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PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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Fernando Henrique Cardoso
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Paulo Renato Souza
MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
Iara Glória Areias Prado
SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL/MEC
Antônio Emílio Sendim Marques
DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA/MEC
Maristela Marques Rodrigues
COORDENADORA DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DO
FUNDESCOLA/MEC
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COORDENAÇÃO GERAL
Antonio Emílio Sendim Marques
Leoberto Narciso Brancher
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
FUNDESCOLA/MEC
Brasília, 2000
COORDENAÇÃO
Afonso Armando Konzen
Alessandra Vieira
Marisa Sari
Maristela Marques Rodrigues
Munir Cury
(ordem alfabética)
2000 Fundo de Fortalecimento da Escola FUNDESCOLA/MEC
Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude ABMP
Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida desde
que citada a fonte e obtida autorização do FUNDESCOLA/MEC
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Afonso Armando Konzen
Alessandra Vieira
Leoberto Narciso Brancher
Marisa Timm Sari
Maristela Marques Rodrigues
Munir Cury
COLABORAÇÃO
Cândido Gomes
Rui Rodrigues Aguiar
Wilson Donizeti Liberati
IMPRESSO NO BRASIL
Pela Justiça na Educação/coordenação geral Afonso
Armando Konzen ...[et al.]. Brasília: MEC. FUNDESCOLA,
2000.
735 p.
1. Educação. 2. Aspectos jurídicos. 3. Aspectos Sociais.
I. Konzen, Afonso Armando. II. Brasil. Ministério da
Educação. Fundo de Fortalecimento da Escola.
E56 370.19
APRESENTAÇÃO
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação e a regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino e de Valorização do Magistério – FUNDEF abriram as portas da transformação
sócio-jurídica na área dos direitos da criança e do adolescente e, especialmente, da
educação. Esses instrumentos legais materializam, com a força imperativa da vontade
estatal, os anseios da sociedade brasileira por justiça na educação.
Justiça na educação significa alunos matriculados em escolas equipadas, com professores
qualificados, com materiais didático-pedagógicos suficientes, com currículo escolar
apropriado à realidade do aluno, com recursos disponíveis e mecanismos de controle
social instituídos, com a participação dos pais e da comunidade na gestão escolar, em
ambiente construído para o sucesso do aluno. Em outras palavras, justiça na educação
significa igualdade de oportunidades, que possibilitam transformações sociais, concretizadas
na adoção de novos comportamentos e valores, na reorganização da sociedade, no pleno
desenvolvimento humano e na perspectiva de mudança do presente e do futuro.
Nessa ótica as oportunidades propiciadas pela educação de qualidade abre novos
horizontes no campo da justiça social, justificando-se assim o engajamento de juízes e
promotores de Justiça que, mais do que representam, operam a eficácia legal e a exigibilidade
do direito à educação.
Com o objetivo de fortalecer a aliança entre o Sistema de Justiça e os Sistemas de
Ensino, o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola –
FUNDESCOLA, e a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e
da Adolescência ABMP vêm desenvolvendo o Programa pela Justiça na Educação.
Abordando o direito à educação a partir da ótica do Sistema de Garantias dos Direitos da
Criança e do Adolescente, o Programa visa ao aperfeiçoamento técnico-profissional dos
magistrados e promotores de Justiça das Varas da Infância e da Juventude para atuação
em defesa e promoção desses direitos como estratégia jurídica e política de prevenção e
promoção social.
Estruturado em três eixos de implementação – articulação política, qualificação técnica e
mobilização social –, o Programa sugere o engajamento funcional e comunitário dos
profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público para que, de forma integrada com as
mais diversas instituições e movimentos sociais, selem compromissos e promovam iniciativas
voltadas á efetivação dos mecanismos legais de proteção à criança e ao adolescente, com
foco na família e na escola.
A
O Programa conta com o imprescindível apoio institucional de parceiros estratégicos
que integram as instituições do Sistema de Justiça, Poder Executivo e outros segmentos
institucionais. Esses parceiros vêm colaborando para a construção de uma rede articulada
de serviços e competências, para a mobilização dos operadores de Justiça e para a
otimização de iniciativas existentes e a deflagração de novas ações que garantam a
continuidade e a sustentabilidade do Programa.
Com o lançamento desta publicação, o FUNDESCOLA/MEC e a ABMP iniciam um nova etapa
do Programa, que operacionaliza o eixo da qualificação técnica por meio da realização
dos “Encontros pela Justiça na Educação” em todo o território nacional. Para se chegar a
essa nova etapa, o Programa contou com a importante contribuição dos operadores do
Direito no Estado do Maranhão, onde se realizou, em junho deste ano, um encontro-
piloto objetivando a validação da proposta técnico-pedagógica.
Esta publicação, organizada em nove módulos que correspondem aos eixos temáticos
constantes do conteúdo programático dos “Encontros pela Justiça na Educação”, constitui
uma coletânea de textos utilizados como material de suporte para esses encontros, e
preparados a partir da orientação técnica de equipe especializada nas áreas do Direito e
da Educação. Os textos e informações aqui contidos representam valiosa contribuição
para maior compreensão do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente,
e especialmente do direito à educação, que fundamenta o engajamento dos operadores
do Direito e de todos nós no Movimento pela Justiça na Educação.
Na oportunidade da publicação deste documento, o FUNDESCOLA, em nome do Ministério
da Educação, e a ABMP agradecem a todos que, movidos pela busca de justiça na educação,
contribuíram para a produção dos textos aqui inseridos. Ficam registradas a nossa estima e
agradecimento aos parceiros estratégicos cujas iniciativas já representam importante
contribuição para o sucesso do Programa. Nossos agradecimentos especiais para a equipe
de coordenação técnica, que não mediu esforços para a realização deste trabalho.
Leoberto Narciso Brancher Antônio Emílio Sendim Marques
PRESIDENTE DA ABMP DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
sumário geral
MÓDULO I
JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 14
CAP. 1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE ..... 17
Luis Henrique Beust
CAP. 2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA ..... 71
José Luis Bolzan de Morais
MÓDULO II
ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 114
CAP. 3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE
GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 121
Leoberto Narciso Brancher
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA
PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO .... 159
Afonso Armando Konzen
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 193
Paulo Afonso Garrido de Paula
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO ..... 209
Antônio Fernando do Amaral e Silva
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS
DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO ..... 255
Públio Caio Bessa Cyrino
MÓDULO III
A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 286
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 289
Antonio Carlos Gomes da Costa
Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
MÓDULO IV
A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 314
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
QUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM? ..... 321
Marisa Timm Sari
Maria Beatriz Luce
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO:
GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 349
Adélia Luiza Portela
Esmeralda Moura
Eni Santana Barretto Bastos
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL ..... 397
Maria Eudes Bezerra Veras
Ricardo Chaves de Rezende Martins
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO ..... 441
José Carlos Polo
MÓDULO V
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 476
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL ..... 477
Mário Volpi
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇÃO PELA INCLUSÃO ESCOLAR ..... 495
Simone Mariano da Rocha
MÓDULO VI
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 508
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR ..... 511
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO
DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO ..... 531
Mário Fleig
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO
AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS ..... 557
Paulo Sérgio Frota e Silva
CAP. 18 CÂMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO
INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS ..... 601
Pedro Scuro Neto
MÓDULO VII
DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 640
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 643
Paulo Afonso Garrido de Paula
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 659
Afonso Armando Konzen
MÓDULO VIII
GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 670
CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E
SEUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE ..... 673
Munir Cury
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL ..... 683
Hugo Nigro Mazzilli
MÓDULO IX
MOBILIZAÇÃO SOCIAL
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO ..... 715
Nisia Werneck
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
NOTA DA COORDENAÇÃO GERAL
Até imprimir-se a presente edição, além de parcerias em negociação como com o Supremo Tribunal
Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o Programa pela Justiça na Educação já conta formalmente com o
apoio institucional dos seguintes parceiros:
Ministério da Justiça
Procuradoria-Geral da República – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil
Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça do Brasil
Associação de Magistrados Brasileiros – AMB
Confederação Nacional da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP
Colégio Nacional de Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União
Colégio de Diretores das Escolas Superiores dos Ministérios Públicos
Fundo da Nações Unidas para a Infância – UNICEF
Instituto Ayrton Senna
Fundação Banco do Brasil
MÓDULO I
JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E
VALORES FUNDAMENTAIS
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
14
SUMÁRIO EXECUTIVO
DESDE O INÍCIO DA CIVILIZAÇÃO, os estudiosos e pesquisadores estiveram preocupados com
a educação, ao ponto de concluir que sem educação não haveria humanidade.
A educação é vital para o homem como o próprio ato de sobreviver, no sentido de preservar
sua frágil existência e assegurar sua evolução. Com a educação, o homem adapta-se ao meio
em que vive, a ponto de ser ela tão importante e fundamental quanto o ato de procriar ou de
desenvolver-se na vida social. Neste sentido, a educação é a própria humanidade.
O homem, integrado com o meio-ambiente, constitui uma unidade biológica que busca
permanente equilíbrio entre o próprio organismo (o ser humano) e o meio. Dessa adaptação,
surge a aprendizagem, atividade fundamental da vida, também conhecida por educação,
expressão da própria condição humana.A saúde surge, também, como fruto da educação. Sua
definição, conferida pela Organização Mundial de Saúde – OMS, é o “estado dinâmico de bem-
estar físico, psíquico, social e espiritual”.
Para o homem viver bem é necessário suprir as necessidades físicas, emocionais, psicológicas
e espirituais, que dão equilíbrio à existência humana. A educação interage com a saúde do ser
humano quando ele precisa aprender a melhorar a vida, por meio de cuidados com o corpo
(adequada alimentação, repouso, higiene etc.), do atendimento às suas necessidades emocionais
(pelo amor, simpatia etc.); necessidades psicológicas (de realização, de autonomia, expressão,
lazer e comunicação etc.), e espirituais (virtudes, propósito de vida, transcendência etc.).
Enfim, a educação não é necessária somente para a sobrevivência do ser humano, mas,
também, para dar-lhe qualidade de vida, com plenitude e felicidade.
A educação, percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, já foi
considerada propriedade exclusiva dos deuses. Pelo conhecimento, o homem imaginou que
podia ser independente da divindade, mas afinal descobriu que isso não o libertou de sua
condição humana.
Ao longo da história, a educação emerge como modelo e arquétipo da redenção humana
de sua própria condição humana que está num constante devir. A educação, além de garantir
a sobrevivência e a saúde da espécie humana, permitiu construir um padrão de existência,
conhecido por civilização. A educação sempre foi o elemento catalizador da garantia da
continuidade das conquistas humanas.
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
15
A educação é muito mais antiga e ampla do que as instituições chamadas escolas. A maior
parte da educação humana dá-se de maneira não formal, por meio da convivência, da orientação
e da imitação. Hoje em dia, outros meios de comunicação, como a televisão, o computador e a
Internet, alimentam o conteúdo educacional de maneira informal.
A escola pública, como estrutura formalizada da educação, é a criação do século passado,
que objetivava socializar o conhecimento, num exercício de justiça e igualdade na distribuição
de seus beneficiários, independentemente da condição social dos educandos.
Durante a Idade Média, as regras básicas de existência do ser humano eram baseadas na
religião e a sociedade dominava o homem; sua obrigação era crer e obedecer.
Com a evolução do conhecimento, a modernidade propôs a tarefa fundamental do ser humano
como a de raciocinar e criar.
Após um processo progressivo de materialização, racionalização e mecanização do universo
do homem e da sociedade, a cultura moderna retirou a importância do ser humano e de seus
ideais. Esses paradigmas levaram à desumanização do ser humano.
Pode-se dizer que os paradigmas do Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial
ainda contribuem para a inércia da resolução dos problemas humanos, baseados que estavam
em ações desprovidas de sentimentos.
Os princípios orientadores dos valores humanos valorizam uma redescoberta dos princípios
eternos e universais proclamados pelas grandes tradições espirituais e sapienciais da
humanidade.
O século XX foi profícuo em produzir leis que garantissem os direitos da criança e do
adolescente, tanto no âmbito interno quanto no internacional.
Esse ordenamento jurídico é exemplificado pela Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (1996), além dos princípios constitucionais gravados na Carta
Política de 1988.
A abordagem sobre direitos humanos induz todos os operadores do direito a pensar na
possibilidade de abrir novos horizontes e de dar condições àqueles que se preocupam com o
futuro das liberdades públicas, de atuar buscando respostas eficientes aos anseios da cidadania,
concretizadas na vida do Direito.
Os direitos de liberdade, de igualdade e solidariedade entraram no rol de garantias
constitucionais dos cidadãos após hercúlea batalha contra o absolutismo de governos e de
governantes. Somente a inclusão desses direitos na ordem jurídica não basta para a garantia
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
16
da cidadania; é preciso dar-lhes efetividade prática, ou seja, instigar os agentes políticos –
jurídicos – sociais para que assumam a tarefa de garantir que todos possam usufruí-los em
benefício próprio e comum ao mesmo tempo.
Na análise dos direitos humanos, aparece, em destaque, a transformação dos interesses
em individuais (direito subjetivo), coletivos (quando um interesse comum afetar uma coletividade
inteira de individuais reunidos em torno de vínculos jurídicos) e difusos (indeterminação
subjetiva de sua titularidade).
Esses direitos não poderiam ficar desconectados da vontade popular; portanto, assumiram
o caráter formal das normas constitucionais carregando, em si mesmas, a hierarquia e a
estabilidade das normas superiores. A constitucionalidade dos direitos humanos fundamentais
teve garantia, entre nós, desde a Constituição Imperial (1824), renovada nas demais Cartas, até
a atual, que referenda todas as gerações supostas de direitos humanos.
Aliados aos direitos humanos fundamentais, também conhecidos por liberdades públicas
de primeira geração, surgem, a partir do final da primeira guerra mundial, os direitos sociais
considerados de segunda geração, que enfatizaram os direitos relacionados às relações do
trabalho, à previdência, à saúde, e, particularmente, à educação.
Essa nova ordem social, também garantida no texto constitucional, traz com um perfil
diferenciado uma também nova maneira de garantir um direito: o da prioridade absoluta. Somente
os direitos infanto-juvenis receberam esse plus constitucional, ou seja, os direitos das crianças e
dos adolescentes deverão ser garantidos com prioridade sobre todos os demais direitos.
E o direito constitucionalizado da educação apareceu no rol daqueles que devem ser erigidos
como prioritários, pois hodiernamente esse direito representa importante relevância social na
medida em que a detenção do conhecimento importa na apropriação de poder e de votar.
Para a garantia desses direitos, a Constituição Federal instrumentaliza a sociedade,
atribuindo-se-lhe legitimidade para demandar, com os instrumentos jurídicos próprios, ágeis e
eficazes na satisfação de suas pretensões. Esses instrumentos, no seu contexto operacional
próprio, são de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.
Por fim, não existiria ambiente ideal para consolidação das pretensões democráticas de
cidadania, incluindo aqui, especialmente, direito constitucional à educação, que o locus privilegiado
da Constituição. Aqui, os operadores do Direito poderão buscar a fonte garantista dos direitos
humanos fundamentais das crianças e a adolescentes como sujeitos de direitos que são.
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
17
1
CAPÍTULO
ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust*
SUMÁRIO
1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 18
1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE ..... 18
1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE ..... 20
1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS ..... 21
1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO ..... 24
1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE ..... 26
2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 30
2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO ..... 30
2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORESDESUMANOS ..... 34
2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 37
2.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAÇÃO ..... 40
2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOS ..... 41
3 A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ÉTICO ..... 44
3.1 AS TRÊS FORMAS DE EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO MORAL ..... 44
3.2 A NATUREZA HUMANA, AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E A MORAL ..... 49
3.3 UNIVERSAIS MORAIS E JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA A FORMAÇÃO ÉTICA ..... 50
3.4 A EDUCAÇÃO DA VONTADE E A SOCIEDADE ÉTICA ..... 53
3.5 OS PRINCÍPIOS ESPIRITUAIS UNIVERSAIS ..... 58
4 A FUNDAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS LEGAIS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 61
4.1 UM SÉCULO DE LEIS ..... 61
4.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH) ..... 62
4.3 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA (DUDC) ..... 62
4.4 CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA (CIDC) ..... 63
4.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) ..... 64
4.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LDB) ..... 64
5 COMPROMISSO HISTÓRICO E POLÍTICO ..... 64
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 65
* Diretor do Centro Educacional Bahá’í Soltanieh. Coordenador do Conselho de Educação Global na América
Latina. Consultor internacional em Educação para a Paz.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
18
O texto ressalta a importância da educação para a vida e o progresso humanos,
apresentando-a como elemento fundamental para a sobrevivência da espécie, o
desenvolvimento da civilização e a plenitude de vida individual. Mostra como, durante a
Modernidade (século XVI até o presente), os paradigmas de cientificismo, racionalidade,
objetividade e materialismo destruíram o equilíbrio dos valores humanos e princípios espirituais
que sempre deram sustento à civilização e à realização humanas. Tal radicalismo deu-se em
antítese ao teocentrismo dogmático e obscurantista dos mil anos da Idade Média da cristandade
européia (século V ao XV), e acabou por minar os fundamentos da eticidade e da moral, que
são fundamentalmente espirituais por natureza. Argumenta-se que o período pós-moderno
em que vivemos oferece a necessidade e a possibilidade de uma síntese entre a razão e os
valores humanos, entre a ciência e a espiritualidade, apresentando os postulados de grandes
pensadores clássicos, modernos e contemporâneos. Estabelece-se a necessidade dos grandes
princípios e valores morais universais, dentro de um contexto pluralista e transecumênico,
para que se possa fundamentar uma educação libertadora e garantir a formação do indivíduo
e da sociedade éticos, em que valores como o Amor e a Justiça conduzam o fazer social.
1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR
1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE
Sem educação não haveria humanidade. A frase pode soar como um exagero, mas, no
tocante à educação, esse é o grande tema e a justa conclusão apresentados nos escritos dos
grandes pensadores, religiosos ou laicos, homens da ciência ou das humanidades, em todas as
culturas, ao longo dos cinco ou seis mil anos de civilização.
E não é para menos: ao contrário dos animais, os seres humanos dependem da educação
para sobreviver. Com um arsenal de instintos menos elaborado e menor repertório de respostas
automáticas para a vida, homens e mulheres dependem do aprendizado para assegurar que
suas existências transcorrerão de forma segura e satisfatória. Diferentemente dos animais, a
vida humana inicia-se de maneira extremamente frágil. Um recém-nascido é incapaz de prover
seu próprio sustento ou sobreviver sem o amparo constante de adultos, senão depois de
passados longos anos de amadurecimento.
A educação, passada pelos adultos às novas gerações, sempre foi, assim, não apenas a
ferramenta essencial da construção da cultura e da civilização, mas o instrumento supremo da
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
19
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
própria sobrevivência humana e de sua evolução. A educação, como instrumento que permitiu
aos homens uma cada vez mais elaborada adaptação ao meio ambiente, ao longo de incontáveis
eras, foi o grande diferencial na história evolutiva da humanidade.
As pesquisas científicas realizadas durante o século XX, em áreas como a Psicologia, a
Antropologia e a Sociologia, consolidaram uma enorme gama de dados sobre a necessidade
da educação, a ponto de se poder afirmar que o ato de aprender e de ensinar é tão fundamental
para a raça humana quanto a procriação ou a vida social. A educação, mais do que qualquer
outro elemento tomado em separado, garantiu a sobrevivência e a evolução da humanidade.
Nesse sentido, educação é humanidade.
Jean Piaget, Noam Chomsky e outros descreveram estruturas (de pensamento e de
linguagem, entre outras) relacionadas à mente humana, as quais exigem um desenvolvimento
tão natural e vital quanto o crescimento do corpo ou a associação grupal.
1
A aprendizagem,
nesse contexto, é vista como uma função vital, por meio da qual cada aprendiz (todos os seres
humanos) está ativa e permanentemente formando estruturas mentais novas na sua interação
com o meio ambiente; ou seja, está permanentemente aprendendo.
O enfoque biológico, adotado por Piaget para entender e explicar a apendizagem/educação,
ressalta que cada ser humano, como ser vivo, é um organismo em constante interação com o meio
ambiente. Na verdade, o organismo (o ser humano), o meio e a interação entre eles constituem
uma unidade biológica na qual os três elementos estão inseparavelmente conectados. O processo
de aprendizagem, nesse contexto, é desencadeado por uma perturbação do equilíbrio
experimentado entre o organismo e o meio. O organismo procura superar essa perturbação, e o
sentimento subjetivo de tensão ou necessidade que emerge dela, por meio de uma adaptação.
Quando essa mudança no ambiente é enfrentada por adaptação do organismo, houve aprendizagem.
Nesse sentido, pois, poder-se-ia dizer não apenas que a educação (ensino/aprendizagem)
é uma atividade fundamental da vida, mas sim que a própria vida é aprendizagem, ou educação.
A vida, individual ou social, nada mais é do que uma cadeia única de processos de aprendizagem.
Piaget chega a falar de uma “epistemologia genética” e da organização biológica como uma
“estrutura cognitiva” que interage com o meio ambiente.
Essa base biológica do processo de aprendizagem demonstra, pois, o quanto a educação
é vital para o próprio processo de existir. É claro, porém, que a vida especificamente humana
não se esgota no nível biológico; antes, desenvolve-se num plano sociocultural. A educação
humana, portanto, não ocorre apenas ao nível de uma ação recíproca biológica, mas, bem
1
Ver notas e referências bibliográficas a partir da página 65.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
20
mais do que isso, numa ação sociocultural recíproca do sujeito e seu meio, entre o indivíduo
e aqueles que o rodeiam.
Esse enfoque sociocultural ressalta o fato de que o processo de educação de cada ser
humano não se dá no vazio, nem de forma isolada, mas sempre no seio de um grupo humano,
no qual cada pessoa deve viver e aprender. É fácil perceber, nessa situação, que o aprendizado
se dá não apenas pela necessidade intelectual ou cognitiva que o indivíduo tem daquilo que
está aprendendo, mas de uma plêiade de fatores emocionais, sociais e existenciais. Ou seja,
como seres humanos, aprendemos não apenas porque temos necessidade de aprender num
sentido intelectual, mas porque temos necessidades de amar e ser amados, de ser aceitos,
respeitados e benquistos; necessitamos encontrar um propósito para nossas vidas e respostas
adequadas para questões como o sofrimento e a morte.
Embora seja bastante comum falar de educação para referir-se simplesmente ao
desenvolvimento cognitivo, ou tão somente à transmissão de instrução, o fato é que, como
vimos, educação é bem mais do que isso. Howard Gardner, da Universidade de Harvard, o
destacado descobridor das inteligências múltiplas, afirma que a educação precisa ser vista
como “um empreendimento muito mais amplo, envolvendo motivação, emoções, práticas e
valores sociais e morais.”
2
A educação, assim vista, é a própria expressão da condição humana.
1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE
A Organização Mundial da Saúde, OMS, define saúde como o “estado dinâmico de bem-
estar físico, psíquico, social e espiritual”. Nessa concepção contemporânea de saúde, identificam-
se também as quatro áreas nas quais uma pessoa pode estar enferma. Podemos sofrer de
enfermidades físicas (bursite, alergia, câncer), enfermidades psíquicas (neuroses, psicoses),
enfermidades sociais (violência, miséria, desemprego), ou enfermidades espirituais (anomia,
ódio, falta de sentido na vida, desesperança).
Essas áreas de saúde/doença definem também aqueles campos da existência humana que
precisam ser adequadamente atendidos para podermos viver bem. Ou seja, nossa vida depende
de que sejam supridas as necessidades físicas, emocionais, psicológicas e espirituais (também
chamadas existenciais) que nos constituem como seres. O suprimento dessas necessidades
vitais se dá por meio do processo de ensino/aprendizagem, de forma que podemos, agora,
associar a educação não apenas com nossa sobrevivência (o que não seria pouco!), mas também
com nossa saúde plena.
No campo físico, necessitamos aprender como sustentar e melhorar nossa vida com adequada
alimentação, repouso, atividade, higiene e proteção.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
21
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
No campo emocional, nossas necessidades são supridas pelo aprendizado do amor, da
simpatia, da atenção, da estima, do aconchego, da auto-estima e da auto-aceitação, sem os
quais não podemos nos desenvolver de forma plena e feliz. Na verdade, a própria sobrevivência
física fica comprometida quando tais necessidades emocionais são desatendidas.
Nossas necessidades psicológicas de realização, autonomia, lazer, expressão e comunicação,
entre outras, também são supridas por meio do aprendizado adequado de capacidades pessoais
e sociais que as viabilizam e desenvolvem.
Da mesma forma, é a educação o instrumento supremo que permite a cada nova geração
de homens desenvolver aqueles conhecimentos, habilidades, atitudes e qualidades de natureza
espiritual ou existencial que lhe permitem satisfazer suas necessidades de transcendência,
beleza, virtude e propósito para a vida.
Educação, portanto, tem a ver não apenas com sobrevivência, mas com qualidade de vida,
com plenitude, com felicidade.
1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS
Os homens sempre perceberam, ainda que inconscientemente, que o conhecimento, e sua
transmissão, tinha algo de supremo, de vital, de divino – que estava relacionado com sua
própria sobrevivência e plenitude de vida.
A educação, assim, sempre foi percebida como um dos maiores dons e deveres da
humanidade, quer ante Deus (ou deuses) quer ante os próprios homens. Para as percepções
mais aguçadas, ao longo dos séculos, tão relevante tem sido a educação – e seu fruto, o
conhecimento – que sua natureza e processo chegou a ser descrita como limitada ao domínio
celestial, sem acesso aos homens, ou como algo sobrenatural, ou como uma porta para a
eternidade. Os vários mitos relacionados à Criação e os textos sagrados dos primórdios da
História refletem essa importância vital atribuída ao conhecimento.
Na mitologia grega, Prometeu, que era um dos Titãs e, portanto, primo de Zeus, é
representado como um especial amigo da humanidade. Segundo as mais antigas tradições do
mito, é Prometeu quem cria o homem, a partir do barro. Depois disso, desejando dar à nova
criatura acesso ao que somente pertencia aos deuses, Prometeu rouba de Zeus o conhecimento
do fogo (ele próprio símbolo do conhecimento) e o entrega à humanidade.
Zeus, enfurecido por não mais deter a exclusividade do conhecimento, castiga a humanidade
com toda espécie da pragas e sofrimentos. Tal castigo chega através de uma bela mulher,
Pandora, que fôra criada pelos deuses e dada de companheira ao irmão de Prometeu, Epimeteu.
Apesar de bela, Pandora tinha o engano e a trapaça no coração, e é por meio de suas mãos que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
22
se abre a caixa ou jarra de onde saem todos os males que afligem a humanidade. Mas, apesar
de agora sofridos, os homens detinham o conhecimento que antes era somente dos deuses. E,
assim, resta a esperança...
No Antigo Testamento, o Gênesis faz um relato similar do “ciúme” divino quanto ao
conhecimento, e do castigo imposto à humanidade como preço por ter comido da “árvore do
conhecimento do bem e do mal”.
3
Ao comer o fruto proibido, Adão e Eva se apropriam de algo
que era restrito aos céus, e se tornam “como deuses”,
4
com seus olhos abertos pelo conhecimento.
O próprio Deus exclama: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal”.
5
Para
que essa usurpação de posições não prossiga, e o homem se torne, além de conhecedor,
imortal, Deus expulsa Adão e Eva do jardim do Éden, para que “não estenda sua mão e tome
também da árvore da vida e coma e viva eternamente.”
6
Uma vez expulsos do Paraíso por causa do conhecimento, Adão e Eva concebem dois
filhos, mas Caim mata Abel, dando continuidade aos sofrimentos humanos. Porém, é também
da descendência deles, através do terceiro filho, chamado Sete, que nascem Abraão e Isaque e
Jacó, e todos os profetas de Israel, inclusive Jesus, dando ao final do relato também uma sobra
de esperança para a redenção humana, como na caixa de Pandora.
Claro que tais relatos são símbolos antigos e riquíssimos que explicam a condição humana.
Tanto Pandora como Eva podem ser entendidas como representações da mente humana primitiva,
em seu estado bruto e selvagem, cheia de curiosidade e beleza, mas também de todos os vícios
que apenas a educação pode remediar. Essa mente pressente que conhecimento é poder, que
pode inclusive aproximá-la do divino.
Ambos os relatos podem ser tomados, assim, com o seguinte sentido: o conhecimento é
luz, é sustento (fogo) e tão elevado que é propriedade exclusiva da divindade. Por meio do
conhecimento o homem crê tornar-se independente da divindade. Porém, ele só se apossa do
conhecimento pelo sofrimento; por meio dele percebe a complexidade da vida, assim perdendo
a inocência do paraíso (infantil). O simples conhecimento do mundo, portanto, não liberta o
homem de sua condição humana. Ele precisa de um conhecimento ainda mais elevado para
isso, um conhecimento das coisas transcendentes, divinas: precisa conhecer a esperança, a
obediência, o arrependimento, a perseverança, a honestidade, o amor...
Tais mitos e relatos indicam, nessa formulação primitiva, um dos grandes temas relacionados
à educação: o conhecimento, por si só, pode ser perigoso. Se for imperfeito, ou incompleto,
será causa de sofrimento, e melhor seria não tê-lo. Mas isso será tratado mais adiante, quando
abordarmos a formação do indivíduo ético.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
23
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Vê-se, pois, como a simbologia é completa: apesar dessa associação entre o conhecimento
e o sofrimento, que pode ser encontrada em praticamente todos os mitos e textos primevos, os
relatos indicam que o conhecimento, se aprimorado pelas coisas “da alma”, aproxima realmente
os homens da condição divina; não mais pela competição, mas pela humildade, não pela
usurpação, mas pelo descobrimento de sua verdadeira condição.
Seja por meio da esperança, como em Pandora, ou do arrependimento e da misericórdia
de Deus, como na Bíblia, a idéia é que o mal do conhecimento imperfeito pode ser superado
pela educação verdadeira, que incorpora ao conhecimento das coisas visíveis também o
conhecimento das invisíveis, ou seja, o domínio da moral, do bem e do mal, das virtudes.
A origem dessa educação suprema, completa, segundo as grandes tradições espirituais do
mundo, é divina, concedida à humanidade como um ato de graça dos céus. Como diz São
Paulo a Timóteo:
“Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir,
para instruir em justiça. Para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para
toda a boa obra”.
7
Seguramente, entre as escrituras “divinamente inspiradas” apontadas por São Paulo como
proveitosas para que o homem “seja perfeito” estão aquelas provindas de outros horizontes e
climas, nascidas tanto antes quanto depois do cristianismo. Nelas, o conhecimento também é
apresentado como algo sagrado, redentor, e a educação, como um ato divino.
Buda, por exemplo, exortando seus discípulos há mais de 2500 anos, apresenta a educação
verdadeira, que edifica o caráter, como o único remédio contra o sofrimento:
“Não vos desconcerteis com a universalidade do sofrimento. Segui os meus ensinamentos,
mesmo depois de minha morte, e estareis livres do sofrimento. Fazei isso e sereis verdadeiramente
meus discípulos... Se seguirdes estes ensinamentos, sereis sempre felizes.”
8
Para que os homens possam desfrutar dessa felicidade, porém, Buda diz que “eles devem
estar ansiosos por aprender”.
9
Os Upanishades, parte da antiqüíssima tradição sagrada hindu, nascida há mais de 5000
anos, nos primórdios da vida sedentária da humanidade, também associam esse valor sagrado
à educação, afirmando que “pelo conhecimento obtemos imortalidade”.
10
No Alcorão, revelado aos árabes no século VII, o conhecimento é outra vez apresentado
como de origem divina, concedido ao homem pela Revelação de Deus no Alcorão e nos demais
escritos sagrados, como o Evangelho cristão e a Tora judaica. Falando através de Maomé, é o
próprio Deus quem explica:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
24
“Revelamos a Tora, que encerra Direção e Luz ... e depois dos outros profetas enviamos Jesus,
filho de Maria, corroborando a Tora que O precedeu; e Lhe concedemos o Evangelho que encerra
Direção e Luz, o qual confirma a Tora, e é guia e exortação para os tementes.”
11
Maomé afirma que Deus é o “Mais Bondoso” porque “ensinou ao homem o uso da pena [a
escrita] e aquilo que ele desconhecia”.
12
Na mesma linha de argumentação, Bahá’u’lláh, no século XIX, renova essa mensagem das
grandes tradições espirituais, outra vez exaltando o papel do conhecimento na vida humana:
“O conhecimento é como asas para a vida do homem e uma escada para sua ascensão. A
todos incumbe sua aquisição... Em verdade, o conhecimento é um autêntico tesouro para o homem
e uma fonte de glória e bênção, de contentamento, de exaltação, de alegria e de felicidade. Feliz
é o homem que a ele se apega, e desafortunado o desatento.”
13
Mas ele também observa que “Deve ser adquirido, contudo, o conhecimento de tais ciências
que possam beneficiar aos povos da terra, e não daquelas que começam e terminam com palavras.”
14
Todos esses textos, reverenciados pela humanidade há milênios, não apenas refletem o
respeito e fascínio antigo e elevado que os homens nutrem pelo conhecimento e por sua
ferramenta, a educação, mas também têm servido, ao longo de incontáveis eras e gerações,
para dar a ela o caráter de processo arquetípico para a salvação dos homens.
É a educação que emerge, ao longo da História, como o arquétipo da redenção humana de
sua própria condição humana. Uma educação que é um constante devir, pois que nunca está
acabada. Como coloca Paulo Freire:
“[Os homens] descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos, e se inquietam por
saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura.
... Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.”
15
1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO
Além de a educação garantir a sobrevivência e a saúde da espécie, ela nos permitiu construir
um padrão de existência único sobre o planeta: aquilo que chamamos de civilização. Ciência,
arte, auto-realização, fé, ordem, desenvolvimento, prosperidade e cultura têm sido alguns dos
temas e conquistas desenvolvidos e aprimorados ao longo dos milênios. E a educação sempre
foi o elemento que, sozinho, serviu de veículo e garantia para a continuidade das conquistas
humanas.
Como já vimos, profetas, filósofos e pensadores sempre atribuíram à educação o mais alto
valor social e moral, acima de tudo pelo fato de a considerarem o único instrumento capaz de
elevar o homem acima do nível dos animais, colocando-o numa esfera especial da natureza,
num patamar todo seu.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
25
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Entretanto, ao longo dos séculos, a educação não tem sido vista apenas como a fonte de
todo bem social e coletivo dos homens, mas também como a ferramenta que permite a cada
indivíduo elevar-se ao seu verdadeiro destino e cumprir seu potencial inato.
“A direção na qual a educação encaminha um homem determina sua vida futura”, é a
afirmação de Platão em A República.
16
Dois grandes poetas ingleses também expressaram isso
de forma belíssima. William Wordsworth afirma:
“A criança é pai do homem.” (The child is father of the man.)
17
E John Milton reflete:
“A infância revela o homem,” (The childhood shows the man,)
Como a manhã revela o dia.” (As morning shows the day.)”
18
Isso significa que, mais do que o destino da espécie, o destino pessoal de cada ser humano
está na dependência da educação. Ela determina o grau no qual os potenciais inatos de cada
um serão explorados e utilizados para o seu próprio proveito e para o benefício da sociedade.
Ou seja, a medida da auto-realização de cada indivíduo está ligada indissoluvelmente à educação
que lhe é concedida.
Abraham Maslow, um dos maiores nomes da Psicologia neste século, afirma a respeito
desse potencial individual inexplorado:
“Freud supunha que o nosso superego ou a nossa consciência era, primordialmente, a
internalização dos desejos, exigências e ideais do pai e da mãe, quem quer que eles fossem.... Essa
consciência existe – Freud estava certo. Mas existe também outro elemento na consciência, que
todos nós possuímos, seja ela débil ou vigorosa. Trata-se da consciência intrínseca. Esta baseia-se na
percepção inconsciente ou pré-consciente da nossa própria natureza, do nosso próprio destino ou
das nossas próprias capacidades, da nossa própria vocação na vida. Ela insiste em que devemos ser
fiéis à nossa natureza íntima e em que não a neguemos, por fraqueza, por vantagem ou qualquer
outra razão...”
19
Além disso, Maslow afirma que “Se esse núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido,
ela adoece, por vezes de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente,
algumas vezes mais tarde.”
20
É claro que este “adoecer” deve ser entendido naquele sentido amplo da definição da OMS
apresentado acima. O fato é que a vida plenamente realizada, com um sentimento de dinâmico
bem-estar, depende da auto-realização.
Por essa razão, a educação humana precisa despertar em cada indivíduo não apenas aqueles
comportamentos e características que sejam necessários e adequados à sociedade em que vive,
mas também à expressão daqueles imponderáveis potenciais inatos que lhe permitam sentir-se
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
26
em paz com sua “consciência intrínseca”. Isso não pode ser alcançado senão por meio de uma
educação que encoraje a criatividade e a auto-expressão, mais do que a imitação e o conformismo.
Nas palavras de Jean Piaget:
“A meta principal da educação é criar homens capazes de fazer coisas novas e não apenas
repetir o que outras gerações fizeram – homens criativos, inventivos, e descobridores. A segunda
meta da educação é formar mentes que possam ser críticas, que possam verificar e que não
aceitem tudo o que lhes é oferecido.”
21
Tais observações encaixam-se na tradição dos grandes pensadores do passado,
independentemente dos enfoques específicos que adotaram em outros aspectos, na medida
em que foram unânimes ao relacionar a educação com a vocação de cada homem, preparando-
o em pensamento e ação para cumprir seu propósito e posição na vida.
O contrário dessa educação que liberta e realiza seria a educação dos animais domesticados
ou dos escravos, que aprendem para o benefício dos outros, não do seu próprio.
Tal educação “liberal”, um termo cunhado por Aristóteles para definir a educação de homens
livres – ao contrário da educação “iliberal”, fornecida aos animais domesticados e aos escravos
–, destina-se a redimir e viabilizar a expressão do potencial inato de cada pessoa. É seu objetivo
garantir que cada ser humano viva bem, e não que tão-somente seja capaz de ganhar a vida,
para si ou para os demais.
Aristóteles afirma que a educação de um homem só é liberal “se ele faz ou aprende algo
por causa dele mesmo ou de seus amigos, ou com vistas à excelência”.
22
Em outras palavras,
ela deve tratar o homem como seu fim, e não como um meio a ser usado por outros homens,
ou pelo Estado.
“Concepção bancária da educação” é como Paulo Freire denomina o processo de ensino/
aprendizagem que não objetiva o homem livre para pensar e repensar o mundo, para entendê-
lo e recriá-lo. Tal educação, denunciada por Aristóteles como “baixa e servil”,
23
é, segundo
Freire, a própria antítese do saber:
“Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação,
não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção,
na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com
os outros. Busca esperançosa também.”
24
1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE
Obviamente, até aqui se falou de educação num sentido bem mais amplo do que
simplesmente escolaridade. A maior parte da educação humana ocorre de maneira não formal,
por intermédio da convivência, da orientação, da imitação, da diferenciação. A educação,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
27
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
portanto, é muito mais antiga e ampla do que essas instituições formais chamadas escolas. Na
verdade, como vimos acima, a educação é tão antiga quanto a própria humanidade. Mesmo em
nossos dias, muitos outros veículos educacionais, além das escolas (a mídia, por exemplo),
atuam permanentemente sobre todos os seres humanos.
Ao longo da História humana, com exceção do século XX, a educação se deu pelo
aprendizado contextualizado, ou seja, as lições eram transmitidas no âmbito do contexto em
que deveriam ser aplicadas. Em outras palavras, aprendia-se fazendo. Por meio da observação
informal e da prática orientada no lar, nos campos, nos templos ou nos artesanatos, as crianças
e os jovens aprendiam, não apenas a fazer coisas e a entender as coisas, mas a ser.
Toda a cosmovisão, os valores, os modelos de papéis adultos, as possibilidades e as
limitações que uma cultura possui foram transmitidos, ao longo de milhões de anos, dessa
forma pouco sistematizada e espontânea. Mesmo na vida contemporânea, esta ainda é a principal
forma de educação, mas, em todo o mundo, as crianças passam hoje grande parte do seu
tempo dentro de salas de aula.
A escola pública elementar, como a conhecemos atualmente, foi concebida somente no
século passado, pela primeira vez nos Estados Unidos da América. Como observa Howard
Gardner, “A instrução pública em massa é distintamente um fenômeno do século XX.”
25
Há uma grande diferença entre a educação tradicional e a escolar, tanto no que diz respeito
aos objetivos educacionais, quanto ao processo educativo. É Gardner, novamente, quem comenta:
“Pois enquanto a educação no mundo inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissão
de papéis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadas foram criadas,
primordialmente, com dois objetivos específicos : a aquisição de instrução com notações e o domínio
de disciplinas.”
26
Por que, então, deveríamos nos preocupar tanto com o acesso das crianças às escolas, e
buscar, de todos os meios, que elas possam desfrutar de tal conhecimento “descontextualizado”
e com ênfase mais na instrução e nas disciplinas do que nos valores e nos papéis adultos? Há
várias razões.
Até a Revolução Industrial, no século XIX, a maioria dos seres humanos dependia da
educação informal (proveniente do convívio com os pais, a família e a sociedade) ou contextual
(aprendizado in loco, como numa carpintaria, num mosteiro ou no campo) para construir
aquele conhecimento que lhe seria necessário para a vida em sociedade. Esse conhecimento,
em geral, privilegiava a estagnação e o imobilismo sociais: nobres aprendiam coisas de nobres,
camponeses aprendiam coisas de camponeses, artesãos, de artesãos, etc. Ou seja, o panorama
educacional e social era “Filho de peixe, peixinho é.”
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
28
Na sociedade contemporânea, porém, as profissões e ocupações humanas estão cada vez
mais voltadas e abertas para as capacidades inatas de cada ser humano, independentemente
de sua origem. Nesse contexto, a educação escolar tornou-se o melhor instrumento educacional
que permite acesso ao mundo para além da família. As escolas, no mundo inteiro, passaram a
representar, em seu estado ideal, é claro, um belo exercício de justiça e igualdade humanas, na
medida em que oferecem a todas as crianças os benefícios do conhecimento, independentemente
de sua condição social.
Obviamente, ainda há uma enorme e injusta diferenciação na qualidade de ensino oferecido
a diferentes classes sociais, mas o fato é que, se compararmos a educação de hoje, em termos
de possibilidade de crescimento e realização pessoal, com aquela que dominou a História
humana, é impossível negar os grandes avanços ocorridos. Hoje as escolas são, em todo o
mundo, talvez o principal instrumento de socialização, de integração comunitária, de
possibilidade de auto-realização. Assim, no contexto da civilização contemporânea, negar acesso
à escola é negar acesso à auto-realização. à cidadania, à vida.
Além disso, com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e com as transformações
ocorridas na estrutura do dia-a-dia de indivíduos e famílias, especialmente no que diz respeito
ao tempo e à qualidade do convívio diário, muito daquilo que antes era aprendido no lar
agora precisa ser aprendido na escola. Regras básicas de convivência, noções de certo e errado,
entendimento do mundo e de si mesmo estão entre aqueles aprendizados fundamentais que,
de maneira crescente, ocorrem, numa medida cada vez maior, fora dos lares.
Em muitíssimos casos até, as escolas oferecem o melhor ambiente possível para o
desenvolvimento das crianças, quer no sentido mais elementar de uma refeição adequada,
quer nas dimensões mais sutis e determinantes de um ambiente emocional e socialmente
saudável. Para os filhos de tantos lares desfeitos ou sujeitos ao álcool, à violência, à miséria e
à degradação, muitos professores são, hoje, os mais importantes adultos e os melhores modelos.
Muitas dessas crianças contam com eles como os mais saudáveis exemplos pelos quais irão
modelar suas possibilidades de crescimento e sucesso, sua auto-estima e respeito, seus padrões
de paternidade e felicidade... Para outros tantos, as melhores lembranças de carinho, amor e
ternura estarão para sempre relacionadas aos bancos escolares.
Além disso, no contexto de um mundo sujeito aos impulsos preconceituosos, fanáticos e
etnocêntricos relacionados a religião, raça, ideologia, origem e classe, as escolas oferecem,
idealmente, e também, em geral, na prática, um ambiente neutro e democrático para a convivência
e a aprendizagem da convivência pacífica e respeitosa. Enquanto não se tornarem quintais das
igrejas e partidos, oxalá isso nunca ocorra, as escolas representam um baluarte fundamental
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
29
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
da sociedade pluralista, livre e democrática. Bastaria isso para fazer delas um elemento essencial
no processo de educação do qual estivemos falando.
Barbara Freitag, um dos grandes nomes na área do pensamento da eticidade, realizou em
1981 e 1984 um estudo piagetiano em escolas e favelas da Grande São Paulo, concentrando-se
em crianças e adolescentes entre 6 e 16 anos provindos de diferentes origens socioeconômicas,
com o fim de identificar o perfil de desenvolvimento moral nesta população. No estudo foram
empregados os testes de moralidade sugeridos por Piaget e por Lowrence Kohlberg. Como em
outros estudos realizados em outras partes do mundo, a pesquisa confirmou a existência de
estágios de desenvolvimento moral, conforme postulados tanto por Piaget quanto por Kohlberg
(algo de que trataremos mais adiante, quando falarmos da construção do indivíduo ético).
Mais importante para nossa consideração, aqui, foi outra conclusão da pesquisa, no que diz
respeito ao desenvolvimento moral diferenciado para adolescentes escolarizados e não
escolarizados. Segundo Freitag:
“Essa segunda hipótese foi inteiramente confirmada, favorecendo os adolescentes escolarizados.
Entre estes, registraram-se os estágios mais elevados de moralidade. A decalagem [diferenciação]
vertical constatada entre jovens favelados (sem experiência escolar) com relação aos jovens
escolarizados de diferentes origens socioeconômicas mas de mesma faixa etária (de 12 a 16 anos
de idade) era enorme.”
27
Essas experiências, como outras em diferentes contextos socioculturais, demonstram, como
ressalta Freitag, que a “educação geral e a educação moral tornam-se necessárias para evitar o
atraso (cumulativo) no alcance dos estágios adequados do desenvolvimento [moral].”
28
Na base de teoria da moralidade de Kohlberg está o postulado de que a genuína
compreensão moral depende de o indivíduo ter alcançado o estágio cognitivo do pensamento
operacional formal, como descrito por Piaget, o que teria relação estreita com a escolaridade.
Embora a comprovação de tal relação direta ainda permaneça inconclusiva, e a distinção daquilo
que é puramente lógico daquilo que é puramente moral ainda não tenha sido definida pelas
pesquisas contemporâneas,
29
permanece a clara indicação de que a educação ampliada, seja
formal ou informal, oferece maiores condições de desenvolvimento moral ao indivíduo, se as
demais variáveis forem idênticas.
A escola, nos dias atuais, e a escola pública em particular, apesar de todas as grandes e
urgentes necessidades de aprimoramento e transformação, representa, assim, uma tábua de
salvação para milhões de crianças que, de outra maneira, estariam fadadas à ignorância e à
marginalidade. O acesso à escola representa, portanto, o acesso à própria vida, à possibilidade
de vida. É uma promessa, humilde que seja, de um mundo melhor para cada criança, e a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
30
promessa da construção de um ser que possa mesmo transcender suas origens, e que se construa
conforme seus mais elevados potenciais.
2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA
“Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não
podem ser dicotomizadas.”
30
2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO
Durante a maior parte da História humana, em todas as culturas, era relativamente fácil
entender o universo e o papel do homem dentro dele. Deus era o Criador supremo e os
homens, suas criaturas supremas. Os governantes o eram por direito divino e a missão de
todos os homens era obedecer a Deus, ao rei, e tratar de salvar suas almas pela fé. As regras
básicas da existência eram de natureza religiosa e a sociedade dominava sobre o indivíduo. A
tarefa humana fundamental era crer e obedecer.
Essa visão teocêntrica do mundo e de seu funcionamento foi questionada crescentemente,
a partir da Europa do século XVII, dando lugar a um paradigma antitético: Deus existia, é
verdade, mas distante. O homem passou a ser o centro do universo, e a ciência era sua criatura
suprema. Os governantes derivavam sua autoridade do poder concedido a eles pelo povo. As
regras da vida eram de natureza científica e o indivíduo estava acima do todo da sociedade. A
tarefa fundamental dos homens passou a ser raciocinar e criar.
É claro que esse paradigma, nascido com a Revolução Científica, o Iluminismo e o
Racionalismo dos séculos XVI ao XVIII, representou uma antítese aos milênios de domínio
cultural e social da religião sobre os homens.
Ao longo dos últimos dois ou três séculos, o antropocentrismo substituiu o teocentrismo
como paradigma dominante. A razão substituiu a fé. O objetivo substituiu o subjetivo. A certeza
substituiu o mistério. Essa mudança de Weltanschauung da civilização ocidental difundiu-se
para o mundo inteiro, através do processo de industrialização e globalização que se lhe seguiu.
Desde então, a ciência e a razão são dotadas de força de lei, de forma tão categórica quanto
haviam sido, no passado, a doutrina e a fé.
Fritjof Capra, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, um dos mais destacados físicos
e pensadores contemporâneos, comenta:
“A crença na certeza do conhecimento científico jaz na própria base da filosofia cartesiana e na
cosmovisão que dela nasceu; e foi aqui, nas próprias origens, que Descartes se equivocou. A Física
do século XX nos convenceu, de maneira forçosa, que não há verdade absoluta na Ciência, que
todos os nossos conceitos e teorias são limitados e aproximados. A crença cartesiana na verdade
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
31
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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científica é ainda muito disseminada hoje em dia e se reflete no cientificismo que se tornou típico
de nossa cultura Ocidental.”
31
Porém, como antítese que é, o paradigma científico-racional contemporâneo ainda não
está completo. Na verdade, nenhum paradigma jamais poderá ser considerado completo. Dar-
se conta dessa limitação é fundamental para se poder ir além dos limites criados por ele. Capra
observa:
“O método de pensamento de Descartes e sua visão da natureza influenciaram todos os ramos
da Ciência moderna e podem ainda ser muito úteis hoje em dia. Mas serão úteis somente se suas
limitações forem reconhecidas. A aceitação da visão cartesiana como verdade absoluta, e do método
de Descartes como a única forma de conhecimento válida desempenharam um papel importante
na geração de nosso desequilíbrio cultural contemporâneo.”
32
O grande sucessor de Descartes na busca do conhecimento objetivo da natureza foi Isaac
Newton. Seu êxito em desenvolver todo um modelo matemático para a visão mecanicista da
natureza levou o paradigma do universo-máquina ainda mais longe. Além da certeza no
conhecimento científico e no primado da razão, Newton difundiu o paradigma da realidade
composta de partes isoladas e independentes, os átomos, e da possibilidade de compreender
o todo a partir apenas do estudo das partes. Essa visão atomista e reducionista agiria
sinergicamente com os postulados cartesianos para criar todo um paradigma cada vez mais
“objetivo” e “realista”, em que as sutilezas das percepções desenvolvidas por épocas anteriores
se perderam. Capra segue sua análise:
“O extraordinário sucesso da física newtoniana e da crença cartesiana na certeza do conhecimento
científico conduziram diretamente à ênfase que nossa cultura atribuiu à ciência pura e à tecnologia
pura. Somente em meados do século XX é que se tornou claro que a idéia de uma ciência pura era
parte de um paradigma cartesiano-newtoniano, um paradigma que seria então superado.”
33
Embora não tenha sido esta a intenção de Descartes, ou de seu grande sucessor, o fato é
que os pensadores que os sucederam, quer nas ciências da natureza, quer nas humanidades,
estenderam a outros domínios do conhecimento um visão crescentemente materialista e
mecanicista, buscando tratar a natureza, o homem e a sociedade como máquinas. Houve, num
sentido cada vez mais intenso e geral, um processo de dessacralização da vida e de suas metas.
“Os pensadores do século XVIII” – continua Capra – “levaram este programa mais longe, ao
aplicarem os princípios da mecânica newtoniana às ciências que estudavam a natureza humana e a
sociedade. As ciências sociais recentemente criadas geraram grande entusiasmo, e alguns de seus
expositores chegaram mesmo a reivindicar a descoberta de uma Física social.”
34
Eventualmente, nessa caminhada obsessiva pela realidade objetiva, todos os fenômenos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
32
subjetivos e todos os valores espirituais foram descartados como inúteis. A famosa postulação
de Marx em A Ideologia Alemã cria escola e se impõe no mundo:
“O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político
e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser
social que determina suas consciências.”
35
Apesar de tal interpretação da realidade ter deixado de ser verdade absoluta ao ser
cabalmente desmentida por Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,
o fato é que o conteúdo revolucionário e político da práxis marxista dominou o cenário cultural
de grande parte do mundo, sendo força incontestável na difusão de uma postura e interpretação
puramente materialista da realidade. Como se não bastasse, em 1882, Nietzsche, proclama que
“Deus está morto!”
36
Esse paradigma atomista, materialista, reducionista e mecanicista está nas raízes da crescente
desumanização do ser humano ao longo dos últimos 300 anos. Eric Fromm descreve vivamente
o que se passa na consciência e no comportamento das pessoas quando passam a tratar o
universo como se fosse uma grande máquina, pessoas que ele denomina de “necrófilos”, ou
seja, amantes das coisas mortas.
“... o indivíduo necrófilo ama tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico. A pessoa necrófila
é movida por um desejo de converter o orgânico em inorgânico, de observar a vida mecanicamente,
como se todas as pessoas viventes fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos
de vida se transformam em coisas. A memória e não a experiência; ter, não ser, é o que conta. O
indivíduo necrófilo somente pode se realizar com um objeto – seja uma flor ou uma pessoa – se o
possuir. Em conseqüência, a ameaça à posse é uma ameaça a ele mesmo. Se perde a posse, perde
contato com o mundo.”
37
Outro grande nome da Psiquiatria do pós-guerra, Victor Frankl, criador da terceira escola
de Psiquiatria de Viena (depois de Sigmund Freud e Alfred Adler), e uma das mais
extraordinárias vidas e mentes do século, descreve as conseqüências nefastas do materialismo
e do tecnicismo na sociedade contemporânea:
“... a evidência clínica sugere que a atrofia do sentido religioso na pessoa humana resulta numa
distorção de seus conceitos religiosos. Ou, falando em termos menos clínicos: uma vez reprimido o
anjo dentro de nós, ele vira um demônio. Existe um paralelo inclusive em nível sociocultural, pois
repetidas vezes observamos e somos testemunhas de como a religião reprimida acaba degenerando
em superstição. Em nosso século, o endeusamento da razão e uma tecnologia megalomaníaca
constituem as estruturas repressivas em prol das quais é sacrificado o sentimento religioso. Este fato
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
33
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
explica grande parte da atual condição humana, a qual realmente parece uma neurose compulsiva
universal da humanidade, para citar Freud.”
38
Ken Wilber, um dos maiores filósofos da atualidade, comenta sobre a ruptura da cultura
contemporânea a partir da dissociação ocorrida entre os “Três Grandes”, como ele chama o
Belo, o Bom e o Verdadeiro. Essas três dimensões de valores, identificadas por Platão, seguiram
sendo os referenciais de grandes pensadores ao longo dos séculos, como Tomás de Aquino,
Kant, Popper e Habermas.
Wilber, numa análise fascinante, identifica como esses três domínios se relacionaram ao
fazer humano de formas bem distintas, mas complementares, até interdependentes, ao longo
da maior parte da História de todas as culturas e civilizações, com exceção da Modernidade
39
na cultura ocidental. Ele também identifica os “Três Grandes” com outras dimensões
epistemológicas e ontológicas. Senão, vejamos:
O Belo tem a ver com a consciência, a subjetividade, a identidade pessoal, a auto-expressão
(inclusive arte e estética), a veracidade, a sinceridade, a consciência vivida irredutível e imediata,
os “relatos na primeira pessoa”. O Belo é o domínio da arte e do eu.
O Bom diz respeito à ética e à moral, às visões de mundo, ao contexto compartilhado, à
cultura, aos significados intersubjetivos, à compreensão mútua, ao apropriado, à justeza, aos
“relatos em segunda pessoa” (tu, você; vós, vocês). O Bom é o domínio da moral e do nós.
O Verdadeiro se relaciona com o domínio da ciência e da tecnologia, com a natureza
objetiva, com as formas empíricas, com a verdade propositiva, com as exterioridades objetivas
tanto de indivíduos quanto de sistemas, e aos “relatos na terceira pessoa” (ele, ela, eles, elas).
O Verdadeiro é fundamentalmente o domínio da ciência e das coisas.
Wilber descreve como o projeto da Modernidade tratou de separar essas três grandes
esferas que sempre haviam andado mescladas ao longo da História. Isso, de certa forma, foi
bom, pois permitiu que cada uma delas pudesse se desenvolver sem os freios que as demais
poderiam inadequadamente impor-se mutuamente. Mas ele também mostra como, mais do que
diferenciação, a cultura moderna ocidental dissociou uma esfera da outra, criando barreiras
(aparentemente) intransponíveis entre o eu e o nós e o eles, entre a razão e a emoção e a
intuição, entre a ciência e a arte e a religião... Comenta Wilber:
“[...] a diferenciação entre os Três Grandes [o Belo, o Bom e o Verdadeiro] (e essa foi a dignidade
da modernidade) degenerou em dissociação dos Três Grandes (o que representou o desastre da
modernidade). Essa dissociação permitiu que uma ciência empírica explosiva, associada a formas
florescentes de produção industrial – sendo que ambas enfatizavam somente o conhecimento das
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
34
coisas e a tecnologia das coisas – dominasse e colonizasse as outras esferas de valor [o Belo e o
Bom] efetivamente destruindo-as em seus termos próprios.
“Assim, as [...] dimensões interiores foram reduzidas às suas [...] correspondentes exteriores, o
que significou o colapso do Grande Encadeamento do Ser,
40
e com ele, dos postulados centrais das
grandes tradições sapienciais.
“[...] Aí está, precisamente, o desastre da modernidade, o desastre que foi o ‘desencantamento
do mundo’ (Weber),
41
a ‘colonização da esfera dos valores pela ciência’ (Habermas), o ‘surgimento
da terra desolada’
42
(T.S.Eliot), o nascimento do ‘homem unidimensional’ (Marcuse), a ‘dessacralização
do mundo’ (Schuon), o ‘universo desqualificado’ (Mumford).
“Por qualquer outro nome que seja, trata-se do desastre conhecido como terra plana”.
43
Assim, o fato é que, via um processo progressivo de materialização, racionalização e
mecanização do universo, do indivíduo e da sociedade, a cultura moderna acabou por coisificar
o mundo, o ser humano e seus ideais. Os paradigmas dominantes da Modernidade levaram à
desumanização do ser humano e de seu mundo.
2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORESDESUMANOS
Há, ainda hoje, em todo o mundo, uma inércia – herança tardia da Renascença, do
Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial – de se conceber as soluções dos
problemas humanos, inclusive sociais, em termos meramente técnicos e materialistas. Tal
abordagem dá ênfase aos recursos, especialmente econômicos, não às pessoas; à transferência
de conhecimento e tecnologia, não à educação e à capacitação; às normas e regulamentos, não
ao diálogo; às exigências técnicas e financeiras, não às espirituais.
Arnold Toynbee, para muitos o maior historiador do século, comentava, já nos anos 50,
sobre esta falácia das soluções técnicas, ao discorrer sobre a integração mundial que viemos a
chamar de globalização:
“Desde o começo a humanidade tem estado dividida hoje nos unimos finalmente. ... Mas
nosso andaime, armado no Ocidente, é constituído por materiais menos duráveis. Seu elemento
mais notório é a técnica e o homem não pode viver somente da técnica”.
44
Toynbee ressaltava a necessidade urgente de a interdependência mundial passar também
pelo enriquecimento cultural mútuo, pelos valores humanos, por aqueles princípios espirituais,
universais e atemporais como a Justiça, a Liberdade e o Amor. Para que a aldeia global que se
estava formando não se transformasse numa aldeia de dominadores e dominados, de
possuidores e excluídos.
Paulo Freire, da mesma forma, não se sentia tolhido de falar em Amor quando falava de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
35
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
transformação social. Para não parecer piegas, entretanto, (devemos lembrar que corriam os
anos 60!) sentiu ser necessário apoiar-se em Che Guevara que afirmava que “o verdadeiro
revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um
revolucionário autêntico sem esta qualidade.”
45
A ideologia da desumanização, da racionalidade crua e mecânica e das ações “isentas” de
sentimentos, baseadas apenas em dados “científicos”, dominou grande parte do último século,
ao ponto de muitos não conseguirem perceber outra alternativa para a realidade. Essa miopia
de visão social caracterizou aquilo que viemos a reconhecer como Modernidade. Sua difusão
pelo mundo, e as conseqüências disso, é descrita por Ervin Laszlo, um dos cientistas fundadores
do Clube de Roma e consultor científico da UNESCO:
“A reunião do conhecimento científico e dos ofícios práticos sinalizou o nascimento da ciência
aplicada, ou tecnologia. Seu surgimento na Europa, em estados-nações que dominavam os sete
mares e se consideravam plenamente soberanos, pavimentou o caminho para a industrialização e
todas as suas bem conhecidas conseqüências. Os valores da civilização industrial foram difundidos
para o resto do mundo através do mercantilismo e da busca por novas matérias-primas, assim como
(num estágio posterior) por novos mercados. (...)
“Os valores e aspirações associados com o modernismo espalharam-se de forma pouco sábia, na
medida em que povos dominados pela tradição buscavam os confortos e o poder concedidos pela
tecnologia, mas se achavam também expostos à sua mentalidade subjacente. Assim se espalharam
pelos quatro cantos do mundo o materialismo, o egoísmo, o chauvinismo, o ateísmo e a intolerância
ao subdesenvolvimento. Se para algumas pessoas tais atitudes parecem hoje ser expressões da própria
natureza humana, isso é porque adotaram-nas de modo tão completo que nada mais parece concebível.”
46
Laszlo então denuncia a falácia de se imaginar que os valores e padrões da sociedade
moderna contemporânea sejam finais ou ideais:
“Ao contrário do que muitos crêem piamente, o modernismo não é a expressão final da
natureza humana, mas apenas uma fase da evolução humana e sociocultural. ... Muitos grandes
pensadores hoje vêem nossa civilização a trilhar o caminho errado, tanto material quanto
espiritualmente. Eles buscam uma mudança espiritual através da educação e da religião, que conduza
a um redespertar de nosso senso de compaixão por toda a humanidade.”
É importante ter em consideração que tais palavras sobre a premência de nosso redespertar
espiritual têm sido, cada vez mais, pronunciadas por cientistas, como Toynbee e Laszlo, e não
apenas por teólogos ou espiritualistas. A necessidade de se redimir a verdadeira natureza
humana não tem escapado às mentes mais perspicazes, qualquer que seja o domínio do
conhecimento ao qual se dedicam.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
36
Paulo Freire também reforça essa visão de que os ideais desumanizados do materialismo
não podem ser tidos como vocação ou necessidade, como finais ou como única alternativa
humana. É dele a seguinte expressão lúcida, comovente e inspiradora:
“Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são
possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão.
“Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos
homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na
exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça,
de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
“A desumanização ... é distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se
admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos de fazer,
a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho
livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como seres para si, não teria
significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na
história, não é porém, destino dado...
47
No que toca especificamente à educação e à sua potencial ação libertária e humanizadora,
Paulo Freire ressalta que esta precisa ser dialógica, pois, se não houver diálogo, o que há é
dominação. E aponta para o fato de que tais meta, postura e método humanizadores só podem
existir se fundados nos valores espirituais humanos:
“Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível
a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda.
“Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente
tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia
de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de
coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.”
48
Esta percepção de que os valores humanos, ou espirituais, estão na base da motivação e
da mobilização para a ação transformadora é uma grande redescoberta da segunda metade do
século XX. As teorias contemporâneas sobre motivação humana apontam para o fato de que as
consciências dos homens não podem ser mobilizadas se seu coração não for tocado. Os grandes
valores espirituais da Verdade, do Belo, do Bem, da Justiça, do Amor etc. são elementos
indeléveis da natureza humana, e sua negação ou menosprezo estão na raiz da maior parte dos
problemas globais contemporâneos.
Por que, então, tais princípios espirituais são negados ou menosprezados?
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
37
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA
É Ervin Laszlo, novamente, como uma das vozes mais notáveis do século em prol da
humanização das ações governamentais e sociais, quem nos pode ajudar a começar a entender
as razões pelas quais, apesar de os valores humanos existirem e serem conhecidos, não são
utilizados como instrumento de mudança social.
Laszlo aponta para o que chama de “limites internos” da humanidade, que identifica com
a inércia em revermos criticamente a Weltanschauung, a cosmovisão da qual derivamos a
lógica (ou a falta dela) para nossa intervenção no mundo. Ele comenta:
“Esquece-se que não nosso mundo, mas nós seres humanos é que somos a causa de nossos
problemas, e que apenas redesenhando nosso pensamento e ação, e não o mundo ao nosso redor,
é que os poderemos solucionar. ...”
“Não há praticamente nenhum problema mundial cuja causa não possa ser vinculada à ação
humana e que não possa ser superado por mudanças adequadas no comportamento humano. As
causas que estão na raiz mesmo dos problemas físicos e ecológicos são as limitações internas de
nossa visão e nossos valores.”
49
O fato é que a razão, a emoção e as ações concretas humanas são reflexo da visão, das
crenças e valores que são nutridos subjetivamente, aquilo que pesquisadores como Howard
Gardner e Peter Senge, ambos da Universidade de Harvard, chamam de “modelos mentais”, ou
“representações mentais”, e que Thomas Kuhn batizou de “paradigmas”.
Os modelos ou representações mentais, os paradigmas, são imagens mentais arraigadas
dentro de nosso ser, que usamos (individual e coletivamente) para compreender como funciona
o mundo. Como a mente humana não pode lidar muito bem com dados detalhados relacionados
à complexidade do mundo, ela tende a construir modelos mentais compostos de generalizações.
Essas generalizações se baseiam em imagens, idéias, suposições, relatos, estereótipos e várias
linguagens nutridas dentro da mente-cérebro. Como coloca Gardner, “essas representações
são reais e importantes”.
50
Mas o mais importante é que os paradigmas-modelos-representações mentais determinam
nosso comportamento, seja individual, seja coletivo. Gardner aponta para o fato de que os
comportamentos humanos objetivos podem melhor ser entendidos como “epifenômenos, isto
é, as sombras de nossas representações mentais determinantes”.
51
Ou seja, agimos conforme
cremos e sentimos, sejam tais crenças ou sentimentos justificados ou não. Vemos e agimos de
acordo com nossos paradigmas pessoais e coletivos, sejam eles válidos ou não.
Segundo Senge:
“... o mais importante é saber que os modelos mentais são ativos eles modelam nosso modo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
38
de agir. Se achamos que as pessoas não são dignas de confiança, agimos de maneira diferente da
que agiríamos se achássemos que elas eram confiáveis. ...
“Por que os modelos mentais têm esse poder de influenciar o que fazemos? Em parte, porque
eles influenciam o que vemos. Duas pessoas com diferentes modelos mentais podem observar o
mesmo acontecimento e descrevê-lo de maneira diferente, porque olharam para detalhes
diferentes.”
52
Thomas Kuhn, da Universidade de Chicago, o brilhante fundador da epistemologia
contemporânea, já ressaltava em sua obra seminal A Estrutura das Revoluções Científicas:
“[...] algo como um paradigma é um pré-requisito para a própria percepção das coisas. Aquilo
que um homem vê depende tanto daquilo para o qual ele olha quanto do que sua experiência
visual-conceitual anterior ensinou-lhe a ver.”
53
Podemos comparar os paradigmas e modelos mentais dominantes de uma civilização ou
cultura a um navio transatlântico que cruza o oceano. Dentro dele, milhares de pessoas se
deslocam para cima e para baixo, entram e saem, de acordo com suas vontades: vão ao cinema,
à piscina, ao jantar, ao baile, à sauna, ao camarote... Entretanto, todo esse movimento se dá
dentro de um movimento maior, que é o deslocamento do navio de um continente ao outro.
Esse macromovimento, dentro do qual se dão todos os infinitos micromovimentos, quase que
não é percebido, já que todos se preocupam não com o deslocamento do navio, mas com suas
vontades e necessidades dentro do navio. Todos se consideram livres para tudo fazer dentro
do navio. Mas exatamente aí está a grande prisão: tudo fazer dentro do navio. Não haveria
nenhuma dimensão de liberdade (ou quase nenhuma, com exceção de se afogar ou ser comido
pelos peixes) se alguém quisesse fazer algo fora do navio.
Da mesma forma, os paradigmas de uma civilização estabelecem os limites invisíveis dentro
dos quais as pessoas pensam, sentem e agem. Os paradigmas estabelecem as barreiras
imperceptíveis dentro das quais tudo parece lógico e coerente e viável. O grande problema é
justamente esse: assim como certamente existe muito mais vida e realidade fora do navio, da
mesma forma, existe muito mais verdade e realidade fora do(s) paradigma(s) dominante(s) de
uma determinada civilização, época ou cultura.
Transcender os paradigmas é uma tarefa evolucionária fundamental, e a humanidade tem
sempre sido capaz de fazê-lo, mas não sem dor e medo, não sem contradições e resistência.
Como Thomas Kuhn salientou, nenhum paradigma é abandonado sem que outro seja assumido
em seu lugar. O ser humano não pode viver sem um sentido das coisas, e é exatamente isso que
os paradigmas oferecem. Quando um paradigma começa a se mostrar deficiente, outro começa a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
39
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
ser formado, por meio dos esforços não orquestrados, mas sinérgicos, de pioneiros do novo
paradigma. Inicialmente, tais pessoas são ridicularizadas e perseguidas, como os seguidores das
novas religiões, ou os defensores de novas teorias (veja-se os cristãos nos circos romanos,
Giordano Bruno, Galileu, Einstein, Max Plank, os protestantes na Europa da Contra-Reforma
etc.), mas eventualmente o novo paradigma se estabelece, até o processo se repetir, no avanço
irrefreável do desenvolvimento do conhecimento e da consciência humanos.
Pois bem, tais considerações sobre modelos e representações mentais indicam que, sem
uma revisão de nossos postulados básicos, sem um exercício crítico de nossa visão de como as
coisas são e funcionam no tocante ao desenvolvimento humano, individual ou social, é
impossível que ultrapassemos os “limites interiores” que, como aponta Laszlo, nos impedem
hoje de criar realidades novas e melhores.
“O problema dos modelos mentais” – destaca Senge – “não está no fato de eles serem certos
ou errados por definição, todos os modelos são simplificações. O problema surge quando eles
são tácitos quando estão abaixo de nosso nível de consciente.”
54
Em relação aos valores humanos, espirituais por natureza, há ainda muita resistência
inconsciente, pautada em modelos mentais inconsistentes com a realidade, que impede que
eles se manifestem ou sejam considerados seriamente quando se trata de “resolver problemas
reais e objetivos”. Laszlo, entretanto, nos recorda que “os valores e a motivação impregnam
todas as atividades humanas, mesmo as investigações científicas, e desconsiderá-los ou depreciá-
los não irá resolver nossos problemas, mas apenas varrê-los para debaixo do tapete”.
55
A visão desumanizada da vida, se não bastasse, não foi a única conseqüência do paradigma
materialista. A negligência e o desprezo em relação ao poder do ideal, da visão positiva de
futuro e da utopia, em favor de um pragmatismo cético, foram outro legado da Modernidade.
Em muitos ambientes, especialmente acadêmicos, era considerado “de bom tom” e “moderno”
depreciar todos os ideais da sociedade, mesmo aqueles dos grandes pensadores liberais dos
séculos anteriores. Isso era ser “científico”.
Ervin Laszlo comenta que
“praticamente esquecemos a importância e o valor das idéias e imagens positivas de futuro.
Olhamos para os poucos visionários remanescentes, que ainda acreditam num mundo melhor,
como sendo otimistas ingênuos ou tolos inofensivos. Nossas sociedades sofrem de uma overdose
de pragmatismo combinada com um pessimismo generalizado mas indefinido”.
56
Somos ainda herdeiros, em muitos sentidos, dessa postura cínica e cética, mas, ao mesmo
tempo, sentimos, como nunca, a falta das utopias.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
40
2.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAÇÃO
Reconhecer essa tendência ao menosprezo do poder transformador dos valores humanos
e dos grandes ideais humanistas é fundamental para que se quebre o encanto do tecnicismo e
das soluções mecânicas e “racionais”. Sem tal revisão de posturas e pontos de vista, de modo
a se colocarem os valores humanos, ou princípios espirituais, nas bases das decisões morais,
econômicas e políticas, o que ocorre é a criatividade no erro.
Nesse sentido, Laszlo denuncia:
“Sondamos maneiras inovadoras de satisfazer valores obsoletos. Administramos crises individuais
enquanto marchamos direto para catástrofes coletivas. Pensamos em mudar quase tudo, menos nós
mesmos.”
57
E aponta a alternativa:
“Os apuros contemporâneos da humanidade exigem mudanças interiores, uma revolução
humana e humanística que mobilize novos valores e aspirações, apoiados em novos níveis de
comprometimento pessoal e de vontade política.”
58
Durante o Ano Internacional da Paz, 1986, um documento distribuído pela Comunidade
Bahá’í aos líderes mundiais, intitulado “A Promessa da Paz Mundial”, alertava-os sobre a
importância dos valores humanos para a transformação social. O documento salienta o fato de
que os valores humanos, ao contrário do que muitos ainda acreditam hoje, não são meros
instrumentos para as decisões pessoais de indivíduos mais refinados ou desenvolvidos
espiritualmente, mas sim princípios-guia que devem nortear as decisões de entidades e governos
na busca do desenvolvimento social e econômico. Diz o texto:
“Existem princípios espirituais, ou aquilo que algumas pessoas chamam valores humanos, por
meio dos quais se podem encontrar soluções para todos os problemas sociais. Qualquer grupo
bem-intencionado pode, num sentido geral, formular soluções práticas para seus problemas, mas as
boas intenções e os conhecimentos práticos geralmente são insuficientes. O mérito essencial de
um princípio espiritual reside no fato de não somente apresentar uma perspectiva que se harmoniza
com aquilo que é imanente à natureza humana, mas também de incutir uma atitude, uma dinâmica,
uma vontade e uma aspiração que facilitam e identificação e a implementação de medidas práticas.
Os dirigentes governamentais e todos os que ocupam postos de autoridade fariam bem se, em
seus esforços para resolver problemas, procurassem primeiro identificar os princípios envolvidos e,
depois, se deixassem guiar por eles.”
59
O texto aponta também para aquilo que poderia ser considerado o principal valor dos
princípios espirituais: o de serem capazes de “incutir uma atitude, uma dinâmica, uma vontade
e uma aspiração” que conduzem à ação transformadora. Estudos na área da motivação apontam
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
41
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
os grandes ideais e valores humanos como os mais poderosos motivadores da humanidade.
Todo homem, um dia, cansa ou desiste de lutar por um melhor salário, ou maior status, se
esses forem fins em si mesmos. Mas pela Justiça, pelo Respeito, pela Dignidade ninguém se
cansa de lutar. São lutas perenes da humanidade.
Abraham Maslow, entre tantos outros pensadores humanistas e pós-modernos,
60
identifica
essa mudança gradual em direção a uma percepção mais equilibrada do mundo, uma síntese
entre a tese teocêntrica e espiritualista medieval e a antítese antropocêntrica e materialista dos
últimos cem anos. Essa síntese paradigmática conduz na direção de uma percepção da realidade
que harmoniza tanto os elementos sensoriais quanto os supra-sensoriais, que respeita tanto as
coisas do “mundo” quanto as do “céu”. Ele comenta:
“Quando a filosofia do homem (sua natureza, seus fins, suas potencialidades, sua realização)
muda, então tudo muda, não só a filosofia política, a econômica, a ética e a axiológica, a das
relações interpessoais e a da própria História, mas também a filosofia da educação, da psicoterapia
e do crescimento pessoal, a teoria de como ajudar os homens a tornarem-se no que podem e
profundamente necessitam vir a ser.
“Estamos atualmente no meio de uma tal mudança na concepção das capacidades,
potencialidades e metas humanas. Está surgindo uma nova visão das possibilidades do homem e do
seu destino, e as suas implicações são numerosas, não só para as nossas concepções de educação,
mas também para a ciência, a política, a literatura, a economia, a religião e até para as nossas
concepções sobre o mundo não-humano.”
61
Além dessa revisão fundamental dos valores que baseiam nossa cosmovisão
contemporânea, há outro elemento fundamental para a transformação da realidade humana
em direção da humanização e da ressacralização da vida, que já foi adiantada acima. Trata-se
da construção de visões positivas de futuro.
Imagens utópicas são arquetípicas. Ou seja, os seres humanos possuem uma capacidade
inata, como espécie, de responder entusiasticamente a propostas de futuro que sejam promissoras
e desejáveis, e de agir para torná-las realidade. Nos primórdios da civilização, há uns bons
3000 anos, essa verdade já havia sido expressada quando um sábio disse que “onde não há
visão, o povo perece”.
62
Isso era tão verdade então quanto o é hoje.
2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOS
Mas onde buscar esses princípios espirituais norteadores, esses valores humanos
orientadores, essas visões positivas de futuro?
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
42
Kant queria que todo o agir moral se sustentasse na razão, e não via necessidade de nada
mais do que seu imperativo categórico para que cada um e todos os seres humanos agissem de
forma ética. A Moral, nessa visão, seria basicamente autônoma (partindo do próprio indivíduo) e
racional, e não heterônoma (partindo de uma autoridade externa) e cultural (religiosa ou política).
Kant acreditava que bastaria a compreensão dessa formulação racional, belíssima, por sinal, para
fazer que os homens agissem moralmente uns para com os outros. Diz o imperativo categórico:
“Age tu de tal maneira que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo
como princípio de uma legislação universal.”
63
Ou, em outra formulação:
“Age tu segundo a máxima que possa transformar-se em lei geral.”
No entanto, a História e as ciências contemporâneas (Sociologia, Antropologia, Psicologia)
demonstram que o agir moral exige bem mais do que a simples razão. A moralidade nasce de uma
tessitura complexa na qual inextrincáveis elementos autônomos e heterônomos (para usar Kant),
ou internos e externos, atuam sobre o indivíduo de forma categórica na sua complexidade e não-
linearidade. A realidade moral é bem diferente da pura razão prática. As emoções, tanto ou mais
do que a razão, as estruturas psico-cerebrais congênitas, os condicionamentos familiares e sócio-
econômicos, os valores religiosos, políticos e ideológicos, as tradições sociais, as circunstâncias,
a educação, o nível de desenvolvimento moral, os paradigmas dominantes da civilização, cultura
ou subcultura, tudo isso atua sobre o indivíduo para constituir seu ser e fazer moral.
Na realidade, apesar do que desejava Kant, é hoje evidente que não existe desenvolvimento
moral sem uma fonte externa ao indivíduo que sobre ele exerça influência inequívoca e à qual
ele, preferencialmente, entregue sua lealdade, mas, em qualquer caso, sua obediência. Um ser
humano não age moralmente no vácuo da razão, mas impulsionado por crenças, sentimentos,
lealdades, ódios, amores, valores e princípios (ou pela falta deles).
Assim, parece haver bastante consenso entre os pensadores pós-modernos quando tendem
a valorizar uma redescoberta dos princípios eternos e universais proclamados, não pela simples
razão, mas pelas grandes tradições espirituais da humanidade. Sem necessariamente postularem
um retorno às religiões, pelo menos enquanto elas, ou naquelas que, se configuram conforme
o que Wilberg chama de formato “pré-moderno”, tais pensadores e cientistas identificam nelas
a origem e a fonte dos princípios universais de humanização cuja falta tanto denunciam.
Max Horkheimer, o fundador da “Teoria Crítica” e um dos pais da (Primeira) Escola de
Frankfurt, junto com Adorno, Marcuse e Benjamin, deu desenvolvimento ao pensamento
filosófico contemporâneo a partir de uma perspectiva marxista. É dele, e de um quadrante tão
insuspeito para tal posicionamento, a seguinte afirmação:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
43
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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“Não existe nenhuma razão lógica e imperativa pela qual eu não deva odiar, se isso não me
prejudicar na vida social. Todas as tentativas de basear a moralidade na inteligência mundana, em
vez de vê-la em relação ao mais além – uma tendência à qual nem mesmo Kant resistiu todo o
tempo – estão fundadas em ilusões. Em última análise, tudo o que diz respeito à moralidade deriva
logicamente da teologia.”
64
Arnold Toynbee, ao analisar as possibilidades de correção de rumos da civilização
contemporânea, lançava o desafio de se “restabelecer a superestrutura secular sobre fundações
religiosas”.
65
Claro que não se refere a “fundações religiosas” no sentido de sectárias ou
doutrinárias, mas no sentido dos valores espirituais que sempre foram o baluarte e o moto de
todas as religiões.
Fritjof Capra, por sua vez, escreve:
“Um número cada vez maior de cientistas está consciente de que o pensamento místico
oferece um fundamento consistente e relevante para as teorias da ciência contemporânea, uma
concepção de mundo na qual as descobertas científicas de homens e mulheres podem estar em
harmonia perfeita com seus objetivos espirituais e suas crenças religiosas.”
66
Ervin Laszlo faz uma exposição bastante completa do que representaria um programa de
humanização da cultura contemporânea partindo da influência dos valores universais salientados
em diversas correntes de pensamento religioso ou humanista (inclusive ateu):
“Os grandes ideais das religiões mundiais, e a ética e a cosmovisão de tempos mais recentes,
representam valores perenes, independentemente do período histórico em que apareceram
inicialmente. Estes ideais poderiam e deveriam ser reafirmados e divorciados das práticas políticas,
freqüentemente questionáveis, que estiveram associadas a eles.
“Há, por exemplo, a visão cristã da fraternidade universal governada pelo amor que o homem
dedica ao Deus de todos os homens e ao próximo. Há a visão histórica do judaísmo, de um povo
eleito através do qual todas as famílias da Terra serão abençoadas. O Islã possui a visão universal de
uma comunidade derradeira entre Deus, o homem, a natureza e a sociedade. A meta essencial da
Fé Bahá’í é alcançar uma visão abrangente do mundo que possa conduzir à unidade da humanidade
e ao estabelecimento de uma civilização mundial baseada na paz e na justiça. O hinduísmo percebe
a matéria com sendo nada mais que a manifestação exterior do espírito e exorta à sintonia com a
harmonia cósmica através dos caminhos variados da yoga. O budismo, também, percebe toda a
realidade como interdependente, e ensina o homem a alcançar união com ela através da renúncia
aos apelos e apetites de um ego independente. O confucionismo acha a harmonia suprema nas
relações humanas disciplinadas e ordeiras, e o taoísmo encontra esta harmonia na natureza e no
convívio com ela. As religiões tribais africanas concebem uma grande comunidade dos vivos e dos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
44
mortos à qual todas as pessoas pertencem a menos que intencionalmente criem desequilíbrios
entre as forças visíveis e invisíveis que estão dentro e ao redor delas.
“Para aqueles que buscam valores e ideais seculares, a democracia liberal oferece uma visão
de uma sociedade livre onde todos possam realizar o que melhor convier a seus desejos e
temperamentos, e onde cada um possa achar as melhores oportunidades para ser feliz. O marxismo,
por sua vez, propõe o ideal de uma sociedade igualitária onde não haja classes nem exploração, e
onde cada um receba benefícios de acordo com suas reais necessidades.
“Todos estes são ideais perenes baseados em valores humanos universais. Não poderíamos
fazer nada melhor do que redescobri-los e guiar nossos passos de acordo com eles.”
67
Howard Gardner, da mesma forma, encoraja-nos a buscar nessas fontes, sem dogmatismo,
mas também sem medo, os elementos necessários para uma recuperação do equilíbrio do
homem contemporâneo:
“Tradicionalmente, as mais importantes verdades foram as religiosas – as crenças da cultura
sobre o que os seres humanos são, seu lugar no cosmo, como se relacionam com deidades e outras
figuras espirituais, forças divinas que determinam o destino de cada um.”
68
Essas considerações parecem ser mais do que suficientes para apresentar alternativas válidas
no sentido de recolocar a humanização, e, na verdade, a ressacralização da vida, outra vez no
centro da vida.
É possível, pois, e não apenas necessário, recuperar as elevadas verdades de natureza
espiritual, moral e ética que foram esquecidas durante nossa fase de modernidade cartesiana,
atomista, reducionista, materialista e tecnicista. Além disso, essa recuperação, mais do que
necessária e possível, é saborosa, enriquecedora e fraternal. Ela aponta para uma visão sistêmica
do homem e de sua interação com a vida.
Na medida em que está aberta para todas as verdades e incorpora todo o bem, essa
postura humanizadora é instrumento de tolerância e, mais que tolerância, de amor. É instrumento
de liberdade, igualdade e paz. Trata-se da busca da transcendência humana, do Ser Mais de
Paulo Freire. E, como ele afirma, “Esta busca do Ser Mais ... não pode realizar-se no isolamento,
no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires...”
69
3 A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ÉTICO
3.1 AS TRÊS FORMAS DE EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO MORAL
Vem de A República, de Platão, a primeira formulação sobre as três formas de educação
necessárias para a adequada condução de um ser humano ao seu destino potencial: a educação
física (ou material); a intelectual (ou humana, ou liberal); e a moral (ou espiritual).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
45
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Com ênfases ou terminologia cambiantes, todos os pensadores parecem concordar nessa
divisão tripartida, ainda que se possam encontrar também subdivisões adicionais. É claro,
também, que essa divisão é meramente pedagógica, pois é fácil perceber o quanto cada área
da educação afeta todas as demais.
Uma separação exagerada entre a educação intelectual e a moral pode ser questionada,
ou pelo menos qualificada, por aqueles que, como Sócrates, tendem a identificar o conhecimento
com a virtude. Porém, dificilmente algum pensador foi ao extremo oposto, de não fazer distinção
nenhuma entre a tarefa de transmitir conhecimento à mente e a de edificar o caráter.
Platão chega a identificar a educação do caráter com a própria essência da educação:
“Chamo educação àquele treinamento que é dado, através de hábitos adequados, aos primeiros
instintos de virtude existentes nas crianças... a disciplina correta de prazer e sofrimento através dos
quais um homem, desde o início até o fim de sua vida, abominará o que deve ser abominado e terá
amor pelo que se deve amar.”
70
Na visão aristotélica, que é desposada pela grande maioria dos pensadores e filósofos
que ponderaram sobre os desafios da educação, a felicidade humana depende do
desenvolvimento de virtudes. “Reconheçamos, pois,” – diz Aristóteles – “que cada um desfruta
apenas de tanta felicidade quanto possuir de virtude e sabedoria, e de ação virtuosa e sábia.”
71
Aristóteles considera a virtude não apenas como o desenvolvimento da moral, mas também
do intelecto, e propõe que a Virtude “é de duas naturezas, intelectual e moral”.
72
Sua classificação
de virtudes intelectuais incorpora aquilo que, ao longo dos séculos, veio a ser definido como
raciocínio, imaginação, compreensão e memória. Por outro lado, as virtudes morais englobam
qualidades de caráter, como temperança, justiça e veracidade.
Ele observa então que:
“A virtude intelectual, no geral, deve seu nascimento e desenvolvimento ao ensino (razão
pela qual necessita experiência e tempo), enquanto a virtude moral nasce como resultado do
hábito... Disso se torna claro, também, que nenhuma das virtudes morais se desenvolvem em nós
de forma espontânea.”
73
Na mesma linha de argumentação, sobre a necessidade da educação espiritual e moral,
mas refletindo toda uma tradição oriental milenar em educação, aquela elogiada por Sócrates,
Platão e Montesquieu, ‘Abdu’l-Bahá, o grande nome da filosofia da educação no Oriente, com
grande impacto na Europa e América do início do século XX, comenta:
“Há quem imagine que um sentido inato de dignidade humana impedirá o homem de cometer
más ações e assegurará a sua perfeição material e espiritual [moral]. [...] No entanto, se ponderarmos
as lições da história, tornar-se-á evidente que o próprio sentido de honra e dignidade, em si, é uma
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
46
das bênçãos provenientes das orientações dos Profetas de Deus. [...] É evidente, pois, que o
aparecimento deste senso natural de dignidade e honra humanas é o resultado da educação.[...]
“A causa fundamental do mau procedimento é a ignorância, razão pela qual temos de segurar
firmemente as ferramentas da percepção e do conhecimento. O bom caráter tem de ser ensinado.”
74
Quando se fala em formar um indivíduo ético ou moral, portanto, a ênfase cai sobre a
educação moral. Ao longo dos séculos, o desafio da sociedade de manter um equilíbrio adequado
entre a educação intelectual e a moral sempre foi presente. Ao longo da História, em todos os
quadrantes da Terra, houve épocas, culturas e mesmo civilizações que tiveram como ideal máximo
da educação não o desenvolvimento intelectual, mas o desenvolvimento das virtudes. Em outras,
por sorte bem mais raras, como a nossa experiência de Modernidade, ocorreu o reverso.
A ênfase social e cultural sobre um ou outro aspecto da educação produz resultados bastante
perceptíveis e diferenciados. Ao longo do período clássico ocidental e na maioria das culturas
orientais em todos os tempos, o ideal da educação era o desenvolvimento do homem integral,
com virtudes do corpo, da mente e da alma, especialmente essas últimas (segundo a tradição
universal do “Grande Encadeamento do Ser”, apontado por Ken Wilber).
Howard Gardner comenta:
“Os antigos não viam o indivíduo como uma coleção de virtudes, conjugadas ou não. Adotaram,
de preferência, uma visão decididamente holística da pessoa. Esta procuraria atingir a excelência
em todas as coisas, continuaria esforçando-se durante a vida inteira e buscaria igualmente constituir-
se num ser humano integrado e equilibrado. Ou a pessoa representava uma integração dessas
características intelectuais, físicas, éticas e estéticas, ou a pessoa não a representava. A aquisição de
conhecimento e habilidade era vista como um auxiliar necessário à obtenção de virtude [moral] – o
bem supremo – a serviço da sociedade a que se pertencia.”
75
Ao longo do tempo, a educação humana, em todas as sociedades, teve basicamente quatro
grandes objetivos: “transmitir papéis, veicular valores culturais, inculcar os diversos graus de
instrução e comunicar certo conteúdo disciplinar e modos de pensar”
76
Porém, como aponta
Gardner, “enquanto a educação no mundo inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissão
de papéis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadas foram criadas,
primordialmente, com dois objetivos específicos: a aquisição de instrução com notações e o
domínio de disciplinas.”
77
Assim, na cultura ocidental, como resultado das mudanças paradigmáticas que investigamos
antes, ocorridas em decorrência da secularização da visão do mundo, a partir do século XVI, a
ênfase da educação recaiu sobre os elementos intelectuais, com um evidente e crescente
menosprezo pela educação moral.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
47
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Já em 1580, Michel de Montaigne criticava que:
“Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou prosa, mas
perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu – o que de fato importa – não nos
passa pela mente. Cumpre, entretanto, indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais. Só nos
esforçamos por guarnecer a memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência.”
78
E ironizava
a falta da educação moral: “Centenas de estudantes contraem doenças venéreas antes de chegarem
a aprender o que Aristóteles diz da temperança.”
79
Reconhecer que a educação do caráter e da moral possui dimensão, propósitos, métodos e
instrumentos específicos parece ser uma das grandes necessidades contemporâneas para a formação,
mais do que de indivíduos éticos, de uma sociedade ética. Precisamos nos deter com tanto empenho
em formar pessoas boas como nos temos dedicado a formá-las inteligentes. Precisamos também
estudar e disseminar mais tudo o que se precisa conhecer a respeito da educação moral.
Os estudos contemporâneos desenvolvidos na área da educação em geral, e da educação
moral, em particular, especialmente por Piaget e Kohlberg, mas também por Habermas, Shweder
e Mahapatra, Turiel, Khulman, Weinreich-Haste e Oser, entre outros, confirmam essa tese da
necessidade da educação moral, embora enfatizando os estágios universais da psicogênese da
eticidade.
Piaget e Kohlberg, corroborados por incontáveis pesquisas posteriores, demonstraram
que o desenvolvimento moral se dá conforme uma seqüência de estágios morais invariantes,
da mesma forma como existe uma seqüência para o pensamento lógico-matemático. Isso significa
que a estruturação da consciência moral ocorre em patamares cada vez mais elevados e mais
equilibrados, conforme evolui a pessoa e sua interação com o meio sociocultural. Nesse
desenvolvimento, Freitag salienta: “Os estágios da moralidade ordenam-se de forma hierárquica:
o estágio imediatamente subseqüente a um estágio anterior apresenta maior complexidade,
permitindo resolver dilemas ou conflitos morais com maior desenvoltura e competência.”
80
Piaget descreve as etapas de desenvolvimento moral em quatro estágios: pré-moralidade
(de 0 a 5 anos de idade, aproximadamente), heteronomia moral (5 a 8 anos), semi-autonomia
moral (8 a 13) e autonomia moral (depois dos 13 anos). Kohlberg, baseando-se em Piaget, mas
ampliando as observações e os postulados, observa que essa evolução não se encerra
necessariamente por volta dos 13 anos de idade, podendo ir além. (É claro que o indivíduo
pode ficar estagnado em estágios inferiores de moralidade, se não dispuser dos instrumentos
que promovam sua evolução.) Além disso, ele vê a necessidade de redefinir os quatro estágios
de Piaget para melhor descrever o processo de desenvolvimento moral. Kohlberg propõe,
então, três grandes níveis de moralidade (pré-convencional, convencional e pós-convencional),
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
48
cada um composto por dois níveis diferenciados, o que resulta em seis níveis de
desenvolvimento moral.
O nível pré-convencional é composto pelos estágios 1 (moralidade heterônoma) e 2
(individualismo, intenção instrumental). Aqui a criança é sensível às regras sociais e distingue
o bem do mal, o certo do errado, mas interpreta essas categorias em função ou das conseqüências
físicas ou hedonísticas (recompensa e punição, troca de favores), ou do poder físico dos que
formulam as categorias (o certo é o que o mais forte define).
O nível convencional constitui-se dos estágios 3 (expectativas interpessoais, relações e
conformidade interpessoal) e 4 (sistema social e consciência). Nesse nível desenvolve-se a
noção da lealdade ao grupo (família, sociedade, nação, religião) a que pertence a criança.
O nível pós-convencional, ou nível regulado por princípios, possui os estágios 5 (contrato
social ou utilidade e direitos individuais) e 6 (princípios éticos universais). Nesse nível a
pessoa se esforça por definir valores e princípios morais que tenham validade universal,
independentemente de quem os defenda ou da relação da pessoa com as fontes de tais valores.
Pesquisas mais recentes demonstraram, além disso, que “pode haver códigos morais de
embasamento racional alternativos, os quais não são contemplados pelo esquema de Kohlberg,
fundado que é no individualismo abstrato, no voluntarismo e secularismo”.
81
De qualquer forma, o que tudo isso indica é que a discussão da educação em nosso país, de
maneira geral, precisa ser transferida dos domínios puramente cognitivos e intelectuais para
dimensões mais amplas, “envolvendo motivação, emoções, práticas e valores sociais e morais”,
82
como postula Gardner. Ou seja, uma educação que vise à formação do indivíduo ético, ou melhor,
do indivíduo pleno, “necessita explorar com alguma profundidade um conjunto de realizações
humanas capitais, condensadas na venerável frase o verdadeiro, o belo e o bom”.
83
Sem o domínio moral da educação, as demais capacidades e talentos humanos ficam à
mercê de forças instintuais e sociais poderosas, que podem facilmente conduzir o ser humano
a formas de comportamento tremendamente danosas. Quando o caráter não é cultivado, quando
as noções de verdadeiro, belo e bom não são desenvolvidas, ou o são de forma patológica,
então todo o conhecimento intelectual e todas as capacidades adquiridas são naturalmente
empregados para fins egoístas e potencialmente malévolos.
Os maiores sofrimentos e catástrofes experimentados pela humanidade não foram obra de
pessoas ignorantes ou incapazes, mas de indivíduos extremamente refinados no intelecto e
nas capacidades sociais, mas sem nenhum parâmetro espiritual, universal e perene de virtude
ou de humanidade, como Hitler, Stalin, Jim Jones, o “Unabomber” e outros do mesmo calibre.
Melhor seria que tais indivíduos tivessem permanecido ignorantes, incapazes de promover o
dano que causaram.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
49
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Isso nos faz concordar com Montaigne quando diz que “todo conhecimento é danoso para
aquele não possui a ciência da bondade.”
84
3.2 A NATUREZA HUMANA, AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E A MORAL
É claro que o ideal da educação é a formação do homem pleno. Para que isso possa ser
alcançado, é fundamental entender qual é, afinal, a plenitude do homem. Visões parciais e
incompletas do homem geram sistemas e esforços educacionais necessariamente incompletos
também.
Se concebermos o ser humano num nível físico e intelectual, poderemos dar muita ênfase
e conseguir, presumida uma educação excelente, grandes resultados em seu aprimoramento
do corpo e do raciocínio. Provavelmente tais esforços educacionais conseguirão, no nível do
corpo, o máximo possível em termos de coordenação motora, de adequada psicomotricidade,
força, flexibilidade, resistência, graça e beleza. Da mesma forma, no nível intelectual, o máximo
será alcançado em termos de capacidade de raciocínio, imaginação, compreensão e
memorização.
Porém, tal educação, excelente nesses dois campos, poderia ser totalmente falha no que
diz respeito ao desenvolvimento de capacidades de socialização, de auto-estima, de
responsabilidade moral, de apreciação da beleza e da arte. Isso porque tais dimensões não
estão automaticamente incluídas nas dimensões “corpo” e “intelecto”.
Assim, uma concepção integral do ser humano, o mais integral possível, faz-se necessária
para uma educação integral. Um fundamento importante para isso são as descobertas da
Psicologia Transpessoal, como em Victor Frankl e Abraham Maslow, e da Psicologia Cognitiva,
como em Howard Gardner.
Até Freud, o ser humano era entendido como tendo um corpo e uma alma. A partir dele,
passou a ter um corpo e uma psiquê. Ambas as visões, porém, são apenas bidimensionais.
Frankl, como já vimos, salienta o fato de o ser humano ser constituído de três elementos
fundamentais, e não apenas de dois.
“De forma alguma podemos falar do homem [apenas] em termos de uma unidade psicossomática.
O corpo e a psiquê podem formar uma unidade – uma unidade psicofísica – mas esta unidade
ainda não representa o todo do homem. Sem o espiritual como base essencial, esta unidade não
pode existir. Enquanto falarmos apenas do corpo e psiquê, a integridade ainda não está dada.”
85
Esse reconhecimento de uma dimensão espiritual ou transcendente no ser humano, de
natureza moral, clama por uma educação que atenda às demandas de tal realidade, satisfazendo
e encorajando o potencial ético-moral do indivíduo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
50
É por reconhecer também esta dimensão espiritual que Abraham Maslow ressalta:
“Sem o transcendente e o transpessoal, ficamos doentes, violentos e niilistas, ou então vazios
de esperança e apáticos. Necessitamos de algo maior do que somos, que seja respeitado por nós
próprios e a que nos entreguemos...”
86
Gardner, por sua vez, demonstrou em suas pesquisas que todos os seres humanos possuem
nove formas nitidamente separadas de inteligência: (1) inteligência lingüística, (2) inteligência
lógico-matemática, (3) inteligência espacial, (4) inteligência musical, (5) inteligência corporal-
cinestésica, (6) inteligência naturista, (7) inteligência intrapessoal (sobre si mesmo), (8)
inteligência interpessoal (sobre os outros), (9) inteligência existencial (sobre coisas espirituais
e existenciais, como a vida, a morte e as realidades supremas).
Tais evidências apontam para a necessidade de uma gama ampla de enfoques educacionais
para que todas essas dimensões do ser humano possam ser adequadamente desenvolvidas.
Entretanto, a sociedade ocidental contemporânea e suas escolas tendem a privilegiar apenas
as duas primeiras categorizações de Gardner – as inteligências lingüística e lógico-matemática
–, deixando para segundo ou terceiro plano as demais. Isso para não falar do descaso para
com a educação moral, do que já tratamos.
É claro que tal enfoque reducionista não tem possibilidades de contribuir com a formação
de um indivíduo ético ou uma sociedade ética, pois essa formação precisa passar,
necessariamente, pela estimulação e o amadurecimento de todas as capacidades e potenciais
humanos. Como Montaigne afirmou há quatro séculos, “pois não é uma alma somente que se
educa, nem um corpo, é um homem”.
87
3.3 UNIVERSAIS MORAIS E JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA A FORMAÇÃO ÉTICA
As investigações sobre a natureza humana, promovidas pelas ciências modernas (como a
Biologia, a Psicologia e a Antropologia) e contemporâneas (como a Psicologia Transpessoal e
a Genética do Comportamento), apresentam um retrato complexo do ser humano, mas
perfeitamente compreensível e coerente, inclusive no que diz respeito ao comportamento ético
e moral, sobre o qual nos debruçaremos.
Uma das percepções mais importantes, nesse sentido, é a constatação de que os seres
humanos não vêm ao mundo como tábulas rasas, como seres informes que serão posteriormente
construídos por meio dos cuidados e do cultivo do corpo, da mente e da alma. A ciência já
deixou plenamente claro que cada um de nós nasce já dotado de características muito bem
definidas, particulares, distintamente pessoais, bem como de outras tantas que compartilhamos
com a espécie em geral. Como aponta Barbara Freitag:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
51
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
“[...] a perspectiva psicológica da questão [da moralidade] chamou atenção para os processos
de formação da consciência moral. Esta não é uma qualidade inata, como a cor dos olhos, mas é
resultado de uma construção, para a qual contribuem fatores biológicos (hereditariedade e maturação),
de auto-regulação e equilibração interna, bem como fatores socioculturais (de socialização e educação
escolar).”
88
Esta natureza humana, tanto em seus aspectos individuais quanto coletivos, é fruto de
milhões de anos de evolução, e está definida de forma a atuar de maneira muito característica
e, em certo sentido, programada. Tanto como indivíduos quanto como espécie, temos parâmetros
definidos conforme os quais podemos ser livres, mas a liberdade absoluta de se construir
como indivíduo ou sociedade não faz parte das regras da evolução. Isso pode soar desagradável
ou injusto para alguns de nós, mas, na realidade, trata-se de uma grande proteção para a
sobrevivência da espécie e, num nível mais individual, de uma grande contribuição da natureza
para nossa felicidade pessoal.
Hoje é evidente que os seres humanos possuem capacidades inatas, para a linguagem,
para o raciocínio, para as emoções e, não deveria ser surpreendente, para a compreensão
espiritual e as decisões morais. Tais capacidades existem na forma de potenciais, que, se não
forem aproveitados adequadamente e exercitados no momento certo e da maneira correta,
podem deixar de se expressar, vindo a ficar frágeis ou até completamente atrofiados.
As obras de Jean Piaget, no campo da aprendizagem, e de Noam Chomsky, no da linguagem,
foram fundamentais para demonstrar que os seres humanos já nascem com, ou desenvolvem a
partir do nascimento, uma série de representações e estruturas mentais muito específicas,
inclusive com correspondentes estruturas mentais e neurológicas. Há estruturas mentais
dedicadas à linguagem, ao reconhecimento dos números, às relações espaciais, ao entendimento
de outras pessoas, ao comportamento moral etc. O campo de investigação é novo, mas as
conclusões já são significativas.
A principal implicação de tais constatações é que, se tais estruturas mentais não forem
reconhecidas e aproveitadas corretamente, o aprendizado que resultaria de sua utilização se
torna difícil, ou mesmo impossível. Tomemos a linguagem como exemplo. As representações
mentais universais de todos os seres humanos no tocante à linguagem permitem-nos reconhecer
todos os fonemas das mais de 6 000 línguas e dialetos falados no mundo. Porém, essa capacidade
tem uma “janela de oportunidade” para ser desenvolvida, aproximadamente até os seis meses
de idade. Nesse período, a criança desenvolverá a capacidade de escutar e falar todos os
fonemas com que entra em contato. Depois disso, as estruturas mentais se cristalizam, por
assim dizer, permanecendo apenas ativas, ou disponíveis, aquelas que foram exercitadas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
52
É por isso que não conseguimos falar sem sotaque as línguas que não nos foram ensinadas
desde a infância. Simplesmente aqueles sons estrangeiros não existem mais dentro do nosso
repertório de possibilidades de fala. Então buscamos sons parecidos, mas nunca idênticos aos
originais. Fechada a “janela de oportunidade” para o aprendizado dos elementos fundamentais
das línguas, as estruturas mentais como que perdem sua plasticidade e não mais podem ser
modeladas, ou não o podem de maneira categórica.
As conseqüências disso para a educação moral são enormes, tanto no que diz respeito ao
tempo em que ela deve ocorrer como no tocante à maneira como as lições deveriam ser
transmitidas.
Lyall Watson, em seus brilhantes estudos sobre a antropologia do mal, diz que “a janela
para aprender os hábitos característicos que nos fazem seres morais pode ser igualmente estreita
e igualmente crítica.”
89
Howard Gardner observa sobre esse fenômeno:
“Assim como as capacidades lingüísticas (e numéricas e espaciais) evoluíram a fim de permitir
a adaptação ótima ao meio ambiente, outras capacidades humanas podem igualmente ter
propriedades universais, sendo também a conseqüência adaptativa de milênios de evolução.
Especificamente, pode haver universais no domínio moral (por exemplo, a inclinação para procurar
eqüidade numa transação) e no domínio estético (por exemplo, a atração para padrões visuais ou
auditivos que sejam moderadamente discrepantes daqueles que são tipicamente encontrados no
meio em que se vive). Os educadores tomem nota: pode ser que as lições precisem ser elaboradas
à luz dessas representações mentais universais de beleza e moralidade.”
90
As evidências clínicas no estudo de psicopatas ou sociopatas, sejam eles delinqüentes
violentos, assassinos seriais ou simplesmente “crianças difíceis”, indica que, ao contrário do
normal das pessoas, eles não dispõem (em diferentes graus) de um repertório de noções morais
introjetadas que sirvam como instrumento de medida do que é certo ou errado. Em casos extremos,
essa dissociação chega a representar uma absoluta falta de empatia: o agressor simplesmente
“não entende” a dor que está provocando na vítima. Ele tortura, por assim dizer, “por curiosidade”.
Lyall Watson comenta que tais assassinos frios e indiferentes “não possuem [internamente]
nada através do qual medir seu comportamento”.
91
“O maltrato de animais ou bebês” – ele
acrescenta – “é parte bem comum do perfil ou do histórico daquelas pessoas que acabam
matando [como psicopatas]. Trata-se de um aviso de que algo impediu o desenvolvimento
normal do sentido moral, da habilidade para distinguir o certo do errado. O que falta, em
poucas palavras, é o conhecimento do bem e do mal.”
92
Descrevendo como se forma, na primeira infância, essa “régua moral” que permite a avaliação
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
53
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
subjetiva do certo e do errado, ele diz:
“Quando nos tornamos programados com a informação que necessitaremos para fazer julgamentos
morais mais tarde na vida, seguimos apenas uma regra: Acredite no que lhe é dito. Não há tempo para
mais nada naqueles dias em que a janela [de oportunidade para a construção dos valores morais] está
aberta de par em par. Você recolhe o que pode e seleciona depois, desprezando o que não faz sentido
e incorporando os pedaços que parecem ajudar a fazer planos que funcionam, estratégias que o
conduzem aonde você deseja. Podemos fazer estes julgamentos de valor porque temos uma régua
moral, algo com o que medir, mesmo que seja apenas um simples exemplo negativo retirado do
Antigo Testamento ou um tio caprichoso e difícil.”
93
Isso significa que, depois de fechada a janela de oportunidade para o aprendizado moral,
e tudo indica que isso ocorra ao redor da puberdade, é extremamente difícil corrigir o caráter
de um ser humano. Na verdade, há indícios de que ao redor dos cinco ou seis anos de idade
as estruturas morais fundamentais já estarão ou não construídas. Barbara Freitag, em sua
abrangente visão multidisciplinar (Filosofia, Psicologia e Sociologia), comenta:
“A psicologia da moralidade ainda chama a atenção para o fato de que existem no
desenvolvimento da criança para o adulto fases em que a criança está mais aberta do que em outras
para certos aprendizados. A educação moral pode, em rigor, ser mobilizada sempre, mas os efeitos
produzidos depois de concluída a psicogênese serão menores do que os efeitos potencialmente
alcaçáveis em períodos de maior flexibilidade e abertura para o aprendizado.”
94
“Assim como há um limite biológico para o crescimento e a maturação, há [...] um limite
(possivelmente flexível) para a formação das estruturas cognitivas e morais por parte do sujeito. Os
estudos realizados com adolescentes em favelas [...] e a experiência com analfabetos adultos [...] no
Brasil confirmam inteiramente essa visão.”
95
Tudo indica, portanto, que esse “analfabetismo moral” seja semelhante ao analfabetismo
das letras. Existe a capacidade para a alfabetização, mas ela não ocorre espontaneamente. As
estruturas mentais correspondentes precisam ser educadas no período adequado e da maneira
adequada, se não a oportunidade de aprender a ler e escrever pode ser perdida. Claro que é
possível a alfabetização de adultos, mas os métodos são outros e o processo é bem mais difícil.
Nada indica, entretanto, que tal aprendizado moral possa ser conseguido mais tarde na vida.
Pelo menos, na sociedade contemporânea, ainda não descobrimos se é possível e como.
3.4 A EDUCAÇÃO DA VONTADE E A SOCIEDADE ÉTICA
Os estudos na área da genética do comportamento indicam claramente que o aprendizado
moral tem imensa relevância sobre o comportamento, a ponto de poder alterar profundamente
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
54
as tendências inatas de qualquer pessoa. Como vimos acima, porém, essa intervenção precisa
ser sábia e oportuna. Assim, embora não se possa negar os limites impostos ao desenvolvimento
moral pelo caráter congênito
96
(ou temperamento, ou personalidade) de cada pessoa, o fato é
que, como coloca Freitag, “as competências morais [...] podem ser melhoradas com certos
programas de educação moral.”
97
Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer, nos EUA, um dos mais renomados geneticistas
do comportamento em todo o mundo, comenta:
“As últimas pesquisas em genética, biologia molecular e ciência neural demonstram que muitos
traços fundamentais da personalidade são herdados ao nascimento, e que muitas das diferenças
entre os estilos de personalidade resultam de diferenças genéticas. ... Os psicólogos chamam esta
dimensão biológica e inata da personalidade de temperamento.
“Só porque uma pessoa nasce com um determinado temperamento, porém, não significa que
tenha de seguir uma determinada programação ou um conjunto simples de instruções. ... As pessoas
têm a opção de se deixar levar por fraquezas do temperamento, ou de vencê-las. Elas podem tirar
vantagem de dons do temperamento, ou ocultá-los. ... A mesma coisa vale para todos: há traços que
você pode mudar e outros que pode apenas tentar controlar ou modificar.”
98
O temperamento, apesar de ser em grande parte inato, não está ainda totalmente formado
num recém-nascido. Na verdade, o que ocorre é que o bebê nasce com o potencial de desenvolver
um determinado temperamento em resposta ao ambiente que o cerca. Portanto, o temperamento
também é aprendido, só que esse aprendizado não se dá como aprendemos a memorizar um
número de telefone. Como diz Hamer, “as pessoas aprendem seu temperamento através da
memória emocional, que a maioria das pessoas conhece pelo nome de hábito.”
99
Justamente devido a esse fato é que as primeiras experiências do bebê, de amor e aconchego,
de proteção e carinho, de cuidado, tranqüilidade e calma, ou seus opostos, têm tanta influência
sobre seus desenvolvimento posterior. Nesse período tão primitivo de seu amadurecimento,
as influências do ambiente sobre ele já atuam sobre suas estruturas mentais, conformando-as
ou deformando-as. Entre elas, as estruturas de dimensão moral.
Apesar dos relevantes fatos e dados relativos à influência da hereditariedade no
comportamento humano, a realidade é que o caráter, aquela parte de nossa personalidade que
é aprendida com as experiências de natureza social e moral, tem um fator preponderante em
como nos comportamos. Como exclama Dean Hamer:
“A coisa maravilhosa a respeito do caráter é sua habilidade para modificar o temperamento,
para capacitar as pessoas a tirarem vantagem das partes úteis de seus temperamentos e a diminuírem
a influência das tendências biológicas ou instintos menos desejáveis.”
100
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
55
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Abraham Maslow, ao abordar a questão da natureza humana em relação ao bem e ao mal,
descreve assim o fenômeno:
“Essa natureza interna, até onde nos é dado saber hoje, parece não ser intrinsecamente, ou
primordialmente, ou necessariamente, má. As necessidade básicas ... , as emoções humanas básicas
e as capacidades humanas básicas são, ao que parece, neutras, pré-morais ou positivamente boas.
A destrutividade, o sadismo, a crueldade, a premeditação malévola, etc. parecem não ser intrínsecos,
mas, antes, constituiriam reações violentas contra a frustração das nossas necessidades, emoções e
capacidades intrínsecas. A cólera, em si mesma, não é má, nem o medo, a indolência ou até a
ignorância. É claro, podem levar (e levam) a um comportamento maligno, mas não forçosamente.
Esse resultado não é intrinsecamente necessário. A natureza humana está muito longe de ser tão
má quanto se pensava. De fato, pode-se dizer que as possibilidades da natureza humana têm sido,
habitualmente, depreciadas.”
101
Victor Frankl identifica no ser humano uma “pré-consciência moral” e mesmo um “instinto
ético”, que corresponde àqueles universais morais dos quais tratamos acima. Tais estruturas
interiores, como já vimos, somente se tornam ativadas se forem estimuladas por intermédio de
experiências de natureza moral e espiritual logo na primeira infância e até a puberdade. Tudo
vale: fábulas na hora de dormir, cantigas de roda, castigos e recompensas, abraços, beijos,
carinho, ou a falta deles... Tais experiências modelam aquilo que poderíamos chamar de
temperamento moral, por meio de lições emocionais, e que é anterior ao caráter propriamente
dito, cuja formação já está mais vinculada aos aspectos intelectuais do desenvolvimento.
Montaigne observou, nesse sentido de uma educação moral temporã:
“Parece que os primeiros raciocínios de que lhe [à criança] devem embeber o espírito são os
que deverão regular-nos os costumes e os juízos, os que lhe ensinarão a conhecer-se, a saber viver
e morrer bem”.
102
São diretrizes tão válidas no século XVI quanto no XX.
Assim, compreendemos que as estruturas morais universais parecem ser tocadas através de
inúmeros instrumentos, primariamente de natureza emocional e, depois, de natureza intelectual.
Dois elementos, porém, parecem, em conjunto, servir de eixo condutor das experiências, quer
emocionais, quer intelectuais, associadas ao aprendizado moral: recompensa e punição. Sob a
influência dessas duas forças, em todas as suas formas de expressão, é que se modela o
temperamento moral e o caráter do ser humano. Isso não é estranho, na medida em que prazer
e sofrimento são, de um modo geral, os dois grandes mestres da própria evolução das espécies.
Como já vimos, Platão chamava de educação o treinamento dado “aos primeiros instintos
de virtude existentes nas crianças”, por meio de “hábitos adequados”. A genética do
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
56
comportamento chama tais hábitos, contemporaneamente, de memória emocional. Platão também
enfatizava, como instrumento da educação, “a disciplina correta de prazer e sofrimento”, instilada
desde a mais tenra idade, que garantia que cada homem “desde o início até o fim de sua vida,
abominará o que deve ser abominado e terá amor pelo que se deve amar”.
103
Todos os indícios
da ciência contemporânea são de que Platão estava certo.
Montaigne, exaltando as virtudes educacionais dos impérios do passado, comenta que os
persas “ensinavam a virtude aos filhos como nos outros países se ensinavam as letras”, e que
o filho do rei era ensinado por quatro tutores, respectivamente “o mais avisado, o mais justo,
o mais virtuoso e o mais valente da nação”. Estes atuavam como mestres especializados,
ensinando “o primeiro, a religião; o segundo, a ser sincero; o terceiro, a dominar as paixões; o
quarto, a nada recear.” Ainda mais, Montaigne faz notar que a perfeição da juventude sob a
legislação de Licurgo deveu-se ao fato de que “sua educação consistia, como entre os persas,
em pedir às crianças julgamentos sobre os homens e suas ações. E cumpria-lhes justificar sua
maneira de ver, de modo que a um tempo exerciam a inteligência e aprendiam Direito”.
104
Alguns poderiam apressar-se em pensar que tais exemplos não nos servem, já que se
referem a outros povos e outros tempos. Isso seria um sério engano. Os seres humanos têm
sido os mesmo há pelo menos 100.000 anos, e as experiências culturais de qualquer povo têm
valor universal pelo que nos dizem sobre a natureza humana. Howard Gardner alerta que:
“O que aprendemos sobre seres humanos a partir de estudos culturais é, pelo menos, tão
importante quanto o que aprendemos através da Psicologia e Biologia; com efeito, as decisões
educacionais não deveriam ser tomadas sem um apoio igualmente sólido em ambos os campos.”
105
Essas observações de Montaigne apontam, além disso, para elementos que a ciência atual
(como em Piaget e Kohlberg) identifica como essenciais para a geração de padrões elevados de
comportamento: a edificação das noções morais por meio do contato direto com os conceitos
morais e por meio da reflexão sobre as conseqüências dos atos; o contato com figuras-modelo
que sirvam como exemplos existenciais das lições de moral; a força arquetípica da fundamentação
religiosa e sagrada do bom caráter e da virtude, a força dos princípios universais morais, a
centralidade da justiça no desenvolvimento moral, etc. São todos elementos que faríamos bem
em resgatar nos nossos dias.
Todas essas considerações nos servem de guia para a formação de pessoas dotadas de valor
e comportamento ético e moral, especialmente no que diz respeito à exigência de experiências
iniciais, na mais tenra idade, de amor e carinho, de certo e errado, de recompensa e punição.
Porém, ainda se apresenta um grande problema. Tudo o que sabemos hoje sobre esse
campo aponta para uma direção fundamental: se as normas culturais, os valores sociais, a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
57
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
jurisprudência e os costumes de uma sociedade não forem imbuídos de tais valores espirituais
em suas mais diversas formas de manifestação, a possibilidade de se educar o caráter dos
indivíduos torna-se extremamente remota. Quanto mais frágil o caráter geral da sociedade, mais
frágil será o caráter de cada um de seus membros, num círculo vicioso difícil de interromper.
Assim, se o efeito da educação dos persas ou de Licurgo, como descritas por Montaigne,
era tão extraordinário, isso não era devido ao método simplesmente, embora ele também seja
importante. A principal razão desse efeito, porém, é que a cultura na qual estavam inseridos
esses métodos, esses alunos e esses professores, ela toda, guiava-se por tais valores. Eles
permeavam a cultura, e a educação das crianças segundo esses padrões era apenas a
institucionalização das aspirações gerais de todos com relação a um ser humano ideal. Eram os
paradigmas culturais, a visão do homem ideal e da vida ideal quem, na verdade, educava,
criando tanto as estruturas como o ambiente para essa educação.
Isso nos coloca um desafio adicional: é claro que se faz necessário atuar sobre a educação
do indivíduo, mas o mais importante é enfrentar-se a questão da formação de uma sociedade
que paute seu comportamento pelos grandes princípios espirituais, os valores humanos eternos,
as virtudes universais e os ideais nobres e imorredouros.
Essa necessidade se dá por uma razão, acima de tudo: como espécie, nossos piores e mais
terríveis comportamentos não se dão como ações individuais, mas coletivas. Atos de selvageria,
ódio, violência extrema, sadismo e bestialidade foram cometidos por milhares de indivíduos
que jamais se consideraria, nem foram considerados, como psicopatas assassinos. Isso porque
suas ações foram realizadas no contexto e com anuência das diversas culturas, instituições e
determinações ideológicas onde viviam. E foram cometidas contra os que “mereciam” tal
tratamento. Assim foram mortos vinte milhões de camponeses sob Stalin; seis milhões de
judeus, ciganos e deficientes sob Hitler; 150 mil pessoas, em segundos, sob as bombas dos EUA
em Hiroxima e Nagazaki...
Lyall Watson nos faz observar:
“Se existe algo que os atos malignos nos deveriam ter ensinado é que eles não tendem a ser
cometidos por vilões extraordinários, ou por demônios ou estranhos, mas por gente perfeitamente
comum.”
106
Em 1960, o nazista Adolf Eichmann foi julgado em Jerusalém, pelos crimes de genocídio
levados a cabo de maneira tão burocrática durante o Terceiro Reich. Ao contrário do que se
esperava, Eichmann se mostrou uma pessoa desapontadoramente normal. Nenhum sinal
maligno, nenhum ódio perturbador, nenhum olhar diabólico.
A filósofa Hannah Arendt, comentando sobre o julgamento, escreveu:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
58
“O difícil em relação a Eichmann é justamente que tantos eram exatamente como ele, e que
estes tantos não eram nem pervertidos nem sádicos, mas eram todos, e ainda são, terrível e
pavorosamente normais.”
107
Assim, o grande desafio contemporâneo é, na verdade, não apenas individual, mas coletivo.
É necessário moralizar nossa vida e nossas instituições novamente; voltar a sentir respeito
sagrado pela vida humana e pela natureza; abdicar de prazeres fugazes em prol de virtudes
eternas; abandonar a futilidade e regozijarmo-nos na nobreza; desistir do materialismo e atentar
para os fundamentos espirituais da existência... Metas difíceis, mas essenciais. Mudanças
complexas, mas já conseguidas no passado. O cenário está montado para que cada um e todos
possam atuar nesse sentido.
3.5 OS PRINCÍPIOS ESPIRITUAIS UNIVERSAIS
Como vimos nas tantas análises anteriores, tanto as tradições espirituais e sapienciais quanto
a investigação científica contemporânea apontam numa mesma direção: a necessidade da educação
para a formação da eticidade na pessoa humana. Além disso, para ser eficaz, essa educação
precisa ter conteúdo e relevância racional, emocional, cultural e espiritual. Como aponta Barbara
Freitag: “Os conceitos morais não podem ser tratados de forma impessoal e neutra, devendo ser
tratados como normativos, positivos ou relevantes em relação a outros valores”.
108
Isso significa que, nos seres humanos, os julgamentos morais sempre se apóiam em algum
critério, princípio ou lei geral, não se tratando de simples avaliações de circunstâncias ou
ações particulares. É por isso que os estágios mais elevados de desenvolvimento moral se
baseiam em princípios e normas universais, que transcendem o grupo, a cultura ou as
circunstâncias peculiares ao indivíduo.
Porém, para que tal desenvolvimento moral possa realizar-se, é fundamental o contato da
pessoa com tais normas universais, necessariamente através da pluralidade de fontes de
autoridade moral, sem o que o desenvolvimento da eticidade tende a se sedimentar nos estágios
inferiores do nível convencional da moralidade, no qual as idiossincrasias culturais, nacionais
e religiosas são colocadas acima dos universais.
Tal educação moral que não enxerga além de seu próprio entorno imediato é perigosa,
uma vez que encerra em si a semente da intolerância e do ódio. As virtudes não se tornam
abrangentes, mas restritas. Não alcançam os “diferentes”, mas apenas os “iguais”. Nesse contexto,
o amor (à família, à pátria, à raça, à religião) pode se tornar instrumento de ódio (a outras
famílias, outras nações, outras raças, outras religiões). É por isso que a educação moral, ou é
baseada em universais, ou não é educação moral que se preze.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
59
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Vimos o quanto a ressacralização do mundo, não em bases fundamentalistas e proselitistas,
mas universais, é fundamental para a saída da unidimensionalidade materialista na qual a
sociedade contemporânea se viu afundar. Vimos, também, que a religião é central para toda a
questão da moralidade, ou eticidade. Evidentemente, ao longo de toda a História humana,
nenhuma outra força social conseguiu educar as massas na moralidade como a religião. Os
imperativos categóricos e outras formulações da filosofia, apesar de sua nobreza e elevação,
de sua utilidade epistemológica e cognitiva, não conseguem mobilizar o imaginário e a vontade
das massas. O comportamento moral coletivo dos homens exige dimensões ideológicas,
representacionais, arquetípicas, metafóricas, simbólicas, racionais e emocionais que somente
as religiões conseguem oferecer.
Porém, é fundamental que tal resgate das grandes verdades religiosas se dê em novas
bases, sem o que estaríamos simplesmente pregando um retorno à Idade Média. O resgate do
espiritual e do religioso no mundo contemporâneo precisa passar pela ciência, pela razão,
pela pluralidade e pelo universal, sem o que tal projeto estaria fadado ao fracasso.
No Brasil, temos uma circunstância toda especial, estabelecida por lei, que pode servir de
grande instrumento para a promoção de uma educação moral eficaz. A Lei n
o
9 475, de 22 de
julho de 1997, que altera o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n
o
9.394, de
20 de dezembro de 1996), instituiu nas escolas brasileiras a obrigatoriedade do ensino religioso,
de matrícula facultativa, como “parte integrante da formação básica do cidadão”. A lei salienta
que deve ser “assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
formas de proselitismo”.
Ainda se está longe de resolver a forma pela qual se irá garantir esse respeito à diversidade
cultural e essa ausência de proselitismo. Sem dúvida alguma, como a própria lei estabelece,
isso terá de passar, necessariamente, pelo diálogo amplo entre os vários setores e segmentos
da sociedade. Se as análises e evidências apresentadas nos capítulos anteriores forem acolhidas,
para que o ensino religioso possa servir no contexto de uma educação moral apropriada, ela
dever-se-ia basear em dois princípios: universalidade e pluralidade.
Ou seja, o ensino religioso-moral, mais do que somente oferecer informações de religião
comparada (que em geral baseiam-se simplesmente na transmissão de dados históricos e na
análise das diferenças entre os diversos sistemas de fé), deveria focalizar a experiência ética e
eticizante dos grandes princípios morais comuns a todas as religiões. Tal experiência abordaria
os necessários universais morais de uma forma pluralista, envolvendo várias tradições
espirituais, o que permitiria o desenvolvimento, ao mesmo tempo, da moralidade e da
fraternidade. Uma vez que não se ama o que não se conhece, o contato com os grande princípios
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
60
morais em suas várias formulações ao longo do tempo e do espaço (como as expostas nas
várias religiões mundiais) permitiria a construção do amor e da justiça, como dimensões morais
básicas, sem o amargor do etnocentrismo e da xenofobia que podem facilmente emergir do
ensino moral e religioso restrito a uma única denominação ou “verdade”.
Todas as grandes tradições espirituais possuem uma lei moral central, também conhecida
como a “Regra Áurea”, que nos pode servir de exemplo a essa exploração do universal plural.
Essa regra suprema, que é a versão religiosa do imperativo categórico kantiano, tem sido
considerada, em todos os tempos, a lei máxima das religiões, e serve de substrato para qualquer
consideração de natureza verdadeiramente moral. Ela simplesmente nos ordena tratar os demais
como gostaríamos de ser tratados. Algumas de suas variadas formulações são as seguintes
(entre parênteses estão informações quanto ao nome do fundador, a época de surgimento e a
região do mundo de origem):
Hinduísmo (Krishna. Há 5 000 anos, Índia)
“Não faças aos demais aquilo que não queres que seja feito a ti; e deseja também para o
próximo aquilo que desejas e aspiras para ti mesmo. Essa é toda a Lei,
109
atenta bem para isso.”
110
Judaísmo (Moisés. Há 3 400 anos, Egito-Palestina)
“Não faças a outrem o que abominas que se faça a ti. Eis toda a Lei.
111
O resto é comentário.”
112
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
113
Zoroastrismo (Zoroastro. Há 3 000 anos, Pérsia)
“Aquilo que é bom para qualquer um e para todos, para quem quer que seja isso é bom para
mim... O que julgo bom para mim mesmo, deverei desejar para todos. Só a Lei Universal é verdadeira
Lei.”
114
Budismo (Buda. Há 2 500 anos, Nepal-Índia)
“Todos temem o sofrimento, e todos amam a vida. Recorda que tu também és igual a todos;
faze de ti próprio a medida dos demais e, assim, abstém-te de causar-lhes dor.”
115
Cristianismo (Jesus Cristo. Há 2 000 anos, Palestina)
“Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, porque isto
é a Lei e os Profetas.”
116
Islamismo (Maomé. Há 1 400 anos, Arábia)
“Nenhum de vós é um verdadeiro crente a menos que deseje para seu irmão aquilo que
deseja para si mesmo.”
117
Fé Bahá’í (Bahá’u’lláh. Há 150 anos, Pérsia-Palestina)
“Ó filho do homem! ... se teus olhos estiverem volvidos para a justiça, escolhe tu para teu próximo
o que para ti próprio escolhes. Bem-aventurado quem prefere seu irmão a si próprio... tal homem
figura entre o povo de Bahá.
118
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
61
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
“Não ponhais sobre nenhuma alma uma carga da qual vós não desejaríeis ser incumbidos, nem
desejeis para pessoa alguma as coisas que não desejaríeis para vós mesmos. É este Meu melhor
conselho a vós, fôsseis apenas observá-lo.”
119
É evidente, por si só, quão eficazes tais máximas universais, pluralizadas, podem ser no
estabelecimento de normas morais de conduta. Tais máximas, que certamente podem ser
encontradas em relação a todos os grandes valores, como justiça, amor, perdão, fraternidade,
perseverança, trabalho, paciência, temperança etc., quando unidas aos seus elementos
metafóricos e simbólicos, expressos em parábolas e relatos sagrados, mostraram-se, ao longo
dos séculos, extremamente poderosos na construção da eticidade do indivíduo e da sociedade.
Uma das maravilhas do nosso tempo é a acessibilidade a essas fontes diversas, e uma das
necessidades da era é o respeito universal a todas elas. Tais podem ser os fundamentos de
uma eticidade universal para a nossa época. É uma obra extraordinária, as promessas são
belíssimas, e o trabalho é imenso. Mas como sempre ocorreu no passado, os seres humanos,
coletivamente, têm se mostrado capazes de enfrentar o eterno desafio de reinventar-se e reinventar
seu mundo. Nisso reside a certeza de um futuro melhor.
4. A FUNDAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS LEGAIS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
4.1 UM SÉCULO DE LEIS
Uma das grandes características do século XX foi ser capaz de produzir legislação
internacional que atuasse sobre os Estados soberanos e que servisse de modelo para as leis
internas dos Estados-nação. Além disso, como nunca ocorrera na História nesta escala e nesta
magnitude, os direitos das pessoas, em várias instâncias, foram defendidos por instrumentos
jurídicos de caráter internacional e nacional.
A emergência, ao longo do século XX, de um corpo de leis que defendem os direitos
fundamentais da pessoa humana, em vários aspectos e níveis, representou, sem dúvida, um
avanço importantíssimo na construção de uma sociedade mundial baseada no Direito. Os
direitos humanos deixaram de ser simplesmente aspirações nobres de indivíduos nobres para
se tornarem exigências legais do cidadão comum. Ainda que haja muitíssimo por caminhar
nesse sentido, o avanço é extraordinário.
O fundamental, no que diz respeito a esses documentos, são as garantias com força de lei que
produziram. Embora a realidade esteja ainda muito aquém da legislação existente, é inegável que
as leis, nascidas na história dos povos, têm força também de construir história. Para isso, dispomos
hoje no Brasil de um conjunto invejável e avançado de leis que podem, ao serem respeitadas e
aprimoradas, garantir uma vida bem mais digna para as crianças e jovens de hoje e de amanhã.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
62
4.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH)
Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, é o principal documento
internacional norteador e disciplinador dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa
humana. Nesse sentido, está na base do amparo que hoje legislação mais específica estende à
criança e à juventude.
Em seu preâmbulo, o documento ressalta que “uma concepção comum destes direitos e
liberdades [da pessoa humana] é da mais alta importância”. E esta, sem dúvida, foi uma dos
grandes conquistas da Declaração: universalizar a concepção dos direitos humanos e oferecer
um referencial pelo qual as práticas de diferentes povos e nações podiam ser avaliadas ante a
opinião pública internacional.
Com relação especificamente à infância e à juventude, a DUDH salienta que as crianças “têm
direito a ajuda e a assistência especiais”, independentemente de sua origem. Também prescreve
que: “Toda pessoa tem direito à educação” e que esta deve “ser gratuita, pelo menos a
correspondente ao ensino elementar fundamental.” Também diz que: “O ensino elementar é
obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado” e que “o acesso aos estudos
superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.”
A DUDH salienta o propósito humanista e enobrecedor da educação: “A educação deve
visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das
liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas
as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades
das Nações Unidas para a manutenção da paz.” Também salienta que: “Aos pais pertence a
prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.”
Com base nos postulados gerais da DUDH, a consciência humana elevou-se a novas alturas,
e instrumentos compulsórios universais e nacionais passaram a regular tais princípios.
4.3 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA (DUDC)
Com dez princípios, foi proclamada em 20 de novembro de 1959, pela Assembléia Geral
das Nações Unidas. A DUDC levou a um nível maior de detalhamento os direitos e proteções
específicos das crianças que são mencionados na DUDH.
O texto salienta outra vez, como na DUDH, a “proteção especial” que deve ser garantida à
criança. Além disso, chama por leis que garantam “oportunidade e serviços ... para que possa
desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal,
assim como em condições de liberdade e dignidade.”
A “consideração fundamental” nas leis a serem promulgadas para a proteção da criança,
ressalta o texto, sempre “será o interesse superior da criança”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
63
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Esse chamamento por leis específicas é importante em seus desdobramentos posteriores,
já na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que veremos a seguir, cujo texto
assumiu poder de lei interna em vários países-membros da ONU, inclusive o Brasil.
4.4. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA (CIDC)
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, com 54 artigos, foi adotada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, entrando em vigor em 2 de
setembro de 1990.
O Brasil ratificou a Convenção, regulamentando-a pelo Decreto n
o
99 710, de 21/11/90.
Aprovada pelo Congresso e promulgada pelo presidente da República, a CIDC tomou força de
lei interna do país.
Seu preâmbulo faz referência a todos os instrumentos internacionais que a precederam e
fundamentaram:
Ø a Carta das Nações Unidas
Ø a Declaração Universal dos Direitos do Homem
Ø as Convenções Internacionais de Direitos Humanos
Ø a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança (1924)
Ø a Declaração Universal dos Direitos da Criança (20/11/99)
Ø o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular os artigos 23 e 24)
Ø o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular o artigo 10)
Ø os estatutos e instrumentos pertinentes das agências especializadas e das organizações
internacionais que se interessam pelo bem-estar da criança
Ø a Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar
das Crianças, especialmente com Referência à Adoção e à Colocação em Lares de Adoção, nos
Planos Nacional e Internacional
Ø as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça (Regras de Pequim)
Ø a Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Situação de Emergência ou de
Conflito Armado
A CIDC detalha muito os direitos e garantias a serem estendidos às crianças (definidas como
menores de 18 anos), especialmente no tocante às suas relações com os pais e a família e nos
casos de infração juvenil. Os direitos pré-natais também fazem parte das considerações.
O texto estabelece, acima de tudo, que: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a
efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior
da criança.” (Artigo 3. A ênfase é nossa.)
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
64
4.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)
Com 267 artigos, a Lei n
o
8.069, de 13/7/90, “dispõe sobre a proteção integral à criança e
ao adolescente”. Nele, considera-se criança “a pessoa até doze anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”
O ECA representou um grande avanço na proteção da criança e do adolescente, em relação
ao anterior Código de Menores. A maior maturidade da lei se faz sentir em seu espírito e
estatutos mais voltados à proteção dos valores fundamentais para o desenvolvimento do ser
humanos integral.
4.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LDB)
Com 92 artigos, a Lei n
o
9.394, de 20/12/96, estabelece de maneira rica e detalhada os
propósitos, os mecanismos e a estrutura educacional no Brasil. A LDB representa um avanço
marcante em relação às leis anteriores, especialmente no significado ampliado que atribui à
educação. Com base nela, os maiores e melhores ideais educacionais contemporâneos assumem
forma de obrigação legal, e o direito da criança brasileira, não só à educação, mas à boa
educação fica garantido por lei.
5 COMPROMISSO HISTÓRICO E POLÍTICO
Na sua origem, responsabilidade provém do latim responsus, particípio passado do verbo
respondere, que significa responder, corresponder. Responsabilidade, portanto, indica bem
mais do que simplesmente “compromisso” ou “dar conta dos próprios atos”. Implica
comunicação, resposta, envolvimento. Nesse sentido, é o oposto do egoísmo e da alienação.
Na medida em que é envolvimento, responsabilidade é vida e crescimento.
Todos nós, como seres humanos, nos constituímos como seres históricos, na medida em
que, nessa nossa breve passagem pela vida, damos continuidade e influenciamos a grande
epopéia humana. Nosso papel pode ser maior ou menor, dependendo das circunstâncias e de
nossas decisões, mas não podemos, em nenhum momento, abdicar de nossa historicidade.
Ser responsável ante a História, quer a universal, quer a nossa própria, significa, acima de
tudo, assumir responsabilidade ante a vida. Uma responsabilidade que é existencial porque é
vida. Uma responsabilidade que é escuta, que é resposta, que é diálogo. Ter responsabilidade
existencial é viver em plenitude, não como um parasita da vida, mas como um parceiro. Não
como observador, mas como companheiro.
O sentido de nossa existência, em última instância, está definido por nossa responsabilidade
ante a existência. Abdicar disso nos faria subumanos. Descartáveis. Inúteis.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
65
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
A responsabilidade para com a História nos faz humanos. A responsabilidade política nos
faz cidadãos. Uma complementa a outra. Não podemos ser humanos no vazio, no abstrato, no ar.
Constituímo-nos como pessoas numa realidade concreta, num momento determinado, em relações
definidas. Ter compromisso político é mudar o que precisa ser mudado. É promover transformações
visíveis. É concretizar nossa humanidade pela intervenção concreta num mundo real.
Não intervenção materialista, oxalá, mas plena de espírito. Não menos concreta, porém.
Intervenção que pode criar um mundo melhor ou pior, se for feita no Amor, ou fora dele. Que
pode criar um mundo mais sereno ou mais confuso, se for feita na Sabedoria, ou fora dela. Um
mundo mais feliz ou mais desesperado, se na Fé, ou fora dela. Mais digno, se na Verdade. Mais
pacífico, se na Justiça.
Assumir um compromisso histórico e político para com a educação e a proteção da criança
e do adolescente em nosso país é redimir milhões. É resgatar milhões. É ter milhões de
companheiros. Miúdos. Inacabados. Cheios de promessas e esperanças, como todo ser humano.
É ser companheiro de milhões.
Na vida. No amor. Na esperança.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
É claro que há diferenças fundamentais entre os enfoques de neo-inatistas como Chomsky e Fodor – que
admitem a existência de um grande número de estruturas mentais já pré-definidas por ocasião do nasci-
mento – e a abordagem construtivista de Piaget. Este, indo além dos postulados extremos do empirismo,
por um lado, e do pré-formismo, por outro, enfatiza uma terceira via, em que as estruturas biológicas
básicas, juntamente com uma forma de funcionamento intelectual inerente à espécie, em interação com o
ambiente, determina as organização dos significados cognitivos em estruturas cognitivas. Basta-nos, po-
rém, para esta análise, o fato de Piaget compartilhar com Chomsky o reconhecimento da existência de um
núcleo fixo componente da competência humana a partir do nascimento, embora difiram na definição dos
elementos que fariam parte desse núcleo.
2
GARDNER, Howard . O verdadeiro, o belo e o bom. p.22.
3
Gênesis 2:17
4
Id. 3:5
5
Id. 3:22
6
Id. 3:22
7
II Timóteo 3:16-7
8
Sutra Mahaparinibbana e Sutra Parinibbana. A Doutrina de Buda, p.21.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
66
9
The Gospel of Buddha, XCIII:19, p.234.
10
Talavakâra-Upanishad, 2nd khanda:5, p.149.
11
Alcorão 5: 44-6
12
Id. 96: 3-5
13
Bahá’u’lláh. Educação Bahá’í, uma compilação. p.17
14
Id. ibid.
15
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.29.
16
PLATÃO. The republic. bk. IV, 425-B
17
WORDSWORTH, William. My heart leaps up.
18
MILTON, John. Paradise lost. bk. IV, l. 220.
19
MASLOW, Abraham. Introdução à psicologia do ser. p.13.
20
Id. ibid., p. 12; 27-8
21
PIAGET, Jean, apud GALLOWAY, Charles. Psicologia da aprendizagem e do ensino. p.301.
22
ARISTÓTELES. Apud The Great Ideas. A syntopicon of great books of the Western World. bk 2, p.378.
23
Id. ibid.
24
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.66.
25
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.40.
26
GARDNER, Howard. O Verdadeiro, o Belo e o Bom. p.30.
27
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.213-4. A ênfase é nossa.
28
Id. Ibid., p.215.
29
SHWEDER, Richard e MAHAPATRA, Manamohan. Culture and cultural development. In: KAGAN, Jerome e
LAMB, Sharon (eds.) The emergence of morality in young children. Chicago: University of Chicago Press,
1987.
30
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.38.
31
CAPRA, Fritjof. The turning point. p.57.
32
CAPRA, Fritjof. The Turning Point. p.58.
33
Id. ibid., p.68.
34
Id. ibid., p.68.
35
MARX, Karl. A ideologia alemã. p.30.
36
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. III:108.
37
FROMM, Eric, apud FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. P.74.
38
FRANKL, Victor. A presença ignorada de Deus. p.52.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
67
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
39
Os historiadores identificam como “Modernidade” o período e a cultura – na verdade a civilização (no
sentido de uma Weltanschauung dominante e determinante), que dominou inicialmente o Ocidente e
depois o mundo inteiro – que teve suas raízes no Renascimento, desabrochou no Iluminismo e frutificou
na Revolução Industrial.
40
Huston Smith, por muitos considerado a maior autoridade mundial em religiões comparadas, chama de “O
Grande Encadeamento do Ser” à visão praticamente universal que jaz no centro das cosmovisões das
grandes tradições espirituais e sapienciais da humanidade, segundo a qual a realidade é uma rica tessitura
de níveis inter-relacionados que vão desde o corpo (material), à mente (racional), à alma (sutil) e ao
espírito (criador). Esta cosmovisão, compartilhada pelas grandes religiões mundiais (Hinduísmo, Judaísmo,
Zoroastrismo, Budismo, Cristianismo, Islamismo, Babismo e Bahaísmo, entre outras) e pelas grandes tradi-
ções espirituais e sapienciais (de Sócrates, Platão, Aristóteles, Lao Tsé, Confúcio, entre outros) vê o univer-
so como multidimensional, com níveis incontáveis de realidade, visível e invisível, ao contrário da visão
achatada e unidimensional (materialista) da mundivisão da Modernidade.
41
A expressão, na verdade, é de Friedrich Schiller.
42
“Wasteland”, segundo a tradução das poesias de Elliot por Ivan Junqueira.
43
WILBER, Ken. The marriage of sense and soul. p.75-6.
44
TOYNBEE, Arnold. Estudos de história contemporânea. p.93.
45
GUEVARA, Ernesto. Apud FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.94.
46
LASZLO, Ervin. The inner limits of mankind. p.38-9.
47
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.30.
48
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p. 93-4.
49
LASZLO, Ervin. The inner limits of mankind. p.25-6. A ênfase é nossa.
50
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.76.
51
Id. ibid., p.77.
52
SENGE, Peter. A quinta disciplina. p.164-5.
53
KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. p.113.
54
SENGE, Peter. A quinta disciplina. p.165.
55
LASZLO, Ervin. The inner limits of mankind. p.41.
56
LASZLO, Ervin. The inner limits of mankind. p.59.
57
Id. ibid., p.26.
58
Id. ibid., p.27.
59
Casa Universal de Justiça. A Promessa da Paz Mundial – Mensagem aos Povos do Mundo, p.16
60
Os historiadores, em geral, concordam quanto àquilo que se convencionou chamar de Modernidade:
aquele período da História (especialmente a partir da Europa-América) compreendido entre o Renascimento
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
68
e a atualidade, e caracterizado pela racionalidade, cientificismo, materialismo e burocratização da vida em
geral. Já o período pós-moderno e seus representantes desafia uma definição tão sintética. Para nosso
contexto, utilizamos a definição de Ken Wilber, em que o pós-moderno, no sentido amplo, significa
simplesmente qualquer uma das principais correntes de pensamento que ocorreram nos rastros da
Modernidade – “como uma reação contra a modernidade, ou como um contrapeso à modernidade, ou
algumas vezes como uma continuação da modernidade através de outros meios”.
61
MASLOW, Abraham. Introdução à psicologia do ser. p.223.
62
Provérbios 29:18
63
KANT, Immanuel. Kritik der Praktischen Vernunft – Grundlegung der Metaphysik der Sitten. A54.
64
HORKHEIMER, Max. Die Sehnsuch nach dem ganz Anderen. p.60.
65
TOYNBEE, Arnold. Estudos de história contemporânea. p.48.
66
CAPRA, Fritjof. The turning point. p.78.
67
LASZLO, Ervin. The inner limits of mankind. p.66-7.
68
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.33.
69
FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. p.86.
70
PLATÃO. Laws. bk II, [653].
71
ARISTÓTELES. Politics. bk VII: 1, [20].
72
Id. Ethics. bk II: 1, [15].
73
Id. ibid., bk II: 1, [15]. A ênfase é nossa.
74
‘Abdu’l-Bahá. Educação Bahá’í, uma compilação. p.30-38. As ênfases são nossas.
75
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.36.
76
Id. ibid., p.38.
77
Id. ibid., p.30.
78
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. lv I, cap. XXV, p.206.
79
Id. ibid., lv I, cap. XXVI, p.228
80
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.167.
81
SHWEDER, R. e MAHAPATRA, M. Op. cit. p.76.
82
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.22.
83
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.18.
84
MONTAIGNE. Apud The Great Ideas. A Syntopicon of Great Books of the Western World. bk 2, p.379.
85
FRANKL, Victor. A presença ignorada de Deus. p.25.
86
MASLOW, Abraham. Introdução à psicologia do ser. p.12.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
69
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
87
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. lv I, cap. XXVI, p.229.
88
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.283.
89
WATSON, Lyall. Dark Nature. A natural history of Evil. p.215.
90
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.82.
91
WATSON, Lyall. Op. cit., p.216.
92
Id. ibid. p.211.
93
WATSON, Lyall. Dark Nature. A natural history of Evil. p.216.
94
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.283.
95
Id. ibid. p.215-6.
96
Composto pelo caráter hereditário (dado geneticamente) e inato (dado pelas condições de gestação).
97
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.283.
98
HAMER, Dean. Living with our genes. p.6-8.
99
Id. ibid. p.14.
100
HAMER, Dean. Living with our genes. p.16.
101
MASLOW, Abraham. Introdução à psicologia do ser. p.27.
102
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. lv. I, cap. XXVI, p.224.
103
PLATÃO. Laws. bk II, [653]
104
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. lv. I, cap. XXV, p.210-11.
105
GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom. p.98-9.
106
WATSON, Lyall. Dark nature. A natural history of Evil. p.289.
107
ARENDT, Hannah, apud Lyall Watson. Dark Nature. A natural history of Evil. p.289.
108
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade. p.201.
109
No original, o termo empregado em sânscrito é Dharma. Dharma é um conceito complexo, que pode
significar, conforme o sentido, a Lei, a Religião, a Doutrina, ou a Lei Natural, a Ordem Universal.
110
MAHABHARATA, apud ROST, p.28; CAMPBELL, p.52.
111
O termo empregado no original, Tora, como Dharma, pode ser traduzido por Lei, mas contém muitas
outras nuanças, como Guia, Instrução, Ensinamento da Palavra de Deus.
112
TALMUD BABILÔNICO-HILLEL, apud SCHLESINGER & PORTO, p.26; ROST, p.69.
113
LEVÍTICO 19:18.
114
GATHAS, apud ROST, p.56.
115
DHAMMAPADA, apud ROST, p.39.
116
MATEUS 7:12.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
70
117
HADITH, apud ROST, p.103; CAMPBELL, p.54.
118
“Bahá” quer dizer “glória”, ou seja, tais homens serão considerados entre o povo da “glória de Deus”.
Palavras do Paraíso: Terceira e Décima Folhas do Paraíso.
119
BAHÁ’U’LÁH. Seleção dos escritos de Bahá’u’láh. LXVI.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
71
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
2
*
Mestre (PUC-RJ) e doutor (UFSC/Université de Montpellier I) em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNISINOS/RS e da UNISC/RS. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul Coordenador da Procura-
doria de Informação, Documentação e Aperfeiçoamento Profissional (PIDAP).
CAPÍTULO
DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA
UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais*
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..... 72
1 OS DIREITOS HUMANOS ..... 73
2 DO INDIVIDUAL AO TRANSINDIVIDUAL ..... 76
3 DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO ..... 85
3.1 O QUÊ E POR QUE (?) CONSTITUIÇÃO ..... 85
3.2 O CARÁTER EFICACIAL DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS A DIREITOS HUMANOS ..... 86
3.3 A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ..... 88
4 O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS ..... 91
4.1 DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO. DE NOVO! ..... 91
4.2 GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E FLEXIBILIZAÇÃO. A FRAGILIZAÇÃO DAS CONQUISTAS ..... 94
4.3 O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS, CONSTITUIÇÃO E JURISDIÇÃO ESTATAL ..... 95
4.4 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DAS CONSTITUIÇÕES. UM CAMINHO DÚPLICE ..... 97
5 O BRASIL E OS DIREITOS HUMANOS ..... 99
5.1 O HISTÓRICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ..... 99
5.2 A ORDEM SOCIAL NA CF/88 ..... 101
5.3 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO CONSTITUCIONALIZADO ..... 101
5.4 MECANISMOS CONSTITUCIONAIS: O MANDADO DE
INJUNÇÃO E O CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE ..... 105
6 NOTAS FINAIS ..... 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 110
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
72
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Pensar as possibilidades práticas para os direitos humanos, em especial no que se refere
aos sociais, econômicos, culturais, assim como os de solidariedade como veremos abaixo ,
dando especial atenção aos primeiros, muito embora as tensões que os afetam digam de perto
com os problemas respeitantes aos demais, nos coloca interrogações das mais difíceis. Dentre
as tantas questões que se apresentam tencionamos apontar algumas daquelas que cremos ser
das mais significativas para os operadores do Direito, sem negar a ocorrência de tantas outras,
traçando algumas intersecções necessárias.
Optamos, assim, por refletir, ao longo do texto, alguns tópicos que digam com as condições
de tornar tais conteúdos usufruíveis, apontando aspectos de natureza teórica, bem como
sugerindo a necessidade de uma atuação positiva-interventiva por parte dos responsáveis por
dizer o direitoprestar a jurisdiçãono caso concreto.
Não há, nisto, como se esquivar da análise de uma tentativa de implementação dos direitos
humanos tendo como cenário o espectro da globalização do universo das relações sócio-
econômicas e seus corolários, sobretudo quando visamos instrumentalizar para isso as práticas
jurídicas e os operadores do Direito por elas responsáveis.
Adotamos como estratégia operacional a de discorrer topicamente sobre os diversos aspectos
que tocam essa temática, sem que isso implique rupturas ao longo do texto mas, apenas, um
mecanismo metodológico que viabilize a compreensão das posições adotadas e permita o
estabelecimento de uma interface ativa com aqueles a quem se destina este estudo.
Preferimos, ainda, referir nas notas de rodapé apenas o indicativo das fontes utilizadas,
deixando para a lista de bibliografia expressa ao final a função de apontar todos os dados
referentes a elas, além de algumas vozes que nos orientam silenciosamente.
Com isso pretendemos dar conta da temática sugeridadireitos humanos, direitos sociais
e justiça, com ênfase no direito à educaçãonão nos limitando a expressar uma visão dogmática
da ordem jurídica pátria nesta seara, sequer falsear o debate com uma hermenêutica silogística
mas, sobretudo, abrir possibilidades e dar condições àqueles todos que nos preocupamos
com o futuro dos direitos humanos para que, no nosso cotidiano de labor, tenhamos, no
mínimo, uma inserção comprometida com sua efetividade e estejamos aptos a dar respostas
suficientes e eficientes aos anseios da cidadania para a qual prestamos a nossa função de dar
vida ao direito, independentemente da posição ocupada neste processo, partindo da premissa
que fazer (bem) direito implica um compromisso ético e jurídico fundante com a eficácia e
efetividade do conteúdo dos direitos humanos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
73
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
1 OS DIREITOS HUMANOS
A preocupação com o tema dos direitos humanos está presente desde há muito tempo nos
trabalhos jurídicos daqueles que somos preocupados com a qualificação da vida quotidiana
dos indivíduos, dos grupos sociais, da humanidade e de todos os seres que habitam o planeta.
Dessa forma é que inúmeros juristas, como também sociólogos, politólogos, filósofos etc.,
além daqueles que buscamos construir uma visão transdisciplinar da temática que nos move,
bem como agentes sociais engajados na luta por sua efetivação, consolidação e ampliação,
vêm desenvolvendo pesquisas e projetos, tentando, a todo o momento, constituir um saber e
práticas mais apuradas, além de um discurso garantidor da eficácia e efetividade dos conteúdos
próprios – tradicionais ou inovadoresaos direitos humanos.
Deve-se ter presente que tais questionamentos devem acompanhar não apenas as
transformações que se operam nos conteúdos tidos como próprios dos mesmose aqui
observamos que, como adverte Norberto Bobbio em seu “A Era dos Direitos”,
1
os direitos
humanos não nascem todos de uma vez, eles são históricos e se formulam quando e como as
circunstâncias sócio-histórico-políticas são propícias ou referem a inexorabilidade do
reconhecimento de novos conteúdos, podendo-se falar, assim, em gerações
2
de direitos
humanos, cuja primeira estaria ligada aos direitos civis e políticosas liberdades negativas ,
uma segunda geração, atrelada aos conteúdos das liberdades positivas, como os econômicos,
sociais e culturais, e uma terceira vinculando as questões que afligem os homens em conjunto,
como as relativas a paz, desenvolvimento, meio ambiente, etc.
Há, ainda, quem os identifique por intermédio do valor privilegiado em seus conteúdos.
Assim, teríamos os direitos de liberdade, os de igualdade e os de solidariedade, acompanhando
as diversas gerações como acima explicitadas.
Por outro lado, temos a necessidade de dar-lhes efetividade prática, podendo-se agregar,
nesse aspecto, com José Eduardo Faria,
3
a idéia de que às diversas gerações pode-se atrelar o
1
Para este debate há uma literatura significativa, podendo-se mencionar, para além da obra consagrada de
Norberto Bobbio referida no texto, o trabalho de Ingo Sarlet – A Eficácia dos Direitos Fundamentais.
2
Há autores que preferem falar em dimensões, ao invés de gerações, como é o caso de Ingo Sarlet, op. cit.,
passim.
3
José Eduardo Faria – Direitos Humanos e Globalização Econômica. Notas para uma discussão. Tal postura
não pode significar que as demais funções do Estado não tenham nenhum tipo de comprometimento na
medida em que, e.g., o desrespeito a qualquer deles enseja a utilização de remédios procedimentais
construídos para dar conta dessas situações, tais como o habeas corpus, mandado de segurança, mandado
de injunção, ação civil pública, ação popular etc.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
74
maior compromisso de uma das funções do Estado – à cidadania civil e política (1
a
geração)
atrelava-se, de regra, a ação legislativa, pois bastaria o seu reconhecimento legal para a sua
concreção por tratarem-se de liberdades negativas cuja intenção privilegia o caráter de não-
impedimento das ações por parte do Estado; à cidadania social e econômica (2
a
geração), a
ação executiva através de prestações públicas; à cidadania pós-material (3
a
geração), a ação
jurisdicional em sentido amplo, garantindo a efetividade de seus conteúdos.
4
Ou seja, os direitos humanos são universais e cada vez mais se projetam no sentido de seu
alargamento subjetivo, mantendo seu caráter de temporalidade. São históricos, não definitivos,
exigindo a todo instante não apenas o reconhecimento de situações novas, como também a
moldagem de novos instrumentos de resguardo e efetivação. Prefiro dizer que se generalizam
– ou difundem – na medida em que sob as gerações atuais observamos, muitas vezes, um
aprofundamento subjetivo, a transformação ou a renovação (função social) dos conteúdos
albergados sob o manto dos direitos fundamentais de gerações anteriores, além do
reconhecimento de situações novas.
5
Ou seja, da 1
a
geração com interesses de perfil individual
passamos, na(s) última(s), a transcender o indivíduo como sujeito dos interesses reconhecidos,
6
sem desconsiderá-lo, obviamente. Assim é que se pode falar, nos dias que passam, de uma
multiplicação de gerações em razão de novos conteúdos próprios ao universo dos direitos
humanos, tais como aquelas relacionadas com as questões ambientais, a paz, o desenvolvimento
e, mais recentemente, aquelas ligadas à pesquisa genéticaque dá origem a um novo ramo do
Direito, reconhecido como o Biodireitoe à Cibernética, o que só confirma a hiipótese bobbiana
da historicidade dessas matérias, bem como de uma certa independência de umas em relação
a outras, na medida em que o aparecimento de uma nova geração não implica o desaparecimento
de alguma das precedentes, embora possa redefini-la, como já expresso.
4
É de ver que não há, também neste aspecto, uma uniformidade conceitual, podendo-se referir autores que
multiplicam as gerações de direitos humanos, a partir de concepções primárias díspares.
5
No âmbito deste trabalho é suficiente adotarmos uma distinção simplificada para entendermos os direitos
fundamentais como o catálogo positivado dos direitos humanos em uma certa ordem jurídica, o que, ao
mesmo tempo que os identifica, pode diferenciá-los em razão da extensão quantitativa de uns e de outros.
Ver adiante a questão da dialética entre internacionalização dos direitos humanos e constitucionalização do
direito internacional.
6
A este respeito, ver o nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o Direito na
ordem contemporânea.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
75
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
O que se percebe nesta seara é que muito dos conteúdos básicos sequer foram
implementados ou muitos são sonegados; ao mesmo tempo, precisamos dar conta de situações
novas cada vez mais complexas, impondo-se ao jurista uma formação qualificada que lhe
permita enfrentar competentemente os conflitos surgidos nesse meio, sem contudo esquecer o
fundamental que são, como veremos abaixo, as estratégias próprias ao Estado de Direito como
Estado Democrático de Direito.
7
Resumidamente poderíamos dizer, então, que os direitos humanos, como conjunto de valores
históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna jurídico-político-psíquico-
física dos seres e de seu hábitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem
sempre como condição fundante da vida, impondo aos agentes político-jurídico-sociais a tarefa
7
Ver o artigo 1
o
da CF/88. Sobre o conceito de Estado Democrático de Direito ver: Bolzan de Morais, Do
Direito Social aos Interesses Transindividuais, em especial o capítulo I. Da mesma forma ver: Bolzan de
Morais, Jose Luis e Streck, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. O Estado Democrático de
Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito,
a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o
aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como
fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da
democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a
idéia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições
materiais de existência. Com efeito, são princípios do Estado Democrático de Direito: AConstitucionalidade:
vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia
jurídica; BOrganização democrática da sociedade; CSistema de direitos fundamentais individuais e
coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma
autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a
dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidarieda-
de; DJustiça social como mecanismos corretivos das desigualdades; EIgualdade não apenas como
possibilidade formal mas, também, como articulação de uma sociedade justa; FDivisão de poderes ou de
funções; GLegalidade, que aparece como medida do Direito, isto é, através de um meio de ordenação
racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a
prepotência; HSegurança e certeza jurídicas. Assim, o Estado Democrático de Direito teria a característica
de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito
vinculado ao Welfare State neocapitalista , impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo
utópico de transformação da realidade. Dito de outro modo, o Estado Democrático é plus normativo em
relação às formulações anteriores. Vê-se que a novidade que apresenta o Estado Democrático de Direito é
muito mais em um sentido teleológico de sua normatividade do que nos intrumentos utilizados ou mesmo
na maioria de seus conteúdos, os quais vêm sendo construídos de alguma data.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
76
de, para além do seu reconhecimento formal, agirem no sentido de permitir que a todos seja
consignada a possibilidade de usufruí-los em benefício próprio e comum ao mesmo tempo.
Assim como os direitos humanos se dirigem a todos, o compromisso com sua concretização
caracteriza tarefa de todos, em um comprometimento comum com a dignidade comum.
2 DO INDIVIDUAL AO TRANSINDIVIDUAL
Para entendermos essa transformação dos interesses é importante que a vejamos refletida
no campo da teoria do Direito, onde podemos vislumbrá-los a partir do conceito clássico de
interesse individualque dá origem à idéia de direito subjetivo , que passa a interesse
coletivo e, por fim, a interesse difuso.
8
Essa tripartição, entendemos, nos permitirá melhor
compreender a temática que nos interroga.
Assim, como o próprio nome indica, interesse individual é aquele que atina ao indivíduo
isoladamente, não abarcando, portanto, situações em que se insira em determinados contextos
coletivos, grupais. Pode-se tratá-lo como interesse fundamental do homem-indivíduo, ou seja,
aquele que reconhece autonomia ao particular, garantindo iniciativa e independência ao
indivíduo diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado. Para Rodolfo
de C. Mancuso,
9
a forma de concepção destes se faz pelo elemento predominante; assim, será
individual o interesse cuja fruição se esgota no círculo de atuação de seu destinatário.
Na visão da tradição liberal erigiu-se um conceito fundamental à explicação e ao
embasamento do interesse individual que é o de direito subjetivo, o qual é produto da reunião
do interesse individual com a garantia oferecida pelo Direito.
Diz-se, então, que os direitos subjetivos compreendem posições de vantagem, privilégios,
prerrogativas que, uma vez integradas ao patrimônio do sujeito, passam a receber tutela especial
do Estado (sobretudo através da ação judicial, de atos de conservação e de formalização perante
órgãos públicos, etc.). Quando tais prerrogativas se estabelecem em forma de critérios formados
contra ou em face do Estado, tomam a designação de direitos públicos subjetivos.
10
8
Deixaremos de mencionar, por ora, outros tipos de interesses juridicamente protegidos por serem de menor
importância para os objetivos deste trabalho, para o que indicamos a leitura de nosso trabalho Do Direito
Social aos Interesses Transindividuais.
9
Mancuso, Rodolfo. Interesses Difusos, p. 37.
10
Idem, ibidem, p. 54.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
77
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
A doutrina do direito subjetivo recebeu um profundo desenvolvimento pela teoria jurídica,
erigindo-se em conceito fundamental da ordem liberal, calcada na figura do indivíduo titular
de direitos.
11
Assim, podemos citar, como características de tais interesses:
(1) Fruição individual com caráter excludente, ou seja, o titular desse direito dispõe dele
de forma exclusiva, afastando, com o seu benefício/prazer, qualquer possibilidade concorrencial
ou compartilhada de seu desfrute. O meu direito implica o não-direito do outro ao mesmo
objeto e o conseqüente impedimento de acesso. Essa fruição é de tal ordem de exclusividade
que permite ao titular do direito a destruição do objeto, sem a possibilidade de qualquer
interferência impeditiva;
12
(2) Como conseqüência dessa exclusividade, há a possibilidade, embora nem sempre
presente, de disponibilidade direta e imediata do bem objeto do direito. Ou seja, caracteriza-se
como um direito disponível;
(3) O exercício desse direito, sua guarda, é pessoal de seu titular, embora excepcionalmente
a lei possa prever casos de substituição processual, quando, então, autoriza a que terceiro(s)
possa(m) participar de ou praticar atos visando à salvaguarda do direito de outrem;
13
11
Nesta trajetórica, são inúmeros os conceitos emitidos, muito embora seu aspecto fulcral permaneça inalterado.
Von Thur, como demonstra Ovídio A. B. da Silva, define direito subjetivo como a faculdade reconhecida
à pessoa pela ordem jurídica, em virtude da qual o sujeito exterioriza sua vontade, dentro de certos limites,
para a consecução dos fins que sua própria escolha determine. Já Maria Helena Diniz biparte esse
conceito entendendo existir direito subjetivo: a) comum da existência: consistindo na permissão de fazer
ou não fazer, de ter ou não ter alguma coisa, sem violação de preceito normativo; b) defender direitos:
referentemente à autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela violação
da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar
reparações pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena. Caio Mario da Silva Pereira, após
esposar várias opiniões e conceitos, parte para a sua análise, decompondo-o em três elementos essenciais
e constantes: a) sujeito: o titular do direito, ao qual a ordem jurídica assegura a faculdade de agir; b)
objeto: identificado como o bem jurídico sobre o qual o titular do direito exerce-o; c) relação jurídica:
vínculo que submete o objeto ao sujeito. Na doutrina internacional podemos ancorar os mesmos traços no
que diz com esse conceito. Assim é que, recorrentemente, se observa a alusão ao poder de exigir algo, cuja
definição está previamente dada, conferido a determinado sujeito pela ordem jurídica objetiva, sendo-lhe
atribuída a possibilidade de utilizar-se de mecanismos jurídicos apropriados para a garantia de ver satisfeita
a sua pretensão, caso haja recusa de cumprimento voluntário.
12
Ver a respeito Remond-Gouilloud, Martine. Du Droit de Détruire: essai sur le droit de l’environnement.
Passim.
13
Ver, a esse respeito, o artigo 6
o
do Código de Processo Civil Brasileiro.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
78
(4) O prejuízo causado a um direito individual é passível de ressarcimento proporcional à
sua identidade com o padrão monetário em vigor, ou seja, converte-se o direito em pecúnia;
(5) Em razão disso, os interesses individuais implicam o que poderíamos chamar de
conflituosidade mínima/circunscrita, na medida em que envolve na disputa apenas sujeitos
limitados, individualidades;
(6) Conseqüentemente, as lides emergentes de tais pretensões apontam para uma politização
neutral, enquanto, dada a sua circunscrição subjetiva, permite limitar o conflito, impondo-lhe
uma definição jurídica pretensamente neutra, asséptica.
Tomando-se tais características, podemos visualizar os direitos individuais como interesses
que produzem um espectro conflitual circunscrito àqueles envolvidos no litígio, apontando,
assim, para o que poderíamos chamar, para contrapor aos interesses transindividuais de tipo
difuso, como veremos a seguir, conflituosidade mínima. Em decorrência dessa limitação espaço-
pessoal do conflito, a politização que se produzirá será uma politização neutral, posto que o
debate será circunscrito a dizer, declarar em sentido amplo, quem seja o titular do direito em
disputa sem, com isso, adentrar no debate acerca dele.
Em razão disso, pode-se dizer que, em suas relações, o direito individual aponta para um
caráter repulsivo que se expressa pela oposição de interesses própria ao seu feitio egoísta-
exclusivista. Os indivíduos, titulares dos direitos subjetivos, encontram-se em oposição, em
posições antagônicas uns diante dos outros, na medida em que a titularidade do direito por
parte de um deles implica a impossível titularidade pelo outro. Tal relação caracteriza-se,
portanto, como de exclusão.
O que pretendemos salientar, em especial, é o caráter exclusivista do direito individual,
aqui representado pela figura do sujeito isolado, sem vínculos, impermeável às intersecções
externas. Os eventuais laços que podem se estabelecer dizem respeito à pretensão de ver
garantidos tais interesses pela ordem jurídica positiva, o que permite, como direito subjetivo,
a sua persecução judicial e o seu asseguramento por meio do poder do Estado de dizer o
Direito por intermédio da jurisdição.
Por fim, é importante percebermos que ao falarmos em indivíduo não restringimos essa
locução à sua materialização em um homem fisicamente definido. Em muitos casos uma
individualidade pode manifestar-se sob aspectos diversos, mesmo sob a roupagem de um ente
grupal ou multindividual.
Por outro lado, no âmbito do gênero dos interesses transindividuais aparecem, em primeiro
lugar, os chamados interesses coletivos que, estando titularizados por um conjunto de pessoas,
permanecem adstritos a uma determinada classe ou categoria delas, ou seja, são os interesses
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
79
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
que são comuns a uma coletividade de pessoas e a elas somente. Para a sua caracterização
pressupõe-se a delimitação do número de interessados com a existência de um vínculo jurídico
que una os membros dessa comunidade para que, assim, a titularidade possa ser coletivamente
definida.
14
Teremos, assim, configurados interesses coletivos quando um interesse comum afetar uma
coletividade inteira de indivíduos reunidos por meio de vínculos jurídicos.
O interesse será coletivo quando, além de depassar o círculo de atributividade individual,
corresponde à síntese dos valores predominantes num determinado segmento ou categoria
social.
15
Todavia, esta é uma situação que se apresenta também com relação aos interesses
difusoscomo veremos a seguir , o que nos coloca frente à impossibilidade de diferenciá-los
de forma definitiva, dada a invariabilidade residente nesse aspecto.
Logo, para definirmos o que sejam interesses coletivos devemos lançar mão de seu elemento
caracterizador para dizer que um interesse será coletivo quando representar a síntese das
14
Nesse espectro podemos, então, situar, exemplificativamente, a sociedade mercantil, o condomínio, a
família, o sindicato, os órgãos profissionais, entre outros, como grupos de indivíduos nos quais expressam-
se tais interesses.
15
Mancuso, Rodolfo. Interesses Difusos, p. 33. Precisamos aprofundar a compreensão da idéia de interesse
coletivo para que possamos afastá-la limpidamente de outras que, apesar de sua feição múltipla, permane-
cem adstritas ao âmbito dos interesses individuais. Para tanto, podemos acercar-nos dessa pureza, distin-
guindo três conotações diversas que podem assumir a idéia de interesse coletivo. Destas, somente a última
nos será útil para nos apercebermos da presença de um interesse transindividual, senão vejamos: (A) A
primeira acepção corresponde ao interesse pessoal do grupo que é diverso dos interesses pessoais de seus
componentes. Estes dizem respeito aos interesses pessoais da pessoa jurídica ou moral, configurando
nesse novo ente um interesse individual de segundo grau, com o mesmo caráter do interesse individual de
primeiro grau titularizado pelo homem isolado; (B) A segunda identifica o interesse coletivo à soma dos
interesses pessoais dos membros do grupo, sendo, portanto, coletivo só na forma de exercício dos diver-
sos interesses individuais; (C) A última apresenta o interesse coletivo como a síntese dos diversos interesses
individuais em jogo no interior do grupo, materializando um todo-novo interesse identificado com o grupo
diretamente e, mediatamente, com os seus membros, despersonalizando os diversos interesses individuais
dispersos em seu interior e não personalizando um novo interesse individual na própria entidade grupal.
É somente nesse terceiro momento que estará presente o interesse coletivo adaptado à idéia aqui exposta.
Nos dois conteúdos anteriores estaremos ainda diante de interesses individuais que podem ser os do
próprio grupo ou de seus componentes, exercidos de forma coletiva.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
80
pretensões de um grupo determinado ou determinável de indivíduos, unidos entre si por um
liame jurídico comum.
16
Partindo dessas assertivas, podemos dizer que os interesses coletivos caracterizam-se
primordialmente por:
(A) Apresentar-se como síntese dos interesses individuais, configurando o fenômeno da
despersonalização dos interesses individuais. Todavia, esta é uma característica partilhada
com os interesses difusos;
(B) Serem interesses que pressupõem a existência de um vínculo jurídico de união dos
elementos componentes do grupo, o que, de certa forma, garante/assegura a sua
homogeneidade, embora, por outro lado, possa engendrar um processo de corporativização, o
que pode significar a desnaturação do interesse coletivo como fenômeno superior de
transindividualização/socialização do Direito, reconduzindo-o à identidade de interesse
individual egoístico. Esse vínculo referenda a ocorrência de uma titularidade identificável;
(C) Permitir, como conseqüência do laço jurídico que os une, a determinação/identificação
dos elementos componentes da coletividade. Ou seja: a titularidade desses interesses pode ser
a todo instante reconhecida;
(D) Impedir a fruição individual excludente por parte de qualquer componente da
coletividade. Assim, os integrantes da categoria ou classe não podem fruir individualmente do
interesse sintetizado no grupo, muito embora possam, a título particular, aproveitar-se de tal
interesse sem, no entanto, com isso afastar a possibilidade de fruição dos demais co-titulares,
que dele poderão beneficiar-se em momento diverso ou simultâneo. Todavia, pode-se, ainda,
considerar excludente a fruição quando considerarmos a posição de uma dada coletividade
frente às demais;
(E) Ter como característica, sendo a síntese de determinados valores do grupoo que
não significa a unificação dos diversos interesses num único interesse coletivo a
indisponibilidade. Assim, nem a coletividade, como organização superposta aos indivíduos
16
Na doutrina brasileira, ligada à questão dos interesses coletivos, é repetidas vezes referendada essa posi-
ção. Tanto Hugo Nigro Mazzilli quanto Lucia Valle Figueiredo, bem como Ada Pelegrini Grinover, propõem
uma definição destes, partindo da existência de um vínculo jurídico de união e significando, dessa forma,
dizer respeito ao homem socialmente vinculado, o que implica um privilegiamento da sociedade civil
organizada. A Lei n
o
8078/90, Código do Consumidor, estatui em seu artigo 81, II - interesses ou direitos
coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de seja
titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica básica.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
81
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
isolados, nem os membros simples poderão, como ocorre com os interesses individuais, dispor
de tais interesses que, uma vez estabelecidos, representam um valor disponível da coletividade
como entidade diversa tanto de sua apresentação estrutural como figura jurídica, quanto de
seus membros vistos separadamente;
(F) Sua tutela estar intimamente ligada ao grupo que dá substrato jurídico para a formação
da coletividade. Como conseqüência dessa tomada de importância de um tal tipo de interesse
jurídico, se espraia a idéia de controle público, perdendo força a dualidade estatização-
privatização.
17
Por outro lado, não podemos perder de vista o viés corporativo assumido repetidamente
pelos entes representativos dos interesses coletivos, o que os faz reaproximarem-se dos interesses
individuais. Ou seja: quando uma coletividade propõe seus interesses corporativamente, reproduz
aspectos próprios aos interesses individuais na medida em que se comporta como uma mônada
isolada ou um indivíduo de segundo grau, um indivíduo composto. Em especial, sua atuação
referenda a pretensão exclusivista/excludente própria do interesse individual, quando com a
sua pretensão busca excluir/impedir o acesso dos demais.
Todavia, a teoria dos interesses coletivos está longe de esgotar as possibilidades desse
processo de despersonalização dos interesses. Se, do início aos meados do século XX, a resposta
jurídica à questão social e aos demais aspectos ligados ao Estado do Bem-Estar Social significaram
a crise profunda da idéia de direito individual, a segunda metade desse mesmo período histórico
impõe, diante do próprio esgotamento das condições vitais do planeta, ao lado de outros
problemas ligados à sociedade industrial, novas questões que, para serem apreendidas pelo
universo jurídico, significam o aprofundamento da crise da racionalidade jurídica individualista.
São esses novos impasses relacionados genericamente à qualidade de vida das pessoas
que põem na ordem do dia um novo tipo de interesses que, longe de serem individuais,
diferenciam-se profundamente daqueles transindividuais de que até aqui vimos falando, os
coletivos.
17
Há quem, como Rodolfo C. Mancuso, limite a três as notas fundamentais caracterizadoras dos interesses
coletivos: (A) um mínimo de organização; (B) afetação a grupos determinados ou determináveis de
pessoas entidades próprias da sociedade civil; (C) um vínculo jurídico básico. Tal assertiva, em todo
válida, deixa, todavia, de lado alguns aspectos que, longe de serem secundários, significam uma tomada
de posição distinta daquela assumida tradicionalmente pelos interesses individuais, permite a falsa idéia de
serem os interesses coletivos, em realidade, interesses individuais assumidos coletivamente, na medida em
que não expulsa de seus limites aspectos ligados à tradição individualista, tais como a despersonalização
e a fruição não excludente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
82
Então, os interesses difusos, apesar de estarem relacionados à coletividade de indivíduos,
distinguem-se sobremaneira dos anteriormente referidos por não estarem alicerçados em
qualquer vínculo jurídico de base.
A reunião de pessoas em torno de um interesse difuso assenta-se em fatos genéricos,
acidentais e mutáveis,
18
como refere o jurista italiano Mauro Cappelletti.
19
Em razão disso, o
grupo ligado aos interesses difusos apresenta-se fluido, indeterminado e indeterminável, pois
estão diluídos na satisfação de necessidades e interesses de amplos setores da sociedade de
massas, característica dos tempos atuais.
Os interesses difusos significam uma indeterminação subjetiva de sua titularidade, embora
pressuponham, da mesma forma que os interesses coletivos, um reforço da sociedade civil
organizada, como único instrumento capaz de colocá-los em prática embora, nesse caso, os
agrupamentos organizados tenham um papel fundante, pois é a partir de sua identidade interna
que se estabelecerá o liame jurídico oportunizador da concretização dessa síntese própria ao
interesse de grupo. No que diz respeito aos interesses difusos, esses mesmos organismos da
sociedade civil, embora participem ativamente como instrumentos de viabilização dos interesses,
não têm um papel jurídico fundamental como ordem integradora da coletividade para justificar
a emergência do interesse, muito embora apareçam como essenciais para a sua projeção tanto
política quanto jurídica.
Dessa forma, é o indivíduo, enquanto cidadão, que atuará para dar conteúdo a essa forma
fluida. É evidente que esse indivíduo que está presente na definição dos interesses difusos
não pode ser o mesmo que titulariza os interesses individuais egoísticos, uma vez que o objeto
desses interesses representa questões que afetam problemas cruciais da comunidade,
referendando, em verdade, opções prático-políticas cuja satisfação ou lesão implicam a da
coletividade como um todo.
Essa condição, eminentemente política, impõe aos operadores jurídicos uma nova postura
frente ao Direito, reincorporando o seu conteúdo ético.
20
18
Como habitar a mesma região, consumir os mesmos produtos, viver sob determinadas condições sócio-
econômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc.
19
Cappelletti, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, pp. 128-59.
20
Este é um debate que vem sendo travado por inúmeros juristas. No caso brasileiro podemos apontar, no
âmbito da Sociologia Jurídica, os trabalhos de Jose Eduardo Faria, Celso Campilongo, Jose Reinaldo de Lima
Lopes; na perspectiva processual, Ada Pelegrini Grinover, Candido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, Luiz
Guilherme Marinoni, Hugo Nigro Mazzilli, Rodolfo de Camargo Mancuso. Embora não seja objeto de estudo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
83
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
A marca tradicional de distinção interna aos interesses transindividuais releva a existência
(interesses coletivos) ou não (interesses difusos) de vínculo jurídico entre os membros do
grupo. No caso desses últimos a unidade se formará a partir de situações contingenciais de
fato e, sobretudo, calcada em pretensões de natureza prospectiva e positiva e não em reparações
a prejuízos já sofridos.
21
Podemos, então, arrolar as principais características destes interesses como:
(A) Os interesses difusos caracterizam interesses que não pertencem a pessoa alguma de
forma isolada, tampouco a um grupo mesmo que delimitável de pessoas, mas a uma série
indeterminada ou de difícil determinação de sujeitos. Nesse sentido, é já tradicional a questão
posta por M. Cappelletti inquirindo a quem pertence o ar que respiramos (?) e respondendo: a
cada um e a todos, a todos e a cada um. O mesmo vale para outros interesses igualmente
difusos: valores culturais, espirituais, consumidores, meio ambiente, etc.;
(B) Como conseqüência da indeterminação subjetiva, sequer poder-se-ia falar em
titularidade para definir a quem caberia a tutela dos interesses difusos. Eventualmente, podemos
defini-la como uma titularidade aberta, podendo ser conferida a um ente esponenziale que
refletiria de maneira maximizada o interesse pretendidocomo organismos intermediários da
sociedade civil que encarnam a defesa de tais interesses de forma não burocrática (associações
de moradores ou de consumidores, grupos ecológicos, partidos políticos, etc.)e, pensamos
nós, até mesmo a indivíduos isolados que assumam os ônus de uma tal démarche ou a órgãos
burocráticos tradicionais, como é o caso do Ministério Público no Brasil, não sem os riscos
próprios a todos os organismos burocratizados ligados ao Estado;
(C) À diferença dos interesses coletivos, inexiste vínculo jurídico que reúna os sujeitos
eventuais ligados aos interesses difusos. Com isso, a categoria jurídica fundamental do direito
subjetivo resta, para muitos juristas, desconectada dessa nova realidade, pois este só subsistiria
enquanto relacionado a alguém que o titularizasse diretamente, ou seja, haveria a necessidade
específico neste momento, deve-se salientar a importância da pesquisa nessa área a fim não só de compre-
ender e instrumentalizar os operadores jurídicos tradicionais mas, também, de incorporar a ele a tematização
referente a outros operadores que se projetam como fundamentais nos dias atuais, tais, e.g., os peritos, os
quais poderiam ser tidos como operadores jurídicos secundários, sem minimizar sua importância.
21
Ver, e.g., as definições aportadas por Hugo Nigro Mazzilli (Revista de Informação Legislativa, n. 109, p. 289),
Ada Pelegrini Grinover (Revista de Direito Público, n. 93, p. 20) e Lei n
o
8078/90, em que se dizem difusos
os interesses transindividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
84
de uma conexão perfeita entre o objeto do direito e seu detentor. Aqui, contudo, o debate não
é findo. Há posições divergentes, considerando a possibilidade de falar-se em um direito
subjetivo difuso, e.g., um direito subjetivo ao meio ambiente;
(D) Os interesses difusos referem-se a bens indivisíveis, significando que a satisfação do
interesse implica sempre a satisfação de toda a coletividade, da mesma forma que sua lesão se
concretiza para todos;
(E) Neles não há hipótese para se pensar em fruição exclusiva por algum titular, posto que
sua satisfação ou lesão são inapreensíveis, pois disseminadas indistintamente entre os sujeitos
todos e ao mesmo tempo. Há, pelo contrário, uma inapropriabilidade individual exclusiva,
mais até do que uma eventual apropriabilidade inclusiva;
(F) A indisponibilidade é uma conseqüência de sua afetação indeterminada positiva ou
negativamente;
(G) Há uma conflituosidade intensaconflitualitá massima, na expressão de Mauro
Cappellettique se expressa em razão da indeterminação dos sujeitos e da efemeridade e
contingência dos próprios interesses, o que não permite limitar sua abrangência, oportunizando
seu alargamento ad infinitum, principalmente no tocante aos sujeitos envolvidos, mas também
quanto à extensão dos objetos atingidos;
(H) Por seu próprio conteúdo diluído no campo do embate político da sociedade civil, os
interesses difusos têm uma tendência à transição e mutação no tempo e no espaço. Têm um
caráter de efemeridade, o que exige uma prestação jurisdicional imediata e eficaz sob pena de
irreparabilidade da lesão.
Assim, o que se observa dessa complexidade de interesses que convivem no universo
jurídico diz respeito a dois aspectos fundamentais. O primeiro refere as dificuldades que temos
os juristasde refletirmos para além do quadro clássico dos interesses individuaispor
conseqüência, dos direitos subjetivose os limites materiais e formais que tal atitude implica,
até mesmo porque muitos dos conteúdos assimiláveis no espectro das pretensões subjetivas
individualizadas passam a ter sua compreensão revista a partir de uma ótica em que o indivíduo
isolado deixa de ser o ator principal, tornando-se co-partícipe e co-interessadosendo suficiente
citar, aqui, o exemplo do direito de propriedade, que, com a inclusão da função social, passa
a ser visto não mais com a extensão que lhe fora dada na origem, e que ainda se expressa em
muitos diplomas legais, como um interesse que se estenderia, inclusive, até a possibilidade de
fazer-se desaparecer o objeto da propriedade, independentemente das afetações que isso poderia
causar a outras pessoas destituídas dessa titularidade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
85
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
O segundo diz respeito à falta de mecanismos procedimentais instrumentalizadores das
pretensões respeitantes a tais interesses e, quando não, à sua fragilização por parte significativa
da doutrina jurídica apegada a concepções clássicas e equivocadas, para não dizer inconformada
com as possibilidades abertas por tais mecanismos para uma prática de cidadania que possa
fazer da jurisdição um meio de concretização dos conteúdos jurídicos expressos legislativamente
em particular em sede constitucionaltornando-os praticáveis e usufruíveis pelos cidadãos,
como no caso, em particular, do mandado de injunção, como analisaremos à frente.
3 DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO
3.1 O QUÊ E POR QUÊ (?) CONSTITUIÇÃO
Agora, para enfrentarmos o problema dos direitos humanos mesmo que
particularizadamente, todavia , é preciso, desde sempre, que se recupere a importância das
Constituições para a história jurídico-política ocidental. Não podemos abandonar a certeza de
que, com os matizes que são necessários, o constitucionalismo desempenhou/desempenha
talvez por isso mesmo tantos se empenhem em desacreditá-loum papel fundamental, se não
para o desenvolvimento, para o asseguramento de parâmetros mínimos de vida social democrática.
Por óbvio que nem sempre a formalização de um texto constitucional impediu que a prática
política fosse desenvolvida em desacordo com a expressão contida na Carta Magna, da mesma
forma que em muitos momentos esta não representou aquilo que se pretendia ser a materialização
da vontade política de um povocomo expressou Dalmo Dallari
22
mas, pelo contrário,
serviu para dar um véu de legalidade a um poder arbitráriocomo ocorrido seguidamente,
e.g., na história constitucional latino-americana, em suas experiências burocrático-autoritárias.
23
Entretanto, tais circunstâncias históricas não podem, nem devem, permitir que se
desconheça o significado estratégico do reconhecimento de pretensões legítimas do povo
plasmadas em sede constitucional e que adquirem, assim, o caráter formal de normas
constitucionais, qualificando-se pela hierarquia e estabilização que tal significanormas
superiores e com maior estabilidade garantida, de regra, pela rigidez dos conteúdos incluídos
22
Ver deste autor o seu Constituição e Constituinte, dando atenção, em particular, ao seu conceito de
Constituição, como sendo a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de
uma lei que é superior a todas as outras e que, visando à proteção e à promoção da dignidade humana,
estabelece os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e
do governo, onde se pode observar as respostas acerca de quem, como, o que é e para quê? uma
Constituição.
23
Sobre esse conceito ver: Streck, Lenio e Bolzan de Morais, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
86
na Lei Maiorespecialmente no constitucionalismo escrito.
Assim, resumidamente, pode-se dizer que a Constituição, como expressão do pacto social,
24
nada mais ée por isso mesmo é muitodo que aquele acordo de vontades políticas desenvolvido
em um espaço democrático que permite a consolidação temporáriaporém longevadas pretensões
sociais de um grupo, consolidando, hoje em dia, não apenas aquilo que diga respeito única e
exclusivamente aos seres humanos individual, coletiva e difusamente, mas também os diversos
fatores que influem na construção de um espaço e de um ser-estar digno no mundoe.g. meio
ambiente, espaço urbano, ecossistemas etc. , bem como as preocupações futuras para com aqueles
que estão por vir, para além de funcionar como uma estratégia de estabilização de conquistas e de
forjar instrumentos que dêem condições para a prática dos conteúdos nela expressos.
E, por isso mesmo, o papel do constitucionalismo, com as nuances advindas da (des)ordem
contemporânea, nos parece ainda central para aqueles que não apenas nos ocupamos em
estudá-lo, mas, e particularmente, para todos aqueles que nos preocupamos com a continuidade
democrática assentada conteudisticamente em um conjunto de regras do jogo democrático,
como quer Bobbio,
25
e em seus pressupostos humanitários.
Por que Constituição se não para expressar essas preocupações e definir as regras do
jogo, não para impedir que este se estabeleça e desenvolva, mas para assegurar que serão os
próprios jogadores os titulares da ação de jogar, sabedores das circunstâncias, das garantias e
dos riscos que envolvem tal ato, não ficando à mercê de eventuais poderosos, ou mesmo de
maiorias constituídas aleatóriamente com a utilização de instrumentos político-midiáticos ou
financeiros.
Assentada que está a importância do constitucionalismo e de seu instrumento formal, a
Constituição, merece atenção para a nossa investigação a questão de definirmos o caráter
eficacial das normas constitucionais, em especial daquelas que expressam conteúdos próprios
aos direitos humanos, sobretudo aos genericamente nominados direitos sociais.
3.2 O CARÁTER EFICACIAL DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS A DIREITOS HUMANOS
Particularmente importante nessa matéria é o trato que se dê à questão da eficácia das
normas constitucionais, em especial àquelas que dizem respeito aos direitos humanos de segunda
e terceira gerações ou de igualdade e de solidariedade, como classificamos acima.
24
Poder-se-ia, aqui, retomar a literatura própria do justnaturalismo contratualista de Hobbes, Locke, Rousseau
e tantos outros para referendarmos tal assertiva, o que apenas referimos, por importante.
25
Ver, sobre o tema das regras do jogo democrático: Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa
das regras do jogo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
87
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
De longa data vem essa discussão, a qual ganha contornos fundamentais com o surgimento
do constitucionalismo social, a partir das Constituições mexicana (1917) e de Weimar (1919),
quando então os textos constitucionais passam a incorporar normas de caráter premial, ou
normas jurídicas às quais se agregam conseqüências jurídicas positivas ou, mais particularmente,
normas que definem objetivos a serem atingidos, programas a serem postos em prática etc.
Até então as questões sugeridas para a teoria constitucional permitiam o seu trato por
meio de instrumentos tradicionais à teoria jurídica na medida em que o impedimento de uma
ação considerada legítima poderia ser resolvido por meio de uma intervenção paralisante da
ação contrária à norma. Com a diferenciação estabelecida entre as diversas normas que compõem
a Carta Magna começou-se a ter problemas em relação à diferenciação de tratamento dado a
elas, optando-se, então, por classificá-las quanto à carga eficacial da qual são dotadas.
26
Tal atitude, muitas vezes, aponta para uma fragilização eficacial dessas normas de novo tipo,
próprias do constitucionalismo contemporâneo, dizendo-as dependentes de uma ação legislativa
posterior que lhes complete o sentido e permita, assim, a usufruição dos conteúdos nela expressos.
Como, de regra, a legislação infraconstitucional não era adotada, via-se o cidadão frustrado em
suas expectativas, servindo tal atitude não apenas para impedir o acesso aos conteúdos
constitucionais mas, também, para fragilizar o valor atribuído ao pacto constituinte do Estado.
Mesmo que tratemos diversamente os vários conteúdos constitucionais, cremos que as normas
de direitos sociais, embora diversas daquelas que prevêem preceptivamente direitos e garantias,
27
incorporam, para além de uma eficácia paralisante de atitudes com elas incompatíveis, verdadeira
pretensão a ser satisfeita pela autoridade pública inconstitucionalizando a sua atitude omissiva,
26
Muitas são as classificações ou tipologias propostas, em particular quanto à eficácia e aplicabilidade das
normas constitucionais. Poder-se-ia, aqui, mencionar várias delas. Parece-nos suficiente, entretanto, apon-
tar aqui as sugestões de Jose Afonso da SilvaAplicabilidade das Normas Constitucionais , de Maria
Helena DinizA Norma Constitucional e seus Efeitos , Luis Roberto BarrosoO Direito Constitucional e
a Efetividade de suas Normas , entre outros.
27
Lucia B. F. de Alvarenga sugere que os direitos sociais, que são normas impositivas de legislação, não
conferem aos seus titulares verdadeiros poderes de exigir, porque apenas indicam ou impõem ao legislador
que tome medidas para a realização dos bens protegidos. Não se reconhece, portanto, aos direitos sociais,
um conteúdo de direito subjetivo que permita aos titulares a exigência do respectivo cumprimento, por via
judicial, como direito líquido e certo e legitimidade individual. Ver: Direitos Humanos, Dignidade e Erradicação
da Pobreza. Parece-nos que tal postura, de amplo espectro doutrinário, peca por atrelar-se sobremaneira a
uma tradição individualista do direito com suporte, como visto, na idéia de direito subjetivo incompatível
com o caráter próprio aos direitos sociais, como observado na classificação proposta.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
88
além de permitir que o interessado demande a satisfação do conteúdo proposto/prometido em
sede constitucional, sob pena de contribuir-se para o desgaste de legitimação suportado pelo
constitucionalismo contemporâneo e ofender de morte a base estruturante da República brasileira
o Estado Democrático de Direito.
Para dar conta disso, uma das reações propostas pela teoria constitucional foi a de construir
instrumentos procedimentais que permitissem ao cidadão o acesso aos conteúdos constitucionais
com estratégias diversas da legislativa.
Muito embora tal apropriação doutrinária incorra em postura contraditória com o perfil do
constitucionalismo contemporâneo, de caráter eminentemente social e devotado à tese da
igualdade, dotou-se a ordem jurídica de mecanismos viabilizadores das promessas inseridas na
Lei Maior, apropriando à jurisdição a tarefa gloriosa de responder satisfativamente às pretensões
deduzidas em juízo e que buscassem ver materializados aqueles conteúdos próprios a tais normas.
Nessa senda surgiram diversos instrumentos; dentre eles ressaltamos a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão
28
e o mandado de injunção,
29
que, com perfis próprios, têm
o objetivo comum de tornar praticável a Constituição em todo o seu espectro.
Todavia, enquanto se buscava, seja pela releitura do caráter eficacial das normas
programáticascomo será tratado a seguir , seja pela disponibilização de novos procedimentos,
parte da doutrina investia, agora, na desqualificação dos mesmos como aptos a serem utilizados
com a finalidade para a qual foram criados, seja por entenderem não serem aplicáveis a tais
situações, seja por exigirem determinadas características para a legitimação ativa, seja, ainda,
por colocarem em contraposiçãoapesar de tudo ser Estadoa ação executiva, a legislativa
e a jurisdicional, dando a entender que à jurisdição não se poderia atribuir a competência para
atribuir materialmente ao cidadão o conteúdo da Constituição.
3.3 A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Quando pensamos em concretização dos conteúdos dos direitos humanos, particularmente
os de segunda geração (ou dimensão, como preferem alguns), propomos que tal enfrentamento
deva ser feito sob duas perspectivas distintas, sem que sejam excludentes.
28
Muito embora este instrumento esteja fragilizado em razão do perfil que lhe foi dado pelo legislador
constituinte, particularmente em razão da legitimidade ad causam restrita, não há que se removê-lo do
elenco de possibilidades que justificam uma hermenêutica constitucional viabilizadora dos conteúdos
sociais nela expressos.
29
Adiante referiremos alguns aspectos relativos a esse remédio constitucional que nos parece de todo
importante para a temática ora debatida.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
89
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
(A) Em um primeiro plano deve-se pensar em uma vertente de concretização pelo Estado,
ou seja, é de verificar-se o papel do ente público estatal para que se obtenha o máximo de
efetividade, assim como o máximo de adequação dos conteúdos que lhe são próprios. Por
evidente que a ação pública estatal deverá incluir não apenas o reconhecimento em nível
legislativo expresso ou implícito – por uma cláusula constitucional aberta( vide art. 5
o
da CF/
88) que, como visto, tem serventia fundamental no âmbito das liberdade negativas, mas é
insuficiente já na seara dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Se tratamos das liberdades positivas, a essa ação do legislador – pelo reconhecimento e
pela regulação – é imprescindível que se agregue uma atuação promotora, a qual se funda em
geral na ação executiva do Estado colocando em prática conteúdos reconhecidos pelo Direito
Positivo. Esse caráter prestacional se vincula inexoravelmente à implementação dos direitos
sociais, econômicos e culturais, se colocando todos os questionamentos referentes aos projetos
de reforma do Estado, em particular aqueles dotados de um ideário neoliberal/capitalista.
Portanto, quanto à implementação dos conteúdos de tal geração de direitos humanos, é
inafastável a necessária compreensão dos contornos próprios às crises do Estado contemporâneo,
nos seus aspectos conceituais (em particular o problema da soberania) e estruturais (no que diz
com os problemas financeiros, ideológicos e filosóficos do Welfare State).
30
De outro lado, é preciso que se pense a concretização dos direitos humanos a partir do
prisma da jurisdição, muito embora à função jurisdicional seja atribuída expressão fundamental
quando estejamos frente aos direitos de terceira geração, o que não a afasta da problemática
ora enfrentada. Se pensarmos, nos limites deste trabalho, a função da jurisdição em uma
perspectiva ampliada, que inclua não apenas a ação do agente público encarregado das
atribuições afetas à função pública estatal, mas incorporando algo que poderíamos denominar
como uma prática jurídica comprometida que congregue todos os operadores jurídicos,
poderíamos refletir, aqui, acerca da necessidade de, com o alargamento e aprofundamento dos
catálogos de direitos humanos, enfrentarmos o problema de como tornar tais conteúdos
usufruíveis pelos cidadãos.
Temos, portanto, um problema ampliado. Temos um problema de teoria jurídica
constitucional que se inicia com a compreensão mesma do perfil das normas que introjetam
tais conteúdos e que aparecem, muitas vezes, apenas como embelezamentos estratégicos e
legitimadores da ordem normativa estatal, sem se refletirem no cotidiano prático do cidadão.
30
A respeito ver, do autor, As Crises do Estado Contemporâneo, in América Latina: cidadania, desenvolvimen-
to e Estado.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
90
Aqui se põe a necessidade de referirmos e refletirmos acerca das ditas normas programáticas
e de sua concretização assentada na idéia de ótima concretização da norma, assentada em
princípios tais como o da unidade constitucional, concordância prática, exatidão funcional,
efeito integrador e força normativa da Constituição (máxima efetividade), como explicita Konrad
Hesse
31
em seus trabalhos. Portanto, a implementação dos conteúdos de direitos humanos, em
particular os positivos, implicam a necessária compreensão da ação jurídica assentada em uma
prática comprometida e assente em uma teoria engajada, em que a Constituição não seja
percebida exclusivamente como uma folha de papel.
32
Por outro lado, a questão jurisdicional – como aqui entendidarefere, ainda, a necessidade
de que, para além da compreensão do tema, façamos uma utilização dos instrumentos
procedimentais para fazer valer os seus conteúdos, apropriando-nos do que o próprio texto
constitucional coloca à disposição do cidadão. Assim, em situações individuais temos o habeas
corpus, habeas data e o mandado de segurança; para situações coletivas temos o mandado de
segurança coletivo; para as situações que envolvem interesses difusos temos a ação popular,
ação civil pública, além de devermos considerar as possibilidades postas pelo mandado de
injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Por óbvio que não se trata de tarefa fácil, em quaisquer dos aspectos acima expressos,
particularmente quando tomamos como pano de fundo o Estado contemporâneo e sua
conformação e caráter da formação jurídica dos atores envolvidos. Ou seja: o cenário que
dispomos nos conduz a circunstâncias complicadoras das já difíceis tarefas que temos.
É preciso que saibamos que a Constituição como documento jurídico-político está imersa
nesse jogo de tensões e de poderes, mas é indispensável que tenhamos presente, os que
militamos no Direito Constitucional e os direitos humanos, também, que a Constituição não é
programa de governo, ao contrário, são os programas de governo que precisam se
constitucionalizar, o que envolveria, ainda, um discurso competente acerca da mutação
constitucional e do controle de constitucionalidade, os quais afetam indelevelmente o problema
da concretização dos direitos humanos.
(B) De outra banda seria preciso pensar a questão da concretização dos direitos humanos
a partir de uma perspectiva social, para o quê apenas faremos menção.
31
Ver o seu A Força Normativa da Constituição. Para o trato da questão hermenêutica, ver Hermenêutica
Jurídica (em) Crise, de Lenio Luis Streck.
32
Ver Ferdinand Lassale, Que é uma Constituição, passim.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
91
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
Ou seja: de que estratégias deveriam lançar mão, além daquelas já apontadas, os atores
sociais para verem materializadas as políticas humanitárias erigidas ou não – uma vez que
poderiam agir com o objetivo de verem satisfeitas pretensões novas emergentes de novos
contextos e conflitos – como direitos fundamentais.
Por óbvio que as possibilidades de verem satisfeitas tais pretensões pode, nos dias de
hoje, ser pensada a partir de uma dupla via. Na primeira, por pretensões dirigidas à autoridade
pública estatal, buscando fazê-los valer desde alguma estratégia positivo/prestacional ou negativa
– na dependência do conteúdo da pretensão – por parte do Estado, de suas funções, de suas
agências ou agentes.
Na segunda, poder-se-ia supor um processo de autonomização social – o que não significa
adoção de uma matriz (neo)liberal/capitalista – que conduzisse a uma apropriação coletiva
das incumbências necessárias à efetivação de tais conteúdos. Tal efetivação dar-se-ia, então, a
partir de um comprometimento coletivo pelo bem-estar comum, desde a assunção de tarefas
sociais no próprio âmbito da sociedade e pelos atores sociais os mais diversos, independizando-
se de amarras, muitas vezes, intransponíveis, próprias às características estruturais do Estado
contemporâneo, como Estado do Bem-Estar Social em suas diversas experimentações práticas.
Aqui e dessa forma poder-se-iam incluir diversas experiências que vão desde uma
“flexibilização” participativa da democracia representativa até a implementação mesma de políticas
públicas autônomas que “rompem” ideologicamente com o caráter transferencial adrede ao
modelo representativo.
4 O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS
4.1 DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO. DE NOVO!
O processo de mundialização, como preferem os franceses, ou globalização econômica
implica uma radical mudança no perfil do Estado contemporâneo,
33
particularmente em seu
caráter soberano, o que inexoravelmente se reflete sobre a sua capacidade de auto-organização
Daí derivam, para o tema em tela, conseqüências significativas na medida em que a
fragilização das estruturas estatais e a perda de sua centralidade exclusivista e superior faz
repensar a questão constitucional, posto que as constituições foram sempre o reflexo da
ocorrência do poder soberano dos Estados nacionais dotados de um territórioelemento
objetivoe de um povoelemento subjetivosobre e para os quais se constituíam e
33
Sobre o tema ver: Morais, Jose Luis Bolzan de. As Crises do Estado Contemporâneo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
92
organizavam em um documento legislativo supremo as formas e os conteúdos da vida política
e social da comunidade.
Desaparecido, transformado ou minimizado o poder característico do Estado modernoa
soberania , pode-se perguntar para onde se dirige o constitucionalismo, em especial quando
o agigantamento do poder privado faz sombra à tradicional suprema potestade estatal,
implicando, muitas vezes, na sua incapacitação em reagir ou controlar as decisões tomadas
alhures, ou mesmo ter de se adaptar aos interesses e vontades do capital transnacionalizado,
em um mundo onde, como diz J. E. Faria,
34
a globalização econômica está substituindo a
política pelo mercado, como instância privilegiada de regulação social, onde um pluralismo
jurídico marcado pela desinstitucionalização do direito açambarca cada vez mais espaçoslex
mercatoria, direito marginal, etc., ou à pax americana imposta pelas possibilidades militarizadas
de definir os rumos da política em alguns locais do planeta.
Assim, se constrói um quadro em que essa soberania compulsoriamente partilhada, sob
pena de acabar ficando à margem da economia globalizada, tem obrigado o Estado-nação a
rever sua política legislativa, a reformular a estrutura de seu Direito Positivo, a redimensionar
a jurisdição de suas instituições judiciais mediante amplas e ambiciosas estratégias de
desregulamentação, deslegalização e DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO, implementadas paralelamente à
promoção da ruptura dos monopólios públicos (grifo nosso).
Nesse quadro dramático de concorrência de poderes, a articulação entre esses diversos
espaços muitas vezes aponta para a flexibilizaçãopara usar um termo da modado
constitucionalismo, em sentida fragilização das conquistas sociais obtidas ao longo de séculos
de luta cidadã.
De outro lado, deve-se ter presente que tais questionamentos devem vir acompanhados
por uma leitura estratégica de um dos temas mais centrais para os homens, qual seja os direitos
humanos, que conduza a uma percepção não apenas das transformações que se operam nos
seus conteúdos tidos como própriose aqui observamos que, como adverte Norberto Bobbio,
35
os direitos humanos não nascem todos de uma vez, eles são históricos e se formulam quando
e como as circunstâncias sócio-histórico-políticas são propícias, e é por isso que se fala em
gerações de direitos humanoscomo também a necessidade que temos da dar-lhes efetividade
34
Ver, do autor: Direitos Humanos e Globalização Econômica: notas para uma discussão. Revista O Mundo
da Saúde.
35
Ver: Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos, passim.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
93
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
prática, até mesmo lançando mão da perspectiva globalizante utilizada pelo capital, mas, então,
sob a lógica humanitária.
Este parece ser o grande ponto de estrangulamento de inúmeras questões ligadas a essa
temática e, para podermos traçar um perfil mais ampliado dessa discussão, parece-nos
indispensável que tenhamos presente e repisemos alguns tópicos preliminares.
