50
hospício, combate à stultia
8
, foi uma prova da racionalidade com que lidava com o entorno. Não era
possível estar consigo, escrever sobre si, sem o socorro dos outros; no caso, dos autores diletos. Era
preciso recompensar-se do pensamento caótico do asilo, da linguagem delirante e inócua da maioria
dos pacientes e da ineficácia do linguajar e do tratamento psiquiátrico, por meio de pensadores
invisíveis, não palpáveis a olho nu, habitantes de um mundo paralelo, somente acessíveis nas
estantes da Calmeil – o que rendeu observações no diário:
Logo ao entrar na secção, no meado do dia da segunda-feira, notei que a biblioteca tinha
mudado de lugar. Mudei a roupa, pois meu irmão me apareceu com outra de casa.
Esperei o Dias que me marcasse o dormitório, e sentei-me na biblioteca e estava
completamente desfalcada! Não havia mais o Vapereau, Dicionário das literaturas; dois
romances de Dostoiévski, creio que Les possédés, les humilliés et offensés
9
; um livro de
Melo Morais, Festas e tradições populares do Brasil. O estudo sobre Colbert estava
desfalcado do primeiro volume; a História de Portugal, de Rebelo da Silva também
10
, e
assim por diante. Havia, porém, em duplicado, a famosa Biblioteca internacional de
obras célebres (BARRETO, 1993: p.31).
8
No texto “A stultia de Erasmo”, em que analisa o Laus Stultitiae de Erasmo de Rotterdan (no site
Dubito Ergo Sum), André Rangel Rios dá esclarecimentos pertinentes sobre a tradução do termo stultia:
“Em português, neste caso, usa-se já tradicionalmente a palavra ‘loucura’; em francês, folie; em inglês,
folly; em alemão, Torheit. Estas palavras não são entre si, como se pode facilmente ver, sinônimos
perfeitos; mas detenhamo-nos na questão da tradução para o português. Para retrotraduzirmos a palavra
‘loucura’, poderíamos escolher em latim, baseando-nos no dicionário de A. G. Ferreira, por um lado,
entendendo-a como ‘falta de juízo’, insania, amentia ou dementia, por outro lado, entendendo-a como
‘extravagância’, insipientia, insania, deliratio ou stultitia. Mas haveria ainda muitas outras possibilidades.
Falta no verbete de Ferreira, por exemplo, a palavra furor, que é a que, se nos basearmos em Cícero e
Celso, seria a mais apropriada a um texto de caráter jurídico. Amentia e dementia podem ser consideradas
sinônimas e teriam um uso mais reservado e, por assim dizer, mais técnico. As palavras com o campo
semântico mais amplo são insania e stultitia. Contudo, uma vez que Celso parece dar preferência ao
termo insanus ao falar dos que têm problemas mentais, insania se aproximaria mais do uso médico que
stultitia. O que é, porém, para nós particularmente relevante é que, ao longo do texto em latim da Laus, a
palavra stultitia (que tem, aliás, também a função de nome próprio, caso em que, a rigor, deveria ser
intraduzível) se desdobra em muitas outras como insania, insanus, furor, idiota, moria, fatuus etc. Muitas
vezes stultitia ou suas sucedâneas surgem como sendo traduções de palavras gregas (p. ex. moria, idiota,
ou agrammatoi). Ou seja, a palavra stultitia é, ao longo da Laus, sempre traduzida e retraduzida,
mantendo-se numa relativa instabilidade de sentido. No texto da Laus, stultitia é apenas uma
exemplificação de uma série de sinônimos que só em parte, de fato, são reciprocamente equiparáveis. (...)
Vista deste modo, a dificuldade de tradução não é aqui uma questão meramente filológica, mas é uma
questão interna ao texto. O texto não busca delimitar, nem a palavra, nem o conceito, nem a personagem
Stultitia, mas trabalha no sentido de manter sua compreensão ou seu campo semântico sempre movediço.
A Stultitia se mostrará como volúvel, astuta e polimorfa, enfim, contraditória, disseminada e mutante.”
9
São dois romances de Dostoiévski, como atesta o autor, mas os títulos corretos são: Les possédés (1862)
e Humiliés et offensés (1871).
10
O autor acusa estar desfalcada a obra História de Portugal pois era composta de cinco tomos.