também J. F. de Almeida Prado, Pernam-buco e as
Capitanias do Norte do Brasil, II, pg. 388, São Paulo, 1941) .
9) «Mas, a mais perfeita organização de defesa, no período da escravidão, foram os
quilombos», já dizia Arthur Ramos, para mais adiante acrescentar: «Já nos primeiros tempos da
escravidão, as fugas dos escravos eram frequentes. Os escravos fugidos, denominados quilombos,
reuniam-se muitas vezes em agrupamentos, os quilombos. Estes movimentos foram mais intensos no
século XVII, quando houve a formação da
célebre república dos Palmares, e no século XIX, com os movimentos de guerra santa dos Males, na
Bahia, "(Arthur Ramos, "O Espírito Associativo do Negro Brasileiro» in Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo , XLVII, pgs. 105/126.
10) Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, 3ª, pg. 127, São Paulo, 1954.
11) De quão numerosos foram os pontos, e trechos de mata, onde se acoutaram os escravos
tentando fugir à contenção dos brancos — diz Afonso de E. Taunay — subsistem as provas nessa
infinidade de quilombos e mocambos, incorporados à nossa toponímia nacional, em todas as regiões do
Brasil. Rios, cachoeiras, ilhas lagos, praias pontes, etc, assim batizados, recordam a presença em sua
vizinhança, de quilombolas, macumbeiros e canhemboras mais e menos recentes. (...) No terceiro tomo
da obra preciosíssima de Moreira Pinto, os Apontamentos para o Dicionário Geográfico do Brasil,
publicado em 1899, arrolou o sábio corógrafo 20 localidades chamadas Quilombo e Quilombinho, das
quais 7 em Minas e outras tantas em São Paulo. E mais de cinquenta acidentes geográficos cujos nomes
decorrem da mesma procedência.» «Deu-se ate curioso caso: a oticialização em Minas, de um desses
quilombos sob a égide de seu Orago São José do Quilombo hoje União, distrito de Barbacena.
«Prossegue Taunay:
«Na toponímia brasileira avultam também os Mucambos e Mucambinhos.» «O segundo tomo do
Dicionário de Morais Pinto arrola quinze lugares e arraiais intitulados Mocambos. No Maranhão, Piauí,
Pernambuco ( 2) . Alagoas (2), Sergipe (2), Bahia (5), Minas Gerais (2).» "Ainda há Mucambinho no
Maranhão, Ceará e Mucambeiro em Minas.» "Rios, serras, ilhas, igarapés, pontes chamados Mucambo,
cita-os Moreira Pinto no Maranhão, Ceará, Sergipe, Bahia, Goiás, Pará, Piauí, Minas." "No utilíssimo
Guia Postal do Brasil, de 1930, avultam os Quilombos e Mucambos. Nada menos de 94 agências
postais há com o nome de Quilombo, seis com o de Quilombinho, uma cora o de Quilombolas. Destas
101, 35 estão em Minas Gerais, 22 em São Paulo, 19 no Rio de Janeiro. Reminiscência da grande
cultura cafeeira... Fora de Pernambuco (4) e da Bahia (2) o nome não parece muito divulgado nos
Estados do Norte onde predominam a forma Mucambos, e os derivados desta, ao passo que no Sul a
preferência e para quilombo. Insere o Guia Postal 74 agências com estas designações das quais 28 só na
Bahia, 5 em Pernambuco, 10 no Piaui, 8 em Sergipe, 4 no Maranhão, Alagoas e Ceará.» (Afonso de E.
Taunay, Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil, pgs. 50-52, São Paulo, 1941) Alguns
desses núcleos lograram vida longa e chegaram a granjear celebridade em razão de elementos tais como
população, extensão, organização econômica, política, social, e militar se assim pode-se classificar os
sistemas de defesa e de resistência às tropas de aniquilamento.
JOSÉ ALIPIO GOULART
12) Em fins de junho de 1914, Sehtweitzer escrevia o seguinte: «Os nativos ainda não
suprimiram entre eles a escravatura, completamente, apesar dos esforços do governo e das Missões. É
verdade que ela não é praticada abertamente. As vezes noto entre os acompanhantes dos mesmos
doentes uma fisionomia cujos traços não são os dos negros estabelecidos por aqui ou pelas imediações.
Se pergunto se é um escravo, afirmam-me com um sorriso esquisito, que é apenas um servidor...» "A
sorte dos escravos não declarados não é má: raramente padecem maus tratos, e também não pensam em
fugir nem em procurar a proteção do governo. Se fôr aberto um inquérito, eles próprios afirmarão
obstinadamente que não são escravos. São admitidos com frequência na comunidade de tribo ao cabo
dalguns anos, fato esse que os emancipa e lhes outorga um novo direito de cidadania. E é esta última
vantagem que importa, antes de mais nada.» «A persistência de escravidão clandestina no baixo Ogoval
resulta por certo da carestia que reina no interior do sertão. A África equatorial não possui cereais nem
árvores frutíferas autóctones. A bananeira, a mandioca, o inhame, a batata doce e o coqueiro foram
implantados das Antilhas pelos portugueses que, a tal respeito, foram grande benfeitores da África
equatorial. A fome é um regime permanente nas regiões onde esses vegetais úteis ainda não chegaram.
Eis por que motivo os indígenas dessas paragens vendem os filhos aos habitantes do baixo Ogoval: para
que sejam alimentados.» (Albert Schweitzer, Entre a água e a Selva, 2ª ed., páginas 65-66, São Paulo)
— Attilio Gáudio, em reportagem por êle assinada ao O Jornal, da Guanabara, exposta nos dias 11, 12
e 13 de julho de 1966, põe a nu que, na África, no interior da Etiópia, homens e mulheres acorrentados
são mandados em marcha pelo deserto e se mercadeja com o preço da mercadoria humana.
13) Artur Ramos, op. cif.
14) Gregório de Matos, Obras, IV, pg. 187.
15) Joaquim Ribeiro, Capítulos inéditos da História do Brasil, pgs. 125 e 130, Rio de Janeiro,
1954.
16) Ladisláu Batalha, Costumes Angolenses, pg. 17, Lisboa, 1890.
17) Idem, ibidem, pg. 47.
18) Disse com muita propriedade Rocha Pombo que: «A caça ao preto fugido fazia-se como a
da criação alçada. . . Perseguia-se o escravo nas matas como se preava o armento desgarrado.» «O
negro fugido compreendeu, portanto, que era preciso resistir, e que para isso, antes de tudo, tinha de
aliar-se aos companheiros de sorte.» Então aduz: «É assim que se foram formando esses temerosos
quilombos, que desde os princípios do século XVII se fizeram em todas as capitanias o terror dos
viajantes e das povoações menos bem guarnecidas.» (in Afonso de E. Taunay, Subsídios, etc, pgs. 50-
51).
19) Jayme D Altavilla "A Redenção dos Palmares» in Revista do Instituto de História e
Geografia de Alagoas, XI, pg. 60, Maceió, 1926) .
20) Veja-se quão diferente foi Nina Rodrigues ao referir-se aos Palmares: «Que na organização
de Palmares tivessem tido voto e peso os foragidos de côr de todos os matizes, temperando e não
mascarando o ascendente de chumbo da direção africana, é coisa natural e com que se devia contar.
Palmares nascia desse mesmo ajuntamento de escravos e aventureiros de côr que nem todos eram
negros. Sem fortes e radicadas tradições do governo africano, as noções de que se tinham impregnado
os negros na longa convivência com o povo em cujo seio viveram escravos, deviam forçosamente
comunicar a Palmares tons das regras e hábitos a que estiveram submetidos. Assim como os hábitos
adquiridos na América emprestavam características especiais aos Africanos que regressavam à Costa
onde eram tidos por colônia brasileira, assim no governo de Palmares muito devia haver de importante
das práticas e costumes da colónia portuguesa.» (Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, 3ª, pg. 135,
São Paulo. 1945).
21) Foi no século XVIII que na serra dos Pareci foram encontrados negros aquilombados
ensinando doutrina cristã — veja-se bem, «doutrina cristã» — a descen-
Os QUILOMBOS
dentes seus resultantes de ajuntamentos com índias roubadas: "os caborés de maior idade sabiam
alguma doutrina cristã que aprenderam com os negros», informa Gilberto Freyre. (Gilberto Freyre,
Casa-Grandc & Senzala, 6ª II, pg. 498, Rio de Janeiro, 1950) — De mais a mais, o «quilombo» foi
uma resultante natural da «fuga»; e, como esta ocorria em decorrência de maus tratos, não há como
querer descobrir outras origens para aquele.
22) Documentos Históricos, LXXX, pg. 11.
23) Remetemos o leitor aos livros de nossa autoria intitulados O Mascate no Brasil e
Regatão Mascate Fluvial da Amazónia.
24) Documentos Interessantes, XIV, pg. 255.
25) Documentos Históricos, VIII, pg. 130.
26) Documentos Históricos, LIV, pg. 17.
27) Documentos Históricos, VII, pgs. 301.
28) Cândido Mendes de Almeida, Aditamento ao Livro I das Ordenações Filipinas, pg. 366,
Rio de Janeiro, 1870.
letra
As Relações Entre José de Alencar e
João Caetano
R MAGALHÃES JÚNIOR
NÃO há capítulo mais confuso na biografia de José de Alencar do que o de suas
relações com o grande ator trágico João Caetano dos Santos, a quem muito
admirava e de quem se ocupou num dos folhetins de Ao Correr da Pena. O
romancista e dramaturgo tem sido injus-mente acusado de um ato mesquinho,
como revide à recusa de uma de suas peças pelo ator e empresário do Teatro São
Pedro de Alcântara, que se erguia, no tempo do Império, no local em que, à Praça
Tiraden-tes, hoje existe o Teatro João Caetano. Esse ato teria sido a supressão da
subvenção governamental, através de emenda ao orçamento do Império pelo
deputado geral José de Alencar.
Entre os primeiros divulgadores de tal acusação destaca-se Melo Morais
Filho, autor do trabalho intitulado João Caetano (Estudo de individualidade),
publicado em 1903 para comemorar o 30' aniversário do desaparecimento do
ilustre artista. Espírito ao mesmo tempo fantasioso e mal informado, Melo Morais
Filho diz que as relações entre Alencar e João Caetano ficaram rompidas quando o
segundo devolveu a comédia As Asas de Um Anjo, de autoria do primeiro,
recusando-se a representá-la. Tal peça, entretanto, não foi destinada por Alencar a
João Caetano, mas à companhia do Teatro Ginásio Dramático, que imediatamente
a representou, com Adelaide do Amaral no papel da protagonista. A peça ficou em
cena até ser proibida pela polícia como «imoral». Isso se verificou no ano de 1858.
O que João Caetano encomendou a Alencar foi um drama patriótico,
destinado a ser representado em espetáculo de gala a 7 de setembro de 1861. Com
isso, o Teatro São Pedro de Alcântara festejaria a data da nossa independência e
cumpriria uma das obrigações a que se submetera, para obter a subvenção.
Entretanto, tendo Alencar escrito o drama O Jesuíta, João Caetano se eximiu de
representá-lo, devolvendo o manuscrito a seu autor. É que Alencar, em vez de se
valer de um episódio histórico, criara uma figura mítica de precursor da indepen-
dência, corporificada em estranho jesuíta que se fazia passar por um médico
italiano, o Dr. Samuel, e enfrentava no Rio de Janeiro a autori-
R. MAGALHÃES JÚNIOR
dade do Conde de Bobadela. Além de ser uma simples fantasia, a peça era
discursiva, de situações teatrais bastante fracas, sem um grande papel para João
Caetano, de sorte que a sua devolução estava plenamente justificada.
Retificando Melo Morais e dando o nome certo da peça recusada, Lafaiete
Silva, na sua biografia de João Caetano, insistiu na mesma acusação a José de
Alencar, tirando ilação, contra este, de uma carta sem data, dirigida pelo grande
ator à Marquesa de Olinda. Pode-se concluir, porém, que a carta é do ano de 1862,
quando exercia o governo o décimo oitavo gabinete do Segundo Reinado,
presidido pelo Marquês de Olinda (Pedro de Araújo Lima). A carta a D. Luísa
Figueiredo de Araújo Lima era do seguinte teor:
«Exma. Sra. Marquesa de Olinda: — V. Ex. é a única proteção que a
providência me deparou, no estado de ruína a que me quer levar a vingança de um
homem e a inutilidade a que me reduziu uma moléstia horrível, adquirida no
pesado exercício de trinta e cinco anos de minha arte; e sendo proverbial a
bondade do coração de V. Ex. tenho fé de salvar-me da desgraça que me está
iminente e que V. Ex. se empenhará com o Sr. Marquês, a fim dele fazer válido o
meu contrato, mandando que em lugar das prestações que eu recebo do Tesouro
dê-se-me as loterias que o governo me concedeu; mandando também que se me
pague as prestações atrasadas e a diferença de quinhentos e tantos mil réis que, por
engano do orçamento, me descontaram no Tesouro. Exma., creio que o meu estado
de saúde pouco tempo me concederá de vida, mas tenho numerosa família e
permita Deus que seja V. Ex. o anjo que a proteja! Os inclusos papéis são para o
Sr. Marquês, que me ordenou lh'os enviasse, e eles entregues pela generosa mão
de V. Excelência obterão o favorável despacho pela mão de V. Ex. a quem
respeitosamente beijo. De V. Ex. atento criado e obrigado — João Caetano dos
Santos».
O ator, que chegara da Europa a 3 de fevereiro de 1862, e depois de uma
ausência de oito meses reaparecera ao público no dia 3 de maio, representando
intermitentemente, ora no Rio de Janeiro, ora em Niterói. e em dezembro desse
ano ofereceu ao público a penúltima de suas grandes criações: a tragédia Cina, de
Corneille. Depois disso, agravaram-se os seus sofrimentos cardíacos. Não se
enganara nas previsões sombrias de sua carta: morreria a 24 de agosto de 1864.
Temos fortes razões para estabelecer como data provável de sua carta um dia
posterior 3 de setembro de 1862. Adiante explicaremos porque. Uma das
expressões de tal carta, referindo-se ao estado de ruína a que me quer levar a vin-
gança de um homem, para Lafaiete Silva só poderia entender-se com José de
Alencar. E nisso alicerçou, sem maiores pesquisas ou mais ponderado exame, uma
conclusão que não se mantém de pé. No capítulo nono de seu trabalho, escreveu
Lafaiete Silva:
«Além da subvenção que lhe era dada pela antiga Província do Rio de
Janeiro, para a realização de espetáculos na outrora Vila Real
As RELAÇÕES ENTRE JOSÉ DE ALENCAR E JOÃO CAETANO
da Praia Grande, João Caetano recebeu vários auxílios do governo central.
Começou a gozá-los em 1837, quando era empresário do Constitucional
Fluminense. As duas casas do Parlamento votaram a instituição de duas loterias
para ser extraídas durante seis anos, em proveito daquele teatro, e a concessão foi
regulada em decreto nº 154, de 30 de novembro do referido ano. Em 1838, por
terminação do seu contrato, o ator-empresário deixou o teatro do Rocio e passou o
auxílio a ser dado à companhia que ali foi trabalhar. Achando-se em 1847 no
Teatro de São Francisco de Paula, obteve a concessão pessoal de dois contos de
réis (decreto 474, de 15 de setembro), conseguida pela tenacidade do deputado
Dias da Mota; em 1853 foi prorrogada a concessão, que cinco anos mais tarde teve
elevação para o dobro. Em 1861, ao serem votados os orçamentos, foi eliminada a
verba, que favorecia a João Caetano, já incluída nas despesas do Ministério do
Império, atribuindo-se o gesto à influência de José de Alencar, visto não ter
querido João Caetano pôr em cena, no São Pedro, o drama O Jesuíta, daquele
escritor, impedido de ser representado mais tarde por decisão do Conservatório
Dramático. No prólogo de O Jesuíta, quando imprimiu o drama, o romancista
cearense nada orienta a respeito da recusa. Conta que o empresário era obrigado
por força de seu contrato a, nos dias de gala, representar de preferência originais
brasileiros e louva o gênio do artista, dizendo serem para êle dispensáveis as
rubricas da peça».
Há várias confusões no trecho transcrito. Para começar, José de Alencar
nunca imprimiu, ou fêz imprimir o drama, que guardou inédito. Quem o fêz
imprimir foi seu filho, Mário de Alencar, que colocou como prólogo os artigos
com que seu pai defendeu a peça dos ataques da critica. por ocasião de suas
poucas representações, em 1875. O Conservatório Dramático tampouco proibiu O
Jesuíta. Proibiu, sim, Os Lazaristas, criticando, no plural, padres de outra ordem
religiosa, peça esta de autoria do escritor português Antônio Ennes e que Osvaldo
Orico, equivocadamente, atribuiu a José de Alencar numa biografia abreviada
imprensa em 1929. Osvaldo Orico repete a acusação a Alencar e nos mostra um
João Caetano assaz desaforado:
«Os ressentimentos aumentaram quando Alencar lhe enviou a peça Os
Lazaristas para ser levada de acordo com as cláusulas do contrato existente entre
o governo imperial e o artista fluminense. Examinando-a, descobrira João Caetano
uma ofensa aos seus sentimentos religiosos. O personagem principal da peça, em
certo lance, dirigia a Cristo violentas imprecações. Como católico militante, o ator
via naquele papel, que lhe cabia desempenhar, indisfarçável acinte à sua pessoa. E
num momento de cólera, depois de amarrotar os originais, devolveu-os com um
recado atrevido: — Diga a esse moço que êle pode mandar no Pada-mento, mas
em minha arte não manda. E que nunca representarei nem outras peças dele.
Alencar chocou-se com o fato; e, golpeado em seu amor próprio, valeu-se do
mandato e obteve na Câmara que fosse suprimida a subvenção ao artista»
(páginas 88/89) .
R. MAGALHÃES JÚNIOR
Tudo isso é pura fantasia. Mas o equívoco de Lafaiete Silva é o mais
elaborado, sobretudo pela insistência com que afirma que a influência de José de
Alencar fêz suprimir uma subvenção dada a João Caetano por lei especial e, mais
ainda, por lei nunca revogada.
De boa-fé, o escritor Raimundo de Meneses, da Academia Paulista de Letras,
acolheu a acusação contra o dramaturgo, nas páginas de seu José de Alencar
(Literato e Político), obra na qual há minuciosa e importante pesquisa sobre vários
outros aspectos da vida do escritor cearense. Falando da recusa de O Jesuíta, diz
êle à página 197:
«Alencar, por isso ou por aquilo, se exaspera. Então, por tão corriqueiro
pretexto, Caetano se nega a apresentar um trabalho teatral seu, e que lhe
encomendara, ferindo além do mais o contrato que assinara com o governo, do
qual recebe uma subvenção oficial? Não tem dúvidas e, segundo se assoalha, ter-
se-ia valido do mandato de deputado e conseguido da Câmara o corte da verba
destinada ao artista fluminense. Uma tarde, dias depois, ensaia João Caetano o
papel de Augusto, na tragédia Cina, de Corneille (tradução do Dr. Antônio José de
Araújo), quando alguém entra precipitadamente na caixa do teatro, e lhe diz,
desorientado, confirmando inquietadoras suspeitas: Acaba de cair na Câmara a
subvenção ao Teatro São Pedrol O ator tem uma síncope. «Alencar está vingado»
(132) . Sintomas prenunciadores de uma lesão orgânica do coração já se haviam
declarado e este último golpe profundamente o abala».
Há em tudo isso alguns grãos de fantasia, que chegam quase a apresentar
José de Alencar como uma espécie de assassino de João Caetano. Ao pé da página,
esclarece Raimundo de Meneses as suas fontes. na nota 132: «Melo Morais
Filho — João Caetano (Estudo de Individualidade) — Laemmert & Cia. — Rio,
1903. Ferreira Guimarães & Cassiano César — Biografia completa do Primeiro
Ator Dramático Brasileiro João Caetano dos Santos — Rio, 1884».
Vejamos, agora, o que na realidade se deu e que é muito diferente do que tem
sido contado. Na verdade, João Caetano, a partir de 1847. nunca deixou de ser
regularmente subvencionado pelo governo imperial e foi até o dia de sua morte.
Pela resolução de 15 de setembro de 1847, recebia êle 24 contos de réis por ano,
em prestações mensais de 2 contos. A 20 de agosto de 1853, essa subvenção foi
aumentada para 36 contos, em prestações mensais de 3 contos de réis. O
respectivo decreto está publicado na Coleção das Leis do Império do Brasil, ano
de 1853, tomo 14, parte primeira, seção 14ª, página 42, e reza o seguinte: «Decreto
nº 696 de 20 de agosto de 1853. Prorroga por mais seis anos a Resolução de 15 de
setembro de 1847, que autorizou o Governo para auxiliar o atual Empresário do
Teatro de S. Pedro de Alcântara com a prestação mensal de dois contos de réis, e
eleva a dita prestação a três contos de réis. Hei por bem sancionar, e mandar que
se execute a Resolução seguinte, da Assembleia Geral Legislativa. Art. 1º — É
prorrogada por mais seis anos a Resolução número quatrocentos e sessenta e
quatro de quinze de setembro de mil e oitocentos e quarenta e sete, que
As RELAÇÕES ENTRE JOSÉ DE ALENCAR E JOÃO CAETANO
autorizou o Governo para auxiliar a João Caetano dos Santos, atual empresário do
Teatro de S. Pedro d'Alcântara, com a prestação mensal de dois contos de réis,
elevando a dita prestação a três contos de réis mensais, e devendo o Governo fazer
extrair por conta do Tesouro as loterias, que forem necessárias para sua
indenização. Art. 2º — Ficam revogadas as disposições em contrário. Francisco
Gonçalves Martins, do Meu Conselho, Senador do Império, Ministro e Secretário
d'Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido, e faça executar. Pa-
lácio do Rio de Janeiro, em vinte de agosto de mil oitocentos cinquenta e três,
trigésimo-segundo da Independência e do Império. Com a rubrica de Sua
Majestade o Imperador. — Francisco Gonçalves Martins».
Vê-se, assim, que a subvenção era dada por decretos e não afetava o
orçamento, pois as despesas tinham recursos especiais, oriundos de loterias, tantas
quantas fossem necessárias para cobri-las. Antes de ter expirado o prazo
consignado naquele decreto, outro foi expedido, sendo referendado precisamente
pelo Marquês de Olinda. Está nas páginas 28 e 29, da parte da Coleção das Leis do
Império do Brasil, referentes ao mês de setembro de 1858. É este o seu teor:
«Decreto nº 979 de 15 de setembro de 1858. — Concede doze loterias anuais em
benefício da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional; e autoriza o
Governo para auxiliar a João Caetano dos Santos, como empresário do Teatro de
S. Pedro de Alcântara, com a prestação mensal de quatro contos de réis,
extraindo-se as loterias precisas para indenizar o Tesouro da mesma prestação.
Hei por bem sancionar e mandar que se execute a Resolução seguinte da
Assembleia Geral Legislativa. Art. 1" — O Governo mandará extrair por espaço
de três anos doze loterias anuais em benefício da Imperial Academia de Música e
Ópera Nacional. Três destas loterias serão destinadas para subvenção da referida
empresa, além das quatro já concedidas pela Lei de 19 de agosto de 1857, e as
restantes para a edificação de um teatro próprio para o serviço dela, conforme o
plano que o mesmo Governo aprovar. Art. 2º — Fica o governo autorizado para
auxiliar a João Caetano dos Santos, como empresário do Teatro de S. Pedro de
Alcântara, com a prestação mensal de quatro contos de réis, pagos pela renda
ordinária, por mais seis anos, contados do dia em que expirar a lei de 20 de agosto
de 1853 — Nº 696; fazendo extrair anualmente por conta do Tesouro o número de
loterias preciso para indenizá-lo da referida prestação. O Marquês de Olinda,
Conselheiro d'Estado, Presidente do Conselho de Ministros, Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça executar.
Palácio do Rio de Janeiro em quinze de setembro de mil oitocentos cinquenta e
oito, trigésimo-sétimo da Independência e do Império. Com a rubrica de Sua
Majestade o Imperador. — Marquês de Olinda».
Acontece, porém, que no ano seguinte, isto é, em 1859, — dois anos antes de
José de Alencar ter assento na Câmara dos Deputados — o orçamento do Império
consignou a João Caetano dos Santos, em vez da verba de 48 contos, apenas a
importância de 41 contos de réis. Isso
R. MAGALHÃES JÚNIOR
representava uma diferença, para menos, de quinhentos e tantos mil réis, a que
João Caetano se referira na carta à Marquesa de Olinda, cujo marido, tendo
deixado a chefia do ministério em dezembro de 1858, voltara ao poder em 30 de
maio de 1862. Em 1860, repetiu-se o erro orçamentário de 1859, sem que João
Caetano deixasse de receber os 41 contos, em prestações de três contos,
quatrocentos e poucos mil réis. E o mesmo aconteceu em 1861, 1862 e 1863. A lei
que beneficiava João Caetano dos Santos, nunca revogada, teria vigorado até
1865, como se vê dos termos dos dois decretos transcritos, se não tivesse perdido a
finalidade, por morte do beneficiário.
Percorremos minuciosamente os anais da Câmara dos Deputados de 1861 a
1863, à procura de qualquer manifestação reveladora do despeito e do desejo de
vingança de José de Alencar contra o grande ator. Tudo em vão. Nem uma palavra,
fosse em discurso, requerimento de informações ou emendas orçamentárias. As
emendas de José de Alencar eram raras e, em geral, se destinavam a atender a
interesses de seu eleitorado: verba para a construção do Seminário Episcopal do
Ceará, elevação de uma tesouraria de 2º classe para a 1º classe, dispensa de um
estudante da prestação de determinado exame, etc. Nem uma só vez ocupou-se de
subvenções a teatros, fosse para o de João Caetano, fosse para o de qualquer outro
empresário. A de julho de 1862, o maestro Elias Álvares Lobo, que, utilizando-
se de um livreto em dois atos de Alencar, musicara a opereta A Noite de São João,
levada à cena em dezembro de 1860, pediu um auxílio de 2 contos, mesmo a título
de empréstimo, à Câmara dos Deputados, e o escritor cearense se absteve de
qualquer pronunciamento a respeito. No ano de 1863, Alencar perdeu o mandato: a
Câmara dos Deputados foi dissolvida pelo Marquês de Olinda dez dias depois de
abertos os trabalhos legislativos, que se inauguravam, por tradição, a 3 de maio.
Nesse ano, o orçamento não foi votado, mas, como era de praxe, o governo
prorrogou, por decreto, o orçamento do ano anterior.
O que João Caetano pleiteava — e esse foi o motivo pelo qual se dirigiu, em
carta, à Marquesa de Olinda — era o pagamento de diferenças que já
correspondiam a quatro meses de subvenção e tendiam a aumentar. Nesse sentido,
assim que chegara da Europa, com os recursos financeiros esgotados, êle se
dirigira ao Ministro do Império. Até 23 de maio, exerceu a pasta José Ildefonso de
Sousa Ramos (Visconde de Jaguari) . De 24 de maio a 29 do mesmo mês, Zacarias
de Góis e Vasconcelos. De 30 de maio em diante, o Marquês de Olinda. O reque-
rimento provavelmente foi às mãos de um dos dois primeiros, que nada quis
decidir, sem o pronunciamento do Poder Legislativo. Assim, João Caetano dirigiu-
se à Câmara, por onde começava a elaboração orçamentária. Sua representação foi
encaminhada à 2» comissão de orçamento, que lhe deu parecer inteiramente
favorável. Faziam parte dessa comissão Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque
(Pernambuco), João de Almeida Pereira Filho (Rio de Janeiro) e António
Corrêa do Couto
As RELAÇÕES ENTRE JOSÉ DE ALENCAR E JOÃO CAETANO
(Mato Grosso) . O parecer por eles lavrado mostra que todo o caso se resumia no
recebimento daqueles atrasados:
«O empresário do Teatro de S. Pedro de Alcântara representa pedindo a
adoção de uma medida que corrija o erro que escapou no art. § 48 de lei nº
1.040 de 14 de setembro de 1859, e que foi reproduzido no art. 2º § 52 da lei nº
1.114 de 27 de setembro de 1860. A comissão de orçamento, procedendo aos
exames para verificar a verdade dessa asserção, reconheceu que a lei nº 979 de 15
de setembro de 1858 concedeu àquele empresário a prestação de 4:000$ mensais,
paga pelo Tesouro, por um prazo que deve findar em 1865, sendo os cofres públi-
cos indenizados mediante a extração de loterias; entretanto a lei do orçamento nº
1.040 de 14 de setembro de 1859 só consignou 41:000$, o que impediu que o
Tesouro pagasse integralmente os 4:000$ mensais até o fim desse ano. Mas
mandando a lei nº 1.041, que no exercício de 1860 a 1861 vigorasse o mesmo
orçamento anterior, recusou o Tesouro pagar as prestações dos últimos meses
desse ano financeiro, alegando insuficiência de crédito. No fim do ano financeiro
de 1861 a 1862 repro-duziu-se o mesmo fato e pela mesma causa, de maneira que
o empresário ainda não recebeu as prestações dos quatro meses de maio e junho
de 1861 e 1862, porque o governo, em despacho do Sr. Ministro do Império,
decidiu que recorresse ao poder legislativo para que se emendasse o erro de que o
empresário com razão se queixava. A comissão não pôde deixar de convencer-se
de que com efeito foi um erro, porque o mesmo $ 48 da lei nº 1.040, ao passo que
só consignou 41:000$ para no ano financeiro de 1860 a 1861 pagar-se as
prestações do empresário, acrescentou: na forma da lei nº 979, que é justamente a
que marcou a prestação mensal de 4:000$ ou 48:000$ anuais. Ora, isto prova mui
claramente que não se teve em vista reduzir o auxílio dado por aquela lei ao
empresário. Cumpre ainda ponderar que o reclamante juntou certidões do
Tesouro, provando que em agosto de 1861 existiam nos cofres públicos de saldo
de loterias extraídas em favor do Teatro de S. Pedro de Alcântara 35:966$667; e
sabendo a comissão que de então para cá esse saldo elevou-se a 47:166$667 torna-
se evidente que nenhum adiantamento terá o Tesouro de fazer para pagar ao
empresário as quatro prestações que lhe são devidas. Nestes termos é a 2º
comissão de orçamento de parecer que não há necessidade de nenhum ato
legislativo para emendar um erro manifesto, que acha-se corrigido no próprio
parágrafo em que escapou, pois que diz — na forma da lei 979 —; devendo,
portanto, o empresário dirigir-se ao governo, que está autorizado e tem os meios
para mandar pagar pelo saldo das loterias existente no Tesouro o que ao
reclamante se deve, na forma da lei nº 979. — Sala das Comissões, 14 de agosto
de 1862. — Almeida Pereira Diogo Velho Corrêa do Couto».
Vinte dias depois, a 3 de setembro, o parecer da segunda comissão de
orçamento desceu ao plenário. Era a última sessão da Câmara dos Deputados no
ano, pois o período legislativo seria encerrado pelo Impe-
R. MAGALHÃES JÚNIOR
rador, com a fala do trono, no dia seguinte. Mas, no momento em que foi lido o
parecer, pediu a palavra o deputado baiano Gasparino Moreira de Castro e, por
isso, a votação foi adiada. Na sessão que se iniciou a 3 de maio de 1863 também
não foi votado, porque o Marquês de Olinda dissolveu a Câmara no dia 13. Vê-se,
assim, que foram incorretos e injustos os increpadores de José de Alencar.
Principalmente Lafaiete Silva, que insistiu na acusação, no final de sua biografia
de João Caetano:
«Alencar fêz-lhe a justiça merecida, reconhecendo-lhe o valor; não resta
dúvida, todava, que é a êle que João Caetano se refere na carta endereçada à
Marquesa de Olinda, quando alude à «vingança de um homem», vingança que o
fêz horrorizar-se da morte, quando esta já o enleava, pelo estado de penúria em
que, perdida a subvenção, deixaria os filhos».
Como vimos, não foi perdida subvenção alguma. Em 1863, como já
dissemos, foi prorrogado o orçamento que vigorou em 1862. E João Caetano só
queria receber as diferenças ou atrasados a que tinha direito. Era essa a única
queixa do grande ator. A exclamação do sujeito que. vindo de fora, desorientado,
entra pela caixa do teatro para exclamar, segundo registra Raimundo de Meneses:
«Acaba de cair na Câmara a subvenção do Teatro São Pedro!» é inteiramente
falsa. Escritor honesto e bem intencionado, certamente êle suprimirá esse trecho
de seu livro. ou lhe dará redação diversa, uma vez esclarecido a respeito. O que se
poderia ter passado, na tarde de 3 de setembro de 1872, seria bem diferente.
Poderia ter entrado no teatro um emissário de João Caetano, mandado à Câmara
para tratar dos seus interesses, acompanhando a votação do parecer da segunda
comissão de finanças, esperada naquele dia, mas não levada a efeito, em razão da
atitude do deputado baiano. usando recurso de obstrução facultado pelo regimento.
Esse emissário poderia ter dito, no máximo, isto: «Perca as esperanças de receber
este ano os atrazados! O parecer não foi votado.»
A carta, escrita num momento difícil, de quase desespero, à Marquesa de
Olinda, deve ser posterior à atitude de Gasparino Moreira de Castro, pois até aí
João Caetano devia estar muito esperançado. Mas seria a esse parlamentar que êle
se referia? Ou seria, antes, ao Ministro do Império que não quisera resolver
administrativamente o seu caso? É evidente que não era do Marquês de Olinda que
êle se queixava à esposa deste, Ministro do Império a partir de 30 de maio. Se tal
era a sua queixa, devia entender-se com José Ildefonso de Sousa Ramos (Barão de
Jaguari), ou com Zacarias de Góis e Vasconcelos, ocupantes da mesma pasta, o
primeiro por quase cinco meses do ano de 1862 e o segundo só por uma semana.
Um deles provavelmente recebeu o requerimento de João Caetano e não quis
assumir a responsabilidade de despachá-lo favoravelmente, mandando que o ator-
empresário se dirigisse à Câmara dos Deputados. Entretanto, mereceria uma
atitude dessas o nome de «vingança»? Que agravos poderiam eles ter de João
Caetano?
As RELAÇÕES ENTRE JOSÉ DE ALENCAR E JOÃO CAETANO
Não se trataria, antes, de uma concorrência daninha, no campo teatral? João
Caetano vivia às turras com seus rivais artistas e empresários, tendo tido ruidosa
briga com o ator Florindo Joaquim da Silva, com troca de expressões contundentes
pelos «a-pedidos» da imprensa.
É difícil, senão impossível, precisar com quem possa entender-se referência
tão vaga. Acreditamos, porém, ter demonstrado de forma irre-torquível que de
modo algum poderia ela entender-se com José de Alencar. Teve este, como
político conservador, falhas e descaídas, quando ministro da Justiça e quando
deputado. Mas deve ser absolvido da acusação gratuita e injusta de mesquinho
perseguidor de João Caetano, pois dele não partiu o menor gesto que pudesse ferir
o grande ator trágico, quer no plano financeiro, quer no plano moral ou artístico.
A Visita de Mário de Andrade a
Alphonsus de Guimaraens
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
UANDO faz, neste 1970, vinte e cinco anos que Mário de Andrade morreu,
tenho pensado muito no que representou essa figura extraordinária de homem
e escritor para a minha geração. Quanto a mim, nem sei exprimir o que lhe
devo, em crítica sincera e franca, em cordura e benevolência diante dos poemas
que lhe submetia. Humano e generoso, êle estava perto dos moços como se fosse
um deles. E não se cansava, não desanimava no duro ofício de orientá-los. Pelo
contrário: rejubilava-se quando alguns deles lhe mandavam novos trabalhos. Até
pedia que mandassem, como leio numa carta que me enviou em 10 de março de
1941: «Me escreva e mande versos pra meu descanso e amizade».
Descanso e amizade. . . Amizade seria, mas descanso, nunca. Porque Mário
de Andrade não era capaz de um juízo apressado, que apenas aflorasse os
problemas suscitados pela leitura dos inumeráveis originais que lhe remetiam
confiantemente os moços. Detinha-se em pormenores que não raro o obrigavam a
estender-se muito, a escrever cartas que constituem, em si mesmas, verdadeiros
ensaios. Nessa mesma carta que vou comentar detidamente, há um trecho capaz de
dizer da preocupação com que nos lia. a nós moços de então, e como debatia
conosco temas do seu agrado com observações que nos seriam da maior utilidade.
É o caso do soneto. Damos-lhe a palavra: «As suas considerações sobre o
soneto, ih, meu Deus! agora já escrevi tanto e desenvolver o assunto me alongaria
por demais. Você reconhece no entanto que o soneto não cabe pra todos os estados
líricos e só cabe «em ocasiões especiais, em que nos sentimos menos derramados,
menos eloquentes.» Mas por outro lado você defende o soneto irregular em
proveito da naturalidade, o que é naturalidade? E arte, eu só acredito
Q
ALPHONSUS DE GUIMARAENS PILHO
naquela super-naturalidade que só grande trabalho consegue.» E depois de me
incitar a que não deixasse de escrever sonetos: «Às vezes tenho medo de
prejudicar os outros. (...) Trabalhe, pense nos problemas estéticos fora do
momento de poetar e principalmente depois de feito o poema. É gostoso corrigir,
polir, transformar a «espontaneidade» rosa-gato-pinto-macaquinho pra adquirir
aquela super-naturalidade da arte, o La Fontaine que precisou de dez versões pra
atingir o
La cigale ayant chanté Tout
l'été.
Releio essas palavras e medito nas barbaridades ou coisas horrorosas (como
êle gostava de pronunciar «hororosa», no singular, assim com «r» brando, nas suas
longas, fascinantes conversas!) que devo ter cometido nas minhas imensas cartas
escritas muita vez nas péssimas folhas de papel do jornal em que então trabalhava
e sem muita reflexão, no impulso incomparavelmente sôfrego da mocidade. .. E
medito ainda uma vez na paciência miraculosa de Mário de Andrade. acolhendo
com generosidade todas as questiúnculas que lhe propúnhamos, que talvez não
fossem propriamente questiúnculas, tal a atenção que lhes dedicávamos ou a
amplitude e mesmo valor que lhes atribuíamos, mas que de qualquer modo lhe
exigiam muito, embora fosse êle, como é de todos sabido, um epistológrafo
fenomenal.
Que se preocupava, vejo-o numa carta dirigida ao sr. Newton Freitas e
incluída por Lygia Fernandes em 71 Cartas de Mário de Andrade, Livraria São
José. Está ela datada de 9 de outubro de 1944. Mário de Andrade vinha de visitar
Minas Gerais (falarei dessa visita mais adiante) e dizia para o amigo: «Newton,
você não pode imaginar a briga, a verdadeira guerra em que me atirei contra o
mundo ambiente desde o momento de agosto em que decidi a todo custo viver
mais pra mim e por mim. As encomendas de coisas chovem, tenho que recusar
penoso, discutir, e acabar até malcriadamente fincando o pé contra as insistências
também malcriadas. O telefone é um inferno também mas a frio, não atendo
mesmo a não ser nas horas determinadas. Mas o contra o quê posso é nada é a
convivência dos que, mais moços, menos experientes em arte, carecem de mim,
me procuram, e vejo que posso ser útil. Eu sei que a minha mais legítima obra-
prima é mesmo essa, jamais publicada, vida de companheiro mais velho e mais
experiente, que ajuda e dá confiança nos outros. Ainda agora, fui vadiar 15 dias
em Belo Horizonte. Você não imagina o que isso me trouxe de obrigações novas
com os moços que se aproximaram de mim, e as preocupações que eles me
deixaram no espírito e também no coração que não pode deixar de amar. Você não
imagina como me preocupa ver toda essa mocidade, desprovida de mocidade, da
mocidade que eu tive, leve. despreocupada, só preocupada de si mesmo,
irresponsável, sentimental. dramática, sim, mas do seu próprio drama. (...) Ao
passo que os
A VISITA DE MÁRIO DE ANDRADE A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
de hoje, não: vejo eles sem mocidade, se julgando responsáveis de tudo,
preocupados e apaixonados de guerras políticas, amando aos trancos, sem sequer
saborear os sofrimentos de amor. É triste. E a pena deles, as preocupações com
eles me devastam», (págs. 160-161).
Nessa carta de 10 de março de 1941, Mário de Andrade se reporta à visita
que fêz a Alphonsus de Guimaraens em Mariana — uma das poucas alegrias que
teve meu Pai no seu «deserto». E como transcorre neste 1970 o centenário de
nascimento de Alphonsus de Guimaraens, julguei interessante, pelo menos
oportuno, falar um pouco dessa visita, ainda mais que a carta de Mário de
Andrade, como muitas outras que dele conservo com o devido carinho, é de todo
desconhecida.
Em 15 de julho de 1919, Alphonsus de Guimaraens escrevia a seu filho João
Alphonsus, que então já residia em Belo Horizonte, para onde se mudara, a fim de
encaminhar-se nos estudos e na vida, em abril de 1918. Dava notícias, de início, da
família: «Vamos indo regularmente de saúde, — eu, Zenaide e a prole. O Albino
recebeu a tua carta e vai aprofundar-se nas leituras de Alex. Dumas (vertidas para
o vernáculo) para responder-te. Como não sou eu que levo as cartas ao correio,
levando-as qualquer uma das tuas pequenas irmãs, — não sei a quem devo atribuir
uma demora tão longa que dizes há da minha parte em acusar o que nos escreves.»
Até aí, o pater famílias carinhoso que êle foi e que ainda se manifestará em outra
passagem da carta. Vem a seguir uma de suas preocupações, ou, por que não
dizer? uma das amarguras de sua vida: a precariedade de sua situação financeira:
«Não recebeste (diz êle) uma carta enviada ao Raul Soares, para ser-lhe entregue
por intermédio do Arduíno?» (Refere-se ao Presidente de Minas, Raul Soares, e ao
grande humanista Arduíno Bolívar, a quem dedicou um soneto, «ao espírito tão
alto de Arduíno», recolhido em Outras Poesias, pág. 525 de sua Obra Completa.)
«Embora eu saiba que o meu quatriênio me garante aqui mais três anos de estada,
procura saber o que há no Congresso sobre os juízes municipais.» Temia, com
uma antecedência de três anos, se repetisse, numa fase em que já tinha nada menos
de catorze filhos, o que se deu em Conceição do Serro em 1903, quando, como
assinala João Alphonsus à pág. 41 da Obra Completa (Editora José Aguilar, Rio
de Janeiro, 1960), «tendo o governo do Estado suprimido lugares de juízes
substitutos, em 1903, viu-se Alphonsus sem proventos para a família.» Foi
quando, como se sabe, dirigiu êle o jornal «Conceição do Serro», fundado por seu
amigo Soares Maciel, presidente da Câmara Municipal, provendo à subsistência da
família com os parcos recursos que lhe rendia o periódico até que em setembro de
1904 voltasse a ser nomeado promotor de justiça da comarca, «como numa vida
monotonamente a repetir-se», na frase de João Alphonsus (pág. 41 da obra cit.)
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Logo a seguir, na carta de que nos estamos ocupando e que pode ser
encontrada à pág. 672 da Obra Completa, faz Alphonsus a grande revelação.
Diz, antes, que iria enviar alguns versos de João Alphonsus a Jacques d'Avray
(Freitas Vale), com quem manteve longa correspondência, cujo conhecimento
seria do maior interesse não só para que se possa confirmar a grande
amizade que os uniu como para verificar como e quanto não devem ter
debatido os problemas do seu tempo. Que Alphonsus de Guimaraens, ao
contrário do que muitos supõem, nunca foi indiferente aos acontecimentos mais
relevantes de sua época. Ao coligir as suas crônicas inéditas na Obra
Completa (trata-se das Crônicas de Guy d'Alvim), advertimos em nota à página
736: «A Seleção se fêz no sentido de proporcionar ao leitor uma visão geral do que
era o gênero para o Poeta: nele se afirmava o humorista que havia em
Alphonsus, que tanto aproveitava os acontecimentos de sua cidade (há crónicas
que se referem particularmente a Conceição do Serro e Mariana) como do
País (fatos políticos, literários ou simplesmente policiais) e ainda do
momento internacional. Sempre, um homem do seu tempo, em dia com o que ia
ocorrendo, nunca limitado aos horizontes das pequenas cidades que lhe coube ha-
bitar.» O mesmo poderá ser dito com relação aos seus «Versos Humorísticos».
Aliás, em Conceição do Serro, viu-se obrigado a tomar partido na luta política
que se desenrolava entre Soares Maciel e Casimiro de Sousa, chefe da
oposição. A derrota eleitoral de Soares Maciel é que provocou a sua mudança
para Mariana, como juiz municipal, pois Casimiro, médico, atingido no
jornal que Alphonsus redigia por várias sátiras contra os médicos, opôs-se à
permanência do Poeta em Conceição do Serro, como tudo vem narrado na
«Notícia Biográfica». Sobre as eleições realizadas então na cidade sertaneja
leia-se a crónica XII de Crônicas de Guy d'Alvim, à pág. 609 da Obra
Completa. Em tom divertido, o Poeta descreve o ambiente carregado em que elas
se desenvolveram, concluindo: «E afinal, depois de tantas bravatas, de tamanha
ostentação de grupos que entravam na cidade como se fossem levas de
trabalhadores que iam para a mata, tudo terminou pacatamente. Entre os
mortos e feridos, todos escaparam, inclusive quem assina mais uma vez esta
crónica.» Quanto à política nacional, basta ler, em Crónicas de Guy
d'Alvim, a de n.° XVII, «Aplicando o Evangelho», escrita quando da ascensão
ao poder do marechal Hermes da Fonseca. Vem ela à pág. 632 da Obra
Completa.
Mas voltemos à carta de Alphonsus de Guimaraens e à grande revelação a
que aludimos «Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S.
Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor em ciências
filosóficas. Leu e copiou várias poesias minhas (principalmente as francesas), e
admirou o teu soneto oferecido ao Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura.
sabendo de cor, em inglês, todo o «Corvo» de Poe. Viaja para fazer
A VISITA DE MÁRIO DE ANDRADE A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
futuras conferências, e visitou todos os templos desta cidade. A verdade é que,
para quem vive, como eu, isolado — uma visita dessas deixa profunda impressão
( * )
No final da carta Alphonsus de Guimaraens se referirá aos filhos Nazareno e
Afonso, sempre com as mesmas palavras de ternura que usou para com a prole
imensa, e enviará junto, ao filho distante, «o programa de uma das últimas
estopadas teatrais que puseram em moda nestes ermos.» Note-se a insistência com
que aludia ao seu isolamento ao falar, por exemplo, em «ermos». Não é à toa que o
temos datando de um «Aix-le-Désert» (como faz ver João Alphonsus ã pág. 708
da Obra Completa) alguns dos seus poemas franceses. Um deles, «Succube», de
Pauvre Lyre, apareceu na revista simbolista mineira «Minas Artística» em 1 de
março de 1902, com a assinatura de «Vicomte de Grandeuil, Aix-le-Désert, Dans
1'Eternité». . . Nada mais justo que uma visita como a de Mário de Andrade
merecesse da sua parte as expressões que usou na carta ao filho distante.
Outras vezes se referiu êle à sua solidão, como nas cartas a Mário de Alencar
inseridas na edição da Obra Completa e doadas pelo destinatário à Academia
Brasileira de Letras. À pág. 665: «A tua carta, que veio, alvissareira, interromper o
longo silêncio epistolar que nos impuséramos, encheu-me de alegria, a mim que
vivo, por força das circunstâncias, neste centro primitivo, como alguém deno-
minou as Alterosas Montanhas.» À pág. 666: «Não me satisfazem absolutamente
as razões que dás para não me enviares o teu livro (...) Que serias tu, se em vez de
viver nesse centro de luz, entre espíritos de eleição, arrastasses a vida que levo,
só, completamente só, nestes
Vivendo nos «míseros sertões mineiros», Alphonsus de Guimaraens devia acolher com a
maior alegria a visita de um alto espirito com que pudesse se desabafar. Assim sucedeu com
a passagem de Afonso Arinos por Conceição do Serro, em permanência infelizmente curta,
em 1904. Numas «Notas de Viagem», publicadas no n° 16, de dezembro de 1959. da
«Revista do Livro», do Instituto Nacional do Livro, o autor de Pelo Sertão se refere à sua
passagem por aquela cidade, citando nominalmente Alphonsus de Guimaraens: «Caminho
difícil até ganharmos a serra da Boavista, donde se descortina a cidade de Conceição do
Serro. Aspecto da cidade, situada numa bacia larga, dominada pelo Morro da Mina e a Serra
da Ferrugem. As casas pintadas de azul. O farmacêutico Bernardino. O poeta Alphonsus de
Guimarães» (pág. 158) . Alphonsus de Guimaraens registrou a visita no n° 10, de 22 de maio
de 1904, do seu jornal «Conceição do Serro»: «Dr. Afonso Arinos. Este brilhante escritor,
redator chefe do grande órgão paulista Comércio de S. Paulo, demorou-se algumas horas na
cidade, tendo seguido para Diamantina, onde vai colher notas para um livro sobre o Tejuco
nos tempos coloniais. / O futuro livro será com certeza mais um triunfo que alcançará o
impecável estilista. / Em sua companhia viajam o seu tio major Teófilo de Melo Franco e o
alferes Henrique de Melo Franco, seu primo. / Hospedaram-se no conhecido Hotel Costa
Pinto, onde almoçaram».
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
míseros sertões mineiros!» À pág. 667: «Não demores a resposta a esta. A
monotonia da vida que levo, longe das convivências que alegram os espíritos,
conversar com alguém que quer e me compreende, é-me decerto agradável.» A
mesma pág., uma observação que interessa como notação autobiográfica, a
confirmar a preocupação do Poeta com a sua situação precária de magistrado:
«Puseste no envelope — Dr. A. de G., D. Juiz de Direito de Mariana. Sou, como já
te disse, um simples e temporário juiz municipal. Não pude colocar-me ainda na
magistratura vitalícia do Estado, tal é o enxame de bacharéis bafejados pela
política.»
Sobre a Obra Completa de Alphonsus de Guimaraens, o nosso grande Manuel
Bandeira publicou uma crônica no «Jornal do Brasil» de 21 de agosto de 1960, e
nela pôs mais uma vez a sua revolta pelo abandono em que foi deixado o Poeta
pelos amigos influentes. «Leio no Epistolado de Alphonsus de Guimaraens»,
escreve êle «Sou juiz municipal, ganho uma miséria, mas vou vivendo, Deus
louvado. Quanto a meus trabalhos, tenho escrito bastante. Colaboro na Gazeta de
São Paulo, de que é redator-proprietário o Adolfo Araújo, recebendo alguns pintos
magros.» ( . . . ) «Envio-te alguns versos, esperando que, lendo-os, penses um
pouco neste velho poeta que por aqui vive a contemplar o deserto das cidades
mortas.» «Somente a minha pobreza, vivendo num pardieiro medieval...» Leio
essas linhas pungentes e, mais uma vez, me revolto contra os amigos do poeta, que
se tornaram figurões poderosos da política e nada fizeram para melhorar as
condições de vida do velho companheiro, pai de catorze filhos. No entanto, que
desejava êle? Não era nenhum «centro de luz», como chamava ao Rio de Janeiro,
não era o Rio, nem São Paulo. nem mesmo Belo Horizonte: aspirava apenas ao
juizado municipal de Sabará. «Seria tão bom», suspirava, em 1919, ao filho João
Alphonsus, «ser removido para ali, ficar mais perto de Belo Horizonte!» Nem para
isso, ninguém, senão seu filho, mexeu uma palha. Alphonsus teria que ficar até o
fim em Mariana. Os amigos poderosos, os admiradores, todo o mundo, achavam
que já tinham feito muito inventando para o pai de catorze filhos o doce título de
«poeta de Mariana». Tirá-lo de Mariana seria estancar-lhe a inspiração, pri-vando-o
do ambiente que era o habitat de sua poesia, flor de pureza e humildade.» O
restante da crônica, destina-o Manuel Bandeira para demonstrar que a Obra
Completa de Alphonsus de Guimaraens clama e proclama que «o poeta de
Mariana» não era o autor da obra poética que vai de Kiriale a Pulvis. Detém-se nas
outras facetas que compuseram a personalidade do Poeta e remata: «Na morta cida-
dezinha de Mariana, mas dentro de si e nas artes mais nobres e altas de sua alma,
edificou Alhonsus de Guimaraens a sua Sião. e foi ali que criou a sua poesia,
imaginando que «oficiava no mosteiro de Verlaine» (só o fêz na Pauvre Lyre)
quando pontificava no seu privilegiado Vaticano. Só era o «poeta de
Mariana» quando des-
A VISITA DE MÁRIO DE ANDRADE A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
pertava de seus áureos sonhos; quando, depois de se ver «no cimo
eterno o da montanha, tentando unir ao peito a luz dos círios que bri-
lhavam na paz da noite estranha», voltava ao ramerrão da vida de
pai pobre de numerosa família, juiz municipal de uma cidadezinha
Quando tombava «ao caos dos meus martírios...» Mas,
hoje, todos nós sabemos para quê subiu tão alto.»
Poeta de Mariana... Melhor, «o solitário de Mariana», como se tornou hábito
designá-lo. João Alphonsus comentou, na «Notícia Biográfica» (pág. 46 da Obra
Completa): «É literariamente interessante a terminação de sua vida em Mariana. O
solitário de Mariana. Mas essa solidão, como defesa íntima, como riqueza interior,
êle já a trouxfera consigo para a cidade merencória, desde os melhores dias, e
levá-la-ia intacta e incorruptível para um outro ambiente: mais recursos materiais
não modificariam a sua formação inexorável de Poeta, propiciando-lhe, isto sim,
meios com que lutar contra os males do corpo — e viver mais e melhor.»
Quis Deus que a amizade de Mário de Andrade se estendesse aos filhos de
Alphonsus de Guimaraens. Essa amizade, principiada com João Alphonsus, tão
cedo morto, se manifestou, quanto a mim, numa correspondência que, iniciada em
1940, durou até a sua morte, e num convívio que, se não foi frequente, sempre
bastou para consolidá-la em definitivo. Lembra-me que, em setembro de 1944,
esteve êle em Belo Horizonte, na sua última visita a Minas Gerais. Um dos
motivos da viagem, como me disse, era a morte recente de João Alphonsus: queria
ir ao seu túmulo, no Cemitério do Bonfim. Lá fomos ter, em manhã muito clara,
juntamente com a poetisa Henriqueta Lisboa. Outro motivo, segundo me revelou,
era conhecer meu primogênito Afonso Henriques, então com meses de idade.
Aliás, quando lhe participei o nascimento de meu filho, escreveu-me êle em 8 de
agosto de 1944: «Fiquei comovidamente feliz com o nascimento do Alphonsus de
Guimaraens Neto, é uma maravilha o que o simples nome desse menino desperta
em mim de ambiente grave de recordações e contactos só bons de sentir. Já quero
bem êle num bem querer acumulado e delicioso de sentir. Breve o espiarei. Por en-
quanto êle que receba a bênção de Deus, autorizada por três gerações de amizade.»
Visitou-nos na residência da viúva do Poeta, à Rua Tomé de Souza, 56, na casa
que ela adquiriu, com o pequeno pecúlio deixado por Alphonsus, da viúva de
Bernardo Guimarães, e na qual residiu de fevereiro de 1923 até julho de 1969,
quando ali faleceu. Mais uma vez lhe senti a ternura incomparável junto do berço
do meu filho. Abraçou-nos, a mim e Hymirene, minha mulher, e a emoção se
refletia nos seus olhos.
Conversando com a família, referiu-se à sua viagem a Mariana. ralou depois
de sua mãe e de uma tia, com quem vivia, para dizer-nos que elas, toda vez que se
sentiam em estado de ternura para com o filho
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
e sobrinho, logo se punham a fazer, em tricô, um suéter para oferecer lhe. E com
aquele jeito todo seu. «Eu já devo ter la em casa umas treze ternuras...» Como
a conversa se inclinasse para um assunto triste, morte e mortos, revelou ter seu pai
morrido de angina-pectoris e que êle, por sua vez, pressentia que teria o mesmo
fim. Vaticínio confirmado poucos meses depois. Morreu, com efeito, vítima do
enfarte, como disse seu irmão Dr. Carlos de Morais Andrade ao escritor Francisco
de Assis Barbosa na entrevista que este incluiu na 2» edição de Retratos de
Família (Livraria José Olympio Editora, 1968). Como se lê à pág. 151 do volume:
«Meu pai — conta-me o Dr. Carlos de Morais Andrade — só veio a se abrir
comigo pouco antes de morrer, já doente, de cama, vítima do enfarte, a mesma
doença que matou Mário, que naquele tempo se chamava angina-pectoris».
Tornemos à sua viagem a Mariana, feita dois anos antes da morte de
Alphonsus de Guimaraens. Na carta de 10 de março de 1941, de que, no inicio,
reproduzimos um trecho, êle a descreve minuciosamente. Foi bom que deixasse um
documento assim, que completa e ainda mais valoriza as palavras de Alphonsus na
sua carta a João Alphonsus. «Faz uns quinze dias, pouco mais, que estou defi-
nitivamente em São Paulo e já por esta segunda-feira a vida vai correndo mais ou
menos natural», assim começa êle, para prosseguir dizendo: «Mas assim mesmo
ainda tem muita coisa pra arrumar, ou milhor: tudo já está arrumado, falta é ler,
reler este mundão de papéis, rasgar coisas inúteis, catalogar e guardar as boas. Há
surpresas gratas como essa, de hoje, de achar dois sonetos de seu Pai, um o Fatum,
da inteira mão dele e outro, cópia minha, feita na presença dele e que êle
autografou. Em ambos os sonetos há pequenas variantes das Obras Completas.»