Se, de um lado, o reconhecimento dos conteúdos das várias gerações de direitos humanos
parece ser algo com o que as diversas correntes ideológicas sustentadoras dos mais diferentes
governos podem conviver e, mais do que isso, buscar legitimação interna e internacional, de
outro, a tentativa de dar-se efetividade a eles esbarra nos mais diferentes empecilhos, seja de
ordem prático-políticae aí estão os inúmeros governos autoritários espalhados pelo mundo
, seja de ordem teórico-jurídicae aí estão as posições da tradição jurídica do Estado moderno,
em especial naqueles países orientados pela tradição jurídica romano-germânica, que impõem
uma postura contraditória em face de uma convivência de ordens jurídicas diversas,
particularmente entre o direito interno e o direito internacional, ou pela supremacia de um
discurso jurídico liberal que privilegia a figura do indivíduo como titular do direito desvinculada
de suas relações sociais ; seja, ainda, de ordem econômicae aí estão as propostas neoliberais
orientadas por um projeto econômico globalizado, no qual a orientação da política e do jurídico
reféns da economia financeira do capitalismo neoliberalse dá sob a égide de um discurso
calcado nas idéias de eficácia, flexibilização, desregulação etc., como apontado acima.
Pode-se sugerir, assim, que nesse quadro, mais do que as estratégias normativas com base
constitucional, é o próprio sentido do poder político democrático representativo que se dilui,
pois:
“(...) O aparelho de Estado se divide em setores que lidam com a economia, ditos sérios, com
os maiores recursos, enquanto os que tratam da cultura, meio ambiente e ciência passam por
secundários descartáveis, por luxo.
(...) O resultado é que as autoridades eleitasisto é, representativasforam esvaziadas de seu
poder...na verdade, ele até deixou de ser um poder! O poder que subsiste é um que nunca foi
eleito, o das finanças que rodam pelo mundo.
(...) Haverá, talvez, um poder cujos circuitos de comunicação se tornem financeiros; cujo
discurso aos homens se revista de uma objetividade fria, gelada, a dos números que tornam necessária
tal ou qual receita (a privatização é, delas, a mais visível); cuja linguagem, por isso mesmo, deixa de
ser aberta à interlocução (àquela diversidade de opiniões básica na democracia), para se travestir
de uma necessidade diante da qual empalideceria a própria ciência exata nos tempos do
determinismo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
94
(...) Da tese de que a economia dita o rol de possibilidades, àquela segundo a qual ela determina
a necessidade, vai só um passo.”
36
Apesar disso, cremos ser importante recuperar/retomar o debate acerca da matéria visando
compartilhar algumas preocupações no sentido de buscar mecanismos que nos permitam dar
maior efetividadeno sentido dado pelo constitucionalista português Jorge Mirandapossível
aos conteúdos normativos reconhecedores dos direitos humanos em suas diversas expressões.
Pode-se dizer que, para além dessa pretensão primária, muitas outras se colocam, podendo-
se aduzir que:
(1) em primeiro lugar está, sem dúvida, a importância da temática, a qual veicula as
preocupações relativas ao que há de fundamental para a construção de um quotidiano digno
para o ser humano;
(2) em seguida, pode-se referir a necessidade de constante revitalização não apenas dos
conteúdos próprios dessas pretensões humanitárias mas, sobretudo, aos mecanismos que lhe
dão efetividade, sendo indispensável que tenhamos sempre presente a necessidade de
construirmos instrumentos cada vez mais facilitadores da colocação em prática e da possibilitação
da usufruição destes conteúdos; e
(3) por fim, no caso brasileiro, é preciso que se busque, até mesmo pela experiência histórica,
instrumentalizar os operadores jurídicos com os meios necessários para uma prática comprometida
com a eficácia dos direitos humanos, especialmente a partir da promulgação da Carta Magna de
1988, que se assenta, fundamentalmente, na salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais,
na esteira, diga-se, do constitucionalismo contemporâneo, estruturado sob a opção do Estado
Democrático de Direito.
37
E, mais do que isso, como prática político-jurídica de enfrentamento
das estratégias de globalização dominadas pelas práticas do capitalismo financeiro.
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 referenda alguns conteúdos que nos
conduzem a compreendê-la como inserida no rol daquele constitucionalismo cujo objeto fundante
está nos direitos humanos, os quais devem orientar não apenas os trabalhos dos juristas,
como também a atuação das autoridades públicas e da sociedade como um todo.
4.2 GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E FLEXIBILIZAÇÃO. A FRAGILIZAÇÃO DAS CONQUISTAS
Assim, de que adianta retomar o tema dos direitos humanos e sua implementação, a partir
de uma estratégia constitucional e de hermenêutica de suas disposições, para consolidarmos e
36
Ver Renato Janine Ribeiro: Um adeus à democracia.
37
Para tanto basta uma leitura, e.g., do artigo 1
o
da CF/88. Ainda: Morais, Jose Luis Bolzan de. Do Direito Social
aos Interesses Transindividuais. O Estado e o Direito na ordem contemporânea.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
95
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
ampliarmos o seu catálogo, os mecanismos procedimentais e as suas instâncias de proteção se,
diante do atual quadro de crise das instituições públicas – crise do espaço público, da
democracia, do Estado enquanto tal e até mesmo de sua fórmula privilegiada de organização
pactada, ou seja, o constitucionalismo, etc. – as instâncias de regulação social – como é o caso
do Direito – estão se enfraquecendo ou, pior, desaparecendo, como espaços públicos de apelo,
em especial frente a estruturas e estratégias paraestatais e mercadológicas?
Não basta, nesse espectro, que nos restrinjamos ao debate jurídico-positivo acerca do
tema enfrentado, se não tivermos presente que o seu “sucesso” – efetividade – não depende
unicamente de seu reforço por mecanismos jurídicos, posto que estes, muitas vezes, se esfacelam
perante o estabelecimento de um espaço “público” privatizado ou paralelo.
Deve-se, por outro lado, observar uma inevitável correspondência entre os direitos humanos
e a democracia, posto que se esta se enfraquece são aqueles os primeiros e principais
prejudicados, onde, em muitas situações, se explicita a incapacidade de as instituições
democráticas enfrentarem a força não repercute únicamente no âmbito dos direitos humanos
civis e políticos, mas a todas as suas gerações, fazendo supor, como aponta Renato Janine
Ribeiro, de que somente é legítimo, na política, o regime democrático...
38
4.3 O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS, CONSTITUIÇÃO E JURISDIÇÃO ESTATAL
Mesmo assim, é de ser revisitado um tema tradicional para a teoria constitucional, mas
que assume foros diferenciados quando refletimos acerca do papel da jurisdição constitucional
na definição e compreensão do conteúdo material das Constituições, bem como de sua extensão,
assumindo verdadeiro foro de (re)construção hermenêutica cotidiana da norma constitucional
legislada, bem como quando nos damos conta do papel desempenhado pela função executiva
do Estado para o cotidiano da prática constitucional.
Nesse quadro de idéias, discutir o tema da mutação constitucional, mais do que refletir
sobre as estratégias legislativas permissivas de modificação, via poder constituído derivado,
39
seja por reforma ou revisão, impõe uma tomada de posição relativamente ao papel político-
constitucional assumido pelos órgãos jurisdicionais incumbidos da tarefa suprema de dizer o
que diz a Constituição.
38
Ver, do autor: Primazias da Democracia. Para ele: Este valor ético da democracia faz com que os direitos
que a constituem tenham primazia sobre todos os outros direitos possíveis do homem. Aliás, nosso tempo
mostra que tais direitos somente são assegurados quando há o núcleo duro dos direitos democráticos.
39
Acerca desta nomenclatura ver: Dantas, Ivo. O Valor da Constituição.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
96
Sob a primeira questão é possível, então, supor com José Acosta Sánchez
40
que ocorre ao
longo do século XX uma significativa mutação no universo do constitucionalismo, que consiste
“en la creciente presencia de un Derecho Constitucional jurisprudencial y el decreciente papel
del Derecho Constitucional formal”. Aqui ganha importância, para esse autor, a idéia norte-
americana de uma constituição viva que se transforma constantemente a partir da sua própria
prática, avançando para além mesmo da Constituição formal vigente e transformando-se em
seu prolongamento material, como demonstram as práticas das diversas cortes constitucionais
européias e norte-americanas ao longo deste tempo, bem como em razão da novidade que se
estabelece desde a experiência legislativa-jurisdicional comunitária por meio do direito
comunitário e da jurisprudência supranacional dos tribunais comunitários da União Européia.
Todavia, como salienta, deve-se considerar que
“el derecho constitucional jurisprudencial está determinado por complejos contextos sociales,
económicos y políticos, incluso transnacionales, y reclama un nuevo concepto de Constitución
material, sin nada que ver com ningún outro anterior del mismo nombre”.
Mas, mais do que isso, cremos que essa tomada de atitude por parte da jurisdição
constitucional estatal implica sobretudo a assunção por parte desta parcela da soberania pública
estatal de seus atributos e responsabilidades como poder/função de Estado com seus bônus,
mas também com seus ônus.
Ainda, em particular, tal reforço da tarefa de dizer o direito impõe a construção de uma
jurisdição sóbria e ao mesmo tempo soberba em sua prática cotidiana, quanto mais em países
em que a tarefa de controle de constitucionalidade se pratica concentrada e difusamente por
parte do órgão de cúpula da jurisdição, via ação direta de (in)constitucionalidade por ação ou
omissãoo que por si só caracteriza um déficit, uma vez que a necessidade desse tipo de
procedimento reflete uma inação do órgão a quem incumbia a tarefa de explicitar o conteúdo
da Constituição ou por todos os seus membros pelo mecanismo do incidente de
inconstitucionalidade.
41
De outra banda, convém, ainda, que reflitamos rapidamente sobre um outro tópico que
interfere substantivamente no constitucionalismo contemporâneo. Ou seja, aquilo que propomos
40
Ver seu Transformaciones de la Constitución en el Siglo XX, in Revista de Estudios Políticos (Nueva Época).
41
Não vamos adentrar, por despiciendo neste momento, em considerações relativamente à ação declaratória
de constitucionalidade, sequer na nova ação de descumprimento de preceito fundamental, recentemente
introduzida na experiência constitucional brasileira, nem ao menos nos instrumentos processuais constitu-
cionais viabilizadores da efetivação da Carta Magna e de seus conteúdos fundamentais.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
97
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
reconhecer como a executivização da Constituição ou sua administrativização economicista,
quando a função executiva do Estado passa a desempenhar um papel de relevância para a
(re)definição do conteúdo da Constituição utilizando-se dos mecanismos jurídico-constitucionais
e de um discurso economicista apocalíptico, totalizante e monocórdico, para promover uma
verdadeira desmontagem do texto constitucional originário patrocinado pela atuação do poder
constituinte, em um verdadeiro golpe de Estado institucional.
42
Ao que transparece de algumas experiências constitucionais contemporâneas periféricas o
direito constitucional passou a ser refém de uma lógica mercadológica da política, transformando
as constituições em prolongamentos subservientes aos programas de governo e rompendo
com seu caráter estabilizante e sua pretensão a uma certa perenidade, provenientes do projeto
liberal revolucionário vitorioso no final do século XVIII em seu núcleo político (ou político-
jurídico)sem que isso signifique um engessamento do real, ou uma vinculação estrita do ser
ao dever-serbem como destroçando conquistas sociais consolidadas
Nesse sentido, é evidente que, mesmo matizado pelo reforço do papel da função executiva
estatal assistido ao longo do século XX em face da mudança no perfil do Estado, assumido
como Welfare State, essa executivização/administrativização da Constituição experimentada
em diversos paísesdos quais o Brasil parece se notabilizarproduz um refluxo profundo na
prática constitucional, permitindo que se fale em um golpe de Estado institucional caracterizado,
em contraposição ao golpe de Estado governamental, pela remoção de regimes e não de
governos, posto que não entende com pessoas mas com valores, não busca direitos mas
privilégios, não invade Poderes mas os domina por cooptação de seus titulares; tudo obra em
discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público declarar suas intenções..., sendo,
então, o golpe dos ditadores constitucionais, fazendo mudar o teor, a substância e a essência
das instituições e não seus nomes.
4.4 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DAS CONSTITUIÇÕES. UM CAMINHO DÚPLICE
Deve-se ter presente, para além da carta de direitos fundamentais expressa em seu interior
e do caráter eficacial que lhe é atribuído (art. 5
o
, § 1
o
da CF/88), dentre outros, o disposto no
artigo 5
o,
§ 2
o
do texto constitucional brasileiro, in verbis:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.
42
Ver a respeito o significativo trabalho de Paulo Bonavides, intitulado Do País Constitucional ao País
Neocolonial.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
98
Essa norma inovadora constitui cláusula constitucional aberta, pois, a partir dela, pode-se
construir a hipótese que se assenta na perspectiva de que atribui natureza de norma constitucional
aos tratados de direitos humanos, a partir de uma interpretação sistemática e teleológica do texto
de 88, diante da assunção da dignidade humana e dos direitos fundamentais como axiomas do
fenômeno constitucional, o que se vincula à legitimidade material da Constituiçãouma
fundamentação substantiva para os atos do poder público afirmando-se como um seu parâmetro
material, diretivo e inspirador, o que é fornecido pelo elenco dos direitos fundamentais.
43
Assim, a atividade do jurista, como dito acima, deve ser a de consignar máxima efetividade
às normas constitucionais, ou seja, a uma norma constitucional tem de ser atribuído o sentido
que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as
outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. Este é um fator inafastável para o
trato da temática relativa aos direitos humanos e, mais ainda, para a compreensão do papel
desempenhado pelos tratados internacionais relativos aos direitos humanos, em um processo
que podemos chamar de internacionalização do direito constitucional que se complementa
pela internalização/constitucionalização do direito internacional público (dos direitos humanos),
uma novidade para o constitucionalismo atual.
Como diz Konrad Hesse,
44
a interpretação
45
tem significado decisivo para a consolidação
e preservação da força normativa da Constituição, estando submetida ao princípio da ótima
concretização da norma, para que, assim, se viabilize um espaço valorizado de globalização
desses conteúdos.
Nessa mesma linha pode-se incluir, ainda, o temário relativo aos processos de regionalização
dos espaços estatais ou, como preferimos, de montagem de estruturas supranacionais ao estilo
comunitário. Tal circunstância direciona o debate constitucional para um novo aspecto, qual
seja o de um constitucionalismo desvinculado dos Estados-nação, ou de um
supraconstitucionalismo alicerçado em bases comunitárias e com capacidade regulatória
superposta àquelas dos Estados parte dos blocos comunitários. Nesse espectro parece possível
acompanhar a conclusão de Oscar Vilhena Vieira
46
no sentido de que, no caso da integração
43
Nesse sentido temos inúmeros trabalhos de juristas, dentre os quais mencionamos: J.J.Gomes Canotilho,
Antonio Augusto Cançado Trindade, Celso Antonio Bandeira de Mello e Flavia Piovesan.
44
Ver, do autor, A Força Normativa da Constituição.
45
Com relação aos intrincados problemas postos pela hermenêutica jurídica, veja-se, por indispensável, a
obra de Lênio Streck, A Hermenêutica Jurídica e(m) Crise.
46
Ver, do autor, Realinhamento Constitucional, in Sundfeld, Carlos Ari e Vieira, Oscar Vilhena (orgs.). Direito
Global, p. 27
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
99
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
regional, não está ocorrendo apenas uma internacionalização do direito constitucional, mas
também uma constitucionalização do sistema regional sem, no entanto, a mesma força e
intensidade, uma vez que o fortalecimento deste último não vem acompanhado da sua
conformação aos princípios constitucionais. Lembra, ainda, este autor, da necessidade de ter-
se presente o déficit democrático presente na história da construção da União Européia, o que,
se transposto para a experiência latino-americana (MERCOSUL, em particular)despreocupando-
se de seu caráter eminentemente econômico até então , se agudiza diante do trágico histórico
autoritário próprio à região.
O ritmo de tal transformação, assim como o seu conteúdo, dependerão, parece-nos, em
muito da capacidade interventiva dos movimentos sociais e do poder de fogo da economia
pública regionalizada em contraposição às estratégias e pretensões autonomizantes do capital
transnacionalizado e de tendência monopolística.
É, a regionalização/comunitarização, um novo “mercado” constitucional que se abre, cujas
perspectivas ainda se colocam de maneira interrogante, podendo, eventualmente, abrir caminho
para um constitucionalismo planetárioo que é uma incógnita e coloca superlativamente a
questão democrática.
5 O BRASIL E OS DIREITOS HUMANOS
5.1 O HISTÓRICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
A história da positivação dos direitos humanos no Brasil muitas vezes está em desacordo
com a sua prática ao longo de nosso histórico político de nação independente.
47
O Brasil, por incrível, aparece dentre os precursores no reconhecimento constitucional do
conteúdo dos direitos do homem. Já na Constituição Imperial(1824), antecipando-se à Bélgica
(1831), havia a sua inserção no âmbito da Carta Magna, em seu artigo 179, reconhecendo
aqueles próprios à época.
De lá para cá pouco se operou nessa matéria em sentido positivo, tendo ocorrido, ao
longo destes anos, a incorporação paulatina das novidades humanitárias em sede constitucional.
Assim foi com a primeira Constituição da República que, em seu artigo 72, da mesma forma
que a Carta de 1934, em seu artigo 113, inseriu-se um catálogo de direitos fundamentais que,
com esta última, incluía os de natureza econômico-social mesmo que incipientemente, sob a
47
Vamos deixar de lado, não por desimportante, a questão do déficit democrático que caracteriza a história
latino-americana, devendo apenas fazer referência à difundida idéia de vivermos em um continente carac-
terizado por longos períodos de autoritarismo mediados por soluços democráticos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
100
influência da Constituição de Weimar de 1919, incluiu, por primeira vez, um título da ordem
econômica e social.
O interregno de 1937-1945 será submetido a um dos tantos períodos de exceção vividos
pelo país, onde, a partir de uma Lei Fundamental autoritária, de forte caráter corporativo,
contemplam-se os direitos e garantias individuais (art. 122), introduzindo-se os conteúdos de
corte social relativos às relações de trabalho, apesar de, na prática, o desrespeito aos direitos
humanos ser uma constante.
A partir de 1946, com nova Constituição, pequenas transformações são previstas, mantendo-
se o cerne até então consolidado. Inclue-se, então, a ação popular (art. 131), o direito à vida,
contendo, ainda, o que para muitos lhe é característico, um catálogo de direitos de importância
profunda.
Todavia, o autoritarismo se projeta novamente sobre o país com o golpe militar de 1964, o
qual, em 1967, impõe nova Carta marcada, a partir da edição do AI-5, pelo perfil da
excepcionalidade institucional e de práticas incompatíveis com os direitos humanos. Sua
trajetória curta, posto que profundamente transformada em 1969 (EC n
o
1, verdadeira nova
Constituição), no que diz com a extensão dos direitos e garantias explicitados em seu interior.
É a Constituição de 1988, produto de um processo constituinte congressualnão-exclusivo
que irá trazer, como corolário da longa e controlada abertura política iniciada pelo general
Geisel, profunda significação para a matéria dos direitos humanos, inclusive com um capítulo
específico sobre os direitos sociais apartado do título da ordem social, o qual aparece em
separado daquele da ordem econômica. Reflexo, para muitos, daquilo que marcou o
constitucionalismo de diversos países europeus, cujo histórico de passagem de uma versão
autoritária para a democracia se assemelha ao brasileiro,
48
a CF/88 aportou, já pela adoção da
República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito, um conjunto de direitos
fundamentais que referendam todas as gerações supostas de direitos humanos, abrindo-se
ainda para eventuais lacunas deixadas pelo constituinte no seu afã, e impôs, ainda, uma postura
compatível com tal proposição para quando de sua colocação em prática.
Assim, temos que a CF/88 oportunizou, para além do alargamento da carta de direitos
fundamentais, estratégias procedimentais viabilizadoras de sua implementação, além de impor
às autoridades públicas e à sociedade em geral uma postura compatível com uma visão positiva
dos direitos e garantias expressos e subentendidos, fazendo que a prática político-jurídica
deva ser pautada pelo afiançamento e concretização dos direitos humanos, propugnando-os
48
Veja-se, e.g., os casos da Itália(1947), Portugal pós-Revolução dos Cravos e Espanha, com o fim do
franquismo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
101
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
não apenas como pertencentes às gerações e seres do presente, como também uma herança a
ser legada incólume e maximizada para o futuro, pautando, cremos, o seu ideário pela dignidade
da pessoa humana.
5.2 A ORDEM SOCIAL NA CF/88
A ordem social ganha importância a partir da CF/88, quando se desvincula estruturalmente
da ordem econômica e forma o cerne da idéia de Estado Democrático de Direito inscrito no
artigo 1
o
da Carta Magna, como já explicitado, ao lado dos demais direitos humanos positivados
que formam o catálogo “aberto” dos direitos fundamentais pátrios.
Compõem esse Título constitucional a seguridade social, composta pela saúde, previdência
e assistência social, a ordem constitucional da culturacomo refere José Afonso da Silvaem
que estão presentes a educação, o ensino, a cultura, o desporto, a ciência e tecnologia, a
comunicação social e o meio ambiente, além das questões relativas a família, criança,
adolescente, idoso e indígena.
5.3 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO CONSTITUCIONALIZADO
Deixando de lado as demais matérias, é relevante considerar que, mesmo
particularizadamente, a questão do direito à educação, nele incluído o acesso ao ensino, precisa
ser enfrentada no contexto antes sugerido, sendo essa problematização, ao que nos parece,
inescapável para podermos melhor tratar o tema.
No que diz com o aspecto particular, parece-nos relevante referir que no contexto
contemporâneo a educação passa a ser, talvez, a “mercadoria” mais relevante socialmente, na
medida em que a detenção do conhecimento importa na apropriação de poder e na agregação de
valor aos bens e produtos levados ao mercado de consumo. Ou seja, os bens valem mais, muitas
vezes, pelo conhecimento tecnológico incorporado do que pelo conjunto de materiais empregados,
impondo-se, assim, a detenção do conhecimento como uma instância de autonomização das
sociedades e dos indivíduos diante da dependência e vinculação ao saber importado.
Por outro lado, a educação precisa ser percebida não apenas como o acesso ao conhecimento
posto como também a capacitação para o acesso ao conhecimento a ser construído, permitindo-se
uma formação constante e multifacetada, constituindo-se, com esse perfil, direito de todos e dever
do Estado, elevando-a à categoria de serviço público essencial que ao poder público impende
possibilitar a todos, daí a preferência constitucional pelo ensino público, pelo que a iniciativa
privada, nesse campo, embora livre, é, no entanto, meramente secundária e condicionada.
Para tal, impõe-se à educação o caráter de viabilizador do pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, a partir
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
102
de princípios tais como: igualdade no acesso, liberdade de “cátedra”, pluralismo, gratuidade
nos estabelecimentos públicos e qualidade.
Já no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos do Homem preconizava-se que toda
pessoa tem direito à educação, que deve ser gratuita, pelo menos no que concerne à elementar
e fundamental, obrigatória. Além disso, este documento refletia acerca do conteúdo e dos
objetivos do processo educativo, vinculando-o ao pleno desenvolvimento da personalidade
humana, e o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais,
favorecendo a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos
étnicos ou religiosos, promovendo o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para
manutenção da paz.
Nesse mesmo sentido caminhou, em 1990, a Declaração Mundial sobre Educação para
Todos, aprovada pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos e Satisfação das
Necessidades Básicas de Aprendizagem, em Jomtien, Tailândia, que, a partir da avaliação do
contexto mundial de crise e de deficiências na área da educaçãoentendida esta como um
direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro,
podendo contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e
ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e
cultural, a tolerância e a cooperação internacional , aprovou a Declaração que contempla:
(a) Cada pessoacriança, jovem ou adultodeve estar em condições de aproveitar as
oportunidades educativas voltadas para satisfazer a suas necessidades básicas de aprendizagem;
(b) Lutar pela satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos exige mais
do que a ratificação do compromisso pela educação básica (...), compreendendo: universalizar
o acesso à educação e promover a eqüidade, concentrar a atenção na aprendizagem, ampliar
os meios e o raio de ação da educação básica, propiciar um ambiente adequado à aprendizagem
e fortalecer alianças.
Parece-nos, assim, que nessa esteira insere-se o que poderíamos nominar projeto político-
institucional educacional brasileiro positivado na Constituição Federal de 1988desde a opção
pela forma de Estado Democrático de Direito, em seu artigo 1
o
e explicitado em capítulo
próprio da Ordem Social e na LDB (Lei n
o
9.394/20.12.96)
49
que, ao que parece, incorpora esse
sentido ao conferir à educação uma amplitude que se projeta para além dos muros dos
49
A Lei n
o
9.394/96LDB, produto de 8 anos de tramitação no Parlamento e de marchas e contramarchas em
razão dos diversos interesses em jogo, substituindo a antiga Lei n
o
5.692/71, é um complexo de 92 artigos
que, para além de explicitarem o próprio conteúdo (Seção I, do Capítulo III, do Título VIII da CF/88),
representam a consolidação dos aspectos gerais referentes à educação nacional, sem contudo evitar a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
103
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
estabelecimentos de ensino formais, incluindo a família, a convivência humana, os movimentos
sociais, as organizações da sociedade civil e outras manifestações culturais como espaços
propiciadores de conhecimento e forja do cidadão (art. 1
o
da LDB), muito embora as suas regras,
como não poderia ser diferente, dirijam-se à educação escolar em instituições próprias (art. 2
o
).
Desde logo cabe ressaltar que, sob essa ótica, a obrigação em face da educação caracteriza-
se como uma das obrigações fundamentais para o desenvolvimento da dignidade humana,
sendo que a
“obligación de realizar la enseñanza básica constituye un postulado mínimo para la realización
de la persona y para desarrollar en ella el sentido de la libertad y una conciencia crítica respecto a
las posiciones de poder (...) Constituye así también una exigencia apoyada en la creencia del valor
que posee la cultura en la consecución y realización de los valores superiores del sistema jurídico-
político”.
50
De outra banda, não se pode olvidar que, como Estado Democrático de Direito, o Brasil
assume o caráter dessa forma estatal, tendo presente que
“quando se inventó la fórmula del Estado de Derecho Democrático y Social, y en su virtud la
sociedad puede y debe decidir democráticamente sobre su estructura económica y social, se hizo
igualmente patente que ésta tiene solamente sentido si abarca no sólo los aspecto económicos,
sino también los educativos; es decir, si confiere a todos las mismas oportunidades educativas y
destina a fines educacionales abundantes medios públicos”.
51
Assim,
“si consideramos a la educación como derecho subjetivo de prestación, exigible frente a los
poderes públicos, es razonable que el Estado tenga la obligación de garantizar plazas suficientes en
determinados niveles de la enseñanza (...) En efecto, el desarrollo de la educación, fundamento del
progreso de la ciencia y de la técnica, es condición de bienestar social y prosperidad material, y
soporte de las libertades individuales en las sociedades democráticas (...)”.
52
flexibilização de seu conteúdo diante dos interesses em oposição que não encontraram seu termo médio,
ficando para regulamentação posterior. Como não poderia deixar de ser, o seu texto, bem como a
hermenêutica proveniente de sua prática, devem estar em conformidade com as normas e princípios
expressos na Constituição Federal, não podendo, em hipótese alguma, permitir-se sequer a tentativa de
inversão dos degraus da pirâmide normativa.
50
Ver: Roig, Rafael de Asis. Deberes y Obligaciones en la Constitución, pp. 410-411.
51
Ver: Abendroth, Wolfgang. El Estado de Derecho Democrático y Social como proyecto político. In VV.AA.
El Estado Social. p. 37.
52
Roig, Rafael de Asis, op. cit., p. 411.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
104
Se a lição de direito internacional e constitucional acima expressa se aplica à realidade
institucional brasileira em face da opção constitucional, não muito diversa é a realidade da
legislação ordinária, até mesmo porque os sistemas jurídicose histórico-políticos que
orientaram o constituinte são semelhantes (retomada democrática após período autoritário)
se aproximam. Assim, podemos buscar na tradição espanhola para dizer que lá, como aqui, em
particular desde a vigência da LDB,
“hoy en dia, la obrigatoriedad y la gratuidad están estrechamente vinculadas, y así, la Ley 8/85,
en su artículo 1.1, dispone: Todos los españoles tienen derecho a una educación básica que les
permita el desarrollo de su propia personalidad y la realización de una actividad útil a la sociedad.
Esta educación será obligatoria y gratuita en el nivel de educación general básica y, en su caso, en
la formación profesional de primer grado, así como en los demás niveles que la ley establezca”.
53
Portanto, guardadas as diferenças, é preciso termos presente que a base informadora dos
direitos sociais, incluído aí o direito à educação, imprescinde da compreensão da infra-estrutura
de base sobre a qual se assenta o edifício político-institucional pátrio, para, a partir daí, podermos
lidar com consciência com o problema específico, o que buscamos fazer nos tópicos precedentes.
É de se ter presente que, sob o modelo federativo em que o pressuposto do Estado
Democrático de Direito diz respeito não apenas ao ente federado superior mas a todos os
níveis da Federaçãono Brasil: União, Estados, Municípios e Distrito Federal , o compromisso
constitucional estatal para com a educação implica tanto à União quanto às demais unidades
da Federação (art. 211 da CF/88)muito embora a LDB tenha imposto aos Municípios uma
responsabilidade acrescida relativamente à execução da educação infantil e fundamental,
inclusive tendo receita vinculada aplicável prioritariamente no sistema público de ensino (vide
arts. 212 e 213 da CF/88)tendo-se presente que esta lei, como não poderia deixar de ser, em
razão do princípio da unidade, que implica a hierarquização das normas jurídicas no interior
do ordenamento jurídico, muito embora direcione os recursos públicos às escolas públicas
(art. 69), deixa em aberto a possibilidade de poderem ser dirigidos às escolas comunitárias,
confessionais ou filantrópicas que comprovem os requisitos expressos no texto legal (art. 77).
Questão fundante para o debate diz com a gratuidade do ensino, a qual é assegurada no
ensino fundamentalque compõe a educação básica, ao lado da educação infantil e do ensino
médio , como definida pelo artigo 21, I, da LDB, a qual deverá ter por finalidade desenvolver
o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e
fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (art. 22 da LDB), e
53
Id. ibid, p. 412
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
105
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
prometida progressivamente para os demais níveis, atrelado que está pelo princípio
constitucional do ensino gratuito em estabelecimentos públicos (art. 206, IV da CF/88) e da
universalização do acesso a esse nível de formação educacional (art. 208, I da CF/88).
54
Este
parece ser aspecto por demais relevante àqueles que militam no âmbito da infância e
adolescência, posto que diz respeito de perto com o enfrentamento cotidiano dos conflitos que
lhes são trazidos, até mesmo porque a questão social não pode ser tratada como caso de
polícia mas, sim, como caso de política, impondo que se a pense no contexto global de
construção do indivíduo-cidadão, para o que a educação contextualizada e multifacetada ocupa
importância fundamental.
Nesse sentido o acesso gratuito ao conhecimento, compreendido de maneira ampla, além
de tradição pátria, configura-se estratégia constitucional adotada em consonância com o perfil
da sociedade contemporânea, onde a educação assume caráter sócio-econômico estruturante.
Não por outro motivo que, desde logo, o constituinte expressou o compromisso público-
estatal com a gratuidade do ensino, mesmo que de maneira progressiva, em consonância com
a orientação dos documentos internacionais pertinentes ao tema, os quais ingressam em nosso
conjunto normativo pela porta aberta pelo artigo 5
o
da CF/88, como acima demonstrado.
5.4 MECANISMOS CONSTITUCIONAIS: O MANDADO DE INJUNÇÃO E CONTROLE INCIDENTAL DE
CONSTITUCIONALIDADE
Para além do reconhecimento substancial é necessário intrumentalizar-se a sociedade para
a concretização dos conteúdos reconhecidos, atribuindo-se-lhe legitimidade para demandar,
por instrumentos próprios, ágeis e eficazes, no sentido de ver satisfeitas as pretensões surgidas
a respeito.
Nessa seara, o constituinte de 1988 foi pródigo. Além de manter estratégias procedimentais
consolidadas, trouxe para o constitucionalismo pátrio um conjunto de instrumentos adaptados
ao perfil socializante da Carta promulgada. Foi assim que, para além da ampliação do perfil da
ação popular e da ação civil públicaas quais não vão nos ocupar neste trabalho , incorporou-
54
É necessário que se tenha presente que nem sempre a gratuidade da oferta significa incondicionalmente
garantia de acesso universalizado, como ocorre, e.g., com o ensino médio no Brasil, em que a universalização
apresenta-se como uma promessa a ser perseguida veja-se que isto não significa, a contrário senso, o
descomprometimento do ente público com a sua implementação, de acordo com o artigo 208, III da CF/88.
Por outro lado, é interessante notar que o texto da legislação infraconstitucional pratica uma discriminação
positiva ao prever o acesso à educação especializada aos portadores de necessidades especiais, bem
como a gratuidade em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade (art. 4
o
, I, III e IV da
LDB e 208, IV da CF/88).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
106
se a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, já referida, e o mandado de injunção, o
qual, por seu perfil e potencialidade, parece-nos merecer atenção pelos operadores jurídicos.
O mandado de injunção, um dos mais oportunos institutos jurídicos/políticos criados
pelo legislador constituinte, próximo da tradição anglo-americana, se limita a proteger direitos,
liberdades e prerrogativas constantes do texto da Constituição Federal
55
na intenção de torná-
los concretos no dia-a-dia do cidadão, malgrado a omissão daquele a quem incumbia a tarefa
de patrocinar o ato exigido pela Lei Fundamental.
Ora, nesse sentido, sua principal finalidade consiste assim em conferir imediata
aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inertes em
virtude de ausência de regulamentação.
56
Portanto, desde sempre esse remédio constitucional veio para fazer eco ao conjunto do
texto constitucional, a partir da instrumentalização do cidadão em face da apatia da autoridade
pública.
Dois aspectos sobrelevam. O primeiro diz com a extensão do próprio instrumento, a qual
parece-nos deva ser a mais ampla possível, inclusive para justificar-se a sua inclusão ao lado
da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do próprio perfil socializante de uma
Constituição que erige o país em Estado Democrático de Direito.
Em segundo lugar, ao lado da oferta do instrumento constitucional põe-se o compromisso
social de a cidadania fazer-se presente na tarefa de pôr em prática o texto constitucional
promulgado, bem como atribui-se à função jurisdicional um compromisso jurídico-político de
comprometimento com os conteúdos constitucionais, sem que isso signifique o açambarcamento
das demais funções de Estado.
Por outro lado, temos que o tema a ser enfrentado seria o da competência e incumbência
relativamente ao controle de constitucionalidade por omissão. Para além da ação própria, com
as limitações de legitimação impostas, parece-nos que, no contexto de um sistema dúplice de
controle de constitucionalidadeconcentrado e difuso , a função jurisdicional, em particular
aquela especializada que trata de matérias afetas à ordem social, tem a responsabilidade de
promover um controle específico de constitucionalidade, independentemente de acionamento
por eventual interessado, inclusive em face da inércia da autoridade (omissão), permitindo-se,
dessa forma, que venha a prover pretensões sociais incluídas no universo da cidadania
55
Ver: Streck, Lenio. O Mandado de Injunção no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas. 1991,
pp. 77 e 27.
56
Ver: Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 426.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
107
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
constitucionalmente estabelecida, como no caso específico do direito público subjetivo de
acesso ao ensino obrigatório e gratuito expresso no artigo 208, § 1
o
da CF/88.
No caso da educação nacional, o texto constitucional já o antevia, a nova LDB explicitou o
compromisso do poder público com esse direito público subjetivo e, para além, ao abrir à
cidadania e às instituições que de alguma forma a representam a possibilidade de acionar o
poder público exigindo o seu cumprimento, deixou a cargo da função jurisdicional a atribuição
de garantir as possibilidades de usufruição, por meio de procedimento próprio, do mesmo,
tudo em conformidade com o artigo 5
o
da Lei n
o
9.394/96
Cumpre, assim, à jurisdição sua tarefa constitucional de prestar a solução ao caso concreto
mas, sobretudo, de guardião do texto constitucional e de sua estrutura fundante, o Estado
Democrático de Direito, dando concretude às previsões contidas no pacto originário da sociedade
política e, antes de tudo, contribuindo para forjar uma civilização comprometida com os valores
insculpidos nas normas e princípios positivados refletidos no asseguramento da dignidade do
ser humano.
Com esse pano de fundo projeta-se sua atribuição de guardião da Constituição, tanto com
um sentido paralisante dos atos comissivos e omissivos contrários ao texto constitucional,
como com um sentido atuante de função do Estado que, como as demaislegislativa e executiva
, tem sua ação orientada pelo compromisso em dar vida à letra da lei contida na Carta Política,
conferida por esta à jurisdição, a qual incumbe a todos os seus membros. Daí, talvez, provenha
o sentido maior da legitimação de um atributo do Estado que, ao contrário dos demais, retira-
a não da regra básica da democraciaa maioriamas de sua ação concretizante das pretensões
sociais constitucionalizadas, como pretende o garantismo de Ferrajoli.
57
6 NOTAS FINAIS
O que pensar então para o projeto constitucional presente e futuro, nele incluídos os
direitos humanos? Há, como querem alguns, o seu esgotamento em razão de uma nova
conformação/organização político-econômica em que as bases dos Estados nacionais, berço
do constitucionalismo, se esvaem abrindo caminho para um pluralismo jurídico
desconstitucionalizante e para uma flexibilização generalizada do Direito. Desfaz-se o Estado
Constitucional e em seu lugar insere-se uma ordem sem limites geográficos e conteúdos flexíveis,
sem espaços próprios pré-determinados, sem um pacto estruturante organizador e ordenador
57
Ver: Ferrajoli, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias. In: Oliveira Jr., José Alcebíades de. O Novo em
Direito e Política.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
108
do ser-estar no mundo, como um parâmetro de justiça da comunidade, como menciona Oscar
V. Vieira,
58
substituído por um mundo governado única e exclusivamente pelo princípio da
utilidade e da eficiência.
O que pensar do futuro do constitucionalismo. Por que “fazer” direito constitucional? Somos
uma espécie em extinção? Dinossauros que não reconhecemos o nosso desaparecimento da
face da terra? Emperradores do desenvolvimento tecnológico e econômico? Castradores da
eficiência do mercado? Alimentadores da preguiça sediciosa?
59
O que mais esperar de uma estratégia jurídica construída há mais de dois séculos, fruto
da revolução e da conquista burguesas frente ao poder absoluto dos monarcas, transformada
pela intervenção dos movimentos sociais? O que nos leva a labutar e esbravejar contra e frente
o desmonte de um projeto liberal universalizado pelas massas populares que buscaram, da
mesma forma que a burguesia ascendente, consolidar conquistas políticas plasmando-as em
normas jurídicas e dando-lhes um caráter diferenciado, envolvendo-as em um certo manto
protetor de intangibilidade relativa?
Há um papel reservado às constituições e ao direito constitucional no presente e no futuro?
Ou estamos aqui prestando uma homenagem póstuma a essa obra revolucionária?
60
Diz Oscar V. Vieira:
“O paradoxal é que apesar desse consenso em torno das qualidades do constitucionalismo, vive-
se hoje uma espécie de “mal-estar da Constituição”, no dizer de Canotilho, decorrente de um rápido
processo de integração regional e mesmo de globalização econômica. Assim, para muitos o modelo
constitucional está se esgotando, devendo ser substituído por um direito sem fronteiras, produzido de
forma reflexiva, pelas mais variadas fontes. Para os mais idealistas, por outro lado, coloca-se hoje a
possibilidade de realização de um constitucionalismo universal, como projetado na Paz Perpétua, de
Immanuel Kant, aproveitando um momento de fragilização das soberanias.”
Cremos que, mesmo com as adequações necessáriasnão podemos constituir a sociedade
do século XXI como se estivéssemos moldando uma sociedade do século XVIII, por óbvio,
sequer podemos pretendê-la unicamente assentada em bases reflexivas , o papel da
Constituição não está terminado, mesmo que esteja passando por uma reformulação profunda
produto de uma realidade nova que impõe seja ordenada levando-se em consideração o seu
cunho aberto e universalizado.
58
Ver este autor, op. cit., p. 48.
59
Sobre a questão do tempo: Morais, Jose Luis Bolzan de. A Subjetividade do Tempo. Uma perspectiva
transdisciplinar do direito e da democracia.
60
Op. cit., pp. 19-20.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
109
CAP.2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA
José Luis Bolzan de Morais
É preciso que remontemos o constitucionalismo para que se coloque à disposição dos
seres humanos aquilo que ele tem de melhor, o estabelecimento de parâmetros para a
organização social e a conduta humana em bases democráticas, entendida a democracia, como
diz Bonavides,
61
por direito, por princípio de justiça, por atributo do gênero humano, por
dimensão superior da liberdade; democracia, enfim, como semblante político de que se reveste
a dignidade da pessoa humana, sujeita, de último, a nunca se afirmar num país que a corrupção
das instituições, a catástrofe do Estado de Direito, a incapacidade dos governos e a traição das
elites arrastaram ao despenhadeiro do neocolonialismo.
Malgrado o desprestígio prático suportado pelo constitucionalismo de há muito, produto
muito mais de atitudes deslegitimantes assumidas por aqueles responsáveis por sua
implementação, incapacitando-a de tornar-se prática constante da cidadania, o seu prestígio
teórico deve ser repisado para que possamos recuperar ao menos um certo padrão objetivo do
justo
62
que a modernidade jus-política nos legou.
Para que servem essas interrogações no entorno do tema proposto? Para tudo,
responderíamos. Não podemos pretender que, para enfrentarmos, na perspectiva sugerida ao
longo do texto, os direitos humanos, em qualquer de seus conteúdos, o possamos fazer sem
termos presente a realidade constitucional atual.
Em primeiro lugar por ser a Constituição o local próprio para o reconhecimento e
desenvolvimento do direito humanitário. Depois por termos presente a crise que se abate por
sobre toda a tradição constitucional.
Ao final, e estrategicamente, é preciso que saibamos, mesmo imersos nesse contexto crítico,
tirar o proveito possível dos conteúdos e procedimentos constitucionais positivados.
Foi o que pretendemos apontar, pensando o Direito Constitucional como locus privilegiado
de consolidação de pretensões democráticas da cidadania, sendo que são os operadores jurídicos
aqueles que têm a responsabilidade, não apenas por dever de ofício, de concretizá-los,
atribuindo o melhor resultado possível às instituições constitucionalizadas.
Mais, ainda, quando enfrentamos a questão do acesso à educação, que, para além de ser
a reserva de capital do futuro próximo, se não já do presente, significa a possibilidade de
resgate para a vida de milhões de excluídos não apenas do conhecimento mas, e
conseqüentemente, da dignidade de viver. Significa, para além, a possibilidade de resgate
ético do homem em um projeto educativo alicerçado nos direitos humanos.
61
Ver, do autor, op. cit., p. 17.
62
Ver: Dallari, Dalmo, op. cit., passim.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
110
Voltamos ao início para termos presente que os direitos fundamentais sociais, mais do
que nunca, não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas, sim, premente
necessidade, já que a sua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementares
valores da vida, liberdade e igualdade. A eficácia (jurídica e social) dos direitos fundamentais
sociais deverá ser objeto de permanente otimização, na medida em que levar a sério os direitos
(e princípios) fundamentais corresponde, em última análise, a ter como objetivo permanente a
otimização do princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublime expressão
da própria idéia de Justiça!
63
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ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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MÓDULO II
ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE
GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
114
SUMÁRIO EXECUTIVO
UMA DÉCADA SE PASSOU DESDE A INSTAURAÇÃO, entre nós, da doutrina da proteção integral,
materializada na Constituição Federal de 1988 e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. Nesse espaço de tempo, as organizações, as instituições públicas e privadas, os
Conselhos de Direitos e tantos outros organismos buscaram adaptar-se à nova maneira de se
desenvolver e aplicar o Direito da Criança e do Adolescente.
Acostumados a aceitar a verticalização das políticas de atendimento para a área infanto-
juvenil, foi necessário realinhar as práticas ao perceber que elas deveriam ser horizontalizadas,
ou seja, desenvolvidas no local onde haveriam de ser aplicadas. Houve uma mudança radical
de paradigmas, com a implantação de uma doutrina que invertia a polaridade de
responsabilidades, alternando, inclusive, o local de implantação dessa nova dinâmica.
Num primeiro momento essa descentralização concretizou-se pela municipalização do
atendimento e pela participação direta da sociedade no planejamento das ações que seriam
desenvolvidas em âmbito municipal. Aliado à regionalização do atendimento, o trabalho a ser
desenvolvido pelos atores deve ser articulado e organizado num conjunto de sistema ou rede,
impedindo a iniciativa isolada ou fragmentada.
Nesse contexto, surge a Rede de Proteção, que, no Sistema de Garantias estabelecido pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, compõe-se de conexões entre organizações, embora seu
funcionamento seja calcado em relações interpessoais. Assim, quando se falar em “Sistema de
Garantias” entende-se aquele conjunto de serviços de atendimento previstos na lei, enquanto
que a “Rede de Proteção” materializa-se por intermédio do conjunto de organizações interligadas
no momento da prestação daqueles serviços.
Estabelecida a diferença, busca-se na lei a definição da competência, das atribuições e
funções dos diversos atores ou participantes. O planejamento e a gerência do trabalho, de
forma integrada em rede, parte do pressuposto de que todos os agentes devem estar cientes de
suas funções no conjunto das ações que serão desenvolvidas.
A metodologia gerencial através da lógica de processos é privilegiada porque verifica, a
cada ato, se estão sendo atendidas as etapas, independentemente da posição hierárquica
assumida pelos atores, imprimindo maior racionalidade e dinamismo nas conexões necessárias
à atração integrada dos demais parceiros do sistema.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
115
O Sistema de Garantias desenvolve-se em três segmentos, a saber, o Sistema de Justiça
(conforme os órgãos estejam relacionados à atividade jurisdicional – Poder Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública, Polícia Civil e Militar), o sistema administrativo de atendimento
(relacionado aos órgãos, serviços e programas governamentais ou não governamentais que
exercem as medidas de proteção especial e sócio-educativa – Conselhos dos Direitos e Conselhos
Tutelares) e o sistema de políticas setoriais (saúde, educação, aprendizagem profissional etc.).
A vanguarda do atendimento, pelo próprio desenvolvimento do sistema, é realçada pelos
operadores da Justiça da Infância e da Juventude (medidas sócio-educativas), pelo Conselho
Tutelar (proteção especial) e pela escola (políticas básicas). A configuração ideal da rede de
atendimento contempla todos os serviços projetados pela lei, destacando-se que somente se
consideram para tal fim os direitos cujo atendimento corresponda a organização de serviços
especializados.
Não há dúvidas de que os Juizados da Infância e da Juventude, como polarizadores do
modelo organizacional do Sistema de Justiça, devem adaptar-se às exigências da
operacionalização da nova doutrina, para possibilitar que os demais parceiros da rede
desenvolvam seu mister em perfeita harmonia e com resultados. Como exemplo dessas novas
atribuições da Justiça da Infância e da Juventude, verifica-se a exata compreensão da delimitação
das competências jurisdicionais e administrativas. A primeira refere-se à solução dos conflitos
de interesses num processo de conhecimento; a segunda circunscreve-se nos procedimentos
técnicos de intervenção sócio-econômica, psicológica ou pedagógica relativas ao atendimento.
Os Conselhos de Direitos contribuem para o Sistema de Garantia da Infância e da Juventude.
A Constituição Federal, ao estabelecer a democracia participativa, indicou que a maneira de
formular as políticas de atendimento de crianças e adolescentes dar-se-ia via regras da
descentralização política e administrativa.
Como forma de estabelecer um canal de participação popular na gestão do poder político,
o Estatuto da Criança e do Adolescente criou o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente,
como um órgão deliberativo e controlador das ações em todos os níveis, assegurada a
participação paritária popular por meio de organizações representativas. Além de deliberativo
e controlador das ações, o Conselho dos Direitos exerce uma tarefa de controle social das
mesmas ações políticas e públicas.
No desenvolvimento de seu múnus, os Conselhos de Direitos interagem com outros órgãos,
públicos ou privados, estabelecendo uma melhor compreensão do sistema de redes de serviços.
O ponto agregador dessa política de atendimento far-se-á por meio de um conjunto
articulado de ações governamentais e não governamentais. Surge, então, o conceito de rede
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
116
que, em sentido amplo, pode ser o resultado do processo de agregação de várias organizações
afins em torno de um interesse comum. Vários são os tipos de redes: as redes sociais
espontâneas, as redes de serviços sócio-comunitários, as redes sociais movimentalistas, as
redes setoriais públicas e as redes privadas.
Nessa articulação de redes locais, o Conselho de Direitos deve desempenhar um papel
significativo, interagindo, inclusive, com Conselhos Tutelares, com o Poder Judiciário, com o
Ministério Público e com os demais Conselhos.
Como órgão responsável pela formulação das políticas de atendimento, nos diversos níveis,
o Conselho de Direitos tem papel preponderante na articulação com os Conselhos de Educação.
A fixação de uma política de atendimento na área educacional garantirá o direito à educação
de crianças e adolescentes.
Novo parceiro da Rede de Proteção Especial, o Conselho Tutelar reveste-se de status legal,
firmado pelo artigo 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que rompe a estrutura ideológica
da concentração de poderes dos organismos oficiais, outorgada pela ordem jurídica anterior.
Ao dissociar-se do modelo antigo, a nova estrutura legal descentraliza aquele poder, outorgando-
o a um colegiado de pessoas, especialmente escolhidas para aquela finalidade.
A nova dinâmica de gerenciamento das questões sociais no município tem, agora, mais
um protagonista: o Conselho Tutelar. Ele atuará no sistema de atendimento do Município toda
vez que crianças e adolescentes encontrarem-se em situações de risco pessoal e social. Em sua
missão institucional, o Conselho Tutelar ocupar-se-á daquele conjunto de ações administrativas
responsáveis a dar efetividade aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, traduzindo,
em providências concretas, as garantias de efetivação das políticas públicas.
O Conselho Tutelar é um órgão instituído pelo poder estatal, regulamentado parcialmente
pelo legislador ordinário federal, sendo deferida, ao Município, a regulamentação de sua
instalação e funcionamento. A característica mais importante do Conselho Tutelar é a sua
autonomia, cuja peculiaridade consiste em tomar decisões, de natureza administrativa, não
estando sujeito a qualquer interferência externa ou a qualquer tipo de controle político ou
hierárquico.
Corolário dessa autonomia, exsurge que o Conselho Tutelar, embora formado por um
colegiado, autoriza seus membros a exercerem seu múnus individualmente quando necessitarem
dar solução a um caso concreto.
O Conselho Tutelar é também permanente e constituído de função não jurisdicional. Isso
significa que sua existência não é passageira ou eventual, mas tem organização estável e contínua.
Uma vez constituído legitimamente, suas atividades sobrepõem-se ao lapso temporal de seus
membros.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
117
Sua atividade é não jurisdicional, ou seja, não resolve conflitos de interesses ou aplica
sanções aos transgressores da lei. O proceder do conselheiro tutelar situa-se na esfera
administrativa, limita-se a verificar a situação, analisar o fato em seu juízo de valor e determinar
a melhor providência para o caso. Para tanto, pode, o conselheiro, utilizar-se dos princípios
instrumentalizadores do procedimento administrativo. O Conselho Tutelar é, portanto, um
órgão instituído pelo poder público, de âmbito municipal, dotado de autonomia, organizado
de maneira contínua e ininterrupta, que exerce atividades não-jurisdicionais.
O artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta um rol de atribuições do
Conselho Tutelar, que indica e dimensiona sua importância, sua dimensão social, jurídica e
institucional. Não se trata de uma relação sistematizada de atribuições, mas indica a ação que
deve ser executada pelo Conselho Tutelar.
Assim, tem o Conselho Tutelar as junções de:
(a) Atender à criança, ao adolescente e a seus pais ou responsáveis.
(b) Aplicar medidas à criança ou ao adolescente em situação de proteção especial ou aos
pais ou responsável.
(c) Executar as suas decisões.
(d) Assessorar o Poder Executivo Municipal para a elaboração de proposta orçamentária
para planos e programas de atendimento à criança e ao adolescente.
(e) Providenciar ações protetoras.
(f) Fiscalizar as entidades de atendimento (governamentais e não governamentais)
(g) Requisitar serviços públicos e certidões de nascimento e de óbito de criança e de
adolescente.
(h) Representar à autoridade as faltas ou irregularidades de terceiro que exigem providências
e nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações, em nome da pessoa e da
família, ao Ministério Público, para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio poder,
de irregularidades em entidade de atendimento e de apuração de infração administrativa.
(i) Notificar alguma pessoa ou autoridade de uma decisão ou medida ou para a realização
de uma providência ou diligência.
(j) Encaminhar, por escrito, a comunicação de fatos aos órgãos de administração pública e
autoridades.
O Conselho Tutelar interage em defesa do direito à educação escolar, mas não possui
capacidade legal para interferir em assuntos internos da escola. No entanto, tem legitimidade
para verificar o aproveitamento escolar de determinada criança ou adolescente, com o objetivo
de garantir o direito à educação. Assuntos relacionados à ausência de matrícula, exclusão da
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
118
escola, freqüência escolar, condutas inadequadas de crianças e adolescentes na escola, sintomas
de maus-tratos autorizam a ação do Conselho Tutelar.
A educação começa em casa e é obrigação inerente ao pátrio poder. Além da educação em
geral, aos pais compete o encargo de inserir seu filho na educação escolar, como forma de
estimulá-lo para um referencial ético para vida em sociedade.
O Conselho Tutelar, a escola e os pais devem, portanto, atuar conjuntamente com o fim de
assegurar à criança e ao adolescente o direito à educação escolar. Na falta de um, deve agir o
outro; em auxílio ao esforço de um, deve atuar o outro. O sucesso surgirá da atuação integrada
e parceira desses atores.
Outro parceiro, componente do Sistema de Justiça, é o Ministério Público. Sua missão
institucional, de ordem constitucional, confere-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Para atuar, funda-se em três
princípios básicos: a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
Como guardião da lei, dos direitos e dos interesses de crianças e adolescentes, o Ministério
Público exerce a função de ouvidor de seus pleitos e reclamações. Além dessa, outras funções
do Parquet estão arroladas no artigo 200 do Estatuto, lembrando que a ausência de sua
intervenção, em qualquer processo, judicial ou administrativo, acarreta vício insanável, pois
ela constitui-se em pressuposto processual objetivo positivo de validade do processo.
Além de na área judicial, que permite o Ministério Público intervir na defesa dos interesses
individuais, coletivos e difusos da criança e do adolescente e na apuração do ato infracional,
atua, também, na instauração e acompanhamento de procedimentos administrativos,
sindicâncias, diligências investigatórias e determinação de instauração de inquérito policial,
intervém na defesa da regularidade de entidades e programas, fiscaliza o processo de escolha
dos membros do Conselho Tutelar, o ingresso de pessoas no cadastro de adoções, as entidades
de atendimento.
O Ministério Público, no âmbito do Sistema de Garantias jurídicas da infância e da juventude
e integrante da Rede de Proteção Especial, vem se firmando como instrumento primordial na
efetivação dos direitos da criança e do adolescente, na exata medida em que defende
imparcialmente seus interesses.
Não se pode negar que um novo Direito da Criança e do Adolescente foi inaugurado pela
doutrina da proteção integral inscrita no Estatuto da Criança e do Adolescente. É um novel
Direito porque modifica a incidência do conjunto de normas que o sustenta e reordena as
atribuições dos protagonistas. Por esse novo modelo, a criança e o adolescente são considerados
sujeitos de direitos.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
119
No modelo antigo, apoiado na doutrina da situação irregular, as funções administrativas e
jurisdicionais se confundiam e a criança e o adolescente eram considerados objetos da
intervenção estatal, vítima de uma “patologia social” que necessitava de tratamento e prevenção.
A evolução do Direito é inevitável e sua adequação aos fatos hodiernos é tarefa obrigatória
daqueles que o aplicam. Crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais da
pessoa humana e, por estarem numa condição especial de pessoas em desenvolvimento (físico,
psíquico e social), têm direito à proteção integral.
A nova dinâmica dessa doutrina não exclui de sua apreciação os casos de adolescentes
cujo comportamento conflita com a ordem jurídica. Entretanto, o Estatuto segue a moderna
orientação no sentido de restringir a prática de atos infracionais à tipificação prevista no Código
Penal, nas Leis das Contravenções Penais e outras leis penais. Nesse sentido, consagra as
Regras de Beijing, que convencionam a desjudicialização dos atos infracionais de menor
potencial ofensivo, sem gravidade, preconizando, ainda, medidas protetivas e preventivas.
Mas, é no âmbito do Sistema de Justiça da Infância e da Juventude que o adolescente terá
a garantia de ver assegurados os seus direitos fundamentais, principalmente o do devido
processo legal e do principio da individualização da medida a ser aplicada (proporcionalidade).
Instaurou-se, assim, o sistema judicial de legalidade estrita, ou seja, a resposta dada pelo
Sistema de Justiça aos atos infracionais praticados por adolescentes, submetida aos princípios
constitucionais, às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Direito Penal e da
Criminologia.
Por esse novo Sistema de Justiça, os protagonistas incorporam suas reais funções: o juiz
da Infância e da Juventude é o juiz do Direito, que exerce essa função na forma da lei de
organização judiciária local; suas funções são processuais, pois é juiz no processo; sua
competência não mais inclui poder normativo de caráter geral ou de legislar.
O Ministério Público atua, na Justiça da Infância e da Juventude, como parte processual ou
fiscal da lei; compete-lhe a promoção da justiça, da eqüidade da defesa dos direitos sociais e
individuais indisponíveis de crianças e adolescentes.
O advogado, cuja participação tornou-se obrigatória devido ao mandamento constitucional,
assegura as garantias processuais e atua como controlador da prestação jurisdicional.
A equipe interprofissional, formada por técnicos das diversas áreas da ciência, auxiliam o
magistrado, analisando os casos, subministrando-lhe os elementos necessários à sua convicção.
Embora não fazendo parte do Sistema de Justiça, comparece uma rede, de caráter
administrativo, formada por entidades públicas ou particulares, destinada a prestar atendimento
àquelas crianças e adolescentes submetidas a medidas protetivas ou sócio-educativas, atuando,
com preponderância, na área assistencial.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
121
3
CAPÍTULO
ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE
GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher*
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 122
2 ANTECEDENTES E REFERÊNCIAS LEGAIS ..... 124
3 MUDANÇA DE PARADIGMA ..... 126
4 REDE OU SISTEMA? ..... 129
5 COMPARTILHAR UM SISTEMA PARA COMPOR UMA REDE ..... 131
5.1 CONSTRUIR UMA COMUNIDADE DE SENTIDO NA PRÁTICA DO ESTATUTO ..... 131
5.2 ACLARAR COMPETÊNCIAS E FUNÇÕES ..... 132
5.3 COMPREENDER O ESTATUTO DE FORMA SISTEMÁTICA ..... 134
5.4 INTEGRAR A ATUAÇÃO INTERINSTITUCIONAL ..... 134
5.5 ECONOMIZAR ESFORÇOS E AGREGAR VALORES ..... 135
5.6 PLANEJAR E GERIR O TRABALHO DE FORMA INTEGRADA ..... 136
6 O PAPEL DO JURÍDICO NA AFIRMAÇÃO DA REFERÊNCIA METODOLÓGICA ..... 137
7 A MATRIZ LEGAL DO SISTEMA ..... 138
7.1. REDUÇÃO DIDÁTICA ..... 140
8 OPERADORES DO SISTEMA ..... 143
8.1 AGENTES INTEGRADORES VANGUARDAS DO ATENDIMENTO ..... 144
8.2 EXECUÇÃO DO ATENDIMENTO PROGRAMAS DE RETAGUARDA ..... 146
9 CONFIGURANDO A REDE DE ATENDIMENTO ..... 146
10 REORDENANDO AS VARAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 148
11 REPRODUÇÃO HOLÍSTICA DO MODELO ..... 154
12 CONCLUSÃO ..... 156
* Juiz de Direito da 3
a
Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
122
Este texto propõe-se a problematizar a questão da implantação prática do Sistema
de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude. Uma década após a vigência do
Estatuto da Criança e do Adolescente, que proporcionou inegáveis avanços, inúmeros
desafios permanecem em aberto. O principal deles possivelmente seja o relativo ao modelo
organizacionalo tão propalada e tão pouco decantado sistema em redee gerencial
necessário para que os mecanismos garantistas previstos em lei alcancem sua maior eficácia.
“Estou falando de algo que possa livrar-nos de um padrão de vida segundo o qual em muitos
casos a palavra é separada do real, a justiça se preocupa menos com o sofrimento dos homens do
que com a letra da lei, e esta, em muitos casos, busca verdades que pouco ou nada têm a ver
com o cotidiano das pessoas.”
1
1 INTRODUÇÃO
O Estatuto da Criança e do Adolescente entrou em vigor em outubro de 1990 ainda embalado
pelo ambiente de retomada democrática pós-ditadura militar e instalação da Assembléia Nacional
Constituinte, no qual prosperou a articulação política da inserção do artigo 227 da Constituição
Federal e a própria construção do projeto que viria a tornar-se a Lei Federal 8.069/90.
Os protagonistas políticos e operadores jurídicos dirigiriam-se agora à implementação
deste novo direito, desdobrada em tantas frentes quanto são diversas as áreas de incidência da
nova lei. Apenas no campo jurídico diversos são os campos de incidênciaadministrativo,
civil, penal, processual civil, processual penale da mais alta indagação os institutos criados
(Conselho Tutelar e Conselhos de Direitos, devido processo legal nas infrações penais e
destituições de pátrio poder, p. ex.) e as alterações nos existentes (unificação dos regimes de
adoção, hipóteses de cabimento de ações civis públicas, entre outras). Mais ainda ampliada a
complexidade do quadro de sedimentação conceitual que teria de seguir-se consideradas as
diversas competências institucionais, disciplinares e profissionais envolvidas, abrangendo
simultaneamente diferentes políticas públicas, e as diversas áreas de conhecimento científico
e de atuação técnica (Serviço Social, Psicologia, Medicina, Psiquiatria, Pedagogia, entre outras).
1
Mariotti, Humberto. Complexidade e Desenvolvimento Humano, Editora Palas Athena, São Paulo, 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
123
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Além das dificuldades decorrentes desse amplo espectro de incidência, possibilitando
interpretações e apropriações conceituais heterogêneas, a década que se seguiu à vigência da
lei veio marcada pela crescente demanda de atendimento associada às transformações do
modelo sócio-econômicomarcadas pelo avanço do modelo econômico neoliberal, pela
proliferação da concentração demográfica urbana, pela ampliação do desemprego estrutural e
pela fragilização do sistema de garantias sociais conseqüente à política governamental de
enxugamento do Estado.
Tendo lugar a aplicação prática da lei diante de tais exigências do contexto macropolítico,
paralelamente associadas à complexidade técnica do novo direito, verificaram-se importantes
distorções na sua aplicaçãosobretudo relacionadas à sua compreensão fragmentada ; não
raras vezes sua utilização passou a dar-se fosse em bases empíricas e superficiais, quando não
românticas, empobrecendo instrumentos jurídicos ainda insuficientemente depurados na
doutrina jurídica em vista da sua redução a lugares comuns e palavras de ordem.
2
Maior ainda a perplexidade considerando-se que, entremeando as dificuldades citadas, a
Lei 8.069/90 foi pouco compreendida no que se refere à introdução que fez de um novo modelo,
sistêmico, de organização e de gestão das políticas e programas de atenção à infância e à
juventude, compreensão que é pressuposto da eficiência do Sistema de Garantias e, pois, da
eficácia da aplicação das medidas legais.
Desse enfoque pode-se perceber melhor os motivos pelos quais apenas lentamente avança
a implementação do Estatuto, bem como identificar-se que é no ambiente organizacional das
diversas instituições que se cristaliza a face mais visível das distorções na aplicação do Estatuto.
É nas organizaçõesJudiciário, Ministério Público, FEBEM, Secretarias e órgãos de assistência
e inclusive ONGe nos seus quadros de pessoal que se observa a tendência a manter estruturas
e reproduzir procedimentos obsoletos. Esse fenômeno tem relação proporcional à densidade
organizacional dessas instituições (quanto maior, mais difícil modernizar-se), caso típico dos
antigos Juizados de Menores (notadamente os das capitais) e dos programas de abrigo e dos
programas de privação da liberdade das FEBEM e similares. Por mais que se esforceme
sinceramentepara se ajustarem ao Estatuto, muitas vezes essas instituições mesmo após as
2
Veja-se o caso, por exemplo, dos freqüentes ataques à nova lei do tipo “O Estatuto só dá direitos” ou de que
“Com menor (que pratica infração penal) não dá nada”, de extração nitidamente reducionista. Em contrapartida
cabe citar atitudes igualmente estereotipadas de segmentos defensores da lei, originadas numa lógica parcial
que apregoa a proteção incondicional de infratores, inclusive graves, encobrindo-se a natureza antissocial e
antijurídica dos delitos pela condição de vítimas do contexto social atribuída aos seus autores.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
124
pretendidas mudanças voltam a reproduzir práticas ultrapassadas que tendem a neutralizar as
inovações e fazerem tudo retornar ao estado de movimento anterioruma tendência inercial
que vem esterilizando o potencial criativo aberto pelo Estatuto tanto para a área do Sistema de
Justiça quanto para a dos órgãos do Sistema Administrativo. E como o modelo projetado pelo
Estatuto é sistêmico, o maior ou menor grau de amadurecimento de cada organização afeta
diretamente a qualidade do conjunto, e aqui mais uma vez em relação proporcional ao seu
porte corporativo.
A observação que se segue é que qualquer esforço de mudança será inócuo se não for
embasado na compreensão da sua inserção no contexto do sistema. Visto ao contrário, qualquer
esforço que não tenha por pressuposto a superação das abordagens fragmentadas do problema
será fadado ao insucesso.
Para que tal ocorra, entretanto, é preciso construir-se uma visão compartilhada do que
seja o Sistema de Garantia de Direitos projetado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e
quais os requisitos para o seu funcionamento em condições ideais.
Partindo de uma breve recapitulação e problematização da disciplina jurídica incidente, e
de algumas referências conceituais que considera indispensáveis tanto à sua compreensão
teórica quanto à sua efetivação prática, o presente texto procura esboçar a configuração ideal
do que seria este “Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude“.
2 ANTECEDENTES E REFERÊNCIAS LEGAIS
Antes da Lei 8.069/90, o Código de Menoressem distinguir o jurisdicional do
administrativoestabelecia a centralidade judiciária também para as providências executórias
tipicamente administrativas. Ao organizar a estrutura estatal de atendimento na esfera do
Poder Executivo, a lei federal se limitava a prever a FUNABEMFundação Nacional do Bem-Estar
do Menor, na esfera federal, e as FEBEMsuas correspondentes estaduais.
3
Não havia atribuição
de competências executórias à esfera do Município. Nas sedes de Comarcas, o atendimento
local ficava a cargo exclusivo dos Juizados de Menorescom os legendários “comissários de
menores” exercendo um híbrido de funções repressivas e protecionistas, e contando com a
retaguarda meramente ocasional das instituições assistenciais da comunidade local, em regra
de cunho filantrópico.
3
Com a promulgação do Estatuto e a revogação da Lei Federal n
o
4.513/64, a FUNABEM foi transformada na
Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a AdolescênciaFCBIA, posteriormente extinta. Com atribui-
ções mais restritas, o governo federal criou o Departamento da Criança e do Adolescente, órgão da Secre-
taria Nacional de Direitos Humanos no Ministério da Justiça.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
125
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
A mobilização da cidadania em torno da Constituição de 1988 alcançou importantes
conquistas na afirmação de direitos como as representadas pela eficácia incondicional dos
direitos e garantias individuais
4
ou pela explicitação do status constitucional dos direitos sociais,
5
dentre as quais é emblemática a adoção da Doutrina Jurídica da Proteção Integral à Infância,
das Nações Unidas, sintetizada no artigo 227. E, mais do que afirmar direitos, conseguiu romper
com aquele ciclo concentrador
6
e filantropista, também no que se refere ao modelo de
organização e gestão das políticas públicas voltadas ao asseguramento desses direitos.
É desse quadro que emerge o artigo 204 da Constituição Federal, determinando que as
ações governamentais na área da assistência social observarão como diretrizes a descentralização
político-administrativa e a participação direta da sociedade por intermédio de entidades
representativas. Com relação ao Sistema de Garantia dos Direitos da Infância e da Juventude,
consta do § 7
o
do artigo 227 da Constituição remissão expressa ao artigo 204, acolhendo dele
os mesmos princípiosposteriormente reafirmados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
no inciso III do seu artigo 88.
São essas disposições que dão base à formatação do novo sistema.
7
No que se refere à área da infância a lei ordinária vai um pouco mais além da Constituição
e especifica que o princípio da descentralização político-administrativa se materializa situando-
se na esfera municipal o campo prioritário de construção dos serviços de atendimento à infância
e à juventude: é o princípio da municipalização do atendimento, imposto no inciso I do artigo
88, e também para dar forma orgância ao princípio da participação direta da sociedade por
meio da criação dos conselhos de composição paritária entre sociedade civil e Estado de que
trata o inciso II do mesmo artigo 88.
4
CF, art. 5
o
, § 1
o
“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
5
Embora contemplados desde a Constituição de 1934 na regulação “Da Ordem Econômica e Social”, somen-
te em 1988 os direitos sociais receberam formulação normativa autônoma, com a especificação do seu rol
no artigo 6
o
e a nova organização sistemática da Carta, que pela primeira vez tem um setor exclusivo
dedicado à regulação da Ordem Social (Título VIII).
6
Concentração que se dava não só verticalmente, na distribuição das competências entre as esferas de
governo, com exclusão do papel municipal, mas também horizontalmente, no que se refere ao papel dos
próprios atores do atendimento em âmbito local, onde o modelo se concentrava monoliticamente na
autoridade judiciária.
7
Além do Estatuto da Criança e do Adolescente, seguem este modelo de organização e gestão também a Lei
Orgânica da Saúde, a Lei Orgânica da Assistência Social e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
126
Assim, o Sistema de Garantia de Direitos materializa-se no Município e toma forma com os
Conselhos dos Direitos da Criança (embora com eles não se confunda), encontrando um elo
jurídico a fundamentar a interconexão entre os diversos serviços de atendimento que o comporão
na norma do artigo 86, expressa ao estabelecer que a política de atendimento dos direitos da
criança e do adolescente far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais
e não governamentais.
A seguir, o artigo 90 define que o atendimento tanto na área de proteção quanto na área
sócio-educativa será prestado por entidades e programas nas áreas que especifica,
complementando o substrato legal que, embora com limitada sistematicidade, fundamenta a
atuação integrada dos serviços de atendimento a que se passará a denominar ora de “Sistema
de Garantia de Direitos “, ora de “Rede de Atendimento” ou “Rede de Retaguardas”e que é o
objeto desta reflexão.
É na configuração efetiva do modelo organizacional implícito nesses dispositivos e da sua
gestão com base em parâmetros de confiabilidade e presteza que residirá a eficácia prática das
garantias contempladas na lei.
3 MUDANÇA DE PARADIGMA
Antes de avançar no modelo organizacional, cabe recordar o traçado mais amplo das
inovações introduzidas pelo Estatuto comparativamente à legislação anterior:
ASPECTO ANTERIOR ATUAL
Doutrinário Situação Irregular Proteção Integral
Caráter Filantrópico Política Pública
Fundamento Assistencialista Direito Subjetivo
Centralidade Local Judiciário Município
Competência Executória União/Estados Município
Decisório Centralizador Participativo
Institucional Estatal Co-gestão Sociedade Civil
Organização Piramidal Hierárquica Rede
Gestão Monocrática Democrática
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
127
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Embora não seja objeto do presente estudo desenvolver as inovações do Estatuto sob
esses diversos enfoques, o quadro ilustra que as mudanças na área organizacional são correlatas
e contemporâneas a um conjunto de mudanças conceituais que, somadas, comporão o contexto
de mudança de paradigma representado pela nova lei, cuidando-se aqui, em especial, de
abordá-lo sob os aspectos relacionados à organização e gestão dos serviços de atendimento.
Por meio dos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente o legislador faz refletir
um novo paradigma organizacional e gerencial que por sua vez é reflexo das transformações
sociais e tecnológicas que marcam os tempos atuais.
Consolidadas no último quartel do século XX essas mudanças marcam o início do que se
pode chamar de uma “Era da Informação”, e estão principalmente relacionadas às inovações
tecnológicas no campo de processamento e comunicações de dados, de onde passam a repercutir
no modo como se estruturam os processos sociais e a própria racionalidade humana.
Essa verdadeira revolução tecnológica dá lugar à criação de microssistemas organizacionais
capazes de se ajustarem a soluções personalizadas de problemas ao mesmo tempo em que
atuam diante de demandas em escalas massivas. O sucesso e a subsistência dessa atuação
localizada passa a ser dependente, entretanto, da sua capacidade de se organizarem os seus
processos produtivos de acordo com o dinamismo do macrossistema (muitas vezes, e cada vez
mais vezes, de escala global, como no caso dos mercados financeiros) possibilitado pela própria
introdução dos novos meios tecnológicos.
Não é de pequeno vulto, portanto, o desafio de implementar um sistema de atenção à
infância que guarde contemporaneidadee portanto capacidade de subsistênciaquando se
parte de um confronto entre estruturas concentradoras, rígidas e hierarquicamente dispostas,
enfrentando-se no percurso um processo de apropriação e aprendizagem marcados pela
perplexidade técnica, pela resistência ao novo e pela tendência inercial à reprodução do velho,
ao mesmo tempo em que o que se tem por horizonte inexorável é uma plataforma organizacional
ditada por um contexto tecnológico inteiramente revolucionário.
Somente os paradoxos da física quântica permitem uma alusão ao que pode significar essa
ordem de mudanças. Deve ela instalar-se sobre uma institucionalidade velha, em funcionamento
perene apesar da sua franca obsolescência, e ao mesmo tempo deve ser capaz de fundar uma
práxis que não encontra correspondente no atual estágio de cultura organizacional. Na expressão
da física quântica, trata-se de mudança que há de produzir-se de forma descontínua, eis que o
novo modelo não representa a extensão de um processo linear, com a mera substituição e/ou
renovação de certos componentes do anterior, mas um verdadeiro “salto quântico” na medida
em que depende sobretudo de uma ressignificação dos elementosvelhos e novosdados a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
128
partir sobretudo de uma radical mudança de abordagem: um novo olhar sem o qual não terá
lugar o novo paradigma.
Um paradigma social é “uma constelação de concepções, de valores, de percepções e de
práticas compartilhados por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular da realidade,
a qual constitui a base da maneira como a comunidade se organiza”,
8
e tem-se que essa mudança
é um processo complexo mas que se expressa, em síntese, numa mudança de visão.
O paradigma da tecnologia da informaçãodeterminante da mudança da racionalidade
dos processos produtivos e, com eles, do modelo organizacional e gerencial do Sistema de
Garantia de Direitos aqui em exametem como característicos, entre outros, os seguintes
fatores:
9
(1)Penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologiastodos os processos da existência
individual e coletiva estão diretamente moldados pelo novo meio tecnológico;
(2)Lógica de redesassociado ao uso da tecnologia da informação e presente em qualquer
sistema ou conjunto de relações, as “redes” representam uma “configuração topológica” que
possibilitam uma morfologia adaptada à crescente complexidade de interação e modelos
imprevisíveis do desenvolvimento derivado do poder criativo dessa interação;
(3)Flexibilidadeprocessos reversíveis, organizações e instituições modificáveis, pela
reorganização de seus componentes. Capacidade de reconfiguração exigida pela constante
mudança e fluidez organizacional.
O primeiro é o fundamento da própria característica aqui apontada de que não se pode
conceber o novo Sistema de Garantia dos direitos da criança sem partir da compreensão do
macrocontexto no qual está inserido. O segundo dá sentido à afirmação de que não se pode
considerar qualquer das organizações isoladas do conjunto do sistema, frustrando-se qualquer
iniciativa fragmentada. O terceiro recorda que para que as intervenções sejam ajustáveis caso
a caso, em níveis de personalização incompatíveis com os processos de produção serial das
organizações burocráticas, cada qual das organizações, individualmente, e o sistema, em seu
conjunto, devem apresentar-se com a máxima flexibilidade.
Outro aspecto a salientar é que uma entre as mais relevantes mudanças com que se depara
a ciência das organizações é a substituição do modelo das burocracias verticais pelo da
8
Capra, Fritjof. A Teia da Vida.
9
Castells, Manoel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol. IA Sociedade em Rede. Ed.
Paz e Terra, 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
129
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
organização horizontal, cujas características também deverão estar presentes na implementação
do novo Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventudes.
10
Ø Organização em torno do processo, não da tarefa;
Ø Hierarquia horizontal;
Ø Gerenciamento em equipe;
Ø Medida do desempenho pela satisfação do cliente;
Ø Recompensa com base no desempenho da equipe;
Ø Maximização dos contatos com fornecedores e clientes;
Ø Informação, treinamento, retreinamento de funcionários em todos os níveis.
Sem analisar cada qual dos aspectos listados, ficam com a recomendação de que, mutatis
mutandis, possam ser apropriados na compreensão da dinâmica de funcionamento cotidiano
do Sistema de Garantias proposto pelo Estatuto.
4 REDE OU SISTEMA?
Diante do que se viu, a idéia da integração sistêmica dos serviços que compõe o Sistema
de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude é fruto da evolução dos tempos nas mais
diversas áreas organizacionais absorvida pelo Estatuto.
Mesmo já se tornando popular sua apropriação sob o nome de “Rede de Proteção”, a
efetivação do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude enfrenta obstáculos
relacionados ora à reprodução de atitudes práticas ultrapassadas, ora à limitada compreensão
e explicitação do que sejam as novas estruturas, procedimentos e atitudes a que deve
corresponder o modelo proposto. É na construção cotidiana dessas instâncias que se dá a
mediação entre o desejável e o possível e que se traduz em maior ou menor resolutividade as
intervenções dos operadores da lei na realidade com a qual interagem. Por isso o esforço por
melhor definir e situar o que vem sendo chamado ora de Sistema de Garantia de Direitos, ora
de Rede de Proteção. A começar pela distinção entre os conceitos.
No que se refere aos processos sociais, a expressão “rede” comporta duas acepções. Em
seu sentido analítico, representa a abordagem da trama de relações interpessoais de
determinados sujeitos em determinadas circunstâncias, e nesse caso as redes sociais seriam
10
Castells, Manoel. Op. cit., 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
130
estabelecidas exclusivamente pelas pessoas, não pelas organizações que integrem. Em seu
sentido metafórico, relaciona-se ao conjunto ou sistema de conexões interorganizacionais.
11
No primeiro sentido, “redes sociais são conjuntos de conexões entre indivíduos que cruzam
as fronteiras de várias categorias, tais como grupos, famílias e organizações, dentro das quais
esses indivíduos são geralmente observados”.
Na prática indissociável dos indivíduos que integram as organizações, a expressão “Rede de
Proteção” utilizada para o Sistema de Garantia do Estatuto melhor se refere ao uso do termo na
sua acepção metafórica. Assim, muito embora seu funcionamento esteja calcado em relações
interpessoais que, em dado momento, os operadores de cada organização possam acionar, o que
designamos por Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude e o que vem-se
tornando corrente denominar por “Rede” reflete um sistema de conexão entre as diferentes
organizações integradas por esses indivíduos. Naturalmente, como resultante da ação humana
correspondente à prestação de serviços a que se referem, tais relações organizacionais passam a
guardar características em grande parte associadas ao tráfego das relações interpessoais subjacentes.
O conceito de sistema, no entanto, não resume isoladamente a complexidade da idéia
aqui em discussão, já que são múltiplas suas acepções: somente o dicionário Aurélio lista 19
acepções diversas e enumera quase uma centena de aplicações da palavra. A idéia de sistema
enquanto “conjunto de elementos, materiais ou ideais, entre os quais se possa encontrar ou
definir alguma relação” ou de “disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados
entre si, e que funcionam como estrutura organizada”
12
não traduz suficientemente o aspecto
dinâmico da interconexão entre organizações. Não se pode supor, senão idealmente, um conjunto
fechado de órgãos ou uma estrutura organizada entrelaçando os diferentes serviços de proteção
à infância. Principalmente, o conceito tradicional de sistema não engloba um dos principais
aspectos de um sistema de conexões interorganizacionais, que é a sua capacidade de
recombinação dinâmica em que o sistema, virtualmente possível em múltiplas configurações,
somente se expressa pela composição de determinados subconjuntos a cada intervenção prática
e possivelmente nunca se materialize na sua configuração ideal que, por ser estática, lhe
aprisiona a própria significação.
11
Friend, John e Spink, Peter. Redes na Administração PúblicaBoletim da Rede Nacional de Direitos
Humanos em HIV/AIDS, Ministério da Saúde, 1997.
12
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
131
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
O conceito de rede, entendido gramaticalmente como “conjunto ou estrutura que por sua
disposição lembre um sistema reticulado”,
13
portanto, agrega ao conceito de sistema a impressão
visual deixada pela sua percepção em movimento, quando, entrelaçando organizações, as
conexões deixam uma imagem reticulada.
Assim, quando se fala em “Sistema de Garantia de Direitos”, melhor se tem em mente a
compreensão teórica, abstrata e estática do conjunto de serviços de atendimento previstos
idealmente em lei, enquanto a expressão “Rede de Atendimento” expressa esse mesmo sistema
concretizando-se dinamicamente, na prática, por meio de um conjunto de organizações
interconectadas no momento da prestação desses serviços.
5 COMPARTILHAR UM SISTEMA PARA COMPOR UMA REDE
Para que se possa dar vida ao Sistema de Garantia permitindo que se materialize numa
rede de serviços ágil e eficiente é preciso partir de uma visão compartilhada do que seja o
conjunto das suas organizações e qual a melhor dinâmica para o seu funcionamento.
Como já foi afirmado, construir essa visão implica uma mudança de abordagem
paradigmática que é pressuposto da efetivação do novo modelo, o que torna ainda mais
importante o esforço de compartilhamento e alinhamento conceitual na busca de uma
compreensão sistêmica do Estatuto da Criança e do Adolescente. Concretamente, diversos
objetivos estarão abrangidos nesse esforço:
5.1 CONSTRUIR UMA COMUNIDADE DE SENTIDO NA PRÁTICA DO ESTATUTO
A idéia de “coletivizacão” ou de criação de comunidades de sentido é proposta por Bernardo
Toro
14
e corresponde a um dos dispositivos de um processo de mobilização social que merece
ser melhor detalhado.
Colocando a mobilização social como a introdução de práticas transformadoras na rotina
individual de cada pessoa cuja ação é proposta ou desejada, o processo mobilizatório parte da
formulação de um “imaginário convocante”, uma idéia-força sintetizadora do propósito em
torno da qual se pretende construir determinado consenso social e, com ele, desencadear um
processo de mudança. Esse processo parte da iniciativa de uma instância de “produção” teórica,
13
Id., ibid.
14
Toro A., Bernardo e Werneck, Nísia Maria Duarte. Mobilização SocialUm Modo de Constituir a Democra-
cia e a Participação. Edição do Ministério do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal, e UNICEF,
1997.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
132
capaz de formular idéias e conceitos que embasem a mobilização, imprimindo-lhe a vontade
política que lhe serve de impulso inicial. Para tal fim organizam-se os conteúdos de forma mais
propícia à sua difusão (mensagens, textos, gráficos, impressos, etc.), promovendo-se para tal
fim a “edição” dos conteúdos. Assim organizadas, as mensagens estarão aptas à divulgação,
alcançando o universo de “reeditores”, que seriam os parceiros responsáveis por apropriar-se
dos conteúdos e adaptá-los para fazer chegar a informação e desencadear a integração à ação
dos destinatários finais do processo mobilizatório.
Utilizada nesse contexto, a idéia de “comunidade de sentido” permeia todas essas etapas
de socialização de conhecimentos e reunião de vontades de forma a ampliar a sinergia dos
esforços individuais, o que se pode alcançar pela adoção de uma compreensão compartilhada
daquilo que se pretende alcançar. Trata-se de articular as referências teóricas e o que aprendemos
com as experiências já realizadas, fornecendo uma referência geral, um guia para a atuação,
que deve ser ajustado para as condições locais e de cada momento.
15
Com isso estabelecemos uma linguagem comum que possibilita o reconhecimento de cada
qual como integrante da rede a fim de que possa definir e recriar com maior clareza o seu papel
e ajustar mais dinamicamente suas interfaces com os demais.
5.2 ACLARAR COMPETÊNCIAS E FUNÇÕES
Assumida uma linguagem capaz de interligar os diferentes papéis, inicia-se o processo de
atribuir visibilidade ao conjunto que expressa, localmente, o cenário vivo no qual se desenvolve
o Sistema de Garantia em sua versão local. Ao compor-se esse cenário é preciso que possam
ser definidas também a competências, as atribuições e funções de cada um dos atores.
Embora reúna uma diversidade de ações do Estado e da sociedade civil, e assim abranja
desde instituições eminentemente formais como o Poder Judiciário até as mais informais como
movimentos e campanhas de solidariedade social, a prática do Sistema de Garantia de Direitos
da Infância e da Juventude assenta-se em bases jurídicas relacionadas à promoção de políticas
públicas.
O potencial transformador do Estatuto da Criança e do Adolescente reside exatamente na
concepção dos direitos, institutos, órgãos e serviços que contempla como direito subjetivo da
criança e do adolescente, trazendo por conseqüência seus mecanismos coercitivos de
exigibilidade e asseguramento.
15
Idem, ibidem.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
133
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Privilegiar-se a função legal de cada ator do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e
da Juventude, do mais formal ao mais informal, significa reforçar a carga de cogência e o
caráter de imprescindibilidade do serviço prestado. Sendo assim, embora a tendência à
informalidade e até vulgarização dos institutos, é da doutrina jurídica que emergem os referenciais
conceituais e metodológicos apropriados à compreensão e solução dos problemas, substituindo-
se o empirismo pelo recurso à ciência do Direito.
Por isso deve levar-se em conta que a atividade de cada um dos atores está vinculada ao
ordenamento jurídico, seja no que se refere à definição das suas competências, seja no que se
refere à sua inserção na topologia do sistema.
Tratando-se de organização do Estado para cumprir com suas obrigações prestacionais
(ainda que permeável e flexível à articulação das prestações complementares oriundas da
esfera pública não-estatal), o Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude responde
às regras do Direito Administrativo, como base no qual se pode afirmar que “a repartição das
competências para a prestação de serviço público ou de utilidade pública se opera segundo
critérios técnicos e jurídicos, tendo-se em vista sempre os interesses próprios de cada esfera
administrativa, a natureza e extensão dos serviços, bem como a capacidade para executá-los
vantajosamente para a Administração e para os administrados”.
16
Destaque-se: a repartição das competências se opera segundo critérios técnicos e jurídicos
e não segundo a vontade prevalente ditada pela autoridade de maior hierarquia ou pela
lógica de conveniências do momento.
Por isso o ponto de partida no desenho do sistema parte do texto da leiúnico referencial
efetivamente imperativo e de universalidade indiscutível em todo o território nacional
permitindo o reconhecimento das afinidades e das diferenças e dando uma visão precisa da
inserção topológica e do leque das competências de cada um dos seus componentes.
Assim, é a lei que delimita o papel de cada um e oferece o ponto de partida para a
implementação e o desenvolvimento do sistema segundo as peculiaridades locais, ajustando-
o às características da rede local sempre mediante o reconhecimento e o respeito quanto ao
que possa ser considerado disponível e ao que não poderá ser objeto de negociação no momento
de complementarem-se suas lacunas.
Do contrário não é possívelo que vem sendo infelizmente corriqueiro observara
atuação integrada e dinâmica de todos os co-responsáveis pelo atendimento dos casos. Muitas
16
Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 1983.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
134
vezes por falta de clareza das competências ocorrem usurpações, excessos autoritários e abusivos,
sobrepondo-se intervenções e gerando-se retrabalho e mesmo soluções incongruentes.
Com base na compreensão compartilhada do sistema e na clareza quanto ao papel dos
seus integrantes, situações como estas podem ser evitadas, sem gerar conflitos muitas vezes
irremediáveis, mas sobretudo tornando mais eficaz o atendimento das crianças e adolescentes.
5.3 COMPREENDER O ESTATUTO DE FORMA SISTEMÁTICA
Como expressão imediata da compreensão das competências à luz do Direito pode-se
contribuir para uma ordenação lógico-sistemática do próprio Estatuto, inclusive corrigindo-se
distorções conceituais e metodológicas que vêm sendo constatadas na sua utilização. O melhor
exemplo disso é a imprecisão conceitual no que se refere aos três cortes metodológicos que
organizam o Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude em políticas básicas,
programas de atendimento protetivo e programas de atendimento sócio-educativo.
É evidente a dificuldade originada na redação do inciso II do artigo 90 do Estatuto, que,
por evidente lapso do legislador, utilizou a expressão “programas de apoio sócio-educativo de
meio aberto” para designar serviços que desenvolvem atividades relacionados ao acesso às
políticas básicas, em geral funcionando de forma integrada e no turno alternado da escola, que
cuidam de prover acesso a cultura, esporte, lazer, profissionalização etc.
Tais atividades, que correspondem aos mínimos sociais de acesso universal de todos as
crianças e adolescentes, são portanto objeto de políticas básicas, sendo equivocada sua
denominação como “programas sócio-educativos” (inclusive por estigmatizar seus beneficiários)
que, numa compreensão sistemática da lei, nota-se serem reservados exclusivamente ao
atendimento de adolescentes em conflito com a lei.
5.4 INTEGRAR A ATUAÇÃO INTERINSTITUCIONAL
Superadas as dificuldades do exercício compartilhado de competências pela exata
compreensão do papel de cada ator, passa a ser possível aplicar os mecanismos de cooperação
entre os diversos operadores do sistema, dando lugar à sua atuação concorrente e não
sobreposta.
O reconhecimento da matriz legal do Sistema de Garantias possibilita uma linguagem
comum que aproxima as pessoas e suas instituições e permite o mapeamento local da rede de
atendimento, conduzindo à melhor identificação do outro e ao reconhecimento, e conseqüente
respeito, do seu lugar no sistema.
A partir da interação harmônica dos operadores, o sistema se instala como rede e pode
manter uma dinâmica mais flexível e aberta à reconfiguração necessária ao atendimento de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
135
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
cada caso, que exigirá uma recombinação específicae rápidapara oferecer respostas com
o nível de resolutividade desejável.
Embora o caráter eminentemente normativo do sistema, no que respeita aos procedimentos
administrativos, “não se pode afirmar que não haja regras, mas as regras são criadas e mudadas
em um processo contínuo de ações deliberadas e interações exclusivas. O paradigma da
tecnologia da informação não evolui para seu fechamento como um sistema, mas rumo a
abertura como uma rede de acessos múltiplos. É forte e impositivo em sua materialidade, mas
adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico. Abrangência, complexidade e disposição
em forma de rede são seus principais atributos”.
17
Ao estabelecer interfaces claramente definidas, também se habilitam os envolvidos a exercer
com facilidade as conexões que se façam necessárias, porque já anteriormente definidos os
protocolos mínimos para estabelecimento da melhor comunicação entre cada participante da
rede, facilitando sua auto-recombinação a fim de amoldar-se às necessidades de cada intervenção
específica.
Se por um lado é certo que essa integração envolve um importante investimento em termos
de confiança e respeito, a fim de não desgastar o relacionamento, é imprescindível a percepção
do outro como integrante de uma cadeia processual em que as posições se alternam
sucessivamente, e indagando-se sempre sobre as maneiras de melhor satisfazer às necessidades
do parceiro conseguinte.
5.5 ECONOMIZAR ESFORÇOS E AGREGAR VALORES
A atuação sistêmica pré-ordenada possibilita corrigir a sobreposição de serviços, evitar
tarefas repetitivas e o retrabalho e aproveitar informações acumuladas pelo serviço já
desenvolvido em etapas anteriores do processo de atendimento. Com isso, evita também os
desgastes da improvisação das interfaces a cada nova intervenção.
Na medida em que se estabelecem e ajustam as conexões do sistema, os serviços organizados
em rede tendem automaticamente a estabelecer uma economia de maior especialização
qualificando o domínio das tarefase a aumentar a capacidade resolutiva das intervenções pela
ampliação do leque de oportunidades representada pela contribuição sinérgica dos diversos atores.
17
Castells, Manoel. Op. cit., 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
136
5.6 PLANEJAR E GERIR O TRABALHO DE FORMA INTEGRADA
À parte a conveniência da atuação integrada em rede nos seus aspectos operacionais, o
fato de cada operador assumir seu papel como indissociável do conjunto do sistema oportuniza
uma abordagem mais abrangente e produtiva no planejamento e na gestão organizacionais.
Os métodos da gestão por processos, que progrediram vigorosamente na segunda metade
do século XX em oposição ao mecanicismo estanque da gestão “fordista” ou “taylorista” do
início do século, vêm permitindo maior enxugamento nas estruturas produtivas, seja no que se
refere a manutenção de estoques (recorrendo a métodos de fornecimento just in time, p. ex.),
seja na especialização de serviços (pela terceirização, p. ex.), promovendo estruturas
organizacionais horizontalizadas submetidas à lógica de gestão não departamental, na qual o
processo produtivo é visto como encadeamento interfuncional de atos, e representado como
uma cadeia de ações nas quais os figurantes assumem sucessivamente a função ora de clientes
ora de fornecedoresou de prestadores e beneficiáriosde determinados serviços ou insumos.
O resultado é que um mesmo processo poderá abranger diversos setores da mesma
organização ou mesmo de diferentes organizações. O compartilhamento da visão do sistema
possibilita planejar em conjunto os processos que se desenvolvem conjuntamente, ampliando
os enfoques e a especialidade técnica da abordagem dos problemas e possibilitando maior
riqueza na percepção da realidade.
O fluxograma seguinte ilustra de forma simplificada essa interação processual no
atendimento a um caso de evasão escolar:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
137
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
A inovação consiste assim em adotar-se a lógica da gerência por processos, correlata da
dissolução do modelo de organização departamental, que enquadra cada ator, e a cada ato,
sucessivamente como cliente/beneficiário e/ou fornecedor/prestador do antecedente ou do
conseguinte, considerado horizontal e alternadamente em sua posição independentemente da
sua posição hierárquica e questionando, passo a passo, se estão sendo atendidos os protocolos
que imprimem maior racionalidade e dinamismo nas conexões necessárias à atuação integrada
dos demais parceiros do sistema.
6 O PAPEL DO JURÍDICO NA AFIRMAÇÃO DA REFERÊNCIA METODOLÓGICA
Conhecimento construído, práticas sociais e consensos políticos se expressam, em sua
instância de máxima cristalização histórica, por meio do sistema jurídico. Nele o Direito Positivo
a palavra da leiassume a condição de instrumento normativo por excelência. A referência
jurídica representa, portanto, a um só tempo a matriz e o ponto de convergência de todo o
processo de implantação do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude.
Sucede que a vigência do ECA vem sendo marcada por uma inusitada e vigorosa experiência
de apropriação do jurídico pelos diversos protagonistas “leigos”movimentos sociais e operadores
do sistema de atendimento entre eles −, fenômeno que, embora representando salutar e
enriquecedor amadurecimento da cidadania, também vem produzindo efeitos colaterais
representados pelo empobrecimento da consistência técnico-jurídica na aplicação dos intrumentos
legais, e pelo comprometimento da construção do referencial doutrinário que, assim, sofre parcial
esvaziamento do seu rigor científico, perdendo em objetividade, clareza e legitimação.
Noutras palavras, o caráter “panfletário” com que se deu a difusão do ECA possibilitou que
dele se construísse uma visão média calcada em conceitos rudimentares, muitas vezes associados
a palavras de ordem e chavões de conteúdo pouco determinado.
A bibliografia jurídica na área é rarefeita , muitas vezes sem grande consistência doutrinária,
ou distanciada da aplicabilidade prática, ou ainda por vezes limitada à reiteração de dispositivos
legais.
Esse quadro mais compromete diante das dificuldades em se fazer vingar as bases conceituais
do novo Sistema de Garantia no ambiente cultural das organizações envolvidas, em grande
parte ainda impregnadas da herança menoristapermeada de conceitos eufemísticos (não se
prende, apreende; não se condena, se aplica medida; e assim por diante)cujo jogo semântico
mais traveste a realidade do que se prestava a conceituar o fenômeno social, contaminando de
forma quase insuperável uma hermenêutica contemporânea com a legislação vigente.
O resultado é que o meio jurídico de fato não conseguiu apropriar-se tecnicamente do
Estatuto da Criança e do Adolescente (como ocorreu com legislações recentes como a relativa
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
138
aos direitos do consumidor ou aos Juizados Especiais) com a adequação necessária para
enriquecê-lo com as técnicas hermenêuticas de uma ciência bimilenar e cujos instrumentos,
por um lado, são essenciais na organização e na gestão da coisa pública na esfera coletiva e,
por outro, são fundamentais no asseguramento dos objetivos de bem-estar social do cidadão
na esfera individual.
A restituição do lugar do jurídico como instrumental para a sedimentação não só da
compreensão, mas sobretudo da prática do novo modelo, é, por isso, condição sine qua non
dos avanços que se deseja na matériae razão que justifica a sustentação de um referencial
metodológico que privilegie por base o texto legal.
7 A MATRIZ LEGAL DO SISTEMA
Justificada a abordagem integrada dos diversos serviços de atendimento à infância e à
juventude e a necessidade de partir-se do referencial presente no Direito Positivo, pode-se
apontar suas bases e iniciar a construção de uma matriz que delimite os diversos campos de
incidência da norma.
Antes vale refletir que a definição de uma matriz é essencial na tentativa de correlacionar
as múltiplas partes e funções do Sistema de Garantias e o complexo reticulado formado por
suas interconexões quando postas em funcionamento. Uma matriz é o lugar onde algo se gera
ou cria, manancial, nascente ou fonte,
18
e vai representar um reticulado simetricamente
construído a partir do qual se tenta organizar a compreensão do sistemaessencialmente
complexoque se quer descrever.
Isso porque “um dos primeiros passos que tomamos para analisar uma forma é procurar
simetria nela. Esta palavra (que deriva do grego de duas palavras que significam “com” ou
“acompanhado a” e “medida”) dá um sentido muito geral de referência a partes de propriedades
geométricas semelhantes”.
19
Feita a ressalva de que é sem dúvida limitada a possibilidade de
reduzir um sistema complexo a partir da representação de seus elementos simétricos, e nessa
medida considerando aprioristicamente redutor da realidade qualquer modelo que se possa
propor, podemos passar à composição da matriz ideal do Sistemaque vai permitir compreender
melhor o reticulado funcional da redede Garantias previsto no Estatuto.
Para compor a matriz legal do S istema parte-se da universalidade dos direitos estabelecidos
no artigo 227 da Constituição Federalreproduzidos no artigo 4
o
do ECAe prossegue-se
18
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira.
19
Waddington, C.H. Instrumental para o pensamento. Ed. Itatiaia, 1975.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
139
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
refinando a incidência pela casuística do atendimento propriamente dito, com a enunciação do
leque das medidas de proteção especial e sócio-educativas. A par deles, e tanto quanto possível
observando sua correlação sistemática com as demais políticas e medidas, segue-se também a
indicação de outros serviços dispersos cogitados na Lei 8.069/90.
Em primeiro lugar têm-se os direitos e garantias individuais, que, por sua generalidade
melhor correspondendo ora a princípios gerais, ora a diretrizes programáticas, ora ainda a
obrigações negativas, e portanto não relacionadas a serviços por representarem não-fazeres
ditados em favor da criança e do adolescente, podem aqui ser relacionados como valores
fundamentais constitutivos da base ética do Sistema.
Ingressando-se no campo da atuação institucional segue-se a prescrição dos suprimentos
mínimos a serem providos pelos devedores da obrigação genérica da “proteção integral” para
possibilitar o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, representado pelos direitos
sociais ou obrigações prestacionaisobrigações positivas, correspondentes a fazeres estatais
e que podem ser classificados como políticas básicas, cuja prestação se encontra a cargo das
diversas políticas setoriais do aparelho estatal.
Refinando-se o espectro de incidência a hipóteses concretas com ênfase no cunho reparatório
ou restaurativo, seguem-se os mecanismos de atendimento às situações de risco originárias da
violação daqueles direitos individuais e sociais inicialmente relacionados através de institutos
colocados em ação por um subsistema assistencial voltado ao enfrentamento das situações de
exposição a perigo, representado pelas medidas e programas de proteção especial e operado
de forma privilegiada pelos Conselhos Tutelares.
Sem desconsiderar a preocupação com a universalidade irrestrita da incidência do Estatuto
da Criança e do Adolescente, que, concebido para assegurar direitos e deveres para todo e
qualquer cidadão abrangido na faixa etária que delimita, não poderia ser considerado em
momento algum como portador de normas de incidência discriminada e, pois, discriminatória,
o que se procura aqui é sistematizar os campos de atuação delimitados não em potência pela
norma abstrata, mas sim pela norma em atono caso, traduzindo-se em atendimento a casos
determinados e concretos por programas e serviços igualmente determinados e concretos.
Fica portanto a ressalva de que o corte metodológico resultante em nada se confunde com
a antiga prática do enquadramento de segmentos da clientela no conceito de “situação irregular”,
mas resulta do reconhecimento objetivo de que a incidência da norma protetiva nos casos
concretos, especialmente nos seus aspectos restaurativos conseqüentes a violações de direitos
ou deveres já efetivadas, ou seja, na aplicação das medidas de proteção ou sócio-educativas,
delimita um campo de atuação e de organização de serviços específico que não se confunde
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
140
com aqueles serviços destinados à universalidade dos cidadãos menores de 18 anos de idade.
Em síntese, trata-se de um enquadramento que reside e que se destina antes à estruturação dos
serviços de atendimento do que à condição do sujeito que é seu destinatário.
Prosseguindo-se assim, e mais adiante ainda, pode-se situar um terceiro campo de atuação
institucional relacionado ao atendimento de adolescentes em situação de “conflito com a lei”, e
que faz organizar como um subsistema preponderantemente vinculado à esfera judiciária e
dedicado à aplicação e à execução das medidas sócio-educativas, através dos correspondentes
programas de atendimento, operados privilegiadamente pela Justiça da Infância e da Juventude.
No quadro a seguir (p. 141) visualizam-se os elementos normativos e funcionais
constitutivos da matriz legal, abrangendo os diversos campos de incidência descritos.
7.1 REDUÇÃO DIDÁTICA
Para fins de memorização, a matriz dos serviços e programas – abstraindo-se por ora os
valores fundamentaispode ser resumida na representação visual de uma sinaleira de trânsito
ou semáforo, a partir do qual se diga que, se tiver todos os direitos sociais fundamentais
assegurados pela família ou, na impossibilidade ou ainda em complementação desta, pela
sociedade e pelas políticas sociais básicas do Estado, a criança terá asseguradas suas condições
de desenvolvimento – ou seja, terá “sinal verde” para a vida.
Do contrário, a violação do seu direito ao acesso a tais mínimos sociais implicará a
intervenção corretiva do sistema de atendimento assistencial, aplicando-se as medidas de
proteção especial, como se acenando com um sinal de alerta, ou seja, dizendo-se que se acende
um “sinal amarelo” na trajetória de vida dessa criança ou adolescente.
Finalmente, em consumando-se os riscos a que exposta pela insuficiência de atendimento às
suas necessidades básicas, e falhando a intervenção do sistema protetivo, muito possivelmente
já adolescente, da condição de vítima que foi, poderá passar à de produtor de vítimas ou
vitimizador, transgredindo a lei penal. Nesse caso, é de acionar-se as medidas sócio-educativas
como um “sinal vermelho” para a trajetória delitiva, fazendo-se com elas a derradeira e mais
intensiva intervenção objetivando o resgate da cidadania fraturada nesse percurso.
Recapitulando que uma mudança de paradigma, a partir da reunião de todos os novos
elementos conceituais e metodológicos, pode ser sintetizada por uma abordagem nova
decorrente de uma mudança de visão, também é eficaz para a memorização dessa visão do
Estatuto como sistema e para facilitar o tráfego simbólico dos conteúdos aqui alinhavados a
ilustração de um catavento no qual cada uma das hélices são definidas por uma daqueles
quatro campos de incidência da Lei 8.069/90 descritos na matriz (p. 142).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
141
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
VALORES FUNDAMENTAIS POLÍTICAS BÁSICAS
(BRANCO) (VERDE)
PROTEÇÃO INTEGRAL CF, ART. 227; ECA, ART. 1
O
ALIMENTAÇÃOCF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
PRIORIDADE ABSOLUTA CF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
HABITAÇÃOCF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
VIDA CF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
SAÚDECF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
DIGNIDADE CF, ART. 227; ECA, ARTS. 4
O
, 15 E 18 EDUCAÇÃOCF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
LIBERDADE CF, ART. 227; ECA, ARTS. 4
O
, 15 E 16 ESPORTECF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
RESPEITO CF, ART. 227; ECA, ARTS. 4
O
, 15 E 17 CULTURACF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
INTEGRIDADE CF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
PROFISSIONALIZAÇÃOCF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA CF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
LAZERCF, ART. 227; ECA, ART. 4
O
CONDIÇÃO PECULIAR DE PESSOA EM DESENVOLVIMENTO ECA, ART. 6
O
DIMENSÕES FÍSICA, PSÍQUICA, MORAL, MENTAL, SOCIAL, ESPIRITUALECA,
ARTS. 3
O
E 17
MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO ESPECIAL
(VERMELHO) (AMARELO)
ATENDIMENTO INICIAL INTEGRADO AO INFRATOR ECA, ART. 88, INC. V PROTEÇÃO JURÍDICO-SOCIALECA, ART. 87, INC. V
REPARAÇÃO DE DANOS ECA, ARTS. 112, INC. II E 116. BUSCA E LOCALIZAÇÃO DE DESAPARECIDOS ECA, ARTS. 87, INC. IV E 101, INC. I
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE ECA, ARTS. 112, INC. III E 117 ORIENTAÇÃO, APOIO E ACOMPANHAMENTO TEMPORÁRIOS ECA, ART. 101, INC. II
LIBERDADE ASSISTIDA ECA, ARTS. 112, INC. IV, 118, 119 E 90, INC. V. REINSERÇÃO ESCOLAR ECA, ARTS. 101, INC. III E 129, INC. V
SEMILIBERDADE ECA, ARTS. 112, INC. V, 120 E 90, INC. VI APOIO SÓCIO-FAMILIAR, RENDA MÍNIMA FAMILIAR E MANUTENÇÃO DE VÍNCULOS
ECA, ARTS. 101, INC. IV, 129, INCS. I E IV, 90, INC. I, E 23, §. ÚNICO
INTERNAÇÃO ECA, ARTS. 112, INC. VI, 121 A 125, 90, INC. VII, E 94 TRATAMENTO ESPECIALIZADO ECA, ARTS. 101, INC. V E 129, INC. VI
ATENDIMENTO A VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS ECA, ART. 87, INC. III C/C ARTS.
101, INC. V; 129, INC. VI
TRATAMENTO DA DROGADIÇÃO ECA, ARTS. 101, INC. VI E 129, INC. II
ABRIGO ECA, ARTS. 101, INC. VII, 90, INC. IV, 92 E 93
COLOCAÇÃO FAMILIAR ECA, ARTS. 101, INC. VIII, 90 INC. III
GUARDA SUBSIDIADA ECA, ART. 101, INC. VIII E 34
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CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
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Nessa ilustração reside a síntese da abordagem sistêmica do Estatuto, com o destaque de
que somente terá vida ao estar em movimentomovimento que é condição para permitir-se a
interpenetração cooperativa das diversas competências.
Acima de tudo, porém, a figura destaca o papel transversal dos valores, que são o ponto
de partida e o ponto de chegada, o alfa e o ômega de todo o esforço que anima as vontades e
coloca a rede em funcionamento, do mesmo modo que o branco dos valores fundamentais
será a cor na qual todas as demais se fundirão quando o catavento estiver em movimento.
8. OPERADORES DO SISTEMA
Para melhor compreender o Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude é
importante situar, na relação com os programas, o papel desempenhado pelos seus principais
operadores institucionais.
Em primeiro lugar observe-se que, assim como em relação ao conteúdo da prestação ao
destinatário final do atendimento o Sistema de Garantias pôde ser segmentado em três cortes
setoriais relativos às políticas básicas, de proteção especial e sócio-educativas, no que se
refere aos organismos operadores pode ser segmentado em Sistema de Justiça, conforme estejam
os órgãos relacionados à atividade jurisdicionalPoder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, Polícia Civil, Polícia Militarou sistema administrativo de atendimento,
quando relacionados aos órgãos, serviços e programas governamentais ou não governamentais
que executem as medidas de proteção especial e sócio-educativas. Incluem-se também aí os
Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares. enquanto órgãos responsáveis, respectivamente,
pela articulação do Sistema e pela aplicação das medidas em sede não jurisdicional, e igualmente
situados na esfera do Poder Executivo. Por fim, as áreas relacionadas às políticas setoriais,
embora possam ser enquadradas em sentido amplo no sistema de atendimento administrativo,
não se sujeitam aqui a catalogação específica, eis que tampouco dispostas especificamente
para atendimento exclusivo da população infanto-juvenil, preservando as respectivas
denominações conforme os cortes setoriais das políticas públicas correspondentessistema
de saúde, sistema de ensino, sistema de aprendizagem profissional, etc.
Sem em momento algum desprestigiar a atuação de outros importantes atores, como Conselhos
de Direitos e do Ministério Público cujos papéis de articulação e orientação técnica são,
respectivamente, pressupostos da própria materialização local do Sistema de Garantias −, dedicamos
maior atenção neste estudo aos papéis mais diretamente relacionados às atividades executórias.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
144
8.1 AGENTES INTEGRADORESVANGUARDAS DO ATENDIMENTO
No dia-a-dia do atendimento realça-se o papel de operadores do Sistema exercido pelas
Varas da Infância e da Juventude e pelos Conselhos Tutelares. Pela função específica que
exercem, atuam como reguladores privilegiadosembora não exclusivosda operação jurídica
dos subsistemas de proteção especial e sócio-educativos, respectivamente, responsáveis que
são pela aplicação e supervisão da execução dessas medidas.
É sem dúvida oportuno ressaltar que, dentre as medidas de proteção especial, somente se
reserva à competência judicial a colocação em família substituta. Fora isso, nos casos em que
não há ênfase na conflituosidade jurídica (como ocorre na aplicação pelo juiz de medidas
protetivas acessórias às sócio-educativas nos termos do artigo 112, inciso VII do ECA, ou à
definição da situação da criança em vias de destituição de pátrio poder e colocação em família
substituta), o atendimento protetivo é da competência exclusivae não concorrente nem
subsidiáriado Conselho Tutelar, pelo seu caráter administrativo e não jurisdicional.
Juizados da Infância e Conselho Tutelar, assim, por figurarem como responsáveis pelas
principais e mais intensivas interfaces do sistema, estabelecendo-se como elos de ligação na
originação, supervisão e conclusão do processo de atendimento, têm ressaltada sua função de
agentes integradores do Sistema por competência legal expressa na forma dos artigos 148 e
136 do Estatuto, mas o mesmo não sucede com relação à integração das políticas básicas.
Esse papelpela sua inserção mais ampla e conseqüentemente mais complexa no quadro
das diversas políticas e da quase universalidade das crianças e adolescentesse confunde
com as próprias atribuições do pátrio poder. São os paisou os responsáveis legais como
guardiões e tutoresos primeiros e principais agentes incumbidos de prover o acesso dos
filhos a condições adequadas de habitação, higiene, alimentação, saúde. São eles os primeiros
devedores do direito à educação, cultura, esporte, lazer e profissionalização. Na sua
impossibilidade esse papel deve ser suplementado pelas políticas públicasasseguradoras da
eficácia do acesso aos mínimos sociais representados pelos direitos sociais, mas mantendo-se
os pais ou responsáveis ainda no dever de promover os encaminhamentos necessários.
A política básica mais relevante no dia-a-dia do atendimento às crianças e jovens é, sem
dúvida, a da educação. Garantido o acesso da criança à escola, a criança terá definido seu principal
elo de inserção no amplo espectro do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude.
E, embora salientado que o atendimento aos demais direitos resida originariamente no pátrio
dever, o encaminhamento às demais políticas básicas na impossibilidade dos paise mesmo ao
sistema protetivo ou sócio-educativo em casos de risco mais graves, enquadráveis no artigo 98 do
Estatutoé papel que, na prática, é muitas vezes exercido, ainda que informalmente, pela escola.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
145
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
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A relevância da sua contribuição em zelar pelos direitos da criança e do adolescente
promovendo o papel de alertar os responsáveis, ou até mesmo pela efetivação desses direitos
auxiliando nos encaminhamentos necessários às demais políticas e serviços do Sistema de
Garantias, é uma função que precisa ser melhor debatida no âmbito da educação escolar
exatamente por representar esse ponto de conexão inicialde abrangência universal e
atendimento continuadoda criança com o sistema.
É do não-reconhecimento da posição e do não-esclarecimento das possibilidades e limites da
escola no exercício desse papel que intermináveis desgastes são impostos aos educadores que, na
prática, se vêem na contingência de cumprir seu papel pedagógico junto a crianças que sofrem por
diversas carências, as quais poderiam estar melhor supridas pelo encaminhamento adequado às
demais políticas básicas, ao Conselho Tutelar ou ainda ao Sistema de Justiça. Enquanto não
perceber sua posição no sistema para poder interagir com ele, a escola continuará sendo o
“amortecedor” de situações aflitivas com os quais na maioria das vezes se vê arcando solitariamente.
Embora destinado à prestação da política básica da educação, o sistema de ensino é
freqüentemente não raras vezes solicitado a complementar seu papel atendendo, diretamente
ou mediante parcerias, a funções relacionadas às demais políticas como alimentação (é o caso
da merenda escolar), esporte, cultura, lazer, profissionalização.
Por tal razão, adotamos aqui, embora sem respaldo legal, mas pela conveniência de melhor
compreender-se qual deva ser o papel do sistema de ensino a respeito das demais políticas
inclusive em benefício das próprias escolas, não raramente cobradas por prestações não afetas
à sua competência −, a sugestão de ter-se reconhecido o papel integrador da escola com relação
às demais políticas setoriais.
Assim, antes de compor-se a representação da matriz da rede, há que explicitar-se que,
cada um em seu segmento privilegiado, estes operadores também exercem uma função
integradora com relação aos demais parceiros do Sistema. Visto de outra maneira, estabelecem
uma referência gravitacional que possibilita o agrupamento e a orientação dos demais
componentes do Sistema que figuram assim como que satélites de uma constelação de órgãos,
programas e serviços de atendimento.
Assim, enquanto o Juizado, o Conselho Tutelar e, nos termos e limites aqui expostos, a
escola exercem a função de vanguarda do atendimento, as demais políticas, serviços e programas
representarão a retaguarda do sistema.
VANGUARDAS DO ATENDIMENTO
POLÍTICAS BÁSICAS PROTEÇÃO ESPECIAL SÓCIO-EDUCATIVAS
ESCOLA CONSELHO TUTELAR JUIZADO DA INFÂNCIA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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146
8.2 EXECUÇÃO DO ATENDIMENTOPROGRAMAS DE RETAGUARDA
Na função de operadores do Sistema, as vanguardas do atendimento são responsáveis por
identificar as dificuldades e problemas e indicar os encaminhamentos necessáriosaqui
cogitados como contribuição informal da escola com relação àquelas competências que não
sejam da sua alçada, mas que Conselhos Tutelares e Juizados exercem com competência
requisitória e estes últimos ainda com a força coercitiva própria da função jurisdicional.
Como esses órgãos não cumprem papel de executores, o atendimento por eles encaminhado
estará a cargo das políticas e programas de atendimento, cada qual respondendo pelo
cumprimento dos dispositivos legais listados na matriz do Sistema de Garantias a que
corresponda a natureza do serviço prestado.
9 CONFIGURANDO A REDE DE ATENDIMENTO
Embora em regra cada um dos cortes setoriais propostos corresponda a uma gama
determinada de serviços e/ou medidas, estas não se apresentam como departamentos estanques.
Antes, parecem corresponder melhor a diferentes matizes de gradativo agravamento das
intervenções na medida em que também evolui o quadro de desatenção e violação dos direitos
da criança e ao adolescenteou ainda da violação de direitos pelo adolescente infrator.
Desse modo, o espectro de abrangência de cada política ou programa de atendimento não
se prende estaticamente ao campo sugerido pela incidência do dispositivo legal correspondente,
mas se apresenta dinamizado pela multiplicidade das situações da vida.
Sua expressão gráfica, assim, resulta melhor definida não por segmentos de colorações
definidas (verde, amarelo, vermelho, conforme a área de inserção na matriz do Sistema), mas
por colorações variáveis segundo a maior ou menor gravidade das situações envolvidas,
formando um gradiente que expressa essas alterações sucessivas no grau de complexidade e
gravidade da situação.
A configuração da Rede de Atendimento, como expressão local materializada do Sistema
de Garantias, corresponderá assim a uma variada gama de políticas, serviços e programas de
atendimento necessários à implementação dos direitos a que correspondem os dispositivos
legais listados na matriz do Sistema.
Na ilustração seguinte pode-se ver então uma Rede de Atendimento segundo sua
configuração ideal, contemplando todos os serviços projetados na lei, destacando-se que
somente se consideram para tal fim os direitos a cujo atendimento corresponda a organização
de serviços especializados, como não seria o caso, p. ex., da medida sócio-educativa de
advertência.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
147
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
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148
10 REORDENANDO AS VARAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Tendo historicamente ocupado a centralidade do modelo organizacional, o Sistema de
Justiça e, mais especificamente, os Juizados da Infância e da Juventude passaram, com a nova
lei, a constituir-se no foco precursor capaz de ditar o maior ou menor avanço das mudanças,
conforme tenham se mostrado mais ou menos abertos às inovações, permitindo, conforme a
orientação da respectiva liderança, maior ou menor liberdade aos demais atores do Sistema
em avançar com o progresso nas respectivas áreas.
Por esse motivo detemo-nos em analisar as implicações do novo modelo legal no que se
refere à estrutura dessas Varas Judiciaisque aliás podem estar sendo precursoras de importantes
inovações no âmbito da organização judiciária.
Sucedeu que, muito embora se trate de mudanças inexoráveis e às quais, mais cedo ou
mais tarde, todos responderão, o fato é que se notou imensa resistência em determinados
círculos judiciais a partir da promulgação do ECA, em boa parte provocados por discordâncias
diante do aumento de atribuições do Ministério Público e da atribuição de competências antes
judiciais (embora nunca jurisdicionais) aos Conselhos Tutelarescuja criação alterou
fundamentalmente a estrutura dos antigos Juizados de Menores.
Aspecto nem sempre evidenciado, entretanto, é o que se refere à atribuição à esfera não
judicial da organização e da gestão do atendimento dos adolescentes em cumprimento de
medidas sócio-educativas de meio abertodiante da nenhuma tradição brasileira em manter
tais serviços como programas no âmbito do Poder Executivo, motivo aliás dos mais relevantes
na limitada eficácia do ECA na área sócio-educativa.
Assim, restando a criação de tais programas em regra, no mais das vezes na dependência
do protagonismo judicial, muitas vezes vêm sendo mantidos os já existentes, ou precariamente
criados novos no âmbito da própria estrutura judiciária, afastando-se com isso do rumo da
nova estrutura organizativa para reforçar o modelo “judiciariocêntrico” centralista e
concentradorque a Lei 8.069/90 pretendeu banir para dar lugar à plenitude da atuação
jurisdicional em sua vocação ontológica relacionada exclusivamente à solução dos conflitos
juridicamente relevantes de interesses e não de órgãos híbridos, muitas vezes hipertrofiados
pelo exercícios de competências da esfera administrativa como foi a maioria dos Juizados de
Menores sobretudo nas grandes capitais.
Embora as mudanças possam ocorrer mesmo à revelia do Judiciárioe assim o caminho
da história restará trilhado, reitere-se inexoravelmente, para desgaste e deslegitimação dos
que invistam em contrário −, é fundamental reconhecer que, pela maior “densidade
organizacional”, pela força da autoridade do cargo do magistrado e pela ação cotidiana sobre
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
149
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
praticamente todos os demais operadores do Sistematanto de Justiça quanto de Atendimento
−, tão logo se disponha a estrutura do Judiciário de forma compatível com o novo modelo, em
muito restará facilitada a reconfiguração do Sistema e melhor será definida a posição dos
demais parceiros.
Por isso, um dos mais relevantes pressupostos da viabilização do Sistema proposto na lei
é a reconfiguração da matriz organizacional das Varas da Infância e da Juventude, migrando da
tradicional estrutura hierárquica piramidal para um modelo de integração reguladora e propulsora
conforme as etapas que seguem descritas.
JUIZADOS DE MENORES
Partiu-se com a promulgação do ECA da estrutura estritamente judicial, rígida e concentradora,
vigente no Código de Menores:
JUIZADOS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE / CONSELHOS TUTELARES
Os progressos mais significativos vêm sendo observados no desmembramento das funções
protetivas (com exceção da colocação em família substituta, todas as demais atualmente afetas
prioritariamente aos Conselhos Tutelares), dando-se início assim ao processo de reconfiguração
organizacional dos Juizados da Infância e da Juventude:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
150
“NOVOS” JUIZADOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Por si só, essa transposição da área protetiva da esfera judicial à esfera administrativa vem
resultando num perfil organizacional mais leve e dinâmico para os Juizados da Infância e
Juventude que se convenciona reconhecer por reordenados:
Competências Protetivas
CONSELHOS TUTELARES
JUIZADOS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
151
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
COMPETÊNCIAS NA EXECUÇÃO DE MEDIDAS
As principais experiências de implementação do ECA no Sistema de Justiça conhecidas são
as que vêm ocorrendo nos Juizados das diferentes capitais dos Estados. Em regra, as mudanças
ocorrem assim em estruturas organizacionais pré-existentes ao ECA, que apresentam dificuldades
em transpor determinados traços culturais do modelo organizacional menorista.
Por exemplo, citamos a indistinção entre as atribuições relacionadas às competências
envolvidas na execução das medidas, sobretudo das medidas sócio-educativas não privativas
da liberdade:
Øcompetências jurisdicionais: solução dos conflitos jurídicos de interesses nos incidentes
do cumprimento da decisão oriunda do processo de conhecimento;
Øcompetências administrativas: procedimentos técnicos de intervenção sócio-econômica,
psicológica ou pedagógica relativos ao atendimento propriamente dito.
Para melhor compreender o estágio atual na distribuição dessas competências, é importante
então atentar para as etapas e para o objeto do processo por ato infracional:
20
Sempre haverá processo e decisão, mesmo que o processo de conhecimento possa ser abreviado mediante
a cognição sumária oportunizada pela remissão, casos em que a decisão a respeito da medida não será
impositiva mas homologatória.
Administração (atendimento sócio-educativo)
Processo de Conhecimento
20
Infração Decisão* Extinção
Jurisdição (conflitos jurídicos incidentes)
Processo de Execução
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
152
ORGANIZAÇÃO JUDICIAL EXECUTORA TRADICIONAL
Temos visto resultar da referida indiferenciação conceitual das competências na execução
das medidas, particularmente no que se refere às medidas de meio aberto, a persistência de
Varas da Infância e da Juventude simultaneamente cumprindo atribuições jurisdicionais e
administrativas, isto é, jurisdicionando os conflitos e promovendo o atendimento sócio-educativo
no âmbito da organização judicial executora.
RECONFIGURAÇÃO & DESJUDICIALIZAÇÃO
Para que se oportunize o avanço do processo de configuração organizacional da Rede de
Atenção à infância, visto do ponto de vista do Sistema de Justiça, tem-se por pressuposto a
transposição definitiva dos serviços administrativos de atendimento às esferas institucionais
JURISDIÇÃO ADMINISTRAÇÃO
Incidentes Jurídicos da Execução Atendimento Técnico-Pedagógico
JUIZADOS EXECUTORES
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
153
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Chegando-se a este momento, no entanto, não basta a mera transposição de atribuições e
competências funcionaiseste é o momento do “salto quântico”, ou seja, do processo de
mudança descontínua, anteriormente referido, em que a organização judicial poderá migrar
definitivamente para o modelo matricial e, assumindo os atributos correspondentes, atuar com
maior dinamismo como agente de integração, regulação e propulsão da rede.
competentes, reconhecendo-se a necessidade de desjudicialização do atendimento como
pressuposto da readequação do funcionamento dos serviços propriamente jurisdicionais a fim
de prestá-los com maior rapidez, segurança e eficácia.
(A) RECONFIGURAÇÃO DO JUIZADO (ETAPA I)
DESJUDICIALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO
Atendimento Técnico-Pedagógico
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
154
(B) RECONFIGURAÇÃO DO JUIZADO (ETAPA II) ESTRUTURA MATRICIAL
11 REPRODUÇÃO HOLÍSTICA DO MODELO
Alcançado o modelo de organização matricial com relação ao conjunto da rede e com
relação à estrutura interna de cada qual operadores do Sistema de Garantia de Direitos, um
dos seus produtos mais relevantes passa a ser a possibilidade de recombinar-se virtualmente e
materializar-se em sua inteireza na intervenção de cada ator e no atendimento a cada caso
concreto.
Como num holograma em que cada fragmento contém em si a capacidade de reproduzir o
conjunto da imagem da qual é extraído, cada integrante de rede, independentemente da posição
e da hierarquia que ocupe, estará em condições não apenas de operar com a mesma lógica e
produzir o máximo em resolutividade pelo dinamismo processual da intervenção, mas
especialmente estará em condições de promover de forma praticamente instantânea a
recombinação do sistema no quanto diga respeito ao atendimento daquele caso, naquele lugar,
promovendo o comparecimento articulado dos demais atores cujas funções se fazem necessárias.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
155
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Para ilustrar, suponha-se o exemplo de um adolescente usuário de drogas que, após a
prática de um ato infracional e como conseqüência acessória da aplicação de uma medida
sócio-educativa de liberdade assistida (ECA, art. 112, inc. IV) pelo Juizado, tendo sido também
encaminhado a tratamento psicológico (ECA, art. 101, inc. V) e da drogadição (ECA, art. 101, inc.
VI), bem como reinserido na escola (CF, art. 227 c/c ECA, arts. 4
o
, 101 inc. III e 129 inc. VI), e
encaminhado a atividades ocupacionais profisisonalizantes e de arte-educação (CF, art. 227,
ECA, art. 4
o
) no turno alternado da escola, bem como cuja família tenha sido encaminhada a
atendimento em programa de apoio sócio-familiar (ECA, art. 129, inc. IV).
Do ponto de vista da escola a rede no caso poderia estar-se recombinando com a seguinte
configuração:
Exemplo de atendimento em rede (escola):
O que se tem aí vai além da clareza possibilitada pela visualização do organograma matricial
recombinado para o caso concreto para residir na referência sempre presente à inserção legal
de cada atorconsiderado o ponto de vista do sistema de garantias, e de cada providência
encaminhadaconsiderado o ponto de vista do destinatário das medidas. Por conseqüência,
sua adoção é simultaneamente evocativa do modelo organizacional e da matriz normativa que
lhe serve de fundamento, de modo que seu emprego traz sempre implítica a evocação da força
cogente das normas de proteção incidentes.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
156
12 CONCLUSÃO
Embora a singeleza da formulação exposta, construída com a colagem criativa e
despretensiosa de inúmeros fragmentos de aprendizagem teórica mistos com as percepções
empíricas advindas do cotidiano do autor como juiz da Infância e da Juventude, fica a contribuição
com a expectativa de que possa de algum modo ser útil a uma discussão local mais consistente
sobre a concepção do respectivo Sistema de Garantias e a configuração e operação da
correspondente rede de atendimento.
Ampliando um pouco mais o foco, podemos visualizar a integração de todos os segmentos
envolvidos num circuito dinâmico de mobilização social capaz de promover o resgate da
dignidade de todas as crianças e jovens de nosso país, partindo da base ética intransigível
representada pelos valores fundamentais e alicerçada na escola como ponto de apoio
fundamental para que o Sistema de Garantias possa efetivar-se com acesso universal para
todas as crianças. Um objetivo dessa magnitude somente pode ser atingido pela integração de
todos os envolvidos, formando grupos ou comitês de ação de base que colocarão a roda em
movimento:
MOBILIZAÇÃO SOCIAL NA
EFETIVAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
157
CAP.3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Leoberto Narciso Brancher
Fica a ressalva de que as representações gráficas adotadaspor vezes beirando a licença
poética, como no desenho do cataventomais expressam um esforço de simplificar a decodificação
e a organização das informações sobre as quais se constrói a visão do Sistema, do que pretendem
oferecer um modelo de representação visual estático e acabado.
Na verdade, sua expressão melhor corresponderia a um jogo de cartas, com infinitas e
inesperadas recombinações, embora seguindo um conjunto de regras e um fluxo de ordenação
pré-determinadas, ou ainda a um livro de páginas soltas que, pretendendo falar sobre a vida,
tivessem de reaparecer em meio a permanente movimento para reescreverem os infinitos enredos
possíveis.
Aos que, como nós, tiveram o privilégio de nascer no futuro com a oportunidade de nele
inscrever a ressignificação do passado, não é dado ignorar as complexas implicações da
civilização e da cultura da pós-modernidade. E, homenageando sua chegada, vale lembrar as
Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino,
21
cunhadas como atributos estilísticos
da nova literatura, mas que se fazem quase que auto-suficientes para relacionar as virtudes
deste Sistema que tanto esforço nos custa para descrever: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade,
multiplicidade, consistência.
Valem para aferir da adequação das nossas práticas na aplicação da Lei 8.069/90
igualmente cunhada com o espírito do terceiro milênio. Enquanto não possamos responder
sim à presença de cada uma delas na qualidade do serviço que passa pelas nossas mãos, ainda
teremos muito caminho pela frente.
Que sejamos incansáveis em trilhá-lo.
21
Calvino, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio, Cia. das Letras, 1995.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
159
4
CAPÍTULO
CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA
PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen*
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 160
2 O CONSELHO TUTELAR ..... 161
2.1 O IMPACTO DA ALTERAÇÃO ESTRUTURAL ..... 161
2.2 O CONSELHO TUTELAR NO SISTEMA DE ATENDIMENTO ..... 162
2.3 O CONSELHO TUTELAR ENQUANTO ÓRGÃO ..... 165
2.4 A AUTONOMIA DO CONSELHO TUTELAR ..... 167
2.5 A NATUREZA PERMANENTE E NÃO-JURISDICIONAL DO CONSELHO TUTELAR ..... 170
2.6 AS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO TUTELAR ..... 172
3 A ATUAÇÃO DA ESCOLA E O DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 185
4 A EDUCAÇÃO COMEÇA EM CASA ..... 188
5 CONCLUSÃO ..... 190
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 190
* Afonso Armando Konzen é procurador de Justiça, assessor do procurador-geral de Justiça, atual diretor da
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e membro do Conselho Técnico-Cientí-
fico da ABMP.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
160
O texto analisa os papéis do Conselho Tutelar, da escola e da família com a educação
escolar da criança e do adolescente. Traz à discussão a ruptura orgânica e cultural introduzida
pelo Estatuto, realça a função do Município e reflete sobre algumas das dificuldades técnico-
jurídicas derivadas da concepção, organização e funcionamento do Conselho Tutelar. Por
fim, sinaliza para o exercício compartilhado, por todos os segmentos diretamente envolvidos,
da educação escolar da criança e do adolescente.
1 INTRODUÇÃO
A efetividade do direito à educação da criança e do adolescente depende da consciência e
da ação dos pais ou do responsável. Depende, também, da atuação da escola, encarregada
pelo processo educativo em todos os seus aspectos. O exercício do direito à educação da
criança e do adolescente também não pode dispensar a organização e o funcionamento do
Conselho Tutelar, alteração estrutural introduzida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e
principal fenômeno de ruptura com o sistema de atendimento até então vigente no Brasil.
Considerações sobre o que é o Conselho Tutelar e qual é a sua natureza jurídica, a
abrangência e o significado técnico de cada uma de suas atribuições, as principais repercussões
da atuação do órgão em defesa e promoção do direito à educação, são pontos que se pretendem
enfocar, sem prejuízo de reflexões sobre algumas das dificuldades de interpretação da legislação
tutelar, especialmente em relação ao perfil institucional desse relevante serviço público. O
enfoque terá predominância jurídica, resultado de preocupações com a definitiva assunção,
pelos Municípios brasileiros, do atendimento a suas crianças e jovens, Municípios que têm, na
organização e no funcionamento do Conselho Tutelar, oportunidade rara de ocupação de
espaço, de afirmação enquanto ente político da Federação e, na contrapartida, de prestar
serviços de genuíno interesse a sua população.
Ainda que o objetivo central resida em refletir em torno da atuação do Conselho Tutelar
em defesa do direito à educação, já é tempo de os operadores jurídicos, especialmente os
membros da Magistratura e do Ministério Público, assumirem ainda maiores compromissos
com a afirmação institucional do Conselho Tutelar, para o que não se pode perder de vista, em
nenhum momento, não só a real dimensão jurídica dos encargos do órgão tutelar, mas também
a sua correta inserção no contexto dos demais serviços públicos.
No tocante à escola, aos sistemas de ensino e seus operadores, o desafio não é de menores
proporções. Sem a compreensão da verdadeira e da ainda recente configuração estrutural
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
161
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
produzida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com a definição de novos
papéis e encargos a cada unidade escolar, sem o conhecimento das funções do professor e dos
dirigentes dos estabelecimentos de ensino, inclusive a exata dimensão das tarefas atinentes ao
atendimento de crianças e adolescentes com dificuldades na escola, sem a ciência das reais
possibilidades de agir em sintonia e com afinidade sistêmica, a realização do direito à educação
da criança e do adolescente certamente ainda estará longe de se constituir em uma realidade
concretizada. Por isso, a proposta de uma reflexão sobre o perfil de atuação da nova escola,
não mais tão-somente responsável pela processo de ensino propriamente dito, mas sintonizada
com a doutrina da proteção integral e membro da rede pública legitimada a proporcionar e a
propor o asseguramento de um direito indispensável ao desenvolvimento de crianças e jovens,
notadamente no que diz para com a atuação compartilhada em defesa do direito à educação.
Por fim, nunca é demais realçar o papel dos pais para com a educação dos filhos. As
perspectivas de análise, ainda que voltadas precipuamente para determinados aspectos técnicos,
sempre devem sinalizar para a concepção sistêmica e o sentido integrador não só dos cuidados
desde a família, mas também das providências dos legitimados para o processo educativo
escolar e da ação das autoridades constituídas.
2 O CONSELHO TUTELAR
2.1. O IMPACTO DA ALTERAÇÃO ESTRUTURAL
Segundo o artigo 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “o Conselho Tutelar é
órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei”. Apesar da aparente
singeleza do texto, a facilidade termina com a percepção da real profundidade e significado da
ruptura estrutural, filosófica e jurídica produzida pelo dispositivo em relação aos organismos
oficiais até então legitimados a responder pelas questões da infanto-adolescência. Os intérpretes
da norma, mesmo os que fazem anotações a todos os dispositivos do texto legal, ou tratam da
matéria com alguma superficialidade, ou apresentam, em geral, sincera e confessada dificuldade
em situar, frente às normas constitucionais e da legislação atinente à organização administrativa,
essa peculiar estrutura de atendimento proposta pelo Estatuto.
1
1
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) no presente texto é referido
apenas pelo termo Estatuto, em vez de ECA, pelo sentido depreciativo dos efeitos sonoros da sigla especial-
mente no Sul do País, notadamente em regiões de colonização alemã.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
162
Não poucas vezes, influenciados pela compreensão dos fenômenos sociais a partir de um
enfoque específico, escrevem-se verdadeiras infrações à lógica da organização dos serviços públicos
e à autonomia dos entes da Federação. Compreende-se, então, com maior facilidade, a resistência
à estruturação e regular funcionamento dos Conselhos Tutelares nos Municípios. Há razões além
da ausência da vontade política e do desconhecimento do como exatamente proceder nas esferas
públicas e não governamentais, fatores, em geral, considerados preponderantes para justificar a
dificuldade. A resistência também encontra guarida na falta de clareza de como situar o Conselho
Tutelar no contexto da organização municipal, do que consistem precisamente a autonomia do
órgão e as prerrogativas dos seus agentes, de como proceder a sua correta inserção no contexto
dos demais entes do Município e de como conviver com a determinação das providências que
lhe são afetas sem conflitos nas esferas hierárquicas e políticas da localidade. Não se pretende,
aqui, esgotar a análise do tema e tampouco inovar na propositura de soluções ou alternativas
com menos resistência cultural. Pretende-se apenas contribuir com a reflexão acerca do fenômeno
e suscitar a colaboração ainda maior dos operadores jurídicos para com a propositura de soluções
frente ao descompasso entre a realidade fática e a realidade formal.
2.2 O CONSELHO TUTELAR NO SISTEMA DE ATENDIMENTO
O Estatuto, ainda que o faça com pouca veemência sistêmica, propôs estruturas para as
providências frente ao caso concreto toda vez que uma criança ou adolescente encontrar-se em
situação de proteção especial.
2
Recebeu tal proposta estrutural segura influência das linhas de
ação e das diretrizes da política de atendimento (artigos 87 e 88 do Estatuto), dentre as últimas,
2
O artigo 98 do Estatuto, em seus incisos, arrola situações fáticas que, se ocorrentes, exigem, obrigatoriamen-
te, a pronta interferência do poder público, por um de seus órgãos legitimados, em proteção aos direitos
fundamentais da criança ou do adolescente. O rol de situações, em verdade similares aos do artigo 2º do
revogado Código de Menores, dispositivo definidor das hipóteses do chamado “menor em situação irregu-
lar”, ainda não permitiu aos estatutistas cultuar um único termo simbólico para as incidências citadas no
artigo 98 da lei. São usuais termos diversos, como crianças ou adolescentes “em situação de risco”, “em
situação de tutela especial”, “em circunstâncias especialmente difíceis”, entre outros. Alguns, notadamente
os ainda atrelados à doutrina do menor em situação irregular, preferem resistir e utilizar o termo “em
situação irregular”. No presente texto emprega-se o termo “em situação de proteção especial”, para configu-
rar a excepcionalidade e o caráter supletivo da intervenção do poder público e diferenciar tais situações
daquelas justificadoras da atuação em razão do ato infracional do adolescente. Ao mesmo tempo, preten-
de-se facilitar a leitura, não para elaborar uma nova categoria jurídica ou social suscetível de tratamento
discriminatório, como antes, mas apenas como um facilitador terminológico e, também, desde logo,
caracterizador da natureza da atuação do poder público.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
163
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
a municipalização, a participação do cidadão por entidades representativas, a descentralização
político-administrativa, a integração operacional dos órgãos de atuação em face da conduta do
adolescente autor de ato infracional, a captação e gestão diferenciada de recursos financeiros
e a mobilização da opinião pública destinada à indispensável participação dos segmentos
sociais organizados. A chave para a compreensão da proposta de atuação e de determinação
de providências, tanto na esfera do poder público como da sociedade organizada, é a palavra
atendimento.
Por atendimento (ato ou efeito de atender) pode-se compreender a ação de dar ou de
prestar atenção, ou, então, de tomar em consideração, levar em conta, ter em vista, considerar,
atentar, observar, notar. Atendimento também pode significar acolher, receber com atenção ou
cortesia, tomar em consideração, dar audiência, dar despacho favorável, deferir, ficar ou estar
atento, escutar atentamente, escutar ou aguardar.
3
Muito mais do que o sentido gramatical da
palavra, importa o sentido jurídico, contexto em que se permite compreender o atendimento
preconizado pelo Estatuto como o conjunto de ações de fato tendentes a responder pela
efetividade dos direitos fundamentais da infância e da adolescência.
Um conjunto de direitos, no anverso, vem sempre precedido de um conjunto de deveres.
O dever de exercer direitos ou de velar pelo seu exercício constitui-se em responsabilidade
atribuída pelo legislador, em primeiro lugar, ao próprio poder público, capaz de ordenar, com
autoridade, as providências necessárias ao reparo do direito transgredido. As instâncias do
poder público, investidas em autoridade para determinar providências no caso concreto, são,
nas suas respectivas esferas de competência, o Poder Judiciário, pelo juiz da Infância e da
Juventude, e, a mais importante inovação do Estatuto, o Conselho Tutelar, entes legitimados a
emprestar à ordem pública o necessário sentido de cogência. A atuação do primeiro, do juiz,
situa-se no campo estrito da prestação jurisdicional. Para o segundo, o Conselho Tutelar,
resulta a investidura para determinar providências de natureza administrativa.
Além de situar autoridades públicas legitimadas a determinar providências, propõe a
legislação, no passo seguinte, o atendimento como um todo organizado e sistêmico. A uma, ao
prever organismos de promoção e defesa dos direitos fundamentais, alguns voltados para o
controle ou o acesso ao Poder Judiciário, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, ao
lado de organizações não governamentais, legitimadas, inclusive, para a defesa judicial dos
interesses difusos e coletivos.
4
A duas, pela participação popular na formulação e controle das
3
Ver Novo Dicionário Aurélio, Editora Nova Fronteira, 1ª edição, pág. 154.
4
Artigo 210, inciso III, do Estatuto.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
164
ações, pelas organizações não governamentais com assento nos Conselhos de Direitos. E, por
fim, pela definição de um conjunto de medidas, procedimentos e programas, programas
suscetíveis de instalação e de manutenção tanto pelo poder público como por organismos não
governamentais.
Atendimento, assim, é sinônimo de providências de fato garantidoras dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente, consistentes em políticas públicas, na atuação de
autoridades frente ao caso concreto e capazes de determinar providências (aplicar medidas e
sanções aos transgressores), na existência de organismos de promoção e de defesa, na previsão
de ritos (procedimentos) e na existência de programas (retaguardas para o cumprimento das
providências determinadas), enfim, um conjunto de organismos, medidas, ritos e retaguardas
que conferem ao atendimento proposto pelo Estatuto uma concepção sistêmica.
O Conselho Tutelar espelha a presença de diversas diretrizes da política de atendimento,
dentre as quais, sem dúvida, a municipalização, ainda que diversos autores também entendam
que o Conselho Tutelar cumpre a diretriz da descentralização.
5
Ao reordenar as estruturas
oficiais com investidura para determinar providências, o Estatuto, pelos mecanismos de
despolicialização e a desjudicialização,
6
atribuiu, ao ente estatal mais próximo da população,
ao Município, a possibilidade de atuar no campo da determinação das providências em proteção
individual de cada criança ou adolescente, com o fim precípuo de lhes garantir, em concreto,
5
Descentralizar, na concepção dos Decretos-Lei 200/67 e 900/69, diplomas legais estruturadores da organiza-
ção administrativa da União, significava a transferência de certas atividades a particulares, visto que, “pelo
contrário, quando as desempenha ele próprio, Estado, estará mantendo tais atividades centralizadas”, no
dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello. No entanto, o vocábulo vem adquirindo dupla conotação, com
o sentido de repassar encargos para órgãos da mesma esfera da organização estatal, sendo empregado
como sinônimo de “desconcentração”, ou, com o sentido de repassar determinada função para outro ente
estatal, mais próximo da população. Sobre a matéria e para compreender a distinção entre descentralização
e desconcentração, remete-se aos comentários do autor citado, em Curso de Direito Administrativo, 12ª
edição, Malheiros Editora, págs. 105 e 129/130.
6
O magistrado catarinense Eralton Joaquim Viviani (ver em Comentários ao Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, Liborni Siqueira e outros, Editora Forense, 1ª edição, pág. 114 e seguintes) usa o termo “desjurisdicização”
para configurar a perda de responsabilidade do Juizado para o Conselho Tutelar. No entanto, vênia ao
entendimento, o legislador do Estatuto não repassou nenhuma matéria jurisdicional ao Conselho Tutelar,
mas atribuições de natureza administrativa que até então eram exercidas pelo Juizado de Menores, num
evidente desvio de finalidade, já que ao Poder Judiciário, na essência, compete prestar a jurisdição. Por
isso, o fenômeno consistiu na retirada de funções administrativas, fenômeno de desjudicialização.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
165
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, tema sobre o qual não divergem os
intérpretes. A dificuldade instala-se no momento da configuração jurídica e política da estrutura
de atendimento criada pelo legislador federal.
2.3 O CONSELHO TUTELAR ENQUANTO ÓRGÃO
O Conselho Tutelar é um órgão. O que é um órgão? A que corpo pertence o órgão Conselho
Tutelar, ou é ele um órgão sem corpo?
Por órgão, na visão tradicional do Direito Administrativo, entende-se a unidade da
organização estatal a que se confere um conjunto de competências. “Órgãos são unidades
abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado”.
7
Órgão é “cada uma das
partes dum organismo... que exerce uma função especial”.
8
Ou, na visão mais restrita da lição
do administrativista Hely Lopes Meirelles e para situar os órgãos na esferas públicas,
“órgãos públicos são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais,
através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem. São unidades
de ação com atribuições específicas na organização estatal. Cada órgão, como centro de competência
governamental ou administrativa, tem necessariamente funções, cargos e agentes, mas é distinto
desses elementos, que podem ser modificados, substituídos ou retirados sem supressão da unidade
orgânica. Isto explica porque a alteração de funções, ou a vacância dos cargos, ou a mudança de
seus titulares não acarreta a extinção do órgão”.
9
Se o Conselho Tutelar é um órgão instituído pelo poder estatal, é de se concluir
obrigatoriamente ser ele pertencente ao poder público,
10
membro de um todo maior. Nessa
7
Celso Antônio Bandeira de Mello, obra citada, pág. 106.
8
Em Novo Dicionário Aurélio, edição citada, pág. 1.005.
9
Em Direito Administrativo Brasileiro, 8ª edição, Editora Revista dos Tribunais, págs. 47/48.
10
Autores classificam o Conselho Tutelar como resultado do exercício direto do poder pela população,
possibilidade inscrita no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, modalidade genericamente
tratada como democracia participativa (v.g., em Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Munir Cury
e outros, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, pág. 120; ou texto da promotora de Justiça Valéria
Teixeira de Meiroz Grillo, na Revista Igualdade nº 8 – publicação do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná, pág. 25; ou anotação do
magistrado carioca Judá Jessé de Bragança Soares, em Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado,
Malheiros Editores, 3ª edição, pág. 432; ou escrito da promotora de Justiça Ana Maria Moreira Marchesan,
em Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, nº 37, pág. 252, só para exemplificar), numa
formulação sem maiores explicitações. O exercício direto do poder pela população vem proposto pela
ordem constitucional, com exceção da iniciativa popular para a apresentação de projetos de lei ao Legislativo,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
166
hipótese, a que unidade administrativa maior pertence o Conselho Tutelar? Acerca do tema,
também pouco divergem os intérpretes, visto que há praticamente unanimidade no sentido de
classificar o Conselho Tutelar como um órgão do Município, ainda que instituído e parcialmente
regulamentado pelo legislador ordinário federal, possibilidade constitucionalmente admissível,
em razão da matéria (ou seja, proteção à infância e à juventude, nos termos do artigo 24, inciso
XV, da Constituição Federal). No entanto, enquanto órgão público municipal, o Conselho
Tutelar não tem personalidade jurídica nem vontade política própria, “que são atributos do
corpo e não das partes”, no dizer de Hely Lopes Meirelles,
11
embora, na área de suas atribuições
e no limite de sua competência funcional, expressem os conselheiros, enquanto agentes do
órgão, a vontade do órgão. Sobre o assunto, assim manifestou-se a Procuradoria-Geral do
Estado do Rio Grande do Sul, ao responder a consulta formulada pela então Presidência da
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor: “Embora a Lei nº 8.069/90 não seja explícita acerca
da questão, a análise dos seus dispositivos permite concluir, com segurança, que tal Conselho
é órgão da administração municipal, destituída de personalidade jurídica, como é de praxe...”.
12
Se o Conselho Tutelar é órgão municipal instituído pelo legislador federal, por óbvio, sua
criação não depende da legislação municipal. “Diversamente do que ocorre quanto ao Conselho
Municipal (ou Estadual ou Nacional) dos Direitos da Criança e do Adolescente, que depende
de criação por lei municipal (ou estadual ou federal), o Conselho Tutelar já se encontra, desde
logo, criado pela Lei nº 8.069/90, cabendo à lei municipal apenas dispor sobre o seu
do referendo popular, do plebiscito e da ação popular, praticamente sempre na modalidade de participa-
ção por meio de organizações representativas (v.g., artigos 194, 198, inciso II, 204, inciso II, 205 e 227, § 7º,
da Constituição Federal), como deve ocorrer, adequadamente, no Conselho de Direitos, pelo assento
paritário de entidades não governamentais e governamentais. O Conselho Tutelar, no entanto, é órgão
estatal cujos agentes atuam em nome da sociedade, como acontece com quaisquer dos outros agentes no
exercício de funções públicas. No caso, o exercício das responsabilidades que lhe são afetas deriva de lei
ordinária federal e não da vontade da população, que se limita à participar do processo de escolha,
segundo critérios e condições definidas pelo legislador municipal. Por isso, vênia às doutas posições
citadas, o Conselho Tutelar não é modalidade de exercício do poder diretamente pela população ou pela
comunidade, mas constitui-se em serviço público cujos agentes exercem parcela de poder por investidura
legal, com origem em legislação resultante do exercício do poder pelos representantes eleitos e com
assento no Congresso Nacional e nas Câmaras Municipais.
11
Obra citada, pág. 49.
12
Parecer nº 8.835, de 25 de junho de 1991, emitido no Processo nº 08557-10.00/90.7PGE, subscrito pela
procuradora do Estado Verena Nygaard e aprovado pelo então procurador-geral do Estado Gabriel Pauli
Fadel, ambos da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
167
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
funcionamento, nos termos do artigo 134,
13
e sobre o processo eleitoral,
14
conforme previsto
no artigo 139. A diferença de tratamento apontada fica evidente não só à luz dos artigos 88, II
(que prevê a criação dos conselhos municipais, estaduais e nacional por leis municipais,
estaduais e federal) e 134 (que, quanto ao Conselho Tutelar, restringe o conteúdo da lei
municipal ao funcionamento do colegiado), mas também pela redação dos artigos 261, que
dispõe para o caso de ‘falta’ dos conselhos municipais, e 262, que prevê a situação temporária
‘enquanto não instalados os Conselhos Tutelares”.
15
Em resumo, o Conselho Tutelar é órgão da administração pública municipal instituída
pelo legislador federal, sendo competente o Município para regulamentar o órgão com vistas a
sua instalação e funcionamento.
2.4 A AUTONOMIA DO CONSELHO TUTELAR
Dispõe o artigo 131 do Estatuto ser o Conselho Tutelar um órgão autônomo. Qual o
significado e quais são os limites dessa autonomia? A quem pertence a autonomia, ao órgão ou
aos seus agentes?
O legislador federal, ao conceituar o Conselho Tutelar como órgão autônomo, não definiu a
natureza dessa autonomia e tampouco estabeleceu os limites. A matéria diz para com a classificação
dos órgãos públicos, tema afeto ao Direito Administrativo, e como tal deve ser tratada.
Órgãos autônomos não são órgãos independentes, considerados, os últimos, como aqueles
“colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou
funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro... Esses órgãos
detêm e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase judiciais outorgadas
diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente por seus membros
13
Convictos da necessidade da criação, pelo Município, do Conselho Tutelar, sustentam diversamente, v.g.,
Tânia da Silva Pereira (em Direito da Criança e do Adolescente, Editora Renovar, pág. 607), Edson Sêda (em
A Criança e o Direito Alternativo, Edição Adês, pág. 144, ou em Brasil Criança Urgente, Columbus Cultural
Editora, 1ª edição, pág. 57), Wilson Donizeti Liberati (em Comentários ao Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, edição IBPS, pág. 77), entre outros. A diferença, aparentemente, tem pouca relevância jurídica. No
entanto, assume importância capital no momento da visualização das perspectivas de exigibilidade da
atribuição conferida pelo legislador federal ao ente municipal, desde a possibilidade jurídica de estar em
juízo em matéria dessa natureza, o instrumento de coerção adequado, a ação cabível, o objeto da ordem
judicial a ser alcançado e, ao final, a efetividade do provimento judicial.
14
Parecer com data anterior à alteração do artigo 134 do Estatuto pela Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991.
15
Parecer da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul anteriormente citado, págs. 9/10.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
168
(agentes políticos, distintos de seus servidores que são agentes administrativos), segundo
normas especiais e regimentais”.
16
São considerados, em geral, órgãos independentes os Poderes
de Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário – e outros, v.g., os Ministérios Públicos e os
Tribunais de Contas.
Órgãos autônomos são considerados os situados na cúpula da Administração, imediatamente
abaixo dos órgãos independentes e diretamente subordinados a seus chefes. Têm, em geral,
ampla autonomia administrativa, financeira e técnica, exercendo funções precípuas de
planejamento, supervisão e execução da matéria de sua competência, dependentes, no entanto,
da vontade política do governo. Os dirigentes dos órgãos autônomos, como os Ministérios, as
Secretarias de Estado e de Município, são, em regra, agentes políticos nomeados em comissão.
Nessa categoria não se enquadra o Conselho Tutelar, pela peculiaridade de investidura e pelo
mandato de seus agentes, ou seja, os conselheiros não exercem as suas funções pela vontade
política do governo e tampouco são suscetíveis de livre nomeação e demissão pelo chefe do
Executivo Municipal.
Por isso, a autonomia do Conselho Tutelar, em geral, é vista como sinônimo tão-somente
de autonomia funcional, ou seja, em matéria de sua competência, quando delibera ou quando
toma decisões, quando age ou quando aplica medidas, não está sujeito a qualquer interferência
externa, a qualquer tipo de controle político ou hierárquico. As decisões, de natureza
administrativa, são irrecorríveis, somente podendo ser questionadas e revistas em ação própria
perante o Poder Judiciário.
Se o Conselho Tutelar é um órgão autônomo, essa autonomia, afinal, é do órgão ou de
seus agentes? A interpretação primária conduz à conclusão de que a autonomia é do órgão. No
entanto, em se tratando de autonomia funcional, a definição do exercício da autonomia depende
de regulamentação, vez que diz propriamente com o funcionamento do órgão. Especialmente
porque o Conselho Tutelar, órgão público encarregado de verificar situações relacionadas a
indivíduos, a pessoas, a famílias (a casos, portanto), não é classicamente um “conselho”, assim
entendido um “corpo coletivo de pessoas a que compete dar parecer ou pronunciar-se
relativamente a assunto submetido a sua fiscalização ou deliberação”.
17
Conselhos, de costume, exercem funções de natureza política, assim considerada, por
exemplo, a função de expressar posição ideológica a respeito da gestão dos negócios públicos
ou de determinada ação governamental e de decidir por aquela solução de maior interesse
16
Hely Lopes Meirelles, obra citada, pág. 51.
17
Em Dicionário de Tecnologia Jurídica, Pedro Nunes, Livraria Freitas Bastos, 8ª edição, pág. 343.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
169
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
público, como é, sem dúvida, o papel dos Conselhos de Direitos. As funções do Conselho
Tutelar não têm conteúdo político estrito, são funções de natureza técnica, no sentido de que
a solução do caso é ditada pela norma legal e é nela que o conselheiro inspira a sua decisão.
18
Por isso, a função propriamente dita, como, por exemplo, aplicar determinada medida, não
necessita obrigatoriamente ser exercida pelo conjunto dos conselheiros, mas a regulamentação
municipal do Conselho pode definir a situação em respeito às peculiaridades locais, atribuindo
a tarefa individualmente a cada conselheiro ou ao colegiado do Conselho. Sustenta-se, portanto,
aqui, a posição de que o Município tem capacidade de legislar supletivamente sobre a matéria,
mesmo porque se cuida de órgão integrante de sua estrutura administrativa e a possibilidade
de suplementar, em tais situações, a legislação federal e estadual no que couber, está autorizada
pela Constituição Federal (artigo 30, inciso II).
Outra dificuldade, com origem na concepção da autonomia do Conselho, é a definição da
natureza jurídica do vínculo entre o conselheiro e a municipalidade. Ou seja, enquanto servidor
de um órgão público, enquanto pessoa física investida na qualidade de agente de um órgão
público, quem é, exatamente, o conselheiro tutelar?
Ainda que divirjam entre si os doutos do Direito Administrativo quanto à melhor
classificação, tem prevalecido, em geral, a compreensão de Hely Lopes Meirelles, autor da
classificação dos agentes públicos
19
em agentes políticos, agentes administrativos, agentes
honoríficos e agentes delegados. Não se pretende, aqui, discorrer alongadamente sobre a
complexa temática. No entanto, diante do atual ordenamento jurídico do país e frente à natureza
18
Em Trabalhando Conselhos Tutelares, caderno nº2 de uma série, iniciativa meritória do Instituto de Estudos
Especiais da PUC-SP e do então Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência – Escritório Regional de
São Paulo –, Denise Neri Blanes, Maria do Carmo Brant de Carvalho e Maria Cecília Rôxo Nobre Barreira
situam o Conselho Tutelar como um espaço político de atenção à criança e ao adolescente, “onde um
colegiado de munícipes, escolhidos pela comunidade local, é responsável pela garantia e efetivação dos
direitos assegurados a crianças e adolescentes”. Dizem mais: “Exatamente por ser autônomo e não-
jurisdicional, deve servir como mediador entre comunidade e Poder Judiciário, entre comunidade e poder
público local, na defesa e promoção dos direitos da criança e do adolescente”, e, mais adiante, “o Conse-
lho Tutelar não presta serviços diretos, não assiste diretamente. Ele atende às reivindicações, às solicitações
que são encaminhadas pelas crianças, jovens, suas famílias e população em geral” (ver págs. 8 e 9 da
publicação), interpretação que transforma o Conselho Tutelar, com todo respeito, a uma espécie de ‘Parti-
do Político da Criança e do Adolescente”.
19
“Agentes públicos são todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de
alguma função estatal” (Hely Lopes Meirelles, obra citada, pág. 56).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
170
das funções atribuídas ao Conselho Tutelar, é possível afastar, de plano, o enquadramento dos
conselheiros tutelares enquanto agentes administrativos e agentes delegados.
20
Restaria, para
análise, as opções de serem eles ou agentes políticos ou agentes honoríficos.
21
A partir tão-só
das disposições do Estatuto, tal classificação não é possível, vez que a configuração jurídica do
agente público conselheiro tutelar é umbilicalmente dependente da regulamentação municipal.
Por isso, somente com os olhos voltados para a legislação de cada Município é possível a exata
configuração jurídica do vínculo do agente tutelar com a Administração.
2.5 A NATUREZA PERMANENTE E NÃO-JURISDICIONAL DO CONSELHO TUTELAR
Segundo o conceito legal, o Conselho Tutelar é um órgão permanente. Ser permanente tem o
significado de organização estável, contínua e ininterrupta, o oposto de eventual. Porque órgão
permanente, deve o Conselho Tutelar assumir toda a matéria de sua competência e ser organizado
para responder por toda a demanda que lhe é peculiar, característica essencial a todo órgão
público. O significado de atendimento contínuo e ininterrupto não diz para com a disponibilidade
por determinado lapso temporal, mas relaciona-se com a matéria de competência do órgão. Em
outras palavras, ao dispor sobre o funcionamento, pode o legislador municipal organizar a prestação
dos serviços pelo Conselho em dias e horários, em consonância com as peculiaridades próprias
de cada Município, sem que haja transgressões à natureza permanente do órgão.
O conceito de órgão não jurisdicional situa o Conselho Tutelar na esfera da atividade
administrativa. Nessa condição, não lhe é natural assumir a responsabilidade de solver os
20
Sobre a natureza jurídica da função de conselheiro tutelar, precipuamente em face da legislação do Município
de Porto Alegre, RS, e com amplo estudo sobre a matéria, inclusive com o alerta sobre a necessidade de dispor
sobre o assunto na Constituição Federal (tese também aprovada no 1º Congresso Nacional sobre Conselhos
Tutelares), ver articulado da procuradora do Município Vanêsca Buzelato Prestes, em Revista da Procurado-
ria-Geral do Município de Porto Alegre, nº 12, págs. 61/78, de setembro de 1998.
21
Sustenta a tese de que o conselheiro tutelar é agente honorífico o promotor de Justiça Guilherme Freitas de
Barros Teixeira, do Ministério Público do Paraná, aos responder a consulta do Conselho Tutelar de Planal-
to, PR, sobre a aplicação a seus membros das regras de inelegibilidade tratadas pela legislação eleitoral,
posição que teria sido acolhida, inclusive, pelo Tribunal Superior Eleitoral (em Revista Igualdade nº 11,
publicação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, órgão do
Ministério Público do Paraná, págs. 20/22). Considera o conselheiro tutelar agente político o promotor de
Justiça Luíz Alberto Thompson Flores Lenz, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com argumenta-
ção, inclusive, acerca da possibilidade jurídica da destituição do conselheiro por ordem judicial emanada
em sentença de ação civil pública, em judicioso escrito publicado pela Revista Igualdade nº 13, págs. 4/11.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
171
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
conflitos de interesses ou aplicar sanções aos transgressores do ordenamento jurídico, matéria,
em geral, afeta à prestação jurisdicional. Portanto, o Conselho Tutelar não julga casos, no
sentido de dizer a verdade para partes eventualmente em conflito, tampouco aplica sanções,
no sentido de punir eventuais transgressores da norma. O proceder do agente tutelar, por
situar-se na esfera administrativa, limita-se a verificar a situação, formar o seu juízo de valor e
determinar, a partir do seu convencimento, a melhor providência para o caso concreto.
Por se tratar de atividade não jurisdicional e as providências suscetíveis de aplicação
caracterizarem-se pela total ausência de retribuição, faz-se que na atuação do Conselho Tutelar
inexista necessariamente um contencioso administrativo, com o que, ainda que se apresente
uma atuação com todas as características de um processo, ou procedimento, as pessoas atendidas,
crianças ou adolescentes, pais ou o responsável, não necessitam, obrigatoriamente, exercer
defesa técnica, papel tradicional da advocacia.
Definido que a atividade do Conselho Tutelar situa-se no campo administrativo, a sua ação
deve consubstanciar-se nos princípios básicos do agir da administração, quais sejam, a legalidade,
a moralidade, a finalidade e a publicidade dos atos praticados. As decisões devem trazer em si,
especialmente a decisão de aplicar medida, os atributos do ato administrativo, como a presunção
da legitimidade, a imperatividade e a auto-executoriedade. Outro corolário lógico da classificação
da atividade do Conselho Tutelar como atividade não jurisdicional, e, portanto, de natureza
administrativa, é a presença dos princípios instrumentalizadores do proceder administrativo.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,
22
mesmo na ausência de lei reguladora de um dado
procedimento, há a incidência de alguns cânones gerais de acatamento obrigatório, todos eles
com fundamento, explícito ou implícito, na Constituição Federal. Arrola, o citado mestre em
Direito Administrativo, onze princípios, certamente todos eles aplicáveis ao proceder do Conselho
Tutelar, quais sejam: (1) princípio da audiência do interessado; (2) princípio da acessibilidade
aos elementos do expediente; (3) princípio da ampla instrução probatória; (4) princípio da
motivação; (5) princípio da revisibilidade; (6) princípio da representação e assessoramento; (7)
princípio da lealdade e boa-fé; (8) princípio da verdade material; (9) princípio da oficialidade;
(10) princípio da gratuidade; e, por último, (11) princípio do informalismo. De todos esses, o
único princípio não totalmente incidente ao proceder do Conselho Tutelar é o da revisibilidade,
segundo o qual o administrado pode recorrer de decisão que lhe seja desfavorável a instâncias
superiores. Ora, como dispõe o artigo 137 do Estatuto, a decisão do Conselho Tutelar só pode
ser revista por decisão judicial a pedido de quem tenha legítimo interesse, solução que não se
22
Obra citada, págs. 431 e seguintes.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
172
constitui em recurso administrativo, mas em ação própria. O que não significa que a regulamentação
do proceder tutelar não possa prever, na hipótese de se tratar de medida aplicada por um
determinado conselheiro, a revisão pelo conjunto dos demais conselheiros, ou, se a medida
regimentalmente originar-se de decisão do Conselho considerado como um todo, que o
destinatário da medida possa solicitar a revisão da providência ao próprio órgão.
O procedimento administrativo deve objetivar, sempre, o resguardo dos destinatários da
atividade e a transparência do agir da administração. Ainda que a ação do Conselho Tutelar não
deva assumir características burocráticas impeditivas da pronta solução, também não deve,
avassaladoramente, intervir na vida dos cidadãos. O equilíbrio entre a determinação de agir, em
face do interesse subjacente, sempre de maior relevância, e as prerrogativas das pessoas sujeitas
da verificação é o segredo da boa ação de todo e qualquer agente investido em autoridade pública.
2.6 AS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO TUTELAR
As tarefas concretas derivadas da redação do artigo 131 do Estatuto, em que se diz competir
ao Conselho Tutelar “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos
nesta Lei”, estão minuciosamente especificadas, precipuamente no artigo 136 do citado diploma
legal. O único acréscimo está no artigo 95, sem desconsiderar a legitimação para agir nas hipóteses
dos procedimentos regulamentados a partir dos artigos 191 e 194 do Estatuto. A compreensão da
importância e da verdadeira dimensão social, jurídica e institucional do Conselho Tutelar depende,
portanto, do minucioso estudo e da atenta observação dos nominados dispositivos, evidenciadores
da delegação, não só de responsabilidade, mas também de abrangente autoridade pública ao
Município. Em nenhum outro momento e em nenhuma outra área, o legislador federal delegou
tanta autoridade a agentes do Município como fez o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao
criar o Conselho Tutelar, investindo os conselheiros em atribuições e, especialmente, em
prerrogativas de função até então inimagináveis a outros órgãos ou agentes das municipalidades.
O rol de atribuições do artigo 136 do Estatuto vem apresentado de forma assistêmica,
porque trata como idênticas categorias de funções complemente diferentes. Algumas são
atribuições condizentes com a realização das finalidades institucionais do Conselho, enquanto
outras são meramente instrumentais. Assim, a atribuição de requisitar serviços públicos e a de
expedir notificações, possibilidades expressamente previstas nos incisos III e VII do artigo 136,
são exemplos de funções não condizentes com o fim próprio do Conselho, porque apenas
conferem meios necessários à realização de seus objetivos. Situam-se, na categoria das funções
instrumentais, as atribuições de requisitar, representar, notificar e encaminhar. As demais, são
funções compatíveis com a finalidade existencial do Conselho.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
173
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
Com vistas a facilitar a compreensão do sentido jurídico, segue a análise a partir do verbo
nuclear de cada uma das atribuições.
2.6.1 A ATRIBUIÇÃO DE ATENDER
Compete ao Conselho Tutelar atender a criança e o adolescente e seus pais ou o responsável
nas situações definidas pelos artigos 98 e 105 do Estatuto.
O artigo 105 exclui, expressamente, a criança autora de ato infracional do sistema sócio-
educativo, sistema de responsabilidade da Justiça da Infância e da Juventude. Com o que se
afirma, categoricamente, a total e absoluta irresponsabilidade da criança autora de conduta
descrita como crime ou contravenção, sujeita tão-só, nas circunstâncias, a medidas de proteção,
medidas sem qualquer sentido ou fundamento de retribuição. A responsabilidade pela
verificação do ato infracional praticado por criança, não importa a natureza nem a gravidade
da conduta, assim como a imposição da medida de proteção correspondente, é da alçada
exclusiva do Conselho Tutelar.
Os incisos I e II do artigo 136, ao atribuir ao Conselho Tutelar a função de atender crianças
e adolescentes e seus pais ou responsável, com exclusão apenas do atendimento ao adolescente
autor de ato infracional, desenham o Conselho Tutelar com o efeito simbólico de uma larga
porta de entrada, no caso, a porta de entrada do sistema público de atendimento. Excetuada a
verificação da conduta infracional do adolescente, tudo parece começar ou passar pelo Conselho.
Com o que se compreende, mais uma vez, a importância indispensável do regular funcionamento
desse relevante serviço público municipal.
Para atender, não previu o Estatuto procedimento determinado. O que significa necessidade
da legislação municipal suplementar à lei federal acerca da matéria. A realização das diligências
necessárias ao conhecimento pleno do caso, a busca de informações, a ouvida de pessoas in loco,
a convocação dos envolvidos para serem ouvidos, a realização de diligências para estudos e
pesquisas, assim como outras tantas formas de reunir elementos de convicção, são importantes
ferramentas auxiliares ao dispor do conselheiro, ferramentas para cuja utilização exigem-se ritos
preestabelecidos, de conhecimento geral da população. Evidentemente, a ampla liberdade de
reger o proceder tutelar não significa possibilidade de transgredir os direitos constitucionais da
cidadania, especialmente os garantidores da inviolabilidade do domicílio e da liberdade individual.
A autoridade pública do agente tutelar no exercício da atribuição de atender vem garantida
pelo artigo 236 do Estatuto, com a elevação da conduta de impedimento ou de embaraço ao
exercício das funções à condição de ilícito penal. O significado dos verbos nucleares do tipo
penal citado aproximam-se dos delitos de resistência e de desacato (artigos 329 e 331 do
Código Penal). O impedimento, para configurar a conduta ilícita, deve ser físico, no sentido de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
174
obstacularizar a ação do conselheiro, não se configurando como tal o descumprimento de
determinação do Conselho, conduta configurável como infração administrativa (artigo 249 do
Estatuto). Por embaraçar compreende-se a conduta de perturbar, estorvar, complicar ou dificultar
a ação do agente tutelar, com vistas a constranger o agente público a não agir de determinada
forma ou criar obstáculos, físicos ou morais, à verificação em andamento.
2.6.2 A ATRIBUIÇÃO DE APLICAR MEDIDAS
As medidas com as quais trabalha o Conselho Tutelar são as previstas nos incisos I a VII
do artigo 101 e I a VII do artigo 129 do Estatuto, medidas aplicáveis, respectivamente, à criança
ou ao adolescente em situação de proteção especial ou aos pais ou ao responsável. O
responsável, na hipótese, é o responsável legal, ou seja, o guardião ou o tutor.
As chamadas medidas de proteção suscetíveis de aplicação pelo Conselho Tutelar, por sua
natureza, não têm qualquer sentido retributivo, prevalecendo, sempre, a necessidade pedagógica
e a inclusão familiar como nortes de aplicação (artigo 100 do Estatuto). O que não significa
impossibilidade de aplicação unilateral e cogente.
O ato de aplicar medidas é um ato unilateral. O Conselho não necessita obter, necessariamente,
a adesão do destinatário da medida, seja o destinatário criança ou adolescente ou seus pais ou o
responsável.
23
Em caso de discordância, o destinatário, a criança ou adolescente por seu
23
Em anotação ao inciso I do artigo 136 do Estatuto, Cury, Garrido e Marçura entendem que “a medida de
abrigo, prevista no artigo 101, VII, somente poderá ser aplicada pelo Conselho Tutelar quando houver concor-
dância dos pais ou responsável ou se tratar de criança ou adolescente abandonado, casos em que a autorida-
de judiciária deverá ser comunicada” (em Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Editora Revista dos
Tribunais, 3ª edição, pág. 122). Entendem os mesmos autores que o Conselho Tutelar, quando aplica a medida
de abrigo, deve comunicar imediatamente à autoridade judiciária. Vênia aos ensinamentos dos renomados
membros do Ministério Público paulista citados, essa não é a melhor interpretação, construída, certamente, em
face da prevalência do exercício do pátrio poder sobre eventual ação das autoridades administrativas. No
entanto, se o texto legal não excepciona, descabe ao intérprete excepcionar em detrimento do exercício de um
poder-dever público, de agir prontamente em medidas e providências em proteção a crianças ou adolescente.
O abrigo sempre é medida provisória e excepcional (parágrafo único do artigo 101). Se os titulares do pátrio
poder inconformarem-se com a decisão, cabe-lhes buscar a revisão judicial. Submeter, na hipótese, a decisão
do Conselho ao crivo da autoridade judiciária fere o princípio da autonomia funcional do Conselho e a
natureza cogente de suas decisões, constituindo-se em diminuição de capacidade. O que não significa,
evidentemente, redobrada atenção dos dirigentes das entidades de abrigo e dos órgãos do Ministério Público
acerca da cultura generalizada da institucionalização sem motivo de crianças e adolescentes. Submeter, entre-
tanto, a aplicação unilateral da medida de abrigo ao crivo da autoridade judiciária não evita a prática e
tampouco contribui para a solução dos casos emergenciais com a celeridade sempre necessária.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
175
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
representante, ou os pais ou o responsável, pode requerer a revisão judicial da medida aplicada,
revisão que não se constitui tecnicamente em recurso administrativo, mas em ação própria,
dedução autorizada pelo artigo 137 do Estatuto, ação judicial deduzível perante o juiz da Infância
e da Juventude, para a qual não se prevê expressamente rito determinado, o que autoriza a
autoridade judiciária a investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido
o Ministério Público (artigo 153 do Estatuto). A possibilidade de ordenar de ofício das providências
não pode ensejar a compreensão de que a autoridade judiciária possa determinar a revisão da
medida aplicada pelo Conselho Tutelar ex officio. Depende, como é da essência da prestação
jurisdicional no sistema judiciário brasileiro, da provocação do detentor de legítimo interesse,
dentre os quais, certamente, o órgão do Ministério Público.
A medida aplicada tem sentido de cogência, ou de obrigatoriedade, para o destinatário,
especialmente para os pais ou o responsável. O descumprimento da medida configura a prática da
infração administrativa capitulada no artigo 249 do Estatuto. Assim, verificada a hipótese da não-
tomada das providências determinadas, compete ao Conselho Tutelar dar início ao procedimento
de apuração da infração administrativa correspondente, providência expressamente autorizada
no inciso III, letra “b”, do artigo 136 e no artigo 194 do Estatuto. Os pais ou o responsável pelo
cumprimento das medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar têm ampla possibilidade de discordar
das providências, o que não significa, no inverso, possibilidade de descumprimento. A discordância
deve corresponder a pedido judicial da revisão. Simples omissão, sinônimo de descumprimento
da determinação, pode trazer como conseqüência a responsabilização administrativa.
2.6.3 A ATRIBUIÇÃO DE EXECUTAR AS SUAS DECISÕES
A lei tutelar, além de outorgar ao Conselho Tutelar autoridade administrativa para determinar
providências no caso concreto, conferiu-lhe também a atribuição de executar, ele próprio, as
suas decisões, reforçando a autonomia funcional do órgão e conferindo aos agentes tutelares a
instrumentalidade necessária à efetividade do ônus público que lhe restou incumbindo. As decisões
a que se refere o inciso dizem respeito ao fim próprio do Conselho. As decisões executáveis são,
por isso, as decisões das quais resulta a aplicação de determinada medida de proteção. Não se
trata de qualquer decisão, mas tão-só daquela revestida de legalidade estrita, característica do
ato administrativo. São, em conseqüência e tão-somente, suscetíveis de execução as medidas
fundamentadas nos incisos I a VII do artigo 101 e I a VII do artigo 129 do Estatuto.
2.6.4 A ATRIBUIÇÃO DE ASSESSORAR
As funções do Conselho Tutelar são nitidamente de natureza técnica, voltadas ao
atendimento do caso individual e concreto. Não se constitui o Conselho Tutelar em órgão
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
176
executor da política de atendimento do Município e tampouco é agente de execução de programas
de atendimento. A formulação da política de atendimento e o controle das ações competem ao
Conselho de Direitos, com o qual o Conselho Tutelar, exceto expressa previsão da legislação
municipal, não tem nenhuma vinculação nem subordinação hierárquica. A execução da política
e a execução dos programas públicos municipais dependem das providências dos órgãos do
Executivo Municipal. A única vinculação do Conselho Tutelar com a definição da política ou
com a execução das ações do Município em prol da criança e do adolescente está na atribuição
prevista no inciso IX do artigo 136 do Estatuto.
Parte o legislador do pressuposto de que os agentes tutelares devam conhecer com
profundidade a realidade local, especialmente as carências dos serviços de retaguarda, já que
ao Conselho Tutelar não compete manter as estruturas necessárias à implementação das
providências determinadas (o Conselho Tutelar não é o hospital, o consultório médico ou
psicoterápico, ou o programa de assistência social, de apoio alimentar ou de auxílio financeiro,
tampouco é o orientador educacional, o grupo de apoio ou de tratamento de alcoolistas ou de
dependentes químicos, ou qualquer outro sentido que se possa dar aos serviços necessárias
ao cumprimento das medidas aplicadas, serviços a serem oferecidos pelos organismos públicos
ou não governamentais, rede de serviços que se constitui em retaguarda indispensável à
efetividade da ação do Conselho Tutelar, mas da qual não é ele o executor). Conferiu-lhe, por
isso, a lei a incumbência de auxiliar o Poder Executivo do Município para a elaboração da
proposta orçamentária para planos e programas de atendimento à criança e ao adolescente. O
destinatário natural do assessoramento é o Conselho de Direitos, a instância do Executivo
Municipal encarregada de formular os planos e os programas e de tratar da reserva orçamentária
correspondente.
2.6.5 A ATRIBUIÇÃO DE PROVIDENCIAR
O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao formular procedimentos, ao instituir medidas
específicas e ao atribuir a autoridades, ou judiciária ou administrativa, a possibilidade de
determinar providências, distinguiu o atendimento do adolescente autor de ato infracional das
demais situações de atendimento derivadas da conduta da criança ou do adolescente (artigo
98, inciso III). Em conseqüência, o Sistema de Justiça, até então concentrador absoluto da
responsabilidade de determinar providências no caso concreto, permaneceu, como atribuição
exclusiva no âmbito das condutas, unicamente com as providências destinadas ao atendimento
do adolescente em razão de ato infracional. Todas as demais situações, inclusive a conduta
infracional da criança, restaram repassadas ao Conselho Tutelar. Os dois sistemas, o Sistema
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
177
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
de Justiça e o Sistema Tutelar, não se confundem em suas competências ou atribuições. Por
isso, não há qualquer demasia em afirmar que o Conselho Tutelar deve permanecer alheio ao
atendimento do adolescente autor de ato infracional, constituindo-se, não importa o momento
da atuação, em inaceitável desvio de atribuições e prática incompatível com a finalidade
institucional de órgão.
O Conselho Tutelar não é instância auxiliar dos órgãos do Sistema de Justiça (Polícia Judiciária,
Defensoria Pública ou Advocacia, Ministério Público e Poder Judiciário), princípio do qual deriva
a impossibilidade desses organismos de utilizarem os conselheiros tutelares para suprir eventuais
deficiências técnicas ou auxiliares. A única vinculação legalmente prevista é a possibilidade
anunciada no inciso VI do artigo 136 do Estatuto, dispositivo autorizador da delegação, pela
autoridade judiciária, ao Conselho Tutelar, de providenciar a medida estabelecida ao adolescente
autor de ato infracional, se a medida for uma daquelas previstas nos incisos I a VI do artigo 101
do Estatuto. Assim, se o juiz da Infância e da Juventude, ao homologar a medida de proteção
ajustada pelo Ministério Público em sede de remissão, ou ajustar ele mesmo, o juiz, medida de
proteção à guisa de remissão do ato infracional, ou aplicar, em sentença de mérito, qualquer uma
das medidas de proteção assinaladas, possibilidade prevista no artigo 112, inciso VII, do Estatuto,
poderá delegar a execução da medida ao Conselho Tutelar, hipótese em que o Conselho não
pode descumprir a determinação, sob pena de responsabilidade.
Ao instituir a providência, o legislador do Estatuto encontrou solução altamente positiva. A
uma, porque manteve em campos distintos as providências de proteção das providências sócio-
educativas. A duas, porque não excluiu o autor do ato infracional do atendimento pelos serviços
de proteção especial existentes na localidade, cujas peculiaridades de funcionamento e aptidão
certamente serão de maior acesso aos agentes tutelares do que ao juiz da Infância e da Juventude.
Restringe-se a possibilidade da determinação judicial, no entanto, àquelas medidas
suscetíveis de aplicação em razão do ato infracional, inclusive com a exclusão da medida de
abrigo. A conclusão lógica está em que a medida de abrigo não se destina, por sua
excepcionalidade e transitoriedade, a solver as insuficiências em razão do ato infracional. E se
o adolescente, especialmente o apreendido em flagrante, estiver em tal condição de falta de
assistência de sua família a ponto de lhe carecer a moradia ou qualquer possibilidade de
suprir o seu direito à habitação? Certamente não se constitui em hipótese de delegação ao
Conselho Tutelar da responsabilidade de verificar a situação e aplicar a medida de abrigo,
solução inaceitável pela superposição de procedimentos e de autoridades. Nas circunstâncias,
compete à própria autoridade judiciária aplicar a medida de abrigo. A falta de expressa previsão
(artigo 112 do Estatuto) não significa impossibilidade fático-jurídica na presença da única solução
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
178
razoável, qual seja, abrigar quem necessita de proteção. A medida não deriva da prática do ato
infracional, mas de uma situação de fato, situação provavelmente antecedente à prática da
infração pelo adolescente. Em relação ao adolescente ingresso no sistema de atendimento pela
prática de ato infracional, não se justifica a superposição de verificações e, por isso, a autoridade
judiciária, se pode privar da liberdade, se pode, portanto, o mais, também pode o menos, ou
seja, aplicar a medida de abrigo.
2.6.6 A ATRIBUIÇÃO DE FISCALIZAR
As entidades governamentais e não governamentais referidas no artigo 90 do Estatuto
serão fiscalizadas pelo Judiciário, Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares, nos termos
do artigo 95 do diploma legal citado. A atribuição de fiscalizar as entidades mantenedoras de
programas de atendimento a crianças e adolescentes constitui-se, em conseqüência, atribuição
própria do Conselho Tutelar.
O Estatuto descentralizou o controle sobre a criação e o funcionamento dos serviços
governamentais e não governamentais destinados ao cumprimento das medidas aplicadas a
crianças ou adolescentes, seus pais ou responsável. Por isso, a entidade não governamental
somente poderá funcionar depois de registrada no respectivo Conselho Municipal de Direitos,
registro somente deferível depois da verificação minuciosa da regularidade dos atos constitutivos
e da idônea composição de seus quadros, além da adequação de suas instalações e da
apresentação de plano de trabalho compatível com os princípios filosóficos da doutrina da
proteção integral (artigo 91 do Estatuto). Em decorrência da descentralização, o Município
adquiriu, por seus órgãos, a possibilidade do controle de todos os programas de atendimento
a crianças e adolescentes situadas em seu território, não importa a natureza do ente propositor
e tampouco a natureza da atividade a ser desenvolvida. Portanto, tanto as entidades
governamentais, inclusive as de âmbito estadual ou nacional, como as não governamentais
devem proceder à inscrição de seus programas, e as posteriores alterações, no respectivo
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (artigo 90, parágrafo único, do
Estatuto). Tanto o registro da entidade como a inscrição do programa devem ser comunicados
pelo Conselho de Direitos ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária.
Há distinção entre entidade e programa. Por entidade entende-se a organização com
personalidade jurídica própria e regularmente constituída. Poderia ser, por exemplo, uma
fundação de direito privado, ou qualquer outra sociedade ou associação civil com vida jurídica,
organizações sociais que se espalham exemplarmente pelo país e que prestam relevantes
serviços à sociedade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
179
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
Por programas pode-se entender a descrição pormenorizada do conjunto de atividades
desenvolvidos por determinada entidade. Assim, por exemplo, se um ente governamental ou
não governamental pretende instalar uma unidade de abrigo, o programa suscetível de inscrição
no Conselho de Direitos constitui-se no conjunto de normas e preceitos reguladores do
funcionamento da atividade, como a afirmação dos objetivos, dos princípios filosóficos, da
organização e do funcionamento, inclusive com a definição das responsabilidades do quadro
dirigente e técnico, enfim, a normatização minuciosa da atividade a ser desenvolvida. Em
outras palavras, programa é uma articulado escrito anunciador da atividade com todos os seus
pormenores, a ponto de permitir o controle público da atividade em desenvolvimento, visto o
interesse público subjacente a toda atividade de atendimento a crianças e adolescentes, seja o
programa de proteção ou de natureza sócio-educativa.
A terminologia do artigo 95 do Estatuto, ao prever a fiscalização das “entidades”, não
distingue a fiscalização dos atos institucionais da fiscalização das atividades do programa. No
entanto, como o Conselho Municipal de Direitos tem a obrigação de comunicar ao Conselho
Tutelar a inscrição de programas instituídos tanto por entidades governamentais como não
governamentais, assim como deve comunicar o registro das entidades não governamentais,
pode-se deduzir que são suscetíveis de fiscalização os programas de atendimento, não importa
a natureza do órgão instituidor, se público ou privado, governamental ou não governamental.
Constatada eventual irregularidade, tem o Conselho Tutelar a possibilidade de iniciar o
procedimento de apuração judicial, com a oferta da competente representação ao Juiz da Infância
e da Juventude, nos termos do procedimento regulamentado a partir do artigo 191 e sempre
com vistas à aplicação das medidas no artigo 97, ambos do Estatuto.
2.6.7 A ATRIBUIÇÃO DE REQUISITAR
A requisição é um ato pelo qual a autoridade administrativa ou um órgão da administração
pública pede oficialmente alguma coisa ou a execução de determinado ato. Requisitar,
entretanto, tem sentido mais amplo que pedir. Significa um pedido com autoridade pública,
sinônimo de exigir.
24
A requisição constitui-se em uma ordem expressa para a prática de
determinado ato, cujo descumprimento corresponde ao descumprimento de uma determinação
legal, comportamento, em geral, tipificado como delito de desobediência (artigo 330 do Código
Penal). O entendimento jurisprudencial acerca da configuração desse ilícito penal leva em
conta a compreensão, fortemente dominante e consolidada, de que não se configura o crime
24
Pedro Nunes, obra citada, págs. 1074/1075.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
180
de desobediência quando o descumprimento está sujeito a sanção administrativa, salvo se a
lei ressalvar dupla penalidade, administrativa e penal.
25
Como o artigo 249 do Estatuto descreve
a conduta de descumprir determinação do Conselho Tutelar como infração administrativa sem
qualquer ressalva, certamente vai prevalecer o compreensão de que o descumprimento à
requisição do citado órgão representa tão-somente infração administrativa, o que não retira à
requisição tutelar o sentido de cogência.
Segundo o artigo 136, inciso III, letra “a”, o Conselho Tutelar, para a execução das suas
decisões, pode requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social,
previdência, trabalho e segurança. O rol de possibilidades anuncia-se amplo e irrestrito e, por
isso mesmo, suscetível a todo tipo de controvérsias. Na busca de uma interpretação consentânea
com a finalidade institucional do Conselho Tutelar e da relevância do que lhe está incumbido,
poder-se-ia concluir, como adequado e correto, pela interpretação com vistas a preservar as
possibilidades dos serviços eventualmente requisitados e a legalidade estrita própria dos atos
administrativos. Assim, por exemplo, a requisição tão-só é possível em sede de execução das
decisões do Conselho, ou seja, em execução de medida aplicada. A requisição autorizada é a
requisição destinada a beneficiar a criança ou o adolescente, seus pais ou o responsável.
Descabe, em conseqüência, a requisição de serviços públicos como forma estratégica para
superar as deficiências estruturais do órgão requisitante e, com isso, auferir a retaguarda auxiliar
para o exercício das funções do Conselho, em auxílio a não rara falta de estrutura. A observação
cresce em pertinência se considerado o fenômeno do enquadramento por infração administrativa
da conduta do descumpridor da requisição. Por isso, o ato requisitório deve obediência ao
princípio da legalidade estrita, garantia individual e pessoal não só do dirigente do serviço
público requisitado, mas de qualquer cidadão.
26
Só podem ser objeto de requisição os serviços públicos, assim considerados os serviços
públicos
27
propriamente ditos e os serviços de utilidade pública prestados diretamente pela
administração, e, em conseqüência, gratuitos, de alcance de todos os membros da coletividade.
Não haveria como incluir os serviços de utilidade pública prestados por terceiros na forma de
25
Nesse sentido, só para exemplificar, RT 534/327, 516/345, 558/319 e 573/398.
26
“O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei
determina” (em Curso de Direito Administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, Malheiros Editores, 12ª
edição, pág. 75).
27
Sobre classificação dos serviços públicos, ver Direito Administrativo Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, Edi-
tora RT, 8ª edição, pág. 307.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
181
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
concessionários, permissionários ou autorizatários (excetuada a hipótese de o contrato de
cessão ou de permissão prever concretamente a condição), vez que o particular não teria
como, exceto previsão contratual expressa, reparar-se do encargo. Poder-se-ia considerar nessa
situação, por exemplo, a requisição de vaga no ensino fundamental em educandário particular.
Frente ao princípio da legalidade estrita e para evitar permanentes conflitos e controvérsias
entre a atuação do Conselho Tutelar e os serviços públicos oferecidos à comunidade, o correto
seria, ao menos em relação aos serviços municipais, que o Município legislasse em
complementação à normatização federal, definindo concretamente as áreas do serviço público,
delegado ou não, suscetíveis de requisição pelo Conselho Tutelar.
Também podem ser requisitadas certidões de nascimento e de óbito de criança ou
adolescente quando necessário (inciso VIII do artigo 136). A necessidade diz para com a
instrução do procedimento de verificação, mesmo porque a aplicação das medidas de proteção
sempre deve ser acompanhada da regularização do registro civil (artigo 102 do Estatuto). Há,
no entanto, distinção entre a requisição de certidão e a requisição do registro, a última,
prerrogativa da autoridade judiciária, nos termos do § 1
o
do artigo 102 do Estatuto. Na
inexistência de registro civil anterior, compete aos pais efetuar o registro do filho.
Impossibilitados, ausentes ou mortos os pais, a falta do registro do nascimento de criança ou
de adolescente deve ser encaminhada à consideração do juiz da Infância e da Juventude, que,
à vista dos elementos disponíveis, determinará a lavratura do registro no ofício competente.
2.6.8 A ATRIBUIÇÃO DE REPRESENTAR
Entende-se por representação a exposição, por escrito, à autoridade competente, de certos
fatos, faltas ou irregularidades de terceiro que exigem providências. Ou seja, a representação
é a reclamação ou a queixa fundamentada, escrito em que se descreve circunstancialmente fato
determinado e considerado como irregular e em que se pede a providência à autoridade
destinatária da representação. Não é, portanto, um simples encaminhamento, mas um
encaminhamento fundamentado. Nesse sentido, por exemplo, a representação que dá início
ao procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento (artigo 191 do
Estatuto), ou a representação que inicia o procedimento de apuração de infração administrativa
(artigo 194 do Estatuto), ou a representação pela prática de ato infracional, petição inicial da
ação sócio-educativa cuja titularidade é exclusiva do Ministério Público, todas são peças
expositivas e fundamentadas, com vistas a uma finalidade procedimental específica.
O Conselho Tutelar tem a atribuição de representar junto à autoridade judiciária nos casos
de descumprimento injustificado de suas deliberações (inciso III, letra “b”, do artigo 136); em
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
182
nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos previstos no artigo 220, § 3
o
, inciso
II, da Constituição Federal (inciso X do artigo 136); e, ao Ministério Público, para efeito das
ações de perda ou suspensão do pátrio poder (inciso XI do artigo 136). Pode, outrossim, sob
a modalidade de representação, dar início ao procedimento de apuração de irregularidade em
entidade de atendimento (artigo 191 do Estatuto) e ao procedimento de apuração de infração
administrativa (artigo 194 do Estatuto).
A atribuição de representar à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações, como já visto, só pode ser compreendida como a autorização
para dar início ao procedimento de apuração da infração administrativa capitulada no artigo
249 do Estatuto, pela singela razão de que não se visualiza qualquer outra finalidade para a
dita representação a que alude o inciso III, letra “b”, do artigo 136, do mencionado diploma
legal. A autoridade judiciária competente em matéria de infância e juventude, como toda
autoridade prestadora de jurisdição, submete-se e submete às partes a ritos legalmente previstos
e a medidas também previamente instituídas. Não há como imaginar possa o juiz da Infância e
da Juventude servir como uma espécie de fiel escudeiro da autoridade do Conselho Tutelar,
determinando prontamente medidas em caso de descumprimento das decisões do órgão. Ora,
a lei não instituiu essa possibilidade e tampouco investiu a autoridade judiciária de medidas
para sanar o descumprimento da determinação do órgão administrativo, exceto a aplicação de
sanção por prática de infração administrativa. A função em pauta nada mais é, portanto, do
que uma especificidade da função ampliada pelo artigo 194, que legitima o Conselho Tutelar
para dar início ao procedimento de apuração da infração administrativa em todas as hipóteses
de prática de qualquer uma das infrações administrativas, em consonância com os tipos definidos
pelos artigos 245 a 258 do Estatuto.
O constituinte federal de 1988, como é de conhecimento geral, acabou com a censura no
país, não importa a natureza da restrição à liberdade de informação, seja política, ideológica
ou artística (artigo 220, § 2
o
, da Constituição Federal). No entanto, o mesmo constituinte impôs
formas de controle aos meios de comunicação social, nos termos da lei federal. Assim, o
Estatuto, lei ordinária federal, regulamentou uma das modalidades de controle, especialmente
no que diz para com as programações de rádio e televisão que contrariem determinados
princípios, como os da “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”,
“promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive
sua divulgação”, “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme
percentuais estabelecidos em lei”, e, em especial, “o respeito aos valores éticos e sociais da
pessoa e da família” (artigo 221 da Constituição Federal). Também submeteu a controle as
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
183
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
programações de rádio e televisão que contenham “propaganda de produtos, práticas e serviços
que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (artigo 220, inciso II, da Constituição
Federal). O controle regulamentado consiste em controle judicial. O instrumento de provocação
do controle é a ação civil pública, cuja titularidade restou conferida expressamente ao Ministério
Público (artigo 201, inciso V, do Estatuto).
O destinatário da representação do Conselho Tutelar prevista no inciso X do Estatuto é,
em conseqüência, o órgão do Ministério Público legitimado a propor a ação, ou seja, em geral,
o promotor de Justiça da Infância e da Juventude da cidade sede da emissora de rádio ou
televisão transmissora de programação irregular ou, quando se tratar de transmissão simultânea
que atinja mais de uma Comarca, o promotor de Justiça da sede estadual da emissora ou rede
(ver artigo 147, § 3
o
, do Estatuto, combinado com a legislação estadual do Ministério Público
definidor da distribuição das atribuições dos órgãos ministeriais). Como se vê mais uma vez,
os encargos acometidos ao Conselho Tutelar possuem complexidade e alta indagação jurídica,
para cujo exercício são indispensáveis preparo pessoal e conhecimento técnico.
As hipóteses de suspensão ou perda do pátrio poder estão definidas no Código Civil Brasileiro
(artigos 394 e 395), agora complementadas pelo artigo 22 do Estatuto (ver artigo 24 do Estatuto).
O Ministério Público, como já dispunha expressamente o Código Civil, disposições agora ratificadas
pelo Estatuto (artigos 155 e 201, inciso III), tem legitimidade para propor a ação de perda ou
suspensão do pátrio poder, assim como têm igual legitimidade os demais detentores de legítimo
interesse. O Conselho Tutelar, enquanto responsável pelas verificações envolvendo o
comportamento abusivo ou omissivo dos pais, tem, portanto, o dever legal de provocar a ação
do Ministério Público toda vez que entender, no caso concreto, que as causas para a suspensão
ou destituição estão presentes e que as relações entre os pais, ou qualquer deles, e o filho estão
comprometidas a tal ponto de não se justificar mais a permanência do vínculo. Ainda que o
agente ministerial não esteja vinculado aos termos da representação, certamente terá, a partir do
recebimento da notícia acompanhada dos elementos de convicção, a obrigação funcional de
motivar a providência subseqüente, ou para arquivar o procedimento ou para propor a ação.
2.6.9 A ATRIBUIÇÃO DE NOTIFICAR
A notificação constitui-se em um instrumento, usual no campo administrativo, destinado a
comunicar, dar conhecimento ou ciência, ou avisar na forma legal, a alguém, de uma decisão ou
medida ou para a realização de uma providência ou diligência. Significa a notificação nada mais
do que o instrumento de comunicação oficial entre a autoridade pública e o cidadão sempre que
se exige do notificado alguma providência ou a ciência de ou para determinada providência. O
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
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legislador, ao conferir ao Conselho Tutelar a atribuição de expedir notificações (inciso VII do
artigo 136), municiou o órgão da possibilidade de se comunicar oficialmente com as pessoas
envolvidas com o atendimento, não só para que compareçam a sua presença, mas também para
cientificá-las do dever de cumprir determinada obrigação resultante de uma medida aplicada.
2.6.10 A ATRIBUIÇÃO DE ENCAMINHAR
Segundo o inciso IV do artigo 136 do Estatuto, o Conselho Tutelar deve encaminhar ao
Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os
direitos da criança ou adolescente.
Além da precaução de que os encaminhamentos entre órgãos públicos sempre devam ser
formalizados, por ofício ou outra forma estabelecida em comum entre o encaminhante e o
encaminhado, há a assinalar de que o Estatuto, pelo menos em relação às incumbências do
inciso IV do artigo 136, repete-se zelosamente. Ora, se determinado fato constitui-se em uma
infração administrativa, está o Conselho Tutelar legitimado a oferecer a representação à
autoridade judiciária competente (artigo 194 do Estatuto). Agora, no inciso IV do artigo 136,
abre a possibilidade de comunicar o fato ao Ministério Público. Tem o Conselho, portanto,
duas alternativas. Ou oferece a representação, ou comunica o fato ao órgão do Ministério
Público. Não teria o mínimo sentido proceder duas vezes em relação a um mesmo fato.
Assim também ocorre em relação a eventual fato que se constitua em ilícito penal. Em vez de
comunicar ao Ministério Público, poderia o Conselho registrar o acontecimento na Delegacia de
Polícia mais próxima, providência suficiente para desencadear a ação investigativa da autoridade
policial. No particular, aliás, não só os fatos tipificados como infração penal contra os direitos da
criança e do adolescente devem ser comunicados, mas qualquer outro ilícito penal, em decorrência
do disposto no artigo 66, inciso I, da Lei das Contravenções Penais, em que se tipifica como ilícita
a conduta de deixar de comunicar à autoridade competente crime de ação pública de que se teve
conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de
representação. O exercício da função de conselheiro tutelar, em sendo uma função pública,
importa, portanto, no dever de comunicar qualquer ilícito penal de ação penal pública de que
tenha conhecimento, comunicação destinada à autoridade competente, qual seja, ou à autoridade
policial ou ao órgão do Ministério Público com atuação na área criminal.
Devem ser encaminhados à autoridade judiciária, vale dizer, ao juiz da Infância e da
Juventude os casos de competência dessa autoridade (inciso V do artigo 136). Como já
mencionado, a prestação jurisdicional em matéria de infância e juventude, em simetria com
toda a prestação jurisdicional, decorre da provocação do interessado ou do ente legitimidade,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
185
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
como acontece, por exemplo, na apuração de ato infracional atribuído a adolescente, nas
ações civis de perda ou suspensão do pátrio poder, de destituição da tutela, de colocação em
família substituta, ou na ação civil pública, ou, até mesmo, na ação de revisão da medida
aplicada pelo Conselho Tutelar. Poder-se-ia inquirir, então, quais as hipóteses que devem ser
encaminhadas pelo Conselho Tutelar à autoridade judiciária suscetíveis de atuação do juiz da
Infância e da Juventude ex officio, por ser matéria de sua competência?
Os procedimentos de apuração de infração administrativa ou de irregularidade em entidade
de atendimento, ainda que possam iniciar, respectivamente, por auto de infração elaborado por
servidor ou por meio de portaria (artigos 191 e 194 do Estatuto), devem iniciar preferencialmente
por representação quando a notícia tem origem no Conselho Tutelar, não se tratando, da mesma
forma, de caso a ser encaminhado à autoridade judiciária. Por isso, as únicas situações em que se
poderia aventar a necessidade da comunicação do Conselho Tutelar ao juiz da Infância e da
Juventude, por ter a autoridade judiciária a prerrogativa legal de determinar providências e agir
de ofício, está, uma, na eventual necessidade de disciplinar a entrada e a permanência de criança
ou adolescente, desacompanhada dos pais ou responsável, em estabelecimento mantenedor de
atividade social, esportiva ou recreativa, ou a participação de criança ou adolescente em
espetáculos públicos, na forma do disposto no artigo 149 do Estatuto; outra, quando se configurar
situação de criança ou adolescente sem o registro de nascimento, sendo que é da competência da
autoridade judiciária requisitar o registro (artigo 102, § 2
o
, do Estatuto); ou, por último, quando o
adolescente a quem a autoridade judiciária impôs medida de proteção em razão de ato infracional
e delegou ao Conselho Tutelar a execução da providência, se o adolescente não cumprir com a
medida. Fora as alternativas assinaladas, não se visualizam quaisquer outras.
3 A ATUAÇÃO DA ESCOLA E O DIREITO À EDUCAÇÃO
Tem singular relevância a atenção do Conselho Tutelar para com o direito à educação da
criança e do adolescente, especialmente o direito à educação escolar e, ainda mais precisamente,
o direito ao ensino fundamental. Criança ou adolescente sem matrícula ou excluída da escola,
criança ou adolescente sem freqüência regular ou sem aproveitamento adequado, criança ou
adolescente com condutas inadequadas no estabelecimento de ensino, criança ou adolescente
com sintomas de maus-tratos são crianças e adolescentes em situação de proteção especial,
causa justificadora da pronta atuação do agente tutelar, sempre com vistas à permanência e ao
sucesso na escola.
Situa-se nesse mesmo contexto a atuação da escola. Tem ela, a escola, por quaisquer de
seus operadores, oportunidade invulgar para a percepção de qualquer anomalia no
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
186
desenvolvimento do educando, tanto em relação ao seu núcleo familiar, como em relação às
suas relações sociais já concretizadas ou em relação ao processo de aprendizagem. A intervenção
positiva nesse momento tem conotação altamente preventiva e, não raras vezes, apresenta-se
como a última oportunidade para a reação proveitosa em favor do desenvolvimento da criança
ou do adolescente. Por isso, a escola passou a ser inserida no contexto dos responsáveis pela
tomada de providências em relação à educação de crianças e adolescentes, responsabilidade
que ultrapassa o exercício do processo de ensino-aprendizagem. Possui a escola, portanto, ao
lado do Conselho Tutelar, a missão de desencadear o processo concreto das providências
destinadas à reversão das dificuldades. Não podem, nesse momento, a instituição de ensino e
o Conselho Tutelar e em assunto de tamanha envergadura, prescindir da mútua colaboração.
O Conselho Tutelar não possui capacidade legal de interferência em assuntos internos da
escola. No entanto, tem plena legitimidade para verificar, por exemplo, o aproveitamento escolar
de determinada criança ou adolescente, não com o propósito de interferir na escola, mas para
determinar aos pais ou ao responsável as medidas para a correção das insuficiências, inclusive
se as causas do aproveitamento inadequado residirem na escola, com a possibilidade concreta
de determinar aos pais ou ao responsável o acompanhamento da freqüência e do aproveitamento
escolar (artigo 129, inciso V). Na prática, simples orientação aos pais, chamando-os para o
exercício de suas obrigações, não raras vezes já contribui positivamente para a reversão da
ambiência de exclusão da escola.
Outras tantas vezes a causa do abandono escolar não está nos pais, mas na atuação da
escola. O Conselho Tutelar pode servir como o agente impulsionador capaz de retirar a instituição
escolar do seu isolamento. Para tanto, não é necessário afrontar a escola, em busca de expiatórios
de nenhuma ou de quase nenhuma valia. Impõe-se, no caminho inverso, aliar ao que há de
melhor nas escolas, e muito há de exemplar e de aproveitável em metodologia, esforço,
criatividade e dedicação em escolas de todo o país.
A integração entre o estabelecimento de ensino e o Conselho Tutelar é imperativo legal. Não
por outra razão, o Estatuto confere, aos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental e
de educação infantil (creche e pré-escola), o dever de comunicar ao Conselho Tutelar os casos de
maus-tratos envolvendo seus alunos, bem como as situações de reiteração de faltas injustificadas
e de evasão escolar (esgotados os recursos escolares), e os elevados níveis de repetência (artigo
56 do Estatuto). Na ocorrência de maus-tratos, a obrigação de comunicar também é do professor.
Deve-se cientificar até mesmo a suspeita, nos termos do artigo 245 do Estatuto, dispositivo que
eleva a conduta da falta de comunicação, obrigação do professor ou do responsável por
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
187
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
estabelecimento de ensino fundamental, pré-escola ou creche, à condição de infração
administrativa. A ausência de comunicação da reiteração da falta injustificada e de evasão, ou
dos níveis de repetência, pode constituir-se em ilícito funcional de servidor público quando o
dirigente do estabelecimento de ensino fundamental for servidor público. Em todas essas hipóteses
omissivas, a conduta do dirigente, na presença dos elementos subjetivos do tipo, pode representar
também a prática do ilícito penal da prevaricação (“retardar ou deixar de praticar, indevidamente,
ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal”), nos termos do artigo 319 do Código Penal.
