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LIMA BARRETO E A LITERATURA DA URGÊNCIA:
a escrita do extremo no domínio da loucura
Luciana Hidalgo
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), na área de concentração em Literatura
Comparada, na linha de pesquisa “Perspectivas
Filosóficas da Teoria da Literatura”, sob a orientação
do Professor Doutor Gustavo Bernardo Krause, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Letras, em março de 2007.
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Esta tese foi desenvolvida graças ao apoio da FAPERJ (Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)/ Governo do
Estado do Rio de Janeiro/ Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia.
Agradeço, antes de tudo, àquele que tudo orientou, Prof. Gustavo Bernardo: pelas
aulas, pela competência e prontidão, pela paciência e delicadeza nesse longo
processo.
Ao querido amigo e Prof. Sérgio Nazar David, tão presente e disponível a enriquecer
este trabalho com informações, livros, minúcias e palpites sempre felizes.
Ao Prof. João Cezar de Castro Rocha, detentor de um conhecimento e uma
generosidade docente que muito encorajaram o meu caminho acadêmico desde o
prólogo, bem como, especificamente, a construção desta tese.
Ao amigo e Prof. Roberto Machado, que me apresentou o texto-base deste estudo,
“A escrita de si”, de Michel Foucault, abrindo a brecha do meu pensamento neste
desafiador diálogo entre filosofia e literatura.
À Prof. Carlinda Fragale P. Nuñez, admirável oradora, e a toda a sua sólida base
cultural-filosófica greco-romana, generosamente compartilhada com os alunos.
Aos professores da Uerj que, com seus cursos e saberes, entusiasmaram-me e me
influenciaram: Flávio Carneiro; Italo Moriconi; Victor Hugo Adler Pereira e
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo.
Ao amigo e psicanalista Miguel Calmon du Pin e Almeida, às suas pontuais e
generosas observações freudianas.
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A Jorge Bastos,
a-intelectual no melhor sentido
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SINOPSE
As interseções entre loucura e literatura em Lima Barreto. Diário do
hospício como forma de reconstituição de si no domínio da psiquiatria. A
construção de um espaço autobiográfico com ficções auto-referentes onde o
eu é premente. A criação de uma literatura da urgência contaminada pelo
hospício, com valor documental-histórico. A escrita do extremo como fator
que esgarça limites entre vida e obra, constituindo o espaço da expressão do
indizível.
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SUMÁRIO
1. Lima Barreto, loucura e literatura: interseções históricas
2. As multifunções da escrita de si: confissões de um eu sem filtro
3. A literatura de si: o eu maquiado domina a ficção
4. O a-intelectual entre a utopia e o caos
5. Literatura da urgência: a expressão do indizível
6. Referências bibliográficas
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(...) o alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e quis impedir de
dizer insuportáveis verdades.
Antonin Artaud
Deve-se ser para si, e ao longo de toda a sua existência, o seu próprio objeto.
Michel Foucault
As nossas maiores bênçãos nos chegam por via da loucura.
Sócrates
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1.
LIMA BARRETO, LOUCURA E LITERATURA: INTERSEÇÕES HISTÓRICAS
Em Diário do hospício, Lima Barreto descreve o período da sua segunda internação no Hospício
Pedro II (de 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920), compondo simultaneamente uma
escrita de si
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e uma crônica do manicômio que desvela as particularidades de uma sociedade
artificial, forjada em nome do desatino. O texto é um relato íntimo pontuado por anotações
esparsas, impressões, confissões, inconfidências e, sobretudo, por uma visão muito peculiar da
instituição psiquiátrica e da loucura
2
. Sob os diagnósticos de neurastênico e alcoólatra (sendo que o
alcoolismo provocava delírios temporários, o estigma social e, por vezes, a perseguição da polícia),
Lima escreveu o registro da sua experiência no local que cunhou de cemitério dos vivos.
Transformou a escrita numa estratégia de sobrevivência ao hospício e produziu um raro documento
da história da psiquiatria no Brasil. Entre o diário e a crônica, criou uma literatura da urgência,
escrita detonada pela emergência da auto-expressão, de um eu empenhado em lidar com uma
situação-limite.
Desde o início do diário percebe-se como essa escrita é contaminada pelo círculo de vícios do
entorno, constituindo um reflexo imediato das experimentações perpetuadas desde que a sociedade
caiu na tentação do controle do incontrolável: a contenção da loucura. Frente à complexidade do
insano, a humanidade optou por isolar aqueles considerados loucos prática que ganhou
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O conceito escrita de si, extraído do texto homônimo de Michel Foucault, contempla a idéia da escrita
como exercício pessoal. O autor estipula dois tipos de escrita de si: os hypomnêmata (cadernos
individuais de notas que servem de ajuda-memória e são uma espécie de livro de vida, guia de conduta,
acumulando citações, fragmentos de obras, exemplos e ações dos quais fomos testemunhas ou dos quais
lemos uma narração, reflexões ou pensamentos que ouvimos ou que vieram ao espírito; podem também
ser livros contábeis ou registros blicos com anotações desta espécie) e a correspondência (as cartas
também como suportes para exercício pessoal). Este conceito será aprofundado no capítulo 2, intitulado
“As multifunções da escrita de si: confissões de um eu sem filtro”.
2
É importante ressaltar que o termo ‘loucura’, seus sinônimos e derivados não aparecerão em itálico ou
entre aspas ao longo de toda esta tese, mas deve-se subentender o caráter relativo intrínseco a esses
vocábulos.
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consistência teórica no século XIX, quando a medicina se apropriou do alienado, e a psiquiatria foi
formulada com base em argumentação científica.
Lima denunciou o saber-poder médico e documentou um dos períodos da História em que um
indivíduo socialmente inadaptado, portador ou não de sintomas psiquiátricos, recebia o lacre de
maldito e, por conseqüência, um prontuário médico no hospício. Sob o jugo do Estado, aprisionado
pela polícia numa instituição com o aval da família, Lima assistiu à desapropriação da existência em
meio à massa formada por casos graves de distúrbios mentais. O diário constitui a prova da sua
exceção: esta escrita da acusação, que colocava o social sob juízo e invertia o jogo perverso da
psiquiatria ao denunciar a sua arbitrariedade e o abuso do poder, consolidou-se como uma o-
ficção autobiográfica, marcada pela urgência do autor em se exprimir e se insurgir contra o sistema
dominante que tentava controlá-lo.
Para a construção do que nesta tese se pretende formular como literatura da urgência, intimamente
vinculada a uma noção de escrita de si (e do seu desdobramento como literatura de si), utiliza-se
como base o Diário do hospício, do referido autor, partindo-se para a investigação das interseções
entre loucura e literatura, e/ou, mais especificamente, entre psiquiatria e literatura. Busca-se
demonstrar como obras de autores produzidas em períodos de internação em hospícios revelam
aspectos de relevância para a compreensão de um lugar específico deste largo espectro que é a
literatura – Lima Barreto é o eixo desta análise, mas escritos do poeta e dramaturgo francês Antonin
Artaud, do artista plástico sergipano Arthur Bispo do Rosario e do poeta curitibano Loriel da Silva
Santos são mencionados em alguns momentos, quando a comparação se revela fértil. Marcada por
excessiva subjetividade e intrínseca semiologia, essa escrita produzida na instituição,
paradoxalmente antiinstitucional, reflete o intricado diálogo entre escritor e instituição.
Em História da loucura na Idade Clássica, Michel Foucault mostrou como o classicismo lidou com
a loucura, aprisionando-a em casas de internamento destinadas a miseráveis, doentes e tipos
considerados a-sociais sob o julgamento moral da época. A Europa dos séculos XVII e XVIII deu
início à prática da internação como forma peremptória de isolamento daqueles que a sociedade
considerava rebotalhos, refugos não absorvidos no cotidiano pela aristocracia e burguesia antes
disso, registros de hospitais reservados a loucos no mundo árabe desde o século VII, incluindo
música, dança e fábulas como formas de tratamento; sob esta influência, a Espanha realizou
experiências similares no século XV. Percebe-se como, ao longo dos séculos, o diagnóstico foi
acentuadamente moral, sendo o pedido de internação (em grande parte dos casos) uma iniciativa da
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família do louco, com o conseqüente referendo da Justiça. A medicina apropriou-se da insanidade
com todas as classificações nas áreas de frenologia, nosografia etc. a partir do século XIX, época
em que alienistas como Pinel e Esquirol consolidaram a psiquiatria como ciência responsável pelos
alienados.
Ao ser internado nas primeiras duas décadas do século XX, Lima Barreto recebeu a pesada herança
do século anterior, esquivando-se, no entanto, do período seguinte, marcado pelo surgimento das
parafernálias mais violentas inventadas para o controle do delírio. Ao interpretar a linguagem das
neuroses e psicoses no final do século XIX, a psicanálise de Freud abriu um caminho inicialmente à
margem dos manicômios. Enquanto estes prolongaram, ao longo do século XX, a vocação
experimental para a aplicação de métodos como o eletrochoque (criado como terapia em 1928), a
lobotomia (invenção do português Egas Moniz datada de 1936, que lhe rendeu o Nobel de
Medicina), e para a utilização de uma farmacologia psiquiátrica passível de amenizar sintomas em
troca de efeitos colaterais danosos (desde os primeiros neurolépticos criados na década de 1950, até
os mais recentes medicamentos), a teoria psicanalítica permaneceu paralela, à margem dos
hospícios, por boa parte do século em questão, sendo gradativamente absorvida, em alguns de seus
pilares, pela psiquiatria, a partir, sobretudo, da luta do movimento antimanicomial fortalecido nas
últimas décadas do século XX.
Pode-se ler o diário de Lima Barreto como um paradigma do aspecto negativo da psiquiatria, uma
vez que o escritor enquadrou-se em inúmeros argumentos da época para a internação, sendo a
maioria de natureza moral, decorrência de um questionável juízo social. Diário do hospício possui,
entre outras funções, a de resposta à instituição endereçada a seus dirigentes. A leitura do texto
como o manuscrito de uma revolta requer, portanto, uma breve investigação da evolução da loucura
não desta em si, pois a complexidade do tema perpetua-se, impedindo a sua inoculação num
coeficiente absoluto, mas da forma como a sociedade classificou e lidou com a insanidade,
apropriando-se arbitrariamente do personagem louco.
Quando Lima Barreto deu ao hospício o epíteto de cemitério dos vivos (o título do romance
inacabado do autor passado no hospício, originado das anotações do diário e lançado
postumamente, sendo uma parte editada em vida, na Revista Souza Cruz), concentrou no termo
parte da história da loucura, desta poética mórbida capaz de simultaneamente atrair e aterrorizar.
Foucault mostrou como o tema da morte, que imperou no mundo ocidental até a segunda metade do
século XV, foi substituído, nos últimos anos desse mesmo século, pela loucura, no lugar que era do
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vazio da existência: “(...) agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em
ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em
que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte (FOUCAULT,
1995: p.16)”.
Segundo Foucault, a liberdade dos sonhos, alucinações e fantasmas da loucura mais fascinava do
que atemorizava o homem daquele século. Os loucos, no entanto, assumiram o lugar dos leprosos
na exclusão social, exatamente quando a lepra começou a sumir do universo medieval e do seu
imaginário. Na mesma margem destinada aos loucos, enfileiraram-se portadores de doenças
venéreas, pobres, vagabundos e presidiários hordas de mortos-vivos incapazes de gerir a própria
sobrevivência.
A associação era clara: a loucura denunciava a morte em vida, o fim, considerado “o advento de
uma noite na qual mergulha a velha razão do mundo (FOUCAULT, 1995: p.22)”. Enquanto o
pensamento medieval, eminentemente religioso, estabelecia a exclusão social como uma espécie de
reintegração espiritual, uma redenção pelo sofrimento, o classicismo acolhia uma novidade, a
grande descoberta: o terror por trás da loucura passava a ser reconhecido como pertencente à
própria natureza humana. O inferno não era o outro, mas residia no interior do homem; era o terror
em si, de si.
Lima Barreto escreveu para dar uma ordenação própria, singular, a este interior; escreveu para não
enlouquecer, ou simplesmente optou por “escrever para não morrer (BLANCHOT, 1987: p.90)”,
como enunciou Maurice Blanchot. Diário do hospício exacerba um ceticismo que muitas vezes
beirou o niilismo e flertou com a morte. Primeiramente, o escritor confessou: “Vejo a vida torva e
sem saída (BARRETO, 1993: p.50)”. Posteriormente, afirmou: “Suicidou-se no pavilhão um
doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão
belo como o de hoje (BARRETO, 1993: p.51)”. A experiência no hospício levou Lima ao espaço
dialético em que vida e morte se unem. O diário reflete a explanação de defesa de um réu isolado
diante do tribunal social, provavelmente em busca de uma auto-absolvição. Na condição de interno,
o escritor não via possibilidade de ser ouvido em suas indagações existenciais. Neste grande vazio,
a proximidade de uma loucura equivalente à morte desfiou a memória e configurou um discurso de
si que tem explicação no seguinte enunciado de Blanchot:
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(...) não se pode escrever se não se permanece senhor de si perante a morte, se não se
estabeleceram com ela relações de soberania. (...) Por que a morte? Porque ela é o
extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo o que pode, é
integralmente poder (BLANCHOT, 1987: p.90).
Sob este prisma, o dramaturgo, ator e poeta francês Antonin Artaud viveu igualmente o extremo da
proximidade com a morte, experimentando um estado de soberania diante dela – conseqüentemente,
diante de si mesmo ao dispor da escrita como artifício de resistência durante os nove anos de
internação em diversos hospícios da França (ele freqüentou, de 1937 a 1946, Le Havre, Sotteville-
les-Rouen, Sainte-Anne, Ville-Evrard e Rodez). Diagnosticado como esquizofrênico, alternando
fases lúcidas e outras marcadas por um contato quase nulo com a realidade, Artaud distancia-se
bastante de Lima Barreto no prognóstico médico. A uni-los, a literatura da urgência, uma tentativa
de resgate da identidade que se consolidou como inscrição capaz de ir além das técnicas de controle
corporal no hospital psiquiátrico. No caso específico dos esquizofrênicos, funcionou como um
S.O.S., uma ferramenta útil na tentativa de compreensão de si, na recuperação de um eu
radicalmente partido, de um pensamento cindido para usar expressão próxima à etimologia da
esquizofrenia (do grego, alma fendida). No caso de Lima Barreto, fortaleceu a escrita de si e
rearrumou o pensamento perturbado por delírios alcoólicos.
Autor de uma linguagem da violência, mentor do Teatro da Crueldade, Artaud pretendeu levar a
fronteira loucura/morte ao limite, ao conceber um teatro que atuasse como a peste, colocando o
homem diante dos seus conflitos à base do terror:
O teatro deslancha o conflito, libera forças, dispara possibilidades e, se são negras tais
possibilidades, não se culpe a peste, e nem o teatro, mas a vida. (...) Ele convida o
espírito a um delírio que exalta energias e, pode-se ver, resumindo, que do ponto de
vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é salutar, pois, levando os homens a se
enxergarem tais como são, faz caírem as máscaras, descobre a mentira, a frouxidão, a
baixeza, a “tartufaria”. Ela sacode a inércia asfixiante da matéria que invade até os
dados mais claros dos sentidos e, revelando às coletividades de poderes obscuros, a sua
força oculta, convida-as a que tomem, frente ao destino, uma atitude heróica e superior
a que jamais chegariam sem isto. [Le théâtre dénoue le conflit, dégage des forces,
déclenche des possibilités et, si ces possibilités sont noires, ce n’est pas la faute de la
peste ou du théâtre, mais de la vie. (...) Il invite l’esprit à un délire qui exalte les
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énergies et l’on peut voir, pour finir, que, du point de vue humain, l’action du théâtre,
comme celle de la peste, est bienfaisante car, poussant les hommes à se voir tels qu’ils
sont, elle fait tomber les masques, elle découvre le mensonge, la veulerie, la bassesse, la
tartuferie. Elle secoue l’inertie asphyxiante de la matière qui gagne jusqu’aux données
les plus claires des sens et, révélant à des collectivités des puissances sombres leur
force cachée, elle les invite à prendre en face du destin une attitude héroïque et
supérieure qu’elles n’auraient jamais eue sans cela.] (ARTAUD, 1964: p.46).
O heroísmo, o martírio e a associação à santidade como exemplos de uma transcendência do
humano em nome do divino, do fantástico, constituem referências renitentes em escritos de
pacientes psiquiátricos. Heróis de epopéias, santos ou o próprio Cristo são figuras recorrentes no
imaginário do hospício, guiando ou assombrando aqueles que recebem o diagnóstico de delírio de
grandeza. Artaud postulou um teatro-convite ao delírio, contra a mentira, em prol de uma verdade
que ele vislumbrava na familiar (para ele) fronteira entre a loucura e a morte. O poeta foi além, ao
exigir uma atitude heróica e superior diante do destino, face ao fim. Em A arte e a morte, a
questão-título é central:
Quem, no seio de certas angústias, no fundo de alguns sonhos, não conheceu a morte
como sensação que despedaça e é maravilhosa, que não pode confundir-se com nada na
lei do espírito? tendo conhecido essa aspirante ascensão de angústia, de ondas que
nos atingem e fazem inchar como acionadas por insuportável bofetada. A angústia que
se aproxima e afasta cada vez mais espessa, cada vez mais pesada e farta. É o próprio
corpo que chega ao limite de distensão e forças, e assim mesmo deve ir mais longe. É
uma espécie de ventosa assente na alma, de acidez que escorre como um vitríolo até aos
derradeiros marcos do sensível. E a alma sem ter pelo menos o recurso de se quebrar.
Porque esta própria distensão é falsa. A morte não se contenta com tão pouco. Esta
distensão no plano físico é como que invertida imagem de um aperto que deve ocupar o
espírito ao correr de todo o corpo vivo. (ARTAUD, 1993: p.9).
A escrita de Artaud impregna-se desta experiência radical à beira da morte, da loucura que se
avizinha da morte, tendo no delírio a sua pulsão e, nesta, a redenção do tosco real. A literatura da
urgência provavelmente constituiu sólido meio de libertação dos sentidos do cárcere e de combate à
aniquilação do corpo freqüentes em instituições homogeneizadoras. Nos diários de Rodez (conjunto
de sete volumes de diários escritos por Artaud durante a permanência no hospício), o dramaturgo
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alterna alucinações, crises místicas e pensamentos coerentes, incutindo nos manuscritos uma
virulência que os torna uma resposta violenta à psiquiatria. Van Gogh, o suicidado da sociedade
livro escrito após a saída do hospício de Rodez (em 1946) durante os dois anos em que se manteve
vivo fora do asilo – é claramente um exorcismo literário da experiência da dor. Embora a obra traga
Van Gogh como tema-título, Artaud utilizou o pintor como signo-mor de uma semiótica perversa,
que refletia o martírio de todos os alienados tomados como reféns do Estado sob a administração
psiquiátrica. Ao dar a sua versão do louco, o autor se antecipou a Foucault no parecer moral dos a-
sociais:
É um homem [Van Gogh] que preferiu ficar doido, no sentido em que socialmente o
entendemos, a degradar uma certa e superior idéia de honra humana. Por isso a
sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles de quem quis livrar-
se ou defender-se por recusarem ser cúmplices, com ela, de certas e subidas
indecências. Porque o alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e
quis impedir de dizer insuportáveis verdades. (...) Por isso houve bruxarias unânimes a
propósito de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard,
Hölderlin, Coleridge (ARTAUD, 1993
2
: pp.21-22).
Artaud é claro ao afirmar: o louco é um sujeito não ouvido em sua verdade. A literatura da urgência,
ou no caso de Van Gogh, a arte da urgência, funcionou como meio concreto de expressão desta
verdade de si, reprimida pela sociedade. A não-escuta provavelmente fortaleceu a escrita como uma
das poucas ferramentas à disposição do interno.
Assim como Artaud, Lima Barreto escreveu o Diário do hospício na região em que o grande temor
e o poder extremo e integral perante a morte complementavam-se e se aniquilavam. Viveu no asilo
sob o peso da psiquiatria, sofreu sob a vigilância da polícia, sentindo a vida desalojada pelo poder
social. O paradoxo: apesar de ser integralmente poder na experiência da loucura/morte, na prática
ele se fragilizou frente ao saber médico, destituído de poder para livrar-se da instituição quando
quisesse. O diário foi seu confessionário, o espaço vazio de juízes sociais, que não indício de
que Diário do hospício fosse lido pelos médicos, funcionários ou pacientes do Pedro II.
Nesses escritos do hospício, psiquiatras eram avaliados com desprezo intelectual. Prova disso é o
trecho em que o autor traçou o perfil de Henrique Roxo, médico do Pedro II:
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Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu
do mistério que mistério! que na especialidade que professa. os livros da
Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não a natureza. Não tenho por ele antipatia;
mas nada me atrai nele (BARRETO, 1993: pp.24-25).
Lima criticou o médico, a grande autoridade do manicômio, desafiando a sua autoridade, na
condição de paciente. Trata-se de uma crítica ferrenha à psiquiatria, que não o ouve, não a
natureza e se pauta em dogmas dos livros da Europa, dos Estados Unidos. A relação do escritor
com Henrique Roxo poderia até ser melhor, que, em outro trecho do diário, ele conta que o
médico perguntou pelo seu pai o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto que, após perder o
emprego em um jornal, tornou-se funcionário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador em
1891, enlouquecendo anos depois. Ou seja, o médico mostrou um cuidado, uma atenção especial
em relação a Lima. Este, no que o tocava, entretanto, parecia sentir-se humilhado justamente porque
o médico detinha informações valiosas sobre a sua genealogia. Ao mostrar conhecimento dos
antecedentes familiares, era como se, automaticamente, o discriminasse. No diário, portanto, uma
fina ironia explode no epíteto dado a H. Roxo: “(...) o poeta épico da Psiquiatria (BARRETO, 1993:
p.48)”.
Historicamente, a relação entre o interno e a psiquiatra no espaço restrito do asilo foi
inevitavelmente contraditória. Se a medicina era o poder, o médico era o todo-poderoso. Quando o
Estado responsabilizou-se pela loucura e delegou poderes à psiquiatria, o psiquiatra tornou-se o juiz
do louco, aquele que, com base na leitura de sintomas, no depoimento das testemunhas (familiares e
amigos), determinava a condenação ou o livrava da instituição. Na hierarquia do hospício, uma
horda de enfermeiros e guardas foi formada para sustentar esta engrenagem, o que revela, por si só,
a natureza da experiência psiquiátrica: um misto de hospital e presídio, vigiado por uma equipe
transformada na polícia do interno.
Franco Basaglia, um dos líderes do movimento libertário que pregou a antipsiquiatria pelo mundo,
chamou atenção para a configuração do poder no hospício tradicional. Precursor do movimento
italiano conhecido como Psiquiatria democrática, o médico desenvolveu novo modelo de
assistência para os pacientes nos anos 1970, em substituição ao antiquado sistema manicomial, ao
assumir a direção do Hospital Provincial de Trieste. A denúncia da relação excludente e repressora
da medicina em relação ao interno constituiu, como bem assinalou Basaglia, a base da
argumentação do movimento antimanicomial:
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O puro poder do médico aumenta tão vertiginosamente quanto diminui o poder do
doente; este, pelo simples fato de estar internado, passa a ser um cidadão sem direitos,
abandonado à arbitrariedade dos médicos e enfermeiros, os quais podem fazer dele o
que bem entendem, sem que haja possibilidade de apelo (apud FOUCAULT, 1988:
p.126).
A perda da identidade e da cidadania, acrescida do abandono e da solidão impostos pela autoridade
social, é um dos temas dominantes do diário de Lima Barreto. Foucault dissecou essas práticas
realizadas em nome da moral e da ciência, revelando que a função do asilo psiquiátrico do século
XIX, além do isolamento, consistia na configuração de um espaço fechado para um confronto,
lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão (FOUCAULT,
1988: p.122)”. É de sua autoria uma das mais completas descrições do tratamento da loucura nesta
época:
Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX isolamento,
interrogatório particular ou público, tratamentos-punições como a ducha, pregações
morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório,
recompensa, relações preferenciais entre o médico e alguns de seus doentes, relações de
vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico
tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”;
aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando
permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de
a ter sabiamente desencadeado. (FOUCAULT, 1988: p.122)
A atuação ambígua do médico e do monstro estendeu-se ao longo do século XIX e atravessou o
século XX com graves dissonâncias. O mestre da loucura não era, sob o olhar de Lima,
propriamente um mestre. Detinha, no entanto, o controle do destino do interno, enquadrando-o na
população de alienados sob prognósticos raramente convincentes. Lima era o ponto de interseção
dos clichês do hospício: pobre, mulato, bêbado, a-social. Sobre o primeiro destes rótulos, torna-se
importante lembrar como, desde o século XVII, a pobreza se irmanou à loucura. Enquanto a Idade
Média santificou a miséria, pelo mérito de redenção dos ricos, o classicismo isolou pobres e
excluídos: a Grande Internação foi decretada em 27 de abril de 1656 na França para impedir a
mendicância, o ócio, a desordem acontecimento que tem explicação no contexto histórico do
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século XVII, quando os serviços sociais gradualmente deixaram o âmbito altruísta da Igreja e
migraram para a esfera política do Estado em formação.
As casas de internamento destinadas a indigentes, loucos, criminosos, doentes e a-sociais
consolidaram-se, aliando assistência e castigo fora delas, mendigos eram humilhados e punidos
publicamente. O Estado assumia progressivamente a responsabilidade por pobres e loucos com a
perversão característica da relação paternalista: cuidava (embora não curasse), desde que pudesse
exercer direitos de proprietário sobre eles. A loucura passava a ser caso de polícia, metida no
cárcere, porém, diferentemente da prisão, não havia qualquer expiação de culpa ou brecha para
arrependimento. O louco era um presidiário sem crime. Seu delito maior era não pertencer à massa
produtiva do Estado, sendo um eterno tutelado pelo poderes sucessivos que disputariam a
propriedade da loucura. Outro invisível delito: o perigo a que expunham a sociedade, dado o seu
descontrole. No século XVII, os agentes do internamento encontraram, enfim, argumentos para a
consolidação do que Foucault chamou de mito da felicidade social: assim que o mal-estar na
sociedade foi julgado como risco, o Estado inoculou o perigo em espaços de segregação.
A triagem realizada no domínio do hospital na era clássica levava em conta a genealogia do
paciente, sobretudo a origem social. A psiquiatria mudaria as regras da internação no século XIX,
dispondo-se a isolar apenas os loucos e resgatá-los do caos de julgamentos sociais, morais e, no
Brasil, raciais. Os preconceitos, entretanto, estiveram invariavelmente presentes, à semelhança da
sociedade externa aos muros do asilo. No Brasil, num estudo realizado pelo Dr. Antônio Luís da
Silva Peixoto em 1837, intitulado “Considerações gerais sobre a alienação mental” e baseado nas
teorias de Pinel e Esquirol, o tratamento da doença mental levava igualmente em conta preceitos
morais e observações pouco científicas. Em Doença mental e cidade: o hospício de Pedro II,
Francisco Carlos da Fonseca Elia dá detalhes sobre essa avaliação do médico:
A dificuldade em precisar o conceito de loucura, visto como perturbação e não como
destruição da inteligência, assim como da sensibilidade e dos movimentos, levou-o a
enumerar uma lista vastíssima das possíveis causas do desequilíbrio mental, que
incluem: o clima, as estações, a idade, os sexos, os temperamentos, as profissões, os
modos de vida. Desta forma, nada escapa ao seu furor classificatório na constituição do
indivíduo louco: “o ócio e o aumento de civilização concorrem para o aumento do
número de loucos... uma educação viciosa pode ser causa da alienação mental... os
costumes também influem muito no desenvolvimento desta enfermidade. Por exemplo,
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o uso imoderado do vinho e das bebidas alcoólicas predispõe à loucura... os prazeres
venéreos, levados ao excesso e sem escolha, degradam e enfraquecem a razão do
homem; o celibato, sobretudo forçado, também concorre para aliená-lo”. (...) Diante das
causas físicas determinantes da insanidade, a alienação mental é caracterizada como
sendo uma doença hereditária e tanto a menstruação na mulher e as hemorróidas no
homem seriam causas que muito teriam contribuído para a perda da razão na cidade do
Rio de Janeiro. Do ponto de vista moral, as causas mais freqüentes de insanidade eram:
as emoções vivas, o terror, o amor levado ao excesso ou contrariado, o temor, a cólera, a
ambição, os reveses da fortuna, os desgostos médicos (ELIA, 1996: pp.6-7).
O ócio, a educação viciosa, a bebida alcoólica, os prazeres venéreos, o celibato, a menstruação, as
hemorróidas... A lista era numerosa e, para dizer o nimo, arbitrária. Porém, é digno de
observação o fato de que, quase um século depois, tenha sido este o discurso de Rodrigues Caldas
(de 1920), primeiro diretor empossado na Colônia Juliano Moreira, ao lançar o conceito do novo
manicômio (formado a partir da mudança das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, onde o
pai de Lima Barreto trabalhou, o hospício de Jacarepaguá faria história como um dos mais temidos
por seus excessos punitivos no tratamento de doentes crônicos):
Foi, pois, jubiloso e esperançado, que compareci a esta festividade, a fim de saudar ao
Sr. Ministro da Justiça (Alfredo Pinto), que vem remodelando a Assistência a
Alienados, pela fundação destas colônias (...) e pela provável promulgação de uma nova
legislação na qual serão resolvidos delicados problemas atuais de higiene e defesa social
pertinentes aos deveres do Estado para com os tarados e desvalidos de fortuna, do
espírito ou do caráter, para com os ébrios, loucos e menores retardados, ou delinqüentes
e abandonados, assim como para com os indesejáveis inimigos da ordem e do bem
público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas
doutrinas anarquistas ou comunistas, do maximalismo ou bolchevismo (apud
HIDALGO, 1996: p.28).
A História mudou apenas a natureza da discriminação e suas denominações. Em 1690, no hospital
de Salpêtrière, na França, os adjetivos determinantes das internações de indigentes, vagabundos,
loucos e mendigos embutiam o mais amplo espectro do juízo: debochado, imbecil, espírito
arruinado, libertino, filho ingrato, prostituta, iluminado, visionário, homem muito mau, mulher que
não ama o marido (qualificativos listados por Michel Foucault em História da loucura na Idade
18
Clássica). No Brasil, a psiquiatria também abusou de chavões moralistas e autoritários para realizar
a higiene mental teorizada na década de 1920. Verifica-se, pelo discurso de Rodrigues Caldas, que
os rótulos transformaram-se de acordo com o contexto social, econômico e político, mas a moral
invariavelmente os regeu ao segregar tarados, desvalidos de fortuna, ébrios, loucos, menores
retardados, delinqüentes, abandonados, anarquistas, comunistas e bolchevistas.
Lima Barreto, ao ingressar no Hospício Pedro II, foi admitido como indigente. Nem a distinção
literária tampouco os livros publicados àquela altura foram suficientes para redimi-lo do estigma
social. uma passagem do Diário do hospício em que se acentua a frustração ante o médico, por
não convencê-lo de seus méritos como jornalista e escritor. Ele cada vez mais percebia que também
naquela sociedade fabricada em torno da loucura pistolões e relações sociais privilegiadas
amenizavam a rotina. No seu caso particular, não foi uma obra publicada ou algum reconhecimento
de literato que o retirou da indigência no hospício. Foi um funcionário amigo de seu pai, dos tempos
em que trabalhavam juntos nas Colônias de Alienados da Ilha do Governador, quem lhe arranjou
um quarto especial, partilhado com um estudante de medicina. Sem este pistolão nada nobre na
hierarquia social do hospício e menos ainda em sua própria (já que era tão orgulhoso de suas
qualidades intelectuais) – ele teria permanecido eternamente no limbo do sistema de castas e
poderes estabelecido na instituição.
Dados biográficos explicam o tratamento recebido no manicômio: eterno inadaptado, Afonso
Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881, mulato, carioca, filho de um mestre de oficinas de
composição tipográfica, e trilhou diversos caminhos institucionais, terminando, invariavelmente, à
margem. Embora tenha recebido instrução acima das expectativas para um mulato à sua época
(descendente de escravos, Lima nasceu sete anos antes da Abolição da Escravatura), ele apresentava
incapacidade de se institucionalizar. Freqüentou a Escola Politécnica, mas não obteve o diploma;
passou no concurso para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria de Guerra,
trabalhando como tal, sendo, porém, precocemente aposentado; concorreu à vaga de acadêmico na
Academia Brasileira de Letras sem obtê-la; foi avesso ao casamento, terminando os dias na solidão,
na casa da família original que tanto desprezava.
Lima Barreto ingressava em instituições e delas, quando possível, sempre saía, mantendo uma
independência e um inconformismo que lhe valeram uma vida de percalços. Chegou, por fim, a um
clímax marcado pela armadilha: apesar de certa autonomia adquirida como jornalista e escritor – foi
sempre extremamente crítico e denunciou a hipocrisia em esquemas políticos, sociais e econômicos
19
nos poderes de sua época –, acabou sob a amarra de uma das piores instituições do seu tempo: o
hospício. Foi também outra instituição, a polícia, que o deteve e determinou a sua internação a
priori. A parte inicial do Diário do hospício descreve o rito de entrada: tiraram-lhe a roupa,
substituindo-a pelo uniforme, e atiraram-no num colchão com um cobertor puído. Segue-se um
auto-retrato em tom de reclamação:
Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da
polícia em minha vida. De mim para mim, tenho certeza de que não sou louco; mas
devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de
minha vida material, seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de
loucura, deliro (BARRETO, 1993: p.23).
A leitura da polícia como órgão invasor e arbitrário, como instituição inapta a prendê-lo e conduzi-
lo ao hospício, tem explicação razoável no sistema da época, afinal, a sociedade brasileira livrava-se
ainda muito lentamente do espectro escravocrata e da discriminação racial. Com freqüência a
polícia detinha homens perambulando pelas ruas, por vezes alcoolizados (era o caso de Lima
Barreto, alcoólatra confesso), sem documentos. Como a vadiagem era uma das doenças sociais da
época, vagabundos eram por vezes internados como indigentes uma prática tão antiga quanto a
Grande Internação do século XVII. Após a identificação, caso fossem mulatos, negros e/ou pobres,
caíam na vala comum do hospício até o resgate por parte das famílias. E assim a psiquiatria
brasileira acumulou números bárbaros: um censo realizado em 1981 na Colônia Juliano Moreira
revelou que 22% da população de alienados, internados ali desde a década de 1930, jamais haviam
apresentado qualquer quadro psiquiátrico. Abandonados pelas famílias de origem, sob a tutela do
Estado, tinham-se perdido nos trâmites burocráticos da instituição e na insanidade alheia, sem
condições financeiras para a restituição da cidadania – eram, simplesmente, mendigos.
Lima Barreto encarou toda essa história de preconceito e loucura ao dar entrada no Pedro II, o
primeiro hospício oficial do Brasil, criado por decreto do Imperador em 1841 e inaugurado em 1852
com seu nome. Era um a-social, acrescido de um detalhe da ordem da raça: era descendente de
negros em um período conturbado da psiquiatria no Brasil, quando germinavam entre os psiquiatras
brasileiros as noções de eugenia alemã. Em História da psiquiatria no Brasil, Jurandir Freire Costa
20
conta como Juliano Moreira
3
, diretor do Pedro II, reuniu-se a uma turma de discípulos no Rio de
Janeiro das décadas de 1910/20 para fundar a Liga Brasileira de Higiene Mental. A tese central
baseava-se na hereditariedade como causa da doença mental, desdobrando-se em séria
conseqüência: valendo-se deste preceito, o objetivo consistia em segregar e esterilizar pacientes,
especialmente os não-brancos, dotados de imaginárias, supostamente diabólicas tendências
psíquicas, supostamente lesivas a uma idealizada raça brasileira. Uma das máximas do pensamento
eugenista prescreveu a esterilização como método de depuração da raça, incluindo entre os
proscritos os loucos e/ou negros, estabelecendo o dever de afastar “os anormaes da possibilidade de
reprodução e utilizando-se de uma forma moderna que prescreve esterilizar alienados delinqüentes,
degenerados alcoólicos inveterados, quer como penalidade, quer como prophylactico (COSTA,
1981: p. 56)”.
A perseguição eugenista assombrou internos, sobretudo, negros na história da psiquiatria brasileira.
Surpreendentemente, Lima Barreto mostrou-se relativamente bem-informado sobre a eugenia em
confissão transcrita em Diário íntimo:
Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que umas certas raças superiores e umas
outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e intrínseca à
própria estrutura da raça.
Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e
não sei que cousa feia mais.
Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães.
Eu não sei se alguém já observou que o alemão vai tomando, nesta nossa lúcida idade, o
prestígio do latim na Idade Média.
O que se diz em alemão é verdade transcendente. Por exemplo, se eu dissesse em
alemão o quadrado tem quatro lados seria uma cousa de um alcance extraordinário,
embora no nosso rasteiro português seja uma banalidade e uma quase-verdade.
3
um trecho no Diário do hospício em que Lima Barreto se encontra com o Dr. Juliano Moreira, um
dos maiores nomes da psiquiatria brasileira, no Pedro II, afirmando que o médico o trata “com grande
ternura, paternalmente”.
21
E assim a cousa vai se espalhando, graças à fraqueza da crítica das pessoas interessadas,
e mais do que à fraqueza, à covardia intelectual de que estamos apossados em face dos
grandes nomes da Europa. Urge ver o perigo dessas idéias, para nossa felicidade
individual e para nossa dignidade superior de homens. Atualmente, ainda não saíram
dos gabinetes e laboratórios, mas, amanhã, espalhar-se-ão, ficarão à mão dos políticos,
cairão sobre as rudes cabeças da massa, e talvez tenhamos de sofrer matanças,
afastamentos humilhantes, e os nossos liberalíssimos tempos verão uns novos judeus.
Os séculos que passaram não tiveram opinião diversa a nosso respeito – é verdade; mas,
desprovidas de qualquer base séria, as suas sentenças não ofereciam o mínimo perigo.
Era o preconceito; hoje é o conceito (BARRETO, 1998: p.71).
A anotação, sem data, tem um tom de ironia profética. Como Lima morreu em 1922, é intrigante a
abordagem lúcida da eugenia alemã, o mau presságio em relação aos seus perigos e conseqüências,
17 anos antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e do nazismo de Hitler ancorado justamente
na depuração da raça. O sarcasmo demonstrado em relação à cultura e à língua alemãs, o
reconhecimento da covardia intelectual face à intelligentsia européia e ao totalitarismo político: são
idéias avant la lettre que endossam a lucidez do autor nos escritos íntimos. E representam um alerta
aos perigos de uma higiene racial-mental que ancoravam no Brasil.
Até a inauguração do Pedro II na segunda metade do século XIX, a população brasileira que sofria
de perturbações mentais não possuía local específico para tratamento. As famílias, dependendo da
condição financeira, lidavam com eles de variadas maneiras: os ricos, se tranqüilos ficavam em casa
ou eram enviados para tratamento na Europa; os agitados eram isolados no próprio contexto
doméstico, amarrados quando necessário. Os pobres, se bem absorvidos pelas comunidades,
erravam pelas ruas, alvos da chacota alheia, desaguando no abandono social; os agressivos
acabavam em prisões que os normalizavam com violência. Além disso, como atestou Juliano
Moreira em suas memórias, “a terapêutica de então era a de sangrias e sedenhos, quando não de
exorcismos católicos ou fetichistas. Escusado é dizer que os curandeiros e ervanários tinham
também suas beberagens mais ou menos desagradáveis com que prometiam sarar os enfermos
(apud ELIA, 1996: p.5)”.
Toda esta situação de injustiça social no tratamento da loucura era claramente agravada pelo lugar
desprivilegiado do escravo no período colonial. Em Medicina social e constituição da psiquiatria
22
no Brasil, Roberto Machado (com outros autores) teceu pertinente análise da inserção do negro no
pensamento médico da época:
(...) a referência ao negro como objeto de normalização seja ele visto como pura
animalidade instintiva, rebelde ou não à tarefa civilizatória, ou como plenamente
participante da natureza humana em geral esbarra em sua condição de escravo que o
exclui objetivamente da cidadania. (...) O escravo, na cidade, através dos efeitos de sua
presença no seio da família branca, é visto como causa de desordem, sexualidade
desregrada, paixões, doenças, vaidade, egoísmo, brutalidade. Ao procurar transformá-la
através de sua higienização, a medicina tematiza o escravo como obstáculo fundamental
à criação de uma família brasileira sadia. O escravo causa malefícios a todos os seus
membros: crianças, jovens e pais têm sua saúde e moral danificadas pela presença do
escravo (MACHADO / LOUREIRO / LUZ / MURICY, 1978: pp.354-355).
Conforme as diretrizes da medicina, reforçava-se a necessidade de se retirar o escravo da
convivência com a família branca, do contrário esta se perpetuaria como produtora de doença.
Levava-se em conta a idéia de uma medicina social que era muito menos uma medicina do trabalho
e mais uma medicina urbana, consistindo em higienizar e disciplinar a cidade e a população. Este
estigma certamente se perpetuaria após a Abolição da Escravatura, inscrito na cor da pele de
cidadãos como Lima Barreto, cuja mãe havia sido criada justamente como filha de escrava,
agregada, incluída numa rotina promíscua, partilhada com brancos abastados. Segundo Francisco
de Assis Barbosa (biógrafo do escritor, autor de A vida de Lima Barreto), os seus senhores tratavam
empregados escravos como se pertencessem à família, sendo alguns prováveis filhos bastardos dos
varões da casa. Toda uma herança dificilmente esquecida por Lima.
Outro exemplo a ser citado no quesito preconceito é Arthur Bispo do Rosario, sergipano negro
nascido pobre em Japaratuba, que ingressou na Marinha na década de 1920, aportou no Rio de
Janeiro e passou 50 anos não-consecutivos na Colônia Juliano Moreira. Bispo foi primeiramente
enviado ao hospício Pedro II, na Praia Vermelha, sob a escolta de um policial que o encontrou
peregrinando nas ruas do Centro. Lima Barreto, no diário, conta como errara pelos subúrbios do
Rio, em pleno delírio, no dia 24 de dezembro de 1919, ingressando no hospício no dia de Natal.
Bispo, não por coincidência, foi internado no mesmo hospital psiquiátrico, no Natal de 1938.
Segundo estatísticas de hospícios e prisões, o período natalino costuma agravar estados emocionais
e acirrar ânimos, particularmente em se tratando de sujeitos solitários, desamarrados da genealogia,
23
socialmente deslocados, paradoxalmente em busca de um reconhecimento da sociedade que os
exclui. Não reconhecido em seu tempo, Lima Barreto seria posteriormente consagrado como um
dos maiores escritores da literatura brasileira, e Arthur Bispo do Rosario, exaltado como artista
plástico contemporâneo de reputação internacional, sendo sua obra a representante oficial do Brasil
na Bienal de Veneza (1995), na Itália, exposta em museus europeus como o Jeu de Paume (2003),
em Paris.
A alusão a Bispo diagnosticado como esquizofrênico-paranóico explica-se por contingências
biográficas similares a de Lima, mas, especialmente, pela literatura da urgência e/ou escrita de si
que os uniu. Embora tenha se projetado no circuito da arte contemporânea com bordados, objetos e
assemblages, Bispo cobriu-os de palavras e frases. Não em manuscritos, mas em tecidos. Num
panneau, chegou a descrever o delírio em que sete anjos surgem e o conduzem à presença do poder
supremo. Em comum com Lima Barreto, o desespero da escrita, da narrativa de si. Como escreveu
Bispo num de seus estandartes, a frase-síntese:
Eu preciso destas palavras – escrita (apud HIDALGO, 1996: p.28).
Lima Barreto igualmente precisou das palavras, da escrita, da literatura. Nos ritos medíocres e
embaraçosos do dia-a-dia do hospício, foi à memória literária que acorreu. Ao tomar banho com
pacientes, nus, de portas abertas, sem privacidade, lembrou-se do banho de vapor de Dostoiévski
em Recordações da casa dos mortos e chorou, contendo-se apenas ao recordar os sofrimentos dos
escritores Miguel de Cervantes e Fiódor Dostoiévski em Argel e na Sibéria (respectivamente). É por
conta desta referência no Diário do hospício que Lima escreve uma de suas sentenças-chave:
Ah! A Literatura, ou me mata ou me dá o que peço dela (BARRETO, 1993: p.24).
A literatura ou a morte; haveria outra saída? Lima usou a palavra como arma de combate ao mal
uma asserção que determina a investigação da genealogia deste mal. Ao traçar a história da loucura,
Foucault mostrou como a prática da internação desfiou uma reorganização do mundo moral,
refazendo a hierarquia de valores flutuantes entre o bem e o mal. Até o século XVII, o mal era
exorcizado por meio da confissão, até que a prática do isolamento passou a mascará-lo,
escondendo-o do olhar social e igualando a loucura ao pecado – afinal, loucos dividiam espaço com
libertinos, homossexuais, alquimistas, bruxas, mendigos, prostitutas e personagens de um mundo
24
considerado moralmente degenerado. As casas de internamento do século XVIII serviram para
acirrar o triângulo de vícios formado por loucura-culpa-punição, tornando-se depositários do mal:
O mal que se tinha tentado excluir com o internamento reaparece para maior espanto do
público, sob um aspecto fantástico. Vêem-se nascer e ramificar em todos os sentidos os
temas de um mal, físico e moral ao mesmo tempo, que envolve, nessa indecisão,
poderes confusos de corrosão e horror. (...) Antes de mais nada, o mal entra em
fermentação nos espaços fechados do internamento. Tem todas as virtudes atribuídas ao
ácido na química do século XVIII: suas finas partículas, cortantes como agulhas,
penetram nos corpos e nos corações tão facilmente como se fossem partículas alcalinas,
passivas e friáveis. Essa mistura logo entra em ebulição, soltando vapores nocivos e
líquidos corrosivos (FOUCAULT, 1995: p.354).
Embora a psiquiatria tenha surgido com o objetivo de resgatar a loucura das noções de indigência e
degradação moral da sociedade no século XIX, anistiando internos, por um lado, de uma espécie de
pecado original do desatino, o hospital de alienados apartou o interno do restante do mundo,
condenando-o ao exílio involuntário. Se a loucura durante o classicismo era o mal e se avizinhava
da morte, foi socorrida por uma psiquiatria que no século XIX se anunciou redentora deste mal
incubado no interior do homem. No entanto, se o louco permanecia um cidadão proscrito, é porque
o mal não fora expiado. Ao acumular loucos em série no domínio do asilo, a psiquiatria apenas
reinventou o mal da loucura, dando-lhe nova roupagem, base científica e um método. A cura dos
alienados significaria a extirpação de um mal que, se começava a extrapolar as noções
maniqueístas católicas, ainda antagonizava com a noção de bem-estar social estabelecida pela moral
burguesa oitocentista que adentraria o século XX.
Ao longo da maior parte da história da loucura, o louco habitou o lugar da antítese do bem idéia
que leva à hipótese: se a loucura era o mal, o louco era mau, e sua escrita era o registro deste mal;
um mal que não era somente intrínseco à natureza humana, mas que passava, a partir do século
XIX, a ser produzido pela química entre portadores do mal segregados em uma instituição criada
para curá-los, redirecionando-os ao bem. O louco, a partir do século XVI, não era mais o Louco
nem o Bobo da Idade Média personagens detentores de grande importância no teatro da época,
justamente por lembrarem a cada um a sua verdade, que sua independência social possibilitava a
recusa da hipocrisia. Segundo Foucault, o louco, no século XIX, deveria ser reconduzido à verdade
25
no espaço fechado do hospício, pelo médico, em uma sociedade inventada segundo a lei do
alienista.
Uma breve digressão cabe a esta altura para se citar um conto de Octave Mannoni inserido em
Ficções freudianas, em que o autor ironicamente descreve um documento encontrado nos arquivos
de um ministério francês, datado de 1908. O texto, intitulado Demifous et demiresponsables
(Semiloucos e semi-responsáveis), vem assinado por Joseph Grasset, professor da universidade de
Montpellier e associado da academia de medicina, e é analisado por um alienista com rigor
psiquiátrico. A tese central da obra é revolucionária: o médico solicita ao Estado a ampliação do
estatuto do hospício para a inclusão do direito à internação dos semiloucos e semi-responsáveis. A
argumentação, além de científica, arrola as imagens de semiloucos célebres de obras literárias,
começando por personagens como o óbvio Dom Quixote e terminando nos próprios autores
Cervantes, Dostoiévski, Voltaire, Victor Hugo, por exemplo. Apesar de reconhecer neles
capacidades intelectuais superiores, ao interná-los em manicômios o alienismo se responsabilizaria
por vigiar itens como: vida genital, casamento, formação dos filhos, hereditariedade. A sarcástica
ficção de Mannoni fala de um meio-termo entre o indivíduo normal e o louco, o provável a-social,
que por séculos mereceu tratamento homogeneizado do Estado. O trecho sobre Baudelaire é
divertido exemplo da complexa relação entre psiquiatria e interno, e da obsessão em reconduzir o
alienado de um terrível mal para um fantástico bem:
Se Baudelaire tivesse encontrado uma dedicação como a do professor Grasset, não
somente poderia ter escrito o Marquês do 1
º
de Hussardos e tantas outras obras
permanecidas em projeto, mas teria nos dado vários volumes de Flores do mal ou, quem
sabe, melhor ainda, um Flores do bem! Vê-se qual poderia ser o papel dos alienistas no
desenvolvimento dos tesouros literários, artísticos e talvez científicos da humanidade,
que acontecem nesses campos tantas e tantas tentativas abortadas (MANNONI, 1983:
pp.232-233).
O hospício fabricado pelos agentes do bem os alienistas pode ser analisado como obra de uma
das mais bem tramadas ficções da história: criou-se um cenário ao se escolher a melhor locação
para a loucura; habitaram-no com personagens após ampla seleção de características físicas e
morais; fabricaram-se enredos fantásticos a partir da relação entre os personagens e da sua interação
com o espaço. Este limite entre realidade e ficção não estava mais somente no interior do louco, na
temida fronteira entre o delírio e a razão; mas figurava nesta mais ampla, coletiva e fictícia polis e
26
em sua relação com o mundo externo. Em sua maioria, internos não nasceram nem passaram a
infância no hospício, isto é, foram criados conforme a lei do mundo exterior ao hospital, sendo
posteriormente obrigados a apreender o asilo em sua rotina postiça um grande registro ficcional
do auge do alienismo e de suas contradições é o conhecido conto “O alienista”, de Machado de
Assis, que questiona o diagnóstico de sanidade/insanidade pela ciência e constitui crítica explícita à
psiquiatria do século XIX como discurso dominante, detentor de uma verdade.
O jogo dialético entre o real e o imaginário extremos que no estado da loucura apresentam
divisória tênue foi exacerbado no cotidiano dos hospícios apinhados de tramas, conflitos,
narrativas. Não apenas o louco conviveu com esta dinâmica em si como foi personagem de novas
ficções ao interagir com seu meio: a forjada casa (o manicômio) e a fingida família (médicos,
enfermeiros, guardas e companheiros de internação). Em 1716, La Mothe Le Vayer mencionava
esta incongruência da existência em si: “Toda nossa vida, bem considerada, não passa de uma
fábula; nossos conhecimentos, bobagens; nossas certezas, contos: em suma, todo o mundo é uma
farsa e uma eterna comédia (FOUCAULT, 1995: p.188)”. A loucura, percebida neste contexto,
possui este caráter de fábula, constituindo uma sobreposição de ficções que sustenta o mundo da
razão justamente por oposição a este.