(Refere-se Mário, aí, às Poesias de Alphonsus de Guimaraens, publicadas pelo
Ministério da Educação em 1938, edição dirigida e revista por Manuel Bandeira,
com notícia biográfica e notas de João Alphonsus.) «No Fatum que c do próprio
punho do seu Pai, vem «albente» por «algente» que está no livro. A mudança me
parece muito milhor: «prata albente do luar morno» pode ter uma quase
redundância (prata albente), mas evita a contradição algente-môrno menos
aceitável». Aqui caberia deter-me na análise da variante a que alude Mário de
Andrade. Fatum foi publicado por Alphonsus, segundo localizamos, o que consta
de uma das «Notas e Variantes» da Obra Completa, (pág. 710), no «Jornal do
Comércio», de Juiz de Fora, em 11 de maio de 1919, com a data de 22 de abril de
1919, e variante na estância 1, verso 3: «Chama ao céu lentamente, e a sua voz
estranha». Em «O Germinal», de Mariana, de 26 de junho de 1919, apareceu sem
qualquer variante. Vê-se que, no «Jornal do Comércio», o Poeta acrescentou a data
da composição do soneto: 22 de abril de 1919. E esta data, como se certificará o
leitor, é importante para ajudar-nos a deslindar um pro-
A VISITA DE MÁRIO DE ANDRADE A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
blema proposto mais adiante por Mário de Andrade. Vai aqui o soneto tal como
figura nas Poesias de 1938 e nas duas edições mais que teve a obra poética de
Alphonsus:
De noite, quando o luar cintila na montanha, Um vulto
ascende à escarpa entre orações secretas. Clama no céu
lentamente, e a sua voz estranha Tem o mistério hebreu das
vozes dos profetas.
Chega ao cimo e alevanta os braços: o luar banha A sua
óssea figura-, as mãos são como setas Voltadas para o azul
da abóbada tamanha, Onde deixam a luz de duas linhas
retas.
Impreca. A solidão soluça e geme em torno
Da sua alva cabeça hirsuta,, onde os cabelos
Se confundem com a prata algente do luar morno.
É o Fado. Alteia o hercúleo arcaboiço amplo e forte, E ergue os
olhos ao céu, que todo treme, ao vê-los, Amaldiçoando a Vida e
bendizendo a Morte.
«No outro, que é o de n.º XXIII de Pulvis — continua Mário de Andrade em
sua carta — na 2º linha do 2.° quarteto, em vez de «nem a pura» como se
imprimiu, está na minha cópia «nem tão pura». E com essas pesquisas me pus
lendo um bocado Alphonsus o velho e não pude sem que escrevesse ao Alphonsus
o moço.»
Este soneto que, como Fatum, foi publicado nas três edições da obra poética
de Alphonsus de Guimaraens, nós o localizamos, quando das pesquisas para a
organização da Obra Completa, no «Jornal do Comércio», de Juiz de Fora, n.° de
8 de junho de 1919, em «O Germinal», de Mariana, n.º de 29 de outubro de 1919,
em ambos com a data de sua composição: 3 de maio de 1919. O texto é este:
Vaga em redor de ri uma fulgência, Que é tanto
sombra quanto mais fulgura: O teu sorriso, que é
divino, vence-a, E ela, que é luz de estrela, pouco
dura.
De outra não sei que tenha a etérea essência Que
nos teus olhos brilha: nem a pura Linha de arte de
tal magnificência Como a que o rosto de anjo te
emoldura.
Na candidez ebúrnea do semblante Tens um lis
de ternura, que desliza À flor da pele em mágoa
suavizante.
Não sei que manto celestial arrastas. . . Ê como a
folha do álamo que a brisa Beija e balança ao luar
das noites castas.
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Depois de mencionar os dois sonetos, um em autógrafo de Alphonsus, outro
copiado por êle próprio, Mário de Andrade, e autografado por meu Pai, o autor de
Macunaima coloca um problema: «Uma coisa — prossegue — me deixou
completamente atarantado e vai ser um problema literário de minha vida. Minha
primeira viagem a Minas foi em 17 e então fui visitar seu Pai em Mariana. É certo
que desejava ver a «Episcopal cidade», mas a ela me levava nos meus 21 anos a
curiosidade de conhecer dois homens que. . . pra falar verdade não é que eu
admirasse ou amasse muito eles, era muito egoísta nos meus 21 anos pra amar
homens que já não estavam muito comigo, então já escrevendo o «ruim exquisito»
como lá disse o Manuel Bandeira, do «Há uma Gota de Sangue em cada Poema».
Em todo caso havia uma curiosidade cheia de simpatia, uma vontade de adesão
também própria de moço. Estive com seu Pai ali pela manhã, mais de uma hora,
naquele escritório poento e cheíssimo de papéis e livros que, si não me engana a
memória visual, ficava um pouco abaixo do nível da rua, do lado esquerdo de
quem entrava na casa, era isso mesmo? E foi uma hora de êxtase em que eu não
disse nem um bocadinho que era poeta, Deus me livre! Não por timidez ou
humildade mas porquê. .. homem! creio que pelo mesmo orgulho arripiado com
que recusaria aqui poucos meses depois ser apresentado a Amadeu Amaral, que me
queria conhecer por ter achado não-sei-o-quê nas provas dos meus versos, lidos no
escritório da tipografia Pocai onde êle no mesmo tempo editava as «Espumas». Me
apresentei apenas como fan e assim fiquei todo o tempo. Não guardei a impressão
de que o velho Alphonsus tivesse comigo apenas paciência, tenho a impressão de
que gostou da visita. Além do que, sempre era um moço de S. Paulo que ia até
Mariana visitá-lo. Você sabe: já tive muitos objetos de pena feitos por índios do
Brasil. Acabei dando uns e jogando outros fora, ainda agora acabei com os dois
últimos, que é difícil guardar essas coisas, requer cuidado bastante, sinão bicha.
Mas um cocarzinho da ilha do Bananal esse não pude me desprender dele: guarda
uma dessas coisas sublimes da vida de um artista. Um médico, se não me engano,
que veio lá dos nortes goianos, em viagem penosa e longa, trazendo sempre numa
caixa de papelão aquele cocar de lembrança pra quem êle não conhecia mas era o
autor de «Macunaima». Não me lembro o nome dele, não sei bem como era,
parecia nortista. ..
«Eu lia em voz alta, dizem que eu leio bem, os versos que Alphonsus me
mostrava. ** Comentávamos junto as belezas, só se
«Dizem que eu leio bem...» Mário de Andrade, de fato, lia muito bem. Recordo-me de que,
em 1938, fui ouvi-lo no Automóvel Clube, em Belo Horizonte. Foi quando o conheci. E me
admirei da maneira natural, desinibida, mas muito expressiva, com que êle disse os versos do
seu esplêndido «Noturno de Be!o Horizonte».
A VISITA DE MÁRIO DE ANDRADE A ALPHONSUS DE GUIMARAENS
falou de poesia, nem era possível conversar vida entre as nossas ida-des e o
conhecimento de minutos sem continuidade. Pedi pra copiar «Vaga em redor de
ti...» que êle em seguida se prontificou a auto-rafar. Ora eu me lembro que desde
que li o Fatum numa revista, gostei muito. Hoje meus gostos mudaram e tem
muitos sonetos de seu Pai que prefiro a esse. Ora, como me veio parar às mãos
esse autógrafo de 1919! A tinta é diferente da de 1917 e prova não haver engano
de data, embora o papel seja o mesmo. Seria acaso o João Alphonsus que me deu
esse autógrafo? É autógrafo porque a assinatura é a mesma do soneto que copiei e
mesmo estilo de letra. Pergunte ao João Alphonsus». A seguir, Mário de Andrade
anunciava ter tirado as Poesias de Alphonsus de Guimaraens da estante e: «me dei
imenso que fazer pra este ano, mas assim mesmo quero ver si cumpro o desejo de
escrever um estudo sobre esse livro». Desejo que infelizmente não realizou.
Pergunte ao João Alphonsus. .. Penso ter perguntado, mas não sei o que
respondi a Mário de Andrade. À época em que recebi essa carta dele eu não
conhecia ainda a carta em que Alphonsus de Guimaraens conta a João Alphonsus
a visita que acabava de receber em Mariana e que está datada, como eu já disse,
de 15 de julho de 1919. Basta ver porém a data da composição de ambos os sone-
tos por êle citados — Fatum, de 22 de abril de 1919, e o soneto n.° XXIII de
Pulvis, de 3 de maio de 1919 — para verificar que Mário de Andrade, como tudo
faz ver, se equivocou. Ambos os sonetos eram recentes quando Alphonsus os deu
a conhecer ao escritor paulista. E isto somente se poderia dar, obviamente, em
1919. Mas a verdade é que Mário de Andrade descreve a viagem como feita em
1917 e deixa claro que nessa ocasião é que obteve cópia do soneto número XXIII
de Pulvis e, em autógrafo do Poeta, Fatum, que pertence ao livro Escada de Jacó.
E exclama, a propósito do autógrafo de Alphonsus: «Ora, como me veio parar às
mãos esse autógrafo datado de 1919! A tinta é diferente da de 1917 e prova não
haver engano de data, embora o papel seja o mesmo.»
Inclino-me a assegurar, a esta altura, que houve mesmo engano da parte de
Mário de Andrade. Se êle tivesse estado com Alphonsus de Guimaraens em 1917,
este não deixaria de se lembrar da sua primeira visita. No entanto, pelo que
informa na sua carta a João Alphonsus, de 1919, sente-se que era a primeira vez
que via Mário de Andrade. O autógrafo datado de 1919 foi-lhe decerto dado nessa
ocasião pelo próprio Alphonsus. E nem seria possível o contrário, já que, segundo
consta da data de composição que acompanhou os sonetos na divulgação na
imprensa (ambos de 1919), não haveria como existirem em 1917... Mário de
Andrade fala em autógrafo de 1917, mas incorrendo em engano que infelizmente,
à data de sua carta, não dispúnhamos de elementos para desfazer. Somente
depois,
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
através de pesquisas realizadas para a organização da Obra Completa, localizamos
os dois sonetos nos jornais por nós mencionados e dali os recolhemos não só com
a variante como com a data de composição. Para nós, Mário de Andrade esteve
com Alphonsus apenas em 1919 — e para concluir da veracidade dessa... íamos
dizer suposição mas preferimos escrever afirmação, basta que nos apoiemos na
circunstância de Alphonsus de Guimaraens referir-se a Mário de Andrade, na carta
ao filho, como alguém que visse pela primeira vez e que fora a Mariana apenas
para conhecê-lo.
Seja como fôr, o que importa é a carta de Mário de Andrade, que achei de
ligar à de Alphonsus de Guimaraens e que se apresenta como documento precioso
para uma visão mais ampla e completa de que foi o contacto entre os dois
escritores, um ilhado na sua solidão sem horizontes, outro ensaiando vôo para vir a
ser um dos grandes líderes do movimento literário que se deflagraria em 1922 com
a participação, em Minas, do filho mais velho do Poeta, João Alphonsus.
O Cão Saudade
ANDRADE MURICY
PRIMEIRA JORNADA
MEU pai esquecera-me.. . Na calçada, eu, menino, e minha valise, .
esperávamos, dentro da serração dura. O bondezinho veio vindo, já ia passando.
Minha avó, com quem eu vivia, aflita, gritou. Fêz parar o veículo. Nem havia
lugar no carro.. . Meu pai mandou que eu subisse
no bagageiro, e depressa. Muito entusiasmo pela adjunção do menino à
caravana, não haveria. Um Conselho de Guerra dispensa crianças... Mas
houvera promessa. E lá se foram, caminho da estação. Foi preciso comprar a
passagem, a minha, que não fora prevista na requisição oficial.
Tudo isso doía no menino, e não era também para aliviar o tédio paterno. O
trem arrancou, névoa da manhãzinha ríspida a dentro, névoa cinza, de susto, de
angústia. Foi varando o diluviai sereno da noite extinta. O meninote não imaginara
assim a maravilhosa aventura. Ia sobrando de todos, e dele mesmo; sobrando e
incomodando. Quisessem ou não, era, agora, uma presença irremovível.
Os vidros das janelas estavam opacos e tristes. Bem junto de uma delas,
tentava ver lá fora: não havia o que ver. Apertei-me de encontro à parede;
entreguei-me a uma plenitude de timidez.
Um só dentre aqueles homens sorria, fitando-me. Veio sentar-se a meu lado,
na banqueta não almofadada. Sorrira-me com dentes brilhantes. Foi como um
fiapo de alegria, a que poderia, talvez, apegar-me. . . Continuei encolhido, coisa
muito diferente de estar emburrado.
Eu-menino, nove, dez anos, esperava abrir os olhos, respirar. A
desnecessidade ali de minha pessoa era tão evidente: perecia-me não ser possível
sair da garoa que se vinha esticando desde Curitiba. Mais difícil ainda sair do meu
pegajoso constrangimento. As janelas, agora, a espaços devassavam-se; — e uma
voz me sondava, bem vizinha.
Tinha uma cordialidade diferente, nem familiar, nem grandemente
interessada. Obscuramente eu adivinhei nela uma afetividade insólita: percepção
imprecisa de um universo enigmático, como entrevisto através
ANDRADE MURICY
dum vitral, limbo que se ia iluminando. Vinham perguntas que me pareceram
pueris, depois observações diferentes, — (já escrevi antes «diferente», mas sou
forçado a repetir: «diferente») . Que poderia eu entender, daquele monólogo
«diferente»?
As margens da estrada de ferro iam-se abrindo em claridade menina.
Manhãzinha crespa de friagem. O manso Iguaçu rebrilhava por entre as colinas, e
as colinas aconchegavam-se à deslizante esteira glauca. Dobras serpentinas do
planalto, recurvos e serenos vales, entregavam-se ao rio, no seu leito,
risonhamente. O rio domava o sobressalto alteante das escarpas, jungindo-as à sua
correnteza preguiçosa.
O «doutor», ao meu lado, — ninguém se dera ao trabalho de a êle apresentar-
me —, era o «doutor». Não sei, jamais saberei o que me ia dizendo; sei, porém, e
desde muito tempo já, que haviam de ser palavras de seda, levadas num stringendo
de impaciência risonha. Linguagem de que praticamente nada percebia, mas que,
— agora sei —, ia depositando em meu espírito inalienáveis sedimentos de ouro e
diamante.
O rio serpeava pela margem esquerda da linha; insistente, como carícia; ia e
vinha. Eu talvez lhe sentisse a frescura. Anos depois, quatro, cinco anos, verifiquei
que o meu trigueiro vizinho certamente estaria, de sua parte, animando as
flexuosidades do rio, insuflando-lhe, — moreno demiurgo —, instintos camaradas,
de «Companheiro ideal!». . . «espelho fiel a refletir a imagem/Dos montes e dos
céus, discorrendo através// Da floresta, ora assim como um cão veadeiro,/A fugir,
a fugir,/Ora deitado aqui, quase a lamber-me os pés!» Era o rio de sua intimidade
total, o rio nascido onde êle nascera, — («O rio que nasceu onde nasci, o
rio/Calmo de minha infância») —, rio de Tindiquera e Araucária... aquela
correnteza serpeante era o Iguaçu: «Ah! o rio da infância de Emiliano, o rio
envolvido num grande manto de Pinheiros!» [Jaime Balão Júnior, Mensagem da
Infância, Curitiba, 1957, p. 328] .
[Cortávamos por entre as vagas cantantes e os longos pedais sonoros
murmurejantes. O arremesso do trem por entre as dobras devonianas ia na lenta
escalada tranquila do planalto de Curitiba para o da Serrinha, fímbria extrema dos
pré-pampeanos Campos Gerais. O coral disperso dos ecos alontanantes das
quebradas: que poderia ter eu, então, sentido de sua querência saudosa? Saudosa,
sim, há tanto tempo, e para sempre, das tantas travessias ulteriores por aquelas
paragens; de quando já perturbado de estremecimentos e adivinhações
adolescentes. Porque já me parecia saudosa, naquela época? Não seria saudade,
porém uma primeira experiência da infinitude, e, num limbo difuso, do mistério da
poesia.
Já ia entrevendo umas raras habitações, marcas de vida humilde esparsas no
deserto requeimado de sol e de geada.
O miraculoso monólogo continuava a aviventar incertos diálogos com a
minha inibição, naquele primeiro encontro com o verbo poético;
O CÃO SAUDADE
e estranho preço e misteriosa valia poderia vir a ter para certos secretos
encaminhamentos para a minha vida de espírito! O «doutor
Emiliano», __ paradoxalmente Auditor de Guerra, e portanto, naquele
grupo militares, entre os quais meu Pai, o Juiz —, preferiu, a viagem inteira, a
companhia introvertida dum meninote irremediavelmente tímido. Que o' terá
movido a isso? Talvez, — e seguramente ! —, a busca de um refúgio na infância,
que eu lhe oferecia. Não pareceu haver paredes entre a minha alma e o seu
fundamental maravilhamento diante da vida. Para mim, possivelmente, terá sido
como a revelação longínqua, obscura, da vida em beleza. Tão longa e incerta foi a
gestação de minha consciência para a Expressão e para a imaginação criadora,
que têm sido a minha única defesa, a minha mais efetiva possibilidade de
comunicar-me e, quiçá, também de atuar.
A água clara dos meus olhos azulados ainda não poderia deixar-se penetrar
pelo tumulto do seu «diabolismo» fantasioso e pelo donjuanismo enternecido, ali
de mim tão próximos. .. Foi, porém, como, — não sei!
_ a sedução para toda a vida. Não me parece, ainda agora, que o seu
falar tenha sido um solilóquio cheio de afetação esteticista e falso dandysmo. No
momento, — quem sabe ! —, não terá passado da extroversão dum solteirão
frustrado, de paternidade perdida, que ali se pusera à vontade, aliviado, longe dos
adultos, de personalidade e função existencial marcadas. Obscuramente, muito
obscuramente, eu talvez percebesse, naquela hora preciosa, um jubiloso
extravasamento, ora mezzo-forte, ora pianíssimo, quase em surdina, tal o seu
instintivo respeito, — que eu intuía —, pelo ainda não desperto arripio de minha
iminente puberdade. Para isso, tanto quanto, — e é muito pouco —, posso
recordar, com o auxílio de desencontrados subsídios posteriores, êle não me dizia
puerilidades gentis, apropriadas para tais situações, nem se projetava em lugares-
comuns amáveis.
Creio, creio cada vez mais: dava-se por inteiro àquele contacto com um
infante arisco: não um mentor eventual, mas na verdade um companheiro, que o
seria para sempre. Nada de complacências de adulto, que me humilhassem. Deve
ter sentido, na sua alma complexa, complicada, alerta, que um infante é um ser
completo e perfeito nos seus ritmos próprios. Eu estaria habitando um mundo já
para êle indevassável. Aquele príncipe, no entanto, ainda a êle próprio iluminava,
mercê dum sempre renascido espírito de infância, o dom de poesia, que é
divinatório. De minha parte, o ressentimento mal recalcado, à beira das lágrimas
ainda infantis, conduzira-me a um estado de comunicabilidade que a
subconsciência larval e sem inquietude de menino bastante contemplativo, ainda
não tomado da subversão adolescente, tornava possível.
SEGUNDA JORNADA
Iríamos viajar juntos ainda uma longa jornada, e, depois, juntos, o retorno a
Curitiba. Nada, nada me ficou na memória com referência à
ANDRADE MURICY
sua companhia ao depois do primeiro caminhar revelador; rigorosamente nada. A
familiaridade do Iguaçu-veadeiro, ou perdigueiro, do Iguaçu juvenil amigo, nós a
tínhamos perdido. Agora, singrávamos pelos vastos planos intercadentes dos
Campos Gerais, mosqueados de capõezinhos graciosos, dançantes, sobre o áspero
veludo da macéga. Mas o grande rio, era agora para o Iguaçu-Oceanus que
estávamos norteados. Com êle iríamos defrontar-nos tarde caída, bem longe. Bem
longe. Mas a sua presença gigante, invisível, já sensibilizava estranhamente.
Esguei-rava-se em solitária e possante mansidão, pelo desmesurado verde-pro-
fundo, coalhado em palhetas espelhantes nas falhas do imenso lageado.
O que ia entrevendo, naquela nova manhã de iniciação, era a floresta
primitiva, mal cicatrizada do brutal desvirginamento. Horas e horas, a neve
grisalha das barbas-de-páu enfestoava os troncos, as frondes solenes . Surgiam,
desfilavam, — escoteiros melancólicos vigilantes —, árvores mágicas de legenda,
da remota Broceliande, cheia de prestígios: aqueles xaxíns, fetos arborescentes, tão
exóticos que me conduziam às histórias do feiticeiro Merlin. Os fofos caules cotos
inquietavam-me, e me abriam mundos de curiosidade exaltada. Mas o que
realmente esperava era chegar ao vasto Oceano, Oceano-Iguaçu, «nascido onde eu,
nasci», disse o Poeta, — e posso dizê-lo também por minha conta, — (com alguma
aproximação, porquanto o meu rio natalício é um dos seus primeiros, dos seus
mais modestos afluentes, o Barigui).
O límpido e enorme Iguaçu, lá no verde deserto, bem ao Sul, sentia-o como
rio de enchente, envolto num cúmulo-nimbo de pavor ancestral. O lento deslizar
través dos milénios e milénios, não sabido, no seu inútil mistério, os seus roucos
gorgolêjos, na noite molhada: «E sons noturnos, suspiradas mágoas,/Mágoas
secretas e melancolias,/No sussurro monótono das água./Noturnamente, entre
ramagens frias.», entressonhara o Cisne Negro Cruz e Sousa.. .
Pressentia, porque de minha obsidente intimidade imaginativa, que aquele
outro «rio, tenro e adolescente, parecendo à espera de crianças que deviam brincar
e rolar nas suas encostas», ainda na véspera serpeando, tranquilamente
provocativo, perlongando o rolar arfante do trenzinho provinciano, aquele rio,
«tenro e adolescente» que o estupendo Cornélio Penna, — (ao morrer era o maior
romancista do Brasil) —, evocou, na sua expressão misteriosamente diamantina,
era o mesmo cuja comovida caudal iria agora ser «arrastada por um rio noturno,
que a levava velozmente em suas ondas sombrias.»
As harmonias sussurrantes e cantantes de sua correnteza invisível, a voz
recôndita de sua correnteza poderosa, eu as re-criava, secretamente, para meu uso.
Era aquele mesmo drama evocado, dezenas de anos depois, por aquele mesmo
Conélio, da inesquecível, magistral A Menina Morta, amigo e misterioso, — de
quando a «meus» pés surgisse e subisse ao «meu» encontro, «sufocante de pavor, o
vale de pedras negras, entre as quais se despedaçavam violentamente as águas do
rio, que fugiam perse-
Emiliano Pernetta, bronze de Alfredo
Andersen (1860-1935)
O CÃO SAUDADE
guidas, derrotadas, deixando aqui e ali grandes manchas brancas de espuma,
trêmulas e palpitantes...»
Enquanto avançava o trem, as estaçõezinhas iam pontuando preguiçosamente
a marcha ronceira: Rebouças, Mallet, Dorizon... E passavam os felpudos xaxins
mágicos, nas bordas da floresta misteriosa. Isso me era, a seu modo, assustador,
mas estimulante. Espectativa de pânico maior levava-me para ainda muito além, lá
onde a correnteza tímida rebentava em gorgolejos roucos. [Na friagem da noite,
reboava nas arcas profundas o rio de enchente. Nas poças esquecidas do alagado
enorme, passavam também «As secas araucárias fulminadas, Hirtas, em pé, cin-
zentas, dasgalhadas,» que «Aos poucos vão morrendo». .. Aguardam
«impassíveis», «os gigantes/De fronte nua», os «raios coriscantes»... Os «Gigantes
brandões da mata» esperam «que lhes rompa, o vendaval, a pêia/Que à terra os
prende, para, então, errantes./Vogarem do Iguaçu na enorme cheia.», —
expressões do sábio humanista Moisés Marcondes, nascido bem próximo de outro
grande rio, o Tibagi, afluente do Para-napanema; as águas de ambos irão misturar-
se com as do Iguaçu, porém já no leito do patriarca Paraná — Rio da Prata. («Os
Pinheiros Mortos», in Poesias, Lisboa, 1908, p. 180).
Épico ainda obscuro, esse, que me ia permitindo um devanear de delícia, mas
que em breves horas seria interrompido. Apagados seriam, então, os fogos
tenebrosos, vagamente luzentes, das vastas águas deslizantes, pela imposição de
uma realidade por mim não prevista: uma balsa iria transportar-nos través da
caudal veneranda, — para Porto da União, que nenhum lugar tinha no cosmo de
meu fervor imaginativo. Entretanto, era sempre o «Belo estuário azul, espelhado e
sombrio», como diria a voz do meu Companheiro, que confessa, a esse respeito;
no seu luminoso animismo:/«Quanto susto me deu, quanto prazer me dá!» E ainda,
paralelamente à esteira fria que a balsa ia traçando no dorso, agora sombrio, do rio
da minha fantasia, elevava-se o vulto negro duma estrutura de ferro inacabada: a
ponte que liga União da Vitória, paranaense, então inexistente, a Porto da União,
catarinense. Essa presença poderosa era-me sempre ameaçadora, até o arripio de
pânico, mercê de certas reminiscências, sonhos e risos infantis. Ao impacto do
negro vulto, de sua frustra rudeza, aquele Iguaçu feito oceano se pôs a entre-tecer-
se com o Iguaçu maneiroso costeado na manhã de melancolia turva e de susto, o
rio iluminado de sol e de rebrilhante argênteo. E também ali não encontro
quaisquer indícios da influência do meu memorável Companheiro nos
redemoinhos de minha subconsciência pré-adolescente.
O rio veadeiro, o rio cão-veadeiro, tal como Emiliano sentiu, — no seu único
soneto de feição cívica e fecho declamatório, — o Iguaçu mesureiro, de coleios
amigos, esse rio de carícia crescera, iria crescer ainda mais, eu bem sabia, assumir,
ao desintegrar-se, um porte mundial e sem par no mundo. Era, d'ali em diante, o
grande Cão rastejante, lá, além, muito adiante, ao arremessar-se para a caudal
maior.
ANDRADE MURICY
Do fundo do horizonte, vertiginosamente longe, um uivo obstinado,
nevoento, atraia o ainda amistoso, porém já hidrópico veadeiro, perdigueiro . . .
Sorumbático, rosnando, rosnando, no caminho irreversível para um torvo
apocalipse. Poderia, eu-menino, adivinhar, num entressonho? O grande Cão
rastejante abriu-se inteiro, esquartejou-se. Esboroou a espumejante goela
escancarada. Coagulado na sangueira cristalina, as fauces rebentaram em veios de
linfa pura, golfou em hemoptises em possantes engulhos planetários. Jorrou os
intestinos de barro e diamante. Rasgou-se para o Mundo.
ESCÓLIO
Nenhum sentimento premonitório veio advertir-me, então, de quão decisivo
iria ser-me aquele diálogo descontínuo, sem precedentes, único dentre as minhas
experiências meninas. Nem sequer o seu físico, e talvez somente a sua mobilidade
nervosa ter-me-á subconscientemente impressionado, — mas, por certo, também o
timbre doce, de raro metal, de sua voz, a mesma que eu iria ouvir, bem mais tarde,
nas prodigiosas leituras solenes de seus poemas.
Mandaram-me, anos depois, — estava eu nos meus doze anos —, visitar o
«meu amigo» Emiliano, o Auditor de Guerra daquele Conselho que meu Pai
integrava, — (reunido para o julgamento de dois oficiais rixentos, de quem só me
lembro que se chamavam: um, Crisanto, o outro Assis Brasil) — Conselho que me
parecera envolto em circunstâncias fantasmagóricas. Fui vê-lo para com êle
aconselhar-me. Eu decidira arriscar-me a um salto, que então se permitia: sujeitar-
me de imediato, e sucessivamente, aos exames de admissão e do lº ano do Ginásio
Paranaense (hoje Colégio Estadual). Pude conhecer, então, em outra ordem de
relações, o meu estranho parceiro. Não me desestimulou; não prometeu
formalmente auxiliar-me na minha proeza; como nem me distinguiu quando,
vitorioso naquelas provas, fui inscrito entre os seus alunos de Português e História
da Língua Portuguesa. Nesta posição eu estava, agora, na defensiva. O encanto se
refez, apesar disso. Interes-saram-me, em aula, os seus repentes pitorescos, a
graciosa ironia, e suas imprevisíveis reações quando adivinhava a aproximação
detestada do tédio e da vacuidade rotineira da função ensinante.
O preço das horas singulares que eu passara, infante, a seu lado, só aos
poucos foi surdindo de incertos limbos, lucilações indefinidas em minha memória
emotiva. Eu andava lendo toda a nossa literatura de ficção, — não a poesia. Numa
das minhas primeiras provas mensais confessei: desejava ser escrito, no gênero
Júlio Verne, ao que o Mestre obtemperou com desanimado sarcasmo, com os seus
«Ora, ora!» inimitáveis. Nenhuma palavra sua, quando publiquei, em 1913, — e,
audácia inconsciente —, dediquei «Ao Dr. Emiliano Pernetta», um conto hele-
nisante, Sonata pagã, escrito como participação numa das fabulosas Festas da
Primavera, criação de Dário Vellozo, — poeta e mago, pro-
O CÃO SAUDADE
fessor de História Universal, que exercia sobre nós uma espécie de
sedução hipnótica. No ano seguinte (1914) escrevi, em têrmos de
entusiástica, pedestre ingenuidade, uma recensão de sua comédia dramá
tica __ que hoje se me afigura ser uma «cantata», feita para a música,
_ Pena de Talião. Manifestação nenhuma, justificadamente, veio-me
da parte do seu autor. [Ao que dele havia recebido, na antes evocada e nunca
esquecida jornada, poderão ter equivalência os sucessivos dons que o destino e
uma prazerosa tenacidade me têm permitido fazer ao meu antigo, quase místico
parceiro de excursão no mundo do sonho?
A este, por fim, pude vir a autenticamente conhecer: o intérprete maior, que
era, — e nessa qualidade não foi até hoje superado, nem igualado —, da psique da
minha gente e da minha terra; dos fundadores e principais lideres do movimento
simbolista no Brasil; e, por consenso cada vez mais amplo e bem fundado,
reconhecido como uma das grandes vozes da poesia brasileira.
Residia eu, de 1917 a 1920, numa pensão mineira, no lº andar do edifício nº
686, da Rua Santa Luzia, à frente do qual havia então um humilde balneário
popular. Isso, está claro, anteriormente à demolição do morro do Castelo e ao
consequente, enorme aterro por onde passam, hoje, a Avenida Presidente Wilson e
a continuação da Avenida Beira-Mar. Ali, ainda estudante, ousei escrever, em
começos de 1918, — e quão gostosamente o fiz — , o ensaio Emiliano Pernetta,
no qual o critério impressionista e subjetivo predomina sobre o estético. Em
nenhum dos momentos de sua gestação e de sua redação ocorreu preocupar-me
com a recepção que lhe faria o grande poeta. Foi Nestor Vítor, o eminente crítico
mas sobretudo, para mim, o requintado e pulcro moralista das Folhas que ficam e
dos Elogios, e, no Brasil o incomparável «viajante» psicólogo de Paris, então
Deputado Estadual no Paraná, quem lh'o levou, do Rio de Janeiro, onde eu acabava
de formar-me em Direito, sacramentado pelas mãos do Conde de Afonso Celso, —
e onde passara pelas agruras e o inenarrável pânico da «gripe espanhola». Nestor
Vítor contou-me, mais tarde, do susto de que se tomou o poeta ao receber os
manuscritos do meu ensaio. Tinha consciência do refinamento e da complexidade
de sua poética; e que poderia esperar daquele inexperiente e quase inédito antigo
aluno? [Tenho escrito muito, publicado muito. Não tive, porém, nunca, ao depois,
tão ingênuo sentimento de orgulho, sentimento de uma ... importância (que jamais
me chegaria), como quando recebi a sua carta, sóbria, porém amável, de aprovação,
e ao ser, por êle autorizado e publicar o trabalho em livro. Em janeiro de 1920,
porém datado de 1919, o livro apareceu. O meu prazer foi um prazer continuado,
— o que é raro na vida, — e isso graças às remessas que fui fazendo d'aqui do Rio
de Janeiro, ao poeta, dos antigos, bastante numerosos, generosamente consagrados
à obrazinha juvenil. No seu retiro curitibano, — (após a sua prestigiosa atividade,
como académico e jornalista, em São Paulo, e depois, no Rio, sob as ordens de José
do Patrocínio — (como redator-principal da Cidade do Rio), — e quando
ANDRADE MURICY
polarizou, na secretaria da Folha Popular, ao lado de Cruz e Sousa,. B. Lopes,
Oscar Rosas, o lançamento formal do movimento simbolista —, as expressões de
admiração e estima a êle válidas pela publicação-do meu ensaio foram-lhe de
evidente consolo e serena alegria. As cartas e os telegramas que, então me
endereçou, com pressurosidade gentil,. então enfeixadas no volume Prosa, edição
GERPA, Curitiba, 1945.
Tive o privilégio, infelizmente breve, depois disso, de algum convívio' com
Emiliano. As minhas férias, sonhava-as povoadas de sua presença. Ir a Curitiba era,
passou a ser, para mim, reiteradamente visitá-lo; assistir ao espetáculo de seus
revôos, ao irresistível arrebatamento de sua imaginação no mundo da Poesia. Eu
me sabia não apenas tolerado, porém. estimado. Sentia-me, sempre, de certo modo,
tão meninote quanto no encontro de dantes, ao poder debruçar-me a seu lado, como
repetidas vezes ocorreu, nas sacadas de seu salão, no sobrado em que residia, na
Rua Quinze de Novembro, a principal da cidade. Horas passei, — delícia a poucas
outras comparáveis em minha vida intelectual —. assistindo ao monólogo, agora
não mais flou como na jornada do Iguacu-veadeiro, mas iterativamente criativo; ou
vendo-o defender-se, com floreios de ironia chispante, e uma cordialidade cum
grano salis, dos importunos, e também, em outros termos, dos seus amigos e
companheiros... Insisto: foi-me gratíssimo poder verificar o que tinham significado
para aquele ser de jubilosa, e já então doce vida imaginativa, os singelos momentos
de alegria que lhe advieram dos modestos louros conferidos ao meu livro, —
comprovação de que este autor era, como o seu livro, adolescente, de adolescência
retardada, — mas tanto e tanto, ao depois prolongada, e mesmo creio, nunca de
certos recessos de meu espírito, afinal ausente...
Emiliano, encantador, — de «encanto», encantação, charme, canto mágico,
magia.. . —, esse admirável poeta, estava eu em Curitiba quando morreu. Ainda na
véspera fora deixar-me, na casa amiga em que me hospedava, um exemplar da
revista carioca Souza Cruz, então dirigida pela eminente poetisa e grande alma
fraterna, Gilka Machado. Nele estava publicado o seu poema, pequeno auto
pastoril, «Vamos!». Não me encontrou... Fui ver-lhe o corpo. Beijei a sua testa
gelada. Não compareci, doente, ao enterro, onde o seu louvor coube fazê-lo ao
outro dos dois taumaturgos-poetas de minha terra, gente excepcional e sedutora:
Dário Vellozo.
Precedido, superado, — e quanto! —, o meu estudo, pelos estupendos ensaios
de Nestor Vítor, pelos vivazes/artigos de Tasso da Silveira, e pelo tão belo livro de
Erasmo Pilotto, não mais deixei de ocupar-me com o «caso» Emiliano. Em 1930,
realizei e publiquei a conferência A obra póstuma de Emiliano Perneta; redigi, em
1934, o prefácio de sua coletânea póstuma, por mim organizada, a que dei o título
Setembro; em 1945, foi a Introdução às Poesias Completas, edição Valverde; em
1949, os estudos a êle referentes em A Literatura no Brasil (direção de Afrânio
Coutinho, vol. III, T. 1); no meu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro,
1952, a sua colocação é, nem poderia deixar de
O CÃO SAUDADE
ser, das mais significativas e marcantes; em 1960, preparei, para a Coleção
«Nossos Clássicos», da Editora «Agir», o volume nº 34, que lhe é consagrado, e já
mereceu 2º edição. Neste recente 1966, preparei a Edição do Centenário do seu
nascimento, Ilusão e Outros Poemas. por indicação de Tasso da Silveira, que a
promoveu e provocou o seu custeamento pelo Governo do Estado do Paraná, —
para isso tendo eu redigido a Introdução, estabelecido o curriculum vitae, a
bibliografia do autor e sobre o autor, e coligido o documentário iconográfico
(Edição GRD) . Isso terá representado persistência, ou melhor, como prefere dizer
a esse respeito Adelino Magalhães, teimosia, o que aceito com prazer.. .
Não poderei nunca esquecer de quando tentei um primeiro levantamento
bibliográfico sobre Emiliano, confrangeu-me verificar a escassez, a miséria
mesmo, do material encontrado. Aliás, o mesmo fenômeno de omissão ocorreu, até
bem pouco, também com referência aos demais poetas simbolistas, abafados pela
incuriosidade cultural e mesquinhez provinciana de nosso meio. Ainda não há
muito, nas três edições aparecidas de sua importante Pequena Bibliografia Crítica
da Literatura Brasileira. Otto Maria Carpeaux observava a seu respeito: «Mais um
poeta simbo-lista do Sul, que não conseguiu vencer os preconceitos parnasianos
[da incultura brasileira]. Mas os esforços de reabilitação, da parte dos seus
conterrâneos paranaenses, tampouco convenceram até hoje os de fora> Ainda bem
que o autor da História da Literatura Ocidental limita o seu veredito por um «até
hoje» já completamente superado. Ao preparar a ficha bibliográfica para A
Literatura no Brasil, já a colheita a seu respeito, apesar do confinamento na
província e do conformismo rotineiro nesse terreno até há pouco reinante, foi
bastante valiosa; no volume da Coleção «Nossos Clássicos», ela avultara bastante;
e muito mais expressiva, decisiva mesmo, apesar de ainda constituir uma Seleção,
— a que pude coligir é muito maior —, é a inserida na Edição do Centenário. O
meu ilustre conterrâneo Oscar Martins Gomes publicou no JORNAL DO
COMÉRCIO, Rio de Janeiro, um cabal e importante levantamento do repertório de
Antologias em que Emiliano é representado. No momento em que o Estado natal
do poeta, e meu, está tendo tão rápida e surpreendentemente engrandecido o seu
lugar na Federação brasileira, ocorreu também o engrandecimento, em ritmo
acelerado, da figura e da obra do seu poeta-maior. Para somente mencionar obras
recentes, v. o lugar que lhe tem sido reservado nas modernas Antologias do Simbo-
lismo: as de Fernando Góes e Péricles Eugênio da Silva Ramos; no volume O
Simbolismo, de Massaud Moisés (Cultrix); no Pequeno Dicionário de Literatura
Brasileira (também da Cultrix); no Dicionário de Literatura Portuguesa e
Brasileira, de Celso Pedro Lufttglobd, — confirmação da importância histórica e
literária de sua obra, num reconhecimento que até bem pouco parecia imprevisível.
Como poderia eu gravar, quando muito jovem, em traços nítidos, a sua
fisionomia espiritual, tão diversa, movente e curiosa? Qualquer sua
ANDRADE MURICY
representação que agora dela fizesse nestas minhas reminiscências forçosamente
idealizadas seria ilusória, e certamente buscada no conhecimento muito posterior
que a seu respeito fui adquirindo. Ela interessou-me sempre, e sem descaidas que
pudessem causar o entrecruzamento de tantos e tantos, e tão complexos interesses
de mim assenhoreados numa longa existência. Como tem estado profundamente e
sem descontinuidade penetradas em meu espírito, e em mim permanecem como
secreta reserva de delícias, a Primavera e Curitiba primaveril, — que ninguém
como Emiliano exprimiu —, assim de sua lembrança, do homem e do poeta, —
mesmo se através destas incertas figurações de saudade —, jamais me separei.
ESCÓLIO FINAL
Cinquenta anos em 1969, — um jubileu grato para a minha intimidade —,
que publiquei o livrinho Emiliano Perneta, escrito dois anos antes. Ensaio-menino,
germinado numa pensão estudantil mineira, da rua de Santa Luzia. Revisto no ano
terrível, — mas quantos se lembrarão dele? —, da gripe espanhola, e das teorias de
caminhões atulhados de cadáveres, e, diz-se, de agonizantes, saídos da Santa Casa
ali vizinha. ... E agora, quando o «sinistro vendaval» me vai desgalhando de
velhas, inacabáveis amizades, tomou-me, com a impetuosidade da saudade, a
recordação daquele singelo e misterioso encontro matinal, ainda mais antigo,
ocorrido há mais de sessenta anos. Com ela retornou a sempre insaciada fascinação
que o Iguaçu nunca deixou de ter sobre mim. O Iguaçu ora veadeiro, ora
perdigueiro, tão familiar ,mas também o Iguaçu-Oceano, poderoso e solitário no
seu leito de basalto, — talvez a minha primeira, e obscura experiência existencial
da Poesia, — e comédia graciosa, seguida do drama final, do rio gigante de minha
terra, nascido tão próximo de «onde eu nasci» . ..
Cinquenta anos. . . A existência traz-nos raramente os prêmios que
esperamos, ou que desejamos. As «compensações», — do mais convincente dos
Ensaios, de Emerson, são, porém, como são, e, por vezes trazem especial doçura.
Não esqueço de que, já bem longa e nutrida, a Coleção «Nossos Clássicos», da
Editora Agir, recebo telefonema de Her-man Lima. Fôra-lhe encomendado o
volume a ser dedicado a Emiliano Perneta. Essa circunstância tornou-se-me
significativa à vista da observação restritiva de Carpeaux. Foi, assim, a um ilustre
intelectual cearense, de renome nacional que a editora recorreu, e não a um
conterrâneo do poeta paranaense, — mas fundador do Simbolismo brasileiro. E
Herman Lima passou-me a tarefa, de que me desincumbi com redobrado prazer.
Cinquenta anos... e eis um remate, a que não me quero furtar, a estas
evocações, — para mim inapreciável prêmio, gratuito, e talvez ilusório como todos
os prêmios neste mundo: estas palavras de Ángel Crespo, há pouco escritas em
Espanha, com referência a Emiliano Perneta:
O CÃO SAUDADE
Muestrario de poemas simbolistas brasileños, in Revista de Cultura Bra-sileña,
Madrid, setiembre, 1967. Pág. 237.):
«Sus poesias completas se publicaron em 1945. En ellas hay una estrana y
desconcertante mescla de elementos decadentes, tales como el satanismo, el
exotismo y un deseo desenfrenado de libertad, junto a otros claramente
simbolistas, entre los que son de destacar la fragmen-tación del verso mediante
cesuras irregulares, las violências sintácticas y, en general, los experimentos
linguisticos, tan propios de la tendência, que abrirían el camino del modernismo.
«Perneta es uno de los grandes líricos simbolistas, prematuramente olvidado
por el advinimiento de la poesia modernista. No obstante, y aradas sobretodo a la
labor ingente de Muricy, su nombre está siendo muy valorizado y se le empieza a
hacer justicia, aunque todavia no se haya realizado el estúdio profundo que está
reclamando su grande obra.»
ANDRADE MURICY. Emiliano Perneta. Edição da «América Latina», Rio de Janeiro, 1919. [Tip.
da Livraria Mundial. Curitiba]. 116 págs.
O Suave Convívio. Ensaios críticos. Editora Anuário do Brasil. Rio de Janeiro. 1922. 334 págs.
A obra póstuma de Emiliano. Edição FESTA. Rio de Janeiro, 1930, 43 págs.
Setembro, de Emiliano Perneta. [Compilação, organização e Introdução]. Edições FESTA. Rio
de Janeiro, 1934. 102 págs.
Poesias Completas de Emiliano Perneta. I. Ilusão. Nota biográfica. Livraria Editora Zélio
Valverde. Rio de Janeiro, 1945. (Coleção Grandes Poetas do Brasil) . 161 págs.
Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Instituto Nacional do Livro. Rio de Janeiro.
1952. Volume I. 382 págs.
A Literatura no Brasil. Presença do Simbolismo Volume III. Tomo I. Rio de Janeiro, 1959.
Págs. 125 a 226.
Emiliano Perneta. Poesias. N° 43 de «Nossos Clássicos». [Dados biográficos, Situação histórica,
Estado critico, Antologia, Notas, Bibliografia do Autor, Bibliografia sobre o Autor e Questionário].
Rio de Janeiro. Livraria Agir Editora, 1960, 99 págs.
Ilusão e Outros Poemas, de Emiliano Perneta. Edição Comemorativa do Centenário. Edições
GRD. Rio de Janeiro, 1966. Organização de Tasso da Silveira. -— Introdução, Cronologia,
Documentos iconográficos, Bibliografia e Fontes para o estudo por Andrade Muricy, 276 págs.
Papilio Innocentia, de Emiliano Perneta. Edição do Centenário. Introdução por Andrade Muricy.
Edições GRD. Rio de Janeiro, 1966, 67 págs.
O Símbolo e as Araucárias. (Sobre o simbolismo no Paraná) . Inédito.
MOISÉS MARCONDES. Poesias. Lisboa, 1908. [Telas do Paraná. «Os Pinheiros Sêcos>.]
SILVEIRA NETO, MANUEL AZEVEDO da. Luar de Hinverno e Outros Poemas. Ronda
Crepuscular. «As Cachoeiras do Iguaçu»] Edições GRD. Rio de Janeiro, 1967.
KOLODY, HELENA. Vida Breve [«Cataratas do Iguaçu»]. Curitiba, 1964.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
7
Janeiro/Março — 1971
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Clarival do Prado Valladares
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura — 7' andar — Rio de Janeiro — Brasil.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO III
JANEIRO/MARÇO - 1971
N.º 7
Sumário
ARTES
BRUNO KIEFER ...
OCTÁVIO DE FARIA
Mário de Andrade e o Moder
nismo na Música Brasileira 9
A Grande Crise do Cinema Atual 21
CIÊNCIAS HUMANAS
PESSOA DE MORAIS .....................
CATHARINA VERGOLINO DIAS
LEANDRO TOCANTINS ..................
MARIA ELISA DIAS COLLIER
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
Jornalismo, Comunicação e In
formação .................................... 33
Conteúdo e Limites da Regiona
lização na Amazônia ............... 47
Afrânio Peixoto: Baianidade e
Lusitanidade ............................. 63
Notas sobre Gilberto Freyre,
inovador e renovador .... 77
Manoel da Nóbrega e a Peda
gogia Jesuítica ............................ 85
LETRAS
JOSUÉ MONTELLO
TEIXEIRA SOARES ..............
R. MAGALHÃES JÚNIOR
LUIZ ANTÔNIO BARRETO
A Propósito de Vicente de Car
valho ........................................
O Mundo de Fernando Pessoa 117 Revelações
sobre Cruz e Souza 129 A Bíblia na Literatura
de Cordel 137
95
Artes
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA
MÚSICA BRASILEIRA
BRUNO KIEFER
título deste estudo sugere, na aparência, apenas isto: o estudo da participação
mais ou menos original de Mário de Andrade no movimento modernista da
música brasileira. Na verdade, porém, se encararmos as coisas dentro de uma
perspectiva histórica, sociológica e estética, o título encerra outros problemas que
deverão ser tratados antes da referida participação de Mário de Andrade.
Temos, de início, o conceito de música brasileira. E depois o de
modernismo. Ambos exigem uma análise detalhada.
Por ser mais fundamental, trataremos primeiro do conceito de música
brasileira. A nossa posição será esta: examinar os fatos históricos e deixar de lado,
por enquanto, elucubrações teóricas. Poderia alguém objetar que sem uma teoria
faltaria o fundamento para a compreensão dos fatos históricos; faltaria a base para
a distinção do que possa ser, eventualmente, música brasileira ou não brasileira.
Concordamos quanto à necessidade de um fundamento. Em vez de uma teoria
propomos, porém, o sentir, mais básico do que o pensar. Posteriormente
poderemos pensar numa teoria a consolidar a nossa posição. De fato, antes de
qualquer conceituação racional do que seja a qualidade brasileira de uma obra,
sentimo-la como tal; reconhecemo-nos.
O período colonial de nossa história apresenta, segundo o estágio atual das
pesquisas musicológicas, dois centros de intensa atividade musical: a Capitania
das Minas Gerais durante o século XVIII e o Rio de Janeiro desde fins do mesmo
século até a volta de D. João VI a Portugal em 1821. Isto no que se refere à
música erudita. Quanto à música, que denominaremos semi-erudita, os
documentos permitem traçar a sua história a partir do último quartel do século
XVIII. Claro está que da música folclórica, essencialmente anónima e não
registrada graficamente, não poderiam ter restado documentos.
A música erudita criada nos referidos centros é essencialmente europeia.
Todos os compositores conhecidos fizeram os seus estudos em partituras vindas
da Europa. O musicólogo Francisco Curt Lange, que investigou a chamada Escola
Mineira de Compositores, afirma que
O
BRUNO KIEFER
«estilisticamente tanto a música erudita importada como a escrita no Brasil
bâseavam-se nos moldes europeus, pertenciam à cultura ocidental e não estavam
limitadas aos preconceitos nacionalistas dos miopes e fanatizados que ficam
desiludidos, quando não aparece nas obras anteriores ao século XIX um ternário
identificável com a bandeira nacional».
Percebemos a intenção do autor no sentido de defender a inclusão das obras
criadas pela Escola Mineira, ou do Pe. José Maurício Nunes Garcia, no repertório
da música brasileira. Mário de Andrade defendeu a mesma posição. Chegou a
dizer textualmente, referindo-se à nossa música do período colonial: «Por isso
tudo. Música Brasileira deve de significar toda música nacional como criação
quer tenha quer não tenha caráter étnico».
De fato, os compositores brasileiros desse período estavam coerentes com a
ideia da universalidade da linguagem musical, defendida por compositores e
pensadores europeus. Citamos apenas dois exemplos: Gluck, o famoso
reformador da ópera, ataca, no «Mercure de France» (1773) a «diferença ridícula
entre as linguagens musicais nacionais»; Mozart, em certa altura de sua vida,
declara que tinha aprendido a compor em praticamente todos os estilos.
Há, no entanto, um problema que se torna mais grave se levarmos em conta
que na Escola Mineira grande parte dos músicos eram mulatos e que mulato era
também a figura máxima desse período: José Maurício Nunes Garcia. O problema
é a alienação em relação à própria terra. Não encontramos nenhum vestígio, nas
obras dos referidos compositores, das noites enluaradas do sertão, da natureza
selvagem à espera da mão do homem, da agressividade do meio, dos sons exóticos
da mata virgem. Vastas dimensões da realidade, interior e exterior, foram
ignoradas pelos compositores de então. Não podemos criticá-los por isso, nem
tampouco devemos excluir as suas obras do nosso património cultural.
Para serem diferentes era necessário que se tivesse realizado uma
transformação muito radical, de vastas proporções, uma transformação
caracterizada por Guimarães Rosa como sendo «a passagem». Verdade é que o
autor se refere ao indivíduo, mas sem dúvida alguma podemos estender o seu
pensamento também aos movimentos culturais. No conto «Páramoa» diz: «Porém,
todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do espirito, exige o baque
inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio de trevas; a
passagem».
Essa passagem foi realizada pelo Romantismo. As novas dimensões da
realidade descobertas por esse movimento importantíssimo na cultura ocidental; o
«baque inteiro do ser» provocado pelos pensadores e artistas do Romantismo; o
«crescimento do espírito» desencadeado por seus autores só começaram a ter seus
reflexos no Brasil um pouco antes da metade do século passado.
O Romantismo, originado na Alemanha, entrou no Brasil sobretudo através
da França- As tendências de auto-afirmação nacional, inerentes
Mário de Andrade Busto de Bruno Giorgi
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA MÚSICA BRASILEIRA
a esse movimento, só tiveram, nessa fase, uma realização parcial no terreno da
música. O «apalpar imenso de perigos» de que fala Guimarães Rosa, dificultou
um desprendimento mais radical da velha mãe Europa.
Do ponto de vista da auto-afirmação nacional o fenômeno mais importante
no conjunto de tendências criadoras na música foi, indis-cutivelmente, o
movimento que visava a criação da ópera nacional. Tomou impulso na década de
1850. Suas características principais foram: valorização da língua nacional nos
textos; escolha de assuntos históricos brasileiros; tendências indianistas e
antiescravistas. São as principais. Vemos que todas elas são extramusicais. De
fato, a música continua sendo de inspiração europeia.
Esse movimento da ópera nacional teve uma duração muito curta, apenas
alguns anos. Lançaram-se, no entanto, sementes que haveriam de dar frutos no
futuro. Carlos Gomes foi um produto deste movimento que contou, inclusive, com
a participação de escritores de renome. As duas primeiras óperas de Carlos
Gomes: «A noite do castelo» e «Joana de Flandres», ambas com texto em
português e assuntos medievais, têm música de inspiração italiana. Na Itália,
Carlos Gomes contribui para o incipiente movimento de auto-afirmação nacional
em termos muito sintomáticos: compõe «O Guarani» sobre um libreto em italiano,
baseado numa tradução italiana do original de José de Alencar. A música é,
também aqui, de inspiração predominantemente italiana. Um ou outro trecho
revelam ideias mais pessoais e até algum sentimento nativo. Na ópera «O
Escravo» tratará musicalmente assuntos antiescravistas.
Nos últimos decênios do século passado as tendências de auto-afirmação
nacional manifestam-se esporadicamente em meio às imitações de correntes
estéticas européias. Um dos marcos, nessas tendências, que costumam ser citados,
é a peça «A Sertaneja» (1869) de Brazílio Itiberê da Cunha. O autor aproveita
nela um tema folclórico brasileiro.
Em outros compositores, mais importantes como músicos do que Brazílio
Itiberê, tais como Alexandre Levy, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald,
Francisco Braga, o sentimento nativista eclode, com força maior ou menor, com
uma frequência muito variável. Estes autores devem ser considerados como
precursores da auto-afirmação nacional. Dentro desta linha, o mais importante
compositor, no entanto, é Alberto Ne-pomuceno, cearense que viveu de 1864 a
1920. Ardente defensor do canto em português, compôs uma obra em que as
intenções nacionalistas assumem uma importância muito maior do que nos
compositores citados, embora se deva reconhecer que a inspiração europeia está
amplamente presente. Nepomuceno, excelente músico e dono de seu «metier»,
mereceria maior divulgação.
Vemos, em síntese, que os compositores do nosso Primeiro Romantismo
musical navegam ainda em águas européias, realizando excursões mais ou menos
felizes às nossas águas territoriais. As tendências de auto-afirmação nacional,
encontrando obstáculos muito fortes e um passado cultural muito curto e precário,
não passaram de tentativas. O
BRUNO KIEFER
próprio Mário de Andrade reconhece que «a música brasileira viveu até 1914 mais
ou menos ainda na subserviência da Europa».
Também Heitor Villa Lobos, nascido em 1887, no Rio de Janeiro, manifesta,
no começo de sua carreira, tendências nacionalistas apenas esporádicas, apesar de
ter convivido intensamente com os «chorões» cariocas durante a adolescência e
apesar de ter recolhido melodias e ritmos folclóricos em profusão durante as suas
extensas viagens pelos Estados do país. Segundo Vasco Mariz, «grande parte da
sua consciência nacional ficou latente até a revolta patriótica provocada pela
Semana de Arte Moderna. Se anteriormente havia tentado o nacionalismo musical
na «Lenda do Caboclo» ou nas «Canções Típicas Brasileiras», só a partir de 1922
enveredou decididamente por aquela trilha...»
Aquilo que se costuma chamar de modernismo não nasceu propriamente
com a Semana de Arte Moderna. Esta foi apenas uma espécie de lançamento
oficial das novas tendências.
Antes de estudarmos o conceito de modernismo, temos que retroceder e
lançar um olhar sobre aquilo que já denominamos música semi-erudita.
Segundo o musicólogo Mozart de Araújo: «O Lundu e a Modinha
representam, por assim dizer, os pilares mestres sobre os quais se ergueu todo o
arcabouço da música popular brasileira». A história de ambas as formas pode ser
traçada a partir do último quartel do século XVIII, aproximadamente.
O lundu deriva do batuque africano, «dança erótica e violenta entre os
negros», conforme Mozart de Araújo. A sua transformação em canção solista ou
em música de salão (dança), a sua nacionalização, dá-se no começo do século
XIX. E assim atravessaria todo o século. Notável na história do lundu é a sua
ascensão de uma camada popular primitiva ao nível dos salões da alta sociedade.
Evolução contrária seguiu a modinha, cuja «biografia está cheia de
contradições», no dizer de Mozart de Araújo. Segundo as investigações deste
musicólogo foi o brasileiro Domingos Caldas Barbosa o criador e o introdutor da
modinha em Portugal (1775). A modinha sentimental teve uma divulgação muito
ampla nos salões do século passado. Destes salões desce às camadas populares. «E
desprezava o contraponto do cravo, pelo contracanto dos baixos melódicos dos
violões seresteiros», comenta Mozart de Araújo. Desde fins do século XVIII
acentua-se a italianização da modinha pela influência todo-po-derosa da ópera
penínsular. A nacionalização da modinha deu-se, segundo Mário de Andrade,
dentro e apesar do melodismo europeu.
Mais ou menos na década de 1850 observa-se uma invasão de danças
europeias notadamente: a polca, a schottisch, a mazurca. Na-cionalizaram-se,
espãlharam-se dos salões para as camadas populares e deram origem a ritmos de
outras danças.
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA MÚSICA BRASILEIRA
A nacionalização das danças importadas e das formas musicais semi-eruditas
como a modinha e o lundu, ao longo do século passado, significa, em outros
termos, que o povo amoldou-as ao seu modo próprio de sentir. E este modo
próprio de sentir foi se desenvolvendo por reação às próprias criações populares.
O processo deu-se lentamente, insensivelmente, inconscientemente. E foram
surgindo outras danças brasileiras.
Aos poucos foi acontecendo com estas músicas populares e semi-eruditas o
que Mozart de Araújo disse da modinha: «Dizem que a modinha morreu. Ela não
morrerá porque já não é mais uma canção, mas um estado de alma. Ela está na
própria essência emotiva da nacionalidade.»
A SEMANA DE ARTE MODERNA
Como já dissemos, o modernismo não nasceu com a Semana de Arte
Moderna. Esta foi apenas o lançamento oficial das tendências modernistas. Mário
de Andrade, em conferência proferida no Itamarati em 1942, caracterizou assim o
movimento: «... o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu
caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu
internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua
gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do
espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena burguesia o temessem.» Mais
adiante: «E foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a
Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento modernista, o
período realmente destruidor. Porque, na verdade, o período heróico fora esse
anterior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti (1917) e
terminada na festa da Semana de Arte Moderna.»