Como se vê, a legislação cercou o direito à educação escolar da criança e do adolescente,
especialmente o direito ao ensino fundamental, de inúmeros mecanismos protetivos. Aos pais
ou ao responsável, impôs o dever da matrícula, sob pena de abandono intelectual. Impôs,
ainda, aos mesmos pais ou responsável, o dever de zelar pela freqüência à escola (artigo 54, §
3
o
, do Estatuto), sujeitando-os a medidas, inclusive a possibilidade da perda ou suspensão do
pátrio poder. À escola, na condição de presentante do poder público em contato direto com o
destinatário da norma de proteção, o ordenamento jurídico conferiu o dever da chamada e do
zelo pela freqüência, com as comunicações e implicações já referidas. Ao Conselho Tutelar,
impôs o dever da determinação das providências destinadas a manter o educando na escola.
Em síntese, o direito à educação, notadamente o direito ao ensino fundamental, enquanto
direito público subjetivo e, portanto, direito indisponível, está cercado de um conjunto de
atores e de providências, todas destinadas a impedir qualquer possibilidade de frustração.
O Sistema de Garantia do direito à educação escolar pressupõe a integração desses diversos
atores. Na falta ou na falha de um, deve agir o outro. Em auxílio ao esforço de um, deve atuar
o outro. Entretanto, não há como visualizar sucesso na atuação desses atores sem a atuação
integrada e parceira, especialmente entre os dirigentes do sistema e da instituição escolar e os
agentes tutelares.
A relação de situações em que se anota a necessidade de providências, algumas de obrigatória
iniciativa e/ou de participação da escola, sinaliza para a concepção de uma nova escola. Uma
escola desafiada a assumir responsabilidades sociais além do que lhe é dado como papel
tradicional, comprometida com o seu entorno, uma escola democrática, aberta à participação,
uma escola comunitária, um verdadeiro espaço pedagógico-cultural e de socialização da pessoa
em desenvolvimento, uma escola formadora de cidadãos, pessoas preparadas para o exercício
de direitos e o cumprimento de deveres. Para muitos educadores e para muitos responsáveis
pelos sistemas educacionais, um ideal de escola a ser perseguido, porque a falta de transparência,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
188
a falta de qualidade, o restrito compromisso com o programa, o modelo autoritário, assim como
a falta da legítima autoridade estão decisivamente colocadas na seara da ilegalidade.
O papel de educar, na escola, pertence ao educador, papel no qual é insubstituível. No
entanto, o papel de velar pelo integral asseguramento do direito de ser educado pertence a
toda a sociedade. Parcela dessa responsabilidade deve ser exercida pela própria escola, a
nova escola proposta pelo Estatuto e regulamentada na LDB.
4 A EDUCAÇÃO COMEÇA EM CASA
Os principais agentes da efetividade do direito à educação são os pais, na qualidade de
titulares do pátrio poder. Se a escola e o Conselho Tutelar devem atuar associados, tal associação
não pode deixar de levar em consideração o papel dos pais como responsáveis maiores pela
educação dos filhos.
O dever de educar está escrito no Código Civil Brasileiro
28
como obrigação dos pais quanto
à pessoa dos filhos desde 1916 (artigo 384, inciso I, do Código Civil: dirigir-lhes a criação e a
educação), obrigação inerente ao pátrio poder e dever recíproco dos cônjuges como efeito
jurídico do casamento (artigo 231, inciso IV, do Código Civil). A Constituição elevou a obrigação
de educar os filhos à condição de preceito constitucional (artigo 229 da Constituição Federal)
e o Estatuto arrolou o descumprimento injustificado desse dever como causa explícita para a
perda ou a suspensão do pátrio poder (artigo 24, combinado com o artigo 22, do Estatuto).
O dever para com a educação escolar constitui-se em uma especificidade do dever de educar
o filho, sentido amplo que atribui aos pais o encargo de alcançar o filho o referencial ético para
a vida em sociedade. Entretanto, é com o dever da educação escolar que a legislação tem a maior
carga de incisividade, especialmente no que diz para com a inserção no ensino fundamental.
Começa com o dever da matrícula, comportamento omissivo capitulado no Código Penal
como crime de abandono intelectual.
29
O conceito de instrução primária veio a ser substituído
pela atual terminologia, qual seja, a instrução primária corresponde ao ensino fundamental. A
idade escolar, outrossim, não é mais a idade dos sete aos catorze anos, como dispunha a
revogada Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971). A partir
da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ensino fundamental é direito público
subjetivo de toda criança e adolescente. Enquanto não concluído o ensino fundamental, têm
28
Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916.
29
Artigo 246 do Código Penal: “deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária do filho em idade
escolar”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
189
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
crianças e adolescentes o direito de freqüentar a escola e, em decorrência, têm os pais o dever
de tomar as providências para a matrícula.
30
Como desdobramento das disposições contidas nos artigos 53 e 54 do Estatuto, a obrigação
dos pais vai além do dever da matrícula. Expressamente, são eles os responsáveis, junto com
os dirigentes da escola, pelo zelo da freqüência (§ 3º do artigo 54 do Estatuto). Entretanto, pela
interpretação sistêmica das disposições dos artigos 98, 129 e 136 do Estatuto, percebe-se que
os pais são sujeitos de medidas quando determinada criança ou adolescente apresentar qualquer
dificuldade relacionada à escola que a coloque na condição de aproveitamento insuficiente.
São os pais, em conseqüência, na visão do legislador, os primeiros e últimos responsáveis
pelo aproveitamento escolar dos filhos.
Como representantes dos filhos em idade escolar, são os pais não só atores de obrigações,
mas também agentes de defesa do direito à educação dos filhos. São os pais, por exemplo, os
que podem exercer, em nome dos filhos, o direito de contestar os critérios avaliativos da escola,
recorrendo às instâncias escolares superiores; são os pais que podem exigir para os filhos o
atendimento em programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação
e assistência à saúde; enfim, estão os pais legitimados a exercer todos os atributos condizentes
com conteúdo material do direito à educação,
31
sem prejuízo da iniciativa dos demais legitimados.
Os pais são a base de sustentação da educação dos filhos. Adquiriram eles, inclusive, a
possibilidade de participar ativamente da definição da proposta educacional da escola dos
30
Recentes decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul consagram o entendimento de que a
obrigatoriedade da matrícula, a partir da vigência da atual Constituição Federal e do Estatuto da Criança e
do Adolescente, é a partir dos sete anos e subsiste até o adolescente completar os dezoito anos, não mais
em vigor a Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971 (antiga Lei de Diretrizes e Bases), até mesmo porque
expressamente revogada pelo artigo 92 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (atual Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional), que limitava essa idade dos sete aos quatorze anos (processos nº 71000081950,
relator o juiz de Direito Umberto Guaspari Sudbrack, e nº 71000081802, relator o juiz de Direito Antônio
Corrêa Palmeiro da Fontoura, ambos julgados pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais, em
acolhimento a recursos interpostos pelo Ministério Público contra decisões de primeiro grau, pelos promo-
tores de Justiça Alexandre da Silva Loureiro e Charles Emil Machado Martins, na Comarca de Arvorezinha,
RS, recursos julgados, respectivamente, em 9 e 23 de fevereiro de 2000).
31
Sobre o assunto, ver enxerto específico sobre o conteúdo material do direito à educação escolar, em O
Direito é Aprender, publicação do Projeto Nordeste do FUNDESCOLA, órgão vinculado ao Ministério da Educa-
ção, publicação organizada por Leoberto Narciso Brancher e outros. No mesmo sentido, com importantes
considerações sobre Educação, Direito e Cidadania, texto de Paulo Afonso Garrido de Paula, em Cadernos
de Direito da Criança e do Adolescente, publicação da ABMP, vol. nº 1, Malheiros Editores, págs. 91/103.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
190
filhos, além de acessar ao saber do processo pedagógico (parágrafo único do artigo 53 do
Estatuto), com o que se visualiza um novo projeto para as relações família-escola, uma relação
caracterizada pela mútua colaboração, co-gestora de responsabilidades.
5 CONCLUSÃO
O conjunto de dispositivos legais incidentes sobre o direito à educação, em especial o
elenco de novos atores diretamente responsáveis em promover ou determinar providências,
certamente vai contribuir para mudar a face do ensino no país. Há outros fatores fundamentais
a serem considerados, fatores atinentes a organização e funcionamento interno da escola e dos
sistemas de ensino, inclusive as condições de trabalho e de salário do magistério, questões
que não se resolvem por meras alterações da ordem jurídica material. No entanto, não há
como deixar de visualizar perspectivas positivas para a realidade educacional brasileira, porque
a normatividade atualmente incidente constitui-se em arma preciosa em mãos da sociedade e
certamente terá a capacidade de gerar efeitos, como, aliás, em grande parte revelam, nos últimos
anos, o significativo decréscimo dos indicativos de exclusão escolar.
Agir em face da realidade do presente, sem desconsiderar as dificuldades, mas também sem
temê-las, significa a chave para o desenvolvimento integral de milhares de crianças e adolescentes
brasileiros. À família, à escola e ao Município, ao último pelas atribuições precisas e preciosas do
Conselho Tutelar, são oferecidos encargos numa mesma convergência, no sentido da proteção
integral de suas crianças e adolescentes. Se tais entes realmente convergirem em ações, não
haverá obstáculo incapaz de superação e tampouco estará indefeso o direito à educação.
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ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
191
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Afonso Armando Konzen
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12
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MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
193
5
CAPÍTULO
O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula*
SUMÁRIO
1 PERFIL CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 194
2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 194
3 CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE DIREITOS ..... 195
4 A NATUREZA INDISPONÍVEL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 195
5 O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 195
6 OBRIGATORIEDADE DA INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 196
7 EXTENSÃO DA ATUAÇÃO MINISTERIAL ..... 197
8 A HARMONIA ENTRE OS PODERES E A
INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NA VALIDAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ..... 204
9 EXEMPLOS DE AÇÕES SISTÊMICAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PAULISTA PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 206
10 REMATE ..... 207
* Procurador de Justiça e professor regente da cadeira de Direito da Criança e do Adolescente da PUC/SP. É um dos
autores do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
194
1 PERFIL CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público está definido na Constituição da República (art. 127, caput) como
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis caracteriza a instituição como verdadeira “guardiã das liberdades públicas” e do
Estado Democrático de Direito, na medida em que o exercício de suas atribuições, judiciais ou
extrajudiciais, visa, em essência, ao respeito aos fundamentos do modelo social pretendido
1
e
a promoção dos objetivos fundamentais do país.
2
Importante salientar que na expressão guardião das liberdades públicas está inserida,
também, a defesa dos interesses individuais indisponíveis, com vistas à concretização de direitos
fundamentais da pessoa humana, cuja falta de atendimento impede o próprio desenvolvimento
coletivo.
O Ministério Público assenta-se em três princípios fundamentais: unidade, indivisibilidade
e independência funcional (CF, art. 127, §1
o
). Trata-se, em breve resumo, de instituição única,
cujas funções são privativas e exercidas por representantes que atuam em nome do Ministério
Público, gozando seus membros de plena liberdade no que tange à formação da convicção
jurídica e de ampla autonomia de atuação nos casos que lhe são afetos, sendo tal independência
assegurada pelas garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos
(CF, art. 128, § 5
o
).
2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O Estatuto da Criança e do Adolescente está assentado em dois princípios constitucionais
básicos, o da prioridade absoluta e da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (CF,
art. 227, caput e § 3
o
, IV),
que visam garantir à criança ou adolescente a primazia, preferência ou
precedência no atendimento de seus direitos básicos, ante a inequívoca urgência de suas
necessidades.
1
Soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e
pluralismo políticoConstituição, art. 1º.
2
Construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da
pobreza e da marginalidade e redução das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminaçãoConstituição,
art. 3º.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
195
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
É importante ter em mente que o destinatário da norma é alguém na condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento, que vivencia um processo único, mágico e intricado, de rápidas
e constantes modificações físicas, sociais e culturais e que, em pouco tempo, terá atingido a
maturidade adulta, de acordo com as condições que a família, a sociedade e o Estado tiverem
ofertado.
Outro princípio, não menos importante, é o da participação popular na gestão da questão
relacionada à infância e à juventude (CF, art. 227, §§ 3
o
e 7
o
, c.c. art. 204, II), de modo que a
comunidade, agindo em conjunto com o poder público, possa participar da definição de objetivos
e iniciativas potencialmente eficazes como forma de efetivar os direitos das crianças e adolescentes.
3 CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE DIREITOS
A Constituição de 1988 erigiu crianças e adolescentes à condição de titulares autônomos
de interesses juridicamente tutelados e subordinantes em face de família, sociedade e Estado,
ao afirmar o dever destes últimos em assegurar aos primeiros, com absoluta prioridade e em
atenção à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, direitos fundamentais, como vida,
saúde, educação, dentre outros.
Coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente disciplinar as principais relações jurídicas
que se desenvolvem entre esses sujeitos de direitos.
4 A NATUREZA INDISPONÍVEL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Todos os direitos da criança e do adolescente, sem exceção, são indisponíveis, compostos
de uma parte individual e de outra pública, que os caracterizam como insuscetíveis de qualquer
forma de renúncia ou transação.
A indisponibilidade decorre da condição especial de seus titularescrianças e adolescentes
e da proteção integral a eles devida, abrangendo a totalidade de seus direitos, estabelecidos
também em razão do interesse social em garantir efetivo atendimento às necessidades básicas
da infância e da juventude.
Mesmo os de natureza patrimonial são indisponíveis, valendo lembrar que o Código Civil,
no artigo 386, subordina ao crivo judicial a alienação de bens pertencentes a menores de 21
anos de idade não emancipados, somente possível se demonstrada a necessidade ou evidente
utilidade do negócio.
5 O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O Ministério Público é o guardião dos interesses sociais e individuais indisponíveis,
incumbindo-lhe, assim, o zelo pelos interesses individuais (homogêneos ou não) sempre que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
196
sua tutela for conveniente para a sociedade, assim como nas questões que envolvam, mesmo
reflexamente, saúde ou segurança da população, acesso das crianças e adolescentes à educação
e o normal funcionamento dos sistemas econômico, social ou jurídico.
3
Como defensor constitucional dos direitos da criança e do adolescente, na exata medida da
indisponibilidade desses interesses juridicamente tutelados, seu compromisso é com a efetividade
da norma, de sorte que esta insira-se no cotidiano como uma realidade palpável, passível de ser
percebida, apreendida e materialmente utilizada pelos beneficiários da tutela jurídica.
Para atingir tal desiderato, cuidou o legislador de garantir o acesso de toda criança ou
adolescente ao Ministério Público (ECA, art. 141), factível mediante a criação ou manutenção de
serviço de atendimento ao público, de modo que a população infanto-juvenil, diretamente ou
por meio dos pais ou responsável, ou até mesmo por intermédio de representante de entidades
de defesa, possa levar à instituição seus pleitos e reclamações.
Isto importa em verdadeira função de ouvidor, devendo cuidar o órgão de execução para
a efetivação da precedência de atendimento (ECA, art. 4
o
, parágrafo único, “b”), um dos aspectos
da prioridade absoluta a que se refere o artigo 227, caput, da Constituição Federal.
As funções do Parquet serão exercidas nos termos do artigo 200 do Estatuto da Criança e
do Adolescente e de acordo com a organização institucional de cada Ministério Público, sendo
que, em regra, as atribuições afetas à criança e ao adolescente são conferidas a promotores de
Justiça de Primeira Instância ou de Primeiro Grau, nominados de promotores de Justiça da
Infância e da Juventude.
6 OBRIGATORIEDADE DA INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O promotor de Justiça intervém obrigatoriamente nos processos afetos a crianças e
adolescentes, em decorrência da indisponibilidade que caracteriza o interesse infanto-juvenil,
seja como parte ou como custos legis, tendo o dever de zelar pela efetivação dos direitos da
criança e do adolescente na exata medida em que a lei os protege.
Como parte encontra-se extraordinariamente legitimado para substituir a criança ou
adolescente, titular do interesse individual juridicamente tutelado, no polo ativo da relação
processual (ECA, art. 201, V). Como substituto processual (CPC, art. 6
o
) defende, em nome da
instituição Ministério Público, qualquer direito da criança e do adolescente que, como visto, é
sempre indisponível.
Como custos legis o Ministério Público deve intervir em todos os procedimentos onde estejam
em discussão direitos de menores de 21 anos de idade não emancipados (CPC, art. 82, I),
3
Súmula nº 7 do Conselho Superior do Ministério Público.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
197
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
notadamente direitos da criança ou adolescente cuja aferição integre a competência da Justiça da
Infância e da Juventude (ECA, arts. 201, III, última figura, e 202).
A obrigatoriedade da sua intervenção constitui-se em pressuposto processual objetivo
positivo de validade do processo, configurando a eventual falta em nulidade absoluta,
expressamente cominada (CPC, arts. 84 e 246; ECA, art. 204).
Observe-se que as manifestações do Ministério Público devem sempre ser fundamentadas
(ECA, art. 205), de modo que se possa aquilatar a vinculação de seu representante com os
interesses sociais e individuais indisponíveis que incumbe defender.
7 EXTENSÃO DA ATUAÇÃO MINISTERIAL
Considerando-se a amplitude dos direitos da criança e do adolescente, a atuação ministerial
desenvolve-se de diversas formas, seja judicial ou administrativamente, destacando-se:
(a) a intervenção civil na defesa dos interesses individuais, coletivos ou difusos da criança
ou adolescente;
(b) a intervenção civil na defesa da regularidade de entidades e programas de atendimento;
(c) a instauração de procedimentos administrativos, sindicâncias, diligências investigatórias
e determinação de instauração de inquérito policial;
(d) o exercício da função de ombusdman na área da infância e juventude;
(e) a fiscalização do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar;
(f) a fiscalização do ingresso no cadastro de adoções;
(g) a fiscalização de entidades e programas de atendimento; e
(h) a intervenção na área infracional.
(a) A intervenção civil na defesa dos interesses individuais, coletivos ou difusos da criança
ou adolescente
O Ministério Público intervém em todos os procedimentos de competência de Justiça da
Infância e da Juventude (ECA, arts. 148 e 149), independentemente da natureza individual ou
coletiva do interesse tutelado.
No âmbito individual, está o Parquet legitimado para a promoção e acompanhamento de
ações de alimentos, dos procedimentos de suspensão ou destituição do pátrio poder, dos
procedimentos de colocação em família substituta, devendo intervir, também, nos processos
visando o afastamento do agressor da moradia comum em caso de maus-tratos, opressão ou
abuso sexual, (ECA, art. 130), nos de autorização de viagem (ECA, arts. 83 a 85), bem como em
todo e qualquer feito cuja medida a ser aplicada não corresponda a procedimento previsto em
lei (ECA, art. 153).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
198
No que respeita à defesa dos direitos difusos ou coletivos da infância e da juventude, à partir
do advento da Lei da Ação Civil Pública (Lei n
o
7.347, de 24/06/85) surge organicamente no
cenário jurídico nacional a possibilidade de defesa judicial de interesses coletivos ou difusos, que
adquire, com a Carta de 1988, status constitucional, sendo a ação civil pública erigida à categoria
de um dos remédios para a defesa de quaisquer interesses difusos e coletivos (art. 129, III).
Além da própria Lei da Ação Civil Pública, a disciplina básica dessas ações coletivas acabou
consolidada no nosso ordenamento por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n
o
8.069, de 13/07/90) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei n
o
8.078, de 11/09/90).
O Estatuto da Criança e do Adolescente possibilita ao promotor de Justiça a instauração
do inquérito civil e a promoção da ação civil pública para a defesa dos interesses singulares da
pessoa humana, ante a indisponibilidade dos direitos individuais dos destinatários da norma.
Quando o Ministério Público não for parte, atuará obrigatoriamente nos processos ou
procedimentos envolvendo direitos e interesses de que trata o Estatuto da Criança e do
Adolescente, devendo a autoridade judiciária, em qualquer caso, determinar a intimação pessoal
de seu representante (ECA, arts. 202 e 203).
É de ser salientado, uma vez mais, que a falta de intervenção do Ministério Público acarreta
a nulidade do feito, que será declarada de ofício pelo juiz ou a requerimento de qualquer
interessado (ECA, art. 204).
(b) A intervenção civil na defesa da regularidade de entidades e programas de atendimento
Chegando ao conhecimento do promotor de Justiça irregularidade em entidade ou programa
de atendimento destinado a crianças e adolescentes, conhecimento resultante da fiscalização
de ofício ou do apurado em procedimento administrativo, poderá o representante do Ministério
Público buscar a apuração judicial das falhas, com a conseqüente imposição das sanções
previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, art. 97).
A representação, contendo o resumo dos fatos indicativos das irregularidades (ECA, art.
191), pode, também, incluir pedido liminar de afastamento provisório do dirigente da entidade,
indicando os motivos que justificam a medida extrema, valendo anotar que tal cautela tanto
concerne a entidades governamentais como não governamentais. Muito embora o afastamento
definitivo somente seja possível em se tratando das primeiras, reclama, no caso das segundas,
procedimento específico visando à dissolução de sociedade civil (Decreto-Lei n
o
41, de 18/11/
66), mesmo na hipótese do cometimento de reiteradas infrações que coloquem em risco os
direitos assegurados em lei (art. 97).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
199
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
(c) A instauração de procedimentos administrativos, sindicâncias, diligências investigatórias
e determinação de instauração de inquérito policial
O Ministério Público pode instaurar procedimentos administrativos inominados (ECA, art.
201, IV), visando formar sua convicção a respeito de fatos ensejadores, em tese, de providências
judiciais ou extrajudiciais, sendo-lhe facultado buscar formalmente, antes mesmo da instauração
de um inquérito civil, elementos embasadores de sua ação, de sorte que sua atuação posterior
repouse em justa causa.
4
Deve ser salientado que tais procedimentos administrativos se prestam a embasar as funções
de ombudsman expressamente reservadas ao Ministério Público na área da infância e da
juventude,
5
podendo seu representante, para instrução desses procedimentos administrativos,
expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos, sob pena de condução
coercitiva, requisitar informações, exames, perícias e documentos de qualquer autoridade,
promover inspeções e diligências investigatórias e requisitar informações e documentos a
particulares e instituições privadas.
Como se tratam de requisiçõesexigências fundamentadas em lei , o descumprimento
implica crime de desobediência, sem prejuízo, no caso de notificação para coleta de depoimentos
ou esclarecimentos, da condução coercitiva.
As sindicâncias previstas no ECA (art. 201, VII) são substitutivas do inquérito policial, eis
que, ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (CF, art. 129, I), reserva-se a
faculdade de promover diretamente, desde que julgue oportuno e conveniente, a apuração de
crimes contra a criança ou adolescente.
Nessas sindicâncias lhe é permitido a utilização de todos os meios legais para a obtenção
da verdade real, inclusive as requisições próprias de qualquer procedimento administrativo,
anteriormente tratadas, além, é claro, da determinação de instauração de inquérito policial.
(d) Exercício da função de ombudsman na área da infância e da juventude
A função de ombudsman vem definida no texto constitucional, complementado pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente, pelo enunciado que estabelece competir ao Ministério Público
zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes,
promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis (CF, art. 129, II; ECA, art. 201, VIII).
4
Tais procedimentos podem ser autuados como pedido de providências, investigação prévia ou outros
destinados à coleta de elementos preparatórios justificadores de suas subseqüentes ações.
5
Nos termos da referência contida na alínea “a”, do § 5º, do artigo 201 do ECA.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
200
Quis o legislador distinguir as atividades judiciais das extrajudiciais, a fim de reforçar a
legitimidade do Ministério Público para atuar fora do processo, na qualidade de ombudsman,
intermediando a composição de litígios de modo a evitar a evocação da tutela jurisdicional, podendo
seu representante, no exercício dessa função: (a) reduzir a termo as declarações do reclamante;
instaurando o competente procedimento; (b) entender-se diretamente com a pessoa ou autoridade
reclamada, em dia, local e horário previamente notificados ou acertados; e (c) efetuar recomendações
visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente,
fixando prazo razoável para sua perfeita adequação (ECA, art. 201, § 5
o
).
(e) Fiscalização do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar
Cabe ao Ministério Público o importante papel de fiscalizar o processo de escolha dos membros
do Conselho Tutelar (ECA, art. 139), “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado
pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente” (ECA, art. 131).
Para o exercício dessa função o promotor de Justiça deve estar atento aos dispositivos
inseridos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na lei municipal que instituir o Conselho
Tutelar. A primeira lei estabelece os requisitos básicos e gerais, de observância obrigatória em
todos os Municípios brasileiros; a segunda, de caráter local, além de criar o Conselho Tutelar
e estabelecer regras quanto ao seu funcionamento e organização, deve detalhar o processo de
escolha dos conselheiros, notadamente quanto à sua forma.
O Ministério Público, portanto, deve zelar pelo respeito às condições estabelecidas na lei,
de modo que o processo de escolha esteja concorde com as determinações do legislador federal
e municipal. No caso de irregularidades, deve previamente encetar medidas administrativas
que conduzam à adequação da escolha aos ditames legais, socorrendo-se do Judiciário quando
esgotados os meios de recomposição da legalidade e lisura que devem marcar o processo de
escolha dos conselheiros tutelares.
(f) Fiscalização do ingresso no cadastro de adoções
A fim de viabilizar o controle das adoções e democratizar o acesso dos interessados,
determinou o legislador a obrigatoriedade da manutenção de um registro de crianças e
adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção (ECA,
art. 50, caput). A inscrição ou registro, quer dos adotáveis, quer dos interessados em adoção,
é condicionada à satisfação dos requisitos legais e não prescinde de prévia manifestação do
Ministério Público (ECA, art. 50, § 1
o
).
Quanto se tratar de inscrição de criança no cadastro de adotáveis é necessário verificar,
basicamente, a ocorrência de causa de extinção ou destituição do pátrio poder ou a concordância
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
201
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
de seus detentores a que o filho seja colocado em família substituta, hipótese na qual o promotor
de Justiça necessariamente deve ouvi-los (ECA, art. 161). Já no caso de interessados à adoção
cumpre constatar se podem oferecer ambiente familiar adequado (ECA, art. 129) e se o pleito,
genérico, funda-se em motivos legítimos (ECA, art. 43).
(g) Fiscalização de entidades e programas de atendimento
O Ministério Público tem a função de fiscalizar as entidades públicas e particulares de
atendimento (ECA, art. 90), ou seja, aquelas que executam programas de proteção ou programas
sócio-educativos, os primeiros destinados a crianças e adolescentes privados ou ameaçados
de privação de direitos fundamentais e os segundos destinados a adolescentes autores de atos
infracionais.
As principais obrigações dessas entidades estão arroladas nos artigos 92 a 94 do ECA,
cumprindo ao promotor de Justiça a verificação do atendimento desses imperativos legais.
Trata-se de atividade disjuntiva do Ministério Público, encontrando-se também legitimados o
Judiciário e o Conselho Tutelar (ECA, art. 95), optando o legislador em estabelecer atribuição
concorrente, de sorte a garantir a efetividade da fiscalização.
Verificada a ocorrência de irregularidades o Ministério Público poderá ingressar com
representação, visando sua apuração judicial e, via de conseqüência, a aplicação das medidas
arroladas no artigo 97 do ECA ou mesmo encetar iniciativas administrativas, notadamente no
exercício da função de ombusdman, tendentes à remoção das falhas constatadas.
Na atividade fiscalizatória o representante do Ministério Público, no exercício de suas funções,
terá livre acesso a todo local onde se encontre criança ou adolescente (ECA, art. 201, § 3
o
).
(h) Intervenção na área infracional
É de ser salientado que o ECA introduziu no ordenamento jurídico pátrio a figura da chamada
ação sócio-educativa pública.
O ato infracional (ECA, art. 103) praticado por adolescente tem por conseqüência a pretensão
sócio-educativa, possibilitando ao Estado o direito de fazer atuar as normas previstas na
legislação especial, ou seja, no Estatuto da Criança e do Adolescente.
(h.1) Da remissão
De modo mais amplo do que adotado no sistema processual penal, antes do advento da
Lei 9.099/99, quanto ao princípio da obrigatoriedade de propositura da ação penal, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, ao instituir a remissão como forma de exclusão do processo,
expressamente adotou o princípio da oportunidade, conferindo ao titular da ação sócio-educativa
a decisão de invocar ou não a tutela jurisdicional.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
202
A decisão nasce do confronto dos interesses sociais e individuais tutelados unitariamente
pelas normas insertas no ECA (interessa à sociedade defender-se de atos infracionais, ainda que
praticados por adolescentes, mas também lhe interessa proteger integralmente o adolescente,
ainda que infrator).
Assim, em cada caso concreto, pode o Ministério Público dispor da ação sócio-educativa
pública por meio da remissão, concedendo-a como perdão puro e simples; ao representante
do Parquet, no entanto, ao conceder a remissão como forma de exclusão do processo, é vedada
a aplicação de medida. O que a lei permite é que a inclua como condição do não processar,
como contrapartida da disponibilidade da ação sócio-educativa (ECA, art. 127). Quando o
representante do Ministério Público inclui medida como condição para a disposição da ação
sócio-educativa, não está aplicando qualquer sanção. Do ajuste, da transação estabelecida
entre o titular da ação e aquele contra o qual pesa genérica atribuição de ato infracional,
resulta exclusivamente declaração bilateral de vontades: de um lado o Ministério Público dizendo
que não vai processar porque o adolescente aceitou cumprir medida não privativa de liberdade
e, de outro, este último afirmando que prefere a negociação ao processo. Se o Ministério
Público busca a coerção, se pretende submeter o cidadão, ainda que adolescente, à sanção
prevista na lei, deve necessariamente invocar a tutela jurisdicional, deduzindo a lide em juízo.
E o faz, no caso, pelo oferecimento da representação, exercitando o direito de ação sócio-
educativa (ECA, art. 180, III, c.c. arts. 182, caput, e 201, II).
Conforme entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Mandado
de Segurança 1976-7, no qual figurou como relator José Cândido, publicado no Diário Oficial
da União de 11 de outubro de 1993, pág. 21.338, “o Ministério Público, adotadas as providências
previstas no artigo 179 do ECA, pode conceder a remissão e requerer à autoridade judiciária a
aplicação de medida sócio-educativa. Desde que homologada a remissão, o juiz pode determinar
o cumprimento da medida indicada, sem dar causa a constrangimento ilegal, reparável através
de habeas corpus.”
Assim, a concessão de remissão como forma de exclusão do processo constitui-se em
instrumento do Ministério Público para a disposição da ação sócio-educativa pública, de sorte
a alcançar, pela via administrativa, um meio rápido de composição amigável da lide entre a
sociedade e o adolescente, estabelecida com a prática do ato infracional.
(h.2) Promoção e acompanhamento de procedimentos relativos às infrações atribuídas a
adolescentes
O procedimento de apuração de ato infracional atribuído a adolescente inicia-se com o
oferecimento de representação pelo Ministério Público, titular da ação sócio-educativa pública
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
203
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
(ECA, art. 182). A representação deverá ser oferecida por petição, que conterá o breve resumo dos
fatos e a classificação do ato infracional e, quando necessário, o rol de testemunhas, podendo
ser deduzida oralmente, em sessão diária instalada pela autoridade judiciária (ECA, art. 182, § 1
o
).
Uma vez que aos procedimentos regulados no Estatuto aplicam-se subsidiariamente as
normas gerais previstas na legislação processual pertinente (ECA, art. 152), é de se buscar no
Código de Processo Penal o número máximo de testemunhas permitido, ou seja, oito em se
tratando de ato infracional cuja pena cominada para adulto seja a reclusão, cinco em se tratando
de crime a que não for, ainda que alternativamente, cominada a pena de reclusão, e três, em se
tratando de contravenção penal (CPP, arts. 398, 539 e 533).
Como a apuração do fato é feita em juízo, inexistindo a figura do inquérito policial, sendo a
representação instruída com cópia de auto de apreensão, ou boletim de ocorrência circunstanciado,
ou relatório de investigações, estabelece a lei que seu oferecimento independe de prova pré-
constituída de autoria e materialidade, prova esta a ser produzida no curso do processo.
Figurando o Ministério Público como parte, deverá intervir em todos os atos do
procedimento, sendo que sua falta implicará nulidade absoluta, a ser declarada de ofício pelo
juiz ou mediante requerimento de qualquer interessado (ECA, art. 204).
Poderá também promover o arquivamento dos autos quando inexistente o fato, ou quando
não constituir ele ato infracional ou não for o adolescente seu autor (ECA, art. 180, I). A promoção
de arquivamento deverá ser feita mediante termo contendo o resumo dos fatos e a indicação
das razões de convicção, ficando sujeita à homologação judicial (ECA, art. 181).
Mais uma vez é mister frisar que sua qualidade de parte no processo não desnatura sua
função primordial de defensor dos interesses fundamentais do adolescente, ainda que autor de
ato infracional, devendo zelar pelos respeito às garantias do devido processo legal, especialmente
no que concerne ao direito de defesa. Suas promoções deverão levar em conta o interesse social
indisponível relativo à segurança e os interesses indisponíveis do adolescente, notadamente a
liberdade, de modo que se persiga a solução que melhor atenda à composição do conflito.
O Ministério Público intervém obrigatoriamente também em todos os incidentes de
execução, devendo manifestar-se previamente a respeito da substituição de toda e qualquer
medida (ECA, arts. 113 e 99), especialmente a medida de internação (ECA, art. 121, § 6
o
),
semiliberdade (ECA, art. 102, § 2
o
)
e liberdade assistida (ECA, art. 118, § 2
o
).
(h.3) Entrevista com adolescentes privados de liberdade
Um dos direitos do adolescente privado de liberdade, ou seja, submetido a medida sócio-
educativa denominada internação consiste em “entrevistar-se pessoalmente com o representante
do Ministério Público” (ECA, art. 124, I). Isso implica a obrigação do promotor de Justiça de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
204
visitar periodicamente os estabelecimentos de internato, mantendo entrevistas com os
adolescentes internados, de modo a aferir as condições em que se encontram. Constatada
irregularidade que importe em inobservância de direito consignado em lei, especialmente
aqueles relacionados no artigo 124, deve encetar as iniciativas judiciais ou extrajudiciais que
conduzam à remoção do obstáculo, sem prejuízo, se for o caso, das providências penais.
8 A HARMONIA ENTRE OS PODERES E A INTERVENÇÃO
DO JUDICIÁRIO NA VALIDAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
As ações civis cominatórias por obrigação de fazer não caracterizam qualquer arranhão ao
princípio da harmonia e independência entre os Poderes.
A UNIVERSALIDADE DA JURISDIÇÃO, princípio contemplado no texto da nossa Constituição Federal
ao garantir acesso à justiça quando de lesão ou ameaça a qualquer direito – individual, individual
homogêneo, coletivo ou difuso, público ou privado –, impõe o controle dos atos administrativos,
mesmo aqueles praticados dentro da chamada esfera de discricionariedade, ante a imperiosa
necessidade de prevalência do império da lei sobre o arbítrio de quem quer que seja, inclusive
o Executivo.
Mesmo porque, reitere-se, o fundamento da discricionariedade é o DEVER, ou o PODER-DEVER ou
ainda a COMPETÊNCIA-DEVER da Administração de agir conforme os ditames do ordenamento jurídico.
No limiar do terceiro milênio nos parece, data maxima venia, equivocado interpretar a
regra da harmonia e independência entre os Poderes exclusivamente à luz das clássicas lições
de Montesquieu, que, nos idos de 1748, discorre sobre a divisão dos Poderes antes de uma
série de eventos históricos que iriam transformar, sobretudo, o Estado. As formas de governo
foram tratadas consoante as realidades de uma república incipiente, permeada pelos conceitos
de democracia e aristocracia, e das monarquias e regimes despóticos em crise.
6
Montesquieu enxergou o Poder Judiciário apenas como aquele que pune os crimes ou
julga as demandas dos particulares (Op. cit., p. 25), chegando a afirmar que dos Três Poderes,
de que falamos, o de julgar é de certo modo nulo. Não restam senão dois (Op. cit., p. 27).
Assim, considerando-se a sociedade contemporânea, é mister interpretar o princípio da
harmonia e independência entre os Poderes à luz das profundas transformações que o Estado,
e suas formas de organização, sofreram ao longo dos anos. O Poder Judiciário, felizmente, já
não é mais aquele retratado por Montesquieu, bem como já não cabe no Poder Executivo
6
Ver O Espírito das Leis. Montesquieu. Introdução, tradução e notas de Pedro Viera Mota, Editora Saraiva, 6
a
ed., 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
205
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
qualquer idéia de despotismo. Os Poderes do Estado são absolutamente complementares, de
modo a atingir os objetivos previstos no pacto social.
No nosso caso, os Poderes são organizados à luz de uma forma de governo – República –
constituída em um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1
o
), tendo fundamentos sólidos,
entre os quais a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e objetivos a serem
alcançados, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem
de todos (CF, art. 3
o
, I e V).
Assim, o Poder Judiciário, por meio das suas atividades peculiares, insere-se como um dos
pilares da República, construído sobre os mesmos fundamentos e igualmente destinado à
consecução dos objetivos próprios do Estado, sendo da sua própria essência.
Dessa forma, a harmonia entre os poderes deve ser considerada como cortesia no trato
recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que se verifica, primeiramente, a normas
a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de
funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutos. Há interferências que
visam ao estabelecimento de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização
do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento
do outro e especialmente dos governados.
7
J. J. Gomes Canotilho, na clássica obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, trata
do princípio da separação e interdependência dos órgãos da soberania também sob o prisma de
uma diretriz fundamental, realçando seu aspecto moderno de balanço ou controle das funções, a
fim de impedir um “superpoder”, com a conseqüente possibilidade de abusos e desvios, tendo
subjacente a idéia de constituição mista e a exigência de freios e contrapesos.
8
Também ensina
que o núcleo essencial do princípio reside na conclusão de que órgãos especialmente qualificados
para o exercício de certas funções não podem praticar atos que materialmente se aproximam ou
são mesmo característicos de outras funções e da competência de outros órgãos, sob pena de
esvaziamento das funções materiais atribuídas a outro (Op. cit., p. 517).
Com base nesses pressupostos afirma que o princípio da separação e interdependência
dos órgãos da soberania tem, assim, uma função de garantia da Constituição, pois os esquemas
de responsabilidade e controle entre os vários órgãos transformam-se em relevantes fatores de
observância da Constituição (Op. cit., p. 825), defendendo, via princípio da proteção judiciária,
o acesso à Justiça para tutela de todos os direitos fundamentais, inclusive os direitos sociais e
os direitos subjetivos públicos.
7
José Afonso da Silva. Direito Constitucional Positivo. Editora Revista dos Tribunais, 1ª ed., p. 101.
8
Op. cit., Editora Almedina, Coimbra, 3ª ed., 1999, pp. 513/514.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
206
Em resumo, quando o Poder Jurisdicional valida um direito qualquer, ainda que o
descumprimento tente ser exculpado pela discricionariedade administrativa, está exclusivamente
cumprindo seu papel como Poder Soberano do Estado, afirmando o primado do Direito e
garantindo a eficácia da Constituição.
Não está substituindo a Administração nas funções de sua competência; está, mesmo na
clássica concepção de jurisdição, substituindo apenas as partes em conflito no exercício regular
do seu poder constitucional de fazer atuar o direito objetivo.
9 EXEMPLOS DE AÇÕES SISTÊMICAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO PAULISTA
PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Como exemplo de ações sistêmicas, podem-se apontar as iniciativas encetadas pelo
Ministério Público de São Paulo, na defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente,
nas mais diversas áreas de proteção, destacando-se, dentre tais iniciativas:
9.1 A criação de um Grupo Especial de Trabalho para a implementação da regionalização
do atendimento ao adolescente infrator no Estado de São Paulo, composto por promotores de
Justiça de todo o Estado, com vistas a equacionar os problemas enfrentados pelos adolescentes
submetidos às medidas sócio-educativas, envolvidas as diversas instâncias institucionais,
9
desdobrando-se as atividades em várias reuniões regionais, instauração de 22 inquéritos civis
e propositura de 7 ações civis públicas, visando compelir o Estado à implantação de unidades
regionais de atendimento ao adolescente autor de ato infracional.
9.2 A criação do Grupo Especial de Trabalho para assegurar a efetivação dos direitos
referentes à dignidade e ao respeito de crianças e adolescentes, especificamente no tocante à
preservação de sua imagem e à exposição nas redes de televisão, culminando com a elaboração
de diversos textos pelos promotores de Justiça integrantes do grupo, cuja revisão encontra-se
em fase final para posterior publicação.
9.3 Implementação de acesso e permanência de crianças e adolescentes no ensino
fundamental, por meio de ações civis públicas e mandados de segurança individuais, visando
compelir o Estado a garantir a oferta de vagas na rede pública de ensino.
9.4 A criação de uma homepage do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça da Infância e da Juventude, na qual são apresentadas diversas matérias de interesse da
área específica de atuação, subsidiando a atuação dos promotores de Justiça, além de conter
informações sobre a rede de atendimento da criança e do adolescente, com acesso amplo.
9
Procuradoria-Geral de Justiça, Conselho Superior do Ministério Público, Promotorias de Justiça e Centro de
Apoio Operacional.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
207
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO
Paulo Afonso Garrido de Paula
9.5 Elaboração de boletim informativo, remetido aos promotores de Justiça do Estado, aos
demais Ministérios Públicos e aos diversos setores da sociedade civil, comprometidos com o
atendimento dos direitos infanto-juvenis, contendo notícias acerca das iniciativas tendentes à
proteção devida aos destinatários do ECA.
9.6 A criação do ícone “Medidas Sócio-Educativas de Qualidade”, visando dar publicidade
às ações civis públicas e demais iniciativas dos promotores de Justiça da Infância e da Juventude
no âmbito do Estado de São Paulo, tendentes à efetivação dos direitos da criança e do adolescente.
Tais exemplos, a par de tantos outros realizados pelos demais Ministérios Públicos, seja
no combate à evasão escolar, no combate à exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, na
implementação de políticas educacionais mínimas, além de servirem de precedentes importantes
para firmar-se no Brasil a idéia da proteção integral exercida por meio das ações coletivas,
caracterizam verdadeiro incentivo para que os operadores do Direito mantenham-se na defesa
intransigente dos direitos da criança e do adolescente.
10 REMATE
O Ministério Público, no âmbito do Sistema de Garantias Jurídicas da Infância e da Juventude
e integrante da Rede de Proteção Especial, vem se firmando como instrumento primordial na
efetivação dos direitos da criança e do adolescente, na exata medida em que defende
imparcialmente seus interesses, ou seja, na expressão desejada pelo legislador.
Isso, em um Estado Democrático de Direito, no qual a lei, legitimamente elaborada, define
condições essenciais para a atualização das potencialidades da pessoa humana, representa uma
alavanca importante na remoção das desigualdades. Os interesses sociais e individuais indisponíveis
representam a soma dos elementos materiais e culturais que o ser humano pode dispor no caminho
de seu existir, assegurados pelo Estado por meio de políticas sociais básicas, como salário,
alimentação, habitação, saúde, educação, desenvolvidas sob a égide da democracia e da liberdade.
O Ministério Público, seja atuando administrativamente, seja promovendo as ações civis
necessárias à defesa judicial dos interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à infância e
juventude, pode auxiliar que a maioria miserável transponha a marginalidade para a cidadania,
exercitando efetivamente seus direitos, quer porque sejam respeitados por todos, quer porque
encontrem no Poder Judiciário a efetivação negada no cotidiano.
A força do Ministério Público, emprestada à criança e ao adolescente, equilibra suas relações
com o mundo adulto, fazendo-os sujeitos de direitos.
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
209
6
PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva*
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 210
2 GENERALIDADES ..... 210
2.1 DIREITO DO MENOR: PERPLEXIDADES ..... 210
2.2 DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UM NOVO DIREITO ..... 211
2.3 AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 212
3 A CRIANÇA E O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI ..... 213
3.1 GENERALIDADESA DELINQÜÊNCIA JUVENIL ..... 213
4 O SISTEMA DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 216
4.1 HISTÓRICO ..... 216
4.2 CARACTERÍSTICAS ..... 218
4.3 O JUIZ ..... 221
4.4 MEDIDAS ..... 222
4.5 OS PROCEDIMENTOS ..... 235
4.6 PROTEÇÃO JUDICIAL DOS INTERESSES COLETIVOS E DIFUSOS ..... 243
4.7 OS RECURSOS ..... 245
4.8 O MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 246
4.9 O ADVOGADO ..... 247
4.10 SERVIÇOS AUXILIARES ..... 249
5 REDE ADMINISTRATIVA DE ATENDIMENTO ..... 250
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 251
* Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
CAPÍTULO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
210
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva expor em linhas gerais o novo sistema preconizado a partir
do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma nova Justiça e um novo Direito são apresentados
com base na doutrina da “Proteção Integral”.
A explanação inclui crítica ao antigo modelo e à doutrina da “situação irregular”, enfatizando
o papel de cada um dos integrantes do sistema: juiz, promotor, advogado, autoridade policial
e técnicos.
Valoriza-se o juiz como figura central do processo que age conforme os princípios da
legalidade estrita. Salienta-se a importância do Ministério Público, defensor dos direitos
indisponíveis, da ordem jurídica, do “justo”, distinguindo-se as funções do advogado como
indispensáveis à administração da justiça.
Cada personagem com o seu papel. Nada de eufemismos ou mitos capazes de desvirtuar
institutos ou órgãos já consolidados no Direito. O Direito das Crianças e dos Adolescentes,
como os demais, está preso aos princípios, às normas, às regras da ciência jurídica. A Justiça da
Infância e da Juventude, seus integrantes, o Sistema, estão jungidos ao Direito Judiciário.
O processo surge como elemento de garantia e segurança da liberdade jurídica, dos direitos
de crianças e adolescentes, cujo Sistema de Justiça, como os demais, busca a prevenção e a
composição dos litígios.
2 GENERALIDADES
2.1 DIREITO DO MENOR: PERPLEXIDADES
Segundo os defensores da doutrina Cavallieri, há que se limitar o alcance do Direito do
Menor [Cavallieri, 1978, p. 14]; o ramo não se ocupa de toda a menoridade, mas dos menores
de 18 anos que se encontrem em situação irregular, e, excepcionalmente, nos casos previstos
em lei, entre 18 e 21 anos. Ora, não é possível cogitar de um ramo do Direito cuja denominação
não corresponda ao conteúdo principal da matéria por ele tratada. Cuidando essa parte da
ciência jurídica apenas de uma parcela dos menores, daqueles que tenham menos de 18 anos
e, assim mesmo, estejam numa situação de “patologia jurídico-social”, definida legalmente, a
crítica pode começar pela impropriedade da denominação.
Para ser adequado à denominação, o Direito do Menor teria de se dirigir a todos os
menores de 21 anos e não apenas aos de 18 e, ainda assim, em “situação irregular”. A nominação
é sempre pelo conteúdo, pela regra de incidência. Aqui se nominou pela exceção.
Cavallieri define Direito do Menor como “o conjunto de normas jurídicas relativas à definição
da situação irregular do menor, seu tratamento e prevenção” [Op. cit., p. 9].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
211
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
O Direito do Menor é comparado à Medicina. Diz-se serem suas medidas terapêuticas. Há
um diagnóstico que identifica a “patologia social”. O juiz, à semelhança do médico, determina
o tratamento, buscando no elenco do Código a medida terapêutica adequada. O equívoco está
em “diagnosticar” o menino, que é posto como mero objeto da intervenção estatal, quando, na
realidade, se trata de sujeito ativo de direitos.
Entre as medidas ditas “terapêuticas”, o juiz não encontrava uma única de apoio material
ao jovem ou à família, restando, na maioria dos casos, a colocação em lar substituto ou
internamento como os únicos viáveis. Os pobres podiam perder o pátrio poder e os filhos, por
indigência, serem colocados sob tutela do Estado ou em família substituta.
2.2 DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UM NOVO DIREITO
Com o surgimento da Carta Política de 88 apareceu no país um novo direito, o Direito da
Criança e do Adolescente, evolução natural do chamado Direito do Menor. É que o artigo 227
reuniu e sintetizou os principais postulados da Doutrina da Proteção Integral das Nações
Unidas para a Infância.
O novo ramo, que tem como fontes materiais a denominada “questão do menor” e a “crise
da justiça tutelar” (casos Gault e Miranda), lastreou suas fontes formais em declarações e tratados
de direitos humanos, entre outros a Declaração de Genebra de 1924, a Declaração Universal
dos Direitos da Criança de 1959, a proposta de Convenção (Polônia de 1978 – hoje Convenção
Internacional dos Direitos da Criança), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça Juvenil, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos
Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da
Delinqüência Juvenil.
Em julho de 1990, o artigo 227 da Carta Política foi regulamentado pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente. Em 14 de setembro de 1990, a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança foi aprovada (Decreto Legislativo nº 28). Tais fatos despertaram redobrado interesse a
respeito das fontes das novas disposições.
A mudança no panorama legislativo foi radical. Passou-se da chamada Doutrina da Situação
Irregular do Menor para a Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente; a
criança pobre deixou de freqüentar o sistema policial e judiciário para ser encaminhada com
os pais à instância político-administrativa local, os Conselhos Tutelares; desapareceu a figura
do juiz de Menores, que tratava da situação irregular do menor, para surgir o juiz de Direito
que julga da situação irregular da família, da sociedade ou do Estado, podendo decidir, inclusive,
a respeito da eficácia de políticas públicas básicas, condenando o Estado a propiciar medidas
de apoio, auxílio e orientação à criança, ao adolescente e à família.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
212
A questão da delinqüência juvenil passou a ser encarada de forma realista e científica;
apareceram as ações de pretensão sócio-educativas; a remissão; o direito ao contraditório e à
ampla defesa; o julgamento; os princípios de presunção de inocência, da proporcionalidade,
da legalidade, da fundamentação das decisões.
Muito mais adequado falar-se em Direito da Criança e do Adolescente, um novo ramo
mais científico, mais jurídico, dirigido a todas as crianças e adolescentes, com denominação
correspondente ao conteúdo da matéria por ele tratada.
A nova doutrina evoluiu “da situação irregular do menor” para a situação irregular da
família, da sociedade e do Estado, preconizando novas medidas, também para os responsáveis
ativos da situação irregular. “Irregular” é o mesmo que “estar contra o que é regular”, conforme
a regra. Estamos no campo semântico-jurídico. Aqui, as expressões têm significado próprio.
Segundo De Plácido e Silva [1982, p. 321]; “irregular: (contrário a regular) que sai da regra
jurídica ou contravém à lei ou ao regulamento. Equivalente a ilegal.”
Ora, a criança negligenciada pelo Estado ou abandonada pelo pai jamais estará em situação
irregular, isto é, na ilegalidade. Na irregularidade incidirão o pai, a família ou o Estado.
2.3 AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Existe em todos os países, qualquer que seja o modelo ou sistema adotado (“do devido
processo legal”, do “bem-estar” ou do “participativo”), uma forte tendência no sentido de melhorar
a posição do jovem quanto aos seus direitos processuais e materiais.
A inclinação é registrada por vários autores: Emilio Garcia Mendez [1998], Tânia da Silva
Pereira [1996], Alenka Selih [pp. 29 e 30], Luiz Rodrigues Manzanera [1987, pp. 365 e 371-372],
Ubaldino Calvento Solari [1981, p. 21], Gilbert Armijo [1998, pp. 49/69], Mary Beloff [1998],
Alessandro Baratta [1998], Luigi Ferrajoli [1998].
Crianças e jovens gozam todos os direitos fundamentais da pessoa humana e, além disso,
têm direito à proteção integral. “As características próprias dos tribunais especializados são
estabelecidas para a realização dos direitos da criança e do adolescente, sem olvidar os direitos
fundamentais garantidos na Constituição”, como, por exemplo, o devido processo legal,
“evitando-se dessa forma que através do exercício de faculdades discricionárias e arbitrárias se
convertam em centros de poder ilimitado.” (Solari)
No Brasil, versando a matéria, Grünspun [1985, p. 86] diz que “a posição paternalista não
está resolvendo porque é autoritária e antijurídica”. Depois de analisar a questão
detalhadamente, o cientista faz interessante crítica:
“Criam-se então situações antijurídicas, modificando o transitado em julgado, com sentenças
novas que, mesmo chamadas de medidas educativas ou de proteção, não mudam o aspecto do
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
213
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
fato na prática: injustiças para os menores infratores são mais freqüentes do que as penas que, na
maioria das vezes, são atenuadas para o adulto.
“Bom comportamento de maiores nas prisões pode abreviar o tempo para a liberdade de um
adulto, mas o menor infrator, com sentença de medida corretiva até à maioridade, pode ficar
confinado por muitos anos, sem mudanças por bom comportamento.
“A proposição é de igualar os direitos, aceitar e compreender que existe crime infantil e
juvenil, haver defesas pela patologia que pode existir e indicar a medida correta.
“O que deve preocupar é o reconhecimento da patologia da violência.”
O que importa é conter o Sistema de Justiça e de atendimento do infrator nos limites da
estrita legalidade. Tais marcos existem para assegurar os direitos fundamentais e não para
punir, como equivocadamente se manifestam alguns defensores do sistema ab-rogado.
3 A CRIANÇA E O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI
3.1 GENERALIDADESA DELINQÜÊNCIA JUVENIL
O conceito de delinqüência juvenil tem sido alargado para abarcar comportamentos não
tipificados nas leis penais, como acontecia, por exemplo, no país, com o ab-rogado Código de
Menores, que sancionava o desvio de conduta. O menor em “situação irregular” podia ser
privado de liberdade, em estabelecimento penitenciário, sem determinação de tempo e sem o
devido processo legal, aí permanecendo, inclusive, depois de atingida a maioridade, só sendo
liberado pelo juiz das Execuções Penais. Confira-se artigos 2
o
, inciso V e 41, § 3
o
.
A moderna inclinação no sentido de restringir a delinqüência juvenil às infrações do Direito
Penal foi seguida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que atendeu às Regras de Beijing.
O equívoco de incluir na delinqüência juvenil fatos penalmente indiferentes tem conduzido
a injustiças. As decisões tutelares, geralmente, resultavam em medidas mais severas para os
menores, além de se revelarem completamente ineficazes na prevenção dos delitos e na
recuperação de jovens.
Linguagem obscena, inadaptação social, familiar ou escolar, permanência nas ruas,
afastamento da casa paterna e indisciplina em algumas legislações correspondem, na prática, a
respostas mais severas do que a adultos em casos análogos. Acresce serem tais comportamentos
indiferentes às leis penais.
É clássico o caso Estado do Arizona x Gault em que o jovem, por palavreado obsceno, foi
sentenciado a internamento (privação de liberdade) por até seis anos para ser “tratado”. O
processo, submetido à Suprema Corte, resultou na constatação de que os Tribunais de Menores,
ditos Tutelares, não reconheciam os direitos fundamentais. O julgamento da Suprema Corte,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
214
marco importante na história do Direito do Menor, desmistificou o caráter tutelar de medidas
punitivas, disfarçadas em protetivas.
Manzanera [1987, pp. 370-371] critica a intervenção da Justiça juvenil em casos
paradelinqüenciais ou de desvio de conduta. Observa o jurista:
“Se discute el derecho de los tribunales de menores a intervenir para evitar que menores
predispuestos a la delincuencia se conviertan en delincuentes, no sólo desde un punto de vista
estrictamente legal, sino también porque los servicios judiciales actuales no garantizan que esa
intervención produzca resultados satisfactorios. Se sabe, en efecto, que aun en las comunidades
más avanzadas los recursos disponibles son demasiado limitados para asegurar el logro del objectivo
perseguido.
“La intervención de los tribunales de menores, en los casos de menores necesitados de cuidado
y protección, pero que no han cometido ningún delito, puede producir o acentuar una reacción de
resistencia y hostilidad.”
O envolvimento da Polícia Judiciária com crianças e jovens que não estejam em situações
delinqüenciais (crimes) é desaconselhável. Pode provocar reações de resistência e hostilidade,
predispondo à violência. As causas da delinqüência juvenil e da crescente violência urbana,
de longa data, vêm sendo ligadas à marginalização social. Embora existam outros fatores, a
grande maioria dos atos delinqüenciais praticados por jovens tem origem nas situações
particularmente difíceis em que se encontram.
O prefixo “sub” caracteriza suas vidas: subnutridos, vivendo do subsalário, na submoradia,
no subemprego, pertencem a um submundo, impenetrável às políticas públicas, salvo a da
segurança e, assim mesmo, de forma equivocada. Sendo de sobrevivência e de ocasião a
maioria das infrações praticadas por crianças e adolescentes, o que preocupa mais é a patologia
da violência, como observou, com propriedade, Hain Grünspun [1985, p.86].
O Estatuto, atento às Beijing Rules, determina a desjudicialização das hipóteses sem
gravidade, preconizando medidas protetivas ou preventivas, independentemente de processo
formal. Para reincidentes ou violentos, prevê ação de pretensão sócio-educativa. Os casos de
reincidência, gravidade, violência podem resultar em medidas mais severas, inclusive privação
de liberdade, em flagrante ou provisória. Em qualquer hipótese, observados os direitos
constitucionais.
O novo modelo consagra: prevenção primária, multissetorial, assegurando direitos
fundamentais como saúde, educação, esporte, lazer, profissionalização etc., inclusive via ações
civis públicas; prevenção secundária, pelos Conselhos Tutelares, com medidas protetivas e
assistência educativa à família; prevenção terciária, com medidas sócio-educativas, reparação
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
215
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e privação
de liberdade em estabelecimento educacional.
O desconhecimento dos princípios, das normas, das garantias processuais, principalmente
a falta de estrutura para a aplicação correta de medidas sócio-educativas, muito contribui para
a inexistência de uma adequada política de resposta à delinqüência juvenil. Instituições
impróprias, falta de pessoal qualificado e confinamento arbitrário podem ser apontados como
política equivocada.
Enquanto não se qualificarem as áreas policial, judicial e técnica; enquanto a sociedade
não se conscientizar da importância da prevenção; enquanto os apelos e as soluções continuarem
centrados na repressão, será muito difícil implementar uma política correta de resposta à
delinqüência juvenil.
O fato é que crianças e jovens, às vezes, praticam ações anti-sociais graves, violentas.
Nesse caso, impõe-se resposta, tratamento, medida sócio-educativa, como queiram. A verdade
é que tal resposta deve variar conforme o fato e o agente, sempre limitada pela humanidade,
pela ética e pelos princípios do Direito, de tal forma que o jovem não seja penalizado com
mais rigor do que o adulto, muito menos desnecessariamente.
A prevenção da delinqüência juvenil está ligada também ao relacionamento do Sistema de
Justiça com o jovem acusado. Uma intervenção inadequada, violenta ou arbitrária pode trazer
sérias conseqüências. Do comentário à Regra 19, das Regras Mínimas da ONU, traduzidas por
Maria Josefina Becker:
“A criminologia mais avançada advoga o uso do tratamento não institucional. As diferenças
encontradas no grau de eficácia da institucionalização em relação à não institucionalização são
pequenas ou inexistentes. É evidente que as muitas influências adversas que todo estabelecimento
institucional parece exercer inevitavelmente sobre o indivíduo, não podem ser neutralizadas com
um maior cuidado no tratamento. Isso ocorre principalmente no caso dos menores, que são
especialmente vulneráveis às influências negativas. Além do mais, os efeitos negativos, não apenas
da perda da liberdade, mas também da separação do meio social habitual, são certamente mais
agudos em sua etapa inicial do desenvolvimento.
“A Regra 19 pretende restringir a institucionalização em dois aspectos: em quantidade (‘último
recurso’) e em tempo (‘mais breve período possível’), a Regra 19 reflete um dos princípios
norteadores básicos da resolução 4 do 6º Congresso das Nações Unidas: um menor infrator não
deve ser encarcerado a não ser que não haja outra resposta adequada. A regra, portanto, proclama
o princípio de que, se o menor deve ser institucionalizado, a perda da liberdade deve limitar-se ao
menor grau possível, com arranjos institucionais especiais para contenção e tendo em mente as
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
216
diferenças entre tipos de infratores, infrações e instituições. Definidamente, os estabelecimentos
‘abertos’ aos ‘fechados’. Além do mais, qualquer instalação deve ser do tipo correcional ou educativo
e não carcerária.”
A prevenção terciária requer alternativas para a privação de liberdade como programas de
liberdade assistida, apoio e acompanhamento temporários, serviços à comunidade, etc.
4 O SISTEMA DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
4.1 HISTÓRICO
Bulhões de Carvalho [1977, pp.2-3] lembra que a Justiça de Menores nasceu da Justiça Criminal,
decorrência da reação humanitária contra a “prisão-educação”, que não passava de prisão.
“Surgiu, desde então, e desenvolveu-se a idéia de que se deveria atribuir a juízes especiais o
encargo de submeter os menores infratores a medidas educativas, inteiramente alheias à pesquisa
do discernimento e da aplicação de pena ou castigo.
“Instituído em Chicago pela Lei de 21 de junho de 1899, passou esse Tribunal Especial para a
Inglaterra em 1905, com a criação do Tribunal de Birmingham, seguido do Children Act, em 1908.
Em 1911, foi adotado em Portugal pela lei de proteção à infância, na Bélgica e na França, em 1912,
na Espanha, em 1918, e no Brasil, em 1921.”
Se a Justiça de Menores nasceu da indignação referida por Bulhões, citando o juiz Magnaud,
que se recusava a mandar jovens para as escolas de preparação de crimes e criminosos, a
Justiça da Infância e da Juventude surgiu da luta contra o sistema equivocado da “carrocinha de
menores” exposto por Rivera [1990, pp. 51-52] durante o debate “Código/Estatuto”:
A “carrocinha de menores” decorria da aplicação do artigo 94 do Código, que determinava
às autoridades administrativas o encaminhamento à autoridade judiciária dos menores em
situação irregular.
Ora, pelo artigo 2
o
, I, b, os meninos pobres, os meninos de rua, entre outros, eram
apreendidos pela Polícia ou ronda do Comissariado, sem que nada estivessem fazendo além
de exercitarem um direito fundamental de ir e vir, estar e permanecer nos logradouros públicos
e espaços comunitários. Nessa “apreensão” indiscriminada misturavam-se meninos sem qualquer
desvio de comportamento com adolescentes já “contaminados” pela patologia da violência. O
resultado era evidente: mais destrutividade.
As Delegacias de Menores estavam “cheias” de meninos com pequenos furtos de
sobrevivência, outros sem qualquer comportamento desviante, estes últimos, injustamente
acusados de “vadiagem” ou “atitude suspeita” ou “perambulância”, todos “misturados”, inclusive
com adolescentes envolvidos em infrações graves. Como no “Direito do Menor” não havia
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
217
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
“acusação”, muito menos “idéia de punição”, aí permaneciam aguardando outro
“encaminhamento”, tudo em nome “do superior interesse do menor”.
Essa antijuridicidade fez que grupos da sociedade civil se organizassem iniciando campanha
pela revogação do Código e dos princípios “autoritários e simplistas” do Direito do Menor. O
detalhe é importante para fixar o espírito do novo “Direito da Criança e do Adolescente”, cuja
fonte é o fenômeno social já referido.
De um Código que não mencionava direitos, evoluímos para um Estatuto de Direitos e
Garantias; de um sistema autoritário, que controlava e penalizava a pobreza, passamos para
outro, participativo e descentralizado. O avanço foi extraordinário.
Vejo como importante assumir a transparência em área onde sempre predominou a falácia
da “tutela”, da “proteção”, da “reeducação”, que, em geral, resultava em respostas injustas,
simples controle social da pobreza. É preciso reconhecer que em muitos casos, adolescentes,
ao entrar em conflito com a lei, precisam ser conscientizados de sua responsabilidade social.
Destaco a importância do sistema, que é misto. Garantia de direitos com a correspondente
responsabilidade juvenil, que ouso denominar “penal juvenil”. É imprescindível assumir que o
novo modelo não oculta a delinqüência dos jovens; tem sustentação científica, afasta-se dos
eufemismos; não subtrai conflitos; é pedagógico e proclama a dignidade do jovem como pessoa
responsável.
O antigo sistema “protetor” penalizava “o menor com desvio de conduta em virtude de
grave inadaptação familiar ou comunitária” com a chamada “terapia do internamento”, que não
passava de medida de segurança detentiva, para hipóteses não deliqüenciais.
Ao tempo em que prestigiava a “periculosidade” (desvio de conduta), o sistema “tutelar”
exorcisava a responsabilidade juvenil. Com simples jogo de palavras, pretendia afastar a
conotação penal das medidas “protetoras”, na verdade penas indeterminadas, sanções
disfarçadas, geralmente mais gravosas do que as do Direito Penal dos adultos.
A nova doutrina do Estatuto deixa claro o caráter responsabilizante das medidas sócio-
educativas, caracterizadas pela predominância da proposta pedagógica, que não oculta a
existência do conflito; do dano; da necessidade da reparação e da imprescindível resposta,
adequada e justa, à delinqüência juvenil. Não é admitindo o caráter retributivo da resposta
que retiraremos das medidas sócio-educativas o conteúdo predominantemente humanitário e
pedagógico, reconhecido como ínsito até nas penas criminais.
A responsabilidade estatutária penal juvenil, com os consectários da legalidade (nulla
poena sine lege); da proporcionalidade (individualização da medida); da prévia mediação com
a vítima, nada afeta os direitos do adolescente. Ao contrário, surge como imprescíndivel ao
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
218
reconhecimento da dignidade do jovem, pessoa capaz de assumir responsabilidades sociais e
legais, e que, inclusive, goza do direito à remissão/transação, incorporada pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Na chamada delinqüência juvenil, optamos pelo sistema judicial, portanto de legalidade
estrita. As questões da resposta à infração penal (atos infracionais), atribuídos a jovens
inimputáveis penalmente, se submetem aos princípios, às normas do Direito da Criança e do
Adolescente, do Direito Penal e da Criminologia.
A resposta será tanto mais adequada quanto optar pela remissão (conciliação com a vítima);
pela reparação do dano, sem que o Estado se aproprie do conflito, que pertence aos envolvidos.
A nova postura é claramente pelas alternativas ao internamento, como a liberdade assistida,
serviços à comunidade, adolescentes que não têm família, etc.
Ao reconhecermos a existência do delito juvenil, da respectiva responsabilidade, e que o
sistema é de Justiça Especializada (diferente da Justiça Penal Comum), estaremos agindo de
maneira correta, conforme os princípios preconizados pelo Direito ciência e pelo Direito norma,
garantindo o jovem e a sociedade. Além disso, estaremos preservando os adolescentes dos
resultados negativos das respostas meramente repressivas, decorrentes do possível rebaixamento
da idade da imputabilidade penal ou da “proteção” do Sistema Tutetar, que não passava da
odiosa e discriminatória opressão, sempre lançada sobre jovens das classes menos favorecidas.
O novo sistema participativo, descentralizado, confere às crianças e jovens o status de
sujeitos de direito; à cidadania, portanto, direitos e deveres. No que tange aos direitos, cabe
ao Executivo, ao Judiciário e à Rede de Atendimento garantir a eficácia das políticas sociais
básicas e da política de assistência social. Esforço que encontra no Estatuto os necessários
instrumentos, como, por exemplo, as ações civis públicas. No que tange aos adolescentes em
conflito com a Lei Penal (ECA, art. 103), cabe-nos garantir a eficácia das medidas sócio-educativas,
principalmente as alternativas à privação de liberdade e à assistência educativa à família.
Há que implementar programas de prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida;
assistência educativa. Programas bem estruturados pedagogicamente, cujo custo, pela
simplicidade do projeto, seja acessível ao mais pobre dos Municípios brasileiros. Há em nossas
comunidades, em nossos Estados e em nosso país instrumentos e recursos capazes de garantir
direitos e deveres de crianças e jovens. Basta vontade política.
4.2 CARACTERÍSTICAS
Será a Justiça da Infância e da Juventude um Sistema de Justiça parcial? A especialização do
juiz, do promotor de Justiça, do advogado e dos demais integrantes do Sistema não torna a
justiça “parcial”, como queriam Wilson Barreira e Paulo Brazil [p. 15].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
219
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
O sistema, como a legislação correspondente, é garantista e responsabilizante. A
interpretação mais favorável aos interesses da criança e do adolescente obedece a princípios
da orientação zetética preconizada pela hermenêutica jurídica. Estudos de casos, diagnósticos,
prognósticos; defesas, pareceres, sentenças e acórdãos freqüentemente exsurgem fundamentados
apenas no “melhor interesse da criança”, critério simplista e autoritário, porquanto subjetivo.
Esse mito, do “melhor interesse”, geralmente arbitrário, tem conduzido às maiores injustiças,
separando crianças e pais, quebrando raízes afetivas e biológicas. A pretexto de garantir “um
futuro melhor”, crianças e jovens são separados dos pais, perdendo vínculos afetivos, sem que
suas opiniões e anseios sejam devidamente considerados. Nas separações e divórcios, pais e
mães partilham bens e filhos sem que crianças e adolescentes se manifestem, decidindo
advogados, promotores e juízes, ao arrepio da opinião dos mais atingidos pelo drama familiar.
É dito que as decisões levam em conta o “melhor interesse”, mas, geralmente, os
pronunciamentos não esclarecem em que o pressuposto se baseou, faltando, na maioria das
vezes, análise dos aspectos psicológicos e fáticos. Decisões se executam e se exaurem sem
acompanhamento e avaliação das conseqüências.
O suprimento da incapacidade, na maior parte dos casos, não passa de falácia, que precisa
ser desmascarada: os atores do processo deverão assumir que “o melhor interesse” não deve
ser a “justificativa”, simplista e autoritária, do “adulto” para decidir do destino do “menor”.
Laudos, pareceres, sentenças, não devem se basear em tão singelo e arbitrário princípio, que
nem sempre coincide com as expectativas e direitos fundamentais (liberdade, intimidade,
opinião) de crianças e jovens.
Outras falácias podem ser encontradas quando se proclama o aspecto tutelar da Justiça e
a inimputabilidade penal. Estas contribuem para o exacerbamento do preconceito relativamente
aos “menores”, apontados como irresponsáveis. Uma justiça que obriga a reparar o dano,
prestar serviço à comunidade, que priva o adolescente do bem jurídico mais importante depois
da vida, a liberdade, não pode ser considerada exclusivamente tutelar do “melhor interesse”
do jovem. Ao “internar” o adolescente, privando-o da liberdade, a justiça também tutela o
interesse social da segurança pública e da prevenção e repressão da delinqüência.
No sistema, apontado como tutelar, o jovem, além de estigmatizado como irresponsável,
inimputável penalmente, é “punido” com restrições severas que, inclusive, implicam a perda
da liberdade. Tal falácia (inimputabilidade = proteção) não resiste a qualquer análise crítica.
Quanto à reeducação e ressocialização de “jovens infratores”, tais mitos e suas nefastas
conseqüências são por demais conhecidos, dispensando qualquer argumento. A matéria é
cediça. Basta a referência.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
220
As “medidas protetivas”, implicando a separação da criança da família ou do grupo afetivo,
em muitos casos, resultam na institucionalização, cujos males são por demais conhecidos. As
“medidas sócio-educativas”, na realidade, penas criminais disfarçadas, impostas com base em
“princípios” e “paradigmas dos adultos”, são bastante questionáveis.
A comunidade jurídica e o Sistema de Justiça, para serem coerentes, têm de admitir a
existência do crime juvenil e da necessidade da resposta justa e adequada, abandonando
mitos, eufemismos e falácias, próprios do antigo e autoritário Direito do Menor.
A Carta Política de 88, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção Internacional
dos Direitos da Criança não podem continuar a serem interpretados e aplicados com base na
antiga “doutrina da situação irregular”. É dela que advêm tais viéses, com equívocos e injustiças.
A partir do Estatuto implantou-se um novo modelo jurídico, garantista e responsabilizante.
O adolescente, embora penalmente inimputável, passou a ter responsabilidade juvenil (que
denomino responsabilidade penal-juvenil ou sócio-educativa). Como as demais pessoas, os
adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais e sociais. Em contrapartida, respondem
pelos seus atos frente à Justiça, submetendo-se a respostas predominantemente educativas,
mas cujo caráter retributivo tem de ser reconhecido.
A liturgia do julgamento é pedagógica. A resposta também. O Estado, mesmo à guisa de
proteger, não pode se apropriar do “conflito”, que pertence ao jovem e que tem de ser composto,
com a participação dele e da vítima.
Crianças e jovens precisam ser conscientizados de que, se o Sistema, de um lado, garante
os seus direitos, de outro, estabelece responsabilidades. É preciso que a criança, desde cedo,
se conscientize da dignidade de ser responsável.
Os atores do Sistema têm de se conscientizar das mudanças surgidas com a nova doutrina
da proteção integral que inspirou o Estatuto e que o modelo, além de garantista, é
responsabilizante.
A criança e o adolescente não podem ser encarados como meros objetos de proteção,
“menores”, “incapazes”, mas como verdadeiros “sujeitos de direito”. A grande violência, que
ainda se comete contra eles, é a interpretação do Estatuto a partir dos princípios da chamada
“doutrina da situação irregular”, no qual, pela “patologia social”, juízes aplicavam “medidas
terapêuticas” baseadas na “regra de ouro” do Direito do Menor, o “melhor interesse” – mito
conveniente que legitimou arbítrio e freqüentes injustiças.
O descumprimento por parte da família, ou do Estado, do direito objetivo (normas
estatutárias da proteção integral) cria para a criança ou adolescente o direito subjetivo de
invocar a aplicação coercitiva da norma, o que só pode ser feito jurisdicionalmente. Isso não
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
221
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
quer dizer que a jurisdição, por ser também tutelar, deixe de ser jurisdição. É especializada,
mas é jurisdição. Participa da “justiça ordinária”.
4.3 O JUIZ
O juiz da Infância e da Juventude é o juiz de Direito que exerce essa função na forma da lei
de organização judiciária local. Compete à União legislar sobre processo (Carta 88, art. 22, I),
cabendo aos Estados dispor sobre organização judiciária (art. l25, § 1º). O Direito Processual
regulamenta o exercício da jurisdição (o poder de julgar) que vem instituído na Constituição.
Em que pese a zona cinzenta, é possível distinguir Direito Processual e organização judiciária.
A União estabelece normas processuais, disciplinando a forma de desenvolvimento da prestação
jurisdicional. O Estado organiza Sistema de Justiça, criando tribunais, juízes e serviços auxiliares.
A organização judiciária é sempre dependente, subordinada, regulamentadora dos órgãos
necessários à prestação jurisdicional. O Estatuto regulamenta a proteção integral preconizada no
artigo 227 da Carta Republicana, explicitando os direitos de crianças e adolescentes e a forma da
realização coercitiva desses direitos por meio do processo judiciário (competência da União).
O juiz da Infância e da Juventude deverá ser especializado, necessidade reconhecida
unanimemente. D’Antônio [1968, p. 323] afirma ser tão prejudicial o Sistema que submete o
menor a um Juizado leigo como aquele que concede jurisdição a magistrados sem especialização.
Solari [1982, p. 22] defende a necessidade, lembrando que isso já acontece com o Direito
Administrativo e com o Direito do Trabalho. Bulhões de Carvalho [Op. cit., p. 330] sustenta que
a especificidade da jurisdição exige formação especializada.
O comentário às “Regras de Beijing”, tratando do profissionalismo, enfatiza a imperiosa
necessidade de formação mínima em Direito, Sociologia, Psicologia, Criminologia e ciências
do comportamento, dizendo ser esta questão tão importante como a especialização
organizacional e a independência da autoridade competente.
4.3.1 AS FUNÇÕES DO JUIZ
O processo visa à realização da justiça. As funções do juiz são processuais. O juiz é juiz no
processo. O fenômeno se repete na Justiça da Infância e da Juventude, onde há processo
simplificado, célere, mas processo, mesmo na jurisdição voluntária. Tratando-se de ato
infracional, o magistrado observará o disposto no artigo 381 do CPP.
O Estatuto é claro: “A autoridade judiciária não aplicará qualquer medida, desde que
reconheça na sentença: estar provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do
fato; não constituir o fato ato infracional; não existir prova de ter o adolescente concorrido
para o ato infracional” (art. 189).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
222
A aplicação da medida sócio-educativa pressupõe a existência de prova da autoria e da
materialidade do ato (art. 114).
Na jurisdição voluntária, cabe ao juiz disciplinar por portaria ou autorizar mediante alvará
a entrada de criança ou adolescente desacompanhado dos pais ou responsáveis em diversão
pública. A competência não inclui poder normativo de caráter geral.
O antigo poder normativo foi extinto. O Estatuto, na matéria, foi mais jurídico. Não é
próprio do Poder Judiciário ditar normas de caráter geral, mas decidir, em caso concreto, a
aplicação do direito objetivo. Juiz não é legislador, não elabora normas de comportamento
social. Julga os comportamentos frente às regras de conduta da vida social. Essas geralmente
decorrem do processo legislativo reservado pela Constituição a outra órbita.
4.4 MEDIDAS
Entende-se, genericamente, por medidas de proteção as decorrentes do Estatuto, aplicadas
no interesse da criança e do adolescente, mesmo que aos pais, responsáveis ou terceiros.
4.4.1 MEDIDAS DE PROTEÇÃO
A penalização ao médico que deixa de identificar corretamente o neonato e o
encaminhamento do pai ou responsável a programa de auxílio e promoção à família são
exemplos de medidas genéricas de proteção. As medidas específicas, dirigidas exclusivamente
à criança e ao adolescente, vêm no capítulo II do título II do Estatuto e são as seguintes:
“Encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação,
apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento
oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à
criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime
hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; colocação em família substituta.”
Tais medidas não podem ser aplicadas sem que se observe o respectivo processo. Só há
intervenção judicial por meio da jurisdição voluntária ou contenciosa. Não havendo conflito
instalado ou conflito a prevenir, não há atuação jurisdicional.
Se a criança, o adolescente, os pais ou responsáveis aceitam a proteção da assistência
social, se não há resistência ao cumprimento dos deveres pela família, sociedade ou Estado,
mas exercício do pátrio poder, a questão não é judicial, litigiosa; é de assistência e a medida de
proteção cabe à autoridade administrativa, o Conselho Tutelar (ver arts. 131 a 137 do Estatuto).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
223
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
4.4.1.1 COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA
A crítica ao ab-rogado Código residia na falta de menção aos direitos da criança e do
adolescente e na ausência de medidas de apoio à família. A lacuna foi suprida. Tínhamos um
código de controle social da pobreza, agora temos uma lei tutelar. Via de regra, a privação de
direitos, os conflitos do pátrio poder decorrem da pobreza, da indigência. Em muitos casos a
proteção à criança e ao adolescente só será proteção se envolver auxílio material, inclusive à
família.
Pelo Estatuto, colocação em família substituta só se realizará sendo inviável a manutenção
da criança na família de origem. Tenha-se presente o disposto no artigo 23 e no parágrafo
único: “A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda
ou suspensão do pátrio poder”. Não existindo outro motivo que, por si só, autorize a decretação
da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, o qual deverá
obrigatoriamente ser incluído em programas oficiais de auxílio.
Inovação importante vem no § 1º do artigo 28: “Sempre que possível, a criança ou o
adolescente deverá ser previamente ouvido e sua opinião devidamente considerada”.
Adolescentes e até crianças, em muito casos, revelam maior maturidade do que adultos,
principalmente quando ocorrem conflitos familiares.
Grünspun [Op. cit., p. 77] explica:
“O desafio é sobre a presunção tradicional sobre a incompetência do menor.
“Segundo Eppel (34), a maturidade intelectual e moral de um adolescente de 14 anos de
idade é semelhante à do adulto. Schetki e Benedek (91) ainda reduzem a idade, mostrando que
crianças de 9 anos de idade podem não compreender informações precisas sobre uma doença, mas
fazem decisões na escolha dos tratamentos propostos iguais às dos adultos.
“O argumento é de que a idade da competência é variável e depende além do menor dos
procedimentos usados.”
A postura que considera a criança e o adolescente sujeitos de direitos implica
necessariamente o reconhecimento ao direito de opinião e expressão (art. 16, I). O juiz, sempre
que possível, ouvirá a criança e o adolescente, levando em consideração o grau de
desenvolvimento da personalidade, o controle sobre as reações instintivas e passionais e o
desenvolvimento emocional e intelectual. O artigo 12 da Convenção sobre os direitos da criança
garante “o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe respeitam,
assegurada a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos”.
No que tange à adoção, as mudanças são radicais. O adotado rompe os laços com a
família biológica, sendo a adoção irrevogável, reduz-se a idade dos adotantes para 21 anos;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
224
proíbe-se a adoção de descendentes e irmãos; exige-se o consentimento do adotado maior de
12 anos; e permite-se a adoção pelos concubinos. A colocação em família substituta estrangeira
constitui medida excepcional, somente admissível na modalidade de adoção (art. 31).
Mazzilli [1985, p. 25] com propriedade insiste em que a adoção deve ser facilitada:
“Bem se vê que a própria evolução do Instituto e a tendência liberalizante da jurisprudência são
uma mostra de como se deve interpretar a matéria: sempre num sentido mais flexível, para aprimorar
a adoção, que até aqui não tem sido mais amplamente usada, porque ainda poderia e deveria ser mais
simplificada. Nem se diga que as conquistas do filho adotado reverteriam em prejuízo aos legítimos (na
parte sucessória, p. ex.), ou em equiparação cada vez maior entre adoção simples e plena (a figura dos
avós adotivos, p. ex.). Igualmente, não podemos admitir posições simplistas como a do Código Civil de
1916, que no seu artigo 358 fechou os olhos para a realidade, vedando o reconhecimento dos filhos
incestuosos ou adulterinos, como se com isso eles deixassem de existir ou de serem procriados, e
protegida ficasse a família! Como se incestuosos e adulterinos fossem os filhos e não os seus pais! A se
prestigiar o formalismo em tal matéria, o que se continuará a ver será infelizmente o estiolamento do
instituto da adoção, mantendo-se o atual estado de coisas: poucas adoções; muitos registros de nascimento
atribuindo filiação falsa; muitos menores abandonados; muitas guardas de fato, de pessoas que não
querem, nem podem se sujeitar às inúmeras exigências para obterem uma correta adoção, que faça o
menor, que já têm como filho, realmente integrado e amparado na sua família.”
4.4.2 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O MITO DA INIMPUTABILIDADE PENAL
É cediço que o Estatuto da Criança e do Adolescente trasladou as garantias do Direito
Penal, propiciando como resposta à delinqüência juvenil, em vez da severidade das penas
criminais, medidas predominantemente pedagógicas.
Não defendo a carcerização do sistema sócio-educativo. Muito menos medidas meramente
retributivas. Ao contrário, ao invocar o Direito Penal, preconizo a humanização das respostas,
as alternativas à privação de liberdade, a descriminalização e a despenalização – o Direito
Penal Mínimo. O que procuro desmascarar são as posições “paternalistas” do sistema de penas
disfarçadas, impostas com severidade e sem os limites do Direito Penal, em muitos casos mais
rigorosas do que, em iguais circunstâncias, seriam fixadas pela Justiça Criminal. Sem embargo
do aspecto predominantemente pedagógico das medidas sócio-educativas, insisto na
necessidade de tornar efetivos os limites e as garantias do Direito Penal.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, não cabe persistir reproduzindo
viéses, equívocos, mitos e falácias do antigo modelo, em que a “proteção” não passava de
odiosa “opressão”, em que o sistema “educacional” e “protetivo”, na prática, reproduzia o
sistema carcerário dos adultos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
225
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Uma das grandes preocupações dos militantes da defesa dos direitos humanos de
adolescentes submetidos às medidas sócio-educativas tem sido a falta de critérios objetivos
capazes de conter o arbítrio do Estado, haja vista a existência de muitos casos de privação de
liberdade em hipóteses sem gravidade. O fenômeno, confirmado por levantamento do Grupo
de Trabalho do Ministério da Justiça, deve-se à interpretação do Estatuto da Criança e do
Adolescente com base nos princípios da chamada “doutrina da situação irregular”.
A Lei nº 8.069/90, que teve como fontes formais os Documentos de Direitos Humanos das
Nações Unidas, introduziu no país os princípios garantistas do chamado Direito Penal Juvenil.
Reconheceu o caráter sancionatório das medidas sócio-educativas, sem embargo de enfatizar o
seu aspecto predominantemente pedagógico. Também que, tendo traço penal, só podem ser
aplicadas excepcionalmente e dentro da estrita legalidade, pelo menor espaço de tempo possível.
Essa postura, além de ser útil aos jovens e à sociedade, traslada para o âmbito da Justiça
da Juventude as garantias do Direito Penal, aceitando como resposta à delinqüência juvenil,
em vez da severidade das penas criminais, medidas predominantemente pedagógicas, afastando
o estigma e os males do sistema carcerário dos adultos.
4.4.2.1 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O NOVO SISTEMA DE JUSTIÇA
A nova doutrina jurídica da proteção integral preconiza que crianças e adolescentes são
sujeitos especiais de direito. Gozam de todos os direitos fundamentais e sociais, principalmente
de proteção, decorrência de se encontrarem em fase de desenvolvimento.
Recomenda a doutrina das Nações Unidas que na ordem jurídica interna de cada país
existam normas legais capazes de garantir todos os direitos: vida, saúde, liberdade, respeito,
dignidade, convivência familiar e comunitária, educação, cultura, esporte, lazer,
profissionalização, proteção no trabalho, etc.
Para tornar efetivos os direitos individuais, difusos ou coletivos, principalmente à saúde,
à educação, à recreação, à profissionalização, à integração sócio-familiar, inclusive contra o
Estado, as novas legislações baseadas na doutrina da proteção integral vêm introduzindo
modernas ações judiciais, por exemplo: ações civis públicas.
De outro lado, a doutrina da ONU deixa claro que a educação para a cidadania exige que o
adolescente se conscientize de sua responsabilidade social, tendo o direito de ser julgado por
autoridade imparcial e independente, num devido processo, sempre que acusado de conduta
penalmente reprovada.
A superação de viéses (“situação irregular do menor”), mitos (tutela e superior interesse),
eufemismos (medidas protetivas) e falácias (reeducação, ressocialização) exige normas legais
adaptadas substancialmente aos Documentos de Direitos Humanos das Nações Unidas,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
226
principalmente a Convenção e as Regras Mínimas de Beijing. Segundo o assessor regional do
UNICEF para América Latina e Caribe, Emilio Garcia Mendez, essa adaptação só será completa e
efetiva se expurgar dos sistemas judiciário e administrativo interpretações e práticas próprias da
antiga “doutrina da situação irregular”, em que havia enorme confusão de papéis. O juiz não
julgava o “menor”, “definia a situação irregular”, aplicando “medidas terapêuticas”. O Ministério
Público, inclusive quando pleiteava “internação” como resposta pela prática de atos delinqüenciais,
rotulados de “desvios de conduta”, de atos anti-sociais, etc., estava “defendendo o menor”.
A defesa e o superior interesse justificavam tudo. Serviam para tudo, inclusive para limitar e,
até, impedir a participação do advogado, figura praticamente desconhecida no “Direito do Menor”.
No nosso Código, chamado procurador, era constituído por familiares, não pelo “menor”.
Para estar conforme à doutrina da proteção integral, o Sistema de Justiça precisa banir o
“modelo tutelar”, que propiciava decisões simplistas e autoritárias, em que operadores,
abandonando princípios garantistas do Direito, baseavam-se fundamentalmente num suposto
“superior interesse do menor”.
O novo sistema se contém nos limites do Estado Democrático de Direito, no qual as decisões
judiciais, para terem validade, carecem do pressuposto da fundamentação, em que os operadores
têm papéis definidos, juiz é o experto em Direito que julga de acordo com a hermenêutica
jurídica; o Ministério Público, o titular das ações de pretensão sócio-educativa e das ações
necessárias à defesa dos interesses da sociedade e dos incapazes, o fiscal do fiel cumprimento
das leis; o advogado, o representante dos interesses da criança e do adolescente, defensor de
direitos, atua, como os demais, no devido processo legal.
Os técnicos, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, médicos são peritos que produzem
prova necessária à convicção do juiz, que não pode ser arbitrário, mas deve se fundar, como na
Justiça Comum, em elementos contidos no processo.
Não se cogita, na nova Justiça da Infância e da Juventude, das decisões sem fundamentação
ou das providências extraprocessuais. Princípios, normas e cautelas secularmente consolidadas
como indispensáveis à segurança dos direitos têm de estar presentes para validade e legitimidade
de decisões e sentenças.
Processo de conhecimento, processo cautelar, processo de execução e recursos surgem no
novo Direito como indissociáveis da prestação jurisdicional.
Na chamada delinqüência juvenil, a nova posição é realista e científica. Reconhece que
jovens penalmente inimputáveis, cometendo crimes, por eles devem ser responsabilizados, o
que resulta pedagógico e corresponde à necessidade do controle social. Não mais se toleram
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
227
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
privações de liberdade, mesmo eufemisticamente rotuladas de internações, sem os pressupostos
da estrita legalidade, do juízo natural e da observância do devido processo.
4.4.2.2 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
O Estatuto, responsabilizante e garantista, muito acertadamente, distinguiu as hipóteses
da conduta reprovada penalmente, da privação de direitos e das medidas de proteção.
Não se olvide o intérprete: as medidas sócio-educativas, em que pese o caráter
predominantemente pedagógico, são impostas e implicando restrições, inclusive em privação
de liberdade, têm inescondível caráter penal. Só podem ser fixadas conforme os princípios da
estrita legalidade e da proporcionalidade.
O infrator pode receber qualquer das medidas específicas de proteção (art. 112, VII), mas
o abandonado negligenciado, vítima, será sempre alvo de medidas específicas de proteção,
jamais se sujeitando a qualquer medida sócio-educativa.
As crianças menores de 12 anos, envolvidas em atos infracionais, não se sujeitam às mesmas
medidas impostas aos adolescentes (ver art. 105). Quando uma criança pratica uma conduta
típica prevista na legislação penal, o caso é exclusivamente de educação ou saúde. A hipótese
impõe, pela sua peculiaridade, tratamento educacional exclusivo, ou pertence à Psicologia, à
Psiquiatria, ou a outra área da saúde.
O Estatuto, nos casos de infrações penais cometidas por adolescentes, preconiza medidas de
proteção; advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade
assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.
As necessidades pedagógicas e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários
devem ser levados em conta na escolha da medida aplicável. A imposição de medida sócio-
educativa pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade, salvo a
hipótese de remissão, que não incluirá o internamento e o regime de semiliberdade (confiram-
se os arts. 112, § 1º, 114 e 127).
4.4.2.3 REMISSÃO
Na remissão, se a conduta infracional teve origem na pobreza, pode ser aplicada a
advertência e o encaminhamento ao Conselho Tutelar, para inclusão do adolescente em programa
oficial ou comunitário de auxílio. Nesse caso, bastam prova da materialidade e indícios
suficientes da autoria (ver art. 114).
Vale transcrever o comentário traduzido por Maria Josefina Becker:
“A remissão, que envolve a supressão do procedimento ante a justiça e, com freqüência, o
encaminhamento a serviços apoiados pela comunidade, é praticada habitualmente em muitos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
228
sistemas jurídicos, oficial ou oficiosamente. Essa prática serve para atenuar os efeitos negativos da
continuação do procedimento na administração da justiça de menores (por exemplo, o estigma da
sentença). Em muitos casos, a não-intervenção seria a melhor resposta. Por isso, a remissão desde
o início e sem formalização a serviços alternativos (sociais) pode constituir a resposta ótima. Este é
especialmente o caso, quando a infração não tem um caráter grave e quando a família, a escola ou
outras instituições de controle social não institucional já tiverem reagido de forma adequada e
construtiva ou seja provável que venham a reagir desse modo.
“Como se prevê na Regra 11.2, a remissão pode ser utilizada em qualquer momento do processo
de tomada de decisões – pela polícia, ministério público ou outros órgãos como juizados, juntas ou
conselhos. Podem se utilizar de remissão uma, várias ou todas autoridades, de acordo com as regras e
normas dos respectivos sistemas e em consonância com as presentes regras. Não precisa
necessariamente limitar-se a casos menores, tornando-se, assim, a remissão um instrumento importante.
“A Regra 11.3 salienta o requisito primordial de assegurar o consentimento do menor infrator
(ou de seus pais ou tutores) quanto às medidas de remissão recomendadas. (A remissão que
consistir na prestação de serviços à comunidade sem tal consentimento constituiria uma infração à
Convenção relativa à abolição do trabalho forçado). Não obstante, é necessário que a validade do
consentimento possa ser objeto de impugnação, pois algumas vezes o menor poderia concordar
por puro desespero.
“A regra sublinha que devem ser tomadas precauções para diminuir ao mínimo a possibilidade
de coerção e intimidação de todos os níveis do processo de remissão. Os menores não deverão
sentir-se pressionados (por exemplo, para evitar o comparecimento ao juizado) nem induzidos a
aceitar os programas de remissão. Por isso, preconiza-se que se faça uma avaliação objetiva da
conveniência da intervenção de uma ‘autoridade competente, se assim for solicitado’ (a ‘autoridade
competente’ pode ser diferente da mencionada na Regra 14).
“A Regra 11.4 recomenda que se prevejam alternativas viáveis ao processo perante a justiça
na forma de uma remissão baseada na comunidade. Recomenda-se especialmente os programas
que incluam a indenização da vítima e os que procurem evitar futuras transgressões da lei mediante
a supervisão e orientação temporárias. As características dos casos particulares determinarão o
caráter adequado da remissão, mesmo quando tenham sido cometidos delitos mais graves (por
exemplo, a primeira infração, o fato de ter sido praticada sob pressão de companheiro, etc.).”
Se houver sentença e nada se apurar da participação do adolescente, mas surgir como
necessário o apoio e o auxílio, inclusive à família, nada obsta o encaminhamento do caso ao
Conselho Tutelar. O Conselho não é órgão jurisdicional, mas de assistência e, assim,
providenciará o necessário para garantir os direitos do adolescente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
229
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
4.4.2.4 ADVERTÊNCIA
Medida sócio-educativa importantíssima, cuja eficácia depende de redobradas cautelas.
Isto para não estigmatizar o adolescente com uma sanção injusta. Na lição de Carlos Tiffer
[1999, p. 188]:
“AMONESTACIÓN Y ADVERTENCIA
“Esta sanción es de ejecución instantánea y tiene como objetivo llamar la atención del adolescente
exhortándolo a que, en lo sucesivo, se acoja a las normas de conducta que exige la convivencia
social. La amonestación versará sobre la conducta delictiva realizada y se advertirá al joven que
debe procurar llevar una vida sin la comisión de delitos.”
Tenha-se presente: a advertência só pode ser imposta em caso de estrita necessidade. A
liturgia do ato, que deve ser presidido pelo juiz, presentes o representante do Ministério
Público, os pais ou responsáveis, consistirá em admoestação verbal, reduzida a termo e assinada.
Miguel Moacir Alves de Lima [1992, pp. 347-348] explica:
“Aparentemente inofensiva, a ‘advertência’, como qualquer outra efetivação desse poder social,
que se manifesta de forma difusa, não deixa de ser uma forma sutil e eficaz de inserção, exclusão,
reinserção, reexclusão, e, portanto, também de externação de preconceitos, discriminações e
constrangimento, nem sempre legítimo, dos indivíduos em face dos pontos de vista do sistema
social dominante (visão do mundo, crenças, valores, condutas ‘socialmente úteis’ etc.). A despeito
disso, via de regra, os discursos disciplinares encaram a advertência como algo banal, singelo. Na
análise e aplicação do art. 115 do Estatuto da Criança e do Adolescente devemos nos prevenir
contra esse simplismo hermenêutico, que, além de constituir temerário exercício de abstração,
bem ao gosto da Dogmática da forma (a Dogmática da forma caracteriza-se por considerar o
Direito como um mundo de puras normas racionais, lógico-abstratas, isto é, desconectadas dos
conteúdos sócio-econômicos da realidade social de que emergem), pode propiciar a banalização
da práxis jurídico-administrativa do Estatuto no que concerne à primeira experiência ou aos contatos
de menor gravidade do adolescente que comete um ato infracional com as instituições e os agentes
incumbidos do atendimento especializado a que ele tem direito. Essa simplificação ou banalização
da advertência e de seus efeitos será um equívoco tanto mais grave quanto mais frágil e sensível
for a estrutura psicológica e quanto mais problemática for a situação vivenciada pelo adolescente.
Episódio ocorrido há pouco tempo com um aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro pode ser um
referencial ilustrativo destas observações. Referimo-nos ao caso do estudante que se suicidou por
não suportar os efeitos morais (psicológicos) de uma punição disciplinar de ‘somenos importância’
– a suspensão de freqüência às aulas por um curto período – e a vergonha de lhe ter sido atribuída
a prática, tão comum, da ‘cola escolar’. Nesse episódio, a subestimação do potencial repressivo e
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
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estigmatizador de uma ‘singela punição’ na pessoa do indisciplinado, socorrida pelo discurso de
legitimação da ordem lesada, conduziu a conseqüências irreparáveis. O exemplo relatado pode ser
raro, mas não deve ser esquecido.”
4.4.2.5 REPARAÇÃO DO DANO
A reparação do dano é materializada por meio de restituição ou ressarcimento. Havendo
restituição da coisa, lavra-se termo de entrega. Mário Volpi [1997, p. 23] explica:
“A reparação do dano se faz a partir da restituição do bem, do ressarcimento e/ou compensação
da vítima. Caracteriza-se como uma medida coercitiva e educativa, levando o adolescente a
reconhecer o erro e repará-lo. A responsabilidade pela reparação do dano é do adolescente, sendo
intransferível e personalíssima. Para os casos em que houver necessidade, recomenda-se a aplicação
conjunta de medidas de proteção (art. 101 do ECA). Havendo manifesta impossibilidade de aplicação,
a medida poderá ser substituída por outra mais adequada.”
Não sendo possível a devolução, proceder-se-á de comum acordo entre o sentenciado e a
vítima à substituição por bem de valor equivalente ou dinheiro, preferentemente de recursos
do próprio adolescente, ou dos seus pais ou responsável, mediante sua concordância. Medida
interessante, deverá ser precedida da indispensável mediação com a vítima. Embora o Estatuto
possibilite a imposição da medida, o caráter pedagógico recomenda cautela. A hipótese deve
ser relegada aos casos de manifesta possibilidade de reparação.
4.4.2.6 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE
É de se trazer à colação o escólio de Mário Volpi [Op. cit., pp. 23-24]:
“Prestar serviços à comunidade constitui uma medida com forte apelo comunitário e educativo
tanto para o jovem infrator quanto para a comunidade, que por sua vez poderá responsabilizar-se
pelo desenvolvimento integral desse adolescente. Para o jovem é oportunizada a experiência da
vida comunitária, de valores sociais e compromisso social.”
Importante: a medida não pode ser imposta. Não corresponde à prestação de trabalhos
forçados, o que seria iníquo e, há muito, ausente das legislações dos países civilizados. O
consentimento é fundamental, como a escolha do tipo de serviço e da entidade onde o
adolescente atuará. As tarefas terão em conta a idade, as condições do adolescente e o caráter
pedagógico. Imprescindíveis a presença de orientador, de preferência pedagogo, e o
acompanhamento de equipe técnica. O serviço visará a conscientização do adolescente e o
fortalecimento dos princípios de convivência social. Cabe repetir Roberto Bergalli [1992, p.
361-362]:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
231
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
“Inserida num contexto comunitário abrangente (entidades assistenciais, hospitais, escolas,
programas comunitários, governamentais etc.), a medida possibilita o alargamento da própria visão
do bem público e do valor da relação comunitária, cujo contexto deve estar inserido numa verdadeira
práxis, onde os valores de dignidade, cidadania, trabalho, escola, relação comunitária e justiça social
não para alguns, mas para todos, sejam cultivados durante sua aplicação. Porém, há a necessidade
não só da cultivação de tais valores, mas também da inserção e exercício prático da cidadania, aqui
entendida como efetivação de todos os direitos e garantias inerentes à pessoa e elencados na lei e
na Constituição. Inegáveis se fazem, pois, tais aspectos num País cuja perspectiva de vida digna, de
planos pessoais a nível profissionalizante, conhecimento desalienante, realização pessoal, dentre
outros, sofre profunda deterioração entre a população juvenil.”
4.4.2.7 LIBERDADE ASSISTIDA
Na liberdade assistida, o orientador se obriga “a promover socialmente o adolescente e
sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou
comunitário de auxílio e assistência social”. A liberdade assistida, segundo Bulhões, é o
“instrumento fundamental” para o direito do menor:
“Com ela foi criado, em 1869, o juizado de menores, como forma de evitar o internamento e
auxiliar os menores infratores, passando a seguir a ser aplicada também aos menores chamados
menores abandonados, e em geral sempre que a saúde, segurança, moralidade ou educação do
menor estiver em perigo e sempre que o juiz entender necessário à proteção do menor, aproximando-
se então das normas da assistência educativa”.
Martins [1988, pp. 398-399] fundamenta o instituto:
“As vantagens da liberdade assistida são irretorquíveis e incalculáveis, evitando que o menor
seja afastado da sua família, submetido ao vexame da internação na Delegacia de Menores ou em
Instituto de Menores, correndo o risco de maior deformação moral na promiscuidade com outros
menores mais experientes na senda do crime. Dá-se a oportunidade, agora com apoio da Justiça, a
que a família reconduza um seu membro extraviado a uma conduta condigna”.
Referindo-se aos elementos da liberdade assistida, lembra Níveo Geraldo Gonçalves [1990,
pp. 58-59]:
“No período de prova é decisiva a ação da pessoa capacitada, ressaltando-se o seu contato
pessoal com o assistido. Essa pessoa é uma educadora, pois sua missão é de reeducação. Comparou-
se esse papel à do educador em meio fechado, porém é menos penoso, porque tem de conquistar
a colaboração do adolescente e a confiança da família.
“Essa pessoa capacitada está sujeita a várias obrigações. Na França, cumpre-lhe registrar no
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
232
prontuário do adolescente todas as informações sobre a personalidade do adolescente, sua conduta
passada e seu meio familiar, bem como exercer controle assíduo sobre as condições materiais e
morais da existência do assistido, sua saúde, trabalho e emprego do tempo livre. Além disso, terá
que enviar ao Juiz relatório sobre a progressividade do tratamento. O art. 119 do Estatuto enumera
as obrigações da pessoa capacitada, porém de forma não exauriente.”
Tenha-se presente que a liberdade assistida é medida sócio-educativa de apoio e também
de restrições à liberdade. Só pode ser imposta nos casos previstos em lei. Não havendo prova
da existência do ato infracional e da autoria, não cabe a liberdade assistida. Se o adolescente
ou sua família necessitam apoio, devem ser encaminhados ao Conselho Tutelar. As medidas
específicas de proteção normalmente cabem à assistência social. Há a medida do artigo 101, IV.
As medidas específicas de proteção são aplicáveis (Estatuto, título II, capítulo II) e nos casos
de infração cuja etiologia não seja a miséria, a pobreza, a falência das políticas públicas, e seja
necessário, poderá ocorrer, inclusive, a privação de liberdade, mas sempre precedida do devido
processo legal. Mário Volpi [Op. cit., p. 24] adverte:
“Liberdade assistida
“Constitui-se numa medida coercitiva quando se verifica a necessidade de acompanhamento
da vida social do adolescente (escola, trabalho e família). Sua intervenção educativa manifesta-se
no acompanhamento personalizado, garantindo-se os aspectos de: proteção, inserção comunitária,
cotidiano, manutenção de vínculos familiares, freqüência à escola, e inserção no mercado de trabalho
e/ou cursos profissionalizantes e formativos”.
4.4.2.8 INSERÇÃO EM REGIME DE SEMILIBERDADE
Severa, geralmente forma de transição para o meio aberto, a semiliberdade pode ser imposta
como medida autônoma, sempre reservada aos casos graves. Dependente dos mesmos
pressupostos da internação, só é cabível nos casos expressos no artigo 122 do ECA, vale dizer,
ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração no
cometimento de outras infrações graves. Lembre-se o intérprete que no Direito Penal o regime
semi-aberto é reservado aos crimes punidos com pena superior a quatro anos e o aberto, para
os delitos com pena até quatro anos.
O roubo e a extorsão, por exemplo, implicam penas que variam de quatro a dez anos. Ora, os
crimes mais comuns são punidos com penas inferiores, nada justificando submeter os adolescentes
a regime mais severo que o dos adultos, que, condenados até quatro anos, gozam do regime
aberto, principalmente da substituição da pena privativa da liberdade por restritiva de direitos:
prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana
etc. O furto, a mais comum das infrações, é punido com pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
233
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Adultos, penalmente imputáveis, via de regra, têm direito à substituição da reclusão por
prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana. Como justificar a internação
(privação da liberdade) de adolescentes, autores de idêntico fato, mesmo havendo reiteração
na prática infracional?
A hipótese é de novas condições na liberdade assistida ou cumulação de medidas, cujo
descumprimento poderá resultar, aí, sim, em internação na forma do artigo 122, III, do ECA. A
respeito da semiliberdade cabem as ponderações de Mário Volpi [Op. cit.., pp. 26-27].
“A falta de unidade nos critérios por parte do Judiciário na aplicação de semiliberdade, bem
como a falta de avaliações das atuais propostas, têm impedido a potencialização dessa abordagem.
Por isso propõe-se que os programas de semiliberdade sejam divididos em duas abordagens: uma
destinada a adolescentes em transição da internação para a liberdade e/ou regressão da medida; e
a outra aplicada como primeira medida sócio-educativa.
“Especificações:
“a. Princípios da estrutura educacional;
“b. Organização do cotidiano como espaço de convivência que possibilite a expressão individual,
o compromisso comunitário, atividades grupais etc.;
“c. Elaboração de um regulamento prevendo deveres e normas de funcionamento da unidade;
“d. Acompanhamento do adolescente em atividades externas de inserção no mercado de
trabalho, escolarização formal, profissionalização e outros;
“e. Programa de acompanhamento escolar e de inserção do adolescente em escolarização.
“Constatamos a existência de, basicamente, duas modalidades de aplicação da medida de
semiliberdade:
“a. Programas caracterizados por unidades de atendimento para grupos de até 40 adolescentes,
onde o acesso ao meio externo é programado progressivamente a partir do processo de
desenvolvimento educacional do adolescente. São conhecidos como semi-internatos.
“b. Programas de semiliberdade caracterizados por unidades comunitárias de moradia, para
grupos de cerca de 12 adolescentes, para manutenção e inserção do adolescente em programas
sociais e comunitários”.
4.4.2.9 INTERNAÇÃO
Quanto à internação, fica claro tratar-se de medida “privativa de liberdade, sujeita aos
princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento” (art. 121).
Embora o internamento seja feito em estabelecimento educacional, afastou-se o discurso
“tutelar” que equiparava o internamento do abandonado ao do infrator, do de conduta desviante
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
234
atípica ao envolvido em infrações gravíssimas. Ficou clara a dicotomia entre infração e privação
de direitos, situação anti-social passiva e ativa, só podendo haver internamento nos casos
expressamente mencionados: ato cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa;
reiteração no cometimento de outras infrações graves ou descumprimento reiterado e
injustificável de medida anteriormente imposta (art. 122).
O Estatuto segue a Regra 17.l.C das “Regras de Beijing”.
O adolescente em situação passiva de abandono ou negligência não sofrerá privação de
liberdade; será abrigado. O abrigo em entidade (antiga internação em meio aberto) é
caracterizado pela preparação gradativa para o desligamento; preservação dos vínculos
familiares; atendimento personalizado em pequenos grupos; desenvolvimento de atividade
em regime de co-educação; participação na vida da comunidade local (art. 92).
A internação tem, entre outras, as seguintes características: observância dos direitos e
garantias de que são titulares os adolescentes; atendimento personalizado em pequenos grupos;
preservação da identidade em ambiente de respeito e dignidade; restabelecimento e preservação
dos vínculos familiares; escolarização e profissionalização; apoio e acompanhamento de egressos;
participação comunitária (art. 94).
A internação é sempre medida excepcional, não pode ser imposta havendo outra medida
adequada. O juiz só a decretará em último caso. Comprovada a infração, atenderá o magistrado
ao elemento subjetivo; à conduta social, à personalidade do adolescente; aos motivos, às
circunstâncias e conseqüências do ato infracional; ao comportamento da vítima, e estabelecerá,
consoante entenda necessário à reprovação do ato, a medida aplicável.
A internação será a última alternativa, reservada aos casos de extrema gravidade. Assim
mesmo, não terá prazo determinado e não poderá exceder, em caso algum, a três anos. Atingindo
o limite, o adolescente deverá ser liberado e colocado em regime de semiliberdade ou de
liberdade assistida (art. 121).
Aboliu-se a possibilidade de internação em estabelecimento de adultos, salvo a internação
provisória pelo prazo de cinco dias (art. 185). Cabe ao juiz providenciar estabelecimento
adequado na Comarca mais próxima, na mesma ou até em outras unidades da Federação.
Decorrido o prazo de cinco dias sem a transferência, surge o recurso ao habeas corpus.
A internação, embora diversa da pena de prisão, na realidade cotidiana, o que é lamentável,
objetivamente, nada difere daquela; é um “mal necessário”. Só deve ser aplicada em último
caso e, assim mesmo, por prazo estritamente indispensável ao afastamento do ambiente
delinqüencial e criminógeno, com educação, profissionalização, progredindo o mais depressa
possível para semiliberdade e liberdade assistida.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
235
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Tenha-se presente: “É dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente,
pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor” (art. 18).
4.5 OS PROCEDIMENTOS
4.5.1 COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA
A colocação em família substituta, na forma de guarda e responsabilidade, tutela e adoção,
é de jurisdição voluntária, sendo subsidiárias as disposições do procedimento respectivo,
previsto no Código de Processo Civil. Permite-se pedido formulado diretamente em cartório,
se os pais forem falecidos, destituídos ou suspensos do pátrio poder ou houverem aderido
expressamente ao pedido de colocação em família substituta.
Mesmo já tendo concordado, os pais deverão ser ouvidos pelo juiz, cautela que melhor
assegura o direito à convivência familiar. Também, sempre que possível, deve ser ouvida a
criança e o adolescente, e sua opinião, devidamente considerada. Não esqueçamos: criança e
jovem são sujeitos de direito e não meros objetos do direito da família, da sociedade ou do
Estado.
Tratando-se de perda ou modificação da guarda em que haja controvérsia, o procedimento
será o do Estatuto, artigos 155 a 163. Se for destituição da tutela, o prazo para responder e o
desenvolvimento do processo será o previsto no Código de Processo Civil, artigos 1.194 a
1.197. Em se tratando de requerido sem recursos, cabe a providência do artigo 159 do Estatuto.
São invocáveis as disposições a respeito da realização do estudo social e da perícia, bem
como da oitiva da criança e do adolescente. Há cuidados especiais no sentido de resguardar os
direitos das partes: assim, “deverão ser esgotados todos os meios para citação pessoal” (art.
158, parágrafo único). Esgotar todos os expedientes para a localização do citando é procurá-lo
na rua onde resida, no local de trabalho; é pesquisar, indagar sobre o seu paradeiro. É fazer
pesquisa no cartório para ver se tem domicílio eleitoral no Município e que endereço forneceu.
4.5.2 PROCESSO DE APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PENAL
4.5.2.1 GENERALIDADES
Se o Estatuto representou extraordinário avanço no campo dos direitos fundamentais,
reconhecendo que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, foi no processo de apuração
de ato infracional que a nova lei deixou bem clara a novidade.
Foram inseridos na ordem jurídica interna os princípios das Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Administração da Justiça da Juventude. Reconheceu-se expressamente, entre
outros, o direito à liberdade de ir e vir em logradouros públicos e espaços comunitários; o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
236
direito de não ser privado de liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade competente; sendo privado de liberdade, examina-se,
desde logo, a possibilidade de liberação imediata; não ser privado de liberdade sem o devido
processo legal; garantia do pleno e formal conhecimento do ato infracional; igualdade na
relação processual; defesa técnica por advogado; direito de ser ouvido pessoalmente e de
solicitar a presença de seus pais ou responsável (confiram-se arts. 15/18, 106/111).
Freqüentemente tem-se apresentado o juiz da Infância e Juventude como um juiz tutelar,
protetor, mesmo do jovem em conflito com a sociedade. Segundo os menoristas, a tutela seria
incompatível com a função jurisdicional através do processo contraditório. O processo seria
prejudicial à educação do “menor” que não deve ser acusado, muito menos condenado. Em
nome dessa pseudoproteção, os “menores” eram “encaminhados” às Delegacias de Menores,
aos “estabelecimentos adequados”, à “internação”, vale dizer, prisão, detenção, reclusão, medida
de segurança, sem determinação de tempo e, o que é pior, sem qualquer observância dos
princípios e limites da estrita legalidade observados na jurisdição comum.
O caráter tutelar do Tribunal melhor se afina com as garantias processuais. Processo nada
tem com a natureza da medida resultante da aplicação de suas normas, que são sempre formais.
Processo é forma, direito adjetivo. Medida é conteúdo, direito substantivo. Processo é garantia,
segurança da liberdade jurídica, nada tem com punição, repressão. Ao contrário, é forma de
segurança para aplicação da justiça, é limite ao arbítrio do Estado. Processo não é sinônimo de
complicação, demora, sofrimento, penalização. Exprime “o conjunto de princípios e de regras
para que se administre justiça” [Silva, 1982, v. III, p. 456], caracteriza-se como forma de garantia
dos direitos do cidadão.
Para ser mesmo garantista, a Justiça especializada tem de se submeter às regras do devido
processo legal, que, no caso, é caracterizado pela remissão, celeridade e simplificação dos atos
processuais. Remissão de casos, simplificação e celeridade sem sacrificar os direitos do jovem
à presunção de inocência; direito de conhecer as acusações; de não responder; de ter advogado;
direito à presença dos pais ou responsável; à confrontação com testemunhas e a interrogá-las;
e à apelação a um tribunal superior (confiram-se Regras 7.1 e 11 das “Regras de Beijing”).
Como diz Noronha [1971, p. 6], “as leis de processo, mais do que quaisquer outras, protegem
e tutelam o direito de defesa de todos os direitos de que o homem goza na vida em sociedade”.
O processo de apuração de ato infracional visa não só averiguar a existência e a autoria do ato
para aplicação de uma medida sócio-educativa, mas surge como garantia da liberdade jurídica
do adolescente e segurança contra o possível arbítrio do Estado.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
237
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
4.5.2.2 PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Em matéria de internação, tenha-se presente o caráter garantista do processo: as normas
procedimentais são eminentemente tutelares. Resguardam os direitos do adolescente por meio
de formalidades essenciais à validade da atuação dos agentes do Estado, principalmente no
que tange às restrições à liberdade pessoal.
O Estatuto só admite privação de liberdade em caso de ato infracional cometido mediante
grave ameaça ou violência à pessoa por reiteração no cometimento de outras infrações graves
ou por descumprimento de outras medidas anteriormente impostas (art. 122). Para a internação
provisória (processual), ou a decorrente de flagrante, exigem-se os pressupostos da “gravidade
do ato, repercussão social, garantia da segurança do adolescente ou manutenção da ordem
pública” (confira-se art. 174).
O processo é formal e as formalidades, indispensáveis à validade da medida provisória.
Assim, não preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos de validade do internamento, a
privação da liberdade do adolescente será ilegal, passível de habeas corpus.
Os pressupostos da medida extrema estão no Estatuto e no Código de Processo Penal,
que é subsidiário: prova da existência de fato definido como infração penal cometido com
grave ameaça ou violência à pessoa; indícios da autoria do ato infracional; repercussão social;
garantia da segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.
A prova do ato infracional implica a certeza de que houve, mesmo, um fato definido como
infração penal “pesada”, envolvendo grave ameaça ou violência à pessoa. A certeza do fato se
fundamentará em declarações, auto de exame de corpo de delito e outros elementos
indispensáveis à convicção do juiz. A autoria não precisa ser indubitável, bastando indícios
suficientes, provas menos robustas, mas capazes de ensejar convicção provisória.
Tenha-se presente a subsidiariedade da lei processual comum. Não cabe internamento
provisório nos fatos definidos como infrações penais punidas com detenção. O pressuposto
da gravidade da infração tem de ser atendido.
Lesões corporais leves, culposas, infanticídio, aborto, rixa, embora envolvam violência à
pessoa, não comportam a medida extrema. A repercussão social está ligada ao “alarme”, ao
“clamor”, ao “abalo” no meio social, decorrente da gravidade do fato. A gravidade há de ser tal
a impor a medida extrema. Se o fato não tem grande repercussão, se não causa revolta, não
cabe internamento.
Garantia da segurança pessoal do adolescente ou da ordem pública são pressupostos
alternativos. Há necessidade de contenção para segurança pessoal quando o jovem corre perigo
iminente por ameaças concretas de familiares, amigos da vítima, grupos de extermínio, etc.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
238
O conceito de garantia da ordem pública está sedimentado, corresponde ao caso daquele
que cometeu, está cometendo ou ameaça cometer novos crimes. As hipóteses devem traduzir
ameaça concreta à ordem pública, não bastando simples maus antecedentes.
Há, ainda, a tutela da fundamentação do despacho que ordena o internamento provisório
(arts. 106 e 108, parágrafo único). Os pressupostos subjetivos e objetivos devem vir
satisfatoriamente demonstrados. Não basta mencionar que o internamento se impõe para
garantia da ordem pública. É preciso explicitar os motivos e a conveniência da medida extrema,
que é violenta e excepcional.
Tenha-se presente a presunção de inocência que beneficia adultos e é extensiva aos
adolescentes.
Fundamentar é dizer os motivos, os fundamentos, as razões da decisão. Se o despacho
não estiver fundamentado, haverá ilegalidade remediável via habeas corpus.
Quanto ao flagrante, só há necessidade da lavratura do auto nas hipóteses de violência ou
grave ameaça à pessoa; nos demais casos, o auto poderá ser substituído por boletim de
ocorrência circunstanciado (art. 173, parágrafo único).
Mesmo nos casos graves, desde que compareçam os pais ou responsável, o adolescente
será prontamente liberado, sob compromisso de responsabilidade de apresentação ao Ministério
Público. Aqui o Estatuto (art. 174) cumpre a Regra 10.2 das “Regras de Beijing”.
O flagrante do ato infracional se submete às exigências do Código de Processo, que é
subsidiário.
São invocáveis os artigos 301 a 310 com as modificações estatutárias. De qualquer modo,
tenha-se presente, o auto deve se revestir das formalidades intrínsecas e extrínsecas de validade,
caso contrário não prevalecerá, cabendo habeas corpus.
Em caso de internação decorrência de flagrante, impõe-se a apresentação imediata ao
órgão do Ministério Público. Só na impossibilidade, que deverá ser justificada, o jovem será
encaminhado à entidade de atendimento ou à Delegacia especializada, mas o prazo de 24
horas não poderá ser ultrapassado. O descumprimento do prazo do artigo 175 pode ensejar
crime sujeito à detenção de seis meses a dois anos (art. 235).
Não se olvide o caráter tutelar do processo, principalmente como forma de garantia da
efetividade dos direitos constitucionais.
4.5.2.3 APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL
O Estatuto segue a moderna tendência do Direito relativamente às infrações penais atribuídas
aos jovens. Processo garantista simples, célere, mas contraditório. A simplificação dos atos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
239
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
processuais é claramente visualizada nos artigos 171 a 189, nos quais são resguardados os direitos
fundamentais. As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil
estão presentes, disciplinando o procedimento. Os respectivos comentários são invocáveis.
O procedimento de apuração de infração penal previsto no Estatuto pode ser
complementado (Constituição, art. 24, XI). Os Estados poderão legislar adaptando as regras
gerais à realidade local. Não será o mesmo o procedimento nos grandes centros urbanos, Rio,
São Paulo, e nas cidades menores, Porto Velho ou Macapá. A cada realidade o seu procedimento.
O Estatuto não foi lacunoso. Deixou espaço para o legislador estadual.
O procedimento tem fase prévia na Polícia, seguindo-se a apresentação ao Ministério
Público. Não havendo flagrante, a autoridade policial notificará o adolescente e seus pais para
a apresentação ao órgão do Ministério Público, durante o expediente forense, no dia útil
imediato à remessa das investigações (art. 177). Em caso de não-comparecimento, o Ministério
Público notificará os pais ou responsável para a apresentação, podendo requisitar o concurso
da Polícia (art. 179, parágrafo único).
Com a apresentação do adolescente, o Ministério Público, no mesmo dia, poderá promover
o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou representar para a aplicação de medida
sócio-educativa (ver art. 180).
A remissão, introduzida a partir da Regra 11 das Regras Mínimas, constitui extraordinário
avanço no campo do Direito Positivo, porquanto minimiza o efeito do contato do jovem com o
Sistema e simplifica a aplicação de medidas sócio-educativas. Podendo ser revista a qualquer
tempo, a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou a comprovação da
responsabilidade nem prevalece para efeitos de antecedentes, podendo incluir eventualmente
a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de
semiliberdade e a internação (arts. 127/128)
Não havia porque instaurar o contraditório para uma simples advertência, acompanhada
do “encaminhamento” a programa de auxílio.
Oferecida a representação, na audiência, ou em qualquer fase, o juiz poderá conceder a
remissão suspendendo ou extinguindo o processo. A decisão será fundamentada.
Na hipótese de fato grave, em que não caiba remissão, não tendo o adolescente advogado,
o juiz lhe nomeará defensor que, no prazo de três dias, apresentará defesa prévia e rol de
testemunhas (art. 186). Segue-se a instrução e o julgamento em dia e hora previamente
designados. As partes podem requerer diligências, perícias, etc.
A sentença pode ser condenatória ou absolutória. Sendo subsidiário o Código de Processo
Penal, há que se observar os artigos 381 a 384 e o artigo 189, todos do Estatuto. Há que se ter
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
240
em conta os princípios já sedimentados no Direito Processual, em que as sentenças têm
classificação própria. São declaratórias, condenatórias, constitutivas e mandamentais.
Se o juiz impõe uma medida sócio-educativa, claramente condena. A sentença é, pois,
condenatória. A Regra 17 das Regras Mínimas e o respectivo comentário são aplicáveis.
A sentença passa a ter requisitos extrínsecos e intrínsecos de validade, destacando-se a
indicação dos motivos de fato e de direito em que se funda a decisão, bem como os artigos de
lei aplicados. A fundamentação é requisito indispensável; sem ela a sentença é nula.
Tenha-se presente: “A autoridade judiciária não aplicará qualquer medida, desde que
reconheça na sentença: estar provada a existência do fato; não haver prova da existência do
fato; não constituir o fato ato infracional; não existir prova de ter o adolescente concorrido
para o ato infracional” (art. 189).
À Justiça da Infância e da Juventude está reservado importante papel no combate à violência
e à privação indevida de liberdade, fatores produtores e reprodutores da delinqüência. O
sistema existe para proteger e restabelecer os direitos de crianças e adolescentes. Não se trata
de uma “Justiça Parcial”, mas de um sistema de interpretação e aplicação de lei responsabilizante,
protetora, tutelar, tuitiva.
Se o juiz criminal deve estar atento aos direitos fundamentais, à liberdade jurídica do
acusado, impedindo o arbítrio, o juiz da Infância e da Juventude deverá agir com redobrada
cautela, tendo presente que “a lei do processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo
constitucional sobre os direitos e as garantias constitucionais”.
É seu dever expedir, de ofício, ordem de habeas corpus quando verificar, no curso do
processo, que criança ou adolescente sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal (CPP,
art. 654, § 2º).
No processo de apuração de infração penal atribuída a adolescente há redobrada
preocupação com a liberdade jurídica, os direitos fundamentais. Assim, os prazos para a
apresentação (art. 174); para o encaminhamento a estabelecimento (art. 175); para a remissão
(art. 179); para a conclusão do processo (art. 183) e para a permanência em estabelecimento de
adultos (art. 185) têm de ser atendidos. Ultrapassados, deve o juiz imediatamente determinar a
liberação do adolescente.
A perda do prazo enseja habeas corpus e responsabilidade das autoridades processantes.
Havendo, inclusive, responsabilidade penal (confiram-se arts. 234 e 235). Se a Constituição e
as leis processuais garantem o direito das pessoas privadas de liberdade, assegurando que a
medida extrema só pode persistir nos casos expressos, a excepcionalidade da restrição
relativamente aos adolescentes é ainda maior.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
241
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Não se podia compreender e aceitar que relativamente aos adultos só se admitisse a privação
da liberdade em certos casos, cercada de formalidades e requisitos intrínsecos e extrínsecos, e
que os “menores” fossem “internados”, isto é, presos em cadeias e penitenciárias, sem que se
atendesse a qualquer formalidade, como por exemplo o auto de flagrante ou a ordem escrita e
fundamentada. A injustiça foi corrigida, cabendo ao juiz, ao promotor e ao advogado zelarem
para que jovens não se submetam a um processo mais rígido do que o adulto e menos
preocupado com as garantias constitucionais.
Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, “gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana” (art. 3º). Não são meros objetos do direito de intervenção dos
pais, da família ou do Estado.
4.5.2.4 O CONTROLE JUDICIAL DA EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Questão tormentosa e desafiante, a eficácia da sentença na jurisdição dos atos infracionais
não teve, ao que se saiba, pesquisa científica capaz de certificar o resultado da intervenção
judicial. Embora não se possa avaliar com a necessária segurança, o fato é que informações
disponíveis deixam antever a probabilidade de se prosseguir com resultados pouco animadores.
A inexistência ou a oferta irregular de propostas pedagógicas; a falta de programas de
preservação ou restabelecimento de vínculos familiares e comunitários; a carência de pessoal
técnico e de instalações físicas adequadas; a omissão de envolvimento com os pais ou responsável
e a falta de medidas a eles aplicadas; a deficiência na escolarização e na profissionalização; a
falta de programas de preparação para o desligamento e a ausência de acompanhamento de
egressos podem ser apontadas como as principais causas da ineficácia do sistema.
As práticas usuais de reintegração, ressocialização e reeducação persistem como mitos
convenientes, legitimadores do controle social da pobreza. A incompletude ou os resultados
negativos da sentença na fase executória, no final do processo, têm como causas não só o
desaparelhamento do sistema administrativo, mas a interpretação equivocada de normas
estatutárias. Em muitos casos, a imposição de medidas sócio-educativas continua embasada
nos princípios enviesados da “doutrina da situação irregular”.
Promotores, advogados, técnicos e juízes persistem no viés da “tutela”, da “proteção”, do
“melhor interesse”, sem atentar para as novidades das garantias constitucionais e processuais.
São ignorados os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da individualização da medida,
bem como a desmistificação do “sistema protetivo”.
Operadores do Direito e executores administrativos, geralmente, não consideram o estigma
da sentença que impõe medida sócio-educativa. Também não levam em consideração o caráter
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
242
punitivo, claramente visualizado nas restrições à liberdade e ao direito à convivência familiar
e comunitária.
A inexistência ou a oferta irregular de propostas pedagógicas fazem que as medidas sócio-
educativas resultem impostas apenas no aspecto repressivo e, o que é pior, sem observância
do critério da proporcionalidade. Adolescentes infratores, em muitos casos, são ainda tratados
com maior rigor do que jovens adultos penalmente imputáveis, credores de benefícios
inacessíveis aos adolescentes, como prazos reduzidos de prescrição, de substituição de penas
privativas de liberdade por simples restrições de direitos, etc.
A garantia da fundamentação e a da individualização da medida, geralmente, não constam
das sentenças, faltando referência à alternativa meramente protetiva. Também as sentenças e o
respectivo processo restringem-se ao adolescente, sendo raras as hipóteses de aplicação
simultânea de medidas aos pais ou responsáveis.
Continua pálida a participação do advogado e as defesas exsurgem muito deficientes,
insistindo-se, ainda, que o advogado deve ter uma atuação diferente, limitada. Olvida-se o
secular princípio da presunção de inocência e tudo é tratado com muita singeleza. Tais viéses
contribuem à falta de boa jurisprudência, principalmente no que tange às garantias do habeas
corpus e do devido processo legal.
A defesa verdadeiramente técnica persiste inacessível à maioria dos jovens em conflito
com a lei penal. Esta geralmente é invocada para a conceituação do ato infracional, mas
abandonada quando se trata do exame da culpabilidade e das respectivas excludentes.
Pretensos infratores são punidos com medidas sócio-educativas, quando não passam de
portadores de doença ou deficiência mental, credores de tratamentos especializados.
Impõe-se assumir o novo modelo do Estatuto responsabilizante e garantista, o que implica
desmistificar o caráter exclusivamente protetor das medidas sócio-educativas, reconhecendo a
índole punitiva que lhes é imanente. Punição pedagógica, justa e adequada, sem caráter
vexatório, constrangedor, humilhante.
Uma boa interpretação do Estatuto não dispensará a comparação com o sistema repressivo
dos adultos, no qual estes gozam da substituição de medidas privativas de liberdade por
penas restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de
direitos, limitação de fim de semana), inclusive do direito ao sursis. Medidas que não são
facultativas, mas imperativas.
Na comparação, tenha-se presente que o adulto primário, de bons antecedentes, condenado
por furto, lesão corporal, etc., normalmente não responde com a liberdade. A eficácia da
sentença depende de vários fatores, entre eles a correta interpretação do Estatuto, que inclui
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
243
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
princípios garantistas do Direito Penal (ciência e norma). A perfeita execução exige que o
caráter repressivo seja contrabalanceado por apropriada proposta pedagógica. O envolvimento
da família e da comunidade também é indispensável.
Execução eficaz e perfeita pressupõe sentença hígida, portanto, completa, objetiva e
subjetivamente, formando um silogismo perfeito, em que a fundamentação (art. 93, IX, CF)
exsurja relevante. Entre os incidentes da execução, exsurge relevante a progressão de regimes:
internação para semiliberdade; desta, para liberdade assistida; da medida sócio-educativa,
para a de proteção.
É inadaptável a garantia da reavaliação periódica, visando à progressão de regimes. Os
seis meses do § 2º do artigo 121 constituem prazo máximo. Ultrapassado, surge o direito ao
habeas corpus.
Todos os incidentes se submetem ao princípio do contraditório, principalmente à internação
prevista no item III do artigo 122. A medida tem natureza cautelar, mas só pode ser imposta
facultada justificativa em despacho fundamentado, em que se demonstre a necessidade imperiosa
da restrição que pode ser suspensa, uma vez que o adolescente se disponha a cumprir a
medida anteriormente imposta.
Enquanto não editada lei de execução (CF, art. 24, XV e parágrafos), as Corregedorias
Gerais de Justiça poderão normatizar procedimentos no sentido de garantir os direitos do
sentenciado, regulando, por exemplo, a espécie de documentos que devem acompanhar o
adolescente se determinada a internação ou outra medida: sentença, laudo da equipe técnica,
certidões de registro civil e da escola, trânsito em julgado, ou, até, fotocópia da íntegra do
processo. A cautela facilitará a individualização do tratamento.
4.6 PROTEÇÃO JUDICIAL DOS INTERESSES COLETIVOS E DIFUSOS
Vivendo a época dos direitos difusos de terceira geração, defrontamo-nos com sérias
dificuldades, decorrência do sedimentado conceito de direito subjetivo individual. Direitos até
então não cogitados sob o ângulo difuso, como o direito à saúde, à educação, à
profissionalização, ao lazer, exigiram novas posturas, notadamente dos juízes.
A moderna tendência é de alargar o acesso à tutela jurisdicional, possibilitando o julgamento
dos grandes litígios, principalmente relacionados com direitos sociais. Moacir Motta da Silva
[1998, pp. 81/83] explica:
“Ainda hoje, observam-se certas decisões jurisdicionais nas quais os fundamentos do juiz continuam
limitados aos ensinamentos hauridos do tradicional conceito do direito, cuja função jurisdicional resume-
se na aplicação da lei, diante do caso concreto. A idéia de prestação jurisdicional representa algo mais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
244
do que simples técnica de procedimentos, repassados pela doutrina clássica do direito. O conceito de
prestação jurisdicional entrado em uma concepção formal, positivista, por si só, não é suficiente para
a compreensão dos interesses difusos, como novos valores jurídicos consagrados pelo direito positivo.
É indispensável que o juiz, ao julgar conflitos de interesses difusos, interesses de massa, reconheça
que está diante de matéria que envolve valores éticos que afetam a sociedade. São demandas judiciais
de natureza coletiva, que se fundam em interesses sociais de toda a coletividade; por exemplo, o
direito de respirar ar puro, direito à educação, à saúde, ao trabalho. O mundo contemporâneo não
mais se conforma com o pensamento ortodoxo do juiz desatualizado, que ainda imagina ser a prestação
jurisdicional algo formalmente subordinado à lei”.
Josiane Rose Petry Veronese [1996, pp. 16-17] completa:
“Contrariando a visão individualista do século XVIII, com suas seqüelas no processo civil brasileiro,
o ajuizamento das ações fundamentadas em interesses difusos são de grande importância, pois que
implicam o reconhecimento de que o processo ultrapassa as esferas de mera garantia constitucional
e passa a ser encarado sob o ponto de vista teleológico, ou seja, como instrumento de participação
política do indivíduo e do grupo social nos centros de decisão do Estado.”
Com o Estatuto, a negligência do Estado no cumprimento de políticas públicas básicas passou
a possibilitar o recurso à via judicial. Cabe a ação havendo não-oferecimento ou oferta irregular
de ensino obrigatório; de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência;
de atendimento em creche e pré-escola à criança de zero a seis anos de idade; de ensino noturno
regular, adequado às condições do educando; de programas suplementares de oferta de material
didático escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental; assistência
social visando a proteção à família, à maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao
amparo às crianças e adolescentes que dele necessitem; de acesso às ações e serviços de saúde;
de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade.
As hipóteses previstas não excluem da proteção judicial outros interesses individuais,
difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e
pela lei (parágrafo único do art. 208). Direitos coletivos são os pertencentes a determinados
grupos, enquanto os difusos tocam à categoria dos que não podem ser fruídos com exclusividade.
Há, no direito difuso, uma indeterminação de titulares, enquanto, no coletivo, o grupo de
interessados é determinado. Direito coletivo à educação: determinado grupo de meninos de
rua fora da escola, inexistindo turno compatível. Direito difuso: inexistência de ações e serviços
de saúde.
A descrição das hipóteses do artigo 208 do Estatuto não é taxativa, mas, meramente
enumerativa, porquanto a lei não exclui da proteção judicial outros interesses individuais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
245
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
difusos ou coletivos. Não só a falta de oferecimento ou a oferta irregular de políticas públicas
de saúde, educação, assistência social, mencionadas no Estatuto, ensejam direito às ações
cíveis, outras ações poderão ser propostas.
A competência é do Juízo da Infância e da Juventude do local onde ocorreu ou deva
ocorrer a ação ou omissão da política básica. Há que se atender à hierarquia das leis. Sendo o
Estatuto lei federal, prevalece sobre lei local que atribua privilégio de foro (ver art. 209).
A legitimação é concorrente do Ministério Público da União, dos Estados, Municípios, Distrito
Federal, Territórios e das Associações de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente. Quanto
às associações, dispensar-se-á autorização dos associados, havendo prévia autorização estatutária.
Importante dispositivo: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados
compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título
executivo extrajudicial” (art. 211).
Não há necessidade de adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e
quaisquer outras despesas. Só há sucumbência com a responsabilidade pelas despesas
processuais em caso de litigância de má-fé.
Cabe a instauração de inquérito civil pelo Ministério Público, o que facilitará a propositura
da demanda. É subsidiária a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que tutela o valor ambiental.
4.7 OS RECURSOS
Recurso, segundo Lima, “é o meio dentro da mesma relação processual, de que se pode
servir a parte vencida ou quem se julgue prejudicado, para obter, total ou parcialmente, a
anulação ou reforma de uma sentença” [1986, p. 491]. Marques, em feliz síntese, conceitua:
“recurso é um procedimento que se forma para que seja revisto pronunciamento jurisdicional
contido em sentença, decisão interlocutória, ou acórdão” [Op. cit., v. III, p. 113]
No seu sentido amplo, recurso é o procedimento para revisão das decisões e, em sentido
restrito, refere-se à pretensão de anulação ou reforma da sentença. Na Justiça da Infância e da
Juventude é adotado o sistema recursal do Código de Processo Civil (art. 198). Como em matéria
de recurso, a interpretação é restritiva. Tem-se que, no processo de apuração de ato infracional, o
recurso é o do Estatuto, com as alterações ali consignadas, e não o do Código de Processo Penal.
Não há preparo; o prazo para interpor e responder a apelação é de dez dias. Há preferência
de julgamento e dispensa de revisor. No agravo, é de cinco dias o prazo para interpor e responder.
O efeito da apelação é sempre devolutivo, salvo: quando interposta contra sentença que
deferir adoção por estrangeiro e a juízo da autoridade judiciária, sempre que houver perigo de
dano irreparável ou de difícil reparação (art. 198, VI).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
246
Relativamente à adoção por estrangeiro, a cautela é percebida à primeira vista. O envio da
criança para o exterior dificultaria o regresso, em face dos transtornos no cumprimento do
acórdão que teria de ser homologado na Justiça alienígena.
Dano irreparável é o insuscetível de reparação civil. Há uma impossibilidade material de
ressarcimento. O conceito serve para a difícil reparação, aduzindo-se que a hipótese é a mesma
que a da incerta reparação, duvidosa, melhor dizendo. Em qualquer caso, antes de determinar
a remessa dos autos à instância superior, o juiz proferirá despacho fundamentado, mantendo
ou reformando a decisão.
Fundamentar é motivar, alicerçar. É dizer dos motivos em que se funda a mudança do
julgado. Os fundamentos são as razões determinantes da nova decisão. Um dos postulados da
Justiça da Infância e da Juventude reside na fundamentação de todas as decisões. Tratam-se de
princípios constitucional (CF, art. 93, IX) e processual (CPC, art. 165) importantíssimos de garantia
das partes que têm direito de saber o motivo das decisões.
Mantida a decisão, os autos sobem. No caso de reforma, a parte vencida terá de pedir
expressamente a remessa à superior instância. A falta de pedido expresso torna deserta a
apelação ou o agravo pelo abandono do recurso.
4.8 O MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público, na Justiça da Infância e da Juventude, atua como parte processual ou
custos legis. Embora atue como parte, não é órgão de acusação e nem simples defensor dos
direitos individuais de cada criança e/ou adolescente em conflito com a sociedade, mas o
responsável pela ordem jurídica, pelos direitos sociais e individuais indisponíveis.
Não cabe discutir a vexata quaestio relativa às funções do Ministério Público, nem seria
próprio examinar se se trata de “função integradora da função do Juiz” (Zanolini, of. Carnelutti)
[1950, v. 1, p. 232], ou se “parte instrumental”, “parte imparcial”, etc. O que importa é destacar
o órgão como promotor de justiça, da eqüidade, defensor dos direitos sociais e individuais
indisponíveis.
Quando atua como parte, propondo a “ação sócio-educativa pública”, não age de forma
parcial contra o adolescente; promove justiça. Trata-se de parte sui generis, apenas interessada
em realizar justiça, tanto que pode pedir o arquivamento das peças informativas ou a
improcedência da ação por ele mesmo proposta.
Se na área criminal o Ministério Público é o órgão estatal da pretensão punitiva, surge
aqui como órgão estatal da pretensão sócio-educativa, tanto que concede a remissão como
forma de exclusão do processo (art. 126).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
247
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Como parte ou em posição assemelhada, pouco importa: a verdade é que, na Justiça da
Infância e da Juventude, as funções do Ministério Público crescem de importância. Cabe ao
Ministério Público, entre outras atribuições, promover e acompanhar a ação de alimentos; de
suspensão e destituição do pátrio poder; de nomeação e destituição de tutores e guardiães;
promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais,
difusos ou coletivos; instaurar procedimentos administrativos e impetrar mandado de segurança,
injunção e habeas corpus.
Como promotor de justiça, o órgão do Ministério Público atua na defesa da ordem jurídica,
sempre atento às ameaças ou violações dos direitos fundamentais de crianças e jovens, cabendo-
lhe propor as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.
4.9 O ADVOGADO
O Estatuto, regulamentando a Constituição, assegura as garantias processuais e a
participação obrigatória do advogado (ver arts. 110/111 e 206/207). No Estado Democrático de
Direito, a figura do advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inaceitável
qualquer restrição a sua participação em processo administrativo, civil ou penal.
Na área dos adolescentes infratores, as funções do defensor técnico crescem de importância
na medida em que a atuação do advogado aparece como importante elemento de controle da
prestação jurisdicional. Controle das informações levadas ao juiz; das declarações das
testemunhas; dos laudos técnicos; dos prazos; das decisões; recorrendo à instância superior
sempre que necessário.
Se o mais perigoso dos delinqüentes tem direito à presunção de inocência, de não ser
preso a não ser em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada do juiz; se o mais
temível dos bandidos tem obrigatoriamente advogado, dispondo de ampla defesa com recursos
a ela inerentes, causava perplexidade que, no Direito, dito Tutelar, os “menores” fossem privados
de liberdade sem os mesmos direitos, argumentando-se que eram defendidos pelo Ministério
Público e que as medidas eram sempre protetoras.
As novas legislações, editadas com base na Convenção Internacional (art. 40), enfatizam a
obrigatoriedade da participação do advogado. Assim, dispõe o artigo 170 da Lei Equatoriana e
o artigo 48 da Lei Salvadorenha. Também exigem a presença do advogado, sob pena de nulidade,
as Leis da Guatemala (art. 194), de Honduras (art. 229), da Nicaraguá (art. 122), do Panamá
(art. 17, § 2º), do Peru (art. 170) e da República Dominicana (art. 274). No mesmo sentido vão
os projetos de reforma legislativa do Uruguai, da Venezuela, do Chile e da Argentina.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
248
Em nosso país, a presença do advogado é obrigatória. Decorre de exigência constitucional
e estatutária. Confira-se a Carta Federal, artigo 133 e o ECA, artigos 206 e 207.
Tenha-se presente o § 3º do artigo 207 que dispensa a outorga de mandato, quando se
tratar de defensor nomeado, ou, constituído, tiver sido indicado por ocasião de ato formal com
a presença da autoridade judiciária.
Quanto ao advogado, tem-se dito que atua diferentemente da área penal dos adultos. É
fato. Todavia, não há legitimidade no restringir a defesa do adolescente, que deve ser a mais
ampla possível, inclusive com argüição de nulidades e promovendo o advogado defesa técnica
na verdadeira acepção da palavra.
É cabível defesa indireta, formal. Havendo pretensão, tem de haver resistência. Isso é
próprio do contraditório.
Na Justiça da Infância e da Juventude, o advogado, como nos demais processos, atua
tutelando, amparando a liberdade e os direitos individuais. Atuação eminentemente técnica,
porquanto a autodefesa é realizada pelo próprio adolescente.
No Estado Democrático de Direito, não se admite acusação sem defesa. O adolescente não
é mais objeto passivo de “medidas tutelares”. O mito desapareceu. Hoje é sujeito de direitos.
Goza da presunção de inocência, tendo garantidos os direitos constitucionais e estatutários.
Cabe ao advogado propor todas as medidas técnicas no sentido de defender o adolescente.
Sua função é a de assistir tecnicamente o jovem em conflito com a lei (ECA, art. 103).
Processo sem defesa técnica não é processo. Há nulidade absoluta. Se o advogado não
defende técnica e completamente, deve o juiz substituí-lo.
O princípio do devido processo com a amplitude da defesa, para ser garantia efetiva,
elemento lógico e indispensável, exige atuação eficiente. O defensor, constituído ou nomeado,
tem o dever de ofício de lutar pelos direitos do adolescente, podendo, para tanto, comunicar-
se pessoal e reservadamente com o jovem e seus familiares, mesmo quando internado (confira-
se o art. 124, III, do Estatuto). As regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da
Justiça Juvenil, Resolução nº 40/33, de novembro de 1985, são claras:
“Regra 15 – Assistência judiciária e direitos dos pais e tutores
“15.1 O menor terá direito a se fazer representar por um advogado durante todo o processo
ou a solicitar assistência judiciária gratuita, quando prevista nas leis do país.
“15.2 Os pais ou tutores terão direito de participar dos procedimentos e a autoridade competente
poderá requerer a sua presença no interesse do menor. Não obstante, a autoridade competente
poderá negar a participação se existirem motivos para presumir que a exclusão é necessária aos
interesses do menor.”
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
249
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
Do comentário traduzido por Maria Josefina Becker:
1
“A regra 15.1. usa terminologia similar à da regra 93 das Regras Mínimas para o Tratamento de
Prisioneiros. Enquanto o assessoramento jurídico e assistência judiciária gratuita são necessários para
garantir a assistência judiciária ao menor, o direito à participação dos pais ou tutores, de acordo com
a regra 15.2., deve ser considerado uma assistência geral ao menor, de natureza psicológica e
emocional, que se estende ao longo de todo o processo.
“A autoridade competente, para determinar medidas adequadas ao caso, pode valer-se da
colaboração dos representantes legais do menor (ou, com essa finalidade, de algum outro assistente
pessoal em quem o menor possa confiar e realmente deposite confiança). Esse interesse pode ser
frustrado se a presença dos pais ou tutores na audiência exercer uma influência negativa,
manifestando, por exemplo, uma atitude hostil ao menos; por isso, deve-se prever a possibilidade
de sua exclusão da audiência.”
4.10 SERVIÇOS AUXILIARES
Os serviços auxiliares são organizados de acordo com as leis locais de organização
judiciária. Não há mais a figura do comissário de menores. As leis judiciárias poderão criar
cargos de agentes de proteção. Tais servidores não são policiais, órgão de repressão de meninos.
São agentes de proteção, cumprem diligências necessárias, garantindo que os adultos não
ameaçem ou violem direitos assegurados no Estatuto. Zelam pela dignidade da criança e do
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor (Estatuto, art. 18).
A equipe técnica, composta de assistente social, psicólogo, educador, faz os estudos de
caso, subministrando ao juiz os elementos necessários à convicção. É invocável a legislação
processual, subsidiária respectiva. Cabem as mesmas regras de quesitos, assistentes,
incompatibilidades e impedimentos do Direito Comum. O escrivão e o oficial de Justiça também
estão sujeitos às normas do Direito Judiciário e da organização judiciária. Relativamente aos
serviços auxiliares, cabem as recomendações das “Regras de Beijing”. Veja-se a Regra 22 e o
respectivo comentário.
1
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores. As Regras de Beijing,
tradução de Maria Josefina Becker, Rio de Janeiro : FUNABEM, 1988.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
250
5 REDE ADMINISTRATIVA DE ATENDIMENTO
Falar na rede de atendimento é referir-se principalmente às medidas de proteção e sócio-
educativas previstas no Estatuto:
Ø orientação, apoio e acompanhamento temporários;
Ø matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
Ø inclusão em programa de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
Ø requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime ambulatorial;
Ø inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a
alcoólatras e toxicômanos;
Ø abrigo em entidade;
Ø prestação de serviços à comunidade;
Ø liberdade assistida;
Ø inserção em regime de semiliberdade;
Ø internação em estabelecimento educacional.
Tenha-se presente: as medidas sócio-educativas constituem resposta ao ato infracional,
não se confundem com as medidas de proteção. No primeiro caso, o adolescente é vitimizador
e, no segundo, vítima. Também que a rede administrativa não se confunde com o Sistema de
Justiça. A primeira atua na assistência social, aplica medidas protetivas. A justiça age na
prevenção e composição de conflitos.
Não é próprio do Judiciário prestar assistência social. Seus operadores só atuam
processualmente, vale dizer, na prestação jurisdicional, graciosa ou contenciosa. Juízes e
promotores só devem se envolver com a rede de atendimento administrativa ou não
governamental, incentivando e apoiando a implementação e o aperfeiçoamento de programas.
Fiscais naturais, decorrência da jurisdição voluntária, não tem sentido mantenham programas
ou entidades de atendimento.
Assistência e execução, como dito, são do Executivo e da comunidade. Juízes e promotores
não são “tutores” da comunidade. Agentes políticos, têm compromisso com o Direito e a
sociedade na implementação do Estatuto, mas isso não quer dizer que devam influir ou interferir
na rede, principalmente nos Conselhos de Direitos, responsáveis pelas diretrizes da política
de atendimento (Constituição Federal, art. 227, § 7º).
A fiscalização das entidades, artigo 148, V, e 201, XI, discreta e respeitosa, verificará da
observância dos princípios e normas estatutárias, principalmente daqueles referidos nos artigos
90 a 95. Tenha-se presente a nova ótica do Sistema de Garantias. Crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos e não objetos passivos de tutela. Garantem-se direitos fundamentais e
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
251
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO
Antonio Fernando do Amaral e Silva
sociais, notadamente por meio de programas. Apoio à família, à integração sócio-familiar.
Menos bases físicas. Menos abrigos e menos internatos que, via de regra, não dão bons
resultados. Mais programas, menos prédios.
Os serviços da rede necessitam do voluntariado, mas não dispensam profissionalismo e
capacitação. Pressupostos para os quais juízes, promotores e técnicos podem contribuir,
organizando cursos, seminários, principalmente do pessoal da Justiça. Indispensável à integração
do Judiciário e do Ministério Público com entidades do Executivo e não governamentais.
Diálogo franco constante entre Conselhos de Direitos, Tutelares e os demais integrantes
da rede.
Programas de restabelecimento de vínculos familiares, com apoio dos técnicos do Judiciário,
se apresentam como alternativa bastante importante. O tratamento não-institucional deve ser
priorizado.
Há que valorizar e incentivar programas de assistência educativa à família. A rede de
atendimento deve priorizar o direito à convivência familiar e comunitária, valorizando iniciativas
e programas integrados com a escola. Tenha-se presente o artigo 54 do Estatuto e o respeito
aos valores culturais, artísticos, históricos, próprios do contexto social de crianças e adolescentes.
É preciso exorcizar o discurso menorista da “tutela”, da “proteção”, que acaba por segregar
“menores” em “instituições” de toda espécie. Os viéses da antiga “doutrina”, marcados pelo
assistencialismo e pela experiência correcional repressiva, lamentavelmente, persistem em muitas
organizações da rede de atendimento, prestigiados por operadores do sistema judicial.
Em que pese a resistência de certos “especialistas”, a mudança de ótica do assistencialismo
para a garantia de direitos vem, progressivamente, ganhando espaços. A eficácia do Estatuto
depende, fundamentalmente, da rede, do profissionalismo e da capacitação. Sem capacitação
em torno do novo modelo, o Estatuto prosseguirá simples carta de intenções, em que os viéses
da “tutela”, do superior interesse e outros mitos convenientes continuarão justificando
confinamento e segregação.
É preciso mudar! A mudança inclui o compromisso com a democracia participativa, que
implica reconhecer e valorizar os Conselhos de Direitos.
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MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
255
7
CAPÍTULO
O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE
DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino*
SUMÁRIO
1 A ORIGEM DOS CONSELHOS DOS DIREITOS ..... 256
2 ORIGEM FORMAL DOS CONSELHOS DOS DIREITOS ..... 257
3 CARACTERÍSTICAS DOS CONSELHOS ..... 257
4 AS INTERFACES DOS CONSELHOS COM OUTROS ÓRGÃOS
A COMPREENSÃO DO SISTEMA DE REDES DE SERVIÇOS ..... 260
4.1 CONCEITO DE REDE ..... 261
4.2 ESPÉCIES DE REDES ..... 262
4.3 INTERFACE COM OS CONSELHOS TUTELARES ..... 266
4.4 INTERFACE COM O MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 268
5 OS CONSELHOS DOS DIREITOS E SUA
ARTICULAÇÃO COM OS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO ..... 279
5.1 A ESCOLA, UM ESPAÇO NECESSÁRIO ..... 279
5.2 EDUCAÇÃO COMO DIREITO DE TODOS ..... 281
6 FAZENDO CUMPRIR A LEI DE DIRETRIZES E BASES
E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 282
7 CONCLUSÃO ..... 283
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 284
* Promotor de Justiça do Estado do Amazonas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
256
1 A ORIGEM DOS CONSELHOS DOS DIREITOS
A experiência com conselhos, como prática social de intervenção de grupos sociais
organizados na gestão política do poder, não é criação do legislador brasileiro, como pode
parecer. Nem é novidade, no Brasil, pelo menos enquanto idéia, visto que o Código de Melo
Matos de 1927 já previa a existência de Conselhos de Assistência e Proteção aos Menores,
embora, na prática, muito poucos tenham sido os que se instalaram, além do que não possuíam
a mesma conotação dos Conselhos dos Direitos atuais.
Historicamente várias sociedades experimentaram tais práticas, ora em Conselhos
Operários, ora em Conselhos de Cidadãos. A experiência com Conselhos Operários se revela
a partir da prática de trabalhadores organizados, originado diretamente do sistema de produção.
Segundo Gohn (1990), são agentes e atores centrais da política econômico-social do país.
Quanto aos Conselhos de Cidadãos, são compostos por cidadãos não necessariamente
trabalhadores (ou exclusivamente) e se constituem a partir de um processo de consumo e
distribuição de bens, serviços e equipamentos, principalmente públicos. São atores de políticas
sociais determinadas ou elaboradas por agentes governamentais.
Ilustram-se como experiências internacionais : a Comuna de Paris, vista como primeira
experiência de autogestão operária por Conselhos Populares. Ocorreu em 1871, em França,
onde os trabalhadores conseguiram exercer o governo; os Sovietes russos, surgidos em São
Petersburgo, em 1905, caracterizados como organismo político de luta pelo poder estatal num
momento de crise aguda da sociedade; a experiência alemã, com Conselhos de Fábricas, por
volta de 1918. Cuidavam das questões salariais, preços de aluguéis; a experiência italiana,
que, começando por Comissões de Fábricas, evoluíram para a formação de conselhos com
características políticas. Outras tantas experiências internacionais ocorreram.
No Brasil, constatamos inicialmente a experiência com Conselhos Comunitários. Tratava-
se de uma participação “outorgada” da população nos referidos conselhos, pois sua criação e
estruturação e todas as regras participativas eram de iniciativas do poder público, restando à
população a simples adesão. Eram órgãos consultivos de governo, legitimando a atuação estatal.
Algumas poucas experiências, a partir da década de 80, surgem com os Conselhos Populares,
sobretudo no chamado orçamento participativo, adotado por algumas poucas cidades.
Somente a partir da década de 90 se pode falar de experiência de conselhos deliberativos,
com participação popular efetiva, sem mera adesão, quando surgem os Conselhos de Saúde e
depois os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e os da Assistência Social.
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CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
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2 ORIGEM FORMAL DOS CONSELHOS DOS DIREITOS
A fonte inspiradora dos conselhos é a Constituição Federal de 1988; ao enunciar que o
Brasil é uma República Federativa, um Estado Democrático de Direito, onde o poder emana do
povo, que o exerce por seus representantes legais ou diretamente, nos casos previstos na
Constituição, se estabeleceu a democracia participativa.
Como forma de materializar a Federação, estabeleceu a Constituição que a formulação de
políticas de atendimento relacionadas à criança e ao adolescente deveria seguir as regras da
descentralização política e administrativa. Assim, a formulação, execução e controle de políticas
de atendimento em tais áreas deveriam ser realizadas por meio de ações municipalizadas
(descentralização política), além de serem desenvolvidas por órgãos que não pertencessem à
administração direta (secretarias, gabinetes de governo etc.).
Exigiu, também, a Constituição, que as políticas de atendimento, além de descentralizadas
municipalizadasdeveriam contar com a participação popular. Surgiu, então, com a Lei
Federal 8.069/90, um tipo de órgão público, especial, diferente dos que se conheciam na
técnica da administração pública, pois, apesar de descentralizado, com independência, não
seria dotado de personalidade jurídica própria, tal como as autarquias, e ainda teria em sua
composição, de forma paritária, a participação popular em relação aos representastes do
governo. Criaram-se os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Estava criado um
canal de participação popular na gestão do poder político.
3 CARACTERÍSTICAS DOS CONSELHOS
(A) CARÁTER DELIBERATIVO
A Constituição Federal exigiu que se criasse, no âmbito de cada esfera da Federação, um
órgão que definitivamente acabasse com a prática verticalista das ações, até então impregnadas
pela antiga Política Nacional do Bem-Estar do Menor.
Como foi visto em outra parte deste texto, exigiu-se, por via da CF/88, um órgão formulador
de políticas, em cada esfera de governo. Por isso o Estatuto da Criança e do Adolescente,
regulamentando a Carta Maior, estabeleceu que seriam criados Conselhos de Direitos, tanto
como opção política da constituição material, quanto como estratégia de gestão, ou simplesmente
diretriz de política de atendimento.
Por obra da lei, esses Conselhos serão “órgãos deliberativos e controladores das ações em
todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações
representativas”. A lei foi de uma extrema objetividade: o órgão deve ser deliberativo das
políticas públicas, e não mais, tão-somente, consultivo, como tantos organismos da administração
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pública. A CF não admitiu, nesse caso, qualquer disfarce a respeito da participação popular.
Trata-se de efetiva participação e não mera “integração” em programas já previamente decididos
e colocados em pauta apenas para legitimar futuras ações.
Deliberar, segundo definição, significa “decidir; resolver depois de exame e discussão”;
essa tarefa é típica do Conselho dos Direitos. Caberá a ele decidir, após discussão entre seus
pares, toda política, programas e ações referentes às crianças e adolescentes, sejam de iniciativa
própria, do Poder Executivo ou de organizações não governamentais. Essa deliberação será
conteúdo de resoluções dos Conselhos e terá como destinatários todas as pessoas e órgãos
responsáveis pela execução de políticas de atendimento.
Num certo modo, pelo estágio em que se encontra a democracia no Brasil, podemos afirmar
que demos um salto das “bandeiras de luta” – momento estratégico da fase reivindicatória e de
denúncias – para uma outra fase de “planos de ação” – no qual se exige muito mais uma
capacidade propositiva, para aproveitamento dos espaços políticos, na busca da hegemonia
da sociedade civil e, conseqüentemente, a mudança da “cara do Estado”.
Isso é importante: o poder não admite vazios; ou a sociedade civil o ocupa ou o governo
o fará na totalidade. Se os representantes da sociedade civil não forem capazes de realizar
propostas efetivas para as políticas públicas, os representantes de governo o farão, tudo no
espírito democrático, legitimando-se, ao final, as propostas aprovadas no Conselho.
Saliente-se que as deliberações dos Conselhos, uma vez publicadas, se tornam uma vontade
estatal, desaparecendo a paternidade e impondo-se ao Executivo sua concretização.
(B) AUTONOMIA
É conseqüência natural da característica anteriormente comentada. O órgão deliberativo,
cuja decisão será uma manifestação do próprio Estado, impondo-se a todos – destinatários
naturais da obrigação de prover os direitos fundamentais das crianças e adolescentes –, exigiria,
certamente, o caráter de órgão autônomo. Autonomia, entendida como “independência
administrativa, faculdade de se governar”. O Conselho, criado por lei, terá seu regimento
próprio. Suas atribuições são vinculadas à lei e não tarefas discricionárias impostas pelo Estado.
Uma vez constituído, com seus membros devidamente empossados na forma da lei, o
Conselho terá total liberdade para tomar suas decisões, não se sujeitando ou subordinando
administrativamente a nenhum outro órgão. Importa esclarecer que não se deve confundir
“vinculação administrativa” com “subordinação administrativa”.
Os Conselhos se “vinculam“ administrativamente ao Poder Executivo, encontrando um
locus na administração pública inclusive para os fins de dotação orçamentária para seu
funcionamento. Porém, não se tornam subordinados, o que significa dizer que não se admite
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ingerência política em suas decisões nem controle administrativo de seus atos – ressalvado o
controle finalístico ou de legalidade; não existe poder de avocar as atribuições do Conselho
para nenhum outro órgão, em face da inexistência do poder hierárquico.
Suas decisões, a exemplo do que ocorre com o Conselho Tutelar, só podem ser revistas
por seu colegiado ou por decisão judicial, jamais por outras autoridades administrativas.
(C) PARITÁRIO
Atendendo ao princípio constitucional da participação direta na gestão do poder político,
estabeleceu o Estatuto da Criança e do Adolescente o princípio da paridade ou igualdade entre
os membros que compõem o Conselho. Para sua composição, exigiu a Constituição, como
visto, a presença de representantes da população. Por óbvio, a participação sem isonomia ou
paridade, entre sociedade civil e governo, seria um engodo e estaria maquiando a possibilidade
de intervenção do povo em atos de governo, deixando de atender à vontade expressa do
legislador constituinte, prevista no parágrafo único do artigo 1
o
, da CF/88.
Dessa forma, cada localidade manifestará, em lei, de iniciativa do Executivo, sua vontade
quanto à quantidade de membros que irão compor o Conselho. Para atender ao preceito legal
da paridade, será exigido um número igual de representantes do governo e da sociedade civil.
Sem embargos, essa fórmula se apresenta bem próxima da concepção de Estado proposta
por Antônio Gramsci, quando afirmara que o Estado é igual ao governo mais a sociedade civil
(Estado = governo + sociedade civil).
Assim constituído, ressaltamos mais uma vez a importância da capacidade “propositiva”
dos conselheiros, sobretudo os que venham representar a sociedade civil, pois, embora a
ciência política não se desenvolva como matemática, não resta dúvida de que o resultado
dessa operação estará estreitamente ligado ao potencial de intervenção, capacidade de
mobilização, competência e resolutividade das propostas, de cada “elemento” da fórmula,
delineando-se, ao final, a “cara do Estado”.
(D) CONTROLE SOCIAL
Embora, talvez, se pudesse colocar essa característica como “atribuição” do Conselho, não
resta dúvida de que essa atribuição lhe dá uma nota característica. Além de órgão deliberador
e formulador de políticas, o Conselho exerce uma tarefa de controle social das mesmas ações
e políticas públicas.
Esse controle se deve dar por meio de avaliações das políticas; gerenciamento e fiscalização
do fundo; inscrição de programas e cadastramento de entidades. Dessa forma poderá apresentar
e deliberar propostas retificadoras dos desvios em todos os níveis – inclusive e principalmente
políticoporventura detectados.
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4 AS INTERFACES DOS CONSELHOS COM OUTROS ÓRGÃOS
A COMPREENSÃO DO SISTEMA DE REDES DE SERVIÇOS
Até aqui percebemos que os Conselhos dos Direitos também podem ser considerados
como estratégia de gestão política e administrativa, estabelecida pelo legislador constitucional,
quando enfatizou princípios como descentralização, municipalização e participação popular.
Enquanto estratégia de gestão, não se pode olvidar da necessidade de buscar uma perfeita
harmonia desse órgão com outros órgãos da administração, entidades não governamentais e
espaços políticos, como foros de defesa, organizados na sociedade civil.
Esperar que as respostas às necessidades básicas e direitos fundamentais decorram única
e exclusivamente do Estado – embora seja sua tarefa típicaé postura suicida. O Estado não
existe sem sociedade civil e é nela que está a riqueza das iniciativas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu um “ponto de chegada” em relação às
políticas de atendimento:
“A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um
conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios” (artigo 86, ECA).
Para a garantia, defesa, prevenção e promoção dos diferentes direitos (fundamentais e
especiais) de crianças e adolescentes, por certo exigirá sempre, em face dessa diversidade e
complexidade, uma multiplicidade de ações também específicas, nas áreas de políticas básicas
ou suplementares.
Nessa tarefa vamos encontrar múltiplas formas de organizações e intervenções e de agentes
que necessitam ser identificados, fazendo-se uma verdadeira taxonomia, para que os resultados
das políticas de atendimento sejam dotados de eficiência e resolutividade, sem desperdício
nem pulverização de idéias e ações.
Na tentativa de racionalizar as diferentes tarefas e papéis, apresenta-se, como alternativa
estratégica, a noção de “rede”, para garantir a efetividade das políticas de atenção integral à
criança e ao adolescente.
O Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP desenvolveu pesquisa sobre o tema, e a publicou
no trabalho intitulado “Gestão Municipal dos Serviços de Atenção à Criança e ao Adolescente”,
coordenada pela professora Maria do Carmo Brant de Carvalho. Ali encontramos uma riqueza
de indicadores para uma efetiva articulação de serviços existentes em bases territoriais
(Municípios) capazes de dar uma nova roupagem à gestão social das políticas públicas de
atenção integral às crianças e adolescentes. Seguiremos o esquema do texto, em apertada
síntese, colocando o problema do papel articulador dos Conselhos no seu referido lugar.
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O texto refere-se sobretudo a uma nova forma de gestão social, flexível e participativa,
com maior autonomia para o gerenciamento dos serviços, apagando a rigidez e o centralismo
da tradicional forma de gestão, tão bem explicitada na conhecida e malfadada Política Nacional
do Bem-Estar do Menor.
Estabelece a idéia de negociação e participação de usuários e demais interlocutores nas
decisões e ações envolvidas nas diversas políticas públicas: “Uma nova relação de partilha
entre Estado e sociedade é necessária – isso exige mudanças na cultura das instituições públicas
e seus agentes, e capacidade propositiva da sociedade civil” (Carvalho, 1995).
Enfim, reforça a idéia contida no citado artigo 86, do ECA, esmiuçando as estratégias de
articulação e organização, desenvolvendo o conceito de rede e as identificando dentro de um
microterritório.
4.1 CONCEITO DE REDE
O texto provoca a análise do conceito de rede tradicionalmente desenvolvido na esfera da
administração tanto pública quanto privada. Entendia-se “rede” como “resultado de um processo
de desconcentração de meios de ação de uma organização por meio de unidades (...) É
pressuposto (para existência de rede) que haja uniformidade de procedimentos operacionais
ao longo da rede formada pela desconcentração operacional” [Carvalho, 1995]. Nesse sentido
tradicional, o termo “rede” é utilizado para designar “cadeia de serviços similares, subordinados
em geral a uma organização-mãe que exercia a gestão de forma centralizada e hierarquizada”.
Dá como exemplo do velho modelo de “rede” a chamada rede de ensino básico: as escolas
são as unidades operacionais que prestam um serviço padronizado em todo o Brasil. A política,
as normas e o comando estão centralizados nas Secretarias de Educação dos Estados e no
Ministério da Educação (o texto ainda não dava conta da Lei n
o
9.394/96, que trouxe profundas
alterações nas diretrizes e bases da educação).
A desconcentração, presente no conceito tradicional de rede, pode ser definida como técnica
de organização que consiste em transferir importantes poderes de decisão a agentes do poder
central, colocados à testa de diversas circunscrições administrativas ou de diversos serviços.
Nesses termos, a “transferência de poderes” se dá entre agentes do mesmo “poder central”,
ou seja, simples distribuição interna, sem que tais poderes saiam do controle da administração
central, a qual continuará definindo regras e padrões. “Não há, com a desconcentração,
transferência de titularidade. Os órgãos, que recebem os poderes, devem exercê-los não em
nome próprio, com independência, mas em nome do poder outorgante, sempre a ele
subordinado hierarquicamente” [Cyrino, 1997].
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Essa “desconcentração do poder” não o descentraliza. Permanece central. Os órgãos que
irão exercer as diferentes tarefas ditadas pelo poder central estão agrupados em “redes”, para
prestar os serviços típicos da autoridade central. Essa é a velha e tradicional noção de “rede” .
Em oposição ao velho conceito de “rede”, em que os vínculos se traduziam em relação
hierárquica e de dependência, surge um novo conceito, em que se interconectam agentes,
serviços, mercadorias, organizações governamentais e não governamentais, movimentos sociais,
comunidades locais, regionais, nacionais, mundiais, todos conectados em várias redes e não
apenas a uma única rede.
Citando Marilson Gonçalves, Carvalho afirma que:
“uma rede pode ser o resultado do processo de agregação de várias organizações afins em
torno de um interesse comum, seja na prestação de serviços, seja na produção de bens. Neste caso,
dizemos que as unidades operacionais são credenciadas e interdependentes com relação aos processos
operacionais que compartilham”.
O termo “rede” sugere a imagem de um tecido de vínculos e relações, num processo contínuo
de busca de legitimação por meio de fluxos ativos de informação e interação. Apresenta, então,
como exemplo dessa nova forma de gestão, os “processos de flexibilização, desregulamentação,
terceirização, franchising (serviços franqueados) ou mesmo os processos de descentralização
operados pelo Estado”.
4.2 ESPÉCIES DE REDES
Partindo-se da idéia de que em sociedade é necessário, para a sobrevivência material,
espiritual, moral, social e afetiva, que sejam criadas séries de diferentes laços, vínculos e
relações, surgem, então, “ diferentes redes sociais, que se articulam entre si e se entrecruzam
na satisfação das necessidades humanas”. Dependendo da cada situação concreta (os modos e
os estágios de produção da riqueza; a cultura; as características do Estado provedor e gestor de
políticas públicas) surgirão diferentes redes, garantidoras dessa sobrevivência. Vejamos algumas
redes existentes em uma base local, que se tornam responsáveis pela política de proteção
integral de crianças e adolescentes.
(A) REDES SOCIAIS ESPONTÂNEAS
Nascem no espaço doméstico, ampliando-se, mais tarde, para outros grupos sociais, como
igrejas, clubes, associações. São suas características:
Ø Têm fundamento nas relações primárias, ou seja, face a face, interpessoais e espontâneas;
Ø Identificam-se por ações de reciprocidade, cooperação, solidariedade, afetividade e
interdependência;
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Ø Desempenham papel de apoio psicossocial e material, principalmente quando se trata
de rede primária de consangüinidade; de igual modo prestam a mesma solidariedade para
agregados e conterrâneos;
Ø Atuam como processo que retarda ou mesmo impede que crianças e jovens ingressem
no sistema jurídico-institucional (nem sempre benéfico) de proteção, como abrigos.
Experiências colhidas dessas “redes sociais espontâneas” levaram os Estados do Pará e
Amazonas – até onde conheçoa estimular essas práticas de solidariedade e cooperação.
Programas estimulados, como “Família Solidária”, “Padrinhos Solidários” e outros, fazem que
muitas famílias acolham crianças abandonadas ou órfãs, evitando sua inserção em abrigos
públicos ou privados, e fazem-no gratuitamente.
(B) REDES DE SERVIÇOS SOCIOCOMUNITÁRIOS
Diferenciam-se das redes sociais espontâneas no que se refere ao grau de organização
para atender a demandas coletivas no espaço comunitário. São elas responsáveis por:
Ø Produzir serviços assistenciais de caráter mutualista para os segmentos pauperizados
(serviços ambulatoriais, creches, abrigos, albergues);
Ø Desenvolver mutirões para construção de moradia, manutenção de equipamento e
limpeza urbana;
Ø Organizar clubes de mães, festas comunitárias, cooperativas de compra, produção e
geração de renda;
Ø Implementar serviços de desenvolvimento de cidadania e melhoria ambiental da qualidade
de vida.
(C) REDES SOCIAIS MOVIMENTALISTAS
Nascem no espaço comunitário e social e o desenvolvem. São definidas por:
Ø Defesa de direitos, de vigilância e luta por melhores índices de qualidade de vida;
Ø Instituintes de novas demandas de justiça (coletivas e difusas);
Ø Organizam-se horizontalmente, com poder de decisão partilhado democraticamente;
Ø Constituem-se a partir da articulação de grupos sociais de natureza e funções diversas,
ligados por relações interpessoais que se criam na esfera dos movimentos populares. Como se
trata de “movimentos” e não organizações, essas redes têm a presença de pessoas que atuam
concomitantemente em outras frentes, como pastorais, sindicatos, associações, igrejas etc.
Devemos destacar que o Estatuto da Criança e do Adolescente se deve em grande parte a
esse tipo de “redes sociais movimentalistas”, aglutinando, historicamente, dezenas de diferentes
grupos e lideranças, inclusive institucionais (Ministério Público e segmentos da Magistratura).
Mesmo depois do advento do Estatuto e da criação e implantação dos Conselhos dos Direitos,
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ainda é visível a atuação dessas redes, em foros permanentes. A continuidade da existência de
tais foros significa “a rearticulação ou articulação de redes sociais movimentalistas instituintes,
nos moldes das que viabilizaram as primeiras conquistas”.
(D) REDES PRIVADAS
Seu protagonista é o mercado. Oferecem serviços especializados e amplos, sendo certo
que somente restrita parcela da sociedade tem acesso a esses serviços. Apresentam-se em
todas as áreas: educação, saúde, esporte e lazer, cultura, profissionalização e outras.
Às vezes, via convênios, essas redes podem ser estendidas e chegar até os trabalhadores,
possibilitando-lhes o acesso a outras opções de atendimento. Como muito bem diz a
pesquisadora, “O Estado fica para quem não tem chance no mercado”. Por isso, se a família
tem condições de buscar os serviços no mercado, dispensa a intervenção estatal.
A política de “terceirização” de serviços, como prática da administração pública, tem
encontrado, muita vez, nas redes de serviços privados, a resposta eficiente para algumas graves
deficiências do serviço público, tornando acessível tais serviços às camadas populares.
(E) REDES SETORIAIS PÚBLICAS
O Estado tem deveres e obrigações para com seus cidadãos. Deve realizar os direitos
fundamentais por meio de políticas públicas setoriais, viabilizadas por instituições, como regra.
As políticas públicas setoriais, presentes nas redes, apresentam-se sempre com uma organização
rígida, fechada, pesada, demasiadamente burocrática, pouco eficaz para responder às
necessidades específicas. Tem-se criado o mito de que o Estado só oferece política pobre para
pessoas pobres. E num certo sentido é verdade.
Enfatizando a rede setorial de educação, diríamos, com a pesquisadora, que “a rede escolar
se comporta como uma rede para si e não para seus usuários, o que produz perversamente um
processo de exclusão de sua clientela”. É notório que o ingresso, regresso, permanência e
sucesso na escola dependem, em grande parte, da oferta de outras políticas públicas, que
complementam o processo educacional. A falta dessa articulação e de oferta de outras políticas
sociais tem trazido prejuízos inclusive ao próprio poder público, no que pertine ao seu papel
de provedor dos direitos fundamentais.
Alguns Estados estão enfrentando um grande problema migratório, nos grandes centros,
resultado de grave crise econômica que assola o país. A ausência de uma política pública
agrária – reforma agrária – não assegura a permanência do homem no campo, gerando o fluxo
migratório; a ausência de plano diretor nas grandes cidades, acompanhadas da falta de uma
política habitacional, tem levado às grandes invasões de áreas urbanas; a falta de política
ambiental e de saneamento básico, somadas aos fatores já descritos, levam a graves problemas
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de saúde; a concentração de renda e o desemprego, acompanhados da falta de políticas sociais
de apoio à família, para amenizar o impacto, levam a população à situação de mendicância.
As redes sociais movimentalistas se articulam (os “sem-teto”; os “sem-terra”, e agora os
“sem-rio”, conforme conflito no Alto Solimões, Estado do Amazonas, fronteira com a Colômbia,
onde os povos da floresta – caboclos e índios – entre si brigam pelas águas dos rios; uns
buscam a preservação para a sobrevivência e outros apenas e logo a sobrevivência) e reclamam
providências de um Estado não provedor. E o Estado, infelizmente, não oferece essas políticas
nem articula essas diferentes redes.
No campo da educação é patente essa falta de articulação, gerando problemas graves para
o planejamento. Como pode a Secretaria do Estado ou a do Município, por exemplo, planejar
a oferta de vagas, ainda que baseada em censo escolar, se em apenas algumas horas surgem
invasões em áreas urbanas, acompanhadas, de logo, por reivindicações no sentido de garantir
vaga escolar, de preferência próximo de sua “residência” ?
Como se pode garantir a normalidade do funcionamento das escolas, quando, por exemplo,
em Manaus/AM, em menos de seis meses de período letivo, os pedidos de transferência escolar,
para outras escolas – próximo, é claro, da residência do aluno – ultrapassam a casa dos milhares?
Ou cujas transferências são pedidas em face da mudança contínua de emprego ou do desemprego,
buscando-se economizar o dinheiro do transporte?
A falta de outras políticas públicas ou sua oferta irregular, ou, simplesmente, a falta de
articulação entre essas políticas setoriais públicas, remetem para diversos e graves problemas.
Como veremos em tópico oportuno, o cumprimento do disposto no Estatuto da Criança e
no ECA (por que não dizer, na Constituição Federal) ainda não é realidade. A prioridade absoluta
ainda não ocupou a cabeça dos governantes e governados.
Na falta ou insuficiência dessas políticas públicas, a despeito de se utilizar todos os
instrumentos de garantia de direitos, seria inteligente buscar-se, também e ao mesmo tempo,
as alternativas presentes em diversas formas de manifestação da sociedade civil, espalhadas,
difusas, à espera de um braço hábil para “amarrar” essa verdadeira rede de serviços.
(F) UMA OBSERVAÇÃO SOBRE A ARTICULAÇÃO DAS REDES
A despeito do potencial existente em cada região, disperso nos movimentos espontâneos
(redes sociais espontâneas); nos movimentos organizados (redes sociais movimentalistas);
nas intervenções subsidiárias (redes sociais comunitárias); na oferta privada de serviços (redes
privadas) e de pouco e frágil serviço público, especialmente em cidades pequenas (redes
setoriais públicas), essa visão de “rede”, enquanto estratégia de gestão, ainda não se tornou
uma realidade, embora seja uma expectativa e uma reflexão de muitas lideranças.
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Carvalho, no estudo a respeito das redes, enquanto estratégia de gestão, observou sua
dinâmica, vislumbrando duas formas de “amarração” dessas redes: (1) redes com “baixa
institucionalidade; (2) redes com “alta institucionalidade”.
As do tipo um se comportam movendo-se espacialmente; conectam-se mais facilmente
com todo um conjunto de sujeitos, agentes, cidadãos e serviços existentes em seu território; é
o exemplo das redes de serviços sociocomunitários.
As do tipo dois, suas “conexões tendem à cristalização e as estruturas se amarram de
modo desigual, criando uma malha rígida, burocratizada e pouco eficiente em termos de
serviços”. São exemplos as instituições públicas oficiais e os sistemas de educação e saúde.
Diante desse quadro, vê-se que o processo de descentralização – de gestão social com
participação das sociedades locaisé processo de transição que, além de necessitar respeitar
as condições específicas de cada localidade, deverá, sem escapatória, saber utilizar as diferentes
redes sociais, articulando-as de modo a gerir o Estado com maior flexibilidade e eficiência,
aproveitando todo o potencial existente em uma base territorial. Não podemos pensar no
Estado como o único e legítimo provedor. Pensar assim, é “apenas cumprir a tarefa (necessária
e fundamental) de garantir o reino dos direitos. No entanto, se pensarmos no reino da ética e
do valor, a família, a comunidade e a sociedade são também partícipes essenciais da proteção
à criança e ao adolescente.”
Os Conselhos devem desempenhar papel significativo nessa articulação de redes locais,
sobretudo e desde logo promovendo debates, aproximação dos diferentes segmentos e movimentos
sociais, buscando um reordenamento institucional que promova essa nova gestão social.
4.3 INTERFACE COM OS CONSELHOS TUTELARES
Criados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente com a finalidade de velar pelos direitos
dessa população infanto-juvenil, estabelecidos em lei e, por via de conseqüência, desjurisdicizar
a Justiça da Infância e Juventude, para onde irão apenas os conflitos de interesses e pretensões
resistidas, o Conselho Tutelar representa uma manifestação de responsabilidade da comunidade,
no papel que lhe reserva a lei, quando distribui deveres entre poder público, família, sociedade
e comunidade (artigo 4
o
, ECA).
Suas atribuições estão listadas no artigo 136, do ECA, com denotada conotação administrativa,
buscando atender e resolver os casos que lhes forem encaminhados. Nos termos da lei criadora,
o Conselho Tutelar é órgão autônomo (artigo 131, ECA), portanto, não subordinado
hierarquicamente a nenhum outro órgão, sujeitando-se, tão-somente, ao controle finalístico,
exercido na forma da lei.
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Ausência de subordinação implica sempre a inexistência de poder hierárquico. Desse
modo, o Conselho Tutelar age com independência funcional, decidindo e executando suas
decisões livremente, as quais só poderão sofrer revisão de ofício ou por decisão judicial.
O Conselho Tutelar é exemplo de órgão descentralizado, que, embora sem personalidade
jurídica, como já dissemos, age com total independência funcional em relação ao poder
instituidor. O fato de haver estabelecido a lei que o processo de escolha dos conselheiros
tutelares será feito pelo Conselho Municipal dos Direitos tem levado alguns ao equívoco, no
que se refere a um possível vínculo de subordinação por este exercido sobre aquele. Engano!
Como se disse, não haverá subordinação.
Após escolha dos conselheiros tutelares, nenhuma ingerência política pode ser exercida
sobre seus membros, seja pelo prefeito, secretários, ou membros do Conselho Municipal dos
Direitos. Por outro lado, não significa que nenhuma forma de monitoramento ou controle dos
atos e condutas dos conselheiros tutelares não possa ou não deva ser feito.
Por exemplo, o controle finalístico, ou seja, o controle da legalidade dos atos que devem
atender à finalidade pública para que foram criados, e que devem ser monitorados e corrigidos
quando necessário. De igual modo, a conduta dos conselheiros, que exercem atividade de
relevância pública. Em relação a esse controle nem o próprio Estado – em seus diferentes Poderes
está imune. O que se deve respeitar é o mérito de suas decisões, o qual somente poderá sofrer
modificações externas vindas de decisão judicial, assegurado o devido processo legal.
Importa, agora, realçar os pontos de contato que ligam o Conselho Tutelar ao Conselho
dos Direitos, amarrando-os na mesma rede de serviços municipais. Vejamos algumas situações
concretas:
(1) O Conselho dos Direitos delibera políticas públicas; essas políticas vão se efetivar em
forma de retaguardas para o Conselho Tutelar.
Ø Em face dessa tarefa do Conselho dos Direitos, numa caminhada de “mão dupla”, caberá
ao Conselho Tutelar encaminhar sugestões ao Conselho dos Direitos, a respeito da inexistência
ou insuficiência de serviços básicos, necessários para garantir o atendimento integral de crianças
e adolescentes.
(2) O Conselho dos Direitos inscreve programas e registra entidades que atuam na área de
atendimento de crianças e jovens.
Ø O Conselho Tutelar, ao fiscalizar entidades, deve encaminhar ao Conselho dos Direitos
relatórios que apontem irregularidades.
(3) O Conselho dos Direitos formula e delibera políticas públicas, com base na realidade
de sua cidade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
268
Ø O Conselho Tutelar tem condições de fornecer importantes dados relacionados à
população infantil e juvenil e aos serviços deficientes. De igual modo, sendo o Conselho
Tutelar chamado, por lei, para participar da vida do Município, assessorando o Poder Executivo
na elaboração de propostas orçamentárias para planos e programas de atendimento dos direitos
das crianças e adolescentes (artigo 136, IX, ECA), é necessária e estratégica sua articulação com
o Conselho Municipal dos Direitos, uma vez que a aprovação dos planos e programas, que
irão se traduzir monetariamente no orçamento público, dependem de aprovação do Conselho
dos Direitos.
4.4 INTERFACE COM O MINISTÉRIO PÚBLICO
A Constituição Federal definiu o Ministério Público como instituição permanente, essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, CF).
Vimos em seções anteriores que o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente
deriva diretamente da Constituição Federal, da sua afirmação de que o Poder emana do povo
que o exerce inclusive diretamente nos casos previstos na mesma Constituição, sendo certo
que um desses casos se refere à formulação e ao controle de políticas públicas relacionadas ao
atendimento de crianças e jovens (artigo 204, I e II, c/c artigo 227, § 7
o
).
Não existe democracia sem participação. Se o Conselho dos Direitos da Criança e do
Adolescente é forma de participação na gestão do poder político, com aval constitucional, é
certo, então, que caberá ao Ministério Público, como guardião da Constituição e das leis e,
sobretudo, como encarregado pela defesa do regime democrático, velar pelo regular
funcionamento dos referidos Conselhos.
Ao garantir o funcionamento regular e eficiente dos Conselhos, estará o Ministério Público
garantindo o sistema democrático em uma de suas manifestações. Garantindo-se participação
e democracia, por conseqüência, constrói-se o verdadeiro alicerce para a cidadania, que se
apresenta no texto constitucional como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Participação é sem dúvida elemento constitutivo da democracia e da cidadania. Bobbio já
dissera:
“ Quando no século passado se manifestou o contraste entre liberais e democratas, a corrente
democrática levou a melhor obtendo gradual mas inexoravelmente a eliminação das discriminações
políticas à concessão do sufrágio universal. Hoje, a reação democrática diante dos neoliberais consiste
em exigir a extensão de participar nas tomadas de decisões coletivas para lugares diversos daqueles
em que se tomam as decisões políticas; consiste em procurar conquistar novos espaços para a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
269
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
participação popular e, portanto, em provar a passagem (...) da fase da democracia de equilíbrio
para a fase da democracia de participação”.
Quando se pensava que o voto, enquanto conquista democrática, era a maior forma de
defesa e expressão da liberdade do povo, Rousseau afirmava:
“O povo inglês pensa ser livre mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição
dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso
que faz da liberdade, nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la”.
Vivemos, hoje, a maior conquista dos últimos tempos: o direito de participação. Não se
trata de abordar o tema apenas como instituto de disciplina sociológica e política, mas sim de
verdadeiro instituto de direito, inserido como direito político.
No Direito Comparado é visível desde tempos atrás esse estreitamento entre poder político
e participação popular. É o exemplo da Constituição portuguesa de 1976 (artigo 48, n
o
1 e 112);
a Carta Espanhola de 1978 (artigo 23, n
o
1) ; e agora a Constituição Federal do Brasil.
Sem participação, sobretudo na produção, no usufruto e na gestão política, não existe
cidadania. Nesse caminho se inserem o Conselho dos Direitos e o Ministério Público, como
guardião e promotor das medidas assecuratórias.
Diríamos sem medo que os Conselhos dos Direitos, como canal de participação popular
em atos de governo, são cláusulas pétreas implícitas, na medida em que, à luz do artigo 204,
inciso I, da Constituição Federal, realizam em concreto o ideal constitucional do princípio
federativo e democrático estatuído no artigo 1
o
da Carta Maior.
Daí a importância do acompanhamento do Ministério Público em relação aos Conselhos
dos Direitos. A inexistência de Conselhos Municipais coloca o Município em situação de
inconstitucionalidade por omissão, cabível ação competente manuseada pelo Ministério Público,
perante o Judiciário local.
As políticas públicas formuladas para atendimento de crianças e jovens, sem a deliberação
pelos Conselhos, por igual, torna tais políticas inconstitucionais, portanto, sujeitas, conforme
o caso, às providências do Ministério Público.
A inexistência de políticas públicas, a despeito de existirem Conselhos Municipais, é também
situação de inconstitucionalidade por omissão, na medida em que a Constituição Federal
determina que sejam criados órgãos descentralizados, com participação popular, para formular
políticas públicas de atendimento aos direitos das crianças e adolescentes.
Conselhos do Direitos inoperantes, omissos, impedem que crianças e adolescentes tenham
acesso a serviços básicos, necessários para o exercício de sua cidadania plena. Essa inoperância
e/ou omissão praticada em co-autoria com o poder público deve ser corrigida por ação do
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
270
Ministério Público, toda vez que a própria sociedade esgotar seus meios de controle ou também
deixar de agir na fiscalização dessa tarefa constitucional, pois cabe ao Ministério Público, por
dever institucional e constitucional, zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas
necessárias à sua garantia.
Em síntese, deve agir o Ministério Público se:
Ø Não existir Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, visando compelir o
Executivo a criar, instalar e fazer funcionar tais canais de participação política;
Ø As políticas públicas relacionadas com os direitos das criança e adolescentes não forem
deliberadas pelo Conselho respectivo, hipótese em que o chefe do Executivo não respeita o
Conselho e decide por conta e risco;
Ø Os Conselhos forem inoperantes ou omissos, deixando de exercer seu papel
constitucional e legal, fazendo que não existam políticas e programas públicos ou privados,
pois estarão impedindo o acesso de crianças e jovens à cidadania.
Para fazer valer esses direitos, pode o Ministério Público utilizar-se de toda e qualquer
espécie de ação pertinente (artigo 212, ECA), v.g, ação mandamental, ação civil pública, ação
direta de inconstitucionalidade etc.
4.4.1 A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DOS CONSELHOS
Dissemos, em outra oportunidade, que as decisões contidas em resoluções dos Conselhos
dos Direitos se tornam, enquanto mérito administrativo, manifestação estatal, desaparecendo
sua “paternidade” e impondo sua concretização pelo Executivo. Reafirmamos esse
posicionamento. São verdadeiras manifestações estatais, “mérito”, “opções políticas criativas”
adotadas por um órgão público, visando ao interesse público.
A Constituição Federal reservou certas matérias próprias do Executivo, para serem
formuladas diferentemente do lugar comum. Assim, matérias relacionadas ao atendimento de
crianças e jovens, em vez de serem tratadas por seus órgãos da administração direta, com
exclusividade, por força de norma de extensão contida no artigo 227, § 7
o
, da CF, devem,
necessariamente, passar por uma instância diferenciada de poder, a saber, os Conselhos. Não
ocorrendo dessa forma, haverá inconstitucionalidade.
Dessa forma, ocorre uma transferência do locus onde se dará a escolha ou opção política
a discricionariedade administrativa –, que deixa de ser atividade exclusiva do chefe do
Executivo e passa para uma instância colegiada, fazendo que o ato administrativo se torne um
ato complexo, sujeito a múltiplas vontades, as quais serão, depois, sintetizadas em um único
ato (resolução) exteriorizado como vontade da administração ou vontade estatal.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
271
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
Portanto, a decisão dos Conselhos, enquanto opção política de condutas que visam a uma
finalidade pública, estão dentro da mesma vertente ético-política e ético-jurídica das escolhas
anteriormente feitas exclusivamente pelos chefes do Executivo, sob o pálio da legitimidade,
esta dada diretamente pela Constituição.
A Lei n
o
8.142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema
Único de Saúde, deixou expresso que as decisões do Conselho de Saúde “serão homologadas
pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo” (§ 2
o
do artigo 1
o
).
Como se vê, ao tratar dos Conselhos de Saúde, que têm a mesma origem e fonte formal
que os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, o legislador obrigou o chefe do
Executivo a proceder à homologação das decisões do referido Conselho.
Em relação aos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente seria desnecessária
essa previsão, uma vez que a Constituição Federal impôs, pelo § 7
o
do artigo 227, a submissão
ao Conselho, para deliberação de seus integrantes, de toda política pública referente ao direito
de crianças e jovens.
Portanto, salvo as políticas básicas de caráter universal, as demais políticas públicas dessa
área serão necessariamente deliberadas nessa instância de poder chamada Conselho dos Direitos,
que, como visto, constitui órgão do poder público, descentralizado, com participação popular
paritária aos representantes do governo, e, logo, suas decisões, agora incindíveis, serão decisões
do próprio poder público, não se podendo mais falar a respeito de discricionariedade do chefe
do Executivo em torná-la exeqüível ou não, como veremos mais adiante.
4.4.2 A PARTICIPAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A atividade jurisdicional, enquanto função do Estado, é tarefa a ser exercida pelo Poder
Judiciário, no sentido de resolver conflitos e pretensões resistidas, sendo essa atividade exercida
em regime de monopólio. Daí o princípio do acesso à jurisdição insculpido na Constituição
Federal: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo
5
o
, XXXV, CF).
O papel do Poder Judiciário no equilíbrio entre os Poderes é sem sombra de dúvida de
vital importância; sem um Judiciário forte, livre, comprometido com a Constituição, não haverá
democracia nem esperanças de cidadania e dignidade.
O juiz, por isso, tem que ter consciência de que é um instrumento do Poder e saber que
papel está cumprindo dentro de toda engrenagem: se está atrelado à clássica ideologia da
neutralidade (asséptica), será um funcional instrumento do poder político; se deseja, não
obstante, superar tal ideologia, deve ter consciência critica de sua tarefa, constitucionalizando-
se e transformando-se, assim, em instrumento de realização do valor justiça [Gomes, 1997].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
272
Ensina-nos o doutor em Direito, magistrado Luiz Flávio Gomes:
“O exercício dos direitos fundamentais, do qual deriva a verdadeira cidadania e uma forte
sociedade civil, tem como pressuposto básico o império do ordenamento jurídico. Em um Estado
Constitucional e Democrático de Direito, como o nosso (CF, art.1
o
) todos devem estar submetidos
a este ordenamento, principalmente o Estado, porém só quem pode assegurá-lo em sua plenitude
é o Poder Judiciário, por meio da tutela judicial efetiva”.
E conclui:
“Se para existência de um regime democrático uma das exigências mínimas é o controle dos
poderes e se para a construção das liberdades o requisito primeiro é o império do direito, parece
muito evidente, como estamos assinalando, a necessidade de um Poder que se encarregue de tais
tarefas. Esse Poder é exatamente o Judiciário que no entanto, para garantir a liberdade alheia, deve
antes conquistar plenamente a própria, tornando-se totalmente independente e autônomo”.
Questão que se coloca como desafio para a quebra do ortodoxismo de muitos juristas e
que merece atenção de nossos juízes, pois a eles caberá a última palavra, diz respeito ao
problema da discricionariedade e do mérito administrativo, colocados fartamente na
jurisprudência como óbice ao Judiciário, o que tem permitido verdadeiros desvios de finalidade
e de poder, por parte de muitos governos.
Muitos são os juristas que se fecharam até hoje numa redoma e junto a ela colocaram o que
se denomina discricionariedade administrativa, afirmando sem qualquer outra reflexão ou
fundamento que essa matéria é sempre imune ao Judiciário ou a qualquer outra forma de
ingerência, porque traduz a legitimidade do governante. Com o respeito acadêmico necessário,
mas com a ousadia dos que defendem a dinâmica do Direito, discordo frontalmente dessa posição.
A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E SEU CONTROLE
Neto já definira discricionariedade como
“qualidade de competência cometida por lei à administração pública para definir, abstrata ou
concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais
à prática de atos de execução, necessário para atender a um interesse público específico” (1991).
No entendimento do referido professor, o Estado de Direito pressupõe duas ordens de
referências: a éticopolítica e a éticojurídica. A primeira corresponde ao conceito de
legitimidade (captação política imediata dos interesses da sociedade) e a segunda é entendida
como a cristalização jurídica desses interesses (lei) e que se opera de forma mediata.
Assim, a discricionariedade implica:
(a) competência para integrar a lei (tendo em vista a impossibilidade de serem previstas
em lei todas as hipóteses possíveis de conduta do administrador;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
273
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
(b) opção política criativa (resíduo de legitimidade) para praticar atos não previstos em lei
que atendam ao interesse público;
(c) definir os elementos integrativos dos atos de execução (motivo e objeto), a partir da
noção de finalidade pública.
Vista a discricionariedade por esses aspectos, correta a definição oferecida por Neto:
“ Técnica jurídica utilizada pela administração para uma ação política que precise um conteúdo
de oportunidade e de conveniência, capaz de produzir algum resultado que satisfaça o interesse
público.
Desde os bancos escolares firmamos a certeza de que os atos administrativos que refletem as
escolhas políticas para atendimento de uma finalidade pública, exatamente por terem uma finalidade
pública, se tornam passíveis de controle: o controle finalístico, de legalidade, ou seja, se o ato
praticado (ou não praticado quando deveria ser praticado) atende à essa finalidade pública”.
Vários critérios, doutrinariamente, foram propostos para realizar esse controle finalístico.
Impressiona a mim o critério desenvolvido por Diogo Moreira Neto. Estabelece o administrativista
regras simples mas eficazes. Prende-se, sobretudo, à análise do motivo e objeto do ato
administrativo.
O motivo, que se constitui em um dos pressupostos de fato e de direito do ato administrativo
e o objeto que se constitui no resultado jurídico pretendido, ambos elementos da
discricionariedade, vão encontrar limites nos chamados princípios da realidade e da razoabilidade.
Pelo princípio da realidade, é possível o controle do motivo do ato quanto à sua existência
e suficiência, e o controle do objeto do ato quanto à sua possibilidade. Assim, existência,
suficiência e possibilidade dos motivos e dos objetos são limites da discricionariedade; suas
ausências significarão vício de ilegalidade: a inoportunidade e inconveniência para suas práticas.
E se praticados dessa forma, desviam-se da finalidade pública.
Pelo princípio da razoabilidade é possível o controle do motivo e do objeto, respectivamente,
quanto à adequabilidade, compatibilidade, proporcionalidade, conformidade e eficiência do
ato administrativo ou da escolha política. E do mesmo modo, não sendo observado esse
princípio, ou seja, sendo a escolha inadequada, incompatível, desproporcional, desconforme,
e ineficiente, haverá vício de ilegalidade, porque afastada a finalidade pública do ato, seja ele
comissivo ou omissivo.
Aparentemente, poder-se-ia afirmar que estamos diante de uma colisão de direitos
fundamentais. O primeiro, o direito do chefe do Executivo municipal poder fazer suas escolhas
quanto à conveniência e oportunidade, livremente, por conta do poder constitucional de
autogoverno. Por outro, o direito da população de participar dessa escolha, na forma apontada
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
274
pela Constituição, como direito constitucional de participação política, na qualidade de titular
do poder, que dele emana, na forma do artigo 1
o
e seu parágrafo único, da Constituição Federal,
c/c os artigos 204, I e II e 227, caput e § 7
o
, todos da mesma Constituição.
Ensina Canotilho que, havendo colisão de direitos fundamentais, os quais ocorrem se “o
exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito
fundamental por parte de outro titular” (1993), deve ser solucionado pela “ponderação e/ou
harmonização concreta”, estabelecendo-se uma “relação de prevalência” entre os direitos.
Ainda que na hipótese não haja colisão de direitos, pois restou claro que, em matéria de
criança e adolescente, transferiu-se o locus do poder de escolha para os Conselhos dos Direitos,
apenas para argumentar, diríamos que na harmonização concreta, caso a caso, sem qualquer
empecilho, haveria a prevalência do direito de participação, conteúdo essencial do Estado
Democrático e da cidadania, sobre a discricionariedade, esta mero resíduo da legitimidade,
simples técnica administrativa de escolha de oportunidade e conveniência.
Do exposto, fazemos algumas conclusões:
Ø A discricionariedade é uma técnica de escolha política da oportunidade e da conveniência
para a prática de um ato ; se for oportuno e conveniente, o ato deve ser praticado, sob pena de
desvio de finalidade;
Ø O mérito administrativo é o resultado da escolha do motivo e do objeto (oportunidade
e conveniência); se o resultado respeitou os limites impostos ao motivo e objeto, o ato será
perfeito e válido, não podendo ser questionado pelo Judiciário;
Ø A oportunidade e a conveniência, enquanto dimensões do mérito encontram limites
nos princípios da realidade e razoabilidade em que se constata se o motivo e objeto têm
existência, suficiência e possibilidade para serem efetivamente praticados; se são adequados,
compatíveis, conformes, proporcionais e eficientes para atenderem à finalidade pública;
Ø O desrespeito a esses limites caracteriza a ilegalidadedesvio de finalidade do ato,
comissivo ou omissivo –, ensejando a via judicial;
Ø O controle pelo Judiciário não diz respeito ao mérito, ou seja, ao resultado da escolha,
mas aos seus elementos do mérito, que o antecedem lógica e cronologicamente (motivo e
objeto), os quais não podem se afastar desses limites;
Ø A Constituição Federal de 1988, em matéria relacionada ao Direito da Criança e do
Adolescente, transferiu o locus do poder discricionário, antes concentrado exclusivamente nas
mãos do chefe do Poder Executivo, agora repartido com outras vontades, como ato complexo,
cuja opção política criativa, com legitimidade constitucional, está ao encargo dos Conselhos
dos Direitos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
275
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
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SOBRE O MÉRITO ADMINISTRATIVO
Foi também a Constituição Federal quem criou um princípio que deve ser observado pelo
legislador, pelo julgador e pelo administrador público: prioridade absoluta .
Segue assim que a margem de discricionariedade do governo – chefe do Executivo – fica
reduzida diante de dois imperativos constitucionais: a prioridade absoluta e a necessidade de
formulação e deliberação de certas matérias por outra instância mais democrática, na qual
conjugarão forças e vontades da sociedade civil com o governo, resultando em manifestação
de caráter administrativo público estatal.
Repetindo o que dissemos trata-se de atos complexos, que não terão validade senão se
observadas as vontades distintas, postas em debate e deliberadas pelo órgão competente. Portanto,
além da discricionariedade sofrer a restrição constitucional quanto ao seu apreciador, pois compele
o chefe do Executivo a repartir essa tarefa, antes exclusivamente sua, com o Conselho, ou melhor,
transfere o locus do poder de escolha para esses Conselhos, o mérito administrativo, antes
intangível, é agora, também, resultado de manifestação complexa, e que, por conta do princípio
constitucional da prioridade absoluta, deve ser levado em conta quando das escolhas ou opções
políticas, bem como obrigam o administrador público, conforme o caso, a torná-la realizável.
Tenho claro que o juízo de discricionariedade (análise dos motivos, ou seja, situações de
fato e de direito que deverão dizer que conduta deve tomar o administrador, e do objeto, que
será o resultado jurídico pretendido) é uma operação que acontece lógica e cronologicamente
antes do mérito, visto que este exsurge do juízo discricionário, consistindo, ele sim, na opção
ou escolha política do ato a ser adotado ou não adotado diante daquela situação analisada.
Nesse raciocínio, tratando-se de matéria relacionada a crianças e adolescentes, sempre que
a apreciação dos motivos (juízo de discricionariedade) concluir pela necessidade do ato, deverá
este obrigatoriamente ser realizado porque o conceito de necessidade do ato, nessas condições,
traz implícito o conceito de prioridade absoluta; portanto, o que for necessário será prioritário.
Desse modo, é verdade que a Constituição Federal agregou ao conceito de mérito
administrativo o princípio da prioridade absoluta, razão pela qual, se o administrador público
incluído aqui o próprio Conselho dos Direitos – deixar de observar esse princípio
constitucional, sujeitará o ato à apreciação pelo Poder Judiciário, o qual, embora não aprecie
o méritoa escolha da medida e a conduta de agir ou não agir –, estará julgando a possível
quebra do ordenamento jurídico, a saber, a desobediência ao princípio da prioridade absoluta,
agora, também uma das “dimensões dos elementos do mérito”, a qual, não sendo devidamente
observada, refletirá no mérito maculando-o com vício de inconstitucionalidade, e, portanto,
sujeito à apreciação pelo Poder Judiciário.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A doutrina mais comprometida com o desiderato constitucional de assegurar a todo cidadão
a dignidade, o fim das desigualdades sociais, a solidariedade, como valores superiores e
previstos na Carta Maior, tende a aceitar a tese de que todos os direitos sociais – fundamentais
– são judicializáveis, sobretudo porque se constituem em direitos originários a prestações, que
devem ser providas pelo Estado e, portanto, exigíveis por qualquer cidadão.
Por conseqüência, todos os direitos e interesses difusos e coletivos (não pode existir
maior difusidade do que a que se apresenta em direitos sociais – fundamentais), como educação,
saúde, democracia, cidadania, enfim, políticas públicas, são direitos ou interesses que possuem
essa subjetivação que lhes assegura serem disputados no Poder Judiciário.
Imaginemos a hipótese de omissão deliberativa dos Conselhos, ou, havendo deliberação,
que o chefe do Executivo resolva descumprir a decisão. Em tais casos, seria possível judicializar
a questão, ou seja, promover ação judicial para garantir o cumprimento do comando
constitucional? Sem nenhuma dúvida respondemos afirmativamente.
Se as políticas públicas são necessárias para a realização dos direitos fundamentais, sua
inexistência, seja por falta de formulação, seja por falta de execução, leva a impedir o acesso a
tais direitos. Logo, milita sempre a presunção da subjetivação dos diretos fundamentais, que
se tornam exigíveis pelo simples fato de que são fundamentais.
Comparato (1994) afirmara que:
“ o Estado social não se legitima simplesmente pela produção do direito, mas antes de tudo
pela realização de políticas (policies), isto é, programas de ação. O government by policies em
substituição ao government by law supõe o exercício combinado de várias tarefas, que o Estado
liberal desconhece por completo”.
Canotilho tratou do tema da seguinte forma:
“A defesa dos direitos e o acesso aos tribunais não pode divorciar-se das várias dimensões
reconhecidas pela Constituição ao catálogo dos direitos fundamentais. O sentido global resultante
da combinação das dimensões objetivas e subjetivas dos direitos fundamentais é o de que o cidadão,
em princípio, tem assegurada posição jurídica subjetiva, cuja violação lhe permite exigir a proteção
jurídica. Isto pressupõe que, ao lado da criação de processos legais aptos para garantir essa defesa,
se abandonou a clássica ligação de judiciabilidade ao direito subjetivo e se passe a incluir no espaço
subjetivo do cidadão todo o círculo de situações juridicamente protegidas”.
Os direitos fundamentais ou sociais – que se traduzem por meio de políticas públicas
estão contidos, sem dúvida, em todos os princípios constitucionais que refletem a concepção
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
277
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
do Estado Brasileiro. A Constituição Federal estabeleceu, já no artigo 1
o
, princípios que
expressam a denominada Constituição Material ou Ideológica.
O ministro Celso de Mello, em julgamento de medida cautelar, fez judicioso pronunciamento:
“Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica nem é simples escritura de
normatividade nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos povos e das
nações. Todos os atos estatais que repugnem a Constituição expõemse à censura jurídica...”