Ao se enumerarem as causas da insanidade ao longo dos séculos, encontram-se as mais diversas e
pouco científicas denominações: onanismo, vermes, sarna, insolação, excesso de sexo, influência
da lua, paixões e desejos desenfreados. Ou ainda: o ar, a vida em sociedade, a obsessão pela
ciência e pelas letras, a leitura de romances, a vida na corte, a culpa decorrente do pecado segundo
a Igreja (seqüência de fatores listada por Foucault em História da loucura na Idade Clássica). Sob
um painel de desculpas, definiu-se a loucura como desregramento da imaginação, irmanando-a à
paixão e ao desejo, sobretudo no homem da cidade, afastado da natureza e levado a excitações
prolongadas, jamais satisfeitas. A imaginação estaria por trás de grande parte do delírio, deste que
“é o sonho das pessoas acordadas (apud FOUCAULT, 1995: p.240)”, segundo Pitcairn. A
inoculação das alucinações, no entanto, na opinião de Foucault, suscitaria justamente a sua
multiplicação:
(...) para todos os médicos do século XVIII, a imaginação, porque participa do corpo e
da alma e porque é o lugar da origem do erro, é sempre responsável por todas as
doenças do espírito. Contudo, quanto mais o homem é coagido, mais sua imaginação
27
divaga. Quanto mais estritas forem as regras às quais seu corpo está submetido, mais
desregrados serão seus sonhos e imagens (FOUCAULT, 1995: pp.432-433).
Sob este aspecto, pode-se conceber o louco como produtor de sintomas traduzíveis em imagens,
metáforas. Em Lire le délire, Juan Rigoli teceu um painel analítico do alienismo, da retórica e da
literatura na França do século XIX, descrevendo o exercício da psiquiatria na leitura dos escritos
dos alienados e investigando a relação entre linguagem e sintomatologia. A interpretação dos
escritos dos internos em hospícios da época era incentivada e realizada pelos alienistas com base em
preceitos intelectuais pessoais, fossem estes filosóficos ou literários, flagrando a ausência de
suporte teórico para realização de tal aventura do saber médico. O autor denunciou, por exemplo, a
tendência à generalização dos sintomas dos internos e o enfoque destes como signos, o que acabou
por constituir uma semiologia das paixões raramente precisa e pouco científica, apesar da certeza
com que a ciência imperou no século em questão (RIGOLI, 2001).
Pode-se pensar, portanto, na qualidade do alienado como ficção ambulante, autor de sintomas-
histórias, criador de narrativas, com ou sem qualidade literária. Eis o ponto onde se fundem as
funções do autor e do louco (no caso de Lima, não o louco diagnosticado como tal, mas o interno
confinado no hospício devido a delírios alcoólicos), esgarçando-se os limites da imaginação-
loucura. Neste sentido, a análise do conceito escrita de si, de Michel Foucault, torna-se o ponto de
partida da investigação do diário como refúgio da subjetividade do louco-autor e é o tema do
próximo capítulo.
28
2.
AS MULTIFUNÇÕES DA ESCRITA DE SI: CONFISSÕES DE UM EU SEM FILTRO
Michel Foucault formulou o conceito escrita de si no contexto de uma série de estudos sobre as
artes de si nas civilizações grega e romana. Partindo de uma marche filosófica que investigava as
relações entre subjetividade e verdade, o autor pesquisou a relevância do cuidado de si na cultura
greco-romana mostrando como esta questão atravessou toda a reflexão moral, desde os primeiros
diálogos platônicos até grandes textos do estoicismo tardio (Epicteto, Marco Aurélio). A ética deste
cuidado consistia em objetivos definidos: retirar-se, viver consigo mesmo, bastar-se, fruir consigo.
Em um momento histórico posterior, contudo, Foucault identificou o cuidado de si condenado
como elemento suspeito, como forma de egoísmo, ou de individualismo, em contraposição a um
interesse coletivo – o autor associou este desvio ao cristianismo, devido ao sacrifício e à renúncia de
si pregados como dogmas, sem, no entanto, creditar o fato apenas à religião cristã. Segundo o autor,
entre os gregos, sobretudo, o indivíduo deveria ocupar-se de si antes de alcançar efetivamente o
exercício da liberdade. O cuidado em questão constituía, assim, uma forma de autoconhecimento,
questão essencial na Antigüidade e premissa de um bom governante: antes de se ocupar dos outros
com competência, era preciso ocupar-se de si com destreza.
A escrita de si surgiu como uma das formas de exercícios de si sobre si, uma prática ascética que
transcendia a idéia de renúncia moral e compreendia a tentativa de se elaborar, se transformar e
alcançar um certo modo de ser. Foucault tomou Atanásio, santo que viveu de 295 a 373,
aproximadamente, em Alexandria, no Egito, conhecido pelo excesso de austeridade e ortodoxia,
como ponto de partida para esta reflexão. Ao escrever Vita Antonii (Vie et conduite de notre Saint-
Père Antoine, écrite et adressée aux moines habitant en pays étranger, par notre Saint Père
Athanase, évêque d’Alexandrie/ Vida e conduta do nosso Santo Padre Antão, escrita e endereçada
29
aos monges que habitam em países estrangeiros
4
, pelo nosso Santo Padre Atanasio, bispo da
Alexandria), o autor incentivou as anotações de atos e pensamentos como elementos indispensáveis
à ascese. O diário do asceta deveria conter tudo o que tentadoramente permanecesse recôndito:
incorreções, pecados, mentiras. Atanasio deu a este tipo de escrita um status até então inaudito:
Eis algo a se observar para assegurar que não se peque. Anotemos e escrevamos, cada
um, as ações e movimentos da nossa alma, para que os conheçamos mutuamente, e
estejamos certos de que, por vergonha de sermos conhecidos, pararemos de pecar e de
ter no coração o que quer que seja de perverso. Quem, pois, ao pecar, consente em ser
visto, e o prefere mentir para esconder seu erro? Não fornicaríamos diante de
testemunhas. Assim, ao escrever nossos pensamentos como se devêssemos comunicá-
los mutuamente, guardaríamos melhor nossos pensamentos impuros, por vergonha de
tê-los conhecido. Que a escrita substitua os olhares dos companheiros de ascese:
enrubesçamos por escrever, tanto quanto por sermos vistos, guardemo-nos de todo
pensamento ruim. Ao nos disciplinarmos desta maneira, podemos reduzir o corpo em
servidão e abater as manobras do inimigo. [Voici une chose à observer pour s’assurer
de ne pas pécher. Remarquons et écrivons, chacun, les actions et les mouvements de
notre âme, comme pour nous les faire mutuellement connaître et soyons sûrs que par
honte d’être connus nous cesserons de pécher et d’avoir au coeur rien de pervers. Qui
donc lorsqu’il pèche consent à être vu, et lorsqu’il a péché ne préfère mentir pour
cacher sa faute? On ne forniquerait pas devant témoins. De même, écrivant nos pensées
comme si nous devions nous les communiquer mutuellement, nous nous garderons
mieux des pensées impures par honte de les avoir connues. Que l’écriture remplace les
regards des compagnons d’ascèse: rougissant d’écrire autant que d’être vus, gardons-
nous de toute pensée mauvaise. Nous disciplinant de la sorte, nous pouvons réduire le
corps en servitude et déjouer les ruses de l’ennemi.] (apud FOUCAULT, 1994: p.415-
416).
Os escritos da reclusão deveriam exercer o papel de espelho do mal, um espaço a ser preenchido
com o que houvesse de negativo, oculto, na conduta dos monges isolados, em retidão absoluta.
Percebe-se que o estímulo à escrita não incluía o registro de aspectos positivos das personalidades,
4
Apesar da opção pela tradução literal países estrangeiros, cabe observar que a expressão pode se referir
a regiões estranhas e adversas, como desertos, ou florestas, e não à noção moderna de país estrangeiro.
30
auto-elogios. O caderno de notas era o confessionário das letras, uma narrativa criada na solidão
eclesiástica, com o poder de representar o olhar externo severo e, sobretudo, substituí-lo. As páginas
escritas ganhavam, assim, a função de exorcismo de demônios, expiação de culpas, destinadas a um
interlocutor invisível, isto é: o próprio autor ocupava o lugar do confessor; em última análise,
conjugava a ambígua função de autor e leitor de si. A escrita constituía uma autoconfissão, exigindo
disciplina e austeridade redobradas, pois faltavam olhos e ouvidos alheios, ou seja, inexistia a figura
do interlocutor entre o pecador e seu senhor. Em suma, todo este mecanismo de escrita possuía um
objetivo final que passava ao largo da elaboração estética-literária: a redenção do eu, isto é, a
redenção do pecador.
Foucault ressalta que o texto de Atanásio não esgota todas as significações que a escrita espiritual
possuiria ao longo dos séculos.
Mas podemos reter vários enfoques que nos permitem analisar retrospectivamente o
papel da escrita na cultura filosófica de si antes do cristianismo: sua ligação estreita com
o companheirismo{no sentido de associação de instrução profissional e de solidariedade
entre pessoas voltadas a um mesmo interesse}, sua aplicação ao movimento do
pensamento e seu papel de prova da verdade. Esses diversos elementos encontram-se
em Sêneca, Plutarco, Marco Aurélio, mas com valores extremamente diferentes e de
acordo com outros procedimentos. Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional,
pode ser adquirida sem exercício: não podemos mais aprender a arte de viver, a technê
tou biou, sem uma askêsis {ascese}, que deve ser compreendida como um treinamento
de si por si: este é um dos princípios tradicionais aos quais muito tempo os
pitagóricos, socráticos, cínicos haviam dado grande importância. Parece que, entre todas
as formas de treinamento (e que comportava abstinências, memorizações, exames de
consciência, meditações, silêncio e escuta do outro), a escrita o fato de escrever para
si e para o outro teve posteriormente um papel considerável. [Mais on peut en retenir
plusieurs traits qui permettent d’analyser rétrospectivement le rôle de l’écriture dans la
culture philosophique de soi juste avant le christianisme: son lien étroit avec le
compagnonnage, son point d’application aux mouvements de la pensée, son rôle
d’épreuve de vérité. Ces divers éléments se trouvent déjà chez Sénèque, Plutarque,
Marc Aurèle, mais avec des valeurs extrêmement différentes et selon de tout autres
procédures. Aucune technique, aucune habileté professionnelle ne peut s’acquérir sans
31
exercice; on ne peut non plus apprendre l’art de vivre, la technê tou biou, sans une
askêsis qu’il faut comprendre comme un entraînement de soi par soi: c’était l’un des
principes traditionels auxquels depuis longtemps les pythagoriciens, les socratiques, les
cyniques avaient donné une grande importance. Il semble bien que, parmi toutes les
formes prises par cet entraînement (et qui comportait abstinences, mémorisations,
examens de conscience, méditations, silence et écoute de l’autre), l´écriture le fait
d’écrire pour soi et pour autrui se soit mise à jouer assez tard un rôle considérable.]
(FOUCAULT, 1994: pp.416-417).
Segundo Foucault, Sêneca aconselhava a conjugação leitura-escrita, enquanto Epicteto associava a
escrita pessoal à meditação. Plutarco, por sua vez, detectou uma função éthopoiéthique: a escrita
como uma espécie de operadora da transformação da verdade em éthos. Estes tipos de escrita
constam de documentos dos séculos I e II estudados por Foucault e possuem duas finalidades
distintas, sendo classificados como hypomnêmata e correspondência. Como esta última não
constitui objeto desta tese, enfatizam-se os hypomnêmata, termo utilizado para designar livros
contábeis, registros e cadernos pessoais que serviam de ajuda-memória, ou guias de conduta na
cultura greco-romana. Continham citações, fragmentos de obras, exemplos e ações testemunhados
pelo autor, bem como pensamentos, argumentos e meios de se lutar contra um defeito (raiva, inveja
etc.), ou uma adversidade (luto, exílio etc.).
Foucault distingue claramente os hypomnêmata dos diários íntimos ou das narrações cristãs:
Eles {os hypomnêmata} não constituem uma narração de si; não têm por objetivo fazer
vir à tona os arcana conscientiae cuja confissão oral ou escrita tem valor
purificador. O movimento que eles buscam efetuar é inverso desse: não se trata de
perseguir o indizível, de revelar o escondido, de dizer o não-dito, mas de captar, ao
contrário, o já-dito; juntar aquilo que pudemos ouvir ou ler, e isto para uma finalidade
que nada mais é do que a constituição de si. [Ils ne constituent pas un ‘récit de soi-
même’; ils n’ont pas pour objectif de faire venir à la lumière du jour les arcana
conscientiae dont l’aveu oral ou écrit a valeur purificatrice. Le mouvement qu’ils
cherchent à effectuer est inverse de celui-lá: il s’agit non de poursuivre l’indicible, non
de révéler le caché, non de dire le non-dit, mais de capter au contraire le déjà-dit;
rassembler ce qu’on a pu entendre ou lire, et cela pour une fin qui n’est rien de moins
que la constitution de soi.] (FOUCAULT, 1994: p.419).
32
Este breve prólogo sobre as inúmeras configurações da escrita de si constitui um ponto de partida
para a análise do Diário do hospício de Lima Barreto. No relato de si realizado na condição de
interno da instituição psiquiátrica Pedro II, o autor conjugou elementos dispersos e fragmentados
que remetiam invariavelmente a ele mesmo: descrições do hospício, com sua hierarquia, rotina,
médicos, funcionários, doentes – e a sua inserção nesse contexto; reclamações quanto à inadaptação
ao cotidiano do hospício; revolta pela internação à sua revelia; auto-análise: fracassos, problemas
familiares; críticas à sociedade como sistema (hipocrisia, sistema de pistolões, desigualdades,
discriminações) que guardam coerência em relação às que constam das crônicas e romances de sua
autoria; autoconfissões; desabafos existenciais; teorias sobre a loucura; teorias sobre a literatura;
citações de autores diletos; anotações de informações tão simples como o número de telefone de um
amigo editor, etc. Curiosamente Lima cita Plutarco inúmeras vezes no diário das mais variadas
formas
5
, sendo que numa das notas esparsas cumpre exatamente a função dos hypomnêmata: capta
o já-dito, ao transcrever uma frase extraída de uma obra lida: “Dizia Catão, segundo Plutarco, que
os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles, porque os bios evitam os erros nos
quais caem os loucos, enquanto estes últimos não imitam os bons exemplos daqueles. V(ida) de
Plutarco, página 178, 2v (BARRETO, 1993: p.80)”.
Lima inicia o Diário do hospício sob efeito do trauma da internação, sendo as suas anotações um
dos meios com que lidou com o choque, buscando uma espécie de verdade de si em meio ao
ambiente caótico. O primeiro parágrafo do diário é um esforço de autoconvencimento da
internação: em 4 de janeiro de 1920 (a data está inscrita na página, indicando que uma intenção
inicial de sistematização do diário em datas, posteriormente abandonada), Lima escreve que se
encontra internado no hospício desde 25 de dezembro de 1919, tendo ali chegado pelas mãos da
polícia. Em seguida, o seu depoimento sobre o primeiro golpe de desconstrução de si pela
instituição:
Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem
chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que estive me deram essa peça do
5
Uma das citações: “Hoje é segunda-feira. Passei-a mais entediado do que nunca. Li o Plutarco, mas não
tive ânimo de acabar com a leitura da vida de Pelópidas. Mais ou menos, releio esta célebre obra, porque
aos dezoito anos fiz uma leitura dela apressada e salteada. Não tem o mesmo sabor, a que faço agora,
como tinha de delícia a primeira. Observo que Plutarco põe muita intervenção dos deuses, nas proezas
felizes dos seus heróis; relações de predições ingênuas que, apesar de tudo, nos fazem rir, mesmo a
mim que sou supersticioso
(BARRETO, 1993: p.53)”.
33
vestuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não. O enfermeiro antigo era humano
e bom; o atual é um português (o outro o era) arrogante, com uma fisionomia bragantina
e presumida. Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro,
atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de
toda a nossa pobreza e miséria (BARRETO, 1993: p.23).
Este trecho conjuga descrição realista e denúncia da homogeneização do vestuário (obrigatoriedade
do uniforme do manicômio), que teria como objetivo apagar qualquer marca de subjetividade. Uma
vez enquadrado na lida do asilo, devidamente uniformizado (apesar de faltar-lhe calçados), Lima
àquela altura autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo
Quaresma (publicado em folhetim no Jornal do Comércio em 1911 e em livro, em 1916) e Vida e
morte de M. J. Gonzaga de (1919), para citar o tripé básico da sua obra de ficção foi
provisoriamente destituído da identidade pregressa. De escritor passou a doente mental; de
jornalista-intelectual a alcoólatra-neurastênico. Apesar da perda (do status literário, de intelectual),
manteve a escrita como exercício, como reação ao freqüente processo de institucionalização do
sujeito. Emerge daí uma hipótese: o diário íntimo de Lima Barreto seria, exclusivamente, uma
decorrência da internação, daí ser inevitavelmente infectado pela rotina do hospício, reunindo
fragmentos de um eu desapropriado, em contato diário com a fragmentação de diversos eu rendidos
a delírios, cada qual imerso em sua insanidade privada.
Esse diário pode ser lido como o esforço de reconstrução de fragmentos do eu, organização de
delírios
6
e pensamentos, entre outras finalidades. Um dos pontos que se pretende demonstrar é a
multifuncionalidade da escrita de si de Lima Barreto, isto é, desta escrita institucional e
antiinstitucional que a priori se diferencia no estudo da literatura por sua vocação, justamente,
institucional (por ser produzida dentro de uma instituição, em situação de cárcere/internação), mas
que se traduz dialeticamente como antídoto à instituição. Se Plutarco acreditou na escrita como
transformadora da verdade em éthos, Lima Barreto utilizou o diário como medicamento, o meio
pelo qual seria possível remediar-se da rotina no hospital psiquiátrico e alcançar um modo de ser
privado, solitário, não-coletivo. Aos olhos da psiquiatria brasileira das décadas de 1910-20,
6
É preciso lembrar que, apesar de o diagnóstico de Lima Barreto (alcoolismo e neurastenia) não
representar caso grave no hospício nem mesmo significar loucura, propriamente, o autor confessou ter
delírios, devido à bebida, o que justificou a sua internação provisória: “Passei a noite de 25 no pavilhão,
dormindo muito bem, pois a de 24 tinha passado em claro, errando pelos subúrbios, em pleno delírio
(BARRETO, 1993: p.24).
34
contudo, esta escrita representaria mais uma espécie de placebo, princípio farmacologicamente
inativo, do que remédio eficaz para a cura de uma psicopatologia. Para o autor, a urgência do diário
acumulava inúmeras utilidades.
O escritor reuniu os mais variados tipos de narrativas, atribuindo-lhes funções diversificadas
eficientes: confissão de si e evocação do não-dito em busca de uma redenção, senão religiosa,
social; registros de leituras, referências a autores, bem como pensamentos, argumentos e meios de
se lidar com a adversidade (a internação no hospício), como forma de compilação do já-dito (um
meio paradoxalmente racional e desesperado de manter a integridade diante de uma máquina
desintegradora). Diário do hospício possuiu ainda uma outra função: a do diário íntimo, tal como o
gênero surgiu no século XIX, afirmando-se como corpus de confissões, intimidades; um espaço
para expressão e afirmação do eu, que transforma o autor em personagem, alternando
automitificação e autodepreciação.
Em L’écriture de soi, Guy Besançon traça um histórico do diário, observando que, apesar de o
registro autobiográfico preexistir como gênero, trata-se de uma forma de produção literária
relativamente recente. Os primeiros registros próximos da idéia de diário datam do século XVII na
Inglaterra e do culo XVIII na França, sendo este hiato secular conseqüência de uma minúcia
sociológica: a noção de privacidade é, ressalta Besançon, mais antiga na sociedade inglesa. Os
escritos dessa época foram precursores do diário íntimo tal como viria a surgir no século XIX,
justamente por transcenderem o rigor formal do antigo Livro de Razão: não eram apenas livros de
contas, compilações de resoluções, registros de fatos domésticos e públicos, mas transpareciam
igualmente sentimentos, comentários sobre os outros, desejos, arrependimentos, remorsos. Além do
caráter racional, deixavam entrever o emocional, tornando-se mais pessoais.
A idéia do diário íntimo se fortaleceu à medida que a noção de identidade se consolidou na cultura
européia, remetendo, invariavelmente, aos hypomnêmata que serviram de base para a formulação
filosófica de Foucault:
Estes escritos {os hypomnêmata} tinham, para seus autores, entre outras finalidades, a
de melhor definir sua identidade, isto é, de um lado o que determinava a sua
especificidade, de outro, diferenciá-los de seus semelhantes. É comum dizer, com os
historiadores, que a noção de identidade é tardia, no sentido moderno que lhe
atribuímos, e que ela nasceu com Montaigne, idéia, aliás, contestada por Pascal: “O tolo
35
projeto de se descrever”. Esta noção de identidade, similar à noção de responsabilidade
pessoal, é muito própria do Ocidente e das influências judaico-cristãs. Em outras
civilizações, em outras culturas, na África... o indivíduo se apaga por trás da família, do
grupo social, do clã. (...) Esta noção de identidade vai pouco a pouco se fortalecer. A
filosofia das Luzes que se impõe em toda a Europa do século XVIII é um sensualismo
que situa a experiência vivida na origem de todo o pensamento e considera o indivíduo
como unidade de base do corpo social, duplo encorajamento a uma invasão da literatura
por um Eu não mais visto como odioso. [Ces écrits avaient, pour leurs auteurs, entre
autres finalités, celle de mieux cerner leur identité c’est-à-dire d’une part ce qui faisait
leur specificité, d’autre part les différenciait de leurs semblables. Il est fréquent de dire
avec les historiens que la notion d’identité est tardive, au sens moderne que nous lui
donnons, qu’elle n’a pris vraiment naissance qu’avec Montaigne, idée d’ailleurs qui
était contestée par Pascal: “Le sot projet de se peindre”. Cette notion d’identité qui va
de pair avec la notion de responsabilité personelle est assez propre à l’occident et aux
influences judéo-chrétiennes. Dans d’autres civilisations, d’autres cultures, en
Afrique... l’individu s’efface derrière la famille, le groupe social, le clan. (...) Cette
notion d’identité va peu à peu se renforcer. La philosophie des Lumières qui s’impose à
travers toute l’Europe du XVIIIe. est un sensualisme qui place l’expérience vécue à
l’origine de toute pensée et considère l’individu comme l’unité de base du corps social,
double encouragement à un envahissement de la littérature par un Moi qui n’a plus rien
d’haïssable] (BESANÇON, 2002: p.28).
Anterior ao século das Luzes, em contraposição aos hypomnêmata, a escrita de si produzida pelo
séquito de Atanásio serviu exclusivamente à Igreja, à coletividade cristã, não podendo certamente
se considerar elegia ao eu, pois esse eu justamente era visto como algo detestável, a ser
ultrapassado. Historicamente, o catolicismo pregou o desvio de si, ao impingir aos indivíduos
disciplina excessiva, autoflagelação e um perdão somente possível após brutais arrependimentos e
penitências sob o juízo de um membro da instituição católica. Muitos séculos mais tarde, Freud
viria redimir as diversas facetas deste eu reprimido e flagelado, ao endossar o inconsciente como
local onde se velam todos os aspectos heterogêneos da personalidade do sujeito, dos sombrios aos
sublimes, expressos ou não. Porém, segundo a ordem clerical, para se combater o eu, era (é) preciso
subjugar características negativas (ódio, inveja etc.) tanto quanto positivas (inteligência, beleza
etc.), sob o risco de, neste último caso, incorrer na exaltação do eu (decorrendo em vaidade,
36
orgulho). Ou seja, diferentemente dos hypomnêmata, concebidos como forma de auto-organização,
os escritos dos discípulos de Atanásio provocavam a desconstrução de uma identidade, de uma
individualidade, em prol de uma sociedade (religiosa).
Neste sentido, pode-se levantar a hipótese segundo a qual o Diário do hospício detém, entre outras
funções, a de uma confissão de si, assinada por Lima Barreto e endereçada a uma sociedade – não à
cristã, mas à sociedade brasileira como sistema, com leis, proibições e punições típicas de qualquer
coletividade. Como a crítica social era uma das características mais marcantes da obra do autor,
pode-se atribuir ao diário a tentativa de auto-reconstituição, sendo esta escrita o acerto de contas
com a sociedade que o internou e, antes disto, o discriminou, não o reconhecendo suficientemente
em diversos setores, sobretudo em sua condição de intelectual. O diário pode ser lido como um
ensaio para um pretenso julgamento final diante desta sociedade; um tête-à-tête com o social, sem a
personificação do poder na figura de um padre.
Na vida-obra de Lima Barreto, uma questão é renitente: foi o autor marginalizado pela sociedade
bien-pensante, ou buscou ele, individualmente, um outro lugar, distante das convenções, livre dos
cânones, onde pudesse se expressar sem a condenação alheia? Paradoxalmente, a condição do a-
social nem sempre foi a de vítima, e, no caso de Lima, pode ter sido a de um intelectual-artista
atuante, capaz de criar um mundo paralelo onde o olhar social ganhava menos peso e valor, e o eu
tornava-se gradualmente mais imperativo. Pesava contra ele, no entanto, a contradição: Lima
visivelmente se ressentia da falta de reconhecimento da sociedade, estabelecendo um ciclo vicioso
de revolta/perdão, crítica/compreensão, amor/ódio, em relação ao social. Afinal, sendo o homem
uma espécie gregária, foi sempre difícil lidar com a a-sociabilidade sem uma reação: fosse com
violência, ou com arrogância e disfarce. O episódio da candidatura de Lima a uma vaga na
Academia Brasileira de Letras, três vezes fracassada, é o paradigma desse paradoxo. Mas é bom
sublinhar que sempre fez parte do signo maldito esta sorte de incongruência.
No hospício, isolado, distante da intelectualidade com a qual mantinha conturbada relação, Lima
transformou o diário no espaço da auto-afirmação, mas deixou vazar a preocupação com a opinião
do outro. Diário do hospício compõe-se de textos esparsos e notas, alguns datados, outros não, onde
a certa altura o autor se trai, deixando entrever não ser apenas um diário, inocente e puramente
confessional, mas um texto em que transparece uma explicação a seus leitores. Em um trecho, Lima
fala diretamente ao leitor, como se os escritos não fossem assim tão íntimos, confidenciais, pelo
37
contrário, como se ele intimamente previsse a publicação póstuma e trabalhasse nesta escrita como
réplica ao poder social.
Vendo aquele homem, que se dizia ter sido estudante do quarto ano de medicina,
engenheiro agrônomo, agrimensor, jornalista e fazia versos, é de imaginar que prazer
não foi o meu em encontrá-lo e como eu me esqueci da pequena mágoa, que seu mau
humor me causou no pavilhão. Mas estava escrito que eu não poderia, no meio de cento
e tantos insanos, <encontrar> um com quem trocasse uma palavra. Os leitores hão de
dizer que não era possível encontrar isso numa casa de loucos. É um engano; muitas
formas de loucura e algumas permitem aos doentes momentos de verdadeira e completa
lucidez (BARRETO, 1993: p.43).
O trecho revela a presença do leitor como possível representante do social e abre uma brecha nesta
escrita de si para si. Porém, como o Diário do hospício é uma compilação de anotações sortidas,
incluindo notas do autor com a intenção de escrever um romance, mesclam-se objetivos e
características diversas num mesmo corpus. Entre as multifunções do Diário do hospício, uma das
leituras pode ser realizada tendo o leitor como testemunha; ou mesmo, o leitor como confessor. Se
Diário do hospício exerceu o papel de confessionário para Lima, assim como a escrita de si de
Atanásio visou substituir olhares alheios, a menção ao leitor, tal como a ele se reporta no trecho
acima, pode transformá-lo em uma espécie de interlocutor invisível do social.
A esta altura, uma pergunta é cabível: todo escritor que escreve um diário sabe que será lido, senão
em vida, postumamente, e conta com esta possibilidade? A questão diz respeito, sobretudo, aos
escritores em geral, pela natural curiosidade alheia por suas confissões e correspondência: leitores
costumam buscar no texto não-publicado desejos inauditos e/ou escritos marcados pela mesmo
apuro literário de outras obras. Pode-se responder afirmativamente à indagação a partir do momento
em que o autor não deixa instruções para seus familiares acerca da interdição da publicação a
exemplo de Edmond Goncourt, que deixou em testamento ordem para que seus diários (escritos
com o irmão Jules, contendo fofocas e críticas sobre a sociedade da sua época) fossem
publicados 50 anos após a sua morte, como forma de evitar processos judiciais. Em Diário íntimo,
Lima toca neste tema de forma direta:
Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse
sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e
38
ela; é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para bem ser compreendido
exigiria uma autobiografia, que nunca farei. (...) Aqui bem alto declaro que, se a morte
me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se
sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter
vergonha (BARRETO, 1998: p.44).
Por um lado, existe a expectativa de ser lido em toda a sua intimidade, aliada ao temor da
incompreensão de suas anotações, devido ao teor marcado pela emoção bruta, sem lapidação, sem
filtro. Por vezes, parece também existir, ainda que recôndito, o desejo da edição póstuma, do
contrário, seria razoável a queima das páginas escritas no calor do desabafo. Por outro lado, é
difícil, em geral, prever-se a própria morte a ponto de se desfazer dos escritos de conteúdo
humilhante a tempo. Percebe-se, contudo, pelas inúmeras edições dos diários do autor, que seu
desejo de discrição não foi respeitado. Resultado: por meio da leitura da escrita de si, desvelam-se
fracassos e expõe-se o não-dito com transparência por vezes desconcertante:
Além dessa primeira vez que estive no Hospício, fui atingido por crise idêntica, em
Ouro Fino, e levado para a Santa Casa de lá, em 1916; em 1917, recolheram-me ao
Hospital Central do Exército, pela mesma razão; agora, volto ao Hospício. Estou seguro
que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é
próximo. Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus parentes. Não é justo
que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão o Senhor Carlos
Ventura (BARRETO, 1993: p.23).
Nestas frases escritas na primeira página do diário, percebe-se em Lima o desespero, aliado ao
esforço da memória, da sistematização das datas das internações, dos diagnósticos recorrentes.
Junto à lucidez, o incômodo à família, a vergonha da condição de interno e a ausência de amigos
conduzem-no a um sentimento de solidão em que transparece a inadaptação ao meio social
(trabalho, meio familiar, amigos), gradualmente agravada na reclusão do manicômio.
O alinhamento de defeitos é típico do diário íntimo, gênero pontuado pelo esboço do impensável,
do constrangedoramente humano, por não ter, a princípio, o leitor como testemunha. Sendo assim,
aumentam as chances de que esta exposição de auto-horrores surja sem pudor. No caso de Lima, a
presença do leitor é ambígua, não sendo clara a sua certeza de publicar, um dia, o diário. O fato de
citar o leitor, no entanto, demonstra que este pode funcionar como baliza para emoções tão
39
humanas. No hospício, o olho deste leitor invisível pode ser o símbolo de uma sociedade
provisoriamente distante, da qual ele não consegue mais esconder fracassos, temores e humilhações,
e à qual tenta, de viés, explicar a sua trajetória até o hospício. No entanto, é de si e para si que Lima
escreve, o que leva a uma questão: a fusão, no diário, do eu e do outro, isto é, das funções de autor
e leitor, sendo Lima o autor e também o leitor, mas um leitor especial, capaz de compilar e
conservar as convenções, leis e preconceitos da sociedade extra-muros. Assim como os discípulos
de Atanásio procuravam reconhecer os seus pecados por meio do bom conhecimento das leis
católicas na retidão, sem a presença de uma autoridade clerical, Lima aproveitou a reclusão para
uma confissão de si cujo juiz era ele próprio, ou, para utilizar um conceito freudiano, seu superego,
a autoridade internalizada.
Para o escritor, foi preciso isolar-se na rotina do asilo psiquiátrico, em um meio social distorcido e à
margem da realidade, para que emergisse esta escrita de si, abrangente e íntima, ancorada em
matéria bruta, primária, no que de instintivo e menos elaborado no sujeito. Eis a distinção básica
entre escrita de si e literatura de si, sendo esta última uma ficção auto-referente, maquiada, filtrada
e esteticamente mais aprimorada, podendo chegar ao ponto de travestir-se de roman à clef (caso do
romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, tão criticado em seu lançamento por trazer,
mascarados sob a embalagem da ficção, personagens conhecidos do jornalismo da época).
Besançon assegura que a doença mental possui, entre outras especificidades, justamente a de excluir
o sujeito do grupo, sendo a solidão o principal efeito cotidiano. A angústia do sujeito ante a
hostilidade do mundo por vezes avizinha-se da loucura, ou mesmo da morte, evocada por Lima logo
na primeira página do diário, quando cita o cemitério de Botafogo e subentende a possibilidade de
suicídio como escape ao hospício. Além do alcoolismo, Lima recebeu o diagnóstico de neurastenia,
tal como consta de uma licença dada pelo Ministério da Guerra ao escritor para tratamento de
saúde, de 1
º
de novembro de 1914 a 31 de janeiro de 1915, ou seja, logo depois da sua primeira
internação no Pedro II, ocorrida entre 18 de agosto e 13 de outubro de 1914. Em 1916, durante uma
temporada em Minas Gerais (a convite de um jornalista do Correio da Noite), Lima sofreu uma
crise de nervos e foi internado na Santa Casa, recebendo uma outra licença para tratamento de
saúde, também sob o diagnóstico de neurastenia, dessa vez com anemia pronunciada (BARRETO,
1998: p.231).
A neurastenia está associada a um estado de astenia física e psíquica, à incapacidade de fazer
esforços, incluindo preocupações com a saúde, irritabilidade marcante, dor de cabeça e distúrbios
40
no sono, entre outras características devido à complexidade e variedade de sintomas, sempre
constituiu um estado de difícil diagnóstico. Acredita-se que o comportamento do indivíduo
neurastênico freqüentemente dificulta a adaptação social, relegando-o a uma marginalidade, assim
como à ocorrência de fobias, desconfiança e tendência para a mistificação. Segundo alguns
psicanalistas, a neurastenia seria uma regressão à personalidade infantil, com tendência narcisista.
Trata-se de um distúrbio da personalidade com variadas características queixas de fatiga após
esforços mentais, relacionada a uma certa diminuição do desempenho profissional e da capacidade
de fazer face às tarefas cotidianas, ou sensação de fraqueza corporal e física após esforços mínimos
que se assemelham a sintomas descritos por Lima. Como as classificações da psiquiatria
evoluíram no último século, é difícil precisar exatamente os sintomas descritos para tal diagnóstico
dado na década de 1910. Além disso, cabe lembrar que, por se tratar de avaliação médica, o termo
neurastenia dificilmente foi rotulado na época levando-se em conta as idéias de Freud sobre o
assunto.
De todas essas características, destaca-se a inadaptação do a-social, sobretudo quando radicalmente
isolado da sociedade da qual se diferencia (condição agravada no hospício), e que se revela
flagrante nas palavras de Lima:
Estou entre mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser
estranho. Não será bem isso, pois vejo bem que são meus semelhantes. Eu passo e
perpasso por eles como um ser vivente entre sombras – mas que sombras, que espíritos?
As que cercaram Dante tinham em comum o stock de idéias indispensável para
compreendê-lo; estas o têm mais um para me compreender, parecendo que têm um
outro diferente, se tiverem algum (BARRETO, 1993: p.32).
Percebe-se como a impressão da incompreensão do outro acompanha-o no novo círculo social
estabelecido no domínio do hospital psiquiátrico. Lima restabelece a relação conflituosa com o
outro, cita o Inferno de Dante, identifica-se com o martírio humano e evoca sombras, espíritos,
incapazes de compreendê-lo. Volta e meia conta que reconhece um ou outro interno de situações do
passado: do colégio, da repartição, dos cafés. Evita, no entanto, o diálogo. A certa altura, confessa
que se envolve mais com os pacientes nessa temporada do que na primeira internação no Pedro II;
ainda assim, recolhe-se. E se irrita, apesar de exibir autocontrole invejável:
41
Custa a crer que esses loucos, dous principalmente, V.O. e F.P., me aborreceram e
irritam-me. Esqueço que são loucos e dá-me vontade de vociferar. Vou pedir alta, para
não dar essa demonstração de loucura (BARRETO, 1993: p.89).
Diante da incomunicabilidade no hospício, o diário se afirma como meio peremptório da distinção
de Lima entre seus semelhantes; uma técnica passível de dirimir a estranheza e restituir a
familiaridade que, em última instância, o sujeito mantém apenas consigo. Um extrato do texto de
Amiel, filólogo, filósofo do século XIX e autor de 16 mil páginas de escritos íntimos, reúne
algumas das mais acuradas descrições dos objetivos do diário:
Este diário me permite resistir ao mundo hostil, somente a ele posso contar o que me
aflige ou pesa. Este confidente me livra de muitos outros. O perigo é que ele evapora
em palavras tanto as minhas resoluções como as minhas penas; ele tende a me dispensar
de viver, a me substituir a vida. É minha consolação, meu estimulante, meu libertador;
mas provavelmente, também, meu narcótico. Ele destrói o instinto sociável; ele é (dizia
Michelet) um prazer solitário, onipresentemente nocivo, doentio, mau. [C’est ce Journal
qui me permet de résister au monde hostile, à lui seul je puis conter ce qui m’afflige ou
me pèse. Ce confident m’affranchit de beaucoup d’autres. Le danger c’est qu’il évapore
en paroles aussi bien mes résolutions que mes peines; il tend à me dispenser de vivre, à
me remplacer la vie. Il est ma consolation, mon cordial, mon libérateur; mais peut-être
aussi mon narcotique. Il détruit l’instinct sociable; il est (disait Michelet) une
jouissance solitaire et partout nuisible, malsaine, mauvaise] (BESANÇON, 2002:
p.15).
As palavras de Amiel (que, aliás, é citado no diário, quando Lima diz que Alves, um interno, um
artigo sobre ele) reforçam algumas características fundamentais do Diário do hospício. Por
extensão às idéias de Amiel: o diário livra Lima das relações sociais no hospício ao ocupar o
privilegiado lugar de confidente e destruir rastros do instinto sociável; dilui as resoluções tomadas
pelo autor, condenadas à inação uma vez transcritas sem que um olhar externo as leia com censura,
anulando a necessidade de punições; dispensa o autor da vida como ela é, evitando-lhe percalços
concretos e construindo um espaço imaginário (como na ficção), onde o eu tem toda autonomia, é o
herói, anti-herói, da farsa, sem, necessariamente, um comprometimento com a verdade. O diário é,
por fim, o grande libertador, a desculpa anti-social, a escrita de alforria do eu.
42
Amiel, contudo, não ignorava os defeitos desta escrita, sabendo-os nocivos, doentios, delirantes
como os efeitos dos narcóticos. A questão da insalubridade do diário íntimo permeia várias
reflexões sobre o tema. Em Le journal intime, Béatrice Didier afirma, por exemplo, que o diário
nasce de uma situação carcerária e, ao mesmo tempo, a suscita. O refúgio na escrita isola o autor do
entorno, tornando-se igualmente o seu cárcere. Por isto, segundo a autora, a função essencial do
diário é salvar este capital fundamental que é o eu. Pode-se deduzir, a partir disto, que a escrita do
diário no isolamento psiquiátrico carrega o peso do duplo encarceramento, uma vez que o autor não
é livre para romper com o estado de aprisionamento psicológico nem físico. Como a liberdade no
hospício passa a depender exclusivamente da autoridade psiquiátrica, o louco-autor passa a ser
prisioneiro da instituição e do diário, dificultando a possibilidade de reversão deste quadro. No caso
do autor (de diário) em liberdade, cabe a ele quebrar o círculo dialético entre o eu que se quer
resgatar e o cárcere que a escrita pode representar – apesar de esta esgueirar-se, a priori, como mero
instrumento de reconstituição de si. Ele pode, a certa altura, abandonar o diário e privilegiar a vida
real, pois dispõe desta opção.
Besançon comenta, por exemplo, que em muitos diários famosos (além do de Amiel) é possível
captar o momento em que a escrita substituiu a vida. Autores passavam a viver exclusivamente do
exercício de escrever sobre si, assim, excluíam-se da lida exterior e pouco tinham a contar sobre
acontecimentos externos; quase nada ocorria no campo prático. O diário passava a ser a existência,
e lhes interessava expressar fenômenos de uma vida interior (baseada numa vida/experiência
anterior). Esta busca de uma subjetividade na reclusão encontra-se igualmente no cerne do Diário
do hospício, porém, o círculo de vícios do asilo exercia uma influência quase totalitária no
indivíduo, sobretudo em Lima, capaz de preservar a lucidez por todo o período de internação, já que
os seus delírios alcoólicos eram temporários uma vez sóbrio, cessavam por completo, restando a
angústia e a abstinência. Deste modo, a sua escrita de si não fez emergirem insatisfações
pessoais, questões familiares e problemas financeiros, em uma obsessiva auto-investigação, como
possuía a já citada função de antídoto à instituição psiquiátrica, obtendo o efeito da catarse,
purgação, ou purificação. No caso específico do louco-autor, a escrita constituiu uma importante
forma de liberdade do logos, o sistema de defesa e expressão diante da hostilidade da psiquiatria.
O início do Diário do hospício transparece a preocupação primordial de Lima Barreto: a
compreensão do motivo da internação e da sua condição de vida ante o poder no hospício. Para
tanto, descreve o Pedro II, critica os médicos, busca pistas. O eu está no epicentro de toda a
43
descrição, e o relato do ambiente psiquiátrico a princípio não possui outra finalidade a não ser a
contextualização da sua desgraça em meio ao cenário triste da loucura.
Voltei ao pátio. Que cousa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos
outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e
compassivo, de camponês transmontano. (...) Tinha que ser examinado pelo Henrique
Roxo. quantos anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece
inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me
parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte,
desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz
de examinar o fato por si. (...) Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações.
Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da
ciência e a crendice do Hospício. Creio que ele não gostou (BARRETO, 1993: pp.24-
25).
O trecho demonstra a sensação de estranhamento do escritor num ambiente, paradoxalmente, muito
familiar durante infância e adolescência. O pai de Lima, João Henriques de Lima Barreto, trabalhou
como almoxarife e administrador das Colônias de Alienados da Ilha do Governador durante 11
anos, habitando na própria área do hospício, conforme o antigo sistema de colônia. Neste período,
Lima freqüentou o manicômio, na condição de filho de um administrador, que corresponde a um
cargo não humilhante e de razoável posição na hierarquia da instituição. Órfão de mãe desde os 6
anos, tinha apenas 10 quando se viu obrigado a passar os finais de semana em casa, isto é, no
hospício, após cumprir semana de estudos num colégio particular, o Liceu Popular Niteroiense, às
custas do padrinho, o Visconde de Ouro Preto esta é, aliás, uma informação biográfica de grande
relevância, pois Afonso Celso (o Visconde) foi deputado, senador e ministro da Marinha, com
enorme influência no Império.
A habitação no domínio da loucura foi interrompida quando o pai enlouqueceu e foi
precocemente aposentado, levando a família a morar no Engenho Novo e obrigando Lima, então
com 21 anos, a assumir maior responsabilidade financeira na dinâmica doméstica e a lidar com a
insanidade dentro de casa. Ou seja, a loucura se avizinhou da casa durante quase três quartos da
vida do escritor.
A evolução desta tragédia familiar é descrita, revista e analisada no diário:
44
Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento
ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica
sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo;
previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava (-me) com uma
demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a
minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar
pela noite adentro; e assim conheci o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na
casa deste ou daquele (BARRETO, 1993: p.35).
A trajetória de Lima assemelhou-se à do pai, cuja vida o assombrava. Segundo Francisco de Assis
Barbosa, ao sentir-se obrigado a aceitar o emprego no manicômio e se ressentir pelo exílio da vida
urbana e da digna profissão de tipógrafo, João Henriques tornou-se alcoólatra. Lima conviveu com
o alcoolismo do pai e, posteriormente, tornou-se também alcoólatra, reproduzindo o destino
paterno. Deste herdara, certamente, o grande temor de não arranjar colocação condigna com a sua
instrução. Afonso Henriques sonhara transpor os limites sociais e raciais por meio da cultura, da
literatura, mas acabara internado no hospício, no rastro do pai.
Este parêntese biográfico serve de suporte à compreensão da conflituosa relação de familiaridade e
estranhamento demonstrada no diário. O convívio com loucos era-lhe próximo, mas a loucura
permanecia um mistério, sobretudo devido ao exemplo paterno: o pai passou de administrador do
hospício a paciente. Percebe-se a grande dificuldade de situar-se na hierarquia do Pedro II, que,
na pirâmide do poder das colônias da Ilha do Governador, detinha condição privilegiada, como se
imunizado contra a doença mental e a indigência da instituição. A posição de filho de um
administrador rendia-lhe, de início, privilégio na prática e segurança (psicológica) na teoria.
Quando o pai sofreu surto psicótico sem retorno, esta autoconfiança se abalou, provocando uma
sensação de insegurança devidamente registrada no diário:
Oh! Meu Deus! Como eu tenho feito o possível para extirpá-lo {o alcoolismo} e,
parecendo-me que todas as dificuldades de dinheiro que sofro são devidas a ele, e por
sofrê-las, é que vou à bebida. Parece uma contradição; é, porém, o que se passa em
mim. Eu queria um grande choque moral, pois sico os tenho sofrido, semimorais,
como toda a espécie de humilhações também. Se foi o choque moral da loucura
progressiva de meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal
que tinha na vida, que me levou a ela, um outro bem forte, mas agradável, que
45
abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de
me fazer porco, me faz burro (BARRETO, 1993: p.32).
O trecho aponta para outra hipótese: o diário como saída de emergência à abstinência, substituto da
bebida – nesse sentido, uma espécie de amortecimento dos conflitos e sintomas que poderiam
conduzi-lo para fora da posição de refém daquela situação. De qualquer forma, destaca-se uma
insatisfação consigo bastante insistente em diários íntimos. Nota-se que as suas questões, das
ontológicas às mundanas, acabavam sempre por remeter a si mesmo, a uma auto-avaliação, ou auto-
análise, no senso mesmo da terapia psicanalítica, embora sem a presença do psicanalista (assim
como os escritos de Atanásio excluíam a presença do confessor). Ao citar a loucura do pai e
questionar o impacto moral deste acontecimento, Lima centrava-se no entendimento da sua loucura,
da fragilidade que o conduziu ao alcoolismo, levando-o ao hospício. Ao narrar o encontro com o
psiquiatra Henrique Roxo, grande autoridade do asilo, posicionou-se com poder de crítica
excepcional para um paciente recém-chegado. Mostrou que guardava a moral, a lucidez, a ironia.
Apesar de se vestir com farrapos e se sentir um peru guiado por um português rude em meio à
coletividade, demonstrou capacidade de criar uma literatura da urgência que abrangia boa parte dos
medos, rancores, pensamentos, sem estardalhaço, mas em claro tom de queixa. Na descrição do
médico, por exemplo, conjugou razão e emoção em frases precisas: mostrou que o conhecia por
meio do pai, ou seja, buscou um possível privilégio com este approach, demonstrando
pragmatismo; criticou a arrogância da medicina diante de atividades intelectuais alheias; citou a
internação por intermédio do irmão, Carlindo, e ridicularizou-lhe a na onipotência da ciência,
especificamente, da psiquiatria. O irmão faz-se presente nos escritos, por ter sido o responsável
pelas duas internações de Lima. Segundo Francisco de Assis Barbosa, ele era funcionário da polícia
e teve toda facilidade para requisitar a policiais o recolhimento de Lima ao Pedro II em 1914. Uma
madrugada boêmia despertara alucinações alcoólicas e persecutórias, diagnosticadas pelo mesmo
médico do pai. Carlindo decidiu enviá-lo para a casa de um tio em Guaratiba, onde Lima teria
quebrado vidros e virado mesas. A decisão de chamar a polícia para conduzi-lo ao hospício partiu
daí, mas a ignorância do irmão em deixá-lo ser transportado no carro-forte para loucos comuns,
caracterizando o ingresso no manicômio como indigente, jamais seria perdoada por Lima. Em 1919,
o processo foi similar: após noite imersa no delírio, o irmão repetiu o pedido de internação.
46
Esse tom de crítica à cumplicidade entre família-psiquiatria e de descaso em relação ao poder no
hospício apresenta requinte raro em manicômios. A revolta era literária, intelectual; não física,
rude
7
. Contudo, Lima sofreria as conseqüências do encontro com o médico do Pedro II:
Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores e pátios até ao Hospício
propriamente. é que percebi que ficava e onde, na secção, na de indigentes, aquela
em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é formidável. O
mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem-par. Sem fazer
monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das
camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e
outros mais exóticos, são os negros ronceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das
janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros,
moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas
que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social (BARRETO, 1993: p.25).
Lima foi encaminhado à seção de indigentes, a casta mais baixa e humilhante da instituição,
destinada aos pobres, sem recursos. Diante desta manobra da psiquiatria, o autor confirmou o seu
complexo social, tema de outros escritos (crônicas, romances etc.). Esta descrição reforça a
classificação de a-social, imperativa no manicômio ao longo da história. Lima Barreto, jornalista,
escritor, intelectual, era tragado pelas engrenagens do poder na instituição, ou do micropoder, como
conceituou Foucault e como explicou Roberto Machado na introdução de Microfísica do poder: o
poder “intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos seu corpo e
se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso
podendo ser caracterizado como micropoder ou subpoder; procedimentos técnicos de poder que
realizam um controle detalhado, minucioso do corpo gestos, atitudes, comportamentos, hábitos,
discursos (apud FOUCAULT, 1998: p. XII)”.
Diário do hospício representou a reação ao micropoder, ao controle, à padronização de gestos e,
sobretudo, de discursos, ou seja, a situações normalizadoras obviamente agravadas no domínio do
hospício. Lima criou um espaço para o discurso de si em uma situação de vida regulada por
7
A violência física era comum naquele período da psiquiatria, antes do emprego de eletrochoques e
remédios para conter os mais exaltados. Assim, alguns pacientes que revelavam comportamento
excessivamente agressivo eram contidos com punições físicas por funcionários, sob a vista grossa dos
médicos.
47
horários, hábitos coletivos, pessoas não escolhidas por ele para o convívio, sob a repressão de uma
medicina que muitas vezes abusou da crença em sua onisciência e onipotência. Construiu uma
narrativa em meio a uma sociedade onde a disciplina era o grande instrumento do poder, composta,
segundo Foucault, por “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade
(FOUCAULT, 1998: p. XVII)”.
Lima quebrou o círculo docilidade-utilidade, impondo a sua subjetividade em uma instituição
reguladora e de dominação de loucos, utilizando para este objetivo a escrita do diário e um
mecanismo de emergência que, em última instância, remetia à literatura. Chegou a registrar no
diário o apelo, em vão, a seus méritos literários para tentar driblar a lei do manicômio:
Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a
verdade, e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente, ou, como
dizendo: “você fica mesmo aí”, ou querendo exprimir que os meus méritos literários
nada valiam, naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse uma cousa, fosse outra,
fossem ambas conjuntamente, não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no
caso dele, eu talvez pensasse da mesma forma (BARRETO, 1993: p.26).