O mesmo Vasco Mariz, resumindo a exposição de Mário de Andrade,
enumera os três princípios fundamentais que orientaram os modernistas: 1) o
direito permanente à pesquisa estética; 2) a atuali-zação da inteligência artística
brasileira e 3) a estabilização de uma consciência criadora nacional.
O referido musicólogo buscou informações junto ao próprio Villa Lobos a
respeito de sua participação na Semana de Arte Moderna. Contou-lhe o
compositor que tivera notícia do projeto por Graça Aranha e Ronald de Carvalho
os quais o procuraram em sua casa para expor-lhe o plano e solicitar a sua
participação. Villa ficou encantado com a proposta, pois coincidia com as ideias
pelas quais vinha lutando há anos. Nada de novo escreveu para a Semana;
aproveitou somente obras já terminadas anteriormente.
A Semana consistiu numa série de três espetáculos realizados no Teatro
Municipal de São Paulo. No saguão havia exposições de pintura e escultura; no
palco realizavam conferências e executavam mú-
BRUNO KIEFER
sicas. Os conservadores foram ao teatro decididos a vaiar, a brigar. Além de obras
de Villa Lobos, executaram também obras de Debussy e Eric Satie.
O modernismo, em essência, é um movimento romântico, pelo menos na
música. Certo, com as exigências expressionistas de mais liberdade no tocante aos
meios de expressão. Não é este o lugar para desenvolvermos essa tese. Mais
importante para nós é a postura de Mário de Andrade face ao movimento musical
modernista.
MÁRIO DE ANDRADE
O autor de «Macunaíma» foi uma personalidade multifacetada. Dotado de
uma inteligência cintilante, de uma capacidade de trabalho admirável e de um
espírito inquieto, estendeu as suas atividades a campos múltiplos. Foi poeta,
escritor, ensaísta, crítico literário e musical, pesquisador do nosso folclore e o
grande orientador do nosso Segundo Romantismo Musical. Mas o grande
intelectual paulista teve algo de mais fundamental do que os citados atributos,
algo mais raro e que perpassa a sua obra da primeira à última linha: teve um amor
quente por essa terra e sua gente; teve um amor que o arrastou à participação ativa
e persistente em tudo que dizia respeito às suas áreas de interesse.
No terreno da música, Mário de Andrade foi fazer pesquisas de campo,
meteu-se com a gente do povo para recolher seus cantares e estudar os seus
instrumentos; Mário de Andrade batalhou na crítica, dava aulas, assistia a
concertos, examinava partituras, vasculhava bibliotecas à cata de documentos
históricos e estimulava jovens compositores. Foi este amor que lhe deu a coragem
para ser diferente e para defender as nossas coisas. Foi este amor que lhe deu
também capacidade de renúncia. Numa entrevista dada a Francisco de Assis
Barbosa declarou: «Não faço arte pura. Nunca fiz... Sempre fui contra a arte
desinteressada... Naquele tempo, em 1917, se quisesse poderia ter arranjado um
livro de versos menos ruim para aparecer em público. Tinha cadernos e mais
cadernos cheios de sonetos e poesias, que reputava melhores que os de «Há uma
gota de sangue em cada poema». Mas não. Senti que precisava publicar o meu
livrinho de poemas pacifistas, escritos sob a emoção da guerra de 14».
E este amor convertia-se, frequentemente, em ódio contra tudo que
ameaçava a incipiente auto-afirmação nacional, ou a verdadeira arte, ou a
participação do povo no processo de nosso crescimento cultural. Assim, por
exemplo, investe com um santo furor contra as «falsificações de novidades com
óperas velhas», escrevendo: «A Temporada Lírica Oficial se baseia num
despropósito de erros, escondidos debaixo da mais irritante hipocrisia. Nenhum
interesse verdadeiro o justifica. A nacionalidade está abolida. A cidade está
abolida. O povo está abolido. A arte está abolida». Com a mesma veemência
profliga a nossa submissão ao julgamento europeu quando diz: «Ora por mais
respeitoso
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA MÚSICA BRASILEIRA
que a gente seja da crítica europeia carece verificar duma vez por todas que o
sucesso na Europa não tem importância nenhuma prá Música Brasileira». E tem
toda razão. Até hoje o sucesso na Europa, ou em algum outro país mais adiantado,
decide do valor de uma obra. Evidentemente tal atitude influi na própria criação,
introduzindo nela elementos inautênticos; à lucidez de Mário de Andrade, no
entanto, não escapava que a nossa independência do julgamento europeu só era
possível dentro de um contexto cultural mais sério. «Nós possuímos um
individualismo que não é libertação: é a mais pífia, a mais protu-berante e inculta
vaidade. Uma falta de cultura geral filosófica que normalize a nossa humanidade e
alargue a nossa compreensão. E uma falta indecorosa de cultura nacional.
Indecorosa».
Vê-se, por aí, que a luta pela auto-afirmação nacional não era cega em Mário
de Andrade. Não se confundia com um amor à pátria mal aplicado, que afirma as
nossas coisas simplesmente por serem nossas.
Auto-afirmação nacional, a nosso ver, implica: pensarmos a realidade por
nós mesmos; conscientizarmos o modo próprio de ser com seu condicionamento
histórico e projetarmos, constantemente, o próprio destino; termos coragem para
afirmar as ideias próprias contra as de fora, mesmo que venham com o rótulo de
uma pseudo-universalidade; termos coragem para uma expressão artística
autóctone. Pensar, criar, eis duas atividades extremamente difíceis, a exigirem o
percurso de um longo caminho, caminho que não é anunciado por alto-falantes e
que não conduz ao sucesso rápido.
Mário de Andrade não foi criador em música. Mas pensou o caminho da
música brasileira. Pensou-o longamente, como ninguém antes dele (nem depois);
pesquisou, meditou sobre a história da nossa música, mergulhou no populário,
examinando os seus elementos e descrevendo os seus instrumentos; interessou-se
profundamente pela relação entre a língua brasileira e a música; cuidou de não
perder de vista que a música, como fenômeno cultural, é parte de um contexto
mais amplo. E dentro desta perspectiva: «O critério atual de música brasileira
deve ser não filosófico mas social». Nos dias que correm, o autor do «Ensaio
sobre a Música Brasileira», se estivesse vivo, provavelmente cortaria a restrição à
filosofia. Diante da invasão da tecnologia, acompanhada de uma mentalidade que
alimenta um profundo desprezo pelas coisas da arte, que substitui o pensamento
pelo cálculo e o homem pela máquina, Mário de Andrade teria dado, sem dúvida,
toda ênfase possível à filosofia. Ainda mais se visse como muitos artistas
transformam a arte em ramo da tecnologia sob a alegação de que é preciso «estar
no contexto» .
Mas voltemos ao caminho apontado por Mário de Andrade. O ponto de
partida é a consciência de que, em matéria de auto-afirmaçãc nacional, estamos
ainda «numa fase primitiva, fase de construção». Isto foi dito em 1928, mas
valeria ainda hoje. Decorre dai, e dos
BRUNO KIEFER
múltiplos perigos, a necessidade de uma atitude de combate. «A força nova que
voluntariamente se desperdiça por um motivo que só pode ser indecoroso
(comodidade própria, covardia ou pretensão) é uma força antinacional e
falsificadora». Embora o movimento em torno da Semana de Arte Moderna
tivesse criado uma intensificação e uma conscientização da auto-afirmação
nacional em música, as forças que surgiram e se manifestaram durante alguns
decênios estão hoje em boa parte esquecidas ou relegadas a um segundo plano.
Novamente numerosos compositores buscam na Europa ou na lua as suas
diretrizes estéticas e quem não os acompanha é retrógrado, ou «está superado»,
Por esta razão insistimos na atualidade de Mário de Andrade, com as devidas
modificações, ampliações e cortes, está claro. A sua postura fundamental é o que
importa.
Retomemos o caminho apontado por Mário de Andrade: «Nos países em que
a cultura aparece de emprestado. . .tanto os indivíduos como a Arte nacionalizada
têm de passar por três fases: 1ª) a fase da tese nacional; 2ª) a fase do sentimento
nacional; 3ª) a fase da inconsciência nacional. Só nesta última a Arte culta e o
indivíduo culto sentem a sinceridade do hábito e a sinceridade da convicção
coincidirem. Não é nosso caso ainda. Muitos de nós já estamos sentindo brasileira-
mente. não tem dúvida, porém o nosso coração se dispersa, nossa cultura nos
atraiçoa, nosso geito nos enfraquece». E logo depois vem uma afirmação que
mostra novamente o amor profundo de Mário de Andrade pela nossa terra e sua
gente: «É másculo a gente se sacrificar por uma coisa prática, verdadeira, de que
se beneficiarão os que vierem depois».
Em que consiste a fase da tese nacional? Mário de Andrade, antes mesmo de
percorrer o caminho da indagação, reflete sobre a nossa música do período
colonial e do Romantismo do tempo do Império, destacando um Pe. José
Maurício, um Carlos Gomes, cujas obras não apresentam características que
poderiam ser chamadas nacionais. Mas então, trata-se de música brasileira? O
autor afirma que sim. «Por isso tudo, Música Brasileira deve de significar toda
música nacional como criação quer tenha quer não tenha caráter étnico».
Dentro deste critério, terá sentido ainda pretender estabelecer a referida tese
nacional? Para Mário de Andrade não há dúvida que sim. «O critério de música
brasileira prá atualidade deve existir em relação à atualidade». Isto foi escrito em
1928. A seguir o autor explica: «O critério histórico atual da Música Brasileira é o
da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou indivíduo nacionalizado,
reflete as características musicais da raça. Onde é que estas estão? Na música
popular».
E por que na música popular ? Wagner, por acaso, foi buscar no popular as
suas melodias? Não. E, no entanto, é essencialmente germânico. Mas a situação
aqui no Brasil é diferente. Antes de mais nada: «Pode-se dizer que o populário
musical brasileiro é desconhecido
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA MÚSICA BRASILEIRA
até de nós mesmos». E, além disto, «... uma arte nacional já está feita na
inconsciência do povo». Pois bem, a tese nacional torna-se necessária justamente
por causa do hiato existente entre a nacionalidade já feita inconscientemente pelo
povo e o mundo em que vivem os nossos intelectuais e artistas. Mário de Andrade
faz uma acusação formal: «A falha de cultura consiste na desproporção de
interesse que temos pela coisa estrangeira e pela coisa nacional». Por esta razão,
repetimos, torna-se necessária a tese nacional.
Nessa fase da tese nacional: «O compositor brasileiro tem de se basear quer
como documentação quer como inspiração no folclore». O escritor paulista
aponta, assim, inequivocamente, um caminho. Mas faz uma ressalva. Não quer
que o compositor vá em busca do exótico, daquilo que possa impressionar
turistas. Os mal orientados o que buscam «não é a expressão natural e necessária
duma nacionalidade não, em vez é o exotismo, o jamais escutado, em música
artística, sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-régia».
O pensador paulista não se limitou a formular a tese nacional. Autêntico
bandeirante, desbravou o sertão do nosso folclore, indo dire-tamente às fontes,
recolhendo, registrando e gravando. E depois pôs-se a elaborar o material
recolhido por êle e por outros. Estão aí os seus estudos sobre a rítmica, a
melódica, a polifonia, a harmonia populares. E também o seu espanto diante da
riqueza do material folclórico nacional: «A música popular brasileira é a mais
completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora».
A fase da tese nacional realizou-se. efetivamente, alguns anos depois do fim
da Guerra de 14. Villa Lobos abandonou conscientemente «o seu
internacionalismo afrancesado». A êle se juntaram outros como Luciano Gallet e
Lorenzo Fernandez, seguidos de compositores mais jovens como Camargo
Guarnieri, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Luis Cosme, e outros. Todo
este movimento intenso, que teve como espoleta a Semana de Arte Moderna de
São Paulo, «tem a sua necessidade dirigida e torcida pela vontade, pelo raciocínio
e pelas decisões humanas».
Nessa fase o compositor brasileiro é ainda mais pesquisador do que
propriamente criador. Mário de Andrade, cognominado o «papa do modernismo»,
participava intensamente desta fase, aconselhando jovens compositores,
estimulando, criticando. Seu amor pelas nossas coisas não provocou nele
cegueira, no entanto. Com agudo espírito crítico apontava as fraquezas técnicas e
a desorientação estética de alguns compositores. Veja-se, por exemplo, esta
passagem: «Não há dúvida que vários dos nossos músicos são profundamente
deshonestos nisso de, aproveitando a brumosa anarquia cultural em que vivemos,
se improvisam compositores, cientes de que na escureza da noite todos os gatos
são pardos. Alguns desses compositores chegam a conhecer muito por alto
apenas, certos elementos primários da composição, que
BRUNO KIEFER
eles poderiam aprender por si sós, mesmo à revelia da escola e contra as barreiras
da pobreza».
Quanto às outras fases, Mário de Andrade, pelo que observamos, não as
descreve. Mas entende-se, pelo contexto de sua obra, ser a fase do sentimento
nacional aquela em que a realidade profunda da terra não se manifesta somente no
povo anônimo, mas será vivida por todos. E, sendo consciente a elaboração geral
desta estrutura afetiva, ela fatalmente passará a ser inconsciente. Ocorre-nos uma
analogia com o indivíduo que, em geral, não sabe da sua estrutura mental, ou só
muito pouco; muitos elementos desta sua estrutura, no entanto, já foram
conscientes e, uma vez incorporados, passaram a ser inconscientes. A partir dessa
fase (a terceira), a criação artística partiria de um substrato nacional inconsciente.
Até aqui estamos procurando interpretar o pensamento de Mário de Andrade.
Em certa altura dos «Aspectos da Música Brasileira», o autor parece querer
concentrar as duas últimas fases numa só. Diz textualmente a respeito da música
de sua época: «... se está agora na fase nacionalista pela aquisição de uma
consciência de si mesma: ela terá que se elevar ainda um dia à fase que chamarei
de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver
cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza. E então a
nossa música será, não mais nacionalista, mas simplesmente nacional, no sentido
em que são nacionais um gigante como Monteverdi e um molusco como
Leoncavallo».
Concordamos em termos gerais com o autor da «Pequena História da
Música». Parece-nos, porém, que as coisas não são tão simples. Antes de mais
nada, Mário de Andrade sugere que as referidas etapas se sucedam linearmente.
Cremos que isto dificilmente poderá acontecer. Os avanços e recuos, as idas e
voltas são fatais. Além disto, é preciso não perder de vista que o nosso processo
cultural não é feito apenas a partir das forças da nossa terra. Existe a poderosa
ação da cultura de outros países e, atualmente, a poderosíssima influência do
«pensamento» científico-tecnológico, essencialmente supra-individual, suprana-
cional, negador do mistério e do mito, nivelador e aniquilador de tudo que possa
significar embasamento afetivo-intuitivo na realidade. Ignorar tais influências
seria desastroso; pretender repeli-las, um ato de loucura. A única saída possível é
a postura crítica. Pois bem, essa postura critica exige um embasamento nas forças
da terra (à semelhança de Guimarães Rosa). Sem este embasamento não poderá
haver verdadeira incorporação dos elementos que nos vêm de fora; haveria, no
máximo, submissão e, no mínimo, mero rechaço. A postura critica exige a prévia
conscientização do que somos inconscientemente — um processo inverso do
anterior. Por esta razão não podemos concordar com Mário de Andrade quando
pretende que a terceira fase seja simplesmente inconsciente. O importante nessa
fase será o esforço visando a superar o estado de inconsciência, embora o êxito só
possa ser parcial.
MÁRIO DE ANDRADE E O MODERNISMO NA MÚSICA BRASILEIRA
A criação artística é, em parte, tornar consciente o que antes era
inconsciente. Ela é um modo pelo qual se revela a verdade — desde que não se
trate de certas correntes contemporâneas que não dizem nada e nem pretendem. ..
O artista criador desempenha, portanto, uma função importante no atual
contexto cultural brasileiro. Por um lado, deve ter as raízes na terra e, por outro,
deve estar aberto para os elementos que nos vêm de fora. A elaboração — penosa,
demorada, difícil — destes elementos terá como resultado a estruturação de novos
elementos que serão incorporados e passarão a constituir parcela nova do nosso
modo de ser. Mas agora serão nossos; deixarão de ser mera importação,
elementos estranhos dentro do contexto de nossa cultura.
Se realizarmos essa tarefa, poderemos dizer com Heidegger: «... a
consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da
lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava
que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; crescer significa:
abrir-se à amplidão dos céus, mas também deixar raízes na obscuridade da terra;
que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem
fôr simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e
abrigado pela proteção da terra que oculta e produz». («Caminho do Campo»).
Semelhante postura nada tem a ver com a conotação habitual da palavra
nacionalismo. Tal postura é manifestação vital de uma nação; sua realização
efetiva, um problema de sobrevivência. Não existe o homem universal, o
cosmopolita ao rigor da palavra. Cosmopolita é o robô; cosmopolita é o cálculo,
os aviões a jato, mas não o ser humano que, saiba ou não saiba, tem as suas raízes
na terra que habita, na sua terra...,
Concordamos com Mário de Andrade quando afirma a necessidade do
estudo do nosso folclore. Não concordamos com a importância demasiada ou,
quiçá, exclusividade do folclore. Mesmo para um compositor, a língua, por
exemplo, com sua música embrionária, é uma fonte importante.:
Mário de Andrade é hoje tão atual como quarenta anos atrás. As restrições
que se podem fazer às suas teses não diminuem o valor de seu autor. Êle teve o
mérito de colocar lucidamente o problema da nossa cultura e de pôr toda a sua
existência a serviço da causa que defendeu. Além das atividades já citadas,
fundou, quando diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, cursos de
etnografia e folclore; promoveu a realização de um Congresso da Língua
Nacional Cantada; criou a Discoteca Pública de São Paulo; fundou a Revista do
Arquivo, etc.
Seu amor por esta terra, no entanto, não o tornou cego diante de sérios
defeitos nossos. No referido «Ensaio sobre a música brasileira» escreveu: «Mas
os defeitos de nossa gente, alguns facilmente extir-
BRUNO KIEFER
páveis pela cultura e por uma reação de caráter que não pode tardar mais, nossos
defeitos impedem que as nossas qualidades se manifestem com eficiência. Por
isso que o Brasileiro é por enquanto um povo de qualidades episódicas e de
defeitos permanentes».
Concluímos com Manuel Bandeira, referindo-se ao seu amigo Mário de
Andrade com uma frase que era dele mesmo: «Para mim a melhor homenagem
que se pode prestar a um artista é discutir-lhe as realizações, procurar penetrar
nelas, e dizer francamente o que se pensa».
Obras citadas:
1) LANGE, Francisco Curt. "A organização Musical Durante o Período Colonial Brasileiro". In:
Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, 5*, Coimbra, 1966. v. 4.
2) ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a Música Brasileira. J. Chiarato & Cia., São Paulo, 1962.
3) RENNER, Hans. Geschite der Musik. Stuttgart, Deutsche Verlags, 1965.
4) GUIMARÃES ROSA, João. Estas Estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
5) ANDRADE, Mário de, Compêndio de História da Música. 2º ed. São Paulo, Ed. Musical
Brasileira, 1933.
6) MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos. Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores,
Divisão Cultural, 1947.
7) ARAÚJO, Mozart de. A Modinha e o Lundu no Século XVIII. São Paulo, Ricordi Brasileira,
1963.
8) BARBOSA, Francisco de Assis. Testamento de Mário de Andrade e outras Reportagens. Rio
de Janeiro, Ministério de Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1954.
9) ANDRADE, Mário de. Música, Doce Música. São Paulo, Martins, 1963.
10) ANDRADE, Mário de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Martins, 1965.
11) HEIDEGGER, Martin. Der Feldweg. Frankfurt, Vitorio Klostermann, 1953.
12) BANDEIRA, Manuel. De Poetas e de Poesia. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e
Cultura, Serviço de Documentação, 1954. ,
A GRANDE CRISE DO CINEMA ATUAL
OCTÁVIO DE FARIA
NÃO há como negar: o cinema, em geral, atravessa, enquanto arte, uma
tremenda crise. Não é a primeira, não será provavelmente a última •— mas,
impossível deixar de reconsecê-la, pelo menos enquanto lavra nos chamados
«grandes cinemas», isto é: nos cinemas dos grandes países, desses que, de um
modo ou de outro, definem e condicionam o quadro geral do cinema considerado
como um todo.
Dizer que outras crises virão, como outras já sobrevieram, significa,
evidentemente, proferir ato de fé no futuro do cinema, confiar que a crise atual,
por mais grave que seja, não representará nem a morte nem a inevitável
decadência do cinema. A nova arte não tem seus dias contados, como nunca teve,
nem mesmo em seus piores momentos. E, se subsistiu à crise pavorosa da
passagem do cinema silencioso para o falado, por que haverá de sucumbir frente a
uma crise bem menos violenta, como essa que começou a atravessar com a
aproximação do final da década de 60?
Difícil, de qualquer modo, será caracterizá-la com precisão, defini-la pelo
emprego de uma só palavra. Trata-se de uma crise complexa, com variantes
particulares em países diversos e afastados. Mas, se tivermos de designá-la
servindo-nos de um só termo, o mais adequado ainda me parece ser o de crise de
internacionalismo ou de desnacionalização crescente.
a) DESNACIONALIZAÇÃO DOS GRANDES CINEMAS
A essa análise chegaremos mais adiante. Antes, porém, partamos de uma
distinção que muito esclarecerá nossa conceituação. Essa de que a grande crise
que o cinema atravessa atinge, fundamentalmente (ou, por enquanto, apenas), os
«grandes cinemas» a que nos referimos no início dessas considerações. Foi a eles,
grandes cinemas ou cinemas de mercado extenso, de filmes consumidos em larga
escala não apenas no país de origem de cada produção, mas em vários países (de
língua comum ou não), que acometeu a crise que chamamos de desnacionalização
crescente ou de internacionalismo artificial.
OCTÁVIO DE FARIA
De fato, os cinemas dos grandes países produtores, digamos: Estados Unidos,
França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Espanha, (*) na ânsia de ampliar e assegurar
mercados, lançaram-se desesperadamente no filão suicida das co-produções, nisso
que se pode chamar o abismo da desnacionalização. Ou seja, esquematizando: em
uma co-produção financiada por capitais internacionais, reunindo: diretor do país
x, com ator principal do país y, mais atriz principal do país z, e com coadjuvantes
dos países y e z. E, se possível, com um ator «convidado», dos países x, y ou z.
Sem falar nas «misturas» concomitantes (talvez de pouco efeito junto ao público,
mas «diplomaticamente» úteis) como a distribuição equitativa, entre as partes co-
participantes, de: argumento original, roteiro, montagem, música, efeitos
especiais, etc. Resultado (para noventa e nove por cento dos casos, penso eu): um
«produto» amorfo, incolor, inodor, insabor, alguma coisa que, pretendendo ser
muito, não é nada, nada representa, nada trazendo a ninguém, e, muito menos, ao
cinema que acaba sendo a grande vítima dessa «combinara»... E que sofre, à
sombra dessa e de outras manobras comerciais, a mais tremenda crise de
despersonalização, por efeito desse forçado e inconcebível internacionalismo. E,
em consequência, seus diretores atingem um tal nível de inautenticidade e vazio
que nem se pode mais reconhecer sua «presença», como sucedeu, para citar
apenas exemplo recente, com o Vittorio De Sica de sua última superprodução: «Os
Girassóis da Rússia» («Sunflower»).
Certo, o cinema já apresentou, em sua tumultuada história, vários momentos
de desnacionalização de seus grandes nomes. E, notadamente, quando os Estados
Unidos, na fase áurea de sua produção silenciosa, importou grandes diretores e
astros do cinema europeu, especialmente dos plantéis da Alemanha e da Suécia.
Em levas sucessivas, suecos como Maurice Stiller e Victor Sjostrom (entre os
diretores), Greta Garbo e Lars Hanson (entre os astros), alemães como Ernst
Lubitsch, Dupont, Murnau, Fritz Lang (entre os diretores), Pola Negri, Emil
Jannings, Marlene Dietrich (entre os astros), (e falo apenas dos principais), foram
«transplantados», a peso de ouro, pelas grandes fábricas americanas e passaram a
produzir nos Estados Unidos.
Convenhamos, porém, que, se os resultados não foram os esperados, se
deixaram mesmo muito a desejar (com raras exceções), não houve em absoluto
«internacionalização», do produto. Pelo contrário, os filmes dirigidos e
interpretados por esses «emigrados», continuaram americanos. De fato, não foram
os filmes que perderam sua personalidade. E, sim, seus diretores (salvaram-se
poucos) e seus atores (em bem menor dose, é verdade) . De qualquer modo,
alguma coisa sempre perdurou
(*) Os casos dos «grandes cinemas» da Rússia e do Japão são diferentes e escapam a essa
apreciação. O primeiro, dada a natureza totalitária do seu governo que recai esmagadoramente sobre
seu cinema, o segundo pelas condições "fechadas" de sua produção — aliás por nós quase
desconhecida, a não ser no reduzido circuito de S. Paulo...
A GRANDE CRISE DO CINEMA ATUAL
em sua «autenticidade». (*) Tanto assim que nunca o cinema americano
apresentou nível técnico tão elevado. E que, então, o «internacionalismo» da
produção não passava de um vago fantasma.
Bem diferente é, no momento, o panorama que apresenta o cinema
«desnacionalizado», ou dos grandes países que estão internacionalizando sua
produção. Pois, o que sumiu, no jogo de idas e vindas dos «grandes cartazes»
entre países ou continentes, foi a autenticidade das produções. Foi a «qualidade»
intrínseca do produto apresentado. Um exemplo ? Transferindo-se da Alemanha
para os Estados Unidos, no fim da década 20, um Murnau não mais produziu «A
Última Gargalhada» («Der Letze Mann»), seu máximo de personalidade como
expressão diretorial, mas conseguiu «Aurora» («Sunrise»), um dos maiores filmes
que os americanos lograram produzir. Em co-produção, no fim da década 60, o
que conseguiram um David Lean ou um Vittorio de Sica? Filmes de bilheteria
garantida, certo, mas que nem mesmo podem ser discutidos enquanto «cinema»,
simples ouropéis, como «Dr. Jivago» ou «Os Girassóis da Rússia» . ..
Ora, o resultado mais evidente de toda essa mediocridade, fisicamente
«invernizada» e ideologicamente mais ou menos «bem pensante», é a grande crise
que atravessam as maiores empresas americanas que parecem ter esgotado seus
«truques» para a conquista «artificial» dos grandes públicos: superproduções na
base do internacionalismo fantasmagórico, desertos americanos transportados para
as planícies espanholas ou iugoslavas, papelões (pintados das diversas cinecitás)
reproduzindo em sua esterilidade artística e em seu vazio emocional o mundo
inteiro, desde a Criação ao apocalipse atômico.
b) A DEFESA DOS PEQUENOS CINEMAS
Se os «pequenos cinemas» conseguiram defender, pelo menos até agora,
alguma coisa do que se pode chamar a autenticidade do património artístico
cinematográfico, foi certamente porque a isso se viram compelidos, dada a pouca
importância, em matéria de rentabilidade internacional, de seus filmes. Seria ideal
que pudéssemos afirmar ter sido porque quiseram e souberam resistir às
«tentações» do internacionalismo. Mas, até que ponto seria verdadeiro, quando os
vemos, sempre que as ocasiões se oferecem, como que ensaiarem um mergulho
mais ou menos profundo na avalanche geral?
O inegável, porém, é que diversos desses cinemas ficaram até agora indenes
contra esses tumultos de co-produções inconsequentes e desnacionalizadas. E não
há dúvida de que é entre eles que vamos encontrar o que de mais interessante e
promissor se nos foi dado apreciar nesses últimos anos. Ou, pelo menos, foram
esses cinemas os que apresentaram
(*) Lembremos obras de inegável valor cinematográfico como «O Patriota» e
as comédias dramáticas de Ernst Lubitsch; a «Aurora» («Sunrise») e «Tabu», de Murnau;
«Vento e Areia» («The Wind») de Victor Seastrom (o Victor Sjöstrom sueco); «Solidão»
(«Lonesome»), de Paul Fejos, entre outros.
OCTÁVIO DE FARIA
maior homogeneidade, maior proximidade de um «estilo» qualquer. E, também,
não se pode negar que foram eles, esses cinemas «pobres» e restritos, que
produziram as obras que mais impressionaram os júris categorizados dos festivais
internacionais — muito embora os prêmios por eles conferidos, mercê de
injunções políticas partidárias, nem sempre tenham vindo premiar esses filmes de
real valor cinematográfico.
Entre esses pequenos cinemas em evidência, podemos alinhar, sem
dificuldade, e sem pruridos de vão ufanismo nacionalista, ao lado, ou, quem sabe
mesmo, acima dos cinemas tcheco, polonês, úngaro, espanhol, iugoslavo, o nosso
cinema brasileiro. Pois, não resta dúvida de que, à sombra do movimento
conhecido como «cinema novo» e de suas posteriores variações e transformações,
logramos apresentar uma série de filmes de indiscutível categoria, (*) todos eles
marcados por uma personalidade, uma autenticidade que nos permite um orgulho
tão maior quanto mais legitimamente nacional. Sobretudo quando os vamos
encontrar em franca oposição e concorrência com grandes «préstitos»
internacionais adornados por «estrelas» mundialmente consagradas e por diretores
amorfos de nomes gastos na prática comercializante e já agora despidos de
qualquer expressão cinematográfica autêntica.
Digamos mesmo — e isso independente de qualquer relação direta com o
cinema brasileiro — que é nesses filmes desses pequenos cinemas que vamos
deparar, via de regra, com uma qualquer preocupação de busca de caminhos novos
para o cinema. Sinceros, honestos, baseados apenas em suas realidades próprias,
locais, nacionais (não obstante intromissões partidárias de ordem política, às vezes
detestáveis.. .), esses filmes, tchecos ou brasileiros, poloneses ou úngaros, ou de
outros países «pobres», atingem um grau de realidade humana, de verdade, que
fundamentalmente os separa daqueles produtos multimilionários resultantes das
superproduções estereotipadas do internacionalismo triunfante. E seus diretores,
justamente porque não têm de reproduzir cenas de destemperos sentimentais de
atores super-célebres ou construções espetaculares de estúdios nababescos, podem
se dedicar mais livremente a nos contar estórias credíveis, mais próximas da
realidade humana que vivemos. E, aqui e ali, indicar veios novos para um possível
cinema de amanhã. (**)
(*) Lembremos, entre os mais recentes, os principais. De Glauber Rocha: «Deus E O Diabo Na
Terra Do Sol», «Terra Em Transe» e «O Dragão Da Maldade Contra O Santo Guerreiro»; de Nelson
Pereira dos Santos: «Vidas Secas», «Fome De Amor» e «Um Asilo Muito Louco»; de Roberto Santos:
«A Hora E A Vez De Augusto Matraga»; de Walter Hugo Khoury: «Corpo Ardente», «As Amorosas»;
de Joaquim Pedro de Andrade: «Macunaíma»; de Paulo César Saraceni: «Capitu»; de Carlos Diegues:
«Os Herdeiros»; de Walter Lima Jr.: «Menino De Engenho»; de David Neves: «Memórias De Helena».
(**) Isso também sucede, dentro dos "grandes países", a algumas "minorias" recalcitrantes. Foi o
que sucedeu, aliás, em França com a «nouvelle vague» — hoje totalmente transformada, contaminada,
comercializada. E também se verifica na Itália e nos Estados Unidos (em Nova Iorque, sobretudo) .
A GRANDE CRISE 00 CINEMA ATUAL c) A
CRISE DOS GRANDES GÊNEROS
Consequência mais ou menos direta da crise de desnacionalização, verificou-
se o declínio de muitos dos considerados «grandes gêneros» do cinema. Ou,
digamos melhor: gêneros definidos, caracterizados por uma produção intensa,
quase sempre com a mesma orientação geral. O «western» e a comédia de
costumes, o primeiro classicamente americano, a segunda predominantemente
italiana desde o irromper do neo-realismo, são os exemplos mais gritantes que
podemos apresentar.
Em relação ao «western», foi a convergência de dois fenómenos que
determinou a crise a que aludimos. O primeiro fenômeno nada tem a ver com a
desnacionalização que já denunciamos, mas, na verdade, como que lhe preparou
um terreno altamente favorável. Trata-se do que se convencionou chamar a
desmitificação sistemática do herói do «far-west». Perdendo aos poucos aqueles
característicos rígidos e primitivos de intransigente defensor do bem contra o mal,
renunciando à pureza de seu caráter sempre «sem medo e sem mácula», invadido
em sua integridade por compromissos com mil sutilezas de uma psicologia
«decadentista», esse herói não teve mais forças para sustentar em seus ombros o
peso de um gênero que repousa, essencialmente, na força e na beleza de um mito,
ou nisso que podemos chamar: sua unidade plurifacetada.
Mas, esse fenômeno não teria, por si, força suficiente para aniquilar o gênero,
se não tivesse ocorrido o outro fenômeno alegado e que foi a desastrada
falsificação italiana do «western», isto é: a produção em massa, na península, dos
«spaghetwestern». . . Autêntica farsa, verdadeira «chanchada sangrenta», em que
se imitava, deformando, exagerando até o paroxismo, a violência dos westerns
clássicos, inclusive transformando nomes de artistas e diretores (os famosos
«pseudônimos» italianos) com o fito de ludibriar o público que se julgava (ou
fingia se julgar) diante de produtos originariamente americanos. Atingiu-se um tal
ridículo nesse caminho de falsificação, nessa folia de Ringos e Djangos torturados,
sangrando por todos poros do corpo, numa violência tão exagerada, tão
descontrolada, que o desprestígio do gênero em si logrou limites inimagináveis,
intoleráveis. Pior ainda porque, talvez por simples contaminação epidêmica, talvez
por efeito de miserável comercialismo, o «western» americano começou a repetir
os mesmos vícios exibicionistas e sanguinolentos dos congêneres italianos e,
posteriormente, ítalo-espanhóis. De modo que o campo assim minado tornou-se
presa fácil para os estragos sistemáticos da desnacionalização cinematográfica.
Tanto assim que, na produção dos «westerns», mesmo genuinamente americanos,
os desertos do Arizona começaram a ser postergados pelas montanhas da
Andaluzia...
Igual desastre sucedeu à comédia de costumes que o neo-realismo italiano
elevara a um nível artístico extraordinário e que seus sucessores imediatos
conseguiram manter em grau bastante elevado. Com a com-
OCTÁVIO DE FARIA
petição internacional, esse gênero de comédia perdeu completamente seus
característicos de verdade local, de autenticidade inequívoca, para começar a
recorrer, quase sistematicamente, aos substitutivos fáceis da anedota picaresca, do
piadismo vulgar e da eroticidade desbragada. Comédias inteiras, por deficiência de
elemento cômico legítimo, passaram a repousar em cenas que se desenrolavam
sistematicamente debaixo de lençóis, tendo quase sempre como «amantes»
consagrados, nomes ilustres do grande estrelato mundial. E, para sustentá-los, um
diálogo sempre dos mais cabeludos, alimentando a facécia das destemperadas
plateias mundiais. Desencadearam-se, assim, as inúteis e vazias séries de «casa-
mentos», «adultérios» e «divórcios» à italiana, à francesa, planetários,
interplanetários, superplanetários — todo um ror de superficialidades e
imbecilidades enlatadas, mecanizadas, internacionalizadas.
E a mesma decadência que vitimou a comédia dramática ou de costumes,
atingiu, ainda que em base menor, a comédia em geral. Apagaram-se os grandes
nomes clássicos da comédia americana e não surgiram novos para substituí-los. O
panorama da atual comédia mundial, americana ou não, é um quase deserto onde
apenas, de quando em quando, um. relâmpago dos Beatles ou as notas gastas de
um Jerry Lewis, remexem paragens de areias mortas. Tanto assim que, do ponto
de vista comercial, a dominante, nesse terreno, é a reedição dos velhos cómicos do
cinema: Chaplin, Buster Keaton, Laurel e Hardy, os Irmãos Marx e, até mesmo,
Harold Lloyd.. .
d) VALORES EM BALANÇO
Ao lado desses valores cômicos que, praticamente, não existem mais, e
daqueles, diretoriais, que, ainda que vivos, como que estão praticamente
aposentados, como um Chaplin, um Renoir, um Ford, um King Vidor, um Fritz
Lang, um René Clair, a crise do cinema atingiu alguns dos seus maiores valores
em ação. Evidentemente, são possibilidades que ainda podem ressurgir. Mas, a
declarada mediocridade que marca suas últimas produções me parece tão
significativa, tão impressionantemente demonstrativa, que eles como que deixam
de contar quando se pensa no que representam para o cinema do momento. O
máximo que se deve fazer é considerá-los pelo que já fizeram em passado mais ou
menos recente.
Pois, como relacionar com o possível futuro do cinema, nomes, desde os
maiores, como os de Hitchcock e Orson Welles, de John Huston e Vittorio De
Sica, de William Wyler e Akira Kurosawa, até os médios, como um Carol Reed,
um René Clement, um Jules Dassin, um Aldrich, um Nicholas Ray, um Castellani,
um Blasetti, um Laurence Olivier, um Stanley Kramer, um Otto Preminger, um
Lattuada, um Marcel Carné, um Delannoy, um Cavalcanti, um Truffaut, um
Godard, um David Lean, um Basil Dearden, um Cario Lizzani, um Samuel Fuller,
um Sydney Lumet, um Mark Robson, um Dmitryk, um Tony Richardson,
um
A GRANDE CRISE DO CINEMA ATUAL
Frankenheimer, um Peter Ustinof, um Zinnemann, um Hathaway, um Rossi, um
Rosi, um Richard Brooks, um Robert Rossen, um Reisz, um Staudte, um Käutner,
um Vancini e tantos outros?
Naturalmente, a esse extenso panorama de incerteza e declínio, não é difícil,
nem honesto, deixar de contrapor uma contribuição fortemente positiva e
permanente. Pois, inúmeros são os valores do cinema que, independente de
qualquer crise, mantêm-se «presentes» nas possibilidades imediatas de evolução
do cinema. Bastaria, aliás, lembrar nomes absolutamente atuais, como os de
Ingmar Bergman ou Robert Bresson, Luchino Visconti ou Luis Buñuel,
Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini, Jacques Tati ou Pier Paolo Pasolini,
Elia Kazan ou Howard Hawks, Stanley Kubrick ou Joseph Losey, Glauber Rocha
ou Nelson Pereira dos Santos, para termos de reconhecer que inúmeros, dentre os
maiores valores do cinema permanecem de pé, no centro da crise de
despersonalização e desnacionalização em que o cinema está se debatendo.
E mesmo que alguns deles pareçam vacilar um pouco, como, entre outros,
um Michelangelo Antonioni ou um Glauber Rocha, aparentemente seduzidos
pelas ilimitadas possibilidades e promessas da co-pro-dução e do trabalho distante
das fontes originais de cada um deles, há também que considerar a extraordinária
contribuição dos valores novos que estão trazendo ao cinema, nesse momento, o
ardor, a paixão de suas buscas incontidas e pequenas descobertas, de permeio com
seus ingénuos gritos de revolta — «desbravadores» de terreno que existem tanto
nos Estados Unidos como na Itália, na Tchecoslováquia como no Brasil, no Japão
como na Índia, em Portugal como na Alemanha, chamem-se eles Dennis Hopper
ou Marco Bellochio, John Schlesinger ou Miklos Jancso, Vittorio De Seta ou
John Cassavetes, Vojtech Jasny ou Joaquim Pedro de Andrade, Bernardo
Bertolucci ou France Stiglic, Carlos Diegues ou Stanislaw Jedryka, Paulo César
Saraceni ou Kiju Yoshida.
e) DÚVIDAS E PERSPECTIVAS
Evidentemente essa confiança na capacidade individual de tantos valores
novos não nos deve enganar quanto à gravidade dos problemas que o cinema de
hoje enfrenta. Os percalços surgidos com o advento das co-produções em massa,
seja pela deterioração dos grandes gêneros clássicos, seja pelas facilidades do
erotismo tomado como fim em si, mais uma vez colocam o cinema frente ao
problema de se afirmar como arte em si, independente das exigências comerciais
do espetáculo que o informa e acompanha.
Ainda uma vez, coloca-se a necessidade de refutar a dúvida que tão
lucidamente Evaldo Coutinho acaba de colocar em seu esplêndido estudo sobre
«O Espaço Da Arquitetura»: poderá existir um artista único, um criador, por
detrás de todo o complexo (imagem, côr, palavra, som, manejo de artistas,
técnicas diversas) que um filme representa?
OCTÁVIO DE FARIA
Ou, em palavras do próprio autor citado: «O cinema representa o caso típico de
arte posta à revelia da matéria, elemento este que aponta e orienta a mesma
conceituação do gênero artístico. Dispondo, de início, tão só da imagem em preto
e branco, em movimento próprio ou estabelecido pela sucessão das cenas,
guardava o cinema o cerne de sua autonomia, a matéria que lhe seria peculiar, não
existente em outra espécie de arte. Bem depressa, no entanto, se dissipou a ideia
de autonomia do cinema, e, entre outros resultados, há um que pode ser observado
frequentemente: os autores de filmes abandonam aquelas dimensões que a
imagem induziria, e se empenham em percorrer as que são normais da pintura, da
música, da literatura; por fim, a despeito do aperfeiçoamento técnico e do perfeito
com que se houve cada uma das partes coadjuvantes, nunca se dispõe a nivelar o
filme à dignidade de arte maior; isto, pelas dificuldades em transferir o autor a sua
personalidade à obra — pois que o embaraça a formação da equipe, com o
problema da criação à mercê de alguém que se realce como monitor de tantos
instrumentos e vontades díspares — pela submissão ao gosto do público que,
preferindo a ilustração de histórias, de contos, de enredos que alimentam a fácil
sentimentalidade, dispensa o conspecto de individualidades artísticas, no entanto
realizáveis através da figura, sem côr, sem ruídos e sem vozes». (*)
Realmente, o certo, o indiscutível, é que cada vez nos sentimos mais
distanciados daqueles filmes do velho cinema silencioso em que a presença de um
artista, de um «cineasta», como então era hábito dizer: — a emoção de um «Lírio
Partido» («Broken Blossoms», de Griffith), a poesia de «Um Idílio Nos Campos»
(«Sunnyside» de Chaplin), a plasticidade de «A Paixão De Joana D'Arc» («La
Passion De Jeanne D'Arc», de Dreyer), etc. — era a mais palpável, a mais sensível
das realidades. Reconhecíamos seu «estilo», isto é: sua marca pessoal de «sentir»,
a cada passo, a cada cena que se desenrola. Era a presença do artista, do criador,
tão sensável quanto a de um Byron em cada estrofe de seus cantos, a de um
Cezanne em cada uma de suas naturezas mortas, a de um Mozart em cada
movimento de suas sonatas.
Num mundo de estrepitosas superproduções em que pululam astros famosos
em contatos amorosos ou dinamitações de pontes e edifícios gigantescos, numa
série de falsas «construções» em que se procura esconder qualquer manifestação
autêntica de personalidade para melhor oferecer conjuntos artificiais, polidos,
uniformes, luzidios, pergunto eu, onde ficarão esses artistas, esses «cineastas» que
foram o Griffith de «Lírio Partido», o Murnau de «A Última Gargalhada», o
Chaplin de «Luzes Da Cidade», o Eisenstein de «Ivã O Terrível», o Visconti de
(*) — v. Evaldo Coutinho — «O Espaço Da Arquitetura», p. 17. E ainda, a p. 18: «A autonomia
do gênero artístico em nada se atenua nos abundantes casos de «técnica pobre», antes assume um
prestígio que é tocante, a exemplo do cinema de Charles Chaplin, anteriormente a 1930, quando a
câmera quase não se movia c as cenas eram totalmente mudas».
A GRANDE CRISE DO CINEMA ATUAL
«A Terra Treme», o Rossellini de «Viagem À Itália»? Em suma, bem diferente
dessas extraordinárias possibilidades, é o abismo para o qual veio o cinema
caminhar à sombra da grande produção internacional e desnacionalizada que nos
está sendo proposta.
O que esperar? Em que forças confiar? Evidentemente, qualquer prognóstico
torna-se vão quando se trata de matéria tão difícil, tão cheia de incertezas.
Contudo, a experiência que temos de crises anteriores, ensina-nos que, sempre
que o cinema se vê frente a frente com problemas vitais como este que atravessa,
não tarda a encontrar, em sua própria contextura, elementos decisivos para uma
imediata e salutar reação. Foi o que já se deu em mais de uma ocasião. E foi,
notadamente, o que se verificou quando da crise do cinema falado ou sonoro.
Pois, o que parecia mais irrecuperável então, isto é: na triste época do
desabrochar indiscriminado de filmes «musicados e cantados», afogados quase
todos eles num mar de teatralidade palavrosa e artisticamente ultrapassada —
época em que o filme parecia o mais distante possível do que se poderia chamar
de obra de arte, reduzido, talvez, à sua mais simples e precária qualidade de
«espetáculo» —, eis que irromperam novos valores, novos grandes valores
mesmo, indicando caminhos inesperados para a libertação do cinema (arte visual
por excelência) em relação aos grilhões da palavra e do som. Surgiram, então,
com o decorrer dos anos, das décadas de 30 a 60, autênticos «criadores»,
verdadeiros «cineastas». Lembro apenas alguns nomes: Orson Welles, Hitchcock,
Renoir, Rossellini, Visconti, Bresson, Buriuel, Fellini, Bergman, Sjöberg,
Antonioni, Mizoguchi, Kurosawa.
Não vejo, portanto, porque desesperar. Embora nossa obrigação seja a de
denunciar, a de gritar mesmo (como gritar era nossa obrigação na época ingrata
do despontar do cinema falado), e mesmo sendo muito limitada, limitadíssima até,
a nossa esfera de ação, é preciso insistir e confiar no futuro do cinema.
Atravessamos dias negros — mas, é convicção minha: melhores auroras haverão
de surgir.
Ciências Humanas
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
PESSOA DE MORAIS
I) IMPORTÂNCIA E CARACTERÍSTICA DA MATÉRIA
problema da comunicação, inclusive dos meios técnicos da comunicação; ou
melhor ainda, da comunicação como meio, isto é, como elemento capaz de,
por si mesmo, alterar o próprio conteúdo da experiência humana que transmite,
tem sido objeto de acurados reflexões em nosso tempo.
À proporção, mesmo, em que a tecnologia científica se vem desenvolvendo,
nas últimas décadas, todo um conjunto de doutrina e teoria concernentes aos
meios de comunicação, sua dinâmica, suas peculiaridades e a interferência de tudo
isso como elemento ou fator que está transformando crescentemente a vida
humana, passou a ser motivo de investigação de primeiro plano. A tal ponto que
essa problemática da comunicação incluindo o cinema, o rádio, a televisão, as
revistas, os jornais, etc, tudo isso se constitui, ultimamente, em assunto que absor-
veu muitas das cogitações de outras ciências paralelas, até mesmo da Sociologia.
A partir daí todo o desdobramento de reflexões em torno do que significam
esses meios técnicos ultrapoderosos da atualidade, no sentido de influir ou de
mudar o curso da própria experiência, tem adquirido uma cidadania no setor do
conhecimento geral, de tal forma a proliferarem, por exemplo, não apenas uma
multiplicidade de livros especializados sobre esse ramo, como também todo um
novo corpo de doutrinas e, paralelamente, um conjunto de instituições
encarregadas de veicular essa nova dimensão do saber. Exemplo marcante disso
são as próprias faculdades ou escolas superiores de comunicação e o domínio
cada vez maior, não apenas no campo da problemática intelectual, porém nos
próprios jornais e órgãos de divulgação, da matéria comunicação como ciência
específica.
Dentro desse quadro, é de destacar-se um novo ângulo que se tem
desdobrado com autonomia cada vez mais especializada, e que tem fornecido, nos
próprios domínios da comunicação, um subsídio inestimável para o entendimento
de problemas da maior importância técnica.
Trata-se de um novo campo de conhecimento, desdobrado a partir das
modernas teorias da comunicação; ou melhor, que inclui o conheci-
O
PESSOA DE MORAIS
mento indispensável dos estudos acerca de comunicação porém, que dá uma
ênfase especial ao problema informativo, ou mais tecnicamente falando, da
informática.
De uma maneira geral, compreende-se perfeitamente que a informação é a
matéria prima de que se vem nutrindo o jornal, através de toda a sua trajetória.
Porém, uma coisa é falar-se do jornal como veículo de informação de uma
maneira genérica e outra, completamente diferente — já ligada a essa nova área de
investigação científica — é tratar o assunto informação, decompondo-o e
analisando-o de acordo com os subsídios que não apenas a teoria ou ciência geral
da comunicação fornece como, a partir daí, concentrar uma ênfase especial sobre a
problemática propriamente dita da informação, incorporando os estudos técnicos
sobre comunicação e acrescentando outros elementos. Estes, surgidos,
ultimamente, da meditação a respeito do que significa a própria informação.
Melhor ainda, sua estrutura técnica, de acordo com os conhecimentos mais
atualizados. De uma maneira ainda genérica, sabe-se ser quase um lugar-comum
ter o jornal de informar, antes de mais nada. E informar significa trazer ao público
matéria ou assunto mais nada. E informar significa trazer ao público matéria ou
assunto de que este esteja carente ou que complete ou amplie o seu universo
pessoal, acrescentando-lhe uma dimensão nova. Tal era o exagero dessas ideias no
cemêço do jornalismo, que um jornal de Boston, nos Estados Unidos, circulava
com uma periodicidade muito larga, até mesmo de um mês, à espera de notícias
para configurar a sua estrutura.
É noção recente ou modernizada a de que o jornal, pela própria dinâmica do
tempo, passou a refletir uma série de acontecimentos que se sucediam quase
convulsamente, e exigiu do jornalista a capacidade de retirar do seu subsídio
pessoal de experiência, incluindo naturalmente a sua própria informação, os
elementos indispensáveis para a sua circulação. Desta forma, não podendo deixar
de sair com uma periodicidade muito curta e diária, o matutino ou vespertino, o
jornalista na elaboração da matéria teria agora de completá-la ou de acabá-la com
os elementos de que pudesse dispor, uma vez que o jornal possuía esse
compromisso de periodicidade diária e não podia deixar de sair.
Como, paralelamente a tudo isso, o jornal agasalhou um tumulto de
acontecimentos relativos a personalidades que, num mundo cada vez mais rápido e
ciclópico, se distinguia da média emergindo para a notoriedade ou para a
singularidade, deu-se um processo que estava na própria lógica do sistema. Passou
a ser extremamente difícil distinguir a verdade do erro; o certo, do aparente; o real,
da mera conjetura; o rebate falso ou até a mentira ou o boato, do verdadeiro como
base no assunto por ser jornalisticamente veiculado. Também, através de um
processo que em Sociologia se chama mobilidade social vertical, ou seja, de
projeção de valores, quer humanos, quer relativos a situações ou circunstâncias no
plano da vida social, artística, política, diplomática, etc, tudo isso pesou muito no
sentido de tornar o próprio assunto inserido no texto do jornal como matéria, em si
mesma, de relevância.
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
O problema de notícia ou a personalidade capaz de ser notícia passou a
depender de um assunto demasiadamente ligado ao veículo, isto é, ao jornal como
meio de irradiação da própria importância dessas coisas que divulgava. Dentro
dessa ordem de ideias, notícia passou a ser aquilo que está no próprio jornal fosse
verdadeira ou falsa, já que a premência do tempo e um conjunto de circunstâncias
ligadas ao processo da mobilidade social de valores e da rapidez com que as coisas
se passam, aliados aos mecanismos — que são vários e múltiplos — de projeção
de personalidades ou fatos, tudo tornou a matéria inserida no jornal, ao mesmo
tempo reflexo do prestígio social e elemento gerador desse mesmo prestígio.
Aqui se estabelece um conflito ou ambiguidade, já que, do ponto de vista
convencional, só passaria a ser notícia aquilo que antes de ser passado pelo crivo
jornalístico, tivesse uma hierarquia de valor suficiente para merecer a atenção do
órgão. Com a premência do tempo e uma série de condições exteriores a conferir
valor àquilo que, por qualquer circunstância, chegue ao jornal (oficialização e o
prestígio social influindo nisso) fêz com que nos vários domínios em que se divide
a atividade humana, a informação não deixasse de poder receber a influência desse
subsídio.
11) INFORMAÇÃO BRUTA E INFORMAÇÃO TRANSFIGURADA
Os primórdios da atividade jornalística foram caracterizados por uma ênfase
apenas no jornal como processo puramente informativo. A informação era quase
um decalque dos fatos ou dos acontecimentos. O jornalista limitava-se a fazer
veicular os assuntos recebidos através dos canais informativos, a eles quase não
acrescentando nenhuma nota pessoal de interpretação. Esse tipo de jornal, de
cunho essencialmente provinciano, teve uma longa duração e suas peculiaridades
mais gerais subsistem em órgãos brasileiros e nos Estados, onde o jornalista ainda
não ganhou o seu status moderno de transfigurador de notícias ou de informação
como mera experiência bruta, isto é, sem passar pelo crivo de qualquer análise ou
reflexão.
Com o crescente desenvolvimento dos meios de comunicação, que passaram
a trazer para o homem comum, isto é, para o que os sociólogos chamam «massa
média», o mundo de elementos informativos a respeito dos mais diferentes setores
da vida; com uma curiosidade cada vez mais acentuada em todos os domínios,
provocada pela própria avidez com que diferentes setores vão emergindo no
processo histórico do nosso tempo e como a experiência de solidão, de tédio, ou
de conflitos psicológicos, tudo exigiu, cada vez mais, nos últimos tempos, isto:
que o tempo disponível, entre a sofreguidão ou nos intervalos de sofreguidão e do
viver diário, seja preenchido ou ocupado naturalmente por um tipo de informação
que não venha cair na monotonia de repetir o que já era do conhecimento público.
PESSOA DE MORAIS
Quer dizer, o jornal passou a enfrentar o problema de competir, inclusive
como empresa, com outros jornais, revistas ou órgãos de divulgação num mundo
onde uma avalancha de notícias e de informes passou a ser veiculada não apenas
numa caudal ou torrente, porém com a ânsia paralela de explorar os mais
diferentes terrenos da curiosidade. Tudo isso exigia do jornalista, em moldes
modernos, a substituição de uma atitude estática em face do jornal; ou seja, de um
mero veicula-dor de noticias transmitidas através das agências internacionais ou
do noticiário local, para exercitar agora, por essa necessidade imperiosa, os
poderes imaginativos e criadores.
O jornal passou então a incorporar em sua técnica um processo novo em que
alterava, sem falsear naturalmente a verdade, no sentido de transfigurar a
experiência bruta advinda de todas as fontes informativas, e fazer dessa
experiência, matéria que a sua inteligência, o seu poder criador de jornalista
mobilizava, dominava, manipulava no sentido de estabelecer processos
intelectuais, no jornalismo, até então inéditos. Processos caracterizados, antes de
mais nada, pelo poder agora do jornalista, de associar fatos, de combinar ideias; de
juntar ou de acrescentar à sua própria experiência pessoal, a dimensão nova dos
informes que vinham de todos os lados, tudo passando por um processo de
Seleção que se impunha como centro das novas tendências. Nos grandes centros
metropolitanos — e o Rio de Janeiro já é exemplo típico disto — desenvolveu-se,
aos poucos, um tipo de homem ou de intelectual e profissional capaz de revestir-se
da matéria do cotidiano ou das informações provenientes do cotidiano local ou
internacional no sentido de mobilizá-la, analisá-la, associá-la, em suma, a todo um
contexto de interrelações e experiências para, daí aparecer mudando todo o quadro
do jornalismo convencional. O caso do Rio é bem característico mesmo. Se no
domínio do ensaio científico, sociológico, essa capacidade de manejar com o
material e transfigurá-lo criadora-mente, através do processo de reflexão, exige
uma disponibilidade de tempo e lazeres que a vida cosmopolita quase não
comporta, no jornal a experiência urbana de uma metrópole como o Rio propiciou
ao jornalista isto: desenvolver os processos intelectivos, manipulando inclusive a
sua vivência ou a sua experiência acrescentadas a informações daqui e de fora
para, e a partir daí, desenvolver no jornalismo um processo da criatividade que faz
do jornalista profissional metropolitano uma espécie de pequeno ensaísta. Trata-
se, aqui, de um profissional capaz de tirar implicações dos próprios
acontecimentos, isto é, do próprio material informativo.
Naturalmente, a própria vida atual exigiria a formação de um tipo de
jornalista que, diante da matéria-informação, se portasse de maneira
completamente diferente do passado. E isso porque o grande público aparecia
agora ávido de um novo tipo de informação relativa precisamente ao dia-a-dia
como complementação daquela informão que recebia ou vinha recebendo
através de todos os instrumentos de divulgação da cultura intelectual. Sobretudo
pelo livro, pelas revistas,
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
ela televisão e pelo cinema. O que o caracterizava, nessa nova fase, era o fato de
ter, ao mesmo tempo, a capacidade de captar o novo, para isto precisando ainda o
jornalista de possuir um poder de seletivi-dade sobre o material que informava, e
também o poder de saber, dentre esse material, não apenas escolher aquilo que o
público mais solicitava como motivação, porém, de maneira a complementar o
que os outros meios técnicos divulgavam ou difundiam.
Ou seja, o jornal, em matéria informativa, passava a debruçar-se sobre o
cotidiano, porém, não separava ou não cindia esse cotidiano do conjunto dos
elementos que o próprio fluir da vida, em sua totalidade, fazia sugerir. Numa
reportagem, por exemplo, sobre políticos, digamos que começassem a eclipsar-se
ou a aparecer contrariamente, de maneira triunfal ou com êxito, a pura informação
de fatos concernentes a esse assunto teria de se complementar ou se complementa
no jornalismo moderno através de certas comparações e até análises ou reflexões
que incluem um tipo de saber inclusive universitário, muitas vezes sociológico,
trazido, porém em linguagem simples e clara, obje-tiva e direta para alcançar o
grande público.