“A Constituição não pode submeter-se à vontade dos Poderes constituídos nem ao império
dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se revesteenquanto for respeitada
constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos”.
(STF, ADIMC 293/DF, ministro Celso de Mello. Tribunal Pleno.DJ 1 de 16.04.93)
Essa concepção de Estado – Estado Democrático e Participativocontida já no primeiro
artigo da Constituição Federal, que constitui a chamada Constituição Ideológica ou Material,
não pode ser transgredida, sob pena de inconstitucionalidade. Toda lei, toda norma, todo ato
de poder deve ir ao encontro da realização dessas mais altas aspirações constitucionais, que,
em síntese, são construir um Estado que garanta a “dignidade da pessoa”.
Na análise de tipologias de princípios e regras constitucionais, Canotilho diz que:
“Designam-se por princípios politicamente conformadores os princípios constitucionais que
explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se
condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da Constituição”.
De igual modo, os princípios constitucionais impositivos “designam os preceitos definidores
dos fins do Estado” apontando para as “tarefas do Estado”; são princípios que vinculam
legisladores, sobretudo, na feitura dos atos próprios.
Está expresso como valoração política fundamental do legislador constituinte brasileiro,
como “opção política nuclear”, refletindo a ideologia que inspirou o constituinte – portanto um
princípio político conformador –, a participação direta do povo na gestão política do poder,
ou, simplesmente, democracia participativa, com participação direta do povo, na forma dos
artigos 204, II e 227, § 7
o
, c/c o artigo 1
o
e seu parágrafo único, todos da Constituição Federal.
Está expresso, portanto, que o Estado deve formular (e tem o dever de formular) políticas
públicas em favor de crianças e jovens, no âmbito dos chamados Conselhos dos Direitos.
Também estão expressas, como opção política nuclear, desde seu preâmbulo, a formação de
um Estado que assegure a redução das desigualdades sociais e regionais; a erradicação da pobreza
e marginalização; uma sociedade livre, justa e solidária; o bem de todos, sem preconceitos; a
prevalência dos direitos humanos; a cidadania; a dignidade da pessoa humana e o exercício dos
direitos sociais e individuais, para não citar outros valores indicados no texto constitucional.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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278
Todo esse ideário constitucional só poderá ser realidade se o Estado, por seus governos,
implantar políticas públicas que traduzam, como síntese de todos esses valores, os direitos
fundamentais da pessoa.
O princípio da prioridade absoluta contido no artigo 227 da Constituição Federal – que se
diga, único local e única vez em que a Constituição se refere a tal princípio, evidenciando que
se trata efetivamente de prioridade das prioridades – é princípio constitucional impositivo, na
expressão de Canotilho, pois somente com a atenção prioritária a nossas crianças e jovens,
frente a qualquer outro interesse de governo, é que construiremos esse Estado Democrático de
Direito desenhado na Constituição Federal.
A finalidade pública dos atos administrativos (a discricionariedade, a escolha, a opção
criativa do Executivo que não pode se afastar da finalidade pública) é um dever inerente ao
Estado, gerando em favor do cidadão um “direito originário às prestações” (Canotilho), ou
seja, impõem ao Estado o dever de praticar atos viabilizadores de tais direitos, bem como
assegura o direito de se “cobrar em juízo” essas prestações.
Canotilho afirma que ocorre a existência de direitos originários às prestações quando (1)
a partir da garantia constitucional de certos direitos (2) se reconhece, simultaneamente, o
dever do Estado na criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efetivo
desses direitos, (3) e a faculdade de o cidadão exigir, de forma imediata, as prestações
constitutivas desse direito.
Arremata o constitucionalista português:
“Por outro lado, não se trata de reconhecer apenas o direito a um standart mínimo de vida ou de
afirmar tão somente uma dimensão subjetiva quanto a direitos a prestações de natureza derivativa
(derivative teilhaberechte), isto é, os direitos sociais que radicam em garantias já existentes. Trata-se
de sublinhar que o status social do cidadão pressupõe, de forma inequívoca, o direito a prestações
sociais originárias como saúde, habitação, ensino – originare leistungsanspruchen (...) a efetivação dos
direitos sociais, culturais e econômicos não se reduz a um simples apelo ao legislador. Existe uma
verdadeira imposição constitucional, legitimadora, entre outras coisas, de transformações econômicas
e sociais, na medida em que estas forem necessárias para efetivação desses direitos”.
Disso tudo deriva a afirmativa de que nenhum ato comisso ou omissivo do Estado-Executivo,
no que se refere, sobretudo, ao atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, pode deixar
de ser apreciado pelo Poder Judiciário, se tal ato violar ou ameaçar a violação de direitos.
Ora, a ausência de políticas públicas ou sua insuficiência – por falta de formulação ou de
execução daquelas devidamente deliberadas pelo Conselho respectivo – é violação efetiva de
direitos fundamentais, passíveis de serem conhecidos pelo Poder Judiciário.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
279
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
Contudo, como bem advertiu Gomes, é preciso que o juiz tenha consciência de que precisa
ser um juiz constitucionalista, que busque antes de tudo o ideal de justiça, fazendo valer a
Carta Maior, sob pena de se tornar um mero e funcional agente do poder político dominante.
A atuação do Judiciário em tais questões, longe de se tornar interferência entre Poderes,
significará controle omissivo de um outro Poder, que devia agir e não agiu, portanto, sendo
necessário ser devidamente corrigido.
Maior exemplo do que os Estados Unidos, como pioneiros na adoção do regime de
separação entre os Poderes, nem por isso, também pioneiramente, deixou de instituir o controle
da constiticionalidade das leis emanadas do Congresso, a serem feitas pelo Suprema Corte.
Ressalte-se, ainda, que o controle de atos comissivos ou omissivos do Poder Executivo,
em relação à oferta de políticas de atenção à criança e ao adolescente, feitos pelo Poder Judiciário,
significam, como já explicado, controle da legalidade, na medida em que, se a ausência ou
insuficiência de políticas públicas impede o acesso à cidadania e dignidade (princípios
constitucionais impositivos), estaremos diante de um flagrante desvio de poder, pois o papel
do Estado é voltado sempre para finalidade pública, que, no caso, não estaria sendo atendida.
De tudo que se expôs fica evidente que os Conselhos dos Direitos devem se articular com
o Ministério Público, visando, dentre tantas outras coisas, mantê-lo informado a respeito dos
desvios de finalidades praticados pelo governo; assim como caberá ao Ministério Público
acompanhar as ações dos ditos Conselhos, a fim de que estes cumpram o seu papel social
determinado pela Constituição, sob pena de serem objeto de ações judiciais.
Por outro lado, deve o Poder Judiciário se abrir mais para uma concepção constitucionalista
do Direito, buscando realizar os ideais de justiça estabelecidos na Constituição, livrando-se de
dogmas conservadores que só interessam à manutenção da injustiça social; precisam firmar a
convicção de que não existe neutralidade e que, pela sentença justa, se modifica o mundo
fático além do jurídico.
5 OS CONSELHOS DOS DIREITOS E SUA ARTICULAÇÃO COM OS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
5.1 A ESCOLA, UM ESPAÇO NECESSÁRIO
A educação é um bem essencial à vida e passa por todas as formas de relação do ser
humano com seu cotidiano.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no primeiro de seus artigos, expressou
esse processo de interação de todos os mecanismos de formação do ser humano: a família, a
convivência social, o trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais,
organizações da sociedade civil e manifestações culturais.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
280
O homem se educa vivendo e se relacionando. Vive se educando e se educa para viver
melhor. Por isso, mesmo a educação escolar, que se desenvolve por meio do ensino em instituições
próprias, não deve perder o vínculo com o mundo do trabalho e das práticas sociais.
A educação como função espontânea da sociedade, “onde a educação não estava confiada
a ninguém em especial, e sim à vigilância difusa do ambiente” (Ponce,1981), onde a criança
pela convivência diária que mantinha com os adultos era introduzida nas crenças e nas práticas
de tudo que seu grupo social tinha de melhor, desapareceu.
Em comunidades primitivas nas quais ainda não se experimentava a divisão de classes
sociais, “o ensino era para a vida e por meio da vida; para aprender a manejar o arco, a criança
caçava; para aprender a guiar um barco, navegava”. Claro, porque usava o arco, aprendia a
manuseá-lo; porque navegava, aprendia a dirigir um barco.
O nosso senso comum nos leva muita vez a associar educação à escola e escola à educação.
Daí a pergunta clássica: se em tempos remotos não existia escola, como se explica o
comportamento social uniforme, ou, na expressão de Ponce, como a anarquia da infância se
transformava na disciplina da maturidade?
O mesmo autor nos responde:
“...do mesmo modo, que é óbvio, a criança não precisava recorrer a qualquer instituição para
aprender a falar, também devemos reconhecer como não menos evidente que, numa sociedade
em que a totalidade dos bens está à disposição de todos, a silenciosa imitação das gerações anteriores
pode ser suficiente para ir levando a uma meta comum a inevitável desigualdade dos temperamentos
individuais”.
Naquele tipo de sociedade, em que a consciência de cada um era, na verdade, “um fragmento
da consciência coletiva”, em que a noção de indivíduo ainda não estava formada, tomada que
sim pela noção do coletivo, surgia desde muito cedo um verdadeiro ideal pedagógico, qual
seja, “adquirir, a ponto de torná-lo imperativo como uma tendência orgânica, o sentimento
profundo de que não havia nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses e às
necessidades da tribo”.
Numa sociedade em que não há a apropriação de bens de consumo, em que as práticas
sociais inculcam nos jovens a importância do coletivo, não haverá, também, apropriação do
conhecimento, pois este é visivelmente socializado na convivência natural dos povos. Logo,
não haveria necessidade de professores, pois todos o eram, assim como qualquer um poderia
ser juiz e chefe.
Contudo, a história mudou. Transformando-se essa sociedade primitiva, sem classes, em
sociedade com relações de dominação e submissão, exploradores e explorados, surgindo a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
281
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
desigualdade social, imediatamente a educação como função espontânea desaparece, dando
lugar à desigualdade das educações.
“As famílias dirigentes que organizavam a produção social e retinham em suas mãos a distribuição
e defesa, organizaram e distribuíram, também, de acordo com os seus interesses, não apenas os
produtos, mas também os rituais, as crenças e as técnicas que os membros da tribo deviam receber”.
Surge a apropriação do conhecimento e a consciência de que ele pode ser fonte de
dominação. Não é nosso objetivo estudar a história da educação. Mas, sem dúvida, é importante
lembrar que em outros tempos, por força do modo de produção e organização social, a escola
foi desnecessária. Mas e nos dias atuais?
Questiona-se muito a respeito da “qualidade de ensino”; imputa-se à própria escola parcela
de responsabilidade pela expulsão do aluno e seu verdadeiro “pavor” da escola; afirma-se que
a escola não prepara para a vida; reconheceu-se a escola, em dado momento, apenas como um
grande restaurante; enfim, critica-se a escola, mas não se abre mão dela, como meio para
oferecer a educação formal. Eliminar a escola ou construir uma nova escola ?
Há um desafio para todos nós, pais, educadores, alunos, trabalhadores do ensino: construir
esse “novo espaço” necessário para o desenvolvimento integral das crianças e jovens.
Se não se pode mais confiar a educação à difusidade do meio ambiente e social, a escola
se apresenta necessária, ainda que se não possa desprezar outros espaços nos quais certamente
a educação se manifesta: a família, a convivência social, o trabalho, os movimentos sociais, as
organizações da sociedade civil, a rua, e as manifestações culturais de qualquer gênero.
5.2 EDUCAÇÃO COMO DIREITO DE TODOS
A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional asseguram o ensino fundamental como direito subjetivo, garantindo
o direito de qualquer cidadão exigir essa prestação estatal. Tem direito de acesso, mas também
de permanência, regresso e sucesso na vida escolar. Para tanto, será necessária uma grande
articulação de diversas políticas públicas, como vimos em seção anterior.
Do mesmo modo, vejo a necessidade de articulação com outros agentes e atores sociais.
Garantir que a criança ou o adolescente possa ter acesso à escola implicará não apenas assegurar
“vaga” na rede de ensino público ou privado.
Sabendo-se que muitos jovens se obrigam muito cedo ao trabalho, formal ou informal,
não raro sendo o arrimo de família, impõe-se a formulação de programas de apoio e renda,
com a denominação que se quiser dar, a fim de desestimular o trabalho precoce, grande
empecilho à escola e terrível destruidor da infância.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
282
O poder público tem a obrigação de organizar, manter, e desenvolver os órgãos e instituições
oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e aos planos educacionais da
União, dos Estados e dos Municípios. Isto é o que estabelece a LDB, artigo 11, I.
Para que esses órgãos e instituições sejam adequados às políticas educacionais, impõe-se
que essas mesmas políticas estejam em sintonia com outras políticas públicas, sob risco de
fracassar por completo o projeto educacional. Não existe projeto educacional sem uma visão
sistêmica; sem uma visão interistitucional; sem a percepção de todas as dimensões do homem.
Surge daí a necessidade de uma grande articulação dos Conselhos de Educaçãonos
níveis dos Municípios ou Estadoscom outros Conselhos DeliberativosAssistência Social,
Saúde, dos Direitos da Criança , bem como com a sociedade civil.
6 FAZENDO CUMPRIR A LEI DE DIRETRIZES E BASES E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Ao poder público compete organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais
dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e aos planos educacionais da União,
dos Estados e Municípios. Essa diretriz, prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dá
o verdadeiro contorno do objetivo do legislador: os órgãos e instituições devem se adequar às
políticas e programas educacionais, e não o contrário.
Com isso, deve-se enfatizar o papel dos Conselhos de Educação enquanto órgãos de
formulação de políticas educacionais, além de suas outras atribuições, como a de baixar normas
complementares para o sistema de ensino do seu nível federado. Definir as normas da gestão
democrática do ensino público na rede básica, de acordo com a realidade local, é também
tarefa desses Conselhos.
Um passo importante para garantir essa gestão democrática do ensino está na articulação
da escola com a família e a comunidade local, da qual deverão surgir todos os mecanismos
criativos de integração da sociedade com a escola. De igual importância para garantia dessa
gestão democrática do ensino é a garantia da autonomia das escolas: autonomia pedagógica,
de gestão financeira e administrativa.
Havendo perfeita integração da sociedade com a escola, estarão edificadas as bases para
que essa autonomia possa dar certo, sem desvios, sem abusos, sem omissões, das quais o
controle e a participação da sociedade (pais, alunos, professores e demais atores sociais)
serão os pilares.
Um regimento escolar adequado ao Estatuto da Criança e do Adolescente, à LDB e à
Constituição é fundamental, sendo atribuição do Conselho de Educação zelar por esse
instrumento. Com um regimento democrático, poderemos assegurar a participação de alunos,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
283
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO
Públio Caio Bessa Cyrino
pais de alunos, professores e técnicos na discussão e formulação de uma proposta pedagógica
que satisfaça à realidade local.
Tudo isso dependerá, em grande parte, de uma atuação efetiva dos Conselhos de Educação.
Com tudo demasiadamente enfatizado, importa lembrar que as políticas públicas deverão
atuar de maneira harmônica. Daí que não se pode negar a zona de interseção, o ponto de
encontro, o “nó da rede” de serviços públicos, que obriga a uma prática e uma estratégia de
articulação permanente entre os Conselhos diversos e a sociedade.
7 CONCLUSÃO
O Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, estabeleceu um sistema participativo na
gestão do Poder Político: esta se dá tanto por meio de representantes eleitos para as Câmaras
como diretamente pelo povo, na forma da Constituição e de leis.
Ø Os Conselhos, embora não sendo criação do legislador brasileiro, pois há outras
experiências anteriores, são hoje canais de participação da população na gestão do poder
político.
Ø Enquanto órgãos públicos independentes, com caráter deliberativo e paritário, os
Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente deliberam políticas públicas para a área
da infância e juventude, cuja natureza jurídica é de ato administrativo estatal.
Ø Sendo a decisão dos Conselhos ato estatal, não há o que se discutir quanto à
discricionariedade administrativa, pois esta foi devidamente exercida na forma da lei, quando
da discussão e deliberação da matéria no Conselho.
Ø O princípio da prioridade absoluta, presente na Constituição Federal e no ECA, por força da
Constituição, agregou-se ao conceito de mérito administrativo, na mesma medida em que a análise
do motivo e objeto/oportunidade e conveniência o são, pois são todos “dimensões do mérito”.
Ø Havendo conclusão a respeito da necessidade da prática do ato administrativo, em
matéria relacionada à proteção à criança e ao adolescente, haverá obrigatoriedade da execução
desse ato, pois, sendo necessário, será prioritário.
Ø É preciso organizar um sistema de atendimento à criança e ao adolescente com base na
gestão estratégica de “rede” (redes sociais espontâneas; redes sociais movimentalistas; redes
sociais comunitárias; redes privadas; redes setoriais públicas).
Ø Os Conselhos existentes nos Municípios (Assistência Social, Educação, Saúde e Direitos
das Crianças e Adolescentes) necessitam de uma atuação articulada, pois entre as diferentes
políticas públicas existem necessariamente situações de encontros, de interfaces, que, se não
forem devidamente observados, colocam em risco a eficiência das políticas públicas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
284
Ø Os Conselhos exercem um reconhecido papel de articulador dessas políticas, na medida
em que são órgãos paritários.
Ø O Ministério Público e o Judiciário devem atuar para garantir a existência e o
funcionamento dos referidos Conselhos, pois somente com a eficiente atuação desses órgãos
se pode ter a garantia da participação popular na gestão política do poder; os Conselhos são
canais de expressão da democracia participativa.
Ø A articulação desses conselhos com o Ministério Público e com o Judiciário pode significar
efetividade das deliberações de políticas e programas.
Ø Os direitos fundamentais, objeto de muitas ações e programas deliberados pelos
Conselhos, são direitos subjetivos (e não normas meramente programáticas, como querem os
ortodoxos) que podem ser exigidos perante o Poder Judiciário: são direitos às prestações
originárias.
Ø Todo ato omissivo ou comissivo do poder público que viole ou ameace de violação
direitos fundamentais de crianças e jovens fica sujeito ao controle do Judiciário, que perseguirá
o chamado controle finalístico, ou controle da legalidade, visando garantir a finalidade pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Campus, 1992.
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant. Gestão municipal dos serviços de atenção à criança e ao
adolescente. São Paulo: Instituto de Estudos Especiais da PUC, 1995. Série Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente, n. 4.
GOHN, Maria da Glória. Conselhos populares e participação popular. Serviço Social e Sociedade,
São Paulo: Cortez, 1990.
GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no estado constitucional e democrático de
direito. São Paulo: RT, 1997.
GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade na Constituição de
1988. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
PONCE, Aníbal. Educação de classes. Trad. José Severo de Camargo Pereira. São Paulo, Cortez,
1991.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Trad. Rolando Roque da Silva. São
Paulo: Cultrix, 1978.
MÓDULO III
A EDUCAÇÃO COMO
POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
286
SUMÁRIO EXECUTIVO
OTEXTO DESTACA OS PRINCIPAIS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS que definiram a proteção dos direitos
da infância e da adolescência e seus reflexos na legislação brasileira, apontando a Constituição
Federal de 1988 como a precursora do avanço qualitativo ocorrido no campo da Teoria dos
Direitos Fundamentais.
A nova doutrina jurídica, configurada como uma mudança de paradigma, foi incorporada
à Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que redefine, além do conteúdo, a
gestão e o método para implementar os direitos da criança e do adolescente, na perspectiva da
participação responsável da sociedade, da descentralização político-administrativa e da
municipalização.
O foco da abordagem é a educação, direito universal do homem e do cidadão,
consubstanciado também na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei nº
9.394/96. Com esse suporte legal, o país está formulando e implementando políticas públicas
que lhe permitam enfrentar os graves problemas ainda presentes na área educacional, como o
analfabetismo, a evasão escolar, a definição insuficiente da carreira do magistério, a falta de
qualidade da gestão escolar e do ensino, entre outros. Para tanto, é necessário compreender a
importância da nova LDB que trata especificamente da educação escolar em todos os níveis,
enfocando as questões relativas aos objetivos e ao direito à educação, ao lugar e peso do
público no processo educacional, à organização administrativa e financeira, à formação e
valorização docente, ao acesso e à permanência dos alunos, situando a educação formal no
universo de práticas sociais e institucionais que lidam com o processo de formação humana
em geral.
A análise perpassa as principais questões que são regulamentadas pela LDB, de forma
reflexiva e crítica, destacando seus principais avanços e deficiências. Entretanto, a ênfase é a
relação entre a condição de sujeito de direito com o direito à educação, na perspectiva da
democracia e do exercício da cidadania, a partir da leitura do ECA e da LDB.
Inicialmente, entende-se que ser titular de direito implica agir e superar a alienação, buscar
conhecimento sobre a realidade e organizar-se coletivamente para reagir a determinadas
condições. Requer a participação que corresponde, além do voto, à prática do controle social.
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
287
A educação é um direito humano e um bem fundamental, direito inalienável e
irrenunciável, independentemente do reconhecimento normativo. Aprofundando essa questão,
analisam-se as diferentes concepções de sujeito de direito face às diversas correntes teóricas
do pensamento jurídico. Dimensiona-se a educação não meramente como oferta e, sim, como
demanda, como direito exigível pelos que têm direito estabelecido. Isso requer a participação
de todos, bem como o fortalecimento dos colegiados representativos na definição das políticas
públicas dos Municípios e Estados. Também a atuação dos meios de comunicação, como já
vem ocorrendo, é apontada como relevante no estímulo ao debate sobre o direito à educação.
O texto aponta, inclusive, exemplos, atitudes, campanhas de mobilização social, parcerias e
outros mecanismos para que o direito à educação se torne efetivo. Afirma que a educação,
enquanto serviço, é assunto dos profissionais da área, mas, enquanto direito, é tema de todos
os cidadãos, referenciando o ECA como a lei que cria mecanismos de exigibilidade do direito
público subjetivo à educação. Conclui que o mandato das normas nacionais e internacionais
analisadas é a promoção e a defesa do direito, sendo a educação o direito sobre o qual crianças
e adolescentes têm maior consciência, conforme pesquisa do UNICEF. Sua garantia, entretanto,
depende também de um compromisso político dos operadores jurídicos, e será efetivada se
houver empenho de toda a sociedade na demanda da operacionalização do direito e na
superação dos paradigmas tradicionais.
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
289
8
CAPÍTULO
ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa*
Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima**
SUMÁRIO
1 DOUTRINA JURÍDICA DE PROTEÇÃO INTEGRAL ..... 290
2 EDUCAÇÃO: DIREITO UNIVERSAL DO HOMEM E DO CIDADÃO ..... 291
3 COMPREENDENDO A IMPORTÂNCIA DA NOVA LDB ..... 293
4 SUJEITO DE DIREITO ..... 299
5 EDUCAÇÃO COMO DIREITO ..... 304
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 310
* Pedagogo e consultor nacional e internacional, diretor da Modus Faciendi.
* * Juíza de Direito do Estado da Bahia.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
290
1 DOUTRINA JURÍDICA DE PROTEÇÃO INTEGRAL
Adotou o Brasil, a partir do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, a DOUTRINA JURÍDICA
DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À ADOLESCÊNCIA,
1
que corresponde, historicamente, a um qualitativo
avanço no âmbito da Teoria dos Direitos Fundamentais, que tem sua referência, do ponto de
vista legal, na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
2
A concepção de doutrina na área do Direito é compreendida como o estudo e a elaboração
das normas jurídicas e a interpretação teórica do Direito. Esclarece Bobbio que, na filosofia
política, o termo corresponde a um complexo orgânico de idéias, fruto de uma reflexão metódica.
3
Essa doutrina jurídica constitui um conjunto de princípios de direitos para garantir à
criança e ao adolescente um novo status, diferenciado daquele que, até o final dos anos 80,
lhe era conferido internacional e nacionalmente. A condição de sujeito de direito que emerge
a partir da nova posição doutrinária significa “que a criança e o adolescente já não poderão
mais ser tratados como objetos passivos da intervenção da família, da sociedade e do Estado.
A criança tem direito ao respeito, à dignidade e à liberdade, e este é um dado novo que em
nenhum momento ou circunstância poderá deixar de ser levado em conta”.
4
A Doutrina das Nações Unidas para a Proteção dos Direitos da Infância e da Adolescência
rompeu com a anterior, denominada de “situação irregular”, e está formada por quatro
documentos internacionais básicos: Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de
Beijing), Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil e Regras
Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.
5
Por meio desse conjunto, a concepção de criança e de adolescente como sujeitos de
direito e, sobretudo, sujeitos de direitos fundamentais pretende a substituição, ao longo de um
denso processo histórico-político de mobilização e articulação, da ideologia da defesa social
que constituía o eixo da inspiração doutrinária anterior. Isso quer dizer que criança e adolescente
passaram a ser consideradas pessoas e, independentemente da classe social, deixam de ser
“menores” para representarem, como de fato representam, a expressão do futuro do país.
Futuro que exige trabalho intenso, desenvolvimento de valores, educação com base em respeito
e disciplina, criatividade e determinação, iniciativa e solidariedade.
O olhar em relação à criança e ao adolescente enseja, pela Doutrina Jurídica de Proteção
Integral, uma transformação dos nossos valores: da condição de menores, objeto da compaixão-
repressão, passam à condição de sujeitos plenos de direitos: direito à vida, à saúde, à educação,
1
Ver referências bibliográficas, a partir da página 310.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
291
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
à convivência familiar, ao lazer, entre um elenco de outros atributos que lhe são normativamente
assegurados como cidadãos.
A nova Doutrina Jurídica configurou-se como uma mudança de paradigma, isto é, uma
mudança de forma de pensar a questão, cujo inteiro teor o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) incorporou. Entende-se paradigma, conforme Kuhn, como um conjunto de conceitos que
determina a legitimação, do ponto de vista científico, de determinadas questões teóricas
formuladas no seio da sociedade.
6
A Lei n
o
8.069 / 90 avançou, trazendo para o texto legal a tradução de uma nova concepção,
por meio de dinâmico processo de participação de segmentos da sociedade: mudanças que
foram além do conteúdo e que envolveram profundas redefinições na gestão e no método
para implementar os direitos da criança na perspectiva da descentralização político-administrativa
e da municipalização. Esses princípios constitucionais, já vigentes desde 1988, da participação
da sociedade civil nos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente e nos
Conselhos Tutelares, respectivamente, correspondem ao fortalecimento do próprio Estado
Democrático de Direito mediante o processo de democracia participativa.
Com a proposta do ECA, outros atores sociais, além dos conselheiros municipais de Direitos
da Criança e do Adolescente (CMDCA) e conselheiros tutelares, passaram a integrar a articulação
responsável para garantir os direitos da criança: família, sociedade, Estado, Poder Judiciário,
Ministério Público, profissionais de todas as áreas. Enfim, no exercício da cidadania e no
atendimento à convocação dessa nova proposta de natureza integradora, a questão da infância
e dos jovens não mais diz respeito somente a alguns setores técnico-governamentais. Todos os
segmentos da sociedade são convocados para refletir, amadurecer e agir de forma conjunta.
2 EDUCAÇÃO: DIREITO UNIVERSAL DO HOMEM E DO CIDADÃO
Além do Estatuto da Criança e do Adolescente, a população infanto-juvenil brasileira conta,
no ordenamento jurídico, com o amplo leque da nova LDB: dispondo sobre o direito à educação
e sobre o dever de educar; fixando a organização da educação nacional; indicando as atribuições
da União, dos Estados e dos Municípios; definindo os elementos integradores dos sistemas
federal, estadual e municipal de ensino; tratando da composição da educação escolar, dividindo-
a em educação básica (que abrange a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino
médio) e educação superior; cuidando, ainda, da educação de jovens e adultos que não
tiveram acesso ou que não tenham concluído o ensino fundamental e médio na idade própria,
da educação profissional, da educação especial, da educação superior, dos profissionais da
educação e dos recursos financeiros destinados à educação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
292
No estuário comum dos direitos humanos o país encontra o fortalecimento da sua
compreensão da educação como direito fundamental das crianças e dos adolescentes. Na
Constituição Federal este é um direito adjetivado como “social”, ou seja, “direito de conteúdo
econômico-social que importa nas condições adequadas de vida para todos”.
7
A preocupação com o direito universal à educação remonta à Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa que representou, àquela época,
um avanço filosófico e ético de definir a criatura humana pelos seus direitos e deveres. Em
1948, após as duas guerras mundiais, a recém-criada Organização das Nações Unidas proclamou,
em Assembléia Geral, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que vem sendo divulgada
em diversos países por iniciativas dos governos.
No Brasil, o Programa Nacional de Direitos Humanos, criado em 1995, ensejou a elaboração
do manual Direitos Humanos no Cotidiano (1998). Neste manual, de valiosa expressão-síntese
do compromisso dos homens entre si, aponta Werthein as limitações encontradas na realidade
brasileira:
“Em que pese todo o esforço em prol da educação no Brasil, em particular nos anos recentes,
ainda subsistem problemas, resultado de um quadro estrutural que demora a ser completamente
mudado. O analfabetismo, índices ainda significativos de abandono e evasão escolar, dificuldades
na formação de professores, definição insuficiente da carreira de magistério, correspondendo a
salários insatisfatórios, são alguns dos problemas com que a educação se defronta.”
8
Destaca Tânia da Silva Pereira que, apesar dos avanços na legislação pátria, a educação
escolar não caminha no mesmo passo reconhecendo o caráter perverso dessa “seleção” na
qual os critérios são distantes dos direitos: (...)”há apenas dois tipos de escolauma para a
classe dominante, que conduz à universidade; e outra para os pobres, que limita-se, em geral,
aos primeiros anos de ensino do 1
o
grau”.
9
O lançamento do Programa Toda Criança na Escola, do Ministério da Educação, que
absorveu os princípios da Declaração Mundial de Educação para Todos, resultante da
Conferência de Jomtien, na Tailândia, expressa o empenho do país em corresponder aos seus
compromissos com a formulação de políticas públicas para essa área.
A Declaração de Salamanca (UNESCO/1994) constituiu um marco internacional no tratamento
desse tema, uma vez que conclamava os países a adotarem o princípio da educação inclusiva,
que significa matricular todas as crianças em escolas regulares, salvo fortes e excepcionais
razões impeditivas; em torno desta proposta o Brasil vem elaborando, ao longo dos anos 90
e mesmo em fase anterior , o produtivo impacto das discussões internacionais à luz das
suas próprias experiências e formulações. Enfrenta, para tanto, a necessidade de desenvolver
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
293
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
programas de erradicação do atraso escolar e de outras modalidades mediante (i) a revisão
das experiências nacionais e a comparação com outras iniciativas; (ii) o questionamento das
suas certezas teóricas e metodológicas; (iii) a mudança de valores e de percepção da realidade
numa dimensão prospectiva; (iv) a alteração de comportamento não somente de professores,
diretores, gestores e técnicos mas, igualmente, dos pais e dos estudantes, do Poder Judiciário
e do Ministério Público; (v) a criatividade e a inovação que constituem, enfim, etapas
desafiadoras da mudança de paradigmas no setor da educação.
O Brasil ainda está sanando sua defasagem escolar para chegar à condição de garantir à
população o cumprimento dos princípios que pautam a Lei n
o
9.394/1996, Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Entre esses direitos se encontra estabelecida e legalmente expressa
a igualdade de condições para permanência na escola e a garantia do padrão de qualidade no
ensino.
3 COMPREENDENDO A IMPORTÂNCIA DA NOVA LDB
Para a compreensão da LDB importa, sobretudo, destacar que os princípios do direito à
educação, aí apresentados nos artigos 2
o
e 3
o
, respectivamente, não são distantes daqueles
princípios que envolvem outros direitos sociais: (i) universalidade; (ii) eqüidade; (iii)
integralidade; (iv) intersetorialidade. Por quê? Porque, como direito social, conforme o artigo
6
o
da Lei Magna, a educação deverá ser garantida para todos e de forma equânime, considerando-
se, tal como dispõe o texto constitucional no artigo 205, que o desenvolvimento pleno – integral
– da pessoa é o objetivo primordial da educação (e, secundariamente, a qualificação para o
trabalho), articulando-se, portanto, com as demais áreas do saber.
Harmonizada com essa orientação, explicita a Lei n
o
9.394/96, igualmente, no seu artigo
2
o
, a finalidade da educação: o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. No entanto, esse “fim”, que se inspira
nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, se configura dever comum
da família e do Estado.
Tratando sobre educação escolar, a LDB indica que esta se desenvolve, predominantemente,
por meio do ensino, em instituições próprias, devendo o ensino ser ministrado com observância
de princípios de: (i) igualdade de condições para acesso e permanência na escola; (ii) liberdade
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; (iii)
pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; (iv) respeito à liberdade e apreço à tolerância;
(v) coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (vi) gratuidade do ensino público
em estabelecimentos oficiais; (vii) valorização do profissional da educação escolar; (viii) gestão
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MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
294
democrática do ensino público, na forma dessa lei e da legislação dos sistemas de ensino; (ix)
garantia de padrão de qualidade; (x) valorização da experiência extra-escolar; (xi) vinculação
entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 reflete os preceitos da Constituição de 1988, da normativa
internacional e expressa as próprias mudanças na conjuntura política que se seguiram. No
processo da Constituinte, setores de esquerda e centro-esquerda, liderando a luta pela
democratização do país – com ampla influência na sociedade civil organizada –, constituíram
grupos de pressão, provocando reação de setores empresariais e políticos para garantir seus
interesses na reforma educacional que a nova Carta prenunciava e indicava e que, naquela
época, era exigida pela realidade sócio-econômica do nosso país. As limitações e as contradições
dessa tensão na correlação de forças políticas visando mudanças constitucionais já tinham
reduzido bastante a capacidade de aprovar leis substanciais.
10
Após intensos debates,
expressando a participação de todos os segmentos que atuam na educação e com a colaboração
do senador Darcy Ribeiro, profundamente identificado com a área da educação, da cultura e
dos valores de formação do povo brasileiro, a LDB foi finalmente aprovada
Essa lei é relevante por diversos motivos: normatiza, em âmbito nacional, o ensino formal,
aquele cujo currículo é obrigatório, cujo ensino só pode ser ministrado por professores
habilitados regularmente, que está sujeito aos regimentos aprovados e à supervisão dos órgãos
legalmente competentes e que podem expedir diplomas devidamente validados pelo MEC, pelas
Secretarias de Educação e órgãos de fiscalização profissional.
O conteúdo da LDB restringe-se às questões relativas aos objetivos e ao direito à educação,
ao lugar e peso do público no processo educacional, às questões de ordem administrativa,
financeira, de formação docente, acesso e permanência dos alunos, situando a educação formal
no universo de práticas sociais e institucionais que lidam com o processo de formação humana
em geral. Há, portanto, uma vasta rede de ações educativas e educacionais que não pertencem
ao escopo da LDB, mas que são igualmente importantes no processo de formação para a
cidadania e a vida produtiva em sociedade.
A relação com a formação tanto cidadã quanto produtiva, aspectos centrais na nova
concepção educacional expressa na Lei n
o
9.394/96, redireciona o enfoque pedagógico e as
formas organizacionais do sistema de ensino para objetivos mais pragmáticos, tidos como de
maior praticidade para as características da vida contemporânea, a exigir do cidadão grandes,
velozes e constantes mudanças que caracterizam os processos produtivos atuais e as alterações
relativas ao conhecimento e à tecnologia que as acompanham.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
295
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
No artigo 1
o
da LDB está definida a educação de forma abrangente, estabelecendo a relação
entre a educação escolar, da qual tratará a lei de forma específica, e os outros “processos
formativos” presentes nas relações familiares e na convivência humana, nos ambientes do
trabalho, dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e da cultura em geral,
afirmando-se o preceito da vinculação com o mundo do trabalho e à prática social, balizando-
se as referências para o processo produtivo social e para a cidadania política.
A educação escolar assume, para si, a extraordinária responsabilidade de formar o indivíduo
para que ele possa interagir como pessoa em desenvolvimento na sociedade.
O que ganha em especificidade e objetividade, a nova LDB perde em valorização dos aspectos
filosóficos e humanistas tão necessários para uma formação para a vida. Esta é, segundo Motta,
uma das diferenças marcantes entre a nova LDB e a mais antiga, de 1961, que estabelecia princípios
mais amplos para a educação escolar.
Explicita o autor aludido que idéias relativas ao desenvolvimento integral da personalidade,
relacionando-se com o respeito à dignidade e à liberdade filosófica, científica, religiosa, de
classe e de raça, ao fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional, à
preservação, expansão e democratização do patrimônio artístico, científico e tecnológico como
meios que possibilitam a todos utilizarem suas próprias potencialidades e desenvolver-se, já
tinham sido impressas na lei daquela época, compondo o quadro político-ideológico em que
o reformismo de esquerda e o humanismo cristão tinham grande influência.
A orientação pragmática e a vocação tanto produtivista quanto politizadora da nova LDB
fica mais explícita ao definir e normatizar as diversas modalidades de educação e ensino em
nível básico e superior, pois, conforme o artigo 22, in verbis:
“A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação
comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios paras progredir no trabalho
e estudos posteriores”.
Entretanto, na forma atual, a concepção “produtivista”, tem o mérito de corrigir a tentativa
de 1961, que não chegou a lograr êxito, quando se pretendia que o ensino de 1
o
e 2
o
graus se
concentrasse na formação técnica e profissional, optando-se por uma estratégia mais flexível,
pela qual o sistema educacional se comprometia em fornecer apenas os meios intelectuais e
vivenciais necessários para o progresso pessoal, seja no trabalho ou na continuidade de uma
vida acadêmica.
Enquanto a educação infantil é pensada para ser fundamentalmente complementar à ação
da família e da comunidade nos aspectos físico, psicológico e social, ao ensino fundamental
caberia a “formação básica do cidadão”, instrumentalizando-o com valores, atitudes,
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MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
296
conhecimentos e habilidades pessoais aptas a permitir-lhe um desenvolvimento bem-sucedido
e a formar uma base inicial para a compreensão dos fundamentos éticos, técnicos e políticos
da vida em nossa sociedade.
Importa destacar que, finalmente, a educação infantil passou a ser incluída no sistema de
ensino. Nessa inclusão verificamos uma das maiores aproximações da nova LDB com o artigo
227 da Constituição Federal, isto é, com a própria Doutrina Jurídica de Proteção Integral
constante, igualmente, no artigo 4
o
do Estatuto da Criança e do Adolescente. Afinal, crianças
de zero a três anos que necessitam de creches e as de quatro a seis anos, que devem estar na
pré-escola, são, igualmente, sujeitos de direito à educação: educação infantil que considere a
natureza singular da criança e estimule seu desenvolvimento como sujeito social e histórico,
promovendo-lhe um conhecimento não mimético da realidade mas resultante, sobretudo, de
um amoroso e dedicado trabalho de “leitura”, criação, significação e ressignificação do mundo
que a circunda. Especialista no tema, Naspolini salienta que a proposta é de se fazer educação
e não escolarização.
11
O ensino médio, última etapa do ensino básico, responde – além da própria continuidade
dos estudos – às demandas da sociedade capitalista na qual ora vivemos. Pretende-se que o
ensino, nessa fase, forneça a “preparação básica para o trabalho (...) de modo a ser capaz de
adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores”
viabilizando a “compreensão dos fundamentos científicos-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”, conforme o
artigo 35 da nova LDB.
Pretende-se, também, que o ensino médio prepare indivíduos mais autônomos e críticos
para a atual era. Essa dimensão política fornece o grande balizador para as ações educacionais
e educativas concretas e o viés ideológico com o qual o individualismo socialmente dominante
em nossas relações ocidentais vem sendo incorporado às políticas públicas de educação. Nesse
sentido, a LDB, contemporânea de uma nova organização social, econômica, cultural, na qual
as relações de trabalho estão se diversificando contínua e intensamente, estabelece que os
conteúdos curriculares da educação básica devem atender, explicitamente, à formação do
cidadão e à orientação para o trabalho.
A aproximação filosófica aos conceitos de trabalho flexível e de cidadania indicam a
forma histórica atual que tomou a vinculação genética da educação e do ensino com o sistema
produtivo e político de qualquer sociedade civilizada. Podem, por isso mesmo, diante de sua
relatividade histórica, serem questionados como a única ou a mais legítima forma de dar à
atividade de produção de conhecimento e saber fazer uma referência política adequada.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
297
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
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O conceito de cidadão, assim como o de classe social, pretende ser suficientemente
abrangente e genérico, aplicável a qualquer situação de pessoa, facilmente reificado,
transformando-se em modelos supostamente reais. Mas não há uma cidadania em abstrato,
como um estado de bem-estar ao qual as pessoas teriam direito a usufruir tratando-se, apenas,
de superar eventuais dificuldades impeditivas de alcançá-la. A cidadania, como é algo que se
constrói pela ação autônoma dos indivíduos, condição original da sua concepção cívica, não é
a mesma para todos, pois, no ponto de partida dessa trajetória, na origem dessa jornada, já
existem diferenças marcantes e muitas vezes intransponíveis, em face das enormes disparidades
de renda e de oportunidades existentes em nosso país tanto entre regiões quanto entre as
pessoas.
Admissível o questionamento quanto à idéia de que a flexibilidade do mundo do trabalho
deva ser assumida como principio orientador de um sistema de ensino formal. Em primeiro
lugar, porque tal flexibilidade é eticamente questionável, posto que arrasta consigo uma
sobrecarga de trabalho e enormes pressões psicológicas junto com o desemprego estrutural,
que não é reposto pelo desenvolvimento gerado pelas novas condições de trabalho e produção.
12
Em segundo lugar, porque toma como princípio orientador não uma variável duradoura e
consolidada na organização e no gerenciamento do mundo do trabalho, mas uma variável
circunstancial, que promove enormes problemas sociais e que já vem sendo revista como
estratégia de ação.
Prudente salientar que as formas de organizar e gerenciar o trabalho variam historicamente
de acordo com os interesses de grandes capitais e que a flexibilidade, acenada como um novo
e eterno princípio, funcionou bem antes das grandes fusões empresariais que passaram a
exigir um arsenal de recursos humanos mais “enxuto” e igualmente mais estável e comprometido.
As grandes empresas estão descobrindo que a instabilidade nem sempre é uma boa companhia
para o comprometimento: este sim, uma atitude que mobiliza esforços suplementares e
criatividade. Em suma, ao invés de voltarmo-nos para a idéia da mudança pelo lado da
flexibilidade e incerteza do mundo do trabalho, poderíamos educar melhor focalizando a
transformação pelo aspecto da inovação e da criatividade que ele requer, conforme Lessa.
13
Analisando a nova Lei, Demo afirma que os seus avanços mais importantes se expressam:
(a) no compromisso com a avaliação, quando estabelece que a avaliação está no centro da
organização dos processos educacionais formais, desde o estabelecimento de um sistema de
dados nacional confiável e atualizado, capaz de permitir o diagnóstico e o prognóstico do
funcionamento do sistema educacional como um todo, com vistas à melhoria crescente de
qualidade de ensino e aprendizagem e de desempenho do corpo docente até a flexibilidade na
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
298
avaliação do corpo discente, como vimos acima. Aqui, Demo aponta para a diferença entre o
que ele chama de a qualidade histórica que a escola deve buscar – qualidade entendida como
um “complexo de condições objetivas e subjetivas, uma oportunidade humana que se
desabrocha conforme o nível da competência humana implicada” e que exige permanente
avaliação – da chamada “qualidade total”. Essa chancela, que pelos seus adjetivos fantasiosos
e totalizadores funciona apenas como propaganda, tem um poder mobilizador limitado quando
se trata de acionar seres humanos para a tarefa da formação escolar. Evidente relação entre a
necessidade de “quebrar” velhos paradigmas e propor novos se acha expressa na afirmação de
Demo sobre estar a oportunidade de renovar-se diretamente proporcional à coragem de
questionar-se radical e permanentemente; é por esse caminho que se deve buscar permanente
melhoria das condições de ensino e aprendizagem e dos resultados obtidos; (b) na possibilidade
de formação alternativa dos profissionais da educação; (c) no direcionamento dos investimentos
para a valorização do magistério.
Evidenciada a necessidade de valorização do magistério básico com a efetiva criação do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério, providenciando-se imprimir uma certa transparência ao processo de financiamento
pela exigência constante no artigo 72 da LDB de que “as receitas e as despesas com manutenção
e desenvolvimento do ensino serão apuradas e publicadas nos balanços do Poder Público”.
14
No entanto, existem, segundo o autor, alguns pontos críticos e deficiências na nova lei e,
entre eles, a “Visão relativamente obsoleta da Educação”. Isso quer dizer, na perspectiva adotada
pelo especialista, que ainda não se formou entre a elite dirigente e empresarial brasileira,
pensamento e práticas sociais segundo a regra de que “as possibilidades de desenvolvimento
dependem da qualidade educativa da população”. A LDB expressa essa perspectiva na medida
em que adota uma “visão da educação que não ultrapassa a do mero ensino”.
Apoiando-se nas inovações consolidadas no campo não deveria ter sido a educação restrita
ao ensino e sim compreendida como um processo de aprendizagem que envolve a parceria do
educador e do educando na afirmação e produção de saber. Essa visão ultrapassada educação
escolarque ainda se acha contida pode vir a comprometer aspectos positivos essenciais para
o desenvolvimento da educação no Brasil que foram bem estabelecidos na LDB. É o caso, por
exemplo, da insistência na progressão do aluno que, no contexto de uma concepção
instrucionista da educação, que não “privilegie o esforço reconstrutivo do aluno e o apoio
inteligente do professor e do sistema escolar”, pode se transformar numa progressão que não
contemple a qualidade da aprendizagem e do desenvolvimento do estudante.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
299
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
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4 SUJEITO DE DIREITO
A dimensão de sujeito de direito se configura como uma das questões básicas da cidadania.
O que significa ser sujeito de direito? Segundo o Dicionário de Tecnologia Jurídica, de Pedro
Nunes, é a pessoa física ou moral, civilmente capaz, ativa ou passiva de uma relação jurídica.
O titular de um direito.
15
Interessa-nos salientar que a idéia de titularidade corresponde ao reconhecimento da
dignidade humana, isto é, à possibilidade de reconhecer o direito, de lutar por seus direitos.
Essa possibilidade é identificada mediante a própria consciência de cidadania civil, política e
social. Quando a cidadania está em crise não há identificação dos direitos de cada pessoa.
Segundo Scherer-Warren, a simples situação de miséria, de discriminação ou mesmo de
exploração não produz automaticamente esse reconhecimento ... como reconhecer o direito de
lutar por um direito? Nesse sentido é fundamental a existência de um fator subjetivo, ou seja, o
reconhecimento de sua dignidade humana, que sempre foi solapada nas classes subalternas e
tem suas raízes no sistema escravocrata e colonial.
16
Assim, ser titular de direito implica agir e superar a alienação, a dispersão de forças, a
perda de foco. Implica, igualmente, buscar conhecimento sobre dados da sua realidade,
reivindicar direitos relativos à necessária mudança do seu entorno e significa organizar-se
coletivamente para reagir a determinadas condições.
Conforme explicita Pedro Demo, o maior desafio da cidadania é a eliminação da pobreza
política, que está na raiz da ignorância acerca da condição de massa de manobra. Não-cidadão
é sobretudo quem, por estar coibido de tomar consciência crítica da marginalização que lhe é
imposta, não atinge a oportunidade de conceber uma história alternativa e de organizar-se
politicamente para tanto. Entende injustiça como destino. Faz a riqueza do outro, sem dela
participar.
17
Importa-nos, neste artigo, compreender a relação entre essa condição de sujeito de direito
com o direito à educação na perspectiva da democracia e do exercício de cidadania a partir de
uma leitura das Leis n
o
8.069/90 e n
o
9.394/96, respectivamente.
E por que se configura como oportuna essa articulação? Porque a condição de buscar a
efetivação dos direitos e de vivenciar uma cidadania plena passa, necessariamente, pela
constituição dos indivíduos em cidadãos subjetiva e objetivamente, isto é, pessoas capazes de
se reconhecerem como sujeitos de direitos, de ler criticamente o seu entorno social, político,
econômico e cultural. Ser cidadão hoje, na Era do Conhecimento, implica dispor da assimilação
e do empoderamento facultado, também, pelos Códigos da Modernidade definidos, de forma
sistemática, por Toro.
18
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
300
Ser cidadão, hoje, implica empenhar esforços na superação da dicotomia entre a positivação
dos direitos e a sua efetividade. Tal superação está na pauta do processo democrático como o
de um Estado de Direito, isto é, do Estado que se submete ao Princípio da Legalidade. Mas
esse princípio não assegura, por si só, a existência de um Estado de Justiça Social: é necessário
que, além da submissão aos primados da lei, haja, de fato, a participação da população para
garantir seus interesses e suas necessidades. Participação que se encontra constitucionalmente
prevista no parágrafo único do artigo 1
o
da Carta Magna do Brasil. Participação que corresponde,
além do voto, à prática do controle social, ao acompanhamento da gestão da administração
pública cujos princípios estão definidos no artigo 37 da Lei Maior.
Assim, quando se afirma que educação é um direito (artigos 6
o
e 205 da Constituição
Federal) relacionado com a dignidade humana (artigo 1
o
da CF), com os objetivos fundamentais
do Estado brasileiro (artigo 3
o
da CF) e com a pauta de integração da ações do poder público
que conduzam à metas vinculadas ao processo educacional (artigo 214 da CF), é porque esse
direito se acha contemplado na bússola jurídica do nosso ordenamento. Mas não é suficiente
que, imantado no norte constitucional, o direito ali se mantenha, como uma referência maior
se descolada da dimensão concreta da sua exigibilidade, se distanciado mesmo do cotidiano,
instância do binômio tempo/lugar que supera qualquer proposta de caráter retórico ou
programático.
Destacando a importância da educação, escreve Saviani que ela é inerente à sociedade
humana, originando-se do mesmo processo que deu origem ao homem. Desde que o homem
é homem ele vive em sociedade e se desenvolve pela mediação da educação.
19
Sendo a educação um direito humano (artigo 26 da DUDH e artigo 1
o
da Declaração Mundial
sobre Educação para Todos, Jomtiem, 1990) e um bem fundamental da vidaposto que se
constitui em processo imprescindível para o desenvolvimento , trata-se de um dos valores
essenciais à condição humana, um bem da personalidade e, como tal, é objeto de direito.
Assim, mesmo independentemente de reconhecimento normativo concreto, isto é, positivado,
o direito à educação é inalienável e irrenunciável.
Na teoria do Direito identifica-se uma vinculação entre sujeito e pessoaseja natural ou
jurídica. No entanto, alguns doutrinadores reconhecem que é a pessoa o pressuposto, ou seja,
o suporte fático do sujeito. Lembra Orlando Gomes que é a personalidade que define o sujeito
de direito quando afirma que a personalidade é um atributo jurídico. Todo homem, atualmente,
tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e
obrigações. Sua personalidade é institucionalizada num complexo de regras declaratórias das
condições de sua atividade jurídica e dos limites a que se deve circunscrever”.
20
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
301
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
Personalidade jurídica, segundo o jurista português Ferreira da Cunha, é a qualidade de
ser sujeito de direito.
21
Entende-se que é nessa condição de sujeito de direito que pode ser conferido à pessoa
seu status jurídico. Segundo Beviláqua, pessoa é o ser a quem se atribuem direitos e obrigações.
22
Assim constituído poderá o sujeito jurídico, no plano específico das relações jurídicas, estar
figurando em uma das três posições: (i) como agente de uma ação; (ii) como titular de um
direitoagente ativo; (iii) como titular de uma obrigaçãoagente passivo. Mas a relação
jurídica não se dá em abstrato, está condicionada a um dado objeto jurídico e material (elemento
da relação) em torno do qual a pessoa se constitui como sujeito de direito.
Conforme Beviláqua, o sujeito, também como elemento da relação, é concebido como
exterior ao Direito e como elemento lógico da idéia de Direito constituindo, cada sujeito, o
reconhecimento de um outrorelação de bilateralidadee de uma ordem que é reguladora
de ambosDireito Positivo. Então poderia ser compreendido, consoante explicitado no
pensamento jurídico tradicional, que os direitos subjetivos (facultas agendi) se configuram
como direitos na medida em que expressam, na circunstância de cada relação jurídica, a
particularização, em nível do indivíduo (seja pessoa natural ou jurídica), de um direito objetivo
(norma agendi), isto é, um direito positivado para todos.
Entende Marques Neto que essa particularização tem o sentido de uma apropriação: o
direito subjetivo é incorporado ao patrimônio jurídico ativo, o qual se caracteriza como um
“proprietário do direito”.
23
Philippi, fazendo ampla revisão teórica do tema, apresenta as diferentes perspectivas da
concepção de sujeito de direito face às diversas correntes teóricas do pensamento jurídico.
24
E
a autora identifica que, na visão kelseniana, o sujeito de direito é entendido como suporte de
relações jurídicas, de direitos e deveres, como ponto de convergência das normas e seu
destinatário, assumindo, assim, uma sujeição peculiar que, ao mesmo tempo em que é súdito
da lei, é, igualmente, considerado livre.
Na concepção jusnaturalista o sujeito é um destinatário da norma, embora esta se reporte
e se dirija à consciência desse destinatário. Identifica-as o sujeito, nessa vertente, como um
dado natural, cuja existência não é objeto de questionamentos; um ser consciente, capaz de
obedecer às normas e de optar entre o bem e o mal ... implícita a suposição de uma tendência
inata para buscar o próprio bem e, ao mesmo tempo, uma indução à preferência pelo bem
estabelecido a partir da lei natural ...
25
Evidencia-se, segundo Phillippi, uma concepção reducionista de sujeito, uma compreensão
de sujeito como objeto “adaptável” a uma realidade determinável. Afirma a autora:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
302
“... o sujeito de direito é produzido metaforicamente como sujeito privilegiado de uma
personalidade total, reconhecida, indistintamente, a todo ser humano. Todos são iguais perante a
lei e este fato, nem positivistas nem jusnaturalistas contestam. Esta unificação das particularidades
na concepção abstrata de sujeito do direito reflete, por sua vez, a caricatura de um só sujeito para
todos (...)”
Mas há os que reagem, segundo Philippi, quando se denuncia a ficção do sujeito do
direito como categoria integrada, por sua vez, à ordem jurídica que, igualmente, se configura
como uma montagem de ficções, responsável, entretanto, pela instituição de uma sociedade
heterônoma, na qual as leis, os princípios, as normas, os valores, os significados são dados “a
priori” visando sempre dar ao ser, ao mundo, à sociedade uma significação exclusiva, uma
imagem eterna, um simulacro.
Atribuindo a possibilidade para distinção desse universo imaginário do mundo das trocas
humanas cotidianas, a autora identifica a inscrição da autonomia, de uma ressignificação, ou
seja, da possibilidade de recolocar, de refazer sempre novas leis, de insistir, portanto, em
novos sentidos.
Esses novos sentidos, segundo vislumbramos, correspondem mesmo à compreensão plena
do que venha a ser sujeito de direito em relação aos direitos sociais. A titularidade de um
direito não pode ficar restrita à expressão legal mas, sobretudo, deve configurar e desenhar
uma ponte de exigibilidade para o continente do real e da conquista dos direitos fundamentais.
Se o homem não é compreendido como sujeito, a retórica desenvolvimentista, mesmo em
esforço, não encontra o maior objetivo do processo social: o bem-estar do ser humano. E, da
mesma forma, se o homem não é entendido pelos juristas como sujeito histórico, autor individual
e/ou coletivo das mudanças do seu tempo, da superação das exclusões do seu tempo, também
o processo de transformação do direito correrá o risco de retardar o encontro com a sua
destinação: a justiça para todos. Correrá, portanto, o risco de continuar na senda estreita do
exclusivo elogio à demanda individual.
Analisando a contribuição teórico-jurídica de Philippi podemos inferir que, de forma
analógica, também os modelos contratualista e naturalista da cidadania, mesmo que
diferenciados ideologicamente, reconhecem a existência de uma só identidade política no
espaço público: identidade comum a todos os membros.
Para nosso olhar em relação ao direito à educação, a ênfase relativa à compreensão dessa
categoria “sujeito de direito” cada vez mais se impõe porquanto nos permita, mediante a sua
explicitação de caráter jurídico-filosófico, também entender a perspectiva da exigibilidade do
direito à educação por meio do ferramental específico. Afinal, ninguém que seja sujeito de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
303
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
direito pode ser excluído do direito a que tem prerrogativa pela sua própria condição. Muito
mais do que um jogo de palavras, muito mais do que um esforço de superar a educação
meramente como uma “oferta”, há que se dimensionar a “educação como uma demanda”, ou
seja, como direito exigível pelos que têm direito positivamente estabelecido.
Destaca Leca
26
o conceito de “pertencimento” a um determinado grupo ou nação com
exclusão “dos outros”como se possível fosse uma solidariedade recortada para um grupo ao
qual eu pertenço e que me acolhe e uma outra atitude para os de fora...
A essa concepção se contrapõe, na atualidade, o modelo comunitarista da cidadania, que
propõe a tolerância entre os povos, o reconhecimento e a defesa dos direitos fundamentais e
universais, a definição de novas ordens econômico-comerciais com base em propostas jurídicas
igualmente “comunitárias” que atendam a interesses múltiplos e mantenham a singularidade
das nações e dos membros envolvidos: evidências se acham na experiências do Direito
Comunitário Europeu.
Essa emergência de novas formas de buscar ordenar a sociedade, os seus diversos interesses,
conter os conflitos e iniciar ações afirmativas e atitudes propositivas corresponde a uma dinâmica
contemporânea aos novos Estados de Direito e/ou dos Estados Democráticos de Direito. Nestes
se identifica desde a maior organização da sociedade civil, com a participação do chamado
terceiro setor, atuando em parceria com o governo em áreas de políticas públicas sociais
básicas, até a busca de fortalecimento das novas institucionalidades democráticasórgãos
colegiados em que a sociedade, por meio dos seus representantes, juntamente com representantes
governamentais, discutem, planejam e definem prioridades para as políticas públicas do
Municípios e dos Estados.
Também se identifica, nos últimos anos, como expressão do processo de superação dos
modelos autoritários, a emergência sociológica dos sujeitos coletivos no plano dos movimentos
populares que, segundo Wolkmer, constitui a possibilidade de “mudança da sociedade em
função de um novo tipo de sujeito histórico (...) um sujeito-histórico-em-relação, desalienado
das condições determinantes de sua dominação e, por isso, emancipado”.
27
A natureza dessa “emancipação” se relaciona, igualmente, com uma concepção de sujeito
de direito que, consciente dos direitos que lhe tocam e dos direitos que dizem respeito aos
diferentes segmentos sociais, age de forma criativa e inovadora, portador de um novo “desejo”
que corresponda não somente ao seu imaginário individual, não apenas ao seu interesse, mas,
também, ao imaginário social convocante: aquela Pasárgada onde não chegamos ainda mas
onde, nós já sabemos, existe o respeito ao interesse superior da criança e do adolescente
Princípio da Prioridade Absoluta do artigo 227 da Constituição Federale onde a educação é
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
304
direito, a saúde é direito assim como assistência social: para todos e, sobretudo, para crianças
e adolescentes. Uma Pasárgada onde tenha importância a esfera pública da regulação como
um espaço que confere a todos o reconhecimento da sua alteridade.
Esse “imaginário”, que transcende o interesse do particular, constrói, na perspectiva do desejo,
uma articulação, uma integração social, isto é, um campo sociológico, político e jurídicoe também
econômicono qual se torne cada vez mais possível o desenvolvimento de ações afirmativas.
Temos expressado esse imaginário social convocante, numa declaração de visão bastante
simples: Construir um país onde toda criança tenha o direito de ser criança e onde todo
adolescente possa olhar o futuro sem medo, porque está preparado para ele. Terra futura que
não exclui nem apavora, que não limita nem amedronta mas que incentiva a curiosidade, o
desenvolvimento, a superação e o enfrentamento.
Terra futura que nos convoca e cujo mapeamento passa pela nossa ação atual, concreta e
emancipatória, solidária e criativa, para superar o mero reconhecimento doutrinário da existência
de um direito fundamental à infância, fixando não só o seu fundamento subjetivo “face à
importância para o indivíduo, sua formação e desenvolvimento de sua personalidade”, mas,
igualmente, um fundamento objetivo “face ao interesse público, necessidade social e até a
evolução da comunidade na compreensão de resguardar um período imprescindível ao ser
humano e que, após ultrapassado, jamais poderá ser resgatado”.
28
Terra futura que nos convoca para transformar esse reconhecimento doutrinário em pauta
de política pública de educação a partir da idéia de que cidadania e direitos humanos podem
ser construídos interdisciplinarmente, com um referencial comprometido com mudanças,
priorizando a relação de seres capazes de relações interativas e produtivas em aprendizagem
mútua, ensejando a definição de uma nova relação indivíduoEstado.
Terra futura que hoje se pode modelar, no processo democrático de escolha dos diretores
das escolas, dos centros de saúde, do controle social do orçamento, do acompanhamento das
verbas do FUNDEF, com participação dos estudantes e dos seus pais na conservação dos
equipamentos escolares, na consciência do que significa a “res publica”, onde o interesse de
todos seja convocante para conferir realidade à paisagem pela qual quero/queremos caminhar
dentro do prédio escolar, junto ao parque, próximo à rua e dentro do transporte urbano.
5 EDUCAÇÃO COMO DIREITO
A experimentação e a reinvenção do cotidiano, em cada bairro, em cada município, em
cada microrregião, vai ressignificando o discurso hegemônico dos direitos humanos em sua
formalidade abstrata, vai redimensionando-o, com tal poder de convocação à vida, com tal
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
305
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
força de sentido comunitário e integrador de modo a inserir aquilo que um dia fora discurso
como parte integrante da vida do homem em formação, fazendo parte das práticas sociais e,
sobretudo, tomando forma de instrumento normativo através do refluxo imperativo da
reivindicação do homem na busca da implementação de melhores condições de vida.
Tal circunstância só pode vir a se configurar plenamente realporquanto já dispõe de
base jurídica que lhe confere substânciamediante a transposição do atual modelo de direitos
humanos formais para um novo modelo tanto prático quanto teórico. Modelo no qual os
sujeitos conheçam e busquem a proteção e a efetividade de seus direitos e se articulem na
construção do conhecimento por um viés metodológico interdisciplinar, priorizando as relações
humanas vividas no âmbito da escola, da comunidade e da sociedade.
Salienta Pereira que “o exercício de Direitos Fundamentais não pode ser assumido como
uma concessão de um estado paternalista, mas, antes de tudo, uma parceria entre o Poder
Público e a sociedade, que deverá gerar a possibilidade de fazer valer direitos ainda não
reconhecidos pelas instituições políticas e sociais”.
29
A partir da Declaração Universal dos Direitos do Homemque pode ser comparada a um
sistema solar, posto que em torno dela giram os demais direitostem-se o próprio mecanismo
de especificação dos direitos: da mulher, do idoso, da criança e do adolescente, do portador
de deficiência, entre outros, que se desprendem desse “sistema” de natureza macro e estruturante.
Os direitos humanos, que são universais, indisponíveis e indivisíveis, podem ser
concretizados, sobretudo, mediante duas vias: (i) a da efetivação das políticas públicas; (ii) a
via da solidariedade social.
Essas políticas públicas não se confundem com a chamada política de governo, pois o
governo é um conjunto coordenado de programas de pessoas em razão do processo eleitoral
democrático que assume por um período o controle do Estado. E o Estado se posiciona por
intermédio da Constituição Federal e do seu repertório normativo.
A via da solidariedade social não pode ser ignorada, pois envolve diversificadas ações de
organizações: aquelas que só realizam atividades de atendimento; as organizações que realizam
atividades de atendimento e de defesa de direitos; as que só realizam atividades de defesa de
direitos assim como as organizações que atuam em rede para defesa de direitos e, finalmente,
as organizações que agem em rede para atendimento.
30
Quando o Estado legisla, pelo Poder competente, também se obriga com a eficácia da
norma, isto é, tem de criar mecanismos para que o estabelecido no Direito positivado se
configure em realidade, em implementação de direitos e de deveres, conferindo ao cidadão os
instrumentos de exigibilidade. Assim, o Estado cria determinados órgãos novas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
306
institucionalidadese o órgão criado tem uma missão institucional e a própria lei se transforma
num mandato do órgão.
Esses órgãos são novas institucionalidades democráticas de expressão da capacidade
organizativa e participativa da sociedade, tais como os Conselhos Municipais de Direitos da
Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares, os Conselhos Municipais de Saúde (Leis
n
os
8.080/80 e 8.140/90), os Conselhos Municipais de Assistência Social (LOAS).
Assim, mediante a colegiabilidade busca-se, também, exercitar o mecanismo da exigibilidade
de direitos fazendo que a própria população exerça a demanda concreta e direta desses direitos:
ou por meio de instrumentos jurídicos específicos ou, ainda, por meio da intervenção
constitucionalmente prevista, do promotor de Justiça no exercício da sua função de defensor
da sociedade (arts. 127 e 129 da CF).
Essa forma de fazer operar o direito à educação resulta do novo paradigmaigualmente
contido no corpo constitucionalseguindo os princípios da descentralização, da mobilização
e da participação. Assim, a política de Estado para educação, que é uma política pública, deve
assumir e operacionalizar o determinado na Lei Magna e no artigo 2
o
da Lei n
o
9.394/96.
A política pública de educação inclui e ultrapassa a política de governo, isto é, a política
pública de educação é diferente da política educacional de governo porque não é só um
programa de governo: inclui também atores da sociedade, ou seja, é, também, dever da
sociedade. Trata-se, em verdade, de um espaço de atuação da cidadania. E a política de governo
é diferente da política de Estado porque a primeira corresponde a um conjunto coordenado de
programas em razão do processo eleitoral democrático que elege pessoas para assumir, por
um período determinado, o controle do Estado.
A atual concepção de política pública permite abordar, como afirmamos, a educação de
duas maneiras diversas que implicam medidas igualmente diferenciadas: (i) como oferta e (ii)
como demanda. Ora, como oferta, corresponde à perspectiva da garantia da oferta de educação
(serviços, equipamentos, professores, realização de concursos, qualificação profissional, oferta
de vagas e de todos os elementos concretos, regimentais, institucionais, asseguradores do
direito à educação). Como demanda, corresponde, portanto, ao exercício da condição de sujeitos
de direitos. Esse exercício, de natureza cidadã, enseja desde a aplicação do artigo 5
o
, inciso
XXXIV da Carta Magna, através do direito de petição de uma mãe que não encontrou vaga em
escola especial para o seu filho que é portador de deficiência auditiva, visual ou de outra
natureza, até a representação ao órgão do Parquet para garantir a instauração de inquérito
civil visando apurar a responsabilidade do transporte escolar de adolescentes de área rural
que circula sem qualquer condição de segurança para os passageiros.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
307
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
Essa demanda corresponde, igualmente, tanto à expedição de ofício do conselheiro tutelar
para o Ministério Público sobre a discriminação, em uma escola particular, de uma criança cujo
nome do pai não consta no registro, quanto à organização de uma associação de pais e mestres
para promover o controle público da aplicação da verba destinada ao FUNDEF.
Também os meios de comunicação podem colaborar assumindo, como já vem ocorrendo
no país, a privilegiada e necessária condição de veículos educativos. Todos os meiosjornais,
rádio, televisão e, mais recentemente, a Internet – cumprem uma especial função na medida
em que possibilitam à sociedade o acesso ao conhecimento, podendo estimular o debate em
torno do direito à educação.
O tema vem ganhando destaque nos jornais brasileiros e mereceu a realização da pesquisa
Mídia e Educação: Perspectivas para a Qualidade da Informação, realizada pelo NEMP-CEAM-UnB
(Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares,
da Universidade de Brasília), por solicitação da ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da
Infância), do FUNDESCOLA (Fundo de Fortalecimento da Escola), do Instituto Ayrton Senna, do
MEC (Ministério da Educação) e do UNICEF.
A ANDI mostra, em seu site oficial, os resultados e a análise dos dados dessa pesquisa,
destacando, entre outros pontos, que, dos 62 jornais analisados – uma amostra de 1.763 artigos,
colunas, editoriais, notas e reportagens veiculadas em 1997 e 1998 –, a média é de uma matéria
de educação publicada a cada dois dias.
A pesquisa aponta, no entanto, domínio de pautas pelo governo, com predominância de
notícias do MEC sobre os assuntos das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação – na
proporção de ¾ para ¼ de matérias –, não só pelo montante de assuntos relacionados a esse
ministério – Provão, ENEM, entre outros – como, igualmente, pela estrutura eficiente de sua
assessoria de imprensa.
A pesquisa conclui, ainda, que a imprensa vem se especializando na área, com o
reaparecimento das editorias de educação, a multiplicação de cadernos semanais e colunas
dedicadas ao assunto e a especialização de repórteres nessa área.
O exemplo da ANDI serve, essencialmente, para focarmos a importância da participação da
imprensa na divulgação do direito à educação e na construção de uma cultura comunicacional
relacionada ao tema.
Quanto à participação da imprensa nesse processo, o manual Direitos Humanos no Cotidiano
enfatiza a necessidade da divulgação de documentos internacionais promotores da educação
em todos os níveis e a possibilidade de se desenvolverem campanhas de estímulo à adoção de
crianças em programas de bolsa-escola, por meio de slogans que estimulem a adesão da
sociedade à causa.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
308
O manual lista as atitudes que podem ser tomadas quotidianamente pela sociedade para
que o direito à educação se torne efetivo. Entre as sugestões, destacam-se: (i) cobrar dos
governos das três esferas administrativas o cumprimento do direito à educação; (ii) incentivar
pessoas com quem convivemos a freqüentarem a escola e matricularem seus filhos,
acompanhando seus estudos; (iii) desenvolver campanhas e atividades voltadas à eliminação
do trabalho infantil; (iv) multiplicar experiências como os programas do governo federal
Alfabetização Solidária e Universidade Solidária.
Quanto ao poder público, o manual também sugere algumas atitudes que estão pautadas
no conceito de educação continuada e no exercício da cidadania, tais como: (i) desenvolver,
em parceria com a sociedade e com apoio dos meios de comunicação, campanhas voltadas à
promoção da consciência do direito de todos os cidadãos ao acesso à escola; (ii) desenvolver,
em parceria com a sociedade e por intermédio de comunidades e organizações civis e religiosas,
projetos de educação para idosos, apresentando-lhes novas perspectivas e estimulando o
exercício da cidadania; (iii) realizar, em colaboração com universidades, centros educacionais
e sindicatos, programas de educação permanente para trabalhadores; (iv) desenvolver programas
de prestação pública de contas, segundo o princípio da publicidade ou transparência, explícito
no artigo 37 da CF.
As campanhas de mobilização social, como as de divulgação dos princípios do ECA, podem
ser feitas em parceria com instituições religiosas e entidades de defesa dos direitos humanos,
e servem, acima de tudo, para explicitar ao público a força da exigibilidade dos direitos mediante
um ferramental que pode ser divulgado em linguagem acessível e envolvente.
Afinal, a dimensão teleológica da política pública de educação no Brasilampliar e
qualificar a educação para todos os brasileirosexige que se consolide, ao lado da oferta,
também a prestação do serviço educacional (rede pública, rede comunitária, escola filantrópica).
Atualmente, a principal regulamentação da demanda da educação básica no nosso país se
encontra no Estatuto da Criança e do Adolescente porque a Lei n
o
8.069/90 cria condições, ou
seja, cria mecanismos de exigibilidade do direito público subjetivo à educação. A educação,
enquanto serviço, é assunto de especialistas da área de educação, mas, enquanto direito, é
assunto de todos os cidadãos para os quais se constrói, no tempo presente, a terra futura.
A política de atendimento definida no artigo 86 do ECAque foi concebida como um
conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípiospode ser compreendida mediante a visualização de uma
pirâmide dividida em quatro partes:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
309
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO
Antonio Carlos Gomes da Costa e Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
(a) na base da pirâmide podem ser visualizadas as políticas sociais básicas. Estas são
políticas de cobertura universal, e a política de educação está aí inserida;
(b) sobre as políticas sociais básicaspara todosse encontram políticas e programas
de assistência social de caráter supletivo ou de natureza compensatória. Estas são destinadas
às pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade, seja temporária ou permanente.
Assim, não são para todos, mas para destinatários específicos que requeiram cuidados em
dadas circunstâncias;
(c) no terceiro “andar” da pirâmide encontram-se as políticas de atenção especial destinadas
às crianças e aos adolescentes que se encontram em situações de risco;
(d) no topo da pirâmide podem ser “visualizadas” as políticas de garantia, isto é, ações
garantidoras dos direitos das crianças e dos adolescentes que estão com os seus direitos
ameaçados por circunstâncias diversas.
31
O conteúdo do caput do artigo 227 da Constituição Federal – igualmente contido no
artigo 4
o
do Estatutoapresenta dois grandes eixos: (a) o eixo de promoção de direitos
(direito à sobrevivência: à vida, à saúde, à alimentação / direito ao desenvolvimento: à educação,
à cultura, à profissionalização, ao lazer / direito à integridade: à liberdade, ao respeito, à
convivência familiar e comunitária); (b) o eixo de defesa (defesa da criança e do adolescente
contra negligência, omissão, crueldade, opressão, discriminação.
O primeiro eixo promove o benefício, assegura os direitos que ali são reconhecidos,
enquanto o segundo eixo promove o direito.
Examinando-se o conjunto da normativa internacional referida, do artigo 227 da Constituição
Federal, da Lei n
o
8.069/90 e da Lei n
o
9.394/96, respectivamente, identificamos que o mandato
dessas normas é a promoção e a defesa: este é o mandato de quem quer atuar no lado da
demanda promovendo sobrevivência, desenvolvimento, integridade e defendendo a criança
de negligência, crueldade, opressão e discriminação
Para tal fim é fundamental que sejam observadas as quatro grandes linhas estabelecidas
no Estatuto da Criança e do Adolescente e que “formam” a pirâmide cuja visualização sugerimos:
(i) políticas sociais básicas; (ii) políticas de assistência social; (iii) políticas de proteção especial;
(iv) políticas de garantias de direitos.
Cláudio Moura Castro afirma que o problema da educação é o da qualidade do ensino
básico e que esta é uma questão essencialmente política. Entendemos que seja essencialmente
política porquanto envolva tanto a oferta quando a demanda (exigibilidade a partir do direito
de exercitar a cidadania).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
310
Pesquisa visando identificar a compreensão de crianças e adolescentes sobre os seus
direitos foi realizada pelo UNICEF em outubro e novembro de 1999. Foram abordadas 12 mil
crianças e adolescentes de níveis econômicos alto, médio e baixo residentes em áreas urbanas
e rurais de 20 países latino-americanosentre eles, o Brasile Caribe.
O primeiro relatório que analisa os dados dessa pesquisa, intitulado Voz de los Niños,
Niñas y Adolescentes en América Latina y Caribe, traz dados significativos, tal como o fato de
ser a educação o direito sobre o qual crianças e adolescentes têm maior consciência (56%). Em
seguida, a pesquisa alinha outros direitos reconhecidos pelos jovens entrevistados: (i) direito
de não ser maltratado (27%); (ii) direito à saúde (22%); (iii) direito ao lazer (22%); (iv) direito
à liberdade de expressão (18%); (v) direito de ser amado (10%); (vi) direito a ter um ambiente
são (8%); (vii) direito a escolher o que gosta (6%); (viii) direito à informação (5%).
As crianças e os adolescentes revelaram a consciência de serem sujeitos desses direitos
que a normativa lhes garante.
Assim, a educação, que é uma política social básica porque é direito de todos e dever do
Estado, será garantida quando, além da família, da sociedade e do Estado, os operadores
jurídicospromotores e magistrados, defensores públicos e profissionais do Direito estiverem
comprometidos como agentes políticos, ou seja, como cidadãos investidos no compromisso do
serviço da justiça, na garantia efetiva dos interesses superiores da criança e do adolescente:
porque estes são sujeitos de direito numa dimensão transdisciplinar e, igualmente, sujeitos de
construção da terra futura.
A educação, que é uma política pública de cobertura universal e que está vinculada ao
próprio direito básico da pessoa ao desenvolvimento, será tanto mais respeitada quanto
maior for o empenho da sociedade na demanda concreta de operacionalização do direito
positivado e quanto maior for a superação dos paradigmas tradicionais que permeiam e
empobrecem a leitura da lei.
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MÓDULO IV
A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
314
SUMÁRIO EXECUTIVO
PARA PROMOVER E GARANTIR JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO, é indispensável uma visão compreensiva do
novo ordenamento constitucional e legal, bem como dos preceitos e tendências das políticas
públicas do setor. Atualmente, os operadores do Direito podem contar com uma legislação
mais explícita sobre direitos e deveres, competências e responsabilidades, controle e avaliação
na área educacional, cujo carro-chefe é a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LDB, que vem regulamentar e aprofundar muitas das normas já conquistadas na Constituição
Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os quatro textos que compõem a temática sobre a gestão pública da educação não só
apresentam os aspectos organizacionais, pedagógicos, financeiros e orçamentários mais
importantes da educação básica, mas também oferecem sugestões sobre indicadores que
poderão ser utilizados pelos agentes públicos na tarefa de concretizar o direito à educação e o
dever de educar.
Todas as abordagens que se seguem estão embasadas nos marcos referenciais que inspiram
a formulação da política de educação básica no país e que podem ser sintetizados na garantia
do acesso, reingresso, permanência e sucesso escolar de todas as crianças e adolescentes. Este
é, portanto, o desafio que deverá impulsionar as ações dos magistrados e membros do Ministério
Público na área educacional.
A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: QUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
O primeiro texto aborda a organização da educação brasileira com base no novo
ordenamento constitucional e legal, que provocou alterações caracterizadas como de reforma
educacional. A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação NacionalLDB reconhece a ampla
abrangência da educação e dos espaços formativos, mas disciplina a especificidade da educação
escolar, que deverá valorizar a experiência extra-escolar e estabelecer vinculação com o trabalho
e as práticas sociais.
A educação escolar compreende apenas dois grandes níveis, a educação básica e a educação
superior. A educação básica, por sua vez, constitui-se em três etapas: educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
315
Uma das mais marcantes inovações da LDB – Lei 9.394/96 é o reconhecimento da educação
infantil como etapa da educação básica, a ser oferecida em creches e pré-escolas, visando ao
desenvolvimento integral da criança, em complementação à ação da família e da comunidade.
Já o ensino fundamental é a etapa de escolarização obrigatória. Ao poder público cabe garantir
sua oferta universal e gratuita, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria,
uma vez que se constitui em direito subjetivo. O ensino médio, etapa conclusiva da educação
básica, é atualmente objeto de uma reforma, colocando como desafio ao setor público a absorção
de sua crescente demanda, até a universalização qualificada desta etapa.
A LDB disciplina também as oportunidades educacionais a serem garantidas aos jovens e
adultos, bem como aos educandos com necessidades especiais, direitos esses já consagrados
na Constituição Federal. A educação profissional, por sua vez, merece especial destaque,
podendo ser desenvolvida em articulação com o ensino regular ou por estratégias de educação
continuada.
Outro aspecto inovador da legislação educacional vigente é a clareza com que determina
as competências e responsabilidades do poder público e de cada um de seus entes, definindo
as áreas de atuação prioritária, a jurisdição dos sistemas de ensino e as respectivas incumbências.
Sobre essa questão, é importante destacar que a educação brasileira se organiza por meio de
sistemas de ensino e que, pela primeira vez, o Município é previsto como “sujeito de sistema”
e, portanto, equiparado aos tradicionalmente reconhecidos sistema federal e sistemas estaduais.
Considerando-se as responsabilidades compartilhadas e concorrentes da União, dos Estados
e Municípios, evidencia-se a importância do regime de colaboração como critério, diretriz e
estratégia preferencial de relacionamento entre as esferas federativas na manutenção e no
desenvolvimento do ensino. São ilimitadas as possibilidades de parceria e cooperação entre
as referidas instâncias; entretanto a legislação indica que a colaboração deve ser
obrigatoriamente implementada quanto à divisão de encargos, ao estabelecimento de normas
e ao planejamento.
A todas as esferas administrativas no âmbito dos respectivos sistemas de ensino, a LDB
atribui, ainda, as importantes funções de definir as normas da gestão democrática do ensino
público e de valorizar os profissionais da educação. Quanto à gestão democrática do ensino
público, é prevista a participação dos profissionais da educação na elaboração da proposta
pedagógica da escola, a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares
e a progressiva autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira das unidades
escolares públicas de educação básica.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
316
Por outro lado, regulamenta também o princípio constitucional de valorização do magistério,
dedicando o Título VI inteiramente aos profissionais da educação. Além disso, a Lei 9.424/96
(FUNDEF) e a Resolução nº 3/97 do Conselho Nacional de Educação introduzem, respectivamente,
a exigência de novos planos de carreira do magistério para Estados e Municípios e as diretrizes
nacionais para sua elaboração.
Ao concluir-se a análise da organização da educação nacional, são indicadas a eqüidade e
a qualidade como diretrizes maiores da ação política no setor, destacando-se como principais
tendências da legislação e das políticas educacionais a participação da sociedade civil, a
descentralização político-admnistrativa, a autonomia das escolas e os padrões mínimos de
qualidade de ensino.
O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Dando continuidade à radiografia da educação brasileira com vistas à análise dos agentes
da Justiça interessados em conhecer todas as suas dimensões, temos outro texto cujo principal
enfoque é a qualidade da educação escolar.
As transformações que se operaram no mundo, neste final de século, estão a requerer novos
requisitos educacionais para uma inserção adequada do indivíduo na vida social e no mundo do
trabalho, e para o exercício pleno da cidadania. Em conseqüência, principalmente, de problemas
acumulados em décadas anteriores, como atestam os indicadores educacionais, esses novos
requisitos ainda não foram amplamente assegurados para a população brasileira, no seu conjunto.
As estatísticas mais recentes mostram que o país vem conseguindo, a partir dos anos 90, alguns
importantes avanços, sobretudo na ampliação do acesso à educação escolar em geral e na conquista
da universalização do ensino fundamental. Todavia, essas mesmas estatísticas mostram a
persistência de grandes desafios a serem enfrentados nos próximos anos.
A qualidade da educação escolar, direito legalmente instituído, ainda não se encontra, de
fato, assegurada. A conquista desse direito constitui-se hoje em uma tarefa tão gigantesca que
transcende os limites da atuação dos profissionais tradicionalmente responsáveis pela educação
escolar. Faz-se cada vez mais importante a participação de outras instâncias sociais,
particularmente, daquelas que podem dar eficácia aos instrumentos de exigibilidade para que
esse direito seja respeitado. Os magistrados e membros do Ministério Público têm um papel
fundamental no exercício dessa importante responsabilidade social e as instituições jurídicas
podem criar seus próprios mecanismos de acompanhamento da qualidade do atendimento
educacional, por meio de um diálogo aberto e permanente com os profissionais da escola,
fundamentado pela análise de indicadores de qualidade da educação escolar.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
317
Existe hoje um patrimônio expressivo de estudos teórico-práticos que podem se constituir
em subsídios para a caracterização de uma prática escolar que apresente os requisitos
indispensáveis à formação do cidadão do mundo contemporâneo. O texto discute esses
indicadores, destacando principalmente os seguintes: gestão da escola, apoio das autoridades,
utilização do tempo, organização do espaço, valorização dos profissionais, composição e
dinâmica curricular, orientação didática, formas de avaliação, participação dos pais e
reconhecimento do público.
Com certeza, esses e outros referenciais podem servir de apoio à atuação dos setores
públicos e dos segmentos sociais que devem cumprir e fazer cumprir o direito que todos os
alunos têm de aprender direito.
O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
O dever do Estado para com a educação básica está claramente definido na Constituição
Federal: garantia de oferta do ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada inclusive
sua oferta gratuita para os que não o freqüentaram na idade própria; progressiva universalização
do ensino médio gratuito; e atendimento em creches e pré-escolas às crianças na faixa de zero
a seis anos de idade.
É necessário assegurar que o poder público cumpra com esse dever. Condição indispensável
para tanto é a disponibilidade de recursos financeiros. Por tal razão, a própria Constituição
Federal destina explicitamente parcela da receita de impostos da União, dos Estados e dos
Municípios para a manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212).
A própria Carta Magna, contudo, define como obrigatório o ensino fundamental, cuja
oferta é da responsabilidade de Estados e Municípios. Com o objetivo de assegurá-la, a Emenda
Constitucional nº 14/96, deu nova redação ao artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, subvinculando, por dez anos, parte daqueles recursos para aplicação no ensino
fundamental. A capacidade de geração de receitas, porém, é diferenciada entre as unidades da
Federação. Desse modo, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), no âmbito de cada Estado, constituído
de parcela substancial desses recursos subvinculados ao ensino fundamental. Esse fundo tem
por objetivo promover redistribuição de recursos dentro de cada Estado de forma que, para
cada aluno, seja garantido um valor mínimo anual de despesas. Para os Estados cuja receita
não permite alcançar o valor mínimo anualmente definido pelo governo federal, a União aporta
uma complementação financeira que permita atingi-lo.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
318
A criação do FUNDEF representa um dos mais importantes marcos na história do financiamento
da educação brasileira, em função dos seus efeitos redistributivos e do fato de que parte
substancial de seus recursos deve ser destinada à remuneração dos profissionais do magistério
em efetivo exercício no ensino fundamental público. Isso vem representando melhorias
significativas para importantes contingentes dos profissionais da educação, sobretudo nos
Municípios mais pobres.
A implementação do FUNDEF, contudo, não deixa de enfrentar problemas, em especial no
que respeita ao uso adequado dos recursos. Os critérios para a análise dessas dificuldades
estão claramente explicitados na Lei nº 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação, em cujos
artigos 70 e 71 estão definidas, respectivamente, as despesas que podem e as que não podem
ser consideradas como de manutenção e desenvolvimento do ensino.
Finalmente, com o objetivo de assegurar a devida aplicação dos recursos, a legislação
prevê diversas penalidades para as autoridades que não cumprirem com as obrigações previstas,
listando diversas sanções, que vão desde a responsabilidade civil e criminal até a perda de
mandato e inelegibilidade, bem como a intervenção pela União em Estados e do Estado em
seus Municípios.
O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
O último texto integrado à temática da gestão pública objetiva orientar os agentes
responsáveis pelas funções de planejar, executar, acompanhar ou fiscalizar a gestão orçamentária
pública em razão de importantes alterações introduzidas, em 1996, na Constituição Federal e
na legislação ordinária, relativamente ao uso dos recursos vinculados a manutenção e
desenvolvimento do ensino.
Conforme princípio consagrado pela Constituição Federal de 1988, o orçamento integra
um sistema em que as ações do governo são definidas em processo amplo de planejamento.
Para compor esse sistema, a Constituição criou três instrumentos distintos, mas interligados
entre si: o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Anual.
Para o orçamento propriamente dito, permanece em vigor a Lei nº 4.320/64, que, apesar
de antiga e desatualizada, ainda permite a elaboração orçamentária com boa dose de qualidade.
O Legislativo recobrou, desde 1988, o seu poder de influir na proposta orçamentária. O
Executivo, por sua vez, para modificar o orçamento em curso, precisa ter prévia autorização
legislativa.
Reforçando o que já foi mencionado, é imprescindível garantir, no orçamento da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a vinculação de recursos da receita resultante
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
319
de impostos definida para a educação, conforme determina o artigo 212 da Constituição Federal.
Tratamento idêntico deverão merecer os recursos do FUNDEF (implantado automaticamente em
1998) , que são redistribuídos entre cada Estado e seus Municípios, conforme o disposto na
Lei nº 9.424/96.
A transparência da gestão fiscal é garantida por mecanismos criados pela Lei de
Responsabilidade Fiscal – LRF, como a participação popular na elaboração dos planos, orçamentos
e diretrizes orçamentárias. O Executivo é obrigado a manter à disposição de qualquer cidadão,
durante todo o ano, o processo de prestação anual de contas, bem como deve publicar, a cada
dois meses, um Relatório Resumido da Execução Orçamentária e, a cada quatro meses, um
Relatório da Gestão Fiscal.
No controle externo, exercido pelo Poder Legislativo com auxílio do Tribunal de Contas,
surgiram novas instâncias, por meio de conselhos com representantes dos segmentos sociais,
como o Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEF. O Ministério Público
passou a ter papel relevante, podendo acionar judicialmente a autoridade ou o agente que vier
a praticar ato lesivo ao interesse público.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
321
9
CAPÍTULO
A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
QUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari*
Maria Beatriz Luce**
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 322
2 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL ..... 324
3 NÍVEIS E MODALIDADES DE EDUCAÇÃO E ENSINO .... 325
4 A ORGANIZAÇÃO FEDERATIVA NA EDUCAÇÃO: JURISDIÇÕES E SISTEMAS DE ENSINO ..... 330
5 REGIME DE COLABORAÇÃO ..... 333
6 A GESTÃO DEMOCRÁTICA ..... 337
7 FORMAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO ..... 339
8 TENDÊNCIAS DA LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS ..... 341
8.1 PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ..... 342
8.2 DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA ..... 343
8.3 AUTONOMIA DAS ESCOLAS ..... 344
8.4 PADRÕES MÍNIMOS DE QUALIDADE DO ENSINO ..... 345
9 COMENTÁRIOS FINAIS ..... 345
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 346
* Consultora em Educação do MEC/FUNDESCOLA.
** Professora titular de Política e Administração da Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
322
Os agentes da Justiça encontrarão neste texto os elementos mais importantes da
nova estrutura e em funcionamento da educação no Brasil, com a indicação de possibilidades
de atuação para maior eficácia dos instrumentos legais e da justiça social. Com base no
novo ordenamento constitucional e legal, especialmente na nova LDB, é analisada a educação
escolar, seus princípios, e os níveis e modalidades de educação e de ensino. O foco é a
educação básica e suas respectivas etapas: educação infantil, ensino fundamental e ensino
médio, contemplando também a educação de jovens e adultos, a educação profissional e
a educação especial.
É apresentada, de forma didática, a distribuição de responsabilidades entre a União,
os Estados e os Municípios, com as áreas de atuação prioritária, a jurisdição dos sistemas de
ensino e as respectivas incumbências. Além da abordagem sobre os sistemas de ensino,
destaca-se a importância do regime de colaboração que deve orientar o relacionamento
entre as esferas federativas na manutenção e no desenvolvimento do ensino, com ênfase
na divisão de encargos, no estabelecimento de normas e no planejamento integrado. São
analisadas também questões básicas para a concretização da gestão democrática do ensino
público e valorização do magistério. Ao final, discute-se as tendências da legislação e das
políticas educacionais, identificando-se pontos e estratégias para se garantir mais justiça na
educação.
1 INTRODUÇÃO
O novo ordenamento constitucional e legal da educação no Brasil,
1
inaugurado em 1988,
juntamente com várias medidas na esfera do planejamento educacional, configuram uma situação
que tem sido caracterizada como de reforma educacional. Esse conceito revela o entendimento
de que estão sendo realizadas várias alterações na estrutura dos órgãos e instituições dos sistemas
de ensino e introduzidas novas regras para seu funcionamento e relacionamento, mas que ainda
não chegam a alcançar as mudanças necessárias para que os princípios da democracia e da
cidadania, com eqüidade e respeito às diferenças regionais, culturais e individuais, possam vigir
1
Cujos principais instrumentos são, no plano federal : a Constituição Federal de 1988 com a Emenda n
o
14/
96; a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96); a Lei do FUNDEF (9.424/96); a Lei do
Estatuto da Criança e do Adolescente (8.069/90); e os pareceres e resoluções do Conselho Nacional de
Educação. Além destes, há os instrumentos estaduais e municipais próprios de cada âmbito político-admi-
nistrativo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
323
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
e ser promovidos pela educação escolar. Isto é, revela distanciamento crítico das noções comuns
que simplesmente identificam reforma ou intervenção nos sistemas e instituições de ensino com
óbvio progresso, como se a adoção de novos arranjos organizacionais ou programáticos ou de
novas tecnologias resulte em maior eficiência e efetividade e estes necessariamente num mundo
melhor. Revela, sim, o entendimento de que reformas implicam mobilização dos públicos e
intenção de atuar nas relações de poder dos espaços públicos; reformas educacionais são formas
ou meios de regulação social.
2
Por isso mesmo, Cury [1997, 134-5] distingue entre reformas em
que o novo se introduz pela manutenção do arcaico e reformas democráticas que são fruto das
tensões sociais em que a radicalidade criadora de conquistas para a cidadania prepondera sobre
a herança atávica de mazelas sócio-econômico-políticas ainda hoje presentes. É justamente essa
reforma democrática que identificamos como mudança.
Assim sendo, pode-se perceber a importância de, junto com o instituído (a norma, o jurídico
e o administrativo), preservar e ampliar os espaços para que a dinâmica social possa produzir
movimentos instituintes de novas normas, novos processos administrativos e novas formas de
justiça – ou seja, para que os sujeitos de direitos até o presente ausentes ou sub-representados
na sua definição e apropriação possam efetivamente deles participar.
Nesse sentido, é particularmente interessante atentar para a decorrente noção de gestão
pública, que poderá construir as necessárias bases para a mudança. Da gestão pública de que
se trata, fazem parte não apenas os tradicionais atores incumbidos de responsabilidades nos
Poderes instituídos, mas também precisam ser acolhidos e valorizados os atores sociais capazes
de provocar avanços e de conferir mais eficácia à ação das políticas públicas. Em matéria de
educação, por exemplo, não caberá responsabilidade apenas ao consagrado poder público; à
sociedade, aos cidadãos e as suas entidades representativas, também são atribuídos deveres.
Do poder público, não basta o Executivo para garantir o já instituído; ao Legislativo compete a
permanente vigilância sobre as novas demandas da sociedade a se consubstanciarem em nova
legislação e sobre as realizações dos demais poderes; o Poder Judiciário e o Ministério Público
já não mais podem limitar-se à aplicação da Lei apenas sob requerimento.
Nesse sentido, no caso do Ministério Público, a Lei Federal n
o
8.625/93 estabelece sua
competência de iniciativa de investigação e promoção de ações, independentemente de
provocação da parte interessada. Cumpre a todas as instâncias e funções construir novos
espaços e estratégias de atuação, sem limites estritos de circunscrição, buscando a articulação,
2
Considerações interessantes, conquanto polêmicas, sobre o tema da reforma educacional como regulação
social são feitas por Thomaz S.Popkewitz (1997).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
324
a ação concertada. A noção de gestão pública, portanto, não se restringe à tradicional de
administração pública, centrada na observância da norma e na prestação de serviços instituídos
aos segmentos sociais sempre incluídos. Com destaque, a gestão pública vem compreender a
formação e implementação da política pública. A política pública e administração pública de
que tratamos será a que se orienta para a conquista e a garantia do direito à educação para
todos, pautada no novo ordenamento constitucional e legal e na construção de políticas públicas
por sujeitos que ampliam constantemente seu espectro de ação e interlocução.
Este texto, precipuamente, tem por objetivo sintetizar os elementos mais importantes da
nova estrutura e funcionamento da educação no Brasil, interpretando possibilidades de atuação
para maior eficácia da legislação e justiça social. Representa, por conseguinte, uma iniciativa
de interlocução entre analistas de política e administração da educação com magistrados e
membros do Ministério Público comprometidos com a viabilização da gestão pública pela
educação de qualidade para todos.
2 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal n
o
9.394/96), em seu
Título I, reconhece a ampla abrangência da educação e dos espaços formativos, mas trata de
disciplinar a especificidade da educação escolar – aquela “que se desenvolve,
predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (art. 1
o
, § 1
o
) e que “deverá
vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (art.1
o
, § 2
o
). Esses preceitos já indicam
claramente o conjunto originário de atores participantes da formulação e da condução do
processo educacional: a família, as organizações do mundo do trabalho e da cultura, os
movimentos e organizações da sociedade civil, e as instituições de ensino e pesquisa. Estão
sustentados na tese do trabalho como princípio educativo, que renega a dualidade estrutural
da escola, esteiada no humanismo tradicional: uma escola para formar dirigentes e outra para
trabalhadores.
Assim, fica consagrada a escola única como estrutura e abre-se espaço à construção orgânica
da escola contemporânea com suas funções originariamente contraditórias, formar o cidadão,
sujeito e objeto de direitos, para que seja capaz de buscar para si e seus parceiros de história
a ampliação de espaços de participação cultural, política e econômica, enquanto produtor e
consumidor; formar o trabalhador, para que seja capaz de exercer suas funções em um processo
produtivo que, a um só tempo, simplifica e complexifica, reduz e requer competências de
reflexão e criatividade. Esta escola contemporânea edifica-se na noção de práxis, que reconhece
o ser humano e sua atuação no entorno como o ponto de partida para a aprendizagem, a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
325
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
construção do conhecimento, a ciênciaé a escola teórico-prática, relacional, crítica,
verdadeiramente educativa.
3
Os fins e princípios da educação nacional são explicitados no Título II e coincidem com as
indicações da Constituição Federal, acrescentando dois novos princípios, importantes para a
promoção do acesso e do reingresso à escola, para aqueles que não o fizeram na idade própria:
“valorização da experiência extra-escolar” (art. 3
o
, X) e “vinculação entre a educação escolar, o
trabalho e as práticas sociais” (art. 3
o
, XI). Isso implica que as instituições de ensino deverão se
articular com os costumes e instituições de trabalho para definir especificidades curriculares
ou até mesmo calendário e horários de aula. Justifica também a introdução de mais um critério
de classificação de alunos em qualquer série ou etapa da educação básica (exceto a inicial do
ensino fundamental), além da promoção e da transferência, qual seja o da avaliação – feita
pela escolado grau de desenvolvimento e experiência do candidato, conforme regulamentação
do respectivo sistema de ensino. Esse exemplo vem confirmar o registro bem-elaborado de
Cury (1997, p.98-111), que destaca a flexibilidade como um dos dois grandes eixos orientadores
do novo arcabouço legal da educação brasileira. O outro é a avaliação sistêmica e institucional,
de que se tratará adiante, neste texto.
Uma interpretação mais pormenorizada dos fins e princípios, bem como dos importantes
elementos do Título III, sobre o direito à educação e o dever de educar, consta dos textos “O
Direito à Educação Escolar “, de Afonso Armando Konzen, e “Disciplina Jurídica do Direito à
Educação “, de Paulo Afonso Garrido de Paula, deste Guia de Consulta, na temática que trata
de disciplina jurídica e garantias jurídicas. Salienta-se, contudo, a centralidade das noções de
obrigatoriedade, gratuidade e qualidade como basilares na legislação e estruturantes da política
pública de educação.
3 NÍVEIS E MODALIDADES DE EDUCAÇÃO E ENSINO
Sem introduzir modificações estruturais ou quanto à duração da escolaridade, a nova LDB
confirma a nomenclatura já anunciada na Constituição Federal de 1988. Portanto, a estrutura
geral dos níveis e etapas da educação escolar brasileira a partir do ensino fundamental não
sofre alteração profunda em relação àquela instituída pela Lei n
o
5.692/71, embora importantes
inovações com relação ao funcionamento e às políticas tenham sido conquistadas. Uma das
3
Dentre as contribuições fundamentais para o desenvolvimento desta noção em plano normativo, cabe
mencionar Acácia Z. Kuenzer (1988 e 1989), Maria Laura P. Barbosa Franco (1989) e Gaudêncio Frigotto
(1989 e 1991).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
326
mais marcantes inovações é o reconhecimento da educação infantil, inclusive a creche, como
etapa da educação básica.
Observe-se o quadro 1, a seguir, que indica os níveis e as etapas da educação escolar, as
idades próprias e os anos de estudo previstos:
QUADRO 1 ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
Fonte: ABREU, Mariza e BALZANO, Sonia. Leitura da LDB para diretores de escola. Texto em elaboração. Brasília, MEC/FUNDESCOLA, 2000.
(1) Matrícula facultativa a partir dos 6 anos.
(2) Flexibilidade de organização: séries anuais, ciclos, períodos semestrais, etc.
(3) Para aqueles que não tiveram acesso ou continuidade no ensino fundamental e médio na idade própria.
(4) Para aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto.
(5) Para educandos portadores de necessidades especiais, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino.
(6) Para alunos de qualquer escolaridade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
327
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
Como demonstrado, a educação escolar compreende apenas dois grandes níveis, a
educação básica e a educação superior. A educação básica constitui-se em três etapas: educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio.
A educação infantil responde à necessidade de complementar a ação da família e da
comunidade para o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade (LDB, art. 29).
Portanto, embora seja obrigação do poder público garantir o atendimento em creches e pré-
escolas, não é uma etapa de escolarização obrigatória. As políticas públicas de expansão das
oportunidades de educação infantil devem, no entanto, atentar especialmente para as
peculiaridades culturais e econômicas da região. Aliás, a legislação concedeu o prazo de 3
anos, expirados em dezembro de 1999, para que as creches e pré-escolas existentes ou
posteriormente criadas sejam integradas ao respectivo sistema de ensino – o que vale dizer da
supremacia do caráter pedagógico sobre o assistencial nas instituições e programas de educação
infantil. A designação de creche passa, assim, a ser usada para a instituição que atende a
crianças de 0 a 3 anos e não está mais associada à finalidade assistencial ou exclusivamente de
cuidados e recreação. Quanto à pré-escola, é importante notar que designa a instituição planejada
para atender às crianças de 4 a 6 anos, não se podendo nela antecipar qualquer avaliação com
objetivo de promoção (LDB, art. 31) ou demandar a alfabetização.
O ensino fundamental, anteriormente designado de 1
o
grau, é a etapa de escolarização
obrigatória, a partir dos 7 anos de idade, e deve ter a duração mínima de 8 anos (LDB, arts. 6
o
e
32). A matrícula das crianças ou adolescentes na rede regular de ensino é incumbência dos
pais ou responsáveis (LDB, art. 6
o
; ECA, arts. 2
o
, 55 e 129), até os 18 anos, caso não o concluam na
idade esperada, os 14 anos. Ao poder público cabe garantir sua oferta universal e gratuita,
inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria (CF, art. 208, I; LDB, art.4
o
, I),
facultado o ingresso das crianças de 6 anos de idade (LDB, art. 87, § 3
o
, I).
Para que seja alcançado o objetivo principal de formação básica do cidadão, o ensino
fundamental deverá assegurar o desenvolvimento da capacidade de aprender, com o pleno
domínio da leitura, da escrita e do cálculo, de compreender o ambiente natural e social, o
sistema político, a tecnologia e as artes, de adquirir conhecimentos e habilidades, assim como
a formação de atitudes e valores e o fortalecimento dos vínculos de família e dos laços de
solidariedade humana (LDB, art. 32). Por esse mesmo motivo, requer-se que o ensino fundamental
seja presencial, admitido o ensino a distância apenas como complementação da aprendizagem
ou em situações especiais (LDB, art. 32, § 4
o
). Como se poderá depreender, neste e noutros
aspectos, a nova legislação é pródiga em oferecer diversos indicadores e critérios nos quais os
operadores da Justiça poderão embasar suas ações, seja visando a avaliar o acesso e a
permanência na escola ou a sua qualidade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
328
Ensino médio é a atual denominação do antigo ensino de 2
o
grau. Pela nova legislação e
a reforma que está sendo implantada nesta etapa da educação escolar, destinada precipuamente
aos adolescentes, consiste em pelo menos 3 anos de estudo. Sendo a etapa conclusiva da
educação básica, visa à consolidação e ao aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no
ensino fundamental, bem como ao prosseguimento dos estudos. Assim, são finalidades a
preparação básica para o trabalho e para o exercício da cidadania, o aprimoramento do
educando como pessoa, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual
e do pensamento crítico, e a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando teoria com prática, em cada disciplina (LDB, art. 35). Os textos legais
e normativos apontam ainda o âmbito dos conteúdos e metodologias do ensino médio, de
modo que também com referência a essa etapa educacional poderão os operadores da Justiça
encontrar consistentes indicações para seu trabalho.
O apoio à expansão das oportunidades de acesso e à conquista de condições adequadas
de ensino, e para a freqüência regular à escola pelos adolescentes ou pelos jovens e adultos
que a ela retornam, será possivelmente uma das mais importantes ações da promoção da
justiça no futuro próximo, posto que “ainda não se percebe a mesma condição de liquidez e
certeza em relação ao acesso ao ensino médio, em face da regra programática da progressiva
universalização dessa etapa final da Educação Básica” [Konzen, 1999, p.11]. Vale lembrar que
as históricas insuficiências na oferta do ensino fundamental e do ensino médio no país fazem
que apenas cerca de 25% dos jovens de 15 a 17 anos estejam matriculados no ensino médio e
que mais de 50% dos alunos estejam atrasados em sua escolaridade. Consoante as estruturais
diferenças regionais, a distorção idade-série no ensino médio vai desde 73,2% na região Norte
a 48,4% na Sudeste e 39,1% na Sul [Castro, 1999, p. 10], colocando um imperativo ao setor
público que deverá sustentar a absorção da demanda crescente até a universalização dessa
etapa de escolarização, a par de sua qualificação em termos de prédios e equipamentos
adequados e de professores devidamente habilitados. À medida que progressivamente se
regulariza o fluxo escolar, exigir-se-ão mais escolas médias diurnas, com investimentos na rede
física de cada localidade ou microrregião. A precariedade das acomodações de jovens e adultos,
à noite, em escolas construídas e equipadas para crianças parece-nos insustentável e uma
causa da evasão nessa etapa.
A nova LDB estabelece para o ensino fundamental e o ensino médio que o ano letivo deverá
ter pelo menos 200 dias e 800 horas de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos
exames finais, quando previstos no calendário escolar (LDB, art.24, I; CNE/CEB, Par. n
o
5/97). Salienta
a LDB (art. 34), para o ensino fundamental, a garantia de pelo menos 4 horas de trabalho pedagógico
efetivo e a ampliação progressiva do período de permanência na escola, de modo a atingir o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
329
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
tempo integral, a critério dos sistemas de ensino. Ressalva, porém, as peculiaridades dos cursos
noturnos e das formas alternativas de organização do ensino, definidas na mesma lei. Esses
requisitos sustentam a vigilância da sociedade e dos operadores da Justiça para que nem os
alunos nem as propostas pedagógicas sejam lesados por práticas anteriormente legais mas hoje
inadmissíveis, como a que reduz as horas de ensino-aprendizagem a 50 minutos (e até mesmo 45
minutos) ou inclui o tempo de recreio no cômputo das horas de efetivo trabalho escolar. O
Parecer do CNE/CEB n
o
5/97 é suficientemente orientador a esse respeito.
Uma das mais significativas conquistas da sociedade brasileira, em matéria de educação,
foi o reconhecimento, na Constituição Federal de 1988, dos direitos dos jovens e adultos ao
ensino fundamental e médio público e gratuito que não lhes foi proporcionado na idade
própria (CF, art. 208, I). Isso exige, hoje, a oferta de oportunidades educacionais apropriadas,
consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho,
inclusive mediante cursos e exames (LDB, 4
o
, I, II e VII; 37, § 1
o
). Importa destacar que a oferta de
ensino noturno regular, adequado às condições do educando, garantida explicitamente no
texto constitucional (CF, art. 208, VI), nem sempre será suficiente, pois há quem trabalhe em
horários vespertinos e noturnos e necessite estudar de dia. Para os jovens e adultos trabalhadores
é também valiosa a providência de valorização dos conhecimentos e habilidades adquiridos
por meios informais, que serão aferidos por meio de exames (LDB, art. 38, § 2
o
).
Os alunos matriculados ou egressos do ensino fundamental, médio e superior, bem como
o trabalhador em geral, jovem ou adulto, deverão contar com a possibilidade de acesso à
educação profissional. Sendo sua finalidade conduzir ao permanente desenvolvimento de
aptidões para a vida produtiva, deve ser integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho,
à ciência e à tecnologia. Portanto, poderá ser desenvolvida em articulação com o ensino regular
ou por estratégias de educação continuada. Com a iniciativa do governo federal, na educação
profissional está em curso uma profunda reforma, que procura desvinculá-la do ensino médio,
para facilitar sua expansão, com a flexibilização dos currículos e a diversificação dos cursos. A
atenção do Programa Nacional Justiça na Educação, neste campo da educação profissional,
poderá ser decisiva para as articulações necessárias entre o poder público e as organizações
do mundo do trabalho, no sentido de se efetivarem as oportunidades de qualificação para
jovens e adultos e de sua promoção social, conforme estabelece o Decreto n
o
2.208, de 17/04/
97, ao regulamentar o § 2
o
do artigo 36 e os artigos 39 a 42 da LDB.
A educação especial, dever constitucional do Estado (CF, art. 208, III), foi consagrada na
nova LDB como uma modalidade da educação escolar, a ter início desde a educação infantil.
Deve ser oferecida aos educandos portadores de necessidades especiais preferencialmente na
rede regular de ensino, que poderá contar com serviços de apoio especializado (LDB, art.58).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
330
Assim sendo, a nova política é pela inclusão, sempre que possível, de crianças, jovens e adultos
com necessidades educacionais especiais nas escolas públicas e pela qualificação dos sistemas
de ensino para o seu atendimento.
4 A ORGANIZAÇÃO FEDERATIVA NA EDUCAÇÃO: JURISDIÇÕES E SISTEMAS DE ENSINO
Visando coibir a omissão e facilitar a exigibilidade dos direitos e deveres em matéria de
educação, o novo ordenamento constitucional e legal determina com inovadora clareza as
competências e responsabilidades do poder público e de cada um de seus entes. Na linha da
descentralização de atribuições, foram, inclusive, explicitados, no plano institucional, os deveres
das escolas e dos professores.
O quadro 2 apresenta, por ente federativo, as áreas de atuação prioritária, a jurisdição dos
sistemas de ensino e as respectivas incumbências. Identifica também a referência normativa
correspondente.
Preliminarmente à análise das incumbências dos entes federativos é necessário que se
tenha clareza sobre esse novo ordenamento constitucional, legal e institucional do setor da
educação, observando-se que, embora os entes federados não sejam independentes uns dos
outros, nem os Estados em relação à União, nem os Municípios em relação aos respectivos
Estados e à União, sua interdependência não poderá jamais significar subordinação nem permitir
intervenção planejada na outra esfera – o que ainda se verifica no texto de algumas Constituições
estaduais e em legislação e normas de alguns sistemas estaduais. Exemplos de matérias que
poderão chegar à argüição judicial sobre a delegação de atribuições de uma esfera a outra, de
forma autoritária e sem negociações, são: a transferência de supervisão da educação infantil, a
divisão de encargos sobre parte ou fase do ensino fundamental e o transporte escolar.
Sobre qualquer disputa ou omissão será sempre pertinente lembrar que a organização da
educação brasileira faz-se a partir da noção de sistema, ou seja, conforme Saviani (1978), requer
intencionalidade (sujeito-objeto), conjunto (unidade-variedade) e coerência (interna-externa) na
ação, necessariamente embasada em uma teoria educacional. Logo, tem-se como condições para
a construção de um sistema educacional, numa determinada circunscrição histórico-geográfica e
institucional, a consciência dos problemas da situação, o conhecimento da realidade (as estruturas)
e a formulação de uma pedagogia. Essa compreensão será particularmente importante para o
exame da organização em nível municipal, posto que o novo ordenamento equipara os sistemas
municipais de ensino aos tradicionalmente reconhecidos como “sujeitos de sistema”, o sistema
federal e os sistemas estaduais, com base no preceito constitucional da organização federativa
brasileira e nas disposições do Título IV da LDB.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
331
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
QUADRO 2 – DISTRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADES ENTRE OS ENTES FEDERADOS
Fonte: Quadro originalmente elaborado por Adeum Sauer, Marisa Timm Sari, Mariza Abreu e Regina Gracindo para palestra do PRASEM I, em 1997.
Atualização e revisão de Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce para este texto.
(*) Em colaboração com estados/DF e municípios, (**) Incumbências do município com o seu sistema próprio.
Plano Nacional de Educação(*)
Sistema Federal de Ensino
Instituições f ederais de Assistência técnica e financeira a
Constituição Ação normativa, ensino Estados, Distrito Federal e
Federal, redistributiva e Municípios
art. 211 supletiva Diretrizes curriculares nacionais
para a educação básica(*)
LDB, art. 16 Instituições privadas LDB, arts. 9
o
Sistema de informações e
de educação superior e 75 avaliação Educacional(*)
LDB, art. 8
o
, Autorização, reconhecimento,
§ 1
o
Financiamento das credenciamento, supervisão e
instituições Órgãos federais de avaliação de cursos superiores e
federais de ensino educação estabelecimentos de seu sistema
de ensino
Normas gerais para graduação
e pós-graduação
Instituições estaduais
de ensino
Instituições municipais Sistema Estadual de Ensino
de educação superior Colaboração com os municípios
no ensino fundamental e na
Ensino Instituições privadas educação infantil
Fundamental de ensino fundamental e Planos educacionais integrando
médio CF art. 30, VI ações dos municípios
Constituição LDB art. 17 LDB art. 10 e Autorização, reconhecimento,
Federal, Instituições municipais art. 75 credenciamento, supervisão e
art. 211 de educação infantil, avaliação de cursos superiores e
ensino fundamental e estabelecimento de seu sistema de
Ensino Médio ensino médio quando ensino
não houver sistema Normas complementares para seu
municipal de ensino sistema de ensino
Ação supletiva e redistributiva
Órgãos estaduais de
educação
Organização, manutenção e
desenvolvimento dos órgãos e
Instituições municipais instituições oficiais dos seus
de educação básica sistemas de ensino, integrando-os
Ensino (educação infantil, às políticas e planos educacionais
Fundamental ensino fundamental e da União e do Estado
Constituição ensino médio) Ação redistributiva em relação
Federal, LDB art. 18 LDB art. 11 às suas escolas
art. 211 Instituições privadas Normas complementares para seu
de educação infantil sistema de ensino(**)
Autorização, credenciamento e
supervisão dos estabelecimentos
Educação Infantil Órgãos municipais de do seu sistema de ensino (**)
educação Oferta da educação infantil e,
com prioridade, do ensino
fundamental
ATUAÇÃO PRIORITÁRIA JURISDIÇÃO DOS SISTEMAS INCUMBÊNCIAS
U
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ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
332
Sobre as incumbências de cada esfera federativa, cabe ressaltar que:
Ø à União compete de forma precípua a coordenação da política nacional de educação
e a articulação dos diferentes níveis e sistemas de ensino, por meio das funções normativa,
redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais (LDB, art. 8
o
, § 1
o
).
Ademais, cabe-lhe a organização, manutenção e desenvolvimento dos órgãos e instituições
oficiais do sistema federal de ensino (LDB, art. 9
o
, II);
Ø aos Estados compete organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais
de seu próprio sistema de ensino; definir, com os Municípios, formas de colaboração para a
distribuição proporcional das responsabilidades de educação básica; atuar no planejamento
integrador do sistema estadual aos municipais e na normatização complementar para seu próprio
sistema de ensino (LDB, art. 10);
Ø aos Municípios compete similarmente organizar, manter e desenvolver os órgãos e
instituições municipais, com função redistributiva, e integrando-os às políticas e planos do
respectivo Estado e da União. Os Municípios, ao formalizarem a constituição do sistema
municipal de ensino, gozam também de competências normativas complementares e da
competência para autorizar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos jurisdicionados
(LDB, art. 11). Assim sendo, ficam lavradas, também no campo da educação, as vantagens
autonômicas atribuídas à esfera federativa municipal, embora a nova LDB admita que os
Municípios possam ainda optar por se integrar ao sistema estadual de ensino, como uma rede
com subordinação normativa (embora, jamais, com subordinação administrativa). Poderão os
Municípios também optar por compor com o respectivo Estado um sistema único de educação
básica, de acordo com o artigo 11, parágrafo único da LDB, mas esta é ainda uma experiência
inédita no país.
Com relação à garantia do acesso, a LDB (art. 5
o
, §§ 1
o
a 3
o
) indica competências comuns dos
Estados e dos Municípios, a serem exercidas em regime de colaboração, com a assistência da
União: recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental e os jovens e
adultos que a ele não tiveram acesso; zelar, junto aos pais e responsáveis, pela freqüência à
escola; e fazer-lhes a chamada pública.
A todas as esferas federativas, no âmbito dos respectivos sistemas de ensino, a LDB atribui,
ainda, as importantes funções de valorizar os profissionais da educação, assegurando-lhes, na
forma da lei, plano de carreira para o magistério público, e de definir normas da gestão
democrática do ensino público.
Além disso, a LDB, em disposições transitórias, a vigir até 2007 (art. 87, § 3
o
), prescreve a
cada Município, e apenas supletivamente ao Estado e à União, deveres que vêm causando
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
333
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
polêmica porque deslocam a responsabilidade concorrente das esferas estadual e municipal
pelo ensino fundamental na direção dos Municípios. Estes os tornariam mais responsáveis que
os Estados por essa etapa da educação básica, contrariando, de certa forma, o que dispõem a
Constituição Federal de 1988 e a Emenda Constitucional 14/96. As referidas incumbências são:
matricular todos os educandos a partir dos 7 anos de idade e, facultativamente, a partir dos 6
anos, no ensino fundamental; prover cursos presenciais ou a distância aos jovens e adultos
insuficientemente escolarizados; realizar programas de capacitação para todos os professores
em exercício, utilizando também, para isso, os recursos da educação a distância; integrar todos
os estabelecimentos de ensino fundamental do seu território ao sistema nacional de avaliação
do rendimento escolar.
A análise das incumbências dos entes federativos na garantia da oferta de educação básica
denota uma significativa alteração no quadro normativo. A Constituição elevou a educação à
categoria de direito público e, para a criança e o adolescente, o ensino fundamental à categoria
de direito público subjetivo e indisponível. Dessa forma, a “autoridade competente” fica sujeita
a crime de responsabilidade pelo não-oferecimento ou oferta irregular do ensino fundamental.
Se, de acordo com a Constituição Federal (art. 211, §§ 2
o
e 3
o
), os Municípios, os Estados e o
Distrito Federal devem atuar prioritariamente no ensino fundamental, entender-se-á que os
titulares dos respectivos Poderes Executivos serão os primeiros a serem responsabilizados no
caso de falta de vagas no ensino fundamentalo que não exclui, entretanto, uma eventual
responsabilização da União, já que lhe cabe a função redistributiva e supletiva em relação às
unidades federadas.
Reitera-se, contudo, que os direitos e deveres em matéria de educação não estão mais
limitados ao acesso e oportunidades de continuar estudos; incluem, necessária e legalmente,
padrões de qualidade do ensino e, no ensino fundamental, programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
5 REGIME DE COLABORAÇÃO
Como demonstrado, a organização, a manutenção e o desenvolvimento da educação básica
constituem obrigação direta e inequívoca dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Cabe, no entanto, precisar algumas características e limitações dessas responsabilidades. O
ensino fundamental e a educação infantil são etapas prioritárias de atuação dos Municípios
(CF, art. 211, § 2
o
), enquanto o ensino fundamental e o ensino médio são as etapas prioritárias
de atuação dos Estados e do Distrito Federal (CF, art. 211, § 3
o
). Ademais, os Municípios só
poderão atuar em outra etapa – o ensino médio – ou nível – a educação superiorse estiverem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
334
atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência – o ensino fundamental e a
educação infantile com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição
Federal para manutenção e desenvolvimento do ensino (LDB, art. 11, V). Com isso, fica evidente
a intenção legislativa de assegurar plenas condições de funcionamento ao ensino fundamental,
obrigatório e universal. Também que aos Municípios cabe responsabilidade maior, porque
prioritária, quanto à educação infantil. Aos Estados, a responsabilidade maior é quanto ao
ensino médio, compartilhada com os Municípios quanto ao ensino fundamental e nada obsta
a que continue com algum atendimento aos pré-escolares.
Dada a situação de responsabilidades de toda forma compartilhadas ou concorrentes, é
realçada a importância do regime de colaboração como critério, diretriz e estratégia preferencial
de relacionamento entre as esferas federativas. Note-se o destaque do artigo 211 da Constituição
Federal e do artigo 8
o
da nova LDB, que é o de abertura do Título IV, sobre a organização da
educação nacional. Em ambos os textos, é o regime de colaboração o que orienta as
especificações sobre as incumbências da União, dos Estados e dos Municípios.
O regime de colaboração representa uma proposta concreta e imperativa para a realização,
em nível político e administrativo, do conceito basilar de República Federativa. Ora, se a República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados e Municípios, todos autônomos (CF, art.
18), mas com competências e responsabilidades comuns e específicas de cada nível de governo,
impõe-se encontrar formas viáveis de governar no espírito democrático dessa concepção. Nesse
sentido é que o setor da educação encontrou no regime de colaboração a melhor expressão.
O regime de colaboração entre a União, os Estados e os Municípios reconhece que as três
instâncias são bastante competentes para as decisões e as ações que visam à manutenção e ao
desenvolvimento do ensino. Isto é, são parceiros inarredáveis para planejar e responsabilizar-
se pela oferta de educação pública de qualidade para todos os cidadãos. Tal noção, sabemos,
contraria a prática política e administrativa que persiste nas velhas artes da apropriação pessoal
dos feitos para alimentar o clientelismo e a competição pelo voto e pelo poder, tributários da
privatização da coisa pública. Ou, de outra parte, contraria a postura de descaso e omissão de
governantes que poderiam, na indefinição, eximir-se de responsabilidades concorrentes.
Historicamente, os Estados têm, com freqüência, tentado repassar encargos aos Municípios,
sem os correspondentes recursos financeiros ou técnicos. O discurso e as práticas associadas
ao enxugamento da máquina estatal não têm revelado preocupação com a qualidade do ensino.
Por vezes, Municípios pretendem assumir encargos acima de suas possibilidades. A justa divisão
de responsabilidades deverá sempre ter como critérios a eqüalização de condições pedagógicas
e materiais e o padrão mínimo de qualidade. Não deve bastar apenas um ou outro critério; a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
335
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
solução, no caso de escassez para que se alcance o padrão mínimo e comum às escolas municipais
e estaduais, poderá ser a ação supletiva da União (CF, art.211, § 1
o
; LDB, art. 8
o
, § 1
o
).
São ilimitadas as possibilidades de parceria e cooperação entre as diferentes instâncias
administrativas do país, em matéria de educação. Entretanto, a Constituição Federal e a LDB,
assim como a Lei do FUNDEF (Lei Federal n
o
9.424/96), indicam aspectos em que a colaboração
entre os sistemas de ensino deve ser obrigatoriamente implementada:
n Quanto à divisão de encargos
Ø Estados e Municípios devem definir formas de colaboração na oferta de ensino
fundamental, assegurando distribuição proporcional das responsabilidades, ou seja, das
matrículas, ajustada à capacidade de atendimento de cada esfera, conforme disposições legais
(CF, art. 11, § 4
o
, alterada pela EC n
o
14/96; LDB, art. 10, II, e art. 75, § 2
o
);
Ø Estados e Municípios podem celebrar convênios nos quais a transferência de
responsabilidade por determinado número de matrículas no ensino fundamental seja acompanhada
da correspondente transferência de recursos financeiros (Lei n
o
9.424/96, art. 3
o
, § 9
o
).
Além dessa divisão da responsabilidade pelas matrículas, Estados e Municípios podem
definir outras divisões de encargos na oferta da educação, principalmente do ensino fundamental.
Por exemplo:
Ø na descentralização da merenda escolar, os municípios vêm assumindo, com repasse de
recursos federais, a execução desse programa suplementar também para as escolas estaduais.
Há, no entanto, casos em contrário;
Ø quanto ao transporte escolar, a Constituição do Rio Grande do Sul determina que o
Estado, em cooperação com os Municípios, deve desenvolver programas de transporte para
garantir o acesso de todos à escola (CE, art. 216, § 3
o
).
n Quanto ao estabelecimento de normas
Ø a União, em regime de colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
deve estabelecer competências e diretrizes para os currículos e conteúdos mínimos da educação
básica (CF, art. 210 e LDB, art. 9
o
, IV);
Ø a União, em colaboração com os Estados, Distrito Federal e os Municípios, deve estabelecer
padrão mínimo de oportunidades educacionais para o ensino fundamental (LDB, art. 74).
Além dessas normas, a serem definidas em regime de colaboração, cabe à União definir
outras normas gerais para a educação nacional (CF, art. 24, § 1
o
; LDB, art. 8
o
, § 1
o
). Aos Estados e
Municípios, cabe baixar normas complementares para os seus respectivos sistemas de ensino
(LDB, art. 10, V e art. 11, III). Portanto, Estados e Municípios, no caso da organização dos seus
sistemas municipais de ensino, são, por exemplo, igualmente responsáveis por definir: normas
para autorização de instituições de ensino; parte diversificada do currículo; procedimentos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
336
para a avaliação do rendimento escolar, a recuperação e a avaliação relativa ao ingresso na
escola independentemente de escolarização anterior; organização curricular em séries, semestres,
ciclos ou outras formas alternativas; definição da relação adequada entre número de alunos e
professores. Esses elementos serão melhor comentados no texto sobre os aspectos pedagógicos.
Para que a desejada descentralização da educação, necessária frente à diversidade cultural
do país, não coloque em risco a unidade regional e nacional, é recomendável que o regime de
colaboração seja também implementado entre os órgãos normativos dos sistemas estadual e
municipais de ensino.
n Quanto ao planejamento
Ø a União, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, deve
elaborar o Plano Nacional de Educação, organizar o sistema de informações educacionais e
implementar processo nacional de avaliação do ensino (LDB, art. 9
o
, I, V e VI);
Ø os Estados devem elaborar Planos Estaduais de Educação articulando-os com o Plano
Nacional e integrando as ações de seus respectivos Municípios (LDB, art. 10, III), e os Municípios
devem organizar seus sistemas de ensino integrando-os às políticas e planos educacionais da
União e dos Estados (LDB, art. 11, I);
Ø Estados e Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da União, devem
recensear a população para o ensino fundamental, fazer a chamada pública e zelar pela
freqüência à escola (LDB, art. 5
o
, § 1
o
).
Do exposto, é possível concluir que o regime de colaboração pode ocorrer entre todos os
sistemas de ensino ou, em cada unidade federada, apenas entre o sistema estadual e os municipais.
É importante destacar que a colaboração entre o Município e o Estado no que se refere à divisão
de responsabilidades pela oferta do ensino fundamental e a colaboração entre o Município e as
demais instâncias federadas no que se refere ao planejamento educacional (especialmente em
relação à elaboração dos planos de educação e realização de censos educacionais) pode verificar-
se, como já vem de certa maneira ocorrendo, mesmo sem a organização do sistema municipal de
ensino. Entretanto, é bom alertar que, sem o sistema municipal organizado e, portanto, com a
manutenção da rede de escolas municipais de forma integrada ao sistema estadual de ensino, a
tendência será a de que a relação entre Município e Estado mantenha as características atuais de
hierarquia, verticalidade e subordinação, encontrando dificuldades para evoluir em direção a
uma relação horizontal e autônoma entre iguais.
Já a colaboração no que se refere ao estabelecimento de normas de organização e
funcionamento dos sistemas de ensino, especialmente à incumbência de Estados e Municípios
de baixarem normas complementares para seus respectivos sistemas, só pode verificar-se a partir
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
337
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
da organização dos sistemas municipais de ensino. Se o Município optar por permanecer integrado
ao sistema estadual, não se verificará a colaboração relativa ao estabelecimento de normas
educacionais, pois as deliberações do órgão normativo do sistema estadual continuarão se
constituindo em normas impositivas aos Municípios na administração de suas redes de ensino.
Assim, interpreta-se que, de fato, o regime de colaboração só ocorra entre sistemas de ensino,
posto que requer a vigência da própria essência dos sistemas, qual seja, a capacidade de estabelecer
normas gerais (de organização e funcionamento) que concedam unidade e coerência a um conjunto
de escolas e órgãos educacionais, distintos mas interdependentes entre si.
Não obstante, a cooperação conveniada ou eventual entre as instâncias federal e estadual
e a municipal será sempre pertinente para evitar a concorrência e a superposição de ações, ou
para a realização de planos, atividades e metas de comum interesse, mesmo que o sistema
municipal não tenha sido ainda instituído. Vale lembrar que o âmbito municipal deverá ser a
base sobre a qual se constrói o planejamento estadual e nacional, congregando todas as
instituições escolares, sejam públicas (municipais, estaduais e federais) ou privadas –
constituidoras que são da estrutura e do planejamento educacional do país.
Para a efetivação do regime de colaboração e de todas as outras possibilidades de
compartilhamento de responsabilidades entre os entes federados, torna-se necessário criar
espaços para deliberação conjunta entre as diversas instâncias envolvidas, garantindo sempre
a efetiva participação da sociedade. Por exemplo, em nível estadual, regional ou municipal, é
possível instituir grupos de coordenação ou de assessoramento constituídos por representantes
da administração estadual e das entidades representativas do(s) Município(s), que poderão
articular-se com o Poder Legislativo e representantes dos professores, estudantes e pais de
alunos, ou da comunidade em geral.
6 A GESTÃO DEMOCRÁTICA
Gestão democrática do ensino público é um princípio constitucional e legal de organização
dos sistemas e instituições de ensino brasileiros. A Constituição Federal de 1988 estabelece
esse princípio (CF, art.206,VI) ao lado de igualdade, liberdade, pluralismo, gratuidade, valorização
dos profissionais do ensino e padrão de qualidade. Atendendo à disposição constitucional de
regulamentação em forma de lei, a nova LDB exige participação e autonomia como diretrizes
pelas quais a gestão democrática deverá alcançar sua concretização. Assim sendo, determina:
a participação dos profissionais da educação na elaboração da proposta pedagógica da escola
e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (LDB,
art. 14, I e II); a progressiva autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira das
unidades escolares públicas de educação básica (LDB, art. 15).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
338
A participação dos alunos e de seus pais na gestão educacional é também protegida no
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n
o
8.069/90, art.53), que garante seu acompanhamento
e intervenção nas definições sobre a proposta e a condução pedagógica e na avaliação, bem
como garante aos alunos a sua organização e participação em entidades estudantis.
A LDB indica, ainda, que os sistemas de ensino também devem regulamentar o princípio da
gestão democrática no nível da educação básica. Castro [1998, p. 152] entende que isso é justo
porque as experiências de organização escolar e dos sistemas de ensino são muito diversificadas
e não caberia pensar na adoção de uma fórmula única pela legislação federal. Assim, fica
evidente a importância de contar com Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação
cuja composição represente os interesses dos segmentos educacionais – mantenedores e
profissionais – bem como da sociedade, embora esses órgãos colegiados não tenham sido
explicitamente previstos na Lei [Abreu, 1998, p.75-78; Cury, 1997, p. 107-108].
A interpretação do significado político, administrativo e pedagógico do princípio de gestão
democrática é beneficiada pela compreensão de que o texto constitucional apenas veio consagrar
e reforçar iniciativas já exitosas em vários Estados e Municípios, no sentido de dotar as escolas
de maior responsabilidade profissional e comunitária, conseqüentemente de maiores
possibilidades de eficácia. Dentre estas destacam-se:
Ø no plano pedagógico – o planejamento geral e coletivo da escola, a proposta pedagógica,
o projeto de educação continuada do corpo docente e de apoio, a auto-avaliação institucional;
Ø no plano administrativo – a instituição de conselhos escolares e a escolha dos dirigentes
pela comunidade escolar, o regimento escolar não padronizado, o quadro de pessoal por escola;
Ø no plano da gestão financeira – o orçamento descentralizado e o repasse de recursos
financeiros para administração direta pela escola.
Essas e outras medidas vêm responder à necessidade de que as escolas tenham mais
espaço de decisão para promoverem as ações requeridas com vistas a alcançar maior qualidade
e, por conseguinte, maior eqüidade. As vantagens da maior autonomia às escolas e sua
comunidade, com o devido suporte institucional, têm sido amplamente reconhecidas no país e
internacionalmente. No entanto, nesta tese são sempre condicionadas advertências de que a
descentralização não poderá acobertar omissão ou descaso para com as condições de trabalho
pedagógico, nem permitir que se perca a imprescindível unidade do sistema de ensino ou do
Plano Municipal ou Estadual de Educação. Fica, pois, ressaltada a importância do papel
competente dos órgãos e serviços centrais dos sistemas de ensino, balizados pelos princípios
e diretrizes constitucionais e legais e das políticas públicas, que enfatizam sua função
redistributiva e os recursos do planejamento e da avaliação (LDB, art. 10 e 11).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
339
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
Assim sendo, as análises com vistas à promoção da justiça no que se refere ao princípio da
gestão democráticaa participação e a autonomiapoderão tomar como parâmetros, além do
ordenamento legal da educação e de proteção à criança e ao adolescente, também os instrumentos
de ordenamento institucional dos órgãos dos sistemas de ensino e das unidades escolares,
que são complementares e reconhecidos nos textos constitucionais e legais. Exemplos desses
instrumentos são:
Ø os decretos e instruções dos Poderes Executivos, os Planos Estaduais e Municipais de
Educação;
Ø os regimentos e as resoluções e pareceres dos conselhos normativos dos sistemas;
Ø os regimentos, planos, propostas pedagógicas, calendários das escolas;
Ø os orçamentos públicos, os planos de aplicação de recursos dos sistemas e seus órgãos
e das escolas, os balanços e balancetes;
Ø as atas, relatórios e avaliações dos sistemas e das unidades escolares e de seus órgãos,
como o conselho escolar;
Ø as estatísticas e outros registros da vida escolar e do rendimento dos alunos.
7 FORMAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
O novo ordenamento constitucional e legal conferiu à valorização do magistério o estatuto
de princípio constitucional, em sintonia com os mais abalizados estudos que indicam a
centralidade do professor competente para a qualidade do ensino e em atenção ao consenso
nacional sobre as insuficientes exigências de formação, carreira, condições de trabalho e
remuneração dos profissionais do setor educacional.
A LDB regulamenta esse princípio dedicando o Título VI inteiramente aos profissionais da
educação, isto é, aos docentes e aos que lhes oferecem suporte pedagógico direto, incluídas as
atividades de direção ou administração escolar, planejamento, inspeção, supervisão e orientação
educacional (CNE/CEB, Resolução n
o
3/97, art. 2
o
). Destaca a formação, estabelecendo um novo
patamar mínimo de educação inicial e meios para a educação continuada. Garante estatutos e
planos de carreira para o magistério público de cada sistema de ensino, com elementos de
seleção, promoção e remuneração. Salienta ingredientes das necessárias condições para o
trabalho qualificado.
Martins (1999, p. 9), ao enfatizar o interesse basilar da sociedade em contar com professores
adequadamente formados para que alcancem pleno desenvolvimento intelectual, cidadania
profissional e a atualização necessária ao trabalho pedagógico, opina que a formação adequada
é um direito profissional do magistério e um dever do poder público. Reconhecê-los é
particularmente importante para os docentes sem a titulação mínima e para a educação continuada
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
340
de todos os profissionais da educação. Note-se que, em 1998, foram recenseadas (INEP/MEC, Censo
do Professor1997) no país mais de 1 milhão de funções docentes de educação básica ocupadas
por pessoas sem o grau superior, o parâmetro legal (LDB, art. 62) e pedagogicamente considerado
adequado; sem completar o ensino médio somam mais de 130 mil!
Para os operadores da Justiça fundamentarem suas ações de garantia da qualidade do
ensino para crianças e adolescentes, no que se refere às condições de formação e trabalho dos
docentes, podem ser feitos alguns destaques ilustrativos das exigências legalmente estabelecidas
nesta matéria:
Ø A partir da regulamentação do FUNDEFFundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Lei 9.424/96, art. 9
o
), os Estados, Distrito
Federal e Municípios devem dispor de novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério,
de acordo com diretrizes emanadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB, Res. n
o
3/
97). Ressalva-se, no entanto, que está em efeito uma liminar em ação direta de
inconstitucionalidade, suspendendo a vigência de dispositivos que estabeleciam os prazos
para essa exigência, mas conservando a exigibilidade desses planos.
Ø A formação inicial ou titulação prevista para todos os docentes da educação básica é a
de nível superior, em curso de licenciatura de graduação plena. O nível médio, na modalidade
normal, ou seja, o antigo curso de magistério em segundo grau, é admitido para a docência na
educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, apenas até 2007 (LDB,
art. 62 e 87, § 4
o
). No entanto, esta é matéria em que há divergentes interpretações, fundadas
nos interesses e avaliações da possibilidade de atender a esses dispositivos, em distintas
regiões do país, bem como em eventuais lapsos de redação do texto legal [Dutra, Abreu,
Martins e Balzano, 2000, p. 53 e 54].
Ø Os professores denominados leigos, ou seja todo e qualquer docente que não possua
titulação que o habilite especificamente para o nível, atividade ou disciplina que esteja
exercendo, devem integrar quadros de pessoal em extinção na carreira do magistério, pelo
prazo máximo de 5 anos (Lei 9.424/96, art. 9
o
). Até o final do ano 2001, é permitida a aplicação
de parte dos recursos públicos do FUNDEF previstos para remuneração dos profissionais da
educação na habilitação de professores leigos (Lei 9.429/96, art. 7
o
, parágrafo único).
Ø A educação continuada deve ser garantida nos estatutos e planos de carreira do magistério
público, inclusive com afastamento periódico remunerado (LDB, art. 67, II).
Ø O ingresso na carreira do magistério público far-se-á exclusivamente por concurso público
de provas e títulos (LDB, art. 67, I), a realizar-se, pelo menos, de 4 em 4 anos (CNE/CEB Res. n
o
3/
97, art. 3
o
, § 2
o
).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
341
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
Ø A remuneração tem por base piso salarial profissional e progressão funcional que
considere a titulação ou habilitação e a avaliação do desempenho (LDB, art. 67, III e IV).
Ø As atividades docentes de estudo, planejamento e avaliação, de acordo com a proposta
pedagógica da escola, devem ter período reservado (horas-atividade), incluído na carga de
trabalho (LDB, art. 67, V e CNE/CEB, Resolução n
o
03/97, art. 6
o
, IV).
Ø O exercício de quaisquer funções de magistério que não a de docência, como
administração, supervisão ou orientação educacional, exige experiência docente mínima de 2
anos, adquirida em qualquer nível ou sistema de ensino público ou privado (CNE/CEB, Res. n
o
03/97).
Ø Os benefícios funcionais do magistério, no que se refere a licenças e faltas, são apenas
os previstos na Constituição Federal, tendo em vista coibirem-se afastamentos da escola e das
atividades docentes.
Ø As despesas decorrentes da remuneração de profissionais da carreira do magistério,
legalmente cedidos a outras funções fora do sistema de ensino, devem ser realizadas sem ônus
para o sistema de origem (CNE/CEB, Res. n
o
3/97).
Ø As prerrogativas de condições de trabalho, incentivos de progressão funcional por
qualificação de trabalho docente e vantagens de remuneração são regulamentadas
complementarmente na já citada Resolução n
o
3/97, artigo 6
o
.
8 TENDÊNCIAS DA LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS
A análise da organização da educação até agora realizada tem como principais referências
o novo ordenamento constitucional e legal, ou seja, revisa os elementos formalizadores das
reformas educacionais que vêm sendo realizadas no país, enfatizando os direitos e deveres em
matéria de educação básica. Assim, como indicado na introdução deste texto, dado o seu
objetivo central, tratou-se de apresentar o instituído, mas procurando-se iluminar a face que
possa servir aos interesses dos grupos que mais dependem de apoio para alcançar direitos e
condições há muito já alcançados por outros. Tratou-se, por conseguinte, de identificar pontos
e estratégias para garantir mais justiça na e para a educação. Em tal perspectiva, vale recordar
os critérios fundamentais de eqüidade e qualidade, como diretrizes maiores de uma ação
política no setor da educação. O primeiro, referenciado na igualdade de condições entre os
sujeitos de direito (e não apenas na igualdade de oportunidades, compreendendo, inclusive, a
noção de políticas compensatórias), esteia-se na compreensão da multiculturalidade em nossa
sociedade e sustenta ações diferenciadas, mas com sentido unitário, para a construção da
cidadania e da nação. O segundo, referenciado nos objetivos da educação nacional, de formação
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
342
para a vida em família, na comunidade e no trabalho, esteia-se na compreensão da importância
dos conteúdos e das capacidades associadas ao desenvolvimento afetivo, social e cultural,
próprios da educação escolar no mundo contemporâneo.
Na expectativa de que os magistrados e membros do Ministério Público dedicados à causa
da infância e da juventude possam, precipuamente, trabalhar com os segmentos organizados
da sociedade civil e as diversas instâncias do poder público no sentido de melhoria sempre
progressiva das condições sociais e institucionais de escolarização, cabe destacar os traços
principais da dinâmica de ordenamento dos direitos e deveres em matéria de educação, bem
como as perspectivas que se tentam desenhar para efetivos avanços no campo das políticas
públicas de educação básica.
8.1 PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
A participação da sociedade civil na formulação, no acompanhamento e na avaliação das
normas e políticas educacionais é uma proposta em amplo desenvolvimento político e
institucional. Essa participação, vinculada radicalmente ao movimento de democratização social
e política, dá-se de forma sistemática pela presença respeitada e atuante de representantes dos
alunos, das famílias e das comunidades nos conselhos escolares e nos Conselhos Municipais,
Estaduais e Nacional de Educação, de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEF, de
Alimentação Escolar e de Direitos da Criança e do Adolescente. Dá-se também pela participação
eventual nas questões políticas e pedagógicas e nos processos de planejamento ou normatização
que mobilizem a opinião pública ou a manifestação de segmentos particulares, como na
elaboração de planos de educação, nas emendas populares por alguma legislação, nas audiências
públicas dos Poderes Legislativos diante de casos político-administrativos e projetos de lei,
assim como em busca e em defesa de questões e interesses mais específicos de uma comunidade,
a exemplo de reivindicações pela instalação de uma escola, pela ampliação de séries e etapas
escolares, ou pela melhoria das condições materiais e pedagógicas.
Deve-se, no entanto observar que a intensidade e a qualidade da participação popular e
organizada depende em muito das condições sociais e políticas gerais da comunidade ou da
região, das oportunidades criadas por lideranças ou pelo poder político local. Preocupam,
sobremaneira, a dificuldade de alguns dirigentes municipais e estaduais para reconhecerem e
implementarem efetivamente representações da sociedade civil, inclusive cristalizadas pela
sua “indicação” pelos governantes, bem como as dominações clientelistas ou fisiológicas a que
muitas vezes se submetem as entidades de representação sindical e comunitária. Ou seja, não
podem os conselhos e conselheiros que representam os segmentos sociais ser “chapa branca”,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
343
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
atuando como apêndices ou representantes do Poder Executivo nem, por outro lado, pretender
atuar em simples e direta oposição inibidora de quaisquer iniciativas ou projetos do Executivo.
Assim sendo, a capacidade estimuladora, orientadora e moderadora da participação popular e
comunitária dos operadores da Justiça, no âmbito de suas respectivas jurisdições, poderá ser
da maior importância para a definição e o cumprimento de normas e políticas de proteção ao
direito à educação pública de qualidade. O controle das instâncias de Estado encarregadas de
precipuamente zelar pelos interesses da cidadania poderá, por suas funções exemplar e
instrumentalizadora, potencializar a participação e o controle social.
8.2 DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA
Em curso desde as reformas educacionais da década de 70, a descentralização ocorre entre
os sistemas de ensino e nos sistemas de ensino pela transferência de responsabilidades, pela
delegação de competências, pela cooperação ou, ainda, pela indicação mais explícita de
atribuições. Esse movimento, que é dominante, tem, ao mesmo tempo, alguns concorrentes em
sentido contrário e não se aplica indistintamente a todas as áreas e funções da gestão do setor
escolar. Com efeito, verifica-se na nova legislação e nas prioridades do governo federal várias
iniciativas em que a União deixa de ser um executor direto de ações na educação básica, como
a compra e distribuição da alimentação escolar e o financiamento de projetos de construção e
manutenção escolar; de outra parte, a União amplia suas possibilidades de planejamento e
controle, por meio de sistemas de informação e de avaliação da gestão e, inclusive, do currículo,
dos livros didáticos e do rendimento dos alunos. Os Estados, quase todos mantenedores da
maior rede escolar de educação básica, têm atuado no sentido de municipalizar a educação
infantil e o ensino fundamental, por meio de instrumentos e modelos de distribuição e encargos
ou cooperação muito variados.
Esses instrumentos e modelos carecem de atento exame por parte dos Poderes Legislativo,
Judiciário, do Ministério Público e da sociedade organizada para que se evitem soluções
incompatíveis com os princípios da eqüidade e da qualidade do ensino e com o respeito à
autonomia municipal. A maioria dos municípios, por seu turno, ainda percebem muito
timidamente os espaços para sua atuação em matéria de formulação política e pedagógica e de
controle e avaliação do processo escolar. Poucos são os Municípios que já constituíram seus
sistemas municipais de ensino, podendo gozar de prerrogativas normativas; ficam, por
conseqüência, subordinados às determinações e prioridades do respectivo estado e deixam de
buscar apoio noutros possíveis parceiros para o desenvolvimento educacional da região, como
as universidades e outros Municípios, seja para o recrutamento e a qualificação docente, ou
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
344
para os projetos da rede física ou currículo escolar. Poucas são também as situações em que o
regime de colaboração é compreendido e praticado em sua radicalidade e potencialidade.
É importante, pois, notar que o assumir responsabilidades, seja pelo Estado, pelo Município
ou pela unidade escolar, exige quadros de pessoal com competência, infra-estrutura física e
organizacional, bem como os correspondentes investimentos públicos. Mas que nem todas as
necessidades sociais dos educandos, sejam crianças, jovens ou adultos, cabem com exclusividade
ao setor da educação. A intersetorialidade
4
é uma diretriz igualmente presente nas políticas e
na legislação contemporâneas, que pressupõem a convergência da ação de diversos setores
governamentaissobretudo seguridade social e educaçãoe de profissionais de diversas
especialidades para que se alcance a proteção e o desenvolvimento integral dos educandos.
Com a descentralização, potencializam-se as possibilidades da intersetorialidade; todavia,
esteiadas em macropolíticas também identificadas com ambas as diretrizes.
8.3 AUTONOMIA DAS ESCOLAS
O movimento pela maior autonomia das escolas corresponde, em parte, a uma demanda
dos professores e das comunidades para que o projeto pedagógico, a estrutura interna e as
regras de funcionamento da unidade escolar possam ser constituídos mais coletivamente e
com maior identidade e responsabilidade institucional. Essa demanda encontra também respaldo
na noção de sistema de ensino, que compreende os órgãos administrativo e normativo comuns
e um conjunto de unidades escolares autônomas. As relações orgânicas entre os órgãos centrais
e as unidades dão-se por meio do planejamento, do acompanhamento e da avaliação, que
deverão envolver participação de todas as instâncias em todas essas funções, com transparência
e publicização, de modo a garantir-se a co-responsabilidade pela eqüidade e pela qualidade
do ensino, em nível municipal, estadual e nacional. Assim sendo, a tendência é de que todas
as unidades escolares, do ponto de vista administrativo e financeiro, venham a ter seus próprios
regimentos (não o outorgado pela mantenedora), quadro de pessoal, orçamento para pequenas
despesas e investimentos aprovados nas instâncias superiores; do ponto de vista pedagógico,
que cada escola elabore sua proposta pedagógica, planos de estudo e projetos de avaliação.
Esses elementos todos devem contribuir para e responder aos padrões mínimos estabelecidos
no respectivo sistema de ensino.
4
Essa categoria foi trabalhada com destaque por Farenzena, Nalú e Luce, Maria Beatriz no estudo denomina-
do O novo ordenamento constitucional, legal e institucional da atenção à criança de 0 a 6 anos, produzido
no escopo do Plano Estadual de Atenção à Infância no Rio Grande do Sul, em 1993.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
345
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃOQUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM?
Marisa Timm Sari e Maria Beatriz Luce
8.4 PADRÕES MÍNIMOS DE QUALIDADE DO ENSINO
Reconhecidos constitucional e legalmente como um princípio de organização dos sistemas
de ensino, representam hoje o principal desafio político e técnico para a educação brasileira.
O Plano Nacional de Educação, cujo projeto de lei está em exame no Congresso Nacional,
indica metas para definição dos padrões mínimos em termos de condições físicas e técnicas de
infra-estrutura e dos recursos humanos necessários ao ensino de qualidade, bem como os
correspondentes investimentos por aluno. É pertinente alertar que as circunstâncias sociais,
culturais e econômicas, locais e regionais, poderão sempre indicar a conveniência de elevação
dos padrões e custos mínimos por aluno; o padrão mínimo nacional (dado por indicadores de
condições materiais, humanas e financeiras), por certo, deverá ser superado na maior parte
dos sistemas estaduais e municipais de ensino, pela iniciativa de educadores, dirigentes e
lideranças comunitárias e pelo apoio da Justiça.
9 COMENTÁRIOS FINAIS
Concluindo esta revisão comentada sobre a nova organização da educação e as tendências
da legislação e da política educacional, com a finalidade de facilitar o diálogo e a ação dos
magistrados e membros do Ministério Público em prol do direito à educação, cabe salientar
que, guardadas peculiaridades locais e regionais, nosso país vem obtendo sucesso no alcance
de metas de acesso escolar, mas que ainda nos restam muitos degraus na escalada dos padrões
de escolarização compatíveis com nosso desenvolvimento econômico e científico-tecnológico.
Ainda são marcantes características da educação brasileira a desigualdade e a baixa qualidade
de ensino, frutos de condicionantes históricos, do modelo político-administrativo e de
investimentos públicos, bem como das precárias condições de formação, de trabalho e de
remuneração do magistério. Portanto, justiça na educação há de requerer uma atenção vigorosa
para com as concepções basilares de direito à educação e de obrigações do Estado e da
sociedade, sustentadas pelos princípios ético-políticos de eqüidade e qualidade do ensino.
Se muito temos avançado para dotar o novo ordenamento constitucional e legal da educação
da abrangência, da explicitação e da flexibilidade que permitem atenção às necessidades
multiculturais e individuais com o objetivo de igualdade de condições para o ensino de
qualidade, é mister reconhecer o contraponto, também importante, referenciado nas noções
de sistema, de padrão de qualidade e de gestão democrática, fundadas nos princípios da
democracia e da República Federativa. Nessas posições, com implicadas mediações, constrói-
se um novo espaço de atuação dos educadores, dos atores políticos, do corpo de Estado e da
sociedade. A formação de uma consciência de direitos e deveres faz-se, em muito, na prática da
promoção das políticas públicas, sustentada, é claro, pela aplicação da justiça.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
346
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e 212 da Constituição Federal e dá nova redação ao art. 60 do Ato das Disposições
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BRASIL. Lei n.9.394, de 20 de dezembro de 1996. Fixa diretrizes e bases da educação nacional.
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e dá outras providências.
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Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma prevista
no art. 60, § 7
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da Lei n
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MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
349
10
CAPÍTULO
O DIREITO DE APRENDER DIREITO:
GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela*
Esmeralda Moura**
Eni Santana Barretto Bastos*
SUMÁRIO
1 DESAFIOS À EDUCAÇÃO ..... 350
2 ENFRENTANDO OS DESAFIOS ..... 354
3 O DIREITO À QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 363
4 GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 366
4.1 GESTÃO DA ESCOLA ..... 369
4.2 APOIO DAS AUTORIDADES ..... 370
4.3 UTILIZAÇÃO DO TEMPO ..... 371
4.4 ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ..... 374
4.5 VALORIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS ..... 375
4.6 COMPOSIÇÃO E DINÂMICA CURRICULAR ..... 378
4.7 ORIENTAÇÃO DIDÁTICA ..... 381
4.8 FORMAS DE AVALIAÇÃO ..... 385
4.9 PARTICIPAÇÃO DOS PAIS ..... 387
4.10 RECONHECIMENTO PÚBLICO ..... 389
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..... 389
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 392
* Professora da Universidade Federal da Bahia. Consultora em Educação.
** Professora da Universidade Federal de Alagoas. Consultora em Educação
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
350
O Brasil, nos últimos anos, impulsionou o processo de mobilização social pela garantia
do direito à educação e ampliou efetivamente as oportunidades de acesso à escola.
Entretanto, é urgente implementar a permanência bem-sucedida dos alunos, ou seja, a
qulidade de ensino. Este texto, cujo eixo é a gestão pedagógica da educação, oferece aos
operadores da Justiça a oportunidade de uma reflexão aprofundada sobre o papel da
escola e das aprendizagens fundamentais para a sobrevivência dos povos no mundo
contemporâneo. Analisa as principais estatísticas educacionais brasileiras, concluindo que
os avanços alcançados não se traduzem ainda em evolução do nível de conhecimentos e
habilidades cognitivas das crianças e adolescentes. Além disso, ressalta a necessidade de
vigilância regular e sistemática das políticas implementadas e de seus resultados por parte
não só dos gestores governamentais, mas das famílias e dos operadores do Direito,
especialmente quanto aos principais indicadores de rendimento ou produtividade do
sistema de ensino.
A qualidade da educação escolar pode ser definida? De que qualidade se está falando?
A partir de que parâmetros ela pode ser avaliada? Essas e outras questões são discutidas no
texto que apresenta dez referenciais de qualidade de uma escola para os dias atuais.
1 DESAFIOS À EDUCAÇÃO
“O Brasil chega a reta final do século e do milênio confrontado com três grandes desafios:
(1) inserir-se de forma competitiva na economia internacional em irreversível e acelerado processo
de globalização; (2) erradicar as desigualdades sociais intoleráveis; e (3) elevar os níveis de
participação democrática e de respeito aos direitos humanos da população. Todos nós sabemos
que uma economia competitiva, uma sociedade mais justa e um Estado democrático de direito
forte e consolidado começam na sala de aula do ensino fundamental.”
A. S. Gomes da Costa
Da análise da literatura produzida, nas três últimas décadas, em diversas áreas do
conhecimento, chama atenção a ênfase dada à necessidade de se promover, cada vez mais, o
acesso a uma educação que possibilite ao cidadão enfrentar as demandas e desafios da
contemporaneidade. Já em 1979, Lyotard, por encomenda do conselho universitário que assessora
o governo de Quebec, produziu um relatório sobre o saber nas sociedades desenvolvidas e,
entre outras conclusões, assinalou o fato de que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
351
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
“(...) o saber se tornou a principal força produtiva, o que já modificou de modo notável a
composição da população economicamente ativa nos países mais desenvolvidos, que constitui o
principal ponto de estrangulamento para os países em desenvolvimento (...) Em sua forma de
mercadoria-informação indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será cada vez mais um
dos maiores prêmios em jogo, senão o mais importante, da concorrência mundial pelo poder.
Assim como os Estados-nação se bateram para dominar territórios, e mais tarde para controlar o
acesso e a exploração das matérias-primas e da mão-de-obra barata, podemos considerar a hipótese
de que, no futuro, eles se baterão para dominar a informação”
1
(p. 66-67).
Tal constatação, também presente nos discursos de outros estudiosos sobre os rumos que
vem tomando a sociedade atual, indica, ao mesmo tempo, o risco da exacerbação das diferenças
entre países ricos e pobres e a produção de nova forma de analfabetismo e exclusão social.
O conhecimento teórico-técnico, auxiliado pelas tecnologias da informação e pela
capacidade de invenção, passa a ser a força de trabalho de maior valor e, portanto, a educação
e a criatividade se constituem em meios necessários e indispensáveis para uma inserção na
vida social e no mundo do trabalho. Os estudiosos de fenômenos da contemporaneidade
globalização, inovações tecnológicas, transformações na organização do trabalho e aumento
acelerado das possibilidades de comunicação e de informação – vêm apontando a educação
como um dos principais problemas a serem enfrentados por qualquer país que se situe no
cenário da competição/integração planetária, que está a exigir uma crescente formalização de
requisitos educacionais. Até mesmo a circulação nas grandes cidades impõe, hoje, a necessidade
de se lidar com situações cada vez mais complexas, promovendo o acesso a bens cuja utilização
exige conhecimentos dificilmente apropriáveis tão-somente por meio de experiências cotidianas
extra-escolares.
Todas essas circunstâncias, fruto do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, vêm
criando condições objetivas para que o homem seja, ao mesmo tempo, universal e tribal (“local
e não local”),
2
o que implica a necessidade do desenvolvimento de competências cujo exercício
extrapola os limites do local e, simultaneamente, fortalece os vínculos e a identidade com esse
local. Ademais, as mudanças que estão marcando a história recente das sociedades não são
episódicas ou transitórias, mas se caracterizam pela rapidez com que estão ocorrendo, pela
sua constância, pela sua imprevisibilidade e pelas suas conseqüências em todos os setores da
atividade humana, implicando desafios com características que se expressam tanto na dimensão
“social”, quanto nas dimensões “material” e “temporal”.
3
1
Ver notas e referências bibliográficas a partir da página 392.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
352
Ao se considerar que, neste cenário, os países com populações que apresentam os mais
elevados níveis de educação escolar se situam em posição privilegiada em relação àqueles
com baixo padrão de escolaridade, podem-se vislumbrar as dificuldades dos demais que,
como o Brasil, não possuem o lastro de uma educação básica universalizada.
4
Segundo Ribeiro,
5
“O Brasil tem garantido, até agora, sua participação na economia mundial pela abundância de
matérias-primas e pela adoção de um modelo de sociedade no qual uns poucos instruídos, de um
lado, e uma massa de trabalhadores semi-alfabetizados com baixos salários, como reserva de mercado,
de outro, permitia prescindir de uma educação formal universalizada. Este formato de sociedade
esgota-se a cada momento...”(p. 64).
A sociedade que não dispuser de uma forte estrutura educacional estará, portanto, em
posição de desvantagem em relação às demais e essas desigualdades tendem a se acentuar. A
escola, parte integrante e central dessa estrutura educacional, é a única instituição do mundo
moderno e contemporâneo diretamente responsável pelo desenvolvimento de instrumentos
indispensáveis à sobrevivência na sociedade atual, que está a exigir um nível de letramento
cada vez mais avançado. Assim, a escola é o lugar privilegiado para o encontro da criança e do
jovem com o saber sistematizado, para que possam se apropriar do conjunto de normas e de
regras que regem o mundo letrado. A capacidade para usar material escrito é, no mundo
contemporâneo, imprescindível para o acesso a todo tipo de informação, tornando o uso da
leitura cada vez mais necessário à participação efetiva do cidadão em atividades produtivas e
coletivas. O não-domínio do mecanismo da leitura já é, por si só, gerador de desvantagens e
de dependências, na perspectiva de uma qualificação intelectual, que, juntamente com o
desenvolvimento emocional e afetivo, são apontados, atualmente, como as principais fontes
de competência. Essa competência, por sua vez, vem sendo entendida como maior capacidade
de abstração e de raciocínio, maior capacidade de tomar decisões, de trabalhar em equipes, de
assimilar mudanças, de exercer a autonomia, de praticar a solidariedade, de acolher e respeitar
as diferenças. Considerando-se que tais conhecimentos / habilidades / atitudes requeridos
dos cidadãos têm um alto nível de complexidade e, por isso, não podem ser improvisados, ou
rapidamente treinados e, sim, construídos em um processo sistemático, longo, contínuo e
realizado em tempo próprio, a escola é a principal instituição responsável pelo seu
desenvolvimento.
No relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI,
6
Jacques
Delors considera que, para responder às demandas da vida contemporânea, à educação cabe
“fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao
mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele” (p. 89). Para isso,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
353
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
“(...) deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda
a vida, serão, de algum modo, para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer,
isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio
envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as
atividades humanas; finalmente, aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes” (p.
89-90).
De acordo com Delors, essas aprendizagens, com muitos pontos de contato, de
relacionamento e de permuta, constituem quatro vias do saber, que não podem depender
exclusivamente de circunstâncias aleatórias ou ser consideradas, as duas últimas, como um
prolongamento natural das primeiras, mas “cada um dos quatro pilares do conhecimento deve
ser objeto de atenção igual por parte do ensino estruturado, a fim de que a educação apareça
como uma experiência global a se levar a cabo ao longo de toda a vida, no plano cognitivo
como no prático, para o indivíduo enquanto pessoa e membro da sociedade” (p. 90).
Embora não se possa mais atribuir à educação escolar o tradicional papel de equalizador
de oportunidades, os que a ela não têm acesso ou aqueles que têm esse acesso limitado, seja
pelos poucos anos de estudo, seja pela má qualidade da escola freqüentada, terão, certamente,
restringidas suas oportunidades de participação social, de trabalho e de manutenção de níveis
de renda compatíveis com o atendimento de necessidades básicas de consumo e com o acesso
a bens e serviços indispensáveis a uma sobrevivência digna. Em outras palavras, quanto mais
restrito o acesso a uma educação escolar de qualidade, mais reduzidas as condições necessárias
à plena cidadania, compreendida como o exercício efetivo dos direitos atribuídos por uma
sociedade a todos os seus membros, e o cumprimento dos respectivos deveres, indispensável
para a convivência social.
Diante de todas as considerações feitas até aqui, não surpreende que se venha constatando,
no Brasil dos últimos anos, um rápido avanço da consciência social quanto à importância da
educação no mundo contemporâneo, quanto ao direito de acesso à escola e, todavia com
menor intensidade, quanto ao direito a uma educação escolar de qualidade. O espaço ocupado
pelo assunto nos meios de comunicação, a expansão das matrículas, o aumento de investimentos
de empresas privadas em projetos educacionais e o crescimento do número de ONG financiando/
executando experiências na área da educação são algumas das evidências que podem ser
assinaladas. As iniciativas governamentais, por sua vez, por meio da implementação de
programas e campanhas, têm contribuído para atender às demandas identificadas no setor
educacional e para impulsionar o processo de mobilização da sociedade pela garantia dos
direitos à educação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
354
É importante destacar que, ao lado da ampliação das oportunidades de acesso à educação
básica, outras medidas urgentes precisam ser implementadas pelo Brasil, neste final de século,
7
para a garantia da permanência bem-sucedida dos alunos na escola. Para isso, torna-se
necessário: a regularização do fluxo escolar pelo combate à repetência e à evasão, a elevação
dos níveis de qualificação dos profissionais do magistério,
8
a revisão dos currículos e a superação
das estruturas pedagógicas tradicionais, predominantes até o momento. É necessário, pois,
assegurar também o direito à qualidade, uma qualidade que promova o acesso ao conhecimento,
à informação, ao saber em sentido amplo, à experiência ímpar da aprendizagem escolar, para
toda a população brasileira. A adoção dessas medidas, aliadas a outras iniciativas que lhes
dêem suporte, sobretudo as que enfatizam o resgate e a valorização da dimensão pedagógica
do trabalho escolar, permitem vislumbrar, em um horizonte não muito distante, mudanças
importantes nos indicadores de qualidade e avanços na direção do novo padrão educacional
que o Brasil está desafiado a construir. As políticas públicas de educação implementadas nos
últimos anos, as tentativas de atuação conjunta dos três níveis de governo e a mobilização da
sociedade pela recuperação da escola pública situam-se nessa perspectiva. Os resultados,
apresentados no item seguinte, indicam que algumas mudanças já estão em curso.
2 Enfrentando os Desafios
“(...) há um consenso com relação a êxitos durante os últimos dez anos na área educacional,
assim como, com a necessidade de se desenhar uma nova proposta de agenda para o próximo
milênio que irá reafirmar a educação básica como um direito humano.”
Declaração de Recife dos Países Membros do EFA-9 – 2.2.2000
A década de 90 inaugurou uma nova fase para a educação brasileira, marcada não só pela
presença de novos instrumentos legais, mas, sobretudo, pela implementação de políticas públicas
que vêm contribuindo para o início da reversão de um quadro de precariedade do ensino
público no país. Esse quadro vinha se aprofundando ao longo das décadas anteriores, em
razão da insuficiência de investimentos e de decisões políticas capazes de contribuir, de fato,
para atender ao crescimento acelerado do número de alunos oriundos de segmentos da
sociedade que antes não tinham acesso à escola e, ao mesmo tempo, manter um padrão de
qualidade que assegurasse a esses alunos, no mínimo, o direito à aprendizagem.
Importante considerar, neste contexto, a Conferência Mundial de Educação para Todos –
realizada em março de 1990, em Jomtien, Tailândia –, que resultou em um consenso global dos
países participantes quanto à exigência de uma educação universal de qualidade, focalizando,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
355
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
de modo especial, os mais pobres. No relatório de 1999, do UNICEF (organismo co-patrocinador
dessa conferência), sobre a situação da infância no mundo, pode-se ler o seguinte comentário:
“A Conferência de Jomtien marcou uma mudança significativa na forma pela qual os países de
todo o mundo abordavam a educação, ampliando o conceito de educação básica de qualidade,
juntamente com uma nova compreensão de como oferecê-la”
9
(p. 13).
Durante o evento foram estabelecidas seis metas básicas: ampliação dos cuidados à criança
e promoção do seu desenvolvimento; acesso universal à escola, até o ano 2000, e conclusão da
educação primária; aprimoramento das realizações no campo da aprendizagem; redução, de
1990 a 2000, em 50%, das taxas de analfabetismo de adultos, com ênfase na alfabetização de
mulheres; ampliação da educação básica e da qualificação, para jovens e adultos; aprimoramento
da difusão dos conhecimentos, procedimentos e atitudes. “(...) Após a Conferência, mais de
100 países estabeleceram suas próprias metas em educação e desenvolveram estratégias para
atingi-las”
10
(p. 15).
Da mesma forma que os demais países participantes dessa conferência, o Brasil, inspirado
nas recomendações de Jomtien, elaborou e implementou o Plano Decenal de Educação para
Todos,
11
definindo as políticas educacionais para a década de 90. Esse plano, todavia, não
teve impacto imediato, no sentido da mobilização da sociedade e do compromisso efetivo de
todos as instâncias envolvidas na educação nacional com o cumprimento das metas estabelecidas.
Contudo, ainda que sem a rapidez reclamada pela circunstância de encontrar-se o Brasil em
posição desvantajosa, quanto aos principais indicadores educacionais, até em relação a países
mais pobres,
12
as metas previstas no plano referido vêm sendo perseguidas e novas políticas
vêm sendo implementadas, nos anos 90, destacando-se aquelas orientadas para o ensino
fundamental. O novo Plano Nacional de Educação,
13
ora em tramitação no Congresso Nacional,
incorpora elementos do Plano Decenal de Educação para Todos e aponta para uma continuidade
das políticas em curso.
O relatório brasileiro apresentado na reunião de ministros da Educação dos países que
constituem o grupo EFA-9,
14
realizada em Recife – PE, no período de 30 de janeiro a 2 de fevereiro
de 2000, faz um balanço dos primeiros dez anos após a Conferência de Jomtien, assinalando os
avanços do período e os desafios que ainda precisam ser superados nos próximos anos. Entre
as principais conquistas do sistema educacional brasileiro, o relatório
15
menciona: o
reordenamento legal e institucional; o crescimento das taxas de escolarização; a redução dos
índices de analfabetismo; a rápida expansão do ensino médio e do ensino superior; a elaboração
de diretrizes e de parâmetros curriculares; a ascensão educacional das mulheres; o fortalecimento
do Terceiro Setor; a implantação de um moderno sistema de informações.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
356
Com relação ao reordenamento legal e institucional da educação, pode-se dizer que se
inicia com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e tem continuidade, principalmente,
com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, em 1996 (Lei 9.394/
96), e com a aprovação da Emenda Constitucional n
o
14 e conseqüente criação do FUNDEF
Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, também
em 1996 (Lei 9.424/96). Não se pode deixar de considerar ainda a aprovação do ECAEstatuto
da Criança e do Adolescente, em 1990 (Lei 8.069/90), instrumento legal que vem normatizar,
em termos amplos, os direitos do segmento da população com até 18 anos de idade e, em
casos excepcionais, do segmento situado entre os 18 e 21 anos. Em sendo a educação um
direito, reconhecido internacionalmente e contemplado, como não poderia deixar de ser, na
legislação brasileira, o ECA tem também sua importância nesse reordenamento legal e
institucional.
Ao serem examinadas as estatísticas educacionais
16
da década em análise, verifica-se que
as taxas de escolarização apresentaram o avanço mais significativo do período, crescendo
cerca de 10% a taxa de escolarização líquida (de 86,1%, em 1991, para 95,4%, em 1999). A taxa
de escolarização bruta
17
(106%, em 1991) chegou a 136%, em 1999. O atendimento escolar da
população de 7 a 14 anos, faixa de escolarização obrigatória, independentemente do nível de
ensino, já atingiu, em 1999, o percentual de 96,2. Isso significa que o Brasil já está se aproximando
da universalização do acesso ao ensino fundamental e do atendimento ao segmento populacional
na faixa etária correspondente a esse nível de ensino. Embora não se possa deixar de considerar
que os quase 4% da população de 7 a 14 anos que ainda estão fora da escola são equivalentes
a um milhão de crianças, implicando novas iniciativas governamentais, em todos os âmbitos,
para que essa universalização venha, de fato, a ocorrer, o avanço alcançado nas taxas de
escolarização já é, sem dúvida, uma conquista.
É evidente que as taxas mencionadas refletem o crescimento das matrículas observado
nos últimos anos, resultado da pressão das famílias pelas vagas na escola, nos níveis da
educação básica, das campanhas junto à população para a matrícula das crianças e/ou do
empenho, sobretudo de Estados e Municípios, para a ampliação de suas possibilidades de
atendimento. Examinando os índices de crescimento da matrícula, constata-se que esses índices
só apresentam uma variação negativa quando se consideram as matrículas no nível da educação
infantil. Em todos os demais níveis o crescimento foi positivo e sempre maior na rede pública,
excetuando-se o nível da educação superior, cujo crescimento maior se deu no conjunto das
instituições particulares.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
357
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
Em relação à educação infantil, a variação das matrículas apuradas entre 1996 e 1999 só foi
positiva na rede privada, cujo crescimento foi de apenas 3,0%. A situação aqui apresentada
pode ter outros condicionantes, mas é, certamente, também uma conseqüência do tratamento
diferenciado à educação infantil quanto ao financiamento da educação, por intermédio do
FUNDEF. Esse dado é preocupante, na medida em que, como têm demonstrado inúmeras pesquisas,
algumas já citadas, os cuidados e o atendimento à criança pequena em instituições educacionais
é também um direito, além de favorecer o seu desempenho posterior nas séries iniciais do
ensino fundamental, exatamente as que apresentam os maiores índices de retenção dos alunos.
Alcançar avanços na regularização do fluxo escolar, aspecto que será analisado, supõe, portanto,
também uma revisão da política de financiamento da educação infantil.
O ensino fundamental, nível inteiramente contemplado na política de financiamento
definida pelo FUNDEF, apresentou um crescimento de 15,5% na rede pública, de –6,9% na rede
privada e de 13% no conjunto das duas redes. Esses dados podem significar que, de um lado,
para os segmentos da população melhor situados economicamente, que podem, portanto,
arcar com os custos de uma escola particular, o ensino fundamental já é universalizado, não
havendo demanda para um crescimento da rede privada. Por outro lado, podem significar que,
para alguns desses segmentos, os que sofreram perdas salariais ou redução de renda nos
últimos anos, a possibilidade de matrícula na rede pública representa eliminação de sacrifícios
para a manutenção de seus filhos na escola. Pode significar, ainda, que a escola pública começa
a conquistar credibilidade entre os potenciais usuários das escolas particulares. É possível que
esses fatores, em conjunto ou isoladamente, estejam ocasionando uma migração de matrículas
da rede privada para a pública. Em termos gerais, o que se pode afirmar em relação aos dados
apresentados é que o crescimento das matrículas no ensino fundamental indica, sem dúvida,
mais um avanço na garantia do direito de acesso à escola, em relação ao início da década.
Contudo, foram as matrículas no ensino médio as que apresentaram maior expansão nos
últimos anos, em todas as redes. De 1994 a 1999 chegaram a um crescimento geral de 57,3%. Se
considerada só a rede pública, esse crescimento foi de 67,5%. Na rede privada o crescimento
foi menor, mas não foi insignificante (18,8%). Essas taxas refletem a pressão dos egressos do
ensino fundamental, em número crescente, diante da expansão das matrículas aliada a um
início de regularização do fluxo escolar. A despeito de tal crescimento, a taxa de escolarização
líquida da população de 15 a 17 anos, faixa etária correspondente ao ensino médio, ainda que
elevada em 9,9%, nos últimos cinco anos, só alcançou 32,6%, em 1999. Superar essa taxa é um
dos desafios a enfrentar nos próximos anos, a fim de que o ensino fundamental não se constitua
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
358
em terminalidade de estudos para a maioria da população. Como já foi anteriormente assinalado,
não é só o ensino fundamental, mas a educação básica, constituída pelos três níveis iniciais de
ensino, que se coloca no horizonte de todos os países em desenvolvimento, para que possam
suas populações se apropriar de conhecimentos e desenvolver habilidades cognitivas e
atitudinais necessários à inserção na vida contemporânea.
A educação superior também apresentou um crescimento acelerado das matrículas, na
década de 90 (28,0%), só comparável ao ocorrido na década de 70. Entre 1994 e 1998, constatou-
se um crescimento bem maior na rede privada (36,1%) do que na pública (16,6%). O número
de alunos matriculados em cursos de graduação chega, hoje, a 6,7% da população na faixa
etária correspondente (20 a 24 anos). Ainda que se considere a taxa de escolarização bruta,
esta chegou a 13,6%, em 1998, percentual muito baixo, para os padrões internacionais.
Em relação às taxas de analfabetismo, foi constatada também uma redução em todas as
faixas etárias consideradas, ocorrendo um declínio maior entre os segmentos mais jovens, o
que reflete, certamente, o atendimento prioritário das políticas públicas recentes às crianças de
7 a 14 anos. Entre a população com 15 anos ou mais de idade a redução do analfabetismo foi
de 6,3%. Considerando-se que nesses percentuais não estão incluídas as populações rurais da
região Norte, a variação nas taxas de analfabetismo pode ter sido um pouco menor do que a
indicada. A despeito da redução efetivamente constatada, a taxa de analfabetismo ainda
permanece muito elevada na região Nordeste, chegando a 27,5% da população de 15 anos ou
mais, em 1998, se comparada à das regiões Sul e Sudeste, de 8,1%, para a mesma faixa e ano.
As diferenças regionais não podem ser desconsideradas, portanto, nas decisões políticas que
precisam ser encaminhadas para o enfrentamento do problema do analfabetismo, cujas taxas,
ainda que tenham diminuído, permanecem elevadas, refletindo lacunas ou equívocos históricos
quanto a políticas adotadas nessa direção, em décadas anteriores.
Além disso, não se pode deixar de aqui fazer um comentário sobre as noções de alfabetismo/
analfabetismo. Em geral, contam-se como alfabetizados todos os que dizem saber ler e escrever.
Contudo, só uma avaliação de como se expressam essas competências poderia indicar, com
precisão, as reais condições do uso da leitura e da escrita na vida cotidiana dessas pessoas. É
importante também trazer à discussão o conceito de analfabeto funcional, categoria que
representa os segmentos da população com menos de quatro anos de escolaridade, referindo-
se esse período não ao número de anos na escola, já que esses anos nem sempre se traduzem
em anos de escolaridade, em razão da repetência. Considerando-se tal conceito e o fato de ser
mais fundamental compreender até que ponto a população dispõe dos instrumentos básicos
para uma inserção na vida social e no trabalho e para o exercício pleno da cidadania, o Brasil
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
359
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
pode apresentar uma situação de analfabetismo bem mais grave do que a apresentada, exigindo
iniciativas governamentais urgentes para que esse desafio venha a ser, efetivamente, enfrentado.
Considerando-se as taxas agregadas de transição (aprovação, reprovação e abandono)
18
e
os índices de distorção ou defasagem idade/série,
19
diretamente relacionados com a qualidade
do trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas, as mudanças verificadas em anos recentes
indicam também alguns avanços. No ensino fundamental, tomando-se o período de 1990 a
1997, a taxa de aprovação aumentou de 60% para 72,7%, apresentando uma variação positiva,
portanto, de 12,7%. No mesmo período, a taxa de reprovação teve uma variação negativa de
10,6% (34%, em 1990, e 23,4%, em 1997). A taxa de abandono, por sua vez, foi reduzida em
2,1% (de 6%, em 1990, para 3,9%, em 1999).
A reprovação atinge todas as séries do ensino fundamental, mas sua maior incidência é
registrada na 1ª e na 5ª séries, exatamente as que marcam o início das duas etapas desse nível
de ensino, a do ingresso na escola e a da transição para uma organização diferenciada do
trabalho pedagógico, quando os alunos passam a ter um professor para cada matéria. Essas
séries correspondem, pois, a períodos de adaptação, que a escola não parece estar enfrentando
com a competência necessária.
Embora aparentemente pequena, o abandono, seja temporário ou não, constitui-se um
dos problemas sérios do sistema educacional brasileiro, principalmente pela sua influência,
ainda que mediata, em outros indicadores importantes (taxa de escolarização, média de anos
de estudo, analfabetismo, distorção idade/série, por exemplo). Deve-se considerar também
que, embora possa ser atribuído, em alguns casos, a movimentos migratórios das famílias
pobres, sobretudo no Nordeste, em busca de sobrevivência, o abandono é, na maioria dos
casos, um subproduto da repetência
20
que, em se tornando recorrente, leva o aluno, afetado
na sua auto-estima, a abandonar a escola. Outro motivo de desistência dos estudos é, certamente,
o trabalho infantil, cuja incidência é maior nas regiões mais pobres, exatamente as que
apresentam os mais elevados índices de abandono e repetência. De outro lado, é preciso
destacar que há uma exigência legal (Lei 9.394/96, art. 5º) de se “zelar, junto aos pais ou
responsáveis, pela freqüência à escola” como competência de Estados e Municípios, em
colaboração, e com a assistência da União. Portanto, não é suficiente assegurar a matrícula,
obrigatória, no ensino fundamental. São necessárias medidas mais efetivas para que a
permanência do aluno na escola seja também assegurada, o que supõe uma contínua articulação
com as famílias, para garantir a freqüência regular, e, ao mesmo tempo, investimento na
qualidade do trabalho escolar, para, assim, levar as taxas de abandono para números cada vez
mais próximos de zero.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
360
Da mesma maneira que no ensino fundamental, no ensino médio as taxas agregadas de
transição apresentaram avanços consideráveis na década em exame. O percentual de aprovação
aumentou de 60%, em 1990, para 74%, em 1997. O de reprovação diminuiu de 32% para 19% e
o de abandono, de 8% para 7%, no mesmo período. A despeito dos avanços constatados, as
taxas refletem também a existência de problemas a serem resolvidos em relação ao atendimento
nesse nível de ensino. Chama atenção a pequena redução observada na taxa de abandono.
Como o número de matrículas no turno noturno foi, no período considerado, superior ao
registrado nos demais turnos, pode-se supor que a evasão esteja relacionada com o problema
do paralelismo estudo/trabalho, que nem sempre favorece a freqüência regular à escola e, em
muitos casos, impõe o abandono.
Outros dados que merecem destaque são os relativos à distorção, ou defasagem, idade/
série, cujas taxas, embora tenham apresentado redução, permanecem elevadas, tanto no ensino
fundamental (47%, em 1996, e 46,6%, em 1998) quanto no ensino médio (55,2%, em 1996, e
53,9%, em 1998), um reflexo da repetência, já comentada anteriormente, do ingresso tardio na
escola ou do abandono temporário.
Os dados apresentados indicam, portanto, a persistência de problemas sérios em relação
ao fluxo escolar. Verifica-se um verdadeiro congestionamento das matrículas nas primeiras
séries e uma clara tendência ao decréscimo nas subseqüentes, sob a influência dos números
da reprovação e do abandono. Em 1997, por exemplo, foi apurada uma taxa de sobrevivência
até a 8ª série do ensino fundamental de apenas 66,2%, ou seja, 33,8% dos alunos desse nível
de ensino não chegam a concluir as oito séries. Para os que conseguem, o tempo médio para
a conclusão é de 10,4 anos. Esses problemas vêm sendo enfrentados das mais diversas maneiras
por escolas, redes ou sistemas, com resultados muito positivos, em alguns casos, mas, não
raro, com encaminhamentos equivocados. Por exemplo: no intuito de melhorar seus indicadores,
algumas redes ou sistemas têm, com freqüência, mantido os processos de recuperação no final
do ano letivo e/ou adotado a promoção automática
21
como mecanismo para a aprovação, sem
que essa promoção corresponda, de fato, a uma elevação do nível de aprendizagem dos alunos;
alguns sistemas ou redes adotaram a organização do ensino em ciclos nas séries iniciais, sem
o preparo devido do corpo docente, cuja conseqüência maior foi eliminar a reprovação na 1ª
série do ensino fundamental, sem uma mudança efetiva na qualidade do ensino ministrado.
Ainda que já esteja amplamente comprovado que a repetência não contribui para a
aprendizagem,
22
na medida em que os alunos repetentes tendem a apresentar rendimento
inferior ao dos não repetentes, a superação dos atuais níveis de desempenho educacional
exige mudanças que ultrapassam em muito essas medidas, que implicam mudanças mais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
361
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
administrativas do que pedagógicas, adotadas por alguns sistemas, algumas redes ou escolas.
Se reprovações sucessivas influem negativamente nas possibilidades de sucesso escolar dos
alunos, torna-se necessário eliminar a cultura da repetência, tão enraizada na escola e na
sociedade brasileira, e isso só se vai conseguir com intervenções sérias no âmbito pedagógico.
Outro fator importante de ser aqui considerado diz respeito à proficiência dos alunos no
SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica.
23
O INEP, órgão responsável pela
realização dessa avaliação, vem aplicando testes de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências
em alunos da 4ª e 8ª séries do ensino fundamental e da 3ª série do ensino médio. De um modo
geral, os resultados apurados, tanto em 1995 quanto em 1997, indicam que ainda é baixo o
nível de proficiência dos estudantes brasileiros, em relação ao nível esperado para cada série,
nos conteúdos escolares avaliados pelos testes do SAEB. O problema se apresenta em todas as
matérias e séries avaliadas, com algumas variações. A título de ilustração é importante considerar
que os resultados da avaliação de 1997 (os últimos publicados) indicam que apenas 10,9% dos
alunos da 4ª série, 47,6% dos da 8ª série do ensino fundamental e 12,8% dos alunos da 3ª série
do ensino médio alcançaram o nível de proficiência desejável em Matemática para a série
correspondente. Em Língua Portuguesa os resultados só foram favoráveis para os alunos da 8ª
série do ensino fundamental e entre os da 3ª série, somente 26,3% alcançaram o nível de
proficiência esperado.
Os resultados de 1997 não foram muito diferentes dos de 1995. Esses dados evidenciam,
mais uma vez, a presença de um descompasso entre o conteúdo proposto e o conteúdo
aprendido, levando ao questionamento da efetividade dos currículos desenvolvidos nas escolas,
e este é um problema que vem sendo identificado não só na educação brasileira, mas também
na de outros países do mundo. As avaliações já realizadas pelo SAEB vêm revelando, também,
uma grande heterogeneidade, se comparadas as médias alcançadas pelos alunos dentro do
mesmo Estado: apresentaram melhores resultados os estudantes das capitais em relação aos
do interior, os alunos das escolas privadas em relação aos da rede pública e os alunos cujos
pais têm nível de escolaridade mais elevado. Essa heterogeneidade
“ (...) parece mais um fator de desigualdade do que de simples diferenciação, na medida em
que a dimensão das diferenças significa, para os alunos que apresentam desempenhos mais baixos,
a oferta de oportunidades de aprendizagem menos efetivas do que aquelas proporcionadas aos
alunos que apresentam desempenhos mais altos (...)”.
24
Os testes aplicados em 1999, ainda não publicados, certamente trarão novas contribuições
para a composição de um quadro mais preciso sobre os níveis de proficiência que as escolas
estão possibilitando aos alunos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
362
Esses resultados indicam que os avanços alcançados pela educação brasileira nos anos 90
não se traduzem ainda em elevação do nível de conhecimentos e habilidades cognitivas dos
alunos. Produzir mudanças na qualidade do trabalho escolar é, pois, um grande desafio a ser
enfrentado pelos gestores da educação, em todos os níveis. Entretanto, tal desafio só pode ser
enfrentado com o envolvimento e a participação direta dos profissionais do magistério. Importante
saber o perfil desses profissionais, para que se possam vislumbrar as possibilidades de sucesso
das iniciativas orientadas para as transformações necessárias no plano do ensino-aprendizagem.
Com a expansão do atendimento escolar no Brasil, observou-se um crescimento do número
de professores. Esse crescimento foi acompanhado também de uma elevação do nível de
formação desses profissionais. No período de 1994 a 1999, o número de professores leigos no
ensino fundamental caiu 41,1%, o número dos que concluíram o nível médio (formação mínima
admitida pela LDB) aumentou 7,5% e o número dos que cursaram o nível superior aumentou
24,4%. Os dados em relação aos docentes do ensino médio seguem essa mesma tendência: o
número de leigos (sem a formação mínima em curso superior) caiu 65,8% e o número de
docentes com formação superior completa cresceu 45,3%. No ano de 1999, o contingente de
professores do ensino fundamental atuando de 1ª a 4ª série sem a formação mínima admitida
por lei foi de 9,6%, e atuando de 5ª a 8ª série foi de 26,0%.
Isso significa que o Brasil, para atender às exigências da LDB e às determinações da Emenda
Constitucional n
o
14, deverá habilitar, até 2001, ainda um grande número de professores leigos
e, até 2007, final da Década da Educação, deverá habilitar, também, um número expressivo de
docentes, já em exercício, com o nível superior completo. Como se pode depreender, a tarefa
que o país tem à sua frente é gigantesca, constituindo-se este o maior desafio, não só para
assegurar a formação mínima a todos os professores, mas para assegurar também a formação
continuada e permanente, exigência do mundo contemporâneo, principalmente para os
responsáveis pela educação escolar das novas gerações.
Uma das importantes decisões políticas já levadas a efeito na década de 90 foi a organização
de um sistema de informações educacionais e a disponibilização
25
de levantamentos estatísticos
e resultados de avaliações sobre a educação brasileira. A adoção dessa política foi fundamental
para subsidiar planejamento, monitoramento e decisões quanto à orientação ou reorientação
das demais políticas, na busca de melhoria de qualidade da escola. É possível afirmar-se que
se pode, hoje, dispor de dados, com um alto nível de confiabilidade, sobre os resultados e
mudanças alcançados pelo país nos últimos anos, período em que se vem testemunhando
grande esforço e mobilização de segmentos da sociedade e de setores governamentais para
elevar o padrão da escola pública brasileira, no sentido de fazê-la cumprir sua principal função
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
363
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
de assegurar a aprendizagem e a permanência, com sucesso, de seus alunos.
O acesso às informações estatísticas destacadas neste trabalho foi facilitado pela existência
do banco de dados sobre a educação nacional, antes referido. Tais informações foram
apresentadas com três perspectivas: a primeira se refere à constatação de como se projeta no
presente o quadro de precariedade que caracterizou a educação pública brasileira ao longo
das décadas anteriores; a segunda diz respeito à constatação de mudanças, ainda que algumas
discretas, ocorridas nos últimos anos, que significam conquistas e avanços quanto à criação de
condições para o efetivo exercício do direito à educação escolar; a terceira está relacionada
com a identificação do enorme esforço que o Brasil ainda tem a empreender, não só para
cumprir compromissos assumidos internacionalmente, mas, sobretudo, para enfrentar os
desafios resultantes das transformações características deste final de século, comentadas em
item anterior, que impõem a qualquer país, no mínimo, o caminho da universalização da
educação básica e da garantia de um ensino de qualidade, em todos os níveis, como direitos
inquestionáveis de todos os brasileiros.
3 O DIREITO À QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
“A educação é também um grito de amor à infância e à juventude, que devemos acolher nas
nossas sociedades, dando-lhes o espaço que lhes cabe no sistema educativo, sem dúvida, mas
também na família, na comunidade de base, na nação. Este dever elementar deve ser
constantemente recordado, para cada vez mais ser tido em conta, quando das opções políticas,
econômicas e financeiras. Parafraseando o poeta, a criança é o futuro do homem.”
Jacques Delors
O direito da criança à educação começa a ser assegurado em 1950, com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança passa
a se constituir no instrumento dos direitos humanos mais universalmente ratificado em toda a
História
26
(p.13). Nos seus artigos 28 e 29, esta Convenção trata do direito à educação e, mais
ainda, oferece um conjunto de orientações sobre a qualidade dessa educação. No ano seguinte
é promulgado, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente que, no seu capítulo IV,
contempla, além do direito ao acesso, também o direito a uma educação de qualidade. A
despeito da existência de uma legislação, de âmbito nacional e internacional, que assegura
esses direitos, não se construiu ainda, na prática, uma cultura de acompanhamento ou vigilância
e de exigência ou denúncia quanto ao cumprimento das normas legais. Corrobora essas
considerações a afirmação de Konzen
27
de que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
364
“(...) a Educação, ainda que afirmada como direito de todos, não possuía, sob o enfoque
jurídico e em qualquer de seus aspectos, excetuada a obrigatoriedade da matrícula, qualquer
instrumento de exigibilidade, fenômeno de afirmação de determinado valor como direito suscetível
de gerar efeitos práticos e concretos no contexto pessoal dos destinatários da norma. A oferta de
ensino e a qualidade dessa oferta situava-se, em síntese, no campo da discricionariedade do
administrador público, ladeada por critérios de conveniência e de oportunidade” (p. 9).
Como já foi assinalado, se o direito de estar matriculado em uma escola vem se aproximando
da universalização, a permanência, com sucesso, nesta escola está ainda longe de ser assegurada.
São necessárias, portanto, novas iniciativas governamentais, de âmbito federal, estadual e
municipal, todavia articuladas e solidárias, no sentido de promover e estimular mudanças na
estrutura e na dinâmica de trabalho das escolas. Faz-se necessário, também, uma vigilância
regular e sistemática, tanto dessas instâncias governamentais, por meio de acompanhamento e
avaliação das políticas implementadas e de seus resultados, quanto da sociedade em geral e,
particularmente, da família e das instituições jurídicas. É o efeito sinergético de ações integradas
de diferentes instâncias e âmbitos da vida nacional que vai viabilizar o cumprimento dos
deveres da sociedade para com as crianças e os adolescentes.
A militância familiar é, sem dúvida, um importante fator no processo de acompanhamento
do trabalho escolar, na medida em que é a família o segmento social que pode dispor de
informações diárias sobre o funcionamento da escola e sobre o conteúdo das atividades que
nela se desenvolvem, o que vem a se constituir em subsídio para uma participação mais
conseqüente e para as mais diversas formas de intervenção.
As instituições jurídicas, por sua vez, a despeito de um certo distanciamento em relação ao
cotidiano escolar, podem criar seus próprios mecanismos de acompanhamento da qualidade
do atendimento educacional na área de referência de sua atuação e, assim, subsidiar
intervenções. Esse acompanhamento é possível por meio da análise de informações sobre o
comportamento dos principais indicadores educacionais (taxas de escolarização, índices de
aprovação, evasão e repetência, percentual de distorção idade/série, proficiência dos alunos
em testes do tipo SAEB, por exemplo), em determinado período, e seu confronto com os
indicadores de outras regiões, do Estado e/ou do país. Esses dados são, hoje, facilmente
acessíveis e podem ser fornecidos pelos gestores da educação, que os recebem com regularidade,
ou conseguidos através do site do INEP, já anteriormente referido.
As instituições jurídicas podem, também, usar de suas prerrogativas para que esses gestores
forneçam outras informações que se fizerem necessárias para a configuração das características
do funcionamento da rede de escolas ou do sistema de ensino, tais como plano(s) educacionais,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
365
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
plano(s) de carreira e remuneração dos profissionais do magistério, relatórios sobre a
constituição e o funcionamento dos diversos conselhos envolvidos na gestão da educação,
diretrizes e/ou orientações para a construção de propostas pedagógicas e sobre o funcionamento
das escolas, como proposta curricular e sistema de avaliação da aprendizagem. Esse
acompanhamento pode ser feito, ainda, pela abertura de canais para contatos com famílias,
com estudantes, com profissionais da educação, não só para denúncias de irregularidades, de
práticas discriminatórias ou sobre outros aspectos que possam influir negativamente na
construção de conhecimentos e na formação intelectual, ética e emocional dos educandos,
como também para o conhecimento de experiências que probabilizam o sucesso dos alunos.
Esses subsídios podem, certamente, contribuir para fundamentar iniciativas voltadas para a
garantia de eqüidade quanto à qualidade do atendimento escolar a toda a população.
Do ponto de vista da democratização da escola, buscar qualidade significa assegurar a
todos os alunos aprendizagens significativas, sintonizadas, em conteúdo e processo, com as
demandas atuais, e não apenas tempo de escolaridade. A democracia implica eqüidade e a
eqüidade exige qualidade. O saber deve estar entre os bens mais partilhados entre os membros
de uma sociedade democrática. Assim, é fundamental promover oportunidades de aprender,
desenvolvendo estratégias igualitárias de acesso ao conhecimento, de forma que a escola não
se limite a aproveitar somente os que têm, sabem e podem mais; aqueles que, pelo contexto
em que vivem, pelos códigos de que dispõem e pelos instrumentos que mais facilmente
adquirem, sempre aproveitam melhor as melhores experiências. O processo de construção da
igualdade de oportunidades exige uma vigilância constante para que os excluídos da
aprendizagem escolar possam ser cada vez mais incluídos no mundo do letramento, que permite,
por sua vez, a construção e a ampliação dos saberes que abrem caminho para uma inserção
efetiva na vida contemporânea.
Essas transformações na educação, tão necessárias quanto urgentes, pela sua amplitude,
não devem caber só aos educadores de profissão, mas a toda a sociedade. As instâncias jurídicas,
pela autoridade e credibilidade que têm no âmbito desta sociedade, podem desempenhar um
papel fundamental nesse processo. Segundo Gomes da Costa,
“a tarefa a ser desempenhada neste momento pelos magistrados e promotores é simples e
concreta: trata-se de pôr as conquistas do Estado democrático de direito para funcionar em favor do
direito à educação de qualidade para nossas crianças e adolescentes. E o modo de fazer isso não é
apenas pelas sentenças e ações civis públicas, mas pelo trabalho urgente e inarredável de atuar
incansavelmente para instalar estas conquistas no espaço vivo da consciência e da sensibilidade
desta Nação”
28
(p. 19).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
366
O exercício competente dessa tarefa supõe, portanto, além do conhecimento das leis, uma
sensibilidade aguçada aos problemas sociais e uma disponibilidade ao diálogo com os
educadores. O sentido desse diálogo é a construção de conhecimento sobre os indicadores de
qualidade da escola, que venha a facilitar o diagnóstico ou a identificação de situações
problemáticas no âmbito dos serviços educacionais oferecidos às crianças e adolescentes e,
assim, favorecer uma atuação mais conseqüente, com a perspectiva de assegurar o direito a
uma educação de qualidade. O conteúdo tratado no item que se segue pretende contribuir
nessa perspectiva.
4 GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
“O trabalho do aluno na escola, o seu ‘ofício de aluno’, precisa ser, portanto, claramente
entendido. Aprender a ler e escrever são objetivos fundamentais do ensino primário em todos os
países, mas são também condição de participação no prosseguimento da escolaridade: para
além dos sete ou oito anos. Um aluno que não sabe ler nem escrever não pode desempenhar
‘corretamente’ o seu papel, uma vez que a parte da comunicação escrita vai crescendo no
trabalho escolar. Um aluno de dez anos que não sabe nem ler nem escrever é um ‘inadaptado’
escolar, mesmo que seja inteiramente dócil, sensato, honesto, arrumado, comunicativo, pacífico.
Muito simplesmente, porque está privado deste saber-fazer de base, o aluno não poderá dar
cumprimento ao quinhão de trabalho que lhe é pedido uma vez que não pode compreender o
que se espera dele.”
Perrenoud
Não se pode falar em qualidade da educação escolar sem antes questionar de que qualidade
se está falando. Essa qualidade pode ser definida? A partir de que parâmetros ela pode ser
avaliada? É possível estabelecer indicadores de qualidade da escola?
Pode-se afirmar, a partir da realização de estudos, debates, pesquisas empíricas e
elaborações teóricas, que existe um corpo de conhecimentos disponível, neste final de século,
na área das ciências humanas e outras afins, que pode permitir uma intervenção responsável e
bem-fundamentada nas práticas pedagógicas usuais, de forma a mudar a qualidade da educação
à qual os alunos devem ter acesso. A própria pedagogia vem construindo um patrimônio
expressivo de reflexão sobre seu repertório teórico-metodológico e definindo concepções,
procedimentos e meios mais adequados para o desenvolvimento de práticas docentes
compatíveis com as demandas contemporâneas de ensino e de aprendizagem.
29
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
367
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
Ao lado da contribuição dos grandes pensadores da educação, vai surgir, a partir dos anos
60, uma farta literatura sobre a sala de aula e o que nela ocorre, decorrente de estudos realizados,
tanto pela Sociologia da Educação inglesa, com suas pesquisas sobre o “interacionismo
simbólico”, quanto pela Antropologia dos EUA,
30
que introduziram uma abordagem etnográfica
ao trato dos fenômenos educacionais. Na década de 80, os chamados “estudos culturalistas” da
escola passam a enfatizar as características socioculturais que estão implícitas nos
comportamentos que constituem a vida da escola, seus rituais, suas rotinas e suas normas.
31
No Brasil, estudos sobre o interior da escola e da sala de aula começam a se desenvolver
desde o final da década de 70 e, ao ganharem corpo nos anos 80, “passam a revelar aspectos
fundamentais do dia-a-dia da escola, da rotina de sala de aula, das relações e tensões que
constituem a experiência escolar”
32
(p. 100). Tem-se, assim, hoje, no Brasil, um acervo de
informações sobre o funcionamento do cotidiano escolar, oriundas de estudos de caso
33
ou de
pesquisas de caráter regional, com maior representatividade e abrangência,
34
que permitem
esclarecer, inclusive, as relações entre a organização do trabalho pedagógico e os seus
determinantes macroestruturais.
Ao fazer o mesmo tipo de análise, Nóvoa
35
vai acentuar a existência, no plano internacional,
de “uma literatura abundante que procura identificar as características organizacionais que são
determinantes para a eficácia das escolas. Tendo como referência a construção de uma identidade
própria da escola, esses estudos têm bases de consenso bastante alargadas” (p.26). Portanto, a
possibilidade de identificar aspectos que podem se constituir em subsídios para a caracterização
de uma prática escolar que apresenta os requisitos indispensáveis para a formação do cidadão
do mundo contemporâneo vem se tornando uma preocupação de todos aqueles que têm a
responsabilidade de implantar, acompanhar, avaliar e garantir uma educação de qualidade.
Ao lado dessa literatura, de caráter mais científico-acadêmico, o documento do UNICEF
Situação Mundial da Infância 1999. Educação
36
– destaca a contribuição proveniente de outras
fontes, assinalando que na
“(...) última década, tomou corpo o consenso sobre os tipos de mudanças necessárias para
viabilizar a aprendizagem. Mais importante ainda, não se trata apenas de idéias cristalizadas em
estudos acadêmicos, ou debatidas em conferências internacionais: estão sendo colocadas em prática
em todos os lugares do mundo, em projetos-piloto e em escala nacional” (p. 21).
Essa mesma perspectiva vai ser reforçada em documento mais recente do UNICEF – Situação
Mundial da Infância 2000,
37
que destaca a importância das muitas formas criativas que têm sido
adotadas em vários países do mundo para melhorar a qualidade da escola.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
368
É evidente que não está se defendendo aqui um modelo de escola que deva ser tomado
como padrão para avaliar todas as demais. A literatura e o conjunto de experiências já registradas
na área, dos quais podem ser extraídos referenciais para a avaliação da qualidade dos processos
de ensino-aprendizagem, apontam, como um importante indicador, a capacidade que a escola
deve ter de construir a sua própria identidade, de forma a considerar a diversidade nela presente.
Como bem acentua Giroux:
“Os professores precisam encontrar meios de criar espaço para um mútuo engajamento das
diferenças vividas, que não exijam o silenciar de uma multiplicidade de vozes por um único discurso
dominante; ao mesmo tempo, devem desenvolver formas de pedagogia ancoradas em uma sólida
ética que denuncie o racismo, o sexismo e a exploração de classes como ideologias que convulsionam
e desvalorizam a vida pública”
38
(p. 106).
Em se constituindo a escola em espaço verdadeiramente democrático, não há lugar para
segregações, mas para a explicitação e o embate de posições divergentes, orientados pelo
respeito à diversidade. É em contexto de eqüidade que as diferenças se expressam e se afirmam,
possibilitando a cada escola, cada grupo ou cada indivíduo a construção de uma identidade
peculiar, sem perder, todavia, a relação de pertencimento ao global.
A própria legislação educacional brasileira vigente, sintonizada com as discussões mais
recentes influenciadas por essa perspectiva multiculturalista, enfatiza, com bastante clareza,
seja na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, seja nos pareceres emanados do
Conselho Nacional de Educação, que cada escola deve construir a sua autonomia pela
elaboração de propostas pedagógicas que “deverão explicitar o reconhecimento da identidade
pessoal de alunos, professores e outros profissionais e a identidade de cada unidade escolar e
de seus respectivos sistemas de ensino”
39
(art. 3º, II).
Da análise dos artigos da nova LDB que tratam da organização da educação nacional pode-se
também destacar o poder de decisão que é dado à escola e o espaço que a ela deve ser assegurado.
Tanto os sistemas de ensino quanto suas escolas podem desenvolver formas variadas de
organização que a própria lei estimula. Os artigos 22 a 28 e, ainda, os artigos 32 a 34 tratam das
possíveis formas de organização, com grande flexibilidade, permitindo às escolas se organizarem
a partir de decisões tomadas com base na análise dos elementos que as identificam. O Parecer nº
05/97, do Conselho Nacional de Educação, ao comentar esses artigos, mostra a abertura que foi
dada às instituições de ensino para se organizarem, delegando-se uma nova autoridade à escola,
ainda que respeitadas as normas curriculares e outros dispositivos legais.
Essas considerações visam, primordialmente, destacar e limitar o papel que indicadores
de qualidade da educação podem ter. Se, por um lado, esses indicadores trazem referências
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
369
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
testadas e discutidas pela literatura nacional e internacional, por outro, eles não podem se
constituir em padrões homogeneizadores e mesmo empobrecedores da própria dinâmica escolar.
A escola, como a vida, está em contínuo movimento e esses indicadores devem ser considerados
a partir de sua historicidade.
É inegável o esforço de setores responsáveis pela gestão da educação no sentido de
estruturar a organização e o funcionamento da escola, de modo a cumprir as prescrições da
legislação educacional. Contudo, a existência da lei per se ou até mesmo o cumprimento de
certos aspectos dessa lei não garante a qualidade do ensino e não amplia as possibilidades de
que os alunos desenvolvam, no espaço da escola, as competências necessárias à integração na
vida contemporânea e ao exercício da cidadania.
É com a perspectiva de fornecer alguns indicadores de qualidade de uma escola para os
dias atuais que se apresenta, a seguir, uma espécie de check-list construída com base na literatura
consultada e que vem se constituindo em referencial, ancorado em amplo consenso, no apoio
à regulação das organizações escolares pelos decisores de políticas públicas de educação em
vários países do mundo e também por segmentos da sociedade, entre eles pais, Conselhos
Tutelares, magistrados e promotores.
4.1 GESTÃO DA ESCOLA
Um primeiro indicador de qualidade a destacar é o tipo de gestão praticado pela escola,
que tende a reproduzir, total ou parcialmente, as formas adotadas pelas Secretarias de Educação
na administração de seu sistema de ensino ou de sua rede de escolas.
O tema da gestão tem ocupado lugar privilegiado nas discussões recentes entre educadores.
O próprio destaque dado ao tema tem motivado seu aprofundamento e promovido avanços
conceituais. Segundo Barroso,
40
“a administração escolar atravessa hoje, em muitos países, uma fase de profunda transformação.
Essa transformação traduz-se em diferentes medidas, que têm por objetivo: alargar e redefinir o
conceito de escola; reconhecer e reforçar a sua autonomia; promover a associação entre e sua
integração em territórios educativos mais vastos; adotar modalidades de gestão específicas e adaptadas
à diversidade de situações existentes” (p. 11).
Por imposição legal, o tipo de gestão a ser adotado no âmbito da educação pública brasileira
é o democrático. Isso é o que determina não só a LDB (art.3º, inciso VIII), mas a própria Constituição
Federal brasileira (art. 206). A existência de tais determinações, todavia, embora importante,
não assegura, pelo menos de forma imediata, as transformações necessárias à configuração de
um modelo democrático no funcionamento das instituições educativas. Como se sabe, este
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
370
não foi o modelo que, historicamente, se consolidou na regulação das relações entre os órgãos
centrais da educação e as escolas ou das relações que se desenvolvem no interior de cada
escola. Ao contrário, predominam, ainda hoje, estruturas de poder verticalizadas, relações de
dependência, práticas autoritárias e possibilidades limitadas de participação e de intervenção.