O louco roubou-lhe a identidade de escritor. Toda a obra editada de Lima não lhe restaurou a
cidadania no hospício. Chegou como indigente, pelas mãos da polícia, e amargou (de início) a
imobilidade social na hierarquia da instituição quando Dr. Airosa não reconheceu seus méritos,
relegando-o à indigência do asilo. Como a excelência literária foi insuficiente para demovê-lo de
uma classe para outra, Lima apelou para outro tipo de pistolão, pode-se dizer menos nobre, porém
mais eficiente. O enfermeiro-mor Santana, amigo de seu pai nas colônias da Ilha do Governador,
arranjou-lhe vaga em uma seção mais razoável. Lima, aliás, citou rios funcionários conhecidos
do pai no diário e chegou a defendê-los, isto é, elogiou-os em sua capacidade de lidar com loucos
sem enlouquecer – não deixa de ser uma crítica enviesada à fragilidade do pai, que teria se
contaminado ao apresentar quadro psicótico. Esta prática – a do elogio de funcionários e/ou
médicos por parte dos pacientes era pouco freqüente na bruta rotina manicomial como um todo:
provavelmente só foi possível devido ao envolvimento afetivo anterior de Lima com alguns guardas
e enfermeiros antes lotados nas colônias da Ilha do Governador.
48
Lima narra como Santana deixou-o dividir o quarto com um estudante de medicina, modificando
radicalmente a sua rotina: “Tratou-me bem esse moço, conquanto não deixasse de ter, como eu
tive, essa presunção infantil do nosso estudante, que se julga, por sê-lo, diferente dos outros.
Deixei-lhe a entender que já o havia sido; ele pareceu não acreditar (BARRETO, 1993: p.26)”.
É renitente a alusão ao seu deslocamento, dentro e fora do hospício, de modo que o auto-retrato do
autor é invariavelmente impregnado por um complexo social, muitas vezes vinculado ao racial
fator, aliás, que está na raiz de boa parte da história das raças no Brasil. A denúncia da
discriminação de cor pauta diversos escritos de Lima (só para citar dois romances: Recordações do
escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos) e no diário surge, por exemplo, quando ele fala dos
negros ronceiros, desqualificando-os ao dizê-los indolentes, alinhando-os aos trabalhadores braçais,
dos quais tem a urgência de se distinguir. Na prática, entretanto, Lima é presa dos rótulos: pobre,
mulato, louco. Como o diário é um esforço de resgate de identidade, tornam-se recorrentes, por
vezes excessivas e aparentemente despeitadas, as críticas aos socialmente privilegiados (a exemplo
do estudante de medicina), classificados em rótulos considerados positivos: ricos, brancos, normais.
Esta primeira parte do diário demonstra os meios explorados pelo autor para driblar o micropoder,
alternando uma recusa à docilidade-utilidade e uma sujeição a esta quando necessário, em prol de
uma situação melhor na instituição. Posteriormente, ao ser recebido pelo Dr. Juliano Moreira, Lima
conseguiria, afinal, escolher a seção onde ficaria, conquistando, assim, outro status. Em um mundo
dominado pelo sistema de classes, Lima encontrou o seu lugar, a seção Calmeil, selecionada por ele
por um detalhe da organização arquitetônica interna: era onde ficava a biblioteca do asilo. O autor
da frase Ah! A Literatura ou me mata ou me o que eu peço dela buscou nela, a cara literatura,
uma salvação, conjugando escrita e leitura tal como Sêneca, citado por Foucault, prescreveu.
(...) a prática de si implica a leitura, pois não é possível extrair tudo do nosso próprio
fundo nem se prover por si mesmo dos princípios de razão indispensáveis para se
conduzir: guia ou exemplo, o socorro dos outros é necessário. Mas não se deve dissociar
a leitura da escrita; deve-se ‘recorrer sucessivamente’ a estas duas ocupações e
‘temperar uma por meio da outra’. Se escrever demais consome (Sêneca refere-se aqui
ao trabalho de estilo), o excesso de leitura dispersa: ‘Abundância de livros, reviravoltas
do espírito’. Ao se passar de livro em livro, sem nunca parar, sem voltar de vez em
quando à fonte com sua provisão de néctar, sem, conseqüentemente, tomar notas, nem
se constituir por escrito um tesouro da leitura, pode-se nada reter, dispersar-se em meio
49
a pensamentos distintos e se esquecer de si. A escrita, como forma de recolher a leitura
feita, e de se recolher sobre ela, é um exercício da razão que se opõe ao grande defeito
da stultia, que a leitura infinita corre o risco de favorecer. A stultia se define pela
agitação do espírito, pela instabilidade da atenção, pela troca de opiniões e vontades e,
conseqüentemente, pela fragilidade diante de todos os acontecimentos que podem ser
produzidos; ela se caracteriza também pelo fato de que direciona o espírito para o
futuro, o faz curioso por novidades e o impede de se fixar na posse de uma verdade
adquirida. [(...) la pratique de soi implique la lecture, car on ne saurait tirer tout de son
propre fonds ni s’armer par soi-même des principes de raison qui sont indispensables
pour se conduire: guide ou exemple, le secours des autres est nécessaire. Mais il ne faut
pas dissocier lecture et écriture; on doit ‘recourir tour à tour’ à ces deux occupations,
et ‘tempérer l’une par le moyen de l’autre’. Si trop écrire épuise (Sénèque pense ici au
travail du style), l’excès de lecture disperse: ‘Abondance de livres, tiraillements de
l’esprit’. À passer sans cesse de livre en livre, sans s’arrêter jamais, sans revenir de
temps en temps à la ruche avec sa provision de nectar, sans prendre de notes par
conséquent ni se constituer par écrit un trésor de lecture, on s’expose à ne rien retenir,
à se disperser à travers des pensées différentes et à s’oublier soi-même. L’écriture,
comme manière de recueillir la lecture faite et de se recueillir sur elle est un exercice
de raison qui s’oppose au grand défaut de la stultia que la lecture infinie risque de
favoriser. La stultia se définit par l’agitation de l’esprit, l’instabilité de l’attention, le
changement des opinions et des volontés, et par conséquent la fragilité devant tous les
événements qui peuvent se produire; elle se caractérise aussi par le fait qu’elle tourne
l’esprit vers l’avenir, le rend curieux de noveautés et l’empêche de se donner un point
fixe dans la possession d’une vérité acquise] (apud FOUCAULT, 1994: p.420).
Pode-se dizer de Lima que o culto à literatura, se não foi o que o matou a longo prazo como ele
temia, ao formular a sentença-chave da sua existência –, foi o que o salvou da loucura alheia no
Pedro II. O esforço pela mudança de seção, bem-sucedido e veloz (apenas três dias após o ingresso
no hospício), seria recompensado pela companhia dos livros. O autor pouco a pouco criava um
ambiente familiar: freqüentava a biblioteca e dormia na seção do inspetor Dias, português amigo do
pai, outro ex-funcionário das colônias da Ilha do Governador. Estabelecida a nova estrutura, da
ordem da razão e de alguma afetividade, partiu para o que Sêneca estabeleceu como ponto alto da
prática de si: a conjugação escrita-leitura. A manobra saudável do escritor, de sobrevivência no
50
hospício, combate à stultia
8
, foi uma prova da racionalidade com que lidava com o entorno. Não era
possível estar consigo, escrever sobre si, sem o socorro dos outros; no caso, dos autores diletos. Era
preciso recompensar-se do pensamento caótico do asilo, da linguagem delirante e inócua da maioria
dos pacientes e da ineficácia do linguajar e do tratamento psiquiátrico, por meio de pensadores
invisíveis, não palpáveis a olho nu, habitantes de um mundo paralelo, somente acessíveis nas
estantes da Calmeil – o que rendeu observações no diário:
Logo ao entrar na secção, no meado do dia da segunda-feira, notei que a biblioteca tinha
mudado de lugar. Mudei a roupa, pois meu irmão me apareceu com outra de casa.
Esperei o Dias que me marcasse o dormitório, e sentei-me na biblioteca e estava
completamente desfalcada! Não havia mais o Vapereau, Dicionário das literaturas; dois
romances de Dostoiévski, creio que Les possédés, les humilliés et offensés
9
; um livro de
Melo Morais, Festas e tradições populares do Brasil. O estudo sobre Colbert estava
desfalcado do primeiro volume; a História de Portugal, de Rebelo da Silva também
10
, e
assim por diante. Havia, porém, em duplicado, a famosa Biblioteca internacional de
obras célebres (BARRETO, 1993: p.31).
8
No texto “A stultia de Erasmo”, em que analisa o Laus Stultitiae de Erasmo de Rotterdan (no site
Dubito Ergo Sum), André Rangel Rios esclarecimentos pertinentes sobre a tradução do termo stultia:
“Em português, neste caso, usa-se tradicionalmente a palavra ‘loucura’; em francês, folie; em inglês,
folly; em alemão, Torheit. Estas palavras não são entre si, como se pode facilmente ver, sinônimos
perfeitos; mas detenhamo-nos na questão da tradução para o português. Para retrotraduzirmos a palavra
‘loucura’, poderíamos escolher em latim, baseando-nos no dicionário de A. G. Ferreira, por um lado,
entendendo-a como falta de juízo’, insania, amentia ou dementia, por outro lado, entendendo-a como
‘extravagância’, insipientia, insania, deliratio ou stultitia. Mas haveria ainda muitas outras possibilidades.
Falta no verbete de Ferreira, por exemplo, a palavra furor, que é a que, se nos basearmos em Cícero e
Celso, seria a mais apropriada a um texto de caráter jurídico. Amentia e dementia podem ser consideradas
sinônimas e teriam um uso mais reservado e, por assim dizer, mais técnico. As palavras com o campo
semântico mais amplo são insania e stultitia. Contudo, uma vez que Celso parece dar preferência ao
termo insanus ao falar dos que têm problemas mentais, insania se aproximaria mais do uso médico que
stultitia. O que é, porém, para nós particularmente relevante é que, ao longo do texto em latim da Laus, a
palavra stultitia (que tem, aliás, também a função de nome próprio, caso em que, a rigor, deveria ser
intraduzível) se desdobra em muitas outras como insania, insanus, furor, idiota, moria, fatuus etc. Muitas
vezes stultitia ou suas sucedâneas surgem como sendo traduções de palavras gregas (p. ex. moria, idiota,
ou agrammatoi). Ou seja, a palavra stultitia é, ao longo da Laus, sempre traduzida e retraduzida,
mantendo-se numa relativa instabilidade de sentido. No texto da Laus, stultitia é apenas uma
exemplificação de uma série de sinônimos que só em parte, de fato, são reciprocamente equiparáveis. (...)
Vista deste modo, a dificuldade de tradução não é aqui uma questão meramente filológica, mas é uma
questão interna ao texto. O texto não busca delimitar, nem a palavra, nem o conceito, nem a personagem
Stultitia, mas trabalha no sentido de manter sua compreensão ou seu campo semântico sempre movediço.
A Stultitia se mostrará como volúvel, astuta e polimorfa, enfim, contraditória, disseminada e mutante.”
9
São dois romances de Dostoiévski, como atesta o autor, mas os títulos corretos são: Les possédés (1862)
e Humiliés et offensés (1871).
10
O autor acusa estar desfalcada a obra História de Portugal pois era composta de cinco tomos.
51
A minúcia (ainda que por vezes falha em pequenos detalhes) revelada na observação da biblioteca,
das aquisições e subtrações, demonstra acuidade rara entre internos de instituições psiquiátricas,
marcando a singularidade do escritor lúcido deslocado entre alienados. A leitura prometia o lugar
do refúgio, do hábito libertário, do ponto de fuga. Porém, Lima não se contentou em ter livros à
disposição; exigia qualidade literária e as obras que lera anos antes. Notou que o espaço da
biblioteca aumentara, dispondo de seis pequenas mesas, para ler e escrever, mas lamentou o número
reduzido de títulos. Guardou tempo para observações pessoais: surpreendeu-se ao ver numerosas
fisionomias vagamente conhecidas e, após mais de uma semana, fez o balanço da solidão
intelectual no manicômio:
Cá estou na secção Calmeil oito dias. Raro é o seu hóspede com quem se pode travar
uma palestra sem jogar o disparate. Ressinto-me muito disto, pois gosto de conversar e
pilheriar; e sei conversar com toda a gente, mas, com esses que deliram, outros a quem a
moléstia faz tatibitate, outros que se fizeram mudos e não há nada que os faça falar,
outros que interpretam as nossas palavras de um modo inesperado e hostil, o melhor é
calar-se, pouco dizer, mergulhar na leitura, no cigarro, que é a paixão, a mania de todos
nós, internados, e o possuí-los em abundância <é> um perigo que se corre e pode ser
evitado pela astúcia ou pela energia (BARRETO, 1993: p.32).
A língua culta era o parâmetro utilizado pelo autor para a convivência no hospício. A relevância das
normas de linguagem no juízo do outro é um dado totalmente compreensível na formação de um
escritor. Diante do tatibitate, da mudez dos internos catatônicos e da fala incoerente dos mais
articulados, Lima condenou-se ao silêncio. Neste refugiou-se, explorando a função éthopoiéthique
da escrita e da leitura. O delírio, contudo, era onipresente. Transbordava por todos os cômodos,
ritos, gestos. Vazava na biblioteca: “(...) a freqüência é dos delirantes, que vão dar pasto a seu
delírio, berrar, gritar, fazer bulha com as cadeiras sobre o assoalho, não permitindo nenhuma leitura
(BARRETO, 1993: p.65)”.
Apesar dos ruidosos vizinhos, que por vezes o obrigavam a ler no dormitório (posteriormente, ele se
mudou para um quarto com 19 companheiros), a leitura foi, para Lima, a condição da consciência.
Na biblioteca, resgatou a infância literária, reconciliando-se com o menino-leitor que foi, aficionado
pela obra de Jules Verne.
52
(...) de todos os livros, o que mais amei e durante muito tempo fez o ideal da minha vida
foram as Vinte mil léguas submarinas. Sonhei-me um Capitão Nemo, fora da
humanidade, ligado a ela pelos livros preciosos, notáveis ou não, que me houvessem
impressionado, sem ligação sentimental alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no
mundo estranho que não me compreendia a mágoa, nem ma debicava, sem luta, sem
abdicação, sem atritos, no meio das maravilhas (BARRETO, 1993: p.66).
Ao exacerbar o isolamento na reclusão do asilo, a leitura bem como a escrita ocupou pouco a
pouco o lugar da realidade para Lima, construindo-se como passagem para o imaginário. Diário do
hospício, além das observações muito precisas e lúcidas, guarda espaço para a autoprojeção em um
mundo fantástico. A leitura foi o recurso de compilação do já-dito, firmando-se como resgate da
memória: diante da menção a Vinte mil léguas submarinas, por exemplo, vislumbra-se a infância
onírica projetada em Nemo, herói intrépido, misterioso e antropófobo, que vive aventuras
mirabolantes a bordo do fabuloso submarino Nautilus. Lima, em seu exílio involuntário, sonhava
com este fundo de mar utópico, onde a bravura de Nemo desafiava toda sorte de criaturas
extraordinárias e adversidades, fazendo-se mítico. Lima diz, textualmente, que sonhou ser Nemo, o
mito literário, o homem que fez do submarino um mundo paralelo. Como ele, Lima imaginou-se
fora da humanidade, um a-social vivendo da ilusão do bem-estar à margem da civilização, sem
ligação sentimental alguma no planeta, habitante de um sonho, ou seja, de uma imaginária
existência sem conflitos.
Este lugar da utopia torna-se a certa altura, no diário, o espaço da auto-análise sem indulgência
consigo mesmo. A alusão a Nemo advém de um trecho em que Lima faz uma bela descrição da
paisagem além da janela da biblioteca, utilizando o navio como metáfora da liberdade.
Primeiramente ele descreve:
O lugar era cômodo e agradável. Dava para a enseada, e se avistava doutra banda
Niterói e os navios livres que se iam pelo mar em fora, orgulhosos de sua liberdade,
mesmo quando tangidos pelos temporais. Às vezes, lendo, eu me punha a vê-los, com
inveja e muita dor da alma. Eu estava preso, via-os por entre as grades e sempre sonhei
ir por aí afora, ver terras, cousas e gentes... (BARRETO, 1993: p.66).
Posteriormente reconhece:
53
Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o mar. Vivia numa cidade
marítima, sem ir vê-lo nem contemplá-lo. Atolava-me na bebida, no desgosto e na
apreensão... Pensava bem em morrer, mas me faltavam forças para buscar a morte.
Comprava livros e não os lia. Planejava estudos e não os fazia. Delineava obras e não as
realizava. Minha capacidade inventiva e criadora, a minha instrução técnica e a minha
pretensão eram insuficientes para fabricar um Nautilus e eu bebia cachaça (BARRETO,
1993: p.66).
Aos 38 anos, confinado no manicômio, Lima via o percurso da existência até aquele momento com
lucidez incomum no domínio da loucura. Começou por desviar o olhar do livro para navegar
imaginariamente pela Baía de Guanabara, invejando o passe livre das embarcações no horizonte.
Em seguida, recordou-se vagamente do sonho de menino, do desejo de aventuras por terra e gente
estrangeira. A realidade, contudo, o assaltou: longe de desviar a culpa da sua infelicidade somente
para circunstâncias adversas (sua condição de pobre, negro e, temporariamente, louco), aceitou a
responsabilidade. Sua capacidade inventiva e criadora não bastara para construir um Nautilus e
sair, destemido, pelo mundo. Anti-Nemo, tentara usar a literatura como substituta da vida
aventureira o que, aliás, alguns escritores reclusos e misantropos fazem, com sucesso. Porém, no
vácuo ocasionado pela falta de reconhecimento literário, a bebida substituiu-lhe as ambições.
O diário alterna momentos em que a literatura assume o altar dos desejos mais sublimes a outros em
que demonstra revolta pelo empenho literário pouco recompensado (para as suas expectativas):
(...) eu queria viver isolado, perder a paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que ela
me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em que minha inteligência pudesse
trabalhar, absorver toda a minha atividade, sem comunhão com os meus semelhantes.
Queria ser um geômetra, mesmo medíocre, mas da família de Arquimedes, conforme o
desenha Plutarco, na vida de Marcellus, página 109 (BARRETO, 1993: p.61).
O paradoxo: a bebida substituíra o fazer literário num momento de motim íntimo contra a literatura
e, no hospício, à ausência de álcool, Lima restituía a escrita ao compor o diário e entrever a intenção
de transformar os escritos do hospício em romance. No manicômio, resgatou o laço com a
realidade: os livros preciosos, notáveis ou não, que o impressionaram ao longo da vida. Recorreu à
idéia infantil de uma utopia projetada em aventuras fantásticas, literárias, como subterfúgio ainda
que, no diário, esta utopia comece a ser desmistificada.
54
A literatura voltava a ocupar-lhe o lugar do ofício diário, servindo igualmente como escape, o que
remete à célebre frase de um de seus companheiros de manicômio (Plutarco): “Os livros levaram
mais de um à sabedoria e mais de um à loucura.” Basta lembrar as semelhanças entre os
personagens Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e Policarpo Quaresma, de Lima Barreto,
ambos marcados pelo conflito entre um idealismo exacerbado (agravado pela leitura excessiva) e a
realidade, com uma conseqüência comum: a loucura. Os dois parecem loucos aos demais
personagens, mas, por fim, revelam-se íntegros e, por vezes, sensatos em suas crenças e propósitos
levados às últimas conseqüências o que feria a sociedade convencional e acabava questionando
noções maniqueístas. Lima, se não foi louco, avizinhou-se da loucura após uma vida de percalços
dedicada a um ideal: a literatura.
De livro em livro, anotação em anotação, firmou-se a rotina do escritor na Calmeil: dia a dia,
reforçava a cumplicidade com a literatura; fincava pés e ideais na leitura; e reafirmava as virtudes
da língua culta em meio à linguagem do manicômio, encadeada, na maioria dos casos, por um
punhado de frases incoerentes, palavras desconexas, balbucios. Ao estruturar escritos e recolher
impressões lidas, Lima tentava provavelmente subverter a violência à linguagem, típica do delírio,
confirmando a lucidez literária. Afinal, a língua, tão cara, sofria todo tipo de desvio: de sintaxe,
semântica, etc. Conteúdo e forma eram castigados pela torrente alucinatória. Lima defendia-se com
uma literatura privativa. A “incoerência verbal do manicômio (BARRETO, 1993: p.35)” o
aterrorizava. Chegou a escrever, como tarefa, provavelmente como dado de pesquisa para O
cemitério dos vivos: “Observar as reações da loucura sobre a articulação da palavra; alguns,
trôpegos de língua; alguns balbuciam, e outros, quase mudos (BARRETO, 1993: p.77)”.
A escrita-leitura ganhava, gradualmente, o status de salvação da linguagem da loucura. E, apesar de
fragmentado, é importante perceber como Diário do hospício nada contém da linguagem delirante
do ambiente externo, pelo contrário, a escrita embute uma compreensão singular do homem e do
mundo, sem vestígio de alienação. Apresenta, no máximo, confissões contraditórias, nada estranhas
ao que é da ordem do humano. O diário tem um tom de crônica de si, em que o autor desenha sua
trajetória até então, como se contabilizasse desilusões para então compreender o seu melancólico
epílogo.
Lima utilizou o diário íntimo como suporte para uma leitura de si mesmo que se revelou rígida,
solitária e triste, em variados momentos: quando ele se recorda da morte da mãe; menciona a
loucura do pai; revela o horror à vizinhança suburbana; não esconde a decepção ante a publicação
55
do primeiro livro; queixa-se da falta de dinheiro; confessa-se frágil diante do alcoolismo; reclama
das esparsas visitas (registra algumas do irmão e de poucos amigos). Toda a sua vida, enfim, foi
revista neste tempo suspenso. Cabe ainda sublinhar a sua mania de distinguir-se, distanciar-se do
meio, fosse qual fosse, com discurso irônico e deboche. Lamentações afins constam dos dois
diários, o íntimo (composto por observações sortidas, reunidas editorialmente como Diário íntimo)
e o do hospício. Nesse Diário íntimo, por exemplo, uma descrição do ambiente familiar contém
sinceridade semelhante às suas impressões do hospício:
em minha gente toda uma tendência baixa, vulgar, sórdida.(...) Eu tenho muita
simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível
transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles,
pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade,
absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse
obedecer cegamente (BARRETO, 1998: p.44).
O reconhecimento da superioridade era crucial, o fundamento da relação de Lima com o social,
bem como um critério que também norteou a sua análise da sociedade manicomial. Percebe-se a
relação ambígua com pobres e negros brasileiros: uma solidariedade, mas também uma
incapacidade de convivência, provavelmente mais devido à indigência intelectual, ao analfabetismo,
à carência de cultura, do que à penúria. Na rotina do Pedro II pesavam igualmente como altos
valores o grau de instrução, a sabedoria, a cultura. A interpretação dos doentes passava por um
processo pelo qual peneirava literatos e ignorantes, formando ele mesmo a sua hierarquia de
homens e saberes. A leitura permanecia forte padrão:
Nesta seção, como na outra em que estive, não faltam sujeitos que tenham recebido
certa instrução; há até os formados. Eu não tenho nenhuma espécie de superstição pelos
nossos títulos escolares ou universitários; eles dão algumas vezes algum saber
profissional, muito restrito e ronceiro, e nunca uma verdadeira cultura; mas, em todo
caso, a convivência com rapazes de inteligência mais aguda, mais curiosa de saber e
conhecer a atividade mental indígena ou estrangeira, a alguns uma tintura das altas
cousas que, nesta minha solidão intelectual, num meio delirante, seria um achado
encontrar um (BARRETO, 1993: p.42).
56
As letras, o saber, o conhecimento tinham tanto valor na busca de compreensão do humano que
Lima deslocava a questão para a percepção do asilo psiquiátrico convém ressaltar que ele não se
referia propriamente ao saber acadêmico, mas ao que acreditava ser a verdadeira cultura. Ao citar o
caso de V. de O., um paciente que a princípio pareceu-lhe inteligente para posteriormente deixar
entrever a linguagem da alucinação, ora dizendo-se médico, ora dentista ou engenheiro, Lima
mostrou-se implacável no papel de acusador do discurso do delírio: “Erra na ortografia como uma
criança de colégio e a sintaxe é um Deus nos acuda. Obriga-me a rever os seus escritos. (...) A sua
pretensão intelectual é uma cousa comum à gente de Sergipe e o enlouqueceu, ao que parece
(BARRETO, 1993: pp.44/45)”.
Lima prossegue o raciocínio, atribuindo a loucura do doente ao seu delírio de grandeza intelectual e
de fortuna. Repara-se, entretanto, que esta implicância advinha igualmente do fato de que V. de O.
obtinha regalias:
Ele está muito mais bem instalado do que eu. Tem um quarto com um companheiro,
uma mesa para o seu uso, com uma gaveta e chave, onde pode escrever à vontade. Eu,
se quero escrever, tenho que ir pedir para fazê-lo no gabinete
11
do médico que isso me
facilitou. Para mim, ele tem fortes recomendações políticas e outras poderosas que
fazem ter ele essas regalias excepcionais (BARRETO, 1993: p.45).
Por outro lado, ao mencionar a sua própria ascensão no manicômio, Lima mostrava-se bastante
indulgente consigo, pois, além da ajuda dos funcionários amigos do pai, confessou que podia
escrever no gabinete de um médico sem dúvida, um grande favorecimento na dura rotina do
hospício. Esta auto-indulgência revela-se igualmente em relação aos seus próprios erros de
português, apontados por inúmeros estudiosos dos seus manuscritos, bem como ele os aponta nos
escritos de V. de O. Diário do hospício transparece inúmeras contradições particularidade típica
do gênero diário íntimo, como já foi dito.
O conteúdo do Diário íntimo desvela o redundante tom de mal-estar do autor no mundo e consigo
mesmo, alternando auto-elogio e autodesprezo. Ora Lima exaltava a superioridade diante da
família, do subúrbio, dos pobres e negros, ora se confessava um fracassado, sem dinheiro para
financiar o sonho da literatura, deslocado numa sociedade que não o absorvia em seu talento.
11
O médico era o alienista Humberto Gotuzzo, que lhe ofereceu o próprio gabinete para ele escrever o
diário e a correspondência.
57
Escrita de 1900 a 1921, ano anterior à sua morte (em 1
º
de novembro de 1922), a compilação de
manuscritos encerra boa parte das queixas de fracasso do autor. Sobre o concurso para amanuense
na Secretaria da Guerra, para o qual passou em segundo lugar, reclamou: O meu concurso. o
fiz. Fui de prova em prova num crescendo medonho... como eu sei, hein! E o nomeado foi o
Milanês! Com certeza, o bom-bocado não é para quem o faz e sim para quem o come (BARRETO,
1998, p.12)”.
Neste que chama de Diário extravagante (título original de um dos manuscritos, datado de 1903),
Lima usa os escritos como autênticos hypomnêmata, sem camuflar o viés confessional, que por
vezes beira o autoflagelo. Além da confissão, reúne anotações para ficções futuras; começa a
escrever um decálogo onde promete não ser mais aluno da Escola Politécnica e não beber em
excesso; projeta no futuro uma vida melhor, revelando utopias e listando obstáculos; faz
comentários sobre pessoas célebres do seu tempo; esboça estudos etimológicos; fala de projetos
editoriais não realizados, ao registrar o desejo de escrever a História da escravidão negra no Brasil;
demonstra talento de autodidata, ao rascunhar um Curso de filosofia feito por Afonso Henriques de
Lima Barreto para Afonso Henriques de Lima Barreto; anota despesas com a casa, a venda, o
médico, o café. Em casa, a escrita serve a todos os propósitos, sobretudo ao de distingui-lo do meio:
Dolorosa vida a minha! Empreguei-me e três meses que vou exercendo as minhas
funções. A minha casa ainda é aquela dolorosa geena pra minh’alma. É um mosaico
tétrico de dor e de tolice. Meu pai, ambulante, leva a vida imerso na sua insânia. Meu
irmão, C..., furta livros e pequenos objetos para vender. Oh! Meu Deus! Que fatal
inclinação a desse menino! Como me tem sido difícil reprimir a explosão. Seja tudo que
Deus quiser! A Prisciliana e filhos, aquilo de sempre. Sem a distinção da cultura nossa,
sem o refinamento que já conhecíamos, veio em parte talvez prender o desenvolvimento
superior dos meus. Só eu escapo! [janeiro de 1904] (BARRETO, 1998: p.17).
uma nota de fundo que afina Diário íntimo e Diário do hospício: a confissão da inadaptação, da
angústia frente à incompreensão alheia, da impossibilidade de encaixe na engrenagem coletiva. Nos
escritos íntimos, o autor deixa claro que a vida lhe é insuportável na rotina de funcionário público,
na condição de filho de um louco, irmão de um ladrão e enteado de uma pobre, ignorante
(Prisciliana era doméstica da casa e depois passou a viver com seu pai), que contribuía para
rebaixar a família. Em meio ao martírio, a exceção: somente ele escapava, lutando contra a vida
mediana da gente miserável e iliterata do subúrbio. Lima utilizou (vê-se no trecho acima) a mesma
58
peneira intelectual (no Diário íntimo) com que julgaria mais tarde a postiça família do manicômio
(no Diário do hospício). Neste último, no entanto, todas as queixas e angústias culminam com a
humilhação maior – a internação no hospício como clímax de uma vida torva e sem saída:
Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca podeapagar-me da memória essas
humilhações que sofri. Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que
me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as
precauções para um grande futuro são vãs.
Eu tinha tudo, ou tenho tudo, para não sofrê-las, tanto mais que não as provoquei. Sou
instruído, sou educado, sou honesto, tenho procurado o mais possível ter uma vida pura.
Parecia que sendo assim, que sendo eu um rapaz que, antes dos dezesseis anos, estava
numa escola superior, que todos me gabavam a inteligência, e mesmo até agora
ninguém nega, estivesse a coberto de tudo isso. Mas eu e a sorte, a sorte e eu, nos
juntamos de tal sorte, nos irmanamos, que vim a passar por transes desses.
Desde a minha entrada na E (escola) <Politécnica> que venho caindo de sonho em
sonho e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a glória me tenha dado
beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto,
morrer; queria outra <vida>, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de
certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e
pacífica, como a de todos. Penso assim, às vezes, mas, em outras, queria matar em mim
todo o desejo, aniquilar aos poucos a minha <vida> e sumir-me no todo universal. Esta
passagem várias vezes no Hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa
angústia de viver que me parece ser sem remédio a minha dor (BARRETO, 1993: p.50).
Esses três parágrafos de Diário do hospício perfazem uma espécie de resumo da existência de Lima
até aquele momento. Em busca de uma vida pura, apesar de toda instrução, educação, honestidade e
inteligência, o autor sente-se humilhado e fracassado. Na retrospectiva, assinala que isto vinha
acontecendo desde a entrada na Escola Politécnica: ante a não-realização dos sonhos, anseia pela
mediocridade, quer outra vida, isto é, duvida de si mesmo. No diário íntimo, Lima não se poupou
do julgamento. Assim, se em alguns momentos pareceu auto-elogioso, cheio de si, neste tombava
para a autodepreciação. Ele queria outra vida; queria ser outro e essa travessia entre si e uma
59
possível versão melhorada (editada) de si ganha contornos mais trágicos com a dolorosa angústia
de viver que levou às internações no hospício.
Diário íntimo, por outro lado, contém dois temas caros a Lima, não tão explorados no Diário do
hospício: o complexo racial e a dificuldade de relacionamento com mulheres. Em um trecho, o
autor conta a seguinte história:
Hoje (6 de novembro) fui à ilha, pagar dívidas de papai (490); paguei-as uma a uma;
entretanto, na volta, estava triste; na estação de São Francisco (vim pela Penha), ao
embarcar, me invadiu tão grande melancolia, que resolvi descer à cidade. Que seria? Foi
o vinho? Sim, porque tenho observado que o vinho em pequenas doses causa-me
melancolia; mas não era o sentimento; era outro, um vazio n’alma, um travo amargo na
boca, um escárnio interior. Que seria? Entretanto, eu o quero atribuir ao seguinte: Na
estação, passeava como que me desafiando o C.J. (puto, ladrão e burro) com a esposa ao
lado. O idiota tocou-me na tecla sensível, não como negá-lo. Ele dizia com certeza: –
Vê, “seu” negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres, não. Poderás
arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talhe aristocrático. Suportei
o desafio e mirei-lhe a mulher de alto a baixo e, dentro de alguns anos, espero
encontrar-me com ela em alguma casa de alugar cômodos por hora (BARRETO, 1998:
p.90).
No Diário íntimo, o autor apresentava-se igualmente sem filtragem, com a emoção em estado bruto.
A tecla sensível o complexo da raça, a tristeza do discriminado, a humilhação do descendente de
escravos – era exposta com uma fúria não maquiada pela ficção (ao contrário do que Lima fez com
o personagem Isaías Caminha, contínuo mulato que sofria todo tipo de preconceito no seu caminho
de ascensão social-intelectual numa redação de jornal). A certa altura do Diário íntimo, ele escreve:
“É triste não ser branco (BARRETO, 1998: p.85)”.
A raiva incontida era expiada na escrita. A história transparece a inação do autor na vida real. No
episódio da estação, diante de C.J., nada disse, não reagiu ao insulto, jogou a mágoa na bebida,
acabou o dia na melancolia. Nota-se como o diário detinha o poder de substituir a ação e a bebida (à
ausência do álcool no manicômio, produzia mais escritos), enquanto a ficção (a exemplo de
Recordações do escrivão Isaías Caminha) se constituía da elaboração estética de uma reação
reprimida (neste caso, o complexo social-racial). A escrita era, de todo modo, uma forma de reação.
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Entremeadas a observações tão pessoais do dia-a-dia, Lima conjugou leitura-escrita também no
Diário íntimo, colecionando citações: “A musa, por mais rude que seja, me menos tristezas do
que a mulher. Não posso conciliar uma com a outra. {Carta de}Flaubert a George Sand. [La muse,
si revêche qu’elle soit, donne moins de chagrins que la femme. Je ne peux accorder l’une avec
l’autre. Flaubert a George Sand.] (BARRETO, 1998: p.17)”.
Diário íntimo reúne inúmeras confissões do autor sobre seus flertes fracassados com mulheres,
amores platônicos. A sentença acima é a síntese da dificuldade afetiva de Lima, tema raro no Diário
do hospício, provavelmente por ser uma questão provisoriamente menos relevante em relação à sua
situação-limite no manicômio e pelo fato de que ele se encontrava restrito a um ambiente masculino
(no hospital psiquiátrico, as seções costumavam ser divididas por gênero). Segundo Francisco de
Assis Barbosa, não se tem notícia de relações afetivas do escritor com mulheres, apenas de alguns
encontros com prostitutas em bordéis, de onde ele “saía insatisfeito, quando não enjoado
(BARBOSA, 1988: p.180)”. Por outro lado, em Diário íntimo, surge uma ode à profissão: “Como a
prostituição me parece sagrada; se não fora ela, esta minha mocidade, órde amor, de carinho de
mulher, não teria recebido esse raio louro de um sorriso e de um olhar, para me recordar esse
misterioso Amor que se sofre, quando se o tem, e se padece, quando se não o tem (BARRETO,
1998: p. 84)”. No mesmo diário, ainda algumas alusões a relações íntimas com mulheres de
alguns conhecidos, geralmente complicadas e desalentadas. Na correspondência com o amigo
Antônio Noronha dos Santos (jornalista e funcionário público que havia morado em Paris e
influenciado a formação intelectual de Lima ao aconselhar leituras de autores franceses), volta e
meia observações sobre o universo feminino – ou seja, a figura feminina não era ausente do
imaginário do autor.
A menção à loucura em família no Diário íntimo pavimenta seu caminho em direção à própria
loucura e antecipa o epílogo no hospício:
Perdi a esperança de curar meu pai! Coitado, não lhe afrouxa a mania que, cada vez
mais, é uma só, não varia: vai ser preso. A polícia vai matá-lo; se ele sair à rua,
trucidam-no. Coitado, o seu delírio tomou forma. Pobre de meu pai! Uma vida cheia de
trabalhos, de afanosos trabalhos, acabar assim nesse misterioso sofrimento que me
compunge! (BARRETO, 1998: p.17).
61
Essa anotação data de 1904. Isto significa que, 15 anos antes da sua segunda internação no Pedro II,
Lima Barreto já perdera a esperança em relação aos delírios do pai, o que provavelmente o levou a
um estado de incompreensão da loucura bastante danoso para si mesmo. No Diário do hospício,
Lima culpou-se pela própria internação, mas também buscou razões genealógicas no quadro
psiquiátrico do pai, para a certa altura concluir: A explicação por hereditariedade é cômoda, mas
talvez seja pouco lógica (BARRETO, 1993: p.149)”.
A leitura dos diários em ordem cronológica permite o acompanhamento do processo de
despersonalização do sujeito de que fala Besançon:
Lembremos que em semiologia psiquiátrica, descreve-se a despersonalização, este
estranho estado que faz com que o sujeito possua o sentimento de não mais habitar em
seu invólucro corporal, de ter sentimentos de vazio, de ausência ao nível dos órgãos, do
coração, do cérebro... e depois do corpo inteiro. Esta sensação bem particular é vivida
em uma atmosfera penosa, quer dizer, de uma perda de familiaridade com o ambiente,
de estranheza. [Rappelons qu’en sémiologie psychiatrique, on décrit la
dépersonnalisation, cet état étrange qui fait que le sujet a le sentiment de ne plus
habiter son enveloppe corporelle, d’avoir des sentiments de vide, d’absence au niveau
des organes, le coeur, le cerveau... puis le corps tout entier. Cette sensation bien
particulière est vécue dans une atmosphère pénible, c’est-à-dire d’une perte de
familiarité avec l’environnement, d’étrangeté] (BESANÇON, 2002: p.27).
Nos escritos íntimos, Lima se autodenunciava: bebia sem controle, vestia-se maltrapilho (mesmo
antes dos uniformes puídos do hospício), caía durante crises alcoólicas, quebrava ossos, era
internado no hospital do Exército. não dominava o próprio corpo e avançava em um processo de
esfacelamento que gerava eterna estranheza em relação ao corpo, à casa, à repartição, ao hospício
prática, aliás, bastante contrária à do cuidado de si dos gregos antigos, que incluía corpo e alma em
igual proporção; Lima valorizava a alma, o pensamento, o intelecto, em detrimento do corpo, numa
hierarquização de valores que se revelava autodestruidora.
Na tentativa de resgate subjetivo que constitui o diário, importava pôr para fora os fragmentos deste
eu combalido, traduzindo-o desordenadamente em pensamentos, citações, sentimentos brutos.
Diário do hospício é um contínuo esforço de repersonalização de si, em que o autor demonstra
conservar a mente intacta, preservada do entorno; ou seja, tenta manter algo de singular, de
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subjetivo, em um corpo esfacelado. E obtém êxito: o diário é uma forma de cuidado de si, que exige
do corpo as mãos, os braços, uma postura, enfim, toda uma disposição não só mental, mas física.
Quando se lê a análise médica e minuciosa do paciente Afonso Henriques de Lima Barreto, que
consta do prontuário do Pedro II, tem-se uma idéia da situação fisiológica em que se encontrava. Na
primeira internação, em 1914, Lima era, segundo a inspeção geral, “um indivíduo de boa estatura,
de compleição forte, apresentando estigmas de degeneração física. Dentes maus; língua com
acentuados tremores fibrilares, assim como nas extremidades digitais (apud BARBOSA, 1988:
p.279)”. Provavelmente para compensar a flagrante saúde debilitada, o autor caprichou no auto-
retrato intelectual, assim registrado no prontuário:
(...) Confessa-se alcoolista imoderado, não fazendo questão de qualidade. Está bem
orientado no tempo e no meio. Memória íntegra; conhece e cita com bastante
desembaraço fatos das histórias antiga, média, moderna e contemporânea, respondendo
as perguntas que lhe são feitas, prontamente. Tem noções de álgebra, geometria,
geografia. Nega alucinações auditivas, confirmando as alucinações visuais. Associação
de idéias e de imagens perfeitas, assim como perfeitas são a percepção e atenção. Cita
seus autores prediletos que são: Bossuet, Chateaubriand ‘católico elegante’ [sic],
Balzac, Taine, Daudet; diz que conhece um pouco de francês e inglês. Com relação a
esses escritores faz comentários mais ou menos acertados; em suma, é um indivíduo que
tem algum conhecimento e inteligente para o meio em que vive (apud BARBOSA,
1988: pp.279-280).
O retrato desenhado pela instituição, isto é, pela psiquiatria, revelava-se compatível com a escrita
de si de Lima em vários outros aspectos, porém um pouco mais detalhada quando o assunto era
corpo. O autor sofria com os próprios maus-tratos: dentes não cuidados, decadência física,
tremores. O descuido em relação ao corpo do interno era compensado pelo cuidado de si em relação
à lucidez do escritor: no prontuário a literatura oficial do hospício o psiquiatra reconhecia,
enfim, a superioridade de Lima Barreto, ao afirmar ser ele inteligente para o meio em que vive.
Lima citou Bossuet, Chateaubriand, Balzac, Taine e Daudet em uma consulta médica, certamente
para convencer o representante do hospício de seus méritos literários e, assim, distinguir-se daquele
corpo social.
63
Lima sofria certamente os efeitos do que a psiquiatria classifica atualmente como psicose alcoólica
(tal consta no Código Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde): o estágio mais
grave do alcoolismo, caracterizado pela presença de alucinações, idéias delirantes do tipo paranóide
ou persecutório e perturbações psicomotoras. O escritor chegou a descrever no Diário íntimo, em
anotação datada de 5 de setembro de 1917, os sofrimentos decorrentes do excesso de álcool:
De muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale, abate todo o
organismo, desde os intestinos até a enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia
de bebê-la. Preciso deixar inteiramente.
No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tinha levado
todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não.
Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo.
Ia para a cidade, quando me senti mal. Voltei para casa, muito a contragosto, porque o
estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a
estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio.
Deitei-me, vomitei e andava com fluxo de sangue, que me levava à latrina
freqüentemente. Numa das vezes em que fui, caí e fiquei como morto. Meus irmãos
acudiram-me e trouxeram-me a braços, inclusive o Elói, filho da Prisciliana, meu
afilhado e de minha irmã. Não sei o que se passou; o que sei é que as senhoras da
vizinhança acudiram e eu despertei duas horas depois com equimoses nos tornozelos e
cercado por elas, cheias de susto.
Chamaram o médico, o Caire, estudante do meu tempo; e estou sofrendo a medicação
mais penosa que me podia ser imposta. Estou em dieta de fruta e água de arroz, pois o
meu organismo tem déficit.
Se não deixar de beber cachaça, não tenho vergonha. Queira Deus que deixe.
Lima confessou o mal provocado pela bebida, levando-o a comer pouco, dormir em qualquer lugar
e descuidar da higiene pessoal. Além disso, passava mal e caía com freqüência no Diário íntimo
anota uma passagem pelo Hospital Central do Exército, de 4 de novembro de 1918 a 5 de janeiro de
1919, devido à fratura de uma clavícula, em decorrência de uma queda durante alucinação
64
alcoólica. A autodescrição coincide com vários relatos de amigos e companheiros da época, que
Lima se apresentava em público nesse estado, sem capacidade de camuflar a condição de alcoólatra.
Pela análise psiquiátrica realizada durante a segunda internação, em 1919/1920, pode-se notar o
agravamento de certos sintomas e a confirmação do diagnóstico (alcoolismo):
É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, fácies [sic] de bebedor,
regularmente nutrido.
Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em
larga escala, de parati; compreende ser um vício muito prejudicial, porém, apesar de
enormes esforços, não consegue deixar a bebida.
Por este abuso passou certa vez três meses no Pavilhão, o que, entretanto, nada
adiantou, voltando desde a saída a embriagar-se. Informa que as suas perturbações,
quando aparecem são em forma de delírios, sempre conseqüentes a um abuso mais forte
e mais demorado.
Foi o que sucedeu desta vez, alarmando um seu irmão, que julgou conveniente a sua
internação, apesar de seus protestos.
Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo quatro romances editados, e é
atual colaborador da Careta.
Fala em seus últimos delírios, reconhecendo perfeitamente o fundo doentio deles, e diz-
se certo que tal só sucedeu graças às suas perturbações mentais.
Estes delírios que são facilmente descritos pelo paciente são de caráter terrificante,
perseguidor, etc.
Geralmente a amnésia em relação às fases de embriaguez é completa, porém estes
últimos delírios, segundo o próprio, passaram-se sem que estivesse em completo
etilismo, motivo por que é capaz de descrevê-los.
Mãe falecida tuberculosa. Pai vivo, aposentado no serviço de administração das
Colônias de Assistência a Alienados; há 18 anos não sai de casa, preso de psicastenia ou
lipemania, como informa o examinado.
65
São notáveis os tremores fibrilares da ngua e das extremidades digitais dos músculos
da face, mormente quando fala. Palavra algo arrastada e meio enrolada, certas vezes.
Teve blenorragia e cancro mole, icterícia e febres palustres (apud BARBOSA, 1988:
pp.281-282).
Esse trecho do prontuário médico é um raio X preciso do paciente Afonso Henriques Lima Barreto.
Fornece a genealogia em rótulos: mãe morta e pai louco; irmão delator, responsável pela internação
do escritor no hospício. O que prevalece, entre tantas informações, é a lucidez com que Lima, no
auge da fragilidade de alcoólatra, se esforçava para fazer o relato de si diante da psiquiatria.
Certamente por conta desse esforço, o médico concluiu estar ele perfeitamente orientado no tempo,
lugar e meio. Percebe-se, no entanto, que nesse período, Lima começava a desconfiar da própria
sanidade, tentando atribuir os delírios às suas perturbações mentais e não ao alcoolismo. As
alucinações, no entanto, eram relatadas como de caráter terrificante, perseguidor, a exemplo dos
sintomas da psicose alcoólica. No final, o prontuário acrescentava ainda novos dados, não
desvelados na escrita íntima: blenorragia e cancro mole, por exemplo, são doenças venéreas.
Permanece a impressão de que o quadro físico era mais grave do que o autor pintava.
Em um trecho de O cemitério dos vivos, em que o eu de Lima foi maquiado por um eu que ganhava
o nome do protagonista, o esquecimento do corpo também foi um tema abordado:
A minha consciência, a certeza em que eu estava de que o culpado de estar ali era eu,
era a minha fraca vontade, que, entretanto, era mais forte em outros sentidos,
obrigavam-me, para meu decoro moral, a nada pedir aos camaradas que me
suavizassem a minha situação. De resto, eu tinha obtido o razoável para um sujeito
que <foi> recolhido a um hospital público como um va-nu-pieds. Longe de acusar os
outros, longe de censurar aqueles conhecidos e semidesconhecidos com os quais lidei
com essa classificação social, eu tinha que dizer bem deles, pois me julgando assim
em nada me ofenderam ou maltrataram. As pequenas cousas que feriam o meu amor-
próprio e que me desgostavam intimamente, eram decorrentes do modo por que eu ia
me conduzindo na vida, deixando cair, aniquilando-me. É curioso agora notar que o que
mais me impressionava nos loucos era a mania depressiva, eram os efeitos da moléstia a
conduzir o indivíduo para o esquecimento do seu corpo, da sua dignidade de homem, da
obliteração, senão apagamento, de todas as manifestações externas de sua alma, de sua
vida (BARRETO, 1993: p.156-157).
66
Há em Lima a acusação ao social e ao saber da psiquiatria, mas, subjetiva, está a certeza de que algo
nele mesmo o conduziu àquele estado. Vê-se nesse trecho que ele não se coloca apenas na posição
de vítima, pelo contrário, reconhece a “fraca vontade”.
Algumas das multifunções da escrita de si reveladas por Lima durante a internação no hospício
estão igualmente presentes nos diários de Antonin Artaud, uma seqüência de escritos mais prolixos,
complexos e diversificados, que trazem a questão do corpo fragmentado, desapropriado pelo
Estado, como tema renitente. Esta situação-limite em que se encontrava o corpo do interno, sob a
austeridade do hospital psiquiátrico, era forçada ao extremo durante a aplicação do eletrochoque:
O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu
coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se durante semanas em busca
do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e
no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e
setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser
(ARTAUD, 1981: p.26).
Fica claro neste trecho que a escrita do diário íntimo tem, em primeira análise, a função de
compensar este corpo louco, desgovernado por si, posteriormente forçado à fronteira do ser com o
não-ser pela violência da instituição. A escrita de si preenche a angústia do desespero, o vazio da
memória, o não-pensamento, a ausência do corpo. Aos poucos, recupera o ser, reagrupa-o, recoloca-
o no interior do invólucro corporal. Uma pergunta de Artaud no Cahier de Rodez a dimensão da
loucura em que se constituiu a relação do interno sob a repressão do manicômio: “Até quando devo
refugiar-me no não-ser para ter o direito de ser o que sou? [Jusqu’à quand me faudra-t-il me
réfugier dans le non-être pour avoir le droit d’être ce que je suis?] (ARTAUD, 1981: p.26)”.
A escrita funcionava como ponte do não-ser aniquilado pela loucura, pela instituição, com o ser
integral, pleno. Porém, é importante esclarecer que existem dois processos de desintegração em
jogo nesta situação-limite. O primeiro envolve a relação consigo mesmo, ou seja, as condições
mentais que levaram o paciente à internação no manicômio: no caso de Lima, os delírios alcoólicos
e a confusão mental, sem diagnóstico de doença mental grave, ou psicose; no caso de Artaud, a
esquizofrenia, definida como a cisão do pensamento, do eu. O segundo processo de desintegração
diz respeito à relação imposta pelo hospício sobre este eu partido, secionado e caótico (nos mais
67
diversos níveis de gravidade). É relevante sublinhar que um e outro são igualmente fundamentais na
análise da escrita de si na instituição psiquiátrica.
Na apresentação dos Nouveaux écrits de Rodez, Pierre Chaleix realizou uma síntese da influência da
loucura de Artaud em sua escrita, e vice-versa, como se uma não sobrevivesse sem a outra, como se
estivessem entranhadas, entrelaçadas, numa relação de dependência que qualificava esta escrita e a
autenticava. Chaleix exaltou em Artaud “(...) uma luta longa, lúcida, heróica contra os sofrimentos
do corpo e da alma, de uma alma que sabia, desde jovem, estar ‘fisiologicamente ferida’. Esta luta,
que ele sem dúvida precisou travar a todo instante, tornou a sua escrita ‘essa casca de palavras que
cai’, casca/escrita arrancada da abjeção de um corpo pensante [(...) une lutte longue, lucide,
héroïque contre les souffrances du corps et de l’âme, d’une âme qui savait, dès sa jeunesse, être
‘physiologiquement atteinte’. Cette lutte qu’il dut sans doute soutenir à tous les instants fait de son
écriture ‘cette écorce de mots qui tombe’, écorce/écriture arrachée au vil d’un corps pensant.]
(ARTAUD, 1977: p.11/12)”.
Esta imagem da casca de palavras que cai, de uma casca/escrita, providencia outra função para a
escrita de si no hospício: a de escudo, a de uma literatura da urgência extraída à força de um corpo
que pensa, fala, denuncia, e com a qual se defende, não apenas do senso comum, que o condenava
ao lugar de rebotalho, mas de si, do que de abjeto em seu corpo/alma. Neste confronto heróico
como não reconhecer o caráter épico de uma luta desta natureza? Artaud demonstrou excessiva
preocupação com a conservação do corpo, um corpo sitiado pela autoridade, enfraquecido por
eletrochoques
12
. A casca/escrita era a sua proteção (écorce significa literalmente a casca do tronco
da árvore) contra a instituição.