111) A CIÊNCIA DA INFORMÁTICA E O JORNALISMO
A moderna ciência da informática, a quealudimos, penetra hoje em áreas
de toda uma estrutura concernente não apenas a um processo informativo, em si
mesmo, como relativas à relação da bipola-ridade existente entre o espectador e os
órgãos de informação; ou melhor, a estrutura complexa do processo informativo.
O mais importante por considerar dentro disso tudo é que a informação
veiculada, no caso, pelo jornal, se destinando a um público, se dirige a um tipo de
processo perceptivo que poderia ser analisado em dois aspectos básicos: o
primeiro, a percepção como estrutura individual, ou seja, o processo perceptivo
relativamente à informação, comportando nesse relacionamento uma gama
curiosa do próprio teor ou conteúdo daquilo que pretende informar. Assim, fala-
se, por exemplo, em Informática, ou seja, na moderna e recente teoria da infor-
mação, que constitui hoje uma ciência especializada de grande importância, no
conteúdo daquilo que representa a informação. Melhor diríamos, em sua estrutura
interna, quer dizer, na sua capacidade de trazer um volume dado de material
informativo. A esse respeito fala-se, por exemplo, em informação saturada ou em
processo informativo saturado. Trata-se daquele processo que traz ao perceptor,
isto é, àquele que percebe ou que é objeto de percepção, para o qual se dirige o
elemento informativo, um feixe ou volume tão alto e tão denso de informações
que a capacidade do receptor de permanecer autônomo ou com independência
diante dele, desaparece e esse receptor, incluindo os seus processos perceptivos
fica, por assim dizer, esmagado ou saturado
PESSOA DE MORAIS
por esse envolvimento excessivo de informação. O estudo da percepção individual
feito por especialistas, bem como as pesquisas concernentes à matéria, têm
revelado que o individuo possui uma cota ou limite, além do qual a informação ou
o volume informativo se torna inócuo ou nulo, pela incapacidade desse indivíduo
de apreender, com autonomia, uma taxa informativa maior do que a sua
capacidade de recebê-la. Trata-se, bem se vê, de um conceito eminentemente
abstrato, já que o assunto pode ser analisado, ou melhor, reanalisado, não apenas
levan-do-se em conta o indivíduo como abstração ou como unidade mais ou
menos abstrata, porém colocando-se esse indivíduo na moldura concreta de um
determinado contexto social ou dentro dos valores e das características que
constituem ou informam, por sua vez, esse próprio contexto .
Dentro dessas condições, o poder da assimilação útil da matéria vai depender
do estágio da educação da comunidade ou público a que se dirige o jornal; do seu
grau de motivação pelo tipo de matéria veiculada e do poder de discernir ou de
selecionar e até de apreender um dado volume informativo, como consequência,
inclusive, de um curto treino para assimilar conhecimentos, associar ideias ou
refletir sobre o assunto. O que evidentemente, varia muito e quando estudiosos da
Informática como Abraham Moles examinam o fenômeno, inclusive matemática e
quantitativamente, usando métodos naturalistas, incidem em erros ou em
simplificação; melhor diríamos, um tipo de simplismo intelectual que denuncia em
estudiosos desse tipo, a ausência paradoxal de maior informação científica a
respeito de problemas correlacionados com a cultura no sentido sociológico ou
antropológico da expressão. Quer dizer, dos valores ou dos elementos palpáveis e
concretos de que são constituídos os elementos do contexto social ou cultural
específico, sem os quais a teorização se torna matéria extremamente vaga.
De maneira geral, porém, o exame científico da informática e dos graus de
informação, incluindo o seu ponto máximo de entropia, ou seja, de saturação e, a
partir daí, a diminuição do seu teor informativo, através de diferentes níveis de
informação, culminando com as técnicas de baixo teor informativo e outras que
praticamente beiram à nulidade, tudo isso é matéria que se avizinha de uma
situação bastante importante no terreno da informática, com repercussão no
processo de comunicação e no próprio Jornalismo, pelo subsídio que traz de tudo,
e não poderia deixar de trazer.
IV) SENSORIALIDADE E INFORMAÇÃO
Toda essa digressão em torno da teoria da comunicação como ponto de
partida e, mais especificamente, sobre a informação tem hoje de relacionar-se a
outra dimensão do conhecimento humano que passou a ser questão da ordem do
dia, já que não existe informação sem o
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
sujeito perceptor e não existe um sujeito perceptor sem captar a matéria
informativa através de uma gama qualitativamente diferenciada de processos
sensoriais.
Dependendo do veículo de informação, a estrutura do processo informativo
ou melhor, os estímulos de que se compõe a própria informação não se dirigem
dentro de uma homogeneidade ou generalidade relativamente ao sujeito
perceptivo, incluindo seu particular e complexo mecanismo de reflexão.
O rádio, por exemplo, é um instrumento técnico de informação, cuia
natureza da mensagem tem, necessariamente, um conteúdo sonoro que se dirige,
por isso mesmo, para um tipo de percepção auditiva a apelar decisivamente para o
ouvido. Este, como é sabido, tem um poder associativo incomum, já que não
percebendo o campo visual, dimensão sobre a qual se habituou a perceber o
mundo, o próprio sujeito perceptivo, este tem de ampliar ou de dilatar essa faixa
informativa através da qual o processo lhe é comunicado, por meio de outras
formas de sensorialidade a que se acostumou no seu viver diário ou em sua
experiência comum. Assim, o fato de uma mensagem ser transmitida por via
sonora e ter o ouvido como órgão humano de percepção não isola, de maneira
nenhuma o processo, no mero mecanismo auditivo. Tal sentido auditivo é
completado interiormente, no sujeito que percebe, por um mecanismo em que êle,
de acordo com os condicionamentos da experiência da sociedade em que vive,
encaminha outras tantas dimensões da sensorialidade. Transforma ou alonga e
complementa esse tipo de experiência aparentemente apenas sonora, com todo o
repositório de imagens visuais com que se habituou ou se acostumou, num tipo de
sociedade como a nossa urbana, da atualidade que, a partir do livro impresso, do
cinema, do jornal, das revistas e da televisão, condicionou aquilo que os
psicólogos sociais chamam de personalidade básica, com uma representação, por
assim dizer, também visual do mundo.
Em povos como o do Brasil, de longa e sedimentada tradição oral em que a
maior parte da experiência de uma vida individualmente vivida foi, durante
séculos, transmitida na base do testemunho oral; das estórias, recordações,
evocações e reminiscências transmitidas das gerações anteriores para as mais
novas, de maneira a dar uma ênfase especial à memória; ao passado como
receptáculo dessa própria experiência; nessas sociedades — a nossa é exemplo
típico — que tiveram para sedimentá-la um longo e intenso processo histórico de
transmissão da experiência oral — essa oralidade como tradição incorporou-se, a
meu ver, aos sedimentos internos da personalidade. Isto operou um fenômeno até
agora pouco analisado ou quase não analisado que modifica, na teoria da
informação, o problema da sensorialidade como elemento autónomo para fazer do
instrumento de captação sensorial um processo extremamente complexo. Processo
em que um determinado conteúdo ou via de sensorialidade, passando pelo crivo
desse me-
PESSOA DE MORAIS
canismo inconsciente, pela presença também de inconscientes valores rurais e,
portanto, de tradição oral, alterou o que se vem pensando em relação à
sensorialidade na ciência informática. Fêz com que o brasileiro, por exemplo,
acostumado a ouvir rádio durante as últimas décadas com muita ênfase e já agora,
em toda parte, rádio de pilha ou que traz em toda parte, inclusive em seu itinerário
cotidiano, nas praças, ruas, ônibus e veículos de toda natureza; inclusive no seu
caminhar para o trabalho e às vezes no próprio trabalho, durante intervalos ou nos
momentos de menor atividade, tudo continuou como processo de especial enfoque
do som como instrumento e do ouvido como percepção. Da audição, em última
análise, como objeto aparente em que se diluiu o próprio processo.
Essa experiência auditiva em países de tradição oral como o Brasil fêz com
que a experiência sensorial de caráter visual, inclusive das letras ou dos textos
jornalísticos, fossem passadas por um processo em que a pessoa ao mesmo tempo
que lê o jornal, como que soletra, de si para si, ou faz reativar os seus processos
auditivos dentro de uma experiência apenas aparentemente visual. Caracterizaria o
fenômeno dizendo existir, por isso mesmo, no Brasil, uma espécie de ouvido
dentro do olho, pelo qual o brasileiro, na experiência visual, recompõe toda a sua
experiência auditiva, ao mesmo tempo que, na experiência auditiva, evoca ou
começa a desenvolver, em intensidade, um tipo de experiência visual que, a partir
da televisão ou do cinema, torna a fronteira da sensorialidade, em países como o
nosso, muito interpenetrada a ponto de modificar o que existe sobre o assunto na
teoria científica da informática, peculiar aos países dos centros da tecnologia
mundial.
V) JORNALISMO, INFORMÁTICA E OUTROS PROCESSOS DE
COMUNICAÇÕES
Caberia analisar, agora, já que passamos em revista ou estudamos os
problemas concernentes à percepção, ao sujeito perceptivo e, mais ainda, a esse
sujeito inserido num contexto sócio-cultural ou existencial concreto, como no caso
do Brasil, um assunto que tem sido tratado de maneira um tanto precária ou
abstratamente, quer pela teoria da comunicação, quer pela informática como
ciência mais recente, como efeito da incapacidade até agora para uma reflexão
menos abstratizante da matéria.
Falamos já em níveis do poder informativo, em saturação do informação; em
alto, médio e baixo teor informativo, com as suas correspondentes variações e
graus intermediários. Falamos, também, na relação entre esse processo
informativo, visto do ponto de vista do órgão técnico que transmite a mensagem
— rádio, jornal, televisão, etc, — e, com referência ao poder ou à capacidade do
sujeito perceptivo de se apropriar de uma dada quota desse material, selecionando-
a, através do que os seus valores sociais lhe propiciam como subsídio.
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
Examinemos, agora, dentro desse esquema de análise do maior ou menor
índice de informação contido no processo, que vai desde a saturação, a que já
aludimos, até o teor informativo mais baixo ou à nulidade da informação e
levemos em conta, nessas reflexões, outros elementos de acordo com a filosofia
ou a teoria com que tentamos reajustar a ciência informática aos quadros do
processo existencial e, mais especificamente, do processo existencial brasileiro.
Diz-se, por exemplo, que o rádio apela para o ouvido, e sendo este de natureza
extremamente associativa, desenvolveria mecanismos de imaginação que
completariam a mensagem, ou melhor, a estrutura da mensagem transmitida, que
chegaria ao sujeito perceptivo sob a influência do próprio processo de percepção
que, no caso, sofreria todo esse poder quase mágico e transfigurador, capaz de
ampliar processos imaginativos não vislumbrados à primeira vista. Sobre a
televisão, se tem dito, com frequência, ser um instrumento técnico de baixo teor
informativo já que, durante um segundo, cairia sobre o espectador um chuveiro
enorme de icrons que subiria à casa dos três milhões, dos quais êle selecionaria
apenas umas sessenta ou setenta unidades para formar a imagem. Esta seria,
assim, de baixo teor informativo, havendo entre a mensagem, caracterizada pelo
estímulo específico de caráter visual e a capacidade de mobilização desses
elementos, um estrangulamento a formar um cone que terminaria por afinar, cada
vez mais, na medida em que chega ao espectador.
A partir de tal conceituação técnica, pensadores como Marshall McLuhan
difundiram a teoria de que o sujeito perceptivo completaria a toda essa deficiência
por uma participação sua no processo, acrescentando êle, portanto, uma série de
disponibilidades valorativas suas. Já no cinema, que fornece, ao mesmo tempo,
pela velocidade em que se sucedem as cenas e por um tipo de periodicidade
sequencial tornada tão rápida, através, inclusive, de processos elétricos, a percep-
ção a tem na conta de um quadro sucessivo sem intervalo, numa movimentação
incessante. Acontece aqui, ainda, que, trazendo cada cena, no cinema, pelo alto
poder informativo que possui este instrumento técnico, um volume de dados
verdadeiramente fantásticos em várias dimensões no que concerne à côr, imagens,
símbolos, paisagens, sons, movimentos, figuras, pessoas, etc, tudo isso faria do
espectador uma espécie de felizardo, pronto para receber um tipo de mensagem
característica. Mensagem que, dentro de tal teoria, significava ser o espectador o
destinatário de caixotes inteiros de experiências completadas e acabadas, dotadas
de alto poder ou teor informativo, a tal ponto que a participação perceptiva no
processo não teria o sentido da televisão. No caso presente, no cinema, essa
imagem de alto teor informativo propiciaria ao espectador receber um objeto já
encaixotado para êle. Já devidamente pronto para a sua assimilação, ou melhor,
para ser incorporado ao seu processo perceptivo. Fenômeno que faria o cinema
diferente da televisão, pelo fato de que aquele sendo um
PESSOA DE MORAIS
entendimento do mundo; como na relação entre o sujeito cognoscente e o mundo,
este deixou de ser entidade morta ou vazia e abstrata, tão ao gosto dos teóricos de
comunicação e dos cientistas da informática, para ser uma relação viva e até diria,
agônicamente existencial, tudo o que se tem dito merece ser pensado novamente
em outros têrmos, já que, ao meu ver, tanto a teoria da comunicação como a
informática como ciência serviram muito mais para sugerir conclusões a que não
chegaram nem poderiam chegar, por essas limitações, do que trazer explicações
esclarecedoras, dignas de crédito e prontas para serem assimiladas apenas como
produto de consumo. Além da motivação que depende, obviamente, do conteúdo
da mensagem em relação ao espectador, e de uma teia ou de um mundo de
associações entre esse. espectador e o receptáculo interno de sua memória ou de
suas reminiscências. Tudo isso dependendo, ainda, da ênfase em que esse processo
de psicologia individual sofre, através da complementação da psicologia social,
esta informando a respeito daquelas motivações que além, por exemplo, de
acidentalmente individuais, são ainda marcadas por uma força especial, pelas
próprias motivações coletivas e sociais. O próprio estado psicológico do
espectador num momento dado, suas tensões, seus conflitos ou a relação entre a
própria subjetividade interior e seu mundo psicológico e a tensão externa da vida
psicológica social, tornam a relação sujeito-meio informativo, infinitamente supe-
rior ao que têm pensado até agora, quer os teóricos da teoria da comunicação como
ciência, quer os estudiosos da informática como ramo especializado e mais recente
dessa própria teoria.
O fato é que toda essa matéria, que envolve assunto de natureza
essencialmente informativa, tem de passar pelo crivo de novas reflexões em que os
sociólogos, os psicólogos sociais, os antropólogos, associando os conhecimentos
da teoria da comunicação e da informática, terão de reestruturar uma nova visão
filosófica do mundo em que esses elementos passem por outro processo de
reflexão ou por outras implicações. O próprio jornalismo, como processo
eminentemente visual no seu sentido mais ostensivo, já que dentro da teoria que
estamos expondo não existe um processo específico ou uma mensagem
determinada, porém antes, o que não vemos condicionando muito mais do que o
que vemos; do que nós pensamos (diríamos aqui melhor, o que nós vislumbramos)
tudo isso torna inclusive, no jornalismo, a matéria da informática ou da
informação suscetível de outras considerações. Em qualquer dos aspectos em que
se configura o jornal em moldes modernos ou atuais — reportagem, pesquisa,
sueltos, editoriais, crónicas, etc, etc. —, o problema da informação em relação ao
sujeito perceptivo, se, de um lado, se relaciona a todo o instrumental tecnológico
mobilizado pela informática, do outro, não pode deixar de levar necessariamente
em conta o tipo de percepção de uma dada comunidade para a qual se dirige o
jornal, de acordo com a personalidade básica, incluindo os seus valores concretos
e a natureza genérica dos seus processos psicológicos, se quer ter uma ideia mais
nítida de problemas como saturação
JORNALISMO, COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
da informação, nível informativo médio, baixo teor informativo ou até
originalidade da informação. Sobre este último aspecto o problema dessa
originalidade é bastante elucidativo do que estamos dizendo. Varia muito com a
natureza receptiva concreta do público a que está dirigida a informação.
Acontece até com frequência que em países onde a ascendência da idade
jovem é muito alta, como no Brasil, onde essa visão do mundo, do elemento mais
jovem vai mudando rapidamente a sua perspectiva, num tipo ou contexto de
sociedade que passa aceleradamente da visão rural do mundo para uma visão
crescentemente urbana, porém numa visão urbana permeada paradoxalmente de
ruralismo, nas camadas, sobretudo, do inconsciente, tudo isso provoca
consequências e implicações científicas da maior importância. Faz com que, por
exemplo, o jovem, num mundo vivencial concreto que está emergindo, em países
como o nosso, tenha os processos perceptivos enfatizados para certos assuntos,
certas motivações, certo tipo até de concentração intelectual ou de ausência de
concentração; certo grau de disciplina mental e até de carência dessa disciplina,
tudo fazendo de conceitos como saturação, maior ou menor teor informativo, mais
acentuado ou menos acentuado poder de Seleção ou de captação da experiência
contida na mensagem, depender desse conjunto de valores em flutuação, do qual
vai, por sua vez, depender agora uma teoria da informática. Porém uma teoria da
informática retirada da pura abstração em que foi colocada até agora e situada não
apenas no contexto existencial e sócio-cultural da era tecnológica dos nossos dias,
porém ainda inserida no próprio processo brasileiro, dentro do qual precisa ser
pensada tanto a teoria da comunicação, de uma maneira geral, como a teoria da
informática e informação, de um modo especial. Clama-se, aqui, por uma redução
fenomenológica, ou seja, por uma redução das ideias ou dos conceitos emitidos,
quer em teoria da comunicação, quer em informática, ao mundo que caracteriza a
nossa experiência como cultura. Porémo como cultura isolada ou situada num
plano apenas nacional. Como cultura entrelaçada ou combinada com a experiência
cosmopolita ou internacional mais ampla, incluindo processos que a moderna
tecnologia desenvolveu, sem deixar, contudo, de fazer passar tal processo pelo
crivo de nossa maneira brasileira de sentir, analisar, classificar e abordar a
experiência.
O que tem acontecido com a Sociologia de nível apenas abstrato, algumas
vezes descendo à terra dos homens, pelo esforço concreto de um pensamento
sociológico brasileiro que venho desenvolvendo, por exemplo em meus estudos
ou trabalhos. Cabe, pois, aqui analisar a informação sem deixar de conhecer a
problemática técnica do assunto veiculado nos livros internacionais, tudo passado,
porém, por um crivo de reflexão menos mecanicista. Como conjectura filosófica,
a partir da técnica e como essa técnica, através dos meios de comunicação mudou
a experiência, tanto a teoria da comunicação como a informá-
PESSOA DE MORAIS
tica seguem caminho promissor. O que falta, o aspecto de que se ressentem essas
dimensões tão atuais do conhecimento, é precisamente superar a equação
eminentemente mecanicista, homem-mensagem-instru-mento de comunicação,
substituída por uma teoria científica que englobe não o homem individualmente
considerado num sentido tardiamente kanteano, substituído ao menos por uma
visão que já Gasset proclamou em axioma que se tornou clássico, através de sua
conhecida proposição: «yo soy yo e mi circunstancia».
Sim, há circunstâncias do mundo palpável em tôrno de nós, com os seus
valores tão específicos quanto móveis ou em transição. Esta é a nova informação
que paradoxalmente deve, já agora, informar a própria teoria da informação. E já é
tempo.
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA
AMAZÓNIA (*)
CATHARINA VERGOLINO DIAS
BORDAR o tema regionalização na Amazônia Brasileira é, antes de mais nada,
examinar as dificuldades que o assunto apresenta. É analisar o que impede,
sobre grande parte deste território, a existência de regiões geográficas, no sentido
exato do termo e o que autoriza, apenas, a identificação de áreas espaciais
fracamente diferenciadas e desmaiadas no tempo. De fato, a Amazónia apresenta,
de um lado, a extrema raridade de regiões de massa (1), que sejam homogêneas
ou articuladas em tôrno de uma autêntica rede urbana; por outro lado, há ainda a
considerar o fenômeno das frentes pioneiras, que dá à geografia regional um
conteúdo tão original ao Brasil, pois se trata de identificar um espaço, não por sua
massa interna, mas pelas características de seu modelo.
A mais importante das razões que entravam a regionalização na Amazónia é,
sem dúvida, a rarefação demográfica. Os 2.600.000 habitantes (Censo de 1960),
deste espaço, confundido aqui com a Região Norte, tal qual a delimitada pelo
Conselho Nacional de Geografia, em 1941, asseguram-lhe apenas uma ocupação
ínfima de 0,7 habitantes/km2. Desta anemia de homens, que faz da Amazónia a
terra menos povoada dos Trópicos Úmidos, GOUROU (1949) demonstrou muito
bem que as condições naturais não poderiam ser consideradas como responsáveis.
É evidente, portanto, que ela resulta de condições demográficas difíceis, que
tiveram de ser enfrentadas pela colonização portuguesa no Brasil.
Em um fecho explicativo, queríamos lembrar o seguinte fato: a Amazónia
foi, até a década de 50, um imenso «isolat» geográfico, isto é, cercada de
fronteiras mortas, que não exerciam praticamente ne-
(*) Trabalho apresentado,, como membro participante, no Colóquio sobre Regio-
nalizaçâo do Brasil, realizado em Bordeaux, França, em Novembro de 1968. Só foi
possível a elaboração deste trabalho, pela cooperação que nos foi dada pelo geógrafo
francês Jean GALLAIS. Tradução para o português pela autora.
(1) Consideramos regiões de massa,, aquelas que se caracterizam por densidades
demográficas consideráveis; assim, na Amazônia, as áreas a leste da cidade de Belém
(Bragantina e Salgado) e o baixo Tocantins, incluem-se no nosso conceito, uma vez que, as
densidades demográficas rurais são superiores às da média brasileira (9 hab/km2, em 1960).
A
CATHARINA VERGOLINO DIAS
nhuma animação periférica. Seria o mesmo que imaginarmos as planícies centrais
da América do Norte sem a progressão da fronteira, no sentido norte-americano.
Os campos do Rio Branco (no Território Federal de Roraima) constituem-se, por
assim dizer, um fim de mundo, abertos para a Guiana por um medíocre tráfico
clandestino de gado, ouro e diamante, ligados ao resto da Amazônia por um
caminho, intransitável no inverno, e que se continua por um rio navegável apenas
no período das chuvas. Do lado oeste, as fronteiras colombianas e peruanas foram,
durante muito tempo, hostis. Para garanti-las, o Governo Brasileiro praticou uma
política de cobertura, por uma colonização militar. Do lado sul, a Região Centro-
Oeste é um imenso «no manºs land» separando a Amazónia do Brasil útil. É este
afastamento a única explicação lógica que encontramos para justificar as relações
prolongadas com Lisboa e a recusa de romper com os laços coloniais, em 1822.
Este isolamento de natureza geográfica, da Região Norte, foi acentuado pela
posição de menor importância que a região sempre teve, e ainda tem, no quadro
político brasileiro. Um só exemplo: o contraste entre o subpovoamento amazônico
e as fortes concentrações humanas do Nordeste açucareiro, no século XVII,
resultou, em parte, de uma decisão politica: a conquista do Maranhão e da
embocadura do Amazonas teve, como causa primeira, a proteção das exportações
de açúcar do Nordeste, ameaçadas pela pirataria quer de ingleses, quer de
franceses, quer por holandeses. Tanto assim, que foi interditado por parte da Coroa
Portuguesa o desenvolvimento da cultura canavieira do baixo Tocantins, uma vez
que, para a política lusitana, a produção do Nordeste açucareiro era suficiente. (C.
VERGOLINO DIAS, 1968).
Verificamos, ainda, que o período amazônico na História econômica do
Brasil, se reduziu aos trinta anos de prosperidade do Ciclo da Borracha, e, mesmo
assim, secundário na economia de nosso país. Sabemos o que dele restou,
enquanto se pode falar de um século XVII nordestino e baiano, de um século
XVIII mineiro e de séculos XIX e XX fluminense e paulista.
Enfim a Amazónia teve uma evolução econômica à margem da brasileira e
constituiu-se, sempre, um estado dentro do grande estado brasileiro .
A esta anemia demográfica quantitativa se juntam traços de uma organização
econômica e social, que concorrem para fazer do homem rural da Amazónia um
nómade. Este desenraizamento induz à nostalgia, a um sentimento de saudade,
latente em todo nordestino que está na região, seja êle um carvoeiro da Bragantina,
um seringalista da bacia do Purus, um garimpeiro de cassiterita em Rondônia ou
um juteiro nas várzeas do Amazonas. Do desenraizamento ao nomadismo, a
fronteira é rapidamente ultrapassada.
O amazônida é um nómade, porque, geralmente, êle é um homem do rio. A
ligeira embarcação — a montaria — está sempre pronta para
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
transportá-lo com sua família e alguns pertences para mais longe. Recomeçar
tudo, em qualquer ribanceira desconhecida e anônima, em um barraco de palha,
construído sobre estacas é, pois, um acontecimento comum na região do rio. O
próprio rio é um universo para o caboclo. Seus mitos, surgidos da pré-história
indígena, dão ao amazônida o «fris-son» religioso, que liga o homem a um meio
de poderosas atrações: a mãe-d'água, a bela sereia que encanta e arrasta o caboclo
para as profundezas do rio; o boto, êste peixe-viril, que fecunda as virgens ca-
boclas, no decorrer das festas do santo padroeiro dos povoados; a cobra grande,
que impossibilita a profanação dos igarapés. Entretanto, o rio possibilita, também,
a vida, fornecendo-lhe o peixe, que impede que o caboclo morra de fome ou
abrindo-lhe ao infinito a única frente possível de ataque à floresta. A humanização
desta passa, assim, pelo rio e este não apresenta limitações ao caboclo. Nada, por
isso, encontramos na Amazónia, que lembre a organização espacial tão precisa de
certos rios tropicais.
Esta franquia fluvial autoriza a fluidez humana, que um conjunto de
incitações econômicas só fizeram aprofundar.
Estas incitações econômicas se exercem no quadro de uma organização
latifundiária pouco propícia à sedentarização. A fazenda de Marajó pode, aqui,
ser considerada como o «village» o é, nos velhos países de civilização rural, como
a Europa, a índia ou a África sudanêsa, isto é, como uma unidade elementar de
organização espacial ? Certamente que não. O vaqueiro do Marajó tem um patrão.
Ê e não possui um pedaço de terra seu. E que dizer da grande maioria dos
caboclos que não têm nem terra, nem patrão permanente e cuja existência consiste
em percorrer um certo itinerário, de latifúndio em latifúndio? Seringueiro durante
o «fabrico da borracha», castanheiro na safra da castanha, ju-teiro no período do
corte da juta ou colono dos japoneses, quando da colheita da pimenta-do-reino. E
há aqueles que se vão refugiar nos bairros periféricos de Porto Velho, no período
do «inverno», pela impossibilidade da garimpagem da cassiterita. Tal é a rotação
habitual, em seu princípio, mas cuja localização varia, segundo o esgotamento de
tal floresta, a parada de navegação sobre tal rio ou a cheia inesperada de outro, e a
atração sem futuro de uma capital.
Salientando que o sistema latifundiário não facilita uma organização humana
precisa, sustentáculo básico do modelado regiões-paisagens, não o fixemos,
entretanto, como causa única. A dimensão da propriedade não pode, de modo
algum, ser citada como a única responsável. Assim, os latifúndios do Marajó se
esfacelam, atualmente, através do sistema da partilha sucessória. A pecuária,
continuando a ser extensiva e submetida a deslocamentos sincronizados com a
inundação dos campos, torna a propriedade, assim reduzida, economicamente
inexplorável; expulsa os vaqueiros para as minas do Amapá ou marginaliza-se
ainda mais, transformando-os em ladrões de gado, no lago Arari. O estreitamento
da malha fundiária não enraizou, portanto, o caboclo. Outro
CATHARINA VERGOLINO DIAS
exemplo: a «velha região de Belém» (
2
) foi ocupada através de um sistema de
colonização agrícola, baseado em pequenas propriedades. Atualmente, as únicas
áreas, que nela não se esvaziam pelo êxodo rural, são as que pertencem à
burguesia de Belém; organizaram-se sítios que fornecem à capital paraense frutos,
farinha de mandioca, carvão vegetal, e mais recentemente há o plantio da pimenta-
do-reino. Nestes sítios os caboclos ganham um salário fixo. O sistema assalariado
criou, assim, condições de segurança, em oposição ao sistema de aviamento.
Entretanto, para aqueles caboclos que não possuem um poder aquisitivo que lhes
possibilite aderir à cultura da pimenta-do-reino, o esgotamento dos solos os
impele para as franjas pioneiras da Pará-Maranhão, da Belém-Brasília, de Capitão
Poço ou para as cercanias de Belém.
O sistema de aviamento, isto é, o empréstimo a ser pago posteriormente com
a produção, reduz o caboclo a uma situação de dívida progressiva, da qual êle só
se liberta com a fuga da propriedade. As responsabilidades do sistema de
aviamento na fluidez do amazônida são reais, e agem de maneira mais profunda,
mais progressiva e mais rápida que o latifúndio.
Quanto à própria natureza das incitações econômicas, às quais a Amazónia
foi submetida, é pouco favorável à criação de regiões geográficas. É verdade que
uma economia de coleta vegetal não exclui, obrigatoriamente, uma certa
regionalização da paisagem e o" estreitamento dos fluxos comerciais em torno de
uma armadura urbana. Eia pode mesmo facilitá-la, contanto que haja,
naturalmente ou pela ação do homem, um povoamento vegetal denso de valor
comercial. Para nos limitarmos a um exemplo brasileiro: os babaçuais do
Maranhão.
Entretanto, sabemos que estas identificações regionais, baseadas sobre um
produto de coleta comercial, se diluem quando o ciclo especulativo, que os
envolveu, cessa. Em oposição, portanto, às construções regionais dos velhos
países fundados em equilíbrios internos longos, são projeções evanescentes de
uma economia mundial em aceleração. Acrescentamos ainda que na Amazónia a
exploração desenfreada foi suficiente para desalojar uma superfície de seus frutos,
antes mesmo que ela se estabelecesse como região, quando o mercado mundial
ficou como «arrendador» da coleta comercial. Tanto assim que, no decorrer das
últimas décadas do século XIX, os agricultores do baixo Tocantins, no momento
em que se esgotaram os seringais desta região, migraram para o oeste do Marajó,
depois para os afluentes da Amazónia inferoir e média: Jari, Jingu, Tapajós,
Madeira, e, enfim, para o Purus, Tefé, Juruá e Javari, em um êxodo permanente,
que se alimentava por si próprio.
(2) Em "UNE RÊGION SOUS-PEUPLÊE: L'Amazonie Brésilienne" — (Stras-bour, 1968)
consideramos como Pays de Belém as áreas seguintes: o antigo pays de Belém (o baixo Tocantins, o
baixo Guamá, o Marajó e o Salgado), o velho pays de Belém (A Bragantina) e o novo pays de Belém (A
Guajarina). Ao contrário, portanto, de GOURROU, que estudou como pays de Belém apenas a
Bragantina e o Salgado.
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
Tais fatos, todos conhecem, mas revivê-los não é inútil, para se compreender
o que na Amazônia leva ao esfacelamento em vez de reagrupamento, à fluidez
antes que a uma organização estabilizada do espaço.
Entretanto, estes mesmos fatos engendraram um esboço de regionalização,
que comumente, na Amazônia, segue a trilogia seguinte:
Uma região de drenagem econômica, cuja exploração depende do
mercado externo.
Uma cidade que comanda a organização desta drenagem, servindo de
ligação com o mercado de venda e cuja população vive, direta ou
indiretamente, desta comercialização.
Um anel suburbano de abastecimento.
Tal esquema encontramos nas mais diversas escalas. Em pequena escala: a
castanha-do-pará da bacia do Itacaiunas é concentrada em Marabá, pequena
cidade de 9.000 habitantes, localizada na confluência daquele rio com o
Tocantins. Para alimentar parcialmente a população urbana se constituiu um anel
agropastoril, cuja atividade se liga à cidade. Esta área de abastecimento urbano se
desenvolve na margem esquerda da embocadura do Itacaiunas e em uma cultura
de vazante nas «praias» do Tocantins, durante a estiagem deste rio. Outro
exemplo: a cidade de Rio Branco, capital do Estado do Acre. Cidade que surgiu
como um entreposto da borracha e, mais tarde, da castanha-do-pará, produzidas na
bacia do rio Acre. Em torno deste núcleo urbano se desenvolve uma área de
colónias agropastoris, cuja produção visa o abastecimento da capital acreana, e, se
ela se encontra em expansão, resulta da importância crescente da cidade, como
sede administrativa.
Em média escala, Manaus controlou, durante anos. a drenagem da Amazónia
ocidental, graças à notável rede hidrográfica que a cidade comanda, da
confluência do Negro com o Amazonas. O anel de abastecimento — os paranás
Careiro-Cambixe da Eva, do Barroso, o furo de Paracuuba, as terras firmes da
Jarauacá, as margens das rodovias Manaus-Boa Vista e Manaus-Itacoatiara .—
constitui uma região geográfica, no forte sentido da palavra. Habitat linear
cerrado no paraná do Cambixe e no furo de Paracuuba, Habitat linear disperso
nos paranás da Eva e do Barroso, Habitat tiro de chumbo nas terras firmes. Estru-
tura fundiária em pequenas propriedades. Equilíbrio agropastoril, pela cultura da
mandioca (para obtenção de farinha), do arroz, do feijão, do milho, em terras
firmes. Sítios fruteiros e uma pecuária leiteira (esta última nos paranás do
Cambixe e do Barroso), cuja originalidade é a de estar localizada exclusivamente
nas várzeas, únicos exemplos que conhecemos na Amazónia.
Enfim, em maior escala, Belém tem como região de drenagem a própria
Amazónia. O anel de abastecimento foi primeiramente estudado por GOUROU (11-
1949), que o chamou de «Pays de Belém», considerando, porém, apenas a
Bragantina. Pesquisas que realizamos, re-
CATHARINA VERGOLINO DIAS
centemente (VALVERDE O. e C. VERGOLINO DIAS, 1967), permitiram identificar
neste «arrière-pays» diversas regiões econômicas e humanas, fortemente
diferenciadas. Análises mais acuradas feitas, posteriormente, (C. VERGOLINO
DIAS, 1968), nos possibilitaram uma concepção mais ampla e mais complexa
sobre o anel de abastecimento da capital da Amazônia. Baseada no próprio
conceito que envolve a expressão francesa pays (de evolução histórica),
consideramos o pays de Belém constituído de várias regiões distintas e integradas
umas às outras, que se organizaram em torno de Belém e atendendo a uma
determinada fase desta cidade. Assim, o antigo pays de Belém foi o primeiro a se
organizar, por ser facilmente ligado a Belém, por todo um sistema de embarcações
fluviais. Até o século XIX, a região assim constituída era suficiente para atender
às necessidades de abastecimento da capital paraense. A partir da segunda metade
daquele século, a cidade passou por uma nova fase de crescimento, decorrente da
importância internacional que ganhou seu porto; este crescimento urbano se
acentuou, através das primeiras décadas do século XX, consequência do êxodo da
população das áreas de coleta da borracha mergulhadas na crise socioeconômica,
fruto da débacle do produto-rei nos mercados internacionais. E, em função deste
crescimento desordenado, o Pays de Belém se expandiu em direção a leste deste
centro urbano, através de um sistema de colonização, empreendido pelo Governo
do Estado do Pará. A construção da ferrovia Belém-Bragança tornou-se
indispensável para que a produção atingisse, com maiores facilidades, o centro
consumidor. Finalmente, a partir dos anos de 50, novo crescimento urbano, nova
expansão do pays de Belém- agora na direção sudeste da cidade, tendo como eixos
as rodovias Pará-Maranhão, e mais recentemente a Belém-Brasília. Distinguimos,
portanto, não apenas as fases de crescimento da capital do Estado do Pará e as
fases de evolução do seu pays, como podemos diferenciar um antigo, um velho e
um novo «pays». Os dois primeiros, em crise sócio-econômica e empobrecidos; é
verdade que o desenvolvimento da cultura da malva e da pimenta-do-reino veio
equilibrar a exclusiva e esgotante cultura da mandioca, a extração da lenha e do
carvão vegetal. Finalmente o último, em franca expansão, se caracteriza não
apenas por uma cultura extensiva da malva, mas, também, pelo estabelecimento de
invernadas, onde o sistema pastoril em muito difere do adotado em Marajó ou nos
campos do Rio Branco, e uma cultura intensiva da pimenta-do-reino.
A organização espacial, realizada pelas cidades da Amazónia, admite de fato
uma necessária desproporção entre os dois tipos de extensão: o anel suburbano de
abastecimento é necessariamente limitado, pelo medíocre consumo de uma
população urbana de baixo nível de vida e o espaço de drenagem é logicamente
imenso, pois sua exploração é extensiva. Em moldes de geografia regional, a
cidade organizou bem seu «pays», mas este permanece exíguo e a frente pioneira
que o limita é mediocre-mente dinâmica. Tal é a característica que encontramos
em todas as cidades da Amazónia, havendo, talvez, pequena exceção em
Belém.
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
Este esquema geral de articulação espacial, que acima esboçamos, - uma
decorrência da diversidade grandiosa da Amazônia, mas uma diversidade que
permite visualizar espaços econômicos diferenciados. Queremos com isto dizer:
regiões econômicas em embrião.
Para atingir tal objetivo, basta não considerar os limites municipais
estaduais, lançar mão de outros elementos reais, e não artificiais como os
primeiros, tais como: densidades demográficas rurais corrigidas (ou sejam
habitantes por Km2 habitado), evolução demográfica rural entre 1950 e 1960;
mobilidade da população rural (migrações sazonais e definitivas). valor da
produção extrativista (vegetal ou mineral) e do rebanho bovino, para cada
município. Muito embora a consideração do valor do gado distorça, em muitos
casos o valor da produção, ela dá possibilidade de definir as áreas pastoris mais
importantes. Como elemento de análise, no jogo de todos estes elementos,
servimo-nos do conhecimento direto que temos da Amazônia, através das
pesquisas de campo.
Assim, em uma Amazônia de extrativismo vegetal se individualizam regiões
de pecuária extensiva, caracterizada pela depressão demográfica; outras áreas
pastoris aparecem em franca expansão. Uma Amazônia de mineração, outra,
agropastoril, encerrando algumas ilhotas essencialmente agrícolas.
Tais aspectos podem ser assim esquematizados:
1. A região de extrativismo vegetal, ocupando a maior área da Amazônia.
Localiza-se nos vales médios e inferiores do Javari, Juruá, Tefé, afluentes da
margem direita do Madeira, bacias do Xingu e do Negro, vales médios e
superiores do Nhamundá, Trombetas, Paru, Jari. Correspondem a regiões
fracamente povoadas, tanto assim que o Censo Demográfico de 1950 já acusava
apenas 19,1% da população ativa da Amazônia se dedicando a atividades
extrativas. Nela identificamos as mais baixas densidades demográficas rurais
corrigidas, predominando as de menos de 0,5 hab/km2 habitado. Apenas em torno
das sedes municipais aparecem densidades de população de 1 habitante por km2
habitado. Dedicando-se ao extrativismo da borracha, da castanha-do-pará, da
sorva, da batata, da coquirana, do pau-rosa... a população rural se caracteriza por
uma extrema mobilidade no espaço: as migrações sazonais são uma constante. Por
outro lado, a instabilidade do preço dos produtos provenientes do extrativismo
vegetal, a falência da navegação fluvial, o isolamento, a falta de escolas e de
hospitais, constituem as causas mais profundas do êxodo rural. São, portanto,
áreas em depressão demográfica, pois o aumento vegetativo da população não foi
suficiente para superar a emigração, bem evidenciada no Censo de 1960. A
consequência da fuga do homem da região do extrativismo vegetal reflete-se na
queda continua da produção extrativista no PIB regional: somente no período
1953 a 1962, ela desceu de 20,6% a 11,3%. Decrescerá ainda mais, entre
1962/1968, pois o êxodo rural destas regiões cada vez se acentua: «Os médios
vales do Purus e do
CATHARINA VERGOLINO DIAS
Juruá estão «vazios» declarou-nos, em Manaus, em julho de 1968, um funcionário
da Inspetoria Regional de Estatística, recém-chegado daquelas regiões. É preciso
esclarecer que esta migração não se faz diretamente para um grande centro urbano
(no caso, Manaus), como sempre se afirma. A característica deste êxodo é o de
realizar-se por' etapas: primeiro para uma área rural mais promissora, depois para
uma pequena cidade e, finalmente, para Manaus, Santarém ou Belém.
2. Regiões tradicionais de pecuária: localizam-se nos campos do Rio
Branco (Território Federal de Roraima) e na parte oriental da Ilha do Marajó.
Sendo uma criação de gado em moldes extensivos, exige pouca mão-de-obra, mas,
mesmo assim, constitui-se em áreas de êxodo rural. Por um lado, é uma crise que
advém do isolamento, da fraqueza de investimento dos proprietários, que, apesar
das subvenções governamentais, não têm possibilidade de melhorar as pastagens,
adquirir reprodutores, vacinar o gado... É o caso de Roraima. Em Marajó, como
anteriormente já frisamos, é o aparecimento do minifúndio, aliado ao
tradicionalismo da grande maioria dos fazendeiros, que lhes veda qualquer
renovação.
3. Regiões de predominância do extrativismo mineral: no Amapá (o
manganês, a cassiterita, a columbita), em Rondônia (a cassiterita), em Roraima
(ouro e diamantes), no médio Tapajós (ouro) . São áreas de baixa densidade
demográfica rural, apresentando problemas bem diferentes.
A Serra do Navio, no Amapá, constitui-se em uma área de atração para o
homem rural, pois o trabalho é assalariado e sob a proteção das leis trabalhistas.
Entretanto, é um mercado saturado de mão-de-obra, e a população que para lá
migra (proveniente, principalmente, de outras áreas do Território e de Marajó)
acaba por ir engrossar a população marginal de Macapá. Justifica-se, portanto, o
crescimento desordenado e anômalo desta cidade: em 1950, 10.000 habitantes, em
1960, 25.000 habitantes. A criação artificial de um «terciário» administrativo, e,
em menor escala, educacional e hospitalar, não pode absorver o afluxo crescente
de população.
Rondônia também é uma área de atração. Todavia, a exploração da cassiterita
é, predominantemente, sazonal como a da borracha. Não houve qualquer
modificação na estrutura sócio-econômica regional. O garimpeiro de cassiterita é
mais miserável que o seringueiro, porque é mais explorado. Continua a área de
extração da cassiterita povoada pela mesma população flutuante dos seringais:
durante o verão dedica-se à garimpagem e, no inverno, vegeta nos bairros
periféricos e miseráveis de Porto Velho. Daí a importância de que se reveste a
rodovia Brasília-Acre: ela vem possibilitando o estabelecimento de parte desta
população marginal, como posseiros, às margens da rodovia.
A garimpagem do ouro no médio Tapajós atrai o homem rural das áreas de
extração da borracha e da madeira, e, também, a do baixopla-
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
nalto agrícola de Santarém. É uma atividade sazonal (também durante o verão),
em moldes primitivos, que vem possbilitando o enriquecimento de poucos e a
miséria de muitos dos caboclos, subalimen-tados, minados pelo álcool e pelas
doenças.
Finalmente na bacia do Tepequem (Roraima), uma garimpagem rudimentar
do ouro e do diamante não é suficiente para absorver a mão-de-obra rural, liberada
pela pecuária em crise, mesmo escassa como é. Estes dois fatores explicam o
crescimento assustador da cidade de Boa Vista, que, em 1960, possuía uma
população urbana correspondente a 51,4% da total do Território.
Estas regiões do extrativismo mineral não trouxeram soluções para o
problema crucial do mundo rural da Amazônia: o desenvolvimento. Em muitos
casos agravou-se ainda mais.
4. Regiões Agropastoris:
É por seu caráter agropastoril, em particular, que se distingue a seção média
do vale do Amazonas (trecho Manacapuru-Monte Alegre), cujo interesse é duplo.
Primeiro, porque estamos em presença de uma das raras regiões geográficas da
Amazônia. A ocupação humana é apreciável: 50.000 habitantes (sem se considerar
a população urbana), sobre uma superfície aproximada de 10.500 km2,
asseguram-lhe uma densidade demográfica rural de cerca de 47 habitantes/km2. A
utilização da terra, extensiva nas terras firmes (da mandioca, do feijão, do arroz e
da juta para fornecimento de sementes), é balanceada pela exploração das várzeas
com uma cultura rica (a da juta, para obtenção da fibra) e pela criação de gado. A
articulação urbana é bastante vigorosa, em torno de dois centros urbanos bem
afirmados: Manaus e Santarém. A região possui elementos de uma sã prosperidade
e o futuro mais promissor da Amazônia. Nela se realiza a união entre as terras
firmes e as várzeas. Possui manchas de solos férteis, mesmo no baixo-p'a-nalto: os
provenientes da decomposição dos diques de rochas basálticas e os de terra preta.
Ela dá acesso às jazidas de calcário do Tapajós, de ferro do Jatapu e da maior
jazida de salgema do Brasil. Tem possibilidade de se ligar diretamente ao Sudeste
Brasileiro, através da rodovia Santarém-Cuiabá. libertando-se, assim, da
dependência da metrópole da Amazônia. Ela deseja, mesmo, a criação do Estado
do Tapajós, do qual Santarém reivindica ser a capital.
O segundo interesse geográfico do médio vale reside no problema que
levanta sua elaboração. Por que esta relativa condensação humana, que se
interrompe para jusante (embocaduras do Jari e do Jingu), com o aparecimento de
uma seção fracamente povoada? É a predominância das várzeas baixas, inundadas
durante vários meses do ano, só possibilitando o aproveitamento das campinas,
para uma criação de gado extensiva e com a transhumância constante. Muito
recentemente, é verdade, assiste-se a uma invasão lenta da cultura de juta, que
vem ganhando expressão econômica devido às necessidades dos mercados de
CATHARINA VERGOLINO DIAS
Belém e de Santarém. As terras firmes, portanto, aí, se afastam muito da calha do
Amazonas e os núcleos urbanos que porventura nela se estabeleceram, não
tiveram a mesma expressão funcional que os localizados no eixo econômico da
região. Sempre foram pequenos centros estocadores da produção extrativa sem
comandarem a vida do grande vale. A única explicação que encontramos é esta: o
contrário, poder-se-ia dificilmente invocar, em escala do grande conjunto regional,
a ação periférica povoadora de uma grande cidade, exercendo sua drenagem
comercial sobre uma imensa hinterlândia. Ora, Manaus vivia, até bem pouco
tempo, da coleta comercial da Amazônia Ocidental e suas necessidades eram
asseguradas pelo «pays» de Manaus. Santarém e as três outras cidades de mais de
5.000 habitantes (Monte Alegre, Alenquer e Óbidos) têm sua ação de drenagem
muito limitada, e seu papel se restringe precisamente à área agrícola que as cerca.
Da trilogia — região, cidade e anel de abastecimento — passamos para o
equilíbrio dualista clássico das regiões agrícolas: uma cidade-mercado para uma
área agrícola vizinha. A história destas cidades confirma uma diferença, quando
comparadas a Belém e a Manaus. Aquelas cidades são, em sua origem, missões
religiosas e foram escolhidas para tal finalidade justamente porque eram uma
região relativamente povoada pelos indígenas. Que a presença destes
estabelecimentos reforçasse posteriormente o povoamento, para ela atraindo
outras tribos, é quase indiscutível, muito embora não nos assegure a antiguidade
indígena desta conden-área agrícola vizinha. A história destas cidades confirma
uma herança longínqua e indireta de uma infiltração indígena mais afirmada.
Procurar a causa primeira deste fato seria nos lançar na hipótese de maiores
facilidades de vida que encontrariam os primeiros habitantes da Amazônia, na
calha do grande-rio. O que nos leva a considerar assim é o fato de se encontrarem
justamente próximo à calha do Amazonas as mais numerosas áreas de terras
pretas. Aí as terras firmes colocavam as tabas a salvo das enchentes, sem contudo
ficarem os indígenas impossibilitados de utilizar o rio.
A região agropastoril comandada por Belém, já esquematizamos mais acima.
É a mais importante da Amazônia. Sobre 184.809 km2 (ou sejam 5,1% da
superfície da Região Norte e 15% da do Estado do Pará) vivem 40% da população
de toda a região e cerca de 70% da do Pará. Possui a melhor rede rodoviária da
Amazônia, dominada atualmente pela rodovia Belém-Brasília. As mais
consideráveis densidades demográficas rurais nela se localizam, atingindo a perto
de 60 hab/km2 habitado. É fácil prever suas consequências: a sua participação na
produção paraense é muito expressiva: 99,20% de pimenta-do-reino, 94,88% de
fibra de malva, 73,84% de mandioca, 72,72% de arroz, 94,55% de cana de açúcar,
no ano de 1967 (dados fornecidos pelo IDESP — Belém).
Fora destas regiões agropastoris, fortemente povoadas (a de Belém e a do
Médio Amazonas), é bem o súbito desenvolvimento da criação de gado. através
das de coleta vegetal cu de mata, que se individualizam,
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
economicamente, regiões novas da Amazônia. Sobre o traçado das grandes
rodovias — a Pará-Maranhão, a Belém-Brasília e a Brasilianos — ao longo dos
rios da Amazônia Ocidental (principalmente em torno das cidades acreanas), no
vale médio do Tocantins e do Araguaia, respondendo à necessidade dos núcleos
urbanos, a pecuária progride, completamente desconhecida da geografia da
Amazônia.
Esta evolução, a mais importante da Amazônia, relega para o terreno dos
mitos, uma pretensa fraqueza intransponível e definitiva dos Trópicos Úmidos:
queremos dizer, sua impossibilidade de manter um rebanho bovino importante.
Há formação de pastagens, através do planalto do jaraguá, do co-lonião e do
colónia; uma introdução, em escala muito mais acentuada. do gado Guzerath, Gyr,
Nellore e Holandês; a distribuição de ração suplementar na alimentação do
rebanho; uma vacinação sistemática. Estamos, pois, em face de um sistema
pastoril que, embora extensivo, já apresenta uma série de renovações, motivo pelo
qual, o classificamos, como sistema pastoril extensivo melhorado. Por outro lado,
as relações de trabalho são outras: não mais o sistema de sorteio ou de aviamento,
mas o regime assalariado. São, portanto, áreas onde a estrutura socioeconômica
arcaica foi substituída por outra.
É interessante verificar que, enquanto as antigas áreas pastoris estão em
crise, em tradicionais áreas de extrativismo e de mata, o progresso da pecuária é
rápido.
Vários fatores contribuem para o aparecimento deste aspecto novo. Em
primeiro lugar, estas renovações na pecuária exigem, por um lado, um
investimento de capital considerável e, por outro, uma renovação de mentalidade.
No primeiro caso, notamos que os seringalistas e os proprietários de
castanhais respondem à instabilidade dos preços dos produtos do extrativismo
vegetal, à falência dos transportes fluviais, à retração das grandes praças
comerciais em financiar as safras, ao êxodo dos caboclos das áreas de
extrativismo, voltando-se para a pecuária. É bem verdade que, sobretudo no Acre
e na bacia do Itacaiunas. havia já um ambiente preparado para esta transformação.
Sendo o transporte das pelas de borracha e da castanha, das colocações dos
caboclos para a sede das propriedades, realizado por tropas de burro, houve
necessidade da abertura de pequenas pastagens para a troca das tropas. Ampliá-las
e melhorá-las foi apenas questão do aparecimento de elementos vantajosos; entre
estes, a valorização crescente do gado e as facilidades de empréstimos financeiros
proporcionados pelo Banco da Amazônia (BASA).que incentiva o
desenvolvimento da pecuária na Amazônia. Não esqueçamos, entretanto, que
todas estas transformações ocorridas na Região Norte, nas áreas de predominância
tradicional do extrativismo vegetal, atingem a classe reduzida dos proprietários,
únicos capazes de aderir a elas.
CATHARINA VERGOLINO DIAS
Em segundo lugar há toda uma mudança de mentalidade, principalmente na
nova geração, dos proprietários, mais abertos às renovações. Dai a superioridade
que já se verifica em Paragominas (atualmente a mais importante área de criação
de gado do Estado do Pará), e, em torno da cidade de Rio Branco (capital do
Acre).
Acrescentemos a este fator, a atração que as terras devolutas, localizadas em
áreas de mata, valorizadas pela abertura das rodovias, representam para mineiros,
paulistas, goianos e gaúchos, que investem capitais na abertura de invernadas, na
formação de fazendas de gado, quer nas áreas percorridas pela Belém-Brasília,
quer nas da Brasília-Acre.
A reabilitação, portanto, de coleta vegetal, considerada como preliminar para
um possível desenvolvimento regional, se diluiria ante estas asserções acima
expostas.
Mas, precisamente esta evolução para uma pecuária de mercado próspero, só
é possível se fôr assegurado o transporte pesado, das áreas de criação para os
lugares de consumo. Este problema dos transportes permite-nos induzir o tema
essencial da regionalização da Amazônia. Em resumo: uma articulação de espaço,
que foi baseada exclusivamente sobre o rio, é atravessada pela rodovia federal.
Quando se observa, a tentativa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia de
divisão em Regiões Homogêneas (1968), é bem a trama fluvial que domina. Sobre
30 regiões, 18 têm como suporte um rio ou uma seção de rio. A escolha do suporte
fluvial parece-nos perfeitamente razoável, por causa do ca-ráter aberto do meio,
que sublinhamos a todo instante. Quando um caboclo diz: «o Rio Negro é pobre»,
«o Madeira ê rico», «o Punis é o Rio da borracha», .. . exprime com isto um
julgamento da natureza regional, que o geógrafo sempre desprezou. Para nos
limitarmos apenas à classificação muito esquemática, os rios de água branca, os de
água clara e os de água preta são os eixos de meios muito diferentes. Os primeiros
têm vales com hidrografia muito ramificada, com largas extensões de várzeas. São
regiões de recursos variados; a pesca é produtiva; o meio, no conjunto, é acolhedor
ao homem. Os rios de água clara, ao contrário, têm um largo canal calibrado,
cortando o baixo planalto de terras firmes. São vias de penetração fácil, ao longo
das quais as cidades se podem estabelecer mais facilmente que nas várzeas. Em
compensação, estes vales dos rios de água clara não oferecem a mesma variedade
de recursos naturais. Quanto aos rios de água preta, seu leito é mal limitado pela
floresta de igapó e não facilita a instalação de uma população ribeirinha numerosa.
Sobre esta trilogia de base. interferem outras condições, propriamente
fluviais. Em primeiro lugar, a navegabilidade permanente ou sazonal. As
corredeiras e o vigor mais ou menos incômodo das estiagens limitam estreitamente
as seções úteis dos rios, quando não há estradas, o que é o caso frequente. Uma
Amazônia acessível se destaca, então, do grande conjunto regional. O ritmo das
cheias é, igualmente uma variável, que se modifica após cada confluência.
Acrescentemos a estas condições fluviais, as variedades climáticas: A Amazônia
sem
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
um período seco recobre uma superfície aproximada de apenas 7% do conjunto
amazônico. Por toda a parte, há um período seco variável entre 1 a 5 meses de
duração; as consequências das secas prolongadas são bastante frequentes: a de
1965, foi uma das causas da escassez da farinha de mandioca em Belém; a de
1966, pôs a perder as primeiras colheitas de juta, no médio vale do Amazonas,
deixando os caboclos à mercê da especulação da venda de outras sementes. É
preciso lembrar estas variedades regionais, que apagam o quadro clássico de uma
Amazônia mergulhada em um banho de vapor permanente. Acrescentemos às
características imediatas desta hinterlândia a riqueza da floresta em espaços úteis,
por exemplo, e concebe-se que qualquer rio, cada secção de rio, seja um quadro
diferenciado.
A análise regional poderia aí se exercer, apoiando-se, por exemplo, na
distribuição espacial da população rural. Assim, em 1960, grupamentos de 50.000
habitantes a 60.000 habitantes, tais como no Madeira, no Acre, no Alto Juruá, são
suficientes para justificar, como o que realizamos na bacia do Acre em agosto de
1968. Que dizer, então, de uma área de povoamento que tem como eixo o
Solimões, a jusante de Manacapuru, para onde converge a população que foge do
extrati-vismo vegetal ? Simetricamente, uma monografia regional do vale do alto
e médio rio Negro, permitiria elaborar um inventário sobre as causas de um tal
estado de subpovoamento e elaborar as bases de uma política regional de sua
ocupação.
Mas, eis que esta trama fluvial começa a ser cortada por estradas de
rodagem, que se constituem suporte de regiões novas. As consequências de
abertura destes novos eixos são evidentes. A Amazônia deixa de ser um isolat
geográfico com fronteiras mortas: ela se volta para o sul, em busca de uma
interligação mais estreita com o polo de desenvolvimento do Brasil. Aos
poucos, ela se nacionaliza.
Uma Amazônia útil, organizada de leste para oeste, em torno da rede
hidrográfica do Grande-Rio e comandada, à sua maneira, por uma única
metrópole, Belém, vai sendo substituída progressivamente por várias unidades de
articulação meridiana. De súbito, a Amazônia deixa de ser um conjunto
longamente homogêneo, obedecendo a uma incitação econômica de conjunto. A
evolução particular que está caracterizando a Amazônia tem como eixo a Pará-
Maranhão, a Belém-Brasília e a Brasília-Acre, por serem mais abertas à animação
vinda diretamente de regiões econômicas em expansão, do sul do país. Que futuro
espera a Amazônia média, quando estiver aberta a rodovia Santarém-Cuiabá ?
Outra questão não menos importante: fluvial, o amazônida é um nômade. O
reagrupamento progressivo dos homens em torno das estradas pesará nesta
mobilidade ? Garanti-lo, seria ignorar as debandadas humanas que a abertura de
uma rodovia causa no Brasil. Entretanto, as rodovias amazônicas cortam áreas de
mata, diluindo ou mesmo apagando a articulação do espaço povoado, do qual os
rios eram a trama essencial. A diferenciação regional supõe, porém, uma certa
constância,
CATHARINA VERGOLINO DIAS
uma certa estabilidade. Dificilmente se «regionaliza» o Sahara nômade.