Assim sendo, a democracia na educação não é, no Brasil, uma realidade, mas, antes, um
caminho por ser construído, mais um desafio que se impõe aos profissionais da educação.
A conquista da gestão democrática vem adquirindo uma importância cada vez maior, na
medida em que se amplia o consenso, entre os educadores, quanto à sua importância na
perspectiva de construção da cidadania, sobretudo por ser o tipo de gestão que, mais
amplamente, pode oportunizar o exercício da autonomia e da participação. Nesse sentido,
Gutierrez e Catani
41
referem-se à gestão democrática como
“(...) processo de aprendizado e de luta política que não se circunscreve aos limites da prática
educativa, mas vislumbra, nas especificidades dessa prática social e de sua autonomia, a possibilidade
de criação de canais de efetiva participação e de aprendizado do “jogo” democrático e,
conseqüentemente, do repensar das estruturas de poder autoritário que permeiam as relações
sociais e, no seio dessas, as práticas educativas” (p. 79).
Deve-se assinalar, contudo, que a gestão democrática pressupõe não só o exercício da
autonomia e a participação de todos os segmentos envolvidos com o trabalho da escola.
Pressupõe também atitudes de respeito à diversidade e ênfase no trabalho coletivo. Tudo isso
envolve mudança de cultura da escola, que se expressa nas suas relações com as demais
instituições ou setores da rede ou sistema de ensino e com os pais e a comunidade, além de
expressar-se nas relações da direção com os outros segmentos escolares e dos professores com
seus alunos. Como principais vantagens da gestão democrática, além das mencionadas, a
literatura vem apontando: comprometimento de todos os segmentos com o trabalho da escola;
redução das relações manipulativas; instalação de um clima favorável ao trabalho e à
aprendizagem; redução da dependência vertical e ampliação da integração horizontal.
Conseqüência: melhoria da qualidade do trabalho escolar. Portanto, este é um dos aspectos a
ser considerado na avaliação das condições de desenvolvimento do trabalho escolar.
4.2 APOIO DAS AUTORIDADES
A grande ênfase à autonomia da escola no período recente não torna dispensável que os
poderes públicos devam a ela apoio contínuo e sistemático, tanto no plano material e financeiro,
imprescindíveis à sua manutenção, quanto no plano técnico. Este inclui o fornecimento de
subsídios e orientações para o desenvolvimento das atividades, o aconselhamento, a consultoria
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
371
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
e todas as formas de relacionamento que possam se traduzir em contribuições para a melhoria
do trabalho que a escola realiza. Como bem acentua o documento do UNICEF, já citado, “(...) a
meta da Educação para Todos não pode ser cumprida sem o pleno envolvimento de governos
nacionais, que são obrigados pela Convenção a garantir à criança que seu direito à educação
seja respeitado”. O Estado é, portanto, parceiro fundamental da escola e quanto maior é o seu
grau de envolvimento e de compromisso maior a probabilidade de que a escola tenha êxito na
tarefa a que se propõe.
O nível de apoio das autoridades à escola não é difícil de ser identificado. Ele se expressa,
por exemplo, na aparência física, nas condições das instalações e do mobiliário, na
disponibilidade de equipamentos necessários à modernização dos processos pedagógicos, na
existência de acompanhamento sistemático ao trabalho dos professores, na garantia do tempo
de aprendizagem (cumprimento dos dias letivos e das horas diárias de aula, sem períodos
vagos), no fornecimento regular de uma alimentação nutritiva aos alunos, na disponibilidade
de livros e outros materiais didáticos, na qualificação dos docentes, na garantia de transporte
seguro para os que freqüentam escolas distantes de suas casas. Esses aspectos são apenas os
mais acessíveis a qualquer instância que esteja empenhada na apreensão de fatores que fornecem
pistas úteis para a avaliação da qualidade do funcionamento da escola. Identificá-los e concluir
sobre a natureza do apoio das autoridades a esse funcionamento pode prescindir até de um
conhecimento especializado ou do assessoramento técnico de profissionais da área da educação.
Por outro lado, é desejável que a escola exerça uma vigilância permanente em relação às
obrigações da União, dos Estados e dos Municípios para com a educação e tenha a iniciativa
de exigir o apoio devido dos órgãos responsáveis. É desejável também que a escola, quando
comprovados os limites e conhecidas as possibilidades de um apoio mais amplo e imediato
do poder público, busque outras formas de parceria, a título de complementação de recursos,
a fim de assegurar as condições mínimas necessárias para o pleno cumprimento dos objetivos
de suas ações. O movimento das escolas na busca de parcerias com setores não governamentais
pode, sem dúvida, contribuir para um avanço no sentido de conseguir um comprometimento
cada vez maior da sociedade com a educação, com formas diversas de colaboração, comuns
em outros países, mas ainda pouco disseminadas no Brasil.
4.3 UTILIZAÇÃO DO TEMPO
A despeito da existência, na legislação educacional vigente, de uma determinação quanto à
duração do período letivo, anual e diário“A carga mínima anual será de oitocentas horas,
distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar” (LDB, art. 24, inc. I) ,
várias pesquisas realizadas, nos últimos anos, no Brasil
42
indicam que as escolas funcionam
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
372
em um tempo oficial menor do que o legalmente determinado. A perda do tempo curricular
vem se constituindo, portanto, em uma característica da escola pública brasileira.
Considerando-se o período anual, embora não se disponha ainda de dados de pesquisa
que comprovem a suposição, há fortes evidências de que os duzentos dias letivos, exigidos na
LDB, não estão sendo integralmente cumpridos pelas escolas. Algumas Secretarias de Educação,
por sua vez, ao estabelecerem os calendários anuais, vêm incluindo como letivos, ilegalmente,
os dias destinados exclusivamente a provas e testes, os que coincidem com datas comemorativas
e, por isso, não há aulas regulares, e, ainda, os dias reservados a eventos de capacitação de
professores, quando os alunos são, naturalmente, dispensados de ir à escola. Além disso, não
se vem identificando muito rigor dessas secretarias na fiscalização do cumprimento do calendário
estabelecido e, principalmente, da observância, pelas escolas, dos horários de início e de
finalização das aulas.
Já com base em pesquisas, anteriormente mencionadas, sobre a forma como o tempo na
escola vem sendo distribuído, organizado e utilizado, verificam-se diferenças entre o tempo
real gasto pelo professor dentro das classes observadas e o tempo oficial definido pelo sistema
(ou rede) ao qual a escola pertence. De um modo geral, a média de tempo real utilizada pelo
professor em atividades na classe é de 3 horas. Observe-se que, nesse tempo, está incluído o
período de recreio, que dura, quase sempre, de 30 a 40 minutos. A despeito de se considerar
o recreio como um momento importante no processo de socialização da criança, deve-se levar
em conta que, se subtraído do tempo real de aula o período de recreio, restará pouco tempo
para o contato efetivo dos alunos com o conhecimento sistematizado, ao qual as crianças das
classes populares só têm acesso no interior da sala de aula.
O tempo curricular deve, pois, ser tomado como um elemento a ser levado em conta na
avaliação do desempenho da escola, uma vez que é nesse tempo que se concretizam as relações
pedagógicas e é nos seus limites que pode ocorrer o movimento de apropriação do saber
sistematizado; que é possível produzir relações sistemáticas com adultos; que podem acontecer
múltiplas interações entre coetâneos, cuja promoção, de maneira ampla, constitui uma
singularidade do ambiente escolar; que se desenvolvem habilidades e que se formam atitudes,
elementos integrantes do perfil dos indivíduos que a escola tem por incumbência formar.
Essa perda do tempo muitas vezes é respaldada e gerada dentro da escola ou originada
fora dela, assumindo, não raro, um perfil de normalidade. Considere-se ainda o fato, constatado
em algumas escolas, de que, após o recreio, há alunos que não retornam às suas classes.
Tentar fugir da sala de aula parece ser, assim, um comportamento compartilhado por alunos e
professores. Os primeiros fogem literalmente. Os professores usam mecanismos tais como
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
373
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
iniciar a aula mais tarde do que o horário oficialmente estabelecido ou antecipar o seu término.
O tempo de permanência de professores e alunos no interior da escola é, portanto, um ponto
crítico a ser enfrentado, tanto por decisores/gestores das políticas educacionais e equipes
escolares, quanto pelas famílias e outras instituições da sociedade, principalmente quando já
se dispõe de resultados de estudos sistemáticos, nacionais e internacionais, que mostram
existir clara relação entre desempenho do aluno e tempo de interação com os conteúdos
escolares. Essas pesquisas indicam que os alunos daqueles professores que permanecem mais
tempo na sala de aula tendem a apresentar maior rendimento do que os daqueles que
permanecem menos tempo. Assim, eliminar ou reduzir tempo de aula significa negar ao aluno
um direito que lhe é assegurado por lei e reconhecido, todavia ainda não devidamente cobrado,
pelas famílias ou por outros segmentos da sociedade.
Se forem acrescentados a esses dados os referentes às formas como o tempo é utilizado
pelos professores durante as aulas, o quadro descrito anteriormente configura-se mais grave.
Não são raros os registros de perda de tempo em repreensões que visam exclusivamente
manter os alunos sentados e calados, o tempo excessivo gasto em atividades de rotina e a
predominância de tarefas repetitivas e desinteressantes, cujo sentido é, em geral, “passar o
tempo” ou “gastar o tempo” da aula, ou simplesmente manter os alunos “ocupados”, como
chegam a afirmar alguns professores.
É importante assinalar que não se pode responsabilizar unicamente o professor pela má
utilização do tempo em sala de aula, na medida em que ele teve sua formação inicial em uma
escola que também não lhe forneceu os instrumentos para uma atuação profissional competente.
Acrescente-se a isso que raramente o professor tem a oportunidade de participar de programas
sérios de formação continuada e nem sempre dispõe das condições necessárias para um trabalho
mais qualificado, desde condições físicas e materiais, até condições salariais, além de não
contar com um acompanhamento sistemático e oportunidades de interlocução sobre o trabalho
que desenvolve. Nessas circunstâncias, mesmo esse pouco tempo de presença em sala de aula
pode, às vezes, se transformar em experiência penosa, tanto para os alunos quanto para os
professores. Os primeiros, pela dessintonia das aulas com seus interesses ou suas expectativas.
Os professores, pelo desconforto ou insegurança resultantes do desconhecimento de alternativas
que poderiam ser usadas para maior dinamização das aulas.
Essas considerações, quase todas apoiadas em resultados de pesquisas,
43
pretenderam
mostrar que o planejamento, a distribuição e o emprego do tempo tanto podem se constituir
em mecanismos de democratização do ensino no interior da escola e da sala de aula quanto
fornecer elementos para uma avaliação da qualidade do trabalho escolar.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
374
O texto da LDB contempla, em alguns de seus artigos (art. 5º, art. 23, art. 24 e art. 34), a
valorização e a preservação do tempo escolar. Essas determinações legais, contudo, têm gerado,
pelo menos, três polêmicas. A primeira está relacionada com a obrigatoriedade dos duzentos
dias letivos, mesmo se a carga horária mínima anual de oitocentas horas pode ser cumprida em
um número menor de dias letivos. O principal argumento apresentado é o de que a LDB
autonomia à escola para escolher a sua forma de organização (art. 23º) e, ao mesmo tempo,
impõe uma limitação quanto à maneira de organizar seu calendário para cumprir as oitocentas
horas letivas. A posição do Conselho Nacional de Educação sobre essa exigência está definida
no Parecer CNE/CEB n.º 12/97, que reforça o texto da LDB:
“(...) as oitocentas horas serão totalizadas em um mínimo de duzentos dias por ano. Sobre isso
não há ambigüidade. Apenas projetos autorizados com base no artigo 81 (cursos experimentais)
poderão ser objeto de tratamentos diferenciados”.
44
A segunda polêmica está relacionada com a obrigatoriedade de freqüência mínima de 75%
do total de horas letivas para a aprovação do aluno. Enquanto a lei anterior (Lei nº 5.692/71)
determinava um mínimo de 75% de freqüência em cada “disciplina, área de estudo ou atividade”,
a atual LDB exige esse mesmo percentual de freqüência, só que em relação ao “total de horas
letivas ministradas em todos os conteúdos”. O argumento utilizado nesse caso é o de que um
aluno pode, teoricamente, ser aprovado em uma determinada matéria, se conseguir atender
aos requisitos acadêmicos estabelecidos para aprovação, comparecendo à sala de aula tão-
somente nos dias das avaliações. A terceira polêmica diz respeito também à freqüência.
Argumenta-se que a mesma LDB que admite a classificação, mediante processo avaliativo realizado
pela escola, de alunos que não cumpriram requisitos formais de escolarização anterior (art. 24,
inciso II c), coloca a freqüência como condição para a aprovação do aluno. Dessa forma, ainda
que o aluno alcance um bom nível de desempenho acadêmico, sua aprovação fica condicionada
à freqüência mínima de 75%.
Todo esse debate, relacionado com a problemática do tempo escolar, precisa ser enfrentado
com equilíbrio e tendo como orientação os princípios que podem conduzir a uma otimização
do tempo de aprendizagem dos alunos.
4.4 ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
Ainda que possa parecer, à primeira vista, um aspecto de menor importância no sucesso
dos alunos, a organização do espaço se constitui em elemento básico do cotidiano escolar, na
medida em que pode determinar as relações sociais no interior da escola ou ser por elas
determinado. Em se considerando que as experiências escolares se dão em um espaço delimitado,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
375
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
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as formas de organização e de utilização desse espaço podem explicitar os diversos sentidos
dados pela escola às atividades que desenvolve. A delimitação desse espaço é uma medida da
valoração implícita às diversas atividades.
A aparência da escola, a disposição do mobiliário e dos equipamentos, a limpeza, a
distribuição dos cartazes e de outros materiais pelas paredes, a arrumação das salas de aula, a
organização dos diversos materiais existentes podem contribuir para a caracterização da escola
como um lugar agradável de se estar ou como um lugar onde não se tem vontade de ficar. Não
é só o projeto arquitetônico que torna a escola atraente para os que nela trabalham ou estudam
e para os que a visitam. Em geral, tais projetos não contribuem muito nesse sentido. Contudo,
a organização dos diversos espaços da escola, que reflete uma concepção do trabalho
pedagógico, pode resultar em dinâmicas diferenciadas no seu funcionamento, favorecendo
interações ou isolamento, trabalho coletivo ou individualizado, participação ou obediência,
agitação ou tranqüilidade. Essas dinâmicas, por sua vez, expressam um clima sócio-emocional
que tanto pode influir na organização do espaço escolar como poder ter sido influenciado por
essa organização. Esse clima, embora não seja, por si só, determinante, pode ser favorável ou
não ao sucesso ou ao fracasso dos alunos. É nesse sentido que o aspecto em apreço foi
tomado aqui como um indicador de qualidade da escola.
4.5 VALORIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS
Fica cada vez mais evidenciado, em constatações de pesquisas, que a melhoria da qualidade
do ensino se dá por meio da revalorização do trabalho docente e da renovação profissional
dos educadores. Isso implica o fortalecimento das políticas existentes e o seu direcionamento
prioritário à profissionalização do magistério, via a criação de mecanismos que contribuam, de
fato, para melhoria de desempenho.
Nessa perspectiva, a proposta de texto para o Plano Nacional de Educação
45
destaca:
“A qualificação do pessoal docente se apresenta hoje como um dos maiores desafios para o
Plano Nacional de Educação, e o Poder Público precisa se dedicar prioritariamente à solução deste
problema. A implementação de políticas públicas de formação inicial e continuada dos profissionais
da educação é uma condição e um meio para o avanço científico e tecnológico em nossa sociedade
e, portanto, para o desenvolvimento do país, uma vez que a produção do conhecimento e a
criação de novas tecnologias dependem do nível e da qualidade da formação das pessoas” (p. 79).
É também na mesma direção que se posiciona um documento do MEC, intitulado Referenciais
para a Formação de Professores,
46
ao apontar os seguintes requisitos a serem considerados na
valorização do magistério:
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MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
376
“uma formação profissional que assegure o desenvolvimento da pessoa do educador enquanto
cidadão e profissional, o domínio dos conhecimentos, objeto de trabalho com os alunos, e dos
métodos pedagógicos que promovam a aprendizagem; um sistema de educação continuada que
permita ao professor um crescimento constante de seu domínio sobre a cultura letrada, numa visão
crítica e na perspectiva de um novo humanismo; jornada de trabalho organizada de acordo com a
jornada dos alunos, concentrada num único estabelecimento de ensino e que inclua o tempo
necessário para as atividades complementares ao trabalho em sala de aula; salário condigno,
competitivo, no mercado de trabalho, com outras ocupações que requerem nível equivalente de
formação; compromisso social e político do magistério”.
Tais requisitos têm sido analisados e discutidos em todo o Brasil, em eventos que congregam
educadores. As discussões promovidas pela Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação – ANFOPE resultaram na proposição de quatro grandes eixos que
devem ser norteadores da formação e do exercício profissional do magistério:
(1) a questão da relação teoria-prática e a possibilidade de construção/reconstrução
permanente de um saber a partir da prática, assumindo que teoria e prática são indissociáveis
e que devem perpassar toda a atuação do educador; (2) fundamentação teórica de qualidade
para o profissional de educação, superando a desarticulação do conhecimento que utiliza
“pinceladas” de teorias. Como o professor conseguirá que seus alunos possam ler nas entrelinhas
(leitura crítica) sem “engolir” fragmentos de informações acriticamente? Para isso, ele precisa ir
além das aparências da realidade e ultrapassar as “receitas” para que possa recriar, a cada
passo, um conhecimento adaptado à realidade sócioeconômica dos alunos; (3) construção de
um saber crítico e comprometido com a sociedade, que passa pela aceitação de uma concepção
sócio-histórica da educação, que não entende essa educação como neutra ou perene e limitada
aos moldes como está dada hoje, mas que a entende como expressão das necessidades da
base material de uma determinada sociedade e que, portanto, entende que os conteúdos, a
organização e os próprios métodos de educação mudam à medida que os períodos históricos
ou as formações sociais também vão mudando; (4) trabalho coletivo interdisciplinar, superando
a individualização e desarticulação do currículo. O trabalho coletivo e a interdisciplinaridade
exigem que haja um acompanhamento programado do trabalho docente pelas coordenações e
uma estrutura curricular flexível que facilite essa integração. Exige também uma postura de
abertura e debate, troca de experiência e trabalho coletivo por parte dos professores”.
Entretanto, para que tanto os requisitos quanto os eixos mencionados sejam tomados
como orientação nas decisões políticas e nas iniciativas voltadas para a valorização do magistério,
torna-se necessário que certas condições fundamentais sejam levadas em conta. Nesse sentido,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
377
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Miguel Arroyo,
47
em considerações a respeito de como a escola pode se constituir em espaço
favorável ao exercício da cidadania, menciona algumas dessas condições e, dentre elas, as
referentes ao magistério: construção de uma identidade do professor e resgate de sua dignidade;
plano de carreira e remuneração; salários dignos; condições favoráveis para o trabalho
educativo; programas de qualificação continuada.
No contexto dessas propostas, fazer referências às condições atuais torna-se também
necessário, para se ter uma idéia da extensão do caminho a percorrer para que se configure, na
educação brasileira, uma situação de valorização dos profissionais em apreço. Em primeiro
lugar, considere-se que, via de regra, a formação dos professores é marcada por uma experiência
escolar fragilizada e “contaminada” por concepções tecnicistas ou tradicionais, quer em relação
aos conteúdos curriculares, quer na orientação e fundamentação do fazer pedagógico. Considere-
se também que as oportunidades de participação em programas de formação contínua nem
sempre são acessíveis a todos os professores e, quando o são, nem sempre contribuem para
que novas concepções do trabalho pedagógico sejam apropriadas de tal maneira que se
expressem em mudanças substanciais nas práticas cotidianas de ensino.
Por outro lado, as condições para o exercício do magistério, incluindo-se as salariais,
refletem a desvalorização social progressiva que a profissão docente sofreu, nas décadas
anteriores, a qual, aliada à depreciação de espaços e equipamentos destinados à educação
escolar, produz um exercício profissional permeado por adversidades, difícil e mesmo fatigante.
Isso porque, não raro, para ampliar sua remuneração, o professor se vê obrigado a trabalhar
com mais de uma disciplina, em mais de uma escola e até em mais de um município, muitas
vezes em condições igualmente adversas, tendo, assim, reduzido o seu tempo para um
investimento maior na melhoria da qualidade de sua atuação.
Cabe aqui assinalar também que nem sempre os professores têm a oportunidade de
interlocução sobre o trabalho que desenvolvem, com acompanhamento sistemático, por
coordenadores pedagógicos ou outros profissionais técnicos de formação equivalente, para
que possam sair do isolamento e melhorar suas práticas em sala de aula. Finalmente, é importante
chamar atenção para o fato de que, de um modo geral, os planos de carreira do magistério,
mesmo os elaborados mais recentemente, ainda não refletem uma nova concepção quanto ao
desenvolvimento profissional, já expressa em documentos legais, como a LDB (Lei 9.394/96), a Lei
9.424/96 e a Resolução CEB nº 03/97, do Conselho Nacional de Educação, que valoriza a profissão,
estimula a qualificação e a melhoria do desempenho e enfatiza a progressão por mérito.
Identificar a existência desses problemas ou dificuldades em uma rede/sistema de ensino
ou em uma escola não é tarefa difícil. A Secretaria de Educação, ou a própria escola, pode
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MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
378
fornecer todos os dados necessários à composição de um perfil de seus profissionais do
magistério e à caracterização das condições de exercício da docência por esses profissionais.
Não é difícil também concluir sobre as conseqüências prováveis desse perfil e dessa caracterização
para a qualidade do trabalho escolar. Construir a reversão das situações desfavoráveis,
sobretudo as que envolvem a introdução de uma nova cultura, de novas concepções e de
novas práticas, supõe, todavia, iniciativas de médio e de longo prazo, que só podem resultar
de decisões políticas que assegurem, de fato, uma elevação progressiva do nível de valorização
dos profissionais do magistério. Sem referência a essa valorização, no sentido mais amplo em
que foi aqui situada, qualquer discurso sobre mudança da qualidade da educação escolar se
transforma em exercício de retórica. O êxito das iniciativas referidas vai depender, certamente,
não só das instâncias governamentais, mas do esforço e da mobilização de outros setores da
sociedade, incluindo-se aí as instâncias jurídicas, às quais cabe zelar pela qualidade dos serviços
prestados às crianças e adolescentes no país.
4.6 COMPOSIÇÃO E DINÂMICA CURRICULAR
A LDB estabeleceu, para o território brasileiro, o que se pretende como função da escola,
em relação ao ensino fundamental:
“o desenvolvimento da capacidade de aprender a partir do domínio da leitura, da escrita e do
cálculo; a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e
dos valores sobre os quais se baseia a sociedade; o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem,
tendo em vista a aquisição de conhecimentos/habilidades e a formação de atitudes e valores; o
fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca
em que se assenta a vida social” (art. 32, incisos I a IV).
Dessas disposições legais, que expressam um amplo consenso entre os educadores, podem-
se levantar as tarefas da escola, a serem executadas em atendimento a crianças que já detêm
um saber construído na convivência com os mais velhos e com seus iguais, saber este que não
é substituído pelo novo saber da escola, mas deve ser continuamente a ele incorporado. Para
a construção desse saber, a LDB indica os elementos que devem constituir o currículo do ensino
fundamental e médio:
“uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da clientela” (art.26).
Diante dessas determinações, é importante questionar sobre que procedimentos as escolas
estão desenvolvendo a fim de atender aos objetivos definidos pela LDB.
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O currículo tem sido um dos tópicos educacionais mais discutidos nas últimas décadas.
Tal freqüência ou interesse pode ser explicado pelas inúmeras reformas em educação que vêm
sendo implantadas em vários países, com suas conseqüentes reelaborações curriculares. Pode
ser explicado também pelas contribuições trazidas por alguns debates travados no campo das
ciências sociais. Segundo Moreira e Silva,
48
o currículo deixou de ser apenas uma área técnica,
podendo-se mesmo falar hoje de uma tradição crítica do currículo, orientada por discussões de
caráter sociológico, político e epistemológico. Assim, a grande questão orientadora da elaboração
curricular passa a ser muito mais o porquê das formas de organização assumidas pelo
conhecimento escolar do que o como elaborar o currículo, ou seja, menos a indicação das
disciplinas, métodos e técnicas de trabalho e mais a preocupação com o sentido do próprio
conteúdo escolar.
A concepção restrita de currículo, próxima do conceito clássico de programa ou, pior
ainda, de uma simples grade curricular, foi substituída por uma concepção mais ampla, que
considera o contexto escolar e os fatores que nele incidem. O currículo, desse modo, abrange
tudo o que ocorre na escola, as atividades programadas e desenvolvidas sob a sua
responsabilidade e que envolvem a aprendizagem dos alunos, na própria escola ou fora dela.
A sua concretização, no espaço dinâmico da escola, vai produzir, simultaneamente, diferentes
expressões do currículo. Ao lado do currículo formal, expresso nos planos e nas propostas
pedagógicas, há um currículo em ação, denominado currículo real, que é o que, de fato, acontece
na escola, e o currículo oculto, que se refere ao que não está explicitado, mas que perpassa, o
tempo todo, as atividades escolares.
Essas três expressões do currículo vão constituir o conjunto das aprendizagens realizadas
pelos alunos. O reconhecimento dessa trama, presente na vida escolar, vai dar à equipe da
escola e à própria Secretaria de Educação melhores condições para identificar as áreas
problemáticas da sua prática pedagógica. Diante disso, algumas questões básicas deveriam ser
feitas pela escola e pelos órgãos responsáveis por seu acompanhamento: Que mensagens não
explícitas a escola vem passando para seus alunos? Que conteúdos vem a escola privilegiando?
Que currículo está sendo construído – o que enfatiza o sucesso escolar ou o que, implicitamente,
se conforma com o fracasso?
Pela definição de uma Base Nacional Comum, busca-se, no currículo formal, garantir a
unidade nacional, de forma que todos os alunos possam ter acesso aos conhecimentos mínimos
necessários ao exercício da vida cidadã. A Base Nacional Comum é, portanto, uma dimensão
obrigatória dos currículos nacionais e é definida pela União. A Parte Diversificada do currículo,
também obrigatória, compõe-se de conteúdos complementares, identificados na realidade
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
380
regional e local, que devem ser escolhidos em cada sistema ou rede de ensino e em cada
escola. É importante aqui chamar atenção para o fato de que a escola tem autonomia para
incluir, na Parte Diversificada do currículo, temas de seu interesse. Um exemplo de conteúdo
da parte diversificada é o escolhido por uma escola do Semi-Árido baiano: estratégias para a
convivência com a seca. É com a construção da proposta pedagógica da escola que se integram
a Base Nacional Comum e a Parte Diversificada.
A composição curricular deve buscar a articulação entre os vários aspectos da vida cidadã
(a saúde, a sexualidade, a vida familiar e social, o meio ambiente, o trabalho, a ciência e a
tecnologia, a cultura, as linguagens) com as áreas de conhecimento (Língua Portuguesa, Língua
Maternapara populações indígenas e migrantes , Matemática, Ciências, Geografia, História,
Língua estrangeira, Educação Artística, Educação Física e Educação Religiosa).
A despeito da possibilidade de várias formas de composição curricular, tanto os Parâmetros
Curriculares Nacionais quanto a literatura, nacional e internacional, sobre o tema indicam que
os modelos multidisciplinar e pluridisciplinar, que vêm determinando a organização curricular
da escola brasileira e de outros países, marcados por uma forte fragmentação, devem ser
substituídos, na medida do possível, por uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar. A
interdisciplinaridade é uma concepção de divisão do saber marcada pela interdependência,
pela interação e pela comunicação entre as disciplinas voltadas para a integração do
conhecimento em áreas significativas. A transdisciplinaridade é a coordenação do conhecimento
em um sistema lógico que permite o livre trânsito de um campo de saber para outro,
ultrapassando a concepção de disciplina e enfatizando o desenvolvimento de todas as nuanças
e aspectos do comportamento humano.
O papel da escola, no mundo contemporâneo, é o de desenvolver competências
transversais, entendidas como
“a capacidade de decidir qual é o alvo a ser atingido e, portanto, a capacidade de julgar a
oportunidade, assim como a capacidade de inventar os meios para atingir esses alvos. Essas
competências transversais são adaptativas, transferíveis e geratrizes, caracterizadas pelo poder de
adaptar atos e palavras a uma infinidade de situações inéditas”.
49
Para atingir o que se propõe, até como decorrência da própria lei, a escola precisa promover
experiências que possibilitem aos alunos o estabelecimento de relações entre a sua experiência
cotidiana e os conteúdos escolares. A escola deve, acima de tudo, criar condições para que
seus alunos participem da construção e reconstrução de conceitos e valores, tendo em vista
que o ato de conhecer implica incorporação, produção e transformação do conhecimento.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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A identificação dos elementos básicos de uma composição curricular e da atualidade de
sua concepção norteadora podem ser apreendidas em documentos disponíveis nas Secretarias
de Educação ou nas escolas (por exemplo: proposta curricular, propostas pedagógicas, diretrizes
curriculares, referenciais curriculares), que constituem a base para a organização dos processos
de ensino-aprendizagem que se desenvolvem na escola ou sob a sua ação. A inexistência de
tais documentos ou de outras formas de orientação das práticas docentes, no que se refere aos
seus conteúdos e processos, pode resultar em insegurança nas decisões dos profissionais
quanto aos caminhos da escola no cumprimento de sua missão precípua, na multiplicidade de
orientações quanto ao quê e ao como ensinar e aprender, na tendência à adoção de modelos
inspirados nos livros didáticos e na eliminação ou secundarização da abordagem de aspectos
da realidade local ou do cotidiano dos alunos. Ainda que se reconheça a necessidade de que
tais orientações sejam flexíveis, em respeito à autonomia da escola e do professor, sua existência
probabiliza uma atuação mais unitária, embora não uniforme, da escola, no âmbito curricular.
Contudo, a má qualidade dessas orientações, sua falta de clareza, de objetividade ou de coerência,
ou até os procedimentos adotados na sua elaboração, particularmente os que não envolvem
os profissionais responsáveis pela coordenação das atividades curriculares, podem gerar
confusão ou conduzir às mesmas conseqüências anteriormente mencionadas
Além dessas orientações, a concepção e a prática de um currículo escolar que realmente
promova a inserção do aluno na vida cidadã requerem a existência de profissionais qualificados.
A complexidade da tarefa que a escola deve assumir, hoje, exige professores capazes de exercer,
com autonomia intelectual, a coordenação de processos de aprendizagem que vão muito além
da simples apreensão e reprodução de conhecimentos transmitidos. Logo, o ponto crucial da
temática do currículo remete ao conteúdo discutido no tópico sobre a valorização dos
profissionais do magistério.
4.7 ORIENTAÇÃO DIDÁTICA
O modelo de aula, com o professor à frente, expondo o seu saber, e os alunos enfileirados,
preferencialmente em silêncio, tem sido, em geral, o mais disseminado nas escolas. Essa forma
de conduzir o processo de ensino, centralizando-o na figura do professor e focalizando a
transmissão/repetição de conhecimentos já estabelecidos, revela-se como um dos aspectos da
educação escolar que vem se reproduzindo através dos tempos e mais resistente a mudanças.
O modelo em apreço está ancorado em uma concepção tradicional da educação e do ensino,
hoje amplamente questionada, mas que ainda prevalece com toda a força de uma prática
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
382
secular. Essa “preferência” pode ser explicada, pelo menos em parte, pelo despreparo do
professor para atuar em sala de aula orientado por concepção(ões) diferente(s), em razão do
pouco ou nenhum domínio de alternativas de trabalho capazes de mudar a configuração dos
processos pedagógicos que coordena, dando-lhe maior segurança para orientar sua atuação
pelo modelo mais conhecido, até pelo fato de ter sido o modelo pedagógico que permeou toda
a sua escolaridade. Pode ser explicada também pelas condições adversas à modernização do
ensino, expressas na organização dos espaços escolares, na constituição das turmas ou na
carência de materiais e equipamentos para o trabalho pedagógico, além do quadro e giz, com
suas variações atuais, do lápis e caderno e, só mais recentemente de uma forma generalizada,
do livro didático.
O que mais surpreende é que essas práticas tradicionais vêm resistindo a uma produção
considerável de teorias, originadas e complementadas por um número incalculável de pesquisas,
produzidas no Brasil e em outros países. Essa produção teórica vem contribuindo para a
ampliação do conhecimento pedagógico, vem inspirando diferentes propostas de trabalho em
sala de aula e vem comprovando a ineficiência do modelo tradicional para que a escola possa
desempenhar bem o seu papel na formação do cidadão para o mundo contemporâneo. Ademais,
não se trata apenas de uma produção recente. São conhecimentos que vêm se acumulando,
principalmente ao longo do século XX, nem sempre convergentes, mas consensuais em relação
à discordância do modelo pedagógico tradicional. Todavia, sua divulgação e incorporação aos
currículos de formação dos profissionais do magistério só começa a ser impulsionada, no
Brasil, a partir da segunda metade do século XX.
É preciso deixar claro, contudo, que a forma como esses conhecimentos vêm sendo
trabalhados, seja nos cursos destinados à formação inicial de professores, seja em cursos
eventuais promovidos pelas Secretarias de Educação, a julgar pelos seus resultados, não estão
contribuindo para mudanças de concepção com reflexos na prática pedagógica dos professores
que os freqüentam. Há que se considerar, nesses resultados, a baixa qualidade de grande
parte dos cursos referidos, porque ministrados por profissionais também despreparados, que
conseguiram, por vezes, até incorporar um novo discurso, uma nova terminologia, mas não
conseguiram transformar sequer sua própria prática. Acrescente-se ainda que os professores
nem sempre dispõem de materiais bibliográficos para atualização, nem sempre desenvolveram
o hábito ou o prazer da leitura, nem sempre podem ter a oportunidade de trocar experiências
com colegas ou de discutir seu trabalho em sala de aula com profissionais em condições de
contribuir para a elevação de sua competência profissional Assim, como esperar mudanças
profundas no trabalho em sala de aula?
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Não tem sido incomum também que as teorias mais relacionadas com o saber pedagógico
sejam apresentadas aos professores como “modelos” a serem seguidos ou “implantados” nas
escolas e nas salas de aula, como “rótulos”, que expressam pouco domínio de sua base conceitual,
e como prescrições, estas sob a forma de roteiros ou instrumentos para as atividades com os
alunos. Tais práticas, além de se constituírem em desrespeito à autonomia do professor,
desconhecem o saber da experiência, construído por esse professor no seu percurso profissional,
e contribui para uma insegurança gerada pela rejeição das orientações antes adotadas e pelo
pouco domínio das novas orientações. Esses são traços bem característicos dos “modismos”
que vêm tendo uma enorme interferência na educação brasileira, nos últimos tempos. Destaca-
se como um dos exemplos mais recentes dessa problemática a divulgação do construtivismo,
marcada por inúmeros equívocos.
A despeito de tais equívocos nas tentativas de familiarização dos professores com os avanços
teóricos no âmbito do conhecimento pedagógico, não se pode desconsiderar, em qualquer
abordagem sobre as novas orientações didáticas para a atuação docente em sala de aula, a
grande influência, no Brasil, da abordagem construtivista. Essa abordagem se desenvolve,
inicialmente, no campo da psicologia do desenvolvimento, tendo sua origem na epistemologia
genética, teoria construída com base nos estudos desenvolvidos pelo pesquisador suíço Jean
Piaget, cuja produção científica, de grande amplitude, começa a ter maior divulgação a partir
da década de 60. A repercussão de suas idéias na educação, todavia, só começa a ser mais
amplamente discutida a partir do aprofundamento das críticas, entre os educadores, do enfoque
tecnicista, inspirado na psicologia da aprendizagem norte-americana, notadamente no chamado
Movimento Behaviorista, cuja influência na educação brasileira foi predominante, pelo menos,
nas décadas de 60 e 70.
O construtivismo, já incorporando também a contribuição de outros teóricos, além de
Piaget, principalmente a do russo Lev Vygotsky e da pesquisadora argentina Emília Ferreiro,
passa, assim, a ser mais discutido e aprofundado nos meios acadêmicos e adotado como
orientação teórica de pesquisas e como fundamentação de práticas pedagógicas. Secretarias de
Educação, cursos ou programas de formação de professores e escolas “abraçam”, então, o
construtivismo, não raro como uma alternativa para a falta de sustentação teórica na orientação
do ensino, ou como uma “tábua de salvação” para o enfrentamento do problema do fracasso
escolar, progressivamente mais agudo no âmbito da educação pública. As equipes responsáveis
por essa “opção teórica”, freqüentemente sem o aprofundamento devido para a gigantesca
tarefa de mudar concepções tradicionais arraigadas e produzir melhores resultados no âmbito
da aprendizagem escolar, reduziram, muitas vezes, o construtivismo a algumas das contribuições
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
384
teóricas de Emília Ferreiro, sobretudo as mais relacionadas com a alfabetização (o ponto crítico
do fluxo escolar) e as que mais facilmente poderiam ser transformadas em prescrições para o
trabalho docente. Resulta desse processo, como não poderia deixar de ser, uma confusão
generalizada entre os professores, em razão da insegurança gerada pelo não-domínio da teoria,
ou pela sua compreensão superficial e, com freqüência, distorcida.
A universo conceitual do construtivismo, pelo fato de compor um corpo de conhecimentos
sobre a aprendizagem e o desenvolvimento humano, traz importantes contribuições ao ensino.
Estas apontam, naturalmente, em uma direção oposta à tradicional. Para uma pedagogia de
base construtivista o aluno é ativo, não mero receptor, ele é construtor de seu conhecimento,
não repetidor de informações. O conhecimento é processo de construção / reconstrução da
realidade, que se produz na interação do sujeito e o mundo físico, material e social. Aprender
é construir conhecimento, e esse processo de construção é imprescindível na formação de
estruturas cognitivas que probabilizam a ocorrência de novas, e cada vez mais avançadas,
relações com o mundo e patamares mais elevados de conhecimento, processo de equilibração
majorante, que ocorre durante toda a vida. O conhecimento não pode, portanto, ser transmitido.
Se é assim, o aluno, em vez de figurante, passa a ser protagonista no processo de construção
de seu próprio conhecimento, no âmbito da experiência escolar ou fora de seu contexto. O
professor, nesse processo, atua como coordenador, identificando possibilidades e limites,
diferenças de níveis e de ritmos, dificuldades e condições favoráveis. Essa é a matéria-prima a
ser utilizada na estruturação das experiências de sala de aula, cuja proposição não pode ser
uma exclusividade do professor. A participação, o trabalho coletivo, as atividades em pequenos
grupos, o desenvolvimento da cooperação e da solidariedade, a atitude investigativa, o prazer
pela descoberta são alguns dos traços característicos de uma orientação didática fundamentada
no construtivismo. Adotar essa perspectiva, ou qualquer outra capaz de contribuir para mudar
substancialmente a qualidade da escola, supõe aprofundamento teórico, apoio contínuo,
condições favoráveis à aprendizagem e, sobretudo, mudança de concepção quanto ao sentido
do trabalho pedagógico.
A aula é uma situação de encontro entre o professor e seus alunos, em uma dimensão de
tempo-espaço onde é possível viver a magia e o encantamento de ter nas mãos e diante dos
olhos um mundo para ser visto, pensado, debatido, revirado, para manter vivos os sonhos e
desejos de mudança e transformação, de conhecer e aprender, para se sentir mais confiante e
seguro de si mesmo na relação e convivência com os outros. Se o processo educativo integrar
os valores da participação, da iniciativa, da liderança, da livre expressão, em sua prática
cotidiana, estará fortalecendo, sem dúvida, a cidadania e a escola se tornará um lugar
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
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privilegiado do seu exercício. Portanto, a orientação didática que fundamenta as práticas
pedagógicas não pode ser desconsiderada como um importante indicador de qualidade da
escola. O levantamento de possibilidades de atuação, nesse âmbito, para que sejam superadas
as dificuldades e o tradicionalismo e para que se produzam as mudanças apontadas, remetem
também, e necessariamente, à incorporação das iniciativas voltadas para a valorização dos
profissionais do magistério.
4.8 FORMAS DE AVALIAÇÃO
A idéia de avaliação encontra-se ainda associada, quase que exclusivamente, a notas,
conceitos, provas, testes e tudo o que se aplica à aferição do desempenho dos alunos. Entretanto,
a temática da avaliação vem assumindo importância cada vez maior, na medida em que cresce
a convicção quanto à necessidade de se planejarem as ações educacionais a partir de dados
confiáveis e de indicativos precisos da realidade. Assim, a avaliação se aplica, hoje, tanto ao
âmbito dos resultados escolares (rendimento escolar dos alunos e fatores a ele associados,
qualidade das aprendizagens, desempenho dos alunos em provas específicas) quanto ao âmbito
do desempenho institucional (condições de infra-estrutura das escolas, processos de gestão,
formação, qualificação e produtividade do pessoal docente e técnico-administrativo).
A avaliação institucional vai fornecer os indicadores das necessidades a serem atendidas,
para que as escolas possam desempenhar bem o seu papel. Os resultados da avaliação escolar
vão informar a respeito da eficiência do próprio sistema. Dessa maneira, esses dois âmbitos –
sistema e escola – estão interligados e cada um deles não pode ser avaliado sem o outro. A
avaliação externa da escola, por exemplo, realizada por meio de exames de proficiência dos
alunos, do tipo SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, que tem por objetivo
verificar se os alunos estão dominando os conteúdos/habilidades básicas relativas a um
determinado nível de ensino, já está sendo instituída em alguns Estados e Municípios. O
sistema ou rede de ensino, as escolas e a própria comunidade podem utilizar os resultados
dessa avaliação externa para fazer sua própria auto-avaliação.
A prática da avaliação institucional ainda é incipiente no Brasil, no âmbito da educação
básica, sobretudo nas instâncias estadual e municipal. Poucos e bem recentes são os materiais
divulgados sobre o tema. As causas apontadas para o pequeno interesse revelado pelo assunto
são, principalmente, a resistência a reconhecer e enfrentar problemas, o clientelismo político,
o corporativismo e a ausência de quadros qualificados para exercer as funções gerenciais e
administrativas. Também a ausência de mecanismos confiáveis de registro de dados é
considerada um obstáculo ao desenvolvimento da prática da avaliação institucional. Tal lacuna
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
386
tem provocado uma estagnação nesses sistemas e contribuído, ao lado de outros fatores, para
manter a má qualidade das escolas.
A avaliação é, sem dúvida, um tema complexo. Da mesma forma que a avaliação institucional,
a avaliação da aprendizagem escolar, embora seja uma prática usual, é uma questão
problemática, que vem suscitando debates em várias áreas do conhecimento. Os estudos
realizados sobre o tema indicam, entre outros, dois aspectos importantes a se considerar nas
práticas avaliativas da escola: a presença de arbitrariedades
50
dos professores nos processos
avaliativos dos alunos e a indefinição de como se deve avaliar, pela ausência de parâmetros e
princípios orientadores claros.
Quanto ao primeiro aspecto, são inúmeros os estudos que destacam o uso da avaliação
como instrumento de poder e de autoritarismo. Quanto ao segundo aspecto, Lüdke,
51
estudando
escolas da 1ª à 4ª série da rede municipal do Rio, comenta o estado de confusão e insegurança
dos professores diante da concepção ideal de avaliação escolar passada pelos cursos e
documentos oficiais e a realidade das escolas que eles devem enfrentar no dia-a-dia. Diante
disso e de outras constatações, essa autora comenta que “a possibilidade de sucesso de uma
boa proposta de avaliação depende, em grande parte, de seus ajustes às reais possibilidades
de percepção e de atuação dos professores envolvidos”. Além disso, a adequação entre os
aspectos conceituais e técnicos da avaliação não pode ser subestimada e os instrumentos e
técnicas empregados devem expressar as opções pedagógicas assumidas.
A função da avaliação escolar é obter informações sobre os avanços e as dificuldades de
cada aluno, constituindo-se em um procedimento permanente de suporte ao processo de ensino-
aprendizagem, de orientação para o professor planejar suas ações, a fim de conseguir ajudar o
aluno a prosseguir, com êxito, seu processo de escolarização. Para tanto, cabe ao professor
interpretar, qualitativamente, o conhecimento construído pelo aluno, considerando que esse
conhecimento abrange as áreas cognitiva, afetiva e social.
A LDB, no seu artigo 24, inciso V, expressa uma concepção de avaliação que considera a
construção do conhecimento como um processo contínuo e progressivo, devendo a avaliação
a ele adequar-se; que a aprendizagem comporta elementos de ordem subjetiva tanto quanto
objetiva e, portanto, deve privilegiar os aspectos qualitativos sobre os quantitativos; que o
aluno pode trazer para a escola um saber construído fora dela ou em outras experiências
escolares que deve ser reconhecido e aproveitado; que o aluno pode avançar nas aprendizagens
dos conteúdos próprios de uma determinada série e, por isso, ser promovido à série seguinte,
antes mesmo da conclusão do ano letivo; que, ao aluno em atraso escolar, deva ser garantida
tanto a possibilidade de aceleração de estudos quanto a oportunidade de recuperação,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
387
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
preferencialmente paralela ao período letivo. Em síntese, a avaliação escolar deve ser
considerada um instrumento de estímulo ou favorecimento à aprendizagem, a serviço da
permanência, com sucesso, do aluno na escola.
Como ultrapassar as práticas de avaliação existentes hoje nas escolas e construir novas
formas que venham a atender ao que prescreve a nova legislação e ao atual estágio de
conhecimento crítico sobre essa temática? Esse é mais um desafio que as escolas têm de enfrentar
e que as instituições de defesa dos direitos de crianças e adolescentes devem ter em mente.
52
A avaliação é um dos aspectos do trabalho escolar que mais revelam as concepções subjacentes
às relações pedagógicas. O uso da avaliação como instrumento de poder, com o emprego de
critérios discriminatórios e excludentes, pela escola e pelo professor, é uma prática tão comum
que o ECA, no seu artigo 53, inciso III, assegura à criança e ao adolescente o direito de contestar
critérios avaliativos e de recorrer às instâncias escolares superiores. Assegurar o conhecimento
desse dispositivo legal, pela escola e pelos alunos, contribuirá, certamente, para novas reflexões
sobre o tipo de avaliação praticada e para que o direito venha a ser, de fato, respeitado.
4.9 PARTICIPAÇÃO DOS PAIS
A participação da comunidade na escola tem sido incluída como um dos princípios da
gestão democrática, não só no Brasil como nas reformas educacionais que vêm sendo
encaminhadas em outros países, pelo que a presença dos pais representa na escola, enquanto
elemento de acompanhamento de sua função social. O UNICEF,
53
ao desenvolver os doze princípios
que fundamentam o documento “Educação para Todos”, situa, em primeiro lugar, o envolvimento
da comunidade, destacando que os sistemas educacionais bem-sucedidos possuem uma forte
identificação com a comunidade de pais e de alunos.
A participação dos pais na escola está legalmente assegurada no ECA (art. 53, parágrafo
único). Este Estatuto estabelece “o direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo
pedagógico, bem como de participar da elaboração de propostas educacionais”. A LDB, em seu
artigo 14, ao estabelecer as normas da gestão democrática, exige “a participação da comunidade
escolar e local em Conselhos Escolares ou equivalentes”. Essa determinação legal, estabelecida
tanto no ECA quanto na LDB, expressa, certamente, a convicção de que a parceria entre a família
e a escola poderá contribuir para o desenvolvimento escolar dos alunos, e impõe a criação e o
funcionamento, em todas as escolas públicas de educação básica, de Conselhos Escolares. As
tradicionais associações de pais e mestres, que continuam a existir em algumas escolas, não
vêm, de modo geral, se constituindo em veículo efetivo de participação da comunidade.
Lamentavelmente, a militância familiar ainda não acontece, no Brasil, com a intensidade
devida, por se tratar de uma parceria que, em geral, não tem sido, historicamente, buscada ou
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
388
estimulada pela escola. De um lado, porque as famílias não se sentem, ou não são reconhecidas
como, capazes de contribuir para a melhoria do trabalho escolar, sobretudo as que integram os
setores populares, com baixo nível de escolaridade e sem uma consciência de direitos, posto
que, pelas próprias circunstâncias de vida, não tiveram sua cidadania consolidada. De outro
lado, porque a escola não confia nas possibilidades de contribuição efetiva das famílias, a não
ser na participação em mutirões e outras colaborações para a manutenção da escola ou para
disciplinar os alunos mais “trabalhosos”.
Uma série de estudos realizados nos Estados Unidos e reunidos em um documento
intitulado “Gerando Novas Evidências: a família como elemento crítico para o sucesso do
aluno”
54
mostra, entre outros aspectos, que, se há, no grupo familiar da criança, o reconhecimento
da importância da educação para sua vida, ainda que esse grupo não tenha a constituição de
uma família nuclear, cria-se um ambiente que encoraja a aprendizagem, fazendo que o aluno
se saia melhor na escola. Fica evidenciado, também, que a construção de uma visão positiva a
respeito da educação que a escola pode fornecer depende, em grande parte, da participação
que os pais ou responsáveis têm na vida escolar dos seus filhos. A esse respeito, chama-se
atenção para o fato de que não se pode esperar que a família forneça sozinha o suporte para o
desenvolvimento de uma perspectiva positiva da educação. As escolas devem envolver, de
forma significativa, as famílias na educação de suas crianças. Esse envolvimento, contudo,
deve ir além dos eventuais encontros de pais. Eles devem incluir, entre outros aspectos, a
identificação dos elementos culturais da comunidade que podem ajudar a fazer a ligação entre
os objetivos da escola e os objetivos sociais do grupo ou comunidade aos quais os pais e
alunos pertencem.
O Conselho Escolar se constitui em um espaço importante de ligação entre a escola e os
demais membros da comunidade. O Conselho, se está organizado de uma forma democrática
e aberta, pode constituir-se em fonte de informação e de estímulo para a participação efetiva
dos pais e, conseqüentemente, em campo de exercício da cidadania. Outros trabalhos mostram
o impacto da presença atuante do Conselho Escolar no desempenho dos alunos. Estudo
realizado pelo SAEB indica que existe estreita associação entre a implementação de Conselhos
Escolares, com a participação efetiva dos pais, e o resultado obtido pelos alunos nas provas
aplicadas.
O Conselho Escolar é o canal institucional da participação dos pais. Entretanto, é preciso
construir parcerias com o maior número possível de pais e de lideranças da comunidade,
ultrapassando, assim, o formalmente estabelecido. A construção de parcerias com a comunidade
tem sido considerada fundamental para o êxito de qualquer projeto educativo voltado para o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
389
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
desenvolvimento da cidadania. Ainda que as famílias usuárias da escola pública tenham uma
formação escolar limitada, é preciso acreditar que elas podem influir significativamente nas
escolas. Como diz Ferrer,
“à falta de preparação dos cidadãos em determinados âmbitos, se deve responder com mais
formação e possibilidades de adquirir experiências novas e não com limitações à sua intervenção”.
55
4.10. RECONHECIMENTO PÚBLICO
A imagem pública que a escola passa a ter é um indicador de sua eficácia. Uma escola
torna-se reconhecida publicamente por sua competência se é capaz de realizar um bom trabalho,
com seus alunos e com a comunidade que a cerca. Prédios novos ou reformados, bons
equipamentos, professores qualificados e um clima escolar voltado para o sucesso dos alunos
são aspectos que podem determinar o reconhecimento da eficácia de uma escola. Quando os
pais fazem um esforço grande para matricular e manter seus filhos em uma determinada escola,
por razões que vão além da proximidade físico-espacial de suas casas, isso significa que essa
escola foi escolhida a partir de critérios outros provavelmente relacionados com o tipo de
trabalho que realiza. Esse reconhecimento vai acontecer também entre os professores, alunos
e funcionários, que passam a se identificar com o conjunto de valores comuns que regem a
organização escolar e a se comprometer com a manutenção e ampliação do padrão de
atendimento que foi construído. Uma escola pode também receber o reconhecimento público
da comunidade acadêmica, que a vê como espaço de experimentação e inovação educacional,
como centro de referência para outras escolas.
Em se considerando o reconhecimento público como uma conquista das equipes
profissionais que, com esforço e criatividade, conseguem superar suas próprias dificuldades,
freqüentemente em parceria com outros segmentos, esse reconhecimento pode ser tomado
como um dos mais importantes indicadores de qualidade da escola.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Iniciamos o século 21 (...) com um ideal (...) com um compromisso de não poupar esforços
(...) que todas as crianças, incluindo as mais pobres e mais desfavorecidas, completem uma
educação básica de boa qualidade, e que todos os adolescentes tenham a oportunidade para se
desenvolver plenamente e para participar em sua sociedade.”
UNICEF – Situação Mundial da Infância 2000
Todos os países do mundo, sejam eles desenvolvidos ou periféricos, estão a enfrentar
imensos desafios decorrentes de uma interseção crescente entre forças nacionais, internacionais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
390
e transnacionais da qual emerge uma nova ordem global em que o saber se constitui a principal
força produtiva e a educação adquire um caráter de estratégia de sobrevivência tanto dos
indivíduos quanto das nações. Esses desafios se tornam ainda maiores para aqueles países
como o Brasil que, para superar os problemas decorrentes da universalização tardia e ainda
não integralmente alcançada da educação básica, precisa empreender um esforço gigantesco.
Se, nos últimos anos, vêm sendo realizadas inegáveis conquistas na direção dessa
universalização, muito há ainda a ser feito no sentido de criar condições para o efetivo exercício
do direito a uma educação escolar de qualidade.
O quadro de precariedade que caracterizou a educação publica brasileira ao longo das
décadas anteriores faz que o país enfrente, no momento presente, difíceis questões: atender,
com o atual nível de escolaridade de sua população, aos requisitos de atuação profissional
exigidos pelas novas relações estabelecidas pelo mercado internacional de trabalho; realizar,
de forma rápida, a necessária transição educacional para que se possa atingir um novo patamar
de qualidade da educação básica e da educação superior; construir uma escola inclusiva,
democrática e cujo ensino seja suficientemente competente para assegurar que seus egressos
possam atuar como cidadãos do mundo contemporâneo; melhorar as condições de vida de
suas populações, oferecendo-lhes os elementos indispensáveis – educação, saúde e trabalho –
que lhes permitam viver com dignidade e participar dos esforços a serem empreendidos, para
que se alcance o nível de desenvolvimento, no país, pelo menos aproximado ao das nações
mais avançadas; enfim, superar os hiatos históricos e criar as condições para a participação
efetiva do país, em um outro plano, nas novas relações sociais, econômicas e políticas do
mundo global.
O enfrentamento dessas complexas questões demanda o emprego de novas soluções. É
imprescindível a construção de um modelo de sociedade que ative todas as suas potencialidades
para, em conjunto com o Estado, ser protagonista das políticas nacionais na compreensão de
que, em uma democracia, a nação não é instituída mas instituinte de uma ordem social que lhe
é própria. Isso quer significar a formação de uma outra mentalidade na sociedade civil e o
fortalecimento de suas instituições como fonte criadora dessa nova ordem. Para tanto, é preciso
garantir, cada vez mais, os direitos de participação de cada cidadão, viabilizando os canais
para isso necessários e definindo novos modos de atuar em conjunto, na perspectiva da
construção de uma ética de co-responsabilidade social. A formação da consciência de um
profissionalismo social e o reconhecimento de que a luta pela garantia do direito a uma educação
de qualidade não é um problema circunscrito aos educadores ou aos responsáveis pelas políticas
públicas de educação são considerados hoje elementos dos mais importantes na conquista de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
391
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
novos mecanismos de enfrentamento dos problemas educacionais. Uma verdadeira gestão
social da escola, aberta a docentes, pais, alunos, comunidade e outros profissionais que regulam
a vida civil não só é necessária como possível. Exemplos de outros países dão um atestado
concreto dessa possibilidade. No Brasil, algumas experiências, ainda que pontuais, já se
encaminham nessa direção.
Aos tradicionais agentes da educação devem-se congregar outros, em um esforço conjunto
de vigilância cívica, para tornar a escola um real espaço de construção da cidadania. Os
magistrados e promotores, responsáveis diretos pela administração da justiça, têm nesse contexto
um papel dos mais significativos: a utilização efetiva e equânime dos instrumentos de
exigibilidade do direito a uma educação escolar de qualidade, considerado, atualmente, como
um dos direitos humanos mais fundamentais. Será possível a um profissional que não vive o
cotidiano das questões escolares reconhecer quando esse direito está sendo ou não garantido?
As relações estabelecidas, durante o presente século, entre as teorias pedagógicas e as
pesquisas sobre as práticas cotidianas das escolas possibilitaram a construção de um referencial
teórico-prático substancial que fornece indicadores, de amplo consenso universal, que podem
ser utilizados para acompanhar e avaliar a eficácia da escola e permitir intervenções responsáveis
e bem fundamentadas. Alguns desses indicadores foram apresentados e discutidos neste texto:
tipo de gestão da escola; apoio das autoridades; formas de utilização do tempo e de organização
do espaço; valorização dos profissionais; composição e dinâmica curricular; orientação didática;
formas de avaliação; participação dos pais; reconhecimento público.
Uma análise desses e de outros indicadores, reforçada pelo diálogo com a escola e seus
profissionais, pode resultar em uma atuação mais segura e conseqüente e na descoberta de
novas estratégias de atuação conjunta para fazer cumprir o direito que os alunos têm de aprender
direito. Assim, no exercício dessa importante responsabilidade social, os magistrados e
promotores tornam-se parceiros fundamentais da população, principalmente daquela mais
desfavorecida, na luta pela construção de uma nova escola, de um novo país, em que todas as
crianças e jovens sejam respeitados nos seus direitos básicos, em que haja justiça na distribuição
e usufruto da riqueza material e dos bens culturais. Essas são condições indispensáveis ao
pleno desenvolvimento das potencialidades e das capacidades humanas e à manutenção da
soberania das nações no mundo contemporâneo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
392
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Apud Domenico De Masi (org.). A sociedade pós-industrial. 2
a
ed. São Paulo: Editora SENAC,
1999. p.66-67.
2
VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Edições 70. p.11.
3
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Tubingen – República Federal de Alemania: 1997. p.76-86.
4
PAIVA, Vanilda e WARDE, Mirian J. Novo paradigma de desenvolvimento e centralidade do
ensino básico. In: PAIVA, Vanilda (org.). Transformação produtiva e eqüidade: a questão
do ensino básico. São Paulo: Papirus, 1995. p.9-40.
5
RIBEIRO, Sérgio Costa. A educação e a inserção do Brasil na modernidade. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n.84, p.63-82, fev. 1993.
6
O relatório, encomendado pela UNESCO e coordenado por Jacques Delors, foi publicado no
Brasil, em 1999, com o título Educação - Um tesouro a descobrir, pela Cortez Editora (São
Paulo).
7
NÓVOA, António (org) . Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1995.
8
LÜCKE, M. Desafios para a formação do professor – dados de pesquisas recentes. In: SERBINO,
R. V. e BERNARDO, M. V. Educadores para o século XXI. São Paulo: UNESP, 1992. p.111-120.
9
UNICEF. Situação mundial da infância 1999. Educação. Brasília: UNICEF, 1999.
10
UNICEF. Situação mundial da infância 1999. Educação. Brasília: UNICEF, 1999. p.15
11
O Plano Decenal de Educação para Todos foi editado em 1993, com elaboração coordenada
pelo MEC, e teve seus desdobramentos na elaboração dos planos decenais estaduais e
municipais. Uma análise desses planos pode ser encontrada nos textos de AMARAL
SOBRINHO, José. O plano decenal de educação para todos: cultura e contracultura. Brasília:
1994. mimeo e AMARAL SOBRINHO, José. Reflexões sobre os planos decenais de educação.
Brasília: 1995. mimeo
12
Para uma idéia mais precisa dessas diferenças, importante verificar a variação do IDH (Índice
de Desenvolvimento Humano), entre 1960 e 1995, entre o Brasil e grupos de países
selecionados, cujos dados são apresentados na publicação Desenvolvimento Humano e
Condições de Vida: indicadores brasileiros. Brasília: PNUD/IPEA/IBGE/FJP, 1998. 140 p.
13
O Plano Nacional de Educação – PNE vem sendo discutido desde a segunda metade dos anos
90 pelos educadores brasileiros. Durante o II CONED – Congresso Nacional de Educação,
realizado em novembro de 1997, chegou-se a uma versão final do documento “Plano
Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira”, encaminhado ao Congresso
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
393
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
Nacional. Também em dezembro de 1997, o MEC, após consultas às entidades de educadores,
encaminha uma proposta de Plano Nacional de Educação. Em dezembro de 1999, o PNE
chegou à sua redação final na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos
Deputados e, atualmente, está sendo analisado pela Comissão de Finanças e Tributação
da Câmara dos Deputados.
14
O grupo EFA-9 (Education for All) é constituído pelos nove países em desenvolvimento mais
populosos do mundo: além do Brasil, Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México,
Nigéria e Paquistão.
15
O EFA-9 – Relatório brasileiro destaca avanços na educação, bem como os documentos
denominados Informa Nacional Brasil – EFA 2000 – Educação para Todos – Avaliação do
Ano 2000 e Desempenho do Sistema Educacional Brasileiro: 1994-1999 estão disponíveis
no site do INEP: www.inep.gov.br/noticias/news.
16
EDUCAÇÃO BRASILEIRA: políticas e resultados. Brasília: MEC/INEP, 1999. 43 p.
17
A taxa de escolarização líquida “(...) identifica a parcela da população de determinada faixa
etária que está matriculada no nível de ensino adequado àquela faixa etária”. A taxa de
escolarização bruta “(...) avalia o volume de matrículas em cada nível de ensino em função
da demanda potencial na faixa etária adequada”. In: ABREU, Mariza Vasques. Cartilha dos
conselhos do FUNDEF – censo escolar. Brasília: FUNDESCOLA/MEC/UNICEF/UNDIME, 1999. p.19.
18
As taxas de transição referem-se aos resultados apurados pelas escolas em relação ao
aproveitamento dos seus alunos: aprovação, reprovação e abandono.
19
A taxa de distorção ou defasagem idade/série se refere ao percentual de alunos fora da idade
prevista para cursar cada uma das séries dos diferentes níveis de ensino. Por exemplo, no
ensino fundamental, a correspondência idade/série prevista é a seguinte: 1ª série – 7 anos;
2ª série – 8 anos; 3ª série – 9 anos; e assim por diante.
20
Ver, a esse respeito, o importante trabalho de Sérgio Costa Ribeiro, intitulado A Pedagogia
da Repetência. In: MENDONÇA, Rosane e URANI, André (orgs.). Estudos Sociais e do
Trabalho, v.1, Rio de Janeiro, IPEA, 1994. p.55-68.
21
Essas práticas têm motivado muitas críticas dos educadores, pronunciamentos e publicações
diversas, dentre as quais pode ser citada a de Maria Helena Guimarães de Castro, em 1999:
Presidente do INEP faz críticas à “promoção automática” e à “cultura da repetência”.
www.inep.gov.br/noticias/news92.htm
22
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e a Avaliação de Concluintes do Ensino
Médio – Exame Nacional do ensino médio (ENEM) produziram, nos últimos anos, resultados
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
394
que confirmam o que outras pesquisas vêm demonstrando há algum tempo: quanto maior
a distorção idade/série dos alunos (a repetência está embutida nessa distorção), pior é o
seu desempenho.
23 O SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – é uma das primeiras iniciativas
no sentido de estabelecer parâmetros nacionais de avaliação da educação básica. Teve seu
início em 1990/91, quando foi realizada a primeira aferição atingindo nas classes iniciais a
1ª e a 3ª série. A segunda aferição, feita em 1993/94, passou a avaliar a 5ª e a 8ª série e a
partir da terceira, em 1995, atingiu-se a 3ª série do ensino médio. Os testes são aplicados
regularmente de dois em dois anos. Em 1997 foi realizada a 4ª avaliação e em 1999, a 5ª. Os
resultados da avaliação de 1997 já foram publicados.
24
SAEB 97: primeiros resultados. PESTANA, Maria Inês Gomes de Sá et al. – Brasília: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1999. p.49.
25
Pelo site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, já indicado (ver nota
16).
26
UNICEF. Op cit, p. 13.
27
KONZEN, Afonso Armando. O direito à educação escolar. In: BRANCHER, Leoberto N.;
RODRIGUES, Maristela M. e VIEIRA, Alessandra G. (orgs.). O direito é aprender. Brasília:
FUNDESCOLA/Projeto Nordeste/MEC, 1999. p.9.
28
GOMES da COSTA, A C. A educação como direito. In: BRANCHER, Leoberto N.; RODRIGUES,
Maristela M. e VIEIRA, Alessandra G. (orgs.). O direito é aprender. Brasília: FUNDESCOLA/
Projeto Nordeste/MEC, 1999. p.19.
29
GAUTHIER, Clermont. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber
docente. Ijui, RS: Ed. UNIJUÍ, 1998.
30
SIROTA, Régine. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1994 [e]
VAN HAECHT, Anne. A escola à prova da sociologia. Lisboa: Horizontes Pedagógicos/Instituto
Piaget, 1994.
31
FOURQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura. As bases sociais e epistemológicas do conhecimento
escolar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1993 [e] GIROUX, Henry. Schooling and the struggle
for public life. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988 [e] McLAREN, Peter. Life in
school. White Plains, NY: Longman, 1989.
32
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(org.). A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. Campinas, SP: Papirus,
1995. p.100.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
395
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Adélia Luiza Portela, Esmeralda Moura e Eni Santana Barreto Bastos
33
Ver os trabalhos de ANDRADE, A. S. O cotidiano de uma escola pública de 1
o
grau: um
estudo etnográfico. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.73, p.26-37, 1990 [e] KRAMER, S. e
ANDRÉ, M. A. Alfabetização: um estudo de professores das camadas populares. Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.151, n.65, p.523-537, set./dez. 1984 [e] MONTEIRO, I. A.
O que faz o fazer pedagógico: um estudo da prática pedagógica que busca a transformação.
Recife, PE: Universidade Federal de Pernambuco, 1992. Dissertação de Mestrado [e] PENIN,
S. T. A aula: espaço de conhecimento, lugar de cultura. Campinas, SP: Papirus, 1994 [e]
PORTELA, Adélia L. Multirrepetência: gênese e possibilidades de transformação do cotidiano
escolar. Salvador, BA: Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, 1996.
(Relatório de pesquisa).
34
PORTELA, Adélia e BASTOS, Eni. O (des) conhecido universo da sala de aula. um estudo de
observação de sala de aula no estado da Bahia. Brasília: MEC/Projeto Nordeste. 1997. (Série
Estudos), [e] PORTELA, A. L.; BASTOS E, VIEIRA, S.; MAIA, M. H. e MATOS, K. Conhecendo
o universo da sala de aula: estudo de observação de sala de aula na Bahia e no Ceará.
Brasília: MEC/Projeto Nordeste, 1998. (Série Estudos) [e] FULLER et al. Raising children’s
early literacy in Northeast Brazil. Comparative Education Review, v.43, n.1, Feb. 1999.
35
A organizações Escolares em Análise. 2
a
ed. António NÓVOA (coord.). Lisboa: Publicações
Dom Quixote. Instituto de Inovação Educacional, 1995. p.25-28.
36
UNICEF. Situação mundial da infância 1999. Educação. Brasília: UNICEF, 1999. p.21.
37
UNICEF. Situação mundial da infância 2000. Brasília, DF: 2000. p.50
38
GIROUX, Henry. Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o
conhecimento curricular. In: MOREIRA, Antônio Flávio e SILVA, Tomaz Tadeu da (orgs.)
Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994. p.106.
39
Resolução CEB/CNE nº 2/98, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental, artigo 3º, inciso II.
40
BARROSO, João. O reforço da autonomia das escolas e a flexibilização da gestão escolar em
Portugal. In: FERREIRA, Naura S. C. (org.). Gestão democrática da educação: atuais
tendências, novos desafios. São Paulo: Cortez, 1998. p.11-32.
41
GUTIERREZ, G. L. e CATANI, A. M. Participação e gestão escolar: conceitos e potencialidades.
In: FERREIRA, Naura S. C. (org.). Gestão democrática da educação: atuais tendências,
novos desafios. São Paulo: Cortez, 1998. p.11-32.
42
PORTELA, A. L.; BASTOS, E. S. B. Op. cit., [e] FULLER et al. Op cit [e] SANTIAGO, Maria Eliete.
Escola pública de 1
o
grau: da compreensão à intervenção. São Paulo, SP: Cortez, 1990. p.47-60.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
396
43
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DELTA KAPPAN, dec. 1993, p.298-305. [e] WATTS, Gari e CASTLE, Shari. The time dilemma
in school restructuring. PHI DELTA KAPPAN, dec. 1993, p.306-314.
44
Parecer CNE/CEB nº 12/97, aprovado em 08/10/97.
45
Plano Nacional de Educação (redação final na Comissão de Educação), parecer do relator,
atualizado em 15 de dezembro de 1999. Brasília: da Câmara dos Deputados, Comissão de
Educação, Cultura e Desporto, 14/01/2000. www.camara.gov.br
46
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Fundamental, 1999.
47
ARROYO, Miguel. Mestre, educador, trabalhador (Organização do trabalho e
profissionalização). Belo Horizonte: UFMG, 1995. mimeo
48
MOREIRA, A F. B.; SILVA, T. T. Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994.
49
LENOYR, Y. A importância da interdisciplinaridade na formação de professores do ensino
fundamental. Cadernos de Pesquisa, n.102, p.5-22, nov. 1997.
50
A questão da avaliação enquanto instrumento de poder está fartamente estudada, chamando-
se atenção para os estudos de LUCKESI, C. C. Avaliação educacional escolar: para além do
autoritarismo. Revista de Educação AEC, n.60, abr./jun. 1986. [e] ENGUITA, M. E. A face
oculta da escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
51
LÜDKE, Menga. Um olhar sociológico sobre a avaliação escolar. Escola Básica. Campinas,
SP: Papirus, 1994. (Coletânea CBE, p.195-203).
53
CHUNK, Fay. Education, a bridge between worlds. Texto apresentado no XX Congresso
Mundial do Conselho das Sociedades de Educação Comparada. Cape Town, julho de 1998.
54
HENDERSON, Anne T. e BERLA, Nancy (eds). A new generation of evidence. The family is
critical to student achievement. USA: National Commitee for Citizens in Education, 1994. ( O
título da obra como está citado no texto foi uma tradução das autoras).
55
FERRER, F. El control social de la escuela: reflexiones para un análisis internacional. Revista
Española de Educación Comparada, n.1, 1995, 177-203, p.197.
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
397
11
CAPÍTULO
O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras*
Ricardo Chaves de Rezende Martins**
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 398
2 A HERANÇA DO PASSADO SOBRE O FINANCIAMENTO ..... 399
3 A SITUAÇÃO ATUAL DO FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA ..... 401
3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO ..... 402
3.2 DEVERES DO ESTADO E FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO ..... 406
3.3 A VINCULAÇÃO DE IMPOSTOS PARA EDUCAÇÃO ..... 408
3.4 A SUBVINCULAÇÃO DE IMPOSTOS PARA FINANCIAMENTO DO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO ..... 413
3.5 O FUNDEF COMO INSTRUMENTO DE SUBVINCULAÇÃO E DE COOPERAÇÃO ..... 415
4 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO NA LDB ..... 429
5 O SALÁRIO-EDUCAÇÃO ..... 434
6 OUTRAS FONTES DE RECURSOS PARA A EDUCAÇÃO ..... 436
7 PENALIDADES ..... 437
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 438
* Conselheira do Conselho de Educação do Ceará.
** Consultor legislativo da Câmara dos Deputados.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
398
Nunca na história da educação brasileira tantos se ocuparam com o estudo e a discussão
do financiamento da educação. Em decorrência, já é visível a certeza de que as fontes
disponíveis precisam ser reconhecidas e os recursos, melhor aplicados e controlados. Para
tanto, contribui este texto ao analisar a história passada e a situação atual do financiamento
da educação básica, revelando os deveres do Estado com o financiamento da educação, as
prioridades constitucionais e legais, as responsabilidades de cada instância federativa, a
vinculação e a subvinculação de impostos, e as outras fontes existentes. O Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério –
FUNDEF, importante mecanismo redistributivo, é analisado em profundidade quanto à sua
institucionalização, composição, distribuição, complementação e valor por aluno, utilização,
regulamentação e impacto. Analisa-se também o Título VI da nova LDB referente aos
recursos financeiros destinados à educação, com ênfase na definição do que é ou não
despesa com manutenção e desenvolvimento do ensino. São ainda explicitadas as
penalidades a que ficam sujeitos os que não cumprirem com as obrigações previstas.
1 INTRODUÇÃO
Nunca, em nenhum período anterior da história da educação brasileira, tantas pessoas e
instituições foram envolvidas de modo tão rápido e completo no estudo e conhecimento do
financiamento da educação. Na pauta das discussões ganham relevo não somente o
conhecimento acerca das fontes e usos, mas, especificamente, questões operacionais, resultado
da descentralização dos recursos para todos os níveis dos sistemas de ensino. Agora, o efeito
mais visível das discussões situa-se não na assertiva de que os recursos são escassos, mas na
certeza de que as fontes disponíveis precisam ser reconhecidas e os recursos, melhor aplicados
e controlados.
Para efeitos didáticos será adotada como perspectiva de abordagem do financiamento e
de sua gestão aquela explicitada por Melchior (1983, p. 1) e que está assim enunciada:
“O financiamento trata fundamentalmente da captação de recursos financeiros. Trata do estu-
do das fontes de recursos e da possibilidade de aperfeiçoá-las. Além disso, propõe alternativas para
criação de novas fontes. Questões relacionadas com a aplicação dos recursos financeiros fogem à
esfera do financiamento e situam-se no âmbito da administração financeira”.
Adotando parte dessa orientação o presente trabalho pretende:
(a) estabelecer relações entre o direito à educação e o financiamento da educação;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
399
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
(b) conhecer os fundamentos legais e as principais fontes públicas de financiamento da
educação no Brasil;
(c) conhecer alguns aspectos da gestão orçamentária e financeira da educação a partir de
seus marcos legais e instrumentos operacionais contemplados na Lei nº 9394/96 e na Lei nº
9424/96;
(d) discutir, frente à atual legislação, conseqüências e penalidades para não-aplicação dos
recursos vinculados em manutenção e desenvolvimento do ensino.
O encaminhamento deste trabalho buscará um nexo entre a abordagem explicitada por
Melchior relativa a fontes de recursos e as idéias que estiveram presentes no passado,
notadamente nas Constituições Federais do período republicano. É que as diretrizes atuais
relativas ao financiamento da educação têm suas raízes na forma e revisão de procedimentos
de modelos anteriores de financiamento. A categoria passado-presente é elemento-chave para
se obter informações e instrumento valioso para se pensar o futuro. O âmbito da gestão
financeira será tratado em espaço próprio com enfoque que integre um processo amplo de
planejamento no setor público.
Refletir sobre os dois temas – fontes e gestão – requer um certo domínio de campos como
o da política educacional, do direito educacional inscrito em Constituições e Leis Orgânicas,
leis, decretos e em pareceres do Conselho Nacional de Educação para, finalmente, aprofundar-
se em assuntos como orçamento e contabilidade pública, objetos de regulamentação na Lei nº
4320/64, que trata da gestão orçamentária e financeira na administração pública.
2 A HERANÇA DO PASSADO SOBRE O FINANCIAMENTO
Quando os sistemas públicos de educação foram implantados no Brasil, após a expulsão
dos jesuítas, em 1759, sob o governo do Marquês de Pombal, verificou-se a necessidade de
obtenção de recursos para financiá-los. Portugal, então, criou, em 1768, o “subsídio literário”,
um imposto com destinação especial ao ensino.
No século XIX, após a Independência, foram instituídas a loteria, com finalidade de custear
o ensino público, em 1823; a subscrição pública, em 1827; as multas aplicadas ao ensino
privado, em 1851; a caixa escolar, cobrada conforme as posses dos contribuintes, em 1872; e o
fundo escolar financiado pelas caixas escolares de todos os distritos, em 1879.
No século XX, em 1932, foi criada a taxa de educação e saúde, com o objetivo de constituir
um fundo especial para as duas áreas. Ao ser promulgada a Constituição de 1934, pela primeira
vez a União e os Municípios foram obrigados a vincular 10% e os Estados, 20% da receita
resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos. Além disso,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
400
essa Constituição estabeleceu que a União, os Estados e o Distrito Federal reservariam parte
dos seus patrimônios territoriais, sobras de dotação orçamentária e percentagens sobre o produto
de vendas de terras públicas para formação de fundos de educação.
Em 1942, pelo Decreto-Lei nº 4.958, criou-se o Fundo Nacional do Ensino Primário – FNEP,
que, no entanto, só foi implementado em 1945, após sua regulamentação. Considera-se ser
esse fundo uma das maiores conquistas da gestão Capanema, porque historicamente nunca se
havia dado atenção ao ensino primário. A instituição de um fundo federal deu novo impulso a
esse nível de ensino, permitindo pensar-se na democratização da educação. O FNEP significou,
também, o momento em que o governo federal compreendeu que a assistência financeira se
tornava imprescindível, como forma de ajudar os Estados nas suas realizações, especialmente
na área de construção de escolas primárias.
Em 1954, instituiu-se, pelo Decreto nº 2.342, o Fundo Nacional do Ensino Médio – FNEM,
voltado para a concessão de bolsas de estudos, aperfeiçoamento e difusão do ensino de grau
médio, incluindo auxílio aos colégios privados para manutenção, obras e equipamentos.
Os dois fundos (FNEP e FNEM) foram aplicados sob a forma de auxílios federais a cada um
dos Estados e Territórios e ao Distrito Federal, pois a cooperação financeira só se efetivava
entre esses dois níveis de governo – o federal e o estadual. A cooperação aos Municípios se
fazia por intermédio dos governos estaduais, a quem competia distribuir e administrar tais
fundos, após firmar convênio e receber a transferência de crédito da União.
A Constituição Federal de 1946 restabeleceu a vinculação dos impostos ao financiamento
da educação, que havia sido suprimida pela Constituição de 1937, reservando para a órbita
federal a obrigatoriedade da aplicação de 10% e, para os Estados e Municípios, de 20% na
manutenção e desenvolvimento do ensino. No mesmo instrumento legal estabeleceu-se que as
empresas onde trabalhassem mais de cem empregados deveriam proporcionar ensino primário
gratuito para seus servidores e os filhos destes.
Outras fontes financeiras foram designadas para a educação durante os governos militares,
ressaltando-se, dentre elas: o salário-educação, os incentivos fiscais previstos na legislação do
imposto de renda para o MOBRAL, o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social – FAS, o Fundo
de Investimento Social – FINSOCIAL e os empréstimos internacionais. Registre-se, no entanto,
que, com a Constituição de 1967, foi novamente suprimida a vinculação de recursos de impostos
para educação no âmbito da União, dos Estados e Municípios, proibindo-se e extinguindo-se
os fundos de educação. Tal vinculação retornou apenas em 1983, para as três esferas do poder
público, em decorrência da Emenda Constitucional nº 24, conhecida como Emenda Calmon.
Pelo estudo do passado, observa-se que é na dinâmica da economia e no movimento das
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
401
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
classes sociais que se encontra a determinação de certas políticas educacionais, em especial a
de financiamento da educação. O modelo econômico agroexportador, vigente no país por mais
de quatro séculos, até certo ponto prescindiu de mão-de-obra qualificada, o que redundou na
ausência de uma política de educação voltada para a maioria. É somente a partir de meados da
década de 40 que se imprimem alterações importantes no campo do financiamento da educação
para as grandes massas, mas, mesmo assim, sem que a União venha a considerar o Município
um interlocutor privilegiado. Entre ele e a União se interpõem os Estados, Territórios e Distrito
Federal “na conformidade de suas maiores necessidades” (Decreto-Lei nº 4.958/42). O
instrumento de acordo é o convênio, que tratava tais transferências ora como “auxilio federal”,
ora como “cooperação federal” . Nele se regulava a ação administrativa de todas as unidades
da Federação, em um jogo de poder em que se deixava clara também a menoridade dos Estados
e a pouca autonomia de que gozavam.
3 A SITUAÇÃO ATUAL DO FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
No período subseqüente ao fim do regime autoritário, ganha destaque o debate sobre a
Assembléia Nacional Constituinte e as grandes questões nacionais. A educação se inscreve
como um desses grandes temas, confirmando o que Azanha (1993, p.70) assevera acerca de
“problema nacional”, em 1993:
“um ‘problema nacional’, como problema governamental, só existe a partir de uma percepção
coletiva. Nesses termos, não seria suficiente, para afirmar a existência de um problema nacional,
apenas a consciência crítica de alguns homens em face de uma realidade. É claro que essa observa-
ção não deve ser compreendida no sentido ingênuo de que a consciência cria a realidade social,
mas apenas significando que, sem as pressões sociais que decorrem de uma pressão coletiva, a
simples existência de determinados fatos pode não ser uma questão de governo, isto é, um proble-
ma nacional”.
No campo especifico da educação, o tema do seu financiamento assume especial relevo. A
Constituição de 1998 e a Emenda Constitucional nº 14/96 impõem definições importantes em
termos desta e de outras políticas educacionais. Restringiremos este trabalho à análise de
artigos diretamente relacionados ao objeto do presente estudo: artigos do capítulo da educação
e das disposições transitórias que têm implicações mais diretas para o financiamento da educação
básica. Tais dispositivos dizem respeito a alguns incisos do artigo 206 (I, IV e VI) que cuidam
dos princípios; artigo 208 (I, II, III, IV) que dizem respeito aos deveres do Estado; artigo 212
que define a vinculação de recursos para o financiamento da educação pública; artigo 213 que
classifica escolas privadas que podem receber recursos públicos; e a prioridade financeira ao
ensino fundamental (art. 60 do ADCT, com a redação dada pela EC nº 14/96).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
402
3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO
A Constituição, em seu artigo 206, define alguns princípios que interessam mais diretamente
à temática do financiamento da educação: I – igualdade de condições para acesso e permanência
na escola; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII – garantia de
padrão de qualidade.
Ø Igualdade de condições para acesso e permanência na escola
Exame atento desse inciso implica concordar que ele representa um enorme desafio para
o país, considerando-se os desníveis sociais e pessoais da clientela escolar. Na esteira desse
princípio, abre-se a perspectiva da discussão sobre questões conexas que implicam reduzir os
altos índices de abandono (evasão ou não-permanência), reprovação, distorção idade/série,
com garantia de medidas suplementares para proteger a permanência, o reingresso e o sucesso.
Em relação ao acesso, no ano de 1998, segundo o INEP, ele está garantido para 95% dos
brasileiros na faixa dos 7 aos 14 anos no ensino fundamental, para 44,8% da população de 15
a 17 anos no ensino médio e para 44% das crianças na faixa de 4 a 6 anos.
Se os dados sugerem a quase universalização do ensino fundamental, a aplicação do
princípio ora abordado, no que tange à permanência na escola, ainda deixa muito a desejar. O
quadro 1 evidencia algumas taxas relativas ao ensino fundamental que precisam ser conhecidas
e melhoradas no Brasil.
Fonte: MEC/INEP: Situação da educação básica no Brasil, Brasília, 1999, p. 82.
Taxas Anos Brasil NO NE C-O SU SE
Abandono 1988 19,9 11,9 23,5 33,4 13,5 18.1
1996 12,9 19,0 20,6 14,1 7.2 6,9
Aprovação 1988 61,0 63,6 54,3 51,5 69,4 64,5
1996 73,0 62,3 62,3 71,1 77,8 82,9
Reprovação 1988 19,1 24,4 23,3 15,0 17,1 17,4
1996 14,1 18,7 17,1 14,8 14,9 10,2
QUADRO 1 ENSINO FUNDAMENTALTAXAS DE ABANDONO, REPROVAÇÃO E
APROVAÇÃO NO ENSINO FUNDAMENTAL DO BRASIL E NAS REGIÕES1988-1996
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
403
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
A partir desses dados, pode-se inferir que as perdas no Brasil são enormes, cabendo uma
análise dos custos financeiros daí decorrentes, em face do reduzido número de anos de
escolarização da população. Se somarmos os indicadores de abandono e reprovação, verificamos
que aproximadamente 27% dos estudantes do ensino fundamental sofriam atraso ou interrupção
em sua trajetória escolar em 1996. A análise regional confirma, pela ordem, o insatisfatório
desempenho das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste.
Finalmente, relatório da UNESCO (1999, p.184) calcula que o custo da repetência no Brasil
representa cerca de 2,5 bilhões de dólares por ano. Nele não se faz referência ao custo da
evasão escolar, o que certamente aumentaria a gravidade das perdas.
Por isso, diversas medidas devem ser consideradas para evitar esse desperdício, e muitas
delas estão hoje especificadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/
96. Tais medidas implicam a adoção de estratégias de “inclusão escolar”, seja investindo em
mecanismos relacionados aos alunos, tais como chamada escolar, prolongamento do tempo de
escolaridade e da jornada escolar e estudos de recuperação; seja determinando que o docente
deve obter uma formação inicial, mas deve continuar aprendendo; seja mediante exigências
explícitas à escola, aos professores, aos pais e às administrações dos sistemas de ensino.
Se tais medidas se associarem, será possível reduzir os índices negativos antes indicados
e melhorar a alocação de recursos em áreas que potencialmente têm efeito mais produtivo
sobre a inclusão escolar.
Ø Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais
Uma tensão presente na Constituição e que tem reflexos no financiamento da educação
diz respeito ao tema gratuidade (art. 206, IV). É que o direito à gratuidade do ensino oficial,
como princípio constitucional, nos níveis ulteriores ao primário, só encontrou respaldo legal a
partir da Constituição Federal de 1946 e ainda assim condicionado a um requisito básico: a
carência de recursos. As Constituições do Império (1824) e republicanas (1934, 1937, 1946 e
1967) tratavam da gratuidade restrita ao primário, ampliando esse direito aos adultos na
Constituição de 1934 e exigindo uma prestação módica e mensal para a Caixa Escolar dos que
não pudessem alegar escassez de recursos, na de 1937. A Constituição de 1891 silenciou
totalmente a respeito da gratuidade. A Constituição de 1988 (art. 206, IV) garante a “gratuidade
do ensino público em estabelecimentos oficiais” vedando qualquer cobrança, na educação
básica ou superior. A expressão “ensino”, encontrada no corpo do texto constitucional atual,
pode permitir interpretação restritiva e garantir a cobrança por outros serviços educacionais
não categorizados como ensino, ou seja: pesquisas, atividades de extensão e oferta de serviços
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
404
suplementares ao ensino, dentre outros. Enfim, no seio dessa polêmica explicita-se a perspectiva
defendida por Melchior (1980, p. 68), quando ressalta que: “a escola não é gratuita porque é
obrigatória, mas é gratuita porque há insuficiência de recursos por parte da clientela”.
Posteriormente, o mesmo autor, em oposição à defesa pela gratuidade eletiva no ensino
superior, recorrente em textos de integrantes do Banco Mundial e de Schwartzman, advoga
que “uma cobrança de anuidades no ensino superior dos alunos que têm melhor condição
econômica, só se justificaria dentro de uma política geral de correção das desigualdades adotadas
em todos os setores” (1997, p. 25).
Ainda por trás do debate de “gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais”
há uma interessante discussão conceitual. Existem escolas oficiais (públicas) e não oficiais
(privadas) ? Ou existem escolas públicas estatais e não estatais ? Entre as escolas públicas não
estatais estariam inseridas as escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, indicadas no
artigo 213 da CF ? Sendo característica dessas escolas a inexistência de fins lucrativos, seriam
privadas puras apenas aquelas criadas com fins lucrativos ?
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96), ao conceituar, nos artigos 19 e 20,
as instituições públicas e privadas de ensino, oferece resposta a esse impasse. O certo, porém, é
que no centro dessa discussão está presente a polêmica público/privado, a busca por uma terceira
via na reflexão sobre o papel do Estado, a destinação de recursos públicos para esferas públicas
não estatais, afirmando-se, de todo modo, os interesses públicos sobre os privados.
Ø Garantia de padrão de qualidade
O avanço qualitativo na educação envolve diferentes dimensões, tais como: melhoria da
infra-estrutura escolar, formação de professores, material didático e de apoio, adequação de
currículos à realidade local, implantação de sistemas de avaliação, remuneração condigna do
magistério, melhoria da gestão dos sistemas educativos, dentre outras. De forma resumida poderia
significar “superar a pedagogia do tijolo” [Mello, 1996, p.21] e a “pedagogia da repetência”.
O esforço para garantir um padrão de qualidade da educação implica hoje conceber e
reconhecer a qualidade como um elemento constitutivo da cidadania. O significado desse
movimento supõe a compreensão do conceito de “padrões mínimos de qualidade” visando
alocar os investimentos em um conjunto adequado de insumos. As evidências disponíveis e
associadas a padrão de qualidade confirmam que
“uma boa escola começa com o aprendizado das crianças como elemento fundamental, não
com a infra-estrutura ou com os salários dos professores; além disso deve haver uma colaboração
entre pais e professores que vá além das trivialidades, como, por exemplo, em aspectos como o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
405
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
uso do orçamento das escolas; deve-se contar com uma considerável alocação para livros-textos e
outros materiais pedagógicos, e devem existir sistemas de avaliação (formais e informais), acompa-
nhamento, avaliação dos alunos e informação aos pais. Em poucas palavras, essas escolas são mais
responsáveis perante os pais que as demais escolas públicas” [Arcia et al., 1999, p. 151].
Ontem, como hoje, a questão da qualidade deve ser tratada como um bem coletivo,
notadamente em um momento em que a produção, o armazenamento e a circulação de
informações se fazem de forma evolutiva. Vivemos na era do conhecimento. Se é verdade que
a escola não pode ensinar tudo, ela é a base para aquisição das competências do futuro,
associadas aos quatro pilares da educação, necessários a cada indivíduo:
“aprender a conhecer, isto é, a adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer,
para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar
com os outros em todas as atividades humanas; finalmente, aprender a ser, via essencial para
integrar as três precedentes” [Delors et al., 1999, p. 90].
A citação anterior, extraída de Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a
Educação para o século XXI, orienta que o ensino formal ou escolar é o responsável essencial,
senão o exclusivo, para o aprender a conhecer e, em menor escala, para o aprender a fazer.
Isso implica o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento. Tais instrumentos de
conhecimento, embora não relacionados diretamente pela comissão, têm relação com os insumos
mínimos disponíveis nas escolas, dentre eles: bibliotecas, computadores, novas tecnologias
educativas, etc., capazes de despertar a pesquisa individual, a curiosidade intelectual, o sentido
crítico, a autonomia para compreender o real, que exige constante aumento de saberes e
evolui infinitamente. O aprender a conhecer supõe o “aprender a aprender”, que exercita a
atenção, a memória, o pensamento, mas supõe também instrumentos e mecanismos na escola,
viabilizadores do ensino e das aprendizagens.
O princípio da garantia do padrão de qualidade traduz-se em dispositivo da LDB (art.4º, IV)
que estabelece como dever do Estado a garantia de padrões mínimos de qualidade, definidos
como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Por sua vez, esses padrões mínimos,
no ensino fundamental, devem ser assegurados por um custo mínimo por aluno, calculado
anualmente pela União, considerando tanto as variações regionais no custo dos insumos,
quanto as modalidades de ensino conexas ao ensino fundamental: educação especial e de
jovens e adultos (arts. 74 e 75, Lei 9.394/96).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
406
3.2 DEVERES DO ESTADO E FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO
A Constituição inclui no artigo 208 os deveres do Estado com a educação. Com a edição da
Emenda Constitucional nº 14/96, os incisos I e II foram substancialmente alterados, implicando
uma nova leitura da questão da obrigatoriedade escolar. A sua nova redação estabelece :
I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, a oferta gratuita para todos
os que a ele não tiverem acesso na idade própria.
II – progressiva universalização do ensino médio gratuito.
O texto original do inciso I tinha a seguinte redação: “ensino fundamental obrigatório e
gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso na idade própria”. A mudança tem as
seguintes implicações: mantém a obrigação do Estado em oferecer gratuitamente o ensino
fundamental, inclusive para os que não o cursaram na idade própria, mas retira, destes últimos,
a obrigatoriedade de cursá-lo.
Não está muita clara a definição da idade própria na legislação educacional. A Constituição
não o faz e tampouco a LDB. A proposta de Plano Nacional de Educação (PNE), ora em apreciação
no Congresso Nacional, porém, define a “garantia do ensino fundamental obrigatório de 8
anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando o seu ingresso e permanência na escola
e a conclusão desse ensino” [PNE, 1999, p.9]. Já pela leitura da Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, pode-se depreender que essa faixa etária se
estende até os 18 anos de idade.
A definição da “idade própria” é aspecto relevante porque a ela associa-se a obrigatoriedade
como tarefa compulsória e “direito público subjetivo”, portanto, como direito exigível da
população, protegido pela norma jurídica constitucional (art. 208, § 1º) com a possibilidade de
responsabilização da autoridade competente pela não-oferta ou oferta irregular (art. 208, § 2º).
Finalmente, a legislação vigente sobre a obrigatoriedade do ensino fundamental impõe
uma dupla responsabilidade: o de sua oferta por parte do poder político (Estado ou Município)
e dos pais ou responsáveis de efetuar a matrícula dos menores (art. 5º, Lei nº 9.394/96).
Outra alteração substantiva no artigo 208, II, efetivada pela Emenda Constitucional nº 14/
96, diz respeito ao ensino médio. Antes, haveria “progressiva extensão da obrigatoriedade e
gratuidade do ensino médio”; agora, ficou estabelecida a “progressiva universalização do ensino
médio gratuito”. A nova redação contém em seu bojo a preocupação com a questão do acesso
no ensino médio que, em sete anos (1991/98), teve um incremento de 84,8% no Brasil, passando
de 3.770.230 para 6.968.531 alunos. A pressão pelo ensino médio é contínua e, se imaginarmos
toda a população do ensino fundamental livre do estigma da evasão e da repetência, nossas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
407
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
escolas de nível médio não suportarão o contingente dos que baterão às suas portas. Entretanto,
no caso do ensino médio, não se trata apenas de promover sua expansão, mas associar-lhe
qualidade, assegurar-lhe rumos claros, reduzir a seletividade interna e garantir-lhe fonte estável
de financiamento. Ademais, os elementos implícitos ao acesso, permanência e qualidade
dependem tanto da utilização criteriosa dos recursos vinculados à educação, quanto da
prioridade que os Estados, hoje responsáveis pela sua manutenção e desenvolvimento, vierem
a conceder-lhe, já que retirou-se a idéia de sua obrigatoriedade progressiva.
A norma constitucional impõe a garantia e o dever do Estado de “atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência na rede regular de ensino” e a LDB (Lei nº 9.394/96)
supõe novas inclusões: dos “portadores de necessidades especiais” (art. 58). Esta tarefa permite
a inserção na educação especial das pessoas portadoras de necessidades especiais no campo
da aprendizagem, originadas de deficiências (físicas, sensorial, mental ou múltipla) e portadores
de altas habilidades (superdotados ou talentosos). Por ser a educação especial uma modalidade
de ensino, deve ser ofertada nos diferentes níveis de ensino, porém em articulação com setores
vinculados à saúde, assistência e promoção social, inclusive quanto aos recursos financeiros.
Do ponto de vista da alocação e uso dos recursos financeiros, a educação especial pode
beneficiar-se de recursos definidos para os diferentes níveis de ensino ( educação básica
educação infantil, ensino fundamental, ensino médio educação superior), sempre
correspondendo a fonte de recursos ao nível da sua oferta. Como a oferta da educação especial
pelo poder público ainda é muito limitada, o artigo 60 da Lei nº 9.394/96 abre a perspectiva de
apoio técnico e financeiro às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com
atuação exclusiva em educação especial. A observância dessa prescrição supõe a possibilidade
de convênios, contratos ou subvenções sociais entre o poder público e instituições desse
gênero, como alternativa para cumprir o preceito constitucional relativo ao acesso escolar,
sempre considerando as peculiaridades dessa modalidade de ensino.
No conjunto das políticas públicas e do dever do Estado, a educação infantil compreende
o “atendimento em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade”. Delimitando
mais precisamente a concepção e as idades da educação infantil, a LDB estabelece que ela
corresponde à primeira etapa da educação básica, sendo oferecida em creches ou entidades
similares, para crianças de zero até três anos de idade e pré-escolas, para crianças de quatro a
seis anos de idade, complementando as ações da família e da comunidade. Por conseguinte,
esse nível de educação se dá na família, na comunidade e nas instituições escolares ou não. Na
perspectiva de garantir à educação infantil um caráter mais educativo que assistencial, a LDB,
no seu artigo 89, definiu que:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
408
“Art. 89 – As creches e pré-escolas existentes ou que venham a ser criadas deverão, no prazo
de três anos, a contar da publicação desta Lei, integrar-se ao respectivo sistema de ensino”.
Aponta-se aí que a integração ao sistema de ensino é a política mais consentânea para que
a educação infantil, particularmente as creches, venham a beneficiar-se de diretrizes pedagógicas
oriundas dos sistemas educacionais, com gestão e financiamento compartilhados pela educação
e pelos programas assistenciais. Em face das limitações de meios financeiros e técnicos do
país, a proposta de Plano Nacional de Educação recomenda que a oferta da educação infantil
conceda prioridade às crianças mais sujeitas às exclusões ou vítimas delas. Tal orientação faz
sentido porque se ao Município compete o dever de oferecer vagas e os cidadãos têm o direito
ao atendimento, as crianças da educação infantil não são obrigadas à matrícula e nem os pais
têm o dever de fazê-la, porque ela não é obrigatória.
A temática da obrigatoriedade tem uma importância capital para as administrações dos
sistemas de ensino, porque implica fazer escolhas na alocação de recursos, garantir a inclusão
ou exclusão. Tratar desse tema significa definir prioridades ou eleição de clientelas para educar,
muitas vezes não aceitas pelos que procuram as instituições escolares como espaço mais
apropriado para garantir os processos formativos de população. É nessa tensão que se deve
ter presente o conceito de educação e as instâncias educacionais definidas no art. 1º da LDB:
“ A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na
convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
3.3 A VINCULAÇÃO DE IMPOSTOS PARA EDUCAÇÃO
A Constituição Federal de 1988, com as alterações estabelecidas na Emenda Constitucional
nº 14/96, define meios financeiros visando à observância dos princípios constitucionais
relacionados à oferta, permanência, qualidade e garantia de deveres educacionais por parte
do poder público.
Os mecanismos mais importantes são a vinculação de recursos de impostos para
desenvolvimento e manutenção do ensino e a subvinculação de parte de alguns impostos para
financiamento do ensino fundamental. Além disso, há fontes que se somam para financiar o
ensino fundamental, como é o caso do salário-educação e outras que, embora não sejam
vinculadas, são utilizadas para algumas modalidades, como a educação profissional de nível
básico, que se beneficia do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.
O instrumento da vinculação de recursos é importante porque garante uma fonte estável
para financiar a educação, que não fica sujeita às conveniências e jogos da política econômica,
e mesmo porque, segundo denunciou o senador João Calmon, a experiência resultante da
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
409
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
eliminação da vinculação obrigatória, que constava da Constituição até 1967, demonstrou que
os recursos federais para educação sofreram, em termos percentuais, uma redução amplamente
comprovada [Calmon, 1977]. Em apoio a essa denúncia, Melchior (1977, p.118) estudioso do
financiamento da educação no Brasil, esclarecia, em 1977, que
“as fontes de recursos para educação no Brasil só foram efetivamente significativas em termos
de manutenção, expansão e aperfeiçoamento do sistema escolar quando foram vinculadas através
de dispositivos legais e compulsórios”.
A vinculação condiciona a aplicação dos recursos e, por tal razão, deve estar presente no
orçamento, revelador de compromissos e intenções, nos balancetes periódicos que relacionam
receita e despesa e nos balanços anuais, expressão consolidada do que foi arrecadado e do
que foi gasto.
O mecanismo da vinculação está expresso no artigo 212 da Constituição Federal de 1988, em
relação à receita de impostos para aplicação na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE).
O artigo 212 assim determina:
“Art. 212A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos,
compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
§ 1ºA parcela de arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada, para
efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir.
§ 2ºPara efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão considerados os
sistemas de ensino federal, estadual e municipal e os recursos aplicados na forma do art.213.
§ 3ºA distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessida-
des do ensino obrigatório, nos termos do Plano Nacional de Educação.
§ 4ºOs programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art.208,
VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orça-
mentários.
§ 5ºO ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição
social do salário-educação, recolhido pelas empresas, na forma da lei”.
O artigo 212 é uma das referências legais mais importantes para definir critérios válidos
para a composição da receita destinada ao ensino e, por conseqüência, calcular o total de
recursos disponíveis para manutenção e desenvolvimento do ensino. A metodologia de cálculo
deve levar em consideração, em princípio, as seguintes orientações, conforme interpretação
do caput do artigo 212 e legislação correlata:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
410
(a) A vinculação mínima é responsabilidade de cada esfera do poder público: 18% para a
União e 25% para Estados, Distrito Federal e municípios. Essa vinculação pode ser elevada a
critério das Constituições estaduais e Leis Orgânicas Municipais (art. 69 da LDB).
(b) A natureza do tributo sobre o qual recai a vinculação é o imposto. O imposto é um
gênero do tributo. Incluem-se entre os tributos, ainda, as taxas e contribuições de melhoria,
que não estão submetidas à vinculação. Deve ficar claro, pois, que a vinculação não se refere
a todos os tributos e muito menos à totalidade dos recursos orçamentários.
(c) A medida da receita e da despesa deve ser concretizada a cada ano, não a cada mês.
Apurações periódicas, a cada trimestre do exercício financeiro, devem ser procedidas, conforme
dispõe o § 4
o
do artigo 69 da LDB, para ajustes considerando-se as situações de arrecadação e
despesas realizadas. Segundo o Conselho Nacional de Educação, o princípio da trimestralidade
também se aplica ao final do ano, e, nesse caso, deverá ser feito ajuste no primeiro trimestre do
exercício subseqüente, com relação ao último trimestre do ano.
1
(d) Toda receita resultante de impostos tem percentual vinculado. Além de incidir a alíquota
sobre os impostos próprios e transferências, há que ser considerada a parcela da dívida ativa
originária de impostos e as multas e juros que sobre ela incidam.
(e) A expressão “manutenção e desenvolvimento do ensino-MDE” tem sentido preciso,
conforme estabelece o artigo 70 da Lei n
o
9.394/96. Em conseqüência, ela nem se confunde
com a função 12 – Educação, forma como o orçamento aloca parte dos recursos para educação,
conforme a Lei nº 4.320/64 e Portaria nº 117, de 12/11/98 do Ministério do Planejamento, e
tampouco com a educação no sentido amplo. Há várias despesas incluídas nessa função que
não são de MDE e outras que, embora sejam assim consideradas, são encontradas na função 09
Previdência Social. As despesas de MDE, portanto, mantêm interseção entre funções e, para
serem melhor localizadas, o ideal é que o orçamento sempre identifique a fonte que financia
uma atividade ou projeto, como já se verifica no orçamento da União.
(f) Os impostos podem financiar todos os níveis e modalidades de educação e ensino:
educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; educação
superior, observadas a subvinculação para o ensino fundamental definida no artigo 60 do ADCT
e as responsabilidades estabelecidas para os Estados, Municípios e Distrito Federal em relação
à educação infantil e ao ensino médio (arts. 10, VI e 11, V, da Lei nº 9.394/96).
(g) Os impostos recebidos pelo Estados, transferidos da União, e aqueles transferidos
para os Municípios, originários da União e dos Estados, são incluídos na base de cálculo dos
1
Parecer nº 26, de 2 de dezembro de 1997, do Conselho Nacional de Educação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
411
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
percentuais mínimos da instância que os receber e excluídos daquela que os transferir. Trata-
se de conceber a idéia de incidência sobre impostos líquidos, devendo:
Ø no caso da União, ser deduzida da receita bruta de seus impostos próprios, sobre os
quais há base legal na Constituição Federal para repartição ( arts. 153, § 5º, 158, 159, I, “a”, “b”
e “c” , e II), a parcela transferida para Estados, Distrito Federal, Municípios e regiões;
Ø no caso dos Estados, ser deduzida, da receita bruta de impostos próprios e transferências,
a parcela a ser repartida com os Municípios, conforme estabelecem os artigos 158, III, IV e 159,
II da Constituição Federal.
Ø no caso do Distrito Federal e Municípios, ser calculada a alíquota de 25% sobre toda a
receita de impostos próprios e transferidos.
O quadro seguinte é um mapeamento dos impostos por instância da Federação
União Estados Municípios
Impostos Próprios Impostos Próprios Impostos Próprios
II – Imp. s/ Importação IPVA – Imp. s/ Veículos Automotores IPTU – Imp. s/ Prop. Territ. Urbana
IE – Imp. s/ Exportação (50% para Municípios) ITBI – Imp. s/ Transm. de Bens
ITR – Imp. Territorial Rural ITCM – Imp. s/ Transmissão Causa Intervivos
(50% para Municípios) Mortis ISS – Imp. s/ Serviços de Qualquer
IR – Imposto de Renda ICMS – Imp. s/ Circ. de Merc. e Serviços Natureza
(21,5% para FPE) (25% para Municípios) Impostos Transferidos da União
(22,5% para FPM) Impostos Transferidos da União FPM – Fundo de Partic. dos Municípios
(3,0% para Reg) FPE – Fundo de Partic. dos Estados (IR (IR+IPI)
IPI – Imp. s/ Prod. Indust. + IPI) ITR – Imp. Territorial Rural
(mesmos percentuais para Fundos IPI-Exp – IPI de Exportação IRRF – Imp. Renda Retido na Fonte
de Part. e Reg.) (25% para Municípios) IOF-Ouro
IPI-Exp (10% para Estados) IRRF – Imp. Renda Retido na Fonte Impostos Transferidos do Estado
IOF – Imp. s/ Oper.Finan. (IOF-Ouro: IOF-Ouro IPVA – Imp. s/ Veículos Automores
30% para Estados; 70% para Municípios) ICMS - Imp. s/ Circ. de Merc. e Serviços
IEX Imp. Extraordinários
QUADRO 2 – IMPOSTOS E TRANSFERÊNCIAS SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DE 1988
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
412
(h) Os recursos vinculados a MDE devem ser utilizados no ensino público. Essa restrição
não está contemplada no caput do artigo 212 da CF, mas é feita de forma impositiva no caput do
artigo 69 da Lei nº 9.394/96 e também no caput do artigo 2º da Lei nº 9.424/96. No entanto, há
duas situações que permitem o uso dos recursos públicos para beneficiar alunos que freqüentam
escolas privadas, tendo como objetivo solucionar problemas ou dificuldades de acesso, trajetória
e qualidade da educação escolar. A primeira situação encontra amparo no inciso VI do artigo
70, da Lei nº 9.394/96, que permite a “concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas
públicas e privadas”, não restrita ao ensino fundamental e médio, mas abarcando desde a
educação básica até a educação superior. O Conselho Nacional de Educação, manifestando-se
sobre o assunto, explicita que tal hipótese é possível porque as bolsas se destinam a alunos e
não a instituições e assim as despesas podem ser contabilizadas para satisfazer os percentuais
mínimos vinculados [Parecer nº 26/97, de 02/12/97, do Conselho Pleno do CNE]. A segunda
situação beneficia o aluno da educação especial, quando abre a possibilidade de apoio técnico
e financeiro do poder público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com
atuação exclusiva em educação especial (art. 60, Lei 9.394/96). Finalmente, leitura restritiva
deve ser feita das disposições legais relativas a recursos públicos contempladas no artigo 213
da CF e no artigo 77 da LDB, que tratam da destinação desses recursos para escolas comunitárias,
confessionais e filantrópicas, da concessão de bolsas de estudos para educação básica e de
auxílio financeiro, inclusive bolsas, para atividades universitárias de pesquisa e extensão.
Os demais parágrafos do artigo 212, por suas peculiaridades, serão tratados em itens
próprios. Texto de Negri (1997) apresenta dados, relativos a 1995, sobre os impostos arrecadados
por esfera do governo, os disponíveis após repartição e os disponíveis para MDE. Tais dados
constam do quadro 3.
Esse quadro permite evidenciar que a receita de impostos disponíveis em 1995 para
manutenção e desenvolvimento do ensino público era de aproximadamente 24,3 bilhões de
reais. Mas a educação dispõe ainda de outras fontes de financiamento, que serão discutidas
em seu espaço adequado, dentre elas, o salário-educação, o Fundo de Amparo ao Trabalhador
FAT, e outras explicitadas à página 85 da proposta de Plano Nacional de Educação.
Se, do ponto de vista dos Estados, Distrito Federal e Municípios, os impostos representam
para a educação a fonte mais significativa de recursos, no caso da União, segundo versão do
projeto de Plano Nacional de Educação de 15/12/99, a receita vinculada à manutenção e
desenvolvimento do ensino, em 1999, não chegou a 4 bilhões, valor que sequer cobre os
gastos com suas instituições de educação superior. A receita vinculada de impostos representou,
em 1999, aproximadamente, 35% das disponibilidades orçamentárias do MEC, que totalizaram
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
413
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
cerca de 11 bilhões de reais (p. 85). Essa informação confirma que os impostos não são a única
fonte, mas que há outras disponíveis que quase triplicam as disponibilidades da União.
3.4 A SUBVINCULAÇÃO DE IMPOSTOS PARA FINANCIAMENTO DO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO
O § 3
o
do caput do artigo 212 antecipa orientação para criação do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do ensino fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, ao determinar
que “a distribuição de recursos públicos assegurará prioridade às necessidades do ensino
obrigatório nos termos do Plano Nacional de Educação”. Segundo Negri (1997), embora não se
saiba ao certo quanto se aplica no ensino fundamental público, estima-se que apenas 37%
eram alocados para essa atividade, destinando-se os demais recursos para a educação pré-
escolar, média e superior e uma parte computada erroneamente como despesa de MDE (p.7).
Mesmo não se sabendo ao certo o quanto se gastava no ensino fundamental era possível
inferir que se gastavam valores diferenciados por aluno em cada rede pública, o que consolidava
redes públicas de melhor e pior qualidade e não se garantiam desconcentração e eqüidade na
distribuição de responsabilidades. Ocorriam mesmo situações de enorme disparidade entre
as diferentes unidades da Federação e até a omissão de instâncias do poder público. Essa
situação feria os princípios constitucionais da “igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola” e “garantia de padrão de qualidade”.
QUADRO 3 – IMPOSTOS ARRECADADOS, DISPONÍVEIS APÓS A REPARTIÇÃO E DISPONÍVEIS PARA MDE
(R$ milhões)
Fonte: Negri, 1997, p.8 e 9, tabelas 1, 2 e 3.
Arrecadados % Disponíveis após % Disponíveis %
repartição para MDE
Federal 47.277 44,8 30.131 28,5 5.423 22,3
Estadual 50.943 48,3 46.638 44,2 11.659 48,1
Municipal 7.316 6,9 28.767 27,3 7.192 29,6
Total 105.536 100,0 105.536 100,0 24.274 100,0
Nível de
governo
Impostos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
414
No sentido de modificar essa situação, em 1995, foi proposta pelo MEC aos Estados e
Municípios a criação, mediante emenda constitucional, de um fundo para o ensino fundamental
e a valorização do respectivo magistério, que permitisse redistribuir responsabilidades entre
Estados e Municípios e influir diretamente no “nó górdio” de todo sistema educacional, quanto
à relação perversa entre baixos salários, baixa qualificação e baixa qualidade do ensino.
Ao lançar a proposta do que veio a ser o FUNDEF, o MEC argumentava:
“De fato, os recursos constitucionalmente vinculados, considerando-se somente os impostos e
transferências mais significativas, isto é, os Fundos de Participação e o ICMS, somam hoje cerca de R$
16,7 bilhões, no conjunto dos Estados e Municípios do país. Se admitíssemos que pelo menos 60%
desse total fosse destinado à manutenção do ensino fundamental, que conta hoje com uma matrí-
cula de 29,3 milhões de alunos nas redes estaduais e municipais, teríamos uma disponibilidade
média de aproximadamente R$ 340,00 por aluno” (p. 8).
Os dados apresentados pelo mesmo órgão traduziam
“a má distribuição de recursos (que) gera disparidades imensas nesse valor médio por aluno;
de um mínimo de R$ 80,00 para os municípios do Maranhão a um máximo de R$ 1.165,00 para os
municípios de São Paulo; de um mínimo de R$ 220,00 no Pará a um máximo de R$ 830,00 no Rio
de Janeiro. Há evidências de que, no mesmo Estado do Nordeste, o dispêndio médio por aluno/
ano, nas redes municipais de ensino, variou de R$ 30,00 a R$ 65,00. Num mesmo município, o
dispêndio médio na rede municipal de ensino foi de R$ 30,00 enquanto na rede estadual foi de R$
300,00” (p. 9).
A idéia da vinculação de uma cesta de recursos para o ensino fundamental estava presente
no início dos estudos procedidos pelo MEC, quando admitia que pelo menos 60% dos recursos
vinculados a MDE fossem dirigidos ao ensino fundamental. Tratava-se, pois, de uma primeira
subvinculação, que veio a ser estabelecida pela Emenda Constitucional nº 14/96, que deu nova
redação ao artigo 60 do ADCT, cujo caput é:
“Art.60 Nos dez primeiros anos da promulgação desta Emenda, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios destinarão não menos de sessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art.
212 da Constituição Federal, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o
objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério”.
Esse artigo traz em si aspectos relativos à temporalidade da subvinculação de recursos por
dez anos ao ensino fundamental e aos objetivos de sua manutenção e desenvolvimento: assegurar
a universalização do atendimento e a remuneração condigna do magistério. Tais recursos, conforme
explicita o caput do artigo 60, não se restringem ao ensino fundamental na idade própria, podendo
abranger jovens e adultos, e ser destinados, inclusive, às escolas mencionadas no artigo 213 da
CF (escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
415
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
A subvinculação atinge apenas os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, pois, pela
redação dada ao artigo 211 da Constituição, pela EC nº 14/96, a essas instâncias incumbe a
oferta do ensino fundamental. A concepção federativa de Estado Nacional, na Constituição em
vigor, aponta para a desconcentração das ações em favor dos Estados e Municípios e,
conseqüentemente, para a função redistributiva dos recursos fiscais disponíveis, de sorte a
promover maior eqüidade na capacidade de atendimento das demandas oriundas das unidades
da Federação.
Essa subvinculação é feita à totalidade da parcela dos impostos vinculada à manutenção
e desenvolvimento do ensino, significando 60% de 25%, o que corresponde a 15% de todos
impostos das instâncias referidas nesse artigo, excetuando-se a União.
Apoiada em novo arcabouço legal (art. 211 e caput do art. 60 do ADCT), a União passa a ter
outras responsabilidades, em que não se inclui o uso de cinquenta por cento dos recursos
vinculados para universalização do atendimento escolar e erradicação do analfabestismo, como
estabelecia a Constituição Federal antes da edição da EC 14/96. Novas tarefas para as diferentes
instâncias do poder público são agora definidas no artigo 211 da Constituição Federal, cabendo
à União financiar as instituições de ensino público federais e exercer, em matéria educacional,
função redistributiva e supletiva, garantindo equalização de oportunidades educacionais e
padrão mínimo de qualidade do ensino, mediante assistência técnica e financeira às demais
instâncias da Federação. A União, contudo, continua explicitamente obrigada a investir na
erradicação do analfabetismo e no ensino fundamental: pelo § 6º, do artigo 60 do ADCT, ela
deve aplicar o equivalente a 30% dos recursos vinculados, pelo artigo 212, a manutenção e
desenvolvimento do ensino. No caso da União, portanto, existe a obrigatoriedade de aplicação
mas não há subvinculação de receita de impostos.
No ano de 1998, segundo o Ministério da Educação, os recursos de impostos destinados
pelas três esferas de governo ao ensino fundamental totalizaram R$ 15,3 bilhões, aos quais
ainda devem ser adicionados R$ 3 bilhões do salário-educação (MEC, Balanço, 1999, p.7).
Os parágrafos do artigo 60 do ADCT contêm as disposições de criação, no âmbito de cada
Estado e do Distrito Federal, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, como instrumento de eqüidade do ensino
fundamental durante dez anos, isto é, até 2006.
3.5 O FUNDEF COMO INSTRUMENTO DE SUBVINCULAÇÃO E DE COOPERAÇÃO
O espírito do FUNDEF é garantir justiça redistributiva e subvincular recursos para o ensino
obrigatório no país. São sete os parágrafos do artigo 60 do ADCT que tratam do FUNDEF. Neles
estão definidas diretrizes relativas a sua institucionalização, composição, redistribuição,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
416
complementação e utilização. Lei específica, a de nº 9.424/96, trata das questões referidas no
§ 7º e procede a complementações que orientam a implantação do FUNDEF.
“ § 1º - A distribuição de responsabilidades e recursos entre Estados e seus Municípios a ser
concretizada com partes dos recursos definidos neste artigo, na forma de disposto no art. 211 da
Constituição Federal, é assegurada mediante a criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito
Federal, de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização
do Magistério, de natureza contábil.
§ 2º - O Fundo referido no parágrafo anterior será constituído por, pelo menos, quinze por
cento dos recursos a que se referem os arts. 155, inciso II; 158, inciso IV; e 159, inciso I, alíneas a e
b; e inciso II, da Constituição Federal, e será distribuído entre cada Estado e seus municípios,
proporcional ao número de alunos nas respectivas redes de ensino fundamental.
§ 3º - A União complementará os recursos dos fundos a que se refere o § 1º, sempre que, em
cada Estado e no Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente.
§ 4º - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ajustarão progressivamente, num
prazo de cinco anos, suas contribuições ao Fundo, de forma a garantir um valor por aluno corres-
pondente a um padrão mínimo de qualidade de ensino definido nacionalmente.
§ 5º - Uma proporção não inferior a sessenta por cento dos recursos de cada Fundo referido no
§ 1.º será destinada ao pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no
Magistério.
§ 6º - A União aplicará na erradicação do analfabetismo e na manutenção e no desenvolvimento
do ensino fundamental, inclusive na complementação a que se refere o § 3º, nunca menos o equiva-
lente a trinta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal.
§ 7º - A lei disporá sobre a organização dos Fundos, a distribuição proporcional de seus recursos,
sua fiscalização e controle, bem como sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno.”
Ø Institucionalização
O FUNDEF é institucionalizado no § 1º do artigo 60 do ADCT, sendo constituído, no âmbito de
cada Estado, de uma “cesta” de impostos oriundos do Estado e dos Municípios, para que se
proceda o regime de colaboração e distribuição de responsabilidades e recursos entre redes
de ensino, em relação ao ensino fundamental público. O regime de colaboração financeira
estabelecido passa a ser compulsório, a fim de promover a eqüidade, disponibilizando recursos
para onde os alunos estão matriculados. O FUNDEF, portanto, redistribui recursos no âmbito de
cada Estado, não transferindo recursos de um Estado para outro.
O Fundo é de natureza contábil, não tem órgão gestor ou personalidade jurídica. Efetiva-
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
417
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
se através de um sistema de contas bancárias dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Para
estas são destinados automaticamente recursos proporcionais à matrícula/valor aluno-ano,
vinculados a objetivos determinados. O saldo financeiro de um ano para outro não é considerado
saldo orçamentário.
Ø Composição
Constituído de uma “cesta de recursos”, o FUNDEF absorve alguns impostos por instância
administrativa. Na sua composição estão contemplados os impostos com valor mais significativo
(art. 60, §2º, ADCT), dos quais é separada automaticamente a parcela de 15%: (a) do Estado: FPE,
ICMS e IPI EXP. e compensação financeira relativa à Lei Complementar nº 87/96; (b) do Município:
FPM, cota do ICMS, cota do IPI EXP. e compensação financeira relativa à Lei Complementar nº 87/96.
A complementação da União será procedida sempre que o valor por aluno não atingir, no
âmbito do Estado, o mínimo definido anualmente pelo governo federal para o país. Tal valor
por aluno é calculado, para cada Estado, dividindo-se a estimativa total dos recursos
mencionados para o ano pelo número total de alunos matriculados no ensino fundamental
regular das redes estadual e municipais, no ano anterior.
A composição agregada do FUNDEF para todo o país, segundo a origem dos recursos, nos
anos de 1998 e 1999, apresentou o perfil que se encontra no quadro (p. 418). Nele se observa
que a fonte mais importante de recursos tem sido o ICMS. A participação financeira da União,
representando na média 5% do conjunto total dos recursos, tem sido de inegável relevância
para os Estados que dela se beneficiaram.
É oportuno mencionar que dados preliminares divulgados pelo MEC, em sua página da
Internet, informam que, em 1999, o total de receitas do FUNDEF, para todo o país, no âmbito de
Estados e Municípios, situou-se em torno de R$ 15,3 bilhões, aos quais devem ser acrescentados
cerca de R$ 675 milhões, referentes à complementação financeira aportada pela União.
Ø Redistribuição
Os recursos oriundos dessa “cesta de impostos” são distribuídos entre cada Estado e seus
Municípios, proporcionalmente ao número de alunos matriculados nas respectivas redes de
ensino fundamental no ano anterior. Trata-se, de fato, de uma redistribuição de recursos, a
partir de coeficientes de distribuição fixados anualmente, obtidos a partir de dados de matrículas
de escolas cadastradas em cada rede de ensino. Observe-se que são consideradas, para esse
fim, apenas as matrículas do ensino fundamental regular presencial. A lei de regulamentação
do FUNDEF prevê critérios diferenciados de custos, em função das seguintes variáveis: 1ª a 4ª, 5ª
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
418
a 8ª séries, ensino especial e escolas rurais, desde que tais matrículas sejam presenciais (art.
2º, §§ 1º, 2º e 3º da Lei nº 9.424/96). Para o ano 2000, estão sendo implementadas as
diferenciações, exceção feita à relativa a escolas rurais.
O impacto redistributivo do FUNDEF pode ser visualizado no quadro 5. Nele se observa
que, dos 5.506 municípios brasileiros, 2.159 (39%) contavam, em 1998, com um valor por
aluno/ano abaixo do mínimo nacional de R$ 315,00. Nesse conjunto, 43% (921 municípios)
apresentavam valor abaixo de R$ 150,00 por aluno/ano, uma significativa evidência da qualidade
do ensino que aí se oferecia. É de se ressaltar que, no conjunto desses municípios mais pobres
(2.159), concentravam-se cerca de 66% dos alunos das redes municipais de ensino fundamental
do país. Com o FUNDEF, foi possível redistribuir R$ 1,7 bilhão em 1998, significando um
incremento médio de 129% nas receitas municipais para o ensino fundamental, passando de
um valor médio por aluno/ano de R$ 163,62 para R$ 375,29.
Mas a redistribuição financeira não se fez apenas para os Municípios. Os Estados de Roraima,
Pará, Goiás, São Paulo, Espirito Santo e Minas Gerais, em 1998, foram beneficiados com a nova
estratégia de redistribuir recursos em função das matrículas, recebendo transferências dos
respectivos Municípios.
Fonte: Quadros 1 e 2 (Balanço primeiro ano do FUNDEF).
QUADRO 4
(15% de A) (15% de A)
FPM 12.219,6 1.832,9 13,8 12.448,7 1.867,3 13,2
FPE 10.956,2 1.643,4 12,3 10.975,3 1.646,3 11,6
ICMS 58.392,4 8.759,0 65,8 60.069,3 9.010,4 63,8
IPI. Exp. 1.586,6 238,0 1,8 1.621,3 243,2 1,7
LC 87/96 2.093,4 314,0 2,4 3.502,2 525,3 3,7
Subtotal 85.248,1 12.787,3 - 88.616,8 13.292,5 -
Complementação da União - 524,3 3,9 - 848,6 6,0
Total FUNDEF - 13.311,5 100,0 - 14.141,1 100,0
Total (A) FUNDEF % Total (A) FUNDEF %
Imposto e
Transferências
1998 1999 (estimativa)
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
419
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
QUADRO 5 EFEITOS FINANCEIROS DO FUNDEF EM 1998,
NOS MUNICÍPIOS COM VALOR POR ALUNO/ANO INFERIOR A R$ 315,00
Os dados preliminares divulgados pelo MEC, via Internet, informam que, em 1999, 3.262
Municípios tiveram acréscimo de receitas com o FUNDEF, num valor global de R$ 2,6 bilhões.
Tais Municípios atendiam a 12,8 milhões de alunos do ensino fundamental, representando
85% das matrículas municipais e 40% das matrículas totais nesse nível de ensino. Para os 2.387
Municípios que, sem o FUNDEF, disporiam de um valor inferior a R$ 315 por aluno-ano, o acréscimo
de receita foi significativo, alcançando cerca de R$ 2,2 bilhões e elevando o valor médio por
aluno de R$ 153,50 para R$ 385,50, um aumento em torno de R$ 150%.
ØComplementação financeira
O § 3.º do artigo 60 do ADCT define o papel da União em relação ao FUNDEF. A União fará a
complementação financeira dos fundos sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, o
respectivo valor por aluno/ano não alcançar o mínimo definido nacionalmente. O critério
para a definição desse valor mínimo nacional está estabelecido no § 1º do artigo 6º da LDB:
“Art. 6.º (...) § 1º – O valor mínimo anual por aluno, ressalvado o disposto no § 4º, será fixado
por ato do Presidente da República e nunca será inferior à razão entre a previsão da receita total
para o Fundo e a matrícula total do ensino fundamental no ano anterior, acrescido do total estimado
de novas matrículas, observando o disposto no art. 2º, § 1º, Incisos I e II ”.
Fonte: Quadro 8 (Balanço primeiro ano do FUNDEF).
Variação % no
Valor por aluno/ano Receita valor por
R$ 1,00 Antes FUNDEF Com FUNDEF adicional bruta aluno/ano
% % (A) (B) (R$ Milhões) (B/A)
Até 100 308 5,6 1.740.209 14,0 77,84 324,91 429,9 317
>100<=150 613 11,1 2.192.551 17,6 124,25 335,46 463,1 170
>150<=200 474 8,6 2.006.045 16,1 178,44 437,09 518,8 145
>200<=250 370 6,7 1.193.002 9,7 225,78 389,31 195,1 72
>250<=315 394 7,1 1.125.758 9,0 281,36 405,74 140,0 44
Subtotal 2.159 39,2 8.257.565 66,9 163,72 375,29 1.746,9 129
Demais municípios 3.347 60,8 4.178.963 33,6 - - - -
Total Geral 5.506 100,0 12.436.528 100,0 - - - -
Valor por
Aluno-ano (R$)
Matrículas
Municípios
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
420
Os dados preliminares, divulgados pelo MEC em sua página na Internet, informam que, em
1999, os Estados contemplados com a complementação da União são os mesmos que constam
do quadro. Os valores repassados, contudo, totalizaram cerca de R$ 675 milhões.
Nos anos 1998 e 1999, o valor mínimo por aluno-ano foi definido em R$ 315,00. Para o
exercício de 2000,
o mínimo estabelecido no Decreto nº 3.326, de 31/12/1999, é o seguinte:
QUADRO 6
Séries Escolas R$ Ponderação
1
a
a 4
a
Urbanas e rurais 333,00 1,00
5
a
a 8
a
e ed. especial Urbanas e rurais 349,65 1,05
Em decorrência dos valores fixados, a complementação financeira da União, contemplando
os Estados mais necessitados, está expressa nos dados do quadro 7, relativos aos anos 1998
(realizado) e 1999 (estimativas).
Fonte: Quadro 6 (Balanço primeiro ano FUNDEF).
UF/Região 1998 1999 Variação %
Pará 113,7 155,5 36,8
Norte 113,7 155,5 36,8
Alagoas 1,4 16,1 1.050,0
Bahia 147,3 290,9 97,5
Ceará 52,5 80,3 53,0
Maranhão 164,6 203,4 23,6
Paraíba 5,2 28,7 451,9
Pernambuco 12,5 33,5 168,0
Piauí 27,0 40,0 48,1
Nordeste 410,0 693,0 68,8
Brasil 524,2 848,6 61,9
QUADRO 7 – COMPLEMENTAÇÃO DA UNIÃO AO FUNDEF, POR UF E REGIÃO,
EM 1998 E PREVISÃO PARA 1999
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
421
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
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Ø Valor mínimo por aluno e padrão de qualidade
O § 4º do artigo 60 trata de ajustes de contribuições ao FUNDEF, em cinco anos, como estratégia
para garantir-se um padrão mínimo de qualidade de ensino. Parece implícita, nesse dispositivo,
a idéia de que é impossível obter qualidade com custos muito baixos e em qualquer escola. O
padrão mínimo de qualidade apoia-se em elementos que fazem diferença quando se associam
para realizar a educação. Nesse último caso, ganham destaque aqueles insumos que potencialmente
têm mais efeito sobre o processo de ensino-aprendizagem. A Lei nº 9.394/96 dispõe sobre “padrão
mínimo de oportunidades educacionais” (art. 74), garantido por “ padrões mínimos de qualidade
de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínima por aluno, de insumos indispensáveis
ao desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem” (art.4º, IX).
A concepção então explicitada indica que se deve calcular quanto custa a elevação a um
novo patamar de qualidade e esse novo custo deve ser incorporado àquele obtido com a
situação atual. Impõe o novo custo a inclusão da valorização do magistério e daqueles insumos
que potencialmente têm efeitos mais concretos sobre os “saberes” necessários a um mundo
que se globaliza e gera novas tecnologias e demandas educacionais.
Ø Utilização de recursos do FUNDEF
De certa forma o artigo 60 do ADCT estabelece uma outra subvinculação: de pelo menos
60% dos recursos do FUNDEF para o que denominou de “remuneração condigna do magistério”
(art. 60, caput) ou “pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no
magistério (§ 5º do art. 60). A lei de regulamentação do FUNDEF definiu que com tais recursos
podem ser remunerados “os profissionais do magistério” em efetivo exercício de suas atividades
no ensino fundamental público e, até 2001, financiados programas de capacitação dos
professores leigos (arts. 7º e 9º, Lei 9.424/96).
Tanto a regulamentação do FUNDEF em relação a esse item quanto as interpretações daí
decorrentes ensejam o uso desses recursos para as seguintes atividades:
pagamento da remuneração do magistério, aí incluídos quer os professores, quer os que
oferecem suporte pedagógico à docência (Res. nº 3/97 do CNE);
pagamento dos encargos sociais decorrentes da remuneração dos profissionais do
magistério (Parecer nº 10/97 do CNE);
investimentos, até 2001, visando capacitar para habilitar professores leigos (arts. 7º e 9º
da Lei 9.424/96).
Na legislação educacional, o termo capacitação, analisado isoladamente, permite
interpretações que incluem a realização de despesas com cursos de reciclagem, treinamentos,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
422
aperfeiçoamento etc. Os agentes responsáveis pela realização da capacitação podem ser os
mais variados, inclusive cursos livres, não credenciados junto aos órgãos normativos da
educação. A capacitação com vistas à habilitação tem o objetivo de erradicar a figura do “professor
leigo”, fornecendo-lhe os pré-requisitos exigidos para o exercício do magistério, ou seja:
formação em nível superior em curso de licenciatura plena em área própria, para o exercício
do magistério de 5ª a 8ª séries, e a formação de nível médio (modalidade magistério), para
atuação nas séries iniciais do ensino fundamental. Para a habilitação, exigem-se certas
formalidades para quem é o usuário e para a instituição responsável pela realização dos cursos
– reconhecimento, avaliação de qualidade etc.
Em razão dessa diferença conceitual, “investimentos” que não levem a “habilitação” não
podem ser custeados com recursos destinados ao pagamento dos profissionais do magistério.
Por outro lado, embora a expressão “investimentos”, encontrada no § 1º, do artigo 9º, da Lei nº
9.424/96 possa ter conotação abrangente, deve ser entendida como despesa de duração limitada,
até o final do ano 2001, diretamente relacionada ao beneficiário e ao objeto da habilitação, a
saber: bolsa de estudo, transporte, material didático e aquisição de certos equipamentos e bens
permanentes. É preciso, contudo, fiscalização no seu uso, porque a interpretação do que foi
regulamentado na Lei nº 9.424/96 acerca desse assunto pode vir a ser perigosa brecha para uso
indevido dos recursos originariamente indicados para a remuneração condigna do magistério.
Além das questões antes assinaladas, cabe mencionar que a utilização do mínimo de 60%
do FUNDEF deveria fazer-se mediante formulação de novo Plano de Carreira e Remuneração do
Magistério (art. 9º, Lei nº 9.424/96), observadas as diretrizes estabelecidas pelo Conselho
Nacional de Educação, pela Câmara de Educação Básica, por meio da Resolução 3/97. Tais
planos, contudo, não estão ainda em execução em grande parte dos Estados e Municípios
brasileiros, em face do deferimento de liminar do STF, que sustou a vigência do prazo de seis
meses, contido no caput do artigo 9º da Lei nº 9.424/96, para sua formulação.
Em resumo, o critério válido para alocação e utilização dos recursos do FUNDEF é de que ele
é um recurso para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público (art. 2.º, Lei
nº 9.424/96). Como seu valor anual é conhecido, a variação para mais ou para menos é pouco
significativa nos Estados que não recebem complementação da União. Naqueles em que tal
fato ocorre, não há por que projetar orçamentos que não correspondam à disponibilidade
financeira. É possível, pois, trabalhar com orçamentos mais realistas e considerar, quando do
retorno do FUNDEF para as contas específicas, a seguinte distribuição e utilização no ensino
fundamental público:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
423
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
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Mínimo de 60% para despesas de MDE relativas a: pagamento do magistério, encargos
sociais do magistério e habilitação de professores leigos, esta última até 2001.
Até 40% para despesas gerais de MDE indicadas no artigo 70 da Lei nº 9.394/96.
Ø Lei de regulamentação do FUNDEF: comentários adicionais
Além da regulamentação imposta no artigo 70 da Lei nº 9.394/96 quanto ao uso dos recursos
em MDE e que também se aplicam ao FUNDEF, há que se levar em conta que tais recursos:
Não podem custear as despesas indicadas no artigo 71 da Lei nº 9.394/96, dentre elas:
assistência médica odontológica, farmacêutica e psicológica e outras formas de assistência
social; obras de infra-estrutura mesmo que a rede escolar seja beneficiária, material para uso
comum da administração que não tenha supervisão de competente sistema de ensino; tipos de
pesquisas não relacionadas ao ensino, formação de quadros para a administração pública,
subvenção a instituições de caráter assistencial, desportivo ou cultural, dentre outras.
Podem financiar, observadas as recomendações contidas no Parecer nº 26/97 do Conselho
Nacional de Educação, bolsas de estudos que se destinam a alunos e não a instituições.
Muito do que trata a Lei nº 9.424/96 já foi abordado no presente texto. Há, porém, algumas
outras questões relevantes que importa comentar. São elas:
Os recursos do FUNDEF devem constar de programação específica nos respectivos
orçamentos (art. 3º, § 7º).
Tais recursos não podem ser utilizados como garantia de operações de crédito internas e
externas, admitida sua utilização como contrapartida em operações que se destinem,
exclusivamente, ao financiamento de projetos e programas de ensino fundamental (art. 2º, § 6º).
Devem ser considerados custos diferenciados por aluno, segundo as etapas de ensino e
tipos de estabelecimentos (art. 2º,§ 2º).
O censo educacional anual é base para fixar a proporção de alunos por redes (art. 2º,§ 4º).
A manutenção dos recursos creditados deve ocorrer em instituição financeira oficial (art.3º).
As receitas provenientes das aplicações financeiras dos recursos do FUNDEF só podem ser
aplicadas no ensino fundamental público (art. 3º, § 6º).
Há garantia de recursos do FUNDEF a Estados e Municípios recém-criados, a partir de sua
instalação (art. 3º, § 8º).
A possibilidade de celebração de convênios entre Estado e respectivos Municípios para
transferência de alunos, recursos humanos, materiais e encargos financeiros, com a transferência
imediata de recursos do Fundo correspondentes às novas matrículas (art. 3º, § 9º).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
424
A institucionalização de Conselhos de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEF como
instâncias não remuneradas, responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização da repartição,
transferência, aplicação dos recursos do Fundo e supervisão de censo escolar anual (art. 4º).
A disponibilização pelo poder público, para os conselheiros do FUNDEF e para os órgãos
federais, estaduais e municipais de controle interno e externo, de registros contábeis e
demonstrativos gerenciais, mensais e atualizados relativos a recursos repassados ou recebidos
à conta do Fundo (art. 5º).
A aplicação dos recursos que retornam ao FUNDEF não isenta as instâncias administrativas
da obrigatoriedade de cumprimento das vinculações legais (art. 8º), comportando-se,
esquematicamente, a utilização dos recursos vinculados a MDE conforme o quadro 8,
considerando-se sempre que os recursos vinculados ao ensino fundamental representam o
mínimo de 15%.
QUADRO 8 VINCULAÇÕES LEGAIS A MDE
A formulação de novo Plano de Carreira e Remuneração - PCR do Magistério, com exigências
e prazos relativos à habilitação de professores leigos, de forma a assegurar remuneração
condigna e estímulo aos que estejam em exercício efetivo do magistério (art. 9º).
Exigências de comprovação são feitas a Estados, Distrito Federal e Municípios quanto: ao
cumprimento do artigo 212 da Constituição Federal, à apresentação do novo PCR de acordo com
diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Educação, ao fornecimento de informações solicitadas
Instância Recurso para MDE
Estados e Distrito Federal Ensino fundamental e modalidades respectivas
Retorno do FUNDEF + no mínimo 15% IPVA, ITCM, IRRF e IOF ouro
Ensino médio e educação superior e modalidades respectivas
No máximo 10% FPM, ICMS, IPI EXP, LC 87/96, IPVA, ITCM, IRRF e IOF ouro
Municípios Ensino fundamental e modalidades respectivas
Retorno do FUNDEF + no mínimo 15% IPTU, ISS, ITBI, IRRF, ITR, IOF ouro e IPVA
Ensino infantil e modalidades respectivas
No máximo10% FPM, ICMS, IPI EXP, LC 87/96, IPTU, ISS, ITBI, IRRF, ITR, IOF ouro e IPVA
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
425
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
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no censo escolar, como base para formulação de indicadores educacionais, com perspectiva de
sanções a quem descumprir tais exigências ou fornecer falsas informações (art. 10).
Realização de avaliações periódicas dos resultados de aplicação da lei, visando à adoção
de medidas corretivas de natureza operacional ou de política educacional (art. 12).
O item seguinte trata exatamente dessa avaliação, não só a partir do discurso oficial, mas,
também, da reação de outros interlocutores.
Ø FUNDEF: impacto e sugestões
Nesta parte são listados alguns registros relativos a impactos e sugestões para
aperfeiçoamento do FUNDEF, ainda não relacionadas no corpo do presente trabalho. Algumas
informações são oriundas de relatório do MEC e outras foram colhidas por ocasião de audiência
pública na Câmara dos Deputados para discussão do projeto de Plano Nacional de Educação
e de relatórios da CPI do FUNDEF no Estado do Ceará.
Do ponto de vista do impacto, além do que já foi mencionado neste texto, importa destacar
a existência de um reconhecimento geral do FUNDEF como a grande reforma da educação e a
mais criativa metodologia de promoção da eqüidade. Afirma-se o FUNDEF como instrumento
incentivador de cooperação, regularidade de transferência de recursos e controle social. Com
ele, é possível implementar políticas voltadas para a eqüidade, descentralização, universalização
do atendimento, melhoria de qualidade e valorização do magistério do ensino fundamental,
especialmente nos Municípios da região Nordeste.
Por parte do MEC, há o registro de inclusão de despesas, obtidas por amostragem, relativas
a insumos que podem ter efeito direto sobre o financiamento das escolas e sua melhor qualidade
de ensino.
É possível assinalar ganhos financeiros para o magistério, proporcionados pela formulação
de novos Planos de Carreira e Remuneração – PCR, maior transparência na gestão das redes de
ensino e movimentação financeira, em razão da instalação de Conselhos de Acompanhamento
e Controle Social do FUNDEF.
Pesquisas amostrais encomendadas pelo MEC indicam melhoria do perfil de habilitação do
magistério, com reflexos também na formação continuada.
Identifica-se crescimento do emprego em dois setores: no magistério, em que se supõe o
incremento de 20 mil novas vagas, e no setor de transporte escolar, dado o aumento dos
alunos matriculados e transportados, e, ainda, em razão do processo de nucleação da rede
escolar, como meio de obter uma melhor relação aluno-professor e com isso garantir melhor
padrão remuneratório.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
426
Por fim, nos Municípios onde houve maior impacto financeiro com transferências do FUNDEF,
o setor educação passou a ter a participação variável no bolo orçamentário entre 30% a 53%.
O FUNDEF é indutor de maior atuação dos Municípios no ensino fundamental, que, para
alguns, anteriormente se diluía em apoio a “transporte” e “merenda” e agora se volta para a
matrícula, dado o valor per capita por aluno. No entanto, por trás dessa tendência municipalizante
do ensino fundamental, há que se ter cuidado com o surgimento de problemas de natureza
gerencial e pedagógica.
Não obstante os impactos reconhecidamente positivos que o FUNDEF tem trazido para o
ensino fundamental, realizando significativa e talvez a mais importante modificação na estrutura
de financiamento do ensino obrigatório no país, ele tem sido objeto de discussões e sugestões.
Afirmam alguns que a subvinculação de recursos para o ensino fundamental reduziu a
flexibilidade na aplicação dos recursos vinculados a MDE, com eventuais prejuízos para o
atendimento das clientelas da educação infantil, do ensino médio e da educação de jovens e
adultos. O cenário atual estaria apontando que, para cumprimento do FUNDEF, dentro do quadro
dos mínimos constitucionais vinculados a MDE, os Estados, para fazer face à necessária expansão
do ensino médio, serão obrigados a promover aumento de seus gastos. Por outro lado,
Municípios que tradicionalmente davam especial atenção à educação infantil e à educação de
jovens e adultos estariam com dificuldades de continuar a manter o mesmo patamar de seus
gastos. É preciso considerar, contudo, que os dados disponíveis não permitem aferir com
clareza a procedência de tal crítica.
Não há dados sistematizados, por exemplo, sobre o atendimento a crianças na faixa de 0
a 3 anos de idade e as estatísticas relativas à educação de jovens e adultos não são precisas.
Algumas propostas têm circulado, sobretudo aquelas relativas à transformação do FUNDEF em
um fundo para toda a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio),
passando a redistribuição a ser feita com a totalidade dos recursos vinculados a MDE no âmbito
de cada Estado e de seus respectivos Municípios. Ainda não existem estudos que permitam
aferir com clareza a viabilidade de sua implementação ou mesmo certeza se seria possível
algum acordo político, no âmbito da Federação, que as viabilizasse. De concreto, a única
iniciativa foi o recente envio, pelo Poder Executivo federal, ao Congresso Nacional, de proposta
de emenda à constituição (PEC nº 232, de 2000), mediante a qual os Estados ficarão autorizados,
durante o prazo de vigência do FUNDEF, a utilizar recursos da quota estadual do salário-educação
na expansão do ensino médio.
Uma outra preocupação se volta para a transitoriedade do FUNDEF, que se exaure ao final
de 2006. Não haveria garantia de que os entes federados possam vir a absorver no futuro, com
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
427
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
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recursos próprios, as obrigações hoje assumidas com o ensino fundamental. Esta é uma questão
real, que tem sido objeto de discussão no âmbito do governo federal.
A atuação dos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEF não estaria
assegurando a efetiva fiscalização da aplicação dos recursos, na medida em que os membros
designados para integrá-los não estariam adequadamente preparados ou então seriam meros
representantes dos interesses das autoridades que os nomearam. É fato que a prática do controle
social ainda é bastante nova no país e enfrenta as dificuldades decorrentes de sua juventude.
Programa desenvolvido pelo MEC, por intermédio do FUNDESCOLA, tem oferecido treinamento a
Conselhos de inúmeros Municípios, no que se refere à legislação e a práticas concretas de trabalho.
Tem sido possível identificar, em alguns casos, ao invés do “regime de colaboração”, um
certo “regime de competição” pela busca de alunos, como alternativa para ampliar os recursos
do ensino fundamental. Assim, torna-se necessário reforçar o grau de institucionalização de
programas de “cooperação”, como estratégia para garantir a continuidade de políticas
educacionais já em execução e como mecanismo indutor.
Uma outra questão que tem sido debatida refere-se ao valor mínimo nacional por aluno-
ano que o governo federal tem fixado anualmente, desde 1998. Há manifestações no sentido
de que a União estaria descumprindo os parâmetros estabelecidos no § 1º, do artigo 6º da Lei
9.424/96, para a definição desse valor. Em conseqüência, estariam sendo praticados valores
inferiores ao legalmente determinado e, com isso, a contribuição da União estaria sendo
insuficiente. Conforme Nota Técnica nº 05/99, da Secretaria Executiva do MEC, de 10 de novembro
de 1999, o seguinte argumento é apresentado:
“ Os Fundos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério (...) são vinte e sete entidades, de natureza contábil, absolutamente independentes
entre si, fechados cada um em sua respectiva unidade da Federação.
Nem poderia ser de outra forma, pois, se assim fosse, haveria transferências interestaduais de
recursos vinculados ao ensino fundamental, o que não foi sequer cogitado durante toda a tramitação
da Emenda Constitucional nº 14 no Congresso Nacional.
Pode, portanto, o Presidente da República observar como limite inferior para fixação do valor
mínimo nacionalmente unificado o quociente da divisão entre a previsão da receita total para o
fundo e a matrícula total no ano anterior, acrescida do total estimado das novas matrículas, para
qualquer um dos vinte e sete Fundos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e Valorização do Magistério.
A rigor, só existe a vedação legal à fixação de um valor mínimo nacional inferior ao menor
entre os vinte e sete quocientes entre receita vinculada ao fundo e matrícula total, preceito que
jamais foi descumprido”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
428
Há manifestações pelo cumprimento do disposto no § 4º do artigo 60 do ADCT, relativo ao
ajuste progressivo da contribuição ao FUNDEF, pelas diferentes instâncias da Federação, no
prazo de cinco anos, que se esgota em 2001. Tal ajuste depende da definição do padrão mínimo
de qualidade do ensino, presentemente em discussão no âmbito dos órgãos competentes do
governo federal. É de se destacar que, nos termos do artigo 74 da Lei nº 9.394/96 (LDB), tal
definição deve se dar em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Há os que apontam que o valor por aluno atual não permite ampliação da jornada escolar
dos alunos do ensino fundamental como forma de melhorar-lhe a qualidade. De fato, ao partir
do conjunto de recursos já disponíveis e não de um patamar de gastos necessários para cumprir
um padrão de qualidade de ensino, essa limitação pode ser real. Mas é também real que, para
um grande contingente de alunos, em função do caráter redistributivo do FUNDEF, estão sendo
destinados recursos em quantidade nunca antes verificada, permitindo-lhes uma jornada escolar
mais produtiva. Além disso, tendo como referência esses recursos estavelmente destinados ao
ensino fundamental, será possível implementar estratégias visando a sua melhor utilização e
gerenciamento, o que poderá resultar em ganhos de produtividade e até mesmo ampliação da
jornada escolar.
Outra questão em discussão é a de que o FUNDEF não inclui as matrículas de jovens e
adultos do ensino supletivo para efeitos do cálculo da repartição da receita do Fundo, mas
apenas como despesa. O projeto aprovado no Congresso Nacional previa tal dispositivo que,
contudo, foi vetado pelo Poder Executivo, com base em três argumentos. Em primeiro lugar, a
precariedade dos dados relativos à educação de jovens e adultos, inviabilizando uma correta e
fidedigna contabilização do alunado. Em segundo lugar, o recenseamento do alunado do ensino
supletivo, em função da especificidade da forma de controle de freqüência nessa modalidade,
baseia-se apenas no registro disponível nos estabelecimentos de ensino, não permitindo
eventuais confirmações de presenças ou mesmo da existência do aluno. Em terceiro lugar,
haveria o risco de uma corrida desordenada de Estados e Municípios no sentido de oferecer
esse tipo de ensino como meio de garantir recursos financeiros, o que poderia resultar em
indesejável prejuízo da qualidade da formação oferecida.
Na elaboração dos novos Planos de Carreira e Remuneração do Magistério, contrariamente
ao objetivo de valorização do magistério, tem sido possível identificar a subtração de direitos
e a concessão de “abonos” como forma remuneratória. De fato, em muitos Municípios, o FUNDEF
elevou as disponibilidades financeiras para a remuneração do magistério. No entanto, talvez
em função do prazo legal de duração do Fundo, vários estão concedendo melhorias apenas
provisórias de remuneração, sob a forma de abonos e similares.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
429
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
Finalmente, há o registro da falta de uniformidade das decisões e interpretações dos
Tribunais de Contas quanto à contabilidade e uso dos recursos do FUNDEF, o que vem
ocasionando problemas gerenciais, sobretudo nos Municípios, com reflexos na área pedagógica,
componente que não é de competência desses Tribunais.
Obviamente o contexto no qual foram geradas as discussões e sugestões antes relacionadas
pode já ter sido alterado, mas algumas dificuldades ainda se fazem presentes, exigindo atuação
decisiva para mudar o cenário descrito. Os exemplos anteriormente mencionados atestam a
viabilidade e o impacto das ações que o poder público pode desenvolver nessa direção.
4 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO NA LDB
O Título VII da Lei nº 9.394/96 (LDB) é integralmente dedicado aos recursos financeiros
destinados à educação.
2
Inicia-se pelo artigo 68, que arrola as fontes tradicionais de recursos
públicos: impostos próprios das diferentes instâncias da Federação; transferências
constitucionais e outras transferências; salário-educação e outras contribuições sociais;
incentivos fiscais; e outras receitas.
O artigo 69 praticamente repete o dispositivo constitucional que determina a aplicação
mínima da receita de impostos de cada ente federado na manutenção e desenvolvimento do
ensino público, 18% para a União e 25% (ou o que constar, a maior, nas respectivas Constituições
ou Leis Orgânicas) para Estados, Distrito Federal e Municípios, compreendidas as transferências
constitucionais. Para o cálculo resultante da aplicação desses percentuais mínimos, tais
transferências são deduzidas da receita do ente federado que as realiza e computadas na
receita dos que as recebem.
A fim de evitar dupla contagem ou aumento artificial de receitas, excluem-se da base da
cálculo as operações de crédito por antecipação de receita orçamentária de impostos.
Orçamentos, contudo, são peças dinâmicas, pois são baseadas em previsões. É freqüente
que, em dado exercício, as receitas superem as previsões iniciais da lei orçamentária anual,
dando origem a leis subseqüentes, autorizando abertura de créditos adicionais com base em
excesso de arrecadação. Nesse caso, a LDB, embora não fosse rigorosamente necessário, pois já
estaria assegurado em outros dispositivos, determina o ajuste da previsão inicial de recursos
para MDE em função das receitas adicionais arrecadadas.
2
O Conselho Nacional de Educação pronunciou-se acerca deste Título da LDB pelo Parecer, do Conselho Pleno,
nº 26, de 2 de dezembro de 1997, homologado pelo ministro da Educação em 17 de dezembro de 1997 (DOU
de 18/12/97). Os comentários constantes deste texto levam em consideração a interpretação do CNE.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
430
A LDB expressa a preocupação do legislador no sentido de que as despesas com MDE tenham
continuidade e estabilidade ao longo de cada exercício financeiro. De fato, no § 4º do artigo 69,
estabelece que a cada trimestre deverá ser feito o balanço entre receitas e despesas previstas e
as efetivamente realizadas, determinando que, nessa periodicidade, devam ser apuradas e
corrigidas as diferenças que resultem no não-atendimento dos percentuais mínimos obrigatórios.
Essa mesma preocupação levou à redação do § 5º do artigo 69, que determina o repasse
dos recursos ao respectivo órgão responsável pela educação, em cada esfera administrativa,
com periodicidade de até dez dias. Assim, os recursos relativos à receita realizada durante o
primeiro decêndio de um mês devem ser repassados até o último dia do decêndio subseqüente,
e assim por diante. O artigo § 6º determina a correção monetária dos recursos e a
responsabilização civil e criminal das autoridades competentes, caso não seja cumprido o
disposto no parágrafo anterior.
A interpretação do § 5º tem causado certa polêmica, sendo considerado por alguns como
invasivo da autonomia administrativa e financeira das unidades da Federação. Outras posições,
na direção oposta, defendem até mesmo que a LDB estaria determinando que os gestores dos
órgãos responsáveis pela educação sejam constituídos como ordenadores de despesas em sua
respectiva esfera administrativa. Polêmicas à parte, não se pode deixar de considerar que a
intenção do legislador é pertinente, eis que resguarda a continuidade e a estabilidade na
aplicação de recursos constitucionalmente vinculados a MDE, buscando, dessa forma, garantir o
nível de qualidade do ensino oferecido durante todo o período letivo. Por outro lado,
independentemente da forma como cada ente federado se organize administrativamente, e,
portanto, resguardada a sua autonomia, este é um dispositivo cujo cumprimento os Tribunais
de Contas podem e devem acompanhar.
A seguir, a LDB dedica-se a definir o que são as despesas com manutenção e desenvolvimento
do ensino. Como já foi mencionando, nem toda despesa com educação pode ser considerada
como de MDE, para efeito do cumprimento dos percentuais mínimos constitucionalmente
estabelecidos. A lei lista oito conjuntos de despesas, discriminados no quadro 9, com a apresentação
de alguns exemplos que permitem melhor compreensão do conteúdo de cada um.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
431
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
QUADRO 9
Despesas com MDE
LDB, Art. 70
I – Remuneração e aperfeiçoamento do pessoal
docente e demais profissionais de educação
Exemplos
Vencimentos e salários do pessoal docente e dos demais profissionais que
atuam na área de educação, compreendendo aqueles que exercem a regência
de classe e que desempenham atividades que dão suporte direto à docência,
aí incluídas as de administração, planejamento, inspeção, supervisão e
orientação educacional.
Formação inicial e aperfeiçoamento profissional continuado do
pessoal do magistério e demais profissionais da educação.
Aquisição de imóveis já construídos ou de terrenos para construção
de prédios, destinados a escolas ou órgãos do sistema de ensino.
Construção de prédios, poços, muros, cercas, calçadas e quadras de esportes
nas escolas.
Aquisição, manutenção e conservação de mobiliário e de equipamentos,
como: carteiras e cadeiras, mesas, armários, birôs, computadores, televisores,
antenas, etc.
II – Aquisição, manutenção, construção e conservação
de instalações e equipamentos necessários ao ensino
Concessão de bolsas de estudo para educação infantil, ensino fundamental
e médio e respectivas modalidades em escolas privadas, na forma da lei, para
os que demonstrem insuficiência de recurso, quando houver falta de vagas e
cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando,
conforme o artigo 213, § 1º , da Constituição Federal.
Quitação (principal e encargos) de empréstimos destinados a
investimentos em educação. Exemplo: financiamento para construção de
escola municipal, a ser pago parceladamente. Os acréscimos ao valor principal
também são considerados como MDE.
Despesas com material de apoio ao trabalho pedagógico do aluno e de
professor e com material de consumo para o funcionamento da escola.
Aquisição e manutenção de viaturas para o transporte escolar, uso do vale-
transporte e de outros programas de transporte escolar.
Aluguel de imóveis e de equipamentos (ex.: xerox, projetor, retroprojetor,
aparelho de som e de vídeo). Manutenção de bens e equipamentos.
Contratação de consultoria objetivando a melhoria da gestão e da qualidade
do ensino. Despesas com: serviços de reprografia, assinaturas de revistas e
jornais, energia elétrica, água e esgoto, serviços de comunicação e
divulgação, seminários, encontros, palestras, exposições e similares,
passagens, certificados, medalhas e prêmios, serviços de computação;
aquisição de materiais para distribuição gratuita, etc.
III – Uso e manutenção de bens e serviços vinculados
ao ensino
IV – Levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas
visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade
e à expansão do ensino
Levantamentos estatísticos, regular ou esporadicamente feitos com vistas a
subsidiar as mais diversas tomadas de decisão que são típicas de instituições
do poder público, conduzidas por órgão do sistema de ensino.
Censo educacional, organização de banco de dados, realização de estudos
e pesquisas, com consultoria ou não, para melhorar a qualidade do ensino,
planejamento da rede escolar, elaboração de programas, planos e projetos de
educação.
Atividades-meio que mantenham (sustentem o funcionamento regular) e
desenvolvam a educação (democratizem ou expandam a oferta e aprimorem
a qualidade dos sistemas de ensino), incluindo: pagamento a dirigentes,
assessores e funcionários técnico-administrativos necessários a tais fins,
atuando em escolas e órgãos gestores e normativos do sistema de ensino.
V – Realização de atividades-meio necessárias ao
funcionamento dos sistemas de ensino
VI – Concessão de bolsas de estudo a alunos de
escolas públicas e privadas
VII – Amortização e custeio de operações de crédito
destinadas a atender ao disposto no artigo 70 da LDB,
incisos I a VIII
VIII – Aquisição de material didático-pedagógico e
manutenção de programas de transporte escolar
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
432
A história da educação brasileira, contudo, demonstrou que, por longo tempo, o conceito
de MDE foi entendido de forma excessivamente elástica pela administração pública. Desse modo,
a LDB não se limitou a definir, no artigo 70, o que pode ser considerado como despesa de MDE,
estabelecendo também, no artigo 71, o que não pode ser considerado como tal, aí arrolando os
principais desvios praticados durante muitos anos: pesquisa não vinculada ao ensino; subvenção
a instituições públicas e/ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural; formação de
quadros especiais para a administração pública, militares ou civis, inclusive diplomáticos;
programas suplementares de alimentação e assistência à saúde e outras formas de assistência
social; obras de infra-estrutura, ainda que beneficiem a rede escolar; pessoal docente e demais
trabalhadores da educação, em desvio de função ou em atividade alheia a MDE.
Cabe aqui um comentário acerca do financiamento dos programas suplementares de
atendimento ao educando do ensino fundamental, previstos no artigo 208, VII, da Constituição
Federal. A LDB separou-os em dois grupos, incluindo os relativos a material didático e transporte
escolar entre as despesas de MDE e não considerando como tal os referentes a alimentação e
assistência à saúde. Dois critérios podem ser lembrados para tal distinção. Os dois últimos,
trata-se de programas definitivamente suplementares, fundamentais para suprir carências, mas
sem caráter pedagógico. Com relação aos dois primeiros, o material didático-escolar tem
vinculação óbvia com a atividade educacional. O transporte escolar, sobretudo na zona rural,
constitui condição de infra-estrutura básica de oferta da educação, pois trata-se de garantir o
acesso à escola, que de outra forma não se realizaria.
3
O princípio da transparência dos gastos com a educação está bem definido na LDB. Em seu
artigo 72, determina que as contas relativas a manutenção e desenvolvimento do ensino devem
ser especificamente apuradas e publicadas nos balanços do poder público, bem como nos relatórios
bimestrais da execução orçamentária, previstos no artigo 165, § 3º, da Constituição Federal. O
artigo 73 dá mais ênfase à questão, determinando aos órgãos fiscalizadores o exame prioritário,
nas prestações de contas, do cumprimento dos percentuais mínimos vinculados a MDE, previstos
no artigo 212 da Constituição, e do disposto no artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Esse último foi profundamente alterado pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996.
Como já foi mencionado, instituiu-se a subvinculação de recursos a serem aplicados no ensino
fundamental, criando-se o FUNDEF. E determinando à União aplicar anualmente, na erradicação
3
O Parecer nº 26/97 do Conselho Nacional de Educação dá uma interpretação restritiva à questão do
financiamento do programa de transporte escolar como despesa de MDE. Afirma que o dispositivo aplica-se
tão-somente ao transporte escolar de responsabilidade dos Municípios, não alcançando os Estados. O texto
da LDB, contudo, em dispositivo algum estabelece essa restrição.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
433
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
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do analfabetismo e no ensino fundamental, o equivalente a, no mínimo, 30% dos recursos a que
está obrigada a aplicar, pelo artigo 212, na manutenção e no desenvolvimento do ensino.
O artigo 74 da LDB adota um dos mais importantes princípios já inseridos na legislação
educacional brasileira: o do custo mínimo padrão de qualidade para o ensino fundamental,
cujo cálculo é da responsabilidade da União. Tal custo mínimo deve ser o parâmetro referencial
a nortear as políticas de ação supletiva e redistributiva da União e dos Estados. Só podem se
beneficiar dessa redistribuição, contudo, as unidades federadas que cumprem com as disposições
constitucionais de aplicação dos percentuais mínimos de suas receitas de impostos em MDE e
com as normas da LDB e demonstrem estar oferecendo quantidade de vagas compatível com sua
capacidade de atendimento. É preciso notar que o valor-mínimo por aluno previsto no FUNDEF
é apenas uma primeira aproximação, não chegando ainda a ser o custo mínimo que assegure
padrão de qualidade. Este último deve ser definido a partir dos insumos necessários, enquanto
o primeiro parte diretamente das receitas disponíveis e de sua divisão segundo o número de
alunos matriculados. A própria Emenda Constitucional nº 14/96 reconhece este fato, ao inserir,
no § 4º do artigo 60 do ADCT, dispositivo estabelecendo que, em um prazo de cinco anos (a
encerrar-se em 2001), os entes federados ajustarão progressivamente suas contribuições ao
FUNDEF de forma a garantir um valor por aluno correspondente a um padrão mínimo de qualidade
de ensino, definido nacionalmente.
A questão da ação supletiva e redistributiva é tratada ainda com mais detalhes na LDB nos
artigos 75 e 76. Além do critério básico, relativo ao padrão de qualidade, encontra-se estabelecido
que ela deve levar em consideração a capacidade de atendimento e a medida do esforço fiscal
do ente federado, reunidas em fórmula de domínio público. A capacidade de atendimento é
entendida como a razão entre os recursos disponíveis decorrentes da aplicação dos percentuais
mínimos obrigatórios e o custo mínimo relativo ao padrão de qualidade, daí decorrendo a
necessidade de recursos complementares a serem transferidos pela União aos Estados e
Municípios ou pelo Estado aos respectivos Municípios.
Finalmente, cabe comentar o que dispõe o artigo 77 da LDB. Trata ele da possibilidade de
destinação de recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Em
seus incisos, são especificadas as condições que a permitem. Tais escolas devem comprovar
finalidade não lucrativa e não distribuir resultados, dividendos, bonificações, participações ou
parcela de seu patrimônio; devem aplicar seus excedentes financeiros em educação; assegurar
a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional ou ao
poder público, no caso de encerramento de suas atividades; e devem prestar contas ao poder
público dos recursos recebidos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
434
Segundo o Parecer nº 26/97, do Conselho Nacional de Educação, os recursos públicos de
que trata esse artigo compreendem duas categorias. A primeira se refere às verbas públicas
que excedam os mínimos constitucionalmente vinculados a MDE. Quanto a estas, não há outras
restrições, podendo ser aplicadas em MDE ou em educação em geral, originando-se das diversas
fontes mencionadas no artigo 68 da LDB, exceção feita ao salário-educação, cuja destinação
específica é o financiamento do ensino fundamental público, como fonte adicional aos impostos.
A segunda categoria de recursos é a que se refere ao previsto no § 1º do artigo 77, onde se lê:
“ § 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para a
educação básica, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando
houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública de domicílio do educando, ficando o Poder
Público obrigado a investir prioritariamente na expansão da sua rede local”.
O Parecer 26/97 do CNE destaca que tal dispositivo deve ser examinado à luz do que
determina o artigo 70 da LDB, que define como despesa de MDE a concessão de bolsas de
estudos em geral, para alunos de estabelecimentos públicos ou privados, de nível básico ou
superior, podendo ser contabilizada para satisfação dos mínimos constitucionais. No entanto,
ressalta o parecer que, no caso da educação básica, tal concessão é transitória, pois só pode
ocorrer para suprir falta de vagas, ficando o poder público obrigado a saná-la com prioridade.
5 O SALÁRIO-EDUCAÇÃO
O salário-educação é uma contribuição social de longa data existente, instituída em 1964,
por decreto-lei. Foi inserido no artigo 212, § 5º, da Constituição Federal de 1988, como fonte
adicional de financiamento do ensino fundamental público, e regulamentado pelas Leis nº
9.424/96 (a lei do FUNDEF) e nº 9.766, de 18 de dezembro de 1998. A primeira lei define as
principais características do salário-educação:
(a) contribuição social devida pelas empresas, calculada com base em alíquota de 2,5%
sobre o total de remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, aos segurados empregados,
tal como definidos no artigo 12, I, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991;
(b) distribuição, em quotas, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),
observada a arrecadação em cada Estado e no Distrito Federal:
quota federal: um terço do montante de recursos, destinado ao FNDE para aplicação em
projetos e programas voltados para a universalização do ensino fundamental, considerados os
desníveis sócio-educacionais existentes no país;
quota estadual: dois terços do montante de recursos, creditados mensal e automaticamente
em favor das Secretarias de Educação dos Estados e do Distrito Federal, para financiamento de
programas, projetos e ações do ensino fundamental.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
435
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
A Lei nº 9.766/98 vem complementar a regulamentação do salário-educação, dispondo
sobre:
(a) a contribuição social está sujeita aos mesmos prazos, condições, sanções administrativas
ou penais e outras normas relativas às contribuições sociais e demais importâncias devidas à
Seguridade Social, ressalvada a competência do FNDE sobre a matéria;
(b) isenções: os entes federados e suas autarquias e fundações; instituições públicas de
ensino; escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, reconhecidas pelo órgão
educacional competente, e que atendem ao disposto no inciso II, artigo 55, da Lei nº 8.212/91;
organizações de fins culturais, assim definidas em regulamento; organizações hospitalares e
de assistência social que atendam, cumulativamente, aos requisitos previstos nos incisos I a V
do artigo 55 da Lei nº 8.212/91;
(c) incorporação à receita dos acréscimos legais devidos pelos contribuintes em atraso;
(d) definição da empresa contribuinte: firma individual ou sociedade que assume o risco
da atividade econômica, urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como as empresas e
demais entidades públicas ou privadas, vinculadas à Seguridade Social;
(e) redistribuição da quota estadual: entre o Estado e seus respectivos Municípios, conforme
critérios definidos em lei estadual, devendo uma parcela de no mínimo 50% do montante de
recursos ser repartida proporcionalmente ao número de alunos matriculados no ensino
fundamental nas respectivas redes de ensino, de acordo com os resultados do censo educacional
realizado pelo MEC;
(f) a contribuição não tem caráter remuneratório na relação de emprego e não se vincula à
remuneração dos empregados das empresas contribuintes;
(g) recolhimento ao INSS ou ao FNDE;
(h) fiscalização a cargo do INSS, ressalvada a competência do FNDE sobre a matéria, não se
aplicando as disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar livros e
demais documentos pertinentes ou da obrigação de comerciantes, empresários, industriais ou
produtores de exibi-los;
(i) as disponibilidades financeiras dos recursos geridos pelo FNDE podem ser aplicadas por
intermédio de instituições financeiras públicas federais;
(j) fiscalização da utilização dos recursos pelo MEC, por intermédio do FNDE.
Com a quota federal do salário-educação, a União financia importantes programas voltados
para o ensino fundamental, como o do Livro Didático e o “Dinheiro Direto na Escola” (PDDE).
Este último foi instituído pelo MEC a partir de 1995, estando hoje voltado para o repasse de
recursos às escolas públicas de ensino fundamental e escolas de educação especial mantidas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
436
por organizações não governamentais, sem fins lucrativos, com mais de 20 alunos, conforme a
Resolução nº 8, de 8 de março de 2000, do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), que regulamenta o programa. Seus objetivos são os
seguintes: aquisição de material permanente; manutenção, conservação e pequenos reparos
da escola; aquisição de material de consumo necessário ao seu funcionamento; capacitação e
aperfeiçoamento de profissionais em educação; aquisição de material didático e pedagógico;
avaliação da aprendizagem; implementação de projeto pedagógico e desenvolvimento de
atividades educacionais diversas.
No caso das escolas com 100 ou mais alunos, somente serão beneficiadas aquelas que
dispuserem de Unidade Executora própria – entidade de direito privado, sem fins lucrativos,
representativa da comunidade escolar (Caixa Escolar, Associação de Pais e Mestres – APM,
Conselho Escolar, etc.), responsável pelo recebimento e execução dos recursos financeiros,
transferidos pelo FNDE. No caso das escolas de menor tamanho, podem receber os recursos das
Secretarias de Educação a que se vinculem ou, então, diretamente, desde que se consorciem
para criar Unidade Executora que as represente para efeitos do programa. Os recursos são
repassados segundo o tamanho da escola, sendo diferenciados os valores de acordo com a
região, com maiores valores para as escolas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, à
exceção, nesta última, do Distrito Federal.
6. OUTRAS FONTES DE RECURSOS PARA A EDUCAÇÃO
Esses recursos anteriormente mencionados não são os únicos aplicados no ensino. Diversos
são os programas que também destinam direta ou indiretamente recursos para a educação. A
título de exemplo, são mencionados quatro.
O Plano Nacional de Educação Profissional (PLANFOR), com recursos do FAT, nos termos da
Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, com as alterações introduzidas pela Lei nº 8.900, de 30
de junho de 1994, financia, no âmbito do Programa Seguro-Desemprego, programas e cursos
de qualificação e requalificação profissional, para desempregados e trabalhadores sob risco
de perda de emprego. Tais atividades são financiadas de acordo com os Planos Estaduais de
Qualificação (PEQ), apresentados pelos Estados e Distrito Federal, ao Ministério do Trabalho e
Emprego. Para um melhor entendimento do funcionamento desse programa, pode ser consultada
a Resolução nº 194, de 23 de setembro de 1998, do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo
ao Trabalhador (CODEFAT) e as que a modificaram, particularmente a Resolução nº 200, do
mesmo ano.
Outro programa de relevo é o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM), destinado
a assegurar às famílias com renda per capita inferior a meio salário-mínimo condições financeiras,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
437
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
entre outras, que permitam a permanência de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos na escola.
O programa tem fundamentação legal na Lei nº 9.533, de 10 de dezembro de 1997, e no Decreto
nº 3.117, de 13 de julho de 1999. A responsabilidade do programa é de cada Município, que
deve instituí-lo em sua jurisdição, e a coordenação nacional é do MEC. Para os Municípios
carentes, com receita tributária e renda per capita familiar inferiores às médias do respectivo
Estado, podem ser repassados recursos federais, mediante convênio de apoio financeiro firmado
com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), até o limite de 50% dos custos
do programa. A outra metade deve ser arcada pelos próprios Municípios.
Deve ser também mencionado o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária,
mantido pelo Ministério de Política Fundiária e Agricultura Familiar e pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária, com o objetivo de promover, nos assentamentos de reforma
agrária, a educação de jovens e adultos, a formação continuada e a habilitação dos educadores
de ensino fundamental, a formação técnico-profissional com ênfase nas áreas de produção e
administração rural e a produção de materiais didático-pedagógicos. Os projetos do programa
são desenvolvidos com a cooperação de universidades e movimentos sociais.
Finalmente, importa citar o programa “Uma Biblioteca em cada Município”, mantido pelo
Ministério da Cultura, por meio do qual os Municípios podem apresentar projetos e pleitear
recursos a fundo perdido para infra-estrutura e acervo.
7 PENALIDADES
4
A não-aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos em MDE sujeita o
Estado e o Distrito Federal a intervenção da União (art. 34, VII, “e”, da Constituição Federal), e
o Município, a intervenção do Estado (art, 35, III, da Constituição Federal).
Pode ainda implicar:
(a) a rejeição das contas por parecer prévio do Tribunal de Contas, com o conseqüente
encaminhamento da questão ao respectivo Poder Legislativo e, se confirmada a rejeição, à
autoridade competente e ao Ministério Público;
(b) a impossibilidade de celebração de convênios com órgãos da administração pública,
que exigem certidão negativa do Tribunal de Contas;
(c) a impossibilidade de realização de operações de crédito junto a instituições financeiras; e
4
A lista de penalidades, embora ampliada e atualizada para o escopo do presente texto, está largamente
baseada no trabalho de Paulo de Sena Martins, “ Financiamento da Educação no Município”, publicado
no Guia de Consulta do PRASEM II. Brasília, FUNDESCOLA/MEC, 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
438
(d) a perda da assistência financeira da União, no caso de Estado, e da União e do
Estado, no caso de Município.
Para o chefe do Poder Executivo responsável, podem ainda ocorrer as seguintes situações:
(a) sujeição a processo por crime de responsabilidade, se caracterizados os tipos penais
previstos no artigo 1º, III e XIV, do Decreto-Lei nº 201/67 (respectivamente, aplicar indevidamente
verbas públicas e negar execução a lei federal). Nesses casos, a pena prevista é de detenção de
três meses a três anos. A condenação definitiva por esses crimes de responsabilidade acarreta
a perda do cargo e a inabilitação para exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de
nomeação, pelo prazo de cinco anos (art. 1º, § 2º, do Decreto-Lei nº 201/67);
(b) sujeição a processo por crime de responsabilidade, se caracterizada a negligência no
oferecimento do ensino obrigatório (art. 208, § 2º, da Constituição Federal, e art. 5º, § 4º, da LDB);
(c) sujeição a processo penal se caracterizado que a aplicação de verba pública foi diversa
à prevista em lei (art. 315 do Código Penal). A pena é de 1 a 3 meses de detenção ou multa;
(d) inelegibilidade, por cinco anos, se suas contas forem rejeitadas por irregularidade insanável
e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo
submetida à apreciação do Poder Judiciário (art. 1º, “g”, da Lei Complementar nº 64/90).
Finalmente, importa ainda mencionar que:
(a) o atraso da liberação sujeitará os recursos a correção monetária e à responsabilização
civil e criminal das autoridades competentes (art. 69, § 6º, da LDB);
(b) haverá perda da ação supletiva e redistributiva em favor do Distrito Federal, dos Estados
e dos Municípios se estes oferecerem vagas, na área de ensino de sua responsabilidade, conforme
o inciso VI do artigo 10 e o inciso V do artigo 11, da LDB, em número inferior à sua capacidade
de atendimento (art. 75, § 4
º
, da LDB ) e não cumprirem as normas da LDB ( art. 76).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARCIA, Gustavo et alii. O financiamento da educação e a reforma educacional: um marco para
a sustentabilidade. In:. FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO na América Latina/PREAL:
tradução de Paulo Martins Garchet. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.
AZANHA, José Mário Pires. Política e planos de educação no Brasil. Cadernos de Pesquisa,
n.85, p.70-78, mai. 1993.
BRASIL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Exposição de Motivos n
o
273, de 13 de outubro de 1995
dos Senhores Ministros de Estado da Educação e do Desporto, da Justiça, da Administração
Federal e Reforma do Estado, do Planejamento e Orçamento da Fazenda, Interior. In:
Proposta de Emenda à Constituição n
o
233 A de 1995 (Do Poder Executivo) Mensagem n
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1.078/95. Brasília, 1995.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
439
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL
Maria Eudes Bezerra Veras e Ricardo Chaves de Rezende Martins
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o
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MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
441
12
CAPÍTULO
O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo*
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..... 442
2 O SISTEMA DE PLANEJAMENTO NO SETOR PÚBLICO ..... 443
2.1 OS NÍVEIS DE PLANEJAMENTO ..... 445
2.2 O PROCESSO DE PLANEJAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ..... 446
3 ORÇAMENTO ..... 449
3.1 ELABORAÇÃO DO ORÇAMENTO ..... 451
3.2 LIMITES PARA AS DESPESAS COM PESSOAL ..... 453
3.3 PARTICIPAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO ..... 454
3.4 ALTERAÇÕES DO ORÇAMENTO .....455
3.5 PROGRAMAÇÃO FINANCEIRA ..... 457
4 CLASSIFICAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS ..... 458
4.1 CLASSIFICAÇÃO DA RECEITA ..... 458
4.2 CLASSIFICAÇÃO DA DESPESA ..... 459
4.3 ENQUADRAMENTO DE DESPESAS ..... 465
5 EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA ..... 466
5.1 REGIME DE ADIANTAMENTO ..... 468
5.2 RELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA ..... 469
5.3 RELATÓRIO DE GESTÃO FISCAL ..... 470
6 CONTROLE DA GESTÃO ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA ..... 470
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 474
* Economista, consultor em Finanças Públicas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
442
Atendendo à demanda dos agentes responsáveis pelas funções de planejar, executar,
acompanhar ou fiscalizar a gestão orçamentária pública, este texto procura desvendar as
principais questões sobre o orçamento, tornando-o acessível à compreensão de todos os
interessados.
Incluindo uma abordagem inicial sobre o sistema de planejamento do setor público,
o foco é dirigido ao orçamento, seus princípios, a elaboração da proposta, a participação
do Poder Legislativo, as formas de alteração e a fixação da programação financeira.
Para facilitar a leitura e a análise do orçamento, são apresentadas, de maneira didática,
as classificações orçamentárias, ou seja, a classificação da receita e da despesa, bem como
o enquadramento de despesas. É imprescindível que haja correção nesse enquadramento,
evitando-se os desvios de finalidade e as práticas utilizadas para burlar o controle
orçamentário. Em muitas dessas questões, o texto apresenta exemplos na esfera educacional,
setor que utiliza intensamente dotações vinculadas.
Outro aspecto destacado é a execução orçamentária, em que são analisados os estágios
a que devem submeter-se as despesas, o regime de adiantamento e o relatório,
respectivamente, de execução orçamentária e de gestão fiscal.
A última parte confere prioridade às questões referentes ao controle (interno e externo)
da gestão orçamentária e financeira, significativamente valorizado com a recente
promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em que destaca, entre outros, o papel dos
agentes da Justiça.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por finalidade orientar as autoridades da área de educação e todas as
demais que, de alguma forma, tenham responsabilidades nas funções de planejar, executar,
acompanhar ou fiscalizar a gestão orçamentária pública, em razão de importantes mudanças
introduzidas na Constituição e na legislação ordinária no final de 1996, relativas ao uso dos
recursos reservados ao ensino. Tais mudanças ocorreram por intermédio da Emenda
Constitucional nº 14/96; da Lei nº 9.394/96, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB); e da Lei nº 9.424/96, regulamentadora do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF).
A questão do planejamento no setor público mereceu dos constituintes de 1988 atenção
muito especial, na medida que foram introduzidos na nova Carta dispositivos com o objetivo
de institucionalizar e consolidar a sua prática em todas as esferas de governo – União, Estados
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
443
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
e Municípios. No capítulo dedicado às finanças públicas foram definidos três instrumentos,
distintos mas interligados entre si: Plano Plurianual (PPA), Diretrizes Orçamentárias (LDO) e
Orçamento Anual (OA), na forma regulada pelo artigo 165 da Constituição.
Essa disposição dos constituintes de valorizar a função planejamento foi reforçada pela
inclusão, na nova Carta, de outro dispositivo sobre o assunto no capítulo que trata da política
urbana, dispondo, em seu artigo 182, § 1º, que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política
de desenvolvimento e de expansão urbana”.
Mesmo nos Municípios com menos de vinte mil habitantes, não obrigados a contar com
um plano diretor, é recomendável a sua existência, pois sua elaboração vai indicar,
principalmente em médio e longo prazos, de que forma a cidade vai se desenvolver, levando
em conta suas vocações, características físicas, econômicas, sociais e culturais, e sua inserção
no plano regional e estadual.
Isto tudo quer dizer que não se pode mais tratar do orçamento de forma isolada, dissociada
de uma preocupação maior com o desenvolvimento, razão pela qual será dedicado capítulo
específico aos conceitos de planejamento, que serão de grande utilidade mais adiante, quando
as questões orçamentárias estiverem sendo tratadas de forma mais direta.
2 O SISTEMA DE PLANEJAMENTO NO SETOR PÚBLICO
1
Uma breve conceituação, para mera avaliação do campo de ação da função planejamento,
permite identificá-la como uma metodologia mediante a qual estabelecem-se e decidem-se os
objetivos visando à solução de problemas identificados, especificando, com antecedência, as
ações e os recursos materiais, humanos e financeiros necessários. Desse conceito alguns pontos
podem ser anotados para servir de referência na avaliação das dificuldades de planejamento
das administrações públicas:
(a) é um processo decisório sistematicamente desenvolvido com antecedência, para definir
os objetivos que devem ser atingidos, condicionando as decisões que, ao longo de um
determinado período, deverão ser adotadas para a sua consecução;
(b) é uma metodologia para uniformizar procedimentos básicos de ação, a fim de estabelecer
a interação necessária entre os diversos setores da administração para um coerente processo
de decisão. Basicamente, busca-se disciplinar procedimentos que possibilitem a definição de
1
Adaptado de capítulo com idêntica denominação que o autor e Waldemar Giomi apresentaram em trabalho
realizado para o Instituto de Pesquisa Econômica AplicadaIPEA, em 1994.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
444
diretrizes, estratégias e objetivos globais da administração, de modo que todos os segmentos
envolvidos possam responder com propostas de viabilização possíveis para atingir as metas
pretendidas.
Em suma, o planejamento é o processo mediante o qual procura-se definir claramente o
que fazer e como fazer, visando à utilização racional dos recursos disponíveis para que, com
eficiência, eficácia, efetividade e humanização, os objetivos pretendidos possam ser atingidos,
pois de nada adiantam os bons ventos se não se sabe para onde se pretende ir. A falta de um
processo decisório, muito sentida no setor público, e de metodologia adequada para a interação
de todos os níveis hierárquicos constituem, sem dúvida, a grande dificuldade para que os
instrumentos derivados do planejamento atinjam o êxito desejado.
Toda organização deve ter objetivos. Se é de pequeno porte, as informações podem manter-
se apenas na cabeça dos administradores e, conseqüentemente, os planos e projetos poderão
ser tacitamente conhecidos por todos. À medida que a organização cresce e envolve um grande
número de pessoas, surge a necessidade de serem expressos em termos bem detalhados os
objetivos pretendidos, as estratégias a serem utilizadas, as políticas administrativas e os padrões
de comportamento desejáveis dos seus membros.
Por outro lado, as administrações passam por inúmeros estágios de desenvolvimento e
realidades diferentes, que exigem a adequação dos objetivos e da forma de atuação da
organização. Evidencia-se, cada vez mais, a impossibilidade de uma administração simplista
atender às exigências organizacionais, sendo primordial a adoção de instrumento que garanta
a unidade da instituição e propicie o controle de suas atividades. O planejamento, metodologia
de trabalho pela qual se fixam e se decidem objetivos, contribui para a solução dos problemas
da organização ao especificar, com antecedência, as ações e os recursos materiais, humanos e
financeiros necessários.
Pode-se dizer que no setor público o orçamento tem sido a única etapa utilizada do sistema
de planejamento, encarado porém como mero instrumento legal pelo qual o Poder Executivo
obtém autorização legislativa para realização dos gastos públicos. Pouca ênfase tem sido
dispensada, infelizmente, à sua utilização como uma das etapas conceituais do processo de
planejamento para a alocação racional e gerenciamento dos recursos públicos, visando à
prestação de serviços à população.
Da ausência de um efetivo processo de planejamento do setor público decorre forte
predominância do enfoque financeiro nos orçamentos. Nessas circunstâncias, a elaboração
orçamentária, que deveria apenas viabilizar e compatibilizar as metas estabelecidas no processo
decisório (Plano Plurianual) com os recursos disponíveis, passa a exercer, simultaneamente,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
445
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
os dois papéis: orçamentação e planejamento. Isso acaba ocorrendo porque o tempo destinado
ao processo de elaboração orçamentária é escasso, fazendo que sejam privilegiadas as
informações financeiras, em detrimento dos dados físicos.
2
Passar para um processo de alocação de recursos em que sejam levadas em consideração,
além das informações financeiras, também as físicas requer apropriado tratamento das
informações e definição clara das atribuições dos órgãos envolvidos no processo de
planejamento.
Uma correta concepção do que seja planejamento é fundamental para que este se transforme
no processo decisório daquilo que, em um período longo, deva ser contemplado nos respectivos
orçamentos anuais, embasado principalmente em dados físicos, restando para o órgão
orçamentário a função de viabilizar os recursos necessários à implementação dos programas
aprovados nas etapas anteriores do processo de planejamento.
2.1 OS NÍVEIS DE PLANEJAMENTO
Para possibilitar uma associação com os novos instrumentos estabelecidos pela
Constituição de 1988 é conveniente ressaltar os níveis clássicos de planejamento normalmente
percorridos pelo processo decisório. Basicamente, podem ser identificados: o nível estratégico,
o nível tático e o nível operacional.
(a) O nível estratégico caracteriza-se pelas decisões mais abrangentes de filosofia, diretrizes
básicas e objetivos globais da administração. Ocorre nos escalões mais elevados do processo de
planejamento, com conotação eminentemente política, indicando o que deve ser feito,
evidenciando o ideal da administração a ser perseguido, baseado nas aspirações, nos desejos e
nos valores individuais e íntimos das pessoas e dos sistemas sociais envolvidos e interessados.
Nesse nível de planejamento, normalmente não há grande preocupação com a precisão do período
em que os objetivos deverão ser atingidos, mas apenas indicativos do que se deve perseguir.
(b) O nível tático, o segundo da hierarquia do processo decisório, tem como função
estabelecer o que pode ser feito, delimitado pelo que deve ser realizado, estabelecido no nível
estratégico, condicionado pelo intervalo de tempo e pelas restrições financeiras, organizacionais
e tecnológicas.
2
Contemplar dados físicos nos orçamentos significa apresentar não apenas valores a serem despendidos em
cada ação de governo, mas também a especificação e quantificação do que será produzido fisicamente,
como número de salas de aula, quilômetros de estradas pavimentadas, e a quantificação do atendimento ao
cidadão, como número de consultas médicas, alunos atendidos, merenda escolar fornecida etc.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
446
(c) O nível operacional, delimitado pelo que deve e pelo que pode ser feito, estabelecidos
nos níveis anteriores, define o que será feito. Tem como principal característica o detalhamento
das decisões do nível tático com a preocupação de implementação operacional do que
efetivamente será realizado, estabelecendo as ações para que as metas possam ser atingidas.
Relembrar esses conceitos é fundamental para passar da teoria à prática, delimitada pelas
condições específicas do setor público e condicionamentos legais estabelecidos pela Constituição
e legislação vigente. É correto considerar que o processo decisório de estabelecimento de
diretrizes, objetivos e metas e a elaboração do Plano Plurianual deve ser enquadrado como
nível estratégico. Nesse nível, define-se o que deverá ser feito durante o período governamental,
sob a coordenação do órgão central de planejamento. É fundamental a participação dos
dirigentes dos órgãos das administrações central e setoriais para que as decisões sejam
legitimadas e tornem-se viáveis nos demais níveis de planejamento.
A elaboração das Leis de Diretrizes Orçamentárias e do Orçamento Anual enquadram-se
no nível tático, porque delimitado pelo que deve ser feito no período governamental; essas
leis definem o que pode ser feito, diante das circunstâncias financeiras e conjunturais do
exercício a que se referem.
O nível operacional é desempenhado pela execução orçamentária, que define o que será
realizado no exercício financeiro. O órgão central de orçamento deverá fazer o acompanhamento
da execução orçamentária para adoção das medidas corretivas que se fizerem necessárias ao
cumprimento das metas estabelecidas. Deverá realimentar o órgão de planejamento com as
informações necessárias à reavaliação e, se for o caso, alteração do Plano Plurianual.
2.2 O PROCESSO DE PLANEJAMENTO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Em relação ao antigo orçamento plurianual de investimentos, previsto na Constituição de
1967, o atual Plano Plurianual (PPA) apresenta duas vantagens: o prazo de vigência, compatível
com o período governamental, e o estabelecimento de metas, deixando-se de lado a prática de
fixação de dotações financeiras. Embora não seja mais obrigatória a utilização de dotações
financeiras no Plano Plurianual, há que se demonstrar sua viabilidade econômica, ou seja, a
indicação das fontes disponíveis de financiamento dos programas nele incluídos. Quanto ao
prazo, vigora a partir do segundo ano do mandato governamental, possibilitando, de um lado,
um mínimo de continuidade das ações de governo e, de outro, o tempo necessário de um ano
para que o programa da nova administração seja definido no Plano Plurianual a ser submetido
à apreciação do Poder Legislativo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
447
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
O texto constitucional também deixou clara a interligação do Plano Plurianual com os
orçamentos anuais, ao estabelecer a necessidade de compatibilidade entre ambos e instituir a
Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para dar prioridade às metas previstas no Plano Plurianual,
forçando a conexão entre esses instrumentos. A Constituição, ao estabelecer metas para o
período governamental, criou condições para permitir a compatibilidade entre plano e
orçamento, porque as dotações financeiras estabelecidas no antigo orçamento plurianual
desatualizavam-se em decorrência do processo inflacionário.
Ademais, não estabeleceu a obrigatoriedade de que as metas fossem detalhadas para cada
ano do período governamental. Essa função ficou para a Lei de Diretrizes Orçamentárias que,
anualmente, em função das condicionantes financeiras e conjunturais, prioriza qual “fatia” do
Plano Plurianual deve ser contemplada no Orçamento Anual (OA), dando adequada flexibilidade
para o seu cumprimento.
É verdade que o estabelecimento de metas não é tarefa simples. Há necessidade de um
exercício bastante intenso com os órgãos setoriais para distinguir as metas-meio e as metas-
fim, estabelecendo-se medidas de mensuração para elaboração do Plano Plurianual. A definição
dessas metas não deve ser tão genérica que possa permitir qualquer enquadramento e nem tão
detalhada que torne o Plano Plurianual inflexível. Por exemplo, estabelecer como metas-meio
quantas escolas e não quais escolas deverão ser construídas; como metas-fim, quantos alunos
serão atendidos.
Infelizmente, a definição da abrangência do Plano Plurianual não é suficientemente clara
no texto constitucional. As sucessivas emendas ocorridas durante o processo constituinte
acabaram por tornar a redação um pouco confusa.
3
A expressão “programas de duração
continuada”, contida no texto constitucional, pode levar à conclusão de que todas as ações
governamentais devam constar do Plano Plurianual, uma vez que a ação do setor público
caracteriza-se pela perenidade. Até os programas de natureza administrativa são contínuos no
tempo. Ao referir-se ao estabelecimento dos “objetivos e metas da administração pública para
as despesas de capital”, estaria o novo texto constitucional obrigando, por exemplo, que a
compra de um ventilador devesse constar do Plano Plurianual?
Nesse contexto, a regulamentação prevista no texto constitucional é fundamental para que
haja uniformização dos procedimentos relativos à elaboração do Plano Plurianual. O ideal
3
Prevê o artigo 165, § 1º, da CF que “a lei que instituir o Plano Plurianual estabelecerá, de forma regionalizada,
as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas
decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
448
seria que, em futura emenda constitucional, esse artigo fosse melhor explicitado, pela sua
fundamental importância.
O mais conveniente, para a exeqüibilidade de um plano que se transforma em lei e tenha
de ser observado nos orçamentos anuais do período governamental, é que seja restrito aos
projetos e às ações de expansão dos serviços colocados à disposição da comunidade,
consignando-se a previsão das despesas de manutenção dos serviços públicos atualmente
prestados apenas para demonstrar a viabilidade econômica do plano.
O segundo instrumento da sistemática, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, representa
importante papel no processo de planejamento concebido na Constituição de 1988. Como já se
afirmou, entre as atribuições previstas, a principal é definir a prioridade das metas estabelecidas
no Plano Plurianual. Outra função é a de antecipar o debate sobre o orçamento, permitindo a
adequada e prévia participação do Poder Legislativo e da sociedade.
A LDO conterá, conforme previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal,
4
um Anexo de Metas
Fiscais, pelo qual serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas
a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública para o exercício
a que se refere e para os dois seguintes. Esse anexo apresentará, também, avaliação do
cumprimento das metas fixadas para o ano anterior, demonstrativo das metas anuais e respectivos
cálculos, para evidenciar a sua consistência com as premissas e os objetivos da política econômica
nacional; mostrará a evolução do patrimônio líquido, avaliação da situação do sistema de
previdência local, se houver, estimativa e forma de compensação da renúncia de receitas e da
margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado.
Ainda segundo a LRF haverá outro documento a ser incluído na LDO, denominado Anexo de
Riscos Fiscais, no qual serão avaliados os passivos contingentes
5
e outros riscos capazes de
afetar as contas públicas, devendo ser informado de que forma essas questões serão
equacionadas, caso se concretizem. Geralmente esses riscos são representados por grandes
demandas em andamento, principalmente junto ao Poder Judiciário, que poderão culminar em
significativas indenizações a serem pagas pelo poder público. Nos Municípios com população
inferior a 50 mil habitantes, a obrigação de elaborar o Anexo de Metas Fiscais e o Anexo de
Riscos Fiscais só existirá a partir do exercício de 2005.
4
Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000.
5
Expressão criada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que entretanto deixou de especificar o seu real
significado.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
449
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
Mesmo com os acréscimos feitos pela LRF, é novamente sentida a ausência de regulamentação
da sistemática orçamentária destinada à definição de quais ações e demonstrativos deverão
deslocar-se do orçamento para a lei de diretrizes, possibilitando a antecipação do processo
decisório do orçamento, para que esta lei não se torne tão vazia como tem ocorrido, evitando
duplicidade com os procedimentos da lei orçamentária.
3 ORÇAMENTO
Como se notou na seção anterior, o processo de planejamento estabelecido na Constituição
em vigor poderia estar proporcionando melhores resultados se a regulamentação já estivesse
aprovada. De todo modo, a ausência de regulamentação não impede que a prática do
planejamento seja difundida permanentemente. No que respeita ao orçamento propriamente
dito, permanece em vigor a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, agora com status de lei
complementar, respeitados, é claro, os dispositivos específicos constantes da Carta Magna.
O primeiro aspecto a destacar é que o artigo 165, § 5º, da CF estabelece que a lei orçamentária
anual compreenderá:
“I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da
administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;
II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente,
detenha a maioria do capital social com direito a voto;
III – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados,
da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo
Poder Público”.
O orçamento fiscal e o da seguridade social, na prática, se transformam em um único
instrumento, pois até o momento não se encontraram justificativas convincentes para a sua
separação, especialmente no caso dos Municípios. O que tem sido feito, para atender ao
mandamento constitucional, é a identificação, no documento, das ações de caráter fiscal (F) e
ações da seguridade social (S). São ações da seguridade social as pertencentes às áreas de
saúde, previdência e assistência social (CF, art. 194). Todas as demais são consideradas ações
de caráter fiscal.
O orçamento de investimento das empresas nas quais o poder público detém o controle
acionário, pouco comum nos Municípios mas muito freqüente na União e nos Estados, de fato
acaba se constituindo em documento à parte. Sua operacionalização ainda carece de
regulamentação, pois essas empresas não seguem o regime de contabilidade pública, mas sim
o da legislação aplicável ao setor privado. Essa questão se acentua na medida em que apenas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
450
uma parte dos seus gastos (os investimentos) são submetidos ao crivo do Poder Legislativo, o
mesmo não ocorrendo em relação aos gastos de manutenção de suas atividades.
Ao orçamento aplicam-se alguns princípios, como o da unidade, pelo qual todos os Poderes
de cada unidade federada (Executivo, Legislativo e Judiciário), fundos, órgãos e entidades da
administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público,
devem estar incluídos, sem nenhuma exceção. Essa foi uma excelente medida adotada pelos
constituintes de 1988, pois no ordenamento jurídico anterior alguns tipos de órgãos tinham os
seus orçamentos aprovados por decreto, sem se submeterem ao Poder Legislativo.
Outro princípio é o da anualidade. O orçamento deve vigorar por um período de um ano,
coincidindo com o ano civil (Lei nº 4.320/64, art. 34), não sendo admitido qualquer outro tipo
de periodicidade. Pelo princípio da universalidade, o orçamento deve compreender todas as
receitas e despesas públicas (Lei nº 4.320/64, art. 6º). Gastar apenas o que se arrecada é uma
norma ditada pelo princípio do equilíbrio, que deve ser observado no orçamento. Infelizmente,
esse princípio tem sido pouco obedecido por considerável parte dos entes federados, o que tem
levado à acumulação de elevados déficits em suas contas. Em boa hora a Lei de Responsabilidade
Fiscal chegou para consagrar esse princípio ao estabelecer que a LDO deverá atendê-lo.
O princípio da exclusividade (CF, art. 165, § 8º) tem por objetivo assegurar que nenhum
dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa seja incluído na lei
orçamentária. As únicas exceções permitidas são as autorizações para abertura de créditos
suplementares e contratação de operações de crédito, inclusive as do tipo antecipação de
receita orçamentária (ARO).
6
Por fim, um princípio definido com muita clareza pelo artigo 56 da Lei nº 4.320/64 é o
princípio da unidade de tesouraria, assim redigido pelo citado dispositivo: “O recolhimento de
todas as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio de unidade de tesouraria, vedada
qualquer fragmentação para criação de caixas especiais”. Mesmo bem redigido, tem gerado
dúvidas na sua interpretação, mas a idéia geral que transmite, por uma questão de racionalidade,
é a de que qualquer receita ordinária arrecadada pode ser usada para pagar qualquer tipo de
despesa, sem prejuízo, é claro, da obrigatoriedade de cumprimento das vinculações legais e
constitucionais de recursos, como no caso do ensino, no qual existem várias vinculações e
subvinculações a serem observadas.
6
Operações ARO são empréstimos bancários destinados à regularização do fluxo de caixa. Não permitem o
aumento da despesa pública, pois essas operações devem ser quitadas dentro do próprio exercício em que
são contratadas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
451
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
O orçamento possui ainda outra característica interessante que de tempos em tempos é
foco de debates no Congresso Nacional. Trata-se do seu caráter meramente autorizativo, ou
seja, as ações e programas nele consignados não são de execução obrigatória pelo Executivo.
O contrário seria o caráter mandatório, pelo qual o Executivo estaria obrigado a executar as
ações e programas aprovados. Entretanto, na prática, grande parte dessas ações e programas
acaba se tornando obrigatória, não porque foi incluída no orçamento, mas em razão de direitos
de terceiros com origem na própria Constituição, na legislação comum, nas decisões judiciais
e nos contratos e ajustes firmados anteriormente.
3.1 ELABORAÇÃO DO ORÇAMENTO
A elaboração do orçamento deve estar ajustada às etapas anteriores do processo de
planejamento. As ações de governo a serem praticadas precisam estar compatibilizadas com as
diretrizes, objetivos e metas do PPA e priorizadas na LDO, sem o que não poderão ser nele
incluídas.
Quanto melhor estiver organizado o órgão responsável pela elaboração, quanto maior for
o domínio das definições adotadas nas etapas anteriores do processo e quanto maior for o
engajamento dos órgãos setoriais (secretarias, departamentos, etc.), melhor será a qualidade
da proposta. É elogiável o procedimento que algumas Prefeituras vêm adotando nos últimos
anos, de consultar diretamente a população, formando núcleos em cada bairro, para que os
cidadãos apresentem os seus anseios e suas prioridades. É preciso ressaltar, entretanto, que
essa participação popular será muito mais importante se ocorrer com mais intensidade nas
fases de elaboração do PPA e da LDO. A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece que, em
relação a esses três instrumentos, o Executivo é obrigado a estimular a participação popular e
a realizar audiências públicas durante os respectivos processos de elaboração.
No caso particular da educação, é recomendável que os diversos segmentos, como diretores
de escola, professores, pais de alunos e os conselhos, tenham oportunidade de participar do
processo. Aliás, em relação ao FUNDEF, o seu Conselho Municipal ou Estadual de
Acompanhamento e Controle Social tem por obrigação verificar se o orçamento contempla
corretamente as dotações que permitirão o uso dos repasses a serem feitos por aquele fundo.
A Lei nº 9.424/96 exige, em seu artigo 3º, § 7º, que os recursos do FUNDEF constem de programação
específica nos orçamentos municipais e estaduais, ou seja, devem figurar em atividades e
projetos distintos dos demais, inclusive daqueles que utilizam outros recursos da educação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
452
IMPORTANTE
Na verdade não são apenas os recursos do FUNDEF que devem figurar no
orçamento de forma destacada. Todas as dotações que utilizam recursos
vinculados devem ter o mesmo tratamento, como as ações de manutenção e
desenvolvimento do ensino, que utilizam os recursos provenientes dos 25%
das receitas resultantes de impostos, as que utilizam os recursos do salário-
educação, de convênios, de operações de crédito etc. Portanto, cada fonte de
recurso deve estar convenientemente identificada nos quadros detalhados do
orçamento.
Em linhas gerais e de acordo com o artigo 22 da Lei nº 4.320/64, a proposta orçamentária
a ser submetida ao Poder Legislativo deve conter:
(a) Mensagem, pela a qual o chefe do Executivo apresenta uma exposição circunstanciada
da situação econômico-financeira do ente federado correspondente, com demonstrativo da
dívida pública e outros compromissos exigíveis, exposição e justificação da política econômico-
financeira do governo e justificação da receita e da despesa. Quanto à receita, deve demonstrar
que as previsões são consistentes e factíveis. Em relação à despesa, deve abordar os principais
agregados (pessoal, serviços, dívida, investimentos etc.) e os programas de trabalho mais
importantes.
Conforme dispõe a LRF, deverá também ser apresentado um demonstrativo pelo qual fique
clara a compatibilidade da programação dos orçamentos com as metas fiscais estabelecidas na
LDO. Para Municípios com menos de 50 mil habitantes esse demonstrativo será exigido apenas
a partir de 2005.
(b) Projeto de lei de orçamento.
(c) Tabelas explicativas da receita e da despesa, de acordo com os anexos da Lei nº 4.320/
64 e de portarias expedidas pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, já de domínio
dos técnicos que atuam na área.
O prazo para remessa da proposta orçamentária ao Poder Legislativo, no caso da União, é
31 de agosto, mas em relação a Estados e Municípios os prazos devem ser fixados nas respectivas
Constituições e Leis Orgânicas. O orçamento deve ser devolvido à sanção do chefe do Executivo
até o final da sessão legislativa, podendo a LDO dispor sobre as medidas a serem adotadas caso
isso não venha a acontecer. Observe-se, portanto, que não existe, assim como não existia
anteriormente, a possibilidade de promulgação do orçamento por decurso de prazo e tampouco
a possibilidade de ser executado o orçamento que vigorou no exercício anterior.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
453
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
A lei orçamentária conterá dotação para reserva de contingência, calculada com base em
percentual da receita corrente líquida
7
, cuja forma de utilização deverá ser regulada na LDO. Essa
reserva se destina ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais
imprevistos. A LRF reafirma dispositivo constitucional de que a lei orçamentária não poderá
contemplar dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não
esteja previsto no Plano Plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão (CF, art. 167, § 1º).
3.2 LIMITES PARA AS DESPESAS COM PESSOAL
A LRF estabelece limites máximos para as despesas com pessoal,
8
calculados com base na
receita corrente líquida. Para a União, o percentual é de 50%; para Estados, Distrito Federal e
Municípios, 60%, com a seguinte distribuição entre os Poderes:
(a) União: 2,5% para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas; 6% para o Judiciário;
40,9% para o Executivo; e 0,6% para o Ministério Público da União.
(b) Estados e Distrito Federal: 3% para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas; 6%
para o Judiciário; 49% para o Executivo; e 2% para o Ministério Público.
(c) Municípios: 6% para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas, se houver; e 54%
para o Executivo.
Entretanto, no caso dos Municípios, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 25, que
define percentuais máximos para as despesas globais das Câmaras Municipais, para os seus
gastos com pessoal e com os subsídios dos vereadores, na seguinte conformidade:
(a) para a despesa total da Câmara Municipal, excluídos os gastos com inativos, foram
definidos percentuais, segundo a população de cada Município, variando de 8% a 5% das
receitas tributárias e transferências constitucionais;
7
A receita corrente líquida é obtida, no caso do Município, pelo somatório de todas as suas receitas
correntes, excluídas apenas as contribuições dos funcionários para o sistema próprio de previdência, se
houver, e as compensações previstas no artigo 201, § 9º, da CF, ou seja, os valores que o Município vier a
receber de outros sistemas públicos de previdência (INSS, por exemplo), a título de compensação em razão
de aposentadorias por ele concedidas a servidores que no passado contribuíram para esses sistemas.
Nesse conceito são computadas as receitas das compensações financeiras pela desoneração do ICMS – Lei
Kandire as correspondentes ao rateio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Nos Estados o critério de cálculo da receita corrente líquida é
praticamente o mesmo, deduzindo-se, também, o valor das transferências constitucionais que fazem aos
respectivos Municípios.
8
A Lei Rita Camata (LC nº 96/99) foi revogada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
454
(b) a despesa total com pessoal, inclusive subsídios dos vereadores, não poderá ser superior
a 70% da receita da Câmara Municipal;
9
(c) para os subsídios de cada vereador foram fixados percentuais, segundo a população
de cada Município, variando de 20% a 75% dos subsídios dos deputados estaduais do respectivo
Estado;
(d) a despesa total com os subsídios dos vereadores não poderá ultrapassar 5% da receita
do Município (redação da EC nº 1, que permanece em vigor).