Neste contexto, convém lembrar Arthur Bispo do Rosario, que por toda a vida esforçou-se em
atingir uma condição de santidade, dedicando-se a jejuns para ficar transparente, ou desejando
secar para virar santo, demonstrando exagerado cuidado com o corpo, mas sendo este corpo ligado
à palavra de forma radical, ou mesmo visceral. Bispo levou ao extremo a idéia da casca/escrita
como escudo, ao inscrever nomes e frases em mantos que vestia no dia-a-dia do hospital
psiquiátrico, criando um ritual muito particular que consistia em, literalmente, vestir palavras,
trajar-se com a escrita que lhe era premente e com a qual se defendia do entorno.
12
Artaud foi diagnosticado como esquizofrênico e apresentou delírios alternados, reconhecidos e
descritos por ele próprio. Por esta razão, sofreu a prescrição médica da sua época eletrochoques ao
contrário de Lima, cujo medicamento no manicômio consistiu apenas de ópio.
68
Lima Barreto, à sua maneira, comungou deste culto à escrita como escudo, e pode-se concluir que,
nesses casos, os três, cada qual à sua maneira, descobriram a função terapêutica do cuidado de si
assinalado por Foucault, ainda que proprietários de corpos provisoriamente embargados por
situações-limite:
Ocupar-se de si não é uma simples preparação momentânea da vida; é uma forma de
vida. Alcebíades se dava conta de que deveria cuidar de si, à medida que ele queria,
posteriormente, ocupar-se dos outros. Trata-se agora de se ocupar de si, para si. Deve-se
ser para si, e ao longo de toda a sua existência, o seu próprio objeto (...) Mas, sobretudo,
esta cultura de si possui uma função curativa e terapêutica. Ela aproxima-se muito mais
do modelo médico que do modelo pedagógico. É preciso, é verdade, lembrar-se de fatos
muito antigos na cultura grega: a existência de uma noção como a de pathos, que
significa tanto a paixão da alma quanto a doença do corpo; a amplitude de um campo
metafórico que permite aplicar ao corpo e à alma expressões como tratar, curar,
amputar, escarificar, purgar. É preciso lembrar também o princípio familiar aos
epicuristas, cínicos e estóicos, de que o papel da filosofia consiste em curar as doenças
da alma. (...) Segundo um princípio bastante difundido, não se pode ocupar-se de si sem
a ajuda de um outro. Sêneca dizia que ninguém é tão forte para se desprender por si
mesmo do estado de stultia no qual se encontra: ‘Ele tem necessidade de ser pego pela
mão e conduzido’. Galeno, no mesmo sentido, dizia que o homem ama demais a si para
poder se curar sozinho de suas paixões: ele teria visto com freqüência homens
tropeçarem por não terem aceito se submeter à autoridade de um outro. Este princípio é
verdadeiro para os iniciantes; mas vale para todo o restante da vida. A atitude de Sêneca
em sua correspondência com Lucilius é típica: apesar de estar velho e de ter
abandonado toda atividade, ele conselhos a Lucilius, mas também os pede, por sua
vez, e se alegra com a ajuda que descobre nessa troca de cartas. [S’occuper de soi n’est
donc pas une simple préparation momentanée de la vie; c’est une forme de vie.
Alcibiade se rendait compte qu’il devait se soucier de soi, dans la mesure il voulait
par la suite s’occuper des autres. Il s’agit maintenant de s’occuper de soi, pour soi-
même. On doit être pour soi-même, et tout au long de son existence, son propre objet.
(...) Mais surtout cette culture de soi a une fonction curative et thérapeutique. Elle est
beaucoup plus proche du modèle médical que du modèle pédagogique. Il faut, bien
entendu, se rappeler des faits qui sont très anciens dans la culture grecque: l’existence
69
d’une notion comme celle de pathos, qui signifie aussi bien la passion de l’âme que la
maladie du corps; l’ampleur d’un champ métaphorique qui permet d’appliquer au
corps et à l’âme des expressions comme soigner, guérir, amputer, scarifier, purger. Il
faut rappeler aussi le principe familier aux épicuriens, aux ciniques et aux stoïciens que
le rôle de la philosophie, c’est de guérir les maladies de l’âme. (...) Qu’on ne puisse pas
s’occuper de soi sans l’aide d’un autre est un principe très généralement admis.
Sénèque disait que personne n’est jamais assez fort pour se dégager par lui-même de
l’état de stultitia dans lequel il est: “Il a besoin qu’on lui tende la main et qu’on l’en
tire”. Galien, de la même façon, disait que l’homme s’aime trop lui-même pour pouvoir
se guérir seul de ses passions: il avait vu souvent trébucher des hommes qui n’avaient
pas consenti à s’en remettre à l’autorité d’un autre. Ce principe est vrai pour les
débutants; mais il l’est aussi pour la suite et jusqu’à la fin de la vie. L’attitude de
Sénèque, dans sa correspondance avec Lucilius, est caractéristique: il a beau être âgé,
avoir renoncé à toutes ses activités, il donne des conseils à Lucilius, mais il lui en
demande et il se félicite de l’aide qu’il trouve dans cet échange de lettres]
(FOUCAULT, 1994: pp.416-417).
Diário do hospício constituiu o manuscrito do cuidado de si; uma forma de cultura de si com valor
terapêutico, por vezes excessivamente repetitiva, aparentemente não apresentando soluções práticas
para problemas estruturais, mas eficaz em situações-limite, mesmo sem ter um outro (um mestre, ou
um psicanalista) materializado. Lima Barreto comungou com Sêneca: deve-se ser para si, e ao
longo de toda a sua existência, o seu próprio objeto. Utilizando os escritos como filosofia para
curar as doenças da alma, Lima lidou com o manicômio, estabelecendo relação semelhante à que
mantinha com o mundo: ao mesmo tempo em que desejava participar da sociedade e obter
reconhecimento, ele diminuía a sua importância, a influência em sua vida, fazendo do diário a
trincheira contra o meio. O hospício/mundo externo constituía o risco, a ameaça, consolidando, na
lida, o ato de roubá-lo de si, isto é, efetuava, por meio de ritos diários, a desagregação do eu pelo
molde institucional. Ao escrever um diário no hospital psiquiátrico, Lima se autorizava, que, na
instituição psiquiátrica, a autoridade o desautorizava.
Na heterogeneidade de escritos, confissões, citações do Diário do hospício, destaca-se uma escrita
de si multifuncional, vinculada à reconstrução da identidade de um a-social, de um a-intelectual
excessivamente crítico diante da modernidade que não o metabolizava. Este louco-autor solipsista
70
acabou compondo um ciclo de escrita de si/literatura de si, que salvava este capital fundamental
que é o eu, mas que paradoxalmente o projetava em uma margem por vezes inconciliável com a
realidade. Como citação-conclusão desta questão, convém reproduzir a frase transcrita por Lima
Barreto no Diário íntimo, atribuída a Kant:
(...) em mim, não existe absoluto, nem ausência de absoluto, porque não conheci nunca
elemento distinto do ‘eu’ (apud BARRETO, 1998: p.117).
71
3.
A LITERATURA DE SI: O EU MAQUIADO DOMINA A FICÇÃO
A frase conclusiva do capítulo anterior representa o cerne da literatura de Lima Barreto, autor que
esgarçou a questão autoral ao limite, ao afirmar: “(...) não conheci nunca elemento distinto do ‘eu’
(BARRETO, 1998: p.117)”. Note-se que a palavra autor, do latim auctore, quer dizer “causa
principal, a origem de”. E Lima levou a etimologia à última conseqüência: utilizou o eu como
origem da escrita, sendo o inventor de uma narrativa que tem em si mesmo a causa principal.
Assim, o eu transborda do escrito íntimo para o romance, sendo devidamente (aos olhos de muitos
críticos, insuficientemente) maquiado para se apresentar (as questões cruciais, crises existenciais)
em invólucro romanesco. Isto quer dizer que a existência se reflete na experiência literária de forma
radical o que pode ser flagrado, de maneira mais ou menos acentuada, dependendo do
protagonista, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e
Vida e morte de M. J. Gonzaga de . O paradigma desta questão, contudo, encontra-se na
comparação entre Diário do hospício (uma escrita de si multifuncional) e O cemitério dos vivos (o
que nesta tese se formula como literatura de si).
Essa excessiva exposição pessoal nos romances e nas crônicas foi também e principalmente o que
desagradou à intelectualidade, em menor e maior grau, dependendo do crítico e da época. Antonio
Candido, por exemplo, disse que o Lima Barreto mais típico foi o que fundiu problemas pessoais e
sociais, partindo desta premissa para questionar em que medida as suas convicções e sentimentos
afetaram a realização como escritor:
Lima Barreto é um autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o
desmascaramento da sociedade e a análise das próprias emoções, por meio de uma
linguagem cheia de calor. Mas é um narrador menos bem realizado, sacudido entre altos
e baixos, freqüentemente incapaz de transformar o sentimento e a idéia em algo
propriamente criativo. A análise dos escritos pessoais contribui para esclarecer isso,
72
mostrando inclusive de que maneira o interesse dos seus romances pode estar em
material às vezes pouco elaborado ficcionalmente, mas cabível enquanto testemunho,
reflexão, impressão de cunho individual ou intuito social como se o fato e a
elaboração não fossem de todo distintos, para quem a literatura era uma espécie de
paixão e dever; e até uma forma de existência pela qual sacrificou outras (CANDIDO,
1997: pp.549-550).
Nota-se, não só em Candido, mas em outros críticos, que o caráter de autoconfissão detectado fora
do domínio do diário nem sempre foi bem visto, sobretudo nos romances. Este eu confessional
camuflado na ficção foi sublinhado por alguns críticos como aspecto negativo, transparecendo
publicamente como material pouco elaborado ficcionalmente. Ao vazar a sua identidade e forçar as
fronteiras entre verdade e ficção, Lima certamente atrapalhou seus sonhos de glória como grande
escritor por criar um gênero
13
híbrido, mais criticado do que elogiado na época. Candido chegou a
afirmar que se podem admirar sem reservas alguns contos de Lima e o romance Triste fim de
Policarpo Quaresma. Destacou a sua irregularidade como ficcionista e concluiu que Lima
“canalizou a própria vida para a literatura, que o absorveu e tomou o seu lugar; e esta doação de si
mesmo atrapalhou-o paradoxalmente a ver a literatura como arte (CANDIDO, 1997: p.550)”. Nessa
análise, o crítico ignorou, portanto, o bem-acabado Vida e morte de M. J. Gonzaga de , onde o
autor transforma magistralmente vida em arte. Aliás, na correspondência com Antônio Noronha dos
Santos, uma carta em que Lima diz estar enviando os originais (de Vida e morte de M. J.
Gonzaga de ) para o amigo revisar e ali ele escreve, textualmente: “Você deve anotar onde está
‘Afonso’ que eu quero cortar (BARRETO, 1998: p.235)”.
Esta travessia da escrita de si para a literatura suscitou renovadas polêmicas ao longo de décadas de
fortuna crítica sobre Lima Barreto, mas, sobretudo em seu tempo, foi mal digerida. Todo o mal-
estar pessoal de Lima e, a partir de si mesmo, com a sociedade rendeu uma surpreendente literatura
de si que por vezes até parecia partir de um certo egocentrismo, mas, na verdade, almejava o
coletivo. Ou, ao contrário: por ele ser refém do coletivo ao nascer como depositário dos
preconceitos sociais da sociedade branca e burguesa, ou seja, marcado pela pele negra, pela origem
pobre e, em seguida, pela loucura –, buscava uma literatura aparentemente egocêntrica para
compreender-se, num mundo que se apresentava hostil desde o nascimento (trata-se da velha
13
Utiliza-se gênero em itálico para se relativizar este o-gênero: a explicação minuciosa sobre a questão
é dada ao longo desse capítulo.
73
discussão sobre antecedentes...). Mais importante, no entanto, é a análise das fragilidades e riquezas
deste gênero explorado pelo autor quando o modernismo apenas espreitava.
Antonio Houaiss, ao situar Lima no pré-modernismo (antes de 1922), afirmou que a sua condição
de mulato entrou em conflito com as vozes mais altas daquele tempo e ressaltou a sua postura
crítica, que “dá à sua obra uma relevância polêmica que o prejudicou em vida quase brutalmente,
levando-o a confissões de derrotado sempre disposto a aceitar a luta não com certa esperança (...)
(HOUAISS, 1997: p.XVII)”. Para o crítico, o autor tomou o lado do derrotado o que atualmente
se taxaria de loser (um fracassado), sem o charme do vitorioso, bem-sucedido. Nesse sentido, Lima
reproduziu um impasse oitocentista, que elevava o mundo à máxima potência, diante do qual o
indivíduo forçosamente submergia, caso não aceitasse as suas regras venais. O escritor era,
superficialmente, o oposto do que a sociedade capitalista e globalizada de hoje celebraria como
winner (vitorioso) como se não houvesse possibilidade de um meio-termo. A sua loucura, isto é,
aquilo que o levou a ser internado no manicômio, parece ter surgido em parte deste embate (pelo
menos são algumas das suas explicações para a internação, explicitadas em Diário do hospício): o
alcoolismo e a situação financeira revelavam a sua dificuldade em transcender este conflito,
tanto na vida (o complexo social e racial) quanto na literatura (a falta de reconhecimento literário
que tanto reclamava).
Houaiss mostrou como, para Lima, a literatura não era apenas expressão, mas, sobretudo,
comunicação militante. Ele não escrevia para distrair leitores, diverti-los, atormentá-los ou consolá-
los, mas para denunciar falhas, males, vícios.
Note-se, desde já, também, que, embora sua obra quase inteira seja um grande painel
autobiográfico (o que reforça a sua autenticidade), os elementos de sua vida, quando
não notações ou conotações realistas para pequenas particularidades ocasionais da vida
de suas personagens, nunca foram tomados como peso ponderal da motivação da obra
por força do seu egoísmo ou sequer do seu egocentrismo. Pode-se conhecer, ao
contrário, que o móvel profundo que animou Lima Barreto, ao tomar dados
autobiográficos para grandes motivos de sua obra literária, foi sempre o reconhecimento
lúcido e consciente do quanto de injusto a sociedade gestava em seu ventre com relação
a eles (HOUAISS, 1997: p.473).
74
Se todo este eu ferido transbordou nos escritos, foi menos por egoísmo do que por uma espécie de
ideal que levou o escritor a apostar na denúncia como ferramenta de transformação social. Até
mesmo na questão da linguagem, Houaiss viu além: debruçado sobre uma análise do texto de Lima
sob o ponto de vista gramatical, concluiu que ele fez questão de não assimilar passivamente a
gramática, pelo contrário, criticou e combateu a fixidez autoritária da mesma – atitude, aliás,
renitente em outros aspectos da sua vida: a revolta contra o estabelecido.
Em “Impressões literárias”, artigo publicado em 1916, em A Lusitana (RJ), Jackson Figueiredo
escreveu um texto exclusivamente para “protestar contra a ignomínia deste silêncio com que se
procura matar toda a obra verdadeiramente viva dos que aparecem sem contrato com os nossos
vendedores de glória literária (BARRETO, 1997: p.421)”. O crítico saiu em defesa de Lima,
insistindo na comparação com Machado de Assis e fazendo a distinção:
Lima Barreto é, entre nós, na verdade o tipo perfeito do analista social, mas um analista
que combate, que não ficou como Machado de Assis, por exemplo, no círculo de uma
timidez intelectual esquiva ao julgamento. Ele não se limita a mostrar todos os fundos
da cena, o que vai pelos bastidores da nossa vida: toma partido, assinala os atores que
falam a linguagem da verdade, mostra o que há de falso, de mentiroso na linguagem dos
outros. (...) acima de tudo, Lima Barreto é um pensador, algumas vezes vai além da
ironia como arma de combate, da ironia que é sempre melancólica, mas áspera, e se faz
triste, tristíssimo, cheio de um imenso ante as nossas misérias (FIGUEIREDO, 1997:
p.420).
Lima foi, acima de tudo, um pensador. Para dar cabo do pensamento que urgia em si, dia e noite,
misturado a emoções pouco controláveis em seu sensível estado de nervos, o autor passeava
livremente entre os gêneros, sem preconceito, sendo fiel serviçal apenas de idéias e ideais próprios.
Assim, nem sempre este eu foi bem maquiado; nem sempre o escritor segurou o desabafo, a
humilhação, travestindo-se de moço bem-comportado e mudando de tom, da verdade para a ficção,
para fingir um distanciamento que não possuía. Este inédito hibridismo, marcado pela ausência de
áreas limítrofes entre vida e arte, desagradou a muitos e, como será demonstrado mais adiante,
não era um fenômeno exclusivo de Lima Barreto.
Sobre a inevitável comparação com Machado, Francisco de Assis Barbosa confirmou ter sido
sempre desagradável a Lima. Por estas frases do autor, transcritas de uma carta a Austregésilo de
75
Ataíde, é possível vislumbrar o que o incomodava: “Machado é um falso em tudo. (...) Não tem
naturalidade. Inventa tipos sem nenhuma vida (apud BARBOSA, 1988: p.199)”. Percebe-se que
Lima condenava Machado pelo que julgava falsidade, esta que, em literatura, pode ser
compreendida como tratamento ficcional, parte do jogo literário. Mas Lima recusava-se a entrar
neste jogo (entrava em outro tipo, o roman à clef, por exemplo), e a prova disso era a sua teoria
literária muito particular e original para a época: “A Arte, por sua natureza mesma, é uma criação
humana dependente estritamente do meio, da raça e do momento todas essas condições
concorrendo concomitantemente (BARBOSA, 1988: p.199)”. O autor via como indissociáveis a
arte e o homem – este invariavelmente situado em seu meio social. Apesar da fascinação, na
infância, pelas aventuras fantásticas de Jules Verne, em sua literatura adulta Lima condenava a
abstração e escrevia para refletir sobre si, a humanidade, o seu tempo. Vida e Arte (em maiúscula,
como ele escrevia) eram xifópagas, inseparáveis.
A comparação entre Lima e Machado rendeu todo tipo de opinião, sobretudo pelo fato de os dois
autores, contemporâneos, serem de origem humilde e de descendência africana. A bem-sucedida
carreira do autor de Dom Casmurro em contraposição ao pouco reconhecimento de Lima foi
bastante explorada por críticos como Lúcia Miguel Pereira, que percebeu nos dois, contudo, a raiz
da amargura, sendo que Machado optou pelo cepticismo malicioso e lúcido”, enquanto Lima
“estatelou a revolta (PEREIRA, 1988: p.278)”. A maquiagem bem-acabada do eu machadiano
originou um ceticismo bem-vindo e uma literatura considerada universal; a revolta do eu bruto de
Lima deixou, para a maioria dos críticos, a sensação de um vazio artístico, uma espécie de
incompetência em transmutar-se, a si, em arte o que inúmeros escritores fizeram e fazem, com
maior ou menor intensidade, ao longo da história da literatura, e é muito bem-vindo, desde que
devidamente disfarçado. Em carta a Austregésilo de Ataíde, o próprio Lima explicou a sua
diferença:
Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura
de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros
pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens,
de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá, mas de Machado, nunca! Até em Turguenev, em
Tolstoi, poderiam ir buscar os meus modelos: mas em Machado, não! “Le moi...”
Machado escrevia com medo de Castilho e escondendo o que sentia, para não se
rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de
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não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto. Creio
que é grande a diferença (apud PEREIRA, 1988: p.276).
Lima costumava dizer que buscava a sinceridade em sua literatura, idéia que em sua base opunha-se
à tentativa de mascarar-se em demasia. Apesar de soar como despeito a sua comparação com um
escritor que obteve em vida todas as glórias literárias com que sonhou, Lima tocou em pontos
fundamentais do seu próprio fazer literário: dava grande importância ao entusiasmo generoso; não
escondia as emoções (pelo contrário, as flagrava, em si mesmo e nos outros, em suas narrativas);
não tinha medo da crítica, isto é, não escrevia com esta preocupação, obtendo, por isto, uma
autenticidade rara; tudo o que temia, realmente, era não ser sincero. Como era de se esperar, esta
última característica, naïve aos olhos da crítica do seu tempo, não bastou para assegurar, segundo
Lúcia Miguel Pereira, a sua qualidade literária:
Não foi, entretanto, marcante a repercussão dos livros desiguais, densos e sinceros de
Lima Barreto, no qual, na ocasião, José Veríssimo julgou “descobrir alguma coisa”.
A sua obra, solitária como a sua vida, é, porém, incontestavelmente um elo entre o
romance machadiano e as atuais tendências da ficção, entre o realismo psicológico de
Machado de Assis e as buscas mais ousadas – embora não mais profundas – dos
escritores que, depois do movimento modernista, e sobretudo depois de 1930, puseram
em equação todos os problemas do homem brasileiro (PEREIRA, 1988: p.275).
Lúcia viu a obra de Lima como um elo entre o romance machadiano e algumas tendências da ficção
moderna, especialmente a partir da década de 1930, sobretudo quanto à sua prática de discutir e
denunciar os problemas do homem brasileiro. Foram necessárias várias décadas para que críticos
contemporâneos redimensionassem a relevância desta tendência de desabafar problemas pessoais na
ficção, utilizada como forma de debate das questões mais sensíveis no cenário nacional. Para
Ronaldo Lima Lins, por exemplo, esta particularidade de Lima “(...) se por um lado compromete o
fluxo literário do seu modo de expressar-se, prejudicando a isenção, abre um espaço real para o
debate de problemas que não conseguimos superar e que o estilo da época não deixava emergir
(LINS, 1997: p.297)”.
O crítico cita um trecho de Recordações do escrivão Isaías Caminha em que o protagonista é
vítima de preconceito racial, percebendo, então, o seu destino. Mesmo sob o risco de se revelar
amargo, Lima (segundo Ronaldo) “insiste em fazer sangrar suas feridas (LINS, 1997: p.297)”. Esta
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coragem de se expor de forma radical e tomar como tema as próprias feridas é flagrante em Isaías,
personagem-representação da faceta do eu pobre e negro do autor: um sujeito humilde, que se muda
do interior para o Rio de Janeiro, emprega-se como contínuo num dos jornais mais requisitados da
época no Rio, O Globo (que, na vida real, correspondia ao prestigioso Correio da Manhã), e se
debate com todo tipo de percalço, ansioso por ascender na hierarquia do jornalismo. Neste roman à
clef, Lima teve o cuidado de mascarar, trocar nomes, mas o excesso de amargura do protagonista e a
coincidência entre características dos personagens reais e fictícios o denunciaram à época, surtindo
efeito imediato, nem sempre bem-vindo entre a classe jornalística (alvo de críticas virulentas do
autor). Segundo Monteiro Lobato, os jornalistas tentaram ignorar Recordações do escrivão Isaías
Caminha por se sentirem ofendidos com a denúncia à clef, o que certamente prejudicou muito o
início de carreira de Lima, autor (ainda segundo Lobato) de uma nova fórmula de romance: a crítica
social sem doutrinarismo dogmático (LOBATO, 1997).
As similaridades entre Lima e Isaías despontam no início do romance, quando o protagonista
conta um breve episódio:
O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que
estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos.
Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como
se demorassem em trazer-me o troco, reclamei: “Oh! Fez o caixeiro indignado e em tom
desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!” Ao mesmo tempo
a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente
entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais
cresceu a minha indignação. Curti durante segundos uma raiva muda, e por pouco ela
não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da
diferença nos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a
minha pessoa... Os meus dezenove anos eram sadios e os membros ágeis e elásticos. As
minhas mãos fidalgas, com dedos afilados e esguios, eram herança de minha mãe, que
as tinha tão valentemente bonitas que se mantiveram assim apesar do trabalho manual a
que a sua condição a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem
extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o
perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada (BARRETO, 2001:
pp.128-129).
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Passagens como esta, de indignação diante da discriminação racial, pontuam inúmeros escritos de
Lima, em todos os gêneros de que se utilizou para denunciar o preconceito (conforme foi mostrado
no capítulo anterior). O trecho evidencia a distinção feita pelo caixeiro entre o rapaz de pele
azeitonada e o rapazola alourado: na mesma situação, o negro foi visto como ladrão, enquanto o
outro não estava sequer sob suspeita. Nem mesmo as mãos fidalgas com dedos afilados e esguios de
Isaías contribuíram para amenizar a situação. A seu ver, era vítima de discriminação e só lhe restava
conter o choro para o piorar o vexame. Em outra passagem, ao ser chamado de mulatinho,
explodiu:
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me
vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de
consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava
cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e
estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de
homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto
daqueles feria como uma bofetada. Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés
destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus
olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus
sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso (BARRETO, 2001: p.157).
Lima demonstrou invariavelmente uma hiper-sensibilidade à discriminação, que por isto ganhou
dimensão extraordinária em narrativas como esta. Nota-se o esforço vão da maquiagem do eu
ferido, acuado, que, ao explodir em mágoa, fazia cair qualquer esboço de máscara. Exaltava-se a
dúvida de si: Isaías percebia que, apesar do ambiente artificial de consideração, de respeito, não
chegou a ser o que pensava. Havia uma forte dissociação entre o eu e a auto-imagem, presente em
inúmeros outros escritos. O autor via-se além da sua classe social e raça; o mundo, a seu ver,
recusava-lhe os méritos intelectuais e literários que possuía e com os quais pretendia se destacar na
massa.
No quesito preconceito, a passagem da escrita de si para a literatura de si é bem clara quando se lê,
já no final do romance, o seguinte episódio:
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No quinto dia em que eu fazia reportagem, um outro repórter arrebatou-me das mãos
umas notas que eu copiava. Incontinenti, fui ao diretor e o velho funcionário obrigou-o
a restituir-mas. Quando o fez, gritou na portaria:
– Tome, “seu” moleque! Você saiu da cozinha do Loberant para fazer reportagem...
Contive-me, com espanto dos circunstantes, mas nunca imaginei que um insulto
pudesse ir tão longe da nossa natureza. Senti-me outro, muito mais forte, transtornado e
desejoso de matar. Contive-me, porém, e nada disse ao colega que, se não saíra de uma
cozinha, era quase analfabeto e mediante uma propina, para protegê-lo contra a ação
legal, figurava como sendo presidente de um clube de batota. Tirei as minhas notas,
deixei-as no jornal e voltei. Encontrei o tal repórter na rua Primeiro de Março e antes
que ele fizesse o menor movimento, atirei-me sobre o seu grande corpanzil, deitei-o por
terra e dei-lhe com quanta força tinha.
Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfação, de orgulho de ter sentido por
fim que, no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir
que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo.
Até ali, tinha eu sido a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem que não podia,
não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus dias em fora.
Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma cousa que ninguém ignora.
Felizmente não foi tarde... (BARRETO, 2001: p.249).
É inevitável a comparação deste trecho de Recordações do escrivão Isaías Caminha com a história
narrada por Lima Barreto em Diário íntimo, transcrita no capítulo anterior: o episódio em que o
escritor se encontra com C.J. e este, exibindo a mulher que considerava de talhe aristocrático,
aproveita para chamá-lo de negro, afirmando que, apesar de vencê-lo nos concursos, nunca o
venceria em relação às mulheres. No diário, a escrita de si dava conta da situação e revelava um
Lima melancólico, arrasado pelo acontecido, sem ação. A simples narração da história parecia
expiar a humilhação, substituindo uma possível reação física pela escrita em tom de queixa: ao
invés de refutar o insulto, Lima contou que se rendera à bebida e acabara o dia na melancolia.
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Nota-se como a escrita de si possuía a função de substituir a ação, enquanto a literatura de si ia
além do fato e, no caso de Isaías, fazia com que o protagonista fosse às vias de fato: ao elaborar
esteticamente a reação reprimida (a humilhação racial), o autor conseguiu finalmente reagir por
meio do seu personagem. É comovente o esforço de Isaías em tentar compreender intelectualmente
a discriminação que sofre ao longo de todo o livro e, somente nas páginas finais, após inúmeros
desabafos sobre o tema, obtém a compreensão real, que lhe faltava: parte para a força bruta, espanca
o detrator que o insultou ao dizer que ele saíra da cozinha do Loberant (obviamente insinuando a
relação entre cozinha e cor negra) e conclui que é preciso o emprego da violência. Este é um
momento crucial do personagem, uma espécie de amadurecimento, pois sai, enfim, da doçura, da
bondade, da posição de vítima, ou seja, de um ideal de mundo perfeito, de igualdade racial
(inexistente), para a realidade nua e crua. Quando Isaías se ri do acontecido e da descoberta de uma
saída de emergência para as humilhações sofridas, é Lima quem ri por último; neste momento,
explode a literatura da vingança, este suporte utilizado pelo escritor para realizar, pelo menos por
meio da escrita, um ato impensável no dia-a-dia: a agressão física.
Francisco de Assis Barbosa demonstrou como esta questão do preconceito racial era, na vida de
Lima, uma herança paterna. Afinal, João Henriques era também um inconformado e rebelde. Em
1870 trabalhava como tipógrafo, nutrindo ambições muito além das permitidas pelas convenções
raciais da época: trabalhava no jornal A Reforma (a favor da Abolição da Escravatura), pensava em
ser doutor, estudava francês e freqüentava a casa dos Pereira de Carvalho, que tratavam filhos de
escravos com respeito e carinho familiar. Ali conheceu Amália, mãe de Lima, que recebera boa
educação (embora a sua avó fosse escrava trazida da África). Ao pedi-la em casamento, receoso do
grande passo para um rapaz tão humilde, teve a primeira crise de nervos, e o Visconde de Ouro
Preto, dono do jornal, o internou por breve período.
Passada a rápida internação, a vida seguiu tranqüila, até a morte prematura da mulher, quando
Lima, o primogênito, tinha ainda 6 anos. Aos 7, o menino apresentou a sua primeira reação visceral,
radical, em relação ao preconceito: pensou em suicídio por ser acusado injustamente de um roubo
provavelmente um dos acontecimentos que originariam repetidas tentativas de reviver o trauma em
sua escrita de si. Ele toca neste assunto em Diário íntimo:
Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de
minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi
desde essa época que eu sentia a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a
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incompreensão da minha delicadeza, do meu natural doce e terno; e daí também
comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade, de modo que as mínimas cousas
me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante. Deu-me esse
acontecimento, conjuntamente com a vida naturalmente seca e árida dos colégios, uma
tristeza sem motivo, que é fundo de quadro, mas pelo qual passam bacantes em
estertores de grande festa. Outra vez que essa vontade me veio foi aos onze anos ou
doze, quando fugi do colégio. Armei um laço numa árvore do sítio da ilha, mas não
me sobrou coragem para me atirar no vazio com ele ao pescoço (BARRETO, 1998:
p.88-89).
A idéia da tristeza como fundo de quadro, isto é, de uma melancolia sempre presente, é assaltada
por bacantes em estertores de grande festa imagem bem-humorada e relacionada ao alcoolismo
que não pode ser ignorada, pois o álcool provavelmente servia para, num primeiro momento, tirá-lo
da rotina melancólica, ainda que depois esta retornasse como fardo maior. Parece que nem mesmo a
ajuda do fiel Visconde de Ouro Preto ao longo da infância e adolescência, custeando-lhe os estudos
no Liceu Popular Niteroiense, atenuou o sofrimento. O pai de Lima, ao se ver condenado a trabalhar
num hospício, tornou-se alcoólatra, antecipando o futuro vício do filho, aumentando a pressão para
fazer dele o que lhe escapara: formar-se engenheiro, doutor.
A convivência entre Lima e os meninos burgueses da escola parecia apenas acirrar o contraste entre
o rapaz pobre e negro que passava os fins de semana num manicômio da Ilha do Governador e os
garotos brancos oriundos de famílias ricas. Quando, na adolescência, Lima matriculou-se no curso
geral de engenharia civil da Escola Politécnica, carregou consigo resquícios das humilhações
infantis, chegando a odiar e, embriagado, pensar em matar com uma espada o colega Miguel
Calmon du Pin de Almeida que um dia se tornaria ministro da República. Confirmando o perfil
solitário e melancólico da infância, Lima aproveitava a eterna tendência à inadaptação para se isolar
na biblioteca e ler Kant.
Alheio ao curso cnico, não avançava nos estudos e tentava ignorar os colegas que considerava
medíocres. A condição de afilhado pobre certamente agravava, mais do que aliviava, o seu
deslocamento social: “E os 10$000 do tal visconde! Idiota. Os protetores são os piores tiranos (apud
BARBOSA, 1988: p.77)”, escreveu certa vez, sobre a ajuda financeira do Visconde de Ouro Preto.
Embora pareça ingratidão, Lima tinha alguma razão: àquela altura sabia que autonomia podia
ser conquistada por quem compreendia esta máxima. Protetores e provedores sempre fizeram
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grandes exigências. Participar do jogo social exigia uma gama de relações de trocas a que Lima não
estava disposto, por temer a corrupção dos seus princípios puristas de dignidade.
Tantas semelhanças biográficas entre Lima e Isaías irritaram até mesmo críticos que perceberam no
primeiro romance do autor um grande romancista em formação. José Veríssimo chegou a mandar
carta para Lima, felicitando-o pelo livro notável, mas criticando justamente a trôpega passagem do
eu real para o ficcional:
O quadro saiu-lhe acanhado e defeituosamente composto, e a representação sem
serenidade, pessoalíssima. Disto resultou graves máculas na transposição que é toda a
grande arte e a dificuldade da ficção do real para o fingido. E o seu livro tem
freqüentemente mais ares de panfleto, e violento, do que de romance, como a sua
linguagem, ainda por isso, toma o feitio daqueles jornalistas que com tão sincera e justa
paixão, mas com somenos arte, retrata e fustiga. trechos seus que parecem desses
jornais, dos quais nos deu uma excelente caricatura. A quase todas as suas personagens,
crismadas com pouca inventiva, pode-se pôr um nome conhecido, e não faltará quem
nisto encontre um dos méritos do livro. Eu, não. Acho ao contrário que é um dos seus
defeitos. Arte não é cópia, ou é cópia feita, passada, coada através de um temperamento
de artista. É a transposição do real, operada sem dúvida com elementos do real, mas
artisticamente recriados, e não simplesmente transferidos como da chapa fotográfica se
transfere para o papel a imagem apanhada. E infelizmente foi o que principalmente fez
o sr. Lima Barreto (VERÍSSIMO, 2001: pp.30-31).
A análise de José Veríssimo é uma espécie de resumo do caráter defeituoso apontado com
freqüência na obra de Lima: a autoria de uma literatura pessoal e incompreendida na época. Os
comentários de Isaías, em certos momentos, são de uma virulência excessiva no que concerne aos
personagens-jornalistas, muitos tão detalhadamente descritos que na época foram facilmente
identificados entre os jornalistas de carne e osso do Correio da Manhã:
De manhã, pus-me a recapitular todos esses episódios; e sobre todos pairava a figura
inflada, mescla de suíno e de símio, do célebre jornalista Raul Gusmão. O próprio
Oliveira, tão parvo e tão besta, tinha alguma cousa dele; do seu fingimento de
superioridade, dos seus gestos fabricados, da sua procura de frases de efeito, de seu
galope para o espanto e para a surpresa (BARRETO, 2001: p.134).
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Apesar de embrulhar jornalistas famosos em embalagem a priori ficcional, as questões pessoais
eram evidentes. Soaram, sem dúvida, exagerados e agressivos adjetivos como suíno e símio para
desqualificar o personagem. Lima transpareceu em Isaías, ficando evidente o tom de denúncia sob
um véu aparentemente romanesco. Um trecho do livro denuncia o clímax desta sobreposição
Lima/Isaías:
Penso não sei por que que é este meu livro que me está fazendo mal... e quem sabe
se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer
com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas semimortas?
Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia
pra dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua
utilidade para o fim que almejo.
Quem sabe se ele me não vai saindo um puro falatório?! Eu não sou literato, detesto
com toda a paixão essa espécie de animal. O que observei neles, no tempo em que
estive na redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, nem os imitar. São em
geral de uma lastimável limitação de idéias, cheios de fórmulas, de receitas, capazes
de colher fatos detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às idéias
vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo e guiados por
conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério de beleza. (...) Mas não é a ambição
literária que me move a procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas
pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos,
obrigá-los a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má vontade
quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha dez anos
passados (BARRETO, 2001: p.163).
O próprio processo da escrita fazia-lhe mal, e ele explicava por quê: ao utilizar a literatura de si
como forma de reviver traumas (provavelmente para tentar resolvê-los), ele tentava buscar uma
utilidade prática para o romance. Confundia-se nesse intuito: ora pensava ser um meio de reavivar
sensações dolorosas já semimortas, ora percebia em si a angústia do escritor. Importante é a frase
em que se perguntava se o livro não saía como puro falatório, justamente com o tom de desabafo
tão criticado na época. Ele próprio antecipava o risco do defeito do primeiro livro (no próprio
livro!), apelando, contudo, para uma explicação pragmática: não importava o valor literário
propriamente, mas a sua utilidade. Ao julgar jornalistas, suas fórmulas, limitações de idéias e
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concessões aos poderosos, Lima pretendia transformá-los, mudar toda uma intelectualidade, uma
época, como que ampliando a recepção crítica, ou, pelo menos, a visão de um rapaz como ele (leia-
se: humilde, negro, desconhecido, desligado de qualquer instituição ou grupo detentor de poder na
sociedade de seu tempo). Lima/Isaías chega ao extremo da dúvida sobre o próprio estilo ao afirmar:
“De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as
destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. Que
tortura! E não é isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me
dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... (BARRETO, 2001: P.163)”.
Apesar do pudor quase feminino de vir a público, Lima cometeu excessos biográficos-ficcionais,
tendo alguns dos temores comprovados pelo meio intelectual da década de 1910. Ronaldo Lima
Lins, pelo contrário, compreendeu a dor de Isaías ao aceitar o seu destino e utilizou argumentos
históricos para defender o autor com excelência:
Enfrentar o ‘destino errado’ implica, entretanto, em aguçar a dor interior. A coragem
para tanto em geral nos falta e nos inclinamos a desviar os olhos para outra direção,
num gesto instintivo, embora pernicioso, de autodefesa. Muitas vezes a cultura
brasileira, na necessidade de levantar nossos impasses, agiu de maneira semelhante. O
resultado foi uma descontração aparente, um humor, mais do que uma ironia, com o
qual ao mesmo tempo tocávamos e não tocávamos em temas traumáticos. É interessante
observar que, onde mais duro se mostrou com a vida e consigo mesmo, no hospício,
Lima Barreto se achava em circunstâncias de extrema fragilidade, à mercê, como um
graveto sob o vento, de uma exterioridade feroz. Aí, sem disfarces, como uma voz que
surgisse das entranhas, a ruína se lhe ergueu inteira. Como não lhe podia resistir, deixou
que a verdade aflorasse, semelhante a um grito que, sem querer, nos atravessasse a
garganta. Desta feita, sem recear as emoções, permitiu que afluíssem ao texto. O
extremo, o patético da experiência, ali aparecem conscientes. Quase duvidamos que nos
encontramos no Brasil, à sombra fresca das árvores sob o sol, onde nos encanta a
cordialidade do clima e das relações. Também não nos vemos, então, no espaço
circunscrito do específico contexto nacional ou dos impasses que não logra superar. O
elemento trágico estende os parentescos e os engloba num conjunto, o da miséria
humana, cuja condição não mais se justifica por razões de circunstância (LINS, 1997:
pp.297-298).
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No diário, na experiência extrema do hospício, Lima expôs a verdade, ou pelo menos tentou
alcançá-la com a sinceridade e a transparência típicas e aceitáveis do gênero. Na ficção, idem,
ainda que apresentasse uma verdade embalada. Ronaldo mostrou como o autor quebrou o código do
humor, da ironia, desafiando a superfície, tocando a hipocrisia tão cara à cultura brasileira no que
diz respeito aos traumas na literatura, Ronaldo cita como exemplares desta ironia os romances
Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Lima, distintamente,
empreendeu ousada fusão, tendo a coragem da auto-exibição de forma óbvia, onde a cultura
nacional se escondia e se mascarava. Diário do hospício constituiu confissão de si com consciência,
enquanto a ficção travestiu-o perante a intelectualidade que, embora ele criticasse, parecia querer
integrar. Parte desta intelligentsia atacada, entretanto, não lhe perdoou a virulência verbal com que
sangrou traumas e costumes históricos pois, ao expor-se, expunha feridas nacionais (em seu caso
particular, eram coincidentes). E não o conteúdo das críticas esteve na mira de seus detratores,
mas igualmente o próprio estilo, como apontou Dirce Côrtes Riedel:
As opiniões contrárias, na imprensa, correm por conta das rixas pessoais, do
intelectualismo reinante, da organização às vezes um tanto irregular da obra, do seu
estilo solto, de sua linguagem avessa a gramatiquices. E seria de se esperar uma crítica
muito mais acirrada, dadas as exigências da época (RIEDEL, 1997: pp.368-369).
O estilo literário da época não o absorveu, sendo freqüentes as críticas à gramática e à narrativa,
considerada por vezes coloquial, além da inevitável comparação com Machado de Assis, escritor
negro que aos olhos da sociedade branca e burguesa preferiu não tocar em assuntos raciais
delicados o que não é verdade, pois o tema surge em contos e crônicas, mas sob o viés da ironia.
Lima não os flagrou, como personalizou seus problemas em protagonistas que o refletiam. Não
fez autobiografia, que esta se caracteriza, segundo o teórico Philippe Lejeune, por uma
exigência: que o nome na capa do livro seja o mesmo do narrador e do personagem principal. Lima
criou uma zona de interseção literário-existencial, unindo personagens inventados e questões
pessoais. Por esta razão, a certa altura, soa sensata a pergunta: “Qual o eu real de Lima Barreto?”
Quem a obra como um todo, percebe-o em suas fraturas expostas e dele se aproxima. Esta
fragmentação do eu em dramas fictícios, entretanto, representou certamente uma petulância na
época, mal assimilada pelo mundo literário do início do século XX, o que provavelmente rendeu-
lhe a eterna sensação de deslocamento: além do social e racial, o literário (sendo este, talvez, a
decorrência dos outros dois).
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Em Le pacte autobiographique, Philippe Lejeune encarregou-se de analisar a autobiografia e as
tênues fronteiras com outros estilos em que o eu é imperativo. Pode-se aproximar o fenômeno Lima
Barreto da seguinte descrição:
No caso do nome fictício (isto é, diferente do nome do autor) dado a um personagem
que conta a sua vida, o leitor tem razão em pensar que a história vivida pelo personagem
é exatamente aquela do autor: seja pela comparação com outros textos, seja se baseando
em informações exteriores, ou mesmo pela leitura da narrativa em que o aspecto da
ficção soe falso (como quando alguém diz: ‘Eu tinha um ótimo amigo que passou por...’
e se mete a contar a história desse amigo com uma convicção toda pessoal). (...) Esses
textos se encaixariam então na categoria ‘romance autobiográfico’: eu chamaria assim
todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões para suspeitar, a partir de
semelhanças que ele acredita adivinhar, que existe uma identidade do autor e do
personagem, mesmo se o autor tenha escolhido negar essa identidade, ou ao menos não
afirmá-la. Assim definido, o romance autobiográfico engloba tanto as narrativas
pessoais (identidade do narrador e do personagem) quanto as narrativas ‘impessoais’
(personagens designados na terceira pessoa); ele se define pelo seu conteúdo.
Diferentemente da autobiografia, ele comporta diversos veis. A semelhança que o
leitor supõe varia de um ‘ar familiar’ meio difuso entre o personagem e o autor, até a
quase-transparência que implica ser ele mesmo, à sua imagem e semelhança. [Dans le
cas du nom fictif (c’est-à-dire différent de celui de l’auteur) donné à un personnage qui
raconte sa vie, il arrive que le lecteur ait des raisons de penser que l’histoire vécue par
le personnage est exactement celle de l’auteur: soit par recoupement avec d’autres
textes, soit en se fondant sur des informations extérieures, soit même à la lecture du
récit dont l’aspect de fiction sonne faux (comme quand quelq’un vous dit: ‘J’avais un
très bon ami auquel il est arrivé...’ et se met à vous raconter l’histoire de cet ami avec
une conviction toute personelle). (...) Ces textes entreraient donc dans la catégorie du
‘roman autobiographique’: j’appellerai ainsi tous les textes de fiction dans lesquels le
lecteur peut avoir des raisons de soupçonner, à partir des ressemblances qu’il croit
deviner, qu’il y a identité de l’auteur et du personnage, alors que l’auteur, lui, a choisi
de nier cette identité, ou du moins de ne pas l’affirmer. Ainsi défini, le roman
autobiographique englobe aussi bien des récits personnels (identité du narrateur et du
personnage) que des récits ‘impersonnels’ (personnages désignés à la troisième
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personne); il se définit au niveau de son contenu. A la différence de l’autobiographie, il
comporte de degrés. La ‘ressemblance’ supposée par le lecteur peut aller d’un ‘air de
famille’ flou entre le personnage et l’auteur, jusqu’à la quase-transparence qui fait dire
que c’est lui ‘tout craché’] (LEJEUNE,1996:pp.23-24).
Pode-se pensar, a partir dessa formulação, que Lima escreveu pelo menos quatro romances
autobiográficos: Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida
e morte de M. J. Gonzaga de e O cemitério dos vivos. Sem se alardear nos escritos, camuflando
questões pessoais em tramas ficcionais, o autor não necessariamente afirmou a identidade nos
protagonistas Isaías Caminha, Policarpo Quaresma, Gonzaga de ou Vicente Mascarenhas (de O
cemitério dos vivos). Foi tarefa fácil para os críticos, contudo, adivinhá-lo nas linhas e entrelinhas,
comparar biografias, auscultar coincidências. Em Lima, não se trata de autobiografia, mas de algo
próximo do romance autobiográfico. E não é necessário que o crítico ou leitor faça enorme esforço
na analogia: o ar familiar não é difuso, mas revela-se claro, uma quase-transparência entre o eu do
escritor e os personagens.
Lejeune mostra como, no romance autobiográfico, os heróis podem parecer o quanto quiserem com
o autor: como não trazem seu nome, nada existe de fato. Lima abusou desse anonimato, talvez com
exagerada ingenuidade, ou com profunda consciência, que parecia se preocupar com inevitáveis
comparações – vide o trecho em que Isaías sente-se conscientemente envergonhado ao se despir em
frente de desconhecidos, como uma mulher pública. Ainda assim, a vontade de ir em frente e
publicar a obra foi mais forte, suplantando vestígios de pudor.
Segundo Francisco de Assis Barbosa, o autor assumiu esta postura de dizer tudo por meio dos
personagens por uma questão ética: ao aceitar a tutela do Estado (o emprego de funcionário
público), não poderia negá-lo publicamente. O biógrafo demonstrou ainda como Lima foi além
nesse grande território livre construído entre verdade e ficção: alguns de seus personagens
ganharam tanta verdade e autonomia que chegaram a assinar artigos de sua autoria em jornais, a
exemplo de Isaías Caminha, pseudônimo utilizado no artigo “Palavras de um snob anarquista”, em
Voz do Trabalhador (publicação de reivindicações proletárias). Esta inversão, da ficção para a
realidade, é um detalhe de grande relevância na análise da sua obra literária.
Francisco relacionou o emprego público à quase necessidade de utilizar personagens, pseudônimos
ou mesmo heterônimos para a auto-expressão com liberdade. Na biografia, revela que a
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aposentadoria precoce (tão desejada a ponto de ser precoce) possibilitou um retorno a si mesmo sem
a urgência de usar outros nomes que não o seu. Isto lhe permitiu, por exemplo, dizer politicamente
o que bem entendia, sem preocupação com o governo. Lima chegou a mencionar que até então
(como funcionário público) via-se obrigado a calar a indignação – ainda que ela tenha explodido ora
cruamente, ora ficcionalmente, sem a filtragem que imaginara impor aos escritos.
O protagonista de O cemitério dos vivos, Vicente Mascarenhas, traz igualmente inúmeras
similaridades com o seu autor, num excesso que leva à conclusão: um é o outro. A comparação
entre as anotações do diário e o romance flagra inúmeras passagens em que a ficção tocou a vida e
vice-versa. Por exemplo, assim como Lima, Vicente ingressou no hospício no Natal, reclamando da
polícia e contando como o obrigaram a tirar a roupa no ritual de admissão. Percebe-se como a
passagem no diário, bruta, menos lapidada, ganhou no romance uma roupagem mais aprimorada.
Em Diário do hospício, Lima narrou a sua relação com um funcionário português que o obrigava ao
banho:
Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde
me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas
abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na
Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio
Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria (BARRETO, 1993:
p.24).
Em O cemitério dos vivos, o fato foi assim descrito:
No dia seguinte, quando o guarda que nos veio abrir a porta, deu-me uma vassoura e um
pano com que eu ajudasse a ele e outros a baldear o quarto-forte e a varanda, não fiz
nenhum movimento de repulsa. Tomei os dous objetos e cumpri docilmente o mandato.
O que me aborreceu, porém, foi a minha falta de forças e hábito de abaixar-me, para
realizar tão útil serviço. Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida,
menos para aquela, com que não contei nunca. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado,
esforçando-me pra não tremer nem corar; imaginei-me assaltado por facínoras e ter
coragem para enfrentá-los; supus-me reduzido à maior miséria e{a} mendigar; mas por
aquele transe eu jamais pensei ter de passar... Realizei, entretanto, o serviço até o fim, e
foi com uma fome honesta que comi pão e tomei café.
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A faina não tinha cessado, e fui com outros levado a lavar o banheiro. Depois de lavado
o banheiro, intimou-nos o guarda, que era bom espanhol (galego) rústico, a tomar
banho. Tínhamos que tirar as roupas e ficarmos, portanto, nus, uns em face dos outros.
Quis ver se o guarda me dispensava, não pelo banho em si, mas por aquela nudez
desavergonhada, que me repugnava, tanto mais que até de outras dependências me
parecia que nos viam. Ele, com os melhores modos, não me dispensou e não tive
remédio: pus-me nu também. Lembrei-me um pouco de Dostoiévski, no célebre banho
da Casa dos Mortos; mas não havia nada de parecido. Tudo estava limpo e o espetáculo
era inocente, de uma traquinada de colegiais que ajustaram tomar banho em comum. As
duchas, principalmente as de chicote, deram-me um prazer imenso e, se fora rico, havia
de tê-las em casa. Fazem-me saudades do Pavilhão...
O guarda, como já disse, era um galego baixo, forte, olhar medido, sagaz e bom. Era um
primitivo, um campônio, mas nunca o vi maltratar um doente (BARRETO, 1993:
pp.124-125).
Percebe-se que o tom do diário era muito mais de queixa, de reflexo de uma emoção bruta de
humilhação, marcada por lágrimas. Na ficção, a mesma emoção foi devidamente embrulhada em
ficção, surgiu sob maior controle, ainda que a humilhação estivesse lá, pulsante. A comparação com
Dostoiévski existia no diário, mas em O cemitério dos vivos ganhou mais informações: ao ser
obrigado a baldear a varanda, atividade menor aos olhos do literato Lima, chegou mesmo a se
imaginar “amarrado para ser fuzilado”, esforçando-se para “não tremer nem corar”. No diário, no
entanto, ele confessou: chorou. Como se sabe, Dostoiévski passou pela situação extrema vida-
morte, ao simularem a sua fuzilação, punindo-o com a pena de nove anos nos campos de trabalhos
forçados na Sibéria, após a sessão de tortura. Lima pareceu exagerar ao romancear a sua
humilhação, porém este excesso desvela como todo o ritual manicomial era-lhe insuportável,
atirando-o no desequilíbrio entre a proximidade (de que fala Foucault) loucura-morte.