Constância e estabilidade de ocupação dependem de uma economia assegurada e
as de uma sociedade menos indiferente às atribulações dos indivíduos. Ocupante é
aquele que se apossa, aproveita e tem um certo espaço; é apenas um posseiro.
Habitante é aquele que fica em um lugar fixo. é o proprietário. As dificuldades de
regionalização na Amazônia resultam do que separa estas duas definições do
homem no espaço. Isto quer dizer que as regiões perderão seu aspecto fracamente
diferenciado e evanescente no tempo, quando os caboclos tiverem acesso à pro-
priedade da terra, pois será o primeiro passo para seu enraizamento.
Estas poucas observações sobre a organização do espaço
amazônico reconduzem, aqui, a regionalização a objetivos bem
modestos. É lógico que a Amazônia não o é, porque nunca o foi, um
imenso espaço indiferenciado. Assim a classificam aqueles que, sem
conhecer o mundo tropical úmido, lançam-se na aventura de classificá-
la, utilizando-se de esquemas aplicados em regiões desenvolvidas,
forçando a Amazônia a adap-tar-se aos únicos métodos que conhecem.
A monotonia de uma paisagem, assim, como os contrastes entre meios
naturais diferenciados, são largamente subjetivos. Para técnicos
europeus ou mesmo para muitos do Sudeste Brasileiro, a Amazônia é
uniforme. Procuramos demonstrar que o caboclo amazônico reconhece
áreas diferentes de aspecto e amplitude. Os planejamentos têm que ser
feitos para atender o homem da região. Nestas condições, a divisão da
Amazônia em regiões homogéneas é possível. Quanto a exigir que ela
possua espaços polarizados, é ignorar antes de mais nada, que as áreas
subdesenvolvidas que constituem o Terceiro Mundo, em tudo diferem
dos países industrializados. Quanto à articulação do espaço amazônico
em «regiões polarizadas», poderíamos mesmo afirmar que ela o é, no
sentido de que um caboclo, perdido no Alto Purus, depende de certos
bens de consumo de Belém. Mas, esta dependência, esta polarização,
não é menor do que a que emana de Nova Iorque ,de Londres ou
mesmo de São Paulo, cujas bolsas cotam o preço de castanha-do-pará,
da sorva, da batata, da borracha... É por isto que, no estado atual das
coisas, tentar uma regionalização funcional, sobre o conjunto da
Amazônia, não tem qualquer sentido. A nosso ver, entretanto, a
Geografia Regional sempre dispensou e dispensa ainda tal processo,
porque ela possui um método de análise aplicável, quer o espaço seja
polarizado, quer não! Ela deve se salvaguardar, assim, desta verdadeira
folia tecnocrata de cortar e recortar o mundo, de maneira matemática,
sem levar em consideração as peculiaridades inerentes a cada região.
Em seu contexto, a regionalização só é possível tendo como base os
estudos de geografia regional, e não no sentido que se lhe quer
impingir.
CONTEÚDO E LIMITES DA REGIONALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
BIBLIOGRAFIA
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Mer, nº5, Janvier-Mars. Pp. 1-13.
"Le Pays de Belém"
Bull. de la Société Belge d'Etudes Géographiques. Pp.
383/427.
_STERNBERG, H. O. 1956 — «A água e o homem na várzea do Careiro»,
Tese à cátedra de Geografia do Brasil, da Faculdade Na-
cional de Filosofia da Universidade do Brasil. Rio de
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_ VALVERDE, O e VERGOLINO DIAS, C. 1967 — «A Rodovia Belém-Brasilia».
Rio de Janeiro. IBGE-CNG. 350 páginas.
- VERGOLINO DIAS, C. — «Maracentro comercial de castanha».
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Revista Brasileira de Geografia. Ano XXI, n° 4, pp.
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1968 — «Une région sous-peuplée.- LAmazonie Brésilienn
(Jalons pour une étude de population) .
Tese de Doutoramento em Geografia Tropical. Julho.
Strasburg. França (Inédito no Brasil).
AFRÂNIO PEIXOTO: BÀIANIDADE E
LUSITANIDADE (*)
LEANDRO TOCANTINS
ACIÊNCIA dos que ouvem, é o que peço, desde logo. Porque, falar sobre
Afrânio Peixoto, motivo que nos reúne, é preciso, antes, entre-termo-nos na
ideia do homem cordial, expressão criada por Ribeiro Couto para definir uma das
características da civilização brasileira. Expressão que depois serviu a interessante
debate inetlectual entre Cassiano Ricardo e Sérgio Buarque de Holanda, lúcidos
analistas da vida brasileira, ganhando, assim, novo tonus o conceito de homem
cordial.
Importa saber que a teoria tem seus fundamentos mergulhados nas raízes da
formação brasileira. O idealismo sentimental do português, somando-se à
bondade natural do índio, é uma das equações formuladas pelos sociólogos, que
encontraram o resultado: homem cordial brasileiro. Esta e outras tentativas de
aplicação de tipologias sociais à vida brasileira se sucedem: críticas daqui,
contestações dali. Mas o fato é que a realidade do país entra pelos olhos da cara.
No Brasil aprecia-se a conciliação. Portanto, o homem cordial é componente
importante na sociedade brasileira. Regra geral que, é claro, tem suas exceções.
Não importa que o sociólogo Durkheim nos diga ser o temperamento
coletivo ou individual coisa eminentemente complexa, que não pode ser traduzida
numa simples fórmula.
Ora bem, os exemplos da História não são convincentes para extrairmos uma
súmula generalizada do caráter nacional? Nem se pede apreciação rígida e nem se
deseja fórmula perfeita e acabada. Reconhecemos os meandros da natureza
humana. Sabemos que a sociologia não pode apresentar resultados de ciência
exata. Isto é tão curial como a fórmula química da água.
Mas, às vezes, é preciso repetir verdades repetidas. Diante de circunstâncias
como esta, por exemplo: acabo de ler, em livro de edição recente no Brasil, o
trabalho do professor norte-americano Henry Keith,
(*) Conferência pronunciada nos Paços do Concelho de Viana de Castelo, em 8-1-
1971, por ocasião da entrega da Biblioteca «Afrânio Peixoto», oferta do governo brasileiro
àquela cidade.
P
LEANDRO TOCANTINS
com o seguinte título: «A tradição não-violenta na História do Brasil: mito que
precisa ser demolido?».
A interrogação já demonstra alguma dúvida da parte do autor, que procura
incutir ideia de tradição de violência na História brasileira. Não entro no sutil
debate que envolve o verdadeiro sentido de violência. O Professor Keith
vagamente nos adverte: não confundir violência com derramamento de sangue.
Mas o seu comentador, Joseph Love, apresenta várias formas de violência,
inclusive a violência política, em que há assassinato de algum homem público, e a
violência apolítica, o crime comum.
Falta à maioria dos estudiosos norte-americanos uma certa sutileza para
sentir e compreender fenômenos da vida brasileira. A fórmula do Professor
Joseph Love parece que foi colhida na experiência da própria sociedade norte-
americana. E a teoria do Professor Keith afigura-se generalização um tanto
forçada de fenômenos típicos da vida de seu país.
Pois se considerarmos a violência em seu verdadeiro sentido, o Brasil não
está alinhado entre os países de nítida tradição violenta, como os Estados Unidos.
A grande República do Norte para libertar os seus escravos teve de se empenhar
numa guerra civil. O estadista que construiu a paz entre as duas partes desavindas
da nação e concedeu liberdade aos escravos, foi assassinado. Houve, durante largo
período de sua História, massacres de índios. Vários Presidentes da República e
homens públicos ilustres pereceram de morte violenta. O fenômeno urbano do
gangsterismo. As sociedades secretas tipo Ku-Klux-Klan. A ferocidade das lutas
raciais. O sangrento extermínio de pessoas pacíficas; como no caso Sharon Tate.
Esse complexo de violência está, felizmente, distante da sociedade brasileira.
Passamos, é claro, por fases de violência, naturais na vida dos povos. Nunca,
porém, no grau de intensidade que se observa em outras partes do mundo. O
próprio Professor Henry Keith cita oportuna consideração de Sílvio Romero: «O
que é melhor: uma nação uniforme, morta, congelada, ou uma vivaz e múltipla em
sua expressão?».
Quando se fala em tradição de «não-violência» na História do Brasil, quer-se
generalizar fato social que apenas é uma tendência e não uma constante
irredutível. E mesmo seria estultice prescrever regra fixa para qualquer fenômeno
que dependa de reações humanas.
No entanto, podemos tirar certas ilações da experiência que o Brasil vive há
mais de quatrocentos anos.
Porque o país não enveredou, nunca, pelo caminho da luta sangrenta, do ódio
racial, da violência, vamos acentuar, violência com derramamento de sangue,
salvo em episódios isolados que se contam nos dedos?
Ora, sabe-se que apesar das arremetidas de energia com que se houve o
português na conquista da terra, êle foi o menos cruel dos con-
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
quistadores. No sistema latifundiário-escravocrata, que se estabeleceu no Brasil,
os senhores da Casa-Grande revelaram-se mais humanos que os seus semelhantes
nas Antilhas e no sul dos Estados Unidos.
As próprias arremetidas de energia que nos têm cabido realizar se atenuam
com o ritmo, vamos dizer de conciliação, antes que de colisão. Tivemos, sim,
nossas violências, a História se encarrega de defini-las. A última delas, a
Revolução de 1932, eclodida em São Paulo, por idealismo político: o retorno do
país ao regime constitucional. Tivemos violências brancas: os golpes de Estado de
10 de novembro de 1937, de 29 de outubro de 1945, e o movimento de 31 de
março de 1964, quando o povo das ruas e as Forças Armadas se reuniram para
derrubar um governo incapaz.
O que expressa, porém, a média do caráter nacional é o espírito de
conciliação. Assim, parece-me correta a advertência de José Honório Rodrigues:
«História cruenta e incruenta se alternam no processo histórico brasileiro, embora
seja correto e justo afirmar que os exemplos de conciliação predominam».
Dois exemplos afloram de logo: em 1930, os revoltosos que vinham do Rio
Grande do Sul preparavam-se para enfrentar em São Paulo, no município de
Itararé, o grosso das forças governistas que ali iam oferecer resistência a Getúlio
Vargas e sua tropa. Acontece, porém, que no Rio de Janeiro, os militares — note-
se o espirito de conciliação — resolveram estabelecer uma Junta Governativa para
substituir o Presidente Washington Luís, e evitar inútil derramamento de sangue.
A notícia chega às duas partes, em iminente confronto, nos campos de
Itararé. Getúlio Vargas atinge o Rio de Janeiro, assume o poder, após uma
excursão terrestre praticamente pacífica. E ficou a frase: «a grande batalha de
Itararé... que não houve».
Quando em 1961, o Presidente da República renunciou, houve forte oposição
para que o Vice-Presidente não assumisse o posto, dadas as suas notórias
deficiências de homem público. O Governador do Rio Grande do Sul conseguiu
organizar um sistema de sustentação po~ lítico-militar para garantir a posse do
Vice-Presidente, que se encontrava em missão oficial no estrangeiro.
Era próximo o choque das duas facções: guerra civil à vista. Mais uma vez
predominou o espírito de conciliação. Os políticos e os militares encontraram a
fórmula de apaziguamento: o regime passaria a ser parlamentarista. Experiência
frustrada, os fatos posteriores confirmaram, mas no momento de crise aguda a
solução salvou o pais de uma luta com muito sangue.
Justifica-se o brasileiro dizer: «entre mortos e feridos, salvaram-se todos».
Nesse equilíbrio de antagonismos, de que nos fala Gilberto Freyre, está um
dos segredos da vida brasileira. Podemos estar de acordo com
LEANDRO TOCANTINS
Cassiano Ricardo: «Num equilíbrio de antagonismos, um antagonismo alimenta o
outro. Na mediação os antagonismos se destroem pacificamente». E pergunta
Cassiano: «Que faz um norte-americano quando assiste a uma briga? Aposta num
dos contendores. O brasileiro, ao contrário, intervém para apaziguar os ânimos».
É o «apartador de brigas», por excelência.
Quantas vezes, cada um de nós não tem intervindo, na ocasião em que
amigos, ou apenas gente, se desavêm e ameaçam chegar às vias de fato?
Intervenção pacificadora, dois ou três, até desconhecidos, se interpõem entre os
contendores, servindo de mediadores, apelando para o bom senso. É cena comum
que eu tenho presenciado, e às vezes acudido ao impulso apaziguador.
Criou-se, no Brasil, a interessante expressão para classificar o que
sociologicamente equivale à figura do conciliador entre todos os conflitos sociais,
ideológicos, econômicos. «A turma do deixa-disso», é expressão popular,
usadíssima em todo o país. Repito: frase sociologicamente válida para evidenciar
o abrandamento de nosso caráter, do homem cordial, do «homem síntese»
brasileiro, a que se refere Cassiano Ricardo. Será essa cordialidade uma das
melhores contribuições que o Brasil pode oferecer à Humanidade: acho que pensa
bem o autor de «Marcha para Oeste».
E que melhor exemplo se pode colher da tolerância e do espírito humanitário
do brasileiro em concordar na troca de prisioneiros, muitos deles assassinos,
assaltantes de bancos, agindo por conta da subversão comandada de fora do pais,
pela vida de inocentes diplomatas estrangeiros? Isto sucede em outros países,
onde lamentamos a morte de pacíficos agentes da diplomacia?
E se ocorrem, agora, fatos estranhos ao nosso modo de ser, é porque há uma
central estrangeira que procura, por intermédio de uma minoria insignificante,
impor métodos repudiados maciçamente pela população brasileira.
O tempo passa e eu estou ainda na introdução, com o perigo de tornar o
prólogo mais extenso do que o principal. É o caso de repetir o Braz Cubas de
Machado de Assis: «Grande cousa é haver recebido ao céu uma partícula de
sabedoria, o dom de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o
talento de concluir». Não, não posso dizer como o Braz Cubas, que tenho essa
«distinção psíquica». Um pouco de cada coisa, pode ser, mas, e o talento de
concluir? Tentarei, depois do emaranhado em que instintivamente me meti.
É hora de chegarmos a Afrânio Peixoto, à sua baianidade, à sua lusitanidade.
Baianidade justamente porque êle encarna aqueles atributos do coração que
tão bem resolvem problemas humanos. Continuemos a dizer coração, sim, dentro
do simbolismo tradicional, lírico, embora a
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
ciência moderna friamente nos venha esclarecer que o órgão humano mais
poetizado nada tem a ver com os nossos sentimentos. Todos estes são, afinal,
gerados no cérebro. Não há nenhum mal em conservar a doce ilusão do sursum
corda, que nenhuma graça teria se fosse «elevai os cérebros». O próprio Pascal já
havia dito que se deve valorizar, ao lado da inteligência, «aquilo que a voz do
povo chama coração».
Pois «coração» de corpo inteiro foi Afrânio Peixoto. O protótipo do «homem
cordial». Por isso, quando falamos em baianidade é para expressar um
desdobramento do «homem cordial».
De fato, a Bahia tem produzido mestres na ciência de viver. É conhecida,
mesmo, pela afabilidade de seu povo, pela doçura tropical de sua paisagem, pelas
formas redondas, jamais angulosas, da terra, das coisas, do espírito das gentes.
«Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados», do poema de
Gilberto Freyre, que em seu lirismo sociológico observa «as igrejas gordas» da
cidade:
Toda a Bahia é uma maternal cidade gorda como se dos
ventres empinados dos seus montes dos quais saíram
tantas cidades do Brasil inda outras estivessem pra
sair.»
Essa gordura, dando ideia de redondo, exprime sociologicamente a tendência
da amabilidade, da cordialidade. Já o espanhol Ganivet classificou os homens de
«bicudos» e de «redondos», sendo estes últimos possuidores de qualidades
especiais para contemporizar com os extremos e saber pôr em harmonia opiniões
contrárias. Como que descobridores da pedra filosofal do meio termo.
Classificação que equivale à do sociólogo Gilberto Freyre: a do homem apolíneo
e a do homem dionisíaco.
Redondo, dionisíaco, homem cordial, três expressões sociológicas similares,
é o que foi Afrânio Peixoto, em sua baianidade inata.
Baiano que deixa de ser assim, não é baiano. Vai ver que finge ser baiano,
sem ser. Tivemos e temos exemplos convincentes dessa baianidade. Que bom
exemplo, para iniciar, o do poeta Castro Alves, cheio de ardente sensualidade,
terno amante de Eugenia Câmara e igual amante da natureza baiano-brasileira e
das grandes causas humanas e sociais. Políticos como J.J. Seabra, na República
Velha, mestre na polidez, na maneira hábil, sutil, de conduzir homens e fatos,
artes e engenhos também de Otávio Mangabeira. Um Pedro Calmon, sucessor de
Afrânio Peixoto na universidade do bom viver, homem todo feito de cortesia,
temperamento adoçado pelos ares macios e oleosos da velha Bahia. Um António
Balbino, político flexível e brando, que construiu o magnífico e moderníssimo
Teatro Castro Alves que quase desaparece fatalmente nas chamas que o
devoraram às vésperas de inaugurar-se, tal o amor pela obra, pela ideia, e o
desespero diante do espetáculo
LEANDRO TOCANTINS
da perdição. Claro, que o teatro depois foi reconstruído. Um Luiz Viana Filho,
nome bastante conhecido em Portugal, e de quem o admirável Nuno Simões diz
possuir o dom de fazer amigos portugueses. Luiz Viana que transfere para o plano
da política — êle, grande Governador que tem sido — a técnica da brandura,
aliando-a ao ímpeto de realização. Um Adonias Filho, escritor de grandes méritos,
habilís-simo nas relações humanas. Um Antônio Carlos Magalhães, o maior
Prefeito que teve a cidade de Salvador, hoje eleito Governador do Estado: homem
tranquilo mas atuante, afável mas energicamente benévolo. Um Jorge Amado, que
sabe cultivar o seu solidarismo humano, êle que diz gozar do privilégio de nascer
baiano, êle que foi capaz de criar a baiana Gabriela, de «voz mansa, corpo
perfeito, cheiro de cravo, côr de canela». O aparentemente tímido, escondendo
baianidade, Caetano Veloso, em angular físico, mas redondo na alma, criador de
melodias que são um bater de corações ao compasso do lirismo tropical, Caetano
querendo «ver Irene dar a sua risada», ou na «alegria, alegria, caminhando contra
o vento, sem lenço, sem documento» (dionisicamen-te). O gordo, corpo e alma,
Dorival Caymi, dando-nos Marinas, acarajés, abarás, lagoas do Abaete, todos os
doces frutos de sua baianidade.
Sim, Senhores, a Bahia é pegajosa, rescende a princípios de Brasil, é cheia de
amavios, feitiços. Vamos dizer amazônicamente: Bahia de cantos de uirapuru. Se
todo o mundo quer «voltar pra Bahia», em desejo e em som, na música de Paulo
Diniz: não contente, êle, com o anúncio em português, grita em língua inglesa,
mais universal. Que todos ouçam e compreendam: «I dont want to stay here, I
want to go back to Bahia». A rima de here com Bahia soa em graça tropical.
Baianidade da pura. O homem cordial, por excelência.
Neste contexto é que se integra o escritor Afrânio Peixoto. Egresso do
simbolismo, não aderiu ao movimento modernista que historicamente se iniciou
com a Semana da Arte Moderna, em São Paulo, ano de 1922. Conservou-se
isolado em suas múltiplas atividades de espírito: romancista, ensaísta, crítico,
publicista, educador, conferencista, além de dedi-car-se à Psiquiatria, à Medicina
Legal, à Higiene, médico que era. Há um compêndio de Medicina Legal, de sua
autoria, que formou várias gerações de acadêmicos de Direito. Livro bem escrito,
leitura fácil de digerir, ainda hoje é manual complementar para os estudiosos da
matéria.
Afrânio Peixoto não se filiou a nenhuma escola literária, embora o seu livro
de estreia «Rosa Mística», aparecido em 1900, estivesse influenciado pelo
simbolismo. Depois, afasta-se completamente dessas raízes para cultivar gênero
muito próprio. Porque Afrânio Peixoto, refletindo tendência de seu espírito, torna-
se, por excelência, um romancista amável, por pouco diria um cronista diletante
da sociedade. Lúcia Miguel Pereira chegou a falar dele: «homem que não se deixa
empolgar nem possuir pelas ideias, e prefere brincar com elas, borboletar entre
todas, não se deixando fixar em nenhuma».
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
Não quer isto significar que Afrânio Peixoto deixe de apresentar obra
considerável de romancista. Até parece haver esquecimento em relação aos seus
livros. É hora de uma reedição de «Maria Bonita», o melhor romance de Afrânio,
o mais bem construído, e, por acaso, o único em que há tragédia. Reedição de sua
obra completa, inclusive suas «Memórias», que estão inéditas, com estudos
criticos, analisando tantos aspectos interessantes, ainda conservados na penumbra.
Tarefa em que poderia se empenhar o futuro Governador da Bahia, António
Carlos Magalhães, sensível, com odemonstra ser, aos valores culturais brasileiros.
Dentro de cinco anos, em 1976, Afrânio completa centenário de nascimento. O
Governo baiano precisa, desde logo, pensar nessa edição que poderia ser feita em
convênio com o Conselho Federal de Cultura, incluindo-a na bela «Coleção
Centenário».
Afrânio Peixoto autodefine-se homem cordial, bem ao jeito baiano, em certo
trecho do livro «Panorama da Literatura Brasileira». Aliás, marcou época, e até
hoje merece citação da crítica aquilo que êle pensava da literatura. Pensamento de
baianidade. Literatura «sorriso da sociedade» é típico de um espírito aberto às
formas suaves de convivência, à concepção dionisíaca da vida.
Importante é ouvir Afrânio: «A literatura é como sorriso da sociedade.
Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte
literária, com ficção e com poesia, as mais graciosas expressões da imaginação.
Se há apreensão ou sofrimento, o espírito se concentra, grave, preocupado, e,
então, histórias, ensaios morais e científicos, sociológicos e políticos são-lhe a
preferência imposta, pela utilidade imediata».
Afrânio Peixoto viu ou preferiu ver a sociedade feliz. Por isso, seus
romances não mergulham nos sentimentos mais profundos do homem. Quem os
escreve repudia as grandes dúvidas, livra-se das angústias da criação, afasta-se
dos problemas do homem numa sociedade — que era a sua — em começo de
industrialização, e portanto, de mudança. Nem se deixa envolver pelo canto de
sereia do Modernismo. Fechou olhos e ouvidos à pregação de seu colega de
Academia de Letras, o modernista Graça Aranha.
Isto, porém, não traduz atitude de repúdio ao moderno. Porque moderno,
espírito moderno, saudável, inovador, renovador, Afrânio o foi plenamente.
Mestre de modernidade, sim, do modernismo, não. Talvez por rejeitar aspectos
sistemáticos, excessivos, do modernismo demasiadamente escandaloso do
movimento paulista-carioca. Arcaico e reacionário, apático e conservador, isto
nunca se dirá de Afrânio Peixoto. Êle mesmo faria esta confidência: «Todos os
movimentos vanguardistas são úteis à Cultura (...) A negação feita pelos novos
é sempre uma atitude salutar, porque abre o debate, estabelece a controvérsia.
Gosto de todas as modas novas. Aquilo de que não gosto é da mesmice».
LEANDRO TOCANTINS
A confissão de «Literatura, sorriso da sociedade», configura o seu próprio
modo de ser. Daí os romances desse baiano serem temperados com visão um tanto
rósea da vida. Naqueles de ciclo urbano, como «A Esfinge», «Uma mulher como
as outras», «As razões do coração», essa tendência ainda é mais acentuada.
Situações demasiadamente fáceis, clima bem característico de «belle époque»:
uma sociedade que se move sem maiores preocupações. Detem-se nos pequeninos
conflitos, apraz-se no jogo do artificialismo de uma vida ainda pacata e
despreocupada que se vivia em cidades brasileiras nos primeiros vinte anos deste
século. Sociedade — isto é, parcela abastada da sociedade — que se sentia
estável, segura, e desfrutava de bem-estar.
A preocupação de captar realidades humanas sociais, políticas e econômicas,
ocupando o espírito de escritores brasileiros, sobretudo depois do impulso
fundamental dado pela Semana da Arte Moderna, não perpassa nem de leve nos
romances de Afrânio Peixoto.
Mesmo nos romances de ambientação rural, isto é, baiano-sertane-ja — a
linha de «Maria Bonita», «Fruta do Mato», «Bugrinha» — Afrânio Peixoto não
denota intenção de explorar ou retratar ângulos sociais, de exprimir realidades
brasileiras com o vigor de analista social. Em «Sinhàzinha», seu último romance,
aparecido em 1929, êle se inspira em José de Alencar para fazer reconstituição
histórica das lutas entre famílias do alto rio São Francisco. Reconstituição
romântica, sem querer alcançar o sentido épico e social que encontraria modelo
em «Os Sertões», de Euclides da Cunha, editado em 1902, causando grande
impacto na inteligência brasileira.
A época em que Afrânio Peixoto emerge com enorme prestígio nos meios
literários do Rio de Janeiro, seja, o princípio de século, já existia na Literatura
Brasileira três fortes expressões: a de Machado de Assis, com sua técnica analista,
a de Graça Aranha, com sua preocupação social, a de Afonso Arinos e de
Valdomiro Silveira, enveredando pelo caminho regionalista.
Lúcia Miguel Pereira observa que vários foram os romancistas e contistas
que «escapando de todas as correntes, embora em todas roçando, ficaram um
pouco sem eixo, sem direção». Afrânio Peixoto está entre eles.
Em 1928, um ano antes de «Sinhàzinha», aparece «A Bagaceira», o
extraordinário romance de José Américo de Almeida, que, segundo Oto Maria
Carpeaux, «abriu nova fase na história literária do Brasil». Romance engajado, no
que o termo significa sociologicamente de identificação do autor com os
problemas sociais do Nordeste. Tristão de Athayde acha «A Bagaceira» o livro
que Euclides da Cunha teria escrito se fosse romancista.
Nem os dramas do sertão baiano, vistos pela sensibilidade sociológica e
telúrica de Euclides da Cunha, nem o confronto agudamente
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
social entre os nordestinos do brejo e os do sertão, o cotejo de suas misérias,
sofrimentos e angústias, retratados por José Américo de Almeida, convenceram
Afrânio Peixoto a acompanhar as tendências literárias de seu tempo. Tranca-se no
ilusório da concepção superficial da literatura «sorriso da sociedade», que,
verdadeiramente, era a visão romântica de seu espírito, perante o mundo onde
vivia.
Se chega a admitir a apreensão, sofrimento na sociedade, quando (éle o diz),
o espírito é obrigado a concentrar-se, grave, cheio de preocupações, para produzir
histórias, ensaios sociológicos, que fiquem essas inquietações para os Euclides da
Cunha, os José Américo de Almeida. Para êle, Afrânio, o dionisíaco, o homem
cordial, não.
E, fato singular, Afrânio Peixoto vai substituir Euclides da Cunha
; dois temperamentos opostos, antecessor e sucessor — na Academia
Brasileira de Letras. No discurso de posse, produz uma das melhores páginas de
interpretação euclidiana. Mostra-se sensível ao drama de paisagens e de gentes
brasileiras. Exclama, em dado momento: «Senão depois dele (Euclides da Cunha)
exatamente em tempo, ao menos por causa dele, em intensidade e prestígio,
começamos a nos interessar, a pensar e até a escrever, dessas terras longadas do
Brasil, das gentes abandonadas do Brasil, que ainda trezentos anos depois de
reveladas ao mundo estão por serem descobertas e civilizadas». E conclui:
«Euclides da Cunha foi o primeiro bandeirante dessa entrada nova pela alma da
nacionalidade brasileira».
Parece que o encontro com a cadeira de Euclides da Cunha, na Academia,
abriu-lhe mais os olhos e a sensibilidade para o drama da civilização brasileira. Na
esteira de Euclides vai Afrânio penetrando em nosso complexo social. Depois do
discurso de recepção êle pronuncia duas excelentes conferências sobre a vida e a
obra do autor de «Os Sertões», que são ensaios penetrantes sobre vários aspectos
da realidade brasileira. Como prosseguiria, através dos tempos. Exemplos são os
discursos com que recebeu Oswaldo Cruz, Aloysio de Castro, Alcântara
Machado, o discurso na celebração do trigésimo aniversário da Academia Paulista
de Letras, que êle intitulou «Misticismos Nacionais», a «Oblação à Companhia de
Jesus», a «Terra e Gente do Brasil», discurso denso de ideias, substancial, fino,
com que tomou posse na Cadeira do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. E
outros trabalhos reunidos nos livros «Poeira de Estrada», «Pepitas», «Ramo de
Louro», «Missangas». Excelentes ensaios, lúcidas interpretações, que hoje lemos
com duplo prazer: o de nos integrarmos plenamente na claridade de suas ideias e
de nos deliciarmos com a fluência e a elegância de seu estilo, aliás, de verdadeiro
esteta.
A baianidade de Afrânio Peixoto foi uma ponte natural levando-o a
atravessar o Atlântico, à procura das raízes nacionais. Sua velha Bahia, maternal
nos agrados da Natureza e da paisagem urbana de Salvador, cheia de evocações
da história luso-brasileira, haveria de suge-rir-lhe a construção espiritual da ponte
baianidade-lusitanidade.
LEANDRO TOCANTINS
Era o encontro de se esperar da parte de um espírito romântico: o sentimento
foi sempre o seu ponto de partida. A inteligência êle empregava para interpretar
esse sentimento. Prova-o o título que deu ao livro de impressões de Portugal:
«Viagens na minha terra». Compro-va-se na explicação: «o título é original,
apesar de tomado ao livro encantador de Garrett. O possessivo, que reivindiquei, é
o meu galardão...»
As primeiras palavras do livro justificam, melhor, reafirmam o sentimento de
Afrânio: «Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa», êle repete o ditado, indo
buscar as sugestões da «História, tradição, realidade». Como a Bahia é a cidade-
mãe de cidades brasileiras, Afrânio Peixoto encontra as mesmas relações íntimas
de paisagem entre a velha Lusitânia e a nova Santa-Cruz, perguntando: «Não é o
Brasil, Rio, Bahia, São Paulo. .. apenas expansão e desenvolvimento, réplicas.
tréplicas de Portugal, Lisboa, Porto, Braga...
A ponte baianidade-lusitanidade, movimento pendular na vida de Afrânio
Peixoto, estava feita. Os ingredientes psico-sociais de um lado e de outro do
Atlântico foram a melhor matéria para essa construção no espírito do baiano. Em
Portugal êle encontra muitas de suas constantes espirituais. Há uma página escrita
pelo autor de «Maria Bonita», em que analisa a «tristeza lusitana», herdada por
nôs, e da qual «é flor fina de sentimento essa saudade, que outros sentem, mas
ninguém traduziu melhor em expressão».
É o que Afrânio Peixoto sentia: a saudade ancestral «daqueles bárbaros
naturais da Lusitânia, que viviam em terra áspera e pobre e foram obrigados a
aventuras e navegações», como êle próprio referiu. Já uma vez, quando escrevia
sobre Elisabeth Barret Browning e seus «Sonnets from the Portuguese», Afrânio,
com certo rompante, confes-sava-se: «português que sou no sangue, na alma, na
tradição, na memória, no coração». Saudade, admiração, inerência completaram a
ponte baianidade-lusitanidade.
O que realiza plenamente a lusitanidade de Afrânio Peixoto é a sua devoção
pelos estudos camonianos. Tudo o mais, viagens de todo--o-ano a Portugal,
atividades múltiplas no Brasil a favor da maior aproximação das duas pátrias, os
amigos portugueses fiéis, o trabalho cultural no Liceu Literário Português, no Rio
de Janeiro, tudo o mais responde ao estado de espírito romântico, permanência
nele. Qualidades que longe de serem desprezíveis, enobrecem a sua personalidade
e o impõem culturalmente como homem social, no sentido aristotélico.
Foi de Afrânio Peixoto que veio a ideia da criação, em Universidade
portuguesa, de uma cadeira de Estudos Camonianos, à maneira do que existe na
Florença de Dante Alighiere. Camonologia. réplica de Dantologia. É o idealizador
do novo campo de estudos quem nos explica: «a Camonologia ensinará língua,
artes, letras, ciências, moral, civismo, patriotismo, através do maior dos lusíadas e
através da maior obra épica e lírica do nosso património literário».
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
Zeferino de Oliveira, milionário português no Brasil, acolhe a ideia de seu
amigo com a prodigalidade e interesse de Príncipe da Renascença. Proporcionou
os recursos necessários à criação e funcionamento da cadeira de «Estudos
Camonianos», da Universidade de Lisboa, na qual pontificaram Hernâni Cidade e
Rebelo Gonçalves, duas grandes autoridades em Camonologia.
Animado pela ideia vitoriosa, Afrânio Peixoto por sua vez torna-se um
dedicado estudioso da obra do Poeta. Escreve conferências e ensaios, analisando
os Lusíadas e a personalidade de seu criador, reunidos, em 1947, no livro
«Ensaios Camonianos». Notáveis trabalhos de erudição, de crítica, de história, e
de bom gosto literário, que consagraram o autor ao lado dos bons camonianistas
portugueses.
Poderia até repetir o próprio Camões:
«Nem me [alta na vida honesto estudo Com longa
experiência misturado, Nem engenho, que aqui
vereis presente, Coisas que juntas se acham
raramente
Bem andou Afrânio Peixoto em concluir sua obra de romancista com
«Sinhàzinha», no ano de 1929. Porque, se lhe escaparam, na ficção, aqueles
aspectos fundamentais da sociedade brasileira que poderiam incorporar-se na saga
afraniana das Maria Bonitas, das Fruta dos Matos, das Bugrinhas, das Esfinges,
redimiu-se Afrânio dessa falta com a operosidade de homem de alta esfera:
autêntico polígrafo. Fase de sua vida que marca uma forte presença na cultura
nacional.
Não que sejam, por qualquer título, desmerecedores de atenção os romances
de Afrânio Peixoto, que se integram num contexto impressionista, bem a seu
modo, pois, filho do sertão baiano, permane-ceu-lhe no espírito certo misticismo
paisagístico. Ou, no dizer de João Ribeiro, a tendência goncourtiana de temperar a
realidade com o sentimento estético. Aliando isso com a análise de caracteres, so-
bretudo femininos: prova-o a galeria extensa de mulheres em suas estórias. Ao
contrário de desmerecerem, açulam a nossa sensibilidade. A ausência, neles, de
uma flama social, telúrica, em que os personagens liguem o seu destino ao da
sociedade na qual se integram, não invalida a obra de ficção do escritor baiano. A
crítica moderna, passada a limpo pelas melhores inteligências, empresta o justo
valor a essas criações, que, na verdade, são complexamente sociais e, portanto,
dignas de estudo compreensivo e nunca faccioso, negativo.
Os romances de Afrânio Peixoto, repletos de paisagens brasileiras, assim
como em tons e cores alencarianas, possuem inegável interesse para o estudo da
evolução da literatura brasileira, e em suas páginas, cheias de graça e de
comedimento estilístico, encontram-se trechos antológicos: valores, estes e
outros, que significam importân-
LEANDRO TOCANTINS
cia viva para a Cultura. Jamais artigos de museu para serem compulsados por
pesquisadores: a crítica brasileira considera o escritor baiano «o romancista mais
considerável do período entre 1910 e 1925».
Esta importância junta-se à sua visão humanística presente nos inumeráveis
ensaios, conferências, discursos, em seus trabalhos de educador e de cientista,
entre os quais o ainda atual «Clima e Saúde». Para definir o homem total Afrânio
Peixoto: o homem bom, o homem erudito, o homem bem-educado, o homem
cordial, o homem conversador, extraordinário conversador, o homem vivente, o
homem convivente, o homem educador, enfim o homem situado no seu meio, no
seu tempo, ao seu próprio modo.
Afrânio possuía aquele «divino instinto» a que êle se referia no discurso de
recepção no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, quando analisou a missão
educadora do Instituto e o culto da História e da Geografia.
Foi a ocasião de dizer: «A História é a consciência, em lenda, tradição,
vestígios do tempo, ruínas, monumentos, escritos, desse divino instinto do
homem, que além da perenidade da espécie conseguida pela geração, como aliás
toda a natureza, logrou para si, exclusivamente, a eternidade subjetiva da
memória».
Afrânio, em suas atividades plurais de intelectual, logrou, pelo «divino
instinto», a eternidade subjetiva de nossa memória: da memória do Brasil, da
memória de Portugal. Afirmando-se em atividades diversas de espírito, revelou-se,
na obra de ensaísta, de educador, de conferencista, de publicista, um brasileiro
integrado brasileiramente nos problemas de seu país. Quem o diz, diz com
persuasão. Afrânio, falando sobre «Os Sertões», de Euclides da Cunha, revela-se
de corpo inteiro: «Nasce então o «nacionalismo brasileiro», aponta a independên-
cia ou a aspiração de autonomia intelectual. Um livro os concretiza, a propósito de
tema nacional, em que entra a terra do Brasil, o coração mesmo profundo dele, o
sertão do Brasil, a mais legítima gente brasileira, porque nem é mais o íncola, nem
o africano, nem o reinol, porém o derivado deles, o brasileiro caldeado e no seu
esboço mais definido — o sertanejo; e esse livro se escreve em estilo brasileiro,
com a ênfase, a truculência, o excesso, a exuberância, o brilho, o arremesso, a
prodigalidade, a magnificência que nos caracterizam e talvez nos singularizem no
mundo».
Brasileiramente e com a necessária visão transnacional, que o inspirou na
construção da ponte baianidade-lusitanidade, vale dizer Brasil e Portugal
compreensivamente inter-relacionados e analisados. Na História e na Cultura.
Em passados, presentes e futuros.
Baianíssimo Afrânio Peixoto, sua prosa e sua maneira de ser evocam a terra
que Pêro Vaz de Caminha viu «em tal maneira graciosa», ares, «muitos bons ares,
frescos e temperados como os de Entre-Douro e Minho». A Bahia que Pêro Vaz
sentiu reflete-se na alma desse
AFRÂNIO PEIXOTO: BAIANIDADE E LUSITANIDADE
baiano pessoalmente encantador, da fauna humana dos baianos de baianidade.
Leonídio Ribeiro, médico e amigo do autor de «Ensaios Camonianos», certa
vez escreveu sobre as reticências que enchem toda a obra de Afrânio Peixoto.
«Ninguém, no Brasil», diz Leonídio, «usou e abusou mais da reticência. E se
o estilo é o homem é bem verdade que a pontuação reflete muito o caráter de
quem escreve». Depois de mostrar as exclamações repetidas na obra de Martins
Fontes, um exuberante, tempestuoso, tumultuário, as vírgulas nos períodos curtos,
incisivos, de Machado de Assis, feitio de homem grave e fechado, Leonídio
Ribeiro traça este perfil de Afrânio Peixoto:
«O homem vivo, alerta, malicioso, cheio de insinuações, de segundas e
terceiras intenções, sempre servido por uma memória que, a todo momento,
acudia com associações de ideias inesperadas e justas, ao mesmo tempo
atormentado pela auto-crítica e pelo temor de parecer demasiado, que era o nosso
Afrânio, tinha que se refletir forçosamente no abuso das reticências. Sua própria
conversação era assim. Professor nato, profundo sabedor de coisas, cujo cabedal a
todo o momento aumentava, sempre com o mundo à flor da boca, podendo
discursar, horas e horas, sobre qualquer assunto, era o menos catedrático dos
causeurs. Tinha medo de fatigar. Tinha medo de se exceder. Tinha medo de dizer
coisas já sabidas. Por isso êle pontilhava a sua palestra de alusões, que nem
sempre desenvolvia. O interlocutor devia saber».
Depoimento de companheiro e amigo íntimo, dá-nos a chave da
personalidade de Afrânio. De sua baianidade: uma das variantes do homem
cordial brasileiro. Afrânio Peixoto, alto valor de inteligência e de saber, a que se
juntam esses caracteres humanos, essencialmente humanos.
NOTAS SOBRE GILBERTO FREYRE, INOVADOR E
RENOVADOR (*)
MARIA ELISA DIAS COLLIER
ÂO pretendo, neste pequeno ensaio sobre Gilberto Freyre, senão resumir, de
modo muito ligeiro, o que tem sido e continua a ser a sua vida, destacando
dela — uma vida transbordante de atividade intelectual e pessoal e caracterizada
pelo que em Gilberto Freyre tem sido independência de compromissos com
instituições absorventes — algumas de suas outras constantes, além dessa rara
independência de quem considera seu ideal um «anarquismo construtivo». Entre
essas outras constantes, um ânimo, até hoje, de sua parte, permanente de «estu-
dante», de «jovem», e, mesmo, de rebelde, em face de convenções, que não lhe
permitiu nunca concordar em estabilizar-se numa figura convencional de
«mestre», de «provecto», de «acadêmico», de «ministro», de «embaixador», de
«catedrático», de «homem glorioso».
Daí sua sucessiva recusa, desde muito jovem na idade, a cátedras fixas que
lhe vêm sendo oferecidas em algumas das mais importantes universidades do
Brasil e do estrangeiro. Em 1928, concordou, entretanto, em estabelecer a
primeira cátedra de Sociologia moderna no nosso país — na então Escola
Normal, hoje Instituto Superior de Educação, do Estado de Pernambuco; e,
atendendo a um apelo do Professor Anísio Teixeira, cátedras de Sociologia, de
Antropologia Social e Cultural — a primeira estabelecida na América do Sul — e
de Pesquisa Social, na Universidade do Distrito Federal (1935), depois de, a
pedido do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, ter professado, nesse
mesmo ano de 1935, o primeiro curso de Sociologia moderna em Faculdade de
Direito brasileira.
Desde então, outras das suas iniciativas de caráter intelectual têm tido
universidades como seus pontos de partida e professores e principalmente jovens
universitários como seus primeiros ouvintes e, em vários casos, adeptos e
entusiastas: as teses tropicalista, lusotropicalista e tropicológica apresentou-as em
1951 da tribuna do Instituto de Goa,
Com a publicação deste artigo a Revista Brasileira de Cultura se associa às
comemorações dos setenta anos de Gilberto Freyre.
Algumas destas notas constarão da introdução que a autora escreveu para uma
antologia, destinada a escolares, da obra do mestre, a ser publicada em breve pela editora
José Olympio.
N
MARIA ELISA DIAS COLLIER
na Índia, repetindo-as no ano seguinte (1952) na Universidade de Coimbra
(Portugal), da qual seria consagrado Doutor h.c. título que tem também das
Universidades de Colúmbia, Sorbonne, Sussex (Inglaterra), Münster (Alemanha),
Federal do Rio de Janeiro, sendo também Professor Honorário das Universidades
Federais da Bahia e do Recife, Adstrito Honorário da Universidade de Buenos
Aires, Mestre Agregado do Colégio Maior Hermann Cortez da Universidade de
Salamanca.
A consolidação em ciência da Tropicologia de sua concepção vem se
realizando desde 1966 no Seminário, que foi solicitado a fundar, pelo Magnífico
Reitor Murilo Guimarães, na Universidade Federal de Pernambuco; na
Universidade Federal de Brasília professou em 1965 o primeiro curso de
Futurologia em universidade brasileira; na Universidade de Sussex apresentou em
1966 sua teoria de «morenidade brasileira» em contraste com as místicas de
«arianidade» e «negritude» e sua ideia de «metarraça», como caracterizando uma
atitude brasileira susceptível de universalizar-se como corretivo a racismos
segregacio-nistas. Outras de suas inovações de caráter intelectual com reper-
cussões sociais consideráveis: a do Movimento Regionalista, Tradicionalista e a
seu modo Modernista, (segundo sua concepção e datando de 1924); a do estudo
em conjunto da cultura do Nordeste do Brasil (Livro do Centenário do «Diário de
Pernambuco»); o lº Congresso de Estudos Afro-Brasileiros (Recife 1934); e,
através de conferências. de artigos em jornais e revistas, suas valorizações,
algumas, para a época, escandalosas, dos anúncios de jornais como matéria de
grande interesse para estudos sistemáticos de Ciências do Homem (conferência na
Sociedade Felipe d'01iveira. Rio, 1934); da culinária brasileira; da doçaria
tradicional brasileira; dos nomes tradicionais de ruas; da concepção urbana de
civilização brasileira e da sistemática dinamicamente interregional para o estudo e
a política de desenvolvimento nacional brasileiro (conferência na Federação das
Indústrias); a concepção de uma política transnacional de cultura para o Brasil
(Universidade Federal de Minas Gerais (1959); a concepção de uma maior
solidariedade entre nações situadas nos trópicos e em desenvolvimento
(Universidade de Georgetown, 1969); o conceito de «modernidade em arte
política» (Universidade de São Paulo, 1946); o conceito de «mi-neiridade» (Belo
Horizonte, 1946); o conceito de «baianidade» ligado ao de antecipação brasileira
ao começo de lazer característico do mundo que está sendo criado pela
automação, pelo aumento de tempo livre e pelo aumento de média de vida (artigo
em Diogène, Paris) e conferências em várias universidades brasileiras, europeias
— principalmente na alemã, de Münster — e norte-americanas); o «conceito de
tempo ibérico» distinguido do norte-europeu Protestante calvinista (ensaio
publicado na revista The American Scholar, publicado depois em língua alemã
pela Universidade de Münster e repetido como conferência presidida pelo
Professor Américo Castro) na Universidade de Princeton e na Universidade de
Harvard.
NOTAS SOBRE GILBERTO FREYRE, INOVADOR E RENOVADOR
Destaque-se ainda o fato de se ter Gilberto Freyre antecipado em 1937 a
caracterizar o futebol brasileiro como dança, ou como jogo por êle chamado
dionisíaco, em contraste com o, segundo Gilberto, apolíneo, da criação inglesa, do
mesmo modo que se antecipou — noutro setor psicossocial — em caracterizar
Getúlio Vargas, na época em que esse politico era considerado homem alegre,
sempre feliz, descontraído
_imagem criada pela propaganda estatal — como, ao contrário, triste,
infeliz, dramático, fatalista e até trágico. O psicólogo, como vários críticos têm
notado, está sempre presente em Gilberto.
Embora Gilberto Amado tenha escrito em Gilberto Freyre, sua ciência, sua
arte, sua filosofia (Rio, 1962) — obra coletiva indispensável para o conhecimento
da personalidade e da obra do autor de Sobrados e Mucambos — ser Gilberto
Freyre, principalmente, «um método», parecendo ter êle trazido para o Brasil, da
sua formação no estrangeiro — nos Estados Unidos, na Europa — uma técnica ou
um método exato e já feito, de análise científica de fenômenos que aplicaria ao
Brasil, a realidade, neste importante particular, pensam outros críticos que é
evidentemente outra. Outra porque a obra de Gilberto Freyre representa, do seu
início até hoje — dizem esses outros críticos, um deles o pensador existencialista
francês Jean Pouillon que se ocupou do assunto em Temps Modernes — uma
criação incessante de métodos por êle combinados ou interrelacionados
criadoramente e adequados â análise e à interpretação de situações psicossociais
diferentes das europeias e da norte-americana dos Estados Unidos. «Pluralismo
metodológico de uma nova espécie», segundo Pouillon e também segundo o Prof.
Jean Duvignaud, que, conforme o primeiro desses críticos, «nada tem de pré-
fabricado». Registre-se que críticos estrangeiros têm salientado não haver obras
em seus países — Barthes com relação à França, Bertram Wolfe com relação aos
Estados Unidos, o marxista Juan António Portuondo com relação a Cuba — que
se com-parem à obra de Gilberto Freyre em amplitude e profundidade, na
variedade de fontes e na originalidade metodológica. «Obra pioneira em
metodologia», considerou-a o crítico de The Times, de Londres, Obra pioneira
pelas suas «perspectivas simultâneas». Portanto, também nesse particular,
Gilberto Freyre vem se revelando um revolucionário, um inovador, um criador:
criador de combinações ou interrelações de métodos e descobridor de novas
relações entre fatos que têm importado também em criações.
Compreende-se, assim, que a Sorbonne, ao doutorá-lo, o tenha considerado
não só criador absoluto de uma «Antropologia do Homem situado no Trópico» e,
em parte, de uma Escola Brasileira de Psiquiatria Social universalmente válida,
como «abridor de novos caminhos — objetivos e métodos — para as Ciências do
Homem». É uma criatividade, a sua, que foi tamm destacada, noutros termos,
ao doutorá-lo, pelas Universidades de Colúmbia («estudo monumental da história
e da sociologia da escravidão»), de Coimbra (criador de uma nova interpretação
do ethos do português ao tornar-se lusotropical),
MARIA ELISA DIAS COLLIER
de Sussex (antecipação na criação de um tipo de história social do Homem:
história em profundidade), de Münster («um novo Balzac»), pelo Times, de
Londres, ao destacar nele «um pioneiro em metodologia» à base da «utilização de
elementos de várias origens» e até então ignorados, tendo o reconhecimento dessa
criatividade, sob certos aspectos revolucionária, inovadora ou renovadora,
culminado em 1967, ao lhe ser dado solenemente pelo Instituto Aspen, nos
Estados Unidos, o Prêmio Aspen, considerado o Prêmio Nobel americano. É um
Prêmio com que vêm sendo distinguidos «indivíduos notáveis pela criatividade ou
genialidade criadora» nos setores das artes, ciências e filosofia :o compositor
inglês Benjamim Britten, em Música, a dançarina norte-americana, Martha
Graham, na Dança, o grego Doxiadis, em Arquitetura.
Não tardou, aliás, que em 1969 Gilberto Freyre fosse distinguido com outra
láurea famosa: o Prêmio italiano La Madonnina. Recebeu em Milão, o Prêmio La
Madonnina, de Literatura no mesmo momento em que o mesmo Prêmio, de
Ciência, era conferido, ao sul-africano Christian Barnard, celebrizado pelos
transplantes de coração. Com o Prêmio La Madonnina os italianos distinguiram
em Gilberto Freyre uma obra que a Comissão Julgadora considerou de
«fulgurações geniais», Esses dois Prêmios — o Aspen e La Madonnina — são
decerto as láureas ou os Prêmios estrangeiros mais importantes que desde Santos
Dumont, um brasileiro já trouxe para o Brasil, da Europa ocidental ou dos Estados
Unidos.
A essas expressões de reconhecimento do valor de Gilberto Freyre como
escritor, pensador e cientista social juntam-se as numerosas traduções de suas
obras para várias línguas européias e para a japonesa. Só Casa-Grande & Senzala,
traduzida para o francês como Maitres et Esclaves, teve nesse idioma oito edições.
Ao aparecer essa edição francesa, o crítico Roland Barthes, considerado por
alguns o maior crítico francês, saudou-a como obra que «resolvia a quadratura do
círculo», tal o seu poder de fazer o passado viver como presente e até como futuro,
tendo André Rousseaux proclamado o livro do autor brasileiro «epopeia»:
«epopéia antropológica» em termos literários. «Grande obra de sociologia e de
literatura», proclamou-a, por sua vez, The Economist, de Londres, tão medido e
até avaro quanto os críticos franceses nos seus louvores. Não vem sendo maior o
entusiasmo pela obra de Gilberto Freyre de críticos alemães, espanhóis,
hispanoameri-canos, italianos, japoneses, à medida que seus livros vêm
aparecendo nessas línguas com um impacto irrecusável de «genialidade criadora»
e abrindo novos caminhos à compreensão não só do Homem situado no trópico,
ou no Brasil, mas, como destacou Bertram Wolfe, critico e pensador notável, do
Homem em geral.
É interessante assinalar-se a já tão destacada, no Brasil e no estrangeiro,
«perene juventude» dos livros principais de Gilberto Freyre que, ao aparecerem
noutras línguas, anos depois de publicado na língua portuguesa, vêm sendo
saudados como atuais, modernos e até
NOTAS SOBRE GILBERTO FREYRE, INOVADOR E RENOVADOR
pós-modernos. A essa perenidade de juventude dos livros corresponde a do
próprio autor em pessoa que acaba de chegar aos 70 anos com energia, a
vivacidade, o poder criador de um homem muito mais moço, como acentuou,
aliás, o médico francês, professor da Faculdade de Medicina de Paris, que,
clinicamente, lhe fêz um check up. Gilberto Freyre, êle próprio se felicita de
também nisto ser um tanto espanhol considerando-se, como diz, bem humorado,
da «raça dos Pablo Casais, dos Picasso, dos Segóvia». Essa sua «perenidade de
juventude», não só de espírito, mas fisiológica ou biológica, parece explicar o seu
fácil convívio com jovens e de jovens, no Brasil como no estrangeiro, com êle.
Não faz muito tempo, na Universidade de Brasília, ao esperar-se que lhe seria
hostil o grupo mais radical de estudantes, sucedeu o contrário: depois de um
diálogo com êle, aclamaram-no, para espanto do então Reitor e de vários
professores. O mesmo sucedeu há poucos anos na Universidade de Harvard: tão
empolgados ficaram por êle os estudantes, já então agitados e agitadores, da
famosa universidade, que para ser ouvido por uma multidão de jovens foi preciso
transferir o local da conferência de Gilberto de um dos salões de conferência para
o vasto refeitório. Tal é a afinidade que se estabelece, sempre que há convívio,
entre Gilberto Freyre e os jovens, sem que êle, note-se bem, os corteje, pois é do
seu feitio falar-lhes com a mais rude franqueza, que êle próprio se diz por vezes
«um tanto hippie». Já desenvolveu, em conferência, proferida em 1969 em São
Paulo e em Lisboa, a teoria de haver uma afinidade especial entre os equivalentes,
no tempo, de avós, e os equivalentes, no tempo, dos netos, os intermediários
«constituindo uma espécie de grande burguesia no tempo, interessada em
estratificar-se como tal e tendo por opositores aqueles extremos: os jovens de
menos de 30 e os idosos de mais de 65». Essa conferência, «Geração e Tempo»,
constará do livro a aparecer breve Além do apenas moderno.
Destaquem-se também os conceitos ou as ideias originais ou próprias de
Gilberto Freyre sobre: a casa — na formação do Brasil (uma formação, segundo
êle, antes patriarcal, familial, que oficial ou teo-crática). A casa-grande
completada pela senzala, como «uma espécie de tipo-ideal weberiano» do qual
pode-se analisar todo um tipo de sociedade; os problemas de relações entre as
regiões que constiuem o todo nacional brasileiro, problemas para a solução dos
quais êle indica uma «dinâmica interregional», dinamizando o seu primeiro
conceito de tradicionalismo; sobre as relações em países como o Brasil do urbano
com o rural que a seu ver devem ou podem tomar a forma de uma simbiose
urbana; sobre o tempo que, a seu ver, é — neologismo seu — tríbio, sendo
sempre, ao mesmo tempo, passado, presente e futuro; sobre as consequências que
começam a ter para o Homem e que terão, de modo notável, para o Homem pós-
moderno, o aumento de tempo livre, de média de vida e de lazer; sobre a
reabilitação do lazer; sobre a reabilitação da mestiçagem, em geral, e da
morenidade brasileira, em particular; sobre a reabilitação do homem tropical e da
sua ecologia,
MARIA ELISA DIAS COLLIER
à qual é preciso adaptar de tal modo formas e processos de civilização importados
1
de áreas não-tropicais que essa adaptação importe, em vários casos, na quase
criação de novas formas e processos de vivência, de convivência e de cultura;
sobre uma Tropicologia que, como ciência ecológica e antropológica, sistematize
o estudo de problemas de integração do não-tropical no tropical e de valorização
do tropical, admi-tindo-se dentro dessa Tropicologia uma Hispanotropicologia e,
de modo ainda mais particularizado, uma Lusotropicologia de especial interesse
para o Brasil; sobre futuros possíveis do Homem e da cultura pan-humana em
geral e do Homem e das culturas situados nos trópicos em particular. Registrem-se
também aqui suas contribuições, igualmente originais, noutros setores das ciências
e das letras humanas, que lhe tem valido o reconhecimento de sua influência sobre
os modernos ar-quitetos brasileiros — influência proclamada por um dos maiores
desses arquitetos, Henrique Mindlin; sobre médicos, particularmente psiquiatras
(influência destacada pelos Professores Silva Mello, Fróes da Fonseca, Ruy João
Marques); sobre pintores e artistas plásticos, sua influência, nesse setor, vem
sendo salientada por mestres como os Professores Robert Smith e Mário Barata e
por modernos pintores brasileiros como Cícero Dias, L. Cardoso Ayres; sobre o
ensaio, o romance, a poesia, a filosofia, a aplicação da Sociologia à Política, à
Economia e ao Direito, com especial atenção dada a situações eurotropicais e,
especialmente brasileira. E é recente sua criação de um novo tipo de novela (Dona
Sinhá e o Filho Padre), de importância tão destacada pelo crítico literário de The
New York Times e já traduzida á língua inglesa sob o título Mother and Son. A
esse propósito destaque-se que outros críticos literários como o Prof. Joel Pontes
vêm considerando seu estilo a «maior renovação estilística na língua portuguesa
desde Eça de Queiroz.»
Quando esteve no Brasil, Aldous Huxley revelou que os dois escritores
literários brasileiros da sua admiração eram Machado de Assis e Gilberto Freyre.
E perguntou: «Por que não se faz um filme épico de Casa-Grande & Senzala?-»
Esse filme, quis fazê-lo Roberto Rossellini. Seria uma grande mensagem brasileira
— a da miscigenação — a um mundo dividido mais por ódios de raça do que de
classe. O que faltou a Rossellini? Parece que o apoio do Brasil: do governo ou de
particulares capazes de financiar filme de grandes proporções.
A maior parte da produção intelectual de Gilberto Freyre tem assumido a
forma de ensaio. Ensaio puramente literário e ensaio, além de literário, biográfico,
autobiográfico, histórico; e também ensaio cien-tífico-social e ensaio filosófico. O
ensaio histórico ou biográfico ou autobiográfico, nele, quase não se distingue do
literário.