Dessa forma, os gastos com pessoal das Câmaras de Vereadores deverão enquadrar-se
tanto nas normas da LRF como naquelas estabelecidas pela própria Constituição Federal.
3.3 PARTICIPAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO
No regime constitucional anterior à Carta de 1988, o Poder Legislativo participava do
processo de elaboração orçamentária apenas de forma simbólica. Não podia emendar o
orçamento e nem rejeitá-lo. Se não o votasse até 31 de dezembro, o Executivo promulgava a
proposta original por decurso de prazo. Eram tempos de um sistema político extremamente
fechado. Com a redemocratização do país e a volta ao Estado de Direito, especialmente após a
promulgação da Constituição de 1988, o Poder Legislativo recobrou grande parte do poder
que havia perdido. No caso do orçamento, foi restaurado o seu poder de emenda, assim como
foi abolido o instituto do decurso de prazo.
No Município, assim como nos Estados, Distrito Federal e na própria União, os princípios
são os mesmos: o orçamento deve ser votado pelos membros do Poder Legislativo
correspondente, que por sua vez podem alterá-lo por intermédio de emendas. O poder de emenda
não é, no entanto, ilimitado, estando sujeito às seguintes restrições (CF, artigo 166, § 3º):
(a) as emendas devem ser compatíveis com o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes
Orçamentárias;
9
A Câmara Municipal na verdade não possui receita, salvo pequenas exceções, já que para fazer frente a
seus gastos recebe duodécimos do Executivo. A interpretação que se deve dar a essa expressão, muito mal
escolhida pelo legislador, é justamente o montante dos duodécimos recebidos ou creditados mais as
pequenas receitas que eventualmente arrecada diretamente. Não se deve pensar no total das dotações do
órgão porque esse montante está sujeito a reduções ou acréscimos, em razão da necessidade de serem
obedecidos os parâmetros estabelecidos na LRF e de cumprimento das metas de resultado primário e
nominal constantes do Anexo de Metas Fiscais aprovado na LDO.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
455
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
(b) a indicação dos recursos necessários é obrigatória, admitidos apenas os provenientes
de anulação de outras despesas, não podendo, entretanto, incidir sobre:
dotações para pessoal e seus encargos;
serviço da dívida;
(c) nos demais casos, se relacionadas com a correção de erros ou omissões ou se referirem
aos dispositivos do texto do projeto de lei.
Ao chefe do Executivo é dado o direito de enviar ao Legislativo mensagem propondo
modificações no projeto já encaminhado, desde que ainda não iniciado o processo de votação
nas comissões técnicas. O projeto de lei orçamentária deve ser devolvido à sanção do chefe do
Executivo até o encerramento da sessão legislativa (ADCT, art. 35, § 2º, III). Isso faz concluir que
a proposta orçamentária não pode ser integralmente rejeitada. A despeito dessa norma, tem
sido comum, no âmbito federal, votar o orçamento após o encerramento da sessão legislativa,
já que não está prevista nenhuma sanção ao seu descumprimento, como ocorre com a LDO que,
enquanto não votada, impede que os parlamentares entrem em recesso no mês de julho.
Votado o projeto de lei orçamentária, segue-se a sanção do chefe do Executivo que, se
entender necessário, pode vetar qualquer dos seus dispositivos, valendo lembrar que os recursos
que acabarem sobrando em razão de veto ou emenda só poderão ser utilizados após autorização
legislativa específica (CF, art. 166, § 8º).
3.4 ALTERAÇÕES DO ORÇAMENTO
O orçamento aprovado, sancionado e promulgado pode ser modificado no curso do
exercício financeiro, pois trata-se de um instrumento dinâmico de administração que, como tal,
precisa estar permanentemente ajustado à realidade. Não é um documento estático que, uma
vez transformado em lei, não comporta alterações. É preciso lembrar, entretanto, que qualquer
modificação a ser introduzida no orçamento deve preservar o princípio do equilíbrio entre
receitas e despesas. Deve, também, manter preservadas as metas fiscais, os resultados nominal
e primário e o montante da dívida fixados no Anexo de Metas Fiscais da LDO. As modificações
no orçamento denominam-se créditos adicionais e classificam-se em três tipos:
Ø crédito adicional suplementar;
Ø crédito adicional especial;
Ø crédito adicional extraordinário.
O crédito adicional suplementar destina-se ao reforço de dotação que já consta do
orçamento, cujo valor revelou-se insuficiente no decorrer do exercício. O crédito adicional
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
456
especial destina-se a introduzir no orçamento já em execução uma nova ação governamental
(um novo projeto ou uma nova atividade), que não constou do orçamento inicial. Em ambos
os casos, é necessária prévia autorização legislativa e o ato de abertura do crédito dá-se por
decreto do chefe do Executivo.
Para abertura de um crédito adicional suplementar ou especial não basta a autorização
legislativa, sendo também necessária a existência de recursos para a sua cobertura que, segundo
a Lei nº 4.320/64, artigo 43, § 1º, podem ter origem: (i) no eventual superávit financeiro apurado
em balanço patrimonial do exercício anterior, observadas as respectivas vinculações; (ii) no
excesso de arrecadação; (iii) na anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de
outros créditos orçamentários autorizados em lei; e (iv) no produto de operações de crédito
autorizadas em forma que, juridicamente, possibilite ao Executivo realizá-las no exercício.
A utilização do excesso de arrecadação precisa estar demonstrada de forma convincente,
por cálculos que levem em conta as características de cada item de receita analisado e a tendência
que está sendo observada no exercício. Esse excesso deve ser considerado e calculado por
fontes, segundo suas vinculações legais e constitucionais, como as que existem na área de
educação. É o caso, por exemplo, das receitas resultantes de impostos, pois, do total arrecadado
a esse título nos Estados e Municípios, 25% devem ser destinados às despesas com manutenção
e desenvolvimento do ensino. Isso quer dizer que, se esse conjunto de receitas estiver
apresentando tendência que levará a uma receita maior do que a prevista no orçamento original,
25% desse excesso deverão também ser destinados ao ensino, conforme artigo 69, § 4º, da Lei
9.394/96.
A terceira forma possível de alterar o orçamento é por meio do crédito adicional
extraordinário, usado, conforme o artigo 167, § 3º, da CF, apenas em caso de despesas
imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.
Nesse caso não há necessidade de prévia autorização legislativa nem indicação de recursos,
devendo o chefe do Executivo comunicar o fato imediatamente ao Poder Legislativo. Seu valor
deverá ser deduzido, entretanto, das margens eventualmente disponíveis para futuras
suplementações com base no superávit financeiro ou no excesso de arrecadação.
O crédito adicional suplementar só pode ter vigência no exercício para o qual foi autorizado,
mas os créditos adicionais especiais e extraordinários, se autorizados nos últimos quatro meses
do ano, poderão ser reabertos no exercício seguinte, nos limites dos seus saldos. Qualquer
modificação que se pretenda fazer no orçamento, exclusive os créditos adicionais
extraordinários, deve compatibilizar-se com o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes
Orçamentárias.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
457
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
3.5 PROGRAMAÇÃO FINANCEIRA
Para execução do orçamento, o Executivo deve, segundo a LRF, até trinta dias após sua
publicação e de acordo com o que dispuser a LDO , fixar a programação financeira e o cronograma
de execução mensal de desembolso, para que haja sintonia entre o fluxo de receita e o pagamento
de despesas. Essa norma muda um pouco o que diz a Lei nº 4.320/64, que prevê a fixação de
cotas trimestrais, devendo agora ser mensais. Os recursos legalmente vinculados a finalidade
específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto da sua vinculação, ainda
que em exercício diverso daquele em que ocorreu o ingresso. Isso quer dizer que, no final do
exercício, as disponibilidades de caixa vinculadas a determinado tipo de despesa, deduzidos
os valores inscritos em restos a pagar, somam-se ao que for arrecadado no ano seguinte para o
mesmo tipo de aplicação. Aliás, a LRF prevê que a contabilidade evidencie, de forma destacada,
cada tipo de disponibilidade de caixa, segundo as suas vinculações.
Exemplo bem característico de fonte de recurso vinculado a finalidade específica, sujeito,
portanto, a uma programação financeira própria, é o FUNDEF, cujos valores são repassados ao
Município e ao Estado em uma conta especial aberta no Banco do Brasil, pela qual serão feitos
os pagamentos das despesas a ele vinculadas. Também as despesas com manutenção e
desenvolvimento do ensino (CF, art. 212) devem ter programação própria, em função das receitas
resultantes de impostos a elas vinculadas. O mesmo raciocínio é válido para os convênios que
o Município firma com o Estado e a União, e também em relação às operações de crédito
celebradas com instituições financeiras.
No curso do exercício, nos trinta dias após cada bimestre, os titulares de cada Poder, no
caso do Município o Executivo e a Câmara de Vereadores, deverão adotar medidas para limitar
os empenhos e os desembolsos, na forma regulada pela LDO, caso haja frustração de receitas
que implique o não-cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas
no Anexo de Metas Fiscais da LDO. Nos bimestres subseqüentes, se a tendência for revertida, as
limitações poderão ser liberadas, na mesma medida em que estiver ocorrendo a recuperação
das receitas. As limitações de empenho e desembolso não alcançam as despesas referentes a
obrigações constitucionais e legais, inclusive as destinadas ao pagamento do serviço da dívida.
A cada quadrimestre, deverá o Executivo demonstrar e avaliar o cumprimento das metas
fiscais em audiência pública na comissão permanente do Poder Legislativo encarregada dos
assuntos orçamentários e financeiros, geralmente denominada de Comissão de Planos,
Orçamento e Finanças, ou outra denominação equivalente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
458
4 CLASSIFICAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS
As receitas e despesas que figuram no orçamento são classificadas segundo códigos
padronizados nacionalmente, de acordo com dispositivos da Lei nº 4.320/64 e tabelas aprovadas
por portarias do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
4.1 CLASSIFICAÇÃO DA RECEITA
Segundo o artigo 11 da Lei nº 4.320/64, a receita é dividida em dois grandes grupos:
Receitas Correntes – São as receitas tributárias, de contribuições, patrimonial, agropecuária,
industrial, de serviços, e outras; e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de
outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas
classificáveis em Despesas Correntes.
Receitas de Capital – São as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos
de constituição de dívidas, da conversão, em espécie, de bens e direitos; os recursos recebidos
de outras pessoas de direito público ou privado, destinados a atender despesas classificáveis
em Despesas de Capital.
O esquema de classificação da receita, determinado pela Lei nº 4.320/64, art. 11, § 4º, é:
RECEITAS CORRENTES
Receita Tributária
Impostos
Taxas
Contribuição de Melhoria
Receita de Contribuições
Receita Patrimonial
Receita Agropecuária
Receita Industrial
Receita de Serviços
Transferências Correntes
Outras Receitas Correntes
RECEITAS DE CAPITAL
Operações de Crédito
Alienação de Bens
Amortização de Empréstimos
Transferências de Capital
Outras Receitas de Capital
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
459
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
Essas receitas são apresentadas de forma mais detalhada e com os respectivos códigos no
anexo à Lei nº 4.320/64, atualizado pela Portaria SOF nº 6, de 20.05.99, que apresenta uma
tabela aplicável a todas as esferas de governo e outra aplicável apenas à União. A primeira,
aplicável aos Municípios e aos Estados, está reproduzida na publicação Marcos Legais, do
Fundescola.
A tabela apresenta todas as receitas públicas até um determinado nível, padronizado
nacionalmente. Cada esfera de governo pode, ao especificar a receita nos seus orçamentos,
detalhar ainda mais cada rubrica a fim de atender às suas necessidades locais. Na preparação
do orçamento, cada ente federado apresentará a receita de acordo com a codificação oficial.
Como a arrecadação de receitas deve estar sancionada pela legislação, deve também ser
apresentado um quadro que indique, para cada rubrica, a respectiva legislação reguladora, a
fim de que fique bem caracterizado o embasamento legal de cada item a ser arrecadado.
4.2 CLASSIFICAÇÃO DA DESPESA
Diferentemente da receita, que possui um único esquema de classificação, a despesa é
classificada, para fins de elaboração e execução do orçamento, em três formas, a saber:
Ø classificação institucional;
Ø classificação funcional programática;
Ø classificação segundo a natureza ou classificação econômica.
4.2.1 CLASSIFICAÇÃO INSTITUCIONAL
A classificação institucional define em qual órgão e em qual unidade a despesa está alocada.
Esses órgãos e unidades são os que compõem o organograma oficial do respectivo ente da
Federação, conforme legislação local. Não podem ser criados órgãos e unidades apenas para fins
orçamentários. Para essa classificação, cada ente federado decide de que forma deseja classificar
os seus órgãos e unidades orçamentárias, não havendo para tal uma padronização nacional.
4.2.2 CLASSIFICAÇÃO FUNCIONAL PROGRAMÁTICA ANTIGA
Embora já esteja em vigor uma nova classificação, conforme a Portaria nº 42/99,
10
expedida
pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a antiga classificação funcional
programática continua em vigor para os Municípios até o exercício de 2001, após o qual também
passarão a utilizar a nova classificação. Essa classificação, a antiga, define a despesa em cada
10
Para a União, Distrito Federal e Estados, essa nova classificação está em vigor desde o exercício de 2000.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
460
órgão/unidade segundo as ações de governo nas diversas áreas de atuação, desde uma
classificação mais ampla, por funções de governo, até níveis mais detalhados, como programas,
subprogramas, projetos e atividades. É padronizada nacionalmente por portaria expedida pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, reproduzida na publicação Marcos Legais,
na seguinte conformidade:
Função de Governo (dois dígitos)
Programa (dois dígitos)
Subprograma (três dígitos)
Após o código do subprograma é acrescentado um novo dígito, indicativo de projeto ou
atividade. Se esse dígito for ímpar, trata-se de um projeto; se for par, indica uma atividade.
Segue-se um código de projeto ou atividade, definido na esfera local, não havendo padronização
para tal, podendo cada ente federado determinar a quantidade de dígitos que vai utilizar e a
respectiva denominação.
Considera-se projeto um instrumento de programação para alcançar o objetivo de um
programa, que envolve um conjunto de operações, limitadas no tempo, das quais resulta um
produto que concorre para a expansão ou o aperfeiçoamento da ação do governo. Considera-
se atividade um instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa, que
envolve um conjunto de operações que se realizam de modo contínuo e permanente, das quais
resulta um produto necessário à manutenção da ação do governo.
4.2.3 NOVA CLASSIFICAÇÃO FUNCIONAL PROGRAMÁTICA
Para a União, Distrito Federal e Estados, a partir de 2000, e para os Municípios, a partir de
2002, foi estabelecida uma nova classificação funcional programática, de acordo com portaria
expedida pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, já mencionada.
O objetivo pretendido com a adoção dessa nova classificação é agrupar a despesa pública
de acordo com os setores de atuação do governo, primeiro, de forma ampla, por funções e
subfunções, e, segundo, de forma mais detalhada, de acordo com os programas de trabalho
dos órgãos governamentais e respectivas ações a serem desenvolvidas, ou seja, por programas,
projetos, atividades e operações especiais.
Para fins de padronização em nível nacional, apenas as funções e subfunções foram
especificadas pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, ficando a cargo dos níveis
locais a especificação, da forma que mais lhes convierem, dos programas que serão utilizados
e a sua subdivisão em ações a serem praticadas por meio de projetos, atividades e operações
especiais.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
461
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
Um dos maiores objetivos pretendidos com essa mudança é a consolidação da sistemática
de planejamento, em que os programas de trabalho são criados através do Plano Plurianual,
portanto de acordo com as características locais de cada ente federado, estrutura essa a ser
observada, depois, pelas leis orçamentárias. Em resumo, funções e subfunções são obrigatórias
nos orçamentos e padronizadas em nível nacional; programas, projetos, atividades e operações
especiais são também obrigatórios mas sem padronização em nível nacional.
Para a área educacional, a boa notícia é que a educação compõe agora uma função exclusiva
(função 12), enquanto, na classificação antiga, compartilhava a função 08 com as áreas de
cultura, esportes e lazer.
Como ilustração, o quadro seguinte permite a visualização de como ficou a nova
classificação, comparativamente à classificação antiga:
Classificação antiga Classificação nova
Função Função
Programa Subfunção
Subprograma Programa
Projeto ou Atividade Projeto ou Atividade ou
Operações Especiais
Ao criar essa nova estrutura para a classificação funcional programática, o Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão definiu os seguintes conceitos:
(a) Função, o maior nível de agregação das diversas áreas de despesa que competem ao
setor público;
(b) Subfunção, uma partição da função, visa agregar determinado subconjunto de despesa
do setor público;
(c) Programa, o instrumento de organização da ação governamental para a concretização
dos objetivos pretendidos, sendo mensurado por indicadores estabelecidos no Plano Plurianual;
(d) Projeto, um instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa,
envolvendo um conjunto de operações, limitadas no tempo, das quais resulta um produto que
concorre para a expansão ou o aperfeiçoamento da ação de governo;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
462
(e) Atividade, um instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa,
envolvendo um conjunto de operações que se realizam de modo contínuo e permanente, das
quais resulta um produto necessário à manutenção da ação de governo;
(f) Operações Especiais, as despesas que não contribuem para a manutenção das ações de
governo, das quais não resulta um produto, e não geram contraprestação direta sob a forma de
bens ou serviços.
4.2.4 CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO A NATUREZA
A classificação segundo a natureza tem por finalidade identificar a despesa do ponto de
vista econômico, ou seja, pelos tipos de bens e serviços que estão sendo adquiridos ou tipos
de encargos que estão sendo pagos, diferentemente da funcional programática, que trata a
despesa do ponto de vista dos setores em que o governo atua e os programas e ações que
desenvolve.
De acordo com os artigos 12 e 13 da Lei nº 4.320/64, a classificação da despesa segundo a
natureza, por categorias econômicas, subcategorias e elementos desdobra-se em:
DESPESAS CORRENTES
Despesas de Custeio
Pessoal
Material de Consumo
Serviços de Terceiros e Encargos
Diversas Despesas de Custeio
Transferências Correntes
Transferências Intragovernamentais
Transferências Intergovernamentais
Transferências a Instituições Privadas
Transferências ao Exterior
Transferências a Pessoas
Encargos da Dívida Interna
Encargos da Dívida Externa
Contribuições para o PASEP
Diversas Transferências Correntes
DESPESAS DE CAPITAL
Investimentos
Obras e Instalações
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
463
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
Equipamentos e Material Permanente
Investimentos em Regime de Execução Especial
Constituição ou Aumento de Capital de Empresas Industriais ou Agrícolas
Diversos Investimentos
Inversões Financeiras
Aquisição de Imóveis
Aquisição de Outros Bens de Capital já em Utilização
Aquisição de Bens para Revenda
Aquisição de Títulos de Crédito
Aquisição de Títulos Representativo de Capital já Integralizado
Constituição ou Aumento de Capital de Empresas Comerciais ou Financeiras
Concessão de Empréstimos
Depósitos Compulsórios
Diversas Inversões Financeiras
Transferências de Capital
Transferências Intragovernamentais
Transferências Intergovernamentais
Transferências a Instituições Privadas
Transferências ao Exterior
Amortização da Dívida Interna
Amortização da Dívida Externa
Diferenças de Câmbio
Diversas Transferências de Capital
Regime de Execução Especial
Esta classificação de despesas
11
está atualizada de acordo com a Portaria SOF nº 08, de 04/
02/85, também reproduzida na publicação Marcos Legais. Referida portaria apresenta mais um
nível de detalhamento, por subelementos econômicos, acompanhado de especificação de cada
11
O governo federal elabora e executa o seu orçamento usando uma classificação da despesa por natureza
totalmente modificada. Criou, por lei ordinária que estabeleceu a sua LDO em determinado exercício do
passado, e com validade apenas na esfera federal, o grupo de natureza, que é uma novidade na linguagem
orçamentária, pelo menos para Estados e Municípios, e também um novo elenco de elementos de despesa,
contrariando, neste caso, o que dispõe a Lei nº 4.320/64, artigo13, que, pelo princípio da recepção, possui
status de lei complementar, já que regula matéria para a qual a Constituição exige lei com essa hierarquia.
è
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
464
item apresentado. É uma classificação obrigatória e padronizada nacionalmente, o que não
impede os Estados e Municípios de detalharem ainda mais os códigos oficiais, de modo a
atender às necessidades locais.
4.2.5 FONTE DE RECURSOS
Embora não prevista na legislação, a prática orçamentária acabou por consagrar uma quarta
modalidade de classificação da despesa, ou seja, a classificação por fonte de recursos a que
está vinculada cada dotação. Sua adoção não é obrigatória e tampouco existe uma padronização
a respeito. A Lei de Responsabilidade Fiscal valoriza e dá muita ênfase à identificação, na
contabilidade, dos recursos vinculados, o que de certa forma torna a utilização dessa classificação
indispensável, não só para o controle, como também para o gerenciamento e a transparência
da gestão fiscal.
4.2.6 DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA
O código completo de uma dotação orçamentária é formado pela conjugação das três
classificações apresentadas. É identificada pelo órgão/unidade a que pertence, pela classificação
funcional programática, pela classificação segundo a natureza e, se adotada, também pela
classificação por fonte de recursos. Após o código numérico figura o valor da dotação.
Respeitadas eventuais variações que podem ser encontradas nos diversos orçamentos, um
exemplo de dotação orçamentária poderia ser:
Portanto, grupo de natureza não existe legalmente nos níveis estadual e municipal. Agora, a Lei de
Responsabilidade Fiscal, que é uma lei complementar, cita expressamente essa modalidade de classificação
da despesa. Poder-se-ia concluir que o grupo de natureza teria sido institucionalizado para todas as esferas
de governo, mas, ainda assim, faltaria a regulamentação de como se comporia essa classificação. O mal
disso tudo, por falta de maior empenho por parte do governo federal e do Congresso Nacional, é que a
classificação orçamentária da despesa ficou sem uniformização para todas as esferas. O pior é que alguns
Estados, São Paulo entre eles, e algumas Prefeituras estão adotando essa classificação, ao arrepio da lei. É
verdade, também, que algum esforço foi desenvolvido para regularizar a questão, por meio de projeto de
lei complementar apresentado pelo deputado federal Arnaldo Madeira (SP), mas que acabou sendo anexado
ao projeto de lei complementar que trata das finanças públicas e regulamenta a sistemática de planejamento
estabelecida no artigo 165 da Constituição. Infelizmente, o relator, na Câmara dos Deputados, do projeto de
lei que versava sobre a responsabilidade fiscal, não se lembrou de incluir essa regulamentação, o que teria
sido de grande valia para Estados e Municípios e para a uniformização dos orçamentos em todas as
esferas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
465
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
Observe-se que no exemplo, por se tratar de orçamento municipal, foi utilizada a
classificação funcional programática antiga.
4.3 ENQUADRAMENTO DE DESPESAS
O enquadramento correto das despesas, na fase de execução do orçamento, segundo as
classificações apresentadas, é deveras importante na gestão fiscal, pois erros e desvios de
finalidade prejudicam o gerenciamento e, sobretudo, o controle social das ações que estão
sendo executadas. Infelizmente, ocorrem muitos problemas dessa natureza. Erros são cometidos,
mas uma proporção muito significativa provém de práticas muitas vezes utilizadas para burlar
o controle orçamentário. É preciso afastar de vez a máxima de que “a execução do orçamento
deve ajustar-se à vontade do chefe do Executivo, porque é ele quem decide”, quando o correto
é executar as ações que foram previamente aprovadas no processo de planejamento, do qual o
orçamento faz parte.
Essa questão torna-se particularmente importante na área de educação, que utiliza
intensamente dotações vinculadas, em face do mandamento contido no artigo 212 da
Secretaria Municipal de Educação (órgão)
Departamento de Ensino Fundamental (unidade administrativa)
Educação e Cultura (função de governo)
Ensino Fundamental (programa)
Ensino Regular (subprograma)
Manutenção do Ensino Fundamental à Conta do FUNDEF (atividade)
Despesa Corrente (categoria econômica)
Despesa de Custeio (subcategoria econômica)
Serviços de Terceiros e Encargos (elemento econômico)
Outros Serviços e Encargos (subelemento econômico)
Recursos do FUNDEF (fonte de recursos)
06 01 08 42 188 2113 3 1 3 2 07 - R$ 10.000,00
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
466
Constituição, determinando que pelo menos 25% das receitas resultantes de impostos dos
Estados e Municípios sejam utilizados na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Como exemplos de casos de erros e desvios de finalidade, podem ser citados: registro de
gastos com pessoal em rubrica de serviços e vice-versa; gastos de um órgão ou unidade
registrados em outro; enquadramento de despesas com inativos e pensionistas fora da função
15 (assistência e previdência); classificação de despesas com segurança, saúde e assistência
social na função 08 (educação e cultura); ocultação de receita resultante de impostos ou sua
classificação em outra rubrica, não sujeita à vinculação em favor do ensino.
Outra situação, que também merece atenção, é o caso de bens adquiridos, serviços prestados
ou prédios construídos por conta, por exemplo, de dotações do ensino, cujos destinos sejam
outras áreas que não a de educação. Se um ônibus foi adquirido com recursos do ensino
fundamental, não pode tal veículo ser utilizado, por exemplo, na área de esportes e nem
mesmo no transporte de estudantes universitários, e assim por diante.
A atenção precisa ser redobrada ao se efetuar o enquadramento das despesas nas
correspondentes dotações, pois, além das instâncias tradicionais de controle, a participação
da sociedade, como a que existe em relação aos recursos do FUNDEF, tende a ser mais vigorosa,
em face dos mecanismos que a Lei de Responsabilidade Fiscal criou para esse tipo de atuação
dos cidadãos no controle social da administração pública.
5 EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA
O orçamento só terá validade legal depois de apreciado e aprovado pelo Poder Legislativo
correspondente e transformado em lei pelo chefe do Executivo. Iniciado o exercício e
estabelecida a programação financeira (cotas mensais de desembolso), passa-se à fase de
execução orçamentária. As receitas, à medida que vão sendo arrecadadas, são contabilizadas
pelo regime de caixa e classificadas na forma já examinada. As despesas seguem um ritual
diferente e passam obrigatoriamente pelos seguintes estágios:
Ø empenho;
Ø liquidação;
Ø pagamento.
O empenho é o estágio pelo qual registra-se previamente no sistema de contabilidade uma
determinada despesa a ser realizada, abatendo-se do saldo da respectiva dotação o valor
correspondente e emitindo-se, em nome do favorecido, um documento denominado “nota de
empenho”. Essa fase tem por objetivo assegurar que determinada despesa está garantida por
recursos do orçamento, já que nenhum gasto público pode ocorrer sem que haja, previamente,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
467
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
recursos orçamentários disponíveis. O agente público que realizar uma despesa sem o prévio
e necessário empenho estará praticando uma irregularidade e, em razão disso, poderá vir a ser
responsabilizado.
O estágio seguinte é a liquidação, que ocorre imediatamente após a realização da despesa.
Consiste na verificação formal, diante dos documentos comprobatórios, como faturas e notas
fiscais, de que os bens adquiridos foram entregues ou os serviços, efetivamente prestados, nos
termos em que foram autorizados ou contratados. O responsável pelo recebimento dos bens
ou serviços deve atestar essa regularidade para possibilitar o pagamento na respectiva data de
vencimento. A cada empenho pode corresponder uma liquidação total ou várias liquidações
parciais, sendo estas muito comuns nos casos de entrega parcelada de bens, na prestação de
serviços continuados e na realização de obras públicas.
O terceiro e último estágio da despesa é o pagamento propriamente dito, determinado
pela autoridade competente e processado pelo serviço de tesouraria, observada a data de
vencimento e a ordem cronológica, conforme preceitua a Lei nº 8.666/93, que regula as licitações
e contratos no setor público. Observar a ordem cronológica significa dizer que as despesas
mais antigas devem ser pagas antes das despesas mais novas, ou seja, de acordo com as datas
de vencimento, isso tudo para evitar que a autoridade pública prejudique alguém em benefício
de outrem. A ordem cronológica das despesas a serem pagas deve ser organizada por fontes de
recurso, ou seja, uma lista para cada fonte.
Além dos aspectos orçamentários e contábeis examinados, a despesa pública deve submeter-
se a outros requisitos de ordem legal. Por exemplo, o pagamento de servidores só pode ser
feito se sua admissão ocorreu regularmente nos termos da legislação específica; o pagamento
de subvenções sociais, se autorizado por lei; o pagamento de juros e amortização de empréstimo,
se houve contrato firmado com instituição financeira após autorização legislativa e dos órgãos
federais competentes.
No caso de aquisição de bens ou contratação de serviços e obras existe, na verdade, outra
etapa que antecede o próprio empenho, que é o processo de escolha do fornecedor. A Lei nº
8.666/93 prevê a realização de certames licitatórios para a aquisição de bens e contratação de
serviços, em função do seu tipo e do valor estimado. Pequenas despesas, abaixo de
determinados valores fixados pela referida lei, ficam dispensadas da realização de licitações.
Mas, mesmo nesses casos, a administração, pelo seu setor de suprimentos, deve realizar
consultas a vários fornecedores, a fim de que as compras sejam sempre efetuadas nas condições
mais favoráveis para o poder público.
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MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
468
5.1 REGIME DE ADIANTAMENTO
A realização de despesas pode ocorrer, excepcionalmente, pelo regime de adiantamento
de que trata o artigo 68 da Lei nº 4.320/64. Aplica-se aos casos de despesas expressamente
definidas em lei local, e consiste na entrega de numerário a servidor público, sempre precedida
de empenho na dotação própria, para o fim de realizar despesas que não possam subordinar-
se ao processo normal de aplicação. Não pode ser concedido adiantamento a servidor que
estiver em alcance ou que já seja responsável por dois adiantamentos anteriores.
Esta foi uma forma inteligente que a legislação encontrou para os casos de despesas de
diminuto valor e, principalmente, as que devam ser realizadas fora da sede da repartição por
agentes da administração em viagem. É preciso, entretanto, muito cuidado nessa regulamentação,
para evitar que a exceção se torne regra. A utilização do regime de adiantamento não elimina
a necessidade de cumprimento de normas legais aplicáveis à gestão publica, especialmente as
relativas a licitações e contratos.
O servidor que utilizar esse regime deve ser proibido de utilizar conta bancária particular
para movimentar o dinheiro recebido, devendo o setor financeiro abrir conta especial em
estabelecimento de crédito oficial. Na prestação de contas, a ser efetuada em prazo definido
em lei, o servidor, além de apresentar os documentos comprobatórios da despesa, deve também
juntar o extrato bancário da conta, para que o controle interno possa aferir se não houve
irregularidades.
O regime de adiantamento é o instrumento adequado para possibilitar aos diretores de
escola terem em mãos numerário suficiente para fazer frente a pequenas despesas que não
podem se sujeitar às delongas que caracterizam o processo normal. Por meio do adiantamento
poderá o diretor adquirir materiais para pequenos reparos no prédio, como vidros, tinta,
fechaduras, material para conserto de telhados, paredes, etc.; materiais escolares e pedagógicos
não existentes no almoxarifado; materiais de limpeza e higiene; contratação de pequenos
serviços, inclusive palestras, e transporte para atividades externas. É preciso considerar,
entretanto, que os materiais e serviços utilizados pela escola de forma contínua e previsível
devem subordinar-se ao regime normal, pois é o departamento de suprimentos ou órgão
equivalente que detém melhores condições para bem efetuar uma compra ou contratação, em
face da sua especialização na área, por dispor de um cadastro de fornecedores e por realizar
operações em lotes econômicos, proporcionando economia de escala.
O regime normal e o regime de adiantamento não eliminam a possibilidade de adoção de
outras formas de descentralização no uso dos recursos, como a definição, por lei local, de um
sistema que permita o repasse à Associação de Pais e Mestres da escola, a título de subvenção,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
469
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
desde que esta possua personalidade jurídica própria e seja uma sociedade civil sem fins
lucrativos, aliás sistema que vem sendo utilizado pelo governo federal no Programa Dinheiro
Direto na Escola.
5.2 RELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA
Já previsto na Constituição de 1988 (art. 165, § 3º), o Relatório Resumido da Execução
Orçamentária deverá ser publicado até trinta dias após o encerramento de cada bimestre e será
composto de: (i) balanço orçamentário, contendo as receitas por fonte, informando as realizadas
e a realizar, bem como a previsão atualizada; as despesas por grupo de natureza, discriminando
a dotação para o exercício, a despesa liquidada e o saldo; (ii) demonstrativos da execução das
receitas, por categoria econômica e fonte, especificando a previsão inicial, a previsão atualizada
para o exercício, a receita realizada no bimestre, a realizada no exercício e a previsão a realizar,
bem como das despesas, por categoria econômica e grupo de natureza, discriminando dotação
inicial, dotação para o exercício,
12
despesas empenhada e liquidada, no bimestre e no exercício,
e despesas por função e subfunção.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº 9.394/96, em seu
artigo 72, esse relatório deve conter todas as receitas resultantes de impostos sobre as quais
incide o percentual vinculado a manutenção e desenvolvimento do ensino, devendo essas
despesas estarem igualmente especificadas no demonstrativo
O Relatório Resumido da Execução Orçamentária deve ser acompanhado de demonstrativo
com a apuração da receita corrente líquida e a previsão do seu desempenho até o final do
exercício, receitas e despesas previdenciárias, dos resultados nominal e primário, das despesas
com juros, dos restos a pagar, por Poder e órgão, com os valores inscritos, os pagamentos
realizados e o montante a pagar. No último bimestre do exercício o relatório em questão deve
ser acompanhado, também, de demonstrativos que indiquem o atendimento à norma
constitucional que veda a realização de operações de crédito em montante superior ao valor
das despesas de capital, das projeções atuariais dos regimes de previdência e da variação
patrimonial, evidenciando a alienação de ativos e a aplicação dos recursos dela decorrentes.
Sendo o caso, deverão ser apresentadas justificativas pela imposição de limites aos empenhos
e frustração de receitas, com especificação das medidas adotadas. A LRF faculta aos Municípios
com menos de 50 mil habitantes a divulgação desse demonstrativo semestralmente.
12
Dotação para o exercício deve ser entendida como a dotação inicial mais as suplementações efetuadas e
a dedução da parte cancelada para suplementação de outras dotações.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
470
O Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o demonstrativo que deve acompanhá-
lo deverão ser elaborados de forma padronizada, segundo modelos que poderão ser atualizados
pelo Conselho de Gestão Fiscal a ser instituído por lei federal.
5.3 RELATÓRIO DE GESTÃO FISCAL
Ao final de cada quadrimestre, cada titular de Poder ou órgão, no caso do Município o
prefeito e o presidente da Câmara de Vereadores, deverá emitir o Relatório de Gestão Fiscal,
que conterá comparativo dos limites de que trata a LRF com os montantes relativos: (i) à despesa
total com pessoal, distinguindo a com inativos e pensionistas; (ii) às dívidas consolidada e
mobiliária; (iii) à concessão de garantias; (iv) às operações de crédito, inclusive por antecipação
de receita; e (v) às despesas com juros. Deverá o relatório indicar, ainda, as medidas corretivas
adotadas ou a adotar, se ultrapassado qualquer dos limites. No último quadrimestre, deverão
ser apresentados anexos demonstrando os montantes das disponibilidades de caixa em 31 de
dezembro, os restos a pagar inscritos e as despesas que não puderam ser inscritas por falta de
disponibilidade de caixa, a comprovação do pagamento das operações de crédito por
antecipação de receita orçamentária (ARO) e a comprovação de que no último ano do mandato
essas operações não foram realizadas.
O Relatório de Gestão Fiscal deverá ser publicado até trinta dias após o encerramento do
quadrimestre, com amplo acesso ao público, inclusive por meio eletrônico, e sua preparação
deverá seguir modelos padronizados, atualizados pelo Conselho de Gestão Fiscal, já
mencionado. Os Municípios com população inferior a 50 mil habitantes poderão publicar esse
relatório semestralmente.
6 CONTROLE DA GESTÃO ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA
Para complementar as etapas anteriores, nas quais foram abordados aspectos técnicos do
sistema de planejamento e orçamento, falta tratar da maneira como a gestão orçamentária e
financeira deve ser controlada, não só em relação ao cumprimento das normas legais e técnicas,
mas também em relação aos resultados alcançados, os quais devem ser cotejados com os
objetivos e metas estabelecidos na fase de planejamento, o que, em última análise, vai indicar
se houve de fato desenvolvimento em benefício dos cidadãos, principalmente daqueles que
mais dependem de políticas públicas.
O controle é uma das principais funções numa administração que se diz eficiente, seja
qual for o tipo de organização. No setor público, não poderia ser diferente, pois sem um
controle de qualidade dificilmente se chega a bons resultados. Suas formas de execução podem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
471
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
ter variações, mas o que se espera é a garantia de que o sistema funcione e produza resultados.
No setor público, a Lei nº 4.320/64, artigo 75, prevê que o controle da execução orçamentária
compreenderá:
(a) a legalidade dos atos de que resultem a arrecadação da receita ou a realização da
despesa, o nascimento ou a extinção de direitos e obrigações;
(b) a fidelidade funcional dos agentes da administração responsáveis por bens e valores
públicos;
(c) o cumprimento do programa de trabalho, expresso em termos monetários e em termos
de realização de obras e prestação de serviços.
Em suma, a lei exige que o controle deve compreender todos os aspectos descritos
anteriormente, não só quanto à legalidade dos atos e da fidelidade dos servidores responsáveis
por bens e valores, como também pelos resultados financeiros e físicos das ações de governo
praticadas, ou seja, o cumprimento dos objetivos e metas definidos na fase de planejamento.
Com a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, a função de controle foi
significativamente valorizada, na medida em que criou mecanismos para o seu fortalecimento,
como o detalhamento do Relatório Resumido da Execução Orçamentária, já previsto na
Constituição, e a criação do Relatório de Gestão Fiscal, que os titulares dos Poderes deverão
divulgar a cada quadrimestre, pelo qual se aferirá o cumprimento dos parâmetros e limites
fiscais previstos na legislação. Para facilitar o controle social, a LRF assegura absoluta
transparência na gestão fiscal ao prever ampla divulgação, inclusive por meios eletrônicos de
acesso público, dos planos, orçamentos, Leis de Diretrizes Orçamentárias, prestações de contas,
pareceres prévios dos Tribunais de Contas, Relatório Resumido da Execução Orçamentária e
Relatório de Gestão Fiscal. Ainda de acordo com essa lei, na elaboração dos planos, diretrizes
orçamentárias e orçamentos deverá haver incentivo à participação popular e realização de
audiências públicas. As contas apresentadas ficarão à disposição de qualquer cidadão ou
instituição da sociedade, durante todo o ano, para consulta e apreciação.
O controle é exercido em duas instâncias: controle interno e controle externo. Cada Poder
deve instituir um sistema de controle interno para efetuar a fiscalização dos atos praticados
pelos agentes públicos, por meio de rotinas próprias, relatórios, exame de documentos contábeis,
conferência de bens, tomada de contas, levantamentos etc. Os aspectos legais devem ser
verificados prévia, concomitante e subseqüentemente aos atos praticados. Ao respectivo órgão
central compete o exame do cumprimento dos objetivos e metas fixados nos instrumentos de
planejamento e orçamento, o PPA, a LDO e o OA.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
472
Os órgãos setoriais (secretarias, autarquias, fundações etc.) têm responsabilidades no
sistema de controle interno, já que participam diretamente da execução orçamentária e precisam
cumprir a lei de orçamento. Caso característico é o da Secretaria Municipal ou Estadual de
Educação ou órgão equivalente, responsável pela aplicação dos recursos vinculados ao ensino.
Essa responsabilidade do órgão educacional compreende o cumprimento do artigo 212 da
Constituição, que vincula 25% das receitas resultantes de impostos à manutenção e
desenvolvimento do ensino, dos quais 60% devem ser aplicados no ensino fundamental. Além
disso, é responsável pela aplicação dos recursos recebidos do FUNDEF, atentando para o fato de
que todo o montante deve ser aplicado no ensino fundamental, dos quais 60%, no mínimo, no
pagamento dos profissionais do magistério e na capacitação de professores leigos. É também
responsável pela correta aplicação dos recursos recebidos do Estado, provenientes da cota do
salário-educação, além de outros recursos decorrentes de convênios celebrados.
A saúde financeira do Município, bem como dos Estados e da própria União, pode ser
avaliada pelo cálculo de indicadores orçamentários e financeiros, como, por exemplo:
Resultado Orçamentário – diferença entre a receita orçamentária arrecadada e a despesa
orçamentária realizada. Se positiva, houve superávit orçamentário; se negativa, houve déficit
orçamentário;
Resultado Nominal total das receitas menos o total das despesas, excluídas as
amortizações da dívida e as operações de crédito. Inclui os juros nominais efetivamente pagos
e recebidos, no conceito de competência;
Resultado Primário – total das receitas menos o total das despesas, excluídas as amortizações
da dívida, as operações de crédito e os juros nominais no conceito de competência;
Resultado Financeiro – diferença apurada no balanço patrimonial entre o ativo financeiro
e o passivo financeiro. Nesse caso, leva-se em conta a situação financeira acumulada em todos
os exercícios anteriores. É um indicador muito importante, que mostra o maior ou menor grau
de liquidez da entidade;
Índice de Endividamento – valor do estoque da dívida em relação à receita corrente líquida
do ano; e valor do serviço da dívida (amortização mais juros) do ano, também em relação à
receita corrente líquida;
Despesas com Pessoal – despesa total com pessoal, inclusive encargos, inativos e pensionistas
pagos com recursos do Tesouro, em relação à receita corrente líquida.
O controle externo é executado pelo Poder Legislativo, a quem cabe o julgamento das
contas do chefe do Executivo, com o objetivo de verificar a probidade da administração, a
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
473
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO
José Carlos Polo
guarda e legal emprego dos dinheiros públicos e o cumprimento do Plano Plurianual, Lei de
Diretrizes Orçamentárias e Orçamento Anual. Como o Legislativo não conta com estrutura
técnica para realizar diretamente essa tarefa, é auxiliado pelo Tribunal de Contas, que realiza
auditorias, examina as prestações de contas apresentadas, processos de licitação, atos de
nomeação de servidores, cobrança dos tributos etc.
No caso específico dos Municípios, as contas prestadas pelo prefeito incluirão, além das
suas próprias, as da Câmara Municipal, as quais receberão, separadamente, parecer prévio. O
resultado da apreciação da prestação de contas, julgadas ou tomadas, deverá ser amplamente
divulgado. Os Tribunais de Contas terão prazo de 60 dias para emitir parecer conclusivo sobre
as contas apresentadas, a contar do seu recebimento, podendo as Constituições estaduais
prescreverem prazos diferentes. No caso dos Municípios que não sejam capitais e que tenham
menos de 200 mil habitantes, o prazo é de 180 dias. Os Tribunais de Contas não poderão
entrar em recesso enquanto existirem contas pendentes de parecer prévio.
Além da documentação contábil, relatórios e demonstrativos exigidos, a prestação de contas
evidenciará o desempenho da arrecadação em relação à previsão, destacando as providências
adotadas no âmbito da fiscalização das receitas e combate à sonegação, as ações de recuperação
de créditos nas instâncias administrativa e judicial, bem como as demais medidas para
incremento das receitas tributárias e de contribuições. Será dada, também, ênfase ao atingimento
das metas estabelecidas na LDO, aos limites e condições para realização de operações de crédito
e inscrição em restos a pagar, às medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal
ao respectivo limite, se for o caso, ao cumprimento dos limites da dívida consolidada e mobiliária,
à destinação dos recursos obtidos com alienação de ativos e ao cumprimento do limite de
gastos totais de cada um dos Poderes.
Ainda no caso específico dos Municípios, o Tribunal de Contas, após realizar o seu trabalho,
emite parecer conclusivo sobre as contas municipais, dizendo se estão regulares ou não. Esse
parecer é votado pela Câmara Municipal, e só pode ser rejeitado mediante dois terços dos
votos dos vereadores. Contas rejeitadas de uma administração podem ensejar, junto ao Poder
Judiciário, procedimentos específicos de responsabilização, civis ou criminais, dos agentes
que deram causa a irregularidades, assegurado amplo direito de defesa. Eventuais atos de
improbidade administrativa, praticados pelo prefeito, podem levar a Câmara Municipal a decretar
a cassação de seu mandato, após processo regular e garantido amplo direito de defesa.
Tramita pelo Congresso Nacional, em complemento à Lei de Responsabilidade Fiscal, o
Projeto de Lei nº 621, que objetiva definir os crimes contra a administração fiscal, prevendo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
474
punições aos infratores da referida lei, que variam de penas limitadoras da liberdade, de um a
quatro anos de prisão, ou, conforme o caso, de perda de cargo e inabilitação para o exercício
de função pública por cinco anos.
Mas isso não é tudo. Hoje em dia existem outras instâncias de controle da gestão pública,
como os mais variados conselhos comunitários existentes principalmente nas áreas sociais. O
exemplo mais característico é o Conselho Municipal ou Estadual de Acompanhamento e Controle
Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério (FUNDEF), que tem por missão fiscalizar o uso do dinheiro que a Prefeitura e o
Estado recebem do referido Fundo para aplicação exclusivamente no ensino fundamental público.
Qualquer cidadão pode denunciar irregularidades que vier a constatar na administração
pública. As denúncias podem ser dirigidas ao Poder Legislativo correspondente, aos conselhos
comunitários, aos Tribunais de Contas e ao próprio Ministério Público, que pode designar um
promotor de Justiça para realizar investigações e propor ao juiz de Direito a responsabilização
de qualquer agente público que tenha praticado irregularidades danosas ao erário. A aprovação
das contas do Executivo pelo respectivo Poder Legislativo não elimina a possibilidade de
apreciação de casos específicos por parte do Poder Judiciário, caso fique comprovada a prática
de atos lesivos ao interesse público.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Constituição da República Federativa do Brasil – 1988.
Lei Federal n
o
4.320/64 – Estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle
dos orçamentos públicos.
Lei Complementar Federal n
o
101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.
Lei Federal n
o
9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Lei Federal n
o
9.424/96 – Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF.
Portaria SOF n
o
06/99 – Atualiza e consolida a classificação da receita.
Portaria n
o
9/74, do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral – Atualiza a classificação
da despesa por funções. (Alterações efetuadas pelas Portarias do mesmo ministério n
o
4/
75, 25/76, 36/80 e 36/89).
Portaria SOF n
o
08/85 – Explicita os códigos dos elementos e subelementos de despesa.
Portaria MP n
o
42/99 – Define novo sistema de classificação da despesa por funções e subfunções
e revoga portarias anteriores.
POLO, José Carlos e GIOMI, Waldemar. O sistema de planejamento e orçamento do setor público
brasileiro. Trabalho elaborado para o IPEA em 1994.
MÓDULO V
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O
SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
476
SUMÁRIO EXECUTIVO
É FATO NOTÓRIO QUE EXISTEM CRIANÇAS E ADOLESCENTES fora da escola e sujeitos à repetência
escolar e esse fato deve ser analisado e enfrentado como um problema que exige providências
coletivas. Essa tarefa compete à rede de atendimento, que deve priorizar os direitos e interesses
de crianças e adolescentes, principalmente aqueles que encontram dificuldades para integrarem-
se no sistema regular de ensino.
Dentre os principais atores integrantes da rede de atendimento, destaca-se o Conselho
Tutelar, que foi instituído, também, com a finalidade de resgatar e/ou prevenir os direitos
infanto-juvenis. No âmbito da proteção do direito à educação, o Conselho Tutelar interage
com os demais parceiros da rede, participando de programas de proteção alternativos e
transitórios, tais como de abrigos, da casa-aberta, da escola-aberta e da educação social.
Na interface do trabalho protetivo, esses organismos podem instituir programas outros,
de caráter permanente, como a materialização das próprias políticas sociais básicas, dentre
elas, a educação, o apoio sócio-familiar, os programas sócio-educativos, de saúde etc., que
possibilitem a cooperação no atendimento.
A demonstração dessa articulação terá como sede o território municipal. É ali que as ações
serão planejadas e desenvolvidas; é no Município que vivem os protagonistas dessas ações: as
crianças e os adolescentes. É, portanto, no âmbito municipal que se constituem as políticas de
proteção especial. Articulados em rede, os programas que a compõem estruturam-se em torno
de demandas concretas, vivenciadas no dia-a-dia.
A escola terá um papel indelegável na conquista e manutenção da cidadania. Com uma
grande incidência na produção de valores, hábitos, atitudes, comportamentos e conhecimentos,
a escola é uma aliada fundamental na produção de uma cultura de respeito aos direitos e na
vigilância para prevenir sua violação.
Os Conselhos Tutelares e as escolas deverão manter um canal de comunicação aberto
para a troca de informações e procedimentos ágeis, quando identificarem a violação de quaisquer
direitos de crianças e adolescentes.
Essa parceria produz resultados positivos na comunidade, que passa a colaborar, também,
com seus recursos, num propósito de popularizar o direito e o acesso às garantias constitucionais,
conferidas pelo status da cidadania, possibilitando a redução da violência e, principalmente,
prevenindo a violação dos direitos.
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
477
13
* Filósofo, oficial de Políticas Públicas e Direitos do UNICEF.
CAPÍTULO
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
MarioVolpi*
SUMÁRIO
1 PROTEÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL ..... 478
2 CONSELHOS TUTELARES, PROGRAMAS DE PROTEÇÃO ESPECIAL E SISTEMA EDUCACIONAL ..... 480
2.1 SERVIÇOS DE PROTEÇÃO TRANSITÓRIOS ..... 481
2.2 SERVIÇOS DE PROTEÇÃO PERMANENTES ..... 484
3 A ATUAÇÃO EM REDE ..... 487
4 A CIDADANIA COMO OBJETIVO COMUM ..... 488
5 A ESCOLA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS ..... 491
6 APLICAÇÃO E EXECUÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS: ROTINAS E PROCEDIMENTOS ..... 492
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 494
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
478
1 PROTEÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL
O discurso da proteção social vem sendo repetido ultimamente por atores sociais de tantos
e tão diferentes cores políticas e ideológicas e transformou o conceito em sentido tão ambíguo
que, para citação da expressão, torna-se sempre necessário um complemento que a adjetive e
qualifique. Até o Banco Mundial e o BID incorporaram a expressão aos seus contratos e, para
concederem a liberação de empréstimos ao governo brasileiro, estão condicionando-a à
comprovação do investimento brasileiro num conjunto de 22 programas de orçamento batizado
de Rede de Proteção Social.
Estes programas são:
Na área da educação: Livro Didático; Saúde do Estudante; Merenda Escolar; Gestão
Eficiente; Complemento ao FUNDEF; FUNDESCOLA.
Na área do trabalho: Manutenção do Seguro-Desemprego; Abono Salarial; Qualificação
Profissional.
Na área da saúde: Combate às Carências Nutricionais; Farmácia Básica do SUS; Programa
Nacional de Imunização; Piso Assistencial Básico do SUS; Saúde da Família; Atenção Integral à
Saúde da Mulher.
Na área da assistência social: Apoio à Criança Carente; Apoio ao Cidadão, à Família e ao
Deficiente; Apoio à Pessoa Idosa; Benefício ao Idoso e à Pessoa Portadora de Deficiência
(LOAS); Apoio ao Combate ao Trabalho Infantil; Apoio Integral à Criança e ao Adolescente no
Enfrentamento à Pobreza; Participação da União em Programas de Garantia da Renda Mínima.
O debate sobre o que são redes, como se constituem, que atribuições têm e como se
configuram no contexto das políticas sociais está longe de ser conclusivo. Pelo contrário, cada
vez mais o conceito de rede se torna complexo e seu uso adquire diferentes significados,
levando por vezes à expectativa de constituir-se enquanto panacéia para superar a dispersão
de recursos, superposição de ações, paralelismo de políticas e outras mazelas que marcam os
programas sociais no país.
Se por si só o conceito de rede já se apresenta complexo, agregado ao termo proteção
social passa a demandar um estudo minucioso que permita compreender, minimamente, do
que se trata. A origem das chamadas políticas sociais remonta ao período da Revolução Indus-
trial na Europa e tem sua fonte mais específica na Lei dos Pobres da Inglaterra (Poor Law,
Primeira Lei em 1535) [Castel, 1998, p. 91]. A lógica desta iniciativa da intervenção do Estado
para regular as relações do mercado com o trabalho era de diminuir as disparidades que
desestabilizavam o sistema social. Seguindo esse caminho e pressionado por um lado pela
classe trabalhadora organizada e por outro pelas demandas de contenção da pressões sociais,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
479
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
o Estado se constitui num Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), assumindo para si fun-
ções de regulação social que pudessem assegurar assistência mínima àqueles que não tinham
trabalho, não pudessem trabalhar (incapacidade física ou mental) e àqueles cujo rendimento
do seu trabalho não permitia o suprimento das necessidades básicas.
Entre o econômico e o jurídico há um hiato preenchido, talvez tardiamente, pelo social.
Não que a questão social seja uma coisa nova. O modo sistemático de intervenção no século
XVI em relação aos mendigos, aos vagabundos, ao controle da circulação da mão-de-obra e à
obrigatoriedade do trabalho são o que Robert Castel chama do cerne da questão “social
assistencial”, provando assim que a questão social já se colocava na fase anterior à industrialização
da Europa ocidental.
Nossa situação atual não difere da problematização colocada na fase de estruturação do
capitalismo. Os supranumerários de hoje, os que não participam, não têm, sequer são
explorados, atualizam de forma trágica os inúteis do mundo pré-industrializado. “A metamorfose
está em que anteriormente a questão era saber como um ator social subordinado e dependente
poderia tornar-se um sujeito social pleno. A questão agora, sobretudo, é amenizar esta presença,
torná-la discreta a ponto de apagá-la” [Castel, op. cit.].
Com o aperfeiçoamento do Estado Capitalista na Europa, os programas sociais que tinham
o objetivo de atender a demandas sociais, diminuir tensões e “humanizar” as relações de
trabalho passaram a se constituir em políticas permanentes de controle social que impedissem
a desintegração (ou desfiliação, como diria Castel) dos cidadãos. Nos últimos 30 anos essas
políticas constituíram-se em uma Rede de Proteção Social que tinha por objetivo assegurar a
integração do indivíduo ao mercado (como força de trabalho e como consumidor). Daí essa
rede ser composta de programas de garantia de renda mínima, salário-desemprego, auxílios
sociais monetários e não monetários diversos (creche, escola, moradia), pois seu objetivo era
manter os cidadãos participando da vida social, evitando sua exclusão e a formação de amplos
contingentes de população empobrecida, cuja produção de estratégias de sobrevivência gera a
instabilidade do sistema.
Falar, portanto, em Rede de Proteção Social implica a referência a uma análise funcionalista
européia que vê a sociedade como uma unidade harmônica na qual o objetivo do Estado é
preservar sua estabilidade por meio da acomodação dos interesses dos diferentes grupos sociais
e da garantia de proteções ao cidadão para evitar sua exclusão social.
O anacronismo da expressão adotada de forma tão ampla está exatamente no fato de que
a realização do Estado de Bem-Estar Social nunca se deu de forma efetiva no Brasil e a grande
maioria de sua população está socialmente excluída. Por esse motivo não convém apostarmos
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
480
numa Rede de Proteção Social tradicional, pois não se trata de proteger direitos assegurados e,
sim, de assegurar direitos por meio de políticas sociais de inclusão.
Também o conceito de exclusão social não se apresenta unívoco, carregando consigo as
críticas por dizer mais daquilo que o cidadão não é do que aquilo que ele é. Sem entrar no
debate desse conceito típico das ciências sociais, consideramos que a realidade brasileira
aponta para um déficit das políticas sociais e do seu funcionamento carregando, historicamente,
mecanismos próprios de exclusão. Vejamos alguns exemplos.
A política educacional brasileira por muitos anos atuou como uma política de exclusão
social, pela inadequação dos currículos e da metodologia que gerou a repetência, congestionou
as séries de acesso à escolarização básica e gerou um déficit de vagas que, mesmo tendo
diminuído significativamente, deve continuar preocupando todos.
A política de saúde, apoiada exclusivamente no trinômio centro de saúde, hospital e médico,
gerou processos seletivos no atendimento, concentrando os serviços nas redes tradicionais,
ignorando atividades de medicina popular e preventiva, colaborando para o agravamento das
condições de saúde dos mais pobres, o que, por sua vez, dificulta o seu ingresso no mercado
de trabalho.
Poderíamos falar também da política habitacional que beneficia exclusivamente a classe
média, e de outras políticas sociais cuja promessa de efetiva garantia dos direitos sociais a
todos os cidadãos ainda não se cumpriu.
É claro que reduzir o enfrentamento da pobreza a uma tarefa das políticas sociais representa
um equívoco que ignora os impactos da política econômica na produção das desigualdades
sociais. Sem distribuição de renda e geração de empregos as políticas sociais não têm onde se
assentar.
Ao nos referirmos a uma Rede de Proteção Social ou, mais especificamente, a uma Rede de
Proteção Especial, queremos identificar uma conjunto de políticas sociais estruturadas, capazes
de resgatar o cidadão de sua exclusão social e incluí-lo numa participação crítica e ativa na
sociedade como um sujeito capaz de interferir na sua própria história e na história da sociedade
na qual se integra.
2 CONSELHOS TUTELARES, PROGRAMAS DE PROTEÇÃO ESPECIAL E SISTEMA EDUCACIONAL
Órgão de vanguarda do Sistema de Garantias, o Conselho Tutelar é órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos
da criança e do adolescente, definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Cada Município
deverá ter pelo menos um Conselho Tutelar composto por 5 pessoas escolhidas pela comunidade
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
481
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
por indicação regulamentada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O papel do Conselho Tutelar é assegurar de forma imediata os direitos infanto-juvenis, podendo
inclusive requisitar serviços e aplicar medidas protetivas. Caracteriza-se por ser um órgão de
caráter comunitário e operacional.
1
A expressão “não jurisdicional” merece destaque, pois representa uma ruptura com
criminalização da pobreza presente na legislação anterior ao Estatuto. Melhor dizendo: o
Conselho Tutelar exerce uma função de caráter social e não jurídica. Seu papel caracteriza-se
por contribuir com as crianças e os adolescentes em situação de vulnerabilidade para promover
sua inclusão social e não a aplicação de castigos ou punições.
Para isso, deve contar com uma retaguarda de serviços e programas que permitam agilizar
os processos de prevenção e atendimento às situações de ameaça ou violação de direitos. Essa
retaguarda se constitui de serviços de proteção transitórios e permanentes. A transitoriedade
ou permanência não se referem ao serviço e sim ao usuário.
2.1 SERVIÇOS DE PROTEÇÃO TRANSITÓRIOS
São aqueles que se destinam a atender a situações emergenciais enquanto se providenciam
soluções mais definitivas. Referiremos, a seguir, alguns mais significativos.
Abrigo
É um típico serviço de proteção transitório e destina-se àquelas crianças e adolescentes
que estão impedidos da convivência familiar por ausência ou impedimento dos pais. É importante
lembrar que a pobreza não se constitui em motivo para afastar a criança da família.
Ao se abrigar uma criança ou adolescente deve-se proceder à imediata informação à
autoridade judiciária. O levantamento de sua história de vida e sua situação social são elementos
fundamentais para, no imediato momento do abrigamento, iniciar os processo de localização e
reaproximação da família, ou o estudo de alternativas como a inclusão em programa de adoção;
encaminhamento à família substituta; identificação de adultos com os quais existem laços
afetivos ou parentais e que possam assumir responsabilidades de guarda ou apoiar a sua
inclusão em algum programa de convivência familiar.
No período em que a criança ou o adolescente estiverem abrigados, o diretor do abrigo
tem responsabilidade de guarda, isto é, tem obrigação à prestação de assistência material,
1
Vejam-se nos artigos 131 a 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente as atribuições, a composição do
Conselho Tutelar e as exigências para o exercício da função de conselheiro.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
482
moral e educacional. Essa obrigação impõe a necessidade de imediata matrícula na escola e da
sua inclusão em programa sócio-educativo que facilite a sua integração na comunidade, sendo
vedada a reclusão ou privação de liberdade para fins de proteção.
Não existe abrigo permanente, pois a legislação optou por formas alternativas à
institucionalização, uma vez que a experiência das instituições totais destinadas à criança
pobre demonstraram sua incapacidade de promover o direito à convivência familiar e
comunitária, assegurado como fundamental.
Existem situações de adolescentes e até crianças com mais idade ou portadores de
deficiência que têm maior dificuldade de serem recebidos em adoção ou serem encaminhados
a famílias substitutas com termos de guarda ou outras formas. Nesse caso, deve-se acionar a
comunidade (Conselho Tutelar, escola, igrejas, Conselhos de Direitos, associações comunitárias
e ONG) para a criação de alternativas à institucionalização total. Algumas experiências de
“repúblicas” de adolescentes, “casas-lar”, “núcleos de convivência” são soluções que, por meio
da composição de pequenos grupos, geralmente próximos a uma família média brasileira,
preservam crianças e adolescentes num contexto comunitário e tentam diminuir o impacto da
impossibilidade de convivência familiar.
Casa aberta
São unidades de atendimento, em geral, a meninos e meninas de rua. Constitui-se também
em um programa transitório destinado a propiciar um processo de auto-conhecimento e de
reorganização de sua vida. A convivência de meninos e meninas por longo tempo nas ruas os
leva a desenvolver hábitos, atitudes, linguagem, valores e códigos forjados como estratégias
de sobrevivência num contexto de violência, desprezo, exploração e transgressão. A vivência
na rua gera um modus vivendi que desconstrói as relações típicas de hierarquia, disciplina,
horários e rotinas, substituindo-os por improvisos, atitude de permanente desconfiança e
necessidade de decisões rápidas.
Submeter uma criança ou adolescente com essas vivências a uma rotina rígida e pré-definida
resulta, na maioria dos casos, em um fracasso pedagógico. A casa aberta é um programa com a
flexibilidade suficiente para permitir a meninos e meninas a reconstrução de um projeto mínimo
de vida e um reaprendizado da cidadania que implica o conhecimento e o reconhecimento dos
seus direitos, aos quais correspondem sempre deveres e responsabilidades.
A incompreensão dessa dinâmica social das populações de rua tem feito fracassar operações
de recolhimento de crianças e adultos e gerado situações de arbítrio e violação de direitos.
Além disso, tem desestabilizado processos pedagógicos que, no momento em que conseguem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
483
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
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estabelecer vínculos mínimos de confiança e aproximação, sofrem uma ruptura e são obrigados
a refazer todo um processo complexo e dinâmico.
Escola aberta
Nessa perspectiva transitória produziram-se também alternativas metodológicas ao ensino
formal denominadas escolas abertas. A transposição de uma criança que vive nas ruas para
dentro de uma sala de aula representa uma transição entre universos extremamente diferenciados.
Para atenuar essa distância as escolas abertas se propõem a ser um momento intermediário de
estímulo à criança ou ao adolescente para voltar à escola e, ao mesmo tempo, são um laboratório
de criatividade para gerar novas metodologias que contaminem a escola formal para que se torne
mais atrativa e interessante, especialmente para aquelas crianças e adolescentes que estão fora
dela. Em muitas cidades brasileiras, a escola aberta já está inserida na política de ensino como
estratégia de inclusão na escola de crianças e adolescentes evadidos ou que nunca a freqüentaram,
seja por não gostar da escola, seja por viver na ruas; por inserir-se precocemente no mercado de
trabalho; por abandono familiar; ou por exploração de qualquer tipo.
Educação social
Em alguns lugares também chamados de “plantão social”, são programas destinados a dar
apoio aos Conselhos Tutelares em situações emergenciais as mais diversas. Atuam nos casos
em que é preciso providenciar cesta básica de alimentos; assegurar passagem de ônibus para
migrantes; promover atendimento imediato de apoio sócio-familiar ou a aproximação do núcleo
familiar com o estabelecimento de contatos periódicos em reuniões e visitas domiciliares,
planejadas na perspectiva de não invadir arbitrariamente o núcleo familiar, mas respeitando os
limites da individualidade e promovendo o diálogo e abertura para uma relação solidária;
sugestão e estímulo ao encaminhamento a serviços especializados nos casos de graves desajustes
como abuso de álcool e drogas e/ou maus-tratos; apoio terapêutico para a gerência a
administração de conflitos interpessoais entre os membros da família quando assim o desejarem.
A partir das necessidades familiares (número de membros da família); condições de
salubridade, higiene e segurança; respeito às normas mínimas da legislação local e da garantia
de um espaço de dignidade e habitabilidade, poderá ser concedido apoio habitacional nos
casos de maior emergência. Esse apoio se dá na forma de material de construção e/ou utensílios
e mão-de-obra nos casos em que não for possível à família oferecê-la como contrapartida.
Também encaminhamento ao SUS (Sistema Único de Saúde) para a obtenção de remédios,
consultas e exames especializados, sempre em casos de emergências sociais.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
484
Nos casos extremos de total indigência e miserabilidade em que a segurança alimentar da
família estiver comprometida pela insuficiência ou inexistência de uma renda, alguns programas
destinam uma cesta básica de alimentos composta sob orientação de um nutricionista de forma
a satisfazer às necessidades básicas, definidas a partir da composição familiar.
Em grandes centros urbanos existem programas de Educação Social de Rua, nos quais
educadores atuam sistematicamente com a população de rua desenvolvendo um processo
pedagógico de produção de vínculos de confiança para o encaminhamento aos serviços e
programas existentes na comunidade.
2.2 SERVIÇOS DE PROTEÇÃO PERMANENTES
As políticas sociais básicas, através das suas redes de serviços, constituem a base dos
serviços de proteção permanente. A escola, o centro de saúde, os programas sócio-educativos
em meio aberto, as ações complementares à escola, as atividades de cultura, esporte e lazer
são os pilares de todo o sistema de proteção aos direitos das crianças e adolescentes.
A permanente interlocução do Conselho Tutelar com essa rede de serviços é a estratégia
básica para uma prevenção primária à violação dos direitos. Essa interlocução implica visitas
do CT à escola e desta ao CT; ao centro de saúde e vice-versa e aos demais serviços, estabelecendo-
se rotinas e procedimentos para o enfrentamento conjunto das situações de vulnerabilidade
pessoal e social.
É importante destacar que esses serviços de proteção permanente devem estar estruturados
com o objetivo da inclusão social de todas as crianças e adolescentes. Por isso a interlocução
é o caminho mais adequado para ajustar deficiências e necessidades.
Escola
A existência de crianças e adolescentes fora da escola deve ser enfrentada como um
problema que demanda tarefas coletivas. A escola precisa estar preparada para receber, a
qualquer tempo, crianças com interesse no ingresso ou regresso escolar, desenvolvendo para
isso estratégias de acomodação que assegurem a continuidade de dinâmicas e ritmos de
aprendizagem dos alunos que já estão estudando e permitam a inserção do novo aluno com
serenidade e compreensão para suas dificuldades iniciais.
A inexistência de escolas abertas não é motivo para retardar o ingresso de crianças no
ensino formal. Com a capacitação dos profissionais de educação em tecnologias de aceleração
do ensino e no desenvolvimento de dinâmicas socio-interacionistas e construtivistas, pode-se
gerar capacidade pedagógica de dar múltiplas respostas a situações diversificadas das crianças
e adolescentes em situação de risco.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
485
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
A partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, o ensino profissionalizante
compõem de forma definitiva a política educacional, devendo estruturar uma rede capaz de
atender à crescente demanda de jovens por uma profissão. O aumento da idade de admissão
ao emprego de 14 para 16 anos criou a necessidade de um grande investimento no ensino
profissional para permitir ao adolescente o ingresso no mercado de trabalho com uma
qualificação mais avançada, à qual corresponderá mais e melhores oportunidades.
Apoio sócio-familiar
“ A família brasileira, em meio a discussões sobre sua desagregação ou enfraquecimento, está
presente e permanece enquanto espaço privilegiado de socialização, de prática de tolerância e
divisão de responsabilidades, de busca coletiva de estratégias de sobrevivência e lugar inicial para
o exercício da cidadania sob o parâmetro da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. A
família é o espaço indispensável para a garantia de desenvolvimento e da proteção integral dos
filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou forma como vêm se estruturando.
É a família que propicia os aportes afetivos e sobretudo materiais necessários ao desenvolvimento
e bem estar dos seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na educação formal e
informal, é em seu espaço que são absorvidos os valores éticos e humanitários, e onde se aprofundam
os laços de solidariedade. É também no seu interior que se constróem as marcas entres as gerações
e são observados valores culturais” [Kaloustian, 1998].
No conjunto conceitual descrito na Lei Orgânica de Assistência Social, a família é a base
sobre a qual uma política de assistência social cidadã se assenta. Identificamos aqui o apoio
sócio-familiar com um programa de proteção permanente, pois deve estruturar-se como uma
ação sistemática, organizada e continuada. Compõe-se esse programa de atividades específicas
destinadas à família, que têm como objetivo apoiar a estrutura econômica familiar e dar suporte
psico-social para ajudá-la a administrar conflitos, crises e tensões.
Os Programas de Renda Mínima, Bolsa Escola, Vale Cidadania e outra formas de garantia
e melhoria da renda familiar são importantes para o enfrentamento de diferentes tipos de
exclusão: trabalho infantil, exploração sexual comercial, mendicância e outras formas de violação
de direitos realizadas enquanto estratégias de sobrevivência.
A terapia familiar, grupos de auto-ajuda e aconselhamento, núcleos comunitários de apoio
sócio-familiar e outros serviços estruturados no contexto da comunidade são uma importante
retaguarda para dar melhores condições à família para cumprir sua tarefa tão complexa de ser
o espaço essencial de acolhida, compreensão e realização da criança e do adolescente. Nesse
contexto, desempenham grande importância os programas de alfabetização de adultos, reinserção
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
486
no mercado de trabalho, profissionalização e apoio com microcrédito a pequenos
empreendimentos familiares.
Ações complementares à escola
Esses programas destinam-se a colaborar com o processo educativo, em sentido amplo,
no período em que as crianças não estão na escola, desenvolvendo atividades de arte, música,
cultura, esportes, cidadania, sondagem vocacional e demais modalidades de desenvolvimento
e socialização.
Normalmente executados por organizações não governamentais, esses programas começam
gradativamente a compor um sistema público de grande importância na proteção dos direitos
da criança e do adolescente. A situação de vulnerabildiade social de um grande número de
famílias brasileiras faz que a maioria dos pais ausentem-se de casa durante o dia para o trabalho,
o que provoca abandono forçado das crianças à comunidade. A inexistência dos programas
sócio-educativos na comunidade remete às ruas dos grandes centros urbanos crianças que ao
mesmo tempo que se distanciam da família distanciam-se também da escola e da comunidade.
Centros de saúde
Com os agentes comunitários de saúde e por meio do desenvolvimento de procedimentos
preventivos e de educação comunitária, inclusive, em alguns municípios, com programas de
visitas médicas às famílias, a política de saúde torna-se mais presente no controle, na prevenção
e no tratamento das situações de vulnerabilidade das crianças e adolescentes. Todavia, os centros
de saúde, ou postos de saúde, desempenham um papel importante ao incorporar em suas rotinas
uma atitude de vigilância em relação aos direitos da criança e do adolescente. Sinais externos,
como hematomas pelo corpo, podem ser uma pista para a identificação de violência física contra
crianças; instabilidade emocional, medos e inseguranças podem ser a manifestação de uma situação
de sofrimento psicológico de uma criança em situação de grave risco.
Uma boa capacitação dos profissionais de saúde para a prevenção da violação de direitos
tem efeito importante na proteção social de crianças e adolescentes. O contato com o Conselho
Tutelar, a possibilidade de participação em debates, reuniões e capacitações vai gerando uma
cultura de co-responsabilidade na proteção que tem impacto imediato na redução das situações
de violação de direitos.
Para a Rede de Proteção Especial são essenciais, no âmbito das políticas de saúde, os
programas de atendimento aos drogadidos, usuários de substâncias psicoativas, alcóolatras e
pessoas com distúrbios psíquicos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
487
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
Não pretendemos esgotar todos os tipos de retaguarda necessários à proteção dos direitos
infanto-juvenis. Quisemos apenas dar uma visão da diversidade de programas que são
necessários para responder à diversidade de direitos. A estruturação desses programas em
rede é uma tarefa essencial sem a qual o mais excelente funcionamento dos programas
isoladamente não assegura a proteção aos direitos.
3 A ATUAÇÃO EM REDE
O conceito de rede está inserido na própria definição do Estatuto da Criança e do Adolescente
sobre a política de atendimento como um conjunto articulado de ações governamentais e não
governamentais da União, dos Estados e dos Municípios, com a respectiva definição de papéis
e responsabilidades. Na comunidade, a articulação em rede implica o conhecimento dos atores
sociais existentes, suas propostas, atribuições e responsabilidades. Esse conhecimento é
adquirido a partir de um processo permanente de diálogo e da formalização de momentos
específicos de apresentação e troca de experiências.
Numa experiência desenvolvida numa comunidade para a prevenção, o atendimento das
vítimas e o combate a abusos, maus-tratos e exploração sexual, uma entidade tomou a iniciativa
de chamar todas as forças vivas da comunidade (escola, posto de saúde, creche, APAE, associação
de moradores, associação de comerciantes, entidade de atendimento em meio aberto, curso
profissionalizante, igrejas etc.) que tinham interesse na temática. Após a apresentação de cada
um, descobriu-se que havia muita gente fazendo coisas semelhantes e havia áreas em que
ninguém atuava. A partir dessa constatação, iniciou-se um processo de mapeamento de serviços
e de estabelecimento de rotinas para o encaminhamento das situações mais emergentes. A
partir dessas situações, cada entidade foi percebendo sua especialidade e aprofundando sua
competência na sua área e contando de forma complementar com o apoio de outras organizações
nas questões menos comuns ao seu trabalho. Foi possível também perceber que havia
procedimentos comuns no encaminhamento de determinadas situações e que, quando isso
ocorria, o problema se resolvia com mais facilidade. Quando, ao contrário, cada um queria
fazer do seu jeito, produzia-se mal-estar e afloravam os desentendimentos. A partir desse
aprendizado, estabeleceu-se um dia por mês para reunir todos e avaliar as atividades
desenvolvidas, estabelecer novas metas e formalizar alguns procedimentos comuns. Dessa
forma, diminuíram significativamente os conflitos e competições e deu-se uma dimensão
verdadeiramente comunitária a cada programa e iniciativa.
Numa dimensão mais ampla, é importante que as políticas municipais também sejam
estruturadas em redes de serviços, facilitando a integração das diferentes áreas das políticas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
488
públicas. Para isso, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é o órgão
fundamental e a sua criação depende da vontade política do governo e da participação da
sociedade civil para a indicação dos seus representantes.
Trabalhar em rede implica submeter, sem perder sua autonomia e identidade, a um coletivo
mais amplo, sua proposta político-pedagógica, para dar maior alcance à sua atividade e assegurar
o princípio da indivisibilidade do direito. Esse princípio refere-se à compreensão de que os
direitos de cada um não são como gavetinhas a serem preenchidas por diferentes instituições,
mas que precisam ser assegurados integralmente de forma coerente e sistemática por meio de
serviços e benefícios de qualidade que garantam o respeito à dignidade de cada um.
Trabalhar em rede contribui de forma especial para otimizar recursos, priorizar áreas de
atuação e evitar o paralelismo e a superposição de ações. Para isso é muito importante a
existência de um núcleo de planejamento, monitoramento e avaliação que concentre as
informações de interesse comum e oriente a avaliação de desempenho de cada um na rede.
Esse planejamento também colabora para a definição das responsabilidades e especificidades
de cada um a partir de critérios claros e explicitados.
A grande conquista do trabalho em rede é a quebra do isolamento das entidades e a
qualificação (no sentido de melhorar a qualidade) dos serviços oferecidos. O jeito de fazer, a
metodologia, depende da correlação de forças da própria comunidade. O importante é tomar
iniciativas concretas e colocar as pessoas a trabalhar juntas. A partir daí, cada rede vai tendo
sua própria tessitura, suas características peculiares e sua identidade, ganhando força para
modificar o contexto de exclusão social, a partir da sua própria organização.
4 A CIDADANIA COMO OBJETIVO COMUM
A exclusão social de crianças e adolescentes tem em sua base a sonegação contínua de
seus direitos mais elementares. Tanto as violências praticadas no contexto familiar, como as
resultantes de estruturas sociais injustas, ou ainda as praticadas isoladamente por pessoas ou
grupos, são componentes de um mesmo quadro de violência social, no qual crianças e
adolescentes são as vítimas mais vulneráveis.
Os múltiplos fatores que incidem sobre a produção da exclusão social da infância
demandam múltiplas abordagens no seu enfrentamento. Mais do que procurar identificar se os
fatores causais são de ordem estrutural ou conjuntural, é preciso considerar a complexidade
da situação de ameaça e violação de direitos para não cairmos numa análise economicista que
julga que, resolvidos os problemas econômicos, os sociais seriam resolvidos por conseqüência;
ou na visão ingênua de que se resolvem problemas sociais sem necessidade de alterar
fundamentos da economia.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
A estruturação de um Sistema de Garantias foi a opção feita pelo legislador do Estatuto da
Criança e do Adolescente, para enfrentar a complexidade da questão dando respostas imediatas
às questões emergenciais e instituindo um caminho mais consistente para enfrentar as chamadas
causas estruturais. Uma política de proteção especial só ganha sentido na medida em que se
situa enquanto componente de uma política de garantia de direitos e não como uma ação
compensatória de caráter isolado para resolver questões pontuais.
Para enfrentar as questões estruturais, o caminho indicado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente é o da ampliação da democracia, a qualificação da criança e do adolescente como
atores sociais credores de direitos, a desjurisdicionalização da pobreza, e a constituição de um
conjunto de novos direitos que permitem gerar mecanismos de participação social capazes de
produzir uma cultura de mais justiça social e menos desigualdades. Além disso, institui um
conjunto de novas institucionalidades, programas de atendimento e alternativas metodológicas
que, como uma rede de inclusão social, articula serviços de diferentes áreas para prevenir e
reparar a violação de direitos. Os programas de proteção especial ganham, portanto, um duplo
sentido: servem como proteção nos casos de ameaça aos direitos e funcionam como mecanismos
de inclusão para os que são violados e excluídos.
É no âmbito da política municipal que se constituem as políticas de proteção especial.
Articulados em rede, os programas que a compõem estruturam-se em torno de demandas
concretas. Tradicionalmente, quando se fala em cidadania pensa-se logo no direito de ter
direitos. Quem é cidadão de um país usufrui de todas as garantias e direitos assegurados
formalmente na sua Constituição e nas legislações complementares. Essa visão resulta de uma
redução do conceito de cidadania à formalidade das leis.
Numa perspectiva mais ampla do Estado Democrático de Direito, pode-se dizer que a
cidadania é mais do que simplesmente ter direitos. É o direito de produzir a cada dia novos
direitos e de reivindicá-los e obtê-los, concretamente, no dia-a-dia. “A democracia é invenção
porque, longe de ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos,
a subversão contínua do estabelecido, a reinstituição permanente do social e do político” [Lefort,
in Silva Pereira, 2000, p. 560]. Partindo desse conceito, a defesa dos direitos é um processo
amplo de lutas individuais e coletivas para assegurar o bem-estar de cada um e de todos.
A partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990,
órgãos já existentes foram reordenados, com a conseqüente redefinição dos seus papéis, além de
novas instituições terem sido criadas. O Ministério Público passou a ter um papel específico de
fiscalização da lei e proteção dos direitos individuais, coletivos e difusos, especialmente no que
se refere à prerrogativa de promover o inquérito civil e a ação civil pública, como mecanismo de
garantia e exigibilidade do direito.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
490
O antigo Juizado de Menores foi substituído por Varas especializadas da Infância e Juventude,
com competência não só para a apuração de ato infracional atribuído a adolescente, aplicando
as medidas cabíveis, como também para conhecer os pedidos de adoção, ações civis fundadas
em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, ou ainda
ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento; aplicar penalidades
administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção à criança ou adolescente; e,
finalmente, conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, aplicando as medidas
cabíveis.
Criada pela Constituição Federal de 1988, a Defensoria Pública é o órgão responsável por
atuar na defesa do cidadão sempre que seus interesses estiverem em questão. Na área da
criança e do adolescente, a Defensoria é fundamental para assegurar a ampla defesa e o
contraditório sempre que algum litígio estiver presente. Nesse caso, a Defensoria deve fazer a
defesa técnico-jurídica do acusado, atuando de forma gratuita no processo.
Os Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA são ONG criadas com o papel
de fazer a defesa jurídico-social, a mobilização da sociedade e a defesa política, isto é, a
advocacy num sentido amplo. Um Centro de Defesa, normalmente, tem profissionais das áreas
de Direito, Serviço Social e Educação que, além de fazer a defesa jurídico-social da criança e do
adolescente, desenvolvem atividades de popularização do Direito e de disseminação de uma
cultura de cidadania mais ampla.
Originados de uma concepção de ampliação da democracia presente no Estatuto da Criança
e do Adolescente, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são órgãos de
deliberação das políticas de atendimento e garantia dos direitos, compostos em sua metade
por representantes da sociedade civil, e em outra por representantes do Poder Executivo.
Esses Conselhos estão presentes nos âmbitos nacional, estadual e municipal. A importância
dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais é que, ao deliberar sobre políticas públicas,
têm a possibilidade de definir programas intersetoriais, rompendo com a dispersão de recursos
e serviços, podendo organizar uma rede de atenção à infância com serviços das diferentes
áreas das políticas públicas.
No âmbito municipal também foi criado o Conselho Tutelar, que é um colegiado composto
de cinco membros eleitos pela comunidade para fiscalizar a garantia dos direitos da criança e
do adolescente em uma perspectiva mais imediata. Sempre que algum direito for ameaçado ou
violado, o Conselho Tutelar deve ser acionado para proceder a um encaminhamento imediato.
Para tanto, pode requisitar serviços públicos e representar aos órgãos responsáveis.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
491
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
Para as questões relativas à segurança pública existem as Delegacias da Criança e do
Adolescente, que têm o papel de investigar a participação de adolescente na prática de atos
infracionais. Há um grande empenho para que haja também Delegacias de Proteção da Criança
e do Adolescente, que seriam responsáveis pela investigação de crimes cometidos contra a
criança e o adolescente.
Todos esses órgãos e mais um conjunto diverso de iniciativas da sociedade civil que compõem
o Sistema de Garantias constituem os instrumentos formais de que a sociedade dispõe para
recorrer sempre que se sentir desrespeitada ou mesmo quando necessitar regularizar uma
situação relativa aos seus direitos.
Para além disso, num sentido mais amplo, a defesa de direitos implica também um amplo
processo pedagógico de formação e informação para a produção de uma cultura de cidadania
ativa. Crianças, adolescentes e adultos devem todos ter a oportunidade de conhecer e debater
os próprios direitos para produzir iniciativas de alcançá-los. Estamos nos referindo à dimensão
de mobilização social que a defesa de direitos tem: mobilizar a sociedade significa mantê-la
permanentemente atenta e sensibilizada para a necessidade de manifestar-se diante de todas
as ações equivocadas, as omissões e as negligências, sejam do Estado, da família ou da própria
sociedade.
5 A ESCOLA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS
A criação do Conselho Tutelar ocorreu como resposta à necessidade de criação de um
órgão permanente de vigilância em relação aos direitos da criança. Entretanto sua existência
não exime os demais órgãos, programas ou unidades educacionais de sua tarefa nessa área.
Com uma grande incidência na produção de valores, hábitos, atitudes, comportamentos e
conhecimentos, a escola é um aliado fundamental na produção de uma cultura de respeito aos
direitos e na vigilância para prevenir sua violação.
2
Um grande tarefa, nesse sentido, é a disseminação de informação, seja a respeito dos
direitos, seja a respeito dos serviços existentes na comunidade e de como acessá-los. Mobilizando
a comunidade educativa (pais, professores, alunos, comunidade), a escola também pode
colaborar para a identificação de necessidades específicas e propor aos gestores públicos a
criação dos serviços correspondentes. Todo esse processo demanda a construção de um projeto
2
Na publicação de Brancher et al., 1999, o capítulo “O Conselho Tutelar e a Escola” apresenta um conjunto
de reflexões sobre essa interface.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
492
pedagógico de escola cidadã inserida na sua comunidade como uma força viva capaz de produzir
direitos e prevenir violações.
No cotidiano das atividades escolares devem ser estabelecidos procedimentos ágeis e
sistemáticos de comunicação aos Conselhos Tutelares das violações de direitos ocorridas.
Casos de violência doméstica; desnutrição; negligência familiar; abandono; maus-tratos e outras
situações que extrapolam a tarefa educativa de escola devem ser comunicados ao Conselho
Tutelar para as providências necessárias.
Por vezes os professores têm conhecimento de que o aluno está se ausentando da escola
por ser obrigado a trabalhar. Essa situação deve ser imediatamente comunicada ao Conselho
Tutelar, para se proceder o retorno da criança à escola e, se for o caso, encaminhar os pais
para um programa de renda mínima ou a inclusão em algum tipo de apoio sócio-familiar.
Outra situação pode ser o pouco aproveitamento do aluno por deficiência na sua
alimentação; instabilidade emocional ou, às vezes, vivências de situações de conflito que
dificultam sua participação no processo de aprendizagem. Esgotadas as possibilidades do
encaminhamento da situação pela coordenação pedagógica da escola, o acionamento do
Conselho Tutelar se faz necessário, o qual deverá aplicar as medidas previstas em lei.
Voltando ao conceito de rede explicitado anteriormente, não é demais repetir que esses
procedimentos devem estar coletivamente acordados, evitando-se a exposição da criança a um
processo infindável de encaminhamentos de um lugar para outro, transformando sua história
pessoal num “caso complicado” do qual todos fogem.
O desenvolvimento de atividades como gincanas, concursos de desenho, redação ou música
ou até festivais que promovam o debate acerca dos direitos infanto-juvenis e que estimulem a
leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente pelos alunos, professores e pais contribui para
gerar uma cultura de cidadania em que a abordagem de problemas complexos torna-se mais
humana e compreensiva.
Uma parceira entre Conselhos de Direitos, Conselho Tutelar, ONG e escola para a
popularização do direito tem mostrado resultados muitos importantes em diversos lugares do
país, para melhorar o ambiente pedagógico, diminuir tensões e violências e especialmente
para proteger direitos.
6 APLICAÇÃO E EXECUÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS: ROTINAS E PROCEDIMENTOS
Cabe ao Conselho Tutelar aplicar as medidas protetivas nas situações correspondentes,
devendo para isso estruturar rotinas que lhe permitam ser ágil e eficiente. É importante observar
que o CT é um colegiado e que suas decisões não podem ser tomadas arbitrariamente por um
membro isolado. Nos momentos de plantão ou de impossibilidade de consulta aos demais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
493
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
Mario Volpi
membros, assegurado o melhor interesse da criança, o conselheiro pode proceder a
encaminhamentos que, posteriormente, serão referendados pelo colegiado; entretanto, esta
não deve ser uma rotina.
“As deliberações do Conselho Tutelar são atos administrativos e devem ser cumpridas, sob
pena de infração aos artigos 236 e 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por serem atos
administrativos, exigem para sua validade os requisitos de competência, finalidade, forma, motivo
e objeto” [Pereira, in Silva Pereira, 2000].
O artigo 137 do Estatuto determina que “as decisões do Conselho Tutelar somente poderão
ser revistas pela autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse”.
Como um espaço privilegiado de vigilância dos direitos, o CT deve estabelecer com todos
os programas da Rede de Proteção rotinas de comunicação e encaminhamento formalizadas
por requisição de serviços, na forma do artigo 136, inciso II, “a”, do ECA, planos de trabalho ou
outros instrumento que facilitem o intercâmbio de informações.
Os profissionais de saúde, educação, serviço social e outros que atuem nessa área têm o
dever ético e a determinação legal (artigo 245 do ECA) de comunicar ao CT em denúncias formais
ameaça ou violação de direitos. Não existindo CT no município, a denúncia deve ser feita à
autoridade judiciária.
Recebida a denúncia, o Conselho Tutelar, no âmbito de suas atribuições, verifica sua
fundamentação e procede à aplicação de uma medida protetiva ou, no caso de extrapolar sua
função, poderá: representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações; encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua
infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente; e encaminhar à
autoridade judiciária os casos de sua competência.
O que o Conselho Tutelar pode fazer:
Ø Ouvir a criança ou adolescente de forma reservada, assegurando-lhe privacidade e
tranqüilidade para expressar-se;
Ø Atender e aconselhar os pais ou responsável e, se for necessário, proceder a
encaminhamento a algum dos serviços de apoio sócio-familiar, de saúde, educação ou outro;
Ø Requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência,
trabalho e segurança;
Ø Requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando
necessário;
Ø Defender a criança e o adolescente representando à autoridade quando tiver sua liberdade
de expressão e manifestação reprimida;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
494
Ø Representar ao Ministério Público, para efeito das ações de perda ou suspensão do
pátrio poder.
Também cabe ao CT assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta
orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
Cada CT é autônomo, subordinando-se aos procedimentos definidos em lei municipal que
regulamenta seu funcionamento.
Para consolidar-se como base do Sistema de Garantias, suas atividades devem estar
plenamente sintonizadas como os demais componentes do sistema e suas iniciativas, dirigidas
a fortalecer o funcionamento de uma Rede de Proteção Social cujo objetivo maior é a inclusão
social de crianças e adolescentes no exercício da cidadania plena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANCHER, Leoberto Narciso; RODRIGUES, Maristela Marques e VIEIRA, Alessandra Gonçalves
(orgs.) O direito é aprender. Brasília: FUNDESCOLA/Projeto Nordeste/MEC, 1999.
BRASIL. Lei Federal 8.069. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília: 1990.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis: Editora
Vozes, 1998. p.91.
CRAIDY, Carmem Maria. Meninos de rua e analfabetismo. Porto Alegre: ARTMED, 1998.
CURY, Munir; AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do; GARCIA MENDEZ, Emílio (coords.) São
Paulo: Malheiros Editores, 1992.
KALOUSTIAN, Sílvio Manoug. Família brasileira, a base de tudo. 3
a
Ed. São Paulo: Cortez
Editora, 1998.
SILVA PEREIRA, Tânia (coord.) O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio
de Janeiro: Editora Renovar, 2000.
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
495
14
CAPÍTULO
FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE
ATENÇÃO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha*
* Promotora de Justiça, coordenadora do Centro Operacional das Promotorias da Infância e da Juventude do
Estado do Rio Grande do Sul.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
496
O artigo 227 da Constituição Federal abriu definitivamente as portas para uma verdadeira
transformação na condição sócio-jurídica da criança e do adolescente. Ao se referir ao direito
à educação de forma específica, prescreve o artigo 225 da Lei Maior a regra consoante a qual a
“educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O Estatuto da Criança e do
Adolescente, por sua vez, diploma legal que regulamenta, dentre outros, o direito fundamental
à educação disciplinando as relações jurídicas, não se limita a garantir o acesso ao ensino
público e a estabelecer mecanismos para compelir o Estado a cumprir suas obrigações.
Estabelece, ademais, regra de controle externo da manutenção do aluno na rede escolar,
atribuindo aos dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental a responsabilidade de,
superado o funcionamento da instância escolar, comunicar ao Conselho Tutelar e, na sua falta,
à autoridade judiciária os casos de altos índices de repetência, reiteração de faltas injustificadas
e evasão escolar.
Tal comunicação oportuniza o surgimento de novas relações institucionais que superam o
autoritarismo e permitem inserir a sociedade na discussão para detectar as causas e encontrar
meios de possibilitar o retorno e a freqüência do aluno às aulas, integrando todas as forças
para mantê-los na escola.
Embasados nessas considerações e mobilizados a desenvolver ações educacionais-
integradoras para superar as insuficiências existentes que decorrem de interpretações
parcializadas, sobretudo as do disposto no artigo 56, inciso II, do ECA, reuniram-se o Ministério
Público, a Secretaria Estadual de Educação, a Secretaria Municipal de Educação de Porto
Alegre e a Coordenação dos Conselhos Tutelares de Porto Alegre, com o objetivo de avançar
na interpretação, tendo como propósito buscar uma melhor eficiência no trato da evasão escolar
e garantia de permanência na escola.
Um dos principais e mais significativos resultados da constituição desse fórum
interinstitucional foi a elaboração de um plano de orientação de ações, as quais poderiam ser
executadas pelos agentes em seu cotidiano, diante da situação de alunos evadidos ou
infreqüentes. Para tal elaboração, ficou clara a necessidade de alcançar-se um consenso mínimo
quanto a formas de uniformização de atuações e de consolidação sobre o conhecimento dos
papéis de cada instituição, uma vez reconhecido que a conseqüência dos afastamentos,
definitivos ou temporários, da escola era e é extremamente negativa para o aluno que se
desvinculava da escola e do grupo ao qual pertencia, sendo muito difícil, em seu retorno, o
restabelecimento das relações tanto com o grupo quanto com o trabalho desenvolvido na sala
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
497
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇAO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
de aula. Para o aluno e para a sua família, esse afastamento se dava sem muitos questionamentos,
pois não havia movimentos organizados por parte da sociedade como um todo, no sentido de
conscientizá-la sobre os direitos da criança e do adolescente e os deveres da família e do poder
público na garantia do acesso e da permanência desse aluno na escola.
Discussões sobre propostas pedagógicas e regimentos escolares também foram
contempladas no fórum por permear a avaliação das reais condições de inclusão, permanência
e avanço do aluno. Ademais, o percentual de 75% de freqüência exigido pela Lei 9.394/96 (LDB)
também mereceu definição de critérios de atuação integrada, por representar uma ameaça à
aprovação dos infreqüentes e evadidos que retornam à escola. Nesse sentido, idealizou-se a
possibilidade de realizar-se o trabalho de resgate do aluno em prazos curtos. Chegou-se ao
prazo de 5 semanas, antevendo-se a possibilidade de novo resgate em caso de eventual
reincidência de infreqüência ou evasão, por igual período, sem que seu direito de aprovação,
pelo critério de freqüência, já estivesse prejudicado, uma vez que o equivalente a 25% dos 200
dias letivos significam 50 dias letivos ou 10 semanas de aula, período que, sem prejuízo do
necessário acionamento e atuação de todas as instituições envolvidas (escola/Conselho Tutelar/
Ministério Público), possibilitaria a mobilização pretendida para o retorno do aluno.
O prazo de cinco semanas ficou assim distribuído: uma semana para o professor regente
de turma ou disciplina dar o alerta à direção; uma semana para a equipe diretiva, juntamente
com o Conselho Escolar, tomar as providências no âmbito escolar; duas semanas para o Conselho
Tutelar aplicar as medidas cabíveis; e uma semana para o Ministério Público exercer suas
atribuições.
Harmonizada a forma de atuação interinstitucional, surgiu a FICAIFicha do Aluno
Infreqüente, uma elaboração coletiva de proposta político-pedagógica inovadora, resultado
de um processo de discussão realizado pelo conjunto de instituições co-responsáveis na práxis
por combater a evasão escolar. A FICAI é um instrumento que visa à adoção de um procedimento
uniforme de controle da evasão escolar em todo o Estado do Rio Grande do Sul, que se
materializou, inicialmente, em Porto Alegre, por meio de termo de compromisso, firmado em
1997 pela Coordenadoria das Promotorias da Infância e da Juventude, Conselhos Tutelares,
Secretaria Estadual de Educação e Secretaria Municipal de Educação. No primeiro semestre de
1999, já contabilizava o Ministério Público idêntico compromisso firmado por 409 dos 467
Municípios do Estado do Rio Grande do Sul.
No sistema de operacionalização da FICAI, a atuação da escola é primordial, pois, além da
família, as instituições educativas são fundamentais na complementação do desenvolvimento
pessoal e social das crianças e adolescentes, representando não apenas um espaço físico, mas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
498
também uma extensão do corpo social que convive com os desafios trazidos para seu interior.
Ressalta-se como fundamental seu papel inovador na medida em que age ativamente, de forma
a possibilitar espaço de ousadia em sua política pedagógica, quando as circunstâncias sócio-
educacionais o indicarem. Tal concepção rompe com a dimensão meramente organizativa e
funcionalista da escola.
Nessa senda, o agente principal do processo é o professor. Cabe a ele diagnosticar quando
o aluno não está indo à escola e desencadear o movimento, por meio do preenchimento do
documento denominado Ficha do Aluno Infreqüente FICAI, acionando a equipe diretiva que,
juntamente com o Conselho Escolar e eventual parceria com as entidades organizadas da
comunidade escolar, deverá realizar contato com a família e todos os movimentos necessários
para possibilitar o retorno do aluno. Por certo, a escola poderá criar suas próprias alternativas
no sentido de resgatar seu aluno de um processo de exclusão social.
Esgotadas as providências do âmbito escolar para reinserção do aluno, caberá à equipe
diretiva encaminhar a 1ª e a 3ª via da FICAI ao Conselho Tutelar e, na sua falta, à autoridade
judiciária, resumindo os procedimentos adotados. O Conselho Tutelar, no âmbito de suas
atribuições, poderá exigir oficialmente a participação dos pais, aplicando as medidas protetivas
consideradas cabíveis para manter a criança ou o adolescente na escola.
O Conselho Tutelar, não logrando o resultado almejado, encaminhará a 1ª via da FICAI à
Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, comunicando à escola o encaminhamento.
De posse da 1ª via da FICAI, da qual constará a identificação e a qualificação do aluno, bem
como o resumo das providências efetuadas pela escola e pelo Conselho Tutelar, o promotor
de Justiça tentará ainda o retorno do aluno (poderá realizar audiência pública com os pais ou
notificar para ouvir individualmente) e, se for o caso, promoverá a responsabilidade dos pais
ou responsáveis. Em qualquer das hipóteses, o promotor de Justiça dará ciência do ocorrido
ao Conselho Tutelar e à escola, efetuando a devolução da 1ª via para a escola, que registrará
o encaminhamento na 2ª via, remetendo a 1ª via à respectiva Secretaria de Educação.
Na preparação para deflagrar o processo de participação dos diferentes segmentos na
implantação da FICAI, buscou-se, como estratégias de mobilização e sensibilização, realizar
audiências públicas e reuniões, agrupando as escolas das redes estadual e municipal de uma
mesma região para, apresentando a proposta e discutindo a evasão e a repetência, sempre
pontuais nas agendas educacionais, sinalar a importância da participação comprometida e do
trabalho coletivo também com a família e a comunidade escolar, como forma de garantir a
qualidade da ação e construir uma relação de parceria interinstitucional, respeitando e
estabelecendo os papéis que competem a cada uma. Esses encontros permitiram a socialização
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
499
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇAO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
do instrumento FICAI e oportunizaram ricas reflexões críticas coletivas, inclusive de nossas
práticas e discursos que, muitas vezes, retroalimentam microprocessos de exclusão.
Coletivizada a ação da rede de atenção ao aluno infreqüente, o fato de esse instrumento
ter sido acolhido como política institucional do Ministério Público possibilitou o
comprometimento dos promotores de Justiça da Infância e da Juventude com a implantação da
FICAI em todos os Municípios do Estado do Rio Grande do Sul, abrangendo, até o primeiro
semestre de 1999, um percentual de 87,59% de Municípios que implantaram a FICAI, conforme
demonstra o gráfico seguinte:
IMPLEMENTAÇÃO DE FICAIRS
Avaliamos que a FICAI tem produzido cotidianamente resultados positivos que já começam
a ser percebidos. Das 1.557 FICAI encaminhadas ao Ministério Público no período de junho de
1998 até julho de 1999, 1.071 crianças e adolescentes retornaram à escola. Muitos outros casos
foram resolvidos no âmbito escolar ou na esfera de atuação do Conselho Tutelar.
Apesar de entendermos que a consolidação da FICAI se dará a médio prazoafinal foram
décadas trabalhando na lógica de apenas consolidar o percentual de infreqüência sem fazer
muitos movimentos efetivos para o retorno do aluno , mesmo que os resultados ainda não
atendam totalmente a nossas expectativas, sua realização é importante, uma vez que representa
a construção e a constituição de uma nova prática pela inclusão escolar.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
500
FICAI FICHA DE COMUNICAÇÃO DE ALUNO INFRENQÜENTE
1. DADOS DA ESCOLA:
Nome:.....................................................................................................................................
Endereço:...............................................................................................................................
Município: .............................................................................................................................
Rede Estadual
Rede Municipal
2. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO ALUNO:
Data de nascimento: ..............................................................................................................
Filiação: .................................................................. e ............................................................
Endereço residencial: ............................................................................................................
................................................................................................................................................
Ponto de referência:................................................................................................................
Telefone para contato: ..........................................................................................................
Nome e endereço de parente ou conhecido: .........................................................................
.................................................................................................................................................
3. HISTÓRICO DA SITUAÇÃO ESCOLAR:
Nome:.....................................................................................................................................
Série/Turma/Turno::................................................................................................................
Datas das faltas: .......................................................... .....................................
Nome do Professor: ...............................................................................................................
Data da comunicação:........../........./......... Assinatura:...........................................................
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
501
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇAO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
4. MEDIDAS TOMADAS PELA ESCOLA:
Formas de convocação aos pais ou responsáveis:...................................................................
................................................................................................................................................
Data de comparecimentos dos pais ou responsáveis: .............................................................
.................................................................................................................................................
Motivos alegados para faltas: ................................................................................................
................................................................................................................................................
................................................................................................................................................
...............................................................................................................................................
Encaminhamentos feitos pela escola: .....................................................................................
...............................................................................................................................................
................................................................................................................................................
...............................................................................................................................................
Retorno do aluno à escola em: ................./.............../..........................................................
Assinatura do Diretor: ...........................................................................................................
Caso o aluno não retorne à escola:
Encaminhamento da Ficai ao Conselho Tutelar em:........../........../.........................................
Assinatura do Conselheiro tutelar: ........................................................................................
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
502
5. ATENDIMENTO E MEDIDAS APLICADAS PELO CONSELHO TUTELAR:
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
Devolução da FICAI em:...../......../.........................................................................................
Assinatura do Conselheiro Tutelar: ........................................................................................
Encaminhado ao Ministério Público em: ................................................................................
6. SÍNTESE DO ATENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO:
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
..............................................................................................................................................
Devolução da FICAI à escola e comunicação ao Conselho Tutelar: ............/.........../...............
Ajuizado em: .........................................................................................................................
Motivo e data do arquivamento:.............................................................................................
...............................................................................................................................................
Assinatura do Promotor de Justiça: ........................................................................................
7. REGISTRO DE CONHECIMENTO DA ESCOLA E ENCAMINHAMENTO À SECRETARIA DE EDUCAÇÃO:
Retorno da FICAI em:...../......../.............................................................................................
Encaminhado à Secretaria de Educação em: ........./......../.......................................................
Assinatura do Diretor: ...........................................................................................................
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
503
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇAO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
COMO FUNCIONA A FICAI – BREVE ROTEIRO
ESCOLA
(1) PROFESSOR:
Ø Constata a infreqüência reiterada do aluno no período de uma semana;
Ø Preenche as três vias da FICAI, campos 1 e 2;
Ø Encaminha à Direção da escola.
(2) DIREÇÃO DA ESCOLA:
Ø A equipe diretiva, juntamente com o Conselho Escolar e parceria com as entidades
organizadas da região, realiza, no prazo de uma semana, contato com a família e todos
os movimentos necessários para possibilitar o retorno do aluno;
Ø Obtendo êxito com o retorno do aluno à escola, preenche os campos 3 e 4
correspondentes à FICAI;
Ø Não obtendo êxito, a Direção da escola também preenche os campos 3 e 4 da FICAI,
resumindo os procedimentos adotados na tentativa de o aluno retornar à escola e
encaminha as 1ª e 3ª vias ao Conselho Tutelar. Na falta de Conselho Tutelar, encaminha
à autoridade judiciária.
(3) CONSELHEIRO:
Ø Localiza o aluno;
Ø Tenta, de todos os meios, fazer que o aluno retorne à escola, durante um prazo de, no
máximo, duas semanas, aplicando a medida protetiva de retorno à escola e
compromissando os pais para que promovam o devido acompanhamento escolar (ECA,
artigo 129, V);
CONSELHO TUTELAR
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
504
Ø Obtendo êxito, registra na FICAI, campo 5, devolve a 1ª via à escola e arquiva a 3ª via;
Ø Quando do não-cumprimento das medidas aplicadas ou da não-localização do aluno,
encaminha a 1ª via da FICAI ao Ministério Público, comunica por escrito à escola e
permanece com a 3ª via na qual, posteriormente, registrará os resultados obtidos pelo
Ministério Público.
(4) PROMOTOR DE JUSTIÇA:
Ø De posse da 1ª via da FICAI, busca o retorno do aluno à escola notificando e ouvindo os
responsáveis e o aluno sobre os motivos da evasão;
Ø Obtendo êxito, comunica ao Conselho Tutelar e devolve a FICAI à escola;
Ø Se for o caso, promoverá a responsabilidade dos pais ou responsável perante a Vara da
Infância e da Juventude (ECA, artigo 249) e/ou a Vara Criminal (Código Penal, artigo
246);
Ø Registra na FICAI eventual ajuizamento ou arquivamento, devolvendo a FICAI à escola e
comunicando ao Conselho Tutelar.
(5) DIREÇÃO DA ESCOLA:
Ø Registra no 2ª dia que permaneceu na escola os encaminhamentos constantes na 1ª via
e encaminha esta à respectiva Secretaria de Educação.
(6) ÓRGÃO PRÓPRIO:
Ø Dá tratamento às informações e implementa medidas no sentido de corrigir possíveis
distorções.
MINISTÉRIO PÚBLICO
ESCOLA
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
505
CAP. 14 FICAIUM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇAO PELA INCLUSÃO ESCOLAR
Simone Mariano da Rocha
(7) JUIZ DA INFÂNCIA E JUVENTUDE:
Ø Buscará priorizar as audiências coletivas ou individuais nos processos e procedimentos
originados pela FICAI;
Ø Responsabiliza os comprovadamente omissos;
Ø Determina o retorno do aluno à escola como medida de proteção.
VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
Enquanto não for finalizada a tramitação da FICAI,
o aluno terá matrícula garantida na sua escola.
MÓDULO VI
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O
SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
508
SUMÁRIO EXECUTIVO
NÃO É DEMAIS REPETIR que o Estatuto da Criança e do Adolescente tem como proposta
elementar a universalização e a proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Após o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
ninguém pode negar à população infanto-juvenil a possibilidade de exercício dos direitos
elementares da cidadania.
A lei estatutária conclama todos para, num esforço comunitário, transformar suas orientações
e mandamentos em ações práticas, restauradoras dos direitos das crianças e adolescentes,
materializadas nas promessas constitucionais de cidadania e gravadas no ordenamento jurídico.
Além de conquistar os direitos de cidadania, o adolescente, quando em conflito com a lei,
estará sujeito às obrigações contempladas no Estatuto e na ordem jurídica pátria, devendo, ele,
responder perante as instâncias da Justiça da Infância e da Juventude e do Conselho Tutelar.
Repita-se que o Estatuto não veio trazer a “impunidade” do adolescente infrator, nem
permitir, por meio dos organismos que estabelece, que o adolescente tenha “passe livre” para
praticar os atos ilícitos que desejar, sem nada lhe acontecer.
Todos aqueles adolescentes que praticarem atos infracionais serão julgados pela Justiça
da Infância e da Juventude. E, como resposta à sua conduta infracional, ao adolescente serão
aplicadas as medidas sócio-educativas, que vão desde a advertência até a privação da liberdade
do infrator, passando pelas medidas de obrigação de reparar o dano, de prestar serviços à
comunidade e pela liberdade assistida.
Essas medidas sócio-educativas não têm caráter de punição, nem podem interferir ou
impedir o processo de desenvolvimento do adolescente. Elas objetivam ao infrator uma melhor
compreensão da realidade e uma efetiva integração social.
De um lado, a medida sócio-educativa com melhores chances de êxito é a liberdade assistida,
porque exige a participação e a interação da família e da comunidade na qual vive o adolescente;
do outro lado, comparece a medida sócio-educativa de internação, com piores condições de
produzir resultados positivos, pois efetivadas como se fossem “penas de detenção”, não só
privando o adolescente de sua liberdade física, mas também de toda a possibilidade de
reorganizar sua vida, nos aspectos afetivo, educacional, do trabalho, oferecendo-lhe em troca
o que há de pior dos complexos prisionais, como todos já sabem “de cor”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
509
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
Na perspectiva de formar cidadãos completos, o Sistema de Justiça acolhe os mecanismos
de garantia dos direitos e interesses da população infanto-juvenil, destacando-se o direito à
educação. Entende-se por educação, nesse contexto, não só o sistema educacional derivado
de uma política pública, mas, também, daquele em que participa a família, sinônimo de uma
verdadeira agência de socialização do ser humano.
Como política social básica e pública, a educação é dever do Estado, que deve garantir o
acesso, a permanência e o sucesso de seu desenvolvimento, funcionando como ”antídoto” à
marginalidade social.
Por outro lado, os temas relacionados ao sistema educacional, inclusive os atos de
indisciplina, devem contar com a intervenção positiva dos órgãos que constituem a proposta
de uma nova política de atendimento à infância e à juventude, conforme estabelecido no
Estatuto. São elas a descentralização político-administrativa, a municipalização do atendimento,
a participação obrigatória da sociedade civil, com a conseqüente criação dos Conselhos dos
Direitos e Conselhos Tutelares.
A partir da década de 70 passada e, em particular, na década de 90 cresceu, em nível
internacional, o prestígio de um movimento restaurativo, cujas propostas alteraram,
profundamente, os resultados que o Sistema de Justiça atualmente produz.
Esse movimento apregoa que, num contexto de prática de justiça, as infrações devam ser
consideradas atos lesivos não só à lei e ao Estado, mas, também, aos indivíduos com seus
relacionamentos, que resultam em danos a vítimas, famílias, comunidades e aos próprios
infratores. Considera, também, que o objetivo legal é fazer justiça por meio da reconciliação
entre as partes e da reparação de danos causados. Por fim, assegura que os conflitos são
melhor resolvidos ao se facilitar o envolvimento das vítimas, dos infratores, das famílias e
comunidades.
A Justiça Restaurativa, como é conhecida, não considera o aspecto “retributivo” da pena,
mas reafirma uma obrigação de “dever”, tanto do infrator quanto daqueles que testemunham o
ato infracional, no momento em que a lei foi descumprida. Nesse sentido, a Justiça Restaurativa,
ao invés de castigá-lo, prefere “tratá-lo”, demonstrando que, com essa prática, o infrator perceba
e assuma mais a responsabilidade do ato ilegal que cometeu.
O “processo” restaurativo tem mais impacto nas pessoas e apresenta resultados melhores
que as penas aplicadas, seguindo o modelo retributivo tradicional. Esse mecanismo pode ser
aplicado no Sistema de Justiça e na rede de atendimento: família, comunidade (primário);
escola, empresa, Justiça (formal), consubstanciado nas estruturas e características desses grupos
de suas normas, de seus valores e de seus relacionamentos.
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
510
O papel interditório da função normativa e seu exercício afetivo e simbólico decorrem da
análise que se faz do enunciado para torná-lo legítimo e detentor de autoridade. A validação
tradicional do enunciado se faz pelo ato de proferi-lo e, ao mesmo tempo, erigi-lo como
referência, independentemente das qualidades de quem os profere.
Hoje, a ciência valida um enunciado a partir do exame de sua consciência lógica, ou seja,
independentemente da figura do enunciador e de seu ato de proferi-lo.
Esse tema cresce em importância na medida em que se discute a autoridade paterna e de
outros personagens que possam substituir aquela autoridade, de interferência psicológica, da
criança e adolescente como, por exemplo, juízes, promotores de Justiça, defensores públicos e
assistentes sociais.
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
511
15
CAPÍTULO
ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O
PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto*
* Procurador de Justiça e integrante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
do Estado do Paraná.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
512
No quadro real de marginalidade em que se encontra a grande maioria da população
brasileira (integrante do país campeão mundial das desigualdades sociais), padecem
especialmente as crianças e adolescentes, vítimas frágeis e vulneradas pela omissão da família,
da sociedade e, principalmente, do Estado, no que tange ao asseguramento dos direitos
elementares da pessoa humana.
Exatamente por isso é que, no atual momento histórico, forças progressistas da sociedade
empenham-se na efetivação das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, desenvolvendo
a mais significativa mobilização social de todos os tempos com o objetivo da garantia dos
direitos fundamentais à infância e juventude.
Mencionado diploma legal, cumprindo comando da Constituição Federal, materializou
proposta de dar atenção diferenciada à população infanto-juvenil, rompendo com o mito de que
a igualdade resta assegurada ao tempo em que todos recebem tratamento idêntico perante a lei.
Com indiscutível acerto, concluiu o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente que,
quando a realidade social está a indicar desigualdade (e hoje calcula-se a existência de cerca de
40 milhões de crianças e adolescentes carentes ou abandonados), o tratar todos de forma igual,
antes de garantia da isonomia, comparece como maneira de cristalização das desigualdades,
dando-se, muitas vezes, contornos de legalidade a situações de exploração e opressão.
Dessa sorte, como fórmula para estabelecer a isonomia material, entendeu-se indispensável
que as crianças e adolescentes perseguidos, vitimizados, marginalizados na realidade social
(vale dizer, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) viessem a receber, pela lei,
um tratamento desigual, necessariamente privilegiado. Sob esse enfoque é que encontramos
como suporte teórico do Estatuto da Criança e do Adolescente a doutrina da proteção integral,
cuja tese fundamental assevera incumbir à lei assegurar às crianças e adolescentes a satisfação
de suas necessidades básicas. Assim, pela nova legislação, as crianças e adolescentes não
podem mais ser tratados como meros objetos de intervenção do Estado, devendo-se agora
reconhecê-los sujeitos dos direitos elementares da pessoa humana, de maneira a propiciar o
surgimento de verdadeira ponte de ouro entre a marginalidade e a cidadania plena (para se
compreender a importância da ruptura havida, basta levar em conta que a lei anterior – o
Código de Menores – em apenas um artigo expressava direito da população infanto-juvenil e
correlato dever do Estado: o de receber assistência religiosa quando se encontrava internado
em unidade oficial, o qual, por óbvio, exsurgia insuficiente para modificar a situação de
marginalidade experimentada por milhões de crianças e adolescentes).
Alertado pela realidade social e alentado pelo propósito de justiça (com a ocorrência de
absoluta sintonia na perspectiva de que o enfrentamento ao subdesenvolvimento – e à
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
513
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
subcidadania – dá-se mediante a efetivação dos direitos do homem), o legislador do Estatuto
da Criança e do Adolescente estabeleceu um conjunto de normas tendentes a colocar a infância
e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade,
exploração e opressão, cumprindo mandamento constitucional no sentido de ser dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227, da CF).
Daí a máxima advinda da expressão o direito de ter direitos, informadora de um título
específico pertinente ao direitos fundamentais da população infanto-juvenil (objetivando
pormenorizar o que se encontra genericamente indicado no texto constitucional), além de
capítulo próprio para tratar da proteção judicial dos interesses individuais, coletivos e difusos
relacionados à infância e juventude (com a idéia central de que, em não havendo cumprimento
espontâneo das regras que arrola, comparece à disposição do interessado um conjunto de
medidas judiciais especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional,
do direito violado; com a intervenção do Ministério Público na propositura das ações necessárias,
como forma de garantir o acesso à Justiça) e, ainda, criou-se uma série de infrações
administrativas e figuras típicas penais destinadas à punição de todos que apresentarem
comportamento em confronto com aquele querido e determinado pela lei.
Insista-se no sentido de que a proposta da lei é o da universalização dos direitos
fundamentais, alcançando assim todas as crianças e adolescentes (certa feita, participando de
seminário organizado pelo Movimento de Defesa dos Favelados do Estado do Paraná para
conhecimento e discussão do ECA, no final dos debates, uma senhora já de certa idadedestas
que caminham pelas ruas de Curitiba empurrando carrinhos de papel e de desilusão, na
demonstração inequívoca de que o “primeiro mundo” ainda não é para todos os curitibanos
aproximou-se de mim e disse: “Doutor, agora eu acho que entendi este tal de Estatuto da
Criança e do Adolescente, ele diz que é para gente querer para os filhos dos outros o mesmo
bem que a gente quer para os nossos filhos”. Ou seja, numa perspectiva de justiça e solidariedade,
a lei quer que todas as crianças e adolescentes possam exercitar os direitos que parte da
população infanto-juvenil já exercita).
Assim, por esse aspecto, impossível criticar-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, já
que ninguém pode ter o descaramento – e a insensibilidade social – de querer negar às crianças
e adolescentes brasileiros (máxime quando se trata daquela população oriunda das famílias
empobrecidas e despossuídas) a possibilidade de exercício dos direitos elementares da
cidadania. O empenho de todos nesse momento, portanto, deve se dar na linha de que as
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
514
previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente deixem de ser tratadas enquanto meras
declarações retóricas ou singelas exortações morais (e, por isso mesmo, postergadas na sua
efetivação ou relegadas ao abandono), para se constituírem em instrumentos de materialização
das promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico (a lei, por si só, não tem o
condão de alterar a realidade social, sendo que o exercício dos direitos nela estabelecidos é
que vai produzir as transformações desejadas, especialmente no que tange ao anseio da
instalação de uma sociedade progressivamente melhor e mais justa).
Correlatamente aos direitos inscritos, vale anotar que alcançam as crianças e adolescentes
todas as obrigações contempladas no ordenamento jurídico, estando eles sujeitos a responder
perante as mais variadas instâncias, principalmente a Justiça da Infância e Juventude e o Conselho
Tutelar, pelos atos anti-sociais que praticam, notadamente quando atingem a categoria de atos
infracionais (ou seja, a conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção).
Dessa forma, ao contrário do que se difunde equivocadamente (diga-se, por ignorância ou
má-fé), o Estatuto da Criança e do Adolescente não significa a “porteira aberta para a impunidade”
e nem contempla qualquer regra que se traduza em “garantir que as crianças e adolescentes
possam praticar os atos ilícitos que quiserem, sem nada lhes acontecer” ou que importe em
“rompimento das relações de autoridade” no âmbito da família ou da escola. A clara definição
da lei é no sentido de que nenhum adolescente a que se atribua a prática de conduta estabelecida
como crime ou contravenção pode deixar de ser julgado pela Justiça da Infância e Juventude
(ou, em se tratando de criança, pelo Conselho Tutelar e sujeito às chamadas medidas protetivas,
arroladas no art. 101, do ECA). Caso comprovada a conduta ilegal, será o adolescente
responsabilizado pelos seus atos e, como resposta social, receberá a imposição das chamadas
medidas sócio-educativas (art. 112, do ECA), que vão desde a advertência, passando pela
obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a
inserção em regime de semiliberdade, até a internação, para os casos mais graves e que significa
privação de liberdade do infrator.
Então, quando se trata de adolescente autor de ato infracional, a proposta é de que, no
contexto da proteção integral, receba ele medidas sócio-educativas (portanto, não punitivas),
tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão
da realidade e efetiva integração social (o educar para a vida social visa, na essência, o alcance
de realização pessoal e de participação comunitária, componentes próprios da cidadania).
Desse elenco de medidas acima arrolado, a que se mostra com as melhores condições de
êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na realidade
familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
515
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
potencialidades. O acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente
e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho,
certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a
prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência
e a comunidade.
E, no outro extremo desse mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida sócio-
educativa com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da
segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes internados acabam ainda
mais distanciados da possibilidade de um desenvolvimento sadio. Privados de liberdade,
convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos
marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do cotidiano),
a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem absorvendo a chamada
“identidade do infrator”, passando a se reconhecer, sim, como de “má índole, natureza perversa,
alta periculosidade”, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta
indestrutivelmente ligada à delinqüência (os “irrecuperáveis”, como dizem deles). Dessa forma,
quando do desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com categoria piorada,
ainda mais predispostos a condutas violentas e anti-sociais. Por isso que, embora seja necessário
em determinadas situações operar a privação da liberdade do adolescente como forma de
interromper o seu ciclo delinqüencial, a internação deve surgir como último recurso e pelo
tempo que corresponda ao propósito da formulação de novo projeto de vida, afastando-o da
criminalidade. Daí a obrigatória incidência dos princípios constitucionais que dizem respeito à
excepcionalidade da medida, sua brevidade e, a todo tempo, o respeito à condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento. Conquanto de maneira mitigada, idênticas observações críticas
cabem à medida de inserção em regime de semiliberdade.
Já as medidas de advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à
comunidade indicam nítida prevalência do caráter educativo ao punitivo. É que as técnicas
educativas voltadas à autocrítica e à reparação do dano se mostram muito mais eficazes, vez
que produzem no sujeito infrator a possibilidade de reafirmação dos valores ético-sociais,
tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de
se modificar (as técnicas de conteúdo punitivo, segundo as teorias da aprendizagem, eliminam
o comportamento somente no instante em que a punição ocorre, reaparecendo poréme com
toda forçatão logo os controles aversivos sejam retirados).
As medidas protetivas, também aplicáveis aos autores de atos infracionais (de maneira
isolada ou cumulativamente – cf. art. 112, inc. VII, do ECA), apresentam caráter exclusivamente
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
516
pedagógico, destinadas que são ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (cf.
art. 101, do ECA).
Por outro lado, a opção do Estatuto da Criança e do Adolescente no sentido de vir a se
constituir em instrumento para garantir às crianças e adolescentes a possibilidade do exercício
dos direitos elementares da pessoa humana (obrigando o Estado a cumprir seu papel institucional
e indelegável de atuar concretamente no campo da promoção social, efetivando políticas sociais
básicas, políticas sociais assistenciais em caráter supletivo e programas de proteção especial
destinados a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e/ou social) certamente trará
efeitos positivos, via justiça social, no pertinente à diminuição da chamada “delinqüência infanto-
juvenil” (como bem salientou Roberto Lyra, “a verdadeira prevenção da criminalidade é a justa e
efetiva distribuição do trabalho, da educação, da cultura, da saúde, é a participação de todos nos
benefícios produzidos pela sociedade, é a justiça social”in Expressão mais simples do Direito
Penal, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1953, pág. 11).
De se anotar também que a resposta à prática de ilicitudes por parte de crianças e
adolescentes deve sempre estar informada por um princípio básico: o de respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, cuja conduta revela imaturidade bio-psicológica. Nesse
rumo e em se tratando de adolescentes autores de ato infracional ou anti-social, as medidas –
judiciais ou administrativas – carecem atender a um conteúdo educativo, capaz de auxiliar o
jovem a superar os conflitos próprios da chamada crise da adolescência, singularmente marcada
pelo insurgimento contra os padrões sociais estabelecidos e, em assim sendo, determinante
das transgressões aos comandos legais.
As denominadas infrações em razão de sua condição (cuja incidência será tanto maior se,
além das dificuldades de ordem psicológica, comparecerem também as provenientes da falta
ou carência de recursos materiais, isto é, da miséria ou da pobreza) reclamam a intervenção no
sentido da orientação, assistência e reabilitação, buscando-se alcançar o inerente potencial
dirigido à sociabilidade e cidadania.
Dentre os direitos fundamentais consagrados à infância e juventude, avulta em importância
o pertinente à educação, observado também que o sistema educacional se constitui – juntamente
com a família – em extraordinária agência de socialização do ser humano (isto sem contar com a
possibilidade de significativa interferência, enquanto aparelho ideológico do Estado, na formação
do pensamento acerca da própria sociedade e do papel que cada um pode nela desempenhar).
A educação, devidamente entendida como direito de todos e dever do Estado, destina-se,
conforme prevê a regra constitucional, ao pleno desenvolvimento da pessoa, sua qualificação
para o trabalho e, principalmente, ao preparo para o exercício da cidadania (art. 205, da CF).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
517
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
O direito de acesso, permanência – e sucesso – no sistema educacional comparece como
antídoto à marginalização social que encaminha crianças e adolescentes à mendicância, ao
trabalho precoce, à prostituição e à delinqüência. Não é por acaso que, na verificação dos
adolescentes sujeitos às medidas sócio-educativas (especialmente a de internação), alcança-se
índices elevadíssimos no referente ao afastamento (algumas vezes voluntário e outras por
exclusão imposta indevidamente pela própria escola) do direito à educação.
A luta por novos e melhores dias para a infância e juventude brasileiras só pode estar
embandeirada – e ter como ponto de partida – a efetivação do direito à educação. Daí o
legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao mesmo tempo em que arrola os seus
princípios informadores (art. 53) e as formas de sua materialização (art. 54, incluindo o dever
do Estado de assegurar “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria” e “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade
ao ensino médio”, observando-se que a nova redação do art. 208, I e II, da CF, ditada pela
Emenda nº 14, de 12/09/96, prevê “ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada,
inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria e
progressiva universalização do ensino médio gratuito”), assevera que “o acesso ao ensino
obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”, assim como que “o não oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, assim como a sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente” (art. 54, §§ 1
o
e 2
o
).
Na perspectiva da formação de verdadeiros cidadãos, o processo educativo deve atender
a propósitos de valorização do ser humano, de seu enriquecimento no campo das relações
interpessoais, de respeito ao semelhante e, identicamente, de desenvolvimento do senso crítico,
da responsabilidade social, do sentimento participativo, da expressão franca e livre do
pensamento, enfim, constituindo-se a escola em espaço democrático propício ao desenvolvimento
harmônico do educando.
Do processo pedagógico por certo faz parte o estabelecimento de regras relacionadas ao
campo disciplinar, com o aprendizado pelo educando dos próprios limites na convivência
escolar e social, assim como o respeito à autoridade (no dizer de Paulo Freire, tão necessária
quanto a liberdade). Como observa Chloris Casagrande Justen,
“saber respeitar a autoridade, conhecendo sua importância e atendendo seus limites é um dos
objetivos a serem alcançados no processo educacional para a cidadania. Por essa razão, o aluno
deve aprender os seus limites e os que envolvem a autoridade, em convivência social equilibrada.
O tratamento pedagógico às atitudes incorretas do aluno deve se iniciar no exato momento da
primeira ação inadequada ao relacionamento respeitoso, com ações apropriadas à verdadeira
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
518
compreensão do papel do aluno e do professor, a fim de evitar situações de agressões, autoritarismo
ou anarquia” (in O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Instituição Escolar, Curitiba: publicação
da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 1993, pág. 24).
É equivocado pretender que o ECA, em qualquer de suas regras, esteja a atentar contra o
princípio da autoridade no sistema educacional. A previsão legal (que se contrapõe, isto sim,
ao autoritarismo) está a enunciar que o educando deve ser tratado com dignidade e respeito,
vedando-se então – e estabelecendo como figura criminosa – submeter criança ou adolescente
sob sua autoridade a vexame ou a constrangimento (art. 232, do ECA).
As regras de disciplina, a serem estabelecidas de maneira clara no Regimento Escolar e
aplicadas pelo Conselho Escolar (após, por óbvio, assegurada a ampla defesa), devem
contemplar sanções pedagogicamente corretas, que jamais importem na exclusão do aluno do
sistema educacional (e, não raras vezes, a escola expulsa do seu seio exatamente aquele que
dela mais necessitava para o adequado desenvolvimento) ou em conseqüências destituídas de
caráter educativo (como aquelas que revestem de imobilismo não construtivo ou na suspensão
pura e simples que viola o direito à educação, quando não acaba correspondendo a um aparente
“prêmio” pelo ato de indisciplina).
De se considerar que o desinteresse pelas atividades escolares, assim como as dificuldades
na aprendizagem – e conseqüente insucesso do aluno – podem gerar a indisciplina. Ao tempo
em que se constitui um poder/dever para o sistema educacional tratar da eliminação dos atos
de indisciplina (e combater qualquer tipo de violência), sem dúvida que é preciso aprofundar
o conhecimento acerca de suas causas, buscando-se também identificar a origem dos problemas
daqueles que recebem o rótulo de indisciplinados (cabendo sempre considerar, como anotam
Maria José Milharezi Abud e Sonia Aparecida Romeu, que
“a disciplina vem associada a outros aspectos do comportamento e o seu desenvolvimento na
conduta de cada um representa uma conquista progressiva, lenta, que se dá à medida que o
indivíduo se desenvolve como um todo, isto é, à medida que amadurece física e mentalmente,
aprimora a sua inteligência, ganha em equilíbrio emocional, autonomia individual, capacidade de se
relacionar com seus semelhantes” – in Disciplina na escola: autoridade versus autoritarismo, Arlete
D’Antola, org. São Paulo: EPU, 1989, pág. 81).
Por certo, não se deve traduzir como rebeldia ou indisciplina as críticas ao processo
pedagógico ou às propostas educacionais, nem tampouco as contestações aos critérios avaliativos,
já que tais manifestações, além do indisputável conteúdo positivo e democrático, correspondem
a direito do educando (art. 53, inc. III e par. único, do ECA).
A participação dos pais (por dever legal) e da própria comunidade (enquanto proposta
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
519
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
democrática) no momento de se responder aos atos de indisciplina constituem auxílio que não
deve ser descartado, notadamente pela ambiência de co-responsabilidade que se instaura e
integração direcionada à verdadeira prática da cidadania. Com efeito, o envolvimento dos alunos,
de suas famílias e da comunidade nas questões educacionais se constitui fórmula de participação
ditada pela Constituição Federal (os arts. 205 e 227, caput, estabelecem claramente a necessidade
da integração entre família, comunidade, sociedade e Estado no processo de educação de crianças
e adolescentes, bem como na sua proteção contra toda forma de violência, crueldade ou opressão),
sendo que disposições semelhantes são encontradas no Estatuto da Criança e do Adolescente
(cf. arts. 4
o
, caput; 5
o
; 17; 18; 53, caput e par. único e 70), bem como na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (cf. arts. 2
o
; 12, inc. VI; 13, inc. VI; 14, caput e inc. II e 29).
Os temas relacionados ao sistema educacional, inclusive aqueles pertinentes a atos de
indisciplina (ou infracionais), devem contar com a intervenção positiva dos órgãos que
constituem a proposta de uma nova política de atendimento à infância e juventude, conforme
estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Assim, apresentando como componentes mais significativos a descentralização político-
administrativa, a municipalização do atendimento e a participação obrigatória da sociedade
civil, temos que tais diretrizes contemplam a criação dos Conselhos dos Direitos das Crianças
e Adolescentes, bem como dos Conselhos Tutelares; pretendendo-se, nessa nova linha, seja o
Município o espaço adequado para a reflexão acerca dos problemas existentes na área e também
para a sua equação, apresentando e efetivando programas e ações capazes de superar as
dificuldades detectadas.
Os Conselhos dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, previstos no artigo 88, inciso
II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, são órgãos com caráter deliberativo (portanto,
definidores da política pública de atendimento à infância e juventude nas esferas municipais,
estaduais e nacional), incumbidos de proceder ao controle das ações governamentais em todos
os níveis e que não podem prescindir da participação popular (diga-se paritária, ou seja,
apresentando igual número entre os representantes dos órgãos governamentais e os indicados
pelas entidades que atuam na defesa – ou no atendimento – dos direitos das crianças e dos
adolescentes). Na conjugação das disposições dos artigos 1
o
, parágrafo único, 204 e 227, § 7
o
,
todos da Constituição Federal, regulamentadas posteriormente pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, conclui-se ter havido determinação no sentido de se inaugurar nova fase na
política de atendimento à infância e juventude, cuja marca esteja delineada no surgimento de
espaços para a democracia participativa, garantindo-se à sociedade civil voz e vez na formulação
das políticas sociais públicas relacionadas a crianças e adolescentes. O comando é para que se
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
520
implante um regime de co-gestão nesse campo de atuação governamental, o que representa
extraordinário progresso ao tempo em que, até então, a forma de “participação” da sociedade
na área se restringia a atividades de cunho eminentemente assistencialista (as campanhas
beneficentes para arrecadar alimentação, agasalhos, etc.) ou consistia em mão-de-obra graciosa
para efetivação de programas e ações previamente decididos pelo poder público (adesão aos
mutirões para construção de creches, praças, etc.), enquanto os conselhos comunitários
apresentavam caráter meramente consultivo (e, assim sendo, apenas davam “palpites” nas
atividades governamentais).
A democracia participativa (pela primeira vez enunciada em nossa Constituição Federal na
formulação de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” – cf. art. 1
o
, par. único) pressupõe o
Executivo compartilhando parcela do seu poder, propiciando integração do povo no processo
decisório estatal e garantindo concretamente importante predicado da cidadania, além de marcá-
lo com o signo da legitimidade (equivocada e infelizmente, a maioria dos governantes entende
que a representatividade do voto, não raras vezes obtida por meio do abuso do poder econômico
no campo eleitoral, seria suficiente para dar surgimento à legitimidade do poder e, assim,
tratam com descaso as possibilidades do seu exercício efetivamente democrático). Disso tudo
resulta a definição da natureza jurídica dos Conselhos de Direitos, apresentada por Wilson
Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino, como
“a) órgão especial – devido à sua estrutura e funcionamento específico; b) órgão autônomo e
independente – não está subordinado hierarquicamente ao Governo; c) administração descentralizada
– com capacidade para decidir as questões que lhe são afetas, com a peculiaridade de que suas
deliberações se tornam vontade estatal e não vontade do órgão, sujeitando o próprio Estado ao seu
cumprimento” (in Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros,
1993, pág. 77).
Então, no contexto da política pública de educação – e especificamente no que tange ao
tema da disciplina no sistema educacional – exsurge inconteste a possibilidade de atuação dos
Conselhos dos Direitos (sintonizados, por certo, com os Conselhos de Educação) traçando
regras gerais relativas, dentre outras, ao conteúdo dos Regimentos Escolares nesse campo
educacional (vale dizer, na definição dos atos de indisciplina enquanto infrações às normas e
deveres previamente estabelecidos, bem como das respectivas penalidades e sua forma de
imposição), ao funcionamento – e atribuições – dos Conselhos Escolares ou equivalentes
nesse aspecto disciplinar, à necessária intervenção dos supervisores de ensino ou orientadores
educacionais nos casos de indisciplina.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
521
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
De igual importância para o tema comparecem os Conselhos Tutelares, órgãos permanentes
e autônomos, encarregados pela sociedade de zelar no pertinente ao efetivo cumprimento dos
direitos das crianças e adolescentes. São eles fiscalizadores de todo o sistema de atendimento à
infância e juventude, bem como – enquanto proposta de desjurisdicionalização de determinadas
matérias – fruto desse anseio de abrir espaços para a sociedade civil na co-gestão dos interesses
relacionados à população infanto-juvenil, demonstrado especialmente pelo fato de que os
conselheiros são pessoas da comunidade e por ela escolhidas (por meio de sufrágio universal,
com voto direto e facultativo) para o exercício de tão relevante função. Aos Conselhos Tutelares
restam estabelecidas importantes atividades de caráter genérico (tais como subsidiar os Conselhos
de Direitos para a formulação de uma política de atendimento à infância e juventude que se
mostre integralmente vinculada à realidade de cada município ou “assessorar o Poder Executivo
local na elaboração de propostas orçamentárias para planos e programas de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente” – cf. art. 136, inc. IX, do ECA) e, identicamente, o atendimento
de casos concretos de crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco pessoal,
familiar ou social, em razão de os seus direitos terem sido “ameaçados ou violados: I – por ação
ou omissão da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis;
III – em razão de sua conduta” (cf. art. 136, inc. I, do ECA).
Na área específica do direito à educação, prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente,
expressamente, a obrigatoriedade – por parte dos dirigentes de estabelecimentos de ensino
fundamental – da comunicação ao Conselho Tutelar dos casos de: “I – maus-tratos envolvendo
seus alunos; II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos
escolares; III – elevados índices de repetência” (cf. art. 56). Guardadas as devidas proporções,
a lei confere ao conselheiro tutelar poderes assimilados àqueles estabelecidos para os juízes
da Infância e Juventude, incluindo a aplicação das chamadas medidas de proteção (previstas
no art. 101, I a VII, do ECA); a expedição de notificações (com obrigatoriedade de
comparecimento); a requisição dos serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço
social, previdência, trabalho e segurança (que significa determinar o atendimento pelo poder
público, nos termos do art. 136, III, a, do ECA). De lembrar também que o legislador do Estatuto
da Criança e do Adolescente – buscando garantir aos Conselhos Tutelares o alcance de suas
relevantes atribuições – estabeleceu ser crime impedir ou embaraçar a atuação de conselheiro
tutelar no exercício de suas funções (cf. art. 236) e infração administrativa o comportamento de
descumprir determinação do Conselho Tutelar (cf. art. 249).
Não resta dúvida, portanto, do papel extremamente importante a ser desempenhado pelo
Conselho Tutelar nas situações em que o sistema educacional não consegue responder, adequada
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
522
e suficientemente, às hipóteses concretas de indisciplina, máxime diante da possibilidade da
aplicação das medidas de proteção como a “orientação, apoio e acompanhamento temporários”,
bem assim a “matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino
fundamental”, também a “requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em
regime hospitalar ou ambulatorial”, ainda a “inclusão em programa oficial ou comunitário de
auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos”, além da “inclusão em programa
comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente” (cf. art. 101, combinado
com o art. 136, inc. I, ambos do ECA). De igual sorte, possibilita a lei que o Conselho Tutelar
aplique medidas em relação aos pais ou responsável, dentre elas a “advertência”, a “obrigação
de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar”, a
“obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado”, o
“encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico”, a “inclusão em programa oficial
ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos”, além do
“encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família” (cf. art. 129,
combinado com o art. 136, inc. II, ambos do ECA).
Finalmente, necessário consignar ser atribuição do Conselho Tutelar a intervenção quando
se trata de ato infracional praticado por criança (fora ou dentro do sistema educacional), com
a possibilidade de aplicação das já referidas medidas de proteção (cf. art. 105, combinado com
o art. 136, inc. I, ambos do ECA). Em suma: esgotados os recursos escolares, devem ser
encaminhados ao Conselho Tutelar as crianças e adolescentes que, em razão de sua conduta,
encontrem-se em situação de risco pessoal ou social, inclusive no que tange às suas atividades
junto ao sistema educacional (idêntico encaminhamento deve ocorrer quando os pais ou
responsável pelo educando estão a carecer de aconselhamento ou atendimento). Também
devem ser encaminhadas ao Conselho Tutelar as crianças que, dentro da escola, praticarem
atos infracionais.
Como interveniente obrigatório nas questões que afetam o regular funcionamento do sistema
educacional – por certo contempladas na ampla perspectiva do direito à educação – encontra-
se a Justiça da Infância e Juventude, que agora, em razão do Estatuto da Criança e do
Adolescente, assume função (diga-se, elevada em dignidade) de ser espaço destinado à
efetivação dos direitos da população infanto-juvenil. A nova postura da Justiça frente aos
temas relativos a crianças e adolescentes encontra base no fato de que o legislador do Estatuto
da Criança e do Adolescente fez por inscrever capítulo próprio para tratar da proteção judicial
dos interesses individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e juventude. A idéia
central é a de que as regras enunciadas no Estatuto da Criança e do Adolescente se constituem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
523
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
em comandos obrigatórios à família, à sociedade e ao Estado, aguardando-se, especialmente
por parte do poder público, o cumprimento das normas estabelecidas.
Todavia – e exemplificando – se o administrador, espontaneamente, não tornar concreto o
que lhe foi determinado pela lei, comparece disponível ao interessado um conjunto de medidas
judiciais especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela jurisdicional, dos
direitos violados (dentre as medidas judiciais arroladas vale anotar, pela importância, a ação
civil pública, destinada à proteção dos interesses individuais, coletivos e difusos próprios da
infância e da adolescência, e que corresponde à extensão para esta seara das previsões contidas
na Lei nº 7.347/85. Também é digna de registro a utilização da ação mandamental contra atos
ilegais ou abusivos – emanados de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício
de atribuições do poder público – que lesem direito líquido e certo estabelecido no Estatuto da
Criança e do Adolescente. Não é de se afastar, por outro lado, a importância do mandado de
injunção quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direito
constitucional pertinente à infância e juventude, assim como da ação direta de
inconstitucionalidade ou das representações interventivas, quando fundamentadas na
necessidade da salvaguarda de interesses de crianças e adolescentes).
Essa nova postura – na linha do asseguramento pela Justiça da Infância e da Juventude
dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes – implica afastar o falso e perverso
raciocínio, absorvido e fomentado pelo revogado Código de Menores (e, de conseqüência,
pela Justiça de Menores), de que os carimbados com o rótulo da situação irregular vivem na
marginalidade social porque foram ou são incapazes de uma plena integração, vale dizer, eles
próprios são responsáveis pela condição marginal em que se encontram. Portanto, por meio
de tal manipulação ideológica, alcançava-se o resultado de excluir a estrutura social do âmbito
da questão (imunizando-a, assim, de críticas), bem como de legitimar retoricamente as medidas
judiciais impostas (já que, embora se apresentasse com a roupagem de tutelar, instrumento de
proteção e assistência, a legislação de menores em nada contribuiu para que se alterasse na
essência a situação de indignidade vivida pelas crianças e adolescentes brasileiros, vez que
sequer os reconhecia como sujeitos dos mais elementares direitos).
Então, a alavanca mitológica impulsionava medidas judiciais que se perfaziam mediante
meros processos lógico-dedutivos de subsunção dos fatos às normas, decidindo-se – como
exemplo – por destituições do pátrio poder ou por internações em unidades ditas de
“reeducação” sem indagações de outra ordem que não as técnico-jurídicas, já que se cria (ou
fingia-se crer) no fato de ter havido opção voluntária pela vida marginal ou delinqüencial, pois
o pressuposto (insista-se, falso) era de que a todos os indivíduos são oferecidas iguais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
524
oportunidades de progresso social (ou, trasladando-se para o nosso tema específico, teríamos
o reconhecimento da igualdade de oportunidades no acesso, permanência e sucesso dentro
do sistema educacional).
Em outro aspecto, se o juiz de Menores era apresentado pela lei então em vigor (o Código
de Menores) com contornos de onipotência (já que se lhe permitia, entre outras coisas, decidir
levando às últimas conseqüências o princípio da livre convicção – cf. art. 5
o
; legislar sobre a
matéria de menores mediante portarias e provimentos – cf. art. 8
o
; decretar a perda ou a
suspensão do pátrio poder e a destituição da tutela em situações das mais variadas, inclusive
de gravidade discutível – cf. art. 45; atuar como censor dos espetáculos teatrais, cinematográficos,
circenses, radiofônicos e de televisão – cf. art. 52; criar rito procedimental à revelia de qualquer
texto legal – cf. art. 87), no atendimento aos casos concretos acabava tomado pela angústia da
impotência no tocante a contribuir decisivamente para o estabelecimento de um novo projeto
de vida para a sua clientela marginalizada, já que não podia legalmente exigir do Estado o
cumprimento do seu dever institucional e indelegável de atuar concretamente na promoção
social das crianças e adolescentes (e respectivas famílias).
Agora, diante da inscrição – e detalhamento – dos direitos fundamentais relativos à infância
e juventude (estabelecidos na sua maioria como direitos subjetivos e, portanto, dever do Estado),
a autoridade judiciária desfruta da especial condição de poder prestar a tutela jurisdicional
prolatando decisões que apresentam o condão de transformar positivamente a realidade social.
O juiz de Infância e Juventude tem a possibilidade de – quando devidamente provocado (face
ao princípio da inércia da jurisdição) – decidir sobre as questões sociais mais significativas,
seja no plano individual ou nas esferas coletivas ou difusas. Uma sentença do juiz da Infância
e Juventude pode implicar a garantia do exercício de direitos como o da educação (determinando,
por exemplo, a construção de creches ou estabelecimentos educacionais), da saúde
(determinando, por exemplo, a construção de um posto de saúde ou as vacinações obrigatórias
recomendadas pelas autoridades sanitárias), da profissionalização (determinando, por exemplo,
a instituição de programas pertinentes à iniciação profissional), e assim por diante.
Ou seja, o juiz da Infância e Juventude pode transformar a Justiça em espaço significativo de
luta para a instalação de uma sociedade que trate com mais eqüidade e isonomia as crianças e
adolescentes, propiciando a todos a concretização dos direitos elementares da pessoa humana
(e de nada adianta a fixação de direitos fundamentais para a infância e juventude se a omissão
generalizada possibilitar sejam eles tratados como meras declarações retóricas ou singelas
exortações morais, com o valor e peso de avisos, lições ou conselhos e, por isso mesmo,
postergados na sua efetivação ou relegados ao abandono). Se antigamente acabou-se difundindo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
525
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
o mito de que “entregar a criança ao juiz” representava a pronta solução de questões de qualquer
conteúdo, hoje tal raciocínio encontra foro de realidade, já que as crianças e adolescentes passam
a contar com a atividade jurisdicional para a efetivação dos seus interesses juridicamente tutelados.
Mas além de explicitar os direitos genericamente prometidos na Constituição Federal, de
estabelecer um conjunto de medidas judiciais para a garantia de tais direitos e de ameaçar com
sanções penais e administrativas os que não cumprirem os seus imperativos proibitivos, o
Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta mais um importante mecanismo destinado a
fazer valer os ditames que assenta. Trata-se do de incumbir uma instituição, integrante da
estrutura organizacional do Estado, da defesa dos interesses e direitos pertinentes à infância e
juventude. Como se sabe, os promotores e procuradores de Justiça passaram a ter o dever
funcional de atuarem no sentido de garantir a efetivação das normas estabelecidas em favor
das crianças e adolescentes. Num país onde a maioria da população não tem acesso à Justiça
(seja por falta de condições econômicas ou pela inexistência da Defensoria Pública na grande
maioria das Comarcas), andou bem o legislador do ECA quando atribuiu ao Ministério Público
tão magnânima missão.
Aliás, é de se abrir parênteses para dizer que os elaboradores do Estatuto da Criança e do
Adolescente alcançaram compreender corretamente os novos contornos institucionais do
Ministério Público, alinhavados especialmente pela Constituição Federal de 1988. Entendeu-
se, acertadamente, que quando o legislador constitucional indicou ser o Ministério Público
“instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”
(cf. art. 127, caput), bem como ao arrolar como uma das suas funções institucionais a de “zelar
pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados nesta Constituição” (cf. art. 129, inc. II), podendo, para tanto, “promover o inquérito
civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente
e de outros interesses difusos e coletivos” (cf. art. 129, inc. III), deu-lhe foro de instituição de
primeira grandeza, convocando-a para verdadeira defesa da sociedade.
Se é vazia a discussão acerca de o Ministério Público ter ou não se transformado num 4
º
Poder, afastado de dúvida está que veio a alcançar, via do novo ordenamento constitucional, o
poder inerente às instituições independentes e autônomas. A preocupação, agora, consiste em
estabelecer a maneira pela qual será atendida a regra, absoluta e inafastável, no sentido de
que o poder, que emana do povo, a favor dele deve ser exercido. Assim, fez-se por reconhecer
no Estatuto da Criança e do Adolescente que o exercício democrático do poder exige do
Ministério Público um atuar permanente em proveito da maioria da população brasileira,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
526
exatamente das camadas sociais distantes dos predicados inerentes à cidadania. Foi também
absorvida a idéia de que o Ministério Público, rompendo com antiga postura de estrita burocracia
legal (mero agente do Poder Executivo a fiscalizar o Poder Judiciário quanto à correta aplicação
das leis, inclusive daquelas injustas, destinadas à dominação enquanto forma de dar legalidade
a situações de exploração e opressão), deve agora atuar como verdadeiro agente político,
interferindo de maneira positiva na realidade social e, mediante exame do conteúdo ideológico
das normas jurídicas, dar prevalência para a materialização daquelas que signifiquem proposta
de libertação do povo, internalizando – na esfera administrativa ou no espaço oficial do
Judiciário – as reivindicações sociais na forma de conflitos coletivos, politizados e valorados
pela ótica dos interesses das classes populares.
Por tudo isso – e porque se acredita no Ministério Público como fiel defensor de um Estado
genuinamente democrático – é que o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente
determinou-lhe o zelo pelos interesses individuais, coletivos e difusos ligados à proteção da
infância e da juventude, que não raras vezes implicará cobrar das autoridades públicas uma
atuação mais eficiente no fornecimento às crianças e adolescentes de educação, saúde,
profissionalização, lazer, etc., vez que sua tarefa obriga buscar prevalência do interesse público
primário (ou seja, o interesse relacionado ao bem geral) em contraposição às vezes com o interesse
público secundário (ou seja, o modo pelo qual os governantes vêm o interesse público). Em
outro aspecto, considerada a infeliz praxe forjada no sentido de que quando surgem leis a favor
dos excluídos ainda assim de nada servem, porquanto não são aplicadas, convém ressaltar que
o Ministério Público – assumindo por intermédio de seus agentes a responsabilidade profissional,
política e ética da construção de uma ordem social mais justa – poderá fazer do Estatuto da
Criança e do Adolescente seu instrumento fundamental de luta em favor da sociedade.
Não tenho dúvida de que garantir a vida, a liberdade, a educação, a saúde, a
profissionalização e outros direitos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente
(seja na via administrativa ou judicial) corresponderá à incrementação do processo de
democratização da sociedade brasileira, canalizando as aspirações de emancipação dos
segmentos populares e contribuindo assim para superar a alienação política e econômica imposta
à maioria dos brasileiros. O desejo é de que o promotor de Justiça da Infância e Juventude dê
especial contribuição à esperada conformação de um novo Ministério Público, que deixe
definitivamente para trás suas raízes de patrocinador dos interesses dos reis e dos poderosos,
reconhecendo-se como legítimo defensor dos interesses da sociedade, com a visão clara de
que tal mister implica defender prioritariamente as suas camadas marginalizadas e afastadas
das propostas de cidadania contidas na legislação constitucional e infra-constitucional.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
527
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Nesse contexto, a proteção aos interesses individuais, coletivos ou difusos relacionados à
infância e juventude deve ser tratada com absoluta prioridade pelos promotores e procuradores
de Justiça, já que o comando da Constituição Federal (“É dever (...) do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à
convivência familiar e comunitária (...)” – cf. art. 227), bem como o do Estatuto da Criança e do
Adolescente (cf. art. 4
º
, par. único, letra c), tornam obrigatório o estabelecimento de uma política
institucional nessa área que contemple a preferência manifestada pelo ordenamento jurídico.
No campo específico do direito à educação, a mesma competência e dedicação emprestada
pelo promotor de Justiça da Infância e Juventude para a garantia de acesso ao sistema educacional
(aí incluída a educação infantil) deve ser estendida para assegurar a permanência e o sucesso
nesse espaço de desenvolvimento do ser humano. Além então de acompanhar – e, se necessário,
intervir – nas hipóteses de evasão escolar e elevados índices de repetência, comparece de todo
desejável a interferência do Ministério Público enquanto colaborador nos processos de – via
práticas pedagógicas – superação dos casos de indisciplina e violência no sistema educacional,
inclusive numa proposta preventiva à prática de atos infracionais.
Como regra geral em todas as áreas de intervenção, não deve o promotor de Justiça da
Infância e Juventude ter atuação apenas reflexa, ou seja, intervir somente depois do fato consumado
e já constituindo-se em violação ao ordenamento jurídico. Por meio de permanente contato com
o sistema educacional (participando de audiências e debates públicos, proferindo palestras,
etc.), o agente do Ministério Público, assim como o juiz da Infância e Juventude, podem difundir
adequadamente o conteúdo dos diplomas legais de maior interesse ao sistema educacional,
esclarecendo a correlação de direitos e deveres a que todos estão submetidos (vale dizer, ao
mesmo tempo em que enuncia os direitos dos educandos também oferece informação para derrocar
o mito de que as crianças e adolescentes estariam isentos de qualquer responsabilidade pelos
seus atos anti-sociais).
Orientar os dirigentes escolares acerca dos procedimentos destinados à averiguação – e
eventual imposição de sanções – em relação aos atos de indisciplina e buscar estabelecer distinção
entres estes e os atos infracionais também exsurge como contribuição importante a ser levada a
cabo pelo promotor de Justiça, máxime porque, não raras vezes, apresenta-se muito tênue a
linha que separa situações passíveis de serem resolvidas no âmbito da instituição escolar
(lembrando aqui que a Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
prevê o respeito à liberdade e o apreço à tolerância como princípios fundamentais do ensino –
cf. art. 3
o
, inc. IV) e aquelas que carecem de encaminhamento à Justiça da Infância e Juventude,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
528
com ou sem passagem pela autoridade policial (observando que, de qualquer forma, a convocação
de força policial só se justifica como último recurso, porquanto sua ação indiscriminada impõe,
freqüentemente, indevido constrangimento a atingir exatamente os educandos vítimas da violência
que se pretende reprimir).
Aliás, deve-se levar em conta que, enquanto titular exclusivo da ação sócio-educativa e
com a possibilidade de inclusive dela dispor através da remissão como forma de exclusão do
processo, o promotor de Justiça da Infância e Juventude pode ajustar procedimentos para que
em infrações de bagatela ou de menor potencial ofensivo não se processe o ingresso do
educando no sistema da Justiça da Infância e da Juventude de forma desnecessariamente
estigmatizante (v. o art. 40, 3, b, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
e a regra 11, das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância
e Juventude). Em outro aspecto e se necessária, a aplicação de medida sócio-educativa deve
objetivar sim a imposição de limites ao educando e seu aperfeiçoamento enquanto pessoa em
peculiar fase de desenvolvimento (e a repercussão da intervenção da Justiça da Infância e da
Juventude será favorável nesse aspecto) sem, entretanto, produzir sua exclusão (expulsão ou
evasão) da escola (daí a preferência das espécies como a da prestação de serviço à comunidade,
da reparação de dano ou da inserção no programa de liberdade assistida), campo para educação
libertadora e formação do futuro cidadão (inclusive propiciando a muitos a oportunidade de
deixarem de ser meras vítimas da sociedade injusta que vivemos para se constituírem em
agentes transformadores desta mesma realidade).
Enfim, os atos de indisciplina (e de violência) devem ser resolvidos no âmbito do próprio
sistema educacional, atendidas as regras legais e aquelas por ele mesmo instituídas (com
intervenção e respostas imediatas, de molde a impedir uma progressão na conduta que vai se
tornando cada vez mais grave e reprovável), somente se encaminhando as questões ao sistema
da Justiça da Infância e Juventude (aí incluído o Conselho Tutelar), após esgotados os recursos
escolares. Por outro lado, quando da prática de um ato infracional, o sistema educacional não
pode se substituir ao Sistema da Justiça da Infância e Juventude, devendo o caso ser apreciado
e julgado nessa instância. Sem se pretender levar a Polícia para dentro da escola (e propiciar
assim situações humilhantes ou vexatórias, bem como as que transformem o espaço da escola
que se quer libertárioem campo de opressão), cabe anotar que, assim como ocorre com o
adulto, o ECA prevê a possibilidade da apreensão em flagrante do adolescente encontrado
praticando um ato infracional (tal procedimento pode ser levado a cabo por qualquer do povo,
enquanto a autoridade policial tem o dever de realizá-lo). A contenção de atos infracionais
junto ao sistema educacional se fará tanto mais positivamente quanto for a sua integração com
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
529
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
a Justiça de Infância e Juventude e com o Conselho Tutelar, criando-se espaços de reflexão
conjunta acerca da vida institucional e estabelecendo-se, dentro do possível, critérios para a
intervenção frente aos variados comportamentos anti-sociais experimentados.
Conclua-se com o raciocínio de que o Estatuto da Criança e do Adolescente – antes de se
constituir num estorvo – pode ser utilizado enquanto importante instrumento de salvaguarda
do sistema educacional, em especial quando dispõe que o princípio constitucional da prioridade
absoluta para as crianças e adolescentes significa preferência na formulação e execução das
políticas sociais públicas, assim como destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e juventude (art. 4
o
, par. único, letras c e d, do ECA).
Quanto ao educando, pessoa em desenvolvimento que tem direito de vivenciar condições
favoráveis para seu sucesso no processo de ensino e aprendizagem, o registro final serve para
a reafirmação de ser ele a medida de todas as coisas no sistema educacional, merecedor de
formação que venha no futuro credenciá-lo agente responsável pela tarefa indicada como um
dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que é o de instalar uma sociedade
livre, justa e solidária.
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
531
16
CAPÍTULO
A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA
FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig*
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..... 532
1 O NASCIMENTO PSÍQUICO DO SUJEITO: A FUNÇÃO MATERNA E A FUNÇÃO PATERNA ..... 536
2 AS CONSEQÜÊNCIAS SUBJETIVAS DAS FORMAS DE INSCRIÇÃO NA LÍNGUA ..... 538
3 DO DISCURSO RELIGIOSO AO DISCURSO CIENTÍFICO: A LEGITIMAÇÃO DA AUTORIDADE ..... 540
4 O SINTOMA SOCIAL COMO EFEITO DO DISCURSO DA CIÊNCIA ..... 542
5 A DOGMATICIDADE E A CONTINGÊNCIA ..... 544
6 O PROJETO DA MODERNIDADE E A NOVA RACIONALIDADE:
UMA LÓGICA DOS OBJETOS E A PROMESSA DA FELICIDADE INSTANTÂNEA ..... 545
7 O IDEAL DE AUTONOMIA E A PROPOSTA DE AUTO-FUNDAÇÃO SUBJETIVA ..... 547
8 O DIREITO UNIVERSAL AO GOZO ..... 548
9 O GOZO PARCIAL E O GOZO TOTAL ..... 549
10 O RECURSO DA LEI E FORMAS DE INTERVENÇÃO ..... 552
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 553
* Psicanalista, doutor em Filosofia pela PUCRS, professor na UNISINOS.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
532
INTRODUÇÃO
É na esteira da leitura dos fenômenos sociais a partir de instrumentos de análise fornecidos
pela Psicanálise que se inscrevem nossas contribuições preliminares.
1
Partindo da constatação da mudança cultural que caracteriza a passagem da pré-modernidade
(organizada segundo os princípios da hierarquia, holismo e tradição) para a modernidade
(organizada segundo os princípios da igualdade, individualismo e autonomia), observamos
efeitos marcantes, tanto no campo subjetivo como nos modos de relação com o outro (laço
social). Alguns desses efeitos se apresentam de modo problemático, e sua junção com soluções
insatisfatórias geram o que denominamos, segundo a psicopatologia psicanalítica, sintomas
sociais. Estudar e caracterizar essas soluções precárias, examinar sua estrutura e articulação
poderá nos orientar na escolha de formas de intervenção, quer seja para novas propostas ou
no suporte das já existentes.
Portanto, a intersecção entre a intervenção educativa, a clínica psicanalítica e a operação
jurídica poderá ser criativa e eficaz na medida em que pudermos elaborar uma adequada
descrição e interpretação do núcleo patológico próprio de nossa cultura. Uma preocupação
corrente que ouvimos de muitos magistrados se expressa na pergunta acerca dos efeitos que as
próprias medidas adotadas venham a produzir nas crianças e nos jovens, considerando-se que
não está em jogo apenas um indivíduo, mas o próprio social em crise. As novas patologias daí
resultantes (toxicomanias, delinqüência, somatizações, etc.), assim como os fenômenos sociais
específicos (exclusão social, racismo, seitas, violências, etc.), reclamam formas de intervenção
que em parte ainda precisam ser construídas, e em parte já se encontram em operação nos
procedimentos jurídicos, educacionais e terapêuticos atuais.
O sujeito moderno, submetido ao imperativo de sair de casa (abandonar a tradição que o
funda), encontra-se acuado na busca de referência dentro de um tempo e espaço sem centro
fixo e submetido ao comando dos objetos. A progressiva substituição da forma de viver em
comum, que organizava o laço social em torno do primado da religião, pela prevalência do
método científico e seus corolários implícitos, produz novas patologias, individuais e sociais,
para as quais os remédios tradicionais são insuficientes. Podemos examinar, a partir das teses
de Freud e Lacan, que situam a mudança nas relações do homem com o pai, alguns traços
1
A contribuição para os “Encontros pela Justiça na Educação” que aqui apresento se produziu a partir de
minha prática psicanalítica, dos debates com minha mulher e colega psicanalista Conceição Beltrão e de
interlocuções com magistrados e promotores no Grupo de Estudos “A função paterna e suas representa-
ções na Modernidade”, que coordeno no Foro Central de Porto Alegre.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
533
CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
dessas novas patologias, ou seja, nas representações da função paterna e no lugar da filiação.
Desse modo, essas patologias somente podem ser compreendidas à luz do declínio da função
paterna como mecanismo de referência e sua progressiva substituição pelos modos de operar
do discurso da ciência e seus corolários. Como uma das conseqüências, encontramos a produção
de enunciados impessoais, desconectados da situação histórica em que foram produzidos.
Temos, por exemplo, a execução de uma ordem que deve ser cumprida pela simples razão de
ser uma ordem. Esse mesmo feito se dá nos enunciados científicos formulados por meio de
frases impessoais. Outras conseqüências são o enfraquecimento da responsabilidade,
desaparecimento do sentido comum dos limites, obscurecimento da faculdade de julgar e de
estabelecer uma hierarquia de valores.
Este tema que tenta dar conta de algo no nível do social é uma preocupação que emerge
de vários campos de trabalho, disso que vem sendo insistentemente apontado e denunciado e
que se trata de uma certa ruptura no nível da sociedade. Se a sociedade entra em risco, significa
que a organização da vida de cada um também está em risco e vice-versa. Isso produz
preocupações, que motivam a avançar na análise das patologias sociais e as correspondentes
psicopatologias individuais, com vistas a propor formas de intervenção mais lúcidas e orientadas,
ainda que para alguém minimamente avisado dos fenômenos culturais possa parecer ousadia
e temeridade.
Entretanto, as patologias sociais assim como as individuais seguem uma lógica peculiar,
cujo mecanismo pode ser isolado a partir do determinismo apreensível nas repetições, que
revelam uma fixidez extraordinária. Os astros repetem de forma contínua e inexorável suas
órbitas e ao mesmo tempo sabemos que cada órbita não é idêntica à anterior. Em cada repetição
há uma diferença, o que faz toda a diferença para o universo. A humanidade, desde seus
primórdios, através das representações pictóricas nas cavernas, da construção dos mitos e de
sua transmissão oral e escrita, procura se desvencilhar do lugar de puro elemento dessa
repetição. Para isso, se utiliza da linguagem.
Tomando a fundação do mundo judaico-cristão, Deus rompe o caos com um ato que se
efetiva a partir da palavrafiat lux. O mundo grego foi se construindo por meio da transmissão
da letra a partir da teogonia. Os mitos das origens da humanidade ou os mitos individuais, via
de regra, marcam o rompimento do caos e o início da existência por meio de uma palavra
fundadora que podemos chamar de dote ou dom.
Ilustram esse feito os contos de fadas, nos quais a história do protagonista é desencadeada
a partir de uma frase. A bela adormecida recebe seus dons e sua danação, assim como os
personagens-criança de outros contos que escutam a sentença que seus pais, adultos ou mesmo
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
534
aquilo que a cultura tem destinado para si. Nesses casos isso é seguido de uma ação que
rompe o vaticínio, como aquelas que evitam ser engolidos pela bruxa ou que repercutem no
próprio salvamento ou dos irmãos, numa posição de reverter o processo de ser engolido ou
eliminado por um adulto gigante. Encontramos dois tipos básicos de personagens. Aquele que
está como um objeto encantado e seu destino é alterado e decidido pelo outro, como na bela
adormecida, ou aquele personagem que opera uma mudança em sua história, não se deixando
encantar. Apesar de aura fantasiosa, o conto infantil traz no seu núcleo, da mesma forma que
os mitos da humanidade, o trágico. O filho devorado pelo pai ou pelo destino ou pelo tempo
ou pela repetição. Tanto Cronos quanto Ugolino representam esse adulto devorando o filho.
No caso dos astros, a intervenção que nos arranca de uma pura e indistinta repetição dos
fenômenos da natureza se encontra no próprio ato de contar cada giro que ali se realiza,
facilmente ilustrado pelo rico conhecimento empírico que as pessoas do meio rural possuem.
Que poder mágico se encontra nesse simples ato de contar cada um dos giros? É possível
contar os giros nos atos humanos? Como se faz para contar?
As crianças pedem que a mesma história seja contada e recontada para enfado de quem as
está contando. E a criança exige rigor no relato, no qual nada pode ser alterado, e corrige se
alguma modificação for feita quanto ao primeiro relato da história. Essa situação infantil é
equivalente, no adulto, às situações de trauma: o acidentando, o assaltado, aquele que perdeu
alguém muito próximo ou que tenha assistido a uma cena de violência, repete reiteradamente
o relato. O episódio desencadeia o falar sobre o mesmo, reconstruindo a cena. Tanto para a
criança, por meio do conto de fadas, como para o adulto, sob o efeito do trauma, a saída do
horror se faz com o câmbio do terror pela palavra. O inverso também pode ser ilustrado: nos
regimes totalitários, no âmbito social, doméstico ou educacional, a primeira medida para
sustentação da obediência são os dispositivos para promover o emudecimento.
Num depoimento, em fevereiro do ano 2000, para o “Art Canal 5”, da televisão francesa,
um octogenário declarou que em sua infância já pertencia ao programa educacional da juventude
hitlerista. Nessa época, morre seu pai e o instrutor do acampamento de treinamento infanto-
juvenil o pune severamente por estar chorando. A partir de então, é proibido de falar no pai e
de ter referências particulares, devendo somente dedicação exclusiva ao culto da bandeira.
Mas também no campo da repetição, encontramos na adolescência um campo fértil. A
repetição do ato que se dá nesse sujeito adolescente denuncia a impossibilidade de fazer o
câmbio para a palavra, dando-se a repetição, então, do puro ato. Esses são apenas alguns
aportes da ordem da fenomenologia que servem para situar a patologia da repetição.
Os estudos de casos e análises, feitas a partir do exercício da clínica psicanalítica e em grupo
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
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de estudos sobre a crise de autoridade e as fraturas da lei na família, escola e cultura, enlaçando
o discurso analítico com o discurso jurídico, numa frutífera discussão com magistrados e promotores
de Justiça, mostram que o cotidiano, tanto privado quanto público, encontra-se permeado por
repetições que escapam ao ordenamento da lei. Essas manifestações preocupantes, tanto em
suas causas quanto em seus efeitos, se caracterizam como sintomas sociais na medida em que
não mais se limitam ao âmbito privado e sim têm implicações no âmbito de nossa própria cultura.
De outro lado, o cotidiano não é feito somente de rupturas da lei e das regras que organizam
o social. São encontrados muito mais sujeitos que pautam suas ações pela lei do que sujeitos
que se contrapõem à mesma. Diante da infração da lei, em suas mínimas e máximas formas,
podemos ainda nos perguntar: por que uns não roubam, por que não matam, por que não se
suicidam? O que os mantém, apesar das adversidades, de modo relativamente estável, em
consonância com os atos ordenados pela lei? Se, para o insistente infrator da lei, se dá uma
repetição cujo ato idêntico insiste a cada vez, de modo brutal e assustador, aparentemente
fugindo a qualquer razão, o que mantém outros na seqüência de atos realizados segundo a lei?
O eixo fundamental para tratar essa questão na perspectiva da Psicanálise já é muito claro
na formulação de Freud: a questão do social e a questão do indivíduo (indivíduo e sociedade),
enquanto aquilo que incomoda e causa sofrimento é uma e mesma questão. Não há como
abordar as patologias individuais sem considerar as patologias sociais e vice-versa. Esse único
eixo tem a ver com a relação do sujeito com o pai, como já referimos, e isso Freud diz
explicitamente em seu principal texto cultural, que trata das origens da cultura (ou civilização),
que é “Totem e Tabu”. É neste contexto que podemos compreender melhor a conclusão de
Freud (1912-1913a, p. 185-6):
“Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em
que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte conver-
gem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo acordo com a descoberta psicanalítica de
que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso
conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os proble-
mas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: a relação do
homem com o pai”.
Se estamos de acordo com essa indicação, partimos da pergunta: o que muda na relação do
sujeito moderno com o pai? E afinal de contas, o que é um pai? Cabe, em primeiro lugar, diferenciar
o indivíduo-pai do exercício da função paterna. Quando falamos da questão paterna, já estamos
endereçados à sua função de tal modo que o exercício dessa função não coincide nem com a
função em si e nem com o pai efetivo. Portanto, não se trata simplesmente de reduzir o exame à
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
536
questão do pai efetivo de cada um, mas sim à operação dessa função. Cabe ressaltar que aqui,
função é tomada não no sentido da função de um órgão, que serve para alguma coisa, mas no
sentido matemático de um “x” que pode ser preenchido por diferentes valores.
Evidentemente que, no sentido matemático, em cada situação o “x” pode ter apenas um
valor. Mas ele em si é vazio e a função não tem dono. Ela poderá ser operada por este indivíduo
ou por aquele. O que se trata é de perguntar quem opera essa função e como é que essa função
se configura. Quais transformações vem sofrendo essa função ao longo da história ocidental
até nossos dias? É evidente que não temos condições de perseguir todas essas questões num
texto apenas, mas é uma perspectiva de investigação extremamente rica e decisiva.
Pressupomos aqui a tese psicanalítica de que o sujeito humano, em sua subjetividade, não
é o mero resultado do desenvolvimento do suporte biológico, assim como cada cultura não se
explica pela natureza previamente suposta, mas sim que tanto a cultura como o sujeito se
constituem a partir de um processo inaugurado sempre a partir da relação estabelecida com os
outros. Isso significa que o mundo humano, ou seja, a subjetividade se forma a partir de
fragmentos trocados com o outro, quer seja o resíduo de uma palavra, a memória de um olhar
oblíquo ou a lembrança da sensação de um toque. Machado de Assis é mestre na descrição da
captura desses pequenos elementos. Em “Dom Casmurro”, Bentinho se dá conta de seu amor
por Capitu no momento em que escuta, atrás da porta, José Dias contar para sua mãe o que via
no olhar que esse dirigia para Capitu.
1 O NASCIMENTO PSÍQUICO DO SUJEITO: A FUNÇÃO MATERNA E A FUNÇÃO PATERNA
No caso da constituição psíquica do sujeito, observamos que o nascimento subjetivo do
bebê requer a operação ativa de um outro, a mãe no caso, que opera sobre a cria humana sua
inscrição na língua e na cultura, através de um irrestrito investimento de valor na mesma. Diz
o ditado: “Toda mãe é coruja”, do qual deriva a expressão do ficar “corujando”, espreitando
com embevecimento. É a posição das madonas renascentistas nas quais, pela primeira vez, o
artista coloca na tela a criança captando o olhar materno. Sabemos que as falhas nessa operação
da função materna estão correlacionadas à não-constituição do corpo próprio enquanto
subjetivado e sensibilizado (psique e carne).
O organismo infantil, mesmo se apresentando sem falhas graves, pode ficar desconectado
dessa subjetividade, funcionando como um circuito fechado. Estamos nos referindo às graves
patologias da infância reunidas no conceito de autismo. O trabalho clínico, a partir desse
diagnóstico precoce, feito por meio dos primeiros indícios presentes nas partes do organismo
tidas inicialmente como desconectadas pelo bebê, como o olhar, a voz, a ingestão e a expulsão,
pode conduzir a uma intervenção preventiva na relação mãe-bebê. Essas partes do corpo não
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
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correspondem à sua função original que é colocada a trabalhar a partir dos apelos feitos à
criança. Trata-se de um olhar que não olha, de uma boca cujo músculo não se presta para
produzir nem um sorriso e nem para conter a baba. Esta patologia, que é o autismo, pode nos
servir para elucidar patologias sociais contemporâneas, que trazem indícios da desconexão de
procedimentos, tendendo a funcionar de modo automatizado. Penso nos enunciados que
circulam em nossos sistemas, funcionando de modo constante, sem autoria, sem um centro de
responsabilização.
Um segundo tempo na constituição psíquica do sujeito ocorre na medida em que a mãe, ou
aquele que opera a função materna, apresenta seu bebê a um outro, fazendo que ocorra a
operação da função paterna. Dessa maneira, a mãe não se mantém em uma dualidade unificadora
com o bebê, imprescindível no primeiro tempo, mas reconhece e convoca um outro para participar
dessa relação com o bebê. Ou seja, quando a função paterna opera, o que ela faz é uma separação.
Na medida em que a mãe insere a criança na relação com um terceiro, ela faz que a criança
se desprenda dessa junção mãe/bebê. O início da relação na qual a mãe fala e responde pela
criança é fundamental para a constituição de um lugar subjetivo. Por exemplo: a mãe pergunta
para o recém-nascido se ele está com frio e mesmo sem esperar qualquer manifestação da criança,
supõe que houve uma resposta e diz: “Então, vou colocar um casaquinho em você!” Nesse
momento, para a mãe, a criança já está falando. Nessa relação dual descrita, já está presente o
terceiro, que é a língua. Essa relação dual não pode se eternizar. Logo, com a introdução da
presença de um terceiro, a mãe insere seu bebê no social e isso ocorre de tal forma que esse ato
da mãe, de pôr em operação a função paterna, é decisivo na estruturação desse sujeito humano.
Isso faz que esse nascimento esteja impregnado da própria constituição do social.
Portanto, se há um terceiro em jogo, já se está no social e a entrada da cria humana na
palavra e na língua consiste na operação da lei simbólica, que inscreve a cria a partir do desejo
materno e desejo paterno. Contudo, essa passagem é crucial e significa que a instância terceira
não se reduz ao pai efetivo, mas à função, enquanto figuração de uma referência fundadora,
demarcando uma alteridade específica que não se confunde com o semelhante. Na cultura
creole da Martinica, essa função é exercida pelas avós. Desse modo, tanto o pai como a mãe se
apresentam para o filho não apenas como semelhantes, mas como representantes da cultura,
ocupando um lugar díspar, condição sine qua non para introduzi-lo na lei simbólica.
Na representação religiosa dessa operação, a instância terceira que permite ordenar uma
subjetividade e o social é a própria divindade. Lacan, ao extrair do contexto teológico a
articulação lógica dessa operação, denomina de Outro, com maiúscula, esse lugar alhures de
onde estamos referidos, e de função paterna a operação dessa instância terceira enquanto
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
538
aquilo que produz referência singularizante e constitui um sujeito. O Pai pode não
obrigatoriamente coincidir com o exercício da função paterna. Mas podemos tomar esse modelo
mais tradicional para explicar essa lógica. Então, o Pai, investido de uma autoridade que lhe
advém através da cultura, exerce uma ação educativa sobre a criança, possibilitando-lhe a vida
em sociedade. Mas o Pai em questão desempenha essa ação referenciado a uma instância
terceira, que lhe serve de recurso e para a qual apela no momento de cada atitude. Isso é
arbitrário e inconsciente. Os juízes, os médicos, os padres, os professores, os tios, a justiça, a
lei, os contratos, os rituais religiosos e domésticos podem representar para qualquer indivíduo
uma relação com o lugar de Pai enquanto esse lugar alhures. O problema se dá quando aquele
que temporariamente ocupa o lugar de Pai se confunde com o lugar e se toma por Pai/Deus.
2 AS CONSEQÜÊNCIAS SUBJETIVAS DAS FORMAS DE INSCRIÇÃO NA LÍNGUA
A língua é apresentada para a criança por um adulto de formas diferenciadas. Entretanto,
partimos do pressupostos de que as leis que organizam o social e o psíquico não são diferentes
das leis da linguagem.
Uma das formas de apresentação da língua pode ser ilustrada por um caso de adoção, no
qual a criança é adotada por um casal tomado por um ideal de filantropia e pela certeza de que
bastaria prover o adotado de todos os recursos necessários para que tudo corresse bem.
Adotaram a criança imbuídos do sentimento de estarem contribuindo para salvar ao menos
uma do pior e cumprindo seu compromisso social. O resultado desastroso se mostrou na
adolescência do adotado, quando irrompeu uma grave psicose. O que se pôde depreender do
relato desses pais é que não havia disposição para ter o filho como um alguém com quem
pudessem criar e descobrir novas significações. Tudo estava dado por antecipação, e de que
ali ele não seria um filho. O investimento não estava nele, mas no próprio narcisismo dos pais
adotivos, que por meio do corpo do adotado realizavam seu programa de salvamento.
Nesse caso, a língua foi apresentada para a criança como um signo. Sua identidade estava
construída por antecipação. Como demonstra o caso, no qual o vir a ser dessa criança estava
antecipado, ocupando o lugar de um objeto não humano, ao qual bastava suprir e ter cuidados
de adestramento. Entretanto, apresentar a língua como um campo rico de significações, abrindo
a possibilidade para que a criança encontre espaços para construir suas identificações, resulta
na inscrição de uma falta no bebê, conectando o campo sensório-perceptual com o psíquico,
assim como tornando rica a relação com o outro. O encontro do bebê com a mãe, enquanto
significante, se mostra então cheio de surpresas, vacilações e aprendizagens recíprocas, abrindo
a via da apresentação desse bebê ao terceiro, o pai enquanto representante da outra língua, a
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
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cultura. Essa mesma forma de olhar para o bebê pode ser repetida com êxito nas relações
escolares e no aprendizado das leis, uma vez que ali esteja presente, no adulto, o desejo que
a criança deseje aprender.
Em Roma, a criança era apresentada ao pai, que a reconhecia ou não. Em nossa cultura
também é apresentada ao pai, que vai ao cartório. E se não há pai, ele é apresentado à sociedade,
por intermédio do registro. Disso resulta a importância subjetiva do registro civil. Também a
criança é apresentada ao padre, à Igreja ou a algum representante religioso. É emblemática a
apresentação do Menino Jesus no Templo, para a circuncisão, que representa o pacto com
Deus e com a cultura.
Sabemos, segundo as contribuições da Antropologia Cultural, que a constituição de um
sujeito depende de sua inscrição em uma dada cultura e essa inscrição se dá de forma arbitrária.
Essa arbitrariedade em geral está expressa nos desígnios misteriosos das divindades ou na
força do destino lido nos oráculos sagrados. Portanto, é a partir de um lugar cultural que
escapa ao domínio do próprio sujeito e de seus semelhantes, estando aí incluídos os pais, que
advém a referência que coloca em operação a lei simbólica.
A operação da lei simbólica se faz então a partir da arbitrariedade daquele que a opera,
que fica investido pelo lugar de Pai, funciona em nome do Pai ou em nome da lei. Muitas vezes
o magistrado ou promotor ocupa essa função para além da lei jurídica, especialmente na
modernidade, baseada em equivalências medidas facticamente. Essa arbitrariedade da lei
simbólica é o que permite a passagem da apreensão quase delirante de um pai, que toma sua
cria como dotada de um valor único, como uma diferença radical, para sua inscrição efetiva na
cultura, isto é, como dotada de um valor verdadeiro. Essa operação, que não se calca em
nenhuma razão a não ser no ato de um paium pai encarnado, operando a função paterna −,
resulta na possível inscrição da cria humana, instituindo um lugar subjetivo possível. As relações
nas quais se encontra banida essa mediação estão fadadas para soluções violentas, onde o eu
somente pode sobreviver pela destruição do tu. Os dramas cotidianos dos vizinhos ou as
paranóias entre colegas dão a precariedade dos laços duais, pela ausência de interdição
proveniente da lei simbólica. A lei mosaica interdita os crimes das relações duais.
O predomínio de relações duais, no mesmo modelo das linguagens artificiais que se
organizam apenas com dois sinais, como é a linguagem dos circuitos integrados, produz um
estado de paranóia generalizada, cuja expressão mais imediata é a desestruturação subjetiva,
lançando o indivíduo numa espiral da violência contra os semelhantes e contra os objetos,
num retorno sobre si mesmo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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3 DO DISCURSO RELIGIOSO AO DISCURSO CIENTÍFICO: A LEGITIMAÇÃO DA AUTORIDADE
Contudo, o que se observa em nossa cultura é uma espécie de deslegitimação do lugar de
pai e a obrigação de uma justificação sem fim daquele que venha a ocupar esse lugar. Isso se
observa no fenômeno moderno do conflito de gerações. Não é raro encontrarmos famílias nas
quais o programa para o fim de semana é decidido pelo filhos, mesmo ainda sendo crianças. E
quando os pais querem exercer sua autoridade, precisam se utilizar de justificações, que a
cada vez são rebatidas pelos filhos. Vê-se aí, nesse caso, que a autoridade dos pais não se
sustenta em sua palavra, mas precisa buscar fundamento em argumentações que tendem ao
infinito. Nas culturas organizadas dentro do discurso religioso, o lugar do pai simbólico se
afirmava por sua própria enunciação, como representante de Deus. O desenvolvimento da
ciência moderna abala o lugar da autoridade religiosa, produzindo um novo laço social no
qual o motor que comanda a cena não é mais a enunciação do mestre, enquanto ato de dizer,
mas um conjunto acéfalo de enunciados, isto é, pronunciados a partir da terceira pessoa do
singular, numa forma estritamente impessoal.
A substituição da cosmovisão religiosa pela científica tem como caso exemplar Galileu,
pois não se reduz a um conflito entre pessoas, mas sim entre duas concepções diferentes a
respeito do que legitima a autoridade. Galileu introduz um novo enunciado de autoridade:
“isso é científico”, marcando o crepúsculo da legitimidade calcada na onipotência e onisciência
de Deus. Como afirma Lebrun (1997, p. 59): “O início do fim de uma legitimidade fundada
sobre a autoridade em benefício de uma legitimidade fundada sobre a autoridade fornecida
pela coerência interna dos enunciados.”
Desse modo, o saber que constitui referência, que serve de bússola no social, se desloca
da autoridade do mestre para a autoridade de um saber acéfalo. Isso resulta numa radical
subversão da possibilidade do exercício da função paterna. Nessa perspectiva entendemos a
passagem do predomínio do discurso religioso para o predomínio do discurso da ciência
como produtora de uma subversão no conjunto do tecido social, isto é, instaura novas formas
de laço social e igualmente novas patologias. Essas novas patologias se organizam em torno
de um eixo: a progressiva desimplicação subjetiva do indivíduo moderno, que se estende
desde as formas de anonimato (individual e grupal, como as associações econômicas e políticas)
até os modos de desresponsabilização pelo social (seu grupo, sua nação, sua língua, sua
cultura, etc.) e por si mesmo.
Desse modo, a organização monocêntrica e hierárquica, apoiada na autoridade da tradição,
é eclipsada por uma organização pluricêntrica e horizontal. Freud, um homem que partilhava os
ideais da cientificidade, apresenta uma descoberta que podemos considerar, como sugere Lacan,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
541
CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
uma resposta às conseqüências do discurso da ciência. Essa resposta gira em torno da reintrodução
da questão do pai e a dimensão do sujeito no interior do discurso da ciência. E isso se faz pela
não-recusa da divisão inerente à pessoa, que se encontra sempre dividida entre seu dizer e seu
dito, entre saber e verdade, entre enunciado e enunciação. Quando agimos, acontece muito mais
do que a pura objetividade de nossos atos e nossas palavras. O que dizemos contém o ato de
dizer, a enunciação, que não se esgota naquilo que foi dito. Muito mais do que dizemos, é o ato de
dizer que comporta a possibilidade de implicação, responsabilidade, adesão e compromisso com
o outro. Por exemplo, ao empenharmos nossa palavra, seja para nós mesmos, seja para um
compromisso com o outro, o que está em jogo não é apenas o conteúdo dos enunciados que
proferimos, mas o próprio ato de enunciação, a palavra pronunciada e assentida. É esse ato de
assentimento que determina a autoridade de nosso ato, e para tal, colocamos em operação aquilo
que nos dá referência subjetiva, ou seja, a função paterna.
No discurso da ciência, a operação em jogo visa realizar o desaparecimento da enunciação, o
dito tende a apagar os vestígios do dizer e o saber se universaliza, passando a valer para todos,
anulando o valor de qualquer verdade singularizada. Essa operação científica permite a produção
de enunciados com valor para todos os sujeitos e para todas as situações, o que resulta em
sistemas altamente produtivos. Na relação do homem com a natureza, o ganho é insuperável,
assim como na produção de objetos, passando-se rapidamente do artesanato para a produção em
série. Contudo, os efeitos subjetivos de tal operação é que se apresentam problemáticos, gerando
o declínio da autoridade calcada na enunciação do sujeito e a proliferação da autoridade fundada
em enunciados impessoais.
De modo mais específico, perguntamos: como se fundamenta um enunciado? O que é que
o torna legítimo, justificado e detentor de autoridade? Dois são os modos de tornar um enunciado
sustentável.
O modo tradicional, progressivamente descartado e esquecido pela supremacia do modo
científico de validação, se faz pelo ato de proferir o enunciado e esse dizer passa a ser referente,
independente das qualidades de quem o profere ou das qualidades do próprio enunciado. É
no ato de dizer que se funda a autoridade do enunciado, e se o mesmo encontra simpatia no
que o escuta, no público, sua autoridade se torna reforçada. Tanto a palavra de Deus quanto
a autoridade paterna encontram sua legitimidade desse modo. É no dizer do pai que se funda
e se define o lugar de filho. O peso maior se localiza na palavra unida ao ato de proferimento
enquanto garantia dada pelo enunciador.
O segundo modo de validar um enunciado advém do exame de sua consistência lógica,
ficando dispensado o enunciador e seu ato de enunciar. A autoridade do enunciado decorre
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
542
de sua consistência, pouco importando quem o profira, que deve de preferência ser excluído,
pois haveria o risco de introduzir algum erro.
Ora, o segundo modo de validação de enunciados, como funciona no discurso da ciência,
implica uma progressiva deslegitimação da autoridade paterna e um incremento da legitimidade
materna. Isso se observa nas novas configurações familiares como a família monoparental, na
qual os filhos se reúnem em torno da mãe, ou nas mulheres que optam por um “produção
independente”, dispensando de saída o lugar paterno para seus filhos. A implicação mais
preocupante dessa transformação se situa na passagem do laço familiar e social articulado a
partir do terceiro, que opera referência, para um laço dual.
De um lado temos a pergunta sobre a função paterna, sobre o que é isso que se distingue
simplesmente dos personagens que possam ocupar a cenanão que os personagens não
sejam decisivos e importantes −, mas que essa função possa ser exercida, ou posta em
funcionamento, por qualquer integrante do social.
4 O SINTOMA SOCIAL COMO EFEITO DO DISCURSO DA CIÊNCIA
A noção mais freqüente de sintoma tem sua origem histórica na medicina, em que é situado
a partir daquilo que aparece como o que causa o sofrimento no nível do corpo. O sintoma, na
teorização de Freud, progressivamente perde esse caráter médico (ou psiquiátrico) e aparece
como algo que seria da ordem de uma estrutura. Definimos estrutura, de acordo com Lévi-
Strauss, como algo que nunca existe na realidade concreta, mas que define o sistema de relações
e transformações possíveis dessa realidade. A estrutura designa não a realidade concreta, mas
a lei ou conjunto de leis que delimitam e determinam as modificações possíveis dos elementos
do sistema. Nesse caso, a estrutura é um sistema de relações, constituindo-se na síntese das
transformações possíveis e que permite formular o campo de nossas experiências. A partir
disso, o sintoma não seria mais pensado como uma espécie de apêndice que precisa ser extirpado
do sujeito, mas como algo que organiza o sujeito. Não se trata de jogar fora o bebê junto com
a água do banho. A relação com o sintoma não é uma relação de expurgação e, nesse sentido,
não é uma relação moral como podemos ler na história dos tratamentos das patologias psíquicas
ou em outras práticas sociais em relação aos ditos sintomas que precisam ser extirpados e
eliminados, mas o sintoma tem uma verdade, na medida em que dá conta de um certo sofrimento.
O resultado disso é a perspectiva freudiana que introduz um modo diferente de lidar com o
sintoma e com a verdade.
A clínica psicanalítica ensina, através do trabalho cotidiano, que ali onde alguma coisa falha
e produz um mal-estar insuportável para o sujeito e mesmo para os que estão a sua volta, ali
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
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também há uma verdade acontecendo. Trata-se, em primeiro lugar, de poder suportar essa verdade
e permitir que a mesma seja enunciada, constituindo-se no princípio metodológico primário da
intervenção psicanalítica. E isso certamente não acontece sem dor e sem resistências. Desse
pressuposto metodológico decorre que não há prática clínica bem-fundada, seja ela psicanalítica
ou educativa, sem a correlativa apropriação da verdade que se mostra nas falhas tanto subjetivas
quanto sociais. Qual a verdade que insiste em querer se mostrar nas falhas de nossa sociedade,
organizada em torno da racionalidade científica própria do projeto da modernidade?
Quando se fala de sintoma social, introduz-se uma diferença entre esse e o sintoma singular:
o sintoma social enquanto expressão do discurso social dominante em uma dada cultura e o
sintoma singular como a produção mais própria de cada um. As inibições, os sintomas psíquicos
e as angústias de cada dia são importantes, quer dizer, não o joguemos fora, porque senão vamos
juntos com eles. Da mesma forma, podemos pensar com relação ao sintoma social. Ele não pode
ser banido, uma vez que o sintoma social é aquele sintoma que faz parte do discurso dominante.
Lembramos uma experiência desastrosa numa cidade do interior do Brasil, na qual foi decidido
que as crianças de rua seriam recolhidas para uma instituição, o centro da cidade ficaria limpo e
essas crianças, nos casos legítimos, seriam colocadas para adoção. Havia aí a intenção de limpar
a cidade e ao mesmo tempo tomar uma medida de proteção em relação a essas crianças e
adolescentes, abrindo-lhes a possibilidade de um lar ou de uma situação protegida. Como
conseqüência, desencadeou-se nesses jovens uma série de surtos paranóicos, tentativas de suicídio
e elevado índice de agressão física à equipe, e vários deles tendo que passar ao uso de medicação
psiquiátrica. Esses jovens não estavam apresentando essas patologias quando moravam na rua.
Isso quer dizer que a pura e simples tentativa de extirpação de um problema gerou outro, de
dimensões dantescas, pois essas crianças e adolescentes foram transportados de um código para
outro que lhes era completamente estranho. Obviamente se criou ali a relação dual de perseguidor/
perseguido. O mesmo se dá em situações de sala de aula, quando o professor, tentando exercer
sua função educativa de autoridade, eleva o tom de sua voz, passando a gritar. Produz-se o
mesmo efeito de paranóia, ficando as crianças tomadas de pavor persecutório.
O discurso dominante diz respeito àquela estrutura discursiva que dá as direções básicas
de uma civilização, de uma cultura, de um povo, e que conseqüentemente situa de modo
predominante a subjetividade. Poderemos ver que no nível do sintoma social temos mudanças
históricas e que algumas delas podem ser situadas com precisão, o que permite tomar conta
daquilo que o sintoma tem a dizer, enquanto verdade que se mostra nas falhas e nos fracassos.
Então, a tarefa é fazer que haja um trabalho de acolhimento e de nomeação desse sintoma e
não uma operação de extirpação. Esse trabalho se inicia pelo disposição de se deixar surpreender
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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e interrogar pelas eventos que perturbam, abrindo espaço para que a palavra possa circular,
da mesma forma como a língua é apresentada enquanto significante para a criança. Trata-se de
resgatar o nexo fundamental entre a palavra e a verdade que nela está contida, no seu enlace
com o sujeito ali implicado.
Exemplificando nossa perspectiva: num modelo de sociedade tradicional, que se ordena
por ideais partilhados homogeneamente, a perspectiva de cada sujeito é ser amanhã aquilo
que seus ancestrais foram ontem, resolvendo desse modo as questões do dever-ser de cada um
e da coletividade e fornecendo uma teoria da vida e do universo que responda às grandes
questões do homem. O repertório de saber acumulado nessa cultura é suficiente para sua
viabilidade, harmonizando o destino pessoal com a coletividade. Ou dito de outro modo, o
cotidiano e o social são ordenados a partir de enunciados dogmáticos que operam a constituição
do sujeito e do social a partir de um suposto absoluto e onipotente, de tal modo que não há
como interrogar tal arbitrário e nem seus efeitos. É o modo de constituir uma referência, dentro
do discurso religioso.
O sistema pedagógico na modernidade está construído a partir do discurso científico e,
paradoxalmente, é pretendido construir seres pensantes a partir do mesmo. Entretanto, isso
por si mesmo já é da ordem da impossibilidade, posto que na ciência não há sujeito, mas
apenas enunciados universais. Na ciência na há lugar para a singularidade. Desse modo, o
paradoxal é como, por meio de um discurso universalizante, apagador das diferenças, se possa
pretender construir singularidades. Este é o grande impasse, porque continuamos querendo,
via a tradição, formar pessoas comprometidas com a cultura, mas fazer isso por meio de um
discurso que rompeu com a tradição.
5 A DOGMATICIDADE E A CONTINGÊNCIA
Ora, a modernidade, enquanto um projeto cultural fruto da formulação relativamente explícita
de seus próprios protagonistas, implica uma ruptura irremediável dos sistemas de crenças e
representações homogêneos e coesamente partilhados. Essa ruptura se mostra na possibilidade
da introdução da contingência na suposta ordem dogmática precedente. Enquanto a ordem
dogmática se orienta pelo pressuposto de que o mundo é assim desde sempre e por isso mesmo
deve continuar com foi estabelecido desde toda a eternidade, a ciência moderna, pela descoberta
dos mecanismo secretos da natureza, pode romper com a suposta imutabilidade e introduzir a
contingência, afirmando: “Ainda que sempre tenha sido assim, é possível ser diferente.” Os
enunciados do discurso da ciência afirmam sempre verdades válidas dentro de um contexto de
conhecimento e não com valor eterno. Ou seja, o homem moderno tem um ideal de autonomia e
de efetivar possibilidades que não estavam listadas no repertório do desejo de seus ancestrais.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
O primeiro resultado da operação de tal ruptura de enunciados dogmáticos legados pela
tradição é o esfacelamento da homogeneidade cultural. Tal efeito se desdobra na multiplicação,
num mesmo universo cultural, das crenças, práticas, representações, ideais e modelos teóricos.
Não se trata apenas da especialização dos saberes e multiplicação da ciências, mas de um
profundo esfacelamento da unidade cultural. Diante de tal situação, configura-se o panorama
da co-existência, conflituosa ou não, de diferentes paradigmas, racionalidades e sistemas de
crenças e representações.
A primeira grande solução do impasse produzido por essa cisão no coração do ser humano
(cisão esta tão bem trabalhada por Hegel nas suas análises da passagem da eticidade grega
para a posição do cidadão do mundo romano) aparece em torno do século XII e se estende até
o século XVIII, com o fim da monarquia: é a primeira revolução do intérprete efetivada pelo
recurso da lei. O predomínio da lei é substituído, como nos mostram as clássicas análises de
Foucault, pelo predomínio da norma. A solução dos impasses do sujeito moderno através do
recurso da normatividade também não é suficiente para dar conta da problemática. Contudo, o
predomínio da normatividade faz que se multipliquem os especialistas e seus pareceres técnicos,
fundando a norma respectiva. A introdução da norma se torna então uma questão relevante,
de tal modo que os impasses das práticas sociais se revelam impasses éticos, como se pode
observar em relatos de situações dramáticas vividas por juízes, em que a sentença, embasada
em parecer de especialistas, corrobora uma injustiça reconhecida.
Desse modo, enquanto o modelo de sociedade tradicional se organiza em torno da
referência explicitada teologicamente pela religião, determinando um universo com um centro
fixo, ponto zero do espaço e do tempo, hierarquizados e diferenciados em sagrado e profano,
assim como sua estrutura social hierárquica, a modernidade se organiza a partir do deslocamento
desse modo de referência, substituindo o discurso religioso pelo discurso científico. Isso quer
dizer que há uma transformação no tipo de enunciados que organizam o social, tendo efeitos
subjetivos relevantes, como o afrouxamento dos laços que atam o sujeito a sua tradição assim
como o descomprometimento com a mesma. Esse sujeito moderno se torna sensível ao apelo
dos novos ideais propostos pelo discurso da ciência, enquanto promessa de felicidade e gozo
sem falhas, realizáveis pelo consumo de objetos.
6 O PROJETO DA MODERNIDADE E A NOVA RACIONALIDADE:
UMA LÓGICA DOS OBJETOS E A PROMESSA DA FELICIDADE INSTANTÂNEA
O projeto da modernidade, iniciado no século XVI e desenvolvido até nossos dias, produz
conflitos e patologias próprias, que demandam respostas que já não encontramos nos modelos
de racionalidade tradicionais. Com o advento da ciência moderna e da tecnologia, possibilitadas
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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pela hegemonia da racionalidade científica e instrumental, configurou-se uma promessa de
solução da miséria humana decorrente das ameaças da natureza, da decrepitude de cada
indivíduo e da insatisfação nas relações com os semelhantes. Contudo, a efetivação de tal
promessa se mostra cada vez mais problemática, constituindo-se assim o atual desafio na
relação entre ciência/tecnologia e sociedade. Muitos dos elixires propostos pela ciência têm se
mostrado, na verdade, venenos poderosos.
Quando o paradigma organizador da sociedade e do saber era unitário, como no caso do
paradigma teológico, era possível realizar uma passagem entre “ser” e “dever-ser”, isto é, havia
um parâmetro que garantia de antemão o caráter absoluto do “dever-ser” enunciado. Isso quer
dizer que as pessoas acreditavam que havia uma natureza humana e que na vida cada um
deveria se pautar pela mesma, caso contrário receberiam uma condenação eterna. Mas, após
Hume, que aponta para o abismo entre “ser” e “dever-ser”, fazendo a crítica radical do
pressuposto natural da realidade, já não temos nenhuma garantia prévia do acerto de um dado
“dever-ser”. Ora, perguntar-se acerca de como se deve agir consigo mesmo e com os outros é a
questão ética por excelência.
Houve um tempo em que a racionalidade científica parecia ser suficiente para nos responder
acerca dessa questão. Contudo, hoje já se tem claro que há uma diferença entre as leis da natureza,
onde se trata de descrever e enunciar os fatos e as leis jurídicas ou os princípios normativos, que
prescrevem algo a respeito da ação humana. Enquanto no discurso religioso, pela autoridade do
dogma, ficavam resolvidas as questões essenciais de cada indivíduo, referido então pela tradição
na qual se encontrava, na modernidade, à luz dos enunciados impessoais e genéricos do discurso
científico, o indivíduo se vê perturbado para responder às questões sobre sua identidade e seu
destino. Se antes o indivíduo encontrava seu rumo seguindo o trabalho e os costumes de sua
família, hoje esse caminho é tomado, no mínimo, como esquisito. Os adolescentes, no momento
da escolha profissional, se vêem compelidos a ter que escolher uma profissão diferente da dos
pais. Causa estranheza quando escolhem a mesma. E nesse momento, os pais correm o risco de
serem acusados de influenciar o filho e não deixá-lo decidir por si mesmo o seu caminho. Outro
aspecto desses ideais da modernidade se refere à apropriação de objetos como a condição de
felicidade, determinando uma adesão aos imperativos e ideais dessa cultura.
Assim podemos entender as análises clássicas da passagem do predomínio do ser para o
predomínio do ter. Sistematicamente passamos a ser comandados não mais pelos desígnios divinos,
mas pelo brilho dos objetos prontos para serem consumidos. E a lógica que organiza a economia
dos objetos não leva mais em conta a implicação dos sujeitos, determinando a substituição da
avaliação e decisão ética pelos critérios da consistência lógica e da eficiência técnica.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
7 O IDEAL DE AUTONOMIA E A PROPOSTA DE AUTO-FUNDAÇÃO SUBJETIVA
Uma transformação importante na modernidade aparece com o surgimento da prevalência
do Eu, como ocorre na fundação que Descartes faz dos saberes baseado no cogito, ergo sum
(penso, logo sou), demarcando um novo lugar de fundação que não é mais a autoridade, nem
a divindade, nem a tradição, mas sim a subjetividade. Essa formulação de Descartes, que é
correlativa ao nascimento do discurso da ciência moderna, tem sua progressiva explicitação ao
longo do desdobramento do projeto da modernidade como um ideal de autonomia. É corrente
entre os filósofos modernos que a grande invenção da modernidade é a idéia de liberdade,
expressa no ideal de autonomia. O idealismo alemão leva esse ideal às suas últimas
conseqüências, na formulação do eu absoluto que se funda a si mesmo.
Quais as conseqüências da idéia de liberdade e do ideal de autonomia? Que efeitos
subjetivos e sociais produz?
O ideal de autonomia significa: “Eu me fundo a mim mesmo.” Levado ao seu extremo, esse
ideal implica conceber o mundo e a história centrados no indivíduo. O ideal de autonomia se
estrutura a partir de um recalcamento da tradição, significando um apagamento progressivo
das marcas e referências que assinalam ao sujeito o lugar a ocupar e como fazê-lo. Se por um
lado isso corresponde, na história da modernidade, ao enfraquecimento e declínio da função
paterna, por outro lado significa a afirmação desse ideal, na medida em que recusa que o
sujeito esteja constituído de um outro lugar que não de si mesmo.
Um primeiro efeito se encontra no aparecimento de um estado de paranóia constante.
Paranóia constante significa que a subjetividade, tomada nesse ideal que recalca a tradição, se
apreende sempre numa fundação por auto-referência. A paranóia se caracteriza exatamente
pelo predomínio da auto-referência, numa hiper-interpretação dos eventos, tomados como se
referindo ao próprio sujeito. A relação com o semelhante não encontra mais uma referência
comum que permita a manutenção das diferenças, ou seja, se o semelhante não for como o
próprio sujeito, é tomado como uma ameaça, se transformando num perseguidor. Isto se dá na
medida em que a referência terceira, situada para além do próprio sujeito, tende a cair, entrando
em colapso.
Do paradoxo do ideal de autonomia se pode deduzir tanto o risco de colapso do próprio
sujeito quanto do tecido social, constituindo um dos traços que definem o sintoma social de
nossa cultura. Posto isso de um modo muito esquemático, pode-se fazer a constatação do
predomínio do ideal de autonomia como algo marcante na contemporaneidade. Basta pensarmos
rapidamente no que significam os ideais da Revolução Francesa, calcada na recusa da tradição.
Tudo o que representava a tradição, como a nobreza, o rei, o sistema político, a religião, a
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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economia, enfim, todas as figuras da tradição foram simplesmente rejeitadas e a grande bandeira
tornou-se o ideal de ruptura de qualquer forma de hierarquia, ou seja, a conquista do ideal de
igualdade e autonomia. Isso não significa recusar os benefícios da mesma, ou que se deve
retornar às formas anteriores de organização. Não se trata tampouco de um julgamento moral
do que é certo ou errado, mas de avaliarmos as conseqüências do predomínio dos ideais de
autonomia. Assim colocado, a união entre a recusa da tradição e a busca de um modo de
fundação em si mesmo determinam um sistema de auto-referência.
8 O DIREITO UNIVERSAL AO GOZO
Também deve ser considerada a questão dos direitos universais que estão embutidos no
ideal de autonomia, uma vez que o seu núcleo é a questão da igualdade. Encontra-se firmado
que todos são iguais, mas não está esclarecido em relação a quê e de que modo. Há um
aspecto que é pertinente, e que está formulado textualmente na declaração dos direitos
universais, como ideal de consecução da “felicidade comum” por meio do acesso ao “gozo de
seus direitos naturais e imprescritíveis”. Ora, aqui se afirma o direito ao gozo de cada um, que
anteriormente estava reservado ao senhor feudal ou à divindade. Gozo é sinônimo de fruição
ou usufruto, enquanto modo de obtenção de satisfação, que vai desde o direito ao gozo sexual
até o gozo no consumo dos objetos.
Como já foi examinado, o afastamento e a suspensão de algo são indispensáveis para a
constituição do sujeito humano. Mas, tendo-se em vista que a sociedade atual se funda no primado
de que cada indivíduo pode ter acesso ao que lhe falta de forma imediata e instantânea, como é
possível se dar a suspensão de algo nesse contexto? Quais as possíveis conseqüências disso?
O sujeito se organiza em torno daquilo que lhe falta e as carências podem ser de três tipos:
o objeto que pode suprir as necessidades, o objeto do amor e do desejo e finalmente o objeto
que coloca em jogo o gozo. Considerando-se a diferenciação entre esses três tipos de objetos
faltantes, quais os efeitos psíquicos das mudanças na economia dos objetos na modernidade?
Denomina-se gozo a operação de incorporação de algo que possa produzir um estado de
completude, ainda que transitória. A representação mítica do gozo aparece exemplarmente na
figura do paraíso terrestre ou na figura da vida eterna no céu. Contudo, a operação da função
paterna colocou um limite nesse gozo mítico, arrancando Adão e Eva dessa suposta plenitude
e lançando-os no espaço e tempo delimitadores. De acordo com esse mito, esse castigo funda
o mal-estar civilizatório, e desencadeia a busca incessante do paraíso perdido. Se tratamos isso
do ponto de vista da cultura, podemos lembrar que no campo individual também continua
sendo buscada a unidade mítica que um dia esse indivíduo supõe ter tido na relação mãe/
filho. Essa busca incessante pelo paraíso perdido move a construção do cotidiano, do amor e
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
do trabalho. Entretanto, pode empreender essa busca construindo novas possibilidades de
vida ou procurando um elemento que preencha essa falta de forma definitiva, e aí ter o infeliz
encontro com uma overdose.