Quanto ao episódio do banho, o autor foi econômico ao descrevê-lo no diário, enquanto no romance
conseguiu juntar dramaticidade e alguma leveza. No diário mencionou apenas os sentimentos de
humilhação e pudor por estar nu, de portas abertas, num banho coletivo. Em O cemitério dos vivos,
essas emoções continuavam lá, mas foram minimizadas quando ele afirmou ser o espetáculo
inocente, de uma traquinada de colegiais que ajustaram tomar banho em comum. Destaca-se a
tentativa de romancear, isto é, dar um tratamento distanciado, estético, neste caso até mesmo bem-
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humorado, a um fato nu e cru, que deflagrara nele reações sofridas. Com distanciamento, sob filtro
romanesco, o autor apresentava mais condições de lidar com o trauma: a escrita de si transformava-
se em literatura de si – não sem perder o seu grande motor: a revolta.
Vicente Mascarenhas foi outro de seus protagonistas marcados pela pobreza, que saía de uma
cidadela do interior para tentar a vida no Rio como funcionário público e vivia assombrado pela
reputação de um pai com passagem pela cadeia, discriminado por ter “em muita evidência traços da
raça negra (BARRETO, 1993: p.100)”. O personagem desistiu de ser doutor por falta de dinheiro e
morava na pensão de Clementina Dias, onde conheceu a filha da proprietária, Efigênia. Além das
similaridades biográficas do protagonista com o autor, prima no romance a já mencionada
dificuldade afetiva de Lima em relação às mulheres. Em diversos trechos, Vicente confessava não
ser dado à sociabilidade feminina, chegando mesmo a dizer-se um “seminarista” em companhia da
moça. Ele não a cortejava por se julgar “inapto para semelhante atividade”, conformando-se
“orgulhosamente, por julgar tal incapacidade de bom augúrio, para realizar os estudos que meditava
(BARRETO, 1993: p.106)”. Isaías Caminha confessou igual inaptidão: “Sempre fui assim diante
das senhoras, qualquer que seja a sua condição: desde que as veja num ambiente de sala, são todas
para mim marquesas e grandes damas. (...) eu fiquei nessa atitude de menino tímido que me invade,
sempre que estou em presença de mulheres, numa sala qualquer (BARRETO, 2001: p.151).”
Importante assinalar que Isaías era casado e tinha um filho, mas a família ganha pouca relevância
no romance, importando, sempre, o auto-retrato do protagonista.
O romance entre Vicente e Efigênia surgiu quando começaram a trocar opiniões sobre autores, ou
seja, aproximou-os a leitura. Aos poucos, o funcionário público decidiu escrever para jornais ou
mesmo ousou na ficção, sempre sob o estímulo da moça que, contra todos os costumes da época, o
pediu em casamento. Nesse momento da narrativa, mais uma vez as idéias de Lima e Vicente
superpõem-se no temor diante da instituição, das exigências femininas e familiares passíveis de
ofuscar a ambição literária:
Vi logo as desvantagens do casamento. Ficaria preso, não poderia com liberdade
executar o meu plano de vida, fugiria ao meu destino pelo dever em que estava de
amparar minha mulher e a prole futura. Com os anos cresceriam as necessidades de
dinheiro; e teria então de pleitear cargos, promoções, fosse formado ou não, e havia de
ter forçosamente patronos e protetores, que não deveria melindrar para não parecer
ingrato. Onde ficaria o meu sonho de glória, mesmo que fosse de demolição? Onde
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ocultaria o meu “pensamento de mocidade”? Havia de sofrer muito, por ter fugido
dele... De resto, mesmo que conseguisse aproximar-me da realização do que planejava,
o meu casamento era a negação da minha própria obra (BARRETO, 1993: pp.117-118).
O casamento como negação da obra eis um dos grandes temores de Lima Barreto. O escritor
transparece no personagem Vicente. E uma evidência disto é um trecho da conferência “O destino
da literatura” (publicada na Revista Sousa Cruz, provavelmente nunca proferida): “Mais do que
qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me
dediquei e com quem me casei; mais do que ela nenhum outro qualquer meio de comunicação entre
os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino em
nossa triste Humanidade (BARRETO, 1998: p.393)”. Lima casou-se com a literatura; Vicente,
embora pretendesse fazer o mesmo, sucumbiu ao casamento com Efigênia e, depois de internado,
arrependeu-se por ter recusado a experiência do amor. O cemitério dos vivos é uma espécie de
declaração de amor do protagonista à sua mulher; como se, somente após a morte de Efigênia,
conseguisse percebê-la, os contornos, carinhos. Em vida, imbuído de si, Vicente não assumia o
amor; precisou perdê-lo para compreendê-lo, compreender-se.
O cemitério dos vivos pode ser lido como apoteose das questões renitentes da vida-obra do escritor,
sendo uma oportunidade rara de auto-análise pelo viés ficcional, escrita após a sua saída do
hospício, entre a internação (1920) e a morte (1922) é importante lembrar que Antonin Artaud
também escreveu Van Gogh, o suicidado da sociedade, claramente um exorcismo literário e um
libelo contra a psiquiatria, nos últimos dois anos de vida, entre a saída do hospício (1946) e a morte
(1948). Além da dificuldade afetiva, o desprezo pelos tulos, diplomas e doutores registrado em
Diário do hospício surge com mais detalhes sob a perspectiva de Vicente:
Não me queria absolutamente ignorante nas ciências físico-matemáticas e estava seguro
de que as noções que tinha eram suficientes. As carreiras especiais, em uso na nossa
terra, não me tentavam, tanto mais que sabia eu, pois tinha percebido logo após a minha
matrícula, que em nenhuma delas se enriquece ou mesmo se sobe em honrarias, sem ter
nascimento ou fortuna, ou senão empregando muita abdicação de suas opiniões, ou o
que é pior perdendo muito de sua autonomia e independência intelectual na gratidão
por seu protetor. O meu esforço em “formar-me”, como se diz por aí, era para atender a
um capricho de meu pai, que, até o último momento de vida, desejou isso, para vingar-
se (BARRETO, 1993: p.97).
92
A trajetória de Lima reúne vários elementos acima descritos e citados nos capítulos anteriores: a
revolta contra os pistolões e vícios da sociedade brasileira da sua época; a discriminação social etc.
Reina absoluto, em toda a obra, o esforço de manter a autonomia e independência intelectual, o
que, no entanto, acabaria por deixá-lo numa margem por vezes inconciliável com os padrões
sociais-intelectuais vigentes. Ao se insurgir e denunciar esquemas de favorecimentos etc., Lima
cavou a própria marginalização. Em sua busca da verdade, produziu trechos como este (de O
cemitério dos vivos), marcado por um ideal de independência quase inalcançável:
Com o diploma, o “pergaminho” da superstição popular, não permitia a censura geral
que havia de reagir sobre mim, que ficasse eu copiando ofícios numa repartição do
Governo. Tinha que obter um emprego adequado ao meu título, para isto era necessário
dar passos que me repugnavam: arranjar pistolões, mendigá-los mesmo, para me colocar
e, de acordo com a alta conta em que então tinha as minhas faculdades mentais, para
não fazer feio, estudar, estar ao par das cousas da profissão de que o Estado me investira
solenemente, num canudo de folhas-de-flandres, curtindo um papel encorpado e uma
caixa de prata com selo de lacre. Sobretudo este último passo não me convinha dar.
Queria depender, o menos possível, das pessoas poderosas, as únicas capazes de me
darem um emprego, e, conquanto elas nada exigissem, eu ficava tacitamente obrigado a
não expender umas certas opiniões radicais sobre várias questões que as podiam
interessar proximamente. De resto, aplicar-lhe, ao estudo de uma profissão liberal, o que
exigia o meu amor próprio, se a fosse exercer, seria desviar da aplicação normal, da
inclinação natural espontânea da minha inteligência, que não me levava a isso. Sem
nenhuma autoridade moral sobre mim, pois a única que tinha era meu pai, que morrera,
estava firmemente decidido a executar o meu plano de vida, sem atender a conselhos
quaisquer. Mandaria às urtigas o “pergaminho”, o canudo, o lacre, o grau, o retrato de
tabuleta, numa casa de modas na Rua do Ouvidor, e resignar-me-ia a ser tratado
desgraciosamente por “seu fulano” (BARRETO, 1993: p.104).
As interseções entre confissão e romance surgiam com mais intensidade nos temas mais caros ao
autor a exemplo do trecho citado, em que Lima resumiu a busca de toda uma vida: a opção pela
autonomia, destituída de vínculos com instituições e favores pessoais de pessoas poderosas. Ele se
resignaria a ser chamado de seu fulano para garantir o direito a opiniões radicais. O autor mais uma
vez transpôs, no próprio livro (O cemitério dos vivos), os limites entre escritos confessionais e
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ficcionais, ao afirmar: Expiei bem duramente essa minha falta íntima, que tantos sentimentos
desencontrados fez surgir em mim, tantas dores deu nascimento, como verão no decorrer destas
páginas, que são mais do que uma simples obra literária, mas uma confissão que se quer
exteriorizar, para ser eficaz e salutar o arrependimento que ela manifesta (BARRETO, 1993:
p.109)”.
Lima escreveu com todas as letras: O cemitério dos vivos era menos uma obra literária e mais uma
confissão o que não é de todo surpreendente, que Diário do hospício e O cemitério dos vivos
contêm inúmeros pontos de encontro e superposição de idéias. Na introdução da edição de Diário
do hospício/O cemitério dos vivos (Biblioteca Carioca, 1993), as organizadoras Ana Lúcia Machado
de Oliveira e Rosa Maria de Carvallho Gens mostram como não existe propriamente uma linha
divisória definida entre a segunda metade do diário e o romance, a ponto de surgirem nas páginas
experimentações de nomes para o protagonista (que acabou se chamando Vicente Mascarenhas):
Nos manuscritos referentes à página 155, indicando um lapso do autor, aparece “Lima
Barreto” riscado, ao qual se superpõe “Flamínio Azevedo”, um dos muitos nomes
cogitados pelo escritor para designar a personagem central dessa sua obra inacabada.
Talvez as marcas autobiográficas mais evidentes fossem eliminadas, caso houvesse
concluído o romance, como ocorreu com as flutuações no nome do protagonista, que
foram uniformizadas no capítulo inicial, para a publicação na revista Souza Cruz,
escolhendo-se o nome de Vicente Mascarenhas (BARRETO, 1993: p.15).
Em Diário do hospício, um trecho surge no meio da narrativa com outro nome:
Mas na secção Pinel, aconteceu-me cousa mais manifesta, da estupidez do guarda e da
sua crença de que era meu feitor e senhor. Era este um rapazola de vinte e tantos
<anos>, brasileiro, de cabeleira solta, com um ar de violeiro e modinheiro. Estava
deitado no dormitório que me tinham marcado e ele chegou à porta e perguntou:
– Quem é aí, Tito Flamínio?
– Sou eu, apressei-me.
O Seu S. A. manda dizer que você e sua cama vão para o quarto do doutor Q.
(BARRETO, 1993: p.49).
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As confusões entre as narrativas do diário e do romance são recorrentes em outros aspectos,
desvelando a intenção declarada do autor em formular o diário não só como escrita de si, mas como
rascunho, caderno de anotações sobre o dia-a-dia no manicômio para posterior escrita ficcional. Por
exemplo, foi no diário que surgiu a menção a uma mulher inexistente na vida real de Lima:
Eu me indago, de mim para mim, se, por acaso, não é amor que me corrói. Mas vejo
bem que não. Passei a idade de tê-lo, fugindo dele, para que ele não me criasse
sofrimento e não prejudicasse a minha ambição de glória. A própria Heloísa achava-o
nocivo nos homens de pensamento; é verdade que ela também achava o seu Abelardo
virtuoso. (...) Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual o
tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido, devido à oclusão [...] do meu
orgulho intelectual; e tê-la-ia amado certamente, se tão estúpido sentimento não tivesse
feito passar por mim a única alma e pessoa que me podiam inspirar tão grave
pensamento (BARRETO, 1993: p.51).
Lima era solteiro convicto, como já se disse, mas criou para o personagem Vicente uma mulher com
a qual manteve relação conflituosa o esboço da trama começou a ser escrito no diário. Vicente
carregava grande culpa por não ter percebido uma espécie de grandeza na mulher, por julgá-la em
sua “medíocre condição de pequena e modesta burguesa (BARRETO, 1993: p.131)”,
provavelmente em contraponto com as suas grandes ambições intelectuais. O personagem
confessou o “pudor de amar (BARRETO, 1993: p.131)” e, somente durante a internação no
hospício, isolado e solitário, dava-se conta da própria arrogância, das conversas domésticas evitadas
por não considerá-la inteligente: do desprezo pela mulher.
Outra passagem do diário traz semelhante investigação do escritor para o futuro romance:
Aborrece-me este Hospício; eu sou bem tratado; mas me falta ar, luz, liberdade. Não
tenho meus livros à mão; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu
Deus! Tanto faz, lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que
é minha casa. Meu filho ainda não delira; mas a toda a hora espero que tenha o primeiro
ataque...
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Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu tenho remorsos como se a tivesse feito
morrer. Logo, porém, como vem de mim mesmo ou de fora de mim uma voz que me
diz: é mentira (BARRETO, 1993: p.60).
Evidenciam-se as tentativas de se modificarem informações reais da vida para transformá-las em
arte, sem se perder nesta travessia. Primeiramente, ao falar da casa, o autor inventou delírios de
uma mãe inexistente, que obviamente substituía os do pai (de Lima, na vida real) – sendo que, em O
cemitério dos vivos, a única mulher com tendência à loucura era a sogra, mãe de Efigênia. Eram
elucubrações ficcionais, cruzadas com autoconfissões. Outro exemplo: Lima mencionou no diário o
receio de que um filho (inexistente na vida real) viesse um dia também a delirar e revelou temores
quanto a uma possível loucura hereditária (passada do pai para ele, assim como Lima suspeitava da
hereditariedade da loucura de seu pai). Outra passagem em que uma suposta mulher é mencionada
no diário confirma a tendência a misturar verdade e ficção no diário: “Não serei nunca sociólogo,
historiador, não serei nunca romancista. Falta-me amor ou ter amado. Mas... Minha mulher!
(BARRETO, 1993: p.61)”.
Esses esboços surgem entremeados às descrições e confidências de Diário do hospício, sem
qualquer aviso ou marcação, provavelmente porque, se as duas obras tivessem sido publicadas em
vida, o autor teria realizado, ele próprio, a edição. A obra construída por Lima Barreto forma um
intricado quebra-cabeças onde peças da vida e da ficção ora se encaixam, ora se estranham.
Como de praxe num diário íntimo, ele é o autor e o objeto da escrita, porém, mesmo quando ele
digressiona e inventa mães loucas inexistentes, ou mulheres mortas, em claros rascunhos para o
romance em formação, ausculta-se Lima Barreto as suas histórias pessoais e questões existenciais
mais prementes. Por vezes, no entanto, a mixagem entre o querer confessional e o ficcional deixa a
desejar e confunde o leitor: fenômeno que confirma a idéia da construção de uma obra destituída de
áreas limítrofes delineadas entre gêneros e na qual a identidade do autor/personagem nem sempre é
totalmente clara. Leia-se, por exemplo, o seguinte trecho do diário:
Havia no Hospício um louco completamente imbecil, cuja mania era tirar os troços da
cama de uns e levá-los para as de outros. Constantemente fazia isso. Hoje, 26-1-20,
desapareceu-me um livro que me fora oferecido, dentre os três que ali tinha. Além do
mutismo e ficar erecto nos cantos, a sua mania era esta. Tive-o sempre em antipatia, e o
fato, que me aborreceu muito mais, aumentou a minha antipatia por ele. Os furtos aqui,
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antes dele, eram de onde em onde; agora se sucedem com freqüência. É preciso saber
que não tenho dormitório e tudo que tenho livros, toalha, papel, sabonete, etc.
guardo debaixo do travesseiro ou do colchão.
Na primeira vez que aqui estive, consegui não me intrometer muito na vida do
Hospício; agora não, sou a isso obrigado, pois todos me procuram e contam-me
mexericos e novidades. Esse convívio obrigado, com indivíduos dos quais não
gostamos, é para mim, hoje, insuportável e ainda mais esse furto e as minhas
apavorantes dívidas fazem-me desejar imensamente sair daqui. O médico me ofereceu
alta, mas não a aceitei já, porque quero sair depois do carnaval. Demais, eu penso
que o tal delírio me possa voltar, com o uso da bebida.
Ah! Meu Deus! Que alternativa!
E eu não sei morrer (BARRETO, 1993: p.34).
O autor registra a sua revolta contra o roubo de um livro e a difícil convivência com os internos.
Diz-se mais popular do que durante a primeira internação, obrigado a conversas inúteis com pessoas
pelas quais não tem admiração – ainda que sempre evitadas, quando possível. O fato mais relevante
dessa passagem, entretanto, diz respeito à possibilidade de alta dada pelo médico e aparentemente
recusada por Lima. Não é bem desenvolvida essa história, apenas sutilmente contada em meio a
outras, o que levanta suspeita sobre a sua veracidade. Diante de todo o tom de desespero de Lima no
diário, da revolta ante a internação, do desconforto em relação ao convívio com a loucura alheia,
seria esta recusa verossímil? Seria pouco provável se analisada em todo o contexto dos escritos
manicomiais contudo, obviamente, sempre possível. que este fato é narrado no dia 26 de
janeiro de 1920, se for verdadeiro, significa que Lima preferiu permanecer durante mais uma
semana no hospício da Praia Vermelha. Por outro lado, todo este trecho pode traduzir apenas mais
uma incursão do imaginário do escritor em sua fusão vida-arte um desejo não-realizado do eu
ficcional, Vicente.
Em Diário do hospício/O cemitério dos vivos, o paradoxo se estabelece: a escrita de si era
maquiada para se tornar literatura de si, mas o romance autobiográfico representava provavelmente
o lugar onde a verdade de si surgia com mais transparência. O recurso da ficção fazia emergir as
idéias mais autônomas e livres, sem filtro. E eis a contradição: o eu ganhava um filtro romanesco
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para extrair de si mesmo o eu sem filtro, o mais próximo da verdade pessoal. Esta questão foi muito
bem postulada pelo escritor André Gide: “As Memórias são sempre semi-sinceras, não importando
o quão grande seja o cuidado da verdade: tudo é sempre mais complicado do que não dizemos.
Talvez nos aproximemos mais da verdade no romance. [Les Mémoires ne sont jamais qu’à demi
sincères, si grand que soit le souci de vérité: tout est toujours plus compliqué qu’on ne le dit. Peut-
être même approche-t-on de plus près la vérité dans le roman] (apud LEJEUNE, 1996: p.41)”.
François Mauriac refletiu sobre o tema da mesma forma: “Mas é ir longe demais buscar desculpas
para o fato de ter ficado em um capítulo das minhas memórias. A verdadeira razão da minha
preguiça não seria por que os nossos romances exprimem o essencial de nós mesmos? Apenas
a ficção não mente; ela entreabre na vida de uma pessoa uma porta escondida, pela qual escapole,
fora de qualquer controle, sua alma desconhecida [Mais c’est chercher bien haut des excuses, pour
m’en être tenu à un seul chapitre de mes mémoires. La vraie raison de ma paresse n’est-elle pas
que nos romans expriment l’essentiel de nous-même? Seule la fiction ne ment pas; elle entrouve sur
la vie d’un homme une porte dérobée, par où se glisse, en dehors de tout contrôle, son âme
inconnue] (apud LEJEUNE, 1996: p.41)”.
Gide e Mauriac apontam para o paradoxo: a intenção das memórias, da autobiografia, ou mesmo do
diário (no caso de Lima), é justamente semi-sincera. A verdade do autor estaria mais no romance do
que na escrita pessoal, que a ficção não mente. Certamente a possibilidade da ficção, do lugar
extremo da mentira (o romance é, afinal, o lugar por excelência da inutilidade de verdade),
encantou Lima na sua grande urgência de escrever sobre a sua vida pessoal sem propriamente
identificar-se, deixando ao leitor o benefício da dúvida sobre a similaridade entre autor e
personagem. Era a liberdade anunciada, o espaço autônomo que tanto buscara sem contar com a
astúcia dos críticos em tomar exatamente esta característica como ponto fraco da obra.
Lejeune aprofunda esta questão da verdade do autor ao perguntar:
Qual é esta ‘verdade’ da qual o romance permite se aproximar melhor que a
autobiografia, senão a verdade pessoal, individual, íntima do autor, isto é, a mesma que
visa todo projeto autobiográfico? Se podemos assim dizer, é como autobiografia que o
romance se estabelece mais verdadeiro. O leitor é assim convidado a ler os romances
não como ficções remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também
como fantasmas tão reveladores de um indivíduo. Eu classificaria esta forma indireta de
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pacto autobiográfico de pacto fantasmático. [Quelle est cette ‘vérité’ que le roman
permet d’approcher mieux que l’autobiographie, sinon la vérité personelle,
individuelle, intime de l’auteur, c’est-à-dire cela même que vise tout projet
autobiographique? Si l’on peut dire, c’est en tant que l’autobiographie que le roman est
décrété plus vrai. Le lecteur est ainsi invité à lire les romans non seulement comme des
fictions renvoyant à une vérité de la ‘nature humaine’, mais aussi comme des fantasmes
si révélateurs d’un individu. J’appelerai cette forme indirecte du pacte
autobiographique le pacte fantasmatique] (LEJEUNE, 1996: p.42).
Lejeune propõe uma forma renovada de ler o romance e a autobiografia, aproximando-os,
convidando o leitor a fazê-lo sem preconceito, sob o signo da verdade pessoal, íntima do autor o
que seria, em última análise, a matéria-prima essencial da literatura. A idéia de ficções como
fantasmas individuais aprofunda a questão da utilização de narrativas inventadas para se chegar à
verdade da ‘natureza humana’. Nesse sentido, ele afirma, existiria uma forma indireta de pacto
autobiográfico classificado de pacto fantasmático. Ao usar personagens ficcionais para falar de si
mesmo, esmiuçar a sua verdade, Lima levou esta idéia ao extremo e criou fantasmas que eram seus
reflexos: a sua ficção grita angústias, traumas, ideais.
O escritor não se poupou nessa empreitada, confundindo o eu real com eus fictícios-
autobiográficos, sem uma definição clara de limite entre gêneros. Isaías Caminha, como foi
citado, serviu-lhe de fachada para um eu pobre e negro, em busca de um reconhecimento intelectual
que redimiria a sua cor e a origem social; Policarpo Quaresma (o romance Triste fim de Policarpo
Quaresma é devidamente analisado no capítulo 5) representou um eu sincera e utopicamente
devotado à cultura brasileira, mas deslocado, sem força política, que, ao se exceder cegamente nesta
devoção, acabou internado no hospício; Gonzaga de (o romance Vida e morte de M. J. Gonzaga
de ganha análise mais minuciosa no capítulo 4) constituiu-se de um eu funcionário público que
amava verdadeiramente a sua cidade e pátria, revelando um domínio sobre conhecimentos gerais
em todos os âmbitos da política, sociedade e cultura nacionais, mas que, como intelectual, levava
vida à margem da intelligentsia; Vicente Mascarenhas refletiu um eu marcado pela discriminação
racial sofrida pelo pai e tomado por ambições intelectuais que, após a morte da mulher, acabaria
internado no manicômio, passando em revista a melancólica existência.
Juntos, os quatro protagonistas representam óbvias facetas de Lima Barreto, que ora se esconde por
trás de máscaras, ora se esquece da ficção como suporte e a deixa pela urgência de se expor num
99
trânsito nem sempre bem-acabado esteticamente, aos olhos de vários críticos. Entretanto, longe de
residir a sua fraqueza de ficcionista, podem-se destacar, pelo contrário, o talento e a coragem do
escritor de tocar em temas traumáticos conforme postulou Ronaldo Lima Lins. Isaías, Policarpo,
Gonzaga e Vicente reciclaram, cada qual à sua maneira, as questões mais prementes do universo
pessoal barretiano: o peso da cor negra numa sociedade discriminadora; a dificuldade de ser
absorvido pela intelectualidade da época devido à cor e à origem social humilde; o deslocamento
social diante dessa dura realidade; e a loucura, isto é, não o estado patológico propriamente, mas a
internação no hospício como ato apoteótico da frustração ante as agruras da vida cotidiana.
Sem cerimônia, avesso a questões de gêneros, estilos e cânones literários, o eu real do escritor,
estampado nas capas dos livros, capaz de conter e ser todos os outros eus, trafegou entre ficção e
não-ficção, apenas em busca da verdade íntima do autor. Por que a crítica não lhe perdoou a
ousadia em seu tempo? Em parte, segundo Ronaldo Lima Lins, pelas características da sociedade
brasileira da Belle Époque: “O ridículo com que executávamos a paródia das liturgias sociais
européias sobressaía pela falsidade, pelo caráter pouco convincente com que levávamos a farsa
adiante. Em grande parte, o alcoolismo de Lima Barreto provinha daí. Ele não resistia à amargura
da encenação (LINS, 1997: p.299)”. Por conseqüência, o autor teria ficado de fora do grande jogo
subdesenvolvido: a tentativa de se parecer o que não era, imitando-se práticas sociais desenvolvidas.
Lima restringiu-se à margem, amargou o complexo de inferioridade e sangrou todas as suas feridas
à luz do dia, utilizando a literatura como ferramenta. O destino, no entanto, o trairia: “Não há futuro
para a curiosidade de Policarpo Quaresma a não ser, com efeito, o hospício (LINS, 1997: p.299)”.
Esta observação de Ronaldo Lima Lins pode ser estendida ao próprio autor, Lima, ou
Lima/Policarpo, sobretudo quanto ao sacrifício empreendido nessa trajetória: “Sempre que se
superou, afinal, enquanto escritor, Lima Barreto teve de oferecer-se em holocausto às exigências de
um sofrimento pessoal incontornável. Como matéria de reflexão para s, fica o fenômeno... e o
riso, o instrumento que, com efeito como se a cultura na qual se inseria não oferecesse espaço
para outra expressão permitiu-lhe esta superação, mesmo que a alma sangrasse (LINS, 1997:
p.304)”.
O pacto fantasmático de que nos fala Philippe Lejeune exige um desprendimento entre o eu e a
auto-imagem a que poucos autores estiveram dispostos de forma tão radical como Lima Barreto. O
autor não parecia fazer uma distinção clara e hierarquizada de valores entre o eu real e o eu
100
ficcional. E, segundo Lejeune, a relevância deste tipo de literatura residiria justamente na conjunção
dos dois:
Não se trata de saber qual, entre a autobiografia e o romance, seria o mais verdadeiro.
Nem um nem outro; à autobiografia faltariam a complexidade, a ambigüidade etc.; ao
romance, a exatidão; seria então: uma mais o outro? Mais do que isso: uma em relação
ao outro. O que se torna revelador é o espaço sobre o qual se inscrevem as duas
categorias de textos e que não se reduz a nenhum dos dois. Este efeito de alívio obtido
por este procedimento é a criação, pelo leitor, de um ‘espaço autobiográfico’. [Il ne
s’agit pas de savoir lequel, de l’autobiographie ou du roman, serait le plus vrai. Ni l’un
ni l’autre; à l’autobiographie, manqueront la complexité, l’ambiguïté, etc.; au roman,
l’exactitude; ce serait donc : l’un plus l’autre? Plutôt: l’un par rapport à l’autre. Ce
qui devient révélateur, c’est l’espace dans lequel s’inscrivent les deux catégories des
textes, et qui n’est réductible à aucune des deux. Cet effet de relief obtenu par ce
procédé, c’est la création, pour le lecteur d’un espace autobiographique’] (LEJEUNE,
1996: p.42).
Lejeune toca num ponto crucial: o alívio do leitor diante da possibilidade de leitura sem a
necessidade de inscrição num gênero, num rótulo, com a liberdade de se aventurar num jogo onde
importam menos as exigências canônicas e mais a aproximação da verdade pessoal do escritor. Este
lugar utópico, com que provavelmente sonhou Lima Barreto, é conceituado como espaço
autobiográfico, capaz de agregar eus verdadeiros e fantasmáticos. Neste espaço, tudo era permitido
para Lima, até mesmo a encenação literária que ele protagonizava e repartia com seus personagens-
reflexos – espécies de personagens conceituais.
Ana Lúcia Machado de Oliveira e Rosa Maria de Carvallho Gens igualmente perceberam a
qualidade da leitura de Diário do hospício e O cemitério dos vivos justamente no confronto entre
vida e obra, conforme expõem em texto introdutório à edição dos dois textos:
Tendendo ao psicologismo, à análise imediatista dos fenômenos ambientais, a maior
parte dos estudiosos que se debruçaram sobre a obra de Lima Barreto visualizou nela o
estigma do mulato pobre, sufocado por uma realidade adversa. E somente. Essa visão,
no entanto, não é suficiente para abarcar os múltiplos aspectos que se revelam através
da leitura de suas obras. Embora muitas vezes nos textos de Lima Barreto possamos
101
reconhecer personagens que se consubstanciam como um alter ego do autor, espelho de
suas vivências e desejos, reduzi-los a uma mera reprodução do real (vivido) seria
sufocá-los na insuficiência de uma leitura que não pode dar conta do fenômeno literário
em profundidade. Por outro lado, esquecer a vida de Lima Barreto ao situar suas obras,
notadamente as ficcionais, não permite o dimensionamento de determinadas questões
que afloram de seus textos e fazem com que elas se manifestem entre o documento e a
ficção. Logo, para a perfeita compreensão dos textos que compõem este volume, torna-
se necessário o confronto entre a vida e a ficção (BARRETO, 1993: p.13).
A esta altura, caberia a pergunta: ao tentar burlar a hipocrisia social ficcionalizando-se, o escritor
não estaria também entrando no jogo social, fazendo, ele próprio, a sua versão particular (sem
dúvida, mais autêntica) de um tipo de encenação? Por um lado, provavelmente sim, por outro, fazia
questão de se expor, vazando a encenação romanesca com a realidade de um eu transbordante, por
vezes desmedido.
Em seu amplo estudo sobre escritos autobiográficos, Lejeune mostra como a assinatura do escritor
na capa, o uso de pseudônimos e a opção pelo anonimato passaram por altos e baixos na história da
literatura, dependendo do século em questão. Toda esta discussão em torno dos limites entre
escritos autobiográficos e ficcionais ganhou uma roupagem contemporânea, contudo, quando, em
1977, Serge Doubrovsky inventou o neologismo autofiction (autoficção) no livro Fils, para tentar
esclarecer o gênero da sua obra híbrida, notadamente autobiográfica. O termo representou um
marco no estudo deste tipo de escrita.
Em Autofiction & autres mythomanies littéraires, Vincent Colonna mostra como autoficção tornou-
se imediatamente um vocábulo catalisador, capaz de reunir e dar um sentido a narrativas meio
autobiográficas meio ficcionais freqüentemente mal-compreendidas na literatura como se o termo
redimisse, automaticamente, por seu grande efeito etimológico, todo um arsenal de escritos difusos
na história literária. Apesar de Doubrovsky tê-la criado para classificar o seu tipo específico de
romance – em que o personagem principal tinha o mesmo nome do autor e onde pululavam
semelhanças biográficas entre um e outro a nova palavra explodiu nas duas décadas seguintes,
banalizando-se na mídia culta (sobretudo francesa), sendo explorada das mais diversas e
controvertidas formas, acumulando significações que tentavam definir todo tipo de escrita de si /
literatura de si: fossem comédias, dramas, novelas, contos fantásticos, romances, ensaios
102
romanceados, autobiografias ficcionais, auto-retratos fantasiosos, narrativas de sonhos, elegias,
odes, enfim, todo tipo de fantasma íntimo (segundo Colonna).
Para Colonna, no entanto, a definição de Doubrovsky se confundia com a de romance
autobiográfico nominal:
(...) {o escritor} preenchia um verdadeiro vazio, pois, ao reinventar com outro rótulo o
romance pessoal ou a autobiografia, ele permitia o retorno de uma noção caída em
desgraça na crítica e negada como categoria literária pelo menos três gerações. O
selo de qualidade e a prática deste romanesco íntimo (com ou sem nome próprio)
haviam sido rechaçados como defeitos na grande literatura, de Flaubert a Proust; e,
desde o pós-guerra – está presente também em Claude-Edmonde Magny ou em Maurice
Nerdau – seu uso é um tabu tanto na história literária como na crítica [(...) il remplissait
un véritable vide car en réinventant sous une autre appelation le roman personnel ou
autobiographique, il permettait le retour d’une notion tombée en disgrâce dans la
critique et niée comme catégorie littéraire depuis trois générations. L’appelation et la
pratique de ce romanesque intime (avec ou sans nom propre) avaient été pourfendues
dans la grande littérature, de Flaubert à Proust, et dès l’après-guerre on le voit chez
Claude-Edmonde Magny ou Maurice Nerdau son usage est tabou dans l’histoire
littéraire comme dans le commentaire] (COLONNA, 2004: p.196).
Autoficção tornou-se o termo da moda, sobretudo na França, englobando, segundo Colonna, os
casos literários mais excêntricos. Apoiado em inúmeras discussões sobre o significado exato do
termo, o autor concluiu que a sustentação teórica de Doubrovsky não esteve à altura da sua
inspiração verbal. Apesar da importância do neologismo na literatura, estendida às artes visuais,
Colonna afirma que a fabulação de si era “uma forma universal, complexa e polimorfa, que
participava plenamente da dinâmica literária muito tempo; mas não que seja um gênero [(...) une
forme universelle, complexe et polymorphe, qui participait pleinement de la dynamique littéraire
depuis très longtemps; bien que ce ne soit pas un genre (COLONNA, 2004: p.196)”.
O debate em torno da autoficção, de suas indefinições e da ausência de limites entre verdade e
ficção, estende-se até a atualidade, sem uma linha clara de classificações canônicas. Seus detratores
sempre existiram: quem a veja como escrita exibicionista, orgia do ego, superexposição pública
de si... Nesse amplo espectro de definições ao longo da história, Colonna cita exemplos como Jean-
103
Jaques Rousseau (suas Confissões, de 1782), Henry Miller, Marcel Proust, Louis-Ferdinand Céline,
Jean Genet cada qual à sua maneira muito particular. A seu ver, entretanto, o verdadeiro inventor
deste não-gênero foi Luciano, escritor da Antigüidade tardia, autor de um pequeno romance em
primeira pessoa intitulado Histórias verdadeiras, sobre o qual se debruça para uma análise
minuciosa do que chama de mitomania literária.
Este breve histórico sobre autoficção ou os nomes que surgiram ao longo dos séculos para tentar
denominar o que até hoje parece escapar às classificações ditas literárias é exposto para situar
Lima Barreto e seu espaço autobiográfico construído às custas de um sacrifício pessoal e literário
bastante singular nas letras nacionais. Antes de tudo, é notável a ousadia do autor em se aventurar
num gênero inexistente, carregado de preconceito e mal-visto, comungando com grandes nomes da
literatura mundial, superexpondo-se publicamente e tocando um dos grandes tabus da história
literária. A complexidade do debate em torno deste não-gênero até hoje, quando a literatura
contemporânea explode em exemplos afins, vem confirmar a irreverência de Lima Barreto em
seu tempo, abrindo uma brecha para a reavaliação de uma obra não encaixável em classificações
literárias. Por esta razão, é possível concluir que, ao flagrante deslocamento social, racial e
intelectual do autor em sua época, veio se juntar, a certa altura, o deslocamento literário tão
relevante quanto os demais.
Da autoficção, portanto, retém-se, para esta tese, o que Colonna considera um grande trunfo: a sua
significação intuitiva, que remete à ficção de si, invenção de si, ou invenção literária de si. Opta-se
nesta tese, portanto, pela utilização do termo literatura de si, seguindo-se esta linha de pensamento,
na tentativa de se encontrar expressão mais adequada embora não se pretenda, de forma alguma,
inventar um gênero ou tentar canonizá-lo. No caso de Lima, para quem a literatura adquiriu status
quase sagrado, de uma forma radical, no limite vida-morte (Ah! A Literatura, ou me mata ou me
o que peço dela), o termo literatura de si parece aproximar-se mais desta passagem da escrita de si
para a ficção. Vincent Colonna descobriu o que a maioria dos críticos em sua época não conseguiu
vislumbrar:
É pena porque a fabulação de si, ou a autoficção, qualquer nome que se atribua, e outras
apelações foram propostas, não é um simples fenômeno sociológico, uma moda, nem
mesmo uma receita engenhosa inventada por um universitário. Levada a sério, dotada
de uma extensão e de uma compreensão conseqüentes, reformulada em seus princípios e
meios, esta mitomania literária transforma-se num instrumento prodigioso. Ora
104
macroscópica, ora microscópica, ela permite reconsiderar os fenômenos de escrita
aparentemente marginais, descobrir os prazeres literários desconhecidos, as emoções
inéditas. [Le dommage, c’est que la fabulation de soi, ou l’autofiction, quelque nom
qu’on lui donne, et d’autres appellations ont été proposées, n’est pas un simple
phénomène sociologique, pas plus une mode, pas davantage une recette ingénieuse
inventée par un universitaire. Prise au sérieux, dotée d’une extension et d’une
compréhension conséquentes, reformulée dans ses principes et ses moyens, cette
mythomanie littéraire devient un instrument prodigieux. Tour à tour macroscope et
microscope, elle permet de reconsidérer des phénomènes d’écriture apparemment
marginaux, de découvrir des plaisirs littéraires inconnus, des émotions inédites]
(COLONNA, 2004 : pp.13-14).
Pode-se dizer que Lima Barreto passou por uma provação ao ser mal absorvido pela crítica literária,
sendo necessárias décadas para a compreensão da sua obra, para a descoberta dos prazeres
literários desconhecidos e emoções inéditas da sua deslocada literatura de si. Com base no que
Colonna postula como mitomania literária, é possível ainda voltar ao paradoxo que perpassa os
escritos ficcionais do autor: o esforço em se maquiar, vestir as máscaras dos personagens, teria feito
de Lima um mitômano? Apesar de buscar a sinceridade e rejeitar a hipocrisia em todos os níveis da
sociedade brasileira, teria recorrido à mistificação, para, em última análise, poder falar de si?
Em seu caso, muito particular nas letras brasileiras, a literatura da urgência, da urgência de si,
pareceu ignorar alguns preceitos, mesmo pessoais, em busca de uma forma de expressão literária
que urgia e se estabelecia como único antídoto possível contra a sociedade que ele criticava. Para tal
empreitada, no entanto, era necessário aceitar algum tipo entre tantos disponíveis de jogo.
Tratava-se, provavelmente, de um pseudomimetismo, uma maneira de se misturar ao meio para
atacá-lo em seu cerne; uma falsa adaptação, apenas para tornar o eu passível de ser melhor
absorvido pela sociedade na roupagem da ficção. Era como se tentasse um disfarce, porém, um
meio-disfarce, que deixasse à vista diversos elementos reconhecíveis como se os deixasse à tona
justamente para mostrar que aquilo era um jogo e, ao mesmo tempo, não era; escrevia ficção, mas
deixava a realidade escapulir em espasmos. O trecho de Recordações do escrivão Isaías Caminha
em que expõe suas dúvidas sobre a própria superexposição pública revela um instante de
consciência sobre o não-gênero e seus desdobramentos para o bem e para o mal. Destaca-se, no
entanto, o jogo arguto, a mitomania literária como forma de alcançar a sinceridade.
105
A história da literatura do século XX possui uma variedade de exemplos de autoficções, formas
variadas de literatura de si, mas um é particularmente relevante como ponto de analogia nessa tese:
o escritor Jean Genet que, ao escrever cinco romances numa prisão da França da década de 1940 e
descrever com crueza poética um mundo antiburguês habitado por bandidos, prostitutas e travestis,
criou um estilo à margem do dandismo literário, servindo-se justamente da erudita língua francesa e
de todo o requinte da sua sintaxe. Protegido pelo poeta Jean Cocteau e exaltado pelo filósofo Jean-
Paul Sartre como uma espécie de santo do mal, o poeta ladrão urdiu uma trajetória tão aventurosa e
romanesca que inúmeros biógrafos caíram na tentação de separar os traços reais dos delírios de suas
ficções. Genet, afinal, foi um mestre da invenção de si, criando e apagando pegadas, mentindo e
confundindo a sociedade com a qual manteve uma eterna relação de desconforto e confronto.
Em Genet: uma biografia, o autor americano Edmund White demonstra como o prisioneiro não se
satisfez com a escrita de uma narrativa-limite, de puro exorcismo de experiências traumáticas, nem
optou por acumular idéias em um diário. Em vez de simplesmente desabafar na retidão, Genet criou
uma literatura de si, minuciosamente construída e desconstruída, elaborada com sofisticação
estética. Apesar dos freqüentes e criticados erros ortográficos, Genet gabava-se de escrever sobre
um mundo marginalizado na língua do francês culto e dominador:
Você está me censurando por ter escrito em bom francês? Em primeiro lugar, o que eu
tinha a dizer ao inimigo precisava ser dito em sua própria língua, não numa língua
estrangeira como gíria ou argot. Apenas um line poderia fazer algo assim. É
necessário ser um médico, um doutor dos pobres, para ousar escrever em argot. Ele
poderia transformar em argot o francês perfeitamente correto de sua primeira tese
médica, com pontos de suspensão e coisas do tipo. Mas o interno que eu era não poderia
fazer isso, eu tinha de me dirigir ao torturador exatamente na linguagem dele. (...) O que
eu tinha a dizer exigia o uso dessa linguagem, para testemunhar meus sofrimentos (apud
WHITE, 1993: p.127).
Genet evitou o argot, a gíria, preferindo falar a língua do inimigo – no seu caso, a da sociedade rica,
oficial, ou mais especificamente, a do Estado, já que foi uma criança órfã deixada à assistência
pública, obrigada a andar com o uniforme institucional (como para um presidiário, uma marca
vergonhosa) pela cidade onde morava, e depois freqüentou reformatórios, prisões, exército (sempre
de uniforme). Este pseudomimetismo de Genet lança uma luz na literatura de Lima Barreto. Cada
qual à sua maneira, cada qual em seu devido estilo literário, ambos pareceram utilizar-se da
106
linguagem culta para a auto-exaltação e para o ataque à sociedade culta com a qual conservaram,
sem trégua durante toda a vida, uma relação de total desconfiança e ceticismo. No caso de Genet,
esta linguagem do cético constituiu intensa ficção poética, contendo inúmeros recursos da língua
falada pela sociedade francesa bem educada e aristocrática. Por outro lado, o escritor deixava vazar,
por vezes, erros gramaticais dos mais humilhantes e capazes de denunciar a sua origem pobre, a
educação precária como órfão tutelado pelo Estado, adotado por uma família antes de completar um
ano. Daí o assombro de White diante do estilo do poeta: “Poder-se-ia esperar tais experimentações
sofisticadas de um esteta da classe média alta, como Proust, ou de um doutor altamente educado,
como Céline, mas permanece espantoso o fato de Genet ter tido a necessária autoconfiança, nos
níveis pessoal e cultural, para a empreitada (WHITE, 1993: p.149)”.
Detido por furtos de livros em livrarias parisienses (depois revendidos para bouquinistes à beira do
rio Sena), Genet leu boa parte dos seus autores preferidos durante o serviço militar ou quando
perambulou pela Europa, após a deserção do exército durante a guerra. Cultuou Dostoiévski,
Rimbaud, Baudelaire, Gérard de Nerval e Mallarmé. O isolamento transformou o bandido em
escritor, e a literatura contribuiu para a absolvição definitiva, quando 40 escritores e políticos
enviaram um manifesto às autoridades francesas em defesa de Genet Camus se recusou, mas
Sartre e outros famosos aderiram. A fama literária, advinda da publicação clandestina de seus
romances com a ajuda de Cocteau, literalmente, o libertou. No total, Genet, diagnosticado como
“louco moral” por um psiquiatra da prisão, passou 44 meses e 16 dias em prisões para adultos. Em
liberdade, levaria eterna vida dupla, freqüentando patronos ricos e celebridades da política e das
letras, mantendo uma vida pessoal à margem desta mesma burguesia, morando em hotéis baratos e
defendendo causas como a dos Panteras Negras, nos Estados Unidos, e a dos palestinos, no Oriente
Médio.
Toda esta digressão pelo universo genetiano vem não só exaltar um tipo bastante particular de
literatura de si, mas, sobretudo, reter a idéia, presente nos dois autores, de uma escrita produzida
como urgência da expressão de si, utilizando-se da linguagem da classe dominante sem falar do
caso específico do cárcere, seja na prisão ou no hospício, que produziu Diário de um ladrão (de
Genet) e Diário do hospício (de Lima). Mesmo sob a maldição de suas reincidentes incorreções
gramaticais, Lima recebeu elogios de grandes escritores e críticos brasileiros, sobretudo décadas
após a sua morte. Em sua época, configurou-se tarefa árdua emplacar a sua forma muito original de
ver o Brasil e a existência com o seu estilo literário, avesso ao dominante. Chamado de escritor do
107
povo e dos oprimidos por alguns críticos, Lima defendeu-se (e aos oprimidos) na língua culta e não
apelou para gírias ou por uma linguagem chula na empreitada. Volta e meia deixou escapar erros,
uma falta de apuro ortográfico, mas, em questão de estilo literário, foi além do seu tempo, buscando
uma literatura sem floreios barrocos ou grandes rebuscamentos. Neste sentido, foi um
revolucionário, conforme aponta Lúcia Miguel Pereira:
Se, pela penetração psicológica, está mais na linha de Machado, pelo dom de fixar os
costumes através da caricatura pertence mais à de Manuel Antônio de Almeida.
Repartida entre as duas tendências a analista e a satírica a sua obra talvez haja
perdido em unidade, mas lucrou em intensidade. E significou, tanto pelos temas
abordados como pela técnica, uma antecipação do espírito novo que, logo depois dele,
se introduziria em nossa literatura. Podemos, sem exagero, considerá-lo o primeiro dos
modernos (PEREIRA, 1988: p.303).
Ao ser classificado como o primeiro dos modernos, Lima Barreto recebeu uma espécie de
constatação do constante descompasso com a literatura dos seus contemporâneos, fosse pelo estilo
ou pelo gênero. Segundo Carlos Garrido, “(...) pode ser efetivamente o escritor ‘dos simples e dos
humildes’, como bem diz Ranulfo Prata mas ainda é o escritor dos cultos, dos versados, dos
eruditos; dos estudiosos de estilo e formas literárias (apud RIEDEL, 1997: p.368)”. Pouco a pouco,
a literatura de Lima saiu da esfera do preconceito para uma mais clara divisão entre temática e estilo
sendo que, nos dois quesitos, o autor foi moderno. Basta transcrever um trecho de Interpretações
do Brasil, de Gilberto Freyre, que descreve um painel da literatura brasileira no início do século
XX:
Contrastando com um otimismo estritamente oficial, existia uma espécie de pessimismo
russo entre vários dos escritores, dos advogados e dos estudantes, e que vinha da ação
de profundo complexo de colonialismo sobre seu espírito senão sobre toda a sua
personalidade. Para a maioria deles, a Europa Paris, Londres, ou Berlim era o lugar
ideal, de que real ou imaginariamente se utilizavam para fugir ao colonialismo
brasileiro. Alguns fizeram da Europa o seu refúgio mesmo o velho historiador e sábio
crítico João Ribeiro vivendo intelectualmente na Europa. Isto é, estando no Brasil,
quase não pertenciam ao Brasil, ligados mentalmente, como se achavam, à Europa,
particularmente à França, como coloniais, como exilados, como subeuropeus,
subfranceses, subingleses, subalemães (apud PEREIRA, 1988: pp.273-274).
108
Para a maioria dos seus contemporâneos, Lima não se destacou como grande escritor, ao surgir
literariamente, não devido aos excessos de si transbordantes na ficção, mas por precipitar um
estilo enxuto e bastante distante dos padrões vigentes na época. Além disso, agravou a sua condição
a crítica ferina e aberta aos intelectuais brasileiros que viviam como coloniais, como exilados, como
subeuropeus, subfranceses, subingleses, subalemães. Lima não apenas suspeitou desta tendência
malsã da intelectualidade como a denunciou sem cerimônia, numa atitude que certamente lhe valeu
inúmeros detratores e, provavelmente, a glória que tanto almejava. O culto a si mesmo e a
contraposição deste eu ora inflado (por vezes mesmo arrogante) ora autodepreciativo à sociedade
contribuiriam muito para o a-social nato transformar-se no a-intelectual dividido entre a utopia e o
caos em plena modernidade – discussão do próximo capítulo.
109
4.
O A-INTELECTUAL ENTRE A UTOPIA E O CAOS
Uma das renitentes preocupações de Lima Barreto, expressa no conjunto da obra, consistiu no
questionamento do papel do intelectual no Brasil, levantando a possibilidade de existência de uma
intelectualidade situada num universo independente em relação à intelligentsia dominante. Nota-se
que os principais romances de sua autoria – Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de
Policarpo Quaresma, Vida e morte de M. J. Gonzaga de e O cemitério dos vivos focam
intelectuais que, cada qual com suas individualidades, eram freqüentemente autodidatas, dedicados
a uma crítica contundente do país e do mundo (realizada com explícita autonomia), mal assimilados
pelo sistema vigente das letras e condenados ao anonimato (em maior e menor graus). Nenhum
deles, bem como o seu autor, encaixava-se no convencional papel do intelectual-doutor. Pelo
contrário, alimentavam uma utópica forma de pensamento, à margem das convenções literárias.
Lima Barreto, ele próprio amanuense da Secretaria da Guerra, ousou dar relevância a tipos
intelectuais que transitavam no reverso do poder e, em Vida e morte de M. J. Gonzaga de , deu a
explicação necessária logo no começo do livro: “(...) exigindo a ordem obscura do mundo humano
um doutor que cure, outro que advogue, forçoso era também que houvesse um biógrafo para os
ministros e outro para os amanuenses (BARRETO, 2001, p. 559)”. A frase consta da breve
explicação que prefacia o romance, assinada por Augusto Machado em 8 de outubro de 1906.
Trata-se do narrador, que chama a obra de monografia, fruto da “leitura diurna e noturna das
biografias do doutor Pelino Guedes
14
. São biografias de ministros, todas elas, e eu entendi fazer as
dos escribas ministeriais (BARRETO, 2001, p. 559)”.
Lima usou a figura do narrador para explicar por que resolvia contar a história de um amanuense,
como se este, por seu desprestígio político, necessitasse de um argumento, um motivo para figurar
14
Segundo Francisco de Assis Barbosa, este era o nome do diretor-geral da Diretoria da Justiça, que
cuidava da aposentadoria do pai de Lima, com quem o escritor se desentendeu devido ao atraso da
burocracia.
110
no centro da obra. Lima, amanuense de profissão, desculpava-se pelo narrador e, intimamente, por
si mesmo, com um sarcasmo que se revelava imperioso:
Contudo, não me julgo com a verdade. Deus me livre de tal coisa! Tanto mais que,
tendo-me destinado a atividade bem diversa, não me afiz aos estudos que a literatura
reclama. Não sei grego nem latim, não li a gramática do Senhor Cândido de Lago,
nunca pus uma casaca e não consegui conversar cinco minutos com um diplomata bem
talhado (...) (BARRETO, 2001, p. 559).