Segundo o Prof. Fernand Braudel, do Colégio de França, como ensaísta,
Gilberto Freyre pertence antes à tradição espanhola (Lulio, Vives, Gracian,
Ganivet, Unamuno, Ortega) desse gênero, que à portuguesa; e de fato o escritor
brasileiro se revela, nas suas características de escritor, um renovador brasileiro
do ensaio ibérico, quase sempre
NOTAS SOBRE GILBERTO FREYRE, INOVADOR E RENOVADOR
autobiográfico. Mas devem ser assinaladas também influências inglesas e, ainda a
de um Pascal, a de um Montaigne, a de Nietzsche, sobre seu modo de ser ensaísta.
Mas nesta, como noutras das suas formas de expressão, Gilberto Freyre se destaca
por uma originalidade na ligação do seu pensamento ou da sua ciência com o seu
estilo e o seu modo de ser quase sempre autobiográfico, que lhe dá uma posição
inconfundivelmente singular, quer nas letras ibéricas, quer — pensam alguns
críticos — na literatura moderna do Ocidente, e não apenas na brasileira. Esse seu
estilo original, próprio, segundo críticos como o Prof. Renato Campos e Osmar
Pimentel, analitico e ao mesmo tempo livre, visual mas também musical, se nota,
aliás, nos seus próprios ensaios escritos em língua inglesa, como observou o
crítico inglês Ralph Bates. Atingiu porém o seu máximo de expressividade em
língua portuguesa, que a sua prosa, segundo alguns críticos, renovou ou vem
renovando.
Recorde-se que Casa-Grande & Senzala, ao aparecer, provocou ao mesmo
tempo que admirações, só comparáveis às despertadas por Os Sertões, de
Euclydes da Cunha, indignações violentas. Houve quem sugerisse que a edição
fosse queimada em praça pública. O autor foi chamado de «antibrasileiro»,
«antireligioso», «imoral», «obsceno», «corruptor», «comunista». A linguagem do
livro foi considerada por alguns críticos «chula», «sem estilo», «contrária ao
espírito da língua portuguesa». Oliveira Viana devolveu o exemplar que lhe foi
oferecido pelo editor Schmidt. Oswaldo Aranha em discurso político,
condescendeu em considerar o livro apenas «curioso». Entretanto, mestres como
Ro-quette Pinto e João Ribeiro se anteciparam em destacar no livro virtudes ou
qualidades. «Nasce obra clássica», escreveu Roquette Pinto. «Não houve
brasileiro até hoje que com tanta acuidade observasse o Brasil, opinou João
Ribeiro, lamentando, porém, que o autor não apresentasse conclusões. Reparo
igual fêz o então jovem escritor Ribeiro Couto: «Que propõe? Que conclui
perguntava. Outros jovens críticos da época se anteciparam em reconhecer o que
havia de novo, original e profundo no livro escandaloso: Prudente de Morais
Neto, Sérgio Buar-que de Holanda, Rodrigo M. F. de Andrade.
Sobre as críticas depõe o autor: «É certo que meu português não era o
convencionalmente correto, elegante, medido, muito menos o cien-tificóide ou
pedante. Quis realmente escrever meu livro num português como não havia,
embora me repugnassem os antigramatiquismos de Mário de Andrade. Um
português mais assimilador que os em vigor de africanismos, indianismos,
modernismos, e termos científicos quando absolutamente necessários e também
de palavras, de pleibeismos e, sem resvalar em caipirismo, de expressões
regionais que devessem se tornar panbrasileiros. Creio que em parte o consegui.
Não copiei no livro nenhum modelo estrangeiro nem de sistemática científica nem
de orientação filosófica nem de metodologia. Inventei. Não me antecipei em
concluir. Mas creio que abri caminhos a certas conclusões e a algumas
reorientações.»
MANOEL DA NOBREGA E A PEDAGOGIA
JESUÍTICA
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
A formação das quatro Américas, a portuguesa, a espanhola, a francesa e a
inglesa, governantes, soldados, colonos e religiosos constituíram o
fundamento humano que explica a rapidez daquela formação e o êxito do
empreendimento ultramarino, de tanta expressão quantitativa e qualitativa.
No particular da contribuição dos religiosos, contribuição que não cessa
nunca toda vez que se tenta a empresa colonial, a conquista por meios menos
drásticos, o sucesso mais demorado, o êxito mais diversificado, com a integração
de grupos humanos de cepa exótica, essa contribuição é solicitada, desejada,
quase imposta. Na empresa das Américas, como ainda mais recentemente na
África e na Ásia, a façanha colonial alcançou os resultados perseguidos pelos
povos colonizadores e conquistadores porque em todos os momentos essa
participação de religiosos, católicos ou protestantes, foi participação atuante,
decisiva, continuada.
Quando os portugueses, naquela façanha quase impossível de acei-tar-se
como façanha humana, realizada por um só povo, o povo demograficamente
menos indicado para tal e para tanto, acharam o Brasil, como já haviam feito no
Oriente e na África, sentiram a conveniência de, com a programação da fé cristã,
impor sua soberania, não pela força das armas, ou pela ação disciplinadora de uma
legislação apropriada às condições criadas pelas sociedades exóticas descobertas e
pelos próprios fatores físicos a considerar para uma política de rendimentos
autênticos, mas, pela conquista espiritual, mansa, cordial, humana.
A Companhia de Jesus iniciava, a essa altura, sua atividade catequista, a
serviço da cristandade, numa ação de tipo militar, não fosse uma disciplinada
organização fundada por militar que decidira pôr sua inteligência, sua energia, sua
capacidade criadora na causa da espiritualização do homem. Os Franciscanos já
vinham servindo no esforço português para vencer resistências de aborígines
africanos. Possuíam tradição na terra lusitana. Falavam, como nenhuma outra
Ordem, ao espírito dos portugueses. As demais organizações religiosas, que se
haviam distinguido na hora da reconquista e da organização do Estado,
N
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
não dispunham, porém, daquela popularidade que distinguia os Franciscanos para
um empreendimento de tanta responsabilidade e de tanta importância política. A
comprovação que estavam apresentando era digna da melhor consideração. Nem
por isso, no entanto, deveria deixar de fazer-se a experiência com a nova
instituição religiosa, a Companhia, com ela iniciando a catequese e, com a
catequese, a integração e a solidarização dos grupos aborígines que se estavam
encontrando ao longo da vasta costa do Brasil em nascimento. E sob esse critério,
a Companhia foi chamada para comparecer na nova empresa, de nítido sentido
político, pois que seria através dos êxitos que se alcançassem que se imporia mais
acentuadamente a soberania de Portugal, já a sofrer a concorrência de outros
povos, que lhe disputavam o direito de descobrir os outros oceanos, os outros
espaços, as outras naturezas e as outras humanidades e culturas!
A empresa do Brasil seria difícil. Não se tratava de vencer a hostilidade ou a
ingenuidade, o primitivismo das populações aborígines, mas possuí-las, incorporá-
las a um novo sistema de vida, com elas passando a compor uma sociedade,
solidária, essencial para a política definitiva do exercício da soberania de Portugal.
Aquela sábia orientação, que se estava adotando na Ásia, distante e tão diferente
nos usos e costumes, com uma civilização definida e povos os mais díspares nas
condições e nos estilos em matéria de procedimento social, orientação através da
qual portugueses solteiros e mulheres indianas, órfãs, passavam a constituir o
substrato da nova sociedade, a solidária e portanto a sociedade que asseguraria o
domínio português, devia ser a solução adotada também no Brasil. Certo? A
Companhia, em seu afã catequista, teria a missão de ajustar as coisas de maneira a
que os resultados étnicos, sociais, fossem os mesmos. Ao lado da ação política,
disciplinadora, incentivadora, para a posse efetiva na área da utilização dos
recursos naturais ou importados para a experiência da agricultura tropical,
funcionaria a ação espiritual, com o que se completaria a administração do novo
Estado, o Estado do Brasil, que se começava a estabelecer.
Tomé de Souza, primeiro Governador Geral, e Manoel da nôbrega, primeiro
Superior da Ordem nas terras do Brasil—infante, foram os dois homens que
tiveram a seu cargo aquelas árduas missões políticas. Insisto, missões políticas,
pois que, na verdade, as duas atuações possuíam tal caráter pela vastidão que a
distinguia e pelo sentido que possuíam. Dariam certo, os dois? Andariam de mãos
dadas, atuando sem descortesias, sem ciumeiras prejudiciais, sem concorrências
negativas? Conseguiriam vencer a natureza áspera da terra e de seus habitantes,
sejam aqueles nativos, sejam os outros, os que estavam chegando e não se
conteriam em meio fácil para suas façanhas paradisíacas, como tão bem lembrou
mestre Gilberto Freyre em «Casa Grande e Senzala»?
Tomé de Souza e Manoel da nôbrega completaram-se, cada um em seu
campo próprio. Foram admiráveis. Souberam agir de comum
MANOEL DA NÔBREGA E A PEDAGOGIA JESUÍSTICA
acordo, sem hesitações e com decisões apropriadas e na medida em que se faziam
necessárias. Sem imprudências que perturbassem os passos iniciais. Porque, é
preciso ter bem em conta que o Brasil não era colonia de velho povoamento. Tudo
aqui deveria ser experimentado com coragem e sem precipitações. Havia um meio
físico e um meio social novos, coindicionando a presença de Portugal. E nesse
particular, os portugueses tiveram de multiplicar-se porque tinham de enfrentar
naturezas, tipos físicos, culturas diversificadas no vasto império ultramarino que
construíam. E ao mesmo que enfrentavam, devendo evitar o conflito que turvasse
a empresa, sem, contudo, deixar de realizar o envolvimento, capaz de trazer os
resultados perseguidos no esforço da vitória cultural. Nesse particular, foram bem
sucedidos. E, se aqui e ali houve a ocorrência contrária, nem por isso deixou de
existir o êxito de sempre. Os obstáculos foram sendo vencidos. A força das armas
serviu várias vezes. A tática, ou estratégia como hoje se escreve, em termos de
habitabilidade, concessões, entendimentos diretos, foi a outra maneira de vencer.
Nóbrega cedo apercebeu-se da grandeza da missão. Sua correspondência
reflete seu estado de espírito. Reflete também sua decisão e a compreensão dos
métodos que deveria utilizar. Toda uma técnica nova foi sendo manejada. Com
resultados positivos sobre o gentio da terra e sobre o colono, sequioso de ganhos e
de poder sobre aquele mesmo gentio da terra. A todos dedicou sua atenção. A
todos procurou chamar ao seu regaço amigo. A todos dirigiu a sua lição de
fraternidade e o exemplo de suas atitudes humanas, severas, cheias de calor
espiritual. Visitou as Capitanias. Fundou colégios, fêz levantar casas de educação
e de ação religiosa. Converteu grupos indígenas, tentou a moralização dos
costumes com a importação, por mão de Sua Magestade, de mulheres portuguesas
para freiar a dissolução natural no meio rude, solto, genésico, dos primeiros
momentos. Como homem de Estado, teve a visão do que seria, pelos tempos
adiante o crescimento territorial do Brasil. Procurou e entendeu que a expansão
em direção ao sul e ao oeste seria a expansão natural para uma fronteira que não
se limitava ao que se traçara em Tordesilhas. Entre os sítios plantados no planalto
e no Salvador como capital da colônia, era necessário criar outro núcleo. A
segurança do Estado, em tão vasto litoral, indicava a providência. Os franceses
infiltravam-se na Guanabara. Ali estava a indicação geográfica para a nova
posição: defendeu a proposição. Seria um geo-político por antecipação. Vencido o
intruso europeu, plantou-se o novo núcleo. Como fizera no planalto, onde
estabelecera o Colégio, que seria a raiz da gigantesca metrópole paulista, aqui
fincou a nova unidade, que seria a grande metrópole, o Rio de Janeiro.
Tomé de Souza e êle haviam trabalhado em acordo, o que explicava todo o
êxito que se registrava.
Com o novo governante, Duarte da Costa e o Bispo, a situação modificar-se-
ia. Nem um nem outro compreendia a estratégia adotada
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
por Nóbrega e seus companheiros na jornada civilizadora. O Governante era
autoritário e estranho às técnicas a adotar-se no meio imaturo que era o Brasil. O
Bispo escandalizava-se com o modo de agir dos Jesuitas na conversão da
gentilidade, em procedimento imposto pelo meio social e cultural. Aos dois, os
padres da Companhia davam a impressão de autênticos reformadores de um
sistema, o religioso, a que estavam habituados, era válido na Europa da Reforma,
o único que lhes parecia certo, mas inexequível na colónia. Nóbrega fugiu à luta
com as duas autoridades. Não daria certo, nem produziria senão resultados
comprometedores do sucesso que se vinha obtendo. Recusou aceitar os desafios.
O Bispo, depois de vários choques com o Governador, foi chamado a Lisboa e
teve morte trágica, nos baixios alagoanos. O Governador encerrou seu período
sem deixar saudades nem uma obra que lhe valesse respeito e admiração. Falhara.
Não estava preparado para a tarefa.
Mem de Sá, que se seguiu, restaurou os dias severos, certos, de Tomé de
Souza. Nóbrega com êle se entendeu no mesmo tom cordial e de vinculação, para
a empresa, que existira nos tempos de Tomé de Souza. A fundação do Rio de
Janeiro, com a cooperação da multidão gentia; mobilizada por Nóbrega, e a
aceitação da ideia de um centro urbano na Guanabara mostravam extensão do
entendimento entre os dois responsáveis na imposição do domínio de Portugal.
Nóbrega, no cometimento hercúleo, fora além das forças humanas.
Envelhecera. Não descançára um só momento. Toda a sua vida se realizava numa
descontinuada trabalheira que lhe consumia energias físicas e lhe esgotava o
pensamento em continuada movimentação. Nascera no Minho, em 1517. Passara
por provas de suas habilitações intelectuais em vários postos no Reino. Sua
biografia já era rica em atitudes, comportamentos exemplares, quando viera para o
Brasil. Provara muito bem em todos esses postos. Comandara agora a empresa da
América portuguesa, empresa que êle considerava a grande empresa para a Com-
panhia. A 18 de Outubro de 1570 falecia em São Paulo. Nos dias anteriores,
visitara os amigos para despedir-se. Tivera a certeza de sua ida, não para o Reino,
mas para o céu, explicava aos que perguntavam a razão da despedida.
Seguramente foi para lá. O que realizou no Brasil não se pode descrever sem
emoção. Porque estadista, catequista, humanista, espírito dominado pela ideia de
bem servir à Religião e ao Estado, em nenhum momento escapou ao cumprimento
de seus deveres. Foi santo e foi homem. Conciliou os dois destinos terrenos.
Nóbrega, é momento de registrar, não se realizava, no entanto, como um
personagem isolado, de atitudes pessoais, resultantes de sua personalidade
realmente extraordinária. Era parte de um complexo polí-tico-espiritual, o Estado
Português e a Companhia de Jesus. Agia, por via de consequência, como
integrante daquele complexo, a que dava toda a sua energia e a sua clarividência.
Compreendê-lo fora, distante, não estará certo. Veio para o Brasil nascente, que
ajudou a crescer, para
MANOEL DA NÓBREGA E A PEDAGOGIA JESUÍSTICA
executar um programa, qual seja aquele, a que já nos referimos, do
estabelecimento de uma área do império ultramarino de Portugal, estabelecimento
em bases sólidas que compreendiam, exigindo tato, firmeza, decisão, o contacto e
a incorporação do gentio da terra e a criação da sociedade, contida e disciplinada
em termos das verdades do Evangelho.
E aqui vai principiar a nossa tentativa de compreensão do que representou a
obra que a Companhia de Jesus promoveu, desde aquele contacto com o aborígine
local às realizações pedagógicas e científicas a que se entregou incessantemente:
estudo do meio físico, identificação do espaço geográfico e da humanidade que o
ocupava no período pré-europeu, imposição de novas fórmulas culturais em
substituição às que encontrou, nelas incluída a imposição do novo idioma, a
língua imperial portuguesa. Essa obra começou pela tarefa missionária. Não
constituía uma experiência inédita, O trato com o aborígine na Africa já ia adian-
tado, indicando técnica a adotar. No próprio Brasil, os Franciscanos, muito tímida
e escassamente, é certo, tinham lançado as bases da operação, sem resultados que
refletissem um sucesso capaz de levar a uma política imediata e segura. Discute-se
hoje se houve sucesso: se ocorreu simplesmente a catequese, não ocorrendo,
porém, a conversão. Mecenas Dourado, com escândalo de muitos, mas apoiado
nos depoimentos dos próprios Jesuítas, sustentou que não houve a conversão. De
qualquer modo, houve uma incorporação da multidão gentia, que escapou de
perda numérica mais extensa graças aos aldeamentos montados e em pleno
funcionamento e onde se realizava uma política de integração amena, generosa,
cheia de rendimento. E aí, sem que se possa deixar de proclamar essa vitória, a
Companhia credenciou-se grandemente.
Os Jesuítas, em seu afã religioso e em suas técnicas de trabalho, nem sempre,
no entanto, se viram cercados da compreensão coletiva, representada pelos
colonos, pelas autoridades civis e, por mais estranho que possa parecer, pelas
autoridades religiosas, como também, pelas outras organizações que serviam a
Deus e ao Estado, as Ordens religiosas que, com a Companhia, atuavam com
técnicas verdadeiramente terrenas.
Tais dificuldades em nenhum momento fizeram a instituição perder o seu
vigor e a sua decisão. Atuando corajosamente, teve de sofrer restrições e
negações, que foram ao extremo de uma acusação politica da maior gravidade .—
a posse de um pensamento autonômico contrário, na área portuguesa, aos
interesses de Portugal, como, na área espanhola, aos interesses de Espanha.
Estaria, pela afirmação restritiva, preparando a separação das Américas da
soberania ibérica. A lenda correu mundo e faz parte das arguições que contra ela
se divulgaram por toda a Europa, e, às vésperas da independência, serviria para a
outra afirmativa — continuava conspirando, agora a serviço de uma potência não
católica, onde funcionava um autêntico quartel-general para a campanha, a
Inglaterra. Mas se essas acusações eram assim tão exploradas e divulgadas, uma
outra, antagónica, também circulava: por meio dos Jesuítas,
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
procedia-se à escravização dos aborígines americanos, privados de sua liberdade,
para que fosse um serviçal humilde na empresa colonial. Mais: nas práticas
religiosas com aqueles aborígines, desfiguravam as práticas do cerimonial,
indianizando-as, isto é, tornando-as manifestação quase pagã pela adoção de
atitudes que incluíam os gestos, os movimentos, as exteriorizações a que a indiada
se entregava. Um certo processo de mestiçagem religiosa, ousemos considerar, ou
de acomodação às condições de primitividade dos próprios silvícolas,
acomodações que eles adotavam para um êxito maior, mais veloz, talvez mais
preferível. Qual a verdade em todo esse rosário de contestações ao que
efetuavam?
A colônia não devia ser apenas um campo de ação material, para o
enriquecimento da Metrópole. A formação da sociedade, que se realizava em ação
material, devia entrar também nas preocupações governamentais, sociedade que
não se constituísse apenas numericamente, mas, igualmente, composta de
elementos capazes de conduzi-la, dignificá-la, fazê-la funcionar em termos de
inteligência.É tempo de registrar que em Portugal, como em muitas outras partes
da Europa, o Estado não realizava, intensa e diretamente, a empresa educacional.
A escolaridade, da alfabetização à Universidade, por delegação de competências
ou por determinação régia, estava a cargo das Ordens Religiosas e, de certo modo,
limitada no acesso. Não que se criassem dificuldades legais a esse acesso, mas
porque o trabalho diário, rotineiro, das fainas agrícolas e urbanas, exigindo mão de
obra que recrutava em todas as idades, nas classes menos favorecidas, não
permitia esse acesso. Na multidão populacional não se impuzéra, ademais, a ideia
do desenvolvimento intelectual que alcançasse os integrantes dessa mesma
multidão. Desse modo muito restrito, o acesso só levava à formação de uma elite
que, por isso mesmo, não era numerosa. Vigentes tais condições, esse estado de
espirito, o Estado não se comprometia com a iniciativa ousada da manutenção de
um organismo educacional para a preparação de seus quadros, mesmos os mais
humildes. E mesmo nos de maior hierarquia, o secundário e o universitário, êle o
transferiu às congregações religiosas, habilitadas pelos núcleos ativos de
inteligências que possuíam e às quais o Poder Público assegurou alguns magros
recursos financeiros para a realização da empresa educacional.
As Ordens Religiosas, no Brasil colónia, tomaram, portanto, muito
naturalmente, a seu cargo, aquela operação, que, evidentemente, significava, como
já dissemos, a existência da ideia de que a colónia não devia ser unicamente um
campo para o empreendimento material. A Sociedade que a trabalhava devia
igualmente completá-la com a formação de espíritos esclarecidos como resultante
da escolaridade.
Cabe aqui referir que, além da competência outorgada pelo Estado, as
Organizações religiosas, de seu lado tomaram a iniciativa de promover, por
deliberação própria, lembremos, um ensino rudimentar, que crescia à medida em
que se descobriam as vocações para o ingresso dos escolares nas atividades mais
constantes da vida religiosa. Aos Fran-
MANOEL DA NÓBREGA E A PEDAGOGIA JESUÍSTICA
ciscanos coube, inicialmente, os primeiros esforços. Carmelitas, Orato-rianos,
Mercedários, Beneditinos, também se distinguiram na montagem das escolas de
primeiras letras e de tímidas humanidades que se ensinaram. Seminários para a
formação do clero funcionaram também em alguns pontos do amplo mundo luso-
brasileiro. A Companhia de Jesus, de todas, foi a que mais diligenciou e pôde
apresentar melhores frutos de sua contribuição, realmente admirável nesse
particular.
Empenhada na conquista de corações e de espíritos, não criou apenas a
missão, na aldeia indígena, mas a casa de ensino, a escola de alfabetização, a
escola profissional, o internato, em todas recebendo os filhos dos colonos e as
crianças aborígines que deviam constituir o acervo substancial da sociedade
solidária que se elaborava. E para isso, de certo modo inovou. Uma pedagogia,
que resultava da compreensão que alcançara no trato com aquelas parcelas
humanas em suas mãos diligentes e hábeis, foi adotada. A aula do tipo clássico,
rotineiro, talvez não servisse. Filhos de índios e filhos de colonos, convivendo,
afeiçoando-se, aproximando-se, inter-relacionando-se, impediam o crescimento
em têrmos de distâncias sociais. O prelogismo dos indígenas imaturos, ingénuos,
sem a visão mundial das coisas, podia conflitar com a visão mais larga dos
descendentes dos europeus, que deles diferiam por todo um conjunto de
circunstâncias e modalidades de técnicas de vida trazidas da Europa. A pedagogia
jesuítica criou-se e fortificou-se, assim, na base da experiência que os dois tipos
humanos ensinavam. Era preciso vencer maneiras de ser e de entender, dos
curumis. Era preciso entrosá-los com os de raiz europeia sem destruir-lhes as
próprias raizes, mas aco-modando-as, aproveitando-as no possível e útil, para
resultante que fosse sucesso. Ao lado desse ensino imediatista das primeiras letras,
da taboada, do cantochão, funcionou, em explêndida experiência, a utilização do
teatro, representado pelos próprios aborígines e europeus, com temas da vida de
santos, episódios da paixão do Cristo, lições tiradas ao Agiológio. O efeito cénico,
exterior, da cena, realizada com tanto carinho e entusiasmo, era de uma evidência
irrecusável. Ajudava no desbravamento de inteligências novas que, desse modo,
desabrochavam para uma vida menos áspera.
A pedagogia jesuítica, com tais características, instituída, encontrava um
obstáculo realmente ponderável no grave problema da língua. Os falares do gentio
eram variados. Os grupos sob conquista espiritual, variados, diferentes, falando
seus próprios dialetos. Vieira, referindo-se à gentilidade da Amazônia, dizia que
era verdadeira babel, tal a quantidade de línguas ou dialetos em uso. Era preciso
saber o essencial desses falares múltiplos, pobres, desgramaticados, não
dicionarizados. Depois, encontrar um conjunto linguistico que pudesse servir de
língua franca para os entendimentos harmónicos e definitivos. Construir, de toda
essa babel, uma língua comum? Os Jesuítas têm sido acusados de haver fabricado
o idioma tupi, a que eles dariam estrutura gramatical e tornariam de uso coletivo.
Para isso utilizariam o falar mais em uso
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
ao longo da costa. Seria, assim, uma língua, pelo menos, por eles disciplinada.
Como foram depois acusados de não ensinar o português para terem, sob o seu
domínio, o aborígine de modo a, um dia, fundar, com eles, o Império Teocrático,
denunciado pelo Marquês. Plínio Airosa, professor da Universidade de São Paulo,
em magníficos estudos divulgados na imprensa, analisou a acusação, concluindo
pela falta de fundamento. O que teria ocorrido seria, justamente, não a criação de
uma língua dentro de padrões gramaticais das línguas europeias, mas o emprego,
para as relações e intimidades com os próprios indígenas, justamente a que eles
denominavam a «língua geral da costa do Brasil», e que Anchieta, foi o primeiro a
revelar em sua «Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil»,
editada em Coimbra em 1595. Ora, além dessa língua geral, os Jesuítas, nos seus
contactos com outros grupos, no afã catequista e na tarefa educacional, estudaram
os falares diferentes com que se defrontaram, dicionarizando-os e reduzindo-lhes
as formas gramaticais a textos, muitos dos quais publicados.
Quanto às aptidões que os aborígines revelavam para obras de criação,
também os homens da Companhia lhes souberam aproveitar a inclinação, gostos e
atividades, num artesanato que se multiplicou, como na utilização dessa
imaginária e dessas aptidões em obras arquitetônicas nas igrejas, capelas,
conventos que construíram e nos quais o operário foi aquele selvagem que se
ocidentalizava na nova tarefa.
Alfabetizando intensamente, despertando inteligências, interpretando os
estilos de vida característicos das duas sociedades com que trabalhavam, a dos
aborígines sul-americanos e a dos europeus, e a seguir a terceira, a dos mestiços,
os Jesuítas escolarizaram numa técnica pedagógica que chamaríamos hoje de
revolucionária, inovando à luz do que a lição diária ensinava. Foram os artífices
de uma grande obra de inteligência, preparando, até meiados do século XVIII,
quando se inicia a experiência laica de Pombal, os homens que serviriam ao Brasil
nos vários postos que lhes coube ocupar, como também nas formas da imaginação
literária e artística anterior ao iluminismo.
Para concluir, a pergunta natural: teria sido Nóbrega o primeiro mestre-
escola, na linha de frente dos dias iniciais de nossa Pátria, quando se iniciava a
experiência pedagógica? Não foi Nóbrega, então às voltas com a montagem da
engrenagem da Companhia? Diz bem Serafim Leite — o primeiro mestre escola
foi Vicente Rijo Rodrigues, nascido em São João da Talha e chegado ao Brasil
com Nóbrega, tendo 21 anos de idade. Ano de 1549, mês de Março. Dia 29. Não
se tinham passado duas semanas, escreve Serafim Leite, e já Vicente começaria a
ensinar — ler e escrever, esclareceria Nóbrega, aos meninos da terra. Era o
princípio. Outras escolas se iriam abrir. O Colégio de São Paulo, origem real da
metrópole, o Colégio da Bahia, o Colégio do Rio, seriam a ampliação daquela
primeira aula de lêr e escrever. Nóbrega comandava a empresa. Voltemos àquelas
conclusões anteriores: a Companhia ia realizar uma tarefa gloriosa. Nóbrega,
estadista, civilizador, lançara as bases da empresa heróica.
— 92 —
Letras
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
JOSUÉ MONTELLO
ARA justificar a coerência de seu culto literário a Castro Alves, dizia Afrânio
Peixoto que o grande poeta, para cada um de nós, é sempre aquele que nos
encantou a juventude.
Pode fluir o tempo, mudar a moda, alterar-se o gosto, surgir outro grande
poeta, mas não se desvanece de nosso espírito a admiração matinal pelo velho
bardo que interpretou nossas primeiras emoções, quase sempre no texto de uma
antologia escolar.
Nesse ponto, conviria alterar o reparo de Wordsworth, que Machado de
Assis aproveitou nas Memórias Póstumas de Brás Cubas: não é a criança que é o
pai do homem — é o adolescente.
Vicente de Carvalho, lido na adolescência, vai com seu jovem leitor pelo
resto da vida, cantando-lhe na memória as estrofes do Pequenino Morto, as
redondilhas de A Flor e a Fonte, ou os versos brancos das Palavras ao Mar.
Um exemplo? Ei-lo aqui. Quando o poeta paulista publicou Rosa, Rosa de
Amor, Roquette-Pinto era ainda menino-e-môço, estudava medicina, e começava
a dividir a inteligência entre o gosto das letras e a paixão da ciência. Como foi por
esse tempo que se emocionou com os versos de Vicente de Carvalho, nele
reconheceu por toda a vida «o seu Poeta».
Já autor de Rondônia, com a dupla reputação de grande escritor e grande
cientista, quis conhecer, numa de suas viagens a São Paulo, o lírico dos Poemas e
Canções. Encontrou-o numa sala adornada de livros, «rodeado de amigos
enlevados, o olhar muito doce e algo risonho, o gesto vivo se bem que mutilado.»
E não lhe pôde falar, «siderado pela emoção de ouvir a voz que tanto tempo
buscava.»
Foi o poeta quem desfez o silêncio:
Pois é o senhor! Tão moço!
E com uma expressão de tristeza nos olhos miúdos:
E o senhor dirá — «tão velho esse poeta lírico!»
A mudez de Roquette-Pinto, ao defrontar-se pela primeira vez com Vicente
de Carvalho, corresponde ao mais belo eloqio do poeta, e faz
P
JOSUÉ MONTELLO
lembrar o silêncio de Machado de Assis diante de José de Alencar, que o mestre
de Dom Casmurro assim recordou: «A sensação que recebi no primeiro encontro
pessoal com êle foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada,
contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver
passar Napoleão.»
A verdade é que, relido depois de passada a juventude, Vicente de Carvalho
se enriquece com outras razões de admiração consciente, e que advêm da
autenticidade de sua poesia e do rigor artístico com que foi esta lucidamente
elaborada.
É conhecido o caso de uma carta colocada no Correio de Paris com esta
simples indicação: Ao maior poeta da França. Versado em poesia, o funcionário
da agência postal mandou entregá-la a Victor Hugo. Este, modestamente, recusou-
se a abri-la: enviou-a a Lamartine. Consciente de seu gênio, Lamartine rasgou o
envelope, e teve esta surpresa: a carta era dirigida a Alfred de Musset.
Não sei se a anedota é verdadeira. O que posso afirmar é que ela, na sua
urdidura e no seu desfecho, guarda em si a dose de ve-rossimilhança que dispensa
a veracidade absoluta.
Caso análogo poderia ter ocorrido no Brasil ao tempo de Olavo Bilac e
Alberto de Oliveira. E um dos dois, ao descerrar a carta, talvez ali encontrasse o
nome de Vicente de Carvalho.
Basta lembrar que, vivos os três poetas, Medeiros e Albuquerque reconheceu
no mestre paulista essa preeminência literária.
A celebração do centenário de nascimento de Vicente de Carvalho. como
acontecimento de relevo nacional, não corresponde à iniciativa exclusiva de uma
elite intelectual, interessada em impor-lhe o nome às novas gerações — porquanto
a sua glória de ontem perdura na glória de hoje, a despeito dos quarenta e dois
anos que nos separam da morte do poeta.
Por isso, ao contrário do que por vezes ocorre com as cerimônias
comemorativas de centenário de nascimento, não nos reunimos aqui para reavivar
a lembrança de Vicente de Carvalho. Sua popularidade se mantém nos dias atuais,
à revelia das transformações por que passou a poesia brasileira depois da
publicação triunfal dos Poemas e Canções.
Um dos jovens poetas que, ao tempo da Semana de Arte Moderna, iriam
assumir posição de vanguarda na transformação literária do Brasil, — refiro-me a
Mário de Andrade — escreveu na fase polêmica do Modernismo estas palavras
veementes: «Quanto ao senhor Alberto de Oliveira e a Olavo Bilac, tenha
paciência a idolatria dos brasileiros, estão um degrau, um degrauzinho abaixo do
senhor Vicente de Carvalho».
O reconhecimento da superioridade do poeta paulista, por parte de um jovem
poeta revolucionário, no período em que se procedia à liquidação ruidosa dos
valores parnasianos, é mais do que um juízo
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
crítico, capaz de ser confirmado pela opinião de outros magistrados: corresponde
àquela consagração da posteridade, já reconhecida pelo lugar-comum, e que
somente se pronuncia e faz ouvir através da palavra das novas gerações.
No entanto, aparentemente, a poesia de Vicente de Carvalho estava longe de
harmonizar-se com a inquietação estética de que Graça Aranha se fizera o arauto,
na tribuna da Academia, em junho de 1924.
* * *
Cumpre ressaltar desde logo o que ainda não foi lembrado: o centenário do
grande poeta parnasiano ocorre no ano em que deveria comemorar-se
historicamente o centenário do Parnasianismo.
Na verdade, foi entre março e junho de 1866 que apareceu em Paris, numa
edição Lemerre, a primeira coletânea do Parnasse Con-temporain, recueil de vers
nouveaux, de que se originaria a escola literária a que pertenceu, por várias razões
que adiante assinalarei, o mestre de Rosa, Rosa de Amor.
Poeta lírico, fiel aos valores tradicionais do verso de língua portuguesa, a
que procurara imprimir o cunho das matrizes clássicas, Vicente de Carvalho não
desdenhou cultivar os velhos temas literários, de que nos deixou esta justificativa
em prosa: «Tenho ouvido afirmar com desdém que o amor é um velho tema.
Velho, será; envelhecido, não — nem na poesia, nem na vida. Anacreonte e
Petrarca, Salomão e Byron, Ovídio e Musset, Camões e Hugo, viveram e
versejaram separados uns dos outros por séculos de distância; e todos amaram de
amores novos e viçosos, e todos cantaram o amor com vozes novas e frescas. Por
que supor estancada de repente uma fonte de inspiração que em todos os tempos
manou sempre abundante
Desse modo, quando denominou de Velho Tema a primeira parte dos
Poemas e Canções, o poeta conscientemente se colocava numa linha de
inspiração tradicional, que lhe cumpria renovar com os recursos de seu espírito
criador.
Num verso de Camões, levemente modificado, com que abre o segundo
soneto do livro, como que o poeta quer deixar sentir o seu propósito deliberado de
inserir no patrimônio lírico do maior poeta da língua o seu próprio património.
E o que daí resulta, longe de ser a cópia submissa, é a contribuição pessoal
de incontestável merecimento.
O pintor Vlaminck deu um dia a Derain esta lição singela: «Se queres pintar
alguma coisa que seja realmente original, começa, diante da tela branca, por
pensar em um mestre do Louvre; tenta igualá-lo; não o conseguirás; mas, graças
ao que tu não terás sabido fazer, o quadro será teu, essencialmente teu».
JOSUÉ MONTELLO
Interrogado certa vez sobre os seus métodos de trabalho e de composição
literária, Vicente de Carvalho confessou que não os tinha: escrevia prosa quando
sentia necessidade de dizer alguma coisa. Quanto aos versos, não os compunha
quando queria, mas quando eles queriam,
Vinha-lhe a inspiração poética por um processo de elaboração misteriosa, de
que o próprio poeta não se dava conta. Porém, uma vez na posse de seu tema, êle
o trabalhava e polia, lucidamente, conscientemente, para que a palavra se
ajustasse com exatidão ao estado de graça da revelação poética.
Seguiria a lição de Vlaminck, no plano da poesia? Parece-nos que sim.
Ao sabor da redondilha popular, que reconhecia ser o metro por excelência
em língua portuguesa, foi assim que êle cantou ao fim da juventude:
Sou como a corça ferida Que vai,
sedente e arquejante, Gastando uns
restos de vida Em busca da água
da fonte
E já na maturidade, senhor como ninguém da redondilha maior, escreveu a
quadra que Cassiano Ricardo considera a mais perfeita do idioma:
Haverá queixa mais justa Que a do
feliz que se queixa? Ai, o bem que
menos custa, Custa a saudade que
deixa,
O poeta tentaria imitar os mestres de sua predileção, desde Camões a
Gonçalves Dias, e terminava por encontrar a si mesmo, na arte de exprimir o que
realmente sentia, com a sua cultura, a sua emotividade, o seu bom gosto.
Embora houvesse estreado em 1885, com as Ardentias — a que se seguiram
os versos de Relicário, quatro anos depois, Vicente de Carvalho ficaria na
literatura brasileira como o autor de Poemas e Canções, aparecido em 1908, com
um prefácio de Euclides da Cunha.
Em 1912, o poeta reuniria, sob o título de Versos da Mocidade, os poemas
de Ardentias e Relicário, a que acrescentou poesias avulsas, correspondentes à
mesma fase de sua vida literária.
Tanto os poemas de Ardentias quanto os de Relicário aí aparecem
severamente modificados pelo rigor formal do poeta. Daí a confissão com que
abre o volume: «É este um livro novo feito de versos velhos». E acrescentava: «A
todos eles fêz o autor, tanto quanto lhe foi possível, as modificações precisas
para os limpar dos defeitos de
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
forma que os desfeavam. Os defeitos corrigidos entendiam particularmente com o
respeito que se deve à língua em que se escreve».
* * *
É essa credencial — a do rigor da forma, na técnica do verso — que situa
Vicente de Carvalho entre os mestres do parnasianismo brasileiro. À semelhança
do que ocorreu com os três mosqueteiros, que eram quatro, — observou Medeiros
e Albuquerque, saudando os Poemas e Canções — os três grandes poetas
parnasianos do Brasil tinham de ser: Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto de
Oliveira e Vicente de Carvalho.
Dos quatro, Vicente de Carvalho é o poeta de índole romântica por
excelência. Faltou-lhe, para ser na verdade um parnasiano, a impassibilidade
preconizada pelos criadores da escola na poesia francesa. Em compensação filiou-
se o poeta ao positivismo filosófico, que exerceu sensível influência no
movimento literário da segunda metade do Século XIX, em Paris.
Sua profissão de fé, como artista do verso, êle a exprimiu nasças palavras:
«Um artista, tanto quanto se sente com forças para o fazer, tem sempre o direito
de corrigir e melhorar a sua obra, procurando dar-lhe a forma definitiva, isto é, a
forma que mais se aproxima da relativa perfeição ao alcance de seus meios: o
ponto em que se reconhece afinal de todo incapaz de fazer melhor é o último
limite em que deve deter, desanimado e vencido, o seu esforço.»
Quando se procura caracterizar o movimento parnasiano, à luz dos
ensinamentos recolhidos nos manuais de história literária, chega-se à conclusão
de serem estas as suas características essenciais: a impassibilidade, a identificação
da arte com a ciência, e o cuidado da forma.
Na realidade, o movimento não teve uma orientação harmônica, que
coerentemente o distinguisse desde as suas origens. Pelo contrário: apresentou
tendências diversas, que diferenciaram três gerações: a primeira teve em
Theophile Gautier a sua figura magna; depois veio a geração de Banville e
Leconte de Lisle; por fim, a geração de Catulle Mendes, Sully Prudhomme e
Heredia.
A doutrina da arte pela arte, que aparentemente domina o parnasianismo, é a
rigor apenas uma de suas correntes. Porque há grandes poetas que dela se afastam,
procurando levar a outros campos os objetivos da poesia, Gautier pensava assim.
Mas assim não pensava Leconte de Lisle, para quem a poesia deveria tender a se
unir, e mesmo a se confundir com a ciência, de modo que entre o Belo e a
Verdade fôsse perfeita a concordância, no plano dos valores do espírito.
Diz -nos Pierre Martino, estudando exaustivamente as várias tendências do
parnasianismo francês, que essas tendências se conciliam
JOSUÉ MONTELLO
nestas duas repulsas: a incoerência da ideia e a incorreção do verbo. São essas, no
plano da estética literária, as duas linhas seguidas pela poesia de Vicente de
Carvalho.
Do início ao fim da sua obra, não se afastou do cabedal de ideias e de temas
líricos que lhe cantaram na inspiração. Mesmo quando fêz a poesia de tom social,
que poderia arrebatá-lo a um tom mais discursivo ou demagógico, soube
reencontrar de pronto a sua autenticidade lírica, que o devolvia ã naturalidade e à
fluência de seu verso.
O gosto da palavra, que poderia advir-lhe da cultura clássica, êle o requintou
na simplicidade intencional, partindo deste princípio, que Martins Fontes recolheu
da boca do poeta: «Poesia para mim é coisa que se entenda.»
* * *
A poesia de Vicente de Carvalho escapou à deformação da literatura pela
literatura graças a estes dois fatores: a genuinidade de seu verso, como expressão
de um estado de espírito do poeta, e a temática de sua poesia, como expressão de
uma realidade objetiva.
Essa realidade o levou a ter olhos para surpreender a paisagem brasileira,
recolhida em contacto direto com a natureza, de que se fêz o pintor de tintas
exatas, sem nada falsear ou deformar.
Obedecendo ao que via ou sentia, convertia-se no intérprete de suas emoções
sutis, com uma graça que lembra os momentos mais felizes da naturalidade
garrettiana:
A inspiração de um poeta é como um solo inculto
Que à toa se abre em flor: Todo esse turbilhão de
ideias em tumulto Que, nem eu sei por que, rimei com
tanto ardor,
Veio-me de ter visto Pela janela do meu
quarto de doente Que maravilha?
Isto: Um trecho muito azul de céu
alvorescente; Um pedaço de muro engrinaldado de hera;
E, resumo feliz de toda a Primavera, Ao leve sopro de
uma aragem preguiçosa O balanço de um galho
embalando uma rosa. . .
O tom romântico da grande maioria dos poemas de Vicente de Carvalho
igualmente se observa nos poemas de Alberto de Oliveira
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
e de Olavo Bilac, menos talvez nos de Raimundo Correia. Convém acentuar que o
nosso Parnasianismo não se voltou agressivamente contra o Romantismo e o
Classicismo, senão que lhes recolheu a herança literária, realizando assim o seu
ideal estético sem resvalar na polêmica excessiva que dissocia as gerações num
jogo de contrastes e confrontos.
Também na França o Parnasianismo não se voltou polemicamente contra o
Romantismo. Basta lembrar que Theophile Gautier, um dos mais aguerridos
participantes da batalha do Hernâni em 1830, é um dos chefes da nova escola: seu
poema L'Art com que fecha os Emaux et Camèes. não pode deixar de ser
lembrado como documento de capital importância, entre as peças representativas
do movimento parnasiano.
Também Banville, que comparte com Gautier, e ainda com Le-conte de
Lisle, a trindade do parnasianismo, não se cansou de admirar e estudar a poesia do
mestre romântico por excelência, Victor Hugo. A esse respeito, vale citar este
pequeno trecho do diário do poeta, com a data de 7 de novembro de 1870: «Meu
mestre, Victor Hugo, que estudo e admiro fielmente há trinta anos, como o mais
respeitoso e o mais humilde de seus discípulos, sabe qual é minha veneração, qual
é minha adoração por sua obra».
Se há quem presuma que os mestres simbolistas arregaçaram as mangas para
se atirar pouco depois ao pescoço dos parnasianos, ponho aqui sob seus olhos esta
confissão de Mallarmé, na Symphonie Litte-raire: «Nas horas em que a alma
rítmica reclama versos e aspira ao antigo delírio do canto, meu poeta é o divino
Thédore de Banville, que não é um homem, mas a própria voz da lira».
Baudelaire, por sua vez, ao publicar Les Fleuvs du Mal, em 1857, dedica-se
com profunda humildade a Gautier, em quem reconhece o seu venerando mestre e
amigo, poeta impecável, «parfait magicien ès lettres françaises.»
Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo harmonizaram-se em mais de um
poeta, não obstante a diversidade de temas, tendências e soluções formais que a
história literária tornou ainda mais sensível com a perspectiva do tempo.
Andrade Muricy assinalou em Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e
Vicente de Carvalho o influxo do simbolismo, claro testemunho de que, no culto
da forma e na coerência da ideia, sabiam aceitar as soluções novas trazidas à
poesia por Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, herdeiros diretos da lição estética de
Baudelaire.
Entre as poesias de Vicente de Carvalho que confirmam o influxo
simbolista, cita Andrade Muricy Pequenino Morto, Sugestões do Crepúsculo e
Fantasias do Luar, que Manuel Bandeira incluiu na sua Antologia dos Poetas
Brasileiros da Fase Parnasiana.
JOSUÉ MONTELLO
Bandeira preferiu ilustrar a influência simbolista em Vicente de Carvalho
com os versos de Ultima Canção, uma evidente paráfrase de Maeterlinck:
E se acaso voltar? Que hei de dizer-lhe, quando Me
perguntar por ti?
Dize-lhe que me viste, uma tarde, chorando. .. Nessa
tarde parti.
Se arrependido e ansioso ele indagar: «Para onde? Por onde
a buscarei?»
Dize-lhe: «Para além... para longe...» Responde Como
eu mesma: «Não sei».
Por seu gosto da palavra como exatidão conceptual e ainda pela eleição de
seus motivos de inspiração, o Parnasianismo tendia naturalmente a transformar a
forma numa fórmula, e daí ter durado, na poesia brasileira, até este século, como
uma poesia decadente, própria a disfarçar na sonoridade do verso pacientemente
castigado a mediocridade do poeta.
Bandeira, em 1918, no poema Os Sapos, que publicou em Car-naval. no ano
seguinte, satirizou essa poesia envelhecida e gasta:
O sapo-tanoeiro.
Parnasiano aguado, Diz:
Meu cancioneiro Ê bem
martelado.
Vede como primo Em comer
os hiatos! Que arte! E nunca
rimo Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio Faço
rimas com Consoantes
de apoio.
Vai por cinquenta anos Que
lhes dei a norma: Reduzi sem
danos A formas a forma.
Clame a saparia Em críticas
céticas: Não há mais poesia, Mas
há artes poéticas...»
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
A poesia de Vicente de Carvalho escapava à zombaria de Manuel Bandeira
porque jamais encontrara na forma o seu artifício. Podia-se dizer que, malgrado a
sua subordinação ao rigor, ela provinha mais das matrizes líricas de língua
portuguesa que da lição contemporânea dos parnasianos franceses. Filiava-se
menos a Heredia e Leconte de Lisle que a Gonçalves Dias, Garrett e Camões.
O próprio Vicente de Carvalho, dois anos depois de publicar o seu primeiro
livro de versos, expôs em prosa, no prefácio a um livro alheio. Ementário, de
Gastão Teixeira, a sua orientação poética: «Vê-se que a tua musa não procurou
artificiosamente a frase, e antes lhe saiu esta espontânea com o pensamento. Para
muitos será isso um pecado; para mim, que prefiro o obscuro rouxinol mavioso da
Menina e Moça aos pavões bizarros do parnasianismo, para mim essa simpli-
cidade possui verdadeiro encanto. «E acrescentava, linhas adiante: Não
compreendo essa arte que faz da beleza da frase o valor exclusivo do verso. A
poesia moderna faz-me lembrar os manequins destinados à reclame dos alfaiates:
por fora, desenham-se as formas corretas da roupa bem talhada; dentro, dorme um
pedaço de pau toscamente ajei-tadinho ao feitio do corpo humano. Entretanto, não
defendo o desleixo da forma. Penso que a frase, como roupagem que é do
pensamento, deve ajustar-se-lhe com elegância e correção. Apenas não quero que,
por amor ao apuro casquilho, se faça da poesia o manequim do verso.»
A condenação do parnasianismo, feita nesses termos objetivos pelo jovem
poeta, seria repetida no prefácio dos Poemas e Canções por Euclides da Cunha,
quando alude ao «parnasianismo, com seu culto fetichista da forma.»
Poder-se-ia dizer que Vicente de Carvalho foi parnasiano sem querer. Faltou-
lhe, no caso, a deliberada intenção, que conduz à ortodoxia. Mas outros valores
que o aproximaram do parnasianismo, sobretudo o gosto da forma, que aprimorou
desde cedo, sem contudo se deixar empolgar pela fascinação da forma fria,
tendente a excluir o sentimento do poeta, e de que a sua conterrânea Francisca
Júlia, nos legou exemplos admiráveis, entre os mais perfeitos de nossa literatura, o
que autorizou o mesmo Vicente de Carvalho a considerá-la, «senão o maior, o
mais puro representante do parnasianismo na língua portuguesa».
Embora possuísse no mais alto grau o domínio técnico do verso, como jóia
de ourivesaria parnasiana, e conhecesse os recursos expres-sionais do idioma
recolhidos nas matrizes clássicas, o mestre dos Poemas e Canções sempre se
orientou no sentido da simplicidade formal, que instantaneamente se comunica ao
seu leitor, na graça lírica dos moldes tradicionais.
Se Vicente de Carvalho houvesse sobrevivido à fase polêmica do
Modernismo brasileiro, não se teria desviado de seu caminho. E não apenas
porque o seu parnasianismo nada tinha de artificial ou inautêntico, mas sobretudo
por este motivo capital: êle pertencia à estirpe
JOSUÉ MONTELLO
dos poetas cuja mensagem lírica tende a se concentrar num único documento, ou
seja: o livro que lhes exprime a reação em face do mundo e da vida e para cuja
elaboração sentem realmente ter nascido.
Por isso, não somente cultivou os velhos temas, que pareciam exauridos na
ordem dos valores poéticos, mas voltou aos temas que já haviam inspirado o seu
estro e aos quais ainda podia dar um novo toque sutil ou um matiz mais suave,
seguindo a lição da luz que entrava por sua janela, no recanto praiano de Indaiá, e
que todas as tardes refazia o mesmo ocaso, sem nunca repetir o colorido e as
gradações do entardecer.
O tema da fonte que rola para o mar figura em dois passos da obra de
Vicente de Carvalho: Em Rosa, Rosa de Amor, incluído nos Poemas e Canções,
em 1908, depois de publicado como poesia autónoma em 1902, e nas Poesias
Avulsas, escritas entre 1889 e 1895 e reunidas aos Versos da Mocidade, em
1902.
É oportuno cotejar os dois poemas para sentir, através de suas modificações e
de seu enriquecimento estrutural, o processo de criação do poeta, reelaborando
beneditinamente os temas que lhe tocavam a sensibilidade.
Dizia êle, no poema primitivo:
Eu sou conto aquela fonte Que vem
tão triste, a chorar, Desce da
encosta do monte, Corre em
procura do mar
Perdição de minha vida, Meu amor!
bem compreende Onde vou nesta
descida. .. E vou chorando e descendo. .
.
Pobre fonte! Enfim baqueia Na
vargem, sempre a chorar
1
: E turva,
turva da areia, Corre... corre para o
mar...
Perdição de minha vida. Amor que
me vais levando, Terá fim esta
descida?
Há de ter. . . Mas onde? e quando? Com
pouco mais que descaia, La vai a fonte
parar: Chega na beira da praia, Morre nas
ondas do mar. . .
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
Em Rosa, Rosa de Amor, o poeta extrai do tema — a fonte que desce para o
mar — um conteúdo novo, de intensidade dramática, no diálogo entre a fonte e a
flor:
«Deixa-me fonte!» Dizia A
flor, tonta de terror. E a fonte,
sonora e fria, Cantando,
levando a flor.
«Deixa-me, deixa-me, fonte! Dizia
a flor a chorar: «Eu fui nascida no
monte. .. Não me leves para o
mar».
E a fonte, rápida e fria Com um
sussurro zombador, Por sobre a
areia corria, Corria levando a
flor,
«Ai, balanços do meu galho,
Balanços do berço meu; Ai, claras
gotas de orvalho Caídas do azul
do céu!. .
Chorava a flor e gemia,
Branca, branca de terror, E a
fonte, sonora e fria, Rolava,
levando a flor.
«Adeus, sombra das ramadas,
Cantigas do rouxinol; Ai, festa das
madrugadas. Doçuras do pôr do sol;
«Carícias das brisas leves Que
abrem rasgões de luar. .. Fonte,
fonte, não me leves, Não me leves
para o mar...»
As correntezas da vida E os restos
do meu amor Resvalam numa
descida Como a da fonte e da flor .. .
Os dois poemas, postos em confronto, deixam sentir que, na concordância do
ritmo e do tema primitivo, o segundo poema ganhou um novo elemento de
comparação: enquanto no primeiro o poeta compara
JOSUÉ MONTELLO
a fonte ao amor que o vai levando, no segundo a fonte é a vida, e a flor — o seu
amor.
Esse volver aos velhos temas, dando-lhes maior intensidade ex-pressional
como substância de poesia, proporciona-nos um argumento a mais em favor da
tese de que Vicente de Carvalho é realmente o poeta de um único livro, que veio
compondo e aprimorando ao longo da vida.
* * *
Neste ponto, acentuemos que, sem embargo do que trazia de instintivo em si,
como dom criador, Vicente de Carvalho reelaborava não apenas a própria poesia,
para levá-la ao mais extremo aprimoramento, mas também as antigas matrizes
poéticas, que o mestre retoma conscientemente para lhes dar feição pessoal.
Os dois poemas atrás citados constituem ressonância sensível da poesia de
Gonçalves Dias, com a qual a poesia de Vicente de Carvalho tem outras
afinidades, sobretudo a da paixão pelo mar.
Chego a admitir que, em Rosa, Rosa de Amor, claramente filiada à poesia
garrettiana com os dois versos de Garrett que lhe servem de dístico, há também
uma reminiscência gonçalvina, pois foi o cantor dos Timbiras quem primeiro
aproveitou como legenda de um poema aqueles dois versos, na poesia Rosa no
Mar!, incluída nos Segundos Cantos, em 1848.
Os poemas A Concha e a Virgem e Não me Deixes, de Gonçalves Dias,
antecipam-se aos dois poemas de Vicente de Carvalho, na mesma linha de
inspiração lírica e ainda de solução métrica.
Veja-se o primeiro poema:
Linda concha que passava, Boiando por
sobre o mar, Junto a uma rocha, onde
estava Triste donzela a pensar,
Perguntou-lhe: Virgem bela, Que
fazes no teu cismar ?
E tu? pergunta a donzela,
Que [azes no teu vagar ?
Responde a concha: Formada Por
estas águas do mar, Sou pelas águas
levada, Nem sei onde vou parar!
Responde a Virgem sentida, Que
estava triste a pensar:
Eu também vago na vida,
Como tu vagas no mar!
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
Vais duma a outra das vagas, Eu
d'um a outro cismar; Tu indolente
divagas, Eu sofro triste a cantar.
— Vais onde te leva a sorte, Eu,
onde me leva Deus: Buscas a vida,
eu a morte; Buscas a terra, eu
os céus!
A concordância de ritmo e de tema, com o natural afastamento imposto pela
renovação criadora do parnasiano, repete-se no poema Não me deixes, de que A
Flor e a Fonte, de Vicente de Carvalho, seria apenas uma paráfrase, se o poeta
paulista não renovasse a seu modo a inspiração do poeta romântico, ao sabor da
redondilha popular:
Debruçada nas águas d'um regato
A flor dizia em vão À corrente, onde
bela se mirava . .. «Ai, não me deixes,
não!
Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão: Límpido ou
turvo, te amarei constante:
Mas não me deixes, não!»
E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão; E a flor sempre a
dizer curva na fonte:
«Ai, não me deixes, não!»
E das águas que fogem incessantes
A eterna sucessão Dizia sempre a flor, e
sempre embalde:
«Ai, não me deixes, não
Por fim desfalecida e a côr murchada,
Quase a lamber o chão, Buscava ainda a
corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva~a do seu torrão; A afundar-se
dizia a pobrezinha:
«Não me deixaste, não !»
Do confronto dos poemas logo se evidencia que Vicente de Carvalho,
recolhendo a inspiração inicial nos versos de Gonçalves Dias, deu
JOSUÉ MONTELLO
ao tema uma orientação diferente, que enriquece o seu vigor dramático. Enquanto
no poema do bardo maranhense a flor pede à corrente que a leve consigo, no
poema de Vicente de Carvalho a solicitação é precisamente o contrário: a flor quer
permanecer na encosta do monte, de onde a corrente a tirou para levá-la ao mar.
A exploração do mesmo tema por dois poetas, cada qual a lhe dar a sua visão
lírica e pessoal, é mais do que um encontro — é uma afinidade de espírito e
sensibilidade, que situa Vicente de Carvalho na alta linhagem literária de
Gonçalves Dias.
Este, por seu lado, soube dar o exemplo dessa concordância de inspiração, ao
recolher na lição garrettiana das Folhas Caídas a nota pungente que fêz vibrar a
seu modo, e aprimorando-a, nas estrofes imortais de Ainda uma vez, adeus !
* * *
O tema das ilusões que se vão do coração na adolescência, como voam as
pombas dos pombais, e que serviu de inspiração ao soneto de abertura de
Raimundo Correia nas Sinfonias, em 1879, reaparece nas Ardentias de Vicente de
Carvalho:
Ai, o primeiro amor! Quem as não teve Na
alegre madrugada dos quinze anos, As ilusões
da adolescência calma,
Antes que a [ria neve
Dos tristes desenganos
Lhe amortalhasse a alma ?
Vêm, quando é primavera Como um
bando de pássaros joviais; Mas, ao fugir a
primavera, vão-se,
Vão-se, e não voltam mais.
Tais encontros da poesia de Vicente de Carvalho com a poesia de outros
poetas poderiam ser levados à conta de impregnação literária — para
empregarmos uma expressão de Gabriel des Hons sobre a sobrevivência da frase
racineana na frase de Anatole France, — se não correspondessem, como na
verdade correspondem, as concordâncias ocasionais, explicativas do processo de
elaboração poética do mestre das Palavras ao Mar.
Nada mais ilustrativo, para o conhecimento do rigor técnico com que o poeta
elaborava as suas poesias, do que a consulta aos originais manuscritos dos Versos
da Mocidade, que eu tive a boa fortuna de compulsar por especial gentileza de
uma das filhas de Vicente de Carvalho, na Capital paulista. Êle não se limitou,
depois de pronta a cópia manuscrita de seu punho, a emendar versos e substituir
estrofes: elimi-
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
nou poemas inteiros, que não condiziam com os rigores de seu bom gosto, e a
verdade é que vários desses poemas não desdizeriam da sensibilidade e da arte de
quem os escreveu.