Então, o ser humano anda nessa viagem estranha atrás de alguma coisa que ele perdeu,
mas que não sabe o que é. Chega a suspeitar que busca aquilo que nunca existiu. Mas isso tem
tal importância que a busca continua. Enquanto isso, vai conversando, isso que é o interessante
e que é a grande coisa que lhe resta. Não é a viagem, nem aonde vai chegar o mais importante,
mas sim as boas conversas que pode ir construindo nesse caminho. Só que assim mesmo,
insiste que esse algo que perdeu, sem nunca tê-lo tido, seja encontrado, e isso o catapulta à
investigação, ao trabalho e à busca do objeto amoroso.
No caso dessa configuração em que estamos tomados, no ideal de autonomia, isso vai se
dar de um modo bem interessante. Um sujeito situado numa sociedade tradicional, referido a
partir de um centro fixo e hierarquicamente diferenciado, não vê problema em que a sua
existência esteja determinada para fazer a divindade gozar. Desde a restauração da religião
monoteísta pelo homem Moisés, a partir do modelo egípcio do faraó Akenaton, o gozo está
situado do lado da divindade, ou seja, o que interessa é que Deus goze. Nesse sentido, a Igreja
católica, com o Concílio de Trento, tenta sustentar o poder e a tradição propondo uma referência
ainda mais acentuada, pela idéia de que o gozo existe na medida em que o próprio corpo seja
oferecido para o gozo divino. Todos aqueles que estudaram o catecismo lembram bem como
se respondia à pergunta: “Para que nós existimos? Para amar e servir a Deus sobre todas as
coisas”. Já o gozo do lado do sujeito, como o gozo sexual, era considerado uma ofensa grave à
divindade. Os pais deveriam procriar, mas de preferência sem gozar. Mesmo que hoje essas
postulações não tenham força, assim como numa certa época tiveram, isso ainda está inscrito
no discurso religioso calcado na tradição.
Que conseqüências e alterações ocorrem quanto ao lugar do gozo a partir do surgimento
do ideal de autonomia e a exacerbação do narcisismo? O que se pode observar hoje, depois de
alguns séculos de seu desenvolvimento, é que estamos em condições de começar a avaliar os
efeitos dessa experiência histórica. Observamos que se instaura uma outra forma de gozo que
progressivamente entra no discurso dominante.
9 O GOZO PARCIAL E O GOZO TOTAL
Exatamente onde a tradição produz a suspensão de algo, num ato de expulsão simbólica
do paraíso, ali o gozo que cabe a cada um é denominado de gozo parcial, regrado pelo pacto
da linguagem. É o processo que se dá no momento em que se rompe a dualidade fechada de
mãe/filho e é introduzido o terceiro. É considerado um gozo parcial porque nele o sujeito não
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
550
empenha seu corpo. Para obter a fruição dos alimentos, ninguém precisa comer um pedaço de
sua boca, assim como não se espera que a obtenção do gozo sexual se faça às custas do
consumo dos órgãos. Isso comumente acontece nos crimes resultantes de processo alucinatório
psicótico, quando o objeto perde a intermediação da palavra. Por exemplo, quando a metáfora
sexual de “comer uma mulher” passa para o campo do canibalismo.
Para o adolescente, a entrada no exercício efetivo do gozo sexual fica perturbada pela
suposição de que gozar possa equivaler ao consumo de si mesmo ou do outro, nessa delicada
operação psíquica entre a coisa e a palavra, ou seja, sua representação. Tanto o adolescente
quanto o adulto podem recuar para a inibição sexual diante da suposição de que tal ato possa
destruir ou danificar o parceiro ou a si mesmo. Ora, o gozo parcial se encontra regulado
simbolicamente, dando-se no campo da linguagem, segundo suas regras. É tão parcial como o
são as palavras, que se seguem umas às outras e nenhuma delas pode dizer tudo, mas cada
uma e a cada vez tem seu sabor próprio. Os parceiros gozam um do corpo do outro em partes,
uma de cada vez. Aqui se retorna a Machado de Assis, para quem a paixão é usufruída a cada
momento através de um pequeno recorte no corpo. É um gozo descontínuo e parcial, marcado
sempre por limites. Por isso, se diz que gozar ou terminar é a mesma coisa. A expressão
popular que identifica o gozo sexual com “terminar” e “acabar” diz a verdade. O problema se
dá quando a palavra perde seu valor de metáfora e o fim do ato sexual com o “acabar” venha
a significar a morte. O “terminar” significa exclusivamente a plenitude, é estranho isso que a
plenitude se dê quando não se tem mais nada daquilo.
O filme “O Império dos Sentidos” apresenta uma outra forma de gozo, que é total. A
expressão clássica próxima disso se encontra na experiência mística, enquanto saída do campo
da linguagem (não há mais palavra que possa nomear a experiência mística) e entrega de todo
o ser em união com a divindade, que é o gozo proposto pelo Concílio de Trento e que deflagrou
a experiência mística católica moderna. Enquanto no gozo parcial o sujeito sai relativamente
inteiro (claro que, às vezes, alguém pode perder pedaços do coração), no gozo total é oferecido
um pedaço do corpo, podendo chegar inclusive à morte.
A partir do que até aqui desenvolvemos, é possível determinar com mais clareza as
conseqüências do deslocamento do valor prevalente numa cultura tradicional para a
modernidade, especialmente o surgimento de outras formas de gozo determinadas a partir da
veiculação de um promessa de gozo sem falhas. Aquilo que era prometido para depois, na
vida eterna, a modernidade exige que se dê o mais rápido possível, aqui e agora. E é observada
uma aceleração na produção do objeto, sempre mais próximo e mais adequado ao gozo sem
falhas. Pode ser chamada de cultura do instantâneo, seja por meio da imagem, seja na
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
comunicação, seja no café instantâneo. Duas faces de uma mesma moeda, o próprio objeto,
que é para ser sem falhas, falha e precisa ser substituído, e nessa falha do objeto o sujeito
encontra a sua própria falha.
É nesse contexto que sobressaem os contornos do sintoma social próprio da cultura
contemporânea. Melman (1992) conceituou o sintoma social como aquilo que se inscreve no
discurso dominante de uma sociedade em uma época determinada, como solução veiculada
para os seus impasses. A busca de um objeto que supostamente venha a realizar a promessa
desse gozo total, aqui e agora, caracteriza um dos núcleos do sintoma social da cultura ocidental
moderna. Desse modo, a prevalência do objeto, fundação por auto-referência e a promessa de
um gozo sem falhas a ser efetivado sempre imediatamente, constituem esse núcleo organizador
das várias manifestações sintomáticas.
A indústria moderna, incluindo a da estética, aprimora-se na produção do objeto (do big-
cheese ao silicone), a cada vez prometido como o mais apto a produzir o gozo almejado,
substituindo os antecedentes deixados então na obsolência. A gama de objetos prontos para
serem consumidos é vasta. Não se trata de fazer uma classificação dos mesmos, mas apenas
observar seus efeitos na determinação da posição do sujeito. Ali onde emerge uma insatisfação,
desencadeia-se a busca de um objeto que venha a preencher e acalmar esse insuportável. Isso
corresponde ao que Freud já apontou como a verdade da civilização: o mal-estar. As soluções
vão na direção de tentar remediar tal mal-estar. Nada melhor pode ser dito a esse respeito do
que Holliwood já tem filmado do american dream ou do american way of life. Nessa perspectiva,
as várias formas de intoxicação fazem parte do sintoma social: a hiperingestão de pílulas de
saúde, anti-depressivos, objetos inúteis nos shoppings, drogas, álcool e violência.
Melman (1992) nos delimita três modalidades do sintoma social moderno: a toxicomania
propriamente dita, o alcoolismo e a delinqüência. As substâncias tóxicas “pesadas” produzem
um estado de gozo indescritível e induzem o sujeito a abandonar o gozo parcial e a rumar para
os domínios do gozo total, fora da linguagem e implicando cada vez mais o corpo. As substâncias
mais “leves” e socialmente permitidas, como o álcool, produzem um gozo limitado, mas que ao
mesmo tempo anestesia a infelicidade cotidiana. E o gozo delinqüente, no qual o objeto é
capturado na forma do roubo, ou ainda na forma da destruição e depredação.
Um dos efeitos mais surpreendentes é relativo à posição do sujeito diante da normatividade
social. Uma norma tem caráter vinculante para um dado sujeito na medida em que esse sujeito
se encontra referido por ideais, que são buscados como dotados de alto valor. Ora, se esse
sujeito já alcançou tais ideais, eles deixam de ter força vinculante e as normas sociais perdem
sua eficácia. É o que se observa na posição corrente do toxicômano que se entrega ao comando
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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do objeto de gozo representado pela substância que produz um estado de plenitude sem
comparação. Mas esse gozo também pode se dar com placebo, excrementos ou qualquer
substância que faça um simulacro da droga. Para poder reiterar esse estado de gozo, o sujeito
tende a romper a normatividade relativa ao laço social vigente. O rompimento e a dissolução
do caráter vinculante da lei põe em risco a viabilidade do tecido social e nisto a própria
viabilidade subjetiva de cada um.
O sintoma social, ao mesmo tempo que denuncia a doença da cultura, se propõe como
solução. Tanto no caso da toxicomania como na experiência malograda de limpar as ruas da
cidade albergando crianças e adolescentes de rua, se dá a mesma proposta de encontrar a
solução que venha a desfazer um mal-estar. Mas tais soluções substitutivas produzem uma
inviabilidade. O uso da solução escolhida tende a coincidir com a efetivação da morte.
A lei e a sustentação do objeto enquanto proibido, mesmo que produtores de mal-estar,
protegem de um encaminhamento mortífero. O campo limitado da linguagem permite um
percurso que contorna a precipitação da morte. Este é o efeito do que Freud conceituou como
castração, operação da falta simbólica que permite a estruturação de um laço social viável. É o
mesmo que dizer que o sujeito foi submetido à operação da função paterna, instância terceira
que lhe impõe limites, lhe assinala que há algo impossível e lhe indica um lugar de existência,
inscrevendo-o, pela nomeação, numa filiação.
10 O RECURSO DA LEI E FORMAS DE INTERVENÇÃO
A lei jurídica se pauta pelo ordenamento das equivalências entre os objetos e os sujeitos,
buscando a justiça pela suposição dos mesmos direitos para todos, e tendo sua incidência
efetiva no ordenamento social enquanto reguladora. Entretanto, é incapaz de inscrever a
diferença e instaurar um sujeito. Essa lei instauradora denomina-se lei simbólica. Daí já podermos
compreender a situação de embaraço em que se encontram os dispositivos jurídicos, quando
são solicitados a operar a função paterna. A lei jurídica não é instauradora, mas em um dado
momento o magistrado pode estar ocupando o lugar simbólico de Pai. Não compete ao Estado
exercer a função paterna, mas sim pôr um limite ao uso dos privilégios, pautando-se pela
equivalência entre os cidadãos e entre os bens que circulam na cultura. Entretanto, como fazer
quando esses dois lugares se confundem?
Dentro desse pequeno quadro, opondo lei jurídica e lei simbólica, é possível discriminar
diferentes formas de intervenção no sintoma social. Considerando-se que a saída da repetição
indefinida e infinita da órbita dos astros se deu na medida em que, de algum lugar e tempo,
começaram a ser contados cada um dos girose isso normalmente se funda no mito instaurador
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
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de cada cultura como resultado de um desígnio arbitrário dos deuses −, é possível entender
que a repetição dos atos humanos segue uma mesma lógica. Cada giro na órbita subjetiva e
social é um pedido de inscrição numa dada série e, se essa inscrição fracassar, cai-se numa
repetição que não alcança inscrever a diferença daquele giro. O efeito disso é que as ações se
apresentam como vãs, estéreis, não articulando suficientemente a trama de significações que
se chama história.
Aqueles que não contam, os anônimos ou apenas referidos pelos apelidos, os excluídos
de alcançar um lugar com dignidade, tendem, por não contar para ninguém e por isso mesmo
incapacitados para contar, a serem jogados em órbitas repetitivas e sem trajetória. Muitas vezes
é pelo ato delinquente que o sujeito tenta fundar uma história, fazer uma marca que lhe permita
cavar um lugar e constituir um série, iniciar a efetivamente contar para si e para alguém,
entrando na classe dos contáveis. Como é possível inscrever a diferença da cada um, mesmo
nas repetições do cotidiano? A trajetória é a resultante da série de inscrições dos giros, mesmo
que sendo sempre os mesmos, a cada vez marcando um lugar na série e nisso se diferenciando.
Contar os giros significa inscrevê-los numa série, ou seja, registrá-los.
Para concluir, remeto-me aos ensinamentos de um historiador da arte e político, também
preocupado com as mesmas questões, e que pode nos auxiliar:
“A presença de obras de arte é sempre caracterizadora de um contexto que manifesta sua
historicidade. Uma vez que é o contexto que determina as idéias de espaço e de tempo, estabele-
cendo uma relação positiva entre indivíduo e ambiente, descaracterizar o ambiente destituindo-o
das suas presenças artísticas tradicionais é uma maneira de favorecer as neuroses coletivas, que se
exprimem, mais tarde, em atos de rejeição da civilização histórica, que vão desde o pequeno
vandalismo e o banditismo organizado até os fenômenos macroscópicos de violência e de terroris-
moe todos sabem que este é o preço pago pelo não desejado triunfo da sociedade de consumo”
(Argan, 1995, p. 87).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARENDT, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt Brace, 1969.
ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime. Paris: Plon, 1960.
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globalização e Psicanálise. Salvador: Ágalma, 1997, p.164-189.
CALLIGARIS, Contardo. O laço social, sua produção e a Psicanálise. Che Vuoi? Psicanálise e
Cultura, Porto Alegre, ano 1, n.1, p.33-42, 1986.
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
554
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ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
555
CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO
Mário Fleig
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
557
17
CAPÍTULO
ATO INFRACIONAL PRATICADO NO
AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva*
SUMÁRIO
1 VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA COM REFLEXOS NA ESCOLA ..... 558
2 A MÍDIA NOTICIA OS CASOS ..... 561
3 INTERESSE DOS EDUCADORES PELA QUESTÃO ..... 562
4 CAUSAS BANAIS PROVOCAM VIOLÊNCIA ..... 563
5 MANIFESTAÇÕES LEGISLATIVAS ..... 566
6 A VIOLÊNCIA DE EDUCADORES CONTRA ALUNOS ..... 566
7 BOAS LEIS E A MUDANÇA DE MENTALIDADE ..... 569
8 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E SEU CARÁTER PEDAGÓGICO ..... 584
9 REMISSÃO ..... 598
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 599
* Juiz da Infância e Juventude de Belém 24ª Vara Cível. Detentor do Prêmio “Criança e Paz” do UNICEF.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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1 VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA COM REFLEXOS NA ESCOLA
A família e a escola, historicamente, sempre foram considerados locais de inquestionável
harmonia e segurança. O mundo exterior era o do perigo, da ameaça, da violência, do desrespeito
aos direitos das pessoas, especialmente os mais fragilizados, como crianças, adolescentes e as
mulheres de qualquer faixa etária.
Em plena chegada do novo milênio, infelizmente, nem sempre é assim. No mundo todo a
situação vem dando sinais preocupantes de alteração desse quadro de tranquilidade. No que
concerne à família, inúmeros países vem editando leis para proteger seus membros mais fragilizados.
O relato de docentes, diretores e orientadores educacionais é indicativo de que a violência
no âmbito da família está se constituindo em um potente vetor de violência no ambiente
escolar, justamente porque os alunos, angustiados, tensos e totalmente assustados e
traumatizados pela violência que sofrem dentro do lar, principalmente por parte dos próprios
pais, padrastos, avós e irmãos, acabam por ter comportamentos igualmente violentos na escola,
como reflexo do que estão sofrendo em suas casas.
Todos sabemos que a resistência é importante para a engenharia, pois se tal não fosse a
construção de uma casa e, principalmente, de um edifício de muitos andares poderia desabar,
justamente porque os materiais precisam ser resistentes para suportar tanto peso, tanta pressão.
Mas, para a psicologia, a resiliência é que é fundamental, ou seja, o indivíduo deve ser preparado
para adotar posturas resilientes, para superar os obstáculos que considera no seu psiquismo
intransponíveis em seu quotidiano, inclusive o familiar.
Mesmo em uma família, as pessoas não são iguais, os sentimentos divergem, as sensações e
reações a um determinado problema não são necessariamente as mesmas entre os filhos, mesmo
que biologicamente oriundos do mesmo pai e da mesma mãe, motivo pelo qual uns conseguem
contornar e conviver com as situações críticas e conflituosas entre seus pais, adotando mecanismos
de controle, defesa e superação, mas outros não, e, nesse caso, ficam sensíveis a uma série de
fatores de violência, quando não são seus próprios autores, sendo que em alguns casos, fazendo
o possível e o impossível para chamar a atenção dos pais, com a seguinte desculpa em seu
inconsciente: “ou chamo atenção de meu pai ou de minha mãe, dizendo que sou o presidente do
Brasil, ou vou chamar fazendo ver que sou o maior bandido do Brasil”.
As estatísticas dos Conselhos Tutelares, dos SOS Criança, das Promotorias e dos Juizados
da Infância e da Juventude mostram que é cada vez maior a ocorrência de situações em que os
direitos da criança e do adolescente são ameaçados ou violados por ação ou omissão de seus
próprios pais ou responsável, mesmo diante da determinação constitucional e da legislação
infraconstitucional, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
559
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
e Bases da Educação Nacional (LDB), no sentido do dever da família, especialmente dos pais,
com a educação dos filhos.
Em recente pesquisa realizada em Belém pela Secretaria Municipal de Educação, com
apoio do UNICEF, sobre “O Sucesso e o Fracasso na Educação Básica”, os pesquisadores concluem
que “a escola não está preparada para trabalhar com alunos (as) que fogem do convencional.
Neste caso, opta pela exclusão do aluno. Parece que os seus profissionais têm se negado a
enfrentar essas questões, deixando de reconhecer que talvez muitas das causas da evasão
podem advir das condições sociais dos alunos”, transcrevendo, para ilustrar o asseverado, o
depoimento de uma professora: “Na maioria das vezes os pais se separam e as crianças são
distribuídas na casa dos avós e tios e deixam de frequentar as aulas. Eu tive um aluno que
faltou durante três meses, e até pensei que ele tinha se evadido, mas depois a mãe veio dizer
que se separou do marido e as crianças não tinham onde morar, mas que agora já dava para o
seu filho retornar à escola” (prof. 2Escola Bem-te-vi)”.
7
A Constituição Federal dispõe que é dever da família assegurar, com prioridade absoluta,
o direito à educação dos filhos (CF, arts. 227 e 205), dispondo, da mesma forma, no artigo 229,
que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores de idade.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20.12.1996) realça,
igualmente, o dever da família com a promoção da educação de seus membros, conforme se
constata no que está expresso nos artigos 1º e 2º, dentre outros. É importante ressaltar que a LDB
chega mesmo a dispor que “compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e
com a assistência da União, zelar, junto aos pais ou responsáveis pela frequência à escola” (LDB,
art. 5º, § 1º e seu inciso III), dispondo, igualmente, que “É dever dos pais ou responsáveis efetuar
a matrícula dos menores, a partir de sete anos de idade, no ensino fundamental” (LDB, art. 6º).
O Estatuto da Criança e do Adolescente reza, também, o dever dos pais ou responsável
não somente com o sustento e a guarda, mas também com a educação dos filhos (ECA, arts. 22
e 55), sendo que uma das medidas que podem ser aplicadas pelo Conselho Tutelar aos genitores
ou responsável pela criança e pelo adolescente, nos termos do artigo 136, II, é, justamente, a
obrigação de não somente matricular o filho ou pupilo, mas também acompanhar sua freqüência
e aproveitamento escolar (art. 129, V).
Como se constata à vista do texto constitucional e da legislação infraconstitucional (ECA e
LDB), é dever dos “pais”, no plural. Aliás, a legislação refere-se a “pais”, no plural, não somente
quando trata dos deveres de ambos com a educação dos filhos, mas, também, quando dispõe
sobre os direitos dos mesmos nesse aspecto, como se vê no ECA, que reza: “É direito dos pais
7
Ver referências bibliográficas, p. 599600.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
560
ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das
propostas educacionais” (ECA, art. 53, parágrafo único).
A LDB, por sua vez, dispõe sobre o dever dos estabelecimentos de ensino de articular-se
com as famílias (LDB, art. 12, VI), bem como “Informar aos pais ou responsáveis sobre a freqüência
e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica” (LDB, art.
112, VII), expressando, também, como uma das incumbências dos docentes, “colaborar com as
atividades de articulação da escola com as famílias dos educandos” (LDB, art. 13, VI).
Mesmo que o casal esteja separado de fato ou judicialmente, ou mesmo divorciado, o dever
continua sendo de ambos os genitores, justamente porque a separação ocorre entre marido e
mulher; nunca entre pais e filhos. Aliás o ECA não deixa dúvida no sentido de que o pátrio poder
será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe (art. 21), além do que, como dispõe,
também, o Estatuto, o estado de filiação é personalíssimo, indisponível e imprescritível (art. 27).
Além do mais, mesmo que haja a separação dos pais, a famíliaque tem o dever com a
promoção da educaçãonão se dissolve quanto aos pais em relação a seus filhos, mesmo
porque a Constituição Federal define a entidade familiar como a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes (artigo 226, § 4º). O que termina com a separação
judicial e o divórcio é a sociedade conjugal, nunca a relação entre pais e filhos.
A propósito, o Código Civil não deixa dúvida quando expressa que a separação judicial
não altera as relações entre pais e filhos, senão quanto ao direito que aos genitores cabe de
terem em sua companhia os filhos (art. 381). Por outro lado, a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro
de 1977, que trata da separação judicial e do divórcio, dispõe que a separação judicial somente
põe termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e regime matrimonial de bens,
como se o casamento fosse dissolvido (art. 3º).
A separação judicial, consensual ou litigiosa, importa na separação de corpos e na partilha
de bens (Lei do Divórcio, art. 7º). Entretanto, os pais continuam confundindo partilhar bens com
partilhar filhos, como se estes fossem simples objetos. Igualmente no que concerne ao divórcio,
pois nesse caso só se finam o casamento e os efeitos civis do matrimônio religioso (Lei do
Divórcio , art. 24), nunca o estado de filiação e os deveres inerentes ao pátrio poder, que, aliás,
deve ser exercido no interesse dos filhos menores de idade e não no de seus pais; e só se
extingue pela morte, pela emancipação, pela aquisição da maioridade civil e em face da adoção
nos termos da lei civil. A propósito, a mesma Lei do Divórcio expressa, sem deixar dúvida, que
“O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos” (art. 27).
Infelizmente muitos pais continuam desinformados sobre essa circunstância, o que acaba sendo
uma postura de violência contra seus próprios filhos, com reflexos reais no ambiente escolar.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
561
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
Causam perplexidade certas situações que ocorrem no quotidiano de uma escola, de um
Conselho Tutelar, de uma Promotoria ou Juizado da Infância e da Juventude, como, por exemplo,
um caso que chegou à consideração do Superior Tribunal de Justiça, em nível de recurso, em
que os pais foram chamados á Promotoria da Infância e da Juventude para resolverem assunto
relacionado com a educação da prole, mas, simplesmente, recusaram-se a comparecer, e, diante
da decisão do Ministério Público de determinar a sua condução coercitiva para referida
finalidade, preferiram gastar tempo e dinheiro com a impetração de habeas corpus preventivo,
chegando até a superior instância, que tomou uma decisão sábia, mesmo reconhecendo que se
tratava de um constrangimento dos pacientes.
Com efeito, decidiu o STJ que, diante da injustificada resistência dos pais para comparecer
em juízo, a sua condução coercitiva pode até se constituir em constrangimento, mas não pode
ser qualificado de ilegal ou abusivo, justamente porque a educação, especialmente dos filhos,
é um direito fundamental que deve ser garantido, cabendo legitimidade ao Ministério Público
para fiscalizar e propor as medidas necessárias ao asseguramento desse direito (Acórdão: RHC
3716/PR; Recurso Ordinário em Habeas Corpus (94/0017737-2; DJ de 15.08.1994; relator: Ministro
Jesus Costa Lima; data da decisão 29.06.1994. STJ- 5a Turma. Decisão unânime).
Existem pais que, mesmo com a possibilidade de responsabilização por crime de abandono
intelectual (Código Penal, art. 246), perda e suspensão do pátrio poder na esfera cível (Código
Civil e ECA) e pagamento de multa pelo descumprimento, dolosa ou culposamente, dos deveres
inerentes ao pátrio poder (ECA, art. 249), continuam em posição neutral, omissos, diante do
dever legal de promoverem a educação dos filhos.
Podem ser encontrados inclusive aqueles pais que consideram ter cumprido o dever com
a educação dos filhos, apenas matriculando-os na escola, o que é outro absurdo. A participação
da família com a educação não se restringe ao ato da matricula, evidentemente. Com efeito, a
Constituição Federal define como finalidade da educação, dever da família e do Estado “o
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho” (art. 205), o que é repetido pela LDB (art. 2º) e pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 53) que, igualmente, expressa que uma das medidas impostas aos pais pelo
Conselho Tutelar não é somente matricular, mas, também, “acompanhar a frequência e
aproveitamento escolar” (ECA art.129, V).
2 A MÍDIA NOTICIA OS CASOS
No ambiente escolar, da mesma forma, as posturas de ameaça ou violação dos direitos das
pessoas, os atos de violência física ou psicológica, com agressões de toda ordem, estão
preocupando todos: educadores, educandos, pais ou responsáveis, juristas e toda a comunidade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
562
Em muitos casos, como reflexo da própria violência familiar. As manchetes da mídia noticiando
violência no âmbito escolar causam perplexidade. Por exemplo, em 1998, o jornal “Proteção
Integral” de nº 17, da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância
e da Juventude, trouxe como manchete de capa: “Crescem atos infracionais nas escolas”, dando
notícia de uma pesquisa realizada em todo o país pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho
da Universidade de Brasília (UnB), constatando que um velho problema típico das escolas
públicas, “e que poucas vezes foi abordado com seriedade, está se transformando em um
grande problema da sociedade: o vandalismo”, acrescentando que “Não são incomuns relatos
de casos de alunos barrados na entrada das escolas portando revólveres calibre 38. E já se
registram estupros praticados contra professoras em escolas brasileiras, o que já demonstra
que a violência vai além de danos ao bem público”.
11
Na mesma matéria, noticia que
“o crescimento do registro de ocorrências de atos infracionais nas escolas fez com que o
Ministério Púbico do Estado de São Paulo, através da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude,
tomasse a iniciativa de criar um instrumento de comunicação destes atos às autoridades competentes.
Trata-se de um modelo de ofício baseado nas ocorrências policiais no qual a diretoria da escola
informa e descreve o ocorrido diretamente à Promotoria, indicando os fatos e testemunhas e pedindo
o devido encaminhamento da questão”.
11
3 INTERESSE DOS EDUCADORES PELA QUESTÃO
Os educadores mostram-se cada vez mais sequiosos por informações em como proceder
diante de atos infracionais, conflitos interpessoais e situações constrangedoras ocorridas no
ambiente escolar entre alunos e entre estes e seus professores, diretores e demais funcionários
da escola. Da mesma forma quanto à violência doméstica como conseqüência de muitos
comportamentos agressivos dos educandos. Nos cursos de capacitação e reciclagem para
educadores crescem as suas indagações sobre a violência no âmbito da escola, inclusive no
que concerne aos encaminhamentos que devem ser dados às situações envolvendo adolescentes
em conflito com a lei penal.
As indagações são do tipo: O Estatuto da Criança e do Adolescente protege o adolescente
que comete um ato infracional ? Quais os procedimentos que devem ser tomados pelo diretor
diante de uma queixa de um aluno de que sofreu uma violência física ou psicológica por parte
do colega, professor ou funcionário? Qual o procedimento da escola diante de um furto na
escola? O diretor pode obrigar o aluno a pagar o patrimônio da escola que destruiu? A Polícia
pode invadir a escola em busca de um adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional?
Quais as sanções que um adolescente pode receber pelos atos infracionais que cometer? Como
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
563
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
deve agir o educador quando o aluno for flagrado portando uma arma na escola? Como agir
diante da exigência dos pais de um aluno que foi vítima de um colega para que a escola puna
o agressor, inclusive ameaçando o diretor se este não tomar estas providências? Qual seria o
correto encaminhamento durante uma violência, o que fazer primeiro e a quem procurar? O
que fazer quando é descoberto que um aluno faz tráfico de drogas dentro da escola? Como agir
se um aluno é apanhado usando substância entorpecente no ambiente escolar? O que deve ser
feito quando um professor pratica uma violência física ou moral contra um aluno? E quando é
o aluno que pratica contra o professor? É uma atitude correta o diretor que pegou o aluno
quebrando carteira da sala de aula mandar os pais pagarem as carteiras quebradas? Está correto
a direção da escola obrigar o aluno a lavar e pintar a parede do banheiro da escola que
pichou? O que é um Conselho Tutelar e como ele pode ajudar no problema da violência na
escola? Que medidas de prevenção podem ser eficazes para evitar atos infracionais praticados
por adolescentes no ambiente escolar?
4 CAUSAS BANAIS PROVOCAM VIOLÊNCIA
É impressionante como simples esbarrões, um olhar ou uma atitude de um colega mal
interpretados e outras situações banais podem despertar o furor de um jovem, ao ponto de
provocar, até mesmo no colega de sala de aula, lesões corporais e traumas psicológicos graves.
Em alguns casos sem que nunca tenham tido qualquer rixa ou desentendimento entre si, e até
sendo companheiros de esporte e lazer. Ouvidos em audiência, no Juizado da Infância e da
Juventude, os adolescentes não titubeiam em responder que praticaram o ato infracional porque
“ele olhou esquisito para mim”, “ele é muito metido”, “não gostei do jeito dele”, ele é puxa-saco”,
“ele só quer ser”, “disseram que ele falou mal de mim”, “pisou no meu pé de propósito”, “sentou
na minha cadeira”, “estava tentando tomar meu namorado”, “não sei o que deu na minha cabeça”.
Eis um exemplo, em que um simples incidente de um esbarrão provocou tanta violência
entre colegas de uma escola, levando a Promotoria da Infância e da Juventude a representar o
adolescente, narrando os atos de violência por motivo fútil:
“Consta nos autos que a adolescente Waleska encontrava-se no pátio do Colégio em seu
momento recreativo, por volta das 10,30 horas, quando o adolescente representado pisou no pé da
colega, ocasião em que esta o chamou de “pomba lesa”, resultando em uma discussão banal, vindo
o adolescente representado revidar a agressão verbal sofrida, jogando na colega uma sanduíche
que trazia, desferindo-lhe, ainda, quatro tapas. Por sua vez, para defender-se, a vítima jogou no
representado seu copo de suco, ocasião em que aquele tentou agredi-la com um soco, somente
não conseguindo porque a vítima colocou os braços no rosto. Ocorre, porém, que a pulseira do
relógio do representado chegou a arranhá-la, conforme exame de corpo de delito de fls. 8”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
564
Ouvido no Juizado da Infância e da Juventude, o adolescente confirmou, em audiência, a
banalidade de como tudo começou:
“... que estava no Colégio de costas quando fez um movimento brusco e sem querer esbarrou
na vítima, sendo que esta ficou aborrecida, e mesmo o depoente pedindo desculpas duas vezes
para ela, a colega passou a ofendê-lo moralmente, chamando-o de “pomba-lesa...”. (Processo
arquivado na 24ª Vara da Infância e da Juventude de Belém. Fevereiro de 2000)
Na pesquisa “O Sucesso e o Fracasso na Educação Básica”, realizada pela Secretaria
Municipal de Educação de Belém com o apoio do UNICEF, no período de maio de 1997 a dezembro
de 1998, “com o objetivo de identificar fatores que interferem no desempenho dos alunos da
Rede Municipal de ensino”, as conclusões sobre o item violência escolar impressionam. A
começar pelo percentual de 85,72% das escolas pesquisadas com depoimentos de professores,
direção e funcionários revelando atos de violência “entre os próprios alunos”.
Na publicação da pesquisa, foi selecionado o depoimento de uma das diretoras, que confessa:
“Eu tive de transferir dois alunos do turno da noite porque eles brigavam dentro da escola. Um
deles trouxe uma faca e queria matar o outro... a escola nesse dia foi um tumulto... tiveram que
desarmar o adolescente e chamar a família... O adolescente que possuía arma sempre deu problemas
na escola... um outro adolescente o enfrentou para defender um colega de faixa etária menor que
estava em desvantagem.
Eu fiquei com pena de dar a transferência deste aluno, pois nunca deu problemas antes,
porém fiquei com medo devido ao outro adolescente pertencer a gangues e ameaçar que iria
invadir a escola com sua turma para matar o colega” (Diretora da Escola Uirapuru).
7
Comentando a atitude da diretora, concluem os pesquisadores:
“Esta atitude demonstra a insegurança da direção para administrar esses problemas. Reconhece
que comete injustiça quanto ao tratamento/encaminhamento, mas prefere transferir a outrem o
problema, omitindo-se de assumir uma ação preventiva em sua escola. Constatamos, assim, que a
escola não se organiza para trabalhar os diversos tipos de situação que se apresentam em seu
cotidiano. Neste caso, a diretora não procurou alternativas para abordar o problema, e acabou
optando por dar a transferência dos alunos, como uma forma de proteger a escola de uma situação
que atualmente faz parte de sua realidade”.
7
É também impressionante que foi constatado que somente em 14,28% das escolas
pesquisadas houve depoimentos revelando a existência de relacionamento solidário entre os
alunos e entre estes e seus professores. Concluíram, ainda, os pesquisadores:
“Algumas escolas apresentaram a preocupação constante com a segurança de seus alunos e
funcionários, pois são freqüentes os assaltos às suas proximidades; rivalidade entre alunos do turno
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
565
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
da noite das escolas próximas; investidas de bandidos que chegam, às vezes, a molestar e abusar
sexualmente dos alunos, entre outros. Algumas escolas estão localizadas em áreas com alto índice
de violência e são desprovidas de serviços de segurança pública. Foi possível identificar, nos
depoimentos, que vários funcionários, professores e alunos já foram vítimas de algum tipo de
violência, como relata uma funcionária de uma das escolas: ‘Quando iniciei na escola no ano de
1997, não estacionava meu carro na escola, deixava-o a duas quadras da mesma, em frente a uma
residência e pedia para alguma pessoa da casa reparar, pois a área próxima à escola é muito
perigosa’ (Funcionária 1Escola Rouxinol). Outra funcionária da mesma escola complementa
dizendo ’fui rendida por um assaltante que colocou a faca em meu pescoço’. Esses dados e outros
coletados no decorrer do estudo revelam que a violência, sob diferentes formas, é realidade no
entorno e também no interior das escolas. Esta situação tem contribuído para deixar alunos (as),
professores e demais profissionais da escola apreensivos e preocupados com a defesa pessoal”.
7
Na mesma pesquisa, também foi constatado que o tratamento dispensado aos alunos nem
sempre é cordial, sendo que um professor chegou a responder que “...as salas de aula fedem
demais... fedem a suor dos alunos... eles fedem; tem piolhos...’ (Professor 2Escola Arara
Azul)”.
7
Da mesma forma, foi verificado que:
“... em uma das escolas, algumas crianças que chegaram bem antes da hora da entrada -15:00
htiveram uma recepção um tanto agressiva por parte de um funcionário de apoio que as mandou
de volta para casa, a fim de retornarem só no horário. Quando questionados sobre tal comportamento,
nos justificaram dizendo: ‘Elas são mandadas, antes da hora, pelas próprias mães que não querem
ser perturbadas em casa’. (Funcionária 1Escola Arara Azul)”.
7
Continuam os pesquisadores:
“outro aspecto observado, segundo depoimentos de quatro professoras de duas escolas, está
relacionado à utilização de reforço negativo – puniçãocomo estratégia para garantir a aprendizagem,
o que pode ser verificado nos depoimentos: ‘No meu tempo era assim, quando estudava fazia dez
vezes a palavra que tinha errado e não morri por isso. Passo muita cópia para as crianças, embora
a supervisora não concorde com o meu método’ (Prof. 3Escola Bem-te-vi); ‘... Eu nunca abandono
o velho para assumir o novo, mas sempre tento mesclar esses dois aspectos em meu trabalho em
sala de aula. Eu procuro estabelecer o diálogo e a afetividade com meus alunos, pois minha
experiência comprovou que se não trabalhar esses dois aspectos, não adianta, pelo fato de eu não
ser bonita, de não ser jovem e de não ser branca, tenho de cativar meus alunos pela afetividade’
(Prof. 4Escola Bem-te-vi)”.
7
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
566
5 MANIFESTAÇÕES LEGISLATIVAS
Os legisladores nacionais vêm se preocupando com a questão da violência na escola, adotando
como fundamento, inclusive, que estão se antecipando a um problema de maiores proporções
que pode acontecer se nada for feito, a exemplo do que acontece, hoje, nos Estados Unidos.
O deputado Zenaldo Coutinho, por exemplo, apresentou projeto na Câmara Federal (Projeto
de Lei nº 723/99) propondo que o trote acadêmico vire crime, com a previsão de pena de até
seis anos “para quem usar o trote para humilhar, maltratar ou ferir novos estudantes”.
A iniciativa do deputado federal decorreu, segundo justificativa, do trote mortal tendo
como vítima o estudante Edson Hsueh, morto em abril de 1999 durante o trote da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. O deputado, dizendo-se “indignado com a crescente
onda de violência contra os estudantes”, fez a seguinte assertiva que considero de grande
relevância:
“Não podemos mais conviver com essa atitude. As universidades são locais para estudo e
crescimento pessoal. Passar no vestibular é uma vitória e constitui momento de alegria. Infelizmente,
muita gente está se aproveitando para fazer desse instante de alegria um momento de sofrimento
e de liberação de maus instintos.”
6
Desde 1995, tramitam na Câmara Federal mais de 23 projetos de lei sobre o trote escolar,
dentre outros relacionados com violência no ambiente escolar. Em vários Estados, tramitam
projetos de lei no mesmo sentido.
6 A VIOLÊNCIA DE EDUCADORES CONTRA ALUNOS
A violência não ocorre somente entre alunos, mas também partindo destes contra seus
próprios educadores, aí incluindo-se docentes, diretores, orientadores educacionais e todo o
pessoal de apoio administrativo de uma escola, que devem ter, igualmente, a função de
educadores (porteiros, motoristas, serventes, seguranças, copeiros etc.). É possível encontrar,
também, posturas violentas partindo dos próprios educadores contra os educandos, o que é
motivo de perplexidade, especialmente em se considerando o dever redobrado que eles têm
de agir, com competência, quando houver ameaça ou lesão a direitos de crianças e adolescentes.
Assim, a violência se instala no ambiente escolar vetorizada não somente por educandos,
mas também por educadores. São de natureza física e psicológica, e funcionam com efeito
bumerangue, no que concerne à violência praticada por alunos contra seus próprios educadores.
A mãe de um adolescente, ao qual se atribuía autoria de ato infracional, deixou registrado,
em seu depoimento prestado em juízo, a confirmação das declarações de seu filho:
“... que a diretora chamou a mãe do depoente na diretoria dizendo que ele estava expulso da
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
567
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
escola e disse textualmente “ladrãozinho não estuda na escola”; que durante um mês ficou impedido
de estudar e que só conseguiu voltar para a escola quando o Promotor da Infância e da Juventude
exigiu da diretora o seu retorno...” (Processo arquivado na 24ª Vara da Infância e da Juventude de
Belém).
A situação chega a tal absurdo, de ameaça aos direitos dos educandos, que um secretário
estadual de Educação, substituto, dirigiu oficialmente um expediente ao então secretário especial
de Estado de Promoção Social do Pará, solicitando medidas para que os infratores não
freqüentassem as escolas públicas do Estado, chegando mesmo a rogar providências junto ao
Juizado da Infância e da Juventude para que adolescentes infratores não fossem encaminhados
à rede pública estadual, dizendo, inclusive, que a SEDUC não tem competência para atender
esse tipo de adolescente. No expediente expressa, dentre outras coisas, após narrar o caso de
uma aluna acusada de ameaçar uma professora estadual, o seguinte:
“...Complementarmente, rogamos, também, o empenho de Vossa Excelência, junto ao Juizado
da Infância e da Juventude, demonstrando que a finalidade da SEDUC, não vai além dos limites do
ensino convencional, mesmo para alunos excepcionais, e que a parte referente a menores com
sérios desvios de conduta e necessitados de escolas com características de reeducação, readaptação
e correção, embora sejam da competência do Estado, não o são desta Secretaria”. (A) Secretário
Estadual de Educação, Substituto. (Of. SEDUC nº 2.762/G.S., de 12.11.1999).
O curioso é que esta não vem sendo a posição adotada pela titular da Secretaria Estadual
de Educação em suas manifestações e encaminhamentos. Do mesmo modo, o governador do
Estado tem tido concepção e postura diferente da que foi exposta por seu secretário substituto,
a começar por sua elogiável atuação, quando senador, durante o processo de votação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, pregando, nas manifestações públicas, a necessidade da
inclusão, e não da exclusão, para a reinserção social e familiar do adolescente autor de ato
infracional, inclusive como forma de evitar a reincidência.
Da mesma forma como se posiciona o secretário estadual de Educação substituto, existem
professores e diretores de escolas públicas que insistem na pedagogia da exclusão ao se
recusarem a receber adolescentes infratores, sob o argumento de que a escola não é “para este
tipo de aluno”. Em alguns casos é necessário mandado judicial e ameaça de processamento
criminal pelo crime de desobediência, dentre outros, para que o infrator seja aceito na escola,
o que é lastimável partindo de um educador.
O educador precisa ter sempre em mente que toda criança e adolescente tem o direito
fundamental a um desenvolvimento sadio e harmonioso (ECA, art. 7º), e que posturas como
esta podem provocar nos mesmos danos irreparáveis, sob o ponto de vista bio-psico-social.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
568
Causa maior perplexidade, impressiona mais, quando são os próprios educadores os
autores da prática de violência contra os educandos, no ambiente escolar, invocando o argumento
de “correção”, “disciplina”, infligindo castigos corporais e psicológicos, inclusive impregnados
de muita violência e crueza, como se vê, por exemplo, na ementa de uma decisão do Tribunal
de Alçada Criminal de São Paulo:
“Ementa: Estatuto da Criança e do Adolescente – submissão de criança a vexame ou
constrangimento. Agente que obriga criança a ficar nua com roupa suja de fezes na cabeça durante
palestra em sala de aula. Configuração. Alegada intenção de correção. Irrelevância. Incorre nas
penas do art. 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o monitor da FEBEM que obriga criança a
ficar nua com a roupa suja de fezes na cabeça durante palestra em sala de aula, não o socorrendo
a alegação de que agiu sem dolo, apenas com a intenção de corrigi-la” (Apelação nº 941.495/2,
Julgado e, 14/06/1995, 6ª Câmara, Relator: Ivan Marques. RJDTACRIM 26/80). Fonte JUIS – Jurisprudência
Informatizada Saraiva (16), pg. 1).
Aliás, a história social da infância é repleta de relatos de atos e decisões revestidas de
extrema violência e injustiça contra a criança. Naquele tempo praticadas com o fundamento de
protegê-la, em nome do amor, da compaixão, da caridade, da justiça, de seu melhor interesse.
Isso vem se repetindo por entre os séculos. No Brasil, mesmo com o surgimento, depois de
1960, do Estado do Bem-Estar do Menor, ainda se constata no quotidiano das pessoas, inclusive
no ambiente familiar e escolar, ameaça ou violação dos direitos de crianças e adolescentes,
não obstante a existência de uma legislação que proíbe atos de violência e pune severamente
os infratores, bastando a simples ameaça ou suspeita, sem necessidade de se esperar pela
confirmação, definindo mesmo a lei que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou
violação dos direitos da criança e do adolescente” (ECA, art. 70), o que torna real a possibilidade
de colocar qualquer um no pólo passivo de uma responsabilização por ato criminal, por ilícito
civil e decorrente de uma infração administrativa, tendo como vítima uma criança ou um
adolescente.
Afinal, a Constituição Federal é bem clara no sentido de que “É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, á saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
(Constituição Federal, art. 227, caput), o que corroborado pela lei infraconstitucional que é o
Estatuto da Criança do Adolescente (art. 4º), que inclusive elencade forma exemplificativa e
não exaustiva em face do texto constitucional abrangentea atenção e o atendimento que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
569
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
deve ser dado com prioridade absoluta, aliás, um princípio que pela primeira vez surgiu no
Direito Constitucional brasileiro.
7 BOAS LEIS E A MUDANÇA DE MENTALIDADE
O Brasil possui, no seu Direito Positivo, um arcabouço legal de boa qualidade no que diz
respeito à educação, com princípios e normas impregnadas de concepções modernas, em geral
elogiadas pela melhor doutrina especializada. Basta ver a Lei nº 9.394/96 que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal,
dentre outras manifestações legislativas relevantes ao aprimoramento da qualidade do ensino.
Entretanto, não bastam leis exemplares para que se tenha uma prática educacional
competente. Temos exemplos, no país, de excelentes leis, que pouco ocorrem na prática,
situação que alguns definem como o “Brasil legal e o Brasil real”.
Por exemplo, ainda é possível encontrar escolas cujo maior avanço pedagógico foi a
mudança da cor do quadro: de negro para verde. Ou do giz, que passou a ser antialérgico, ao
lado das melhorias no prédio da escola. Entretanto, a proposta pedagógica continua ultrapassada
ou mal aplicada, sem atrativo aos alunos, desprovida de eficácia e modernidade, inclusive sem
qualquer recurso audiovisual e de informática, sem Internet. Em alguns casos, até mesmo por
falta de convencimento do próprios professores sobre a indispensabilidade da utilização desses
recursos no processo educacional. O mesmo acontece com os temas transversais, diante do
fato de que existem educadores que ainda não se convenceram da importância de sua imediata
adoção nas escolas.
É evidente que uma escola não se faz somente pela existência de avanços tecnológicos,
nem pela boa construção e admirável arquitetura de seus espaços físicos. A construção do
conhecimento impõe, principalmente, um relacionamento pessoal competente, realmente
educativo, harmonioso, participativo, solidário, impregnado de fraternidade entre educador e
educando, não somente na sala de aula, mas, também, em todas as demais atividades escolares,
inclusive extra-curriculares, com a inarredável participação da família e da comunidade, como
determina a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional (LDB e ECA).
Para que se verifiquem avanços no processo educacional, é fundamental que exista também
mudança de mentalidade dos operadores sociais e do Direito, dos educadores e dos próprios
educandos, assim como de seus pais ou responsáveis, devendo, também, a comunidade estar
convencida de seu dever legal e constitucional de participar, de forma competente, da promoção
da educação. A mudança de mentalidade deve começar pela correta concepção de que educação
não é só pedagogismo. É também direito. E com todo o status de direito fundamental.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
570
Infelizmente, existem educadores que ignoram essa verdade. Como conseqüência, no
ambiente escolar, acabam adotando posicionamentos totalmente equivocados, ilegais, e até
mesmo com grave violação aos direitos humanos dos alunos. Os argumentos para essas posturas
são os mais variados, como “fazer justiça”, “impor a lei”, “estabelecer disciplina”, “corrigir o
aluno”, dentre outros. Existem até mesmo os que juram que estão agindo no melhor interesse
do educando.
Um procedimento disciplinar efetivado pela direção da escola ou pelo serviço de orientação
educacional pode ser algo extremamente injusto, ilegal e violador dos direitos humanos do
aluno caso não sejam tomadas certas precauções, ao passo que um procedimento policial e
judicial para apurar ato infracional atribuído ao adolescente, se obedecida a legislação pertinente,
garante o respeito aos direitos individuais e às garantias processuais do aluno a quem se
atribua autoria de ato infracional, inclusive a garantia do contraditório e da ampla defesa.
Aliás, documentos internacionais que o Brasil ratificou, e por isso mesmo se abriga a
cumpri-los nos termos do que dispõe a Constituição Federal (CF, art. 5º, § 2º, parte final), vedam
violência contra o educando a título de disciplina escolar. Um desses documentos é a Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 20 de novembro de 1989, que dispõe: “Os Estados Parte adotarão todas as medidas
necessárias para assegurar que a disciplina escolar seja ministrada de maneira compatível com
a dignidade humana da criança e em conformidade com a presente Convenção” (art. 28, nº 2).
Da mesma forma as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil
(Diretrizes de Riad) dispõem que: “Os sistemas de educação, além de suas possibilidades de
formação acadêmica e profissional, deverão dar atenção especial ao seguinte: (...) evitar medidas
disciplinares severas, particularmente os castigos corporais” (nº 20, letra “g”).
Existem orientadores educacionais que têm conseguido o milagre de atrair a repulsa e até
o ódio de todos os personagens do processo educacional: alunos, professores e pais de alunos
ou responsável. Esses profissionais podem ter cursos até de mestrado e doutorado nas melhores
universidades, mas não conseguem realizar seu verdadeiro papel de orientação educacional,
justamente porque são obrigados a ter a postura equivocada e indevida de juízes e policiais
diante de um problema envolvendo os alunos, por exigência da direção da escola e dos próprios
pais dos educandos que se julgam vítimas ou prejudicados pela ação do colega.
Infelizmente, ainda hoje, mesmo diante de um arcabouço legal modelar no que concerne
à educação, ainda é possível encontrar orientadores educacionais, especialmente de certas
escolas públicas, que só são acionados para definir e aplicar sanções disciplinares aos alunos
que estejam em conflito com a lei penal, que estejam tendo atitudes conflitivas com colegas e
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
571
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
educadores, que estejam com comportamento na escola em desalinho com as regras sociais
estabelecidas, ou mesmo quando o educando descumpre as normas do Regimento Escolar.
Além disso, ainda há o problema de existir, em geral, apenas um orientador educacional para
centenas e até milhares de alunos. Muitos serviços de orientação educacional são sinônimos
de locais de punição aos chamados “maus alunos”.
Essa situação irregular persiste, pela concepção e prática ainda arraigadas em muitos
educadores de que o serviço de orientação educacional deve ser convocado para responsabilizar
o aluno pela prática de ato infracional.
Especialistas confirmam esse entendimento no sentido de que:
“(...) na plena vigência da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº
9.394, de 20.12.1996), com seus princípios e normas modernas, a conclusão mais evidente é que
o equivocado suporte teórico que fundamentou a orientação educacional, ou seja, o estrutural-
funcionalismo, ao invés de trabalhar o educando com a visão total do bio-psico-social, ainda hoje,
em pleno período de virada do século, salvo exceções, insiste em reduzir seu trabalho ao atendimento
aos “casos-problema”, especialmente em determinadas escolas públicas. Na mesma linha de raciocínio,
pode-se dizer que a tradição, o conservadorismo, a falta de reflexão crítica sobre a prática profissional
e, basicamente, as circunstâncias histórico-ideológicas nas quais foram baseadas suas funções explicam
porque, ainda hoje, o orientador educacional, em muitos casos, privilegia a atenção ao chamado
aluno irregular, ao aluno tido como problema, ao aluno irrequieto, ao “criador de conflito” no ambiente
escolar”.
2
No quotidiano de uma escola, principalmente por causa do desconhecimento da legislação
e dos procedimentos, existem educadores que acabam adotando posicionamentos
pedagogicamente incorretos, em desalinho com a legislação pertinente, e, em alguns casos,
servem até mesmo como vetores do aumento da violência entre os próprios alunos e praticados
por estes contra educadores. Daí porque é necessário que nos cursos de Pedagogia seja
considerada obrigatória a disciplina “Direito da Criança e do Adolescente”, que não é somente
o Estatuto da Criança e do Adolescente.
É possível encontrar os que não sabem nem mesmo que estão obrigados a comunicar ao
Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais, os
casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes
(ECA, art. 13). Da mesma forma, existem dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental
que ignoram seu dever de comunicar ao Conselho Tutelar casos de “maus-tratos envolvendo
seus alunos; reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares
e elevados níveis de repetência” (ECA, art. 5º e seus incisos), desconhecendo até mesmo que se
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
572
constitui em infração administrativa, com a previsão de multa, o professor ou o responsável
pelo estabelecimento de ensino fundamental, pré-escola ou creche não comunicar à autoridade
competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de
maus-tratos contra crianças e adolescentes (ECA, art. 245), aplicando-se os dispositivos tanto no
caso de escolas públicas como particulares, uma vez que a lei não diferencia o tratamento. E
nem poderia fazê-lo.
É oportuno lembrar que o educador que tenha uma posição omissiva não somente diante
de suspeita ou confirmação de maus-tratos envolvendo seus alunos, mas também em toda e
qualquer situação que os coloque em risco, pode ser responsabilizado, inclusive criminalmente,
sem prejuízo da ação cível de indenização.
Com efeito, dispõe o Código Penal, de forma bem clara, que é preciso a relação de
causalidade para imputar a uma pessoa, a quem lhe deu causa, o resultado de que depende a
existência do crime, sendo que “Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado
não teria ocorrido” (CPB, art. 13).
Por outro lado é importante ressaltar que o aluno no ambiente escolar está sob os cuidados,
a proteção e a vigilância dos educadores, daí porque estes não podem adotar postura omissiva,
pois fica criada a hipótese de risco da ocorrência do resultado, aplicando-se, no caso, a hipótese
também prevista no Código Penal no sentido de que:
“A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.
O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de
outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado” (CPB, art. 13, § 2º, letras “a”, “b” e “c”).
Os educadores precisam saber que a omissão pode até mesmo ser tipificada como crime
de tortura. Com efeito, dispõe a Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que é punida com a pena
de reclusão de dois a oito anos a pessoa que submete alguém sob sua guarda, poder ou
autoridade (como é o caso do professor e do diretor de uma escola com referência aos alunos
do estabelecimento educacional), com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo; sendo que todo aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o
dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos e, se resulta
lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos;
aplicando-se a pena de reclusão de oito a dezesseis anos ocorrendo morte; aumentando-se a
pena de um sexto até um terço, se o crime é cometido por agente público e tem como vítima
criança, gestante, deficiente e adolescente, sendo que o crime de tortura – cujo condenado não
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
573
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
tem direito a fiança, graça ou anistia e cumprirá a pena em regime fechado – acarreta para seu
autor inclusive a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício
pelo dobro do prazo da pena aplicada.
Além do mais, o educador (que não é somente o docente, o diretor e o orientador
educacional, mas também todos os servidores de apoio administrativo, como porteiros,
seguranças, vigias, copeiros, serventes e todos os demais que exerçam alguma função na escola)
que adotar atitude omissiva diante de ameaça ou lesão a direito dos alunos, inclusive,
evidentemente, no que concerne à violência física ou moral, pode, também, ser acionado, no
Juízo Cível, com ação de indenização decorrente do ato ilícito por ter-se omitido. Nesse caso,
não somente por danos materiais como por danos morais, podendo, inclusive, haver cumulação
de pedidos, desde que oriundos do mesmo fato, como permite a Súmula nº 37 do Superior
Tribunal de Justiça, assim como entende a melhor doutrina. Com efeito, dispõe o Código Civil:
“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou
causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (art. 159 do CC).
No dia-a-dia das escolas, diante de um ato infracional praticado por um adolescente, tem
acontecido em muitos casos que o educador assume, indevidamente, o papel de policial ou
juiz. Em outros casos, limita-se a realizar os procedimentos pedagógicos, encaminhando o
aluno somente a uma conversa com o orientador educacional, ou a uma audiência de advertência
na diretoria, omitindo-se das demais providências impostas por lei. Alguns casos concretos
ilustram muito bem a situação.
Há casos que impressionam e preocupam. São situações que se julgava impossível de
acontecerem diante dos avanços da Pedagogia, como puxar a orelha do aluno como forma de
castigo corporal pela prática de indisciplina na escola.
Outro caso concreto pode ser invocado para demonstrar os equívocos cometidos que violam
os direitos humanos dos alunos, além de se constituir em uma afronta à Pedagogia moderna:
uma professora, ao receber a queixa de um aluno de que tinha sumido sua caneta, no término da
aula, fechou a porta da sala, não deixando ninguém sair e passou a revistar todos em busca do
objeto que teria desaparecido dizendo que precisava “descobrir o aluno ladrão” porque a escola
era só “para pessoas honestas”, o que criou constrangimento para todos, inclusive pela forma
como foi feita a revista nos objetos e no corpo dos educandos, quando o educador deveria ter
aproveitado para discutir com seus alunos a questão da honestidade, do respeito aos direitos
das pessoas, dos direitos da vítima, o processo de apuração da autoria do ato infracional e a
responsabilização do infrator, sem prejuízo do encaminhamento da vítima à orientação educacional
para ser informada de seus direitos e orientada em como exercê-los.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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Em um processo que tramitou pela 24ª Vara Cível da Infância e da Juventude de Belém,
uma aluna de 13 anos narrou o seguinte: um colega de turma costumava dizer para ela palavras
obscenas, chegando mesmo a convidá-la para saírem juntos, o que era constantemente negado,
tendo, certo dia, este colega de 17 anos tocado em seu seio de forma proposital. Sentindo-se
coagida e ofendida moralmente procurou a diretoria para denunciá-lo, pedindo providências.
A diretora mandou chamá-lo e apenas o advertiu de que não repetisse o ato sob pena de sua
mãe ser chamada ao colégio e de ser suspenso. Logo após a conversa na diretoria o aluno
retornou à sala de aula e dirigindo-se à colega vítima de seus atos disse: “Estás vendo? De que
adiantou tua queixa na diretoria ? Nada aconteceu comigo e nem vai acontecer”. A aluna queria
saber o que fazer diante do fato de que ele continuava com suas atitudes indevidas e ilegais
para com ela. E agora com muito mais confiança, pois comentava com todos os demais colegas
o fato, dizendo mais que de nada valeu a queixa da colega porque nada lhe tinha acontecido,
o que provocava frases irônicas, risadas e deboches de todos os demais da sala.
Em outra situação, um segurança de um colégio público importante de Belém assediou
sexualmente uma aluna, por diversas vezes. Esta, incomodada com o agravamento do assédio,
procurou a diretoria e denunciou o vigilante. O servidor, com muito tempo de serviço na escola,
foi chamado pela diretora, recebendo apenas uma advertência de que não deveria repetir o ato, e
que deveria ter vergonha do que fez principalmente porque era um senhor de cabelos brancos e
a aluna tinha apenas 12 anos de idade. Segundo o relato da professora que acompanhou de perto
o problema, teria influenciado na decisão da diretora, de apenas ameaçar o servidor e não tomar
os demais encaminhamentos previstos na lei, a defesa do vigilante de que a aluna é quem o estava
provocando, inclusive usando saias curtas e blusas decotadas, além do que o acusado era um
servidor muito antigo na escola, pontual, querido por todos os funcionários por sua gentileza e
educação, prestando-se, inclusive, a realizar pequenos mandados, como comprar lanches para os
professores, além de que teria sido a primeira vez que se envolvia com esse tipo de ato.
Atitudes omissas como essas de um educador que não fez os encaminhamentos legais
para a responsabilização dos infratores são totalmente equivocadas e ilegais, violando, inclusive,
os direitos humanos do educando, além de ser um péssimo exemplo, um atestado de
incompetência e irresponsabilidade. Um verdadeiro desserviço à educação.
Nos debates com educadores não é raro ouvir a confissão de muitos de que realmente
desestimulam seus alunos – vítimas de violência física ou moral na escola – a tomar qualquer
providência legal, mesmo tendo sofrido agressão grave, porque consideram que basta a conversa
de diretoria e o caso está encerrado. Em um depoimento registrado em audiência, a diretora da
escola chegou a dizer que fez de tudo para impedir que a pequena vítima fizesse os
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
575
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
encaminhamentos legais pertinentes, chegando ao absurdo de condenar o aluno pela iniciativa
de procurar a Delegacia de Polícia especializada, mesmo diante de a vítima ter sofrido violenta
agressão com socos em seu rosto que, inclusive, lhe quebraram os óculos. Em seu depoimento
prestado no Juizado da Infância e da Juventude, arrolada pelo Ministério Público como
testemunha, disse, também, que chegou a argumentar com a vítima e seus familiares de que
deveriam recuar porque, no futuro, as posições poderiam se inverter, ou seja, a vitima poderia
ser o acusado, além de ter criticado os familiares da vítima por ter consultado a criança sobre
se desejava processar seu agressor, dizendo, a educadora que dirige a escola, textualmente: “...
que não concordou com a iniciativa do responsável pela vítima em consultá-la, porque acha
que a opinião de uma criança não deve ser levada em conta” (Processo arquivado na 24ª Vara
da Infância e da Juventude de Belém).
No caso em tela, a conversa de diretoria só fez aumentar a agressividade do adolescente
representado, que passou, inclusive, a debochar da vítima diante dos colegas, indagando,
ironicamente, quem tinha feito aquela marca em seu rosto, como a seguir se vê:
“... Que, como diretora, quando ocorre este tipo de incidente na escola, costuma chamar as
partes na diretoria para aconselhar, resolvendo tudo lá mesmo, sendo que não concorda em que os
envolvidos procurem a polícia, motivo pelo qual ficou surpresa com a iniciativa da vítima de
processar o colega; Que em sua opinião esse problema da lesão corporal poderia ter parado ali
mesmo na diretoria, porque desentendimento entre alunos é uma coisa que ocorre todo dia; (...)
Que quando soube que os familiares da vítima e a própria vítima tinham procurado a polícia para
processar o representado, procurou os pais para que voltassem atrás e retirassem a queixa na
polícia, mas recebeu, como resposta, que a vítima já tinha sido consultada e que a própria vítima
estava decidida a processar o representado; Que a depoente, como diretora e educadora considera
que isto trouxe uma série de problemas para o representado e sua família, submetendo-os a
procedimentos cansativos, sendo que, como disse, tudo poderia ter sido resolvido na sala da diretoria,
sem os procedimentos junto à polícia e no Juizado da Infância e da Juventude; Que a depoente
chegou mesmo a observar aos familiares da vítimacomo um dos argumentos para tentar fazê-los
desistir do processoque um dia, no futuro, os papéis poderiam estar invertidos, ou seja, a hoje
vítima poderia estar na posição de acusado, e ai, certamente, não gostaria de ter um processo na
Justiça; (...) Que não concordou com a iniciativa do responsável pela vítima em consultá-la porque
acha que a opinião de uma criança não deve ser levada em conta (...)” (Processo arquivado na 24ª
Vara da Infância e da Juventude de Belém).
A pequena vítima deu uma lição de cidadania, inclusive à diretora, ao dizer em audiência que:
“(...) acha importante o processo porque caso não fizesse isto o adolescente representado
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MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
576
poderia ficar incentivado a repetir a agressão com outro colega porque, certamente, iria achar que
nada aconteceria com ele, e que apenas haveria a conversa na diretoria e sua suspensão”.
As desculpas de um educador para desestimular, e até impedir, que seu aluno, vítima de
um colega, de um funcionário da escola ou mesmo de um professor – inclusive omitindo-se de
fazer os encaminhamentos devidos para que a vítima seja informada de seus direitos e orientada
em como exercê-los –, são as mais variadas e esdrúxulas; evidentemente insustentáveis,
desprovidas de qualquer sentido lógico e em grave descumprimento dos objetivos da educação,
conforme previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na LDB,
com todas as conseqüências de natureza penal e civil em face da postura omissiva.
Uma das justificativas invocadas é a de que não é educativo o adolescente infrator sofrer
os vexames de responder, judicialmente, pelo ato praticado, submetendo-se a constrangimentos
de ir à Delegacia para prestar depoimentos e ficar na posição de réu em um processo, com a
possibilidade de uma condenação, mesmo sendo em um Juizado da Infância e da Juventude.
Defendem esses educadores que basta a conversa com a diretora ou com o orientador
educacional, em que os infratores são aconselhados, e até mesmo advertidos. No máximo
poderão ser suspensos ou mesmo expulsos do colégio, se o caso for gravíssimo.
Esse entendimento é insustentável, por vários motivos, dentre os quais o fato de que essa
postura do educador pode ensejar a fragilização da vítima e o fortalecimento do agressor. Por
outro lado, essa atitude pode representar um forte vetor de mais violência na escola,
especialmente, porque os alunos podem ficar impregnados de perigosa sensação de impunidade.
Além do mais, é uma concepção em desalinho com a lei.
A responsabilização do adolescente infrator, com todos os procedimentos policiais e judiciais
corretamente realizados em obediência à legislação pertinente, é educativo tanto para o infrator
como para a própria vítima.
É importante lembrar que um juiz da Infância e da Juventude, julgando procedente uma
representação formulada pelo Ministério Público, quando impõe ao adolescente que praticou
um ato infracional uma sanção, dentre as elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente,
está, na verdade, aplicando ao mesmo uma medida que tem a natureza sócio-educativa, estando
obrigado, por lei, a levar em conta, no momento da decisão, “(...) as necessidades pedagógicas,
preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”
(ECA, art. 113 c/c art. 100).
Por outro lado, nos termos do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, art.
112, VII), fica oportunizada a aplicação cumulada (ECA, art. 113 c/c art. 99) ao mesmo adolescente
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
577
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
infrator de uma ou mais medidas protetivas referidas no artigo 101, I a VI do Estatuto
(encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação,
apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento
oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família,
à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em
regime hospitalar ou ambulatorial e, finalmente, inclusão em programa oficial ou comunitário
de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos), ficando, o magistrado prolator
da sentença, igualmente vinculado, em sua fundamentação, às necessidades pedagógicas. Nesse
caso, é competência do Conselho Tutelar providenciar o cumprimento da(s) medida(s)
protetiva(s) imposta(s) judicialmente pelo juiz ao adolescente infrator (ECA, art. 136, VI), aí
incluindo-se o monitoramento e acompanhamento de sua correta execução.
Um outro aspecto positivo de todo o sistema é que, constatado na instrução processual
relacionada com o adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional que os próprios pais
ou responsável são pessoas que estão com problemas pessoais e familiares, inclusive com prejuízos
ao desenvolvimento bio-psico-social dos filhos, especialmente do adolescente sentenciado – o
que poderá, inclusive, dificultar ou impedir sua reinserção social e familiar –, o magistrado
promove o imediato encaminhamento dos pais ou responsável ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade para que eles sejam atendidos e aconselhados; podendo, inclusive, o referido Conselho
aplicar aos mesmos (ECA, art. 136, II) as medidas previstas no artigo 129, I a VII do Estatuto da
Criança e do Adolescente (I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à
família; II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento de
alcoólatras e toxicômanos; III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV –
encaminhamento a cursos ou programas de orientação; V – obrigação de matricular o filho ou
pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; VI – obrigação de encaminhar a
criança ou adolescente a tratamento especializado; VII – advertência). Com o magistrado fica a
competência exclusiva da decisão quanto à perda da guarda, destituição da tutela e suspensão
ou destituição do pátrio poder (ECA, art. 129, VIII a X), o que só pode ocorrer em casos gravíssimos
e assim mesmo em processo judicial, assegurado aos pais ou responsável o contraditório e a
ampla defesa em procedimento judicial previsto no próprio Estatuto.
Considera-se, ainda, que um procedimento não exclui o outro, ou seja, a conversa de
diretoria ou com o orientador educacional não pode representar um impeditivo para que a
vítima receba todas as informações sobre seus direitos e seja orientada sobre como exercê-los.
Muito pelo contrário, pois a orientação educacional não pode perder a oportunidade da conversa
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
578
pedagógica com os alunos envolvidos – vítima e infrator – para vincular a educação às práticas
sociais e dar significativa colaboração para prepará-los ao autêntico exercício da cidadania,
que são objetivos da educação em face da legislação pertinente.
Essas providências não significam transformar as escolas em Delegacias de Polícia. O
efeito pretendido é exatamente o inverso, uma vez que os educadores deixarão de ter atitudes
polialescas, o que ainda hoje se verifica em muitas escolas diante de um adolescente em
conflito com a lei penal. Além do mais, o educador não pode se recusar a cumprir a lei,
inclusive informando a vítima de alguma violência física ou moral, mesmo na forma tentada,
sobre seus direitos, bem como orientando sobre como exercê-los corretamente, cabendo ao
serviço de orientação educacional o dever de tomar essa providência, fazendo, inclusive, os
encaminhamentos respectivos, caso este seja o desejo da vítima.
No que se refere ao adolescente infrator, além dos aconselhamentos pedagógicos, das
advertências e das demais sanções disciplinares adotadas pela direção da escola em face do
Regimento Escolar – que não contrariem, evidentemente, o direito à educação do adolescente
infrator e de seus outros direitos fundamentais, inclusive de expressão e ampla defesa, assegurado
o contraditório nos procedimentos disciplinares –, tem inegável efeito educativo para o aluno
infrator que ele, também, seja informado das eventuais conseqüências do ato infracional,
independentemente da respectiva responsabilização cível pela prática do ato ilícito. Portanto,
para ambos – infrator e vítima –, tal encaminhamento é extremamente educativo.
A decisão de processar o adolescente infrator, aluno da escola, é somente de sua vítima,
mesmo sendo esta uma criança ou um adolescente, pois são sujeitos de direito e não simples
objetos de intervenção da sociedade, da família e do Estado. A direção da escola, o docente ou
o orientador educacional não têm legitimidade para decidir pelo aluno, se este for a vítima. E
muito menos podem impedi-lo de tomar as medidas previstas em lei, sendo defeso, além
disso, omitir informações tanto ao infrator como à sua vítima sobre as conseqüências legais
que poderão advir do ato praticado, tanto na esfera cível como na infracional, com os respectivos
procedimentos previstos em lei. Assim, a conversa com a diretora e com o pessoal da orientação
educacional são bons momentos para essas reflexões, informações e orientações, ao lado dos
encaminhamentos referentes aos aconselhamentos e sanções disciplinares que vierem a ser
adotadas no âmbito escolar.
A responsabilização do adolescente infrator não está, como alguns pensam, em desalinho
com a educação. Muito pelo contrário, pois significa preparar o educando para a convivência
humana de forma harmoniosa e saudável, com o respeito aos direitos individuais e sociais,
com uma perfeita consciência de todos os seus deveres.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
A Constituição Federal e a legislação infraconstitucional deixam bem claro como finalidades
da educação o pleno desenvolvimento da pessoa para o correto exercício da cidadania e das
práticas sociais. Com efeito, dispõe a Lex Fundamentalis:
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Constituição Federal, art. 205).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, igualmente, assevera que:
“A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua
pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (ECA, art. 53).
A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, em vários dispositivos deixa claro que a educação abrange os processos formativos,
também no que concerne à convivência humana, exigindo que o educando seja preparado para
o correto exercício da cidadania, além de obrigar que o ensino seja ministrado com base na
vinculação entre a educação e as práticas sociais. É o que se constata pela simples leitura da LDB:
“Artigo 1º“A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar,
na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais
e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. (...)
Parágrafo 2º“A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”.
Artigo 2º“A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Artigo 3º“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...)
Inciso XI“Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais”.
Com fundamento na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional citada, um
educador tem o dever legal de vincular a educação escolar às práticas sociais, ao pleno
desenvolvimento do educando e seu preparo para o correto exercício da cidadania, sendo-lhe
vedado dificultar ou impedir que um aluno, que foi vítima de uma violência física, psicológica ou
moral no ambiente escolar, seja corretamente informado – na própria escola como parte de seu
processo formativo – acerca de seus direitos, bem como que seja orientado em como exercê-los,
inclusive, no que concerne à responsabilização do adolescente infrator de quem foi vítima, não
somente na área infracional, mas também na esfera cível, no que diz respeito à indenização por
dano moral e material decorrente do ato ilícito praticado pelo infrator, podendo haver, inclusive,
cumulação de pedidos, desde que oriundos do mesmo fato, como permite a Súmula nº 37 do
Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se, nesse caso, o Código Civil para a definição das obrigações
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
580
resultantes do ato ilícito se o agente for menor de idade (ver Código Civil, art. 156 , parágrafo
único do art. 1.518 e art. 1.521, incisos I e II).
Uma outra desculpa corrente para desestimular ou não permitir que a vítima – aluno ou
professor – tome as providências legais, se vítima de algum tipo de ameaça ou lesão a seus
direitos no ambiente escolar, como violência física ou moral, é a de que, se o assunto vazar para
a imprensa, o “nome da escola fica manchado”, o que é uma outra justificativa inaceitável, justamente
porque o direito dos indivíduos a ser assegurado é preponderante ao da pessoa jurídica.
Em se tratando de criança e adolescente o ECA é bem claro no sentido de que “Nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais” (art. 5º), sendo um “dever de todos prevenir a ocorrência de
ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (art. 70).
No quotidiano forense são várias as denúncias de que educadores têm sido vítimas de
alunos, mas são proibidos pela direção da escola (especialmente se particular) de tomar as
providências decorrentes da violência física ou moral que receberam.. O principal argumento da
direção da escola é de que o bom conceito da escola não pode ser afetado, o que é um absurdo.
Em um dos casos, um aluno de 17 anos jogou, propositadamente, um portão de ferro no
rosto da professora, deformando sua face, simplesmente porque se aborreceu com o pedido dela
para que retornasse à sala de aula. A diretora da escola ameaçou a professora: estava proibida
de registrar queixa na Polícia especializada e muito menos ingressar com ação cível de indenização
por dano material e moral, sob a justificativa de que iria prejudicar o bom nome da escola. E
advertiu: caso fizesse isso perderia o emprego e não teria seu testemunho contra o aluno, mesmo
tendo a diretora assistido a toda a cena de violência do aluno contra a professora.
Em outro caso, um aluno de l5 anos ofendeu moralmente uma professora da raça negra,
com apelidos depreciativos, configurando-se racismo, que é um ato infracional gravíssimo,
que sujeita, seu autor, a uma sanção rigorosa, sem prejuízo da responsabilização na área cível,
em decorrência do dano moral sofrido. A direção da escola teve a mesma postura ilegal com a
vítima, ou seja, impediu que a educadora adotasse as providências legais pertinentes.
Nesses casos, o procedimento correto, altamente educativo, em sintonia com as práticas
sociais e de grande significado à formação do educando para o correto exercício da cidadania
e de harmoniosa convivência humana, objetivos da educação nacional como dispõe a
Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a LDB, seria os professores
promoverem a responsabilização do aluno, não somente na área infracional, mas também na
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
581
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
cível, no que concerne à indenização por dano moral que pode ser cumulada com a de dano
material, conforme a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça.
Um outro argumento arrolado por alguns educadores para desestimular a vítima, e até
impedi-la de proceder à responsabilização do adolescente infrator, até mesmo omitindo
informações a ela sobre seus direitos e orientações sobre como exercê-los, inclusive sobre os
procedimentos a serem tomados, ao lado das explicações ao infrator das possíveis conseqüências
de seu ato infracional, é o de que agir desse modo seria dar a si próprio um atestado de
incompetência, um reconhecimento de fracasso como educador que não soube resolver o
conflito estabelecido entre os alunos pelas vias disciplinares.
Igualmente é impossível concordar com essa concepção totalmente equivocada. A começar
pelo fato de que não se trata apenas de um simples conflito em decorrência da relação
interpessoal, mas da prática de um ato infracional, que o ECA define como crime ou contravenção
(art. 103), com a respectiva tipificação prevista no Código Penal e legislação correlata; e com a
previsão legal no que concerne aos procedimentos a serem adotados para apuração de ato
infracional atribuído a adolescente (ECA, arts. 171 a 190).
Na verdade, um educador que adota essa postura equivocada e ilegal, ao contrário do que
acredita, não está sendo um educador competente. A começar porque está descumprindo as
normas constantes do Direito Positivo nacional no que concerne à educação, especialmente a
Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a LDB, que obrigam vincular a
educação às práticas sociais, bem como a cumprir a finalidade do pleno desenvolvimento do
educando e seu preparo para o exercício da cidadania, inclusive no que se refere à convivência
e solidariedade humana.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.009, de 13.07.1990) está completando dez
anos de vigência no Direito Positivo nacional. Mesmo assim, muitos teimam em desconhecê-lo,
inclusive achando que ele é somente para o carente, o abandonado, o infrator, quando se sabe
que é para toda e qualquer criança ou adolescente, rico ou pobre, infrator ou não, sendo uma lei
moderna e eficaz, que é forte na prevenção, superando a visão do Direito limitada à solução de
conflitos, trazendo mecanismos interessantes de responsabilização quando houver ameaça ou
lesão a direito individual, individual homogêneo, difuso ou coletivo, por ação ou omissão,
bastando a simples suspeita (portanto, não precisando esperar pela confirmação) para que todos
estejam obrigados a agir, como, inclusive, dispõe o artigo 70 do ECA, dentre outros.
Mesmo assim, ainda é possível encontrar aqueles, até mesmo educadores, que ignoram o
ECA ou têm uma visão distorcida de seu conteúdo, chegando mesmo a garantir que o Estatuto
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
582
protege o adolescente que pratica ato infracional. Dizem que por esse motivo não informam
aos alunos, vítimas de alguma violência física ou moral, sobre seus direitos, nem os orientam
sobre os procedimentos que podem tomar diante da ameaça ou lesão de seus direitos,
especialmente no que concerne à responsabilização do adolescente infrator, porque “com menor
não pega nada” e por esse motivo, acrescentam, a vitima não deve perder seu tempo.
No Brasil, insiste-se no absurdo de culpar a existência do Estatuto da Criança e do Adolescente
para justificar a delinqüência juvenil. Algumas pessoas chegam até mesmo a indagar: “e por que
os Estados Unidos têm pena de morte para adolescentes?”. Nesse caso é preciso retornar a
pergunta, indagando do interlocutor: “Os EUA têm conseguido diminuir a violência juvenil
gravíssima, mesmo com penas tão graves?” Na verdade, os americanos não têm um ECA para
colocar a culpa pelo aumento preocupante de violência, especialmente nas escolas. Em vários
países da Europa, como Portugal, Espanha e Itália, a delinqüência juvenil vem preocupando as
autoridades destes e de outros países, e lá eles também não possuem o ECA para culpar.
A concepção errônea de que o ECA é o “Evangelho da Impunidade”, de que é uma “arma
nas mãos do adolescente infrator”, de que é uma “lei só de direitos sem nenhum dever”, pode
provocar até mesmo a justiça privada contra o adolescente a quem se atribua a autoria de ato
infracional, praticada pelas pessoas com as próprias mãos, e em alguns casos até ressuscitando
a Lei do Talião, do olho por olho, dente por dente. A imprensa vez por outra noticia um
adolescente flagrado pichando que é amarrado em um poste, recebe uma surra, tem a cabeça
raspada e ainda é obrigado a engolir a tinta que estava usando na pichação, com as pessoas,
ao seu redor vibrando e aplaudindo a “lição”, “correção” aplicada a ele, quando o procedimento
justo, legal e racional seria apresentá-lo à autoridade policial para os procedimentos previstos
em lei e a devida responsabilização pelo ato praticado.
A comunidade desinformada não pensa assim. Da mesma forma o policial. Tão grave é
que o próprio adolescente, também se considerando protegido pelo ECA, acaba praticando
violência, e só descobre que está equivocado, infelizmente, quando já está sentenciado ao
cumprimento de uma sanção, que pode ser, inclusive, a privação de sua liberdade, dependendo
da gravidade do ato infracional praticado.
Na verdade, essa concepção deturpada de quem nem leu o ECA acaba se constituindo em
um potente vetor de violência não somente praticada pelo adolescente, como contra ele próprio,
quando se sabe que o ECA não é o “Evangelho da Impunidade”.
No próprio texto do ECA, está bem claro que não somente os direitos, mas também os
deveres devem ser observados, ao dispor que: “Na interpretação desta lei levar-se-á em conta
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
583
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais
e coletivos (...)” (ECA, art. 6º).
É imperdoável desconhecer que os direitos individuais e as garantias processuais de um
adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional são absolutamente iguais aos de um
adulto que comete um crime. Basta cotejar o que dispõe a respeito o ECA e a Constituição
Federal. Aliás, mesmo que o Estatuto não trouxesse o elenco dos direitos individuais e garantias
processuais, esses adolescentes já os teriam assegurados pelo texto constitucional.
O adolescente que pratica um ato infracional estará sujeito a processo contraditório,
assegurada sua ampla defesa, podendo receber, no julgamento, uma medida sócio-educativa.
Adultos e adolescentes acusados da prática de ato infracional têm os mesmos direitos individuais
e garantias processuais em face do que consta no Direito Positivo nacional.
No que concerne aos direitos individuais:
“Nenhum adolescente será privado de sua liberdade, senão em flagrante de ato infracional ou
por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.” (ECAart. 106, sendo que
a Constituição Federal dispõe a toda e qualquer pessoa: “Ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” (CF, art. 5º, LXI).
“O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreensão, devendo ser
informado acerca de seus direitos” (ECA, art. 106, parágrafo único). A Constituição Federal dispõe:
“O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório
policial” (CF, art. 5º LXIV, ); “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado” (CF, art. 5º, LXIII).
“A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinente
comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele
indicada” (ECA, art. 101). Na Constituição Federal: “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se
encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa
por ele indicada” (CF, art. 5º , LXII).
“Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade, a possibilidade de liberação
imediata” (ECA, parágrafo único do art. 107). Dispõe a Constituição Federal: “A prisão ilegal será
imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (CF, art. 5º, LXV).
“O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos
órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada”
(ECA, art. 109). Na Constituição Federal: “O civilmente identificado não será submetido à identificação
criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei” (CF, art. 5º, LVIII).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
584
Da mesma forma quanto às garantias processuais, como a seguir se vê, são as mesmas para
o adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional e ao adulto acusado de um crime ou
contravenção:
“Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal” (ECA, art.
110). Na Constituição Federal: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal” (CF, art. 5º, LIV).
Ao adolescente é assegurada “assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na
forma da lei” (ECA, inciso IV do art. 111). Na Constituição Federal: “O Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (CF, art. 5º, LXXIV).
O adolescente tem a garantia processual de ter a “defesa técnica por advogado” (ECA, inciso III
do art. 111); o adolescente tem “direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em
qualquer fase do procedimento” (ECA, inciso VI do art. 111). Na Constituição Federal: “O preso será
informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência
da família e do advogado” (CF, art. 5º, LXII); “O advogado é indispensável à administração da Justiça
(...)” (CF, art. 133 e art. 2º do Estatuto da OAB).
O adolescente tem a garantia processual de “igualdade na relação processual, podendo
confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias a sua defesa” (ECA,
inciso II do art. 111). Na Constituição Federal: “Aos litigantes em processo judicial ou administrativo,
e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos
a ela inerentes” (CF, art. 5º, inciso LV).
Finalmente, o adolescente tem a garantia processual de ter “pleno e formal conhecimento da
atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente” (ECA, inciso I do art. 111),
tendo, igualmente, o “direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente” (ECA, inciso
V do art. 111), sendo que na Constituição Federal está expresso que “ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente” (CF, art. 5º LIII); dispondo o Código de Processo
Penal sobre a oitiva do acusado adulto pela autoridade competente, seja na fase policial ou judicial,
além de expressar, também, a respeito da obrigatoriedade da citação inicial do mesmo (CPP, arts.
351 ao 369); assim como das consequentes intimações dos atos processuais subseqüentes (CPP,
arts. 370 a 372).
8 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E SEU CARÁTER PEDAGÓGICO
O Estatuto da Criança e do Adolescente contém sanções eficazes que podem ser impostas
a adolescentes infratores. São as chamadas medidas sócio-educativas, que podem ser aplicadas
de forma isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo (ECA, 113 c/c
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
585
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
art. 99), e que são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,
liberdade assistida, semiliberdade e internação (ECA, art. 112, I a VI).
Os especialistas em Direito Penal estão cada vez mais atentos para o que está ocorrendo
de positivo na área das medidas sócio-educativas. Prova disto é que estão pregando sanções a
adultos semelhantes às que já são previstas no Estatuto.
É verdade que existem profissionais incompetentes nas áreas de Segurança Pública e Justiça
e que não se posicionam como determina o ECA. Conseqüentemente, liberam o adolescente
autor de ato infracional cometido mediante grave ameaça é violência à pessoa, ou não tomam
as medidas legais corretas para que o mesmo se veja processado. De outro lado, adotam
decisões extremamente gravosas ao adolescente, desproporcional ao ato praticado, o que
igualmente é lastimável. Se isso acontece é evidente que o problema não é da lei, mas do
profissional. Tanto é irresponsável o operador do Direito que libera todo e qualquer infrator,
como aquele que adota como regra apreender todos, justamente porque cada caso é um caso,
cada situação é uma situação, com todas as suas peculiaridades. Afinal não se pode ignorar o
que dispõe o ECA no sentido de que “A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua
capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração” (ECA, art. 112, § lº).
Não é demais reafirmar que a natureza das sanções aplicáveis a adolescentes infratores é
sócio-educativa, dai porque o magistrado tem o dever legal, ao aplicar a medida, de levar em
conta, em sua sentença, “as necessidades pedagógicas, preferindo aquelas que visem ao
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários” (ECA, art. 100), sendo que em nenhuma
hipótese será aplicada a internação, que é a mais grave das sanções, havendo outra medida
adequada (ECA, art. 122, § 2º).
A medida sócio-educativa depende de alguns aspectos para estar revestida do efeito
pedagógico. O primeiro deles é que o magistrado precisa ter a competência e a sensibilidade
para a dosimetria correta quanto à escolha da sanção apropriada em face do caso concreto.
Uma aspirina aplicada a quem tem câncer não tem o poder de curar, e, se não forem tomados
os procedimentos médicos corretos, certamente a morte do paciente será acelerada. Da mesma
forma, quem tem um simples resfriado e tomar uma droga pesada pode sofrer desnecessários
efeitos colaterais, inclusive com prejuízo à saúde.
Assim, por exemplo, se o ato infracional for de pequena gravidade, será uma prova de
incompetência e irresponsabilidade aplicar ao adolescente infrator uma internação, a mais
grave das medidas sócio-educativas, que só pode ser adotada pelo magistrado quando se
tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa, por reiteração
no cometimento de outras infrações graves, ou pelo prazo máximo de três meses ocorrendo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta (ECA, art. 122, incisos
I, II e III), sendo vedada a aplicação da sanção de internação havendo outra medida adequada
ao caso concreto (ECA, art. 122, § 2º).
A advertência, a mais branda das medidas sócio-educativas, que só pode ser aplicada se
houver prova de materialidade e indícios suficientes da autoria (ECA. parágrafo único do art.
114), consistindo na admoestação verbal, ao contrário do que alguns pensam, tem um efeito
pedagógico relevante.
Para que isso ocorra é preciso que sejam adotados certos procedimentos, a começar pela
realização de audiência formal, com as presenças do Ministério Público e do defensor do
adolescente, assim como de seus pais ou responsável, reduzindo a admoestação verbal a
termo, com a assinatura dos presentes, inclusive, evidentemente, do adolescente.
É verdade que, segundo o ECA, sendo outra a medida aplicada ao adolescente infrator que
não a internação e a semiliberdade, “a intimação far-se-á unicamente na pessoa do defensor”
(ECA, art. 190, § 1º). Entretanto, se não ocorrer a audiência formal presidida pelo magistrado,
não é de se desprezar a hipótese de que fica comprometido o efeito pedagógico do
sancionamento por meio da advertência.
Não pode vingar a assertiva de que aplicar advertência a um adolescente infrator é pura
bobagem, sem qualquer efeito prático, o que é uma concepção equivocada. Há casos em que
só cabe mesmo a medida sócio-educativa da advertência.
Em um caso ocorrido, uma adolescente de 12 anos foi processada por ter chamado uma
colega de “farinha de feira”. Para uma adolescente de certas regiões do Pará, ser chamada de
“farinha de feira” pode ser ofensivo, porque, no Pará, é costume vender farinha nas feiras
públicas, acomodada em sacas que ficam exposta em barracas, sendo que as pessoas costumam
passar pelas barracas, meter a mão nas sacas e sair provando a farinha para descobrir qual é a
mais torrada e gostosa. Assim, chamar uma adolescente de “farinha de feira” pode representar
que todo mundo pega, mete a mão na menina e “come”, como ocorre com a farinha da feira.
Em um outro, uma adolescente se sentiu ofendida por ter sido chamada de “índia”, que, no
Pará, para algumas pessoas, é tratamento ofensivo, porque muitos consideram a índia uma pessoa
preguiçosa, gorda, descabelada, suja, que anda sempre descalça, sem traquejo, o que aliás é uma
injustiça para com nossas índias. Nesses casos, só caberia mesmo, no máximo, uma advertência.
Os penalistas sabem da importância da sanção da advertência, mesmo aplicada a adultos.
Prova disto é que o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, que dispõe sobre a
prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão do tráfico e do uso indevido
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
587
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
de substâncias entorpecentes e drogas afins, dispõe sobre “medidas educativas” como sanções
aos infratores, dentre as quais elenca a advertência.
Um outro aspecto que serve para neutralizar o argumento de alguns de que a advertência
é “água-com-açúcar” para o adolescente infrator, sem força sancionatória e, conseqüentemente,
desprovida de qualquer natureza educativa, é o fato de que em diversos países a admoestação
é reconhecida como pena alternativa até mesmo para os adultos.
Portugal é um desses exemplos. O novo Código Penal daquele país, que entrou em vigor
no Direito Comparado, em 01.01.l993 (Lei nº 24, de 23.08.1982), avançou positivamente quanto
às penas alternativas, chegando a dispor no artigo 71 que o Tribunal deve priorizar a pena não
privativa de liberdade “sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação
social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e a prevenção do crime”, sendo
que no artigo 59 prevê a admoestação, constituindo-se em uma censura solene, realizada em
audiência pelo Tribunal, a indivíduos culpados de faltas leves, ou por serem delinqüentes
primários ou por estarem impregnados de real sentimento de dignidade própria, não havendo
necessidade de outra pena mais grave.
Com efeito, dispõe o Código Penal português que se a pessoa for julgada culpada pela
prática de crime que corresponda à pena de prisão, com ou sem multa, que não ultrapasse três
meses, ou somente pena de multa até o mesmo limite, pode o Tribunal optar pela aplicação de
uma admoestação, objetivando a rápida recuperação do delinqüente, o dano tenha sido reparado
e não exista necessidade de penas mais gravosas ao mesmo.
Da mesma forma o novo Código Penal francês, que entrou em vigor no ano de 1993, traz,
também, a admoestação, que se configura por uma declaração de culpa do infrator seguida de
advertência ao mesmo, sendo que, na Europa, esse tipo de alternativa vem sendo adotada na
maioria das legislações penais dos países.
Os países árabes reconhecem os efeitos negativos do aprisionamento do homem, não
somente pelas conseqüências danosas ao mesmo em face do isolamento a que é submetido na
cela, mas, sobremodo, pela ineficácia na sua recuperação, daí porque eles têm dado prevalência
às alternativas à prisão adotando, nas respectivas legislações penais, a repreensão ou advertência
pública, até mesmo para jovens infratores de 7 a 18 anos de idade, objetivando despertar a
atenção do infrator para que reflita sobre seu próprio ato e não mais repita a agressão à ordem
pública; no Iraque, a advertência pública é bastante utilizada. Nos Emirados Árabes e na
Tunísia, a repreensão ou advertência somente é aplicada a menores de idade que tenham
praticado atos infracionais leves.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
588
Na Austrália, o Programa de Advertência ao Furto em Lojas, implantado em 1986 e levado
a efeito pela Polícia daquele país, é uma das alternativas à prisão que tem obtido resultados
positivos, pois a própria polícia tem competência para advertir oficialmente pessoas apanhadas
cometendo pequenos furtos em lojas, evitando, com isso, a instauração de processo criminal,
o que só ocorrerá se houver a reincidência, quando, então, o infrator será levado ao Tribunal,
oportunidade em que os juízes podem aplicar a pena de advertência como punição aos acusados
de delitos leves. Neste caso, a advertência pode ser aplicada sem qualquer exigência ao
sentenciado, como também pode estar acompanhada de uma série de regras de comportamento,
como ficar sujeito a uma supervisão oficial, ou mesmo obrigá-lo a comparecer periodicamente
ao Tribunal, durante determinado tempo, sendo que só será penalizado com sanções mais
rígidas, inclusive mandado à prisão, se descumprir as exigências que lhe foram impostas.
Na Costa Rica, o Projeto de Lei de Reforma do Código Penal, apresentado ao Parlamento
em 1993, traz como pena alternativa à prisão a admoestação, que consiste em uma adequada e
solene censura oral, feita pessoalmente pelo magistrado em audiência pública.
Como se vê, em vários países considerados do primeiro mundo, desenvolvidos, a pena
alternativa da advertência é adotada, inclusive para adultos. E não poderia ser diferente no
Brasil, principalmente para adolescentes infratores, dada sua característica pedagógica conforme
o ato infracional praticado.
É preciso não esquecer que, no Brasil, a sanção de advertência, prevista no parágrafo
único do artigo 114 e artigo 115 do ECA, a exemplo das demais medidas sócio-educativas, pode
ser aplicada isoladamente, ou de forma cumulada com outra ou outras medidas sócio-educativas,
desde que compatíveis entre si; bem como pode ser substituída, a qualquer tempo, por outra
(ECA, art. 113 c/c 99); podendo, também, ser cumulada com uma ou mais medidas protetivas,
dentre as elencadas no artigo 101, I a VI); executada, nesse caso, pelo Conselho Tutelar da
respectiva localidade (ECA, art. 136, VI), o que garante o efeito extremamente pedagógico da
advertência ao adolescente que praticou ato infracional leve.
Outra medida sócio-educativa de grande relevância para a reeducação do adolescente que
tenha praticado ato infracional com reflexos patrimoniais é a obrigação de reparar o dano (ECA,
art. 116 e seu parágrafo único), com a imposição ao mesmo por parte do juiz da Infância e da
Juventude, evidentemente após o devido processo legal, assegurado o contraditório e a ampla
defesa, da obrigação de restituir a coisa, promover o ressarcimento do dano ou, por outra
forma qualquer, compensar o prejuízo da vítima; é possibilitada a troca da medida por outra
adequada, caso o infrator não tenha condições de cumprir a sentença.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
A sanção de obrigação de reparar o dano existe em inúmeros países, como forma de
substituição da pena de prisão, sendo a alternativa mais utilizada nos países da Europa,
podendo, também, ser encontrada em outros, dentre os quais os EUA.
É interessante observar que em vários casos é possível o pagamento a título de reparação
do dano em prestação, inclusive de comum acordo com a vítima. No Brasil, a lei não veda essa
providência de parcelamento.
Não é demais referir que uma das vantagens no caso de reparação do dano é que o valor
pago pelo adolescente infrator não vai para o Estado, o que aconteceria se fosse simples
multa, mas sim para a vítima como forma de reparação do dano que ela sofreu, além de
existirem outras possibilidades para que a reparação aconteça, como prevê o ECA, em seu
artigo 116: “(...) restituição da coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma,
compense o prejuízo da vítima”, o que é extremamente pedagógico, inclusive para a vítima,
especialmente se esta for comunicada pela Escrivania do Cartório de Execução das Medidas
Sócio-Educativas, sobre a decisão judicial que sentenciou o adolescente a reparar o dano,
justamente porque possibilita que ele promova a execução da sentença.
A prestação de serviços à comunidade é, igualmente, uma medida sócio-educativa
reconhecida em todo o mundo como altamente educativa e, segundo o ECA, consiste “na
realização de tarefas gratuitas de interesse geral por período não excedente a seis meses, junto
a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como
em programas comunitários ou governamentais”, as quais devem obedecer às aptidões do
adolescente, devendo ser cumpridas em jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados,
domingos e feriados ou dias úteis, de modo a não prejudicar a freqüência à escola e ao trabalho.
Algumas considerações precisam ser feitas sobre a execução judicial e administrativa dessa
medida, com advertência de que, se não forem cumpridos corretamente certos procedimentos
básicos, o cumprimento da sanção pode se constituir em um ato de violência contra o adolescente
sentenciado, inclusive com graves violações de seus direitos humanos, perdendo,
conseqüentemente, o caráter pedagógico de que toda medida sócio-educativa deve estar revestida.
Em primeiro lugar é preciso notar que a lei fala claramente em serviços “à comunidade” e
não para alguma entidade. O magistrado, como responsável pela execução judicial, deve estar
bem atento para que o adolescente não seja obrigado a fazer atividades insalubres, perigosas,
aviltantes, pesadas, enfim com ameaça ou risco efetivo à sua saúde física, mental ou psicológica.
O órgão do Estado ou Prefeitura incumbido da execução administrativa deve estar vigilante
para que tal não aconteça, informando ao juiz em caráter de urgência, mesmo sem esperar pelo
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
590
momento do relatório mensal, qualquer suspeita ou confirmação de situações perigosas e
constrangedoras ao adolescente. Conforme a gravidade da situação deve, inclusive, agir
diretamente, com rapidez e eficiência para que cesse, de imediato, a ameaça ou violação dos
direitos do adolescente, sem prejuízo da respectiva responsabilização penal do agente.
É verdade que o texto do artigo 117 do ECA fala da possibilidade de o adolescente cumprir
a sanção em “hospitais (...) e outros estabelecimentos congêneres”, mas é preciso chamar
atenção para o fato de que pode ser extremamente perigoso deixar um adolescente cumprindo
essa medida em um hospital ou congênere como, por exemplo, pronto-socorro e posto de
saúde, justamente pelos grandes riscos de que o mesmo possa contrair algum tipo de vírus ou
enfermidade em contato com pessoas enfermas.
Mesmo com a existência de convênios entre o Poder Judiciário, o órgão de execução
administrativa e as entidades que recebem adolescentes para cumprimento de PSC, é vital que
a vigilância seja constante para que os sentenciados não sejam obrigados a realizar atividades
impróprias, perigosas e insalubres.
Infelizmente, na mente de muitos a idéia da crueza para recuperar o infrator ainda é a
tônica, daí porque os adolescentes eram obrigados a realizar essas atividades, burlando a
fiscalização, para serem submetidos a trabalho sujo, pesado e perigoso, justamente aqueles
que os funcionários se recusavam a realizar.
Não é seguro para a saúde do adolescente que cumpre PSC ficar em hospital, posto de
saúde, pronto-socorro, etc. É ideal que o cumprimento da medida sócio-educativa de prestação
de serviço à comunidade ocorra em ambientes saudáveis, como, por exemplo, em atividades
na área do meio ambiente, como bosque e museu, onde possam manipular flores, plantas,
peixes e outros pequenos animais, além de receberem noções sobre meio ambiente.
Assim, caso a execução administrativa e a judicial sejam bem feitas, com atenção redobrada
para que o adolescente sentenciado não seja usado para trabalho forçado, com a existência de
bons convênios, acompanhamento competente de quem tem o dever para a execução
administrativa, bem como com a execução judicial, adotando posturas céleres e competentes
no acompanhamento do sentenciado, a medida sócio-educativa de PSC tem tudo para ser
extremamente educativa ao infrator.
Para ter caráter pedagógico, a execução administrativa e a judicial do cumprimento da PSC
não podem se limitar a verificar se o adolescente sentenciado está comparecendo pontualmente
à entidade para prestar serviço à comunidade, mas sim deve haver atenção para outros aspectos
como matricula, freqüência e aproveitamento escolar, qualificação profissional, lazer, esporte,
atividades solidárias na comunidade, relacionamento com a família e amigos e tudo o mais
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
591
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
que se fizer necessário para avaliação dos progressos ou regressões do adolescente, que é um
ser que deve ser sempre atendido com atenção redobrada e integral quanto aos aspectos bio-
psico-social, ou seja, no seu aspecto holístico.
Também é importante ressaltar que a prestação de serviço à comunidade não pode ser
confundida com qualificação profissional. Conseqüentemente, os momentos de atividades têm
de ser diferentes. Se assim não for corre-se o risco de o adolescente infrator ficar impregnado
da sensação equivocada de que está recebendo um prêmio pela prática do ato infracional
representado por um curso de qualificação profissional que, se não estivesse em conflito com
a lei penal, dificilmente conseguiria cursar.
Por outro lado, como em qualquer outra medida sócio-educativa o trabalho com a família
do adolescente sentenciado é fundamental para o sucesso pedagógico do cumprimento da
sanção que lhe foi imposta. Portanto, perderá o caráter pedagógico se a crueza estiver presente
nas atividades a que for submetido o adolescente julgado a cumprir a PSC, daí porque o
magistrado, ao aplicar ao adolescente a medida sócio-educativa de prestação de serviço à
comunidade, deve deixar expresso, na sentença, o tipo de atividade que o adolescente irá
realizar, pois é muito perigoso, além de ilegal, deixar essa decisão para o chefe ou encarregado
da entidade.
Se o responsável pela entidade em que o adolescente for cumprir a PSC for uma pessoa
serena, tranqüila, justa, lógica, competente, dificilmente haverá problema. Caso contrário pode
arrebentar o adolescente – física e psicologicamente –, com posturas violentas contra o mesmo,
inclusive de desrespeito a seus direitos humanos e como pessoa em processo de
desenvolvimento bio-psico-social. Existe profissional despreparado que, sem regras e freios
preestabelecidos pelo magistrado ou pelo convênio, pode descarregar todas as suas inclinações
e concepções equivocadas e violentas no adolescente que está cumprindo a PSC na repartição
ou setor que dirige. Aliás, este é mais um motivo pelo qual, no convênio, o tipo de atividade a
ser desempenhada pelo adolescente sentenciado deve estar expresso de forma detalhada e
bem clara, com as respectivas sanções ao servidor se ocorrer o descumprimento do que foi
conveniado entre a entidade e o Juizado da Infância e da Juventude, ou qualquer outro que
esteja promovendo a celebração do convênio.
Não é, igualmente, pedagógico obrigar o adolescente infrator a usar, durante o cumprimento
da PSC, como acontece em alguns países, camisas com inscrições de que está cumprindo a
sanção, ou roupas que o identifiquem como infrator. Da mesma forma, é inconcebível e sem
qualquer revestimento de atitude pedagógica criar carteira de identificação do infrator, e muito
menos expedir ao adolescente carteira atestando que cumpriu corretamente sua medida sócio-
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
592
educativa. Em face da lei, a identidade de qualquer pessoa, infratora ou não, é sua carteira de
identidade expedida pela Secretaria de Segurança Pública, CPF, carteira profissional e demais
documentos previstos na legislação.
É fundamental, também, que as atividades a serem desenvolvidas pelo adolescente que
esteja sentenciado a cumprir a medida sócio-educativa de prestação de serviços à comunidade
não o coloque em ridículo, não seja motivo de chacota, de expiação e curiosidade pública,
como alguns exemplos mostram. A Prova da Vergonha que os Estados Unidos passaram a
adotar, como pena alternativa a jovens delinqüentes, não nos interessa, justamente pelos seus
efeitos nocivos à personalidade e ao desenvolvimento do adolescente.
Assim, a decisão do magistrado que determinar, na sentença, que o adolescente, como
prestação de serviço à comunidade, deva varrer a porta da igreja do seu bairro, no horário em
que as pessoas estão saindo da missa, inclusive seus familiares, sua namorada e amigos, é
absolutamente um contra-senso, uma postura de irresponsabilidade, de crueza e uma atitude
altamente antipedagógica ao adolescente infrator, com a possibilidade de que o mesmo fique
para o resto de sua vida traumatizado, desesperançado e até mesmo muito mais violento com
o desejo de vingança contra as pessoas pela humilhação sofrida.
Da mesma forma, o juiz da Infância e da Juventude que determine, como prestação de
serviço à comunidade, ao adolescente que ele rodeie o prédio do Fórum, oito horas por semana,
durante seis meses, com palitinhos de fósforos, para a gargalhada de todos os funcionários do
Fórum e passantes, e logo depois que o mesmo adolescente retire os palitinhos para nova
rodada, é uma cretinice e uma prova de incompetência que não comporta qualquer justificativa.
Nesse caso, quem precisaria de uma sanção seria o próprio magistrado. Se não fosse caso de
interdição mesmo pela maluquice praticada em nome da Justiça.
Segundo o ECA, somente nos casos de internação e semiliberdade é exigida a intimação da
sentença ao adolescente e ao seu defensor, sendo que, se o adolescente não for encontrado,
está autorizada a intimação da sentença a seus pais ou responsável, sem prejuízo do defensor
(ECA, art. 190, I, II ). Sendo outra a medida sócio-educativa aplicada (advertência, reparação do
dano, liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade), expressa o ECA que a intimação
da sentença far-se-á unicamente na pessoa do defensor (ECA, art. 190, § 1º).
Entretanto, o magistrado deve ter em mente que é extremamente pedagógico ao adolescente
que em toda e qualquer medida sócio-educativa – e não apenas na internação e semiliberdade –
ele seja intimado a comparecer em Juízo para que o próprio juiz da Infância e da Juventude diga
de viva voz a ele sua decisão e os elementos de convicção de seu julgamento. Isto em audiência
formal, no Juizado da Infância e da Juventude, com a presença de seu defensor, do Ministério
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
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Público e de sua família, fazendo o magistrado as observações e advertências de praxe e até
mesmo desejando sucesso ao adolescente no cumprimento da sanção que lhe foi imposta, além
de colocar-se à disposição para qualquer esclarecimento ou denúncia de algum problema que
ocorra no decorrer do cumprimento. É importante que o adolescente sinta o interesse do juiz na
sua mais rápida reinserção social e familiar e que evite a reincidência. E até mesmo perceba que
o magistrado está torcendo por seu sucesso no cumprimento da sanção a que foi sentenciado.
É, igualmente, de grande efeito educativo o cumprimento do disposto no § 2º do artigo 190
do ECA, no sentido de que “Recaindo a intimação na pessoa do adolescente, deverá este
manifestar se deseja ou não recorrer da sentença”.
Da mesma forma, o momento do desligamento de qualquer medida sócio-educativa, mesmo
o ECA não prevendo, deve ser um ato solene, em audiência realizada no Juizado da Infância e
da Juventude, com a presença do defensor, do Ministério Público, dos familiares do adolescente
e dos técnicos sociais do órgão responsável pela execução administrativa, bem como do Juizado,
prolatando, o juiz, o despacho de encerramento do processo em sua própria presença e de sua
família, não esquecendo, o magistrado, de uma atitude simples, mas de grande efeito positivo:
a congratulação pelo cumprimento correto da medida que lhe foi imposta.
A liberdade assistida é uma medida sócio-educativa prevista no ECA (arts. 118 e 119), que
deve ser aplicada quando se configurar como a mais adequada, a fim de acompanhar, auxiliar e
orientar o adolescente probaciário. Esse tipo de sanção existe em inúmeros países, aplicável
tanto para adulto como para jovem. É a chamada “probation”, com as características próprias de
cada sistema legal, conforme analisaremos em trabalho que estamos concluindo sobre o assunto.
A LA , como é conhecida a liberdade assistida em sua forma abreviada, é qualificada por
alguns de “medida-mãe”, dentre as medidas sócio-educativas elencadas no ECA. Não é correta
essa colocação. Não porque a LA não seja uma “medida-mãe”, mas porque não se pode
desqualificar as demais sanções previstas no ECA, também como “medidas-mães”. Pensar o
contrário é desmerecê-las como sócio-educativas.
Na verdade, cada caso é um caso, e a medida sócio-educativa deve ser aplicada levando-
se em conta não somente a capacidade do adolescente de cumpri-la, mas também as
circunstâncias e a gravidade da infração (ECA, art. 112, § 1º). Assim, por exemplo, se o ato
infracional é cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, especialmente se há
reiterado cometimento de outras infrações graves, a “medida -mãe” não pode ser a liberdade
assistida, mas a internação ou a semiliberdade. Por outro lado, se o ato infracional praticado
não for grave, não se justifica a privação de liberdade, mas uma medida sócio-educativa em
regime aberto, que pode ser a liberdade assistida, que no caso, aí sim, é a “medida-mãe”.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
594
Uma das grandes vantagens da liberdade assistida é que não objetiva controlar, mas
transformar o comportamento do adolescente probaciário, com o acompanhamento do
orientador que pode ser um profissional da entidade governamental de atendimento ao infrator.
O orientador pode ser, também, pessoa da comunidade, designada pelo magistrado, na
sentença, desde que esteja capacitada para acompanhar o caso (ECA, art. 118, § 1º ), a fim de que
sua ação no acompanhamento e orientação do adolescente probaciário seja competente, eficaz
e sem risco de qualquer atitude de violência contra o mesmo, com total respeito à legislação
pertinente e aos direitos humanos do probaciário. Esta é a hipótese da liberdade assistida
executada pela comunidade, que, no Pará, funciona muito bem, inclusive a executada pela
comunidade universitária (Universidade da Amazônia – UNAMA e Universidade do Estado do
Pará – UEPA).
É importante observar que o ECA ordena que o juiz “designará pessoa capacitada”, o que
significa dizer que na sentença o magistrado já deve vincular o orientador ao adolescente
probaciário, seja a LA executada pela entidade governamental, seja pela comunidade.
A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer
tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra sanção dentre as previstas no ECA,
sendo obrigatória, nesse caso, a oitiva do orientador, do Ministério Público e do defensor.
Em caso de descumprimento da medida de LA – como qualquer outra, não privativa de
liberdade –, o magistrado nunca deve pura e simplesmente decretar a substituição da medida
ou convertê-la para uma mais gravosa, no caso a internação e a semiliberdade, sem ouvir o
adolescente, porque pode acontecer que ele não esteja cumprindo por motivos alheios à sua
vontade. Por exemplo, em muitos casos, ele não possui sequer o vale-transporte. Em outros,
está doente (até mesmo baleado), a gangue rival não deixa passar e outros motivos que se
constatam no quotidiano de um Juizado, daí porque a audiência de advertência se impõe.
A propósito, o ECA dispõe que uma das possibilidades de decretar a internação é ocorrendo
“o descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta” (ECA, art. 122, III),
o que leva à conclusão de que o adolescente tem o direito de ser chamado perante o juiz para
justificar-se, ou não, em face do descumprimento. Assim, a conversão não é automática. A lei
exige uma audiência na qual o adolescente tenha a oportunidade de se explicar. Além disso, esta
providência tem um potente efeito pedagógico, da mesma forma como ocorre com a intimação da
sentença feita pessoalmente pelo juiz ao adolescente sentenciado, em audiência formal, com a
presença do MP, do defensor e dos pais ou responsável, com a respectiva observação ao
adolescente, nessa mesma ocasião, de que tem o direito de recorrer da sentença, devendo
manifestar-se se deseja ou não adotar a postura recursal, como dispõe o § 2º do artigo 190 do ECA.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
O Estatuto elenca, no artigo 119, as atribuições do orientador, que devem ser exercidas
com o apoio e a supervisão da autoridade competente, mas é importante observar que a
relação contida nos incisos desse artigo é apenas exemplificativa, e não exaustiva, uma vez
que o texto deixa bem claro a incumbência do orientador com os encargos ali enumerados
“dentre outros”. Entretanto, isso não implica dizer que o orientador possa ter atitudes, tomar
decisões e realizar encaminhamentos em relação ao adolescente probaciário equivocados,
violentos, ilógicos e que ameacem ou violem seus direitos, por ação ou omissão, porque,
então, quem está precisando de orientação, auxílio e acompanhamento é o próprio orientador,
quando então ele deve ser substituído ou reciclado.
Um dos casos típicos de orientador da comunidade desinformado ocorreu com um que
deixou expresso no relatório que o adolescente precisava ser internado, em conversão de
medida, porque estava acordando tarde, todos os dias, ignorando, entretanto, seus avanços
de retornar à escola, freqüentar curso de qualificação profissional, sair da gangue e abandonar
o consumo de bebida alcoólica. Além do mais ele não estava preparado para saber que todo
adolescente gosta de dormir até mais tarde, motivo pelo qual pesquisas americanas estão
concluindo que os alunos que estudam à tarde conseguem as melhores avaliações.
Os relatórios dos orientadores da comunidade não precisam ser datilografados ou digitados.
Podem ser escritos do próprio punho, sendo importante apenas o conteúdo, para uma perfeita
avaliação do adolescente probaciário. Deve-se, também, anexar cópia dos boletins escolares e
fazer referência às atividades esportivas, lazer e espiritualidade do adolescente, além de sua
participação na comunidade, dentre outras observações que possam levar o magistrado e sua
equipe técnica a realizar uma execução judicial com competência.
A perfeita simbiose das ações do orientador com os professores, diretores e orientadores
educacionais da escola sobre o adolescente probaciário são de fundamental importância, tendo-
se o cuidado para que a condição de infrator não seja difundida na escola.
O regime de semiliberdade é, igualmente, uma medida sócio-educativa eficaz, desde que
tomadas certas cautelas para que sua execução seja competente, inclusive no que se refere à
escolarização e qualificação profissional, utilizando-se preferencialmente os recursos existentes
na comunidade, como deve ocorrer com as demais medidas sócio-educativas.
Por último, a internação. A mais grave medida sócio-educativa de privação de liberdade,
que deve obedecer aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar
de pessoa em desenvolvimento, e que somente deve ser aplicada quando se tratar de ato
infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no
cometimento de outras infrações graves, havendo, também, a possibilidade de ser decretada
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
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se houver descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, sendo
que nesse caso não poderá ultrapassar três meses (ECA, art. 122, I, II, III).
A gravidade e os efeitos de uma internação na pessoa de um adolescente que está em
processo de desenvolvimento bio-psico-social e espiritual exige do magistrado atenção e
sensibilidade redobrada não somente no momento de optar por essa medida máxima, mas
também na fase da execução judicial. Da mesma forma para a entidade de atendimento na
execução administrativa da sanção.
Assim como ocorre com as demais medidas sócio-educativas, constitui-se em potente vetor
pedagógico que o adolescente tome ciência da sentença que decidiu por sua privação de liberdade,
em audiência formal e solene, no Juizado da Infância e da Juventude, com a presença do magistrado,
do promotor de Justiça, do defensor e de seus pais, oportunidade em que o juiz deve explanar de
forma mais simples possível os fundamentos de sua decisão, explicando ao sentenciado como se
convenceu da necessidade de aplicar a sanção de internação. Deve também permitir que o
adolescente indague sobre as dúvidas que tiver não somente no que se refere à sentença mas
sobre a execução. Este é o momento em que a interpretação da medida se impõe, podendo o juiz,
inclusive, se valer de técnicos sociais do Juizado para tal atividade de informação e orientação.
O ECA dispõe que a intimação da sentença que aplicar medida de internação ou de semiliberdade
deve ser feita, obrigatoriamente, ao próprio adolescente e ao seu defensor (ECA, art. 190, I ); e,
quando o sentenciado não for encontrado, a intimação deve ser feita a seus pais ou responsável,
sem prejuízo do defensor (ECA, art. 190, II). Não é correto proceder à intimação da sentença de
internação ao adolescente pela Escrivania, em cartório, mas sim em audiência formal e solene.
É também de grande efeito pedagógico que seja dada oportunidade ao adolescente para se
manifestar se deseja ao não recorrer da sentença, como manda proceder o ECA (§ 2º do art. 190).
Caso seja vontade do adolescente recorrer da sentença, o magistrado deve encaminhá-lo, assim
como sua família, à assistência judiciária ou a um dos serviços de prática jurídica das universidades
que possuam curso de Direito para a proposição do recurso em favor do adolescente, caso o
mesmo não possua recursos financeiros para contratar um advogado particular.
É preciso ressaltar que a manifestação do adolescente sentenciado deve ser colhida em
audiência formal, no mesmo momento e com as mesmas autoridades que participam do ato
judicial da intimação da sentença, sendo obrigatório ficar expresso no respectivo termo sua
manifestação de vontade.
É importante também que o magistrado faça ver ao adolescente sentenciado de que essa
sua ação de recorrer não é um ato contra a pessoa do juiz, mas sim uma correta atitude de sua
parte na luta por seus direitos, e por esse motivo não deve ficar temeroso em tomar a iniciativa,
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597
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
acreditando que vai contrariar ou aborrecer o magistrado, justamente porque esse operador
do Direito, em geral, tem sólida formação jurídica e entenderá perfeitamente esse tipo de ação
do adolescente. Aliás, isso significa que o adolescente tem a perfeita consciência de que é
sujeito de direitos, mesmo sentenciado a cumprir medida sócio-educativa de internação.
Recebido o recurso, o juiz deve estar atento para o disposto no ECA no sentido de que a
apelação será recebida em seu efeito devolutivo, mas o magistrado deve ter a sensibilidade e a
competência judicante para também conferir ao recurso o efeito suspensivo sempre que houver
perigo de dano irreparável ou de difícil reparação ao adolescente sentenciado (ECA, art. 198, VI).
Nessa audiência, o magistrado deve explicar de forma simples ao adolescente não somente
sobre sua convicção pessoal como julgador que decidiu pela internação, como também repassar
ao mesmo a informação de que o juiz não é seu inimigo nem tem a intenção de ser cruento ao
optar pela internação, pois considerou a medida sócio-educativa mais apropriada para o caso
concreto, diante da gravidade e das circunstâncias do ato infracional praticado, objetivando a
reinserção social e familiar do adolescente infrator, evitando sua reincidência.
Nesta audiência, o juiz deve informar ao sentenciado que se encerra o processo de
conhecimento mas que se inicia um outro, que é o de execução judicial da medida sócio-
educativa, sendo que, nesse caso, o juiz estará sempre vigilante para o asseguramento de seus
direitos durante o tempo em que estiver cumprindo a medida de internação, inclusive fazendo
visitas mensais às casas de internação, realizando avaliações colegiadas e tornando efetivo o
acesso à Justiça, com a possibilidade inclusive de correspondências em carta lacrada entre o
adolescente, o magistrado, o Ministério Público e seu defensor. Deve também dizer ao
sentenciado que o magistrado passará a ter atenção redobrada para o correto e eficaz
cumprimento de referida medida sócio-educativa, adotando ações e programas, no âmbito da
execução judicial, para que o cumprimento da sanção seja um sucesso.
Existe uma Lei de Execução Penal aplicável a adulto sentenciado pela prática de crime.
Essa lei, não obstante considerada de boa qualidade, ainda é descumprida na prática. No caso
do adolescente sentenciado pela prática de ato infracional não existe uma lei de execução das
medidas sócio-educativas.
A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos provocou um debate nacional sobre a
necessidade e a oportunidade da existência dessa lei de execução, inclusive porque havia denúncias
de que estariam ocorrendo ameaça e violação dos direitos humanos dos adolescentes sentenciados
ao cumprimento de medidas sócio-educativas, justamente pela inexistência da lei.
A partir daí vêm ocorrendo debates sobre o assunto em todo o país, sendo que a Associação
Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, no último congresso
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
598
nacional da categoria ocorrido em Gramado – RS, em novembro de 1999, aprovou que é necessária
e oportuna a existência de uma Lei de Execução das Medidas Sócio-Educativas, tendo sido
constituída uma comissão de juízes e promotores da Infância e da Juventude para elaborar um
esboço para ser apresentado ao debate de toda a sociedade brasileira.
A inexistência dessa lei tem provocado uma série de ameaças e violação dos direitos dos
adolescentes sentenciados, inclusive com atitudes de extrema violência, como por exemplo
um adolescente ser punido com a proibição de jantar pelo fato de ter se recusado a ir para a
escola em uma casa de internação; ou o caso do adolescente que fica na contenção por tempo
indeterminado sem os devidos procedimentos legais utilizando equivocadamente, o educador,
como fundamento o artigo 125 do ECA que dispõe “é dever do Estado zelar pela integridade
física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e
segurança”, dentre outras situações constrangedoras e de violência ocorridas na execução
administrativa das medidas sócio-educativas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que deve ser permitida a realização de
atividades externas de adolescente que cumpre a sanção de internação, a critério da equipe
técnica da entidade, salvo quando o juiz, na sentença, determinar o contrário. Por falta de uma
Lei de Execução das Medidas Sócio-Educativas, existe até mesmo magistrado que, alegando que
o ECA não define o que sejam atividades externas, deixa expresso na sentença de internação que
todos os adolescentes ficam proibidos de qualquer atividade externa. Por outro lado, existem
distorções até mesmo no processo de avaliação periódica dos adolescentes que cumprem medida
sócio-educativa. Há casos, inclusive, em que, não obstante o ECA disponha que “o prazo máximo
e improrrogável para a conclusão do procedimento estando o adolescente internado
provisoriamente, será de quarenta e cinco dias”, ainda é possível encontrar operadores do Direito
que decidem prorrogar o prazo que o próprio texto da lei diz que é “máximo e improrrogável”.
Como se vê, os operadores do Direito tem um papel fundamental no asseguramento dos
direitos dos adolescentes que cumprem medida a fim de que a sanção aplicada não perca seu
caráter sócio-educativo, não deixe de ser pedagógica, para que ocorra a mais rápida reinserção
do adolescente na família e na comunidade e que o mesmo não volte a reincidir no ato infracional.
9 REMISSÃO
A remissão, que não é uma medida sócio-educativa – nem tem a natureza jurídica de
perdão, como querem alguns –, deve estar revestida, também, de natureza pedagógica, podendo
ser aplicada mesmo sem o reconhecimento ou comprovação de responsabilidade, não
prevalecendo para efeito de antecedente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
599
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Paulo Sérgio Frota e Silva
A remissão pode incluir, eventualmente, a aplicação de qualquer das medidas previstas
em lei, salvo a colocação em regime de semiliberdade e a internação, quando concedida durante
o procedimento judicial; havendo, igualmente, a possibilidade de ser concedida pelo Ministério
Público como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do
fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor
participação no ato infracional, sujeita, nesse caso, a homologação judicial.
A sentença de remissão não faz coisa julgada material. Só formal, justamente porque pode
ser revista judicialmente, a qualquer tempo, ocorrendo pedido expresso do adolescente ou de
seu representante legal ou do Ministério Público.
Para que fique assegurado o caráter educativo da remissão, é de vital importância que
toda sentença de remissão seja proferida em audiência formal, na presença do Ministério Público,
do defensor, do adolescente e de seus pais e responsável, explicando, o magistrado, sobre o
significado e o porquê da remissão, bem como as conseqüências que podem advir para o caso
de se fazer necessária a revisão judicial para a retomada do processo anteriormente suspenso.
Para que todo o sistema de responsabilização do adolescente infrator não perca o caráter
educativo, é fundamental que haja cuidado redobrado, exista competência e experiência não
somente na dosimetria correta no que concerne à escolha apropriada da medida sócio-educativa,
da opção mais pedagógica ao caso concreto, bem como que a execução administrativa e a
judicial, esta feita pelo Poder Judiciário, seja eficaz, atenta, com rigoroso respeito à legislação
pertinente, para garantir a célere e segura reinserção social e familiar do adolescente infrator,
evitando a reincidência. É necessário, igualmente, que os procedimentos policiais e judiciais
sejam momentos de reflexão para o adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional,
constituindo-se em processo educativo ao mesmo, a começar pela postura e tratamento que
deve dispensar às autoridades encarregadas de presidir os respectivos atos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Belém, PA: 1999. v.1. Edição comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil,
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2
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interdisciplinar/Coordenação de Tania da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
3
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5
COSTA, Leila Maria e RODRIGUES, Lívia de Araújo Donnini. Colaboradoras, provocações da
sala de aula/Organização de Cecília Irene Osowski. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
600
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7
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Municipal de Belém/Secretaria Municipal de Educação, jun. 1999.
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9
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o
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Saraiva, 2000.
10
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11
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DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE – ABMP, Ano 1998, n.17.
12
JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
13
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UNESCO, fev. 2000.
14
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Justiça, Ministério da Ação Social (Centro Brasileiro para Infância e Adolescência ) e UNICEF.
15
DIRETRIZES DAS Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad)
Editado pelo Ministério da Justiça, Ministério da Ação Social (Centro Brasileiro para Infância
e Adolescência ) e UNICEF.
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
601
18
CAPÍTULO
CÂMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO
INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto*
SUMÁRIO
1 O PROBLEMA DE COMPARAR SOCIEDADES .....604
2 JUSTIÇA RESTAURATIVA .....608
3 JUSTIÇA EM CONTEXTO .....614
4 JUSTIÇA NAS ESCOLAS .....621
5 JUSTIÇA REAFIRMADA E RECONSTRUÍDA .....632
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....635
* Doutor em Ciências (Leeds, 1989). Mestre em Ciências Sociais (Praga, 1973). Diretor do Centro Talcott.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
602
“Muitos projetos políticos e educacionais fracassaram porque seus autores os delinearam a
partir de suas próprias visões da realidade, sem ter levado jamais em consideração as pessoas na
situação à qual os projetos foram direcionados. (...) Nosso papel não é expor ou impor projetos
às pessoas, mas dialogar sobre pontos de vista, os nossos e os delas.”
Paulo Freire, “Pedagogia do Oprimido”
Antes que a civilização, tal como a conhecemos, tivesse finalmente se afirmado, das crianças
maiores de sete anos se esperava conduta similar à dos adultos. Se cometiam algum crime
sofriam as mesmas sanções, eram colocadas nas mesmas prisões e executadas nos mesmos
cadafalsos. Na sociedade moderna, por sua vez, não se espera muito de jovens e crianças, a
quem eximimos de total responsabilidade e tutelamos, até que tenham atingido uma certa
idade regulamentar. Nossa sociedade é um mundo de adultos, onde jovens e crianças vivem
em situação de absoluta dependência, pois ainda mais que aqueles que as tutelam, podem ser
alvo da atenção da Justiça, não só quando infringem a lei, mas também se deixam de cumprir
o papel de “criança” ou “adolescente” (fogem de casa, faltam às aulas, desobedecem) ou até
mesmo em virtude do comportamento dos próprios adultos (abuso, abandono, negligência).
Por conta dessa dependência inclusive os jovens que cometem crimes graves não vão para a
cadeia, mas respondem com medidas severas – no Brasil, até 3 anos de internação, 3 de
semiliberdade e outros tantos de liberdade assistida; na Inglaterra podem ser submetidos a
custódia por toda a vida.
A situação de dependência certamente oferece aos jovens e às crianças de hoje em dia
vantagens e garantias inimagináveis no passado. O problema é que, ao crescimento dessa
dependência, corresponde o ressurgimento do elemento repressivo, que “à medida que os
homens se vão civilizando (...) longe de regredir cada vez mais se desenvolve” (Durkheim,
1984: 295). Nos Estados Unidos, por exemplo, um dispositivo chamado waiver of jurisdiction
confere aos Juizados a possibilidade de transferir para um tribunal comum a responsabilidade
de julgar menores acusados de crimes graves. Durante os anos 40 do século passado muitos
Estados norte-americanos mudaram sua legislação e deram aos Juizados jurisdição exclusiva
sobre esses menores. Em anos mais recentes, porém, a tendência liberal foi revertida, inclusive
por meio da redução da idade em que crianças e jovens podem ser acusados, sentenciados e
punidos como se fossem adultos. Nos Estados de Mississipi e Illinois, por exemplo, o waiver
pode ser aplicado a infratores de 13 anos, em Indiana, a acusados de homicídio com 10 anos
de idade, em New Hampshire e Wyoming não há indicação precisa, o que permite que crianças
de qualquer idade sejam processadas criminalmente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
603
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Em 1966 uma decisão da Suprema Corte dos EUA (Kent versus United States) autorizou o
waiver somente após devido processo penal. Provavelmente em decorrência disso, em 1989
outra decisão (Stanford versus Kentucky) determinou que aos 16 anos jovens podem ser
condenados à morte. O relator que justificou o voto da maioria argumentou que, se o melhor
indicador dos padrões éticos da sociedade são as leis que os representantes eleitos pela
população aprovam, não há como afirmar que a pena de morte seja um castigo “cruel e
desumano”, mesmo para jovens criminosos. Com efeito, somente 15 dos 37 Estados onde há
pena de morte não permitem a sua aplicação a jovens de 16 e 17 anos. Para confirmar o ponto
de vista dos juízes, a revista Time e a rede CNN fizeram uma pesquisa: em todo o país somente
17% dos adultos se disseram contrários à pena de morte e apenas 35% se opuseram que fosse
aplicada a menores de 16 ou 17 anos.
O QUE ACHAM OS JUÍZES (NOS ESTADOS UNIDOS) SOBRE APLICAR PENA DE MORTE A JOVENS INFRATORES
APROVAM (47%), DESAPROVAM (53%), NÃO SABEM (7%)
Fonte: National Law Journal, 8.8.1994.
Internacionalmente a postura dos magistrados não difere muito, não importa o sistema
jurídico. No Brasil, um levantamento de 755 processos sobre as infrações de adolescentes
internados na FEBEM (São Paulo) mostrou que, nos três primeiros anos desde a promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), 30% dos jovens acusados de ‘infrações contra o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
604
patrimônio’ foram internados “provisoriamente” – no curso do procedimento, antes da decisão
final do Judiciário – por mais de 45 dias, prazo máximo e improrrogável previsto pelo artigo
183. Nas ‘infrações contra a vida’; a proporção de internados provisórios foi ainda maior: 44%
[Passetti et al., 1995]. A internação – aplicada por várias razões: homicídio, latrocínio, roubo,
furto, invasão de domicílio e dano – quase sempre é respaldada “por um laudo técnico”,
deixando “o juiz em uma situação confortável diante da predeterminação ‘científica’ e ‘isenta’
da sentença”. Mesmo assim, quando o parecer técnico sugere “a aplicação de medida sócio-
educativa pelo lado pedagógico adotado pelo ECA, a tendência é desconsiderá-lo”.
1 O PROBLEMA DE COMPARAR SOCIEDADES
Para analisar uma sociedade do ponto de vista científico, segundo Talcott Parsons –
provavelmente o mais importante dos sociólogos do século XX –, é preciso elaborar uma
abordagem, tão objetiva quanto possível, de seu caráter e seus processos. Por isso, para o
observador científico “os problemas se apresentam diferentemente, pois devem ser encarados
à luz de uma ampla perspectiva histórica e comparativa, bem como de juízos fundados, tanto
quanto possível, em dados de observação testados e em análises logicamente precisas e
teoricamente coerentes”.
Diante de tal imposição, como analisar um sociedade concreta à luz do caráter e dos
processos das demais? Como no caso do Brasil, que, de muitos pontos de vista, em nada se
assemelha às outras sociedades do continente latino-americano, pois se consideramos as
variáveis do desenvolvimento humano (ver classificação do PNUD: www.undp.org) nos parecemos
mais a um país africano (em particular com a África do Sul) do que a qualquer um dos nossos
vizinhos. Com os Estados Unidos, principalmente no que diz respeito a criminalidade, acontece
o mesmo: os níveis de violência nos EUA lembram mais a América Latina do que seu vizinho,
o Canadá [Levine e Rosich, 1996].
Uma comparação simples, direta dos Sistemas de Justiça, brasileiro e norte-americano,
parece confirmar o que dissemos. A falta de punição para criminosos é apontada por especialistas
em segurança pública como a principal causa do aumento da violência no Brasil. Uma pesquisa
da FIPE/Universidade de São Paulo revelou que apenas um em cada mil [!?] criminosos paga
realmente pelo crime que cometeu. Outro estudo, concluído em 1996, mostrou a mesma
realidade: foram acompanhados na Polícia e na Justiça 290 casos de homicídios de crianças e
adolescentes cometidos por adultos. Concluiu-se que apenas 1,7% dos culpados foram
condenados. Do total estudado, 48% dos casos não tiveram os autores identificados e outros
63% foram arquivados por falta de provas. Somente 28% dos envolvidos foram denunciados
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
605
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
pelo Ministério Público; em 9% desses casos houve ‘pronúncia’ (o juiz acatou a denúncia do
promotor). Dos menos de 10% que foram condenados na primeira instância judicial, apenas
1,7% teve a sentença de condenação confirmada em segunda instância (Jornal da Tarde, São
Paulo, 22.9.1999).
O advogado Roberto Ribeiro tem um assombroso histórico de vitórias como defensor de
homicidas no tribunal de Santo Amaro, região com altos índices de criminalidade violenta na
cidade de São Paulo. Em 1998, acompanhou 130 casos envolvendo assassinatos, dos quais
apenas dez foram a júri. Somente três de seus clientes cumprem pena na cadeia. A explicação
para esse impressionante currículo não deve ser buscada exatamente na qualidade do
criminalista – e sim na “ineficiência do sistema policial e judiciário brasileiro” para colocar
bandidos na cadeia. Segundo Ribeiro, em 80% dos processos que ele acompanha, a Polícia
não é capaz de juntar provas que sustentem os inquéritos. “Desse jeito, fica fácil para o advogado
de defesa”, comemora Ribeiro (Veja, 8.9.1999).
Na verdade, o problema não é, como a jabuticaba, algo exclusivamente brasileiro. Nos
Estados Unidos, onde principalmente os governo estaduais têm investido muito no Sistema de
Justiça, as chances de os criminosos serem punidos continuam extremamente modestas. Entre
1995 e 1996, por exemplo, cresceram as condenações por crimes graves, o que correspondeu a
uma apreciável diminuição de 10% do índice de criminalidade. Mesmo assim, a tendência
predominante ainda continua sendo uma Justiça parecida a um funil (ver o gráfico da p. 606):
os criminosos, na sua grande maioria, jamais são apanhados e, mesmo quando detidos, não
são condenados. Segundo dados oficiais, todos os anos são cometidos (por maiores de 18
anos) cerca de 16 milhões de crimes violentos: desses a Polícia fica sabendo a metade, e desta
apenas 10% resultam em prisão. Dos detidos, 193 mil são condenados; não mais de 150 mil
“dão azar”, vão para a cadeia. Dos culpados por crimes graves 0,23% cumprem menos de um
ano da pena [Barkan, 1997; Scuro, 1998:26-27].
Em conclusão, à luz de uma perspectiva histórica, comparativa e dos dados de pesquisa
disponíveis, neste texto de referência fazemos repetidas menções à situação dos Estados Unidos,
embora sempre procurando estabelecer paralelos com a conjuntura brasileira.
1
Comparabilidade,
ademais, não é só um problema teórico. Por força de comparações ilegítimas muitos programas
sociais aparentemente bem-sucedidos em determinados lugares fracassaram em outras paragens.
1
Determinante também é o efeito do “espelho” que a nação mais avançada mostra às que a acompanham
e que nele enxergam, devido a “tendências que se manifestam e se realizam com férrea necessidade”, a
imagem de seu próprio futuro [Marx, 1976].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
606
Daí a ênfase em delineamento rigoroso e validação – que caracteriza a presente proposta de
aplicação de Câmaras Restaurativas – a partir de metodologias legítimas e padrões científicos
consagrados, não apenas de boas intenções.
Modernamente, a tendência favorável ao castigo violento se coaduna no plano das
instituições estatais e se confunde com impessoalidade. Nem sempre, porém, foi assim. Muitos
povos primitivos puniam jovens e crianças com extrema brandura e apenas em certas condições,
à noite e por intermédio de maus espíritos, que assustavam e maltratavam somente os adultos.
Esses povos sabiam também, na base de diferenças de sexo e idade, o que esperar dos jovens
e das crianças: para os Tupinambá, povo nativo do Brasil, meninos eram crianças até os sete
anos de idade porque não conseguiam acompanhar o pai e jamais se separavam da mãe. Entre
eles reinava respeito e amizade, não se ofendiam nem faziam brincadeiras de mau gosto e,
“nas relações com os adultos em geral e com os próprios pais manifestavam profundo respeito,
embora não recebessem castigos de nenhuma espécie pelas faltas cometidas”. Dos sete aos
quinze não paravam em casa, seguiam o pai, que não lhes ordenava que trabalhassem. Assim
mesmo procuravam produzir de acordo com sua idade e capacidade. A juventude durava dos
15 aos 25 anos, período em que os rapazes mais ajudavam os pais, e quem entregavam todo o
produto do seu trabalho [Fernandes, 1963:268-308].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
607
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Ao comparar a aparente harmonia dessa formação social primitiva com a nossa sociedade
incapaz de produzir diretrizes claras e seguras para a ação individual, não se pretende fazer
apenas uma referência nostálgica a um mundo esquecido e por quase todos desprezado. O
importante é perceber a viabilidade de resgatar o equilíbrio institucional, harmonizando
contextos sociais e redefinindo a Justiça como atividade que visa não apenas fazer o malfeito
bem feito, mas acima de tudo vindicar as vítimas, reconciliar as partes e restabelecer a paz. A
Justiça é felicidade que não conseguimos obter isoladamente e por isso procuramos em sociedade
[Kelsen, 1992:14-21]. Na prática, porém, como há diferentes noções de justiça, freqüentemente
contraditórias, ela é avaliada apenas em função de interesses, mais precisamente como resultado
de conflitos de interesses. Devemos ao Direito a proeza de oferecer soluções de compromisso
entre interesses opostos, garantindo justiça (paz social) em bases estáveis e razoavelmente
permanentes. Só que cada vez mais as premissas necessárias para garantir a ‘paz’, a ‘normalidade’
ou tranqüilidade, se confundem com o ideal de ‘justiça’ e acabam tomando o seu lugar.
A Paz que Eu Não Quero
A minha alma está armada
e apontada para a cara do sossego
Pois a paz sem voz
não é paz, é medo.
Às vezes eu falo com a vida
às vezes é ela quem diz:
Qual a paz que eu não quero conservar
pra tentar ser feliz.
O RAPPA
A solução pode estar no resgate da tradição jurídica da humanidade. Na Bíblia, por exemplo,
o tema essencial é o ‘direito’ que se traduz pela palavra shalom (o direito que nas suas várias
dimensões denota a perspectiva divina para a humanidade). Restaurar o shalom é precisamente
o objetivo da justiça divina, por meio da busca de soluções que não façam somente bem feito
mas que também possam agregar, não exatamente na base de merecimento, mas das necessidades
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
608
concretas, focalizando o malfeito e criando um amplo contexto (de gente e de significados)
para a ação individual [Zehr, 1990].
Nas sociedades primitivas, em lugar de isolar e punir o infrator, a meta da justiça era
atingir consenso, envolver família e comunidade na busca de harmonia e reconciliação,
promover acordo entre as partes. A preocupação principal não era a lei nem explorar o medo
do castigo e mecanismos de culpa, mas determinar as razões mais abrangentes do malfeito
(partindo do pressuposto de que freqüentemente todos os envolvidos têm a sua parcela de
responsabilidade). Na tradição jurídica da humanidade – tal como ainda se observa em muitos
povos indígenas – a responsabilidade não recaía exclusivamente sobre os infratores, mas nas
famílias e comunidades. Os culpados não eram excluídos do meio social; ficavam onde sempre
estiveram, para retomar o controle de suas vidas e tentar restaurar a harmonia desfeita. Nesse
particular, mesmo na atualidade, em sociedades avançadas, como o moderno Japão – onde a
criminalidade diminui e a Justiça funciona a custos extremamente baixos –, prevalecem a
harmonia, os valores familiares e comunitários, respeito interpessoal e, menos castigo que
arrependimento, pedir desculpas e buscar um jeito para reparar o malfeito [McElrea, 1994:7-8].
Assim, ao comparar sociedades no presente e no passado, tendo a justiça como referência,
o que procuramos é acentuar a necessidade de intervenções éticas e ideológicas por um novo
tipo de emancipação, na qual autonomia, felicidade e solidariedade não são elementos
diametralmente opostos, mas que se reforçam mutuamente. Nesse contexto amplo e reconhecido
tanto pelos indivíduos quanto coletivamente, a Justiça torna-se um importante, senão o principal,
fator de agregação. Uma utopia ativa que, embora incompleta, nos inspira, nos define e orienta
as nossas ações em sociedade. Uma utopia prática, que precisa:
Ø sempre de um esforço a mais para ser realizada;
Ø inspirar, ser desejável e percebida como algo que deve e precisa acontecer;
Ø ser a crítica do sistema existente, uma totalidade na sua essência diferente do
estabelecido;
Ø pressupor incerteza, tarefa inacabada, que somente por força de deliberada intervenção
individual e coletiva pode ser concluída.
2 JUSTIÇA RESTAURATIVA
No decorrer da década de 90 do século XX a discussão sobre a reforma do Judiciário
restringiu-se a propostas de tipo “estrutural” – simplificação processual, atualização de
procedimentos administrativos, intervenção na formação de bacharéis, promotores e juízes de
Direito – que deveriam dar à Justiça maior competência, celeridade e, quem sabe, uma imagem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
609
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
menos negativa [Machado, 1994: 123]. No entanto, as evidências mostram que existem condições
de eficiência mais importantes, pois, da mesma forma que outros contextos sociais, a Justiça
hoje carece de normas de conduta claras e bem definidas, simples de comunicar, justas e
consistentes na hora de implementar. Vista alternativamente como um sistema de ação construído
na perspectiva de intervenções configuradas a partir de uma ‘matriz organizacional’ [Brancher,
1999], a Justiça deve estimular atuação institucional integrada, ajudando a estabelecer comunidade
de sentido, aclarar competências e redefinir normas de comportamento, indicando com isso
como agir e alcançar objetivos de modo mais adequado.
Mas que fazer na prática para tornar a Justiça, em particular a Justiça da Infância e da
Juventude, um sistema eficaz? Na opinião da Associação Internacional de Magistrados da
Juventude e da Família, é preciso capacitar o Sistema a intervir rápida, certa e apropriadamente,
livre de contradições, por intermédio de:
Ø mecanismos para uma completa avaliação do menor desde o seu primeiro contato com
o Sistema e determinar o risco que ele representa para a comunidade, bem como as
sanções e intervenções mais adequadas em cada caso;
Ø serviços de tratamento: conselhos familiares, assistência médica domiciliar, cuidados
fora da clínica (em casos de toxicomania, por exemplo) etc;
Ø sanções cada vez mais severas e tratamentos cada vez mais sofisticados, quando o
menor não responde às primeiras intervenções ou a sua primeira infração foi
particularmente grave ou violenta [McCarney, 1998:2].
No entanto, da mesma forma que as reformas puramente estruturais, essas diretivas são
dispendiosas e difíceis de implementar. Pior ainda, no seu bojo se abrigam profundas
contradições. Primeiro, o papel ambíguo outorgado às sanções “cada vez mais severas”. Em
segundo lugar, a reafirmação do papel do Estado e das entidades privadas como tutores in loco
parentis, agentes com poder de avaliar e classificar indivíduos desde a mais tenra idade. Por
fim, a insistência em submeter indivíduos problemáticos a tratamento “cada vez mais sofisticado”.
Conseqüentemente, na falta de um quadro coerente para, ao mesmo tempo, aplicar punição,
incorporar e dar prioridade a objetivos não coercitivos, as diretivas acabam suscitando dúvidas
quanto à viabilidade ou até mesmo a desiderabilidade de uma Justiça em separado para crianças
e adolescentes [Bazemore e Umbreit, 1997:148].
Na verdade, a incapacidade de reabilitar não se deve às “deficiências” do Sistema de
Justiça, mas à unidimensionalidade do modelo repressivo que ele utiliza, o paradigma
retributivo, a contradição entre punir e reabilitar, que se expressa, de um lado, na intenção de
atender a necessidades coletivas – excluir o “elemento perigoso” e mostrar ao criminoso de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
610
qualquer idade que sua conduta é abjeta e passível de rigorosa punição – e, ao mesmo tempo,
satisfazer carências individuais (em particular de jovens infratores) por meio de tratamento,
serviços especializados e programas de reabilitação.
Em uma outra obra já mostramos que as contradições do paradigma retributivo podem ser
resolvidas ampliando-se o quadro das opções atualmente oferecidas, tornando o uso e a
finalidade das sanções consistentes com as premissas da reabilitação e da segurança pública,
por intermédio de um outro paradigma [Scuro, 1999]. Desde os anos 70 e em particular durante
a última década do século passado internacionalmente cresceu o prestígio de uma corrente
reformadora, o movimento restaurativo, cujas propostas vieram alterar profundamente a natureza
dos resultados que o Sistema de Justiça atualmente produz. Do ponto de vista desse movimento,
definir justiça envolve os seguintes pressupostos:
Ø Infrações não são atos lesivos apenas à lei e ao Estado, mas acima de tudo aos indivíduos
e relacionamentos, pois resultam em danos às vítimas, às famílias, às comunidades e
aos próprios infratores;
Ø O objetivo essencial do processo legal é fazer justiça, por meio da reconciliação entre
as partes e da reparação dos danos causados;
Ø Conflitos são resolvidos melhor facilitando-se o envolvimento das vítimas, dos infratores,
das famílias e das comunidades.
O interesse no modo restaurativo de fazer justiça surgiu nos passados anos 70 com
programas de reconciliação e mediação entre vítimas e infratores. Anos depois adquiriu status
de engenharia social. Nos países mais avançados agora proliferam projetos que vão além da
simples mediação de conflitos, simplesmente resolver diferenças usando meios diversórios
para manter as partes longe dos tribunais, limitar-se a avaliar o impacto das infrações sobre as
vítimas e demonstrar simpatia por elas, ou então administrar Justiça em comunidades etc. Os
defensores da Justiça Restaurativa não mais se referem a ela como uma mera adição ou
reaproveitamento do que já existe. Falam de um “novo paradigma”, veículo de princípios pelos
quais tudo quanto hoje se pensa acerca de justiça deve ser definitivamente reordenado.
“A Justiça Restaurativa encara [por exemplo] crime como um mal causado, acima de tudo, a
pessoas e comunidades. O nosso sistema legal, que enfatiza apenas as normas e as leis,
freqüentemente perde de vista essa realidade. Em conseqüência, faz das vítimas uma preocupação
secundária, quando muito. Por seu turno, a ênfase no dano implica considerar antes de mais nada as
necessidades da vítima e a importância desta no processo legal. Implica, ademais, em
responsabilidade e compromisso concretos do infrator, que o sistema convencional interpreta
exclusivamente através da pena, imposta ao condenado para compensar o dano, mas que,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
611
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Fonte: Zehr (1990), Scuro (2000:103).
MODELOS DE JUSTIÇA: PRESSUPOSTOS
Justiça Retributiva
Crime: categoria jurídica, violação da lei, ato lesivo ao
Estado
Controle da criminalidade: função precípua do Sistema
Penal de Justiça
Compromisso do infrator: pagar multa ou cumprir pena
Crime: ato individual com responsabilidade
individualizada
A pena é eficiente quando:
a ameaça de punir previne o crime
a punição muda o comportamento
Vítima: elemento marginal no processo judicial
Infrator: definido por seus defeitos e carências
Foco: estabelecer culpa por eventos passados: cometeu
o crime ou não?
Ênfase em antagonismos
Impor perda e sofrimento para punir, coibir e prevenir
Comunidade: marginalizada, representada em abstrato
pelo Estado
Justiça Restaurativa
Crime: ato lesivo a pessoas e comunidades
Controle da criminalidade: primordialmente uma
obrigação da comunidade
Compromisso do infrator: assumir responsabilidade e
reparar o malfeito
Crime: ato com dimensões individuais e sociais de
responsabilidade
Punir só não adianta para mudar comportamentos, além
de desagregar comunidades e relacionamentos
Vítima: elemento central no desenrolar do processo e
na solução dos problemas criados pelo crime
Infrator: definido por sua capacidade de restaurar o
dano que causou
Foco: resolver problemas, determinar responsabilidades
e obrigações no presente e no futuro: o que precisa
ser feito?
Ênfase em diálogo e negociação
Reconciliar para compensar as partes e restaurar o dano
Comunidade: facilitador do processo restaurativo
infelizmente, na maior parte das vezes, é irrelevante e até mesmo contraproducente” [Howard
Zehr, “Restorative Justice: The Concept”, Corrections Today, dez. 1997, p. 68].
Do ponto de vista retributivo dar ao infrator “o que ele merece”, isto é, a própria punição,
é considerado como uma forma de tratamento que na prática resulta em custos e prejuízos
cada vez maiores, em períodos de internação cada vez mais longos e no surgimento de criminosos
cada mais jovens e perigosos. Na mente de juízes, promotores, legisladores e da opinião pública,
o impacto da retribuição se deve à relação direta entre pena, desaprovação do comportamento
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
612
proscrito e eventuais conseqüências adversas para o infrator. Por sua vez, por estar circunscrita
a esse esquema, a função tratamento não consegue estabelecer um vínculo claro com a infração.
Concentra-se, da mesma forma que a função punitiva, unicamente nos motivos e nas
necessidades do infrator, do qual, todavia, nada se exige, a não ser passiva submissão a um
regime tutelado de benefícios custeados pelo contribuinte.
Tal relação – assim como os pressupostos e a idéia de castigo eficaz – há séculos é contestada.
Provavelmente desde quando Pietro Verri (1728-1797) e Cesare Beccaria (1738-1794) pela primeira
vez se rebelaram contra os abusos de poder e as torturas infligidas a acusados e condenados
pela Justiça. Beccaria, em particular, acentuou as funções preventivas da punição: inibir o
descumprimento da lei, obrigando o indivíduo a calcular as conseqüências de seus atos. Para
isso, “a certeza do castigo”, mesmo moderado, mais que a severidade da pena, causaria a
impressão mais forte, por intermédio do “receio de algo ainda mais terrível, porém combinado
com a esperança de impunidade”. Um século depois, Émile Durkheim (1858-1917) mostrou
que o papel do componente punitivo no aprendizado moral do indivíduo não deve ser limitado
a intimidar ou fazer sofrer o infrator. Como “punir é repreender”, dizia ele, o melhor castigo
deve impor culpa de forma “expressiva” e ao menor custo.
A questão, pois, não é judiar do infrator, nem ameaçá-lo ou aterrorizá-lo, mas reafirmar
uma obrigação no momento em que esta foi infringida, para fortalecer o sentido do dever,
tanto do infrator quanto daqueles que testemunham o ato infracional, as pessoas que a infração
tende a desmoralizar. Desse modo, a sanção expressiva promove solidariedade no seio da
coletividade e solução pacífica das diferenças, ao passo que a sanção retributiva semeia a
estigmatização (o infrator fica “marcado”), a humilhação e o isolamento, elementos que impedem
o infrator de readquirir seu amor-próprio e o respeito da comunidade, prejudicam sua capacidade
de refrear seus instintos e exacerbam a influência de fatores de risco ligados a futuros atos de
delinqüência. Enfraquecem, impedem o amadurecimento das relações comunitárias, de
companheirismo e laços de família. Além disso, aplicado de forma continuada, o castigo torna-
se ineficaz, atenuando o sentimento de vergonha e o moralismo do infrator. Castigo e o próprio
processo penal acabam levando o infrator a concentrar-se em si mesmo, não em suas vítimas e
na coletividade. Aprende a suportar o castigo sem assumir qualquer responsabilidade por seu
comportamento abjeto [Scuro, 2000:96].
Por outro lado, quando em vez de castigar a Justiça prefere “tratar”, a responsabilidade do
infrator pela falta que cometeu é minimizada ainda mais. Tanto quanto a opção pela punição,
a ‘função terapêutica’ opera segundo uma lógica circular, focalizada apenas no infrator. Tal
como a função punitiva, para resolver os problemas gerados pelo crime, violência e desordem,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
613
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Forte: Schneider (1985), Scuro (2000).
o modo terapêutico descarta todas as outras personagens fundamentais do processo. Em primeiro
lugar, a vítima, que, sem direito a informação, assistência ou restituição, não tem qualquer
participação significativa. Em segundo, a comunidade, elemento essencial na implementação
de sanções, para reabilitar e implementar medidas de segurança. Faces da mesma moeda,
tratamento e castigo são unilaterais, insuficientes para integrar infrator, vítima, família e
população, pois simplificam o problema reduzindo-o inteiramente à pessoa do infrator.
Historicamente o modelo retributivo acompanhou a evolução das comunidades, da escala
pequena para a grande, do meio rural para o urbano e daí ao Estado, que, cada vez mais
centralizado, via no processo legal um valioso instrumento de dominação e afirmação de
autoridade. Mas com isso o sistema de controle paulatinamente perdeu suas raízes no seio da
comunidade. A vítima desde o primeiro momento também perdia o seu lugar no processo, que
passou a ser ocupado exclusivamente pelo infrator e pelo Estado. Em seguida, a jurisdição
estatal transformou a restituição (à vítima) em retribuição (recolhida pelo Estado), em fontes
de recursos (multas) e de renda (custos do Sistema de Justiça).
AS MENSAGENS DAS SANÇÕES
Infrator
Vítima
Comunidade
Pena
O infrator é uma pessoa ruim,
um patife que preferiu seguir o
caminho errado. Vai ser punido
com rigor e na exata proporção
do mal que cometeu.
Quando o infrator é punido, a
vítima de certo modo também
se beneficia.
Quando o Sistema de Justiça
mostra aos infratores que o crime
não compensa, beneficia também
a comunidade.
Tratamento
O infrator é um coitado, uma
pessoa problemática que não tem
exatamente culpa pelo que fez.
Para o seu próprio bem, vamos
tratá-lo, cuidar dele.
A obrigação do Sistema de Justiça
é dar um jeito no infrator, cuidar
dele; não da vítima.
O Sistema de Justiça não precisa
ajudar, pois dispõe de meios e
profissionais qualificados para
cuidar do infrator.
Compromisso
O que o infrator faz tem sempre
conseqüências; afeta pessoas,
famílias e comunidades. Ele não
pode fugir à responsabilidade e
tem de corrigir o malfeito.
A vítima é importante e precisa
fazer de tudo para que o infrator
repare o dano que lhe causou.
O Sistema de Justiça precisa da
comunidade para fazer o infrator
reparar o malfeito que causou à
vítima e à sociedade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
614
3 JUSTIÇA EM CONTEXTO
Do ponto de vista jurídico não é novidade enfatizar os direitos das vítimas. O próprio
modelo retributivo admite a utilização de “métodos vitimológicos” que compreendem
ressarcimento, reparação, mediação e soluções fora do ambiente judicial. Recentemente, no
Brasil foi sancionada uma “lei de penas alternativas” que prometia confiscar bens e valores dos
condenados pela Justiça e indenizar a vítima e seus dependentes. O principal destinatário dos
recursos, porém, seria o combalido sistema carcerário do país através da criação de um “Fundo
Penitenciário Nacional”. Desse modo, os interesses dos infratores e do próprio Sistema de
Justiça continuariam a ter precedência em relação às necessidades das vítimas e das
comunidades, a não ser quando estas podem servir de instrumento para aumentar a
probabilidade da condenação e o período de detenção do infrator.
A Justiça Restaurativa, por sua vez, não é Justiça do ponto de vista dos “direitos das vítimas”,
que muitos advogados, juristas e legisladores, motivados por valores retributivos, consideram
em contraposição às garantias legais dos infratores, justificando penas mais rigorosas e um
endurecimento do sistema. Ao contrário dessa perspectiva punitiva extremada, o paradigma
restaurativo coloca a vítima no centro do processo, sem impor uma “opção” pelos direitos da
vítima por exclusão dos direitos do infrator. Acentua as necessidades da vítima, ao mesmo
tempo que exige do infrator assumir responsabilidades e obrigações. Compensa a impotência
imposta no contexto retributivo à vítima e ao infrator e pressupõe o envolvimento de um novo
ator, a comunidade, garantia de que, após o ato condenável ter sido sancionado, o infrator terá a
oportunidade de expressar concretamente seu arrependimento (Bazemore e Umbreit, 1997: 152).
A efetividade da segurança pública, da reabilitação e da punição passa a ser considerada
como dependente do envolvimento direto de infratores, vítimas e comunidades, com ganhos
de natureza comportamental, material, emocional e cognitiva para esses três atores e para o
próprio Sistema de Justiça. Para as vítimas as vantagens se manifestam por meio do grau de
reparação dos danos, da extensão do envolvimento no processo judicial e do grau de satisfação
dos atores com o processo e seus resultados.
2
Os infratores ganham do ponto de vista cognitivo:
entendem as conseqüências de seus atos, reconhecem a sanção e têm a chance de desenvolver
um sentimento de empatia em relação às vítimas. As comunidades percebem que o processo
2
No processo retributivo a percepção da vítima da ação da Justiça restringe-se a momentos muito específicos
do processo: por exemplo, se a Polícia aparece ou não quando é notificada, ou se o réu é inocentado ou
recebe pena “muito leve” [Scuro, 2000: 15].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
615
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
de justiça efetivamente se realizou, chegou a bom termo, contribuiu para que os infratores
fossem denunciados e responsabilizados por seus crimes, ajudou a manter a paz, o sentido de
comunidade e o bem-estar social.
O processo de justiça restaurativa tem impacto sobre mais pessoas e resultados ainda
melhores que a pena e o tratamento aplicados segundo o modelo retributivo convencional.
Através de seu principal mecanismo, as Câmaras Restaurativas, o paradigma pode ser viabilizado
em praticamente todo tipo de contexto – primário (família, comunidade) e formal (escola,
empresa, Justiça) – consubstanciado nas estruturas e características desses grupos, nas estruturas
e características das suas normas, de seus valores e de seus relacionamentos.
Que é uma Câmara Restaurativa?
Uma reunião de pessoas atingidas pelo comportamento causador de dano
grave. Foro onde infratores, vítimas e as pessoas que lhes dão sustentação encontram
meios de reparar prejuízos e evitar a repetição da conduta negativa.
Quem vai?
O infrator, a vítima, seus respectivos apoios e as pessoas que investigaram o
incidente, sob os auspícios de um organizador adequadamente preparado para
(1) decidir quando a Câmara deve ser convocada, (2) selecionar, contatar e informar
os participantes, (3) preparar e dirigir os trabalhos, (4) redigir um acordo entre
as partes, (5) avaliar os resultados, acompanhar os participantes e reproduzir
conhecimentos.
O que acontece?
Os presentes têm chance de relatar os acontecimentos a partir do seu próprio
ponto de vista, bem como dizer o que se passou desde então. Todos devem adquirir
um claro entendimento das conseqüências do comportamento em questão e
resolver o que vai ser feito para que os danos físicos e emocionais de algum modo
sejam reparados, bem como para minimizar efeitos negativos futuros. Um termo
deve ser lavrado e assinado por cada um dos participantes, que recebem cópia do
acordo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
616
Quais são os resultados?
Os termos do acordo podem incluir pedido formal de desculpas, garantias de
que o comportamento prejudicial não voltará a ocorrer, ressarcimento dos danos
(em dinheiro, quando apropriado), reparação de danos materiais, serviço
comunitário, compromisso de assumir doravante comportamento mais adequado.
Os resultados dependem da capacidade do grupo de impor o cumprimento dos
termos do acordo.
Quanto dura?
Depende da complexidade e das circunstâncias do incidente, do número de
pessoas envolvidas e interessadas em tomar parte. A duração média esperada é
de 90 minutos.
Quais são as vantagens?
As vítimas têm oportunidade e um foro seguro para dizer como foram afetadas.
Desempenham papel importante na decisão sobre a melhor maneira de reparar o
dano sofrido e minimizar conseqüências futuras. As famílias e as pessoas que dão
sustentação também comentam o incidente e os seus resultados. Os infratores, em
vez de esquivar-se e distanciar-se das pessoas que prejudicaram, confrontam os
efeitos de seu próprio comportamento e assumem total responsabilidade. A Câmara
Restaurativa lhes oferece a oportunidade de retornar ao convívio da comunidade.
Todos, por sua vez, aprendem muito durante todo o decorrer do processo
[Scuro, 1999: 50].
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, 1990) reconhece que certos grupos
primários, no caso a família, têm obrigação de assegurar “com absoluta prioridade” a efetivação
de uma pluralidade de direitos. Como a tarefa é grandiosa e para habilitar a família a cumprir
esses deveres, protegendo integralmente os menores de idade no mais amplo sentido, o ECA
prevê a garantia de um amplo conjunto de prioridades (art. 4º, parágrafo único). Só que o faz
no âmbito de uma responsabilidade coletiva extremamente diluída, em que estão incluídas
entidades abstratas – “sociedade em geral” e “Poder Público” –, à família é outorgado um papel
impreciso. Mesmo assim, indeterminada, a ênfase no grupo familiar se justifica. Em primeiro
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
617
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
lugar porque ela é uma comunidade natural, fonte de relações de dependência e
interdependência, base do controle social. Dessa perspectiva, não importa se há famílias para
todos os gostos, de todo tipo ou tamanho; o importante é a mutualidade de direitos e deveres
que no seio da família – “natural” ou “substituta” (definido nos artigos 25 e 28 do ECA), “nuclear”
ou “ampliada” – são vivenciados e constituem fundamentos para relações sociais mais amplas.
A família é o sítio onde as crianças tomam conhecimento da ordem que reina no mundo
que as cerca e aprendem a suportá-la, usando um combinação de sentimentos e atitudes de
conformidade, rebeldia, evasão e conflito. Nesse processo de socialização o indivíduo aprende
a conviver, mas também a não deixar que a sua conduta seja inteiramente determinada pela
‘ordem social’. A família é o lugar privilegiado da socialização “primária”, ao passo que fora
dela, em contextos sociais específicos, posteriormente tem lugar uma socialização de tipo
‘secundária’, sobre a qual falaremos logo em seguida. A influência da família jamais cessa ou,
pelo menos, não termina em uma determinada idade. Quando saímos de casa e começamos a
trabalhar, em vários aspectos ficamos emancipados, nos tornamos independentes. Porém, de
diversas maneiras, emocionais e sociais, nunca deixamos de depender da família (e de outros
grupos sociais determinantes na nossa ‘socialização primária’). Por outro lado, há famílias que
perdem o sentido e até mesmo desaparecem quando seus membros se distanciam, morrem ou
se divorciam. Ou, de forma menos dramática, se casam, têm filhos, cunhados, sogros etc. Por
conta dessas mudanças, e à medida que amadurecemos, os laços familiares mudam,
principalmente no que diz respeito ao significado de certos fatores sociais muito importantes,
como disciplina, amizade e respeito.
A base desse desenvolvimento são valores, normas e relacionamentos que consubstanciam
o processo interativo
3
pelo qual são formados grupos e configuradas necessidades de aceitação,
auto-afirmação, envolvimento, amizade, alegria e sustentação espiritual. Grupos dependem da
interação de seus integrantes durante um tempo razoável e que estes reconheçam a si mesmos
como parte de uma unidade social distinta. Dependem de interação freqüente, do interesse em
continuar interagindo, de compartilhar normas e valores, de auto-conceituação congruente, de
3
Interação social é um processo complexo, mesmo do ponto de vista aritmético. Por mais superficial que
seja, o relacionamento entre somente duas pessoas constitui um sistema social completo. Com mais um
ator a situação se complica substancialmente. Surgem relacionamentos entre A e B, B e C, A e C e entre
todos os três. Com quatro pessoas, considerando todas as combinações possíveis, o grupo oferece 26
relacionamentos diferentes. Em um grupo de cinco há 57 relacionamentos. A cada nova pessoa que entra
aumenta bastante a complexidade do grupo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
618
concepções semelhantes acerca dos outros, de afeição mútua, de identificação com os outros
membros e com o próprio grupo, de consciência acerca dos limites do grupo e das implicações
da ação que se realiza internamente.
Dito com outras palavras, os membros do grupo compartilham normas e valores. Graças a
contínua interação essas pessoas reconhecem de modo cada vez mais profundo o caráter comum
das normas e dos valores do grupo, identificam-se cada vez mais e percebem que as noções
que possuem, acerca dos outros e de si mesmos, são cada vez mais congruentes e ficam parecidas
com as normas e os valores dos demais membros do grupo. Com isso os relacionamentos
ficam cada vez mais estáveis e inevitáveis, geram reciprocidade entre os membros, uma
‘consciência de tipo’, um mútuo reconhecimento de ‘fazer parte’ e tudo o que isso acarreta.
Esse processo é tão determinante que ‘ser’ e ‘relacionar-se’ fica sendo para todos os efeitos a
mesma coisa.
O mesmo processo se reproduz em todos os grupos, mas não da mesma maneira, pois os
grupos diferem em vários aspectos, inclusive na importância que têm para seus membros e
para a sociedade. Alguns dos grupos ‘primários’, porém, são importantes tanto para os indivíduos
quanto para a sociedade.
“Grupos primários se caracterizam por relações de associação e cooperação íntimas, face a
face. São primários em diversos sentidos, fundamentais em particular na formatação social da natureza
e dos ideais do indivíduo. Psicologicamente falando, o resultado da associação íntima é uma certa
fusão de individualidades em um conjunto comum, de modo que muitos dos objetivos constituídos
no próprio eu se confundem com a vida em comum e as finalidades do grupo. (...) As esferas mais
importantes dessa associação íntima (...) são a família, o grupo de crianças que brincam junto, a
vizinhança ou o grupo das pessoas mais velhas. Esses grupos são praticamente universais, estão
presentes em todas as eras e em todos os estágios do desenvolvimento humano; são a base do que
é mais comum na natureza e nos anseios do ser humano (...) São primários porque propiciam ao
indivíduo a sua experiência mais precoce e completa da unidade social, porque apesar e em
virtude de não se alterarem tanto quanto as relações de vivência mais elaboradas, constituem a
fonte mais duradoura de onde brotam experiências. Não são independentes, refletem o espírito da
sociedade no seu conjunto; são molas que impulsionam a vida não apenas do indivíduo, mas
também das instituições sociais” [Cooley, 1956:23-29].
No século XX a vida ficou tão organizada, urbana, noturna, impessoal e complexa, que a
influência dos grupos primários parece ter diminuído, ficado menos importante que a
determinação imposta por relações “secundárias”, frias, anônimas e instrumentais, que geram
sentimentos cada vez mais generalizados de isolamento, solidão, falta de compromisso e de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
619
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
sentido de fazer parte, de associar-se e cooperar com algo que nos transcende. Mesmo assim,
uma parcela cada vez maior de pessoas parece sofrer com as contradições que resultam dessa
conjuntura. Como demonstram, por exemplo, certos itens do “código de ética” dos adolescentes
infratores:
“(Os internados não admitem) estupro, espancamento do pai ou da mãe, roubo de velhos,
delação e furto de colegas. Quem faz isso tem de ficar em uma ala separada, que chamamos de
seguro. Também é caso de morte ofender a mãe de alguém ou chamar o colega de pilantra, que
significa bandido safado, sem caráter. É essa cultura que os teóricos que ficam dando palpite na
Febem desconhecem. Eles acham, por exemplo, que é autoritarismo nosso ordenar que os meninos
fiquem com as mãos para trás quando estão em fila. Só que eles não sabem o que significa para um
menino de lá alguém encostar a mão nas nádegas dele, ainda que sem querer. É a humilhação
máxima, caso para briga séria. Visita da família é proibido até olhar. A irmã do colega passa, pode
estar toda à vontade: o menino tem de baixar o olho. Vem a mãe, o irmão – os outros nem chegam
perto. Não incomodam, porque a hora da visita é sagrada. Agora, tem os que dividem a sua com
quem não recebe ninguém, e isso é uma das maiores demonstrações de amizade que se pode ter
lá. Você chama o companheiro, deixa ele ouvir as conversas do mundo lá fora. Ele senta do lado da
família, fica contente. Mas tem de ser muito amigo para dividir a visita. O “jumbo” (cigarro), o
sabonete que a família traz, dividem sempre. Juntam o que ganham e distribuem entre os amigos
que não têm visita porque a família mora longe. Agora, o menino que tem família na cidade e
nunca recebe ninguém é malvisto. A leitura é que o cara que não merece a consideração da própria
família nem da malandragem do seu bairro é porque é muito safado. Fica isolado” (Antonio Gilberto
da Silva, presidente do Sindicato dos Monitores da Febem, SP); (Veja, 6.10.1999).
Grupos primários são contextos de relacionamentos entre indivíduos que investem
emocionalmente uns nos outros e no contexto como um todo, que se conhecem intimamente e
interagem referindo-se à ‘pessoa total’ do indivíduo, não ao seu papel ou status. Somente
relacionamentos com tais características têm efeito nesses grupos, impacto social e psicológico
bastante para afetar a estrutura e a dinâmica do grupo. Por essa razão o modelo restaurativo de
Justiça significa uma nova forma de entender os componentes emocionais dos conflitos
humanos, bem como da violência e da criminalidade, encarando esses fenômenos como
oportunidade para introduzir mudanças positivas em benefício de todos. Mudanças que
requerem mecanismos para reparar danos e reconstruir relacionamentos. Mecanismos que
além das regras formais, impessoais, do sistema legal possam lidar com os sentimentos
elementares que afloram na interação e nos quais se baseiam as percepções de justiça dos
grupos primários.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
620
Partindo dessas premissas a forma mais acabada do paradigma são as Câmaras Restaurativas,
inicialmente introduzido pela Polícia de Canberra (capital da Austrália) em um programa para
cuidar de infrações de trânsito sob influência de álcool ou violência e de crimes contra o
patrimônio perpetrados por adolescentes. Em 1997, uma ampla e escrupulosa avaliação (Projeto
RISE) mostrou que as Câmaras apresentavam nítida vantagem em relação aos procedimentos
convencionais: quase o dobro de resultados positivos no que diz respeito à prevenção de
reincidência, mais satisfação das vítimas (que em 82% dos casos receberam desculpas ou
restituição material, comparado com apenas 9% nos tribunais), melhor percepção de justiça
acerca dos métodos empregados e dos resultados, assim como em termos de custos [Barnes,
Sherman e Strang, 1997].
O impacto dessa experiência gerou enorme interesse na maioria dos países avançados e
hoje estão sendo implantados programas similares por diversas polícias. Na Inglaterra, por
exemplo, desde 1998 onze distritos policiais da região do Vale do Tâmisa aplicam três modos
básicos de procedimento restaurativo a infratores primários (apesar de casos de segunda
reincidência ou mesmo terceira não serem incomuns):
Ø câmaras restaurativas ‘comunitárias’, às quais, além do infrator, da vítima, amigos e
familiares, também comparece um representante da comunidade;
Ø câmaras restaurativas sem o representante da comunidade;
Ø medidas restaurativas supervisionadas por um moderador treinado, com a presença do
infrator e de seus amigos e familiares (mas não da vítima ou de representante da
comunidade).
4
Num outro país – a Nova Zelândia, único exemplo de sistema integrado de justiça restaurativa
aplicada em todas as varas de adolescência – a abordagem é diferente, pois os magistrados
acham que a Polícia não deve influenciar os resultados das Câmaras, de vez que “representa o
interesse público e, para ter alguma credibilidade, unicamente em defesa dele deve falar e
agir”.
5
Em conseqüência, nas Câmaras neozelandesas os policiais não despontam como agentes
condutores; limitam-se a comparecer na qualidade de parte, como as demais. Os resultados
alcançados pelos neozelandeses não são desprezíveis, pois enquanto em outros países nos
4
Charles Pollard, chefe de Polícia do Vale do Tâmisa, informou que em função das Câmaras Restaurativas já
no primeiro ano os problemas de violência e indisciplina nas escolas diminuíram em 50%, com reflexos
positivos, inclusive diminuição da criminalidade (comunicação pessoal, agosto de 1999).
5
Juiz Fred McElrea, comunicação pessoal ao autor (abril de 1999).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
621
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
últimos anos a criminalidade de adolescentes aumentou de 10 a 15 vezes mais que entre os
adultos, já no primeiro ano de implantação das reformas na Nova Zelândia esse crescimento
foi interrompido (75% menos adolescentes compareceram diante dos juízes, em comparação
com o ano anterior).
Contudo, os bons resultados não devem ser avaliados apenas quantitativamente, a ponto
de ofuscar os reais motivos do sucesso do procedimento restaurativo. A saber:
Ø respeito pelas pessoas e capacidade de agir como força agregadora;
Ø não ser monopolizado por operadores do Direito e outros agentes do poder público;
Ø satisfazer as vítimas;
Ø ajustar-se à maneira de ser da maioria dos grupos familiares e comunitários, e ser por
eles rapidamente assimilado;
Ø considerar as pessoas na sua integridade;
Ø descartar o paternalismo característico dos demais modelos de Justiça, principalmente
da Justiça voltada à infância e à adolescência;
Ø não pressupor a ação de um Estado monolítico, todo-poderoso;
Ø ser construtivo e acentuar esperança [McElrea, 1998].
Não é só. As Câmaras Restaurativas apresentam ainda outra característica que as distingue
e diferencia dos procedimentos convencionais de Justiça. Por exemplo, no processo baseado
em oposição e contraditório, o conflito entre as partes é amplificado, desnecessário do ponto
de vista restaurativo pois nele não há dúvidas acerca dos fatos. Já os procedimentos de mediação
e conciliação enveredam pelo caminho oposto: ignoram ou evitam o conflito a todo preço,
deixando de reparar danos importantes e produzindo seqüelas emocionais graves. Esse não é
caso das Câmaras, que “permitem a expressão estruturada das emoções, incentivando uma
paulatina redução de sentimentos negativos e uma gradual maximização de emoções positivas”
[Thorsborne, 1998:8].
4 JUSTIÇA NAS ESCOLAS
Muitos países tentam lidar com o problema da violência nas escolas, só que nem sempre
de modo consistente. Na França, há dois anos o governo aplica um extenso plano (Plan
Gouvernamentale, 1997) cuja fase mais recente envolve centenas de estabelecimentos de
primeiro e segundo graus, reunidos em dez sítios experimentais. Na fase anterior – ano letivo
1998-1999 – foram registradas por trimestre 40 mil ocorrências de toda natureza, das quais
2,6% correspondentes a fatos graves. Os dados sobre autoria e vitimização confirmam o que já
foi observado em outros lugares: a imensa maioria dos autores (86%) e das vítimas (77%) são
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
622
alunos dos próprios estabelecimentos. Em apenas 10-12% dos casos estiveram envolvidas
pessoas estranhas e, como também se verificou em outros países, a violência escolar varia
muito de um lugar para outro.
Para endireitar as coisas o governo francês propõe uma estratégia fundada em parcerias,
educação moral e cívica no curso primário, reformulação dos procedimentos disciplinares e de
sanções nas escolas secundárias, diálogo entre adultos e adolescentes em “clubes anti-violência”
e, para enfrentar casos graves dentro e nas imediações das escolas, mais autoridade aos diretores
para agir com rigor e maior margem de manobra às autoridades (Polícia e Ministério Público)
para reprimir atos de violência no exato momento em que acontecem. Quando perguntaram ao
ministro da Educação sobre a lógica do plano ele disse apenas: “nem repressiva nem preventiva”,
que a iniciativa é mais um esforço de “mobilização” da escola, tendo em vista a convocação,
dentro em breve, de “toda a sociedade”, das comunidades e associações locais, empresas e
meios de comunicação de massa.
As primeiras reações ao plano não foram muito positivas: as entidades de policiais
lamentaram dizendo que “quando o jogo não tem jeito a polícia é sempre o curinga”; os sindicatos
de professores se declararam decepcionados por não haver proposta para enfrentar as causas
profundas da violência (condições de trabalho dos mestres, conteúdo e práticas pedagógicas,
desigualdade e discriminação) além de se responder à violência com meios igualmente violentos
(repressão, exclusão, moralização). A oposição achou o plano “incoerente”, as medidas,
“parciais”, “fúteis” e que o enfoque preventivo propriamente não existe. A federação dos pais
de alunos se disse “na expectativa”, mas receia que “as realizações do plano não estejam à
altura dos princípios anunciados pelo governo” (Le Monde, 28.1.2000).
Nos Estados Unidos, por sua vez, as estatísticas oficias comemoram o sucesso no combate
ao crime e na prevenção da violência: por exemplo, no decorrer da passada década de 90 não
só diminuiu de forma acentuada a quantidade de adolescentes presos por homicídio, como
também ficou cada vez mais evidente que atos graves de violência tendem a se concentrar em
alguns Estados e centros urbanos (apenas 5,3% da população jovem do país inteiro). Todavia,
o que ainda não diminuiu foi o medo da população e a apreensão da opinião pública quanto
à escalada de violência – em particular nas escolas – que prejudica a vida, a educação e as
oportunidades das crianças e adolescentes norte-americanos.
Com efeito, os alunos passam na escola em média um quarto do seu tempo ativo, período
em que sofrem 30% das agressões e 40% dos furtos e roubos (na faixa dos 12 a 15 anos de
idade, essa proporção aumenta: 35 e 81 por cento, respectivamente). Essas estatísticas são
verdadeiras, pois nas escolas, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, não existe clima
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
623
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
generalizado de terror: situações críticas ou ocorrências graves, ocasionais, de crime e violência
afetam apenas algumas delas, isoladas, ao passo que na grande maioria o problema é a
desordem. Esta – da mesma forma que em outros contextos como a família, o trabalho e a
comunidade – é o fator que alimenta o sentimento de insegurança, desvia a escola de suas
funções e a inviabiliza como instrumento de formação e cidadania.
MEDO DA VIOLÊNCIA (ESCOLAS, ESTADOS UNIDOS)
1989
ç Mais de 3 milhões de professores, alunos e funcionários foram vítimas de atos
criminosos dentro das escolas
ç Mais de 1/2 milhão de crimes graves ocorreram dentro e
nos arredores das escolas
ç A maioria dos alunos sabia onde, dentro da escola, comprar drogas
ç Os alunos evitavam determinados lugares na escola, onde sabiam
que poderiam ser roubados ou agredidos, e o medo os fazia perder aulas
ç Gangues perturbavam a atividade escolar e estimulavam condutas
criminosas
1995
Dos 20% de alunos, vítimas de agressão:
ç 2/3 sabia quem portava arma de fogo, dentro da escola; 1/4 fazia o mesmo
ç 2/3 conhecia alguém que fora baleado, esfaqueado ou agredido, na escola
ç 40% dizia que seus parentes tinham arma de fogo; 1/3 contou que
seus amigos também tinham
ç 1/4 achava que, com arma de fogo, a vida nos seus bairros era mais segura
Dos jovens que não chegaram ao segundo grau:
ç 43% tiveram problemas com a Polícia
ç 25% pertenciam a gangues
ç 15% afirmaram que já haviam roubado
ç 13% disseram que já haviam “trabalhado” para traficantes
Kenney e Watson (1998)
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
624
Ainda nos Estados Unidos, um levantamento nacional (1994) constatou que 80% das 700
comunidades urbanas, suburbanas e rurais pesquisadas consideravam a violência um problema
muito sério nas escolas. Quarenta por cento achavam que a violência ficava pior com o correr
dos anos. Em 25% das escolas estudantes haviam sido mortos ou feridos, no ano anterior ao
levantamento. A maior parte (63%) de todos os respondentes acreditava que o aproveitamento
escolar poderia ser bem melhor se a violência não fosse um problema tão grave.
6
No Brasil,
por outro lado, ainda não associamos baixo aproveitamento escolar com os fatores de risco
relacionados com desordem, violência e criminalidade. Mesmo assim, uma avaliação periódica
promovida por um organismo governamental destaca que dentre as condições que traçam
perfil das escolas com melhores resultados acadêmicos estão atuação dos diretores e
preocupação com a organização do ambiente escolar, “incluindo-se, nesse indicador, o espaço
físico e/ou a melhoria das condições do aprendizado” [SARESP, 1998:45].
AMBIENTE ESCOLAR
A qualidade da educação não é função apenas de resultados acadêmicos. A efetividade do
ensino e do aprendizado depende também dos recursos de que a escola dispõe e da segurança
que oferece, do compromisso das famílias com a educação de seus filhos e de diversidade, i.
é., características que influenciam o ambiente.
CLIMA
Consumo de álcool e drogas
Interfere no raciocínio, reduz o desempenho dos alunos e está relacionado
com crimes violentos.
Vitimação
Violência nas escolas reduz a efetividade do ambiente escolar e expõe alunos,
funcionários e mestres a riscos físicos e emocionais.
Medidas disciplinares
Modo prático de lidar com indivíduos problemáticos (de desempenho
medíocre não apenas na escola, mas também no trabalho e na família), que
revela todavia a existência de um clima generalizado de desordem
Envolvimento das famílias
6
Combating Fear and Restoring Safety in Schools, Juvenile Justice Bulletin (abril, 1998)
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
625
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Satisfação dos mestres
As atitudes e percepções dos mestres determinam a qualidade
do ensino e do aprendizado e o ambiente na escola (em particular nas salas de aula)
Percepções acerca dos problemas dos alunos e de suas famílias
DIVERSIDADE
Características das famílias
Composição étnica, racial e de classe
Deficiências dos alunos
Alunos que trabalham
EXPERIMENTO JUNDIAÍ
Enquanto isso, concentrado nos fatores que determinam o ambiente escolar, um projeto
conduzido por uma equipe multinacional de pesquisadores e sob a supervisão da Diretoria de
Ensino da região de Jundiaí (Estado de São Paulo) procura reduzir não apenas os índices de
crime, violência e insegurança nas escolas, mas também promover confiança no ordenamento
jurídico, por meio de aplicação de justiça de forma adequada e eficiente, tomando por base o
contexto escolar. Um dos componentes desse projeto são justamente as Câmaras Restaurativas,
implementadas de acordo com as condições locais, articulando problemas no plano de relações
intrapessoais e interpessoais específicas, em seus múltiplos aspectos, gerando mudanças e
contribuindo para transformar o Sistema de Justiça a partir da escola.
O primeiro relatório do projeto – relativo ao primeiro ano (planejamento) – foi apresentado
em 1999, no plenário do Simpósio Internacional de Prevenção de Criminalidade (Pequim,
China). A proposta de delineamento atraiu a atenção da comunidade internacional e o Centro
Talcott passou a fazer parte de um grupo de assessores internacionais – ‘Grupo de Pequim’ –
para ajudar o governo chinês na área de prevenção de criminalidade. O delineamento do
projeto foi aprovado por várias personalidades, recebendo citações como as seguintes:
Aplaudo e apoio inteiramente sua abordagem. Longa experiência prática e acadêmica me
ensinou que nenhuma outra pode mostrar com tanta precisão o que realmente acontece e, ao
mesmo tempo ajudar a formular intervenções eficazes e positivas de modificação de comportamentos.
Gostei particularmente da forma como o projeto foi delineado e da maneira como vocês ampliaram
os resultados e as experiências do estudo de Charleston [uma das referências teóricas do experimento
de Jundiaí]. Em especial, a utilização de câmaras restaurativas, pode representar uma forma
interessante de articular escolas, famílias e comunidade.” Professor Anthony Burns-Howell, diretor
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
626
do Scarman Centre of Public Order (Universidade de Leicester, Inglaterra), ex-diretor de pesquisa
da Scotland Yard.
“O trabalho que vocês estão realizando é muito importante” Professor Ross Homel, diretor
do Key Centre for Ethics, Law, Justice and Governance (Griffith University, Austrália), coordenador
de pesquisa do Developmental Crime Prevention Consortium, Programa Nacional de Prevenção de
Criminalidade (Procuradoria Geral de Justiça, Austrália).
“Metodologia impecável” Dr. Túlio Kahn, coordenador de pesquisas do ILANUD, Instituto Latino-
Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (São
Paulo).
REFERÊNCIAS METODOLÓGICAS
Ø Estudo de Charleston. Durante três anos na passada década de 80 um grupo de
pesquisadores conduziu um experimento controlado não equivalente em oito escolas
de ensino médio no Condado de Charleston (EUA) [Gottfredson, Gottfredson e Hybl,
1993]. O objetivo foi testar um programa visando melhorar a conduta de adolescentes,
por meio de aumento da transparência e consistência das regras disciplinares, melhoria
da organização e administração das salas de aula, freqüência maior de comunicação
entre escola e as famílias dos estudantes, e reforço de comportamentos adequados.
Constatou-se que nas escolas onde o programa foi bem comunicado a mestres e
estudantes e devidamente implementado a conduta dos estudantes melhorou
significativamente.
Ø Estudo de Queensland. De abril de 1995 a abril de 1996 a Diretoria Geral de Ensino de
Queensland (Austrália) desenvolveu um estudo envolvendo 75 escolas de ensino
fundamental, médio e especial, para testar a efetividade da aplicação de “Câmaras
Restaurativas” (school conferencing) nesses estabelecimentos para resolver casos graves
de violência e indisciplina. As câmaras foram convocadas 56 vezes e o estudos avaliou
o impacto dos incidentes sobre as comunidades, o grau de influência da intervenção
sobre o comportamento do infratores, o grau de percepção do processo de reintegração
por parte de vítimas e infratores como resultantes da intervenção, o efeito da intervenção
nas relações entre famílias, comunidades e escolas, impacto da intervenção sobre o
modo de proceder das próprias escolas, e efeitos sobre os índices de exclusão que
vigoravam anteriormente nas escolas.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
627
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
PREVENÇÃO DE DESORDEM, VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE (EXPERIMENTO JUNDIAÍ)
CARACTERÍSTICAS SELECIONADAS DAS ESCOLAS (PRÉ-TESTE, 1999)
1 2029 72.4 29.9 C
2 1888 73 36.3 C
3 1893 66.9 30.7 C
4 1198 66.8 27 P
5 1352 64 21.3 C
6 1494 35.6 29.9 C
7 1335 35.1 22.4 C
8 1291 36.9 - C
9 1371 76.6 35.4 C
10 683 76.2 44.6 C
11 2023 90.3 35.2 C
12 1371 79.8 50.9 C
13 863 52.7 31.9 P
14 1869 64.1 40.3 P
15 1140 29.6 33.6 P
16 1373 66.7 36.4 P
17 1719 31 32 P
18 1814 41.4 35.2 P
19 1033 36.5 45.9 C
20 1285 58.6 51.3 P
21 793 59.6 40.1 P
22 881 28.4 45.6 P
23 1194 49.3 46.2 P
24 1940 67.6 43.9 P
25 877 - - C
26 1570 73 34 C
Total 36966 - -
Média 1369 55 37
Número
da escola
Número
de alunos
% de alunos
defasados
% de alunos
no noturno
Localização
*
* C = centro P = periferia
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
628
Iniciativa de múltiplas vertentes, o Experimento Jundiaí conjuga teoria e prática, ação
afirmativa e pesquisa científica concebida e implementada por entidades comunitárias, mestres
e administradores de escolas públicas. Introduz um modelo e formas de tecnologia social para
induzir inovação e promover mudança de práticas e políticas inefetivas de educação e segurança
pública. Fundado em evidências (comprovação científica rigorosa) e implementado sob “pressão
de avaliação”, qualitativa e quantificada, o projeto assume a lógica e os contornos de um
experimento social controlado, envolvendo 26 escolas – quase 40 mil alunos – de ensino
médio, para testar um programa para melhorar condutas, prevenir desordem, violência e
criminalidade, a partir de indicadores relativos ao ambiente escolar.
Os objetivos práticos do projeto incluem, de um lado, ajudar as escolas a estabelecer
capacidade de auto-regulação da conduta de seus alunos, por meio de normas inteligíveis,
claras expectativas e condições físicas de segurança adequadas. De outro, encorajar as famílias
a estabelecer disciplina e vínculos emocionais nítidos e consistentes. Os resultados esperados:
(1) aumentar a transparência das normas e a consistência da sua aplicação; (2) melhorar de
forma sensível a organização e a administração das salas de aula; (3) incrementar a capacidade
da escola de promover comportamentos adequados e elevar a freqüência de sua comunicação
com as famílias e a comunidade.
As evidências são extraídas tanto dos métodos de investigação quanto da prática diária.
Pesquisadores e atores (escolas, famílias, comunidades) compartilham a responsabilidade de
implementar o programa, os componentes são apoiados pelas estruturas e atividades
organizativas das escolas, e as fontes de conduta problemática são abordadas em múltiplos
níveis. A meta é capacitar, desenvolver o contexto escolar por meio de comunicação, colaboração
e planejamento, dando ênfase à implementação consistente do projeto tendo em vista seus
objetivos iniciais. Para resolver casos difíceis, reparar danos e minimizar futuras conseqüências
negativas, visando reconstruir as relações entre escola e sociedade, o projeto inclui um
componente adicional: supervisionar a conduta dos alunos não ser função exclusiva da escola,
mas de todos os adultos da comunidade cujo centro é a escola. Todos participam de um processo
(Câmaras Restaurativas) de formação de um novo sentido de comunidade e cidadania, baseado
na restauração de relacionamentos corrompidos por comportamento desregrado, violência e,
eventualmente, criminalidade.
Na perspectiva do projeto as Câmaras Restaurativas deverão funcionar segundo princípios
avançados de justiça e democracia, como um instrumento transformador de conflitos, diverso
do processo hierárquico, lento e cerimonioso que vige nas cortes de Justiça, de vez que (1) as
preferências de todos os participantes (não importa a idade ou culpabilidade) são consideradas
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
629
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
em pé de igualdade;
(2) os pontos de vista conflitantes são debatidos em um contexto
deliberativo reunindo os atores envolvidos e as pessoas afetadas pelos incidentes; (3) a ninguém
é negado o pleno exercício de seus direitos essenciais.
7
Sempre que um incidente der ensejo a
conflito particularmente grave, as Câmaras oferecerão a possibilidade de transformá-lo,
permitindo às pessoas atingidas expor sua versão dos fatos e entender a repercussão total dos
acontecimentos. Os participantes podem expressar, compartilhar emoções e, gradualmente, a
proporção a favor de sentimentos negativos, desagregadores é invertida. Eventualmente os
participantes tomam consciência de que formam uma comunidade preocupada com o mesmo
problema. A partir daí, dispõem de meios para trabalhar em conjunto, reparar danos e minimizar
futuras ocorrências negativas.
Os conflitos são encarados de frente, as conseqüências danosas são rejeitadas; não se
procura desculpá-las ou ignorá-las, como usualmente acontece. Transformando conflitos no
plano individual e em microcomunidades as Câmaras constituem um instrumento restrito,
nada além de uma promessa de mudança em um nível inferior de abstração, fundado em
conceitos operacionais bem definidos para uma gama limitada de fenômenos envolvendo fatores
de ordem intelectual, emocional, física e espiritual. São resultado de colaboração que pode ser
descrito por componentes ou modos de tratamento, destinados a modificar comportamentos,
atitudes, status de indivíduos ou organizações.
EXPERIMENTO JUNDIAÍ: PREMISSAS DE IMPLANTAÇÃO
Pesquisa e políticas dirigidas à área social geralmente não rendem o desejado, porque
as intervenções não são implementadas da forma delineada e seu quadro teórico é obscuro,
desarticulado. A solução é – ao lado da consistência teórica e da forma pela qual os
parâmetros do projeto são monitorados – fortalecer o modo de implementação das
intervenções, ou seja:
Ø aproximando pesquisa e implementação
Ø identificando e medindo as variáveis mais adequadas
Ø incorporando os papéis e as atividades de quem concebe, implementa e avalia
Ø concentrando-se em mudanças de caráter normativo
Ø privilegiando transparência
Ø enfatizando comunicação, colaboração e planejamento
7
Transformação de conflitos requer estratégias de longo prazo, voltadas às causas dos problemas, à
recuperação dos relacionamentos e à restauração do tecido social e comunitário, em todos os níveis e
situações complexas, persistentes de conflito potencial ou violento.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
630
A fase de planejamento do experimento transcorreu durante o ano de 1999, incluindo
montagem da equipe de pesquisa (Comitê Gestor e Equipe de Implementação: dois
representantes por escola da amostra), delineamento do experimento, seleção de escolas e
pré-teste, da forma como ficou exposto no termo de referência. No mês de março de 2000, o
Comitê Gestor resolveu dar início à segunda fase do projeto, que deverá ser implementado em
tempo menor (um ano e meio) e com menos “vacinas” (em lugar dos cinco componentes
modificadores, de caráter ético e social, a princípio previstos). A opção pelo formato “simplificado”
(experimento em menor escala), que deve manter o caráter representativo e probabilístico
previsto no delineamento completo, de forma a produzir resultados reprodutíveis, foi motivada
pela necessidade de criar um efeito-demonstração a favor do projeto e não desperdiçar o
investimento já aplicado.
Dessa forma, o Comitê Gestor viu-se obrigado a usar “mecanismo de superação”: pedir
que pesquisadores e com o membros da Equipe de Implementação (diretores e professores
das escolas incluídas no experimento), sem remuneração, conduzam o projeto de forma reduzida,
com apenas dois componentes: revisão de política disciplinar e Câmaras Restaurativas. A
proposta do CG é, primeiro, validar – interna e externamente
8
– um questionário sobre o clima
nas escolas a ser aplicado imediatamente a alunos e professores. Em seguida, elaborar uma
estratégia e um cronograma para rever a política disciplinar nas escolas. Finalmente, trazer a
professora Margaret Thorsborne, que coordenou o projeto pioneiro de implantação de Câmaras
Restaurativas em escolas da Austrália, para treinar os membros da Equipe de Implementação.
Das 26 escolas que faziam parte do delineamento original, foram escolhidas onze, segundo
o grau de motivação demonstrado por seus diretores e coordenadores. Nessas escolas o
experimento deve evoluir segundo os seguintes passos:
(1) Validar (verificar se os instrumentos realmente medem o que dizem medir) o questionário
sobre ambiente escolar, para ser aplicado no segundo semestre de 2000 a alunos e professores;
(2) Definir um cronograma para coletiva revisão (alunos, docentes, diretores e responsáveis
pelos alunos, entre outros interessados) da política disciplinar nas escolas;
(3) Capacitar (por um programa de treinamento) os membros da Equipe de Implementação
na condução das Câmaras Restaurativas (contando com a colaboração de um dos coordenadores
do Estudo de Queensland, projeto pioneiro de implantação de Câmaras Restaurativas em escolas
da Austrália);
8
Validação “interna” (modo de testar causa e efeito) e “externa” (capacidade de generalizar resultados).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
631
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
(4) Após seis e dezoito meses de plena implementação das novas políticas disciplinares e
das Câmaras Restaurativas, reavaliar o clima nas escolas;
(5) Quantificação dos resultados e qualificação dos sucessos e insucessos;
(6) Divulgação dos resultados do experimento.
EXPERIMENTO JUNDIAÍ
COMPONENTES (“VACINAS”)
Revisão da
política
disciplinar*
Regras mais
transparentes
Infrações
especificadas
Regras
aplicadas de
modo mais
consistente
Conduta
adequada
premiada e
comportamento
indesejável
sancionado
Sistema de
rastreamento
de condutas
Comunicação
mais freqüente
entre escola e
famílias
Orientação
das famílias
sobre
os padrões
de conduta
que a escola
privilegia
Sistema de
rastreamento
de conduta
(SIRACON):
registra
Informações;
lista punições
(alunos e mestres),
produz relatórios
Organização e
administração
de sala de aula
Treinamento
Reforço de
comportmento
positivo
Reestruturação
do contexto
Alunos e
mestres
entendem o
que se requer
em termos de
comportamento
Alunos
compreendem
má conduta e suas
conseqüências
Má conduta
contestada de
forma consistente
e a partir de
regras explícitas,
e aclaradas
suas conseqüências
Alunos problemáticos:
tratamento especial
Câmaras
Restaurativas*
Treinamento
* Componentes do formato ‘simplificado’
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
632
5 JUSTIÇA REAFIRMADA E RECONSTRUÍDA
Em 1999, em São Paulo, a Polícia Militar apreendeu 41 mil armas ilegais e seus portadores
– na maior parte gente direita – simplesmente “pagaram sessenta reais de fiança e saíram da
delegacia antes mesmo dos policiais que aguardavam o término do flagrante”. Entrementes,
nas cadeias, não mais que 1,7% dos autores de homicídios cumpriam pena. Quadro negativo
que induz população, opinião pública e mesmo as autoridades a concordar que a “legislação é
benévola com o criminoso” e que é preciso “ajustar com urgência os Códigos Penal e de
Processo Penal, a Lei de Execuções Penais e o Estatuto da Criança e do Adolescente para
assegurar o rápido encarceramento dos violentos”.
9
Fato, porém, é que a eficácia preventiva da legislação, em especial a que trata de crimes
violentos, é sempre muito reduzida. Tais crimes não raro são cometidos de forma impetuosa,
sem que seus autores avaliem as conseqüências, por piores que sejam (nos crimes contra a
propriedade, onde há mais planejamento e maior margem de cálculo, o impacto da legislação
é maior). Por isso, dizer que o Sistema de Justiça poderia ser mais eficaz só com o ajustamento
da legislação em patamares mais rigorosos não é o bastante. Nos Estados Unidos, por exemplo,
as leis são duras com criminosos, principalmente quando envolvidos com drogas: por conta
disso, desde 1980 a população encarcerada triplicou; em 1994, três milhões e meio de adultos
estavam em liberdade condicional. Entrementes, o número de condenados à morte, esperando
por execução, cresceu de 150 (em 1973) para 2.700 em 1993. Não obstante, de 1985 a 1994 a
proporção de crimes graves cometidos por menores de 18 anos de idade cresceu 150%, ao
passo que o aumento dessas infrações da parte de adultos foi de somente 11,2% (Uniform
Crime Reports, 1995:221).
Conseqüentemente, mandar os violentos sem demora para a cadeia (ou mesmo cadeira
elétrica) ou mesmo assegurar que a punição seja inevitável e bem administrada – como propusera
o autor noutra obra (1998) – pode não ter sobre violência e criminalidade impacto maior do
que comprar viaturas policiais e construir fóruns, simplificar o processo penal, reduzir a
superpopulação carcerária, ou mesmo predizer com precisão o comportamento de criminosos
violentos. Essas propostas se equivalem quando consideramos que a Justiça é um “funil” de
impunidade – por onde se safa a imensa maioria de criminosos – e que não dá conta de um
problema ainda mais grave: o número de criminosos, seja na cadeia ou nas ruas, é infinitamente
9
José Vicente da Silva, O Estado de S. Paulo (25.6.2000). “O que falta no Brasil é uma legislação mais dura
com os criminosos”, Revista Veja (7.6.2000).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
633
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
menor que as hordas de delinqüentes, cada vez mais jovens e violentos, que todos os dias
emergem para substituir os “veteranos”.
Diante disso todo recurso gasto para tornar a Justiça um sistema mais eficaz parece enorme
desperdício – tanto que há estimativas mostrando que para dobrar o número de encarcerados
a cada ano, nos Estados Unidos, são precisos 200 bilhões de dólares! [Barkan, 1997:535].
Felizmente, a própria imagem do fracasso, que retrata o estado deplorável do sistema, ajuda a
fazer o diagnóstico e sugerir o tratamento: basta deixar de focalizar o funil somente a partir do
“bico”, de acentuar tão-somente seus parcos resultados; em vez do output é preciso considerar
o sistema à luz dos princípios que o regem, o poder, a energia, os métodos, as circunstâncias
reais que determinam seu funcionamento. É preciso levar em conta, de um modo crítico,
afirmativo e comprometido com a reconstrução do sistema, suas limitações e o que através
dele pode ser obtido. A partir daí constatamos, em primeiro lugar, que nada de muito significativo
pode ser alcançado se perdurar a ênfase, característica do enfoque retributivo, no infrator ou
no próprio sistema. Em segundo lugar, que ainda mais que nas outras grandes corporações
sociais, políticas e econômicas, as transformações que ocorrem na Justiça são induzidas de
fora para dentro:
O Direito é naturalmente, devido à sua fixação por uma máquina judiciária independente e à
existência de corpos de especialistas com interesses adquiridos na preservação do status quo,
relativamente impermeável a movimento e mudança. A própria segurança legal, sempre desejada
por parte considerável da sociedade, até certo ponto depende da resistência do Direito à mudança
(...) imobilidade, de fato, reforçada pela lei. (...) Só quando sublevações e tensões na sociedade
tornam-se extraordinariamente grandes, quando o interesse na preservação do Direito em vigor se
tornou incerto em grandes segmentos da sociedade, só então, freqüentemente após intervalos que
duraram séculos, é que grupos na sociedade começam a submeter a teste, em lutas físicas, se o
Direito tradicional corresponde às reais relações de poder” [Elias, 1993:282].
No mundo em que vivemos “sublevações e tensões” se traduzem em conflitos que afetam
largos segmentos da sociedade e penetram indistintamente na vida/de um número cada vez
maior de indivíduos. Não que os atuais índices de violência e criminalidade sejam maiores que
outrora. Na Europa medieval, por exemplo, matava-se muito mais. Quarenta e sete homicídios
por 100 mil habitantes em Amsterdã, em meados do século XIX, comparados a 1,2 agora. Na
mesma época a taxa de homicídios na Inglaterra era dez vezes maior que a de hoje. Por outro
lado, no interior do Estado de São Paulo, em meados do século XIIII, o índice de assassinatos
chegava a 32 por mil habitantes (13 para cada 100 mil atualmente). No distrito paulista de Rio
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
634
Claro o índice atingia 176 por mil, muitíssimo maior que os atuais 110 por 100 mil na região
mais violenta da cidade de São Paulo [Dean, 1976: 21, 181; Scuro, 1998: 4-5, 18].
O que distingue crime e violência hoje em dia em relação ao passado é que agora ambos
são encarados como problemas sociais. Como tal, deixaram de ser, como antes, alternativas
razoáveis para resolver diferenças, práticas, legítimas e até mesmo honrosas. Passaram a ser
violações inaceitáveis da regulação constante e altamente diferenciada do comportamento
necessário para a vida civilizada; fenômenos que afrontam o autocontrole do indivíduo, mas
também a condição precípua de monopolização da força física por parte de um poder “racional”
e despersonalizado, sob uma única autoridade [Elias, 1993:200-201]. Isso não bastasse, na
atualidade o crime e a violência assumiram feições originais, sinistras, que se expressam no
envolvimento cada vez maior de crianças e jovens, afetando de forma devastadora instituições
sociais importantes e dando a impressão de que o problema já embebeu por inteiro o tecido
social [Scuro, 1998:5].
Em um mundo que não tolera mudanças caóticas e não estruturadas, extremamente
complexo e interdependente, violência e criminalidade são problemas sociais que precisam
ser equacionados por via de cooperação e complementaridade, e não da forma convencional,
que privilegia compartimentalização e distanciamento. Operar o Direito, segundo o modelo
burocrático, requer apenas conhecer as regras do ordenamento jurídico, a lógica e o
funcionamento do Sistema de Justiça. Ao passo que, para servir ao interesse público, o Sistema
precisa se abrir, a ordem legal deve ser não só competente como também responsiva, a Justiça
não pode ser um recipiente passivo, mero funil, mas um organismo facilitador de transações,
fator de transformação dos mais graves conflitos, capaz de lidar com mudanças e corresponder
às necessidades da cidadania, sem medo de controvérsias, assimilando-as e as redirecionando
[Selznick, 1994:472-3].
Uma ordem legal responsiva faz revisão de regras à luz de princípios, realiza a transição
lei Õ justiça por intermédio de institutos jurídicos capazes de investigar e descobrir, além de
instrumento de autoridade. Isso não exige rompimento com o Direito estatal, instauração do
pluralismo jurídico, de uma “legalidade comunitária”, ou de múltiplos sistemas normativos
para aplicar justiça de forma localizada [Faria, 1994]. Justiça “sob o Direito” significa aplicação
escrupulosa através de sistema positivo de valor e legalidade, só faz sentido quando se persegue
o interesse público de acordo com regras aplicadas em todos os casos. Só que hoje por toda
parte o Sistema de Justiça atravessa uma crise que repercute a falta de confiança no poder
público, sentimento aliado a dúvidas quanto à capacidade do regime democrático de resolver
problemas sociais complexos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
635
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
Na verdade, devido à sua própria complexidade, o mundo moderno tolera com bastante
naturalidade a coexistência de sistemas de ordem social contraditórios, entre os quais se efetua
um processo de gradual transição. O problema é quando há esvaziamento de legitimidade da
ordem social a que o Direito se refere [Scuro, 2000:119]. O que pode ser prenúncio de uma
revolução no pensamento jurídico, reforma das instituições ou algo in between; todos de
conseqüências desestabilizadoras para o Sistema de Justiça, incorporando individualismo
(crescimento desmedido de demandas) e desrespeito por instituições legais centralizadas. Ao
contrário, neste ensaio despontou uma influência estabilizadora, um instrumento de reafirmação
do papel do Estado na aplicação de justiça, integral respeito à dignidade de todas as pessoas
envolvidas e ao seu direito de ver reconhecidos seus valores e pontos de vista. De um lado,
esse instrumento – Câmaras Restaurativas, aqui apresentadas como componente de um
experimento ativo de natureza científica – à medida que ligadas e supervisionadas pelo Sistema
de Justiça, podem contribuir efetivamente para resguardar a ordem social a que o Direito se
refere. De outro, viabilizam mudanças e tornam, culturalmente falando, o processo legal mais
apropriado às atuais demandas individuais e sociais por justiça.
10
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10
Justiça é uma noção que denota cada vez menos reverência e submissão a instituições e indivíduos e mais
a influência de uma hierarquia de motivos que incluem segurança, amor e inclusão, e respeito por valores
e direitos absolutos, inalienáveis do ser humano em comunidade.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
636
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ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
637
CAP. 18 CAMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
Pedro Scuro Neto
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MÓDULO VII
DISCIPLINA JURÍDICA DO
DIREITO À EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
640
SUMÁRIO EXECUTIVO
PARA ATINGIR A PLENITUDE das garantias oferecidas num sistema constitucional democrático de
direito, o próprio Estado coloca-se à disposição dos indivíduos, promovendo os meios necessários
para aquele mister. No conjunto de garantias individuais tuteladas pela ordem jurídica, desponta
o direito à educação, cuja importância determinará o grau de evolução de um povo.
O Estado de Direito que evolui para o regime democrático pressupõe: (a) a prevalência da
soberania popular no processo de condução dos destinos da nação; (b) a existência de
mecanismos que garantam o controle popular do exercício do direito; (c) um incondicional
respeito às liberdades públicas, núcleo dos direitos humanos fundamentais; (d) a definição de
relações não econômicas que possibilitem a eliminação de toda forma de opressão, para que o
indivíduo tenha condições de exercer sua cidadania.