A literatura de si constituiu mais uma vez artifício para o autor delinear o auto-retrato,
posicionando-se diante da intelectualidade – afinal, nessa explicação, ele ensaiava uma prestação de
contas ao mundo da convenção social e literária: pedia desculpas pelo parco estudo da literatura,
confessava a ignorância em língua e gramática, terminando o raciocínio com mordacidade: o
usava casaca (leia-se: sou pobre) e carecia de repertório para desfiar conversa com um diplomata
(provável crítica a certo dandismo literário). A ironia permeia cada parágrafo do breve prólogo. Em
seguida, ao longo de Vida e morte de M. J. Gonzaga de , Lima Barreto acabaria por construir um
espécimen de intelectual brasileiro distante do bem-sucedido modelo de intelectual da época. Era
um tipo diferente, que em muitos aspectos comungava com o nietzschiano sujeito criativo e criador,
à margem da “infinita superabundância de fatos (NIETZSCHE, 1998: pp.113-114)” e elevado “a
um ponto de vista supra-histórico (NIETZSCHE, 1998: p.111)”, como se verá adiante.
Assim como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e O
cemitério dos vivos, Vida e morte de M. J. Gonzaga de guarda o tom autobiográfico que
caracteriza e enriquece a obra de Lima, como se o narrador e o protagonista justificassem o autor
suas idiossincrasias, manias, isolamento. Personagens encarnaram trechos da biografia do autor na
ficção, numa conveniente promiscuidade que revelava as múltiplas qualidades de um tipo de
intelectual não reconhecido em sua excelência, na margem em que trafegava. Numa alusão ao termo
a-social utilizado por Foucault ao traçar a história da loucura na Idade Clássica, pode-se pensar que
esse espécimen aos poucos configurava justamente um a-intelectual.
Como se viu no capítulo 1, Foucault mostrou que a Grande Internação funcionou como mecanismo
de higiene social nos séculos XVII e XVIII, encaixando-se no sonho burguês de um mundo perfeito
e virtuoso, de onde pobres, incapacitados para o trabalho e inadaptados socialmente deveriam ser
excluídos:
111
O internamento seria assim a eliminação espontânea dos a-sociais; a era clássica teria
neutralizado com segura eficácia tanto mais segura quanto cega aqueles que, não
sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais
psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas (FOUCAULT, 1999: p.79).
Assim como os a-sociais representam a negação do social, isto é, do socialmente correto, dos
modelos de sucesso, trabalho produtivo e adaptação total ao meio, contribuindo para o mito da
felicidade social, o a-intelectual encarna a negação do intelectual: não do intelectual tout court, mas
da intelectualidade do seu tempo, que ocupa o altar canônico, é bajulada por seus pares, lida e bem-
recebida nos salões da sociedade bien-pensante
15
. Por isto, ao a-social/a-intelectual Lima, restou o
deslocamento num Rio de Janeiro inflado de glamour e virtude. Urgiu a busca de um outro lugar
um a-lugar? para exercer o que ele acreditava ser a sua verdadeira função: uma função que
extrapolava (pois nele o cabia) o mito da felicidade intelectual. Isto porque Lima desmistificava
modelos sociais, intelectuais, políticos e econômicos da época, tornando-se, portanto, o
antiexemplo, o incômodo, abrindo brechas na padronização do gestual, do vestuário e do
comportamento da sociedade e da intelectualidade da Belle Époque.
Visto assim, percebe-se que este lugar acabaria se configurando o espaço do isolamento, decorrendo
de uma busca de autonomia a qualquer custo, que, no caso dos quatro romances de Lima Barreto,
alcançou o clímax em Vida e morte de M. J. Gonzaga de . Este não se apresenta como o
romance mais bem-escrito do autor como transparece o aperfeiçoamento da figura do a-intelectual
iniciado com Isaías Caminha e depois com Policarpo Quaresma (personagem que ganha análise
mais detalhada no capítulo 5). Isaías e Policarpo eram ainda mais utópicos, ingênuos, sendo mais
vítimas do que agentes. Gonzaga de Sá, igualmente utópico, mostrava-se de início mais seguro das
escolhas, do seu a-lugar na sociedade, menos conflituoso, de uma dignidade conservada até mesmo
na hora da morte que ocorre, singelamente, quando se abaixa para colher uma flor. Depois das
humilhadas recordações de Isaías e do triste fim de Policarpo, a vida e a digna morte de M. J.
Gonzaga de pareciam compensar em parte, já que no final do romance o protagonista desvela
15
Cabe ressaltar que se optou pela utilização do termo a-intelectual especificamente nesta
acepção, ou seja, de Lima em relação à sua época, não fazendo parte deste estudo o aprofundamento
do termo intelectual a partir de Gramsci (o intelectual orgânico) ou de Jean-Paul Sartre (o
intelectual engajado).
112
algumas das suas crises até então reprimidas em relação à sua condição de a-intelectual o mal-
estar de Lima diante de uma de suas questões centrais: o seu próprio papel de intelectual. Após
Gonzaga, no auge da solidão (no manicômio), Lima ainda criaria o melancólico Vicente, que
desfiava teorias e frustrações em relação à vida social-intelectual, demonstrando posições
semelhantes às de Isaías e Policarpo (lembrar citações do capítulo 3, em que o protagonista de O
cemitério dos vivos deixa clara a aversão ao diploma e ao título de doutor). Seu discurso era
marcado pela alternância entre arrogância e humilhação, complexos de superioridade e inferioridade
– todo um discurso urdido justamente dentro do hospício: o a-lugar por excelência?
Na passagem para a literatura de si, o auto-retrato saiu mais utópico em Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá: na maior parte do livro, o protagonista representava o tranqüilo a-intelectual que
exercia a sua função com empenho e sinceridade, embora à margem, sem projeção na sociedade.
Era bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II, com sólidos princípios de educação e instrução,
conhecimentos de psicologia clássica e metafísica, sendo cético, voltairiano e antimonástico, sem
ser maçom, segundo o narrador. Este o considerava uma espécie de ídolo intelectual, admirando,
sobretudo, a sua “bela obscuridade (BARRETO, 2001: p.564)”, a coragem de não comungar com o
conservadorismo das letras e nem por isto amargar a falta de reconhecimento.
Gonzaga, funcionário público (da Secretaria dos Cultos), parecia transitar num universo paralelo,
além do bem e do mal histórico, interpretando a existência muito além dos marcos, bandeiras e
revoluções da época. Note-se a passagem do livro em que, ao ser informado sobre a proclamação da
República no Brasil, Gonzaga perguntava: “Mas qual? (BARRETO, 2001: p. 569)”. Em vez de soar
alienado por desconhecer a instauração da República no país, o lapso foi assim explicado pelo
elogioso narrador: “As suas reminiscências de história não lhe davam de pronto a idéia nítida do
que fosse república. Sabia de tantas e tão diferentes, que a sua pergunta não foi afetada
(BARRETO, 2001, p. 569)”. O trecho evidencia a freqüente crítica de Lima à República no Brasil,
que no romance surge sob irônica indagação, numa clara tentativa de diminuir a sua relevância
bem como de relativizá-la no contexto histórico da nação e do mundo.
Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de , a descrição do intelectual fadado ao funcionalismo
público por não pertencer à aristocracia / burguesia brasileira tem na seguinte descrição o ápice:
muita gente que, sem queda especial para médico, advogado ou engenheiro, tem
outras aptidões intelectuais, que a vulgaridade do público brasileiro ainda não sabe
113
apreciar, animar e manter. São filósofos, ensaístas, estudiosos dos problemas sociais e
de outros departamentos da inteligência, para os quais a nossa gente que não se
voltou e de que são amadores poucos da élite, e sem eco na nação, em virtude dessa
pasmosa diferença de nível, que entre a inteligência dos grandes homens do Brasil e
da sua massa legente.
Certos de que as suas aptidões não lhes darão um meio de vida, os que nascem tão
desgraçadamente dotados, se pobres procuram o funcionalismo, fugindo ao nosso
imbecil e botafogano doutorado. Não são muitos; são raros em cada repartição, mas
consideráveis em todo o funcionalismo federal.
Em começo, procuram-no com o fim de manter a integridade do seu pensamento, de
fazê-lo produzir, a coberto das primeiras necessidades da vida; mas o enfado, a
depressão mental do ambiente, o afastamento dos seus iguais e o estúpido desdém com
que são tratados, tudo isso, aos poucos, lhes vai crestando o viço, a coragem e mesmo o
ânimo de estudar. Com os anos, esfriam, não lêem mais, embotam-se e desandam a
conversar (BARRETO, 2001, p. 569).
Ao afirmar que os intelectuais desgraçadamente dotados, se pobres procuram o funcionalismo,
Lima deixava transparecer a associação entre o a-social e o a-intelectual, como se o primeiro fosse a
condição do segundo; o segundo, a inevitável conseqüência do primeiro. Ou seja, a ambos sobrava
o não-lugar, onde, somente lá, podiam transitar livremente. Esta idéia, presente na obra de Lima,
revela o tom de desgosto do autor diante de uma sociedade (a brasileira) despreparada para o gênio
que porventura proviesse de classe social inferior, sobretudo se pertencente à raça negra. Gonzaga
não era negro, mas Isaías, personagem que padeceu toda uma biografia de discriminações,
sintetizou o desespero do aspirante a intelectual num país recém-saído da escravidão. Ao trocar a
cidade do interior pela capital, imbuído do sonho de ser doutor, Isaías viu no diploma o antídoto
contra a pobreza e a cor. Num trecho de Recordações do escrivão Isaías Caminha, o protagonista
negro que tentava ascender social e intelectualmente no jornal, passando de contínuo a repórter,
retratou o espírito da época com triste realismo. Mesmo no auge da carreira de jornalista,
paparicado por figurões poderosos, percebia a entrelinha do preconceito em meio a colegas de
profissão:
114
Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera num ambiente
familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraordinário. O que me parecia
extraordinário nas minhas aventuras, ele achava natural, mas ter eu mãe que me
ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. atinei com esse seu íntimo
pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do
Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda
que os cães de suas chácaras. Os homens são uns malandros, planistas, parlapatões
quando aprendem alguma coisa, fósforos para politicões; as mulheres (a noção aí é mais
simples) são naturalmente fêmeas. A indolência mental leva-os a isso (...).
Mas não me dei por satisfeito. Percebi que me viam como exceção; e, tendo sentido que
a minha instrução era mais sólida e mais cuidada do que a da maioria deles, apesar de
todos os seus diplomas e tulos, fiquei animado, como ainda estou, a contradizer tão
malignas e infames opiniões, seja em que terreno for, com obras senão pelo talento, que
julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta (...)
(BARRETO, 2001, p.233).
A consciência desse estado de exceção levou Isaías a buscar outro caminho: querer sair do
jornalismo e voltar para o interior, em busca de sonhos simples como se casar e ter filhos (embora
dissesse ter sido casado, pai de um filho que havia morrido). A conquista da posição de repórter
não foi suficiente para mascarar a discriminação diária e o deslocamento. Por isto, a autodescrição
do personagem, transcrita nas últimas páginas do livro quase como conclusão, desvelava melancolia
e frustração:
Queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às mulheres;
mas as sombras e as nuvens começavam a invadir-me a alma, apesar daquela vida
brilhante. Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo;
sentia também que não me parecia com nenhum outro, que não era capaz de me soldar a
nenhum e que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição, importância e
nome. Sofria com essa “consideração” especial que tanto irritava o poeta cubano
Plácido. (...) Desesperava-me o mau emprego dos meus dias, a minha passividade, o
abandono dos grandes ideais que alimentara. Não; eu não tinha sabido arrancar da
minha natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não
115
soubera revelar-me com força, com vontade e grandeza... Sentia bem a desproporção
entre o meu destino e os meus primeiros desejos; mas ia (BARRETO, 2001: p.253).
O trecho aponta para um triste fim que, se ainda não era radical como a loucura, a internação no
hospício e a morte de Policarpo Quaresma, deixava entrever a tristeza, o não-pertencimento ao
coletivo, a condição de proscrito apesar da vida aparentemente brilhante sobressaía, enfim, o
deslocamento do a-social/a-intelectual, que afirmava textualmente ter sido abatido pela sociedade.
Lima mostrou-se incansável no desabafo contra o sistema de poder capaz de excluir talentos e
intelectos brilhantes sem formação universitária tradicional ou sobrenomes política e socialmente
corretos. Como se viu, mesmo no hospício da Praia Vermelha, em condições que normalmente
despersonalizavam e confundiam o indivíduo, o escritor combateu o círculo vicioso da sociedade
brasileira e investiu contra o valor das convenções. Percebe-se que o isolamento decorria da a-
sociabilidade, desaguando na a-intelectualidade, sendo ambos atributos anteriores à internação.
Fosse no hospital psiquiátrico ou no centro da badalada Rua do Ouvidor da época, Lima mantinha
espantosa autonomia e direito de exercício crítico, ainda que dissesse se controlar devido ao ofício
de funcionário público. Invariavelmente, porém, deixava transparecer complexos sociais-
intelectuais, nem sempre bem-vindos nos cafés da Belle Époque.
Na função que acreditava ser a sua, na qualidade de intelectual, Lima abusou dessa autonomia para
viver e criticar a modernidade em toda a sua tensão e deslumbramento. Ao usar o espaço da
crônica e do diário, ou criar, na ficção, intelectuais autônomos e anônimos, o autor vislumbrou com
velocidade assombrosa o século XX, sem poupar críticas ao positivismo do XIX bom lembrar
que, no auge da doutrina de Augusto Comte no Brasil, o adolescente Lima chegou a freqüentar
reuniões, decepcionando-se em seguida, obtendo, portanto, munição consistente para posteriores
ataques). Diante da transformação que se acenava, era um a-intelectual à beira da vertigem, tomado
por um conflituoso questionamento do valor da vida e da arte sem que a fronteira entre estas lhe
parecesse muito clara. Guardião de uma utopia particular, sofria o embate com os efeitos da
modernidade que revolucionava a passagem entre os séculos.
Atento às mudanças, pré-moderno, Lima Barreto inscreveu em seu estilo alguns dos ideais do
modernismo como sempre, ao seu jeito, solitário, precoce, avesso a movimentos. Francisco de
Assis Barbosa estabeleceu um dos pontos cruciais da relação do escritor com o movimento
modernista:
116
Não lhe agradaria também a nota esnobe do movimento, que lhe pareceria à primeira
vista simples reflexo, um tanto retardado, de novidades estéticas do começo do século,
importadas da Europa, na bagagem de escritores afortunados (BARBOSA, 1988:
p.259).
Além do tom esnobe, Lima criticava na imprensa o escritor Graça Aranha, autor da conferência de
abertura da Semana de Arte Moderna de 1922, e Paulo Prado, um dos patrocinadores do evento. Ao
receber a revista Klaxon, primeira publicação lançada no rastro da Semana, Lima teceu duras
críticas à exaltação do futurismo de Marinetti (grande influência no pensamento de Oswald de
Andrade e na síntese do modernismo), com a ressalva de que não atacava os integrantes do
movimento. Lima provavelmente comungava com a jornada modernista contra o parnasianismo e a
busca de um viés não-acadêmico na expressão artística e literária brasileira, mas o viveu
suficientemente para aprofundar questões, críticas e afinidades, que morreu no dia de
novembro daquele ano, quase nove meses depois do evento. Coube a Sérgio Milliet uma
consideração relevante sobre o estilo e a atitude do escritor:
O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a
atitude antiliterária do escritor, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas
também visavam. Mas admirávamos por outro lado a sua irreverência fria, a quase
crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudez que
revelava na marcação dos caracteres (apud BARBOSA, 1988: p.259).
Teria sido Lima Barreto mais moderno que os modernos? De todas essas características de estilo
listadas por Milliet, que se destacar, especialmente, a atitude antiliterária do autor, que
provavelmente norteava as demais. Nada na obra de Lima soava gratuito; tudo parecia advir de um
posicionamento prévio, bem-estruturado, que desembocava numa atitude a atitude do a-social/a-
intelectual, a atitude antiliterária, no sentido da oposição aos padrões literários da época. Toda essa
arguta observação das letras nacionais imiscuía-se à observação da cidade, do país, do mundo.
Tanto Augusto Machado como Gonzaga de Sá ocupam este lugar no romance, reservado aos
críticos da modernidade, bem orientados em seu tempo. Num discurso em que investiga a
genealogia da felicidade nas variadas camadas sociais, Gonzaga comenta:
117
(...) poderás dizer que todas as damas de Petrópolis são felizes e os operários de
fundição são desgraçados? média possível para a felicidade das classes? Nós, os
modernos, nos vamos esquecendo de que essas histórias de classe, de povos, de raças,
são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos edifícios lógicos, mas
que fora deles desaparecem completamente (...) (BARRETO, 2001: p.584).
O trecho evidencia a inserção consciente de Gonzaga entre os modernos. Viver a modernidade
parecia significar, para Lima, estar alerta, absorvê-la no que trazia de novidade em termos de
preceitos estéticos e criticá-la, ironizá-la, pela violência com que provocava transformações em prol
da consolidação desta novidade no cotidiano da população devido, sobretudo, à produção de um
refugo social ignorado pelo Estado.
No seguinte trecho, percebe-se como Augusto Machado agonizava entre o caos e a utopia, a
destruição e a incerteza da reconstrução. Ao percorrer a cidade do Rio de Janeiro em dia de
patriotismo desvairado, num feriado nacional, o personagem questionava a tradição militar, a
desigualdade social, a própria República:
Desci para me delir na multidão, para me embriagar no espetáculo dos fardões e dos
amarelos, para me fragmentar com o estrondo das salvas fugindo a mim mesmo, aos
meus pensamentos e às minhas angústias. Saltei no Campo de Sant’Ana, esgueirei-me
por entre o povo, entrei no jardim, deixando-me a ver os batalhões, ingenuamente,
humildemente como se fora um garoto. As tropas formavam, esperando a visita do
general, para desfilarem, então, pelo Catete, em continência ao presidente. Vi
regimentos, vi batalhões, luzidos estados-maiores, pesadas carretas, bandeiras do Brasil,
sem emoção, sem entusiasmo, placidamente a olhar tudo aquilo, como se fosse uma
vista de cinematógrafo. Não me provocava nem patriotismo nem revolta. Era um
espetáculo, mais nada; brilhante, por certo, mas pouco empolgante e ininteligente. Junto
a mim, dois populares discutiam, ao passar as forças formidáveis da Pátria, os seus
recursos de mar e terra. Tinham um almanaque na cabeça, sabiam o nome dos oficiais, a
marca dos canhões, a tonelagem dos couraçados. Discutiam com evidente orgulho,
satisfeitos (...). Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem social,
cheios de necessidades, excomungados falariam tão santamente entusiasmados pelas
coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que a queriam de pé, vitoriosa eles que
nada recebiam dela, eles que seriam espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das
118
autoridades, se alguma vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma
delas? Não seria fundamental, estrutural, em todos nós, neles como em mim, esse
espontâneo separar das nossas dores, a provável culpa do corpo social em que vivemos?
Poderíamos viver sem ele, sem as leis e sem as regras que nos esmagam? Secretos
ditames de nossa natureza não nos impunham essa subordinação resignada? Quem sabe
lá? E, conforme tão bem dizia Gonzaga de Sá, que tinha eu, homem de imaginação e
leitura; que tinha eu de levar desassossego às suas almas, às daquela pobre gente, de
lhes comunicar o meu desequilíbrio nervoso?
(...) E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento todos os
males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as organizações e as
disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha República, erguer a minha Utopia,
e, por instantes, vi resplandecer sobre a terra dias de Bem, de Satisfação e
Contentamento. Vi todas as faces humanas sem angústias, felizes, num baile! Tão
depressa me veio tal sonho, tão depressa ele se desfez. Não sei que diabólica lógica me
dominava; não sei que inveterados hábitos de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu
abanei a cabeça desalentado. Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma
superstição, nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a
Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde saem, e a morte dessas ilusões,
o esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à
humanidade o reino feliz da perfeita ausência de todas noções entibiadoras (BARRETO,
2001: pp.618-619).
Augusto encontrava em Gonzaga o seu par, outro a-social/a-intelectual estupefato diante dos fatos
que conduziam a virada do século XIX para o XX: a urbanização acelerada do Rio de Janeiro
empreendida pelo prefeito Pereira Passos, à semelhança da famosa reestruturação de Paris realizada
por Georges-Eugène Haussmann; a higienização dos cortiços como tentativa de limpeza social e
estética, em busca da construção de uma fachada civilizada; o isolamento cada vez maior dos
pobres e negros, imposto pela tentativa de padronização republicana do país conforme um modelo
internacional o que obviamente acabaria por formar o grande refugo de gente não absorvida pelo
bem-estar moderno. No trecho transcrito acima, percebe-se claramente o esforço do eu
(Augusto/Lima) em se delir na multidão e se embriagar no espetáculo dos fardões para fugir de si,
da angústia pessoal. Em vão. O personagem não embarcava na febre patriótica, coletiva e
119
republicana, das massas. Pelo contrário, enxergava apenas o antiespetáculo: era intocado pela
emoção e reclamava inteligência no rito repetitivo e vazio.
Um detalhe da vida pessoal de Lima contribui para a compreensão do desconforto do escritor diante
da proclamação da República no Brasil: o pai trabalhava com seu padrinho, Visconde de Ouro
Preto, no jornal Tribuna Liberal, órgão de resistência ao movimento republicano. Com a
proclamação, o Visconde viu-se impelido ao exílio e João Henriques Lima Barreto, recém-admitido
como mestre de composição tipográfica na Imprensa Nacional, foi demitido por sua ligação com os
monarquistas. Lima obviamente tomou o partido do pai e sentiu no dia-a-dia a influência dessa
manobra política, pois a partir daí João nunca mais se recuperaria, sendo obrigado a aceitar o
emprego no manicômio da Ilha do Governador, terminando os dias como aposentado precoce e
psicótico. O fracasso paterno levou-o a mudar o rumo da vida, empregando-se como amanuense
pelo sustento da família e guardando uma mágoa pessoal dos republicanos.
O forte tom de pesar pode ser percebido no discurso do a-patriota Augusto Machado, que mais uma
vez se apresentava como porta-voz do autor nos constantes ataques à desigualdade social na
República. Por isso, a certa altura, indagava se não era fundamental sentir a culpa do corpo social
em que vivemos. Não levantava a possibilidade de residir na natureza brasileira essa submissão
resignada, como percebia estar (ou apenas na companhia de Gonzaga de Sá) neste
questionamento: nem se dava o direito de compartir essas idéias com os populares, para não fazê-
los despencar do seu bem-estar na hierarquia social, sob o risco de agitá-los com seu desassossego.
Assim, desesperado ante a injustiça, acometeu-lhe o desejo utópico: o de criar a sua própria
república, particular, pessoal e perfeita, numa dimensão inexistente. Contudo, Augusto caía
imediatamente em si: desfazia a utopia, certo de que, uma vez criada a nova república, renovados
problemas e vícios surgiriam. A conclusão era desalentadora: apenas a morte das ilusões do que
representam a arte, a ciência, a religião e o Estado anularia, enfim, as convenções ditadoras que
tiravam do homem – sobretudo do intelectual – a autonomia.
E quais seriam os cânones a que se referia Lima Barreto? Em Literatura como missão, Nicolau
Sevcenko faz uma descrição acurada da intelectualidade desde a “geração modernista de 1870” que,
sob forte influência do materialismo cientificista, do darwinismo e do positivismo, ansiava pela
modernização do Brasil conforme tendências européias. Por outro lado, as gerações das últimas
décadas do século XIX receavam a perda de independência do país, no caso de invasões de
potências expansionistas. Assim, um nacionalismo intelectual rachado imperou, marcado por duas
120
tendências: a mais simplista, que “consistia em sublimar as dificuldades do presente e transformar a
sensação de inferioridade em um mito de superioridade”, e a outra, que “implicaria um mergulho
profundo na realidade do país a fim de conhecer-lhe as características, os processos, as tendências e
poder encontrar um veredicto seguro, capaz de descobrir uma ordem no caos do presente, ou pelo
menos diretrizes mais ou menos evidentes, que permitiriam um juízo concreto sobre o futuro
(SEVCENKO, 1999: p.85)”. Esses intelectuais, entretanto, não teriam sido bem-sucedidos na
condução do país em direção a reformas urgentes, tornando-se figuras socialmente inúteis,
atropelados por oportunistas e arrivistas de todo tipo, sem força política no Estado. Impossibilitados
de exercer o ofício de escritor, muitos tornaram-se funcionários públicos, naquele que ficou
conhecido como regime da mediocridade:
A transformação dessa geração de intelectuais utilitários, primeiramente numa pequena
comunidade de eremitas e então de indigentes, ou quase isso, assinalaria um momento
traumático na evolução da história cultural do país. Deixados por si mesmos,
desperdiçados enquanto potencialidades sociais, acabariam com a consciência dividida
entre o pensamento e a ação, condenados a um distanciamento permanente da realidade.
Por outro lado, essa trama iníqua os levaria a buscar raízes sociais alternativas e a
comportar-se criticamente quanto aos poderosos do momento. Nos casos mais radicais,
essa posição crítica os levaria mesmo a tentar uma revisão cabal da própria história do
país e das suas virtualidades futuras, à luz da sua experiência traumática (SEVCENKO,
1999: p.93).
Pode-se pensar que Lima Barreto levou essa condição ao máximo do esgarçamento, exacerbando o
isolamento e a crítica. Lá onde esta parte da intelectualidade patinava, resistente, mas insegura,
Lima protagonizava uma trajetória ainda mais radical: o alcoolismo e a internação no hospício
agravariam o processo de marginalização, deixando-o numa desconfortável situação-limite. Mais
uma vez, a questão-chave do marginalizado vem à tona: o eu combalido demonstra força suficiente
para a crítica e a denúncia do poder, mas se expõe e se fragiliza diante desse mesmo poder – a ponto
de se deixar capturar pelo Estado num hospital psiquiátrico, espaço em que o indivíduo tinha a
cidadania temporariamente suspensa, sem possibilidade de recurso. Cansado do embate com o
Estado (em Vida e morte de M. J. Gonzaga de , Lima acusa o Estado e a arte de tirania), o autor
caiu nas mãos do adversário sem necessariamente entregar o jogo, que usou o diário para se
insurgir contra a situação no domínio próprio da autoridade.
121
Antes da instituição psiquiátrica, no entanto, Lima caíra na rede de outra instituição poderosa na
época: o funcionalismo público, com o qual manteve difícil relação sob diversos aspectos. Algumas
das anotações no Diário íntimo desvelam o quadro desesperador da vida pessoal, agravado pelo
trabalho de amanuense:
Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade.
Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio
da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e
vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos.
prescindo da glória, mas não queria morrer sem uma viagem à Europa, bem
sentimental e intelectual, bem vagabunda e saborosa, como a última refeição de um
condenado à morte.
A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia
dos loucos de Shakespeare. Meus irmãos, egoístas como eles, queriam que eu lhes desse
tudo o que ganho e me curvasse à Secretaria da Guerra.
O que me aborrece mais na vida é esta secretaria. Não é pelos companheiros, não é
pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição
com a minha consciência.
Não posso suportá-la. É o meu pesadelo, é a minha angústia.
Tenho por ela um ódio, um nojo, uma repugnância que me acabrunha.
Queria ganhar menos, muito menos, mas não suportar aqueles generais do Haiti que,
parece, comandaram ou vão comandar em Austerlitz.
Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de violência, de opressão, de
bajulação, que me enche de revolta. Não sei o que hei de arranjar para substituir aquilo,
e a minha gana de sair de é tão grande, que não me promovem, não me fazem dar um
passo à frente (BARRETO, 1998: p.119).
Esta anotação vem datada: 20 de abril de 1914. Logo após, uma outra (de 13 de julho de 1914) a
medida da desorientação: “Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei
indo para a loucura?” Em seguida, a nota: “Estive no hospício de 18-8-14 a 13-10-14 (BARRETO,
122
1998: p.119)”. Percebe-se não só o deslocamento óbvio do escritor na função de amanuense,
entediado no ofício diário, mas a contradição com a sua consciência, que trabalhava em prol de
um dia-a-dia militar o extremo oposto dos ideais pessoais. Outro agravante: não era promovido,
num trabalho que prescindia de grandes conhecimentos e habilidades.
Em cartas endereçadas a Antônio Noronha dos Santos, queixava-se da freqüente condição de
preterido em promoções na repartição. Chegou a confessar: “(...) eu penso que o meu livro em nada
servirá para evitar futuras preterições. Ando imaginando o meio de sair daqui. Sinto-me
incompatível e cheio de rancores (BARRETO, 1998: p.216)”. Nota-se que a literatura também
deveria funcionar como ferramenta de transformação profissional, ou seja, Lima contava com o
prestígio de escritor para angariar promoções no funcionalismo. Cabe ressaltar ainda que a
insistência do autor em relação a uma suposta perseguição sofrida na repartição, impedindo-o de
obter promoção, acentuou-se após a sua participação no júri que condenou, em 1909, um oficial do
exército e 13 policiais acusados de provocarem a morte de dois estudantes no conflito conhecido
como Primavera do Sangue.
Devido à dependência do emprego público e ao esforço realizado para não criticar publicamente
figuras militares, tanto a correspondência como o diário íntimo fortaleceram-se como espaços
neutros, onde era possível descrever marechais e o ambiente da secretaria de guerra com maior
liberdade:
Hoje acabo de ir cumprimentar o Argolo, marechal e ministro da Guerra. É um tipo
simples. Sem olhar e sem fisionomia. Recebeu-nos num pequeno gabinete. Ouviu
algumas palavras do barão e disse outras. Apertou-nos a mão um a um. Se pela sua
fisionomia nada se lhe pode descobrir de elevado ou de mau, pelo seu aperto de mão
também. É um aperto de mão burguês, indiferente. Não tem o forte sacolejo de um
violento, nem a frieza de um astuto. Aperta mão como um funcionário bom e probo, e
às vezes tolerante, que ele é (BARRETO, 1998: p.119).
Percebe-se o desprezo pela figura descrita, ainda que Lima estivesse na posição desprivilegiada de
amanuense, diante da figura imponente do ministro da Guerra. Reproduzia-se no ambiente de
trabalho o comportamento do escritor diante da autoridade psiquiátrica no hospício: Lima utilizava
o escrito íntimo para atacar o poder, substituindo uma possível ação (insubordinação, exoneração
etc.) pela literatura. A ficção era igualmente utilizada como trincheira para a mordacidade. Ao
123
descrever o Barão de Inhangá, diretor-geral da Secretaria dos Cultos (onde Gonzaga trabalhava), a
ironia lhe escapava:
Era um velho funcionário do tempo do Império que se fazia diretor e barão, graças ao
seu nascimento e à sua antigüidade de funcionário. Homem inteligente, mas vadio,
nunca entendera daquilo nem de coisa alguma. Entrara como chefe de seção e durante
as horas de expediente o seu máximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua
secretária. Foi feito diretor e, logo que se repimpou no cargo, tratou de arranjar outra
atividade. Em falta de qualquer mais útil aos interesses da pátria, o barão fazia a toda
hora e a todo instante a ponta do lápis. Era um gasto de lápis que nunca mais se
acabava: mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos (BARRETO, 2001:
p.585).
Trata-se do retrato do funcionário aristocrata, a gastar os dias em atividades inúteis, às custas de um
país rico como o Brasil. Pelo discurso de Gonzaga, é possível vislumbrar opiniões subliminares do
autor sobre os conceitos de aristocracia e burguesia:
– A mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia. Abre
aí um jornaleco, desses de bonecos, e logo dás com uns clichés muito negros... Olha que
ninguém quer ser negro no Brasil!... Dás com uns clichés muito negros encimados pelos
títulos: “Enlace Sousa e Fernandes”, ou “Enlace Costa e Alves”. Julgas que se trata de
grandes famílias nobres? Nada disso. São doutores arrivistas, que se casam muito
naturalmente com filhas de portugueses enriquecidos. Eles descendem de fazendeiros
arrebentados, sem nenhuma nobreza e os avós da noiva ainda estão à rabiça do arado na
velha gleba do Minho e doidos pelo caldo de unto à tarde. Sabes bem que não tenho
superstição de raça, de cor, de sangue, de casta, de coisa alguma. Para mim,
indivíduos e eu, mais do que ninguém, pois descendo dos Sás que fundaram esta minha
cidade, podia tê-las. Mas sei o que era necessário para tê-las. Precisava, para me
considerar nobre, que meus avós tivessem obedecido a todas as regras da nobreza. Eles
se casaram em toda a parte, eles nunca se importaram com os seus forais, agora vou eu
tolamente gritar por aí, pela Rua do Ouvidor: eu sou Sá, nobre, fidalgo, escudeiro, etc.,
pois descendo de Salvador de Sá, etc. Isto digo eu que sou Sá... Agora imagina tu um
Fernandes aí qualquer com tais prosápias! Uma instituição só é válida quando é mantida
124
com as suas leis os nobres aqui degradaram-se porque não respeitaram as regras da
linhagem... Sabes bem o quer dizer “degradar” nos códigos de nobreza?
Sei! É voltar, por inobservância de disposições deles, ao terceiro estado, onde, para a
verdadeira nobreza, está incluída a burguesia. Os Colberts, os antepassados dos grandes
ministros... (BARRETO, 2001: pp.573-574).
A crítica à aristocracia brasileira era realizada com base no modelo da aristocracia européia. Como
os aristocratas no Brasil não obedeciam à linhagem, isto é, desobedeciam à regra básica que
consistia na realização de casamentos entre iguais, acabavam degredados, isto é, tornavam-se meros
burgueses – e irreversivelmente expostos à mira ferina de Lima Barreto. Na ficção, a crítica
transparece quando Augusto confessa o deslocamento no teatro rico do Rio da Belle Époque,
freqüentado por mesdames e messieurs descritos como réplicas empobrecidas da sociedade
francesa:
A sineta anunciou o espetáculo. Entramos. Poucas vezes fora eu ao amigo Pedro II e as
poucas em que fui, assisti ao espetáculo das torrinhas; de modo que aquela sociedade
brilhante que via formigar nas cadeiras e camarotes, de longe parecia revestida de uma
grandeza que me intimidava. Debruçado na grade da galeria, as casacas corretas e os
ricos vestuários das senhoras eram um deslumbramento para os meus pobres olhos; e,
por não ser do meu gosto analisar os espetáculos que me agradam, aceitei aquela
sociedade como deslumbrante, grandiosa e brilhante. Contudo, vulgarmente, em muito,
na entrada, parecia-me que aquelas damas, envoltas em capotes e outros agasalhos,
tinham o ar de quem ia para o banho; enquanto, na sala, de colos nus, sob o rebrilho das
luzes, surgiam-me como mármores de museu. (...) Vi algumas de perto e as cadeiras dos
camarotes, que me pareceram bem inferiores às da sala de jantar da minha modesta
casa. Notei-lhes o forro de reles papel pintado, o assoalho de tábuas de pinho barato;
alonguei o olhar pelo corredor e além de acanhados, julguei-os sujos, vulgares, a guiar
os passos para lugares escusos. (...) Era para brilhar ali que nós todos brigávamos,
matávamos, e roubávamos, por sobre os oito milhões de quilômetros quadrados do
Brasil. Não se acredita! (...) eu me choquei bruscamente com aquele ambiente hostil.
Não houve uma palavra que me ferisse, nem sequer um olhar; entretanto, em
contemplar aquela grande gente, que me parecia tão rica e tão brutal, eu me senti
inferior. Donde me vinha esse sentimento? Era a minha cultura? Não; eu recebi a
125
mesma instrução dos mais instruídos da minha idade que lá estavam. Era do meu
caráter, das falhas da minha moralidade: não, também, eu sentia que as tinha; contudo,
em comparação com o grosso daqueles cavalheiros tão limpos, eu era puro, imaculado.
Nada mais me restava comparar, a não ser que o meu sangue me fizesse perfeitamente
inferior, mas este mesmo eu cria correr em muitos daqueles a quem me julgava inferior.
Donde vinha, portanto, esse sentimento que me entristecia? Analisei na memória o
espetáculo que me ferira, combinei-o com as palavras de Gonzaga de Sá. Lembrei-me
que eles tinham vindo do Brasil todo, de todos os seus pontos, a brigar, a roubar os seus
parentes, as suas mulheres e os governos, a furtar pobres e ricos; a matar também levas
e levas de imigrantes nos árduos trabalhos agrícolas. Era aquele o seu prêmio!... Tinham
saltado por cima de todas as conveniências, por cima de todos os preceitos morais
tiveram coragem, enquanto eu... Oh! Algumas vezes por aí, umas pândegas e muito
álcool! Narcótico, era isso. Percebendo a verdade, revoltei-me contra a minha fraqueza,
contra a minha alma bruxuleante e pulha, que me fazia deter diante das regras do
decálogo, diante dos preceitos morais. Eu era um covarde, um escravo; eles, príncipes e
reis. Não serei mais assim!... Era preciso brigar briguemos! Escolheram a guerra tê-
la-ão! (BARRETO, 2001: pp. 626-628-629).
No romance, ao receber o convite feito por Gonzaga para ir ao Lírico, Augusto reclamava da
hostilidade do ambiente e pensava em sequer aceitá-lo. Quando resolveu ir, desde o início
confessou ter assistido a espetáculos raras vezes, sempre nas torrinhas, ou seja, nas galerias,
poleiros (assentos mais baratos). Confirmava, assim, desde o início da descrição do teatro, que
assistia a tudo de um outro lugar. De início usava adjetivos excessivos para qualificar as mulheres
nos espaços nobres: brilhantes, grandiosas e deslumbrantes. Em seguida, a crítica: aparentavam
estar prontas para o banho assim como as cadeiras dos camarotes pareciam inferiores às da sala
de jantar da sua modesta casa e o assoalho de tábuas era de pinho barato, sujo e vulgar. O narrador
confessava-se intimidado diante daquela sociedade, mas não a ponto de aceitá-la cegamente, sem
julgamento. Do ponto de vista do a-social, tudo parecia brilhante, porém, de falso brilho. Face à
miscelânea de aristocratas e burgueses de cepa nacional, era capaz de lhe apontar falhas não sem
uma ponta de despeito.
A descrição realista mais uma vez servia para que o autor pudesse se inserir, a si, naquela paisagem,
trazendo o universal para o pessoal – na ficção, o universo pessoal de Augusto. O narrador
126
denunciava: atrocidades (disputas, assassinatos, roubos) eram cometidas no Brasil para que os
algozes pudessem brilhar nos salões requintados da capital, isto é, sorver as benesses da riqueza
(não, necessariamente, da nobreza). É comovente perceber que a hostilidade acusada por Augusto
não resultava de qualquer incidente ou preconceito transparecido numa conversa, num olhar
enviesado daquela sociedade tão rica e tão brutal: esta leitura do personagem decorria da
observação de décadas de desigualdade social e discriminação racial, de uma visão global da
história nacional. Assim, o silêncio da elite ante o a-social/a-intelectual no teatro soava-lhe mais
violento do que qualquer demonstração agressiva em relação à sua diferença.
Percebe-se, contudo, a eterna necessidade de comparação do personagem com o seu meio. Nessa
análise, Augusto se tinha em alta conta: recebera a mesma instrução dos cavalheiros ali presentes,
sentia-se moralmente mais imaculado e sabia que, no Brasil mestiço, o seu sangue corria em muitos
daqueles a quem se julgava inferior. E eis que explodia a revolta: ao notar que os vencedores ali
estavam justamente pela amoralidade (disputas, roubos etc.), o narrador finalmente se culpava, a si,
pelo fracasso. Achava-se fraco, um pulha, pela falta de coragem de ultrapassar preceitos morais,
terminando por expiar a mágoa social no alcoolismo. No final desse trecho, dava um grito de
guerra, como se fosse capaz de se modificar moralmente para competir com os vitoriosos: Era
preciso brigar – briguemos! Escolheram a guerra tê-la-ão! Nem Augusto tampouco Lima
levariam esta batalha adiante, em termos de ação, ou revolução; era a literatura (ficção, crônica,
diário etc.) que consumia sentimentos de revolta e pensamentos de bravura.
Pode-se dizer que Lima morava na cidade ideal para o exercício da intelectualidade e, sobretudo, do
antagonismo a esta: até o início da década de 1920, o Rio de Janeiro constituía o grande mercado de
trabalho para letrados. Havia a Academia Brasileira de Letras (fundada em 1897), os empregos
burocráticos ligados ao governo federal e o apoio do Ministério das Relações Exteriores a grandes
nomes das letras. Bem distante da a-intelectualidade, formava-se uma poderosa elite, apta a se
divertir nos cafés, teatros e livrarias da cidade, aparentemente sem a culpa do corpo social. Esta
elite vivia a República em toda a sua contradição, ignorando, em sua maioria, o custo social
implícito na modernização do país, de olho apenas na europeização dos modelos brasileiros – o lado
negativo do cosmopolitismo.
O conservadorismo imperava, a ponto do Marechal Hermes da Fonseca, um militar positivista
apoiado pelas oligarquias, ter sido eleito à presidência da República e governado o país de 1910 a
1914. Parte da intelectualidade da época reagiu, apoiando a candidatura do político liberal Rui
127
Barbosa, sem sucesso. Lima chegou a editar um panfleto contra o Marechal, intitulado O Papão, e,
em carta a Antônio Noronha dos Santos, escreveu: “A república continua na mesma marcha
estúpida. O Hermes é o rei da situação e o embrulho vai se fazendo. O Pinheiro Machado já está aí,
mas ao que parece, não quer o Hermes. Diz que é uma candidatura apresentada fora dos círculos
políticos, é uma candidatura revolucionária. (...) Enfim, isto aqui continua cômico e besta
(BARRETO, 1998: p.215)”. Antes de se eleger presidente, Hermes da Fonseca foi ministro da
Guerra, o que claramente contribuiu para irritar ainda mais o funcionário da Secretaria da Guerra.
Na correspondência com Antônio Noronha dos Santos, Lima deixava transparecer uma
característica pessoal recorrente: a alternância entre a alta imagem de si na condição de escritor e a
baixa imagem de si ressentida na lida de amanuense: “Soube agora que quem escreveu a carta do
Hermes foi o Laje do País. Vê só tu como é vária a fortuna deste mundo e como a Independência de
1822 é uma grande mentira histórica. Sabes bem que não é o jacobino que fala: é o amanuense da
Secretaria da Guerra que é obrigado a ter uma porção de respeitos por um ministro que precisa que
alguém lhe escreva uma carta (BARRETO, 1998: p.218)”. Na função de escriba da Secretaria, o
escritor sentia a redução das propriedades intelectuais, o mau aproveitamento do talento em
atividades abaixo da instrução. Tentava igualmente subtrair da queixa o tom político do jacobino,
não sem um esclarecimento: falava de si na qualidade de amanuense submetido à emperrada
engrenagem da repartição e não como um revolucionário ou nacionalista extremado.
Lima assistiu de perto a um movimento que contribuiu para a absorção da mão-de-obra intelectual
na capital do país: o novo jornalismo, que levou intelectuais a escreverem para jornais, adaptando-
se ao tom da modernidade emergente, veloz e cosmopolita cabe, aliás, lembrar que no final do
século XIX os irmãos Goncourt criaram o prêmio homônimo (na época, a quantia era vultosa)
justamente para evitar a cooptação dos intelectuais pelo jornalismo. No Rio, as transformações
urbanas influenciavam a vida cultural e formavam uma nova dinâmica social-intelectual:
Verifica-se em todo esse período um curioso processo de passagem da vigência social
dos valores interiores, valores morais, essenciais, ideais, para os exteriores, materiais,
superficiais, mercantis. (...) As fachadas tornam-se a preocupação permanente e ubíqua,
não só na arquitetura: nestes tempos, a fachada é tudo (SEVCENKO, 1999: p.96).
É facilmente perceptível a aflição de Lima ante os dilemas da modernidade, que toda a sua obra
parece por vezes existir para demolir essa fachada, exaltando valores interiores, morais e
128
essenciais, em contraposição aos materiais, superficiais, mercantis. A fachada da modernidade,
construída (no Rio de Janeiro) com base em certa assepsia estética, às custas do sacrifício dos
pobres e feios cortiços, era alvo certo da condenação de Lima. As transformações, no entanto,
avançavam, à revelia dos escritos do autor cada vez mais se privilegiavam a superficialidade dos
jornais (em detrimento da literatura) e adventos como o cinematógrafo, o gramofone e a fotografia.
Junto às carroças e tílburis, desfilavam bondes elétricos e automóveis: “(...) o grande passado da
unidade romântica, da plena vigência das ilusões e dos sentimentos, é sentido como uma angustiosa
ausência (SEVCENKO, 1999: p.97)”.
Ao conceituar a literatura como missão, Sevcenko mostrou a recusa de Lima em ser um escritor da
moda, antenado com a época, capaz de escrever exatamente o que a burguesia da Belle Époque
queria – ou conseguia ler. O autor tinha em sua utopia privada: a literatura como ferramenta de
transformação social e política. E isto ocorria não só nas crônicas, mas igualmente na ficção, pois se
utilizava, a si, como exemplo histórico, na tentativa de compreensão da época: era ele mesmo o
inspirador de tantos romances autobiográficos, que não reproduziam as suas angústias pessoais,
mas as transformavam em questões sociais e políticas de apelo nacional. Ou, como bem resumiu
Sevcenko, ao analisar as obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha:
(...) passaram a centralizar todo o entrecho e o desenvolvimento de seus textos num
anseio de correção e condução das reformas necessárias e, num efeito mais global, de
retificação da ação executiva que pairava sobre a sociedade. (...) Dos textos de ambos o
que sobressai, portanto, é uma concepção da literatura e da atividade intelectual, em que
se apagam as fronteiras tradicionais entre o homem de letras e o homem de ação, entre o
escritor profissional e o homem público e entre o artista e a sua comunidade. Assim
metamorfoseados em escritores-cidadãos, esses autores despontavam para uma dupla
ação tutelar: sobre o Estado e sobre a Nação (SEVCENKO, 1999: p.232).
Ao ser classificado “como um índice privilegiado para o estudo da história social do período” e
transformar “em fatos literários os fatos históricos (SEVCENKO, 1999: p.245)”, Lima construiu
uma obra múltipla, capaz de revelar as idiossincrasias de um autor aparentemente cindido entre dois
extremos: o eu aparentemente auto-centrado e a realidade bruta ao seu redor. Como já se disse, este
eu, que impera em vários dos gêneros escolhidos por ele, concentrava em si inúmeras das questões
sociais, políticas e raciais do seu tempo. Daí a hipótese de ser indissociável o desabafo da narrativa
129
ficcional e mesmo da história social que ajudou a narrar. No artigo “Lima Barreto sentiu o Brasil”
(Leitura, agosto de 1943), Caio Prado Júnior ressaltou o lado positivo dessa indissociação:
Lima Barreto é um dos poucos escritores que entre nós compreenderam
verdadeiramente seu país; e não excluo aqui nem sociólogos ou quaisquer outros
pensadores. Exprimiu seu conhecimento em romances; mas em poucas obras, mesmo
especializadas, ou que se julgam tais, se encontrará, e isto mesmo até hoje, uma
percepção tão clara e nítida do que é o Brasil; este Brasil que não é o dos discursos, dos
relatórios oficiais e da nossa literatura tão convencional. Apesar disto, além de
ignorado, Lima Barreto ainda parece incompreendido. Seus tipos com todo realismo que
os caracteriza, são dados como caricaturas, invenções de um mundo artificial criado
pela imaginação do autor (PRADO JR., 1997: pp.436-437).
Caio Prado Júnior insurgiu-se contra a deficiente compreensão da obra de Lima em sua época,
sobretudo contra a constante crítica a uma suposta caricaturização dos personagens. Com razão:
muitos destes personagens tinham seus traços acentuados nos romances, mas nem todos fugiam
excessivamente à realidade ou eram tão grotescamente levados ao ridículo; pelo contrário, de tão
reais alguns pareciam ridículos, porque eram ridículos sob o ponto de vista distanciado do autor
de tão dramáticos, soavam patéticos. Como afirma Caio, eram tipos caracterizados com todo
realismo, nem por isto invenções de um mundo artificial criado pela imaginação do autor. Quando
Elói Pontes, no prefácio de uma edição de Triste fim de Policarpo Quaresma, rotulou o fazer
literário de Lima de “realismo subjetivo”, Caio foi taxativo: “(...) não era um subjetivista: sentiu e
soube exprimir o Brasil (PRADO JR., 1997: pp.436-437)”. Ao analisar o país em sua larga
complexidade, Lima falava de si na condição de escritor-cidadão brasileiro, negro, pobre e a-
social/a-intelectual bem como revelava uma observação acurada do outro, do entorno, alternando
subjetividade e objetividade. Nesse contexto, Lúcia Miguel Pereira teceu comentário preciso:
Contradições existem em toda a gente, mas de Lima Barreto, por muito repetidas e
evidentes, fazem supor que a sua obra e a sua personalidade teriam sido algo diversas se
o não houvessem endurecido e perturbado os conflitos com o meio e consigo mesmo.
(...) Assim, os embates interiores se somavam aos externos, aos choques com o seu
meio e com a sociedade, para torturá-lo e o levarem a ataques que eram afinal uma
forma de defesa, sem contudo conseguirem destruir um fundo generoso e até otimista,
uma espontânea disposição para a simpatia, que põem notas de inesperada doçura na
130
obra desse “artista vingador”, como diria Eça de Queirós (PEREIRA, 1988: pp.278-
279-280).
Marcado por conflitos internos agravados pelo embate com conflitos externos (sociais, econômicos,
históricos etc.), Lima viu-se compelido a produzir uma literatura marcada por esses fatores, ou seja,
uma literatura pontuada pela urgência de si contudo, uma urgência de caracteres nacionais e, em
última análise, universais. Lúcia Miguel Pereira confirma a idéia da literatura como escudo, ou seja,
uma forma de defesa dos choques com o seu meio e com a sociedade. O resultado de todo esse
ataque aos fatos mais evidentes de seu tempo pode ser resumido pelo artigo publicado por Carlos
Maul na Gazeta da Tarde, em que o autor, corajosamente, destacou o ineditismo de Lima,
confirmando a condição de a-intelectual: “Existe entre nós um grande prosador que toda a gente
conhece e cujo nome ninguém pronuncia sem olhar para a direita e para a esquerda, com um secreto
e mal dissimulado temor de ser ouvido. (...) A sua glória é toda subterrânea (apud SEVCENKO,
1997: p.319)”.
Em artigo publicado no jornal A Manhã, em 12 de julho de 1935, Jorge Amado chamou atenção
para o silêncio das elites em relação ao escritor do povo:
(...) Ninguém fala nele. Ele é perigoso... Não é bom dar um livro de Lima aos moços
porque ele descrevia a miséria da vida dos pobres do Brasil. (...) E, calmamente,
discretamente, os honestos intelectuais que dominam as letras brasileiras fizeram o
silêncio em torno do nome do maior romancista do Brasil. (...) No entanto, em segredo,
nas rodinhas literárias, se alguém falava em Lima Barreto, não faltavam, com a
proverbial falta de caráter destes intelectuais de ‘elite’, os elogios. Porém, providenciar
para que o público tomasse conhecimento do seu nome, para que seus livros
circulassem e fossem lidos pelo povo, isso eles nunca fizeram. Citar o romancista num
artigo? Nunca. Dizer da influência que ele está exercendo sobre os grandes romancistas
novos? Nunca. Colocá-lo entre Machado de Assis, Pompéia, Graça Aranha e os outros
grandes romancistas? Também não. Ele foi um grande romancista, sim (AMADO,
1997: p.430).