Ter-se-ia calado o poeta, depois de 1908, quando publicou os Poemas e
Canções ? Nos dezesseis anos que ainda viveu, a fonte de sua inspiração só de
longe em longe nos traz a melodia de seu canto, sem que Vicente de Carvalho,
festejado como grande poeta pelo público e pela crítica, se animasse a reunir em
novo livro os seus poemas.
Qual a razão de tal silêncio ? A verdade é que o poeta não se havia exaurido
com os Poemas e Canções. . . Recentemente pude verificar que, reunidas as
poesias que escreveu após a publicação desse livro, outro volume de admiráveis
versos líricos nos falará do poeta, na plenitude de seus domínios de expressão.
Este soneto de última fase, não incorporado aos Poemas e Canções, úiz-nos
bem que, com o tempo, não se havia estancado o fio lírico da inspiração de
Vicente de Carvalho:
Amor como esse foi, tão feliz e tão breve, enche,
num dia, a vida; e logo, logo, quando passa, a vida
que encheu esvazia, deixando um luar de saudade a
fulgir sobre a neve.
Nosso amor foi assim ., . Que esplendor que é/e teve ! Passou
. . . Não o maldigo. Eu fui amado, amando: era o céu. Ainda
agora o revejo, lembrando quanto esse lindo céu era lindo e
foi leve.
Árvore que me deste a sombra dos teus ramos! Eu
abençoo o dia em que nos encontramos, que te deu meu
amor e deu-me teu carinho.
E prosseguindo, ao sol, minha longa jornada, fá
longe, inda abençoo uma árvore isolada que
encontrei, por acaso, à beira do caminho.
* * *
Numa carta que encontrei no arquivo da Academia Brasileira de Letras, dizia
Vicente de Carvalho a seu dileto amigo José Vicente de Azevedo Sobrinho, a 23
de julho de 1922: «Não será ainda desta vez a minha ida ao Rio; e acredito que, já
agora, o adiamento «sine die» é por toda a vasta eternidade. O meu coração, como
é natural ao fim de uma corrida de cinquenta anos, começa a dar sinais de
cansaço. Espero
JOSUÉ MONTELLO
que me leve ainda um pouco adiante, para bem dos meus, alguns dos quais não
dispensam o meu trabalho. Mas estou próximo do termo dessa longa e tumultuosa
viagem para a ... Consolação. Que amargo pessimismo terá inspirado a ideia de
dar tal nome a um cemitério ? — Talvez o mesmo com que, há mais de vinte anos,
eu blasfemei nuns versos que nunca conclui:
Beijo a mão desconhecida, Sim,
beijo a mão inconstante Que me
condenou à vida E pôs a morte
adiante.
Deixemo-nos, porém, de pessimismos, e confiemos da trinitina em cujo
regime estou a manter-me ainda por algum tempo este velho e cansado coração,
cujas batidas são agora como badaladas de sino da tristeza do entardecer. — O
Monteiro Lobato vai dar uma edição de luxo da Rosa do Amor, e a 5" dos Poemas
e Canções. Só há pouco eu soube que a 4ª edição desse livro feliz estava esgotada
e era, de há muito, raríssima em uma ou outra livraria. Quando, na 3ª edição, me
despedi do público, considerando-a a última que veria, estava longe de imaginar
que assistiria à 5ª, e estou arriscado a isso, se a impressão não fôr muito demorada.
— Já não tenho a esperança de concluir a Arte de Amar e o Fausto; ficarão
perdidos, como fragmentos informes e inúteis; falta-me tempo, em todos os
sentidos, pois o pouco de que poderei ainda dispor será, até ao fim, tomado pelos
encargos materiais da vida. Ao fim desta, tenho de trabalhar como se a estivesse
começando, na faina ingrata, tumultuosa e incerta de advogado. O que eu ganhei
na vida foi, realmente, a obrigação de trabalhar até morrer, e o direito de descansar
afinal num grande sono — caso não haja Céu ou Inferno... — Agora, como ad-
vogado, já nem posso gozar senão por curtos dias o meu longínquo, selvagem e
delicioso Indaiá em que descansava amplamente nas minhas férias de Juiz. Cada
vez se distancia mais de mim a humilde esperança de acabar num recanto como
aquele, morrendo na vida simples de praiano e pescador. Acabarei engaiolado na
Cidade e no Trabalho, esmagado e revoltado. Comecei, não há muito, uns versos
de revolta contra esse odioso deus Trabalho, novo Jaghernat, cujo pesado carro
vai, cada vez mais, esmagando as almas e estragando a vida. O fumo das fábricas,
que dia a dia se multiplicam, glorifica-o, como incenso mal cheiroso, sujando o
Céu. E milhões de mocidades se estiolam na tarefa de o servir, escravizadas e sem
alma. Nos meus versos, a nossa cidade alta é uma princesa orgulhosa e opulenta,
cuja fronte engrinaldam as estrelas do céu limpo — e a cujos pés o Braz, planície
chata, trabalha, esmagado. Infelizmente, afazeres urgentes afastaram-me desses
versos, a que não sei se terei ocasião de voltar. Ficarão de certo incompletos como
as blasfêmias que a gripe de 1918 me inspirou, e que, suponho, lhe mostrei. De
tudo quanto vi naquela hecatombe, eu tinha tirado esta conclusão:
Quando Deus o abandona, o homem luta sozinho!
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
Falo pouco de letras, e ainda menos escrevo; e se me estou expandindo tão
longamente é porque sei o seu gosto por essas coisas, e é sempre grato derramar a
alma num seio amigo».
* * *
Pouco inclinado a escrever cartas, Vicente de Carvalho nos legou, nessa
página epistolar a José Vicente de Azevedo Sobrinho, dois anos antes de sua
morte, um documento da maior importância para a biografia de seu espírito.
Dir-se-ia que, tendo dado o melhor de si mesmo nos Poemas e Canções, o
poeta apenas distraiu a pena literária em pequenos devaneios de ocasião, certo de
que, com aquele livro, a cujos cantos se lhe abriram as portas da Academia, já
havia atendido à sua aspiração de sobrevivência espiritual.
No pequeno livro polêmico — de tão alto interesse biográfico — com que
justificou o óbvio, isto é, as razões de sua candidatura à Academia Paulista,
Vicente de Carvalho confessou, com a sinceridade aberta de seu feitio: «De todas
as funções que tenho exercido, e foram já bastantes, e algumas altamente
honrosas, nenhuma sobrepus ou sobreponho à de homem de letras. Só dessa fio a
minha sobrevivêncai espiritual, eu, pobre poeta deserdado da esperança numa
outra vida, e que tem por suprema ambição de seu egoísmo, não um grande lugar
na terra, mas um pequenino recanto na simpatia mais ou menos duradoura de
algumas almas.»
Essas palavras, levemente alteradas para que se aplicassem aos versos dos
Poemas e Canções, Vicente de Carvalho as colocou à entrada deste volume, o que
bem exprime a confiança do poeta no seu livro.
O pequenino recanto na simpatia de algumas almas, que Vicente de Carvalho
sonhara como recompensa de seu trabalho, não seria assim tão escasso e reduzido.
Pelo contrário, a circunstância de aqui nos reunirmos, no começo às festividades
comemorativas do centenário de nascimento do poeta, dá-nos a certeza de que se
alargou com o tempo o espaço de sua glória, testemunhada pela publicação, este
ano, da 17ª edição de Poemas e Canções, numa prova a mais de que seus versos
sobrevivem no favor popular e no aplauso das elites.
A consciência da obra realizada fê-lo tornar sempre ao seu livro, polindo-lhe
e repolindo-lhe os versos, até alcançar a depuração formal que não admitia mais
retoque ou modificação.
Uma vez alcançada essa linha de perfeição, o poeta se contemplava,
embevecido, no espelho do seu verso. E é de ver-se, nos dois atos da peça
Luizinha, em parte inspirada na figura e na vida de Roquette-Pinto, o gosto com
que êle se delicia com os seus próprios poemas, recitados por uma das
personagens da comédia.
Convém ainda acentuar, em louvor do poeta paulista, que Vicente de
Carvalho soube encontrar certas soluções de ordem técnica que lhe
JOSUÉ MONTELLO
dão aos versos, simultaneamente ao extremo rigor formal, a sensação da mais fácil
naturalidade, sem rebuscamentos nem demasias, numa linha de simplicidade
harmoniosa:
Ao pôr do sol, pela tristeza Da
meia luz crepuscular, Tem a
toada de uma reza A voz do
mar.
O tom coloquial ainda acentua mais o virtuosismo de Vicente de Carvalho
na urdidura do verso:
Dizer mal das mulheres é costume De
todo amante que não foi feliz: Um coitado
mordido de ciúme
Tudo maldiz e se maldiz .. . Pois
confesso que nisso se resume
O que fui, o que fiz.
No entanto, se desejava elevar o verso ao ritmo largo dos cantos épicos,
Vicente de Carvalho alcançava o mesmo domínio técnico, de que é paradigma o
poema Fugindo ao Cativeiro:
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena Serra do
Mar.
Em cima, ao longe, alta e serena, A
ampla curva do céu nas noites de geada: Como a
palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas .,.
Um frémito de beleza ainda mais comunicativa faz vibrar^lhe o estro nos
poemas em que o mar é a sua inspiração:
Mar, belo mar selvagem Das nossas praias
solitárias ! Tigre A que as brisas da terra o sono
embalam, A que o vento do largo eriça o pêlo ! Junto da
espuma com que as praias bordas, Pelo marulho
acalentada, à sombra Das palmeiras que arfando
debruçam Na beirada das ondas — a minha alma Abriu-
se para a vida como se abre A flor da murta para o sol
do estio.
* * *
Já houve quem observasse — creio que Chesterton, se mal não me recordo
— que a vaidade, longe de constituir um sentimento condenável, merece o nosso
louvor porquanto, ao contrário do orgulhoso, que só
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
depende de si mesmo, o vaidoso necessita do aplauso alheio como estímulo à obra
que justifica a sua vaidade.
De Vicente de Carvalho se dizia que era excessivamente vaidoso. Certa vez,
num convite impresso da Faculdade de Direito de São Paulo, no qual o seu nome
figurava depois do de Olavo Bilac, ter-se-ia ofendido com essa posposição, só
voltando a sorrir quando lhe foi explicado que a disposição dos nomes obedecera,
não à ordem do mérito literário, mas à ordem alfabética.
Prefiro interpretar esse sentimento de Vicente de Carvalho como a
consciência de seu valor. Êle sabia o que significava, para a sua sensibilidade de
artista e a sua cultura, cada verso que lhe aflorava à inspiração e que submetia à
depuração paciente do mais obstinado rigor formal.
O aplauso do público era-lhe necessário. O julgamento da crítica sabia-lhe
bem ao gosto do elogio. A 19 de abril de 1909, em carta a José Veríssimo, abre o
coração ao crítico severo, a propósito dos Poemas e Canções, que acabara de sair
e o País inteiro festejava: «Pouquíssimos restam dos 1.500 exemplares desse livro,
de sorte que penso em aproveitar a minha passagem por Portugal para fazer uma
nova edição, a que reunirei os versos dos meus dois livros anteriores, Ardentias e
Reli' cario. No meu estado, será quase uma edição póstuma. Eu teria prazer em
pôr sob o meu nome, nessa edição, a indicação — Da Academia Brasileira.
Infelizmente, não é possível. Sinto como sinto outra coisa: pretendo dar em
apêndice no volume alguns artigos da vasta literatura em prosa que, por todo este
Brasil, provocaram os Poemas e Canções. O que me tem chegado às mãos forma
já um volume muito maior do que o livro... E o que sinto é que no meio de tudo
isso não haja uma palavra sua, nem do Araripe».
Em outra carta — igualmente inédita — datada de 11 de abril de 1914, volvia
a falar ao crítico, no mesmo tom amigo: «Uma livraria daqui lembrou-se de dar,
em edição escolar, o meu Fugindo ao Cativeiro. Eu, com franqueza, considero
esse poemazinho, pelo fundo e pela forma, um bom modelo de poesia nacional, e,
como tal, capaz de concorrer para a cultura estética das novas gerações — cousa
de cuja falta tanto se ressente a nossa educação. A edição deve conter anotações
com fim didático, incisivas, chamando a atenção dos professores para as quali-
dades e defeitos (1) quer de fundo, quer de forma, do poema; anotações que
poderão referir-se à concepção, ordem, desenvolvimento dos episódios, modo de
tratar as minúcias, psicologia das personagens, etc. — e às qualidades de estilo e
de métrica. Alguns homens de letras daqui estão colaborando nessas notas; e é
inútil dizer-lhe quanto me alegraria ver associado a esse trabalho o seu
valiosíssimo concurso. Se estiver disposto, e tiver algum vagar, leia o pequeno
poema; e, relendo-o, anote a lápis as impressões que, no ponto de vista didático, a
releitura lhe sugerir. Feito isso, mande-me as suas notas que, estou certo, serão
preciosas. Penso que, para a sua simpatia, o poemazinho merece-lo-á por
JOSUÉ MONTELLO
um título que se lhe não pode contestar: é genuinamente nacional, pelo assunto, e
pelo resto; foi tirado da natureza e da história, diretamente, e não copiado, com
maior ou menor disfarce, do que outros têm escrito, sobretudo em francês. Eu
tenho nisso, decerto, uma parte pessoal, e grande: a honra de ver anotada por
competentes uma obrazinha minha; mas há também um fim útil a atender na
tentativa, o serviço a prestar à educação estética, tão mal servida, de nossa
mocidade. Agradecer-lhe-ei tudo que V. me disser a esse respeito».
Assim como se calou em 1909, calou-se Veríssimo em 1914. E tanto se
retraiu em silêncio, na condição de crítico literário, que opinava sobre os livros do
momento, como ainda incorreu nesta falta injustificável: ignorou a obra de
Vicente de Carvalho na sua História da Literatura Brasileira, que terminou de
escrever em 1915.
Por que assim o fêz — eis um mistério. Veríssimo não poderia ignorar os
méritos do poeta nem excluir-lhe a presença, no capítulo em que tratou de
Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. Por outro lado, distinguia-o
com a sua amizade, direi mesmo: com a sua mais extrema confiança, tanto assim
que solicitou a Vicente de Carvalho um obséquio de ordem pessoal, a que o poeta
prontamente respondeu, com a lealdade de seu feitio: «Quanto a uma promotoria
para seu filho, devo dizer-lhe com franqueza que acho difícil a empresa -— mas
não irrealizável. São Paulo é um viveiro de bacharéis, como sabe, e nesta quadra
negra de crise, que atravessamos, os empregos públicos são disputados com furor.
Sei de chefes políticos de grande influência que lutam para colocar parentes como
promotores e como delegados — e encontram dificuldades sérias. Entretanto, creio
que lhe será possível obter algum empenho daí do Carlos Peixoto, por exemplo,
para o Albuquerque Lins: suponho que, na falta de relações diretas suas, o
Euclides poderá servi-lo nisso perfeitamente. Um pedido desses ao Lins seria
decisivo, de muito mais efeito do que qualquer trabalho feito aqui, onde o Lins faz
o que quer, e não depende de ninguém. Êle depende muito da política federal — e
por muitos laços. Tente esse caminho, que me parece o melhor. Eu poderei dar-lhe
as informações a respeito das localidades».
Só a um amigo — e amigo fraterno — Vicente de Carvalho poderia escrever
nesse tom de franqueza confiante, abrindo lealmente o coração ao companheiro.
Para agravar ainda mais o mistério do silêncio público do crítico, há um
documento epistolar no arquivo da Academia, dando-nos o testemunho de que
José Veríssimo, na correspondência que continuou a manter com o poeta, lhe
enalteceu os versos. Esse documento, datado de 14 de agosto de 1911, é outra
carta de Vicente de Carvalho, ainda dirigida ao seu confrade da Casa de Machado
de Assis: «Agradeço-lhe o que me escreveu do efeito produzido na Academia
pelos meus versos publicados na «Revista». A qualidade simpática deles, creio eu,
é a simplicidade, rara em nossas letraso dadas ao gongorismo, à ênfase, à
desordem. Toda a minha obra poética tem procurado ser uma reação
A PROPÓSITO DE VICENTE DE CARVALHO
contra aquela tendência, que me chocou desde os meus verdes anos. Peço-lhe que,
quando tiver tempo, releia o Rosa, Rosa de Amor ... atendendo ao sentido desse
drama desenvolvido em dez situações culminantes».
É nesse mesmo documento que Vicente de Carvalho alude a um romance,
que teria sido publicado na imprensa de Santos e do qual se perderam os originais.
«Quando estivermos juntos — escreve o poeta — hei de ler-lhe alguns capítulos
de um romance burlesco que escrevi há tempos — e que é talvez a minha obra-
prima. Chama-se Frei Juca, nele não há ninguém chamado Juca, e não aparece
frade algum».
Linhas adiante, acrescentava o poeta: «pretendo ser recebido na Academia
em fins de setembro — e isso mesmo já escrevi ao Araripe. Antes, irei ao Rio,
providenciar sobre a farda, para o que espero unicamente que me dê um ar de sua
graça um filho novo, o 13º dos vivos, a nascer a todo momento».
Antes que Vicente de Carvalho viesse ao Rio, falecia Araripe Júnior, que
deveria dar-lhe as boas vindas em nome da Academia.
Desse modo, não pôde ouvir o poeta o louvor de sua obra pelo grande critico.
* * *
Em face do silêncio de José Veríssimo e do silêncio de Araripe Júnior,
restaria indagar se o outro crítico, que com eles compartia ao tempo o exercício da
crítica militante e da história literária — refiro-me evidentemente a Sílvio Romero
— se teria ocupado da obra poética de Vicente de Carvalho. E a resposta não
deixa de causar estranheza, porque também êle omitiu, nas suas apreciações
literárias, o nome do grande poeta paulista.
Somente no Quadro Sintético da Evolução dos Gênios na Literatura
Brasileira, Sílvio Romero incluiu o mestre dos Poemas e Canções, e assim
mesmo sem um adjetivo, sem o mais ligeiro comentário, numa simples nominata.
Igualmente Ronald de Carvalho omitiu Vicente de Carvalho na sua Pequena
História da Literatura Brasileira. Hermes Vieira, no livro de enternecida
compreensão em que narrou a vida do poeta paulista, encontrou para o silêncio de
Ronald de Carvalho uma explicação estranha. Este, empolgado pelos Poemas e
Canções, teria escrito sobre eles um longo estudo, que remeteu a Vicente de
Carvalho. O poeta, distraído com as muitas ocupações que lhe enchiam as horas,
esqueceu-se de agradecer ao jovem crítico os louvores recebidos. De que não o
fizera por desatenção, tinha Ronald a desculpa em versos do próprio poeta, numa
das estâncias à Caria a V. S., dos Poemas e Canções:
E agora, conhecendo a verdade inteiriça.
Perdoa a um pecador seus pecados mortais,
Perdoa a um preguiçoso os crimes da Preguiça,
E a um bugre como eu sou, não ter na alma insubmissa
O culto da Visita e dos Cartões-Postais!
JOSUÉ MONTELLO
Diante do silêncio do poeta lírico, que interpretou como um agravo, o critico
teria replicado com outro silêncio — o silêncio do nome de Vicente de Carvalho,
entre os mestres do Parnasianismo brasileiro.
Conta-se que Capistrano de Abreu deu a ler a Afrânio Peixoto, ainda em
originais manuscritos, os seus Capítulos de História Colonial, para que emitisse
sobre eles o seu juízo.
Concluída a leitura, Afrânio foi levar ao historiador a notícia de seu
entusiasmo.
E Capistrano, depois de ouvir o amigo:
— Se foi só isso que você notou como novidade no livro, já vi que perdi o
meu tempo. O que pretendi com êle foi mostrar que se poderia escrever a história
colonial do Brasil omitindo o nome de Tiradentes.
Dir-se-ia que Sílvio Romero, José Veríssimo e Ronald de Carvalho, omitindo
o nome do poeta paulista nas suas histórias da literatura brasileira, teriam
obedecido a um capricho análogo ao de Capistrano de Abreu.
Mas a verdade é que, à revelia desse capricho do historiador, o nome de
Tiradentes continua na história do Brasil, trazido pela memória do povo, como um
dos símbolos essenciais da nacionalidade.
Esse mesmo povo, à revelia do silêncio dos historiadores literários, trouxe
até nós, guardado na sua memória lírica, o nome de Vicente de Carvalho.
Graça Aranha, na famosa conferência em que pugnou pela renovação da
Academia com a implantação do espírito moderno, bateu-se pela genuidade
brasileira de nossa arte. E esclarecia: «Ser brasileiro não é ser selvagem, ser
humilde, escravo do terror, balbuciar uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos
da poesia e da literatura unicamente numa pretendida ingenuidade popular,
turvada pelas influências e deformações da tradição européia. Ser brasileiro —
concluiu o romancista de Canaã — é ver tudo, sentir tudo como brasileiro, seja a
nossa vida, seja a civilização estrangeira, seja o presente, seja o passado».
Aí está, nessas palavras polêmicas, proferidas dois meses depois da morte de
Vicente de Carvalho, a essência mesma da sua obra de poesia. Direi melhor: a
razão de ser de sua modernidade.
Foi por isso que os jovens de 1922 o respeitaram. E é por isso que hoje nos
reunimos aqui para festejar o primeiro centenário de nascimento do poeta, certos
de que a poesia de Vicente de Carvalho, acima das modas que se desfazem e das
paixões que se diluem, nunca deixará de ser, pela autenticidade de sua inspiração
e pela simplicidade e beleza de seus versos,
sobre um muro em ruína uma roseira em flor.
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
TEIXEIRA SOARES
Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa".
(Fernando Pessoa) (Alberto Caeiro)
"Un temple grec n'a point de dedans". (Alain)
1934 foi o ano. Havia eu sido em 1933 designado para exercer as funções de
2º Secretário da Embaixada em Lisboa por Afrânio de Melo Franco, Ministro de
Estado, de quem eu fora Oficial de Gabinete.
Para início de serviço diplomático no estrangeiro, após quatro anos penosos
na Secretaria de Estado e com muito trabalho em jornais como o «Diário de
Notícias» e «A Nação», Lisboa era então um posto sumamente desejado. Lá teria
eu como chefes os Embaixadores Guerra--Duval e Araújo Jorge.
Parti para Lisboa, esperançado de conhecê-la em extensão e profundidade,
interpretando-a, se possível, na beleza sinuosa das suas diferentes cidades, antigas
e modernas, a se espraiarem do alto das colinas para as baixadas.
Eu conseguira ter a sorte em Lisboa de travar conhecimento com um grupo
de escritores portugueses, como José Osório de Oliveira, tão dedicado a assuntos
brasileiros; como seu irmão João de Castro Osório (crítico e editor da obra
completa desse admirável poeta que se chamou Gamilo Pessanha) . João de Gastro
Osório era também o poeta do «Cancioneiro Sentimental». Os dois irmãos, ambos
escritores de alto merecimento, facilitaram-me o conhecimento com outros
escritores, gente jovem e modernista. É claro que também conheci alguns
membros da Academia das Ciências, como Júlio Dantas, Cristóvam Aires,
Joaquim Leitão e outros. Mas, conheci Ferreira de Castro. Teixeira-Gomes, o
maravilhoso prosador, possuidor de lugar próprio na literatura portuguesa,
autoexilara-se para a Argélia, desgostoso com a vida política, onde faleceria
muitos anos depois.
A evocação desses bons tempos leva-me a pensar na casa acolhedora de José
Osório de Oliveira e de sua esposa, Raquel Bastos, também
TEIXEIRA SOARES
escritora. Ficava para as bandas do Castelo de São Jorge, um dos pontos mais
belos como tradição arquitetônica e acúmulo de passado histórico de Lisboa:
casario vetusto e imponente, ruas e ruelas antigas, janelas enfeitadas de gerânios,
gente do povo a subir e descer ladeiras, intensa policromia de telhados, fachadas,
pequenos jardins, grades lavradas, tudo indicando boa origem arquitetônica, bem
como traçado não aparentemente caprichoso, mas obediente a um risco
sistematizado em que o bom gosto muito simples predominava como cristalização
do evolver dos tempos. O Castelo de São Jorge, com suas imponentes muralhas
castrenses, era obra muito antiga no alto de uma colina célebre. Maravilha de
construção militar.
Frequentávamos o Café Martinho da Arcada, nas Arcadas do Terreiro do
Paço, chamado pelos ingleses Black Horse Square por motivo da estátua equestre
de Dom José I. O Terreiro do Paço é uma das mais belas praças do mundo por sua
simetria, tão bela como a Place Stanislas, em Nancy; ou a Plaza Mayor, em
Madrid; mas com a vantagem de abrir-se esplendidamente sobre o Tejo e sobre o
infinito num dilúvio de luzes azuis e douradas como os tons de um quadro de
Francesco Guardi.
Ora, nesse ano de 1934, eu amava Lisboa e me sentia desnorteado com tantas
belezas de cenário físico e de evocação histórica. Por isso, eu costumava sair da
minha casa na rua Almeida Brandão, no bairro da Estrela, rua em que moravam o
monarquista Paiva Couceiro e o Ministro do Ultramar Armindo Monteiro, este
precisamente meu vizinho, e ir até ao Chiado a pé, subindo e descendo, detendo-
me diante das vitrines de antiquários ou de alfarrabistas, interessado por coisas au-
tenticamente portuguesas. Eu sabia que numa rua do meu bairro da Estrela vivera
e morrera velhinho Teófilo Braga, o primeiro presidente do Governo provisório
republicano, trabalhador infatigável, muito lido no Brasil em certa quadra.
Contudo, a obra de Teófilo Braga, com todos os seus defeitos, ainda está de pé,
ainda hoje é compulsada por estudiosos interessados em aprofundar
conhecimentos a respeito da história da literatura portuguesa.
Certa vez, José Osório de Oliveira disse-me, assim de passagem numa
espécie de understatement, que nos reuníssemos na tarde do dia seguinte no
Martinho, porque eu iria ter ensejo de conhecer Fernando Pessoa.
Acorri ao café. Encontrei José Osório de Oliveira e um homem de estatura
mais para alta, magro, sumamente inquieto, olhos vivos por detrás de um pince-
nez que me pareceu pequeno demais para o seu rosto, tipo muito claro mas com
certa coloração de cenoura, bastante calvo, livros e papéis debaixo do braço.
Vestido com simplicidade, mas com limpa decência. Lembro-me da sua gravata
borboleta de pintinhas azuis.
José Osório de Oliveira apresentou-me então a Fernando Pessoa.
Sentamo-nos. Lá fora a claridade era intensa. Mas, dentro do café havia uma
tranquilidade estagnada. Poderíamos conversar num ambiente de camaradagem
sem sermos importunados por desconhecidos.
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
Inconformado, dissidente, rebelde, Fernando Pessoa já gozava de conceito
entre os «happy few», porque se sabia que, no silêncio do seu gabinete, fosse na
rua Ivens ou na rua Pascoal de Melo, fosse na rua Bernardim Ribeiro ou na rua
Coelho da Rocha, se empenhava em escrever uma obra literária muito extensa e
muito profunda, e da qual guardava um segredo permanente. Começara no grupo
da «Renascença Portuguesa», fundada em 1912 no Porto por Jaime Cortesão,
Rodrigo So-lano, Gil Ferreira e Antônio Corrêia de Sousa. A revista desse grupo
era «Águia», publicação de tendências renovadoras e modernistas. O grupo
congregava um poeta saudosista como Teixeira de Pascoais, líricos como Mário
Beirão, Afonso Duarte; prosadores como o Visconde de Vila-Moura, Carlos
Selvagem, Leonardo Coimbra, o pensador da «Filosofia de Bergson» (1934),
Augusto Casimiro, e tantos outros escritores que fizeram nome e exerceram
irradiação renovadora nas letras portuguesas. Em 1913 Fernando Pessoa publicara
seu poema «Pauis», considerado o ponto-de-arranque do movimento literário
independente que confluiu com outras tendências à revista «Orfeu». Esta revista
fora fundada em abril de 1915 por Luís de Montalvor e pelo nosso Ronald de
Carvalho (hoje, tão esquecido...), grupo que se reunia na prosaica Cervejaria
Jansen, na rua Victor Cordon. A revista «Orfeu» tivera duração efêmera, mas
revelara o poeta singular e atormentado Sá-Car-neiro, muito influenciado por
Fernando Pessoa, que resolvera morar em Paris, onde se suicidou.
Em abril do corrente ano, «O Primeiro de Janeiro», do Porto, estampou
curioso artigo, intitulado «Assim nasce e morre a revista Or/eu», de J.G.S. (João
Gaspar Simões, grande crítico da obra de Fernando Pessoa), a respeito dos
cinquenta e cinco anos transcorridos sobre o aparecimento em Lisboa do primeiro
número dessa revista.
Conforme informou J.G.S., a revista «Orfeu» foi fundada por Luís de
Montalvor (cujo verdadeiro nome era Luís da Silva Ramos e que fora Secretário
no Rio de Janeiro de Bernardino Machado, então Embaixador de Portugal),
Fernando Pessoa (já dissidente do grupo da «Águia»), Mário Sá-Carneiro, José
Pacheco, Santa Rita Pintor (depois inimigo figadal de Pessoa, adianta J.G.S.),
Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues e José
de Almada Negreiros. O primeiro número, dirigido por Luís de Montalvor, não
agradou muito aos demais companheiros. 0 segundo número foi organizado por
Fernando Pessoa. O terceiro número, que deveria ser organizado por Sá--Carneiro,
foi composto, não chegou a ser paginado e as fôlhas impressas acabaram sendo
vendidas como papel velho para embrulhos. Dissidências e dificuldades
econômicas puseram têrmo à aventura literária de «Orfeu».
A imensa curiosidade intelectual de Fernando Pessoa levara-o a ensaiar
caminhos novos nas letras portugueses. É preciso assinalar que êle fizera seus
estudos primários e secundários em Durban, Província de Natal, África do Sul,
cidade onde seu padrasto era Cônsul de Portugal. Tais estudos deram-lhe aos 15
anos de idade no exame de
TEIXEIRA SOARES
admissão à Universidade de Capetown, o Prêmio Rainha Vitória, de melhor estilo
em inglês. Isso aconteceu em 1903. Em 1905 Fernando Pessoa regressava a
Portugal, deixando a África do Sul definitivamente. Será muito interessante
assinalar a formação inglesa de Fernando Pessoa. Desde sua chegada a Lisboa,
Fernando Pessoa fizera por conta própria estudos regulares no salão de leitura da
opulenta Biblioteca Nacional da capital portuguesa. Era metódico nesses estudos,
porque lia uma variedade de assuntos, que iam da matemática à filosofia,
esoterismo e religião. Felizes os que sabem frequentar e estudar numa biblioteca
pública, porque no fundo são autênticos heróis de autodidatismo.
A proclamação da República em 1910 seguiram-se anos de crises políticas,
motins, quedas de ministérios. A instabilidade política resultava de uma
interpretação desabusada do conceito de democracia. Claro que todos se gabavam
de ser democratas, mas à sua moda. Como na «Animal Farm», de George Orwell,
todos os animais nascem iguais; mas, uns são mais iguais que os outros.... assim
nesse tempo em que os republicanos só desejavam impor sua vontade, governar a
seu jeito, e usufruir o poder da melhor maneira possível. Reações monarquistas
explodiram e nelas apareceu Paiva Couceiro como chefe. A instabilidade política
e administrativa alarmou muita gente. Espíritos previdentes reconheciam que os
exageros democráticos ou cometidos em nome da democracia deveriam ser
freados por governos decididos à consolidação do país.
A primeira personalidade a surgir como contraste à desordem foi Sidónio
Pais (1872-1918), oficial do Exército, lente da Universidade de Coimbra, antigo
Ministro em Berlim. Convém reler o belo retrato feito por Augusto Casimiro no
seu «Sidónio Pais», de 1921. Fernando Pessoa exaltara num poema a ditadura do
«Presidente-Rei» Sidónio Pais, apresentando-o como uma versão nova do
Encoberto que iria descobrir um novo Portugal. Em nome do patriotismo
Fernando Pessoa tendera a um sebastianismo pragmático no qual Sidónio Pais
deveria ser o motor da renovação nacional.
Esse poema acarretou a Fernando Pessoa muitos aborrecimentos, não
literários, mas políticos. Atacado e ridicularizado por falsos democratas e falsos
intelectuais, Fernando Pessoa reagiu com sobranceria, tornando-se ainda mais
independente e, por conseguinte, rebelde ao academicismo e ã rotina consagrada
em tabus literários
Assassinado na estação central do Rocio por um louco, Sidónio Pais levou
consigo a obra de renovação política e administrativa que instaurara no poder com
a «República nova»; mas, foi um precursor da obra de Salazar. Como também
precursor de Salazar fora o general Sinel de Cordes, representante na antiga
Sociedade das Nações, ao pretender esta conceder a Portugal um empréstimo, mas
sob a fiscaliza-zação da defunta sociedade internacional. Sinel de Cordes repeliu
empréstimo e exigências, retirando-se de Genebra.
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
Assinale-se que, em 1916, Almada Negreiros publicara o famoso «Manifesto
anti-Dantas», que causara escândalo. Em 1917 o mesmo Almada Negreiros
pronunciou no Teatro República sua conferência sobre o Futurismo, divulgando
Marinetti, Soffici a outros escritores italianos. Novo escândalo com a consequente
repulsa dos círculos literários, conservadores e rotineiros. Na revista «Portugal
futurista», que só teve um número publicado em abril de 1917, apareceram
poesias de Fernando Pessoa e um poema de um dos seus famosos heterônimos, o
«Ultimátum», de Álvaro de Campos. É bom lembrar que o primeiro soneto escrito
por Álvaro de Campos, como aparece nas obras completas de Fernando Pessoa, ê
de agosto de 1913.
Ao que eu soubesse, Fernando Pessoa jamais fora funcionário público, o que
era mor escândalo num tempo em que os diferentes ministérios só cuidavam de
nomear protegidos paternalisticamente. No entanto, Fernando Pessoa era pelo lado
materno, neto de um Diretor geral do Ministério do Reino, um jurisconsulto. Não
sendo funcionário público, Fernando Pessoa trabalhava no comércio, fazia
traduções de caráter comercial de várias línguas, era também ocasionalmente uma
espécie de corretor de mercadorias para serem embarcadas para o estrangeiro,
escrevia em jornais e revistas; e muitos anos depois requererá patente de invenção
de um «Anuário Indicador Sintético». Fundara a editora «Olisipo», de duração
efêmera, mas que publicara os seus «English Poems» (1 — II e III séries). Esse
volume bem como «Afen-sagem» foram os únicos livros publicados em vida de
Fernando Pessoa.
Eu fora informado que nos últimos anos da sua vida o escritor tivera um
viver estreito e amargurado, muito preocupado com sua saúde, que não era forte,
bem como arcando com aborrecimentos íntimos. Mas, se por acaso ou não, se
interessava por problemas de mediunidade e esoterismo, se empenhava em
realizar uma obra genial, acumulada através de anos e anos de obscuro sacrifício.
Teria realmente Fernando Pessoa sido forçado por meios mediúnicos (como êle o
dissera) a compor poemas em nome de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro,
Ricardo Reis?
Quando o conheci em abril de 1934, deu-me a impressão de um
temperamento inquieto e nervoso, consumido não por uma ambição mas por
várias ambições, sempre em permanente revolta contra os tabus literários, os
tuxáuas dos arraiais literários e a estreiteza do meio cultural. Inconformado,
dissidente, revoltado, Fernando Pessoa deu-me, ao primeiro relance, a impressão
de ser funcionário da Alfândega, não sei bem por que motivo. Eu sabia que o
grande filólogo Gonsalves Viana fora anos seguidos circunspecto funcionário da
Alfândega de Lisboa, o que não impediu que êle conhecesse russo, árabe e línguas
escandinavas, além do grego e do hebreu clássico. Eu também sabia que o velho e
derreado Caldas Aulete, de tão prestativa memória, fora um modesto professor que
jamais se apresentara, apesar de muito instado, a uma cátedra do velho
Curso Superior de Letras, hoje
Faculdade de Letras; e Caldas Aulete pertencia a um grupo notável constituído
por Antônio Enes, Xavier da Cunha, Brito Rebelo, José Antônio de Freitas (o
maranhense), Barros Lobo e outros. Mas, a personalidade de Fernando Pessoa era
tão rica e tão enigmática que muita coisa se sabia a respeito dele pela via do ouvir-
dizer. Concluí de tanta informação verbal que esse homem pelejava uma vida
heróica, uma vida de trabalho desinteressado, uma vida que era exterioridade e
abissal interioridade. Nossas conversas no Martinho da Arcada congregavam
quase sempre as mesmas pessoas, dando-nos o prazer de ouvir Fernando Pessoa
discorrer sem afetação alguma a respeito dos grandes escritores dramáticos
ingleses que êle bem conhecia, como Ben Jonson, John Webster e tantos outros.
Ademais conhecia a obra de grandes poetas como Coventry Patmore, Swinburne,
W. B. Yeats (o maior poeta da Irlanda, ocultista como Pessoa, e casado com uma
médium famosa, Georgie Hyde-Lee) e desse grande católico Gerard Manley
Hopkins. Fernando Pessoa era cultíssimo em francês, inglês, espanhol e italiano.
Nervoso, inquieto e atormentado, mas sobrepondo-se com heroísmo às
dificuldades da sua vida e da sua saúde, Fernando Pessoa começou a ler-nos uns
poemas de alta intensidade poética e muita originalidade, baseados nos símbolos e
nos mitos da Raça. Esses poemas admiráveis em sua tessitura vibrátil e no
acabado da sua forma literária eram parte integrante do livro que estava
escrevendo, «Mensagem», livro com o qual Fernando Pessoa se apresentou ao
Prêmio Antero de Quental, do Secretariado Nacional da Propaganda, dirigido
então por Antônio Ferro, um escritor modernista. Por mais incrível que pareça, o
primeiro Prêmio foi dado ao livro «Romaria», de um Vasco Reis, que hoje
ninguém sabe quem é.
Quando «Mensagem» apareceu, numa edição para mim muito feia, da
Parceria Antônio Maria Pereira (44 Rua Augusta, 54), em dezembro de 1934,
Fernando Pessoa ofereceu-me um exemplar com a seguinte dedicatória:
«A Álvaro Teixeira Soares este
exemplar de um livro que
conheceu em anteprimeira mão,
com toda a simpatia
de
Fernando Pessoa 10-
XII-1934».
Fernando Pessoa, ao que me informaram, melindrou-se com o fato de o
Prêmio haver sido concedido a um escritor totalmente desconhecido; bem como
se ressentiu com o silêncio feito pela imprensa à volta de «Mensagem». O ano de
1935 foi sumamente penoso para êle. Proble-
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
mas de saúde preocupam-no e são agravados por perturbações hepáticas. Interna-
se no Hospital de São Luís em 29 de novembro e falece imprevistamente no dia
30 nesse Hospital, aos 47 anos de idade. Eu jamais soube qual a causa da morte de
Fernando Pessoa.
Assim desaparecera o homem que sempre sofrera dessa «febre de Além »,
para utilizar conceito seu que se encontra em «Mensagem».
FIGURAÇÃO E TRANSFIGURAÇÃO DE FERNANDO PESSOA
Meu depoimento humano a respeito do grande poeta está dito. Mas, agora é
preciso falar do «milagre» Fernando Pessoa, que surgiu com luminosidade própria
algum tempo depois para espanto da gente culta de Portugal e do Brasil.
Figuração de Fernando Pessoa: — sua personalidade cotidiana, ocultando
outra personalidade, feita de ímpetos, inquietudes e rebeldias; sua vida
independente, modesta e ativa, dessas que não atrapalham o caminho de ninguém,
mas que suscitam invejas inexplicáveis; seu inconformismo literário e estético a
pelejar com rançosas formas subliterárias, então predominantes; sua rebelião
diária contra os preconceitos e os tabus acadêmicos; suas ideias pessoais de um
tradicionalismo da Raça que o aproximava da monarquia e o afastava da
república; seu esforço pela criação de coisa nova, autenticamente renovadora,
impelida pelo seu espírito de independência. Fosse relativamente abastado, como
querem alguns ou vivesse apenas do seu trabalho, como pensam outros, o lobo
estepário, ao morrer, já era alguém.
Esse o homem que Almada Negreiros pintara num quadro célebre, que
estivera anos e anos pendurado na parede do «Café Unidos», de Lisboa, e que em
janeiro de 1970 foi vendido em leilão por mais de um milhão de escudos, e
tombado como peça de valor histórico e artístico nacional.
Almada Negreiros, aos 75 anos de idade, assistiu ao leilão. Alguém que o
conhecia lhe perguntou: «Mas, este quadro, que tu fizeste por 30 contos e hoje
vale mais de um milhão de escudos, não te entristece?» Embrulhando-se no seu
sobretudo, Almada Negreiros replicou: «Entristecer-me, e por que motivo? se
assisti à valorização dessa obra minha que jamais poderá sair de Portugal?»
Companheiro de Fernando Pessoa em campanhas literárias renovadoras,
Almada Negreiros acertara. Pintara Fernando Pessoa, porque este já em vida era
um grande assunto.
A impressionante transfiguração de Fernando Pessoa virá depois da sua
morte. A editora «Ática» começou a publicar toda a sua obra, a existente, e essa
imensa obra inédita para a qual Fernando Pessoa jamais encontrara editor, como
me dissera. Ainda agora apareceram dois volumes que enfeixam ensaios críticos
do poeta. Há pouco falou-se
TEIXEIRA SOARES
na existência de um «Diário», que seria um documento literário muito importante.
Transfiguração portentosa, milagre daquelas Madres, de Goethe, a provar
que os renovadores acabam sempre vencendo, — ou em vida ou depois de mortos.
É o caso de Apollinaire. Quando Apollinaire dissera corajosamente
«Je chante toutes les possibilites de moi-mème hors de ce monde
et des astres Jê chante la joie d'errer et
le plaisir d'en mourir», —
firmara uma atitude de orgulho renovador que o levaria à vitória do seu nome, bem
como da sua obra.
Mais humilde que Apollinaire, e dando uma lição de profunda sabedoria, —
sabedoria do regato obscuro que cumpre sua missão —, disse Fernando Pessoa
num poema:
«Tudo quanto sonhei tenho perdido antes
de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido, música
de perder».
Se Apollinaire renovou a poesia francesa com seus «Álcoois» e «Les
Calligrammes», se foi o esteta do cubismo bem como o seu lançador, Fernando
Pessoa se propôs à renovação da poesia portuguesa, bem como teimou em inculcar
aos portugueses, problemas sérios de estética e de filosofia. Mas, Fernando Pessoa
encontrava-se, não digo sozinho, mas desajudado por muitos que deveriam estar
ao seu lado nessa peleja contra as limitações de um meio literário dominado pela
imitação, pelo convencionalismo e pela rotina. Exemplo desse ambiente literário é
o caso daquele escritor consagrado como mestre do teatro, acadêmico uma porção
de vezes, que no final da sua carreira literária amontoou uma série de livros de
banalidades falsamente sofisticadas ou constituídos por trivia de espantosa
superficialidade. No entanto, seus livros venderam-se, mas nada acrescentaram ao
mérito do autor. É claro que nessa paisagem literária banalizada pelo
convencionalismo escapavam os nomes de Eugênio de Castro, Fialho de Almeida,
Ramalho Ortigão, Wenceslau de Moraes, Aquilino Ribeiro, Teixeira Gomes.
Fernando Pessoa tivera formação inglesa, fato muito importante em sua
personalidade de artista. A formação inglesa lhe dera um sentido oceânico e
ilimitado. Por isto, êle resolveu sozinho cumprir sua missão renovadora, missão
muito difícil e que lhe acarretou muitas incompreensões, queimando ídolos,
desbaratando tabus, desarticulando a poética da língua, inventando metros novos,
batalhando com os luga-res-comuns. Fernando Pessoa desempoeirou, arejou,
devassou, criou.
Enganaram-se os que o combateram ou o criticaram. Os que procuraram
negar-lhe lugar ao sol desapareceram no anonimato. O
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
milagre póstumo de Fernando Pessoa foi luz que se difundiu. Sua obra despertou
muito interesse em França, Alemanha, Espanha e Itália, traduzida e interpretada
como foi por criticos competentes como o francês Alain Bosquet e o alemão
Georg Rudolf Lind. Hoje interpreta-se Fernando Pessoa com admiração e
curiosidade, bem como se procura estudar todos os problemas que sua obra
apresenta ao crítico desinteressado. O livro precioso do crítico português Jacinto
do Prado Coelho, «Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa» (Lisboa, 1969), é
modelar como ensaísmo crítico. Assim, por que motivo as personalidades
heterônimas na obra de Fernando Pessoa? Eis um grande problema. O próprio
Pessoa o disse (mas não explicou o problema): «Forma cada uma uma espécie de
drama; e todas elas juntas formam outro drama.» Explicação fatalista ou
explicação voluntarista? Mas, a que motivos secretos teria Fernando Pessoa
obedecido para desdobrar-se em personalidades literárias tão diferentes? Seria isso
o produto misterioso de uma split personality? Seria o caso de uma tentativa de
criação multi-angular, procurando-se a exploração de cada ângulo por meio de
uma personalidade diferente? Seria também possível imaginar-se que, num
desbordamento criador impressionante, Fernando Pessoa recorrera ao artifício de
dividir-se em figuras diferentes para que cada qual pudesse externar seus
pensamentos que não caberiam, por sua contradição imanente, numa só figura.
O mistério da heteronímia na obra de Fernando Pessoa poderá ser encarado
como um artifício ilogístico, mas verdadeiro; como também poderá ser encarado
como o resultado de uma personalidade que, nos desvãos do subconsciente da
criação literária, defluíra por canais diversos, diferentes e sombrios, como igarapés
subterrâneos, para a busca de uma obra literária complexa e diversificada. Seria a
maneira mais prática (digamos que essa fosse a maneira mais prática) que teria
Fernando Pessoa para filosofar e poetar a respeito de si e do mundo. Porque os
diferentes heterônimos distanciam-se uns dos outros, adquirem personalidades
próprias, vivem em mundos diferentes, sideralizam-se como emanações
diferenciadas de um mesmo foco ejetor numa instrumentação artística insuperável.
Coexistem na obra desse grande poeta o Uno e o Múltiplo. Disse êle:
«O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.»
Versos de Alberto Caeiro. Os versos de Ricardo Reis ou de Álvaro de
Campos são de linfa diferente. Contudo, o milagre da obra de Fernando Pessoa faz
pensar no milagre realizado por Apolinaire, que não era de origem francesa nem
nascera na França, e vivera toda sua infância e juventude até aos 15 anos de idade
em Mónaco, e que aos 18 anos escreveu «L'Enchanteur pourtissant, para depois
abrir o
TEIXEIRA SOARES
caminho que o levaria até «Álcoois» e «Les Calligrammes». Cedo iniciou
Fernando Pessoa sua obra inédita (desde quando? desde 1912 ou 1913?) que foi
acumulando com a perseverança obscura de um incrível mineiro a explorar sua
galeria subterrânea. É evidente que Fernando Pessoa, nascido em Lisboa e
educado na África do Sul em ambiente inglês, não procurou a notoriedade
momentânea, e muito menos pensou em fazer dinheiro com seus livros. Êle sabia
que o meio literário do seu tempo era hostil a qualquer trabalho bem intencionado
de renovação. Mas, era preciso perseverar, chin up and carry on. Por conseguinte,
no acrescentamento silencioso dessa obra, que só foi publicada depois da morte do
seu autor, existe a duração de um «milagre escondido».
Eis o que espanta. Se Fernando Pessoa não encontrara editor para essa obra
inédita, se por acaso desanimara com o segundo Prêmio obtido por Mensagem, êle
poderia ter-se conformado com a rotina esclerosada e entregue os pontos,
deixando de escrever. Para que tentar abrir caminhos novos? Contudo, a
personalidade de Fernando Pessoa era muito forte e muito rica. Prado Coelho faz
uma observação exata nos seguintes conceitos:
«Vocacionado para o exercício exaustivo duma inteligência esqua-
drinhadora que, na clausura do eu, é vizinha impotente do caos obscuro da vida, e
cuja presença vigilante se manifesta até quando a intuição ou a imaginação
poéticas alcançam a sua hora, experimentou, a par do orgulho de conhecer
afirmando-se contra a voragem, a pena mais frequente de lhe ser inacessível a
felicidade dos que não conhecem. O privilégio duma extraordinária lucidez paga-
se caro. Quanto mais humano mais desumano.» (Pág. 105.)
Voltamos a pensar que, se, no desdobramento da obra de Fernando Pessoa,
existiu artifício ou jogo calculado nas personalidades heterô-nimas, manifestou-se
também um apelo do subconsciente criacionista, traduzido na explosão da palavra
e do pensamento contínuo ou descontínuo. Quadra aqui repetir conceitos de
Heidegger: «O élan do pensamento tem seu ponto de arranque no apelo do ser e da
sua existência. É então que a palavra, que decide da nossa sorte, surge.» (Ver Jean
Guitton, «Profils parallèles», Paris, 1970, pág. 471.) Então, por que motivo
Fernando Pessoa canalizou sua criação para os mundos isolados de figuras
diferentes? Por um simples artifício de criar pseudônimos, ou obedecendo a uma
misteriosa força latente? Suponhamos, por exemplo, que Guimarães Rosa, com
seu esplêndido poder criador verbal e sua imaginação anímica, se desdobrasse
voluntariamente em personalidades, artificialmente destacadas da sua própria
personalidade. Evidentemente, Guimarães Rosa poderia ter-nos dado um exemplo
interessante de hete-ronímia de personalidades. Contudo, ficaríamos sempre numa
atitude de reserva ou de suspeita em face desse desdobramento de personalidades
literárias, imaginando tratar-se de um artificialismo voluntário interessante, mas
não convincente.
O MUNDO DE FERNANDO PESSOA
É o que sentimos (pelo menos, nós) em face da obra de Fernando Pessoa.
Pouco importa que um Alberto Caeiro, invenção do autor, tenha escrito poemas
diferentes dos atribuídos a Ricardo Reis ou a Álvaro de Campos. No fundo, tudo
pertence a um pólipo único, — Fernando Pessoa. Pouco importa que Fernando
Pessoa, por influxo de forças mediúnicas, se tivesse encarnado nos seus
heterônimos. O problema subsiste por força da curiosidade crítica. São os críticos
que alimentam o problema. Creio que José Régio já assinalara o artificialismo das
personalidades heterônimas de Fernando Pessoa. Mas, essas personalidades
diversificadas vivem e nos impressionam, porque são emanação ou criação de
Fernando Pessoa.
O que importa é ver e examinar a obra do poeta em bloco e sentir a magia do
seu poder criador. O que importa é estudar a poderosa tarefa de renovação que êle
cumpriu na literatura portuguesa. Se Garrett e Nobre (e, um pouco, Eugênio de
Castro) iluminaram os caminhos da poesia portuguesa com uma vontade de
renovar, Fernando Pessoa, depois de morto, explodiu numa obra interessantíssima,
na qual existem a originalidade do seu gênio poético, a força do seu pensamento
filosófico e o profundo conhecimento que êle tinha da língua a ponto de poder
desarticulá-la em metros novos e renová-la até mesmo nos conceitos usuais das
palavras mais correntias. Nesse território imenso e invisível se manifestou a ação
renovadora de Fernando Pessoa. Por isso, é êle hoje lido e interpretado tanto em
Portugal como no Brasil, porque existe um problema chamado Fernando Pessoa.
O poeta lírico, o poeta filosófico, o poeta de fundo populesco e o poeta anímico
coexistem em sua personalidade, como também coexistem as personalidades
heterônimas com sua vida própria e individualizada. Mais uma razão para pensar
que, sob o ponto de vista de uma crítica bastante larga, perdure um problema de
interpretação, endereçado à vida e à obra do poeta.
Mas, ao cabo de tantas considerações, importa dizer que tudo isso foi o
milagre realizado por um escritor, que sentiu as agruras da incompreensão e os
ataques desonestos de uma crítica pouco informada. Um renovador não poderia
esperar blandícias ou admirações, perfeitamente incompreensíveis por parte de
críticos estreitos ou antiquados. Teria de pagar um preço muito elevado à
incompreensão reinante no seu tempo. Quanto não sofreu Poe na sua vida, a ponto
de ter derivado para a bebida para se esquecer de um mundo que não o entendia?
No entanto, hoje tudo quanto Poe escreveu em prosa e verso é correntio e
fascinante. Não se trata de uma questão de modas ou modos; trata-se do
enriquecimento cultural que os renovadores trazem consigo. Depois, esse
enriquecimento cultural passa a ser moeda corrente.
Para tornar ainda seu problema mais complicado, Fernando Pessoa, que se
dedicara ao esoterismo e aos assuntos de mediunidade, procurou envolver sua
personalidade literária nas sombras de uma complexidade instrumental, — e quem
sabe se com o propósito de enriquecê-la ainda
TEIXEIRA SOARES
mais com matizes misteriosos para mitificá-la aos olhos daqueles que pretenderam
ver um Fernando Pessoa escrito, muito diferente do outro Fernando Pessoa,
criatura ondulante, mutável, contraditória, angustiada.
Muitas podem ser as explicações da vida e da obra de Fernando Pessoa,
porque cada crítico procura sempre descobrir um sidelight novo. E isto porque
Fernando Pessoa não abriu sua vida privada à luz de amigos ou investigadores.
Pelo contrário, fechou-se, porque foi incompreendido . O que a vida não lhe deu
em felicidade ou prestígio literário, a glória póstuma lho deu, tranformando-o no
escritor extraordinário, num dos maiores poetas da língua, e quem sabe um dos
poucos grandes poetas de Portugal e do Brasil. Até nisso o milagre Fernando
Pessoa existe. Existe, porque uma separação luminosa se estabeleceu entre o
homem comum, o homem de todos os dias, e sua presença espiritual que é um
desafio, e também uma afirmação gloriosa. A grandeza de sua obra ai está. E estas
anotações não têm outro propósito que assinalar o mérito de sua obra aos
interessados na análise de Fernando Pessoa, que por certo poderão fazer coisa
muito melhor que nós.
REVELAÇÕES SOBRE CRUZ E SOUSA NAS
MEMÓRIAS INÉDITAS DE ARAÚJO FIGUEIREDO
R. MAGALHÃES JÚNIOR
Muitos pontos confusos da biografia de Cruz e Sousa poderiam ser
esclarecidos com a publicação das memórias de Araújo Figueiredo, poeta
catarinense, seu amigo de juventude. Mas essas memórias só são conhecidas de
umas poucas pessoas e já se acham incompletas. Uma parte delas chegou ao meu
conhecimento através de cópia datilografada, gentilmente posta à minha
disposição pelo ensaísta Nereu Corrêa, membro da Academia Catarinense de
Letras. Outra parte em manuscrito. me foi confiada pela filha do memorialista,
senhora Débora de Araújo Figueiredo Paladine. funcionária federal aposentada,
residente no Rio de Janeiro. Em 1964, por ocasião do centenário do nascimento de
Araújo Figueiredo, a Academia Catarinense de Letras publicou um volume
intitulado Poesias, reunindo grande parte de sua obra poética, e em minuciosa
notícia biográfica revelou as ligações do poeta com Cruz e Sousa.. A este, aliás, é
dedicado o soneto Recordando, à página 15 daquele volume, e no poema Para
perdoar, às páginas 127/129, é sobre o poeta dos Broquéis que êle escreve:
-Meu querido e belo amigo Por que
não tens outro abrigo?
Por que não buscas um astro
Onde não se anda de rastro?
Por que não sobes e ficas Numa
estrela das mais ricas?
Por que andas. Cruz e Sousa, No
mundo que é [ria lousa?»
O poeta negro, por sua vez, dedicou a Araújo Figueiredo os sonetos
Gloriosa e Magnôlia dos Trópicos. Os dois se correspondiam com certa
assiduidade e, por algum tempo, moraram juntos, no Rio, no mesmo quarto, num
sobrado à Rua do Lavradio nº 17. São, assim, preciosas as reminiscências de
Araújo Figueiredo sobre o amigo, a quem dedicava não apenas fraternal amizade,
mas irrestrita admiração. Com
R. MAGALHÃES JÚNIOR
base em seus apontamentos, podemos retificar alguns deslizes das biografias e
cronologias da vida de Cruz e Sousa, esclarecendo, ainda, fases obscuras da
existência do poeta dos Broquéis.
CRUZ E SOUSA FOI EMPREGADO NO COMÉRCIO
Eis um dos esclarecimentos de Araújo Figueiredo sobre Cruz e Sousa: tal
como Casimiro de Abreu, figura destacada do romantismo, o notável poeta
simbolista foi também empregado no comércio. Era caixeiro e, ao mesmo tempo,
cobrador de uma casa comercial, localizada no Mercado de Desterro (hoje
Florianôpolis) . Há dois rascunhos das memórias de Araújo Figueiredo, um mais
extenso e mais trabalhado, o outro mais resumido e aparentemente escrito às
pressas. Mas em ambos êle refere a mesma particularidade. Chamaremos a um
desses rascunhos, por uma questão de método, Texto A e, ao outro. Texto B. No
Texto A lê-se o seguinte: «Já era (Cruz e Sousa) um rapaz feito, muito elegante,
trazendo paletó muito estreito e calças também estreitas, e trazia à lapela uma rosa
escarlate. Vinha à nossa casa cobrar uma conta a meu pai, de uma casa de negócio
no Mercado, onde êle era caixeiro a contragosto, unicamente para não andar sem
trabalho numa cidade pequena e muito cheia de preocupações banais com a vida
da gente, naquele tempo de preconceitos.» No Texto B diz: «Tinha ido (Cruz e
Sousa) cobrar uma dívida a meu pai, da casa comercial do Camilo, vendedor de
xarque de Montevideu, da qual era êle, o Cruz e Sousa, caixeiro cobrador e
mesmo de balcão, em 1881. Trajando um fato muito unido ao corpo, de côr clara e
salpicos azuis e amarelos, ei-lo com uma rosa à lapela e a sua indispensável
bengala de junco, dependurada à curva do braço esquerdo».