É dever incontestável do Estado atender às necessidades individuais como saúde, educação,
alimentação, habitação, transporte, lazer, dentre outras, surgindo, da omissão estatal, a
competência restauradora do direito violado.
Dentre essas garantias, o direito social da educação surge com destaque, posicionando-
se, na ordem jurídica, como status de direito público subjetivo, com força suficiente para
subordinar a vontade do Estado à adequação de sua finalidade e levar todos os indivíduos à
realização pessoal e comunitária pelo exercício pleno de cidadania.
Para isso, a Constituição Federal conclama, primeiro, o Estado e, supletivamente, a família
e a sociedade, para desenvolverem ações destinadas ao atendimento nas creches, na pré-
escola, nos ensinos fundamental, médio e superior e no atendimento educacional especializado
às pessoas portadoras de deficiência.
Objetivando um esforço operacional conjunto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional materializou o sistema integrado de ensino publico, dividindo as responsabilidades
da União (organização e financiamento do sistema federal de ensino) e dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios (suporte técnico e financeiro), cabendo a estes, prioritariamente, o
desenvolvimento do ensino fundamental.
E quem são os beneficiários dessas garantias constitucionais? O texto não deixa dúvidas.
A criança e o adolescente são considerados sujeitos de direitos e, como tal, destinatários das
políticas públicas com critério emergencial e prioritário de atendimento. A Constituição Federal
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
641
e o Estatuto da Criança e do Adolescente dão suporte jurídico à concretização dessas garantias,
indicando os instrumentos judiciais e os agentes propulsores encarregados da manutenção e/
ou resgate do direito.
O direito à educação, erigido à garantia fundamental pela Constituição Federal, pressupõe,
primariamente, que haja igualdade de condições, no que diz respeito ao acesso e permanência
na escola. Em seguida, o educando tem assegurado o direito de ser respeitado por seus
educadores, incluindo-se, aqui, o respeito e a proteção à sua integridade física e psíquica,
além da consideração sobre o seu peculiar processo de desenvolvimento. Aliados aos direitos
acima descritos, pode, o educando, contestar os critérios avaliativos, além de ter assegurada
sua participação em organizações e entidades estudantis.
O processo educativo pressupõe a participação dos pais e da escola; os pais têm a obrigação
de matricular seus filhos na rede regular de ensino, ao mesmo tempo em que devem participar
da definição das propostas educacionais a serem ministradas. Além disso, compete aos pais o
dever de acompanhar a freqüência e o aproveitamento escolar de seus filhos. Não basta,
apenas, matricular o filho na escola. É preciso fomentar sua atuação no sentido de garantir a
permanência, bem como observar a participação e evolução escolar de seus filhos.
Por fim, depois de garantidas a vida e a saúde, a educação representa o bem mais valioso
da existência humana, no sentido que possibilita influir para que os direitos se materializem e
prevaleçam.
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
643
19
CAPÍTULO
DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula*
SUMÁRIO
1 ESTADO DE DIREITO ..... 644
1.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ..... 645
2 DEMOCRACIA E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ..... 646
3 FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ..... 646
4 CIDADANIA ..... 647
5 POLÍTICAS SOCIAIS BÁSICAS E DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO ..... 647
6 EDUCAÇÃO. ABRANGÊNCIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO.
PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E OBJETIVOS ..... 648
7 EDUCAÇÃO E DEVERES DO ESTADO. COMPETÊNCIAS. APLICAÇÃO COMPULSÓRIA DE RECURSOS ..... 649
8 A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS.
A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ..... 650
9 DIREITOS FUNDAMENTAIS DO EDUCANDO ..... 651
9.1 IGUALDADE DE CONDIÇÕES PARA ACESSO E PERMANÊNCIA NA ESCOLA ..... 651
9.2 DIREITO AO RESPEITO ..... 651
9.3 DIREITO DE CONTESTAR CRITÉRIOS AVALIATIVOS ..... 652
9.4 DIREITO DE ORGANIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO EM ENTIDADES ESTUDANTIS ..... 652
9.5 DIREITO À ESCOLA PRÓXIMA DA RESIDÊNCIA ..... 653
10 DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS PAIS EM RELAÇÃO À ESCOLA ..... 653
10.1 CIÊNCIA DO PROCESSO EDUCATIVO ..... 653
10.2 PARTICIPAÇÃO NA DEFINIÇÃO DAS PROPOSTAS EDUCACIONAIS ..... 654
11 CONTEÚDO MATERIAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 654
12 DEVERES DOS PAIS EM RELAÇÃO À EDUCAÇÃO DOS FILHOS ..... 655
13 A ESCOLA PÚBLICA: ACESSO E PERMANÊNCIA.
A EXCLUSÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL OBRIGATÓRIO ..... 656
14 PALAVRA FINAL ..... 658
* Procurador de Justiça em São Paulo e professor regente da cadeira de Direito da Criança e do Adolescente da
PUC/SP. É um dos autores do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
644
É por meio do Direito que a sociedade busca a solução dos conflitos de seus interesses.
Nesse Estado de Direito, o primado estrito da legalidade pode não conduzir a soluções
justas ou adequadas, reforçando situações, por vezes, desiguais e injustas.
Diversa é a concepção do Estado Democrático de Direito, que, mesmo tendo o
Direito como escopo principal, tem sua origem e legitimidade num processo de criação
popular que conduz a um resultado de justiça social.
O exercício da cidadania é uma conquista desse Estado Democrático de Direito, que
se consolida no efetivo atendimento dos direitos fundamentais e essenciais para o
desenvolvimento humano e a manutenção da própria dignidade, anunciados na ordem
jurídica vigente.
Nesse contexto, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional são instrumentos garantidores do direito
público subjetivo da criança e do adolescente à educação.
Portanto, no Sistema de Garantias, os direitos fundamentais do educando se
materializam na igualdade de condições para acesso e permanência na escola, no direito
ao respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, ao direito de contestar
critérios avaliativos e de organizar e participar em entidades estudantis.
Além disso, os pais também são chamados a contribuir na educação de seus filhos
conhecendo o processo educativo, participando na definição das propostas educacionais,
exigindo um currículo mínimo e obrigatório. Por outro lado, devem os pais matricular seus
filhos na escola, verificar-lhes a freqüência e o aproveitamento escolar.
O acesso ao ensino fundamental público e, portanto, gratuito é direito de todos,
independentemente da capacidade econômica de seu titular, devendo ser contabilizada
como dever do Estado sua oferta regular e obrigatória.
1 ESTADO DE DIREITO
Em conseqüência das necessidades humanas brota a noção de interesse, concebido como
razão entre o sujeito e o objeto. Objeto do interesse do homem é um bem, podendo ser, grosso
modo, material ou imaterial. Como os bens são finitos, inexistindo em quantidade ou qualidade
para satisfazer a todos os interesses humanos, inexoravelmente advêm conflitos.
Quando duas ou mais pessoas têm interesse sobre o mesmo bem verifica-se a existência
de um conflito intersubjetivo ou interpessoal, ou meramente conflito de interesses, caracterizado
pela unidade de objeto e pluralidade de sujeitos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
645
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
Instalando-se o conflito de interesses as possíveis soluções podem ter por fulcro a violência
ou a civilidade. Força ou racionalidade, emprego das armas ou da razão, subjugação ou
composição constituem-se em meios de solução dos conflitos intersubjetivos. A prevalência do
interesse de um em relação ao interesse de outrem repousa, em síntese, na capacidade dos
sujeitos em utilizarem meios violentos ou pacíficos para a solução dos conflitos.
Qualquer que seja o meio utilizado – violência ou civilidade – as soluções são sempre
precárias. Subsistem enquanto perduram as condições de força ou racionalidade. Enfraquecido
o adversário o vencido pode, muito bem, fazer prevalecer, igualmente pela força, aquele seu
interesse anteriormente contrariado, da mesma forma que o acordo negociado pode ser rompido
a qualquer tempo, bastando que um dos sujeitos reveja sua posição.
A organização social busca, tendo por fulcro a realidade dos conflitos de interesses,
encontrar soluções adequadas e definitivas para as controvérsias. Isto se faz por intermédio do
Direito, instrumento pelo qual a sociedade regula os conflitos de interesses, estabelecendo,
em cada caso, o interesse que prevalece sobre o outro, bem como criando mecanismos que
possam emprestar definitividade às soluções propostas pela lei.
O Direito, portanto, tutela interesses individuais e sociais, protegendo-os com a força da
organização social. Estado de Direito, portanto, é aquele em que as soluções dos conflitos
obedecem aos primados da lei. É o contraponto do Estado violento e arbitrário.
1.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Não basta, contudo, o primado da legalidade estrita ou que as soluções dos conflitos de
interesses tenham lastro no Direito. Sendo este, basicamente, o instrumento definidor de qual
o interesse subordinante, em caso de conflito, não raras vezes acaba protegendo o poder
econômico ou político. Leis podem ser criadas, e muitas o são, com o único propósito de
manter privilégios, reforçando a dominação e garantindo a ordem social desigual e injusta.
Assim, o Estado baseado somente no Direito não garante a existência de um Estado de
Justiça Social. Para este, é mister que o Direito tenha como origem um processo de criação
popular, em que as definições da prevalência de um interesse sobre o outro brotem da livre
discussão. Além disso, considerando-se que a organização social tem na preservação do homem
sua finalidade primordial, é imprescindível que esse Direito assegure garantias que permitam
a satisfação das necessidades e a atualização das potencialidades humanas.
E deve conter, por fim, instrumentos controladores do poder, de sorte que a população
conduza, de fato, os destinos da nação. Um Estado baseado nesses pressupostos constitui-se
em Estado Democrático de Direito, que, em suma, significa:
(a) prevalência da soberania popular no processo de condução dos destinos da nação;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
646
(b) existência de mecanismos que garantam o controle popular do exercício do poder;
(c) respeito incondicional às liberdades públicas, especialmente no que concerne aos
direitos fundamentais da pessoa humana, garantindo-se, por meios adequados, a efetivação
concreta dos enunciados constitucionais;
(d) definição de relações socioeconômicas que possibilitem a eliminação da opressão, da
fome, da miséria, da ignorância, fornecendo condições de exercício da cidadania a toda a
população.
2 DEMOCRACIA E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Apontam os estudiosos três requisitos básicos relacionados à existência da democracia,
notadamente aquela adjetivada de representativa: (a) existência de uma Constituição; (b) respeito
aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana; (c) possibilidade de escolha de
representantes para administrar a nação.
Para a democracia participativa, contudo, não basta a presença desses requisitos; exige-
se, também, que a população participe diretamente da gestão dos negócios públicos. Assim, a
população não se limita ao exercício do direito de voto, podendo e devendo influir, diretamente,
dentro dos limites legais, na administração pública. O poder político, ínsito a cada cidadão,
extravasa a mera escolha de representantes, alcançando outras atividades do Estado, de sorte
que a definição de prioridades públicas não fique circunscrita somente à esfera de decisão dos
eleitos. Tem-se em conta, nessa concepção, o verdadeiro alcance da soberania popular.
3 FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
O artigo 1º da Constituição de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Ia soberania;
IIa cidadania;
IIIa dignidade da pessoa humana;
IVos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Vo pluralismo político.
Programaticamente também adota a democracia representativa e participativa ao estabelecer,
no parágrafo único desse mesmo artigo, que todo poder emana do povo, que o exerce por
meios de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Em síntese, do ponto de vista constitucional, afirma-se a existência de um Estado
Democrático de Direito, em que a soberania popular materializa-se na democracia representativa
e participativa, tendo por objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
647
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação [CF, art. 3
o
].
4 CIDADANIA
Podemos entender por cidadania a efetivação dos direitos civis, econômicos e sociais que
pertinem a cada pessoa humana. A cidadania não se verifica pela mera possibilidade de exercício
de tais direitos; reclama atendimento aos interesses protegidos pela lei, porquanto, como
direitos fundamentais, são essenciais para o desenvolvimento da pessoa humana e a manutenção
da própria dignidade.
Em suma, é cidadão aquele que participa da divisão da riqueza social, podendo atender
as suas necessidades básicas e vitais, sem as quais não vive, não se desenvolve e nem atualiza
suas potencialidades.
5 POLÍTICAS SOCIAIS BÁSICAS E DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO
Para o atendimento de determinadas necessidades individuais, como educação, saúde,
alimentação, habitação, transporte, lazer, dentre outras, o Estado, concebido como nação
politicamente organizada para o atendimento de seus objetivos primordiais, é responsável
pela definição de políticas sociais básicas, implementando ações e serviços coletivos que
resultem em benefícios concretos para a população.
Direito de todos e dever do Estado constitui-se em expressão designativa de direito social
a que correspondem obrigações do poder público, materializadas em ações governamentais
previamente definidas e priorizadas, reunidas em um conjunto integrado pela busca da mesma
finalidade.
Se o dever do Estado conduz à definição de políticas sociais básicas, o direito de todos
leva à existência de direito público subjetivo, exercitável, portanto, contra o poder público.
Reconhece-se, assim, que o interesse tutelado pelo direito social tem força subordinante, isto
é, subordina o Estado ao atendimento das necessidades humanas protegidas pela lei.
Atender ao direito social protegido pela lei significa cumprir, qualitativa e quantitativamente,
as obrigações que dele decorrem, produzindo ações e serviços que satisfaçam os titulares
daquele direito. Existindo oferta irregular dessas ações e serviços por parte do Estado, a força
subordinante do direito social violado conduz à necessidade de prestação jurisdicional, de
modo que a ordem social violada pelo poder público, notadamente pelo seu Poder Executivo,
possa ser restaurada pelo Poder Judiciário.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
648
Assim, deflui do direito público subjetivo força subordinante em relação ao Estado, não
só no que diz respeito ao cumprimento voluntário das obrigações, mas também na garantia de
acesso ao Judiciário para o suprimento coercitivo das omissões governamentais.
6 EDUCAÇÃO. ABRANGÊNCIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO.
PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E OBJETIVOS
A Carta Maior estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados [CF, art. 6
o
].
Ao se referir especificamente à educação o legislador constituinte insculpiu na Lei Maior [art.
205] a regra consoante a qual a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Juridicamente podemos conceber a educação como um direito social público subjetivo.
Inequivocamente inserido dentre os direitos fundamentais da pessoa humana, deve ser
materializado por política social básica, porquanto indiscutivelmente relacionado à cidadania
e à dignidade do homem, dois dos fundamentos constitucionais da República Federativa do
Brasil [CF, art. 1
o
], bem como pertine aos objetivos primordiais e permanentes do Estado brasileiro
[CF, art. 3
o
], notadamente o referente à erradicação da marginalidade.
Educação, em sentido amplo, abrange o atendimento em creches e pré-escola às crianças
de zero a seis anos de idade, o ensino fundamental, inclusive àqueles que a ele não tiveram
acesso na idade própria, o ensino médio e o ensino em seus níveis mais elevados, inclusive
aqueles relacionados à pesquisa e à educação artística. Contempla, ainda, o atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência, prestado, preferencialmente, na rede
regular de ensino.
Considerando o objeto formal da educação, prescreve a Constituição Federal a
obrigatoriedade da lei ordinária instituir Plano Nacional de Educação, estabelecendo
previamente seus objetivos, ou seja, priorizando metas que devem necessariamente constar
quando da definição dessa política social básica. Assim, as ações do poder público devem
conduzir à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento escolar, à melhoria
da qualidade do ensino, à formação para o trabalho e à promoção humanística, científica e
tecnológica do país [CF, art. 214]. É importante salientar que o Plano Nacional de Educação a
que se referem os artigos 214 da Constituição Federal e 9
o
da LDB está em tramitação no Congresso
Nacional, já tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados. Em síntese, o texto aprovado
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
649
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
propõe os seguintes objetivos: a elevação global do nível de escolaridade da população; a
melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; a redução das desigualdades sociais e
regionais no tocante ao acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública e a
democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais
Assim, constata-se que a própria Constituição Federal estabeleceu balizas para o
estabelecimento da política de educação a ser implantada no Brasil, priorizando ações que
considera essenciais para o desenvolvimento das pessoas e do país.
Retomando conceito inicial – efetivação dos direitos civis, sociais e políticos –, a educação
é muito mais do que o preparo para o exercício da cidadania, como menciona a Constituição
Federal [art. 205], na medida em que a saída da marginalidade pressupõe a aquisição de
conhecimento que possibilite condições para a superação das adversidades decorrentes da
falta de cumprimento das obrigações ínsitas aos demais direitos fundamentais.
A educação, como direito e bem fundamental da vida, é um dos atributos da própria
cidadania, fazendo parte de sua própria essência.
7 EDUCAÇÃO E DEVERES DO ESTADO.
COMPETÊNCIAS. APLICAÇÃO COMPULSÓRIA DE RECURSOS
A educação, como dever do Estado, importa desenvolvimento de ações governamentais
que conduzam ao atendimento das pessoas na creche e pré-escola, no ensino fundamental, no
ensino médio e no superior, além do atendimento educacional especializado às pessoas
portadoras de deficiência. Além disso, consoante consignado no artigo 208 da Constituição
Federal, o Estado, aqui e na Lei Maior utilizado como designativo de poder público, deve
promover a progressiva universalização do ensino médio gratuito, ofertar ensino noturno regular
e atender ao educando, no ensino fundamental, por meio de programas suplementares e de
material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
O acesso gratuito, contudo, somente encontra-se assegurado ao ensino fundamental [CF,
art. 208, § 1
o
]. Nos demais níveis contentou-se o legislador constituinte em garantir a gratuidade
em estabelecimentos oficiais [CF, art. 206, IV] , ou seja, não ficou obrigado a garantir o acesso de
todos ao ensino médio e ao superior.
Prevê a Constituição Federal [art. 211], seguida pela LDB [art. 9
o
], que a União, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios organizarão os respectivos sistemas de ensino em regime de
colaboração, ficando a União responsável pela organização e financiamento do sistema federal
de ensino, bem como pela prestação de assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito
Federal e Municípios, sendo que estes devem atuar concorrente e prioritariamente no ensino
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
650
fundamental. Para os Municípios, a LDB, coerente com a sua linha descentralizadora, mantém a
organização do sistema municipal de ensino como regra geral, mas prevê ainda a possibilidade
de cada Município optar por integrar-se ao sistema estadual de ensino ou compor com o
Estado um sistema único de educação básica.
.Quanto aos recursos relacionados à manutenção desses sistemas estabeleceu a Constituição
Federal a obrigatoriedade de aplicação de parte da receita resultante de impostos, estabelecendo
para a União limite mínimo de dezoito por cento e para os Estados, Distrito Federal e Municípios,
percentual nunca inferior a vinte e cinco por cento [art. 212].
Além de tais deveres, relacionados ao ensino público, tem o Estado a obrigação, pois o
ensino é livre à iniciativa privada, de estabelecer e fiscalizar o cumprimento de normas gerais
da educação nacional, bem como autorizar o funcionamento de instituições privadas e avaliar
sua qualidade [art. 209].
8 A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS.
A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Crianças e adolescentes, não só do ponto de vista jurídico, sempre foram vistos como
meros objetos de intervenção do mundo adulto, seja ele representado pela família, pela
sociedade e pelo Estado. Não se lhes reconheciam direitos próprios, exercitáveis contra aqueles
que negassem subordinação aos seus interesses.
No máximo, juridicamente, eram tidos como pequenos adultos, podendo exercitar, via
representação ou assistência dos pais ou responsável legal, alguns direitos, comuns a toda e
qualquer pessoa, como, por exemplo, o direito de propriedade. Olvidava-se, ainda, que crianças
e adolescentes estão na condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento e, via
de conseqüência, têm interesses especiais, decorrentes da própria infância e adolescência, e
que tais interesses, pela sua importância e urgência, merecem contar com proteção jurídica.
O Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, rompeu com essa tradição jurídica,
filiando-se à idéia de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, podendo exercitá-
los frente à família, à sociedade e ao Estado [art. 227].
Assim, consignou expressamente que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Para coroar o avanço pretendido pelo legislador constituinte adveio o Estatuto da Criança
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
651
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
e do Adolescente [CF, art. 206, IV], resultante do poder popular organizado, representando
conquistas advindas dos embates, das lutas, da perseverança. Referido texto de lei estabelece
que a expressão criança é reservada para a designação de pessoas de até 12 anos incompletos,
enquanto que adolescente refere-se à pessoa entre 12 e 18 anos de idade [ECA, art. 2
o
], abolida,
vez por todas, a designação menor, impregnada de cunho demeritório.
Por outro lado, o ECA não regulamenta todas as relações entre crianças e adolescentes e
família, sociedade e Estado; apenas disciplina as questões fundamentais, não substituindo as
legislações especiais, como, por exemplo, a CLT (relações de trabalho de adolescentes).
Mais especificamente, no que concerne ao direito à educação, o Estatuto da Criança e do
Adolescente apenas disciplina seus aspectos principais, os quais são complementados e
aprofundados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [Lei n
o
9.394, de 20/12/96].
Ao ECA cabe apenas proteger juridicamente, indicando, no Sistema de Garantias, quais são
os interesses pertencentes às crianças e adolescentes, considerados quanto à educação e,
como de resto todos os demais, indisponíveis em relação a seus destinatários, estabelecendo,
pois, normas de caráter geral.
9 DIREITOS FUNDAMENTAIS DO EDUCANDO
9.1 IGUALDADE DE CONDIÇÕES PARA ACESSO E PERMANÊNCIA NA ESCOLA
Tal direito, previsto na Constituição Federal [art. 206, I] e no ECA [art. 53, I], deflui da
garantia constitucional relacionada ao princípio da isonomia, que veda a distinção de qualquer
natureza e obriga, nós todos, a colocar crianças e adolescentes a salvo de toda forma de
discriminação [arts. 5
o
e 227].
Dessa forma, ainda que se trate de escola particular, vedados estão os privilégios para uns
e obstáculos para outros, de vez que as regras de acesso devem ser comuns a toda e qualquer
criança ou adolescente, tendo como critério básico a igualdade de condições.
9.2 DIREITO AO RESPEITO
Tanto a Constituição da República [art. 227] como o Estatuto [art. 17] e a LDB [art. 3
o
IV]
garantem ao aluno o direito de ser respeitado por seus educadores.A incolumidade física da
criança ou adolescente não pode, de forma alguma, sofrer qualquer agressão. Abolidos estão
da escola os castigos físicos, desde a moderna palmada pedagógica até a antiga palmatória.
Por outro lado, a integridade psíquica e moral, que abrange a preservação da imagem, da
identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais, constitui-
se em patrimônio individual inviolável, próprio de cada pessoa, inclusive crianças e
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
652
adolescentes. Aquele que desrespeitar em público o aluno, submetendo-o a vexame ou
constrangimento, fica sujeito a pena de detenção de seis meses a dois anos, porquanto sua
conduta é considerada criminosa [ECA, art. 232].
Por óbvio, o aluno também deve respeito aos diretores, professores e funcionários da
escola. A conduta desrespeitosa poderá, dependendo do caso, configurar ato infracional que,
consoante definição do ECA, corresponde a qualquer crime ou contravenção penal, como, por
exemplo, injúria.
9.3 DIREITO DE CONTESTAR CRITÉRIOS AVALIATIVOS
O ECA [art. 53, III] estabelece que o aluno tem direito de contestar critérios avaliativos,
podendo recorrer a instâncias escolares superiores. A avaliação, notadamente sob a forma de
nota, crédito ou conceito, deve ter por principais fundamentos critérios objetivos, de sorte a
afastar a possibilidade de prepotência e até mesmo perseguição, pois somente encontram
terreno fértil na aferição subjetiva.
A contestação de critério avaliativo não pode ser confundida com indisciplina ou
insubordinação, não só pelo fato de hoje constituir direito exercitável em face do professor e
da escola, como também em razão da necessidade de democratização do ensino, em que a
onipotência e autoritarismo do mestre são substituídos pela concepção de que é um instrumento
de socialização do saber, indispensável à própria construção da cidadania.
9.4 DIREITO DE ORGANIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO EM ENTIDADES ESTUDANTIS
Este direito [ECA, art. 53, IV] decorre da garantia constitucional da plena liberdade de
associação para fins lícitos [art. 5
o
, XVII]. A entidade estudantil, para sua criação, independe de
autorização da escola, vedada qualquer interferência no seu funcionamento. A par desses
direitos fundamentais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação enuncia uma gama de princípios
e outros direitos que devem ser garantidos aos educandos.
1
1
Art. 3ºO ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
Iigualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
IIliberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
IIIpluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
IVrespeito à liberdade e apreço à tolerância;
Vcoexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VIgratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VIIvalorização do profissional da educação escolar;
VIIIgestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
653
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
9.5 DIRETO À ESCOLA PRÓXIMA DA RESIDÊNCIA
Esse direto é uma decorrência natural da “doutrina da proteção integral” consagrada pelo
ECA, e visa, objetivamente, garantir à criança a ao adolescente o fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários. Ademais, a proximidade da escola à residência é uma garantia que
o Estado tem o dever de assegurar, em face de um dado de realidade da sociedade moderna
representado pelo trabalho dos componentes da família.
Finalmente, a proximidade de escola e residência certamente facilitará uma maior
convivência e estreitamento do relacionamento seja do aluno, como da família e dos membros
da própria escola.
10 DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS PAIS EM RELAÇÃO À ESCOLA
10.1 CIÊNCIA DO PROCESSO EDUCATIVO
O Estatuto da Criança e do Adolescente consignou que os pais ou responsável têm a
obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino [art. 55], incumbindo-
lhes o dever de educação dos filhos menores [art. 22], importando a omissão até em causa de
destituição do pátrio poder [art. 24], sem prejuízo de eventual responsabilidade penal em razão
IXgarantia de padrão de qualidade;
Xvalorização da experiência extra-escolar;
XIvinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
Art. 4ºO dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
Iensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade
própria;
IIprogressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;
III atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais,
preferencialmente na rede regular de ensino;
IVatendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;
Vacesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um;
VIoferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VIIoferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequa-
das às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições
de acesso e permanência na escola;
VIIIatendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de
material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde;
IXpadrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por
aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
654
do crime de abandono intelectual [CP, art. 246]. Isso decorre do fato de que a educação é um
dever não só do Estado mas também da família [CF, art. 205].
Visando ao cumprimento dessas obrigações, o próprio Código Civil prevê como um dos
atributos do pátrio poder a incumbência dos pais em dirigir a criação e educação dos filhos
menores [art. 384, I]. Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente o direito de conhecer
o processo educativo adotado pela escola [art. 53, par. único], de sorte que os pais possam
avaliá-lo à luz de seus princípios e expectativas quanto à formação integral dos filhos.
10.2 PARTICIPAÇÃO NA DEFINIÇÃO DAS PROPOSTAS EDUCACIONAIS
Têm os pais, também, o direito de participar da definição das propostas educacionais,
influenciando para que o ensino ministrado sirva aos seus filhos como instrumento de
atualização de potencialidades e seja adequado às condições peculiares das famílias. Nesse
último aspecto, convém destacar que se o poder público estimulará pesquisas, experiências e
novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação
com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório
[ECA, art. 57], obviamente deverá levar em conta as necessidades dos destinatários principais da
atividade, expostas pelos próprios interessados.
11 CONTEÚDO MATERIAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Tanto o ensino fundamental como o médio devem ter, nacionalmente, uma base curricular
comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da clientela [LDB, art. 26].
Dentre os conteúdos comuns a todos os currículos, destaca-se a obrigatoriedade do estudo
da Língua Portuguesa e da Matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade
social e política, especialmente do Brasil.
A fim de garantir o desenvolvimento cultural do educando, o ensino da arte constituirá
componente curricular obrigatório, além da educação física, que deverá ser ajustada às faixas
etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos.
Ampliando o alcance pretendido pelo legislador constituinte nos paradigmas do Estado
Democrático de Direito e nos objetivos fundamentais da nação, constará do currículo básico o
ensino de História do Brasil, que levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece, ainda, a obrigatoriedade do
ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, a partir da segunda metade do ensino
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
655
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
fundamental, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da
instituição.
Os conteúdos curriculares da educação básica observarão as diretrizes estabelecidas na
LDB, das quais destaca-se a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e
deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática e a orientação para o
trabalho [LDB, art. 21,I].
De outro lado, é importante destacar a expressa autorização legislativa para que, na oferta
de educação básica para a população rural, sejam encetadas as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
Iconteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses
dos alunos da zona rural;
IIorganização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do
ciclo agrícola e às condições climáticas;
IIIadequação à natureza do trabalho na zona rural.
Por fim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional faz expressa remissão aos Planos
Nacional e Estaduais de Educação, cujos principais objetivos deverão incluir, dentre outras
metas, o desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles compreendidos os
conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades (inclusive indígenas) [LDB,
art. 28] e a elaboração e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado
[LDB, art. 79, § 2
o
, I a IV].
12 DEVERES DOS PAIS EM RELAÇÃO À EDUCAÇÃO DOS FILHOS
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família [CF, art. 205], reclama especial
atenção dos pais, pois estes têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores [CF, art. 229].
Esses imperativos ínsitos na Lei Maior encontram no Código Civil e no Estatuto da Criança
e do Adolescente maior complementação, valendo lembrar que aos pais, enquanto titulares do
pátrio poder, compete, quanto à pessoa dos filhos, dirigir-lhes a criação e educação [CC, art.
384, I], afirmando o ECA que aos mesmos incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos menores [art. 22].
Dever dos pais, qualquer que seja o seu estado civil, servindo a norma insculpida no
artigo 231, inciso IV, do Código Civil, relacionada às obrigações dos cônjuges, apenas como
referência a possibilitar sanção decorrente da falta de cumprimento de um dos deveres
fundamentais do casamento do qual resulte prole.
Criar é também educar, de sorte que o primeiro seria um dever genérico do qual o segundo
seria uma de suas espécies. Educar, por outro lado, em sentido amplo, no propósito de transmitir
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
656
e possibilitar conhecimentos, despertando valores e habilitando o filho para enfrentar os desafios
do cotidiano. A educação, nesse sentido, viabilizaria o desenvolvimento mental, moral, espiritual
e social da criança e do adolescente.
Este ofertar de um processo educativo, dever dos pais, encontra limite nas condições de
seu oferecimento, que devem se pautar pelo respeito à liberdade e dignidade da criança e do
adolescente [ECA, art. 3
o
, parte final]. Tal observação se faz necessária porque se educar também
é corrigir, de modo que o erro seja afastado, a correção ínsita ao direito-dever de educação não
pode ir ao ponto de violar outros direitos fundamentais, como a integridade física ou a saúde
do filho, encontrando balizas nos delitos de maus-tratos, lesões corporais etc.
No que concerne à escolaridade, o principal dever consiste em matricular os filhos na rede
regular de ensino [ECA, art. 55], valendo lembrar que constitui crime de abandono intelectual
deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar [CP, art. 246].
Exclui a ilicitude da conduta situações reveladoras de miséria, pobreza, graves dificuldades
financeiras, falta de vagas em estabelecimentos públicos etc., porquanto, como é óbvio, não
houve omissão dolosa.
Os pais, além da matrícula, têm o dever de acompanhar a freqüência e o aproveitamento
escolar do filho [ECA, art. 129, V]. O mero colocar na escola não elide a obrigação dos pais,
reclamando a lei atuação no sentido de garantir a permanência, bem como no de observar e
participar da evolução escolar da criança ou adolescente, avaliando seus progressos individuais
e estimulando-os para que o estudo seja-lhes rendoso.
Por fim, é de assinalar que o descumprimento inescusável dos deveres relacionados à
educação dos filhos faz incidir as medidas previstas no artigo 129 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, sendo a mais grave a destituição do pátrio poder.
13 A ESCOLA PÚBLICA: ACESSO E PERMANÊNCIA.
A EXCLUSÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL OBRIGATÓRIO
Como anteriormente consignado o legislador constituinte, acompanhado pelo ECA e pela
LDB, adotou como princípio a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino [CF,
Segunda parte, art. 206, III; LDB, art. 7
o
]. Quanto à escola pública, ou seja, aquela instituída e
mantida pelo poder público, preocupou-se o legislador notadamente com o ensino fundamental,
compreendendo da 1ª à 8ª série.
Declarou a gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental, garantindo o acesso à
escola pública a toda e qualquer pessoa. Expressamente consignou que esse acesso constitui
direito público subjetivo [CF, art. 208, § 1
o
], possibilitando sua exigência, em juízo ou fora dele. Em
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
657
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Paulo Afonso Garrido de Paula
resumo isto significa cobrança de vagas em número suficiente para atender à demanda, bem
como necessidade de oferta, pelo poder público, capaz de atender a todos aqueles dependentes
do ensino fundamental. Não se trata de ação de assistência social, prestada somente àquele que
dela necessitar, ou seja, motivada pela carência; o acesso ao ensino fundamental público e,
portanto, gratuito é direito de todos e independe da capacidade econômica de seu titular.
Visando imprimir concretude ao direito de acesso ao ensino fundamental público o
legislador pátrio prescreveu o atendimento, por meio de programas suplementares, de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde [CF, art. 208, VII; LDB, art. 4
o
, VIII;
ECA, art. 53]. Tais obrigações, tanto quanto o próprio direito de acesso, encontram na ação civil
pública um poderoso instrumento de coerção do poder público, quando omisso ou negligente.
Verifica-se pela leitura do artigo 208 do ECA, reiterado pelo artigo 5
o
, § 3
o
da LDB, a possibilidade
de ingresso de ações judiciais de responsabilidade em razão do não-oferecimento ou oferta
irregular do ensino obrigatório ou de programas suplementares de oferta de material didático-
escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde do educando em ensino fundamental.
A lei, portanto, permite que os interessados ingressem em juízo, pugnando do Poder
Judiciário providência asseguradora de seus direitos relacionados ao ensino fundamental, de
sorte que tenham eficácia, ou seja, materializem-se em resultados do cotidiano.
A lei não se limita a garantir o acesso ao ensino público e a estabelecer mecanismo visando
compelir o poder público ao cumprimento de suas obrigações. Prevê também uma forma de
controle externo da manutenção do educando no ensino fundamental, de modo a contribuir
para que a própria escola não motive a exclusão. Assim, estabelece como dever dos dirigentes
de ensino fundamental, seja de escola pública ou particular, comunicar ao Conselho Tutelar
do Município e, em sua falta, à autoridade judiciária, os casos de reiteração de faltas
injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares, bem como a ocorrência de
elevados níveis de repetência [ECA, art. 56, II e III].
Tal comunicação, de caráter obrigatório, tem por fito inserir a comunidade, interessada
socialmente na escolaridade de seus integrantes e representada pelo Conselho Tutelar, na
discussão dos casos de evasão escolar.
2
O Conselho pode acionar mecanismos possibilitadores
2
A esse respeito conferir experiência desenvolvida na rede de atendimento composta pelo Ministério Público,
Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre e a Coordenação dos Conselhos Tutelares de Porto
Alegre, com o estabelecimento da Ficha de Comunicação do Aluno Infreqüente – FICAI, cujos resultados são
bastante positivos, eis que das 1.557 FICAI encaminhadas ao Ministério Público no período de junho de 1998
até julho de 1999, 1.071 crianças e adolescentes retornaram à escola.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
658
do retorno dos excluídos, inclusive, se for e conforme o caso, acionando o Ministério Público
e o Judiciário para as providencias que lhes competem.
A legislação pátria, constitucional e ordinária, garante permanência do educando no sistema
de ensino, implicando ilegalidade a punição disciplinar consistente na expulsão. Isso porque
a via administrativa não pode coartar o exercício do direito fundamental da criança ou
adolescente, previsto na própria Constituição Federal.
Evidentemente, isso não faz da escola refém do mau aluno, ou que seus professores e
diretores tenham de submeterem-se aos caprichos, omissões e até aos atos infracionais de seus
educandos. Contudo, a expulsão, notadamente naquelas localidades onde exista apenas uma
única escola, redundará na exclusão do educando do ensino fundamental, impedindo o regular
exercício de um direito. Outras formas disciplinares devem ser encontradas no sentido de
garantir a disciplina escolar, sem que impliquem obstáculo ao acesso e à permanência do
educando no ensino fundamental.
14 PALAVRA FINAL
Garantida a vida e a saúde de uma pessoa, a educação representa o bem mais valioso da
existência humana, porquanto confere a possibilidade de influir para que os demais direitos
se materializem e prevaleçam. Somente reivindica aquele que conhece, que tem informação,
saber, instrução, e, portanto, cria e domina meios capazes de levar transformações à sua própria
vida e história. Se a ignorância é a principal arma dos exploradores, a educação é o instrumento
para a transposição da marginalidade para a cidadania, única medida do desenvolvimento de
um povo.
Inexiste algo mais nobre do que socializar o conhecimento, de vez que aquele que ensina
aprende o real sentido do saber, e aquele que aprende ensina o verdadeiro propósito de educar.
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
659
20
CAPÍTULO
O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Afonso Armando Konzen*
* Procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, atual procurador-supervisor das
Coordenadorias das Promotorias de Justiça de Porto Alegre e coordenador da Regional-Sul da Associação
Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
660
1 Até a vigência da atual Constituição Federal, a educação, no Brasil, era havida,
genericamente, como uma necessidade e um importante fator de mudança social, subordinada,
entretanto, e em muito, às injunções e aos acontecimentos políticos, econômicos, históricos e
culturais. A normatividade de então limitava-se, como se fazia expressamente na Constituição
Federal de 1967, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 01, de 17 de outubro
de 1969, ao afirmar da educação como um direito de todos e dever do Estado, com a conseqüente
obrigatoriedade do ensino dos 7 aos 14 anos e a gratuidade nos estabelecimentos oficiais,
restringindo-se, quanto ao restante, inclusive na legislação ordinária, a dispor sobre a organização
dos sistemas de ensino. Em outras palavras, a educação, ainda que afirmada como direito de
todos, não possuía, sob o enfoque jurídico e em qualquer de seus aspectos, excetuada a
obrigatoriedade da matrícula, qualquer instrumento de exigibilidade, fenômeno de afirmação
de determinado valor como direito suscetível de gerar efeitos práticos e concretos no contexto
pessoal dos destinatários da norma. A oferta de ensino e a qualidade dessa oferta situavam-se,
em síntese, no campo da discricionariedade do administrador público, ladeada por critérios de
conveniência e de oportunidade.
1
Com o advento da Constituição de 1988 e dos diplomas legais complementares, o panorama
jurídico alterou-se significativamente, em especial no que diz para com a educação infantil e o
ensino fundamental da criança e do adolescente. De todos os direitos sociais constitucionalmente
assegurados, nenhum mereceu, explicitamente, por parte do legislador constituinte e ordinário,
o cuidado, a clareza e a contundência do que a regulamentação do direito à educação. Afirmado
como o primeiro e o mais importante de todos os direitos sociais, fez-se compreender a educação
como valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana, itens essenciais ao Estado
Democrático de Direito e condição para a realização dos ideais da República, de construir uma
sociedade livre, justa e solidária, nacionalmente desenvolvida, com a erradicação da pobreza,
da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e livre de quaisquer formas de
discriminação (artigo 3º da Constituição Federal), o imaginário de nação inscrito na Carta
Magna brasileira.
O enfoque produziu uma nova matriz. Da centralidade na definição do perfil organizacional
dos sistemas de ensino e das diretrizes de natureza pedagógica, a preocupação do legislador
voltou-se também para a eleição de instrumentos de exigência, conferindo ao conjunto de
normas o indispensável sentido de cogência. A realidade educacional brasileira, infelizmente
1
Retrospectiva histórica da legislação educacional no Brasil, ver em Direito da Criança e do Adolescente,
Uma Proposta Interdisciplinar, de Tânia da Silva Pereira, Editora Renovar, p. 281 e seguintes.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
661
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Afonso Armando Konsen
ainda carregada de insuficiências, apesar dos esforços históricos dos educadores para superá-
los e dos avanços formais da legislação, deve, então, merecer, com urgência, a adesão dos
operadores da Justiça e de todo o Sistema de Garantia dos direitos da criança e do adolescente,
condição essencial para dar razão de ser e de efetividade ao que se anuncia como sendo, hoje,
no Brasil, o direito à educação.
2
2 Segundo preceitua o artigo 1º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), “a
educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. A abordagem da presente
exposição pretende limitar-se ao tema da educação escolar, para responder ao significado
material de alguém ser sujeito do direito à educação escolar, de quais são os instrumentos de
exigibilidade desse direito, de quais são os pontos suscetíveis de se permitir o acesso ao Poder
Judiciário para a asseguração e de quem está legitimado para o exercício. A regulamentação da
matéria permite responder aos questionamentos sem maiores dúvidas quanto à sua liquidez e
certeza. É o que se pretende demonstrar, ainda que sem esgotar a análise ou tampouco ingressar
em eventuais controvérsias.
3 Além da Constituição Federal e das respectivas Constituições estaduais e municipais
(Leis Orgânicas dos Municípios), importa, ao estudo da exigibilidade do direito à educação, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990), a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996), a Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985), a Lei da
Probidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992) e as leis de
responsabilidade (Lei Federal nº 1.079, de 10 de abril de 1950, e Decreto-Lei nº 201, de 27 de
fevereiro de 1967), além das normas procedimentais do Código de Processo Civil, do mandado
de segurança e da ação popular. Especificamente, está no Estatuto da Criança e do Adolescente
o detalhamento do conteúdo material do direito à educação escolar, já que a LDB concentra-se
em tratar da oferta, especialmente pela regulação dos respectivos sistemas de ensino.
2
Sobre educação, Direito e cidadania, ver articulado da autoria do procurador de Justiça Paulo Afonso
Garrido de Paula, publicado em Igualdade, Livro 9, Revista Trimestral do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
662
4 Pode-se resumir, sob o enfoque estrito do conteúdo material, o direito à educação escolar
aos seguintes pontos:
4.1 Universalidade do acesso e da permanênciaColocada na Constituição Federal
(artigo 206, inciso I) e na LDB (artigo 3º, inciso I) como mero princípio do ensino, o Estatuto
assegura à criança e ao adolescente a igualdade de condições para o acesso e a permanência
na escola. Vale dizer que o direito à educação da criança e do adolescente impõe ao sistema
educacional, considerado no seu todo ou em relação a qualquer uma de suas instituições de
ensino em particular, a eliminação de todas as formas de discriminação para a matrícula ou
para a permanência na escola.
A permanência na escola constitui-se no maior desafio da educação escolar brasileira,
porque os indicativos de exclusão ainda ilustram de forma constrangedora as resenhas
estatísticas. Não se pretende aqui apontar ou analisar as causas e as conseqüências do fenômeno.
Cabe assinalar, no entanto, que a falta da criança ou do adolescente às aulas ou o gradativo
abandono da escola, assim como a repetência do ano escolar, deixaram de ser questões de
foro interno da instituição de ensino. O Estatuto cerca a escola com uma rede de atores e de
providências, concebidos para auxiliá-la no cumprimento de sua missão. Nesse particular, o
direito à educação não é mais tão-só o direito à vaga, mas é o direito ao ingresso, à permanência
e ao sucesso.
Percebe-se, portanto, que a responsabilidade pelo desenvolvimento do processo educativo
pertence ao educador, papel no qual é insubstituível. A obrigação, no entanto, de velar pelo
integral asseguramento do direito de ser educado envolve um conjunto de ações, para cujo
desenvolvimento exige-se a participação dos pais, do professor, da direção da escola e também
dos titulares das atribuições de atendimento à criança e ao adolescente em situação de
dificuldade, como proposto, pelo Sistema de Proteção Especial, com suas medidas e programas
de proteção especial, no Estatuto da Criança e do Adolescente.
4.2Gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamentalO ensino da primeira à
oitava série deve ser oferecido gratuitamente a todo brasileiro, inclusive para os que a ele não
tiveram acesso na idade própria. O acesso é direito público subjetivo (parágrafo primeiro do
artigo 208 da Constituição Federal). Vale dizer que o acesso ao ensino fundamental é direito
líquido e certo de qualquer cidadão brasileiro maior de sete anos, exigível do poder público a
qualquer tempo, sem importar a condição pessoal, econômica ou social do inconcluinte. Ainda
não se percebe a mesma condição de liquidez e certeza em relação ao acesso ao ensino médio,
em face da regra programática da progressiva universalização dessa etapa final da educação
básica.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
663
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Afonso Armando Konsen
A obrigatoriedade do ensino fundamental confere aos pais ou ao responsável (guardião
ou tutor) o dever da matrícula. A falta da providência pode significar a prática do delito de
abandono intelectual (artigo 246 do Código Penal). A ausência da matrícula e da regular
freqüência à escola coloca a criança e o adolescente em situação de tutela especial, suscetível
à incidência das chamadas medidas de proteção definidas no artigo 101 do Estatuto. Aos pais
ou ao responsável em falta podem ser aplicadas as medidas previstas no artigo 129 do mesmo
diploma legal referido, inclusive a medida de acompanhar a freqüência e o aproveitamento
escolar do filho. Estarão os pais, ou o responsável, em caso de descumprimento da obrigação,
na condição de autores da infração administrativa capitulada no artigo 249 do Estatuto, pelo
descumprimento de dever inerente ao pátrio poder. Como se vê, a obrigatoriedade não se
restringe tão-só ao dever da matrícula. Alcança a regular freqüência e aproveitamento, condição
inerente ao direito à educação de toda criança e adolescente, direito indisponível não só para
o destinatário da norma protetora, mas para todos os legitimados ao exercício desse direito,
sejam tais legitimados os pais, o professor, o dirigente do estabelecimento educacional ou
qualquer outra autoridade.
A ausência de oferta ou a oferta irregular importa em responsabilidade da autoridade
competente. Não há tipo penal específico para o enquadramento do autor da conduta omissiva,
seja a conduta dolosa ou culposa. No entanto, se comprovada a negligência, a conduta da
autoridade competente pela garantia do oferecimento pode configurar a prática de crime de
responsabilidade (parágrafo quarto do artigo 5º da LDB),
3
como prevêem os diplomas legais
específicos sobre a matéria. O comportamento omissivo poderia ser enquadrado, ainda, na
hipótese do desvio dos recursos públicos para outras finalidades, na lei da improbidade
administrativa.
4.3Atendimento especializado aos portadores de deficiênciaO esforço pela inclusão
social da pessoa portadora de deficiência merece especial destaque na atual legislação brasileira,
o que passou a ser um dos principais objetivos da assistência social (artigo 203, incisos IV e V,
da Constituição Federal). A inclusão social do portador de necessidades especiais, na linguagem
dos artigos 58 a 60 da LDB, passa pela inclusão escolar. Por isso, a regra do atendimento
diferenciado, preferencialmente na rede regular de ensino e nas condições explicitadas.
3
O parágrafo terceiro do artigo 5º da LDB prevê a possibilidade de peticionar ao Poder Judiciário na hipótese
da apuração de responsabilidade pela autoridade competente pelo não-oferecimento do ensino obrigatório
e gratuito, ação judicial gratuita e de rito sumário. Não se sabe de que ação pretendeu tratar o legislador no
mencionado dispositivo legal e tampouco quais as sanções a que estaria sujeita a autoridade omissiva. A
citada norma carece de complementação, tanto em seu sentido sancionador como procedimental.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
664
4.4Atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seisA oferta da educação
infantil, sinônimo de creche e pré-escola, passou a ser obrigação do poder público. Não há a
obrigatoriedade da matrícula. No entanto, toda vez que os pais ou o responsável quiserem ou
necessitarem do atendimento, nasce a correspondente obrigação pela oferta. A LDB, ao incumbir
aos Municípios a responsabilidade pela oferta (artigo 11, inciso V), também retirou a creche e
a pré-escola do âmbito das políticas de proteção especial e transferiu todo o encargo para o
sistema educacional. Assim, a creche e a pré-escola não podem mais ser consideradas uma
espécie dos programas de apoio sócio-familiar (artigo 90, inciso I, do Estatuto), como até
então, em geral, vinham entendendo os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, e
tampouco integram as políticas de assistência social de caráter supletivo, mas passaram a se
constituir em política social básica de educação.
4.5 Oferta de ensino noturno regular e adequado às condições do adolescente trabalhador
O gradativo ingresso do adolescente no mercado de trabalho faz parte do roteiro de socialização
dos jovens, especialmente para a juventude originada dentre os economicamente menos
favorecidos. Por isso, a necessária compatibilização entre o trabalho e a freqüência à escola. A
conjugação das disposições do artigo 54, inciso VI, do Estatuto com as do artigo 4º, incisos VI
e VII, da LDB não deixa qualquer dúvida acerca da certeza da obrigação da oferta do ensino
fundamental noturno para o atendimento dos jovens inseridos no mercado de trabalho.
4.6 Atendimento no ensino fundamental por meio de programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde De pouco adiantam as
obrigações da matrícula e da oferta da vaga se o educando não encontrar condições físicas de
comparecer à escola e sentir-se obrigado a freqüentá-la sem os elementos indispensáveis para
o aprendizado. Por isso, é condição inerente à regular oferta de ensino fundamental a oferta
complementar das condições mínimas não só para o comparecimento, mas também para a
permanência proveitosa na escola.
4.7 Direito de ser respeitado pelos educadores O respeito é um dos chamados direitos
fundamentais de toda criança e adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal), na
forma regulamentada pelo artigo 17 do Estatuto, base sobre a qual se assenta a integridade
física, psicológica, moral e cultural do educando, elementos indispensáveis na estrutura curricular
e no quotidiano dos relacionamentos entre crianças, adolescentes e adultos na vida escolar.
4
O direito ao respeito freqüentemente vem sendo confundido como sinônimo da falta de
4
Sobre o tema, ver comentários do educador Antônio Carlos Gomes da Costa, em Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado, Munir Cury e outros, Editora Malheiros, pág. 167.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
665
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Afonso Armando Konsen
legitimidade para o estabelecimento da ordem e da disciplina. Ora, o direito a ser respeitado
não significa a aquisição da liberdade de desrespeitar. Portanto, o respeito, como um dos
elementos integradores do processo educativo, necessita da reciprocidade. Não significa, a
citada garantia do educando, qualquer perda de autoridade do professor ou do dirigente do
estabelecimento de ensino.
A conduta desrespeitosa ao educando criança ou adolescente pode configurar ilícito penal,
como dispõe o artigo 232 do Estatuto.
4.8Direito de contestar os critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares
superiores A cidadania é um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito e
ninguém nasce sabendo exercer todas as prerrogativas inerentes à condição de cidadão. Por
isso, a preparação para o exercício da cidadania é um dos objetivos da educação. A escola,
então, deve oportunizar aos educandos formas de exercer a cidadania. A afirmação do direito
de contestar os critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores (artigo
53, inciso III, do Estatuto), é uma das formas de exercer cidadania. É assim que se aprende.
Os regimentos das escolas é que devem tratar da matéria, com a explicitação das
formalidades de encaminhamento da reclamação do aluno contra a avaliação do seu
aproveitamento.
4.9Direito de organização e participação em entidades estudantis A liberdade de
reunião e de associação é garantia fundamental do cidadão brasileiro (artigo 5º, incisos XVI e
XVII, da Constituição Federal). A organização estudantil é decorrência dessa liberdade. Veda-
se, portanto, à escola, ou ao sistema de ensino, a colocação de impedimentos ou obstáculos à
organização ou à participação do educando em entidades do seu interesse.
4.10Acesso à escola próxima da residência O dispositivo regulamentador não deixa
qualquer dúvida acerca da vedação de se discriminar o educando em relação à freqüência da
escola que o privilegia geograficamente, com o que se impõe aos sistemas de ensino o
estabelecimento de critérios objetivos para a organização da matrícula.
4.11Ciência dos titulares do pátrio poder do processo pedagógico e participação na
definição da proposta educacional Os principais agentes da efetividade da educação dos
filhos são os pais, na qualidade de detentores do pátrio poder. Antes de titulares de direitos,
são os pais atores de obrigações. Se lhes compete responder pela educação, nada mais natural
do que permitir a influência dos pais também na educação escolar dos filhos. A proposição
legal objetiva muito mais do que uma presença meramente contemplativa. Quer a integração
entre os pais e os responsáveis pela escola, a ponto de se comungar a responsabilidade pela
definição da proposta educacional, além da plena ciência do processo pedagógico adotado
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
666
pela escola. A forma de participação dos pais, inclusive a ciência do processo pedagógico,
deve ser objeto de regulamentação pelos respectivos sistemas.
5 O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regular, no Brasil, a doutrina da proteção
integral preconizada pela Convenção sobre os Direitos da Criança,
5
reorganizou todo o sistema
de atendimento. Preocupado em inibir as transferências de problemas e a imposição de soluções
alheias à realidade local, retirou o legislador atribuições até então da Polícia Judiciária e do
Poder Judiciário, órgãos do Estados da Federação, repassando-as para organismos do Município,
a quem coube, como instância mais próxima da população, a tarefa de responder pela
organização, manutenção e controle das estruturas de atendimento. Percebe-se a transferência
de responsabilidades, freqüente queixa dos municipalistas. Mas percebe-se também a
transferência de autoridade.
O principal serviço público de atendimento à criança e ao adolescente, organizado e
mantido pelo Município, é, sem dúvida, o Conselho Tutelar. Legitimados pelo peculiar processo
de escolha e de investidura, compete aos conselheiros tutelares atender à criança e ao
adolescente, assim como aos seus pais ou o responsável, toda vez que se afigurar uma situação
de risco pessoal ou social, quer pela ação ou omissão da sociedade ou do poder público, quer
pela falta, omissão ou abuso dos pais ou do responsável, quer em razão da conduta da própria
criança ou adolescente. Assim, ressalvado o atendimento do adolescente autor de ato infracional,
representa o Conselho Tutelar a porta de entrada do sistema de atendimento, intervenção
concebida sob a perspectiva da promoção social das pessoas envolvidas, mister para a qual o
conselheiro viu-se investido de prerrogativas de autoridade pública. A observação atenta das
suas atribuições e das medidas de sua competência configura no Conselho Tutelar um serviço
público voltado precipuamente para a tarefa de prevenir. Atua na base do tecido social, a partir
da célula mais primária, a família, para acompanhar o processo de socialização do indivíduo.
No momento seguinte, incide em relação aos serviços de saúde e de educação.
Criança sem escola, criança excluída da escola, criança com sintomas de maus-tratos, criança
com faltas injustificadas, criança sem adequado aproveitamento, criança com desvios de conduta
é criança em situação de risco e, em conseqüência, em situação de tutela. Devem agir, lado a
lado, em tais situações, o Conselho Tutelar e a escola. O Conselho não possui a atribuição de
5
O texto da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
20 de novembro de 1989 e assinada pelo governo brasileiro em 26 de janeiro de 1990, foi aprovado pelo
Decreto Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
667
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR
Afonso Armando Konsen
controle sobre a atuação da escola. Reúne, entretanto, legitimidade para verificar o
aproveitamento escolar de determinada criança, não para corrigir a escola, mas para impor aos
pais as providências para a correção, de onde vem a razão para a obrigatoriedade da
comunicação dos casos de maus-tratos, reiteração de faltas, de evasão e dos elevados níveis de
repetência (artigo 56 do Estatuto). Na falta da atuação adequada dos pais e na impossibilidade
de solução pela escola, deve intervir uma nova instância administrativa, um serviço público
especialmente criado para esse fim. Constitui-se, portanto, o Conselho Tutelar, a esfera auxiliar
da escola para a superação das dificuldades individuais da criança e do adolescente com vistas
à permanência e ao sucesso escolar.
6 O Poder Judiciário, mas especificamente o juiz da Infância e da Juventude, é o legitimado
maior para o exercício do poder-dever de garantir os direitos da criança e do adolescente,
dentre os quais está o direito à educação. Assim, seja a oferta ausente ou irregular, situe-se o
interesse no campo individual, difuso ou coletivo, é o Poder Judiciário o destinatário natural
da pretensão.
A exigibilidade do direito à educação sustenta-se nos seguintes pilares básicos: ou a conduta,
por ação ou omissão, é tipificada como ilícito penal, previsão sancionadora na qual o infrator
deve encontrar a retribuição pela ilicitude (como, por exemplo, o delito de abandono intelectual
ou os crimes de responsabilidade ou de improbidade); ou a conduta constitui-se em infração
administrativa (como, por exemplo, a falta de comunicação ao Conselho Tutelar dos casos de
maus-tratos – artigo 245 do Estatuto); ou a conduta representa a prática de infração disciplinar
ou de natureza funcional; ou, por último, a superação da irregularidade pode ser objeto de
provimento judicial específico, ordem a ser buscada em ação própria pelos respectivos
legitimados. Nesse último tópico consiste exatamente o avanço introduzido com o advento do
Estatuto, pela possibilidade jurídica da defesa judicial dos interesses individuais, difusos e
coletivos, dentre os quais o direito à educação.
6
Além dos pais ou do responsável, a principal instituição legitimada para a tomada das
providências de natureza judicial em defesa do direito à educação da criança e do adolescente,
seja a lide individual, difusa ou coletiva, é, sem dúvida, o Ministério Público
7
. Estão legitimados
6
Sobre a defesa judicial do direito à educação, ver Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente,
de Josiane Rose Petry Veronese, Livraria Del Rey Editora, Belo Horizonte, 1996.
7
Ver O Ministério Público e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de Hugo Nigro Mazzilli e Paulo Affonso
Garrido de Paula, Edições APMP, série Cadernos Informativos, 1992.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
668
concorrentemente a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as
associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins
institucionais a defesa dos interesses e direitos da criança e do adolescente. O instrumento de
exigibilidade é a ação civil pública, nos termos normatizados pelo artigo 208 e seguintes do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
7 A possibilidade legal da judicialização do não-oferecimento ou da oferta irregular da
educação escolar certamente não representa a solução para todas as insuficiências da área
educacional. Poderá constituir-se, no entanto, em significativo instrumento de coerção para as
mudanças necessárias e desejadas na legislação brasileira, porque, no dizer de Dom Luciano
Mendes de Almeida, a lei há de contribuir para a mudança da mentalidade na sociedade
brasileira, habituada, infelizmente, a se omitir diante das injustiças de que são vítimas as
crianças e adolescentes. O respeito à lei fará que a opressão e o abandono dêem lugar à
justiça, à solidariedade e ao Amor.
8
8
Citação de Antônio Carlos Gomes da Costa, em É Possível Mudar, Série Direitos da Criança, Malheiros
Editores, p. 07.
MÓDULO VIII
GARANTIA JURÍDICA DO
DIREITO À EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
670
SUMÁRIO EXECUTIVO
O DIREITO À EDUCAÇÃO, como componente do conjunto dos direitos sociais fundamentais,
está inscrito no texto constitucional, com garantia de proteção prioritária. Esse mesmo direito
também participa daquele que caracteriza a doutrina da proteção integral destinada à proteção
do melhor interesse da criança e do adolescente.
Como direito fundamental, a educação, ao lado da vida e da saúde, gozam de prioridade
de atendimento, principalmente em relação às crianças e adolescentes. A educação básica
tornou-se, de maneira indiscutível, o primeiro bloco de conhecimento oferecido à população
infanto-juvenil na busca e concretização da cidadania.
Para garantir o gozo desse direito, a Lei Maior fixou regras e ofereceu instrumentos judiciais
que assegurassem sua efetivação. Além de instituir os instrumentos judiciais, a Constituição
Federal designou seus operadores, legitimando o Ministério Público, as associações e o próprio
poder público para utilizá-los se o compromisso com a educação não fosse respeitado.
É importante conhecer o conteúdo instrumental colocado à disposição dos agentes públicos
e políticos para viabilizar a proteção ou o resgate do direito. Em primeiro lugar, distingue-se a
Constituição Federal, que insculpiu a base garantista do direito fundamental à educação; em
seguida, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que indica as balizas da
obrigação estatal, aprimorando-se na fixação das bases da formação integral da criança,
introjetando preceitos que permitem a possibilidade de um horizonte promissor, e inova ao
precisar a responsabilidade dos dirigentes de estabelecimentos de ensino. Aliada à Constituição
Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 9.394/96) oferece uma definição das bases da educação no país, definindo
seus princípios e fins, sua estrutura organizacional, dos profissionais da educação e do sistema
de recursos para a educação. Além dessas, a Lei nº 7.716/89 define os crimes resultantes de
preconceitos de raça e de cor, penalizando a negativa ou o empecilho de inscrever em permitir
o ingresso de aluno de qualquer grau motivado pela raça ou cor.
Analisado sob a perspectiva legal, o direito à educação vem munido de outros instrumentos
judiciais, que materializam a garantia constitucional, conhecidos por ações judiciais ou
extrajudiciais. Para utilizá-los, os operadores do Direito devem, antes de tudo, identificar o
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
671
direito violado, situá-lo em sua adequada categoria para, depois, escolher o remédio
constitucional apropriado para sua defesa.
Muitas vezes, a proteção do direito, principalmente do direito à educação, não se
circunscreve apenas no âmbito individual, mas abrange latitude maior, de prevalência coletiva
e, até mesmo, difusa, conduzindo o analista e executor da ação restauradora a situá-lo no
âmbito dessas hipóteses para precisar a jurisdição.
Assim, a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos pode ser
efetivada tanto na área administrativa quanto na judicial. Como exemplo de resgate daqueles
direitos, na via administrativa, temos a atuação dos Conselhos Tutelares, com suas funções
definidas no artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente; dos procedimentos
administrativos de competência do Ministério Público, conferidos pela Constituição Federal
no artigo 129, VI e VIII, e o inquérito civil, criado pela Lei nº 7.347/85, instrumento preparatório
da ação civil pública,
O inquérito civil é, pois, um procedimento administrativo investigatório, que somente o
Ministério Público pode instaurar. Seu objeto é a coleta de elementos de convicção que sirvam
de fundamento à propositura de uma ação civil pública.
Para que esse procedimento investigatório atinja o seu objetivo algumas regras devem ser
seguidas, tais como: (a) da competência, designada pelo local onde ocorreu ou deva ocorrer a
ação ou omissão, ressalvada a competência da Justiça Federal e a competência originária dos
Tribunais Superiores; (b) da publicidade, que determina que o inquérito civil deva ser
franqueado aos interessados, com as ressalvas dispostas no artigo 20 do código de Processo
Penal; (c) do controle da legalidade, no que se refere ao seu arquivamento e aos atos nele
praticados em confronto com a lei; (d) da aplicação subsidiária do Código de Processo Penal
no que diz respeito à instauração, instrução e princípio da obrigatoriedade da ação e do
arquivamento do inquérito civil; (e) a participação do Conselho Superior do Ministério Público,
como órgão fiscalizador da pertinência do seu arquivamento.
O inquérito civil não é processo e sim procedimento. Ele não é um fim em si mesmo, não
é contraditório, não há nele acusações ou aplicação de sanções; nele não se restringem direitos
nem se decidem interesses. Sua função é colher elementos ou informações para a formação de
convicção para eventual propositura da ação civil pública. Em vista disso, o Ministério Público,
ao presidir o inquérito civil, tem o poder de expedir notificações e requisições, respeitadas as
prerrogativas legais e o direito de algumas autoridades na demarcação de dia e hora para
serem ouvidas.
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
672
Após a análise prévia das informações e documentos carreados para o inquérito civil, um
dos co-legitimados pelo artigo 21, da Lei nº 7.347/85, a saber, o Ministério Público, a União,
Estados, Municípios e Distrito Federal, as autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades
de economia mista, as associações civis constituídas há pelo menos um ano, com finalidades
institucionais compatíveis com a defesa de interesses transindividuais, os sindicatos e as
comunidades indígenas, poderão iniciar a ação pública.
No sentido doutrinário, ação civil pública é a ação não penal e tem como meta o resgate
do direito e/ou interesse transindividual violado. Nessa tarefa, possibilitou, a lei, o litisconsórcio
entre os órgãos estaduais e federais do Ministério Público, concorrendo, também, para permitir
uma colaboração mais eficaz entre cada uma das instituições co-legitimadas.
Na ação civil pública, os co-legitimados não buscam direito próprio, mas interesses
transindividuais. Por isso, a lei admitiu a possibilidade de compromissos de ajustamento ou
transação para imprimir maior rapidez à solução dos conflitos.
Por fim, a ação civil pública ou coletiva – e, tampouco, o inquérito civil – não poderão ser
utilizados para a apuração dos atos administrativos calcados nos critérios da oportunidade e
conveniência do administrador, cuja discricionariedade somente poderá ser aferida pela própria
administração. Isso não significa, entretanto, que não se possa instaurar inquérito civil ou
propor ação civil pública diante da falta de vagas para crianças e adolescentes nas escolas ou
diante da inexistência ou insuficiência quantitativa ou qualitativa de ensino fundamental. Nesse
caso, os fins a serem atingidos pela administração serão sempre sobre atos vinculados e não
sobre os discricionários.
Vale lembrar que a ação civil pública revolucionou a ordem jurídica nacional ao permitir a
expansão de co-legitimados ativos e indicação da proteção de direitos antes sujeitos ao
procedimento processual ordinário, que impedia, muitas vezes, resultados satisfatórios, em
razão de sua morosidade.
Com essa nova ordem jurídica, os direitos infanto-juvenis, principalmente o da educação,
poderão ser exigidos com maior rapidez e eficiência, pois permite a utilização de procedimentos
eficazes e conduz os operadores do Direito a um compromisso com o restabelecimento da
cidadania.
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
673
21
CAPÍTULO
A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
E SEUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE
Munir Cury*
SUMÁRIO
1 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL ..... 674
2 CONTEÚDO INSTRUMENTAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 678
* Procurador de Justiça aposentado, consultor e advogado.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
674
1 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O direito fundamental à educação assegurado a todas as crianças e adolescentes, de forma
indiscriminada e universal, está insculpido na doutrina da proteção integral a qual, de forma
absolutamente inovadora e revolucionária, veio abrir novos horizontes para o atendimento da
população infanto-juvenil brasileira.
Mas, o que significa essa não-discriminação e universalidade, no contexto de um país
marcado pela pobreza, pelo desemprego, por problemas sociais, econômicos e políticos agudos
e que parecem não ter fim? Mesmo assim, é possível falar em não-discriminação e universalidade
da educação? Pensamos que sim, aliás, estamos seguros da sua possibilidade, mesmo porque
constituem pressupostos para a efetivação do Estado Democrático de Direito que tem como
fundamento “a cidadania” e “a dignidade da pessoa humana” (CF, art. 1º, II e III). Como se não
bastasse, a legislação infra-constitucional estabelece precisamente os instrumentos legais e
mecanismos processuais para que esse direito, assim como os demais direitos fundamentais,
sejam garantidos.
Nesse sentido, inúmeras louváveis iniciativas despontam no panorama jurídico nacional,
em vários estados da Federação, contemplando os mais diversos aspectos do direito à educação,
comprovando explícita e matematicamente a viabilidade da sua garantia. Tais iniciativas, diga-
se de passagem, não constituem atos extraordinários da atuação institucional de seus membros,
mas o cumprimento do dever de cada um deles perante a nação e o povo. Aliás, trata-se de
decorrência natural do imperativo constitucional previsto nos artigos 127 e seguintes. Ou “a
defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127) não compreendem o
direito à educação entre outros tantos? Ou ainda, não seriam funções institucionais do Ministério
Público “a proteção dos interesses difusos e coletivos” (CF, art. 129, III), entre os quais o direito
à educação, através da promoção de inquérito civil e ação civil pública? Ainda mais precisamente,
o Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve, em seu artigo 208, o sentido, a finalidade, o
mecanismo e a forma de viabilizar e encarnar tal garantia.
A doutrina da proteção integral, verdadeiro marco histórico representado pela promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), é uma decorrência
natural da regra estabelecida pela Constituição Federal de 1988.
No entanto, a concepção de reconhecer proteção integral para a criança e o adolescente
não é nova. Já a Declaração de Genebra de 1924 determinava “a necessidade de proporcionar
à criança uma proteção especial”; da mesma forma que a Declaração Universal dos Direitos do
Homem das Nações Unidas (Paris, 1948) apelava ao “direito a cuidados e assistência especiais”;
na mesma orientação, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
675
CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE
Munir Cury
1969) alinhavava, em seu artigo 19: “Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua
condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”.
A proteção integral dispensada à criança e ao adolescente encontra suas raízes mais
próximas na Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações
Unidas em 20 de novembro de 1989 e pelo Congresso Nacional brasileiro em 14 de setembro
de 1990, por meio do Decreto Legislativo nº 28. A ratificação ocorreu com a publicação do
Decreto 99.710, em 21 de novembro de 1990, pelo qual o presidente da República promulgou
a Convenção, transformando-a em lei interna.
O mundo moderno prioriza, de maneira uniforme e indiscutível, o chamado primeiro
bloco de conhecimento como garantia à população infanto-juvenil. Esse bloco de conhecimento
a Lei de Diretrizes e Bases identifica e denomina educação básica, composta pela educação
infantil, fundamental e média, onde se encontram as duas etapas de educação destinada às
crianças e adolescentes. A esse respeito, a doutrina da proteção integral, além de universalizar
o ensino no seu mais amplo e inovador sentido, acentua o dever do Estado com a educação
mediante o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (
CF,
art. 208, IV), reconhecendo que o processo formativo da pessoa humana é contínuo, dinâmico
e crescente, acompanhando-a desde os primórdios de seu nascimento. Devemos nos reportar,
nesse sentido, a dispositivo constucional inserido no capítulo “Dos Direitos Sociais”, que garante
aos filhos e dependentes dos trabalhadores rurais e urbanos a “assistência gratuita desde o
nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas” (CF, art. 7º, XXV), “com o objetivo
de melhoria de sua condição social”. Tal circunstância, embora possa aparentemente significar
mera garantia do direito à educação, o que, por si só, seria de grande alcance, na verdade, tem
como condão inserir a criança no vasto elenco de direitos básicos formativos da sua cidadania.
É sabido, ademais, que esse desejável estágio somente é alcançado na medida em que, desde
a infância, à criança são assegurados, promovidos e efetivados os vários direitos elencados no
artigo 227 da Constituição Federal. A educação, considerando o tema que nos é proposto, é
um deles.
Em relação às crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade, é dever do Estado garantir
o “ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que não tiveram acesso na
idade própria” (CF, art. 208, I e ECA, art. 54,I).
Ao se estabelecer a educação como “direito fundamental” que, como vimos, é princípio
consagrado pela Constituição Federal e pela legislação infra-constitucional, o legislador confessou
explicitamente o seu pensamento de que educação e direito têm o seu nexo estrito e lógico.
Mesmo porque de nada valeria fixar as regras do sistema de educação se não fossem
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
676
rigorosamente previstos os instrumentos para a sua efetivação; e tais instrumentos somente no
Direito, através da legislação e de seus aplicadores, encontram o caminho para a sua realização.
Na história da humanidade e, em particular, do povo brasileiro e dos países em via de
crescimento, o direito à educação tem sido uma árdua conquista, que encontra os seus maiores
obstáculos não só na pobreza da população, mas também na visão cultural do conceito de
educação, na participação da própria família na proposta pedagógica de seus filhos, e no
envolvimento da sociedade organizada na vida e atividade escolares. Tanto é verdade que
representantes dos nove países em desenvolvimento mais populosos do mundo (China,
Indonésia, México, Índia, Paquistão, Bangladesh, Egito, Nigéria e Brasil), reunidos em Recife
no mês de fevereiro de 2000 para avaliar os compromissos assumidos quando do Fórum Mundial
de Educação para Todos, realizado na Tailândia em 1990, decidiram “priorizar a educação para
todos, com ênfase na erradicação do analfabetismo”. Embora existam grandes disparidades
educacionais entre os países, os respectivos ministros da Educação firmaram a chamada
“Declaração de Recife”, valendo destacar os seguintes pontos, além do já mencionado, pela
relevância e unidade com o tema ora exposto:
“aumentar o número de alunos que completam a educação básica, média e superior; inclusão
total de crianças portadoras de deficiências no ensino regular; garantir o acesso à educação à população
que vive em áreas de difícil acesso; aumentar a participação da sociedade civil na promoção do
aprendizado básico”.
São inegáveis as dificuldades, os problemas e os obstáculos que se apresentam atualmente
ao êxito do sistema educacional no nosso país. Inegáveis, porém, não insuperáveis. O
combustível para a sua ultrapassagem deve ser, de um lado, a espectativa da própria população
escolar, crianças e adolescentes que representam a esperança e futuro da nação; de outro, o
gravame que pesa sobre os responsáveis, inclusive operadores do Direito, na efetivação do
direito à educação previsto na Constituição Federal e nas leis. Entre tais operadores, pela
relevância de suas atribuições e compromissos, destacam-se juízes e promotores de Justiça da
Infância e da Juventude.
A atuação na tutela de interesses sociais de natureza coletiva, como a defesa dos direitos
de crianças e adolescentes, colocaram o Ministério Público diante de desafios praticamente
inexistentes até a década de 1980. Talvez o mais importante deles tenha sido e esteja sendo a
inestimável contribuição na formulação ou mesmo redirecionamento das políticas públicas
estatais. São freqüentes as ações propostas contra o próprio Estado, demandando a efetivação
de direitos sociais, implementação de políticas de amparo a crianças, educação, além de meio
ambiente, consumidor, defesa de minorias, etc.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
677
CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE
Munir Cury
Modernamente, pode-se afirmar, sem possibilidade de erro, que o Ministério Público é
uma das principais ferramentas de implementação do Direito Social, cuja natureza envolve
diretamente a definição de políticas públicas.
Em trabalho apresentado no painel “Latin American Studies Association”, durante o
Congresso Internacional “Social Justice: Past Experiences and Future Prospects”, realizado no
período de 23 a 26 de setembro de 1998, na cidade de Chicago, Illinois (EUA), o ilustre promotor
de Justiça paulista Ronaldo Porto Macedo Jr. assim se manifestou:
“no moderno Direito Social cria-se uma solidariedade que regula conflitos. Há solidariedade
nos prejuízos, no sofrimento, no combate à exploração do fraco, etc., a qual visa a pacificação
social. Tal característica do Direito Social implica no abandono (ao menos parcial) da concepção
liberal clássica de igualdade entre todos os indivíduos. O Direito Social passa a ser, então, um
“direito das desigualdades” (se entendermos igualdade numa concepção formal e liberal), um
direito dos privilégios, um direito dos grupos, um direito que procura socializar os riscos e perdas
sociais, que variam conforme os grupos e situações sociais envolvidos. O direito não pode mais ser
a mera expressão de um indivíduo, mas sim de uma categoria ou grupo (como por exemplo dos
consumidores, inquilinos, trabalhadores, etc.). Por outro lado, é certo, a universalidade da expressão
“igualdade” torna-se um instrumento de dominação, opressão e manutenção de desequilíbrios.
Dentro deste novo contexto, o Direito Social torna-se um instrumento de governo, na medida em
que orienta os critérios de legitimação das políticas sociais. Os direitos especiais e privilégios são
distribuídos de acordo com sistemas políticos de pesos e contrapesos.” (c.f. “Plural” – Boletim
Informativo da Escola Superior do Ministério Público/SP, ano 4, nº 22, dezembro/99, pág. 2/10).
A Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996, ao modificar o artigo 60 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acabando com a obrigação de eliminar o
analfabetismo e universalizar o ensino fundamental em dez anos, deu-lhe nova redação
restabelecendo o novo prazo também de dez anos a partir da promulgação da emenda, devendo
Estados, Distrito Federal e Municípios destinar não menos de 60% (sessenta por cento) dos
recursos previstos no artigo 212 “à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental,
com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna
do magistério.” Em seu parágrafo 1º, o mesmo artigo 60 cria o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, constituído
por, pelo menos, 15% (quinze por cento) dos recursos a que se referem os arts. 155,II; 158,IV;
e 159,I, a e b, da Constituição Federal, e será distribuído em cada Estado e seus Municípios,
proporcionalmente ao número de alunos nas respectivas redes de ensino fundamental” (art. 60, § 2º).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
678
Entrando agora na segunda fase do mesmo período então estabelecido, as várias esferas
da Federação têm o dever de, cada qual no âmbito de suas atribuições, desenvolver um esforço
ainda mais acelerado visando à manutenção e o desenvolvimento do ensino fundamental,
“com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna
do magistério”.
E é exatamente nessa etapa histórica que surge, diante do instrumental existente, a
possibilidade de agilizar e aprimorar a garantia desse direito fundamental a todas as crianças
e adolescentes, seja por meio de fornecimento de subsídios como também por meio de articulação
entre os operadores do Direito nos vários Estados da Federação.
2 CONTEÚDO INSTRUMENTAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Ao operador do Direito, especialmente diante do desafio que representa garantir
judicialmente o direito à educação a toda criança e adolescente, indiscriminada e universalmente,
interessa sobremaneira conhecer os diplomas que poderão auxiliá-lo nessa atividade,
aparelhando-o e capacitando-o ao desencadeamento de seu dever funcional e cívico. Ainda
que os conheça e já os tenha incorporado no seu cotidiano, parece-nos, no entanto, nunca ser
demais a apresentação desse precioso mosaico, cujas pedras ligam-se harmoniosamente no
resultado finala construção da cidadania das crianças e adolescentes brasileiros.
Mesmo que nos detenhamos especificamente na educação escolar, é aconselhável inseri-
la num contexto mais abrangente, ainda que de relance, lembrando o recente relatório “Situação
Mundial da Infância-2000”:
“A educação não começa no momento em que a criança entra na escola, nem termina
quando o sinal toca indicando o fim das aulas. O aprendizado tem início no nascimento;
acontece no seio da família, no bairro, na comunidade, durante brincadeiras. Os professores
da vida são os pais, os irmãos, outras crianças, os locais de trabalho, os meio de comunicação.
Uma educação básica de qualidade é um dos direitos humanos.... Mesmo diante de obstáculos,
as crianças abraçam a oportunidade de aprender sobre o mundo que as cerca e de desenvolver
suas habilidades pars serem bem sucedidas – pensamento crítico, auto confiança, capacidade
para solucionar problemas e para trabalhar com outras crianças. Com o crescimento e o
desenvolvimento das crianças, estas habilidades irão ajudá-las não apenas no desempenho de
sua vida diária, mas também na transformação do seu futuro” (UNICEF, p. 56/58).
Isto porque muitos dos instrumentos legais que serão analisados em seguida, poderão ser
utilizados para garantir os direitos fundamentais da infância e da juventude.
O procurador de Justiça do Estado de São Paulo e então presidente da Associação Brasileira
de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude Paulo Afonso Garrido de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
679
CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE
Munir Cury
Paula, analisando a educação como bem fundamental da vida e um dos atributos da própria
cidadania, em seu artigo “Educação, Direito e Cidadania” entende, por educação “em sentido
amplo,o atendimento em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade, o
ensino fundamental, inclusive àqueles que a ele não tiveram acesso na idade própria, o ensino
médio e o ensino em seus níveis mais elevados, inclusive aqueles relacionados à pesquisa e à
educação artística.” E conclui: “contempla, ainda, o atendimento educacional especializado
aos portadores de deficiência, prestado, preferencialmente, na rede regular de ensino”
(“Cadernos de Direito da Criança e do Adolescente”, volume I, Editora Malheiros, pág. 94).
Isto posto, passamos a apontar os principais instrumentos que objetivam garantir a educação
escolar que, como dissemos acima, constituem a base sobre a qual a Justiça da Infância e da
Juventude forjará a cidadania dos destinatários – crianças e adolescentes.
A Constituição Federal de 1988, que o prof. Moacir Gadotti denomina de “cidadã”, porque
“estabelece a educação como um dever do Estado, mas também dever da família, da sociedade
e de todos, mas só o Estado pode dar conta do atraso educacional” (“Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado”, Editora Malheiros, pág. 181), reafirmou em seu artigo 22, XXIV, que
a competência legislativa para disciplimar as diretrizes e bases da educação nacional pertence
à União. Competindo à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente
sobre educação, cultura, ensino e desporto (CF, art. 24, IX), seguindo o modelo federativo
adotado no Brasil, distinguimos desde logo as diretrizes gerais para a educação nacional, de
domínio exclusivo da competência da União, e a legislação suplementar da competência
concorrente da União, Estados e Distrito Federal.
Consistindo em direito público subjetivo, relacionado à cidadania e à dignidade da pessoa
humana (CF, art. 205), a educação assume no texto constitucional a característica fundamental
de essência para o desenvolvimento da pessoa humana e do país.
Estabelecido o parâmetro inicial da pirâmide em cujo vértice encontram-se as disposições de
caráter geral fixadas pela Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
Federal nº 8.069/90) passa a indicar as balizas dessa obrigação estatal, desenvolvendo-as de
molde a efetivar gradual e solidamente a conquista do clamor do constituinte. Não só proclamando
a educação como um direito, mas orientando-o ao pleno desenvolvimento do destinatário,
“ao preparo para a cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade
de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus
educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer a instâncias escolares
superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantís; V – acesso à escola
pública e gratuita próxima de sua residência” (art. 53).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
680
Ademais, garante o ECA “o direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo
pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais” (art. 53, parágrafo
único). Lança raízes cada vez mais profundas na formação global da personalidade da criança
(art. 54), assegurando o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
“não tiveram acesso na idade própria” (art. 54, I); a “progressiva extensão da obrigatoriedade
e gratuidade ao ensino médio (art. 54, II); o “atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 54, III); o
“atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (art. 54, IV); o
“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a
capacidade de cada um” (art. 54, V); a “oferta de ensino noturno regular, adequado às condições
do adolescente trabalhador” (art. 54, VI); e, por derradeiro, o “atendimento no ensino
fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde” (art. 54,VII).
Estabelece, além disso, a obrigação dos pais ou responsável de matricular os filhos na
rede regular de ensino (art. 55), fixando deveres dos dirigentes de estabelecimentos de ensino
(art. 56), passando a introjetar preceitos que permitem a possibilidade de um horizonte
promissor (arts. 57 e 58), para, finalmente, enfatizar que “os Municípios, com apoio dos Estados
e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações
culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude” (art. 59).
Prosseguindo a linha descendente dos textos que constituem instrumentos destinados à
garantia da educação escolar, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação ( Lei Federal nº 9394/96)
“não pretendeu jamais tornar-se um diploma único da educação no Brasil. Não veio para
cumprir papel de Lei Orgânica da Educação, esgotando a disciplina jurídica do assunto.
Estruturou-se na definição apenas do que se entende por diretrizes e bases da educação”
(Maurício Antonio Ribeiro Lopes, “Comentários à Lei de Diretrizes e Bases da Educação”,
Editora Revista dos Tribunais, pág. 28). Realmente, o seu texto organiza o sistema legal, definindo
as disposições gerais (art. 1º), princípios e fins da educação nacional (arts. 2º e 3º), do direito
à educação (arts. 4º a 7º), da organização da educação nacional (arts. 8º a 20), da educação
básica (arts. 22 a 28), da educação infantil (arts. 29 a 31), do ensino fundamental (arts. 32 a 34),
do ensino médio (arts. 35 e 36), da educação de jovens e adultos (arts. 37 e 38), da educação
profissional (arts. 39 a 42), da educação superior (arts. 43 a 57), da educação especial (arts. 58
a 60), dos profissionais da educação (arts. 61 a 67) e dos recursos financeiros para a educação
(arts. 68 a 77).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE
Munir Cury
Além disso, a publicação “Marcos Legais”, organizada e promovida pelo PRASEM – Programa
de Apoio aos Secretários Municipais de Educação, e destinada “a elevar a competência técnico-
administrativa das Secretarias Municipais de Educação, em resposta à crescente importância
dos Municípios no ensino fundamental”, representa importante coletânea de toda a legislação,
decretos, portarias e resoluções relacionadas à matéria, servindo de importante subsídio à
efetivação judicial da garantia do direito à educação.
Também o Código Penal estabelece em seu artigo 246 o tipo penal do abandono intelectual,
nele incorrendo todo aquele que “deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de
filho em idade escolar.”
Finalmente, cabe-nos mencionar a Lei Federal nº 7.716/89, que define os crimes resultantes
de preconceitos de raça e de cor, preceituando em seu artigo 6º que: “recusar, negar ou impedir
a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer
grau” constitui crime apenado com reclusão de três a cinco anos, e, se praticado contra menor
de dezoito anos, a pena é agravada de um terço. Ademais, responde por delito inafiançável a
pessoa que nega acesso a estabelecimento de ensino em decorrência de raça ou cor.
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
683
22
CAPÍTULO
OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli*
SUMÁRIO
1 A DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NA ESFERA ADMINISTRATIVA E JUDICIAL ..... 684
2 O INQUÉRITO CIVIL ..... 685
3 A NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO CIVIL ..... 700
4 O ALCANCE DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NA ÁREA DA NOTIFICAÇÃO E DA REQUISIÇÃO ..... 701
5 O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO: CONTEÚDO E EFICÁCIA ..... 702
6 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA ..... 704
7 A LEGITIMAÇÃO E O INTERESSE DE AGIR
EM DEFESA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS ..... 705
8 O LITISCONSÓRCIO ENTRE ÓRGÃOS
ESTADUAIS E FEDERAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 707
9 A POSSIBILIDADE DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA ..... 708
10 OS ÔNUS E O CUSTEIO DA PROVA ..... 709
11 O CONTROLE EXTERNO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS:
LIMITES ENTRE A DISCRICIONARIEDADE E A LEGALIDADE ..... 710
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 711
* Advogado, procurador de Justiça aposentado e professor da Escola Superior do Ministério Público do Estado de
São Paulo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
684
1 A DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NA ESFERA ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
O Direito tradicionalmente se preocupou com a defesa tanto dos interesses do Estado
como dos indivíduos, e veio exigindo, de regra, fosse ela exercitada pelos próprios lesados.
Nas últimas décadas, porém, surgiu de forma mais acentuada a consciência de que deveria
haver um sistema especial para a defesa de grupos de pessoas que tivessem compartilhado
danos comuns: assim, os moradores de uma mesma região comungam dos mesmos interesses
a um meio ambiente sadio; os consumidores de um produto determinado comungam de idênticos
interesses quanto à sua qualidade; os contribuintes estão unidos pela mesma pretensão de
combater o aumento ilegal do tributo a que estão sujeitos.
Ora, o sistema tradicionalpelo qual cada lesado defende o próprio interesseleva a
sérias distorções, pois as milhares ou milhões de ações individuais, sobre serem impraticáveis,
levariam a decisões jurisdicionais inevitavelmente contraditórias, o que prejudicaria a economia,
a celeridade, a segurança e a justiça do processo judicial como meio de solução das lides.
Em nosso país, especialmente a partir da Lei n
o
7.347, de 24 de julho de 1985 (conhecida
como Lei da Ação Civil Pública), cuidou-se de instituir regras especiais para a defesa de
interesses de grupos de pessoas, especialmente no tocante a legitimação para agir, coisa julgada,
fundo para reparação dos danos.
Conhecer os principais princípios e regras da defesa de interesses transindividuais passou
a interessar a toda a família jurídica e à sociedade civil em geral, destinatária final dessa tutela,
até porque os organismos não governamentais também detêm importantes responsabilidades
no combate às lesões aos grupos, como é o caso da legitimação das associações civis para a
ação civil pública.
Os interesses transindividuais ou coletivos, em sentido lato, referem-se, pois, a grupos de
pessoas (como os condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os alunos ou os pais
de alunos do mesmo estabelecimento de ensino, os membros de uma equipe esportiva, os
empregados do mesmo patrão). Os interesses transindividuais excedem o âmbito estritamente
individual mas não chegam a constituir interesse público, em sentido estrito, pois este é o
interesse do Estado (v.g., o ius puniendi) ou, então, o interesse abstrato da sociedade como
um todo (v.g., o interesse público primário, na concepção de Renato Alessi).
Em nosso Direito, os interesses de grupos passaram a ser classificados de acordo com sua
divisibilidade, sua abrangência e sua origem (Código de Defesa do ConsumidorCDC, artigo 81,
parágrafo único). Assim, difusos são os interesses que não podem ser quantitativamente divididos
entre os integrantes de um grupo indeterminável de pessoas, reunidas pela mesma situação de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
685
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
fato (p. ex., os moradores de uma mesma região, alcançados por um acidente ecológico). Coletivos,
em sentido estrito, são os interesses que também não podem ser quantitativamente partilhados
entre os integrantes de um grupo já agora determinado ou determinável de pessoas, que se
encontram unidas por uma relação jurídica comum (p. ex., os pais de alunos que se rebelam
contra o aumento ilegal de mensalidades escolares). Por fim, individuais homogêneos são os
interesses que podem ser quantitativamente divididos entre os integrantes de um grupo
determinado ou determinável de pessoas, unidas pela mesma situação de fato (p. ex., os
consumidores do mesmo bem produzido em série, com o mesmo defeito).
Embora os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos sempre tenham existido,
só últimos anos é que se acentuou, pois, a preocupação em identificá-los e protegê-los
jurisdicionalmente, reconhecidas suas especificidades, como no tocante à legitimação ativa e
aos efeitos da coisa julgada [Mazzilli, 2000].
Para a defesa na área cível dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos,
bem como para a defesa do próprio interesse público, existem as chamadas ações civis públicas
ou ações coletivas, que podem ser movidas pelo Ministério Público, pelas pessoas jurídicas de
Direito Público interno, pelas associações civis e outros co-legitimados, de forma concorrente
e disjuntiva.
Para preparar-se para a propositura da ação civil pública, o primeiro dos co-legitimados, o
Ministério Público, dispõe de um instrumento pré-processual de investigaçãoo inquérito civil.
2 O INQUÉRITO CIVIL
(a) Criação
O inquérito civil foi criado pela Lei federal n
o
7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação
Civil Pública), e, depois, consagrado na Constituição (artigo 129, III). A partir de então, passou
a ser referido por diversos diplomas legislativos (p. ex., Código de Defesa do Consumidor,
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n
o
8.625/93, Lei Complementar n
o
75/93 etc.).
Por semelhança com o inquérito policial, que é o meio normal de que se vale o Ministério
Público para preparar-se para a propositura da ação penal pública, surgiu gradativamente a
consciência de que, também na área civil, deveria haver um mecanismo de investigação
administrativa para aparelhar o Ministério Público a colher dados para a propositura da ação
civil pública. Reconheceu-se que, para o correto exercício de suas diversas funções, criminais
ou não, era preciso que essa instituição dispusesse de meios diretos de investigação, para
apurar os fatos que suportam sua iniciativa processual nas diversas áreas de atuação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
686
(b) Conceito
O inquérito civil é, pois, um procedimento administrativo investigatório a cargo do Ministério
Público; seu objeto é a coleta de elementos de convicção que sirvam de base à propositura de
uma ação civil pública para a defesa de interesses transindividuaisou seja, destina-se a colher
elementos de convicção para que, à sua vista, o Ministério Público possa identificar ou não a
hipótese em que a lei exige sua iniciativa na propositura da ação civil pública.
Só o Ministério Público está autorizado a instaurar inquérito civil; não os demais co-
legitimados à ação civil pública. A União, os Estados, os Municípios, as autarquias, as empresas
públicas, as sociedades de economia mista, as fundações ou as associações civis são também
co-legitimados à propositura da ação civil pública ou coletiva; antes de propô-la, é natural que
recolham elementos de convicção necessários, e farão isso em procedimentos interna corporis
quaisquer, mas inquérito civil propriamente dito, só o Ministério Público pode instaurar. Na
forma como foi concebido na Lei n
o
7.347/85 e legislação subseqüente, e com os efeitos jurídicos
que a lei lhe confere, trata-se de instrumento exclusivo do Ministério Público.
1
É incorreta a expressão inquérito civil público. Usa-se a expressão ação civil pública em
contraposição à ação civil privadamas, como não existe inquérito civil privado, não há falar
em inquérito civil público. Com efeito, admitir houvesse inquéritos civis públicos seria,
forçosamente, admitir a existência de inquéritos civis privados. E, se fossem inquéritos civis
privados as investigações particulares levadas a efeito não pelo Ministério Público mas pelos
demais co-legitimados à ação civil pública (como as associações civis), forçoso seria concluir
que essas investigações seriam inquéritos civis no sentido lato, e, como a lei não distinguiria,
sua instauração também obstaria à decadência e sujeitaria seu arquivamento ao controle do
Ministério Público, o que obviamente não ocorre (Lei n
o
8.078/90, artigo 26, § 2
o
, III, e Lei n
o
7.347/85, artigo 9
o
).
(c) O inquérito civil é indispensável?
Embora normalmente seja o inquérito civil o meio usual e de grande utilidade para que o
Ministério Público colha elementos aptos à propositura da ação civil pública, há várias hipóteses
em que poderá ser dispensado, como em caso de: (a) urgência (como no ajuizamento de medida
cautelar); (b) existência prévia de peças de informação suficientes (documentos extraídos de
outros autos; processo administrativo; autos ou peças recebidas do Tribunal de Contas etc.).
1
Efeitos: óbice à decadência (artigo 26, § 2
o
, III, do Código de Defesa do Consumidor) e obrigatório controle
de arquivamento pelo Conselho Superior do Ministério Público (artigo 9
o
da Lei n
o
7.347/85).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
687
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
A Constituição assegura que o Ministério Público pode instaurar procedimentos
administrativos de sua competência (artigo 129, VI e VIII). Ora, em questões que possam ensejar
a propositura de ação civil pública pela instituição, sem dúvida é o inquérito civil o sistema
próprio de investigação, sujeito a um adequado sistema de controle de arquivamento.
(d) Efeitos da instauração
Desde a instauração até o encerramento do inquérito civil, obsta-se à decadência do direito
que tem o consumidor de reclamar dos vícios aparentes ligados ao fornecimento de serviço ou
produto (CDC, artigo 26, § 2
o
, III).
Instaurado o inquérito civil, permite-se ainda que, dentro dos autos, sejam expedidas
requisições e notificações, com condução coercitiva para comparecimento, nos casos da lei
(Constituição, artigo 129, VI; Lei n
o
8.625/93, artigo 26, I; Lei Complementar n
o
75/93, artigo 8
o
).
Em tese, no bojo do inquérito civil poderá ocorrer crime de falso testemunho ou falsa
perícia (Código Penal, artigo 342) [Mazzilli, 1999, cap. 11].
Enfim, os elementos de convicção colhidos no inquérito civil terão valor subsidiário em
juízo, desde que não afrontados por provas de maior hierarquia colhidas sob a égide do
contraditório [Mazzilli, op. cit., cap. 2].
(e) Modo de instauração
O inquérito civil pode ser instaurado por meio de portaria ou despacho do órgão do
Ministério Público, proferido em requerimento, ofício ou representação que lhe sejam
encaminhados, ou então, até mesmo pode ser instaurado de ofício.
(f) Objeto do inquérito civil
A propósito do objeto do inquérito civil, a primeira questão que costuma ser colocada diz
respeito a saber se nele só podem ser apuradas lesões a interesses transindividuais (interesses
difusos, coletivos individuais homogêneos), ou se ele pode ser usado para investigar lesões a
quaisquer interesses que ensejem a proteção pelo Ministério Público, sejam transindividuais
ou não. Em outras palavras, a questão é saber se, por meio do inquérito civil, poderia o
Ministério Público investigar previamente fatos que ensejassem a propositura de quaisquer
outras ações civis públicas a seu cargo, além daquelas para defesa de interesses difusos e
coletivos, em sentido lato (como a ação de nulidade de casamento, a ação rescisória, a ação
direta de inconstitucionalidade, a ação de destituição de pátrio poder e as ações para defesa
de interesses individuais indisponíveis).
Para uns, o Ministério Público não poderia fazê-lo, pois a instauração de inquérito civil
estaria limitada aos objetivos específicos da Lei n
o
7.347/85, que o instituiu, e das outras leis
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
688
que dizem respeito à só defesa de interesses difusos e coletivos. Para outros, entretanto, poderia
instaurá-lo não só nesses casos, como em todas as hipóteses de atribuições afetas ao Ministério
Público.
Para nós, esta última é a solução preferível, não apenas por aplicação analógica da Lei n
o
7.347/85, mas em decorrência do sucessivo alargamento de objeto do inquérito civil, trazido
pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 90), pela Constituição (artigo 129, III) e pelas
Leis Orgânicas do Ministério Público (LONMP, artigo 26, I; LOMPU, artigo 6
o
, VII, c, e 38, I). É o
posicionamento que temos defendido [Mazzilli, 2000 e 1999], com endosso da doutrina de
Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz
2
e de Nelson Nery Júnior e Rosa Nery, para quem,
em correta conclusão, o inquérito civil pode, eventualmente, até mesmo servir de base para a
propositura de ação penal.
3
Assim, além da investigação de danos a interesses diretamente objetivados na Lei n
o
7.347/
85 (meio ambiente, patrimônio cultural, consumidor, ordem econômica e outros interesses
difusos e coletivos), hoje o Ministério Público está autorizado a instaurar inquérito civil para
apurar danos ao patrimônio público e social (CF, artigo 129, III), cuidar da prevenção de acidentes
do trabalho, defender interesses de populações indígenas (CF, artigo 129, V), crianças e
adolescentes (ECA, artigo 201, V, e 208-24), pessoas idosas ou portadoras de deficiência (Lei n
o
7.853/89), investigar abusos do poder econômico (Lei n
o
7.347/85, artigo 1
o
, V, e Lei n
o
8.884/
84, artigo 88), defender contribuintes (LC n
o
75/93, LOMPU, artigo 5
o
, II, a), apurar falhas da
Administração na prestação de seus serviços, garantir direitos fundamentais como o acesso à
educação, etc. (CF, artigo 129, II).
As investigações diretas a cargo do Ministério Público devem ser feitas por meio do inquérito
civil. Além de tratar-se de procedimento mais metódico e organizado de investigação, que
poderá ser muito útil em diversas atividades ministeriais (como antes de propor eventual ação
de extinção de fundação, destituição de pátrio poder, rescisórias etc.), também permite a
continuidade do trabalho, quando das substituições, afastamentos ou impedimentos dos
membros da instituição.
Outra questão controvertida é a de saber se o Ministério Público pode instaurar inquérito
civil para apurar lesão a interesses individuais homogêneos.
2
Apontamentos sobre o inquérito civil, Justitia, 165/33; Inquérito civil 10 anos de um instrumento de
cidadania em Ação civil pública, Saraiva, 1995.
3
Código de Processo Civil comentado, notas ao art. 8
o
da Lei n
o
7.347/85, 3
a
. ed., Revista dos Tribunais, 1997.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
689
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
De um lado, há os que propendem pela resposta positiva, baseados na legitimidade genérica
que ao Ministério Público foi concedida na matéria pelo Código de Defesa do Consumidor
(arts. 81-2). Argumentam estes que, se esse diploma legal permite ao Ministério Público ajuizar
ação civil pública para zelo de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, não só
em matéria atinente às relações de consumo mas em qualquer outra área (CDC, artigo 90), está
presumindo a presença do interesse público legitimador da intervenção ministerial, e, assim,
não haveria razão para restringir a iniciativa da instituição e excluir de sua investigação os
danos a interesses individuais homogêneos. Em reforço a essa argumentação, invoca-se que o
artigo 6
o
, VII, d, da Lei Complementar n
o
75/93, também permite expressamente que o Ministério
Público instaure inquérito civil para defesa de interesses individuais homogêneos, norma essa
de aplicação subsidiária ao Ministério Público dos Estados (artigo 80 da Lei n
o
8.625/93).
De outro lado, há os que, como nós, entendem necessário compatibilizar a destinação
social e constitucional do Ministério Público com a defesa do interesse a ele cometido na
legislação infraconstitucional. Assim, no caso dos interesses difusos, em vista de sua abrangência
ou extensão, não há negar, está o Ministério Público sempre legitimado à sua defesa, mas no
caso de interesses individuais homogêneos e coletivos, sua iniciativa só pode ocorrer quando
haja efetiva conveniência social na atuação, a partir de critérios como estes: (a) conforme a
natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas); (b) conforme a dispersão dos lesados
(a abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); (c) conforme o interesse
social no funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico (previdência social,
captação de poupança popular, etc.).
4
Outro ponto polêmico é saber se devem ser previamente determinados os fatos que ensejem
a instauração do inquérito civil.
Enquanto no Direito Penal os tipos são descritos com a maior precisão possível, a ponto
de não serem sequer a regra os chamados tipos anormais (como os que contêm elementos
normativosindevidamente, sem justa causa; ou contêm elementos subjetivoscom o fim de
etc.), já no Direito Civil qualquer ação humana que viole o direito ou cause prejuízo constitui
ilícito civilindependentemente de tratar-se de uma ação prévia e abstratamente definida pela
lei material com todas as suas características e circunstâncias (artigo 159, Código Civil). Sob o
aspecto civil, pois, em regra não há, diversamente do Direito Penal, um rol de ações humanas
4
Nesse sentido, é também a solução acolhida pela Súmula n
o
7, do Conselho Superior do Ministério Público
de São Paulo.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
690
ilícitas, e sim existe apenas uma norma genérica equivalente à responsabilização pela prática
de comportamento contrário à ordem jurídica.
Mesmo observadas essas peculiaridades do ilícito civil, não se deve descurar, porém, de
uma adequação típica mínima entre a ação humana a ser investigada e o preceito abstratamente
coibido pela lei. Em alguns casos, o legislador civil é mais rigoroso que de costume, e chega
até a aproximar-se do legislador penal ao descrever os tipos ilícitos, como ocorre com a
responsabilização civil de agentes públicos pelo sistema da Lei n
o
8.429/92, que exige a prática
de atos determinados de improbidade para que sejam impostas as sanções cíveis nela previstas.
Além disso, muitas vezes os ilícitos civis podem constituir um estado de coisas e não
propriamente uma ação precisa ou determinada, atual ou pretérita. Assim, por exemplo, a falta
de vagas nas escolas pode ser considerada, lato sensu, como matéria a ser investigada em inquérito
civil, ainda que não decorra de um ato isolado de um administrador específico em determinado
momento. Havendo motivos razoáveis para tanto, até mesmo meras atividades perigosas podem
ser investigadas em inquérito civil, pois seria absurdo ter de esperar por um fato ou um dano
específico, para iniciar investigações na área civil, até porque a própria Lei n
o
7.347/85 admite
propositura de ação civil pública para evitar danos (artigo 4
o
da Lei n
o
7.347/85).
Resta discutir se cabe instauração de inquérito civil à vista de denúncias anônimas, notícias
de jornal ou meras representações.
Seria descabido dar resposta abstrata ou genérica a essa pergunta. A resposta correta é:
depende do caso concreto. Assim como um delegado de Polícia pode fazer uma diligência ou
abrir um inquérito policial à vista de uma representação ou de uma notícia de jornal, desde
que reconheça haver justa causa para tanto (artigo 5
o
do Código de Processo Penal), também o
membro do Ministério Público pode instaurar um inquérito civil nas mesmas circunstâncias.
Há denúncias, ainda que anônimas, representações ou reportagens da imprensa tão bem
fundamentadas que seria um despropósito cruzar os braços e nada fazer.
(g) Competência
Para instaurar o inquérito civil ou propor a ação civil pública, a regra é a competência do
local onde o dano ocorreu ou deva ocorrer (artigo 2
o
da Lei n
o
7.347/85).
A despeito da incorreta menção contida no artigo 16 da Lei n
o
7.347/85 (com a redação da
Lei n
o
9.494/97, fruto de conversão de abusiva medida provisória), não é territorial a competência
nas ações civis públicas, e sim absoluta, porque funcional.
O artigo 2
o
da Lei n
o
7.347/85 cuida de regra de competência, não de jurisdição. Em que
pese a posição prevalente na Súmula 183 do Superior Tribunal de Justiça, entendemos não ter
dado a lei jurisdição aos juízes estaduais sobre questões de interesse da União em matéria de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
691
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
interesses transindividuais. A nosso ver, essa lei não exclui a competência da Justiça Federal,
nos casos em que a Constituição a esta comete o processo e o julgamento das causas em que
sejam interessada a União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na condição de
autora, ré, assistente ou opoente (artigo 109 I, da CF).
5
Não comungamos do entendimento contrário, no sentido de que a competência da Justiça
local, ainda que estadual, abrangeria até mesmo causas em que fosse interessada a União,
entidade autárquica ou empresa pública federal, pois, embora a própria Constituição admita
que a lei ordinária possa estabelecer exceções à regra de competência da Justiça Federal, a Lei
n
o
7.347/85, a nosso ver, não excepcionou a competência da Justiça Federal. Essa lei estabeleceu
regra de competência absoluta mas não trouxe regra de jurisdição; apenas disse que a ação
será proposta no foro do local do dano, cujo juízo terá competência funcional para apreciar a
causa. Assim, entendemos que, se tiver ocorrido um dano causado pela própria União, em
comarca que não seja sede de vara federal, a atribuição para investigar os fatos será do membro
do Ministério Público que tenha atribuições em tese para propor a ação correspondente perante
a vara da Justiça Federal com competência absoluta sobre o local do dano.
Por sua vez, em defesa de interesses de crianças e adolescentes, a competência será a do foro
do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, ressalvada expressamente a competência
da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores (ECA, artigo 209).
Já em matéria de lesão a interesses individuais homogêneos, o artigo 93 do Código de
Defesa do Consumidor estabelece regras próprias (foro da capital do Estado ou do país, para
danos regionais ou nacionais, conforme o caso), e essa norma comporta aplicação analógica
na defesa de outros interesses transindividuais.
(h) Publicidade
Em regra, o acesso ao inquérito civil deve ser franqueado aos interessados, em decorrência
do princípio geral da publicidade a que se sujeita a administração (CF, artigo 37).
Os atos do inquérito civil são em regra públicos (audiências, inquirições, expedição de
certidões), feitas, porém, duas ressalvas: (a) analogamente ao que dispõe o artigo 20 do Código
de Processo Penal, pode-se impor sigilo aos autos, se da publicidade de qualquer dos atos
nele praticados puder advir prejuízo à investigação); (b) deve-se impor sigilo ao inquérito civil
5
Será, porém, da competência da Justiça estadual a ação em que sejam interessadas sociedade de economia
mista, sociedade anônima de capital aberto ou outras sociedades comerciais, ainda que delas participe a
União como acionista (Súm. n
o
8, do Conselho Superior do Ministério Público paulista).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
692
sempre que nele constem dados ou informações a que o órgão do Ministério Público teve
acesso, mas que estejam cobertos por sigilo legal (p. ex.: informações bancárias ou fiscais etc.).
Quem terá acesso às informações contidas no inquérito civil?
Como no inquérito civil lidamos, normalmente, com a defesa de interesses coletivos em
sentido lato, tudo o que nele se apura, em regra, está sujeito ao princípio da publicidade, que
ilumina os atos da Administração (CF, artigo 37, caput). Excluídas as hipóteses de sigilo imposto
pela lei ou pela conveniência da própria investigação, no mais qualquer interessado terá acesso
irrestrito aos atos, termos, documentos e informações contidos no inquérito civil.
O habeas-data visa a assegurar ao interessado o acesso e eventuais retificações em
informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registro ou banco de dados de
entidades governamentais ou de caráter público (CF, artigo 5
o
, LXIX; Lei n
o
9.507/97). Por sua
vez, o Código de Defesa do Consumidor disciplina o acesso do consumidor a informações de
seu interesse (CDC, arts. 4
o
, IV, 6
o
, III, 43 a 44 e 72). De sua parte, segundo a Lei n
o
7.347/85 e a
Lei da Ação Popular, a associação civil ou o cidadão podem requerer às autoridades competentes
as certidões e informações que julgarem necessárias, que só lhes serão negadas nos casos de
sigilo (Lei n
o
7.347/85, artigo 8
o
, caput, e Lei da Ação Popular, artigo 1
o
, §§ 4
o
e 6
o
). Nessa
hipótese, a ação poderá ser proposta sem a informação, que será requisitada pelo juiz do feito
(Lei n
o
7.347/85, artigo 8
o
, § 2
o
, e Lei da Ação Popular, artigo 1
o
, § 7
o
).
O direito da coletividade à informação é fundamental para a tutela de interesses
transindividuais, e, em especial, do patrimônio público, da moralidade administrativa, do
consumidor e do meio ambiente (v. g., CF, artigo 225, § 1
o
, IV). A opinião pública desempenha
relevante papel na gestão dos negócios públicos, na política ambiental e educacional, e nas
decisões governamentais em geral. A informação conduz à atuação eficiente da comunidade e
contribui para fazer diminuir ou até cessar as freqüentes situações de abusos.
(i) Controle de legalidade
As leis federais não instituíram, por expresso, qualquer sistema de controle de legalidade do
inquérito civil durante sua tramitação: apenas foi criado um controle sobre seu arquivamento, a
ser procedido pelo Conselho Superior do Ministério Público. Assim, eventuais ilegalidades
praticadas no curso do inquérito civil devem ser objeto das seguintes providências: (a) no campo
administrativo, podem os interessados representar aos órgãos disciplinares do Ministério Público;
(b) no campo funcional, podem representar ao Conselho Superior, a quem incumbem poderes
de revisão do arquivamento, inclusive implícito, do inquérito civil; (c) no campo jurisdicional,
podem impetrar habeas-data, habeas-corpus, mandado de segurança. Assim, por exemplo, em
casos de ilegalidade, desvio de finalidade ou falta de atribuições, será possível impetrar-se o
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
693
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
mandado de segurança contra a instauração do inquérito civil; nos casos de conduções coercitivas
ilegalmente determinadas pelo Ministério Público, caberá o habeas-corpus.
Há projetos de lei, em andamento no Congresso, visando instituir um sistema de controle
interno sobre a instauração e a tramitação do inquérito civil, à guisa do que já existe, por força
de lei local, no Ministério Público paulista.
Com efeito, a Lei Complementar paulista n
o
734/93 (Lei Orgânica Estadual do Ministério
PúblicoLOEMP) previu dois recursos em matéria de inquérito civil: (a) contra o indeferimento
de representação visando à sua instauração (no prazo de 10 dias a contar da ciência do
indeferimentoartigo 107, § 1
o
); (b) contra a instauração do inquérito civil (no prazo de 5 dias
a contar da ciência da instauraçãoartigo 108, § 1
o
).
É, porém, írrito o sistema recursal instituído. Ainda que em tese pudesse o legislador
estadual dispor sobre procedimentos, não estaria a disciplina do inquérito civil contida no
objeto da Lei Orgânica local do Ministério Público. O objeto a ela reservado no artigo 128, § 5
o
,
da Constituição, seria apenas dispor sobre a organização, as atribuições e o estatuto do
Ministério Público, e não dar disciplina normativa ao inquérito civil, ainda mais inovando a lei
local e criando recursos destinados a obstar a instauração ou a tramitação de um procedimento
já inteiramente disciplinado por lei federal. Os Estados podem em suas leis locais de organização
do Ministério Público dispor sobre qual membro do Ministério Público pode instaurar um
inquérito civil, quais as providências administrativas devem tomar para fazê-lo ou as
comunicações e os registros que devem ser cuidados, mas não podem dispor sobre as hipóteses
de instauração, o objeto, a revisão do arquivamento, os recursos no inquérito civil. Como
dizem Nelson e Rosa Nery, “não poderão os Estados editar leis normatizando o inquérito civil
no âmbito estadual, pois estariam ferindo o modelo federal da Lei n
o
7.347/85, que já traçou o
regime jurídico integral do inquérito civil. Assim, v.g., a LOEMP-SP artigo 108, que estabelece
recurso, com efeito suspensivo, contra a instauração do inquérito civil, em flagrante
inconstitucionalidade por ferir o modelo federal”.
6
(j) Procedimentos preparatórios
Às vezes, o promotor de Justiça recebe um requerimento, uma representação, uma denúncia
de lesão a interesses transindividuais, e pode ter dúvidas se é ou não caso de instaurar inquérito
civil. Não raro instaura procedimentos preparatórios, verdadeiras investigações preliminares
ao inquérito civil, invocando autorização da Lei Complementar paulista n
o
734/93.
6
Código de Processo Civil, cit., notas ao artigo 8
o
da Lei n
o
7.347/85.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
694
Entretanto, segundo o artigo 128, § 5
o
, da CF, a Lei Complementar paulista n
o
734/93 deveria
limitar-se a dispor sobre organização, atribuições e estatuto do Ministério Público local, não
podendo instituir ou alterar o inquérito civil, instrumento todo criado e disciplinado pela lei
federal (Lei n
o
7.347/85). Além disso, o meio para apurar se há ou não lesão a um dos interesses
que justificam em tese a propositura de ação civil pública é precisamente o inquérito civil, e
não o procedimento preparatório ou preliminar.
Como disse Antonio Augusto M. Camargo Ferraz, sobre o procedimento preparatório ao
inquérito civil, cabe verberar: “como se fosse razoável investigar um fato para saber se é o caso
de investigar esse mesmo fato”.
7
De qualquer forma, quer o membro do Ministério Público instaure regular inquérito civil,
quer mero procedimento investigatório de caráter preparatório, em ambas as hipóteses não
poderá arquivar os autos sem submetê-los à revisão do Conselho Superior, porque a Lei n
o
7.347/85 deu o mesmo tratamento ao arquivamento de inquérito civil e de quaisquer peças de
informação (arts. 8
o
e 9
o
da Lei n
o
7.347/85). E o que são peças de informação? São representações,
documentos, certidões, cópias de peças processuais, declarações ou quaisquer informações
que, mesmo sem o regular inquérito, permitam caracterizar a autoria e a materialidade de uma
infração e embasar eventual propositura da ação pública.
Por fim, a instauração de procedimentos preparatórios, em substituição irregular ao inquérito
civil, pode até mesmo trazer graves e imediatos prejuízos à defesa de interesses transindividuais
afetos ao Ministério Público, inclusive deixando de obstar o curso da decadência, característica
que, em certos casos, só a teria a instauração do próprio inquérito civil (CDC, artigo 26, § 2
o
, III).
(k) Aplicação subsidiária do Código de Processo Penal
É fato que o inquérito policial foi confessadamente a inspiração do inquérito civil. Natural
é que algumas soluções analógicas sejam invocadas, como na instauração, instrução e coleta
da prova técnica do inquérito civil.
Contudo, só devemos fazer analogia com o inquérito policial naquilo em que a Lei n
o
7.347/85 não tenha solução própria diversa (obviamente, não caberia analogia quanto ao
modo de fazer o arquivamento, ou quanto às suas conseqüências, pois o sistema do artigo 28
do Código de Processo Penal é diverso do artigo 9
o
da Lei n
o
7.347/85; por igual, não caberia
analogia entre inquérito civil e policial, em matéria de presidência e controle de prazos da
7
Inquérito civil 10 anos de instrumento de cidadania, em Lei n
o
7.347/85 reminiscências e reflexões após
10 anos de aplicação Revista dos Tribunais, 1995.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
695
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
investigação). Em outras palavras, só cabe analogia naquilo que seja compatível entre ambos
(ex.: imposição de sigilo nas investigações, CF. artigo 20 do Código de Processo Penal; caráter
inquisitivo do procedimento; poderes instrutórios etc.).
(l) O arquivamento do inquérito civil e o princípio da obrigatoriedade
Segundo Calamandrei, o princípio da obrigatoriedade consiste em que, identificando o
Ministério Público uma hipótese em que a lei exige sua atuação, não poderá abster-se de agir.
8
Quando o Ministério Público arquiva o inquérito civil, não está violando o princípio da
obrigatoriedade, pois tem liberdade para examinar o caso e identificar ou não a hipótese de
agir; identificada a situação em que a lei exige sua atuação, aí sim é que se torna obrigatória
sua atuação.
(m) O arquivamento implícito
O inquérito civil termina com propositura de ação civil pública ou com seu arquivamento.
O arquivamento tem de ser fundamentado e deve ser homologado pelo Conselho Superior
do Ministério Público. Há obrigação legal de motivação do ato (o artigo 129, VIII, da Constituição,
traz para os membros do Ministério Público o dever de “indicar os fundamentos jurídicos de
suas manifestações processuais”; o artigo 43, III, da Lei n
o
8.625/93, também lhes comete o
dever de “indicar os fundamentos jurídicos de seus pronunciamentos processuais, elaborando
relatório em sua manifestação final”).
Por falhas ou descuidos, pode ocorrer que o arquivamento não seja fundamentado, ou
que não seja suficientemente fundamentado. Isso pode ocorrer especialmente quando: (a) nos
autos do inquérito tenha sido apurada a existência de vários atos ilícitos, e o membro do
Ministério Público, em sua promoção de arquivamento, só enfrente alguns dos atos; (b) haja
vários possíveis autores das ilegalidades e o membro ministerial só enfrente expressamente a
questão da responsabilidade de alguns deles.
Além dessas hipóteses, também pode ocorrer que o agente ministerial não promova o
arquivamento do inquérito civil e sim proponha a ação civil pública; contudo, restringe os limites
objetivos ou subjetivos da lide e nada expõe nem fundamenta em relação a outros possíveis
ilícitos ou seus autores, ou, se o faz, não destina suas ponderações ao órgão legalmente encarregado
de rever sua decisão de arquivamento, que é o Conselho Superior do Ministério Público.
8
Istituzioni di diritto processuale civile, v. 2, p. 469, § 126, 2
a
. ed., 1943.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
696
Argumentam alguns que, nesse caso, caberia ao juiz controlar a omissão ministerial.
Discordamos desse entendimento pois, ainda que guarde analogia com o artigo 28 do Código
de Processo Penal, fere o sistema especial da Lei n
o
7.347/85.
Quem deve provocar o Conselho Superior do Ministério Público para rever o ato do membro
do Ministério Público, em casos de arquivamento de inquérito civil? Em primeiro lugar, o
próprio membro do Ministério Público, que promoveu o arquivamento (artigo 8
o
, caput, e § 1
o
,
da Lei n
o
7.347/85); por isso, devem-se evitar os chamados arquivamentos implícitos. Em segundo
lugar, qualquer interessado pode representar ao Conselho, denunciando um arquivamento
implícito e pedindo tome este conhecimento do caso (p. ex., um co-legitimado, uma associação,
uma das vítimas de lesões individuais homogêneas etc.). Por fim, para quem aceite analogia
com o sistema processual penal, até o juiz pode provocar o reexame do arquivamento do
inquérito civil, mas nunca pelo procurador-geral e sim pelo Conselho Superior, que é o órgão
ministerial encarregado de rever arquivamentos de inquéritos civis.
( n) Papel do Conselho Superior do Ministério Público
Quando da revisão do arquivamento do inquérito civil, poderá o Conselho Superior: (a)
homologar o arquivamento; (b) reformar o arquivamento e mandar que outro membro do
Ministério Público proponha a ação civil pública; (c) converter o julgamento em diligência.
(o) Arrazoamento perante o Conselho Superior do Ministério Público
O arquivamento do inquérito civil, promovido pelo membro do Ministério Público, só
produz efeitos depois que essa promoção é homologada pelo Conselho Superior do Ministério
Público, na forma do artigo 9
o
da Lei n
o
7.347/85.
Ocorre que a Lei da Ação Civil Pública permite que as associações legitimadas apresentem
razões e documentos ao Conselho, antes do julgamento da promoção de arquivamento (artigo
9
o
, § 2
o
). Além destas, referidas expressamente na lei, qualquer interessado pode igualmente
fazê-lo (o investigado, terceiros interessados, e até os co-legitimados, ainda que não associações),
como conseqüência do direito genérico de petição.
Para esse fim, deve-se assegurar publicidade à tramitação do inquérito civil no Conselho,
com julgamentos em sessões públicas, exceção feita, naturalmente, às hipóteses de sigilo legal.
(p) Alcance do poder regimental do Conselho Superior do Ministério Público
O artigo 9
o
, § 3
o
, da Lei n
o
7.347/85, prevê que o reexame dos arquivamentos dos inquéritos
civis será feito pelo CSMP, na forma de seu regimento interno.
O regimento tem caráter complementar e assume nível hierárquico superior ao da própria
Lei Orgânica estadual de cada Ministério Público e ao de eventuais atos regulamentares de
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
697
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
outros órgãos, como o Colégio de Procuradores de Justiça ou a Procuradoria-Geral de Justiça.
9
(q) Efeitos do arquivamento
O arquivamento somente confere uma solução administrativa para o procedimento, solução
esta limitada ao âmbito do Ministério Público, e assim mesmo não cria preclusão nem
impedimento para novas investigações. Arquivado o inquérito civil, qualquer co-legitimado
pode propor a ação que o Ministério Público não propôs; o próprio Ministério Público não
está inibido de propô-la. Nesse sentido, inviável a restrição contida no artigo 111 da Lei
Complementar paulista n
o
734/93 (a de só se poderem reabrir as investigações se de outras
provas se tiver notícia), seja porque a lei local desbordou seu objeto, seja também porque
violou o modelo federal, seja enfim porque dispôs sobre pressupostos processuais (segundo a
lei paulista, sem novas provas o Ministério Público não poderia reabrir as investigações cíveis,
e, a fortiori, não poderia propor a ação...).
O arquivamento não cria direitos nem uma situação jurídica que deva ser mantida [Ferraz,
s/d], salvo, apenas, fazer cessar o óbice ao curso da decadência (CDC, artigo 26, § 2
o
, III).
(r) Conflito de atribuições
Os conflitos de atribuições entre órgãos de execução do mesmo Ministério Público são
solucionados pelo respectivo procurador-geral (artigo 10, X, da Lei n
o
8.625/93).
Se o conflito ocorre entre órgãos de execução de Ministérios Públicos diferentes (p. ex.,
entre o de São Paulo e o de Minas Gerais, ou entre um destes e o federal), a solução cabe ao
Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102, I, f) [Mazzilli, 1996 e 1998].
(s) Arquivamento de outros casos que não os da Lei n
o
7.347/85
O sistema da Lei n
o
7.347/85 não é restrito à defesa do meio ambiente, consumidor e
patrimônio cultural, mas sim aplica-se à defesa de quaisquer interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos (Lei n
o
7.347/85, artigo 1
o
, IV, e CDC, artigo 110). Em conseqüência, o
inquérito civil presta-se à investigação de danos a quaisquer interesses transindividuais.
Resta indagar: e as lesões ao interesse público em sentido estrito, como, por exemplo, ao
patrimônio público e social? E as lesões a interesses individuais indisponíveis, muitas das
quais também ensejam atuação do Ministério Público por meio de ações civis públicas (p. ex.:
questões atinentes à defesa de uma criança ou um adolescente, ou à nulidade de casamento,
ou à propositura de uma ação rescisória)?
9
As normas regimentais do Conselho Superior do Ministério Público paulista decorrem dos artigos 203-245
do Ato n
o
5/94-CSMP e suas modificações posteriores (v. nosso O inquérito civil, cit.).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
698
A Constituição comete ao Ministério Público o poder de dirigir o inquérito civil e outros
procedimentos (arts. 129, III, VII e VIII), tendo as Leis Orgânicas do Ministério Público alargado
o objeto das investigações ministeriais (Lei n
o
8.625/93, artigo 25, IV; LC n
o
75/93, arts. 7
o
, I, e
38, I). Assim, hoje o inquérito civil se presta, numa interpretação extensiva, a investigar questões
fáticas que possam em tese ensejar a propositura de qualquer ação civil pública pelo Ministério
Público.
Em matéria de inquérito civil, o Conselho Superior do Ministério Público paulista tem
entendido que: (a) em se tratando de lesão a quaisquer interesses transindividuais, é sempre
obrigatória a revisão do arquivamento pelo Conselho, mesmo que não se trate de hipótese
expressamente prevista na Lei n
o
7.347/85 (v.g., os casos de improbidade administrativa); (b)
em se tratando, porém, de lesão a interesses meramente individuais, não se faz a revisão do
arquivamento pelo Conselho (como em casos de danos a interesses individuais previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente).
10
A nosso ver, a tendência é a de que, gradativamente, todos os casos de arquivamentos de
inquérito civil passem a ser revistos pelo Conselho Superior do Ministério Público, refiram-se
eles a matéria abrangida pela Lei n
o
7.347/85 ou não.
(t) Efeitos do arquivamento
A homologação do arquivamento do inquérito civil pelo Conselho Superior do Ministério
Público faz que volte a correr a decadência em matéria de danos ao consumidor, por defeitos
ou vícios do produto ou do serviço (CDC, artigo 26, § 2
o
, III).
Por outro lado, lançada a promoção de arquivamento do inquérito civil, cria-se para o
promotor de Justiça que a subscreveu um impedimento lógico para que funcione em eventual
ação civil pública ou coletiva promovida com base nos mesmos fatos por outro membro da
instituição ou por uma entidade co-legitimada.
11
Ademais, homologada a promoção de arquivamento do inquérito civil pelo Conselho
Superior do Ministério Público, fica encerrada a investigação por parte do Ministério Público,
o que não obsta, porém, a que os co-legitimados investiguem a lesão pelos seus próprios
meios e proponham a ação civil pública ou coletiva cabíveis.
É possível a reabertura do inquérito civil arquivado?
10
Nesse sentido, ver Súmula n
o
19, do Conselho Superior paulista; ver, ainda Mazzilli (2000).
11
O artigo 9
o
, § 4
o
, da Lei n
o
7.347/85, manda que, se for caso de propositura da ação civil pública, oficie
outro membro do Ministério Público que não aquele que propendeu pelo arquivamento.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
699
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
Para uns, só seria possível fazê-lo com base em novas provas, por analogia ao inquérito
policial (CPP, artigo 19; LC paulista n
o
734/93, artigo 111); para nós, a reabertura do inquérito
civil independe de novas provas, pois, ao contrário do que ocorre com o inquérito policial, no
inquérito civil a lei federal não restringiu a reabertura das investigações.
Não cabe às leis estaduais de organização do Ministério Público disciplinar o inquérito
civil porque: (a) o objeto dessa lei está limitado pelo artigo 128, § 5
o
, da Constituição (organização,
atribuições e estatuto do Ministério Público local); (b) a Lei n
o
7.347/85, diversamente do
Código de Processo Penal, não faz restrições sobre a reabertura do inquérito civil arquivado
e não podem as leis locais violar o modelo federal; (c) em vista do sistema de legitimação
concorrente e disjuntiva da ação civil pública, co-legitimado algum à ação civil pública ou
coletiva está vinculado ao arquivamento do inquérito civil; porque o estaria o próprio Ministério
Público, se a lei federal não o quis expressamente?
Nesta questão, não há fazer analogia com o inquérito policial, pois as situações não
apresentam semelhanças suficientes.
Se o sistema jurídico nacional admite o maisque é a propositura de ação civil pública
sem nova prova, mesmo em caso de inquérito civil já arquivado, porque não se admitiria o
menos, que é a mera reabertura das investigações, ainda que sem novas provas?
(u) Suspeição do membro do Ministério Público
O promotor de Justiça que promoveu o arquivamento pode depois ajuizar a ação civil
pública que ele próprio tinha resolvido não propor?
Se tiver havido rejeição pelo arquivamento do Conselho Superior da instituição, não poderá.
Nesse caso, a própria lei exige seja designado outro membro do Ministério Público (Lei n
o
7.347/85, artigo 9
o
, § 4
o
).
Mas, depois de homologado o arquivamento do inquérito civil, em virtude de nova prova
ou não, o promotor de Justiça originário pode convencer-se de que há base para a ação. Nesse
caso, não estará sendo violada sua convicção, nem ferida a vedação legal, e, assim, a nosso ver
poderá propor a ação civil pública.
E como fiscal da lei? Poderia o promotor de Justiça que promoveu o arquivamento oficiar
na mesma ação que ele não quisera propor, e que veio a ser ajuizada por outrem? A nosso ver,
não o poderá. Como fiscal da lei, tem o membro do Ministério Público os mesmos impedimentos
que o juiz, e um deles é que não pode ter interesse na posição de uma das partes: tendo
antecipado um juízo de descabimento da propositura da ação,
12
sua posição de custos legis
12
Ver nota de rodapé n
o
11.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
700
estaria comprometida. Sua intervenção no feito poderia justificar até mesmo a oposição da
competente exceção de suspeição.
(v) Interesse pessoal do membro do Ministério Público
As ações civis públicas de que cuida a Lei n
o
7.347/85 versam interesses transindividuais,
ou seja, alcançam um feixe de interesses individuais, ligados por um elo comum. A própria Lei
n
o
7.347/85 exige que essas ações corram, em regra, no foro do local do dano, justamente para
que o juiz, o promotor de Justiça, as partes, as testemunhas e os peritos tenham maior facilidade
de conhecer a extensão do dano.
Não raro isso levará, por exemplo, a que o promotor que instaure o inquérito civil ou
promova a ação civil pública seja um dos moradores da cidade que está sendo contaminada
pela poluição que ele visa combater. Nesse caso, não estaria o promotor pessoalmente
interessado na solução da lide, o que lhe retiraria condições de agir como autor ou até mesmo
de instaurar o próprio inquérito civil?
Devemos distinguir: (a) no caso de lesão a interesses difusos, diante de sua total dispersão,
não há o impedimento. Questões que digam respeito ao interesse de membros indeterminados
da coletividade não criam impedimento para atuação do promotor ou do juiz, caso contrário
seria inexeqüível a norma que exige que essas ações sejam propostas no local do dano; (b) no
caso de lesão a interesses coletivos ou individuais homogêneos, com titulares determinados ou
determináveis, não poderão o promotor ou o juiz estar entre os que foram pessoalmente lesados;
os interesses individuais homogêneos ou coletivos não são comungados por toda a coletividade,
abstratamente considerada, e sim por um grupo determinado de pessoas. Se o promotor ou o juiz
fizerem parte desse grupo lesado, estarão incompatibilizados de oficiar no caso.
3 A NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO CIVIL
O inquérito civil não é processo administrativo e sim procedimento; nele não há uma
acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de
direitos. No inquérito civil não se decidem interesses; não se aplicam penalidades. Apenas
serve ele para colher elementos ou informações com o fim de formar-se a convicção do órgão
do Ministério Público para eventual propositura ou não da ação civil pública.
Assim, não sendo um fim em si mesmo, o inquérito civil não é contraditório, assim como
também não o é o inquérito policial.
O que pode ocorrer, entretanto, é que, sob juízo de conveniência do presidente do inquérito
civil, seja mitigado seu caráter inquisitivo. Tomemos estas hipóteses como exemplo: o Ministério
Público não está bem instruído se é ou não caso de propor a ação civil pública, se houve ou
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
701
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
não o dano, se a argumentação do autor do requerimento de sua instauração é ou não correta.
Nesses casos, como em outros, ouvir todos os interessados, produzir provas requeridas pelo
indiciado, facultar-lhe apresentação de documentos e elementos instrutóriostudo isso pode
ser mais que útil, até mesmo necessário.
Às vezes, porém, o inquérito civil não deve nem mesmo aproximar-se do contraditório, se
não em todas as fases, ao menos em algumas delas (como quando deseja o promotor de Justiça
surpreender uma situação que precise constatar, como o lançamento de poluentes; o uso de
lixos clandestinos etc.). Nesse último caso, o promotor de Justiça pode impor sigilo ao inquérito
civil, cuja preservação será obrigatória (CPP, artigo 20).
4 O ALCANCE DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA ÁREA DA NOTIFICAÇÃO E DA REQUISIÇÃO
A Constituição e as leis conferem aos membros do Ministério Público o poder de efetuar
notificações e expedir requisições nos procedimentos administrativos de sua competência (CF,
artigo 129, VI; LC n
o
75/93, artigo 8
o
, I a IV; Lei n
o
8.625/93, artigo 26, I a III; Lei n
o
7.347/85,
artigo 8
o
, § 1
o
, e 10).
As notificações são verdadeiras intimações por meio das quais o membro ministerial faz
saber a alguém que deseja ouvi-lo, em dia, hora e local indicados com antecedência razoável,
respeitadas as prerrogativas legais e o direito de algumas autoridades de marcar dia e hora
para serem ouvidas. Em caso de desatendimento à notificação, poderá ser determinada a
condução coercitiva (CF, artigo 129, VI; LC n
o
75/93, artigo 8
o
, I; Lei n
o
8.625/93, artigo 26, I, a).
Já as requisições de documentos ou informações destinam-se a atender às necessidades
investigatórias do Ministério Público.
Tem havido controvérsia sobre o poder de requisição do Ministério Público, especialmente
em matérias atinentes a informações bancárias, fiscais e eleitorais.
13
A nosso ver, o Ministério Público pode requisitar documentos ou informações de quaisquer
autoridades, inclusive nos casos legais de sigilo. Nessa hipótese, o membro do Ministério
Público será responsável pela subsistência do sigilo sobre as informações requisitadas, bem
como deverá responder pelo eventual uso indevido dessas informações.
14
Com efeito, “o
13
V.g., a Resolução 13.582, de 6-3-1987, do TSE (DJU de 13-3-1987, p. 3.911), e o artigo 38, § 1
o
, da Lei de
Reforma Bancária (Lei n
o
4.595/64) referem-se à quebra do sigilo das informações sob requisição judicial.
14
Cf. ECA, artigo 201, § 4
o
; Lei n
o
8.625/93, artigo 26, § 2
o
; Lei Complementar n
o
75/93, artigo 8
o
, § 2
o
; Lei n
o
8.429/
92, artigo 11, III; Lei n
o
8.625/93, artigo 26, § 2
o
; Lei Complementar n
o
75/93, artigo 8
o
, VIII, §§ 1
o
e 2
o
; Lei n
o
8.429/92, artigo 11, III. No mesmo sentido, CF. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Nery, em Código de
Processo Civil, cit., notas à Lei n
o
7.347/85.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
702
Ministério Público, em face da legislação vigente, tem acesso até mesmo às informações sob
sigilo, não sendo lícito a qualquer autoridade opor-lhe tal exceção”.
15
Só nos casos de exceções constitucionais, como no sigilo das comunicações telefônicas, é
que o Ministério Público precisará de autorização judicial para ter acesso à informação sigilosa
(CF, artigo 5
o
, XII).
A falta injustificada ou o retardamento indevido do cumprimento das requisições importará
a responsabilidade de quem lhe deu causa, inclusive sob aspecto criminal (Lei n
o
7.347/85,
artigo 10; LC n
o
75/93, artigo 8
o
, § 3
o
; Código Penal, arts. 319 e 330).
Atuando dentro de sua área de atribuições, o órgão do Ministério Público poderá expedir
requisições, seja federal, estadual ou municipal a autoridade, a repartição ou o órgão
destinatário.
Além das hipóteses em que o sigilo decorra diretamente da própria lei (ex.: sigilo bancário,
sigilo fiscal), ainda pode ele ser imposto, discricionariamente: (a) por conveniência da própria
investigação; (b) no resguardo de interesse público (como a segurança da sociedade ou do
Estado); (c) em respeito à imagem ou à privacidade das pessoas envolvidas.
5 O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO: CONTEÚDO E EFICÁCIA
O compromisso de ajustamento de conduta em matéria de danos a interesses
transindividuais foi criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 211), e, depois,
reiterado nos arts. 82, § 3
o
, e 113, do Código de Defesa do Consumidor.
O mesmo presidente da República que tinha sancionado compromisso de ajustamento no
Estatuto da Criança e do Adolescente, pouco depois vetou o § 3
o
do artigo 82 do Código de
Defesa do Consumidor, afirmando agora ser impróprio equiparar um compromisso
administrativo a título executivo, ainda mais porque versava apenas prática de conduta e não
pagamento de quantia determinada.
Esses argumentos não resistem à análise, porque nada impediria que a lei instituísse,
como instituiu, títulos executivos extrajudiciais ainda que de obrigação de fazer. Ademais, o
veto foi inócuo, pois, ao mesmo tempo em que se vetava o § 3
o
do artigo 82 do Código de
Defesa do Consumidor, e, conquanto dizendo que pelas mesmas razões vetaria idêntica previsão
de compromisso de ajustamento, contida no artigo 113 do mesmo diploma legal, o chefe do
15
MS n
o
5.370-DF, STJ, 1
a
. T., v.u., j. 12-11-97, rel. Min
o
Demócrito Reinaldo, DJU, 15-12-97, p. 66.185, o qual
acolheu nosso posicionamento (Regime Jurídico do Ministério Público, cit., 2
a
ed., p. 407-9; 3
a
ed., p. 422-
4) e de Nélson e Rosa Nery (Código de Processo Civil, cit., 2
a
ed., p. 1425; 3
a
ed., p. 1144).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
703
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
Executivo, por evidente descuido, promulgou na íntegra este último dispositivo, que instituiu
o compromisso de ajustamento de forma até mais abrangente que o dispositivo do § 3
o
do
artigo 82, este sim efetivamente vetado.
Em suma, foi inócuo o veto ao § 3
o
do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, pois
o artigo 113 desse diplomaque não foi vetadoinseriu o § 6
o
do artigo 5
o
da Lei n
o
7.347/85,
e instituiu o mesmo compromisso de ajustamento para a defesa de quaisquer interesses
transindividuais (artigo 21 da Lei n
o
7.347/85, introduzido pelo artigo 117 do CDC).
Theotonio Negrão, em suas anotações ao Código de Processo Civil, entende ter havido veto
também ao aludido artigo 113. A nosso ver, porém, não obstante tenha havido expressa
manifestação presidencial no sentido de que o compromisso de ajustamento previsto no artigo
113 também seria vetado como o foi no artigo 82, § 3
o
, essa assertiva do presidente foi exposta
apenas como argumento de veto a outro dispositivo da mesma lei (artigo 92), mas tecnicamente
não foi formalizado o veto ao artigo 113, que foi sancionado e promulgado na íntegra. Como não
existe veto implícito, pois isso impediria o controle da rejeição, a doutrina tem aceito a validade
do compromisso de ajustamento, que vem sendo utilizado normalmente pelo Ministério Público.
16
Assim, os compromissos de ajustamento podem ser validamente tomados por quaisquer
órgãos públicos legitimados, e trazem grande proveito social.
A eficácia do compromisso de ajustamento surge, nos termos da Lei n
o
7.347/85, em
decorrência de sua homologação pelo promotor de Justiça, e sua exeqüibilidade será livremente
ajustada no próprio termo, não podendo as leis locais de Ministério Público dispor sobre o
momento da formação do título executivo.
Se o compromisso de ajustamento levar ao arquivamento do inquérito civil, o Conselho
Superior do Ministério Público deverá rever esse arquivamento.
O compromisso de ajustamento é garantia mínima em prol da coletividade, não limite
máximo de responsabilidade do autor da lesão [Mazzilli, 1999 e 2000].
Esses compromissos de ajustamento não são, a rigor, verdadeiras transações, pois que os
órgãos públicos legitimados a tomá-los não são titulares do direito lesado (direitos e interesses
transindividuais), de forma que não têm como dispor do que não lhes pertence. Limitam-se
16
Para uma análise mais profunda sobre a eficácia dos §§ 5
o
e 6
o
do artigo 5
o
da Lei n
o
7.347/85, introduzidos
pelo artigo 113 do CDC, v. nosso A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., caps. 5 e 23. No sentido do
texto, v. tb. Nelson e Rosa Nery, Código de Processo Civil, cit., nota ao artigo 5
o
, § 6
o
, da Lei n
o
7.347/85;
Vicente Greco Filho, Comentários ao código de proteção ao consumidor, cit., p. 377-8; Arruda Alvim et al.,
Código do consumidor, cit., p. 509; Rodolfo C. Mancuso, Comentários, cit., p. 281; Watanabe (1992).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
704
apenas a tomar, dos causadores do dano, o compromisso de que estes ajustem sua conduta às
exigências legais, dentro dos termos e condições fixadas. Trata-se de uma mitigação da
indisponibilidade, de grande proveito e eficácia prática.
Nem todos os legitimados à ação civil pública ou coletiva podem tomar compromisso de
ajustamento, mas só os órgãos públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva. Por isso,
estão autorizadas a celebrar compromissos de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público
interno e seus órgãos, não as sociedades civis, as fundações privadas, as entidades da
administração indireta e as pessoas jurídicas que, posto tenham participação acionária do
Estado, tenham regime jurídico próprio de empresas privadas (v.g., sociedade de economia
mista, sociedade anônima de capital aberto).
Já que os órgãos que podem tomar o compromisso de ajustamento não têm disponibilidade
do direito material controvertido, o compromisso deve versar apenas as condições de
cumprimento das obrigações (modo, tempo, lugar etc.).
17
Qualquer co-legitimado poderá discordar do compromisso e propor a ação judicial cabível.
Caso contrário, interesses transindividuais poderiam ficar sem acesso ao Judiciário [Rodrigues
e Nery, 1996, p. 178].
O compromisso extrajudicial não exige homologação em juízo, mas, se ela advier, o título
passará a ser judicial (CPC, artigo 584, III).
O compromisso de ajustamento pode ser rescindido como os atos jurídicos em geral, ou
seja, voluntariamente, pelo mesmo procedimento pelo qual foi feito, ou contenciosamente,
por meio de ação anulatória (Cod. Civil, artigo 1.030).
6 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Sob o aspecto doutrinário, ação civil pública é a ação não penal, proposta pelo Ministério
Público.
No sistema da Lei n
o
7.347/85, ação civil pública é a ação para a defesa de interesses
transindividuais, proposta por um dos seus co-legitimados.
Com mais técnica, o Código de Defesa do Consumidor preferiu a denominação de ação
coletiva para referir-se à ação para defesa de interesses transindividuais, até porque o Ministério
Público é apenas um de seus legitimados ativos.
A atual redação do artigo 1
o
da Lei n
o
7.347/85 permite a defesa de interesses transindividuais
relacionados com o meio ambiente, o consumidor, o patrimônio cultural (bens e direitos de
17
Ato n
o
52/92-PGJ/CSMP/CGMP, de 16-7-1992 (DOE, Seç. I, 23-7-1992, p. 30).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
705
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valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), a ordem econômica, e, ainda, qualquer
outro interesse difuso ou coletivo (Lei n
o
8.884/94, artigo 88, e CDC, artigo 110).
Não só os interesses difusos e coletivos podem hoje ser defendidos por meio da ação civil
pública ou coletiva. Como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei n
o
7.347/85 se integram
(em matéria de defesa de interesses transindividuais, um é de aplicação subsidiária para o
outro) (CDC, artigo 90; Lei n
o
7.347/85, artigo 21), em tese, cabe a defesa de qualquer interesse
individual homogêneo por meio da ação civil pública ou coletiva (CDC, arts. 81, parágrafo
único, III, 82, e 90; Lei n
o
7.347/85, artigo 21. V., tb., LC n
o
75/93, artigo 6
o
, XII; Lei n
o
8.625/93,
artigo 25, IV, a
).
A jurisprudência tem recusado o uso de ação civil pública destinada a atacar leis em tese,
junto aos Juízos de primeiro grau, o que a tornaria indevido sucedâneo da ação direta de
inconstitucionalidade ou mesmo da ação interventiva.
18
Isso não quer dizer que, numa ação
civil pública, não se possa reconhecer, incidentemente, uma inconstitucionalidade, como causa
de pedir. Assim, por exemplo, em face de aumento indevido de mensalidades escolares, fundado
numa lei inconstitucional, nada impediria que o Ministério Público ou qualquer co-legitimado
ingressassem com ação civil pública ou coletiva para repetição do indébito, em benefício dos
lesados, transindividualmente considerados.
O que não se tem admitido é que se use da ação civil pública ou coletiva para atacar, em
caráter abstrato, os efeitos atuais e futuros de uma norma supostamente inconstitucional, pois,
com isso, em última análise, estaria o juiz da ação a invadir atribuição constitucional dos
tribunais, a quem compete declarar a inconstitucionalidade em tese de lei ou ato normativo,
para a seguir ser provocada a suspensão de sua eficácia (CF, arts. 52, X, 102, I, a, e 125, § 2
o
).
7 A LEGITIMAÇÃO E O INTERESSE DE AGIR EM DEFESA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
A Lei n
o
7.347/85 e o Código de Defesa do Consumidor integram-se na matéria de legitimação
ativa para as ações civis públicas ou coletivas (Lei n
o
7.347/85, artigo 21; CDC, artigo 90). Podem
propô-las, de forma concorrente e disjuntiva: (a) Ministério Público; (b) União, Estados,
Municípios e Distrito Federal; (c) autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de
economia mista; (d) associações civis constituídas há pelo menos um ano, com finalidades
institucionais compatíveis com a defesa do interesse pretendido (Lei n
o
7.347/85, artigo 5
o
, I
);
(e) entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade
jurídica, especificamente destinados à defesa de interesses transindividuais (Lei n
o
7.347/85,
18
Nesse sentido, v. AgRgAgI n
o
189.601-GO, STF, 1
a
T., j. 26-8-97, v.u., DJU, 3-10-97, p. 49.231; no mesmo sentido,
v. Moraes (1998, p. 495).
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
706
artigo 5
o
; CDC, artigo 82; Lei n
o
7.853/89, artigo 3
o
; ECA, artigo 210); (f) sindicatos (CF, arts. 5
o
,
LXX, b, 8
o
, III); (g) as comunidades indígenas (CF, artigo 232).
Por identidade de razões, entendemos que se aplica aos sindicatos e às fundações privadas
o requisito imposto para as associações civis: devem estar preconstituídos há mais de um ano
e ter finalidade institucional compatível com a defesa judicial que queiram empreender na
ação civil pública ou coletiva.
Para ajuizar a ação civil pública ou coletiva, a associação deverá estar expressamente
autorizada, seja pelos estatutos, o que dispensará autorização punctual em assembléia (CF,
artigo 5
o
, XXI; CDC, artigo 82, IV
), seja por deliberação da assembléia, nos demais casos.
19
Para o ajuizamento de ação civil pública ou coletiva, pode o juiz dispensar o prazo de pré-
constituição, desde que haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou
característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (Lei n
o
7.347/85,
artigo 5
o
, § 4
o
; CDC, artigo 82, § 1
o
).
O requisito de pertinência temática significa que: (a) nas ações civis públicas propostas
por entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem personalidade
jurídica, devem eles estar especificamente destinados à defesa dos interesses transindividuais
objetivados; (b) as associações civis, fundações privadas, sindicatos, órgãos corporativos etc.
devem incluir entre seus fins institucionais a defesa judicial dos interesses objetivados na ação
coletiva por elas propostas (CDC , artigo 82, III e IV
).
O artigo 2
o
-A da Lei n
o
9.494/97, com a redação que lhe deu o artigo 5
o
da Medida Provisória
n
o
1.798/99, exige que, nas ações coletivas movidas contra entidades da administração direta
ou indireta, as petições iniciais sejam instruídas com cópia da assembléia da entidade associativa
que a autorizou, acompanhada da relação nominal de seus associados e indicação dos respectivos
endereços. Tal exigência só teria sentido em se tratando de defesa de interesses individuais
homogêneos ou até coletivos, mas será de todo despicienda em matéria de defesa de interesses
difusos.
Não se exigem requisitos de representatividade adequada do Ministério Público ou das
pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios e Distrito Federal);
em tese, estarão eles legitimados a ajuizar ação civil pública ou coletiva. Quanto ao Ministério
Público, seu interesse de agir é presumido; como disse Salvatore Satta, “o interesse do Ministério
Público é expresso pela própria norma que lhe consentiu ou impôs a ação”.
20
Já os demais
19
Ver artigo 2
o
-A da Lei n
o
9.494/97, com a redação que lhe deu o artigo 5
o
da Medida Provisória n
o
1.798/99.
20
Diritto processuale civile, CEDAM, 1967, v. I, n
o
45.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
707
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
legitimados, e até mesmo, a nosso ver, a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal,
deverão ter interesse concreto na defesa do interesse objetivado na ação civil pública ou coletiva.
8 O LITISCONSÓRCIO ENTRE ÓRGÃOS
ESTADUAIS E FEDERAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Para maior eficácia na defesa de interesses transindividuais, a lei permitiu que os diversos
Ministérios Públicos pudessem trabalhar em conjunto, mediante litisconsórcio (p. ex., o Ministério
Público de um Estado com o Ministério Público de outro Estado, ou um desses com o federal).
A primeira norma a admitir o litisconsórcio de Ministérios Públicos foi o § 1
o
do artigo 210
do Estatuto da Criança e do Adolescente, para a defesa dos interesses e direitos nele objetivados.
A seguir, o Código de Defesa do Consumidor previu o mesmo litisconsórcio em dois
dispositivos distintos: o artigo 82, § 2
o
, para a defesa do consumidor, e o 113, para a defesa de
quaisquer interesses transindividuais.
O mesmo presidente da República que tinha sancionado o artigo 210 do Estatuto da Criança
e do Adolescente resolveu vetar o litisconsórcio de Ministérios Públicos, agora no Código do
Consumidor, e, assim como canhestramente o fizera quanto ao compromisso de ajustamento,
vetou o respectivo parágrafo do artigo 82, mas promulgou na íntegra o artigo 113, que previa
o mesmo litisconsórcio, e de forma até mais abrangente…
Objeta-se contra esse litisconsórcio uma série de argumentos, sendo que os dois primeiros
já levantados nas razões do veto presidencial: (a) o dispositivo que instituiu o litisconsórcio
de Ministérios Públicos feriria o artigo 128, § 5
o
, da Constituição, que reserva à lei complementar
a disciplina da organização, atribuições e estatuto de cada Ministério Público; (b) somente
poderia haver litisconsórcio se a todos e a cada um dos Ministérios Públicos tocasse qualidade
que lhe autorizasse a condução autônoma do processo, o que o artigo 128 da Constituição não
admitiria; (c) como o Ministério Público atua perante os órgãos jurisdicionais, deveria ter suas
atribuições limitadas pela competência destes, não podendo o Ministério Público estadual
atuar perante a Justiça federal nem o federal atuar perante a Justiça local; (d) a admissão do
litisconsórcio entre Ministérios Públicos diversos violaria o princípio federativo; (e) o Ministério
Público é uno e indivisível, de forma que não poderia litisconsorciar-se consigo mesmo.
A despeito de a Constituição considerar o Ministério Público “uno e indivisível”, na verdade
nosso Estado é federado, o que leva à existência de Ministérios Públicos distintos, embora
possam trabalhar de forma sucessiva ou até mesmo simultânea (nesse último caso, na
interposição de recurso especial ou extraordinário, pelo Ministério Público local e pelo federal)
(LC n
o
75/93, artigo 37, parágrafo único). Ademais, nada impediria que a legislação processual
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
708
disciplinasse atribuições concorrentes entre Ministérios Públicos distintos, como órgãos que
são de Estados-membros autônomos.
A força da idéia da concorrência de atribuições entre Ministérios Públicos diversos está
em permitir mais eficaz colaboração entre cada uma das instituições do Ministério Público,
que, até antes disso, eram praticamente estanques.
9 A POSSIBILIDADE DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Como dissemos, ao cuidar dos compromissos de ajustamento, os co-legitimados ativos à
ação civil pública ou coletiva não agem em busca de direito próprio e sim de interesses
transindividuais. Ainda que alguns deles possam também estar defendendo interesse próprio,
como as associações civisque buscam fins estatutários, o objeto do litígio coletivo será
sempre a reparação de interesses transindividuais.
Assim, posto detenham disponibilidade sobre o conteúdo processual do litígio, os
legitimados extraordinários não têm disponibilidade do conteúdo material da lide. Como a
transação envolve disposição do direito material controvertido, a rigor o legitimado de ofício
não pode transigir sobre direitos dos quais não é titular.
Não obstante essas considerações, aspectos de conveniência prática recomendaram a
mitigação da indisponibilidade da ação pública, que, aliás, já tinha sido atenuada até mesmo
na área penal (CF, artigo 98, I; Lei n
o
9.099/95).
Sensível, pois, a esses aspectos práticos, a lei fez concessões. Embora vedando a transação
nas ações de responsabilização civil dos agentes públicos em caso de enriquecimento ilícito,
21
admitiu compromissos de ajustamento em matéria de defesa de quaisquer interesses difusos e
coletivos (Lei n
o
7.347/85, artigo 5
o
, § 6
o
; ECA, artigo 211; CDC, artigo 113). Já em caso de dano ao
meio ambiente, a lei também estimula a via transacional, pois é condição para a proposta de
transação penal a prévia composição do dano, salvo em caso de comprovada impossibilidade.
22
Se houver transação em ação civil pública ou coletiva, e sobrevindo discordância de qualquer
dos co-legitimados ativos, ou ainda de algum assistente das partes, como se há de proceder?
Se a discordância se verificar depois de homologada a transação, poderão os legitimados
apelar, visando a elidir a eficácia da homologação da transação. Tratando-se de discordância
manifestada antes da homologação por um assistente simples, não obstará à eficácia do acordo
21
Lei n
o
8.429/92, artigo 17, § 1
o
. Se não cabe transação nas ações de improbidade administrativa, a fortiori
não se admitirá transação nos respectivos inquéritos civis.
22
Cf. Lei n
o
9.605/98, artigo 27. A composição cível do dano ambiental há de ser celebrada entre o causador
da lesão e um dos órgãos públicos de que cuida o § 6
o
do artigo 5
o
da Lei n
o
7.347/85.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
709
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
(CPC, artigo 53); obstará, porém, se partir de assistente litisconsorcial ou litisconsorte (CPC,
artigo 48).
Pode o Ministério Público opor-se à transação feita por co-legitimados em juízo? Sim,
compareça ele como autor ou mero órgão interveniente. Mesmo nesse último caso (órgão
interveniente), o Ministério Público não deixa de ser co-legitimado nato, e tem o encargo de
assumir a promoção da ação até em caso de abandono ou desistência infundada. Por isso,
poderá opor-se à transação, e assim evitar, em tese, que uma verdadeira desistência indireta
pudesse ser forjada, mas com efeitos mais gravosos.
Se o juiz recusar as impugnações e homologar a transação, caberá apelação.
Pelas peculiaridades da defesa dos interesses transindividuais, cremos possa o juiz negar
homologação ao acordo. Entendendo que a transação não atende aos interesses da coletividade,
deixará de homologá-la; se as partes se recusarem a dar andamento ao processo, e, mesmo
aplicado analogicamente o § 1
o
do artigo 9
o
da Lei n
o
7.347/85, se o Ministério Público não der
seguimento ao feito, não restará ao juiz senão optar entre homologar a transação ou extinguir
o processo sem julgamento de mérito, por ter cessado o interesse processual.
Também a transação homologada em juízo pode ser rescindida como os atos jurídicos em
geral; a ação para rescindi-la é a anulatória, não a rescisória, porque no caso a sentença é
meramente homologatória do ato jurídico transacional.
23
10 OS ÔNUS E O CUSTEIO DA PROVA
É grande a dificuldade da produção da prova, em matéria de defesa de interesses
transindividuais. As perícias são muito especializadas e custosas, além de que faltam critérios
objetivos para mensurar a destruição de paisagem, a extinção de espécie animal ou vegetal, a
prática de propaganda enganosa, a falta de vagas numa escola etc.
É problemático o custeio das perícias, quando necessárias. Normalmente as despesas do
processo deveriam ser adiantadas pelo autor (CPC, arts. 19 e s); contudo, são maiores as
dificuldades na ação civil pública ou coletiva, pois nelas não haverá adiantamento de custas,
emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação
civil autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas
processuais.
24
Assim, os custos das perícias devem ser carreados ao Estado [Mazzilli, 2000,
caps. 33 e 36).
23
Cf. artigo 486 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, v. RE n
o
90.995-8-RJ, 1
a
T. STF, rel. Min
o
Néri da
Silveira, DJU de 28-2-86, p. 2.348, e RE n
o
101.303-6-SP, 2
a
T. STF, rel. Min
o
Djaci Falcão, DJU de 28-2-86, p. 2.350.
24
Lei n
o
7.347/85, artigo 18, com a redação dada pelo artigo 116 do Código de Defesa do Consumidor.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
710
No inquérito civil, o Ministério Público pode requisitar a perícia. Assim dispõe a
Constituição paulista: “a administração pública direta e indireta, as universidades públicas e
as entidades de pesquisa técnica e científica oficiais ou subvencionadas pelo Estado prestarão
ao Ministério Público o apoio especializado ao desempenho das funções da Curadoria de
Proteção de Acidentes do Trabalho, da Curadoria de Defesa do Meio Ambiente e de outros
interesses coletivos e difusos”.
25
Na fase processual, o Ministério Público, tanto quanto todos
os demais co-legitimados, deve requerer a realização da perícia ao juiz da causa.
Se for público o órgão que deva fazer a perícia, a requisição ministerial ou judicial deverá
resolver o problema, mas se forem particulares as entidades capazes de fazer a prova técnica,
as dificuldades são maiores, pois não são obrigados os peritos particulares a fazer perícias
gratuitamente nem a custeá-la dos seus próprios bolsos. Some-se a todos esses problemas o
fato de que, pelo sistema hoje vigente, não é possível desviar as verbas do fundo previsto no
artigo 13 da Lei n
o
7.347/85 para custear perícias.
11 O CONTROLE EXTERNO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS:
LIMITES ENTRE A DISCRICIONARIEDADE E A LEGALIDADE
Seria cabível a instauração de inquérito civil ou a propositura de ação civil pública para
investigar decisões da administração tomadas dentro do campo da discricionariedade
administrativa?
Colocando a questão de modo genérico, não cabe ação civil pública ou coletiva (e, a fortiori,
também não cabe a instauração de inquérito civil) para contrastar diretrizes de oportunidade e
conveniência do administrador pois, diante do princípio da separação de Poderes, a
discricionariedade do ato administrativo só pode ser aferida pela própria administração. Mas,
por exceção, tanto em matéria de inquérito civil como de ação civil pública, é possível entrar no
exame: (a) dos aspectos formais de competência e legalidade do ato administrativo vinculado ou
do ato administrativo discricionário; (b) do mérito do ato administrativo vinculado; (c) do mérito
do ato administrativo discricionário, quando tenha havido imoralidade, desvio de poder ou de
finalidade, ou quando o ato administrativo se tenha apartado dos princípios da eficiência ou da
razoabilidade; (d) do mérito do ato administrativo discricionário, quando a administração o
tenha motivado, embora não fosse obrigada a fazê-lo (teoria dos motivos determinantes).
Outrossim, como os fins a atingir pela administração são sempre vinculados, é possível que se
25
Constituição paulista, artigo 115, XXIX. Hoje, a referência seria às Promotorias, e não mais às Curadorias,
terminologia abandonada com o advento da Lei n
o
8.625/93 e da Lei Complementar paulista n
o
734/93.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
711
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAISSUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
Hugo Nigro Mazzilli
instaure inquérito civil ou se proponha ação civil pública ou coletiva, p. ex., diante da falta de
vagas para menores nas escolas, da inexistência ou insuficiência quantitativa ou qualitativa de
ensino fundamental. Afinal, se são direitos, alguns até constitucionais, a eles correspondem
deveres que podem ser cobrados em juízo.
O que não se poderá, porém, em juízo, é pretender impor ao administrador critérios
discricionários do autor da ação civil pública ou do juiz, nem querer tomar do administrador o
poder de decidir quais as despesas, opções ou investimentos são os melhores para a coletividade
pois para tomar essas decisões, só o administrador foi eleito pela soberania popular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo. Apontamentos sobre o inquérito civil. Justitia,
p.165-33, s.d.
FIORILLO, Rodrigues e NERY, Rosa. Direito processual ambiental brasileiro. São Paulo: Del
Rey, 1996, p.178.
MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 12
a
ed. Saraiva, 2000.
MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 2
a
ed. Saraiva, 1998, cap.6, n.27.
MAZZILI, Hugo Nigro. O inquérito civil. 1
a
ed. Saraiva, 1999, cap.11.
MAZZILI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 3
a
ed. Saraiva, 1996.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. Ed. Atlas, 1998. p.495
WATANABE, KAZUO. Código brasileiro de defesa do consumidor. 2
a
ed. Forense Universitária,
1992. p.516.
MÓDULO IX
MOBILIZAÇÃO SOCIAL
MÓDULO IX MOBIILIZAÇÃO SOCIAL
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
715
23
CAPÍTULO
TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO*
Nisia Werneck**
SUMÁRIO
1 O QUE É MOBILIZAÇÃO SOCIAL? ..... 716
2 HORIZONTE ÉTICO DA MOBILIZAÇÃO SOCIAL ..... 717
3 COMPREENSÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA E DOS PRINCÍPIOS DA DEMOCRACIA ..... 718
4 POR QUE MOBILIZAÇÃO SOCIAL ..... 723
5 DESENVOLVER UM PROCESSO DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL ..... 725
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 735
* Baseado no texto “Mobilização Social – um modo de construir a democracia e a participação”, escrito em co-
autoria com José Bernardo Toro.
* * Consultora em Mobilização Social.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
716
Em nosso país nos acostumamos a ouvir críticas sobre a distância muitas vezes existente
entre a lei e a realidade. A lei andando na frente, definindo novos horizontes e novos critérios,
enquanto a realidade ainda conserva práticas inadequadas, em prejuízo aos direitos dos
cidadãos. Mas, qual a solução? Mudar a lei, ou trabalhar para que a realidade avance tanto
quanto a nossa capacidade de, por intermédio das leis, expressar nossos projetos e definir o
país que queremos? E mais: como responder a este desafio: fazer da lei também um instrumento
de mudança social. Qual o papel de juízes e promotores neste projeto?
1 O QUE É MOBILIZAÇÃO SOCIAL?
Muitas vezes confundimos mobilização social com um evento, uma passeata, uma
concentração, um abaixo-assinado. Mas estes são recursos de um processo de mobilização,
podem fazer parte dele ou não. A mobilização social ocorre quando um grupo de pessoas de
uma comunidade, ou toda a sociedade, decide agir com um objetivo comum, buscando um
resultado desejado por todos. Mobilizar é convocar vontades (discursos, ações e decisões)
para um propósito comum, com um sentido também compartilhado.
A mobilização social é um ato de liberdade.
Participar ou não de um processo de mobilização social é uma escolha de homens e
mulheres livres. É um gesto, um ato e uma demonstração de liberdade, orientado pela vontade,
interesse ou disponibilidade de cada um. Se não escolhemos livremente, participaremos porque
os outros estão participando, uma atitude de conformismo, que gera dependência e imobilismo.
Ou participaremos porque os outros nos mandam participar, gerando de um lado subserviência
e de outro totalitarismo. Por isso é essencial que possamos escolher, decidir por nós mesmos
o que queremos e devemos fazer, quando, como e em quê participar.
A mobilização social é um ato de razão.
Um processo de mobilização é sempre voltado para algum objetivo: a implantação de uma
escola, a melhoria de algum aspecto no nosso bairro, na nossa cidade, no nosso país, etc. Esse
objetivo pré-definido é assumido conscientemente por aqueles que querem participar do
processo de mudança.
A mobilização social é um ato de paixão.
Quando nos decidimos a participar, essa escolha “contamina” o nosso cotidiano. Nosso
discurso, nossas decisões e ações passam a considerar o objetivo que queremos alcançar e que
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
717
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
Nisia Werneck
1
Antolho: objeto usado para restringir a visão dos animais, especialmente cavalos, para que não de distraiam
nem se assustem.
justifica a nossa participação. Não apenas a nossa razão estará comprometida com essa escolha,
mas também nosso coração.
A mobilização social é um ato de comunicação.
A comunicação estruturada possibilita o compartilhamento das informações, de visões e
de sentidos, contribuindo para a prática democrática e para a estabilidade e continuidade da
mobilização.
“Habitualmente pensamos no humano, no ser humano, como um ser racional, e freqüentemente
declaramos em nosso discurso que o que distingue o ser humano dos outros animais é seu ser
racional. (...) Dizer que a razão caracteriza o humano é um antolho,
1
porque nos deixa cegos frente
à emoção, que fica desvalorizada como algo animal ou como algo que nega o racional. Quer dizer,
ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos
o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos
damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional” [Maturana, 1998, p. 14].
2 HORIZONTE ÉTICO DA MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Um processo de mobilização não se justifica por si mesmo, mas pelo projeto com que está
comprometido, pelos objetivos que pretende alcançar e que lhe dão sentido. Para que a
mobilização tenha legitimidade, esse sentido precisa estar fundamentado em decisões e projetos
que tenham sido explicitados e acordados entre os membros da sociedade a que se refere. Ele
vai orientar, fornecer critérios para as ações e legitimar o processo de mobilização social,
constituindo-se assim no seu horizonte ético.
A Constituição de um país oferece aos seus cidadãos um horizonte ético para ações e
processos de mobilização em diversas áreas, ao explicitar um projeto de nação. Quanto mais o
processo de discussão, elaboração e aprovação da Constituição tiver sido participativo, maior
a adesão ao seu projeto de nação e a sua legitimidade como horizonte ético, porque as escolhas
refletirão melhor a vontade de todos e serão por todos compartilhadas.
Nos artigos 1º e 3º de nossa Constituição estão sintetizados os princípios e os objetivos
básicos que nos propusemos a alcançar. Neles está consagrada nossa opção pela democracia,
tendo como fundamentos a cidadania e a dignidade humana.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
718
Art. 1ºA República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
I a soberania
II a cidadania
IIIa dignidade da pessoa humana
IVos valores do trabalho e da livre iniciativa
V o pluralismo político
Art. 3ºConstituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II Garantir o desenvolvimento nacional;
IIIErradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IVPromover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Ao assumirmos essas escolhas nos comprometemos com dois desafios.
Ø Convertermo-nos em um país produtivo internacionalmente, com eqüidade interna, ou
seja, como garantir o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza, a marginalização e
reduzindo as desigualdades regionais.
Ø Construir uma ordem democrática, a “sociedade livre, justa e solidária”, que expresse o
nosso modelo de democracia, que seja, concretamente, o nosso Estado Democrático de Direito.
Todo processo de mobilização que tiver como meta contribuir para responder a esses
desafios tem na Constituição brasileira sua fonte de critérios e de legitimidade. A Declaração
Universal dos Direitos do Homem representa o horizonte ético dos movimentos de reivindicação
e garantia dos direitos humanos. O Estatuto da Criança e do Adolescente legitima as ações de
movimentos pela melhoria da educação.
3 COMPREENSÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA E DOS PRINCÍPIOS DA DEMOCRACIA
Para compreender e responder propositivamente aos desafios da construção do nosso
projeto de nação, é preciso fundamentar os conceitos de cidadania, democracia, participação,
dignidade humana e produtividade.
A ordem social não é natural: as ordens de convivência social não são naturais, mas
construídas pelos homens. O que é natural é nossa tendência de viver em sociedade. Os gregos
foram capazes de criar a democracia e construir uma nova ordem social, porque entenderam que
a ordem social não provinha dos deuses, mas era, ou podia ser, construída pelos homens.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
719
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
Nisia Werneck
Se podemos construir a ordem social, também podemos transformá-la, podemos propor
mudanças. Não aceitar a nossa responsabilidade pela construção da realidade em que vivemos,
ao mesmo tempo, nos desobriga da tarefa de transformá-la, colocando na mão do outro, ou de
outros, a possibilidade de agir. O resultado é uma atitude de fatalismo e subserviência, ou, na
melhor das hipóteses, de reivindicação e de cobrança.
Ao resumirmos nossas ações a reivindicar e cobrar estamos colocando alguém na posição
de poder, de capaz de suprir nossos desejos. Reinstituímos na política a figura paterna e
assumimos uma atitude de dependência e menoridade. Saímos da posição de sujeitos e vamos
para a de destinatários de serviços e benefícios, abrindo o caminho para as práticas
manipuladoras e clientelistas do populismo.
A formação de uma nova mentalidade na sociedade civil, que se perceba a si mesma como
fonte criadora de ordem social, pressupõe compreender que os “males” da sociedade são o
resultado da ordem social que nós mesmos criamos e que, por isso mesmo, podemos transformar.
A democracia é uma ordem autofundada: a democracia é uma ordem social que se caracteriza
pelo fato de suas leis e suas normas serem construídas pelos mesmos que as vão cumprir e
proteger. Nem toda ordem social é democrática, nem autofundada.
A monarquia tradicional, histórica, dos egípcios e dos persas, por exemplo, era uma ordem
social. Mas nela o monarca, por ser filho de quem era ou por indicação dos deuses, se colocava
fora da sociedade, em um lugar separado e diferente do dos outros homens, e desse lugar
ditava as leis e normas que regeriam a vida dos seus súditos (sub-ditos, submetidos ao que
dizia o outro).
A ditadura também é uma ordem social não democrática. O ditador, ou seu grupo, também
se coloca, dessa vez por força das armas, em um lugar “especial”, diferente, de onde dita as leis
e as normas. A ordem também vem de fora da sociedade, de alguém que está separado daqueles
que vão cumpri-la e defendê-la.
Na democracia, a ordem social se produz a partir da própria sociedade. As leis e as normas
são criadas, diretamente ou por representantes, pelos mesmos que vão cumpri-las e protegê-las.
A convivência democrática nasce quando uma sociedade aprende a autofundar a ordem social. A
democracia não pode ser imposta; é, e tem de ser, cotidianamente construída e praticada.
A democracia é uma cosmovisão: ela é uma forma de ver o mundo e os outros. Uma forma
que aceita cada pessoa como fonte criadora de ordem social. É isso que define o cidadão em
uma democracia: pessoa capaz de construir e transformar, junto com os outros, a ordem social
e a quem cabe cumprir e proteger as leis que ele mesmo ajudou a criar.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
720
Em muitos casos, nos referimos à cidadania como titularidade de direitos. Cidadão seria
aquele que goza de determinados direitos. Especialmente nas situações de privação desses
direitos, tendemos a usar muitas vezes essa acepção do conceito. Mas o voto, por exemplo, é
um direito do cidadão, que contribui para o desenvolvimento e a prática da sua capacidade de
construir e transformar a sociedade, mas não é o que o define.
Outras vezes falamos de cidadania no sentido de pertinência a uma sociedade. Cidadão é
o que nasceu em um país, ou que vive e trabalha naquele país, ou que detenha algum atributo
que a lei exige para que ele seja considerado como tal. O conceito de cidadania fundado na
participação além de ser próprio da democracia faz dela uma ordem social comprometida com
a liberdade e com a defesa incondicional da vida.
O conflito é constitutivo da democracia: na ordem democrática o conflito não é uma anomalia
a ser combatida. Na democracia, as pessoas que pensam diferente não são inimigas, a quem
queremos derrotar ou excluir, mas representam diferentes modos de ver, com os quais devemos
conviver, respeitar e construir consensos, projetos comuns que somos capazes de colocar acima
de nossas divergências.
“Façamos da democracia um espaço político para a cooperação na criação de um mundo de
convivência no qual nem a pobreza, nem o abuso, nem a tirania surjam como modos legítimos de
vida. A democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é
dono da verdade, e que o outro é tão legítimo quanto qualquer um. Além disso, tal obra exige a
reflexão e a aceitação do outro e, sobretudo, a audácia de aceitar que as diferentes ideologias
políticas devem operar como diferentes modos de ver os espaços de convivência, que permitem
descobrir diferentes tipos de erros na tarefa comum de criar um mundo de convivência no qual a
pobreza e o abuso são erros que se quer corrigir” [Maturana, op. cit., p. 75].
Não existe um modelo de democracia que possamos copiar: se somos nós que construímos,
que autofundamos, a nossa democracia “terá a nossa cara”. Podemos aprender com outras
sociedades, mas é nossa e intransferível a responsabilidade pela construção da nossa
democracia. Ela vai expressar nossa história, nossa visão de mundo, nossos valores. Esse
princípio é chamado de “princípio da incerteza” porque não sabemos a priori como será o
nosso modelo de democracia. Temos que correr o risco de caminhar por um caminho que
desconhecemos, que se faz na caminhada, se queremos chegar a um lugar que também não
conhecemos ainda, mas que inspira e justifica nossas ações.
A dignidade humana
Ainda que não haja um modelo ideal de democracia, toda ordem democrática está orientada
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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a proteger e fortalecer os direitos humanos e a proteger e desenvolver a vida. A dignidade
humana não é um dado. Ela é conceituada e construída por nós. O nosso conceito de dignidade
está consolidado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que, ao estabelecer
aqueles direitos de que somos detentores pelo simples fatos de sermos humanos, anteriores a
qualquer diferença, a qualquer ação, contribui para uma definição de um patamar básico de
uma vida digna, de uma dignidade humana.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem é o projeto de humanidade que nosso
século concebeu, talvez a sua maior contribuição à história. Nos séculos passados, alguns
países, como os Estados Unidos, na sua Constituição (1787), e a França, na Declaração dos
Direitos do Cidadão (1789), haviam definido os direitos humanos. Mas, eram experiências
isoladas, os detentores desses direitos eram os cidadãos daqueles países.
Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem isso não acontece. Pela primeira vez
na história somos uma só humanidade. Reconhecemos esses direitos a todo e qualquer ser
humano, até mesmo aos cidadãos de países que não são signatários do documento. Nós, os
signatários, reconhecemos que os cidadãos desses países são também detentores desses direitos.
“Não sei se se tem a consciência de até que ponto a Declaração Universal representa um fato
novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da
conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos pela
maioria dos homens que vive na Terra. Com esta declaração, um sistema de valores épela
primeira vez na história universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso
sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os
homens foi explicitamente declarado. (Os valores de que foram portadoras as religiões e as Igrejas,
até mesmo a mais universal das religiões, a cristã, envolveram de fato, isto é, historicamente, até
hoje, apenas uma parte da humanidade.) Somente depois da Declaração Universal é que podemos
ter a certeza histórica de que a humanidadetoda a humanidadepartilha alguns valores comuns;
e podemos, finalmente crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é
historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente,
mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens. (...)
A afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que
os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele
Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em
cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente
reconhecidos, porém efetivamente protegidos, até mesmo contra o próprio Estado que os tenha
violado” [Bobbio, 1992, pp. 28/30].
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
722
Nós, brasileiros, incorporamos a íntegra da Declaração Universal dos Direitos do Homem
aos direitos assegurados por nossa Constituição (Título II.- Dos Direitos Fundamentais, artigo
5
º
). Declaramos a dignidade humana um dos fundamentos de nossa nação e de nosso modelo
de democracia. Dessa forma, comprometemo-nos não apenas com o enunciado desses direitos,
mas com sua garantia e exigibilidade. Assumimos o desafio de transformá-los no projeto ético
de nosso país, em torná-los cotidianos.
Para os tornarmos efetivos e concretos, o primeiro passo é conhecermos esses direitos.
Uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro, em 1997, pelo CPDOC/ISER, mostrou que 50,9% das
pessoas não foram capazes de citar sequer um dos direitos humanos, 13,2% citaram apenas
um, 9,5% citaram dois e 26,7% foram capazes de citar três. O conhecimento dos direitos cresce
com o aumento da escolaridade. Entre os entrevistados que cursaram até a 4ª série do primeiro
grau, 66,3% não citaram nenhum direito. Entre os entrevistados com curso superior, 50,6%
citaram três direitos. Os direitos sociais são mais conhecidos, foram os mais citados. Os direitos
políticos foram os menos citados e ficou evidente que eles são percebidos como deveres.
A construção do público
Podemos definir o público como aquilo que convém a todos e que, de igual maneira,
contribui para a sua dignidade. A institucionalização do público a partir da sociedade civil não
representa ameaça às instituições e ao Estado, mas contribui para a governabilidade, para
ampliar a capacidade que tem uma sociedade de resolver seus conflitos sem recorrer à violência,
aplicando regras conhecidas publicamente.
Um dos indicadores da exclusão social e da baixa participação das nossas sociedades é o baixo
controle e compreensão que os setores populares têm das instituições públicas” [Toro, 1997].
Essa separação tem origem em nossa história colonial, mas o tempo a acentuou e torna
hoje necessário um trabalho de reinstitucionalização do público, porque é nele que poderemos
compartilhar projetos e fazer competir os interesses dos diferentes setores da sociedade em
condições adequadas para a construção do entendimento. A educação, ou a falta dela, limitam
a compreensão e dificultam a atuação pública dos setores populares em nossas sociedades.
Fazer do respeito aos direitos humanos nosso projeto ético significa fazer da aceitação do
outro o fundamento da nossa convivência e da educação um instrumento para a construção da
eqüidade e da eficiência.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
723
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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4 POR QUE MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos
João Cabral de Melo Neto
A mobilização é uma forma de intervenção social. Toda intervenção social parte do
pressuposto de que a ordem social não é natural e por isso pode ser transformada. A mobilização
e as demais intervenções sociais buscam, portanto, modificar a ordem social por meio da
mudança nos modos de pensar e/ou modos de atuar e/ou modos de sentir.
A forma como se dá uma intervenção social não é indiferente. Pelo contrário, diferentes
maneiras de atuar sobre a ordem social geram diferentes culturas ante as mudanças, segundo
o enfoque que a referida intervenção tenha, construindo uma pedagogia social (uma paidéia).
Assim, se a intervenção é assistencialista, cria uma cultura de dependência; se é autoritária,
cria baixa auto-estima; se é clientelista, cria uma cultura de adesão; se é democrática, cria
cidadania e autonomia.
Os processos de mobilização são em sua essência um modo de exercício e prática
democráticos e têm como objetivo básico converter atores sociais em sujeitos sociais e “passar
de uma ordem recebida a uma ordem produzida” [Toro, op. cit.], sair de uma lógica de adesão
para uma lógica de deliberação. Vivemos na terra em que a lógica da adesão foi tão praticada
que se consolidou em um ditado que a resume muito bem: “manda quem pode e obedece
quem tem juízo”. A lógica da deliberação pressupõe o rompimento com uma longa tradição em
que os papéis de “mandar” e “obedecer” sempre estiveram muito separados e exige o
desenvolvimento de uma nova cultura de cidadania e autonomia.
Se a consideramos dessa forma, a mobilização social e a participação deixam de ser uma
estratégia, decorrente da incapacidade do governo, seja financeira seja operacional, de dar conta
de determinados assuntos. Deixa também de ser uma alternativa neutra, uma opção entre outras,
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
724
de reivindicação. Converte-se em uma escolha consistente, em um modo de ser da democracia,
em uma estratégia necessária para sua aprendizagem, sua prática e seu desenvolvimento.
Robert Putnam, professor de Harvard, analisou a experiência recente da Itália e relacionou
o sucesso econômico e administrativo de determinadas regiões ao número de associações
cívicas atuando na região. Alexis de Tocqueville, analisando a sociedade americana, atribuiu
seu desenvolvimento à sua capacidade de se associar, de se organizar. Para ele, ela seria a
mestra de todos os saberes sociais.
“A cooperação voluntária depende do capital social. As regras de reciprocidade generalizada e
os sistemas de participação cívica estimulam a cooperação e a confiança social porque reduzem os
incentivos a transgredir, diminuem a incerteza e fornecem modelos para a cooperação futura. Os
estoques de capital social, como confiança, normas e sistemas de participação tendem a ser
cumulativos e a reforçar-se mutuamente. Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais
com elevados níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-estar coletivos. Eis as
características que definem a comunidade cívica. Por outro lado, a inexistência dessas características
na comunidade não cívica também é algo que tende a auto-reforçar-se. A deserção, a desconfiança,
a omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e a estagnação intensificam-se reciprocamente
num miasma sufocante de círculos viciosos” [Putnam, 1966].
A prática democrática faz parte de nosso projeto de nação, expresso na Constituição na
nossa definição como Estado Democrático de Direito, e é reforçada e assumida pela forma
como nos propomos a operar as políticas sociais. Nesse sentido, a Constituição brasileira
consagra duas grandes tendências: a descentralização e a participação. De uma forma geral, a
Constituição determina que a garantia dos direitos sociais é dever do Estado e da sociedade.
Para assegurar o exercício de participação da sociedade é estruturado todo um sistema de
conselhos (municipais, estaduais e nacionais), com participação da sociedade civil.
Institucionalmente, foram criados esses espaços, mas para que eles se convertam em espaços
democráticos e de democratização da sociedade é preciso que eles correspondam a uma
realidade de mobilização, participação e iniciativa da sociedade civil.
A Constituição brasileira incorporou o texto da Declaração Universal dos Direitos de
Homem, mas para que eles se tornem cotidianos é preciso que a sociedade os assuma como
seu projeto, os reivindique e cuide de seu cumprimento. O que dá sentido ao processo de
mobilização é o projeto com o qual está comprometido. Fazer da educação um direito de fato
de todos os brasileiros é um projeto de libertação e crescimento e uma missão para todos nós
que de alguma forma, no nosso cotidiano, podemos contribuir para esse objetivo como
profissionais e como cidadãos.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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5 DESENVOLVER UM PROCESSO DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL
O imaginário
O primeiro passo no planejamento de um processo de mobilização social é a explicitação
de seu propósito. Esse propósito está diretamente ligado à qualidade da participação que será
alcançada. Esse propósito deverá estar expresso sob a forma de um horizonte atrativo, um
imaginário “convocante” que sintetize de uma forma atraente e válida os grandes objetivos que
se busca alcançar. Ele deve expressar o sentido e a finalidade da mobilização. Ele deve tocar a
emoção das pessoas. Não deve ser só racional, mas ser capaz de despertar a paixão. “A razão
controla, a paixão move” [Toro].
Um exemplo é o imaginário proposto por Moisés ao povo judeu e descrito por Isaías:
“Vamos para uma terra onde jorram leite e mel”. “Uma terra boa e espaçosa onde habitarão
juntos o lobo e o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito, o bezerro e o leãozinho
pastarão juntos e um menino os poderá tanger.” Esse imaginário, expresso na descrição de
uma terra de fartura e de paz, foi capaz de mobilizar o povo israelita e mantê-lo unido, apesar
da diáspora.
Outro exemplo, o imaginário proposto por Betinho na “Ação da Cidadania contra a Fome,
a Miséria e Pela Vida”: uma sociedade que, pela solidariedade, vence a fome e a miséria. Marca
o fim de uma sociedade indiferente. No Natal de 93 a proposta era de que nenhuma família
passasse fome naquela noite. Os mais diversos segmentos da sociedade se mobilizaram para
aplacar a fome de 32 milhões de pessoas.
Esse propósito deve refletir um consenso, refletir uma escolha e construção de um interesse
compartilhado. Esse consenso não é um acordo em que as pessoas negam suas diferenças,
mas em que elas são preservadas e respeitadas. As pessoas não estão necessariamente de
acordo entre si, mas de acordo com alguma coisa, com uma idéia, que é colocada acima de
suas divergências. Ele é a expressão de um exercício de convivência democrática.
O imaginário enuncia uma forma de futuro por construir, contém elementos de validade
formais (históricos e científicos) e, nesse sentido, é uma fonte de hipóteses para a ação e o
pensamento. É um critério para orientar e avaliar os múltiplos esforços e as decisões requeridas
para convertê-lo em realidade. Deve trazer referências que tornem possível a cada um responder
às perguntas: em que medida o que estou fazendo contribui para alcançar esse objetivo? O que
mais posso fazer?
Isso o diferencia de um simples slogan ou campanha publicitária, ainda que em termos de
divulgação sejam necessários esses elementos comunicativos. Uma diferença fundamental é
que o slogan não se constitui em uma referência sobre o que precisa ser feito no presente.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
726
“Um slogan não pode substituir as informações efetivas, que as pessoas necessitam para
se mobilizarem”, alertou Rosa Maria Torres, em seu artigo “Sem todos pela Educação, não há
Educação para todos”.
A lei como imaginário
Se a Constituição de 1988 representa a explicitação do país que queremos, o ECA representa
um marco no tratamento das questões relativas às crianças e aos adolescentes, na forma como
a sociedade os vê e na maneira como se propõe a cuidar deles, e a LDB, a descrição da educação
que precisamos para alcançar esses objetivos.
Entretanto a lei, por si só, é incapaz de garantir as transformações necessárias para sua
efetiva implementação. Conforme muito bem enfatizou Afonso Armando Konzen,
“um modelo não se altera por decreto ou por milagre. Os atores das responsabilidades necessitam
compreender o seu papel e, a partir da compreensão, passar a exercê-lo. (...) É certo que o papel
de educar, na escola, pertence ao educador. No que é insubstituível. No entanto, o papel de velar
pelo asseguramento do direito de ser educado pertence a toda a sociedade”.
2
Como imaginário, a legislação tem uma vantagem inerente à sua condição: a legitimidade.
A legislação, por todo o processo de discussão que antecede sua entrada em vigor, representa
um consenso social, que dispensa sua validação a todo momento. Representa uma escolha de
nossa sociedade, ainda que não tenha sido compreendida e compartilhada por todos na extensão
de suas conseqüências. Assim, é preciso refundá-la, estender sua legitimidade formal,
construindo sua legitimidade social.
A situação descrita na lei é o imaginário pretendido, e eliminar a distância entre esse
horizonte e a realidade, uma missão da sociedade e dos operadores do Direito em especial,
como “tradutores” e como difusores do texto legal junto às comunidades onde atuam.
Quem dá início a um processo de mobilização social?
Um processo de mobilização social tem início quando uma pessoa, um grupo ou uma
instituição decide iniciar um movimento no sentido de compartilhar um imaginário e o esforço
para alcançá-lo. Para desempenhar esse papel de produtor social, a pessoa ou instituição deve
ter a capacidade de criar condições econômicas, institucionais, técnicas e profissionais para
que um processo de mobilização ocorra. Uma Secretaria de Estado, uma instituição pública ou
2
Movimento “O Direito é Aprender” – Caderno de Textos do Seminário Estadual – novembro de 1995.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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uma entidade privada, uma pessoa ou um grupo podem ser produtores sociais. O produtor
social é responsável por viabilizar o movimento, por conduzir as negociações que vão lhe dar
legitimidade política e social.
O produtor social tem a intenção de transformar a realidade, tem certos propósitos de
mudança e se dispõe a apresentar e compartilhar esses propósitos com as outras pessoas, que
vão ajudá-lo a explicitá-los, ampliá-los e, é claro, a alcançá-los. Para isso ele precisa ter uma
certa legitimidade, seja própria, seja conferida por alguém ou por algum princípio, senão é
difícil que ele consiga a credibilidade necessária no primeiro momento. Ao longo do processo
essa legitimidade vai crescer ou diminuir, refletindo a qualidade da sua gestão do processo.
É essencial que o produtor social seja visto não como dono, mas como precursor de um
movimento que reflete uma preocupação e um desejo de mudança compartilhado. Para isso é
preciso que ele:
Ø Respeite e confie na capacidade das pessoas de decidirem coletivamente sobre suas
escolhas e estimule o desenvolvimento desses comportamentos. Esses comportamentos
contradizem uma tradição brasileira que tem suas origens no período colonial e com a qual
precisamos romper. Raymundo Faoro, em seu livro “Os Donos do Poder”, escreveu sobre a
monarquia brasileira:
“Essa monarquia, acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo de
cima, obliterou o sentimento instintivo de liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a
iniciativa. (...) Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes
ou provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos”.
Essa visão infantilizou as pessoas. Aliada a uma situação em que o que contava era ser
“amigo do rei” e que fez da troca de favores um hábito natural na prática da política, gerou uma
cultura de adesão e não uma cultura de deliberação. As pessoas se acostumaram a não analisar,
não avaliar e não decidir suas posições, mas a aderir às posições de outros, normalmente dos
que estão no poder. Para passarmos de uma cultura de adesão para uma cultura de deliberação
e para nos tornarmos verdadeiros cidadãos é fundamental o reconhecimento incondicional da
capacidade de decisão e ação das pessoas. Só assim elas se sentirão seguras e dispostas para
decidir e agir por sua própria conta.
Ø Acredite na importância de se liberar a energia, a criatividade e o espírito empreendedor
das pessoas e das coletividades. A democracia e a produtividade estão relacionadas com
mentalidades proativas. E essa mentalidade não é natural, tem que ser educada: é preciso
aprender a passar de uma ordem recebida para uma ordem produzida. O exercício da criatividade
e da proposição de soluções faz parte dessa aprendizagem.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
728
O importante é que o produtor social contribua para que sejam criadas as condições para
a evolução de uma posição reativa (fatalista frente aos problemas) para uma posição proativa
(ver os problemas como situações a serem trabalhadas, como oportunidades de ação, ver na
busca de soluções um desafio estimulante).
Ø Seja capaz de interpretar a nossa realidade social. Isso exige que ele conheça a sociedade,
seus valores, seus significados, suas prioridades. Requer ainda que ele conheça a Constituição
do Brasil e seja capaz de interpretá-la como expressão de um projeto de nação, do ponto de
vista da comunicação e da mobilização.
Ø Seja capaz de orientar um editor na produção de materiais adequados de divulgação,
tenha conhecimento das possibilidades e dos limites da comunicação social como instrumento
de mobilização. Freqüentemente não são alcançados os objetivos em um processo de
mobilização porque se superestima a capacidade dos veículos e da comunicação de massa. É
preciso saber situar bem esse papel para que se tire deles o melhor proveito.
Ø Tenha conceitos claros de democracia, cidadania, público e participação, de modo,
inclusive, a contribuir para gerar imagem social positiva para os reeditores mais fracos,
possibilitando-os fazer competir seus interesses em igualdade de condições.
Ø Seja sensível e tolerante para conseguir trabalhar com as redes de reeditores, sem
burocratizá-las, convertendo-as em redes autônomas, doadoras de sentido próprio.
Observação: Os papéis que estamos apresentando não são necessariamente desempenhados
por uma pessoa. Algumas pessoas ou instituições podem estar juntas desempenhando um
desses papéis, outras vezes uma mesma pessoa ou instituição desempenha mais de um ao
mesmo tempo. O importante é que alguém esteja fazendo isto, com as preocupações, os critérios
e os valores aqui discutidos.
Os operadores do Direito e a mobilização pela educação
Muitas vezes os operadores do Direito estão mais acostumados ao trabalho de gabinete,
baseado nas ações e processos, mas este caso exige uma ampliação de sua agenda. Não se
trata de atuar para estimular ações e processos, mas de buscar interagir com outros responsáveis
(pais, escola e poder público), com base no que a lei determina, no horizonte que ela desenha
e na credibilidade que o cargo lhe traz, para difundir o que a legislação (ECA, LDB e outras)
preconiza, contribuir para derrubar as barreiras que dificultam a sua operação, estimular e
garantir sua aplicação.
Nem todos os operadores do Direito se sentirão à vontade para atuar como produtores
sociais no sentido que o texto aponta. Nem é necessário. O que importa é que possam mobilizar
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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e “convocar” lideranças e parceiros nos Municípios em que atuam e os estimulem a desenvolver
um processo de mobilização, os alimentem com informações adequadas e contribuam para
legitimar sua atuação.
No Município de Campos Altos, Minas Gerais, quando lideranças comunitárias
desenvolveram um “censo” buscando identificar crianças fora da escola, foi fundamental a
participação do promotor da Comarca. Na véspera do dia em que estudantes e cidadãos iam
sair a campo, batendo de porta em porta, perguntando pelas crianças, idade e situação escolar,
o promotor deu uma entrevista na rádio local. Falou sobre a importância da atividade, sobre a
obrigatoriedade dos pais de buscar a escola e do poder público de garantir as vagas. Isso deu
legitimidade ao processo e reforçou o compromisso de todos. No dia seguinte, o promotor
participou da solenidade de abertura do “censo”, reforçou os argumentos e reiterou a relevância
dessa ação. Novamente, seu depoimento estimulou os participantes a desenvolverem seu
trabalho com responsabilidade e rigor. O resultado foi que em poucas semanas não havia mais
crianças fora da escola em Campos Altos.
O que é um reeditor social
Este termo, cunhado por Juan Camilo Jaramillo (1991), designa uma pessoa que, por seu
papel social, ocupação ou trabalho, tem a capacidade de readequar mensagens, segundo
circunstâncias e propósitos, com credibilidade e legitimidade. Dito de outra forma, é uma
“pessoa que tem público próprio”, que é reconhecida socialmente, que tem a capacidade de
negar, transformar, introduzir e criar sentidos frente a seu público, contribuindo para modificar
suas formas de pensar, sentir e atuar. Os educadores são reeditores ativos. Por sua profissão e
pela credibilidade que têm frente a seus alunos podem legitimamente introduzir, modificar ou
negar mensagens, segundo circunstâncias e propósitos. Um pároco, um gerente, um líder
comunitário também são, pelas mesmas razões, reeditores.
O reeditor é diferente dos chamados “multiplicadores”. Ele não reproduz um conteúdo o
mais próximo possível da forma como o recebeu, mas o interpreta e amplia adequando-o
naturalmente ao seu público. A qualidade de seu trabalho não é medida pela fidelidade ao
conteúdo original, mas pelo enriquecimento da mensagem, pela sua adequação, por meio do
uso de códigos, valores e experiências próprios daquele grupo, pelo correto entendimento
dos propósitos e sentidos e pela participação que gerou.
O reeditor é diferente também do militante tradicional, de um guerrilheiro. Ele atua no seu
cotidiano. O campo de atuação do militante é o mundo. O reeditor crê no convencimento de
cada um, o militante crê na conversão, na adesão. A atuação do militante reforça os
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
730
comportamentos de sociedades caudilhistas, que estão sempre se perguntando quando virá
alguém para acabar com “isso”, que tratam os problemas como “desordem”, que dependem de
alguém que restabeleça a ordem. O reeditor reforça o conceito de democracia e de cidadania,
de uma sociedade que constrói sua própria ordem.
As relações entre o produtor social e os reeditores
O produtor social começa seu trabalho identificando quais são os reeditores que, em seu
campo de atuação, podem contribuir para aprofundar e viabilizar as metas a que se propõe a
mobilização. Não é possível fazer uma mobilização se não podemos localizar no tempo e no
espaço os reeditores que podem atuar e contribuir para seus objetivos.
Uma vez localizados, é preciso conhecer o campo de atuação do reeditor, para provê-lo de
compreensões, de alternativas de ações e decisões que irão ajudá-lo, no primeiro momento, a
responder à pergunta: o que eu posso fazer no meu campo de atuação, no meu cotidiano? Com
o tempo, ele mesmo vai descobrir novas formas de atuar e participar.
Cabe, ainda, ao produtor assegurar aos reeditores os instrumentos de que ele precisa para
atuar: material de divulgação para começar o trabalho, contatos que possam facilitar seu acesso
aos meios de comunicação, etc. Esses materiais e contatos não têm a função apenas de divulgar
as idéias do movimento, mas eles são importantes porque contribuem para dar segurança aos
reeditores e legitimar o seu discurso perante os outros.
Campo de atuação
As pessoas estão dispostas a participar de um processo de mudança, proposto no
imaginário, se lhes respondemos à seguinte pergunta: “Como eu posso participar, aqui em
meu campo de trabalho, no que faço todos os dias”? Não se faz mobilização social com heroísmo.
As mudanças são construídas no cotidiano por pessoas comuns, que se dispõem a atuar
coletivamente, visando alcançar propósitos compartilhados.
Para que as pessoas se disponham a participar e descubram sua forma de contribuir é
preciso que:
Ø Tenham informações claras sobre os objetivos, as metas, a situação atual e as prioridades
da mobilização a cada momento. Esse é um dos objetivos da comunicação social no apoio a
um movimento.
Ø Sintam-se seguras quanto ao reconhecimento, valorização e respeito à sua forma de ser
e de pensar. Ninguém está disposto a correr o risco de ser incompreendido e rejeitado.
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Ø Sintam a confiança dos outros participantes quanto à sua capacidade e possibilidade de
contribuir para o alcance dos objetivos.
Pode ser que, no primeiro momento, os reeditores, grupos ou pessoas precisem de apoio
para identificar possíveis formas de atuação. É o problema do campo de atuação. Por isso um
projeto de mobilização deve fornecer:
Ø Compreensões adequadas ao campo de atuação de cada participante: explicações sólidas
sobre os problemas a resolver, situações a criar ou modificar, sentido e finalidade das decisões
a tomar e das ações a seguir em seu campo diário de trabalho.
Ø Indicações das decisões e ações que estão ao alcance das pessoas dentro de seu campo
de atuação e trabalho e a explicação de como e por quê contribuem ao propósito buscado.
Esse repertório de sugestões deve ser suficientemente claro, aberto e estimulante para
que, no momento seguinte, as pessoas descubram e inventem novas formas de participar e não
se acomodem nem se sintam manipuladas ou com sua autonomia comprometida.
Todo processo de mobilização requer que o reeditor faça modificações específicas em seu
campo de atuação. Todo reeditor, por sua ocupação, profissão ou trabalho, tem um “campo”
ou “espaço” de atuação que lhe é próprio. A esse campo concorrem fatores, conceitos e decisões;
alguns são modificáveis por outros atores. Por exemplo, o campo de atuação do professor é a
sala de aula. Ali concorrem fatores físicos, conceitos, atuações e decisões de diferentes tipos.
Alguns são modificáveis por ele: o conteúdo da aula, a programação do tempo, seu
comportamento verbal, a metodologia, a motivação e a auto-estima dos alunos, etc. Outros
fatores que estão incidindo no mesmo campo não são modificáveis pelo professor: a arquitetura
da sala, o calendário escolar, a disponibilidade dos textos, o estado nutricional dos alunos.
Esses que o professor ou professora não podem modificar podem ser modificados por outros
atores (secretário de Educação, etc.). A exeqüibilidade de uma mobilização está relacionada
com a possibilidade de propor ao reeditor a modificação de variáveis e fatores que estão sob
seu domínio quotidianamente e explicitar as relações que podem ser estabelecidas entre essas
ações e o imaginário proposto.
Resumindo, é preciso que as propostas de atuação:
Ø sejam claras e realistas;
Ø respeitem os limites da atuação de cada um, mas não sejam conservadoras; que contribuam
para abrir caminhos para novas visões;
Ø não sejam explicitadas e/ou percebidas como cobrança, como responsabilização;
Ø sejam estimulantes.
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MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
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Esse é um dos principais aspectos a serem considerados. A explicitação de decisões,
percepções e ações possíveis tem como objetivo ajudar cada um a se ver no movimento, a
descobrir como pode e quer participar e contribuir para que os objetivos sejam alcançados.
Coletivização
A coletivização é o sentimento e a certeza de que aquilo que eu faço, no meu campo de
atuação, está sendo feito por outros, da minha mesma categoria, com os mesmos propósitos e
sentidos. É ela que dá estabilidade a um processo de mobilização social. A comunicação é um
importante instrumento de coletivização, mas não é o único.
Podemos citar como exemplo a experiência de atendimento à saúde infantil, da Pastoral
da Criança. O sistema se baseia na atuação de líderes comunitárias, que realizam o
acompanhamento das crianças de sua comunidade. Ao final do curso preparatório, elas recebem
um diploma, uma agenda de acompanhamento (o “Caderno da Líder Comunitária”) e uma
camiseta impressa com o símbolo da Pastoral. Essa camiseta é uma das formas de coletivizar a
ação das líderes. Ao vestirem essa camiseta elas se sentem e são percebidas pela comunidade
como participantes de um grupo muito maior, que transcende a comunidade, que legitima a
sua ação e lhe confere um reconhecimento social. Elas se sentem conectadas, “coletivizadas”,
desenvolvem um sentimento de pertinência.
Uma das formas de se alcançar a coletivização é por meio da circulação de informações, da
divulgação do que está acontecendo nas diversas frentes. O que distingue a coletivização da
simples divulgação é seu compromisso com os resultados. A divulgação tem um objetivo muitas
vezes promocional ou meramente informativo. O resultado esperado é que as pessoas saibam,
tenham conhecimento dessa informação. No caso da mobilização, o foco é no compartilhamento
da informação (não simplesmente na sua circulação) e o resultado desejado é que as pessoas
formem opiniões próprias, se disponham a agir e ajam. E mais, que se sintam donas dessa
informação, repassem-na, utilizem-na e se tornem elas próprias fontes de novas informações.
Para o sucesso de uma mobilização é preciso que todos que dela participam tenham um
comportamento comunicativo, tenham interesse e disposição para consumir e fornecer
informações.
Muitas vezes os veículos e os tipos de material que serão utilizados na coletivização são os
mesmos de uma campanha de divulgação ou de publicidade mas, certamente, seu conteúdo e
forma serão diferentes, porque estarão orientados a outro tipo de compromisso.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
733
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
Nisia Werneck
Acompanhamento
A quarta dimensão da estruturação de um processo de mobilização social é o
acompanhamento e avaliação.
“A opinião freqüente de que a avaliação se reduz a julgar se os objetivos de um programa
foram alcançados ou não é restritiva demais. A avaliação deve ser algo mais que uma simples
autópsia. Deve ser um meio efetivo de melhorar os atuais programas ou o planejamento de futuras
atividades” [Pierre Drouet].
Os objetivos da avaliação e do acompanhamento são:
Ø Explicitar as lições aprendidas. Uma coisa é o que pensamos em fazer, outra o que
realizamos na prática. Uma coisa é o mapa e outra, a estrada. Depois que conhecemos a
estrada podemos corrigir o mapa, acrescentar informações que ajudem quem vem atrás. Não
dá para iniciar a caminhada sem o mapa, mas o que aprendemos no caminho que já percorremos
nos ajuda a entender o que ainda temos que percorrer.
Ø Levantar informações que favoreçam o planejamento das novas ações e a redefinição
dos objetivos. Muitas vezes os objetivos iniciais já foram alcançados ou estão encaminhados e
é possível ousar mais, ir em frente. Outras vezes, eles se mostram difíceis demais, ou então
exigem antes outras mudanças. Também é possível que se descubra um novo público, que não
se pensou no início que pudesse ajudar, mas que se mostrou necessário e/ou disponível, e é
importante traçar uma estratégia específica para abordá-lo.
Ø Importância mobilizadora dos resultados Os resultados já alcançados têm uma incrível
força para manter viva a mobilização já alcançada, para convencer novos atores e viabilizar
novos recursos. Além disso, eles servem como repertório de idéias para quem está começando
a participar.
Para atender a esses objetivos nos processos de mobilização é importante ter a avaliação
como um procedimento permanente. Avaliar um processo de mobilização é trafegar entre dois
pólos: um dos “não mais” e outro dos “não ainda”, entre o que já não é mais como era,
valorizar e compreender o alcance dessas mudanças, e o que ainda não é como nos propusemos,
identificar o que ainda precisa ser feito, apontando caminhos para que seja alcançado.
A avaliação deve abordar três ângulos diferentes:
Ø Avaliação dos resultados: em que medida foram alcançados os resultados pretendidos.
Ø Avaliação da mobilização: em que medida tem-se conseguido a adesão e participação
das pessoas e instituições com o objetivo e sentido pretendidos.
Ø Relação entre eles: em que medida os resultados se devem a essa participação.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL
734
Para isso é importante que se tenha indicadores pré-definidos ou, no mínimo, pré-sugeridos.
Indicadores quantificáveis, ou pelo menos facilmente identificáveis, que possam ser operados
com clareza por todos os que participam do movimento. No caso de mobilização pela educação,
a redução dos índices de evasão e repetência, do número de crianças fora da escola e daí por
diante são sinalizadores de sucesso.
Outro aspecto importante para alcançar os objetivos da avaliação é dar visibilidade aos
resultados. É preciso que todos que estão participando, que são interessados, beneficiados,
ou ainda que podem vir a ter participação, saibam dos resultados.
No caso do Pacto de Minas pela Educação, diversas cidades colocaram uma placa bem no
local de chegada dizendo: Você chegou a uma cidade que se orgulha de não ter nenhuma
criança entre 7 e 10 anos fora da escola. Poder colocar essa placa foi uma motivação; colocá-
las, uma realização; mantê-las, um compromisso e uma responsabilidade.
As quatro dimensões básicas de um processo de mobilização social, o imaginário, o campo
de atuação, a coletivização e o acompanhamento, devem ser construídos e operados
simultaneamente. A ausência de qualquer um deles tem conseqüências diferentes: oferecer só
imaginário é demagógico ou gera apenas angústia nas pessoas; só as atuações e decisões, sem
imaginário, conduzem a ativismos passageiros ou movimentos sem rumo; se não há coletivização
ou acompanhamento por indicadores se produz o desinteresse.
A ruptura com a realidade presente, assegurando o direito à educação em toda a sua
amplitude, exige a produção de um certo desequilíbrio dessa situação. Esse desequilíbrio se
dá com a instauração de um novo debate, a inserção de novos atores e o desenvolvimento de
uma nova cooperação. O novo debate: a educação como direito de todos, entendido em toda
a sua amplitude: direito ao acesso, ao regresso, à permanência e ao sucesso na escola. Os
novos atores: os operadores do Direito como parceiros comprometidos com o ideal da sociedade
de educação para todos. A nova cooperação: operadores do Direito, escolas, poder público e
sociedade atuando em conjunto para eliminar as distâncias que separam a realidade atual da
realidade que a lei nos deixa vislumbrar como nosso horizonte desejável.
“Imagine um país em que todas as crianças vão à escola...”
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP. 23 TECENDO O AMANHÃPELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
Nisia Werneck
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos do homem. In: A era dos direitos./trad.
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.28-30.
TORO, Jose Bernardo. O papel do 3
o
setor em sociedades de baixa participação. In: IOCHPE,
Evelyn et al. 3
o
Setor: desenvolvimento social sustentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MATURANA R., Humberto. In: Emoções e linguagem na educação e na política./trad. José
Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Ed. UGMG, 1998. p.14.
MELO NETO, João Cabral. Tecendo a manhã. In: Educação pela pedra.
PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna./Robert D.
Putnam, com Robert Leonardi e Rafaella Y. Nanetti; Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de
Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1966.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
gerência editorial
LILIANA PINHEIRO
edição de texto
projeto e coordenação gráfica
CHICO VILLELA
ROSANGELA MOLINA
edição eletrônica
produção de modelos
CECÍLIA OLIVEIRA
colaboração
IRANILDE REGO
capa
RODRIGO SEVERO
FUNDESCOLA
Via N1 Leste, Pavilhão das Metas
Brasília-DF 70150-900
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