A glória subterrânea de Lima Barreto circulava em meios restritos, como a pequena imprensa, ou a
de oposição, sendo pouco citada na grande imprensa, à exceção de raros críticos elogiosos José
Veríssimo e Monteiro Lobato, por exemplo. No Diário íntimo, o autor reclamou do desprezo de
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jornais importantes em relação a uma de suas obras, na época recém-publicada: “O Vítor do
Correio da Noite prometeu-me dar o retrato e um anúncio em regra. Infelizmente, o jornal dele é
atualmente pouco lido. É esta a minha sina: ser anunciado e escrever em jornais pouco lidos
(BARRETO, 1998: p.227)”.
O autor era marginalizado não por suas idéias, mas às vezes por seu estilo, por “seu empenho
deliberado em despir a linguagem de quaisquer floreios ornamentais, rebuscamentos sintáticos,
exotismos retóricos ou pretensões de alguma pureza castiça (SEVCENKO, 1997: pp.324-325)”,
segundo Sevcenko, que ainda destacou:
O veredicto quase que unânime entre seus contemporâneos era que ele escrevia mal. O
fato mais notável, entretanto, era que ele amaldiçoava as belas letras e o beletrismo. Seu
estilo enxuto, seco, direto e coloquial era visto por si como uma provocação e um
ultraje à instituição literária, aos praticantes e às suas altas funções civilizatórias
(SEVCENKO, 1997: pp.324-325).
Avesso à transposição violenta de valores estéticos europeus para o Brasil, Lima não poupou
críticas à elite republicana. Quando o alcoolismo ocupou-lhe dias e noites, a aparência,
desleixada e maltrapilha, bem como as conseqüências da psicose alcoólica contribuíram para
alargar o fosso entre o escritor e a sociedade burguesa naquelas primeiras décadas do século XX,
num Rio moderno, asséptico e chic. A angústia do escritor pode ser detectada no seguinte retrato
composto por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo:
(...) se a escolha de ser escritor reúne, ambiguamente, esperança e desespero, produz
como resultado um equilíbrio muito instável. Trata-se de optar por um projeto ser
literato – com critérios cada vez mais rigorosos, de concessões mínimas, recusando-se a
aceitar os formalismos sociais e acadêmicos que enfeixam o trabalho e a figura do
intelectual. Além disso, a compreensão da inessencialidade das encenações sociais e dos
dogmas culturais, bem como a rejeição ao apadrinhamento e à prática de favores,
necessários para garantir divulgação e reconhecimento, empurram-no para a margem, o
que lhe dá a instabilidade nas atitudes (FIGUEIREDO, 1997: p.396).
Esse trecho reforça o paradoxo do marginal: a posição de a-intelectual, consistindo na radical
rejeição ao apadrinhamento, à encenação social e às concessões inevitáveis, dava-lhe a sensação de
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dignidade, sinceridade e pureza intelectuais e morais. Porém, no dia-a-dia, na vida prática,
contribuíam para a instabilidade de atitudes refletidas no corpo combalido, sujeito a quedas e
fraturas. Em Diário do hospício, o autor demonstrou autoconsciência em relação à decadência
física:
Não me preocupava com o meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba, não me
banhava a miúdo. Todo o dinheiro que apanhava bebia. Delirava de desespero e
desesperança; eu não obteria nada.
Outras muitas me aconteceram, mas são banais a todos os bebedores. Dormi em
capinzais, fiquei sem chapéu, roubaram-me mais de uma vez quantias vultuosas. Um
dia, furtaram-me cerca de quinhentos mil-réis no bolso, que, creio, me deixaram por
comiseração os que me roubaram.
Tenho vergonha de contar algumas dessas aventuras, em que felizmente ainda me
deixaram com roupa. Elas seriam pitorescas, não influiriam para o que tenho em vista.
Resvalava para a embriaguez inveterada, faltava à repartição semanas e meses. Se não
ia ao centro da cidade, bebia pelos arredores de minha casa, desbragadamente.
Embriagava-me antes do almoço, depois do almoço, até ao jantar, depois deste até à
hora de dormir (BARRETO, 1993: p.37).
Lima deu início ao vício na ronda boêmia por cafés do centro do Rio. Contudo, como é próprio do
vício, extrapolou a vida social, invadindo gradativamente o cotidiano doméstico, profissional e
pessoal, sendo o limite imposto apenas pela internação no manicômio. Nos primeiros anos dos
1900, ele encontrava alguns dos seus pares nos cafés Americana, Jeremias e Papagaio: reunia-se
com Antônio Noronha dos Santos; Pausílipo da Fonseca, redator político do jornal Correio da
Manhã; Bastos Tigre, que o convidou a escrever para a revista O Diabo (sob o pseudônimo de Rui
de Pina); o engenheiro Ribeiro de Almeida; e Carlos Viana, que o chamou para trabalhar na Revista
da Época, da qual saiu rapidamente por se recusar a escrever mentiras sobre um político teve,
aliás, outra passagem-relâmpago pelo Fon-Fon, onde trabalhou como redator durante menos de três
meses (segundo Francisco de Assis Barbosa). No artigo “Os galeões do México”, publicado na
Gazeta da Tarde, em 20 de maio de 1911, Lima descreveu as reuniões com os amigos nos primeiros
anos do século XX:
133
Nós nos reuníamos, nesse tempo, no Café Papagaio. pelas três horas, estávamos a
palestrar, a discutir coisas graves e insolúveis. Como havia entre nós bem uns quatro
amanuenses, o grupo foi chamado ‘Esplendor dos Amanuenses’, na intenção de mais
justamente destacar aquelas horas de felicidade, de liberdade, em oposição às de inércia
nas secretarias e repartições, quando, acorrentados à galé dos protocolos e registros,
remávamos sob o chicote da Vida. E falávamos a mais não poder ou então fundávamos
jornalecos e escrevíamos coisas portentosas nas revistas, cujas aparições eram
determinadas pelo estampar de solenes retratos de graves personagens da justiça, do
comércio, da finança e da administração. Panteons ambulantes, a que o faltavam os
panegíricos das nossas fórmulas ocultas. Já lá vão quase dez anos e o Rio ainda era uma
velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei por que, mais
interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe
l’oeil, com avenidas e palácios de fachadas, cascas de casa, espécie de portentos
cenográficos (apud BARBOSA, 1988: p.111).
Lima transpôs para os cafés, para os círculos sociais-intelectuais, o estigma de amanuense e suas
conflituosas queixas da rotina na repartição: fora do trabalho, exaltava a felicidade, a liberdade, em
contraposição à modorra da Secretaria. Nesse artigo, destaca que não apenas a conversa servia
como expiação do cotidiano desgraçado, mas a fundação de pequenos jornais e a publicação de
artigos sugeriam caminhos paralelos. Era o início da vida boêmia (os excessos começariam a
surtir efeitos devastadores em sua saúde mental e física a partir de 1910) e do encontro com a parte
da intelligentsia que lhe cabia não necessariamente os burgueses e dândis da literatura, mas um
grupo fiel e humilde, passível de afinar interesses mútuos.
A atividade no jornalismo constituía-se, no entanto, de altos e baixos e, como de praxe, de um
deslocamento, como desabafou ao amigo Antônio Noronha dos Santos, em carta datada de 1918:
É bem ignóbil esta minha vida de escriba assalariado a jornalecos de cavação e de
pilhérias! Estou tratando de me libertar dessa infame cousa. O Carneiro me apresentou
ao Deputado Viana do Castelo que se ofereceu a me arranjar qualquer no Diário do
Comércio. Sabes bem que não será repórter; as minhas pretensões e a minha prosápia
impedem-me aceitar tão subalterno e inferior ofício (BARRETO, 1998: p.210).
134
A prosápia surge com constância nos escritos, relembrando o eterno a-lugar pelo qual o autor
transitava. Na incansável busca por autonomia, Lima fundara a revista Floreal, em 1907,
publicação independente que obteve parcos elogios, fraca repercussão e venda – o fracasso evidente
impediu a continuidade. Quando era convidado a colaborar em publicações esquerdistas, evitava,
por questões éticas: achava incompatível com o ofício na Secretaria de Guerra. Depois da
aposentadoria (precoce), passou a viver dos rendimentos e de colaborações para veículos
jornalísticos como: Careta, ABC (deste desistiu quando publicaram um artigo contra a raça negra),
Hoje, Rio-Jornal, A Notícia, O País e Gazeta de Notícias.
Dez anos depois do insucesso da Floreal, a procura insistente por um espaço autônomo repetiu-se.
No Diário íntimo, Lima registrou mais uma vez o desejo de publicar uma revista independente. A
publicação jamais transcendeu o espaço íntimo, representando, entretanto, a síntese dos mais altos
ideais do escritor:
Tendo nós notado que artigos de certos dos nossos autores, quando aparecem em
publicações difundidas, são lidos com interesse e avidez; e notando também que muitos
escritores não possam fazê-los com independência e necessária autonomia intelectual,
para não ferir interesses e susceptibilidades das grandes empresas dos nossos
quotidianos, revistas e magazines; resolvemos editar uma pequena revista quinzenal em
que coubessem artigos de semelhante natureza e onde também fossem feitos, sem a
dependência de pequeninos interesses do momento, largos e francos comentários aos
sucessos da nossa atividade, em todos aqueles departamentos onde os nossos
colaboradores entendessem buscar assunto.
Não se trata de uma revista de descompostura, não se trata nela de insultar esta ou
aquela personagem em evidência. Não precisamos disto. O que nós desejamos é
esclarecer fatos e opiniões, sob a luz de uma livre crítica, de forma que aqueles leitores,
pouco enfronhados nos bastidores de certos aspectos da nossa vida e deles tendo
diante de si o fato bruto, possam melhor julgar o desenrolar dos acontecimentos
políticos, literários e outros, assim também as individualidades envolvidas nesses
acontecimentos (BARRETO, 1998: pp.135-136).
A descrição do projeto insere-se no freqüente tom de idealização de um outro lugar para o exercício
do intelectual não-doutor. Em carta ao crítico Veiga Miranda, no mesmo ano de 1917, Lima
135
queixou-se do paradoxo inerente ao título de doutor no Brasil, explicitando opinião clara sobre o
assunto:
Se a minha modesta pessoa deseja conseguir alguma coisa, é retirar do “doutor” o halo
de aristocracia, de sujeito digno de executar tudo, melhor do que os outros, mesmo
aquilo que seja inteiramente diferente da profissão que lhe marca o diploma.
O “doutor”, no entender da nossa gente, de alto a baixo, é sempre o mais apto, não pelo
que ele revela, mas por ser doutor.
É como o antigo nobre deste ou daquele país que, sem nunca ter lidado com uma escota,
era almirante deste ou daquele país.
Enquanto os costumes e as leis derem, estas, privilégios, e aqueles, a consideração de
nobreza, estou disposto a ajudar, até com sacrifício meu, qualquer rapaz, preto, branco,
caboclo, amarelo ou mulato a se fazer doutor.
Não é justo que venham a obter as regalias do diploma (nunca digo pergaminho) os
Aluísios de Castro e os Calmons. É preciso que a coisa seja temperada e os de modesta
extração não sejam todos eles destinados aos duros ofícios em que é preciso lutar,
sofrer, provar capacidade e aptidão (BARRETO, 1998: p.243).
A idéia de fundo é a mesma de tantos escritos, ao denunciar que o a-social não tinha vez como
doutor termo utilizado para profissões várias, inclusive a função de intelectual-doutor, da qual
sentia-se excluído. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, percebe-se a mesma crítica, num trecho
em que personagens se referem a um dentista:
Nos intervalos da conversa, todos olhavam o novel dentista como se fosse um ente
sobrenatural. Para aquela gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era
um homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não juntavam à
imagem que tinham dele atualmente, as coisas que porventura ele pudesse saber ou
tivesse aprendido. Isso não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns,
continuava a ser vulgar, comum na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era
outra coisa diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa vagamente fora da
natureza terrestre, quase divina (BARRETO, 2001: pp.284-285).
136
Lima mais uma vez usava a ironia para atacar o excesso de importância dada aos formados,
diplomados, doutores. Destacava o olhar social sobre este ente sobrenatural, que adquiria aura
sagrada, quase divina, pelo status de dentista diplomado. O sarcasmo deixava transparecer a revolta
de Lima contra a avaliação superficial: podia ser incompetente, mas era doutor. O tulo colocava-o
acima dos erros e acertos. Era evidente a queixa do escritor que, por não ter levado a cabo o sonho
do pai e não ter obtido um título, sentia-se social/intelectualmente deslocado, apesar da vasta cultura
demonstrada em conversas nos cafés, na publicação de artigos em jornais e nas edições de livros.
Em Diário do hospício, semelhante observação é realizada em tom de irritação:
Esta nossa sociedade é absolutamente idiota. Nunca se viu tanta falta de gosto. Nunca se
viu tanta atonia, tanta falta de iniciativa e autonomia intelectual! É um rebanho de
Panúrgio, que quer ver o doutor em tudo, e isso cada vez mais se justifica, quanto
mais os doutores se desmoralizam pela sua ignorância e voracidade de empregos. Quem
quiser lutar aqui e tiver de fato um ideal qualquer superior, de por força cair. Não
encontra quem o apóie. Pobre, de cair pela sua própria pobreza; rico, de cair pelo
desânimo e pelo desdém por esta Bruzundanga (BARRETO, 1993: p.60).
A censura à inércia, à frouxidão da intelectualidade, é recorrente. Em “Lima Barreto: a opção pela
marginália”, Beatriz Resende mostrou como essa crítica contundente o conduziu à sensação de
degredo em plena cidade natal:
Lima Barreto aparece como intelectual independente num momento em que a cooptação
dos intelectuais pelo poder é freqüente, e não manterá, por toda a vida, qualquer
compromisso mais profundo ou durável que ligue sua produção cultural ao Estado ou a
representantes das classes dominantes (...). Fica difícil não lembrar o doloroso itinerário
deste nosso intelectual, de jovem promissor a marginalizado, até a discriminação maior
sob o rótulo de loucura, nada tendo em comum com a burguesia contra a qual se volta,
mas também com dificuldades de identificação com o proletariado a que, no entanto, dá
voz (RESENDE, 1997: p.548).
Beatriz Resende chama atenção para o ponto mais sensível da situação armada por Lima, de si para
si: não se identificava com a burguesia, nem, surpreendentemente, com o povo que o escritor do
povo fazia falar por meio de seus escritos. Basta lembrar a citação transcrita no capítulo 2, em que
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ele confessava a total falta de identificação com a sua gente, dotada de uma tendência baixa, vulgar,
sórdida. Dizia ter simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, sem
possibilidade concreta de convivência, já que eles não lhe reconheciam a superioridade. Com
instrução acima das expectativas para a sua condição social-racial, Lima queixava-se
freqüentemente da ignorância da família e das massas. Escrevia para alertar os pobres e oprimidos
em relação aos abusos do Estado, à desigualdade social, porém geralmente situava-se, a si, em um
outro lugar – não a ponto de se identificar com o bem-estar burguês.
Este a-lugar tornou a vida profissional, intelectual e social do escritor cada vez mais penosa na
prática. Segundo Francisco de Assis Barbosa, a partir de 1911 o alcoolismo começou a ocupá-lo por
inteiro. Desistia dos encontros nos cafés para beber em botequins. Apresentava-se invariavelmente
sujo e mal vestido, sendo visto a esmo, rendido a diálogos travados com interlocutores invisíveis:
transformava-se gradativamente na imagem negativa, exagerada e caricaturada do a-social/a-
intelectual, evitada a todo custo pela burguesia. Em períodos lúcidos, tentou por vezes dissimular a
condição com a desculpa de que tudo fazia parte de um estilo, mas dava sinais de que a situação era
incontrolável. A condição de a-social/a-intelectual ignorava toda e qualquer regra ou jogo
coletivo – o que ele mesmo reconhecia:
(...) não obedeço a teorias de higiene mental, social, moral, estética, de espécie alguma.
O que tenho são implicâncias parvas; é isso. Implico com três ou quatro sujeitos das
letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome
de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista,
não sou nada; tenho implicâncias. É uma razão muito fraca e subalterna; mas como é a
única, não fica bem à minha honestidade de escriba escondê-la (apud BARBOSA,
1988: pp. 174-175).
Não desobedecia às leis como reconhecia o desencaixe em trechos da sociedade que porventura
se dispusessem a acolhê-lo. A essa altura, descontente com o caminho escolhido à margem, rotulava
apenas de implicância a verve utilizada como munição para ataques aos padrões sociais-intelectuais
que o desagradavam. E aos poucos o quadro psicológico instável aliava-se à degeneração física:
contraiu malária (pela segunda vez) e, em seguida, reumatismo poliarticular e hipercinese cardíaca
(considerados males típicos dos alcoólatras). Segundo o biógrafo, aos trinta e poucos anos, já
“desaparecera por completo o viço da juventude. Era ele, agora, um mulato gordo e vermelhão,
tresandando a cachaça (BARBOSA, 1988: p.178)”.
138
As décadas de 1910-20 foram decisivas para cristalizar o alcoolismo no dia-a-dia de Lima e desviá-
lo cada vez mais dos círculos literários. Até os amigos o evitavam, e a fama se espraiava. Monteiro
Lobato foi um dos poucos intelectuais importantes da época a pacientemente manter uma relação
com Lima ainda que à distância, Rio-São Paulo. A farta correspondência entre os dois deixa
entrever a grande admiração de Lobato pelo autor de Vida e morte de M. J. Gonzaga de , não
por seu estilo, mas, sobretudo, pela coragem de manter altos os ideais. Lobato não só publicou a
referida obra como teceu grandes elogios a Lima em cartas:
São Paulo, 2 set. 1918.
Prezadíssimo Lima Barreto,
A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninho de
medalhões e perobas, ela clama por gente interessante, que coisas que caiam no
gosto do público. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem
ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que
inutiliza metade de nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mas à moda
do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc. A confraria é pobre, mas paga, por isso
não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo.
Aguardamos, pois, ansiosos a resposta, uma resposta favorável.
Do confrade
Monteiro Lobato
P.S. – Pelo amor de Deus, leia e rasgue isto. L. (apud BARRETO, 1998: p.247).
O convite de Monteiro Lobato é uma evidência de que parte da intelectualidade conhecia bem o
lugar de Lima Barreto. Ao pedir colaboração para a Revista do Brasil, convidava o interessante
autor de Triste fim de Policarpo Quaresma para fazer frente aos medalhões apesar do receio de
ser lido pelos próprios, que pedia para Lima rasgar a carta após a leitura. E, quase quatro meses
depois desta, ao receber os originais de Vida e morte de M. J. Gonzaga de , Lobato foi além na
exaltação:
139
Recebi as últimas provas, e acabo de rever eu mesmo os primeiros capítulos do teu
livro. Que obra preciosa estás a fazer! Mais tarde será nos teus livros e nalguns de
Machado de Assis, mas, sobretudo, nos teus, que os pósteros poderão “sentir” o Rio
atual com todas as suas mazelas de salão por cima e Sapucaia por baixo. Paisagens e
almas, todas, está tudo ali (apud BARRETO, 1998: p.251).
A comparação com Machado de Assis, dando-lhe ligeira vantagem, era raridade na época. Além
disso, é possível perceber que Monteiro Lobato tentava se posicionar também num outro lugar:
O meu livro de contos... entre nós: não sou literato, nem quero ser, porque João do
Rio o é. Mas, morando na roça, e, “curioso”, muito amigo de carpintejar, experimentei
um dia aplicar às letras a arte do carapina. E mede, serra, aplaina, encaixa, embute,
entrosa, lixa, enverniza, fiz uns contos para a Revista do Brasil como faria móveis se o
material fosse madeira. Mudando-me para São Paulo, por estumação do Plínio Barreto,
publiquei-os em volume. E com grande espanto, vi-me transfeito na desadorada espécie-
homem de letras, com o livro a fazer carreira positivamente... Basta dizer que tirei
em cinco meses três edições num total de 7.000 exemplares. E pelos modos por que sai
a terceira (seiscentos vendidos na primeira semana), para o ano farei a quarta... Isto quer
dizer que o Brasil está errado. A Academia de Letras deve despir-se da imortalidade que
se outorga para vir pegar da enxó, e os carapinas de norte a sul que apanhem a pena.
Donde concluo uma definição boa para o país: o Brasil é a terra onde o certo dá errado e
o errado certo. Quando ouço te criticarem a vida desordenada e leio por outro lado
os teus livros, firma-se-me a idéia supra. E comigo: se o “ordenam”, em vez de
Policarpos, o Lima engorda e emudece (BARRETO, 1998: pp.251-252).
Para começar, Lobato afirmava: não sou literato, justamente em contraposição a João do Rio (a
quem Lima também criticava publicamente). O conteúdo da carta dá a dimensão da afinidade entre
ele e Lima: o viés não-acadêmico ao olhar as letras e o redimensionamento da importância da
Academia Brasileira de Letras (ABL). Lobato estabelecia uma curiosa analogia entre a carpintaria
(concreta, na madeira) e o fazer literário (concreto, no papel) e assim explicava o ofício: utilizava a
técnica da carpintaria para a escrita de contos, como se nivelasse as duas práticas em relevância. A
idéia servia de base para o desenvolvimento do raciocínio: a inversão de valores no Brasil fazia com
que o certo desse errado, e o errado desse certo aí incluídos os acadêmicos da ABL, que deveriam
trabalhar na madeira, enquanto os carpinteiros empunhariam a pena para escrever. Todo o
140
raciocínio sugere grande simpatia pela vida desordenada de Lima, como a supor que, caso tivesse
uma vida perfeita, o escritor não seria um bom escritor: não deixaria de produzir personagens
importantes como Policarpo, como optaria pela abstinência literária. Na carta (de 28 de dezembro
de 1918) ele praticamente autorizava Lima a perpetuar o seu estilo de vida, do contrário a sua
literatura estaria em risco. De viés, demonstrava grande empatia pela rara condição de a-intelectual.
Mais de um ano depois, contudo, enviaria carta demonstrando maior preocupação com os excessos
de Lima:
Amigo Lima,
Que graças! Não imaginas como nos deixou tristes e apreensivos a notícia da tua
entrada para o hospício. Felizmente, soubemos pelo J. M. Belo que foste parar não
pelo motivo que leva os outros, mas a título de descanso, para “assentar” o organismo
agitado. Já saíste. Pois muito bem e muitos parabéns (BARRETO, 1998: p.264).
Nesta o tom se revelava mais apreensivo, embora ainda otimista. Os dois nutriram
correspondência volumosa em que se desenhava toda uma tentativa de se conhecerem
pessoalmente, sempre adiada, após inúmeros desencontros. Em depoimento a Francisco de Assis
Barbosa, muitos anos depois, Lobato fez uma confissão: numa das vezes em que esteve no Rio,
encontrou Lima em estado tão lastimável no centro da cidade que sequer se apresentou (um ano
após o lançamento de Vida e morte de M. J. Gonzaga de ). A amizade epistolar, contudo, abriu
um espaço para o intercâmbio de confissões mútuas em que Lima se mostrava à vontade a ponto
de tocar no sensível assunto das sucessivas candidaturas na ABL:
Meu caro Lobato,
Mando-te o artigo do João Ribeiro sobre o nosso livro. Ele alude à minha candidatura à
academia. Nunca fui sinceramente candidato. A primeira vez que o fui, não
sinceramente é bem de ver foi quando o lio [Lobo] se apresentou. para lhe
fazer mal, porque eu o atrapalhava e me vingava das desfeitas que me fizera, tendo me
tratado antes, a modos de pessoa poderosa. A carta que enviei, embora registrada,
desapareceu e Hélio, apesar do Gustavo Barroso, foi eleito maciamente. Sei bem que
não dou para a academia e a reputação da minha vida urbana não se coaduna com a sua
respeitabilidade. De motu proprio, até, eu deixei de freqüentar casas de mais ou menos
141
cerimônia como é que podia pretender a academia? Decerto, não (BARRETO, 1998:
p.264).
Lima tornava visível a paradoxal relação com a Academia Brasileira de Letras, sem convencer
muito ao explicar a razão da candidatura. Na primeira vez, deu a desculpa de que a carta de
candidato, enviada em 1917 a Rui Barbosa, não chegara, sendo a inscrição desconsiderada. Em
1919, tentou novamente ocupar a vaga deixada por Emilio de Meneses, poeta e jornalista que
apresentava algumas particularidades afins com ele: era igualmente boêmio e crítico mordaz
(ironicamente, morreu quatro anos depois da eleição, sem tomar posse na ABL, por não ajustar o
seu discurso ao tom politicamente correto da casa de Machado de Assis). Quando Vida e morte de
M. J. Gonzaga de foi lançado, Lima, por ter recebido algumas críticas elogiosas e considerá-lo o
seu melhor e mais bem acabado livro, inscreveu-o no prêmio da Academia Brasileira de Letras, na
categoria de melhor obra de 1919 recebeu menção honrosa. A premiação deu-lhe alento para
tentar pela terceira vez uma vaga na ABL, em 1921, na cadeira antes ocupada por João do Rio.
Nessa época, chegou a publicar crônica na Careta, defendendo o seu “direito de pleitear as
recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura (BARRETO, 1998: p.383)”. Na
última hora, retirou a candidatura, alegando motivos íntimos.
A contradição intrínseca às insistentes candidaturas desvela motivos sortidos: Lima não criticou
a instituição pelo excesso de tradição e academicismo, como pelo aspecto não-literário dos
acadêmicos – à semelhança da Academia Francesa, a Brasileira recebe integrantes de todas as áreas,
desde que ilustres, notáveis, não configurando uma agregação propriamente de literatos. naquela
época, esta configuração o desagradava: “A Academia Brasileira de Letras começou com escritores,
tendo estes por patronos também escritores; e vai morrendo suavemente em cenáculo de diplomatas
chics, de potentados do ‘silêncio é ouro’, de médicos afreguesados e juízes tout à fait (apud
BARBOSA, 1988: p. 224)”. O autor sepultou, enfim, o desejo de glória acadêmica, reconhecendo,
provavelmente, a sua condição de a-intelectual, nada notável na acepção da palavra utilizada e
encarnada pelos diplomatas, políticos, escritores e médicos eleitos. Resta, contudo, a questão central
do a-intelectual: a busca do reconhecimento por aqueles que ele próprio a princípio não reconhecia,
pelo contrário, desmerecia publicamente e mesmo negava.
Todo este trajeto de deslocamento e busca de um espaço para a expressão do a-intelectual na
sociedade reflete-se nas trajetórias de seus protagonistas romanescos, sendo Gonzaga uma espécie
de personagem-síntese. Vida e morte de M. J. Gonzaga de é um romance-ensaio, em que os
142
personagens (Augusto e Gonzaga) travam diálogos pontuados por observações históricas,
considerações filosóficas, sociológicas, e questionamentos existenciais. As conversas são
entremeadas a descrições do Rio da época, ou interrompidas por uma moça bonita que passa, um
casal de namorados que chama atenção num trem, pelo enterro de um compadre de Gonzaga, ou por
um almoço com Tia Escolástica (única figura feminina da obra, que mora com o protagonista). No
cerne do romance, contudo, estão as idéias não necessariamente uma trama, um conflito, no
sentido do romance tradicional, o que é compreendido logo de início, que o autor deixa claro
tratar-se tão somente de um esboço de biografia.
Desde o início, Gonzaga é descrito como pertencente a um a-lugar em relação à intelligentsia da
época:
A sua ânsia e a sua febre de conhecimentos, tais como via nele, sempre a par do
movimento intelectual do mundo, fazendo árduas leituras difíceis, deviam procurar
transformar-se em obra própria, tanto mais que o era um repetidor e sabia ver fatos e
comentar casos a seu modo.
Creio que fizera os seus planos, pois que, apesar de remediado e seguro do emprego,
não se deixou cevar, pensou sempre e o seu pensamento estava sempre vivo e ágil,
embora, quando o conheci, já tivesse passado dos sessenta. Não ruminava.
Ao contrário, nunca cessou de aumentar a sua instrução, limando-a, polindo-a,
estendendo-a a campos longínquos e áridos. Para que seria esse trabalho senão para
criar?
É verdade que se podia atribuir ao seu gosto pessoal, perfeitamente desinteressado nas
coisas de pensamento, sem objetivo ou tenção de obra ou lucro de qualquer natureza.
Mais tarde, porém, fiquei perfeitamente certo de que era curiosidade intelectual, que
o animava e mantinha nas suas leituras árduas, mesmo porque não se podia encontrar
outra espécie de explicação, à vista da obscuridade a que se havia voluntariamente
imposto (BARRETO, 2001: p.570).
143
Na pele do narrador, Lima, que deixou vazar ao longo do romance inúmeras predileções e gostos
pessoais em comum com Augusto Machado
16
, parece ter criado Gonzaga como um alter ego mais
tranqüilo, a priori, em relação à sua posição de a-intelectual: amanuense, era capaz de árduas
leituras difíceis, aperfeiçoando-se no autodidatismo, sem objetivo ou tenção de obra ou lucro de
qualquer natureza. A obscuridade a que se havia voluntariamente imposto era o maior motivo de
admiração do narrador. Tamanha pureza de ideais configurou-se, afinal, a grande utopia de Lima
mas Gonzaga ia além em vários aspectos: não apresentava virtudes intelectuais de grande valor
como, de início, parecia contentar-se em não transformar todo aquele alto saber em obra, isto é,
prescindia da glória, satisfazendo-se com o anonimato e a bela obscuridade. Gonzaga, como
personagem conceitual, provavelmente resolveria o eterno paradoxo de Lima, já que, na vida
prática, o criador destoava da criatura: apesar de a-intelectual, buscou sempre o reconhecimento e
expôs este sofrimento publica(literaria)mente.
Percebem-se conceitos nietzschianos a se espraiarem subliminarmente, por vezes flagrantemente,
no romance. Pode-se pensar, por exemplo, que Gonzaga se encaixava, sob diversos aspectos, na
idéia de Nietzsche (desenvolvida em Considerações intempestivas) sobre o homem não-vulgar, apto
a extrair de si próprio “um riso olímpico, uma ironia superior (NIETZSCHE, 1998: p.119)”
expressões pertinentes quando se analisa a trajetória de Lima Barreto. Quando o autor afirma que
Gonzaga não era um repetidor e sabia ver fatos e comentar casos a seu modo, remetia-o à fúria
com que Nietzsche investiu contra a figura do historiador-colecionador:
Este gosto maníaco das coisas antigas envolve o homem num cheiro a bafio. Os seus
hábitos de antiquário transformam um talento, às vezes notável, uma aspiração nobre,
numa curiosidade insaciável ou numa autêntica avidez de tudo o que é antigo,
literalmente de tudo. Freqüentemente, decai até ao ponto de se satisfazer com qualquer
alimento e de se regalar com o das minúcias bibliográficas (NIETZSCHE, 1998:
p.128).
Nietzsche colocou em xeque a mania de exaltar a tradição, utilizá-la, dela abusar, sem um
questionamento da sua real relevância naquele contexto, interpretando-a mecanicamente com base
em minúcias bibliográficas. Vaticina: “(...) o passado e o presente são uma única e mesma coisa
(NIETZSCHE, 1998: p.133)”. Da mesma forma, Gonzaga afirma: “Ora! O tempo... Uma noção
16
O personagem assinava as revistas cultuadas por Lima e mantinha até o mesmo grupo, o “Esplendor
144
subjetiva, que existe para nós... uma fatalidade da nossa organização cerebral, independente da
experiência. Um critério, uma categoria para a nossa interpretação humana dos fenômenos... De que
vale? (BARRETO, 2001: p.632)”. O protagonista parece falar invariavelmente de um a-lugar, além
de tudo, atemporal. Ao passear pela cidade ao lado de Augusto, ambos parecem flanar além das
noções de tempo, espaço e história, demonstrando-se freqüentemente distanciados do entorno:
Do outro lado, pela alameda que corria defronte do botequim, víamos agitar-se, aos
impulsos de energias acumuladas durante a semana, uma multidão policrômica; e, ali,
separados dela, silenciosos e inertes às forças que se moviam, nós estávamos como fora
da humanidade, como entes de outra estrutura, sem nada de comum com eles
(BARRETO, 2001: pp.613-614).
Assim como o menino Lima pensara-se um Capitão Nemo, fora da humanidade (lembrar citação ao
herói de Jules Verne no capítulo 2), Augusto via-se, e a Gonzaga, fora da humanidade, como entes
de outra estrutura, habitantes de um não-lugar fortemente marcado por um afastamento
(intelectual) excessivo dos valores do seu tempo – o que não significa alienação dos fatos da época,
pois Lima demonstra conhecimento impressionante sobre os mais diversos temas. Fala-se nesse
contexto da capacidade de um olhar diferente sobre os fatos históricos e de uma grande dificuldade
de participação na coletividade que fazia aquela história, como se torna evidente em outro trecho:
As tropas dispunham-se a desfilar. Desfilaram. Passaram aos meus olhos lisas faces
negras reluzentes, louros cabelos que saíam dos capacetes de cortiça; homens de cor de
cobre, olhar duro e forte, raças, variedades e cruzamentos humanos se moviam a uma
única ordem, a uma única voz. Tinham, os seus pais, vindo de paragens longínquas, e
das mais desencontradas regiões do globo. Que motivos ocultos, sob a grosseria dos
fatos históricos, explicavam essa estranha impulsão e aquela mesma obediência a um
mesmo ideal e a uma mesma ordem? Que bobagem, pensei por aí, estar eu a meditar
sobre coisas tão imbecis, quando estavam próximos os armazéns de modas, o Pavilhão
Mourisco, ou Os Pequenos Ecos, tão pejados de coisas importantes e inteligentes, onde
poderia com ganho e lucro empregar a minha atenção e o meu estudo. Que besta sou!...
(BARRETO, 2001: pp.619-620).
dos Amanuenses”, com quem se encontrava no mesmo Café Papagaio freqüentado pelo autor.
145
Para o narrador, era inexplicável a obediência a um mesmo ideal e a uma mesma ordem, auscultada
nos militares em desfile durante a parada. Incapaz de compreender o movimento coletivo,
imaginava que apenas motivos ocultos, sob a grosseria dos fatos históricos, pudessem explicar o
disparate. Era uma recusa à compreensão da subordinação do indivíduo a um ideal coletivo,
tradicional, imposto, sem um questionamento preliminar individual. A certa altura, Gonzaga ousou
mesmo dizer: “Os indivíduos me enternecem; isto é, o ente isolado a sofrer; e é só! Essas criações
abstratas, classes, povos, raças, não me tocam... Se efetivamente existem!? (BARRETO, 2001:
p.583)”. A busca de uma autonomia absoluta foi levada ao extremo no perfil de Gonzaga,
personagem que tentava unir com simplicidade e inteligência vida e história, mostrando como esta,
sem aquela, perdia valor, automatizava os sentidos, descolando-se da existência como simples e
inútil “febre histórica decoradora (NIETZSCHE, 1998: p.102)”. A este respeito, é ilustrativa a
consideração de Nietzsche:
Serviremos à história na medida em que ela serve à vida, mas o abuso da história e a
sua sobrevalorização provocam a degenerescência e o enfezamento da vida, fenômeno
de que é necessário e doloroso termos consciência, através dos evidentes sintomas que
se manifestam na nossa época (NIETZSCHE, 1998: p.102).
O pensador chamava atenção para a urgência do espaço do intempestivo, da criação, da arte, em
oposição a uma percepção mecânica e convencional da história:
É verdade que quando o homem, à força de refletir, de comparar, de dividir, de
relacionar, consegue delimitar o âmbito da não-história, é que nasce dentro da nebulosa
um foco claro e brilhante. É, pois, pela faculdade que ele tem de fazer servir o passado à
vida e de refazer a história com o passado, que o homem se torna homem (...)
(NIETZSCHE, 1998: p.119).
Lima mostrou-se atento a questões semelhantes: contrário à mera repetição dos fatos, dotado de
uma análise minuciosa do passado-presente sob uma ótica individual, distanciada, crítica e criativa,
deu a sua visão da história, delimitando, provavelmente, o âmbito da não-história: afinal, refletia,
comparava, relacionava e procurava uma nova forma de vida em sua época, diferente dos padrões
herdados, automaticamente absorvidos por sua geração.
146
Sob alguns aspectos, pode-se especular que Lima pressentia os efeitos negativos do fortalecimento
do capitalismo e da manipulação das camadas sociais desprivilegiadas pelas classes dominantes,
conforme Adorno e Horkheimer constataram em “Indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas” (publicado em 1944): “A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de
iniciação. Todos têm que mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não
cessam de receber pancadas. (...) Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem
se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão da
felicidade (ADORNO/HORKHEIMER, 1985: p.144)”. Baseado no passado-presente, Lima parecia
sentir o mau presságio de um futuro próximo. Ao se recusar à encenação social, mostrava
ostensivamente que não se identificava integralmente com o poder que espancava. Lima
personificou o opositor individual em confronto permanente com toda uma sociedade viciada um
tipo de indivíduo que, segundo Adorno/Horkheimer, seria gradativamente eliminado do bem-estar
social:
Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela
glorificava a ‘valentia e a liberdade do sentimento em face de um inimigo poderoso, de
uma adversidade sublime, de um problema terrificante’ [Nietzsche]. Hoje, o trágico
dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror
ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico. Mas o milagre da
integração, o permanente ato de graça da autoridade em acolher o desamparado, forçado
a engolir sua renitência, tudo isso significa o fascismo. (...) A própria capacidade de
encontrar refúgios e subterfúgios, de sobreviver à própria ruína, com que o trágico é
superado, é uma capacidade própria da nova geração. Eles são aptos para qualquer
trabalho porque o processo de trabalho não os liga a nenhum em particular. Isso lembra
o caráter tristemente amoldável do soldado que retorna de uma guerra que não lhe dizia
respeito, ou do trabalhador que vive de biscates e acaba entrando em ligas e
organizações paramilitares. A liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo.
(...) A pseudo-individualidade é um pressuposto para compreender e tirar da tragédia
sua virulência: é porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras
encruzilhadas das tendências do universal, que é possível reintegrá-los totalmente na
universalidade (ADORNO/HORKHEIMER, 1985: pp.144-145).
147
Pode-se pensar que algumas idéias de Lima na combativa oposição à sociedade, de valentia e
liberdade em face a um inimigo poderoso e de busca de uma identidade/individualidade
suficientemente sólida para não se permitir dissolver numa falsa integração, já prenunciavam
algumas das transformações que desaguariam nos totalitarismos das décadas seguintes. Ele foi,
afinal, o sujeito capaz de gritar contra a falsa identidade da sociedade e do sujeito basta lembrar
que, em todos os mecanismos sociais por que passou, manteve a distância, a crítica, a não-repetição,
a não-mecanização... a individualidade, por fim, eximindo-se da mera encruzilhada das tendências
do universal.
Além disso, Lima assistia com aflição a todo o processo de formação de uma indústria cultural que
seria execrada por Adorno nos anos 1940, disposta a nivelar por baixo a arte e a função do artista
em prol de uma engrenagem perversa:
A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por
quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em
condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio
sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a
fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais
perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho.
(...) Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório se pode escapar adaptando-se
a ele durante o ócio. Eis a doença incurável de toda diversão. (...) O espectador não
deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação
(...). Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente
evitada (ADORNO/HORKHEIMER, 1985: p.148).
Alguns dos grandes temores do a-intelectual Lima acabariam listados, um a um, por Adorno, duas
décadas após a sua morte: a diversão mecanizada, a não necessidade de um pensamento próprio, ou
de qualquer esforço intelectual; a alienação do indivíduo dissolvido na massa, no coletivo, sem
nenhum tipo de questionamento e destituído de valores pessoais. Daí, talvez, a luta ferrenha pela
construção de um espécimen diferente de intelectual, autônomo, lúcido, atento à modernidade e às
transformações históricas que mudariam radicalmente o mundo ao longo do século XX e que, na
época, apenas começava. Gonzaga foi provavelmente o retrato ficcional mais perfeito desse
combate:
148
Desse modo era um gosto ouvi-lo sobre as coisas velhas da cidade, principalmente os
episódios tristes e pequeninos. Com uma memória muito plástica, de uma exatidão
relativa mas criadora, ele não tinha securas de floral, de cartas de arrendamento ou
sesmaria, nem tinha inclinação por tais documentos; e animava a narração pontilhando-
a de graça, de considerações eruditas, de aproximações imprevistas. Era um historiador
artista e, ao modo daqueles primevos poetas da Idade Média, fazia história oral, como
eles faziam as epopéias (BARRETO, 2001: p.577).
Segundo Augusto, apesar do a-intelectual Gonzaga não possuir uma obra, pertencia à mais fina
cepa dos historiadores artistas, capaz de contar a história com exatidão relativa, mas criadora, com
considerações eruditas e aproximações imprevistas. Como se assistisse à história de um lugar
diferente. Ou, como enunciou Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo:
Com o personagem Gonzaga de Sá aflora a consciência de que escrever literatura
moderna significa refletir sobre problemas estéticos. E, nessa perspectiva, a arte fixa-se
no pormenor resgatado pela lembrança que movimenta a memória coletiva. O resultado
não reside na construção grandiosa da nação com a paisagem anuladora da presença
humana. O historiador artista, numa via oposta às generalizações romântica e
positivista, a história das forças vencidas e desmistifica os dogmas. O recurso para
isso é o olhar moderno que desestabiliza as camadas de lugares-comuns projetados na
paisagem para nela revelar as marcas humanas; ao mesmo tempo, esse olhar freqüenta
os bastidores da modernidade e apresenta ao leitor seu material de ilusão, entre eles a
moda (FIGUEIREDO, 1998: p.213).
Quando Augusto e Gonzaga flanavam pelo Rio de Janeiro, era como se flutuassem entre a utopia e
o caos, apreendendo a modernidade a seu modo muito próprio, invariavelmente dispostos a
desestabilizar as camadas de lugares-comuns projetados na paisagem. Como as transformações
radicais em curso eram traduzidas na arquitetura da cidade, a paisagem representava quase uma
terceira identidade, ora mesclando-se, ora confrontando-se com os personagens. Não só Lima
Barreto foi um flâneur encantado com o Rio do início do século XX, como fez de Gonzaga e
Augusto personagens modernos, urbanos peregrinos. O cenário carioca (des) acolhia os
personagens:
149
Fui bom e tolerante como o mar da Guanabara, que recebe o bote, a canoa, a galera e o
couraçado; e, como ela, tranqüila sob a proteção de montanhas amigas, fiz-me seguro à
sombra de desinteressadas amizades. Quis viver muito, tive ímpetos e desejos, nas suas
manhãs claras de maio, mas o sol causticante do seu verão ensinou-me (antes que M.
Barrès mo dissesse) a sofrer com resignação e a me curvar aos ditames das coisas,
sempre boas, e dos homens, às vezes maus.
Saturei-me daquela melancolia tangível, que é o sentimento primordial da minha cidade.
Vivo nela e ela vive em mim! (BARRETO, 2001: p.565).
Esta descrição era de Augusto, enquanto Gonzaga extrapolava a idéia de conter e estar contido na
estrutura urbana, ao proferir: “Eu sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus negros, seus
mulatos, seus cafuzos e seus ‘galegos’ também... (BARRETO, 2001: p.575)”. Com esta frase, o
protagonista absorvia em si cerca de 400 anos de história, homogeneizava raças afinal, sequer
acreditava na sua existência! e se posicionava como cidadão-síntese do Rio de Janeiro (era, em
primeiro lugar, descendente dos fundadores da cidade).
Nesse contexto, cabe igualmente mencionar a melancólica descrição da paisagem carioca a que
Lima tinha acesso no manicômio da Praia Vermelha:
Dia de São Sebastião. Um dia feio, nevoento. Olho a Baía de Botafogo, cheio de
tristeza. Não acho tão bela como sempre achei. Os longes dos Órgãos não se vêem;
estão mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem o cobalto de sempre;
e as manchas dos cortes e chanfraduras nelas aparecem como chagas. O casario está
mergulhado, confuso, não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muito
baixo, cheio de fuligem, fumaça. O Pão de Açúcar está emoldurado de nuvens brancas,
parecem abaixar do cume. Vê-se o chalet do caminho aéreo. A Urca, também
chanfrada, é de uma estupidez diante daquele cenário! A Urca não muda. Lembro-me
que estive no alto. Como é diferente! O bosque é convidativo, fresco, um lago
natural no centro. As árvores ainda tinham os cipós da floresta, os pássaros chilreavam;
parecia não se estar no Rio. Não me lembro de tudo visto; mas vi a Rasa e o oceano
infinito, um pouco de Copacabana, da velha Copacabana. Um grande transatlântico sai.
Vai vagaroso, vai para o mar largo, que se estende pelas cinco partes do mundo, beija-
lhes e morde-lhes a praia. Corre perigo, mas está solto, entre dous infinitos; como diz o
150
poeta: o mar e o céu. Vejo passar por Villegaignon, através das grades do salão.
Villegaignon ainda tem muros, mas não lhes vejo as palmeiras. Acode-me pensar na
fundação do Rio de Janeiro, que a data comemora. Nesta enseada houve, segundo a
história, um combate com os franceses o das canoas. Olho-a, está um tanto crespa, e
as águas são turvas e dão ao olhar a impressão de que estão mais povoadas do que nas
outras. pescadores em faina. Canoas ainda! Herança dos índios! O remo também
vem deles! Quantas cousas, dos seus usos e costumes, eles nos legaram? Muitas! A
farinha de mandioca, do milho, certas tuberosas, nomes de rios e lugares, muito
adequados e expressivos. Hoje, a vaidade nacional batiza os lugares com os mais feios
nomes que se podem esperar. Enseada Almirante Batista das Neves! Só falta um doutor,
também (BARRETO, 1993: pp.59/60).
O Rio descrito sob a perspectiva do interno encontrava-se tristemente nublado. Lima reclamava a
ausência de contornos geográficos e virtudes naturais, embaçados pelo acúmulo de nuvens. A
precisão de minúcias da natureza impressiona, dado o cárcere provisório. Lima era capaz de ir além,
enxergar o transatlântico desenvolto na Baía de Guanabara, que passava pela ilha de Villegaignon, o
que imediatamente o remetia ao membro da nobreza francesa que tentou fundar uma utópica França
Antártica naquele pedaço de terra. Associações múltiplas: batalhas contras franceses, tonalidades
históricas, heranças indígenas. De dentro do manicômio, memória e literatura fundiam-se, no diário,
para lembrar a história da cidade em seu aniversário – culminando, inevitavelmente, no deboche: só
faltavam batizar lugares com nomes de doutores.
Cabe lembrar que no primeiro romance Lima usou Isaías Caminha para a sua crítica incansável à
violenta modernização do Rio e à assepsia arquitetônica empreendida por Pereira Passos, que pouco
a pouco descaracterizava as belezas naturais da cidade:
Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares,
delineavam-se palácios e, como complemento, queriam também uma população catita,
limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas
louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra
(BARRETO, 2001: p.565).
O capítulo V de Vida e morte de M. J. Gonzaga de intitula-se justamente “O Passeador”,
focando os dois passeadores (Augusto e Gonzaga) em andanças pelo Rio, conscientes da
151
importância da rua “para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto
o burguês entre suas quatro paredes (BENJAMIN, 1989: p.35)”. Walter Benjamin explicou como a
flânerie seria difícil sem os bulevares largos desenvolvidos por Haussmann na Paris do século XIX,
sem as passagens construídas para interligar ruas e acolher galerias pontuadas por elegantes
estabelecimentos comerciais (as charmosas passages). Na seguinte descrição do Rio de Janeiro pelo
personagem Gonzaga, é curiosa a alusão às passagens cariocas, realizada com argúcia por um
passeador mais selvagem, acostumado a uma cidade menos civilizada, tomada por uma natureza
exuberante:
Esse enxamear de colinas, esse salpicar de morros e o espinhaço da serra da Tijuca, com
os seus contrafortes cheios de vários nomes, dão à cidade a fisionomia de muitas
cidades que se ligam por estreitas passagens. A city, núcleo do nosso glorioso Rio de
Janeiro, comunica-se com Botafogo, Catete, Real Grandeza, Gávea e Jardim Botânico,
tão-somente pela estreita vereda que se aperta entre o mar e Santa Teresa. Se
quiséssemos fazer o levantamento da cidade com mais detalhes, seria fácil mostrar que
há meia dúzia de linhas de comunicação entre os arrabaldes e o centro efetivo da cidade
(BARRETO, 2001: p.210).
A comparação entre as passagens parisienses, construídas como parte integrante de um portentoso
projeto arquitetônico, e as passagens naturais cariocas a dimensão da percepção globalizada de
Lima. Importante dizer que o escritor nunca ignorou a beleza da capital francesa, pelo contrário, na
correspondência trocada com Antônio Noronha dos Santos quando este passava uma temporada em
Paris (em 1909), escreveu:
Sinto não estar em Paris contigo (...) para nos inebriarmos juntos, com auxílio desta
nossa velha e grande amizade; para nos inebriarmos de beleza, de civilização, de saber,
de cerveja, de barulho, de fêmeas e tolices, saturando-nos o bastante para virmos morrer
em paz e sossego, nesta terra, que é rica e que é pobre, que dá esperanças e dá
desânimos, cultivando o nosso jardim e criando filhos que possam ser bacharéis graves
e seguros do seu saber (BARRETO, 1998: p.217).
Lima não desprezava a tradição e a arquitetura parisienses, chegando a confessar a vontade de
conhecer a França. Rechaçava, contudo, a mera imitação de um modelo (o de Haussmann), sem um
estudo mais profundo das propriedades naturais da cidade. Criticava a descaracterização do Rio,
152
sem, entretanto, deixar de elogiar quando o resultado estético o agradava (anotação no Diário
íntimo): “Deixando a botica, fui à Rua do Ouvidor; como estava bonita, semi-agitada! Era como um
boulevard de Paris visto em fotografia (BARRETO, 1998: p.60)”. O que Lima temia era,
invariavelmente, a reprodução estúpida de padrões europeus, como se percebe em outra observação
anotada no mesmo diário: “Nota-se também que as grandes metrópoles ficam sobre rios mais ou
menos consideráveis (Paris, Berlim, Londres, New York, Viena, etc.) logo se o Rio quer ser
grande metrópole, deve ficar à margem de um rio respeitável. Poder-se-ia transformar o Maracanã
em rio respeitável (BARRETO, 1998: p.77)”.
A ironia empregada para criticar a reprodução mecânica de modelos estrangeiros no Brasil –
simbolizada pela idéia de transformar o rio Maracanã num Sena dos pobres não representava
propriamente uma recusa às mudanças velozes da época. Ele chamava atenção simplesmente para o
risco do atropelamento dos valores morais, essenciais, ideais por transformações que começavam a
privilegiar valores materiais, superficiais, mercantis. Importante sublinhar: ao se insurgir contra os
cânones de seu tempo, ao buscar o novo num outro caminho, o escritor não exaltava cegamente o
passado nem o combatia. Tentava apenas utilizá-lo sem o peso e a obrigação da tradição; ansiava
unir passado-presente de forma utilitária e não aceitava a convenção como imposição – pelo
contrário, esta lhe servia de base para uma ampla reflexão que o levaria a criar uma obra autônoma
e, em diversos sentidos, marcada por uma autenticidade rara entre os seus contemporâneos.
Gonzaga era este personagem atento à metamorfose da cidade, disposto a desmistificações variadas.