CRUZ E SOUSA, PONTO DA COMPANHIA DRAMÁTICA SIMÕES
Outra particularidade interessante das memórias de Araújo Figueiredo é a
que se refere à ida de Cruz e Sousa ao Rio Grande do Sul, pela primeira vez, como
«ponto» de uma companhia teatral. Quando Fernando Góis preparou uma edição
das poesias de Cruz e Sousa para uma editora de São Paulo, Afonso Várzea, filho
de Virgílio Várzea, este também amigo de juventude de Cruz e Sousa, escreveu
um artigo, dizendo que Cruz e Sousa fora ponto, não de «uma companhia teatral»,
como fora escrito vagamente na «síntese biográfica», mas da Companhia Julieta
dos Santos. Na edição da Obra Completa de Cruz e Sousa, edição Aguilar, há um
retrato da menina artista, com esta legenda: «Julieta dos Santos, menina-prodígio
de uma companhia de variedades, primeira e única empresária que teve CS». Na
verdade, a menina era a estrela da companhia, a que dava o nome, mas não tinha
condições para ser empresária, por ser juridicamente incapaz. O verdadeiro em-
presário era Moreira de Vasconcelos (Francisco), autor de várias peças e notável
plagiário, que costumava apresentar como suas muitas obras
REV. SOBRE CRUZ E SOUSA NAS MEMÓRIAS DE ARAÚJO FIGUEIREDO
alheias. Mas não foi o único, nem o primeiro. Araújo Figueiredo diz que Cruz e.
Sousa em 1881 saudou o ator Simões em cena aberta e este lhe deu o emprego de
«ponto», levando-o para Porto Alegre.
Esse ator. José Simões Nunes Borges, era o pai de Lucinda Simões e fêz
várias excursões pelas províncias brasileiras, representando peças como Kean. ou
Gênio e Desordem, de Alexandre Dumas; Dalila, de Octave Feuillet; Os
Burgueses de Pontarcy, de Victorien Sardou, e outras. Para acompanhar o ator
Simões ao Rio Grande do Sul, Cruz e Sousa deixou de publicar o jornalzinho
Colombo, de apenas quatro páginas, que fazia com Manuel dos Santos Lostada e
Virgílio Várzea. Alguns biógrafos, entre eles Afonso Várzea, dizem tratar-se de
jornal manuscrito, todo caligrafado e ilustrado por Virgílio Várzea. Desfaçamos
a confusão. Não era manuscrito, mas impresso. E não estampava qualquer espécie
de gravura ou ilustração, como se pode ver nos exemplares existentes na Seção de
Obras Raras, da Biblioteca Nacional.
Em 1882, depois de ter feito algumas amizades em Porto Alegre, uma das
quais a poetisa Revocata de Melo, Cruz e Sousa voltava a Desterro, aí
participando da «guerrilha catarinense», grupo literário renovador, em luta contra
o romantismo e o lugar-comum, dos que ainda escreviam notícias — diz Araújo
Figueiredo — neste estilo: «Colheu mais um flor no jardim de sua preciosa
existência», etc.
CRUZ E SOUSA SE INCOMPATIBILIZA COM A COLÔNIA GERMÂNICA
Antes de ingressar na Companhia Julieta dos Santos como «ponto», valendo-
se da experiência já conquistada na Companhia Dramática Simões, Cruz e Sousa
foi assíduo colaborador da Tribuna Popular, folha que saía duas vezes por
semana. Araújo Figueiredo não precisa a data, mas deve ter sido em fins de 1882
ou no início de 1883 que Cruz e Sousa aí publicou uma espécie de conto, A
Felicidade, cujo texto reaproveitaria, a 4 de dezembro de 1891, no Novidades,
com o título de Os Felizes, assinado desta vez com o pseudónimo de Filósofo
Alegre. Era a história de um casal de alemães ricos, que morava num palacete à
beira da praia e parecia muito feliz, até que, um dia, o marido descobre que a
mulher o enganava com o criado mais boçal de suas cocheiras. Como fabulação, o
episódio pouco vale. Mas logo atribuiram a Cruz e Sousa a intenção de ofender
um casal de europeus que morava numa luxuosa mansão, perto da casa de seus
pais. No Texto A, diz Araújo Figueiredo tratar-se de um alemão, exercendo as
funções de cônsul de seu país em Desterro. No Texto B, diz tratar-se de um
austríaco. Mas em ambos mostra que a colônia germânica ficou indignada com o
autor do escrito, chegando a circular a notícia de que o cônsul pretendia cortar-lhe
a cara a chicote.
No Texto A, diz o memorialista que o poeta, emotivo, teve uma crise de
choro e, no número seguinte, da Tribuna Popular, deu explicações. dizendo não
ter tido a intenção de ferir a ninguém, ou de aludir
R. MAGALHÃES JÚNIOR
a pessoas que, aliás, respeitava e admirava. No Texto B, repete a descrição do
caso: «Vi-o chorar quando lhe disseram que um conto por êle feito e publicado na
Tribuna Popular, intitulado Felicidade, fora escrito unicamente para ferir de
chofre a vida aristocrática de um austríaco que na capital, e bem em frente à casa
do poeta, pequenina e pobre, à beira da fonte onde sua mãe lavava, tinha um
palacete de largos torreões e largas janelas abertas à imponência do mar, naquela
parte da cidade sempre tão verde e tão tranquila. Disseram-lhe que o conto
Felicidade havia sido escrito para lançar em público a desonra à (sic) esposa do
cavalheiro austríaco; e êle, o poeta, que tanto queria do fundo da alma a esse
cavalheiro e à sua família, que tanto o convidavam e tanto pão lhe haviam dado,
sentiu-se de tal maneira desse falso testemunho, que não pôde deixar de chorar,
inclinando o seu coração magoado, em plena rua, sobre os meus ombros».
Apesar das explicações de Cruz e Sousa, a incompatibilidade perdurou e a
tensão se tornou de tal modo insuportável que, para escapar a esta, êle ingressou
como «ponto» na Companhia de Julieta dos Santos, deixando Desterro em
fevereiro de 1883, para só voltar dois anos depois.
O DANDISMO DE CRUZ E SOUSA
Araújo Figueiredo mostra em várias passagens de suas memórias que Cruz e
Sousa era um janota, ou um dandy, preocupadíssimo com a sua aparência pessoal,
de certo num esforço para superar as barreiras de classe e de côr. Já vimos como
êle apresentou o amigo, indo cobrar uma conta de armazem vestindo roupas muito
apertadas, de rosa escarlate à lapela e bengala de junco no braço. Noutra
passagem, Araújo Figueiredo assim frisa o dandismo de Cruz e Sousa:
«O poeta sempre trajou com certa originalidade, usando roupas apertadas,
que lhe davam ao corpo bastante elegância. Queria os sapatos muito brunidos,
porque com os sapatos sujos, enlameados, não podia ter ideias. E a sua bengala
predileta representava a cabeça de um gavroche; bengala que êle fincava no chão
a cada passo que dava, com o corpo aprumado, sempre ritmado. E êle muito ria
quando eu lhe dizia ser cada uma de suas passadas uma rima de ouro, pois na
verdade o seu andar parecia cadenciado como uma rima junto de outra rima.
Sempre usou chapéu duro, para melhor cumprimentar, com riscos violentos, da
esquerda para a direita, as pessoas amigas e conhecidos, e nas apresentações
balofas e ao encontro da burrice presumida, o seu chapéu, no entanto, era apenas
pegado de leve, pela aba, e não tinha senão uma saudação muito fria, muito fria».
No outro texto, diz o memorialista: «Não tinha o cabelo de todo
encarapinhado e repulsivo, antes um pouco aveludado, macio; nem o seu bigode
era áspero como o de quase todo negro. Usava a barba seguidamente escanhoada,
aparecendo-lhe as faces e o queixo sempre lisos, sem nenhuma protuberância.
Nanca saía à rua sem os sapatos
— 132 —
REV. SOBRE CRUZ E SOUSA NAS MEMÓRIAS DE ARAÚJO FIGUEIREDO
completamente lustrosos, preferindo gastar com eles o último dinheiro que
tivesse, embora lho faltasse para o café, o qual êle, no entanto, saboreava muitas
vezes ao dia, bebendo-o aos tragos, como se bebem licores. Sem os sapatos
lustrosos, dizia êle, fugiam-lhe as ideias e a sua vida tornava-se como a de um
pavão, dessa ave simbolizadora da vaidade sobre um monturo de misérias e
decepções. Preferia andar só do que com pessoas com que a sua alma não vibrasse
nas mesmas percepções das coisas da vida..,
No outro texto, diz: «Se, porém, o apresentado era algum intelectual, ou
pessoa de que êle gostava, ei-lo dominado por uma onda de satisfação, e no claro
dos risos, nas suas maneiras, tudo ficava expresso. Observador profundo, nunca se
enganou, nem uma só vez, com aqueles de quem dissesse serem puros, e
possuírem um filão de ouro de talento».
O CARÁTER DE CRUZ E SOUSA
Muitas das notas de Araújo Figueiredo se referem ao exemplar caráter de
Cruz e Sousa. Este nunca tocava numa gota de álcool. Além de abstêmio, dava
conselhos ao amigo, para que abandonasse a bebida, a que, vez por outra, se
entregava, com excessos. Diz num dos textos: «Nunca encontrei-o disposto a
rebater insultos, menos diante de um vilão que a nossa terra adora e aqui espera
criar (sic) um monumento . .. Nesse dia, vi-o eu capaz de lançar à cara desse vilão
o seu belo gavroche de peroba. Afastei-o, meti-me entre os dois...» Da nobreza
de alma de Cruz e Sousa fala alto o seu gesto", quando, no início de 1889,
morando de favor na casa de seu amigo, o jornalista Oscar Rosas, impediu que
este, homem de gênio violento, surrasse a esposa, num momento de cólera, na
presença dele. No texto B, narra o memorialista: «Fora expulso da casa de Oscar
Rosas e, como não tivesse onde morar no Rio, volta a Santa Catarina! Mas,
mesmo assim ferido, ave sem asa, ou de peito atravessado por uma seta, não
escurecia o prato e o agasalho que lhe dera, em sua casa, esse impenitente irmão
de arte. De ações violentas, sem ordem, sem disciplina, o Oscar quisera bater na
mulher. e como o poeta intervisse (sic), reprovando o ato, fôra-lhe apontada a
porta da rua. E o poeta saiu, de cabeça erguida, na serenidade da justiça que
acabara de fazer, sendo, porém, pela força das circunstâncias pecuniárias,
obrigado a meter-se num paquete, e vir cair nos braços dos seus antigos
companheiros. E se não fosse o Raul Hoffmann, mais tarde seu compadre, um
rapaz alemão muito bom e simpático, e intelectual, o Sousa teria ficado no maior
desespero». Revela o memorialista que esse Hoffmann pagou a passagem de Cruz
e Sousa, de volta, para Santa Catarina.
RELAÇÕES COM EMÍLIO DE MENESES
Ao publicar, em 1961, por ocasião do centenário do nascimento do poeta
negro, o livro Poesia e Vida de Cruz e Sousa, mostrei que êle
R. MAGALHÃES JÚNIOR
fôra alvejado em certa ocasião por sonetos satíricos, que pareciam saídos da pena
pérfida e ferina de Emílio de Meneses. Entretanto, as relações da ambos tinham
sido, a princípio, boas, tanto assim que Cruz e Sousa dedicara a Emílio o soneto
Hóstias, publicado no Novidades a 10 de novembro de 1891. As memórias de
Araújo Figueiredo mostram que Emílio de Meneses, na sua fase de transitória e
enorme prosperidade durante o «encilhamento», muitas vezes matara a fome do
poeta negro, mas este tivera, depois, motivos para afastar-se dele. Diz o Texto B:
«Com a nova fase do Novidades, começamos de novo a comer queijo p a beber
água, ou irmos à Rua Nova do Ouvidor, onde jantávamos por 500 réis, obrigados a
comer banana e um pedacinho de goiabada. Entretanto, muitos e muitos dias
passamos à larga, e era quando o Dr. João Lopes Ferreira Filho, que mais tarde foi
compadre do Cruz, nos lançava às mãos notas de 200$000 réis, ou quando
conosco andava o Emílio de Meneses, que por esse tempo se achava recheiado de
dinheiro, dentro de um croísé de pano preto, muito comprido, e arrimado a uma
enorme bengala de cabo de marfim. Por esse tempo a alma do Emílio nada tinha
de satânica, antes de piedade através da docilidade de suas falas e dos seus gestos.
Grande poeta, talento de eleição, muito gostava êle de dizer seus versos sombrios,
da Marcha Fúnebre, os quais êle sabia bem serem por nós escutados
religiosamente, como se escutássemos Edgar Põe. O Cruz e Sousa, valha a
verdade, sentia-se mal diante do Emílio, talvez ao lembrar-se de que muitas vezes
ouvira-o ofender ao cunhado, o Nestor Victor, com quem o Emílio, por questões
de família, não se dava. Mas, para não ofendê-lo, ouvia-o e calava, e isso o cons-
trangia seguidamente, até que, depois de um certo tempo, começou a evitar o
contato de Emílio, sem, no entanto, odiá-lo, porque na verdade o Cruz não odiava
a quem quer que fosse».
Ora, tendo então Emílio de Meneses tendências para o simbolismo e notando
que Cruz e Sousa, quanto mais o evitava, tanto mais se ligava, por outro lado, a
Nestor Victor, naturalmente se irritou com o que lhe parecia uma ingratidão do
antigo filante de seus jantares, acabando por escrever contra êle os sonetos
satíricos publicados anonimamente, chamando-o, entre outras coisas,
«espiritualizante manipanço, gerado nos confins de Moçambique». ..
RELAÇÕES DE CRUZ E SOUSA COM "A CIDADE DO RIO"
Carlos Dias Fernandes, no romance Fretaria, em que imitou a técnica de
Coelho Neto em seus dois livros em que retrata a geração boêmia da abolição e da
República, criou a lenda de que José do Patrocínio pagou o enterro de Cruz e
Sousa e mandou colocar uma «harpa de lírios» sobre o esquife do poeta. O fato de
ter Cruz c Sousa trabalhado algum tempo na Cidade do Rio justificaria, aos olhos
de alguns, o gesto imaginário, simples fantasia de romancista, que no entanto
certas biografias e cronologias aceitaram como pura e insofismável verdade.
Entretanto, Araújo Figueiredo, com quem Cruz e Sousa morou
REV. SOBRE CRUZ E SOUSA NAS MEMÓRIAS DE ARAÚJO FIGUEIREDO
à Rua do Lavradio no período em que este esteve ligado à Cidade do Rio, deixa
bem claro que, nessa ocasião, não houve o menor contato entre os dois grandes
negros. Cruz e Sousa chegou ao Rio e se empregou no jornal de Patrocinio
quando este, juntamente com Olavo Bilac, viajava pela Europa. «Patrocínio estava
em Viena d'Austria», diz Araújo Figueiredo, e quem empregou Cruz e Sousa foi o
gerente, Serpa Júnior, que igualmente o despediu, meses depois, antes do regresso
de Patrocínio, que se deu em fevereiro de 1892. As relações entre o poeta negro e
Patrocinio, se existiram, teriam sido vagas e distantes, sendo muito natural que
Cruz e Sousa, humilde como pessoa, mas orgulhoso como intelectual, não tivesse
prazer de frequentar um jornal de onde fora despedido. Morto o poeta, o que fêz a
Cidade do Rio foi dedicar-lhe uma poliantéia, que ocupou toda a primeira e quase
toda a segunda página, aliás com escritos em geral bem medíocres.
A DEDICATÓRIA DO "MISSAL"
A estima de Cruz e Sousa por Araújo Figueiredo transparece na dedicatória
de seu livro em prosa, Missal, ao amigo fraternal e antigo companheiro de quarto
na Rua do Lavradio, nos dias de miséria, quando ambos escreviam para jornais em
verdadeira agonia financeira. Eis o teor dessa dedicatória:
«Araújo Figueiredo. Na serenidade desta página clara, quero perpetuar,
como na corrente do tempo, a Amizade, o Culto intelectual, o alto Amor estético
que te consagro — ouro, murras e incensos do meu ser devotado. . A ti. Coração
nobre; a ti, luminosa Cabeça; a ti, deli' cioso poeta dos Campos, dos Mares, das
Rosas, dos Astros; a ti, amigo-irmão, casta e branca natureza de Sonhador
olímpico. Israelita da Arte, que tens a virgindade emotiva das Forças novas,
originais este Missal de Abstração, de Espiritualidade, de Forma. Cruz e
Sousa. Rio de Janeiro, 13 de março de 1893».
CRUZ E SOUSA QUIS MORRER EM SANTA CATARINA
Já mostramos, em Poesia e Vida de Cruz e Sousa, que o poeta, antes de ir
para o obscuro lugarejo de Minas Gerais, onde morreu, pretendeu viajar para
Santa Catarina. O volume das Poesias, de Araújo Figueiredo, publicado pela
Academia Catarinense de Letras, em nota que não tem assinatura, mas foi escrita
por Nereu Corrêa, publicou um trecho de uma carta de Cruz e Sousa a seu
«amigo-irmão», pedindo o auxílio deste, a fim de poder viajar para a terra natal.
Em suas memórias inéditas, Araújo Figueiredo transcreve toda a carta, escrita em
princípios de 1898:
«Rio, janeiro de 1898, Meu Araújo. Que os meus braços amigos te apertem
bem de encontro ao meu coração, no momento em que re-
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R. MAGALHÃES JÚNIOR
ceberes estas lihas saudosas. Mas escrevo-tas, meu querido irmão, com a alma
dilacerada de angústias, porque me vejo morrer aos poucos, e quisera, pelo
menos, passar alguns dias contigo, antes que isso sucedesse, pois vejo em ti um
grande e afetuoso amparo aos meus últimos desejos. Fala com teu amigo José
Fernandes Martins, e arranja com êle uma condução, no paquete Industrial, para
mim, para a Gavita e para os meus quatro filhos. Se escapar da morte que, no
entanto, julgo pró' xima, ajudar-te-ei no teu colégio, ouviste? Saudades. O teu
pelo coração c pela arte. Cruz e Sousa».
Diz o memorialista que nada pôde fazer, estando desprovido de recursos e
tendo recebido uma dura negativa do dono do colégio que então dirigia na cidade
de Laguna.
A PUBLICAÇÃO DAS MEMÓRIAS DE ARAÚJO FIGUEIREDO
As memórias de Araújo Figueiredo, a que êle deu o título de No Caminho do
Destino, são um interessante documento sobre a efervescência literária das duas
últimas décadas do século passado, bem como da vida jornalística em Desterro e
no Rio de Janeiro e, ainda, sobre o ambiente catarinense durante os
acontecimentos revolucionários de 1893 e 1894 — quando o memorialista andou
fugido para não ser preso e executado, como tantos foram. E valeria a pena que se
fizesse a sua publicação, com a colação dos dois textos. Tal tarefa poderia caber
ao Instituto Nacional do Livro ou ao Conselho Federal de Cultura. É o alvitre que
aqui deixo.
— 136 —
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL:
PRIMEIRA VERSÃO DO "GÉNESIS"
Organização, introdução c notas
por Luiz ANTONIO BARRETO
ÁRIOS são os temas com os quais os cantadores populares se ocupam nas suas
cantorias e folhetos, como várias são as suas maneiras de cantar e de sentir.
Um tema, no entanto, tem merecido maior importância na bibliografia dos poetas
nordestinos: o bíblico, ou religioso. Pode-se inclusive afirmar que os cantadores
quase que reescreveram os mais importantes livros da Bíblia Sagrada, partindo,
cremos, da divulgação que houve, em prosa, da História Sagrada, uma versão da
Bíblia para o grande público que teve grande circulação no nordeste brasileiro. A
importância desse feito pode ser vista de duas maneiras: uma primeira que revela
o interesse e ao mesmo tempo a possibilidade de conhecer e espalhar a palavra de
Deus. E uma segunda, de igual valor, que é a de revelar uma participação do poeta
na criação das coisas, como que divinizando-se intuitivamente, dividindo com o
Criador a autoria da grande obra. Será bom notar que. para o poeta popular
conhecer a escritura sagrada, o faz por uma necessidade de ofício, como conhecer
o lunário perpétuo, a geografia, ou a história.
Não temos a pretensão de publicar uma Biblia toda ela em cordel, mas temos
a intenção de divulgar alguns livros dela, saídos da poesia popular, em sextilha ou
décima. E começaremos com o livro de Génesis, o livro primeiro, o das origens.
Em suas páginas se apresentam não só o princípio do céu e da terra e a origem da
vida vegetal, animal e humana, mas também o começo de todas as instituições e
relações humanas. Nele encontramos quatro dos oito pactos celebrados entre o
Criador e a Criação: o edênico, o de Adão, o de Noé e o de Abraão. O livro de
Génesis tem cinco divisões principais, que são:
I — Criação.
II — A queda c redenção do homem.
III — As distintas sementes, Caim e Set até o dilúvio.
IV — Desde o dilúvio até Babel.
V — Desde o chamamento até a morte de José,
V
Luiz ANTONIO BARRETO
Também na literatura de cordel encontramos a mesma divisão, coincidindo
assim o roteiro da Lei com o da Poesia. Os versos que apresentamos, sextilhas,
com rima ABCBDB e setessilábica, quase sempre, pertencem à Peleja de Egídio
Lima com Clidenor Varela, publicada em folheto pela Tipografia Luzeiro do
Norte, de propriedade de João José da Silva, localizada na Capital do Estado de
Pernambuco. Organizamos este trabalho obedecendo à seguinte ordem: o texto
poético, o texto bíblico paralelamente, e as notas que se fizeram necessárias logo
abaixo do texto bíblico, como se vê:
O LIVRO DE GÉNESIS
1. No princípio criou Deus Os céus
e também a terra Mas a terra era
vazia, Este caso a história
encerra, Sobre a face dos
abismos Não havia amor nem
guerra.
Gen. 1:1-2 — No princípio criou Deus
os céus e a terra. E a terra era sem forma
e vazia e havia trevas sobre a face do
abismo.»
2. A verdade se discerra Nela
não há fantasia O espirito de
Deus então Sobre as águas se
movia E disse Deus: haja
luz! E a luz se fêz nesse dia.
Na primeira estrofe já aparece a presença do
poeta, não só versejando ordenadamente, mas
acrescentando uma frase inteira: não havia amor
nem guerra, como se interpretasse as palavras
bíblicas. As trevas do versículo são, para o poeta,
os elementos amor e guerra que, um em nome do
outro, se conflituam frente aos olhos do mais
despreparado ser, dia após dia.
Gen. 1:2-3 — ... e o espírito de Deus se
movia sobre a face das águas. E disse
Deus: Haja luz. E houve luz.
O poeta limita-se a seguir o texto bíblico, sem
nada acrescentar.
E Deus sentiu alegria
Quando viu surgir a luz
Logo mais o seu intento
Maiores feitos traduz Para
formar elementos Nessa
hora se conduz.
Gen. 1:4 — E viu
boa a luz.
D
eus que era
Aqui o poeta se apresenta humanizando Deus,
dando-lhe sentimento e emoção, ou seja: trazendo-
o para o plano da terra e tornando-o a sua
semelhança. Entre ver e sentir alegria
diferenças que ultrapassam até as fronteiras da
gramática.
— 138
Capa de Folheto de Cordel
A BÍBLIA NA LITER.\RURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
4. E Deus achou boa a luz, Separou
a luz das trevas. Clidenor você
agora Possui ciências coevas,
Pois és mestre em cantoria
Também em causas primevas
Gen. 1:4 — E viu Deus que era boa a
luz; e fêz separação entre a luz e as
trevas.
5. Fêz Deus nas horas primevas
A justa separação
Entre a luz e entre as trevas.
Nessa mesma ocasião
A luz Êle chamou Dia
E as trevas chamou Noite
então.
6. Nesta mesma ocasião
Com a razão mais louçã
Da madrugada ao meio dia
Êle chamou de manhã
E a outra parte chamou
A tarde que era pagã
7. Deus formou nessa manhã O nosso
primeiro dia. Porém deixou a
Expansão Para maior alegria... A
Expansão chamou de Céus Onde o
sol nos alumia.
Aqui novamente se repete o gesto da estrofe
anterior. O verbo achar é usado em lugar do verbo
ver, cremos que com o mesmo objetivo e o mesmo
resultado.
Gen. 1:4-5 ... e fêz Deus separação
entre a luz e as trevas. E Deus chamou à
luz Dia; e às trevas chamou Noite.
Geri. 1:5 — E foi a tarde e a manhã o dia
primeiro.
Novamente um acréscimo: a delimitação do
tempo. A manhã para o poeta é da madrugada ao
meio dia; isto depois de elogiar as razões do
batismo. E é novamente no batismo, por uma
questão de rima, que se vê justificação para a pala-
vra pagã.
Gen. 1:5-3 — E foi a tarde e a manhã o
dia primeiro. E disse Deus: Haja uma
expansão no meio das águas, e haja
separação entre águas e águas. É fêz
Deus a expansão, e fez separação entre
as águas que estavam debaixo da
expansão e as águas que estavam sobre a
expansão. E assim foi. E chamou Deus à
expansão Céus.
O poeta não entende a separação entre águas e
águas e passa por cima do texto, indo direto à
criação dos Céus e colocando nele, incontinenti, o
Sol — elemento muito forte para o nordestino —,
centro da luz. Cremos que a limitação do poeta em
não entender a separação de águas e águas deve-se
ao seu contato com um tipo mais popular de Biblia,
em prosa, como nos referimos na introdução.
Luiz ANTONIO BARRETO
E feito o primeiro Dia Formou as
nuvens nos Céus Para adorno
natural Como renda em lindos
véus Espalhou milhões de estrelas
Brilhantes como troféus.
9. Quando Deus formou os Céus
Fêz o seu segundo Dia Pois a
tarde e a manhã Ao seu feito
competia Serem distintas demais
Segundo a história anuncia.
10. E as águas naquele dia,
Se juntaram num lugar.
A porção seca chamou terra
Porém foi determinar Que o
ajuntamento das águas Podia
chamar-se, Mar.
11. As plantas pôde criar Que davam
boa semente Fez estrelas e
planetas Pois achou conveniente
Que ainda hoje elas guiam Na
terra, todo vivente.
Gen. 2:4-6 — Estas são as origens dos
céus e da terra quando foram criados; no
dia em que o Senhor Deus fêz a terra e
os céus. E toda planta do campo que
ainda não estava na terra e toda a erva
do campo que ainda não brotava, porque
ainda o Senhor Deus não tinha feito
chover sobre a terra, e não havia homem
para lavrar a terra. Um vapor porém
subia da terra e regava toda a face da
terra. Gen. 1:16 — ... e fêz as estrelas.
Enquanto no texto bíblico as plantas c as
ervas dependerão ainda das nuvens, no texto
poético estas são formadas com a finalidade
de embelezar o dia, e todo um quadro se
compõe: dia, sol, nuvens, estrelas. São os
elementos conhecidos pelo poeta, numa
sequência de necessidades.
Gen. 1:8 — E chamou Deus à expansão
Céus. E foi a tarde e a manhã o dia
segundo.
Gen. 1:9-10 — E disse Deus: Ajuntem-
se as águas debaixo do céu num lugar; e
apareça a porção seca. E assim foi. E
chamou Deus à porção seca. Terra; e ao
ajuntamento das águas chamou Mares. E
viu Deus que era bom.
Gen. 1:11-15 — E disse Deus: Produza
a terra erva verde, erva que dê semente,
árvore frutífera que dê fruto segundo a
sua espécie, cuja semente esteja nela
sobre a terra. E assim foi. E a terra
produziu erva, erva dando semente
conforme a sua espécie, a árvore
frutífera, cuja semente está nela segundo
a sua espécie. E viu Deus que era bom.
E foi a tarde e a manhã o dia terceiro. E
disse Deus: haja luminares na expansão
dos céus para
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
12. Fez a Lua e o Sol reluzente
Como astros soberanos, Para
iluminar a terra Nas fases todas
dos anos. Com êle a gente mata
Da vida seus desenganos
13.
Os peixes nos oceanos
Habitavam livremente As aves
donas do espaço Voando
constantemente E achou tudo
tão bom Que disso ficou
contente.
14. Deus fêz as feras somente Para
completar a obra E fez variados
repteis
haver separação entre o dia e a noite; e
sejam eles para sinais e para tempos
determinados e para dias e anos. E sejam
para luminares na expansão dos céus,
para alumiar a terra. E assim foi.
A antecipação do Sol era estrofe anterior colocou
o poeta diante de outras criações: as plantas e as
árvores. Há, no entanto, uma interpretação de
luminares como estrelas e planetas. Talvez pela
crença dá estrêla-guia que conduziu os Reis Magos
a Belém, e ainda pela influência do estudo da
astrologia e sua aplicação na agricultura de
subsistência, o poeta se coloque cora mais ênfase
apenas em parte do texto bíblico, deixando de lado
a separação de ervas e árvores, e de sementes.
Gen. 1:16-18 — E fêz Deus os dois
grandes luminares: o luminar maior para
governar o dia; e o luminar menor para
governar a noite; e fêz as estrelas. È
Deus os pôs na expansão dos céus para
alumiar a terra . E para governar o dia e
a noite, e para fazer separação entre a luz
e as trevas. E viu Deus que era bom.
Mais uma vez o deleite, os elementos se
transformam em fontes de inspiração e, não raro,
de fuga da realidade fria.
Gen. 1:20-21 — Produzam as águas
abundantemente répteis de alma vivente;
e voem as aves sobre a face da expansão
dos céus. E Deus criou as grandes
baleias, e todo réptil de alma vivente que
as águas abundantemente produziram
conforme as suas espécies; e toda a ave
de asas conforme a sua espécie. E viu
Deus que era bom.
Mais uma vez o regozijo da criação, a
satisfação, o subjetivismo.
Gen. 1:24-25 — E disse Deus: Produza
a terra alma vivente conforme a sua
espécie; gado e répteis e bes-
Luiz ANTONIO BARRETO
Entre eles fez a cobra E de
tudo que Deus fez Neste
mundo nada sobra.
15. Fez o homem nesta obra
Para dominar em tudo. Deu
a êle o raciocínio De onde
surgiu o estudo Das ciências
naturais Como verdadeiro
escudo
tas feras da terra conforme a sua espécie.
E assim foi. E fez Deus as bestas feras
da terra conforme a sua espécie, e o
gado conforme a sua espécie, e todo o
réptil da terra conforme a sua espécie. E
viu Deus que era bom.
Neste mundo nada sobra parece ser o verso que
justifica, mais uma vez, a criação. Como é também
uma justificativa dizer que as feras foram criadas
somente para completar o quadro, como se o cria-
dor necessitasse obedecer a uma norma pré-
estabelecida de continuidade.
Gen. 1:26-29 — E disse Deus: façamos o
homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança; e domine sobre os
peixes do mar, e sobre as aves dos céus,
e sobre o gado, e sobre toda a terra e
sobre todo o réptil que se move sobre a
terra. E criou Deus o homem à sua
imagem; a imagem de Deus o criou;
macho e fêmea os criou. E Deus os aben-
çoou e Deus lhe disse: Frutificai e
multiplicai-vos e enchei a terra, e su-
jeitai-a; e dominai sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre
todo o animal que se move sobre a terra.
E disse Deus: eis que vos tenho dado
toda a erva que dá semente, que está
sobre a face da terra; e toda a árvore em
que há fruto de árvore que dá semente,
ser-vos-á para mantimento. Gen. 2:7
E formou o Senhor Deus o homem do pó
da terra, e soprou em seus narizes o
fôlego da vida; e o homem foi feito alma
vivente .
O poeta coloca o homem como a maior das
criações e põe nele o raciocínio como o
instrumento, a arma maior do homem. É a visão do
raciocínio como porta por onde se abrem todas as
conquistas. Mais uma vez o folhetelista interfere na
criação, dentro do mesmo espírito das outras
interferências, ou seja: tentando a apre-
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
sentação de problemas de real significado
filosófico. Se algumas vezes êle traz Deus para o
plano do humano, dando-lhe sentimento e emoção,
outras êle, em sentido logicamente contrário trata
de inverter os papéis, tirando o sentimento e a
emoção do homem e colocando a razão como fiel
de balança: fazendo ou criando um homem ideal,
pensador, criador.
16. E Deus fêz o homem um escudo Gen.
1:26 — citado
Gen. 1:31 — E viu Deus tudo quanto tinha
feito e eis que era muito bom. E foi a tarde e a
manhã o dia sexto.
A aliança, aqui, não tem o envolvimento que pretende o
texto bíblico. O poeta vê a aliança pelo óculo de
homem integrado numa estrutura social onde as
relações de interesses predominam. Ao tempo que
reduz a participação da mulher no frutificai e
multiplicai-vos ordenado por Deus. Seria talvez a
pouca importância dada a mulher na formação
social brasileira .
Gen. 1:31 e 2:1-3 — E viu Deus tudo
quanto tinha feito, e eis que era muito bom.
E foi a tarde e a manhã o dia sexto. Assim
os céus e a terra e todo o seu exército foram
acabados. E havendo Deus acabado no dia
sétimo a sua obra, que tinha feito,
descansou no sétimo dia de toda a sua obra
que tinha feito. E abençoou Deus o dia
sétimo e o santificou; porque nele des-
cansou de toda a sua obra, que tinha
feito.
Aqui encontramos um erro do poeta, quando
este diz que a Bíblia afiança que Deus descansou
no sexto dia. Na estrofe seguinte há o conserto. O
mais é uma síntese da verdade bíblica.
No sétimo dia descansou A
Bíblia nos diz assim. Os seres
se movimentam Em derredor
dum jardim. Era belo no
momento
Gen. 2:8 — E plantou o Senhor Deus
um jardim no Éden na banda do oriente;
e pôs ali o homem que tinha formado. E
o Senhor Deus fez brotar da terra toda
à árvore
Como sua semelhança Isto
foi no dia sexto Com toda
perserverança Porém o
homem não tinha Com quem
fazer aliança
17.
N
o sexto dia afiança A Bíblia,
Deus descansou. Porém neste
mesmo dia O próprio santificou
E toda a obra que fêz Neste dia
abençoou.
Luiz ANTONIO BARRETO
Aquele mundo sem fim.
19. No Éden fez um jardim Para o
homem dominá-lo Fez o fruto
variado Que o homem fosse
prová-lo E a árvore do Bem e do
Mal Não era pra seu regalo
20. O homem nesse regalo Estava
muito isolado Da sua própria
costela Deus fez a mulher de
lado Foi este o grande sinal Para
surgir o pecado
agradável à vista e boa para comida; e a
árvore da vida no meio do jardim, e a
árvore da ciência do bem e do mal.
O Éden ou o jardim da praça da cidade do
interior: pouca será a diferença a observar. O
Éden seria para o homem criado, o mesmo
que o jardim é para o poeta '— lugar de
descanso infinito, o ócio justo.
Gen. 2:15-17 E tomou o Senhor Deus
o homem e o pôs no jardim do Éden
para o lavrar e o guardar. E ordenou o
Senhor Deus ao homem dizendo: De
toda a árvore do jardim comerás
livremente; Mas da árvore da ciência do
bem e do mal, dela não comerás; porque
no dia em que dela comeres, certamente
morrerás .
O poeta passa por cima da ameaça de Deus
ao homem, e apenas se limite a dizer que a
árvore do bem e do mal não era para o
prazer do homem.
Gen. 2:18-24 — E disse o Senhor Deus:
Não é bom que o homem esteja só; far-
lhe-ei uma adjutora que esteja como
diante dele. Havendo pois o Senhor Deus
formado da terra todo o animal do
campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a
Adão, para este ver como lhes chamaria;
e tudo o que Adão chamou a toda a alma
vivente, isso foi o seu nome. E Adão pôs
os nomes a todo o gado, a às aves dos
céus, e a todo o animal do campo; mas
para o homem não se achava adjutora
que estivesse como diante dele. Então o
Senhor Deus fêz cair um sono pesado so-
bre Adão, e este adormeceu; e tomou
uma das suas costelas, e cerrou a carne
em seu lugar. E da costela que o Senhor
Deus tomou do homem, formou uma
mulher e trouxe-a a Adão. E disse
Adão: Esta é
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
21
22.
A serpente nesse estado Era
muito astuciosa Chamou a
mulher e disse: — És bonita e
primorosa! Deste fruto
proibido Comas que serás
ditosa!
Comeu a fruta gostosa Olhou-
se, estava despida. Desse dia
por diante Já multiplicou-se a
vida
agora osso dos meus ossos, e carne da
minha carne; esta será chamada varoa
porquanto do varão foi tomada. Portanto
deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e
apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos
uma carne. E ambos estavam nus, o
homem e a sua mulher, e não se
envergonhavam.
Uma grande síntese feita pelo poeta, que se
apressa em antecipar o pecado, vendo a mulher
como o sinal, ou seja: oferecendo à narrativa, como
é comum na literatura popular, uma prévia do que
será adiante, no amanhã da estória.
Gen. 3:1-5 — Ora, a serpente era mais
astuta que todas as alimárias do campo
que o Senhor Deus tinha feito. E esta
disse a mulher: É assim que Deus disse.
Não comereis de toda a árvore do
jardim? E disse a mulher à serpente: Do
fruto das árvores do jardim comeremos;
Mas do fruto da árvore que está no meio
do jardim, disse Deus: Não comereis
dele, nem nele tocareis, para que não
morrais. Então a serpente disse à
mulher: Certamente não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que
comerdes se abrirão os vossos olhos, e
sereis como Deus, sabendo o bem e o
mal,
Referindo-se à beleza da mulher o poeta cria
todo um ambiente de malícia na interpretação do
texto bíblico. Fica claro que para o poeta a árvore
do bem e do mal não passa de um símbolo sob o
qual se enconde o ato do relacionamento sexual
das duas criaturas que habitavam o jardim do Éden.
O termo ditosa difere, na sua essência, do
conhecimento e da abertura dos olhos para o bem e
o mal, como bonita e primorosa são atributos re-
queridos mais para a carne do que para o saber.
Gen. 3:6-7 — E vendo a mulher que
aquela árvore era boa para se comer, e
agradável aos olhos, e árvore desejável
para dar entendimen-
Luiz ANTONIO BARRETO
23.
24.
E eu também muito Adão com
minha Eva querida
Comeu a Eva querida Esse
fruto proibido, Por isso esse
casal foi duramente punido.
Multiplicaram-se os seres
Entre mulher e marido.
Isto tomou o sentido De uma
nova geração, A terra foi
povoada Em toda
circunscrição Não faltou daí
por diante A sanha da
corrupção
to, tomou do seu fruto, e comeu, e deu
também a seu marido, e êle comeu com
ela. Então foram abertos os olhos de
ambos e conheceram que estavam nus, e
colheram folhas de figueiras e fizeram
para si aventais.
Esta estrofe vem testemunhar o que anotamos
quanto à estrofe anterior. É realmente uma
interpretação bem direta do problema da árvore do
bem e do mal. O poeta consegue até afirmar-se
como homem, comparando-se com Adão e dando
asas a sua virilidade com a Eva, sua mulher, numa
demonstração clara do machio-mo que existe entre
os homens latino-americanos.
Gen. 3:16-19 — E à mulher disse:
Multiplicarei grandemente a tua dor e a
tua conceição; com dor terás filhos; e o
teu desejo será para o teu marido, e êle te
dominará. E a Adão disse: Porquanto
deste ouvidos à voz de tua mulher, e
comeste da árvore de que te ordenei
dizendo: Não comerás dela; maldita é a
terra por causa de ti; com dor comerás
dela todos os dias da tua vida. Espinhos
e cardos também, te produzirá, e
comerás a erva do campo. No suor do
teu rosto comerás o teu pão, até que te
tornes a terra; porque dela foste tomado;
porquanto és pó e em pó te tornarás.
A punição de Deus parece não interessar muito
ao poeta popular. Este continua versejando sobre a
multiplicação dos seres. Ê de notar a intimidade
com que Eva é tratada no inicio da estrofe,
fundindo a imagem da Eva de Adão com a da Eva
sua mulher.
Gen. 6:1-2 — E aconteceu que, como os
homens se começaram a multiplicar
sobre a face da terra, e lhes nasceram
filhas, viram os filhos de Deus que as
filhas dos homens eram formosas, e
tomaram para si mulheres de todas as
que escolheram.
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
25.
26.
Deus tratou da punição
Desses corruptos viventes,
Anunciou a Noé
As suas iras presentes
E ia sacrificar
Das espécies a semente
Por serem convenientes Os
seus atos divinais, Deus
ordenou a Noé Salvar diversos
mortais Numa arca de madeira
Dos seus campos florestais
Gen. 6:3-5 — Havia naqueles dias
gigantes na terra, e também depois,
quando os filhos de Deus entraram às
filhas dos homens e delas geraram
filhos; estes eram os valentes que houve
na antiguidade, os varões de fama. E viu
o Senhor que a maldade do homem se
multiplicara sobre a terra, e que toda a
imaginação dos pensamentos de seu
coração era só má continuamente.
Continua a narrativa da multiplicação do seres e
a corrupção que esta gerava ao longo do tempo.
Gen. 6:6-8 — Então arrependeu-se o
Senhor de haver feito o homem sobre a
terra, pesou-lhe em seu coração. E disse
o Senhor: Destruirei, de sobre a face da
terra, o homem que criei, desde o
homem até o animal, até o réptil, e até a
ave dos céus; porque me arrependo de os
haver feito. Noé porém achou graça aos
olhos do Senhor.
Gen. 6:13 — Então disse Deus a Noé: O
fim de toda a carne é vinda perante a
minha face, porque a terra está cheia de
violência e eis que os desfarei com a
terra.
Síntese do arrependimento, da ira e da
destruição da espécie criada.
Gen. 6:18-21 — Mas contigo esta-
belecerei o meu pacto; e entrarás na arca
tu e os teus filhos, e a tua mulher, e as
mulheres de teus filhos contigo. E de
tudo o que vive, de toda carne, dois de
cada espécie, meterás na arca, para os
conservares vivos contigo; macho e
fêmea serão. Das aves conforme a sua
espécie, de todo réptil da terra conforme
a sua espécie, dois de cada espécie virão
a ti para os conservares em vida. E tu,
toma para ti de
Luiz ANTONIO BARRETO
27.
28.
Noé a arca farás De Gopher,
essa madeira Que terá trezentos
côvados De comprimento e a
arteira Largura terá cinquenta
Trinta do pé à cumieira
E farás sem ter canceira Boas
portas e janelas A arca muito
segura Não deixará de ser bela
Vou te dizer o que vais Colocar
por dentro dela
toda a comida que se come, e ajun-ta-a
para ti e para eles.
Aqui há somente a justificativa do gesto
divino, além da narrativa corrente.
Gen. 6:14-15 — Faze para ti uma arca
de madeira de gofer; farás
compartimentos na arca, e a betumarás
por dentro e por fora com betume. E
desta maneira a farás. De trezentos
côvados o comprimento da arca, e de
cinquenta côvados a sua largura e de
trinta côvados a sua altura.
Do pé à cumieira, do ponto mais baixo até ao
mais alto, eis a altura parai o cantador. O texto
segue igual.
Gen. 6:16 — Farás na arca uma janela, e
de um côvado a acabarás em cima; e a
porta da arca a porás ao seu lado; far-
lhe-ás andares baixos, segundos e
terceiros.
29.
Noé acabando aquela Forte e
bonita arca Terá de si o
domínio Como velho patriarca,
Com os seus e outros casais
Dias depois nela embarca.
A beleza da arca é forçada pela rima do poeta,
que antecipa os viajantes da arca em linguagem de
grande intimidade entre Deus e o velho Noé.
Gen. 7:1-9 — Depois disse o Senhor a
Noé: Entra tu e toda a tua casa na arca,
porque te hei visto justo diante de mim
nesta geração. De todo animal limpo
tomarás para ti sete e sete, macho e sua
fêmea; mas dos animais que não são
limpos, dois, o macho e sua fêmea. Tam-
bém das aves dos céus sete e sete,
macho e fêmea, para se conservar em
vida a semente sobre a face de toda a
terra. E fez Noé conforme tudo o que o
Senhor lhe ordenara. E era Noé da idade
de seiscentos anos quando o dilúvio das
águas veio sobre a terra. E entrou Noé e
seus filhos, e sua mulher, e as mulheres
de seus filhos com êle na arca, por causa
das águas do dilú-
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
30.
31
Vem o dilúvio e enxarca
A superfície da terra,
A arca fica boiando
Com o povo que nela encerra
Com sete dias depois
Deus a chuvada discerra.
A arca nas águas erra, Pois
choveu quarenta dias Depois
de cento e cinquenta Deus soltou
aragens frias, As águas foram
minguando Da arca nas
cercanias.
vio. Dos animais limpos e dos animais
que não são limpos, e das aves, e de
todo o réptil sobre a terra; Entraram de
dois em dois para Noé na arca, macho e
fêmea, como Deus ordenara a Noé!
A tônica de toda a Peleja tem sido a sintese.
Através dela o cantador coloca-se numa estratégia
diante do texto sagrado e ensinado nas igrejas. Os
pontes menos claros são deixados de lado, ao passo
que os pontos mais discutidos ao nível comum são
enfatizados. É bom que se observe, também, que
algumas vezes o poeta se antecipa ao texto bíblico
e outras êle vem depois. E é justamente por isto
que colocamos paralelamente o texto do Gênesis,
para que este funcione como um arquétipo. A
poesia seria uma versão . E como se trata de uma
Peleja onde a presença de um outro cantador induz
ao desafio, justifica-se certa divagação, certo
floreio, certa impc6tação verbal.
Gen. 7:10-11 — E aconteceu que
passados sete dias vieram sobre a terra
as águas do dilúvio. No ano seiscentos
da vida de Noé, no mês segundo, aos
dezessete dias do mês. naquele mesmo
dia se romperam todas as fontes do
grande abismo e as janelas do céu se
abriram.
O autor desta estrofe não entende bem o texto
bíblico quando diz que a chuva durou sete dias. O
dilúvio aconteceu sete dias depois que Noé
recebera a ordem de embarque, e não em sete dias
como quer o poeta. A estrofe seguinte trata do
tempo de duração do dilúvio.
Gen. 7:12 — E houve chuva sobre a
terra quarenta dias e quarenta noites.
7:17 — E esteve o dilúvio quarenta dias
sobre a terra... 7:24 — E prevaleceram
as águas sobre a terra cento e cinquenta
dias. Gen. 8:1 — ... e Deus fez passar
um vento sobre a terra, e aquieta-ram-se
as águas. 8:5 — E foram as águas indo e
minguando até o décimo mês;...
Luiz ANTONIO BARRETO
32. E depois de muitos dias Noé saiu
com os seus, Foi saltando em
terra firme Prestou homenagens
a Deus As gerações aumentaram
Até estes dias meus.
Gen. 8:13 — E aconteceu que no ano
seiscentos e um, no mês primeiro, no
primeiro dia do mês, as águas se
secaram de sobre a terra... 8:18 — Então
saiu Noé, e seus filhos, e sua mulher, e
as mulheres de seus filhos com êle. 8:20
— E edificou Noé um altar ao Senhor; e
tomou de todo o animal limpo e de toda
a ave limpa, e ofereceu holocaustos
sobre o altar. 8:21 — ... nem tornarei a
ferir todo vivente como fiz. 5:22 —
Enquanto a terra durar, sementeira e
sega, e frio e calor, e verão e inverno, e
dia e noite, não cessarão
Dizendo que Noé prestou homenagens a
Deus o poeta salva-se de comentar o texto
que se refere aos holocaustos. É uma censura
feita pela própria formação religiosa
recebida. E outra vez mais, êle, o poeta, se
volta ao frutificai e multipli-cai-vos, aqui,
porém, não só com referência ao homem e à
mulher. Há uma generalização completa.
33. Noé com os filhos seus Saiu
da arca falada. Os filhos de
Noé fizeram A geração
aumentada Canaan, um neto
dele, Teve sorte malograda.
Gen. 9:18-27 — E os filhos de Noé que
da arca saíram, foram Sem e Cão e Jafé;
e Cão é o pai de Canaã. Estes três foram
os filhos de Noé; e destes se povoou toda
a terra. E começou Noé a ser lavrador de
terra, e plantou uma vinha. E bebeu do
vinho, e embebedou-se; e desco-briu-se
no meio de sua tenda. E viu Cão, o pai
de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo
saber a ambos os seus irmãos fora. Então
tomaram Sem e Jafé uma capa, e puse-
ram-na sobre ambos os seus ombros, e
indo virados para trás, cobriram a nudez
de seu pai, e os seus rostos eram virados,
de maneira que não viram a nudez do seu
pai. E despertou Noé do seu vinho e
soube o que o filho menor lhe fizera. E
disse: Maldito seja Canaã; servo dos
servos seja aos seus irmãos. E
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
34. Logo a terra povoada Dividiu-se
em gerações, Que falavam uma
só língua Sem existir confusões,
Sem vaidade e orgulho, Sem
prepotências e ambições
disse: Bendito seja o Senhor Deus de
Sem; e seja-lhe Canaã por servo.
Alargue Deus a Jafé e habite nas tendas
de Sem; e seja-lhe Canaã por servo.
A omissão do fato que redundou no castigo de
Canaã, e a batida na velha tecla das gerações que
se multiplicam, voltam a colocar o poeta naquela
estratégia de que falamos em nota anterior.
Gen. 10:32 Estas são as famílias dos
filhos de Noé, segundo as suas gerações,
nas suas nações; e destes foram
divididas as nações na terra depois do
dilúvio.
Gen. 11:1 — E era toda a terra duma
mesma língua, e duma mesma fala.
A participação do poeta agora se faz bastante
critica e clara. Para êle o uso de outras línguas na
terra é o elemento responsável pelas confusões,
vaidades, orgulhos, prepotências c ambições. Ê
visto que êle orienta a sua crítica a partir de um
conhecimento, embora intuitivo, de uma realidade
vivida por um povo. Não seria demais dizer que,
inconscientemente, êle se refere à exploração que
uma nação sofre por outra, mais forte e ambiciosa.
É um momento bem criador, tão, ou mais,
importante quanto a interferência que êle exercita
nas primeiras estrofes.
35. E daquelas gerações
Muitas foram ao Oriente, Lá
formaram uma cidade E uma
torre imponente...
Deus olhou esta cidade Como
uma coisa imprudente.
Gen. 11:2 — E aconteceu que partindo
eles do Oriente, acharam um vale na
terra de Sinar; e habitaram alí.
Gen. 11:4-6 — E disseram: Eia, .
edifiquemos nós uma cidade e uma torre
cujo cume toque nos céus, e façamo-nos
um nome para que não sejamos
espalhados sobre a face de toda a terra.
Então desceu o Senhor para ver a cidade e
a torre que os filhos dos homens
edificavam; e disse: Eis que o povo é
meu, e todos teem uma mesma língua; e
isto é o que começam a fazer; e agora, não
Luiz ANTONIO BARRETO
36.
37.
Quando Deus onipotente Viu a
cidade revel Deu-lhe o nome de
batismo Por todo o tempo —
Babel. Confundiu ali as línguas
Sem ser um ato cruel.
Como num frágil batel
Caminhou a humanidade Desse
dia por diante Em grande
adversidade Cada povo foi
formando A sua sociedade.
haverá restrição para tudo que eles
intentarem fazer.
As palavras bíblicas foram traduzidas por
um olhar de Deus. E Deus lançou um certo
gesto que identificado está com «coisa
imprudente», produto também de uma
sintese.
Gen . 11:8-9 — Assim o Senhor os
espalhou dali sobre a face de toda a
terra; e cessaram de edificar a cidade.
Por isso chamou seu nome Babel
porquanto ali confundiu o Senhor a
língua de toda a terra...
Somente em mencionar que este não foi
um ato cruel, o poeta já se manifesta em
oposição a outros pontos da Bíblia onde a
presença de Deus se faz forte. É bem verdade
que nos outros pontos êle se omite, como nos
holocaustos e na maldição de Canaã. Aqui,
contudo, êle retoma um certo sentido critico,
comum em toda a manifestação popular.
Gen. 11:9 — . .. e dali os espalhou o
Senhor sobre a face de toda a terra.
Mais uma vez o cantador participa da
criação, acrescentando coisas, e justificando
as adversidades de cada povo.
38. Abraão fez na verdade Um
destino para si. Uniu-se com a
mulher Que chamou-se Sarai.
Mulher que era bonita
Conforme a história que li.
Gen. 11:29 — E tomaram Abrão e Naor
mulheres para si: o nome da mulher de
Abrão era Sarai. Gen. 12:11 — E
aconteceu que, chegando êle para entrar
no Égito, disse a Sarai, sua mulher: Ora
bem sei que és mulher formosa à vista.
12:14 — E aconteceu que, entrando
Abrão no Égito, viram os egípcios a
mulher, que era mui formosa.
O poeta não se detém entre Abrão e
Abraão, nem no destino que para este é
traçado por Deus. O poeta alinhava em
síntese.
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
39,
40.
Êle foi com Sarai Da cidade
dos Caldeus Em busca de
Canaan Unir-se a parentes seus,
Recebe muitas promessas
Diretamente de Deus.
A Abraão disse Deus: -— Vais
sair de tua terra, Deixa tua
parentela, Novo destino se
encerra E espalharás gerações
Nos mares, campos e serras
Gen. 11:31 — E tomou Terã a Abrão
seu filho e a Ló filho de Avã, filho do
seu filho, e a Sarai sua nora, mulher de
seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur,
dos Caldeus, para ir à terra de Canaã; e
vieram até Harã e habitaram ali. Gen,
2:1 — Ora o Senhor disse a Abrão. . .
Gen. 2:2-3 — E far-te-ei uma grande
nação e abençoar-te-ei, e engrandecerei
o teu nome; e tu serás uma bênção.
Gen. 12:1-2 — Ora o Senhor disse a
Abrão: Sai-te da tua terra, e da tua
parentela, e da casa de teu pai, para a
terra que te mostrarei. E far-te-ei uma
grande nação. ..
41
Abraão da nova terra Vai
visitar o Égito, Mas aconselha a
mulher, Naquele momento
aflito Tu dirás que és minha
irmã Ficou o dito no dito.
42. Quando chegou ao Egito Os
príncipes de Faraó, Disseram
ao chefe. Senhor Vimos, agora
aqui só
A propósito de Canaã, é bom lembrar outra
composição popular: Canaã, de autoria de
Humberto Teixeira e interpretada por Luiz
Gonzaga, dentro do mesmo espírito bíblico de
terra prometida.
Gen. 12:10 — E havia fome naquela
terra: e desceu Abrão ao Égito, para
peregrinar ali, porquanto a fome era
grande na terra. 12:13 — E aconteceu
que, chegando êle para entrar no Égito
disse a Sarai, sua mulher: Ora bem sei
que às mulher formosa à vista; E será
que, quando os egípcios te virem, dirão:
Esta é sua mulher. E ma-tar-me-ão a
mim, e a ti te guardarão em vida. Dize,
peço-te, que és minha irmã, para que vá
bem por tua causa, e que viva a minha
alma por amor de ti.
Texto literal, sintetizado.
Gen. 12:15 — E viram-na os príncipes
de Faraó, e gabaram-na diante de Faraó;
e foi a mulher tomada para a casa de
Faraó.
Luiz ANTONIO BARRETO
43.
44.
Vos dar a irmã de Abraão Que
é parente de Lot.
Se é parente de Lot Isso não
interessa a mim Abraão só
disse isso Temendo levar um
fim, Mas Faraó descobriu
Aquela artimanha, enfim.
Sete reis fizeram enfim A
cinco reis uma guerra. Contra
Sodoma e Gomorra Agitou-se
toda a terra. A destruição das
cidades A história ainda
encerra.
Gen. 12:17-19 — Feriu, porém, o
Senhor a Faraó com grandes pragas, e a
sua casa, por casa de Sarai, mulher de
Abraão. Então chamou Faraó a Abrão, e
disse: Que é isto que me fizeste? por que
não me disseste que ela era tua mulher?
Por que disseste: É minha irmã? de ma-
neira que a houvera tomado por minha
mulher; agora, pois, eis aqui tua mulher;
toma-a e vai-te.
Gen. 14:1-2 — E aconteceu nos dias de
Anrafel, rei de Sinar, Ario-que, rei de
Elasar, Querdolaomer, rei de Elão, e
Tidal, rei de Goiim. Que estes fizeram
guerra a Bera, rei de Sodoma, a Birsa,
rei de Gomorra, a Sinabe, rei de Admá, e
a Seneber, rei de Zeboim, e ao rei de
Bela (esta é Zoar).
Gen. 14:8-9 — Então saiu o rei de
Sodoma e o rei de Gomorra, e o rei de
Admá, e o rei de Zeboim, e o rei de Bela
(esta é Zoar) e ordenaram batalha contra
eles no vale de Sidim, contra
Querdolaomer, rei de Elão, e Tidal, rei
de Goiim, e Anrafel, rei de Sinar, e
Arioque, rei de Elasar; quatro reis contra
cinco.
Realmente é difícil identificar onde o cantador
encontrou a guerra de sete reis contra cinco,
quando a Bíblia diz apenas cinco contra quatro.
Aqui se encerra a narrativa das origens e dos pactos e da dis-pensação. Numa
linguagem completamente ao alcance popular os poetas nordestinos transcreveram
passagens inteiras do Livro Sagrado, tor-nando-o mais aberto e mais próximo do
povo, não só pela simplicidade dos versos, como pelo poder de comunicação que
existe entre os que cantam e os que ouvem nas regiões sofridas do Nordeste. O
nosso trabalho procurou ser, na medida do possível, apoio para uma leitura mais
comparada. Não tivemos a intenção de analisar ou estudar os textos, mas de
colocar um grifo por entre as quarenta e quatro
A BÍBLIA NA LITERATURA DE CORDEL: PRIMEIRA VERSÃO DO «GÉNESIS»
sextilhas postas diante (paralelamente) do arquétipo, que é o livro primeiro,
atribuído a Moisés, o Génesis. Isto porém é apenas um começo: uma versão das
muitas existentes. Outras versões e outros livros virão, cremos, para mostrar o
interesse do homem pelos assuntos que normalmente não são postos ao nível do
seu alcance. E este trabalho não deve ser visto apenas como uma versão rimada do
livro de Génesis, mas como a presença do artista, no caso o poeta popular,
interferindo nos conceitos estabelecidos, e, não raro, modificando a criação inicial
ensinada e apreendida ao longo dos séculos.
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