Questões como o tempo, a vida e a morte embalavam o seu raciocínio, por vezes realista, por vezes
utópico, que nas últimas páginas do romance adquire tom pessimista. Curiosa a reviravolta do perfil
psicológico do protagonista, que no final começa a demonstrar sinais de melancolia excessiva e, ao
descrever seus males, desenha um auto-retrato tragado pelo cansaço:
O que tenho, de fato, é aborrecimento, é tédio; sofro em me sentir só; sofro em ver que
organizei um pensamento que não se afina com nenhum... Os meus colegas me
aborrecem... Os velhos estão ossificados; os moços, abacharelados... Pensei que os
livros me bastassem, que eu me satisfizesse a mim próprio... Engano! As noções que
acumulei, não as soube empregar nem para a minha glória, nem para a minha fortuna...
Não saíram de mim mesmo... Sou estéril e morro estéril... (...) Passei quarenta e um
anos a girar em torno de mim mesmo, e vivendo horas cercado de imbecis...
(BARRETO, 2001: p.622).
153
Eis o mal-estar do a-social/a-intelectual diante de si e do mundo. Eis a melancólica conclusão de
uma condição levada à fronteira: a diferença o teria levado à solidão, à frustração e à esterilidade.
Cabe registrar, no entanto, um possível engano do autor: Gonzaga teria pouco mais de 60 anos,
segundo o narrador, mas nesse trecho menciona o fato de ter passado 41 em torno de si mesmo,
como se fosse esta a idade dele naquele momento mas esta idade estava muito mais próxima de
Lima Barreto (que a princípio finalizou Vida e morte de M. J. Gonzaga de perto dos 40) do que
do personagem na ficção. A sensação de abandono era aterradora:
(...) A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha covardia...
Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me ter deixado ficar
covardemente entre tais patos, entre tais perus, burros e maus, agaloados ou não,
ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de gratidão e de respeito pelo valor dos
outros... (...) O que mais me aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de
glória, de amizade, só, e quase isolado dos meus e dos que me podiam entender. Estou
abandonado, como um velho tronco desenraizado num areal... Vivi muito e espero ainda
viver alguma coisa... (...) Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais
independente... Arrependo-me! nus é uma deusa vingativa! (BARRETO, 2001:
p.624).
Na cruel retrospectiva de si, Gonzaga taxava-se de covarde, não sem culpar a burrice dos colegas de
repartição e ressaltar a incompreensão de si pelos outros. Por fim, concluía: a insistente busca de
independência (no amor, no trabalho, na sociedade, na vida intelectual) o conduzira a um
insustentável e desagradável isolamento. O que salta aos olhos nesse trecho é a mudança total de
paradigma, de discurso, que contraria todo o perfil de a-intelectual quase exemplar edificado pelo
autor até então. O modelo de indivíduo aparentemente satisfeito com a sua trajetória, apesar do não-
reconhecimento social-intelectual, era totalmente desconstruído e reavaliado pelo companheiro
Augusto:
Compreendi, então, que o temperamento de Gonzaga era de fortes paixões; que a ironia
tinha disfarçado a mágoa de não achar onde aplicá-las e surdas efervescências de raiva
deviam viver sepultadas no seu íntimo. Na forte compreensão da dignidade de sua
pessoa, e no avassalador orgulho pela sua inteligência, atrozes feridas deviam se ter
aberto nele pela vida toda; e agora, com a decadência de energia que a velhice acarreta,
não mais podia suportar-lhe as dores cruéis e gemia. Era mais uma interpretação da
154
alma do meu amigo... Concluí também que aquilo seria uma convulsão, uma inevitável
perturbação provocada pela idade, na sua calma habitual e na triste ironia que
perfumava o seu viver solitário, perturbação que mais se acentuou depois da morte do
compadre (BARRETO, 2001: p.624).
Em sua idolatria pela figura calma de Gonzaga, o narrador finalmente vislumbrava feridas abertas
pela solidão intelectual ao longo de toda uma vida. Surpreso, tentou associar a convulsão, a tristeza
súbita, à morte do compadre do protagonista (que não possuía, até então, grande importância). Ao
diagnosticar o estranhamento do amigo, Gonzaga promete evitar esses arroubos de revolta. Dona
Escolástica igualmente se assombra com o pessimismo do antes otimista Gonzaga:
Dona Escolástica continuava plácida e remansosa, mas parecia ser assim para todos,
sem escolha nem eleição. Diante da recente agitação do sobrinho e, antes, em face da
sua indiferença nirvanesca por tudo, do seu niilismo intelectual, ela sempre procedeu
como a paisagem: ficou muda, ficou muda sem uma palavra para animá-lo, sem um
conselho para sossegá-lo (BARRETO, 2001: p.625).
O narrador destacava o niilismo intelectual do protagonista e, daí para frente, observaria o veloz
apagar de uma vida, até presenciar a morte do amigo, tomado de uma melancolia até então inaudita.
Concretizava-se o título da obra: vida e morte, como que equivalentes, equalizadoras. Mais um a-
intelectual delineado por Lima Barreto tinha o seu epílogo narrado, mais belo e utópico, no entanto,
do que o humilhado Isaías e menos dramático do que o triste fim antecipado no tulo do romance
que enfoca Policarpo Quaresma, ou do desesperado Vicente, enterrado no cemitério dos vivos.
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo estabeleceu precisa associação entre o autor e seus
personagens intelectualizados:
À medida que ‘cai de sonho em sonho’, tecendo dramaticamente sua trajetória de
intelectual, numa mescla de angústia e realização, seus romances projetam a esperança
quando erguem os sonhos de Isaías, Policarpo e Gonzaga, todos intelectuais marginais,
estranhos aos círculos dominantes e, por conseqüência, melancólicos diante da
aparência de êxito que a sociedade lhes oferece (FIGUEIREDO, 1997: p.400).
Os três protagonistas citados, mais o Vicente de O cemitério dos vivos, projetavam esperanças e
sonhos sem camuflar as agruras vividas na vida prática devido à opção pela marginalidade. A-
155
intelectuais utópicos, porém melancólicos, provavelmente devido ao afã de autonomia, todos
amargaram, pouco a pouco, a falta de saída para o impasse em que se meteram, tamanho o
isolamento, a solidão, em alguns casos a loucura. Até Gonzaga de Sá, aparentemente menos
insatisfeito do que os outros, mais bem-resolvido na condição marginal, resvalava no final.
Percebe-se que, mesmo na passagem mais maquiada da escrita de si para a literatura de si, Lima
Barreto não se automitificava. Eram todos, criador e criaturas, excluídos do perfil tradicional de
intelectual celebrado pela sociedade, a priori imbuídos de um “riso olímpico” e de uma “ironia
superior”, mas punidos pelos nefastos efeitos decorrentes da a-sociabilidade/a-intelectualidade.
Uma breve digressão, a essa altura, pode vir a iluminar a discussão em torno de alguns dos sublimes
ideais do autor. Em A lição do mestre, novela escrita em 1892 por Henry James, mestre St. George
trava um diálogo com o discípulo Paul sobre as regras a que deve se submeter um sincero aspirante
a escritor. Em pauta está, sobretudo, a opção do casamento, isto é, os dois discutem se Paul deve ou
não cortejar a bela senhorita Fancourt:
O artista, o artista! Ele não é também um homem? St. George fez uma grande
careta.
Eu penso que, em geral, não. O senhor sabe, tão bem quanto eu, o que ele deve fazer:
a concentração, o acabamento, a independência pela qual ele deve lutar a partir do
momento em que ele quer que seu trabalho seja realmente decente. Ah, meu jovem
amigo, suas relações com as mulheres, em particular com aquela com a qual está mais
intimamente preocupado, estão à mercê do fato condenatório de que enquanto ele não
pode, segundo a natureza das coisas, ter mais que um padrão, elas têm por volta de
cinqüenta. É isto que as torna tão superiores St. George acrescentou divertido.
Imagine um artista com uma mudança de padrões tal como o senhor muda de camisa ou
de jogo de jantar. Fazê-lo, fazê-lo e torná-lo divino: é a única coisa que ele tem que
pensar. ‘Está feito ou não?’ é a sua única pergunta. E não está: ‘Está feito tão bem
quanto permite uma solicitude adequada à minha querida família?’ Ele nada tem a ver
com o relativo, ele tem a ver somente com o absoluto; e uma querida e pequena família
pode representar uma dúzia de parentes.
– Então o senhor não lhe concederá as paixões e os afetos comuns a todos os homens? –
perguntou Paul.
156
Ele não tem uma paixão, uma afeição que inclui todo o resto? Além disso, deixe-o
ter todas as paixões que quiser, se somente ele souber manter a sua independência. Ele
deve ser capaz de ser pobre. (...)
Que posição falsa, que condenação do artista, reduzi-lo a um monge sem privilégios
que pode produzir seu efeito apenas desistindo da sua felicidade pessoal. Que
condenação da arte! – continuou Paul com voz trêmula.
Ah, o senhor não imagina por acaso que estou defendendo a arte? ‘Condenação’? Eu
acredito que sim! Felizes as sociedades nas quais ela não apareceu; pois quando a arte
surge, aparece nelas uma dor que consome, uma corrupção incurável no seu peito. Com
toda a certeza, o artista está em uma falsa posição! Mas pensei que estivéssemos
pressupondo tudo isso (JAMES, 1997: p.64).
O trecho é significativo para a compreensão da utopia de Lima Barreto: o seu ideal de artista. Na
novela, St. George primeiramente vaticina: somente com independência é possível produzir um
trabalho decente. E chama atenção para o casamento como inimigo da autonomia assim como o
casamento como negação da obra constituiu idéia recorrente em Lima (tema explorado no capítulo
anterior). Em seguida, St. George vai além, ao dizer que o escritor tem a ver somente com o
absoluto, o que remete de imediato a Lima, o senhor do absoluto – do latim absolutu, uma sucessão
de significados deste vocábulo remete a atributos e ideais do escritor: que não depende de outrem
ou de uma coisa; independente: sem restrições; irrestrito, infinito; não sujeito a condições;
superior a todos os outros; único, firme; (Filosofia) diz-se, propriamente, do que existe em si e/ou
por si. Lima demonstrava várias dessas características em si senão concretamente, idealizadas
ao mesmo tempo que se revelava inábil para compreender-se em relação à vida, à cidade, ao
mundo. Afinal, ter a ver com o relativo implicaria concessões, restrições, dependências e condições
a que o a-social/a-intelectual esteve pouco disposto. Sua trajetória deixa entrever que por muito
tempo acreditou existir em si e/ou por si. Quando se comparava, relativizando-se em relação ao
ambiente social-intelectual, por um lado buscava uma espécie de ontologia absoluta, como se fosse
possível a vitória desse ser autônomo; por outro lado, ao longo da vida, se apercebia da sensação de
falência desse modelo próprio, belo, ideal.
Na novela de Henry James, o aprendiz de escritor Paul rebela-se contra o radicalismo da proposta
do mestre: discorda, a princípio, da redução do artista a um monge sem privilégios, capaz de ser
157
pobre, condenado à infelicidade pessoal em prol da literatura. Mas St. George
17
insiste e é
contundente ao afirmar que, em face da arte, surge na sociedade uma dor que consome, uma
corrupção incurável, que coloca o artista em uma falsa posição (falsa no sentido de utópica, de
difícil convivência com o real). Pode-se pensar que Lima gastou uma vida de quatro décadas na
construção desta posição, munindo-se das ferramentas a seu alcance num país tão distante do eixo
europeu, recém-saído da escravidão, engajado numa trôpega busca de identidade. Da renitente
frase-síntese (Ah! A Literatura, ou me mata ou me o que peço dela). Nos escritos íntimos, ele
demonstrava insatisfação quanto à concretização desse ideal de artista – um ideal, aliás, que remete,
sob alguns aspectos, ao espírito romântico que imperou no século XIX: embutidos o culto ao
indivíduo, os ideais libertários (e abolicionistas), a independência das convenções, a valorização dos
direitos e da dignidade do homem. Nesse contexto, cabe registrar que o filósofo Jean-Jacques
Rousseau, uma das inspirações dos românticos, é citado em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá:
– Se eu pudesse – aduziu – se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de
ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência,
de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente.
Havia de saturá-la de um individualismo feroz, de um ideal de ser como aquelas
trepadeiras de Java, amorosas de sol, que coleiam pelas grossas árvores da floresta e vão
por elas acima mais alto que os mais altos ramos para dar afinal a sua glória em
espetáculo (BARRETO, 2001: p.615).
Esse desejo de ser Rousseau é explicitado no romance no momento em que Gonzaga e Augusto
conversam sobre o desinteresse das elites pelos pobres e humilhados no Brasil. Gonzaga chega a
dizer: “Não sei por que essa gente [os pobres brasileiros] vive, ou antes, por que teima em viver! O
melhor seria matarem-se, ao menos os princípios químicos dos seus corpos, logo às toneladas, iriam
fertilizar as terras pobres (BARRETO, 2001: p.614)”. Esta frase era dita com fúria, mas em seguida
ele citava Rousseau, reduzindo o radicalismo, vislumbrando a esperança de uma solução para
reduzir o sofrimento das classes desprivilegiadas: que fossem capazes de pensar em si mesmos, não
se subjugassem cegamente, demonstrassem coragem e um individualismo feroz, sendo capazes de
deixar de lado a doçura. Em miúdos, que lutassem! Porém, assim como Augusto invocara guerras
17
O desenrolar do romance é surpreendente: apesar de todos os conselhos de St. George a Paul, o mestre
acaba se casando justamente com a moça que o discípulo queria cortejar. Paul, arrasado, contenta-se com
a literatura. Resta a vida: o mestre construiu o discurso do ideal de artista pensando em afastá-lo da
senhorita, ironicamente, ou foi apenas uma coincidência?
158
sem coragem para empreendê-las, observa-se que as batalhas de Lima eram travadas mais no
domínio das palavras, da literatura e, dadas as críticas por vezes ultra-objetivas e agressivas
contidas nos escritos, esta não se configurava luta menos heróica, afinal, ele sofreria as
conseqüências desse embate no cotidiano de tons trágicos. A violência das idéias parecia compensar
a não-participação na violência no dia-a-dia de movimentos e revoluções. O espaço literário acolhia
toda a virulência do revoltado.
A julgar por sua biblioteca de 800 volumes (listada, item por item, por Francisco de Assis
Barbosa), a formação do a-intelectual Lima Barreto foi das mais vastas. Entre os títulos, figuravam
grandes clássicos de todos os tempos: Dante, Cervantes, Camões, Voltaire, Descartes, Jean-Jacques
Rousseau, Victor Hugo, Dumas (pai), Tolstoi, Zola, Dostoiévski, Flaubert, Balzac, Théophile
Gautier, Taine, Renan, Jules Verne, Nietzsche, Schopenhauer etc. Nos diários, o autor citou rios
deles: Jules Gaultier, Flaubert, Dostoiévski, Cervantes, os irmãos Jules e Edmond Goncourt, Renan,
Plutarco, Nietzsche... A diversidade de autores, sobretudo franceses, e representantes de
importantes movimentos literários indica o caminho tomado por Lima: servia-se do passado, da
história, da história literária, para, a partir daí, nietzschianamente, abrir uma brecha em si para a
não-história, mais além, para a não-literatura (novamente no sentido da negação da literatura
canônica, não da literatura tout court). Assim, o a-literato, o artista (ideal) era capaz de trabalhar,
criar, produzir arte, com liberdade. Somente neste a-lugar era possível exercer a a-intelectualidade.
Lima expôs algumas das suas mais altas idéias sobre arte e literatura na conferência “O destino da
literatura”, onde começava por citar Tolstoi, que por sua vez citava o filósofo alemão Baumgarten e
a sua definição objetiva da arte: ele “a definia como tendo por objeto o conhecimento da Beleza,
sendo que esta é o perfeito ou o absoluto, percebido pelos sentidos e tem por destino deleitar e
excitar este ou aquele desejo nosso (BARRETO, 1998: p.387)”. A partir da enunciação, o escritor
desenvolvia um raciocínio na direção de definir a beleza:
A Beleza, para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários,
do caráter essencial de uma idéia mais completamente do que ela se acha expressa nos
fatos reais.
Portanto, ela não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das
partes, como querem os helenizantes de última hora e dentro de cuja concepção muitas
vezes não cabem as grandes obras modernas e, mesmo, algumas antigas.
159
Não é o caráter extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale. É a
substância da obra, não são as suas aparências.
Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos
externos de perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de
jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal
importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em
face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta de
vida (BARRETO, 1998: p.388).
Lima ressaltava a substância da obra, contra as aparências, a fachada. Endereçava farpas aos
helenizantes, numa crítica clara a movimentos que tentaram reeditar costumes e idéias da Grécia
antiga, alardeando-as como novidades mais adiante, citaria, ironicamente: “Saint-Beuve disse
algures que, de cinqüenta em cinqüenta anos, fazíamos da Grécia uma idéia nova. Tinha razão
(BARRETO, 1998: p.388)”. Ao demonstrar a sua tese mais didaticamente, Lima mencionava a
trajetória de Raskolnikoff, protagonista de Crime e castigo, de Dostoiévski, para mostrar como a
história de um miserável que cometia um crime hediondo podia ser bela:
Nisso tudo que é resumida e palidamente a obra do grande escritor russo, não nada
do que comumente entre os escritores mais ou menos helenizantes chamam belo; mas,
se assim é, onde está a beleza dessa estranha obra? – pergunto eu.
Está na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter
saliente da idéia que o lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem perante a
nossa consciência, o assassinato, nem mesmo quando é perpetrado no mais infinito e
repugnante dos nossos semelhantes e tem por destino facilitar a execução de um nobre
ideal; e ainda mais: no ressumar de toda a obra que quem o pratica embora obedecendo
a generalizações aparentemente verdadeiras, executado que seja o crime, logo se sente
outro – não é ele mesmo.
Mas esta pura idéia só como idéia, tem fraco poder sobre a nossa conduta, assim
expressa sob essa forma seca que os antigos chamavam de argumentos e os nossos
Camões escolares dessa forma ainda chamam aos resumos, em prosa ou verso, dos
160
cantos dos Lusíadas. É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a
arte, literatura salutar, tem o poder de fazê-lo, de transformar a idéia, o preceito, a regra
em sentimento; e mais do que isso, torná-lo assimilável à memória, de incorporá-lo ao
leitor, em auxílio dos seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica (BARRETO,
1998: p.390).
Nota-se que Lima não destituía a obra literária dos seus atributos externos de perfeição de forma,
de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular. Não se revoltava contra a beleza formal,
apenas reclamava conteúdo, isto é, a conjugação ideal de ambos em prol de um pensamento de
interesse humano, de questões de nossa conduta de vida. Assim, o crime de Raskolnikoff, senão era
belo em si (dada a atrocidade), encerrava fatos, argumentos, complexidades que traziam à tona
questões existenciais de grande relevância. A arte, a literatura salutar, possuía essa vocação:
transformar o pensamento em sentimento, aproximando-o do leitor.
Essa teoria literária explicada desta forma, à luz do século XXI, soa quase simples, clara. Porém,
Lima lutava na época contra uma maioria de literatos brasileiros apegados ao rebuscamento formal,
ao apuro gramatical que, uma vez perfeito, podia, em alguns casos, quase prescindir do conteúdo (a
“arte pela arte”). No artigo “Machado de Assis e Lima Barreto”, publicado no Jornal do Brasil, em
7 de maio de 1981, Tristão de Athayde reviu a recepção crítica das obras de Lima, tecendo um mea
culpa que dá a dimensão da inadaptação do estilo do escritor aos padrões literários então vigentes:
Lima Barreto foi um impurista nato (irreverente com o estilo “clássico” dos médicos
literatos do seu tempo) e como tal foi a fonte mais típica da espontaneidade coloquial e
da oralidade de um estilo, hoje fartamente representativo, não das elites praieiras de
Ipanema, mas das elites culturais dos mais requintados representantes da autêntica elite
literária. Aquele “desleixo” que eu criticava, em 1919, no estilo de Lima Barreto, não
era, aliás, uma ignorância da linguagem culta, nem muito menos qualquer tipo de
esnobismo, e sim o sinal espontâneo do homem das massas, dos pingentes dos
subúrbios, do povo-povo, sem qualquer preocupação de exotismo lingüístico, mas típico
de suas origens populares e de sua predileção natural. Esse encontro de dois tipos
absolutamente opostos de temperamentos psicológicos, de inclinações sociais e de
estilos, mas no mesmo plano de genialidade estética, é um fenômeno altamente
representativo dessas ligações viscerais entre a mais alta literatura do tempo e os
fenômenos sociais mais universais, como esse de massas e elites. Talvez seja esse o
161
acontecimento mais simbólico dessa simbiose entre literatura e vida, que representa,
implicitamente, um dos sinais próprios da evolução de um povo. E do seu progresso
imanente. (...) Pois foi no sentido de uma superação das barreiras entre elites e massas,
não por um processo de antagonismo revolucionário violento, mas pela aproximação de
duas tendências opostas, pela via do gênio criador e da cultura, que esse é sem dúvida
um dos fenômenos mais impressionantes de nossa história literária e política
(ATHAYDE, 1997: pp.508-509).
Pode-se dizer que a literatura de Lima Barreto foi gradativamente absorvida em sua qualidade
estética, sendo coroada por inúmeros depoimentos de críticos ao longo do século XX. No artigo
citado, Tristão de Athayde toca num ponto de extrema relevância: além do reconhecimento da
excelência do autor e da sua posição avant la lettre, fala da obra como espécie de amálgama entre
massa e elite, entre a literatura popular e a erudita, que, de tão unidas, resultam na simplicidade
refinada de romances como Vida e morte de M. J. Gonzaga de . E se isto simbolizava justamente
a simbiose entre literatura e vida era provavelmente porque Lima encarnava, em si, na sua própria
trajetória, a mistura: pobre e negro, estudara num colégio de ricos e brancos; morava no subúrbio,
mas freqüentava cafés literários aonde populares da sua classe dificilmente iam, senão para servir à
burguesia. O escritor equilibrou-se entre os extremos, fossem concretos ou ideais: circulou entre
miseráveis-ricos, negros-brancos, analfabetos-literatos, subúrbio-zona sul (a da época), passado-
presente. E, se representou um dos fenômenos mais impressionantes de nossa história literária e
política, foi certamente pela ousadia e coragem de estatelar estas oposições, transformando-as
dialeticamente em unidade literária. Uma unidade vazada por paradoxos e ambigüidades que, de tão
transparentes, feriam a fachada da época.
Basta ler a observação escrita pelo autor no Diário íntimo sobre o seu caro protagonista: “Apesar de
tudo, mesmo depois das linhas acima, ainda não tenho uma opinião segura sobre o Gonzaga de Sá:
doido ou ajuizado, inteligente ou parvo? Não sei (BARRETO, 1998: p.77)”. Essa dúvida constante
do personagem, e de si, simbióticos na vida-literatura, foi o ponto fraco atacado por seus
contemporâneos; por outro lado, representou o ponto forte na comunicação com o leitor. Vida e
morte de M. J. Gonzaga de , entre a inteligência e a excentricidade (que na época facilmente
passava por doidice) do protagonista, é romance exemplar da teoria do autor: a transformação de
pensamento em sentimento, com auxílio de uma técnica bastante depurada àquela altura (técnica
esta que provavelmente se aperfeiçoaria, não fosse a morte prematura do escritor).
162
Para Lima, a literatura era, acima de tudo, amalgâmica:
(...) mais do que nenhuma outra arte, mais fortemente possuindo essa capacidade de
sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve, a arte
literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar
de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre os
homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia
entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas, aparentemente
mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes no sofrimento da imensa
dor de serem humanos.
É por e não nos ideais arcaicos e mortos, como este variável e inexato que a nossa
poesia, tanto velha, como nova, tem por hábito atribuir à Grécia. (...) Mesmo que a
Grécia o que não é verdade tivesse por ideal de arte realizar unicamente a beleza
plástica, esse ideal não podia ser o nosso, porque, com o acúmulo de idéias que trouxe o
tempo, com as descobertas modernas que alargaram o mundo e a consciência do
homem, e outros fatores mais, o destino da Literatura e da Arte deixou de ser
unicamente a beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser cousa muito diversa
(BARRETO, 1998: pp.390-391-392).
A arte literária era tão contagiante que saía da esfera do individual para o universal, estabelecendo
um elo entre os seres humanos: uma arte harmonizadora e soldadora de almas. Ou seja, possuía a
função de amálgama das diferenças sociais, históricas, raciais, intelectuais. Daí a insistência em
não se reforçar o culto à antiga cultura grega, nem a ideais arcaicos e mortos. Desvela-se nesse
trecho o evidente ataque aos parnasianos que tomaram a cena literária nacional entre as últimas
duas décadas do século XIX e a primeira do século XX, engajados numa arte anti-romântica, mais
objetiva, que, em busca de uma beleza perfeita, inspiravam-se na Antigüidade grega como modelo –
e também como tema (caso de Olavo Bilac). Como bem resumiu Antonio Carlos Secchin sobre o
movimento:
Cultores da arte pela arte, desprezavam as expressões populares e folclóricas, daí
advindo a fama, não injustificada, de que habitavam ‘torres de marfim’, inacessíveis ao
vulgo. Esmeravam-se num descritivismo que teria o mérito da ‘objetividade’ contra os
transbordamentos líricos, com poemas sobre taças, leques, vasos tudo o que o espírito
163
modernista, pouco mais tarde, acusaria de futilidade e decorativismo gratuito
(SECCHIN, 2001: p.38).
Lima criticava este exagero formal, a busca da arte pela arte, a falsa objetividade, sem contar a idéia
elitista da torre de marfim para um escritor tido como fator de união entre massa e elite. Para ele, a
definição de arte ultrapassava todas as bordas:
A arte, incluindo nela a literatura, continua Guyau [o filósofo Jean Marie Guyau], “é a
expressão da vida refletida e consciente, e evoca em nós, ao mesmo tempo, a
consciência mais profunda da existência, os sentimentos mais elevados, os pensamentos
mais sublimes. Ela ergue o homem de sua vida pessoal à vida universal, não pela sua
participação nas idéias e crenças gerais, mas também ainda pelos sentimentos
profundamente humanos que exprime”.
Quero dizer: que o homem, por intermédio da Arte, não fica adstrito a preceitos e
preconceitos de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além
disso, mais longe que pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar a sua
vida na do Mundo. (...) Portanto meus senhores, quando mais esse poder de associação
for mais perfeito; quanto mais compreendermos os outros que nos parecem, à primeira
vista, mais diferentes, mais intensa será a ligação entre os homens, e mais nos
amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não a coletiva como
a individual. A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e idéias, sob a forma de
sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre, portanto, para
o seu acréscimo de inteligência e de felicidade.
Ela sempre faz baixar das altas regiões das abstrações da Filosofia e das inaccessíveis
revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e
interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes
aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos
outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas
épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo,
quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina (...).
164
Fazendo-nos assim tudo compreender; entrando no segredo das vidas e das cousas, a
Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos
semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando dos
fúteis motivos que nos separam uns dos outros. Ela tende a obrigar a todos nós a nos
tolerarmos e a nos compreendermos; e, por aí, nós nos chegaremos a amar mais
perfeitamente na superfície do planeta que rola pelos espaços sem fim. O Amor sabe
governar com sabedoria, e acerto, e não é à toa que Dante diz que ele move o Céu e a
Estrela.
Atualmente nesta hora de tristes apreensões para o mundo inteiro, não devemos deixar
de pregar, seja como for, o ideal de fraternidade, e de justiça entre os homens e um
sincero entendimento entre eles.
E o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de
poucos a todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina
(BARRETO, 1998: pp.393-394).
Lima parecia ver na literatura o caminho da afinação de diferenças, ao enunciar que o homem, por
intermédio da Arte, não fica adstrito a preceitos e preconceitos de seu tempo, de seu nascimento, de
sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais longe que pode, para alcançar a vida total do
Universo e incorporar a sua vida na do Mundo. A literatura era a via segura da adaptação, da
inserção de si, do individual, no universal. E vice-versa: com essa dissolução no coletivo, o homem
ganharia, em amor, solidariedade, inteligência, no campo individual. Mais do que as abstrações
da filosofia e as revelações da , a literatura tinha o poder de aproximar as verdades das pessoas,
unindo oprimidos e poderosos, negros e brancos, pobres e ricos. A literatura como fonte de
tolerância; como missão quase divina.
Na posição de a-social/a-intelectual, o escritor, que se declarava cético e não freqüentava nenhum
grupo religioso, atribuía à literatura o ideal quase divino de união da espécie humana. A literatura
ocupava uma dimensão paralela, acessível, mas bastante idealizada, onde o inadaptado Lima
transitava com autonomia. Impossibilitado de criar a sua própria república, a sua utopia na vida
prática, ele a erguia e a fazia funcionar no domínio purista do papel em branco. Na concretude do
cotidiano, contudo, ao concentrar em si questões sociais, raciais e políticas que não se encaixavam
nos padrões burgueses, brancos e abastados da sociedade, tinha o trânsito interrompido.
165
Inconformado, contribuía muitas vezes para a exacerbação dessa situação. A sociedade chic da
Belle Époque não aceitaria facilmente o alcoólatra desbocado que se apresentava sujo e mal vestido,
em desacordo com os padrões; a intelligentsia fecharia os círculos para o a-intelectual
independente, disposto a qualquer esforço para reforçar cada vez mais a autonomia, o a-beletrismo e
o antidandismo.
Em Diário íntimo, Lima recolheu uma citação que funcionava como auto-reflexo: “No Peau de
Chagrin, de Balzac, o seguinte pensamento muito semelhante a um de Nietzsche: L’homme est
un bouffon qui danse sur des précipices [O homem é um bufão que dança sobre os precipícios]
(BARRETO, 1998: p.143)”. Pode-se pensar em Lima como protagonista desta imagem: o bufão que
dançava sobre precipícios, atirava-se ao risco, zombeteiramente, como se habitasse uma dimensão
paralela e, por este desprendimento social-intelectual, pelo riso olímpico e ironia superior, fosse
capaz de desmistificar convenções do seu tempo. Munido de algumas faces do espírito romântico,
tendo claramente em Rousseau uma inspiração filosófica, combateu toda forma de tradicionalismo
literário e foi precocemente moderno em seu estilo e percepção estética do mundo. Em busca de
autonomia e autenticidade, armou um caminho avesso a rótulos e movimentos, de difícil encaixe.
Na recusa eterna a ser mero soldado de guerras que não lhe diziam respeito, encarnou este bufo
implicante, satírico, a flanar por precipícios sobre os quais nem sempre tripudiou. O ápice ou vão
maior dessa epopéia solitária foi provavelmente o hospício, que radicalizaria a escrita de si e a
literatura de si, configurando uma literatura da urgência que esgarçaria os limites do real e do
humano – tema do próximo, conclusivo capítulo.
166
5.
LITERATURA DA URGÊNCIA: A EXPRESSÃO DO INDIZÍVEL
A literatura da urgência estrutura-se numa espécie de desdobramento da escrita de si, realizada sob
estado de emergência. Uma breve incursão etimológica explica a opção pelo termo: derivado do
latim urgentia, alude a uma literatura que urge e se faz necessária, em caráter emergencial, sendo
criada exclusivamente para fazer frente a uma situação determinada. O termo urgência remete
imediatamente ao sinônimo emergência, que possui ampla significação: situação crítica;
acontecimento perigoso ou fortuito; incidente. Na área dica, a palavra ganha acepção de
tonalidade mais grave: situação mórbida inesperada, e que requer tratamento imediato (segundo o
dicionário Aurélio).
Diário do hospício insere-se nesta idéia de literatura da urgência sob diversos desses aspectos.
Constitui-se de escritos produzidos durante a internação de Lima Barreto no hospício das décadas
de 1910-20, embutida toda a carga de delito, preconceito e aprisionamento. Desta experiência
traumática não se pode eximir o caráter de imprevisto, de incidente na trajetória de um alcoólatra
sem quadro psiquiátrico, necessitado, porém, de tratamento médico imediato para os delírios
provocados pelo alcoolismo e para a degeneração física decorrente do vício (cabe lembrar que nos
dias de hoje um paciente como Lima seria internado numa clínica de reabilitação, sem a obrigatória
convivência com psicóticos).
Na época, o ingresso do escritor no manicômio sob o aval da família, que o encarcerou sob a égide
do Estado sem possibilidade de recurso e integralmente dependente da psiquiatria para diagnóstico,
tratamento e alta, configurou uma situação-limite que o levou ao extremo da condição emergencial:
a vivência no círculo vicioso vida-loucura-morte, sendo a escrita um artifício de função dialética. A
literatura da urgência era uma conseqüência imediata da situação-limite vivida pelo autor: um fator
de união de elementos conflitantes, ou mesmo opostos, provisoriamente amalgamados em fôrma
literária. Por se tratar de uma experiência radical imposta por um poder externo (pela conjunção
167
família-estado-psiquiatria), esta escrita continha um tom claramente reativo, endereçada ao complô
de familiares e poderes institucionais (polícia e instituição psiquiátrica) autorizados a encarcerá-lo.
Desta forma, consistiu de uma tentativa de autocompreensão, diante de si mesmo e também de seus
detratores.
Os manuscritos realizavam uma reconstituição de si que, para ser completa, incluiu, de forma mais
ampla, a reflexão sobre um trecho tortuoso da história da loucura: a prática da internação de
indivíduos que acolhiam em si variados rótulos não-encaixáveis no mito da felicidade social
pobres, negros, alcoólatras, enfim, sujeitos não assimilados pelo sistema social vigente. Assim, esta
escrita do extremo funcionava como forma de transcendência de um cotidiano que massacraria o
autor caso lhe fosse negado o direito à experiência literária.
É amplo o espectro de significações contido na literatura da urgência engendrada por Lima.
Constituiu-se, por exemplo, de uma literatura do sofrimento, pois sequer existiria sem a dor
específica vivenciada pelo escritor na situação específica; uma dor que no momento preciso da
criação não se revelava existencial, renitente, mas pontual e provisória, no contexto dos austeros
limites impostos à sua rotina. Tratava-se ainda de uma escrita da revolta, que fazia explodir a
conturbada relação escritor-instituição, ou melhor, inscrevia no diário íntimo a denúncia do autor
contra a instituição, o seu círculo de poderes e vícios. Destaca-se, portanto, o caráter de insurgência
contra mecanismos de controle do corpo: ao praticar a leitura e a escrita no hospício, Lima saía da
esfera mecânica e automatizada dos ritos típicos do hospital psiquiátrico: o banho, as refeições, o
passeio ao sol. Obtinha habeas corpus temporário no ritual diário e desviava o corpo o olhar, o
raciocínio, a mão empenhada na feitura dos manuscritos para prática rara no domínio da
psiquiatria: o exercício literário como reforço de uma subjetividade ameaçada.
A princípio, pode-se pensar que grandes escritores da história da literatura escreveram por urgência,
no mínimo por angústia, um dos norteadores de boa parte da história das artes. A literatura da
urgência, no entanto, vai além nesse preceito, ao delimitar o momento exato da escrita como
emergência, situação-limite, diferentemente do escritor que escreve regularmente no dia-a-dia
comum, sem limitações que o impeçam de se libertar de uma situação opressora. Desta forma, a
angústia e outras emoções / idéias que geram a literatura em condições normais de vida pairam
como nota de fundo, onipresentes, permanentes, inspirando um questionamento da existência como
um todo. A literatura da urgência, por outro lado, refere-se unicamente ao estado que atira o sujeito
ao risco, à fronteira limítrofe com a morte seja por meio da loucura, de uma doença terminal, de
168
uma situação de cárcere ou de outros tipos de experiências radicais determinantes de uma específica
produção literária. Por esta razão, seria possível ampliar o estudo deste tipo de literatura, incluindo-
se neste conceito, por exemplo, a obra de Jean Genet, escrita em sua maior parte no dia-a-dia num
presídio francês, como reação à sociedade que o aprisionava; ou Cytomégalovirus, o diário da
hospitalização de Hervé Guibert, jornalista, escritor, roteirista e fotógrafo francês, morto (de Aids)
em 1991, que converteu a experiência de soropositivo internado no hospital em obra literária. A
tarefa extrapolaria, no entanto, o escopo desta tese.
Foi numa zona suspensa da realidade cotidiana, num espaço postiço dominado por uma família
postiça, que Lima Barreto optou por escrever para não morrer e por estabelecer uma relação de
soberania em relação à morte, dispondo integralmente dela e, por conseqüência, de si, sendo
integralmente poder (segundo Blanchot, citado no capítulo 1). Cabe lembrar que em Diário do
hospício o autor tocou no tema morte e prometeu suicídio no caso de uma terceira internação.
Porém, a vivência nesse vácuo contagiado pela loucura era justamente o fator de fortalecimento
dessa escrita, que funcionava como literatura da salvação: redimia o escritor de uma realidade
opressora que poderia levá-lo, literalmente, à morte – o diário patenteia claramente este risco.
Não por acaso a sentença-chave de Lima Barreto foi escrita exatamente no diário do manicômio:
Ah! A Literatura, ou me mata ou me o que peço dela. A literatura ou a morte: qual a saída?
Provavelmente, esta escrita que se estabeleceu como saída de emergência, antídoto ímpar. Uma
escrita que encontrou o seu lugar entre os dois extremos, a literatura (vida) e a morte, servindo ao
autor como suporte para o desabafo, a expiação da angústia, até que criasse novamente condição
para o fazer literário regular, sem as marcações incidentais da máquina psiquiátrica na condução
diária do corpo.
Na qualidade de escritor com obras publicadas, lidas e criticadas (por vezes elogiadas) antes da
temporada no hospital psiquiátrico, Lima reunia anotações com a intenção de transformar o material
em romance (O cemitério dos vivos). Eram observações-reflexos da realidade abrupta, escritos em
jorros e fragmentos, como se pode apreender da leitura dos manuscritos: notas escritas a lápis em
pedaços de papel, com caligrafia de difícil compreensão, compondo uma apresentação estética que
reforça a emergência dessa escrita o que não impede que esta literatura da urgência apresente
qualidade em diversos trechos. Afinal, o louco que escrevia era também e principalmente autor. Ao
aliar a condição de interno e a vocação literária, essa escrita de si emergencial possuía
multifunções: confissão de si e evocação do não-dito; registros de pensamentos, argumentos e
169
meios de se lidar com a adversidade (a internação no hospício), como forma de compilação do já-
dito; diário íntimo; rascunho para o futuro romance; documento de grande relevância na memória
da psiquiatria.
Em Diário do hospício, este eu que embutia provisoriamente a função de interno e de escritor dava
o norte, era onipresente (não onipotente), ampliando questões pessoais para compor uma
observação do coletivo que resultaria num documento histórico de grande importância para a
compreensão do hoje ultrapassado sistema manicomial. A descrição realista do dia-a-dia dos
pacientes, funcionários e médicos numa comunidade artificialmente construída em torno do
tratamento da loucura constituiu, afinal, um exemplar de literatura não-oficial da psiquiatria,
contendo informações e sutilezas freqüentemente ausentes dos prontuários médicos. Era a medicina,
em toda a sua autoridade e com o peso cientificista da época, vista e criticada pelo olhar do interno;
um interno desapropriado da cidadania, em posição desprivilegiada na cadeia de poder, com o corpo
compulsoriamente detido e inserido no processo homogeneizador de quereres e poderes individuais.
Diário do hospício era, portanto, a inversão total da idéia do panóptico. Basta lembrar que este
complexo mecanismo de poder foi inventado pelo jurista inglês Jeremy Bentham no final do século
XVIII justamente para centralizar o olhar e o controle sobre os corpos em instituições os grandes
projetos de reorganização das prisões européias no século XIX baseavam-se nesse modelo. Foucault
descreveu-o com minúcia:
O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui
grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é
dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm
duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra,
dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então
colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um
condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, pode-se
perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas
celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um
vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia (FOUCAULT, 1988: p.210).
Para Foucault, fazer a história dos espaços desvelava a história dos poderes, que o controle
encontrava-se inscrito na própria arquitetura. Por isto, ele resgatou a idéia-base da invenção de
170
Bentham para concluir: estar na mira do olhar de um inspetor significava perder a capacidade de
fazer o mal e quase perder o pensamento de querê-lo, ou seja, não poder e não querer. Lima pôde e
quis inverter o processo perverso do controle no hospício, ao escapar da vigilância para escrever o
que bem entendesse no espaço branco do papel este espaço infinito, autônomo, intocado pela
psiquiatria. Não indício de que os manuscritos fossem lidos por funcionários, tampouco pelo
alienista que por vezes cedia o próprio gabinete para Lima.
Em Doença mental e cidade: o hospício Pedro II, Francisco Carlos da Fonseca Elia efetuou
significativo levantamento das leis que regiam o hospício da Praia Vermelha para compreender os
mecanismos de vigília dos internos: “Embora a arquitetura do prédio do hospício não se ajuste ao
modelo panóptico de vigilância, nota-se no Pedro II o mesmo tipo de preocupação com o controle
permanente dos seus ocupantes e a necessidade de mantê-los ocupados não recreativamente, mas
também, e de preferência, em atividades laboriosas (ELIA, 1996: pp.20-21)”. Dos Estatutos do
hospício Pedro II ele extraiu a regra básica: “Os alienados serão vigiados assiduamente, de forma
que estejam sempre limpos e asseados e se evitem os perigos de altercação e distúrbios (apud ELIA,
1996: p.21)”.
A norma era asséptica e reguladora de sentidos num asilo psiquiátrico cujo projeto arquitetônico
baseava-se em modelos franceses de confinamento e dominação dos internos bem menos radicais
do que o panóptico. O projeto original, de autoria de Domingos Monteiro, inspirava-se no hospital
de Charenton, construção do século XVII inserida no contexto da Grande Internação durante o
classicismo, posteriormente aproveitada por Esquirol como centro de tratamento de alienados. O
resultado final, desenvolvido a partir desse plano com contribuições de Joaquim Cândido Guillobel
e José Maria Jacinto Rebelo (discípulos de Grandjean de Montigny), deixava transparecer um toque
clássico e imponente, segundo a seguinte descrição:
O pórtico investido de cantaria apresenta uma escadaria de dez degraus. Quatro colunas
de granito com capitéis dóricos sustentam uma balaustrada de mármore. três portas
entre as colunas. No segundo pavimento erguem-se outras quatro colunas de ordem
jônica, coroando o corpo um frontão reto e havendo no tímpano as armas imperiais
trabalhadas em mármore. Há entre as colunas três janelas. Os corpos laterais constam de
vinte janelas no primeiro pavimento, cuja arquitetura é da ordem dórica do Teatro de
Marcelo, de Roma. O segundo pavimento é da ordem jônica, sob o sistema do templo
de Minerva Políada da Grécia. Tem vinte janelas, das quais treze têm sacadas de grades
171
de ferro e sete são arqueadas. Têm todas varões de ferro. Um ático ornado de estátuas e
de vasos de mármore oculta o telhado do edifício, dando mais beleza ao prospecto do
monumento. Há, nas faces laterais, treze janelas em cada pavimento. Vêem-se no fundo
quatro torreões com três janelas em cada pavimento; no centro a rotunda da capela, e
ligando os torreões, corpos de um pavimento com seis janelas cada uma (apud ELIA,
1996: p.16).
Sobressaía, no projeto, a predominância do tom clássico com inspiração em monumentos greco-
romanos. Tratava-se de estilo sóbrio, decorrente da mistura de influências dos arquitetos e das
opiniões do próprio Pedro II, participante ativo da construção do hospício. Era uma arquitetura
marcada por minúcias estéticas, assim apreendida pelo interno Lima:
O Hospício é bem construído e, pelo tempo em que o edificaram, com bem acentuados
cuidados higiênicos. As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a sua
capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo
que nos consola na sua imarcescível <beleza>, quando a olhamos levemente enrugada
pelo terral, através das grades do manicômio, quando amanhecemos lembrando que não
sabemos sonhar mais... entra por ela adentro uma falua, com velas enfunadas e sem
violentar; e na rua embaixo passam moças em traje de banho, com as suas bacias a
desenharem-se nítidas no calção, até agora [...] (BARRETO, 1993: p.27).
O trecho, de grande apuro formal, descreve o prédio pelo olhar do paciente. Interessa-lhe a
amplidão, a assepsia interna, mas, sobretudo, a paisagem da enseada de Botafogo que escapa ao
confinamento e ao controle, através das grades do manicômio, atirando o olhar ao longe, ao largo
da rede de vícios cotidianos... para depois lembrá-lo de que por vezes até o sonho ali era interdito.
As grades deixavam vazar a vista da cidade onde o tempo não havia sido suspenso, embarcações
inflavam-se mar adentro e moças desfilavam suas formas nas calçadas. Em O cemitério dos vivos,
com mais distanciamento, a descrição sairia mais técnica:
O Hospício é bem construído e seria adequado, se não tivesse quatro vezes o número de
doentes para que foi planejado. É obra de iniciativa individual, e a sua construção, pode-
se dizer, foi custeada pela caridade pública. Nas dádivas e doações, como sempre, nas
obras, muito concorreram os portugueses que enriqueceram no comércio. Os chãos,
parece que eram da Santa Casa, mas o edifício propriamente é resultado de dádivas e
172
doações. É grande de fachada, com fundo proporcional, acabamento e remates
cuidadosos, um pouco sombrio no andar térreo, mais devido aos acréscimos, do que ao
plano primitivo, que se adivinha. Acabado de construir em 1852, todo ele trai, no
aspecto exterior ao gosto do pseudoclássico da Revolução e do Império Napoleônico. O
seu arquiteto, Domingos Monteiro, foi certamente discípulo da antiga Academia de
Belas-Artes e certamente do arquiteto Grandjean de Montigny. É <de> aspecto frio,
severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais. Custou naquela época
cerca de mil e quinhentos contos (...) Interiormente é dividido em salões e quartos,
maiores e menores, com janelas todas para o exterior, e portas para os corredores, que
olham para os pátios internos. O meu dormitório ficava no extremo da ala esquerda do
edifício, como disse, e as camas ficavam encostadas ao longo das quatro paredes.
Tinha três janelas de sacada para a rua, mas eram inteiramente gradeadas. Via-se o
jardim, a rua, os bondes, o mar e as montanhas de Niterói e Teresópolis (BARRETO,
1993: p.150).
No romance, a descrição revela-se mais acurada, pontuada por informações históricas a que, na
condição de interno, o autor não tinha acesso. Foi preciso sair do asilo, reconquistar a condição de
autor, para guarnecer o relato de conhecimentos e pequenos requintes. Certo tom de crítica surge,
quando ele taxa o estilo do prédio de pseudoclássico. Percebe-se ainda a inserção de si, do seu
dormitório, em toda a estrutura, com ênfase nas janelas, na utópica, distante, paisagem externa,
malgrado as grades. Estas eram alvo de reclamação: “Com o ar azul da enseada de Botafogo, para
quem olha, devia ser um alegre retiro, tivesse ele outro destino; mas a beleza do local pouco deve
consolar, apreciada através das grades, da triste condição em que se está, torvo o ambiente moral
em que ali se respira (BARRETO, 1993: p.150)”.
Lima reclamou igualmente da curiosidade malsã dos transeuntes enxeridos, indiscretos ao espichar
o olhar através das grades, no sentido inverso ao dos pacientes, numa sórdida curiosidade pelo
espetáculo da loucura. Esta transparência acarretava um excesso de exposição dos pacientes,
claramente incômoda a Lima. Historicamente, contudo, o Pedro II não destoava da grande
curiosidade social pelo universo da insânia, comum em tantas épocas. Em Lire le délire, Juan Rigoli
cita festas promovidas em manicômios, abertas ao público, que revelavam o caráter de espetáculo
do desatino: no hospital de Bethleem, na Inglaterra, internos ficavam à mostra por um penny aos
domingos (na primeira metade do século XIX) e, em Bicêtre, na França, até a Revolução Francesa,
173
os loucos internados eram a grande distração da burguesia parisiense a visitação chegava a reunir
duas mil pessoas por dia.
Em O cemitério dos vivos, compreende-se melhor a beleza arquitetônica do prédio, uma vez
adaptada ao cotidiano psiquiátrico:
A administração do Hospício é feita segundo secções e pavilhões, à testa dos quais tem
um alienista e mais médicos. Segundo depreendi, as secções principais do Hospício
propriamente são quatro: Pinel e Calmeil, para homens; e Morel e Esquirol, para
mulheres. Além destas, outras especiais, para epilépticos, para crianças retardadas,
hígidas e epilépticas, para tuberculosos, etc., cada qual com um nome de sumidade
nacional ou estrangeira (BARRETO, 1993: p.150).
Lima realizou um importante inventário do Pedro II em Diário do hospício, complementado em O
cemitério dos vivos. As anotações íntimas registram cada detalhe da percepção arguta do autor,
revertendo a mão do poder ao expressar opinião (no diário) sobre o alienista da seção em que
estava:
Outra coisa que me fez arrepiar de medo na secção Pinel foi o alienista. Se entre nós, no
Rio, houvesse uma universidade, eu poderia dizer que ele havia sido meu colega,
porquanto, quando ele freqüentava a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores
da Escola Politécnica.
Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos. Ele, porém, não se deu a conhecer
e eu, no estado de humilhação em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a
conhecer.
Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado que eu. É capaz
de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e
aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de
novidades, do vient de paraître, das últimas criações científicas ou que outro nome
tenham (BARRETO, 1993: pp.30-31).
O trecho evidencia a crítica mordaz, o desabafo travestido de elegância. Não se trata de queixa
verborrágica e mal editada, puramente instintiva; ao contrário, apresenta equilíbrio razoável.
174
Primeiramente ele se equiparava ao médico em termos de formação, num esforço de paridade. Isto
posto, confessava o estado humilhante, revelando-se vaidoso o bastante para não se rebaixar ao
forçar uma cumplicidade com o alienista, que se sentia diminuído na categoria de interno. A
partir de então, desqualificava a autoridade médica (casos similares foram citados no capítulo 1),
ironizando a aplicação mecânica de saberes importados sem uma reflexão profunda sobre a
atividade psiquiátrica. Tratava-se do parecer do dominado sobre o dominador um diagnóstico às
avessas.
Talvez a característica mais particular dessa escrita do hospício produzida por Lima Barreto seja,
justamente, a lucidez. O autor escreveu-a lúcido, pois, uma vez passado o delírio provocado pelo
alcoolismo, recuperava o estado normal. É verdade que a essa altura, na segunda internação,
apresentava uma degenerescência física acentuada e um estado emocional-mental bastante
suscetível, mas não recebeu diagnóstico psiquiátrico grave capaz de colocar em xeque a sua
sanidade mental ao contrário de Artaud, cujos diários de hospício são fortemente marcados pelos
altos e baixos da diagnosticada esquizofrenia.
A acuidade e a boa orientação no domínio do asilo certamente contribuíram para a clareza,
objetividade e qualidade estética de vários trechos do relato. Há descrições muito bem-delineadas e
bem-humoradas sobre pacientes, funcionários, médicos: “Acompanhava-me uma espécie de interno,
que tinha uma cara bovina, apesar do pince-nez (BARRETO, 1993: p.25)”. Sobre um psiquiatra que
o tratava bem durante um exame, afirmou: “Era uma alma boa, em quem o dandismo era mais uma
aquisição que mesmo uma manifestação de superficialidade de alma e inteligência (BARRETO,
1993: p.25)”.
Em diversas observações sobre o manicômio, o tom era sarcástico, o que enriquecia a crônica. Mais
uma vez, o pessoal ganhava ares universais. Lima era um observador atuante, não-passivo, da
história. Do ponto de vista do paciente pobre e negro inicialmente admitido na seção de indigentes,
Lima denunciava a injustiça e revelava como a hierarquia social externa havia sido transposta para
o interior do hospício. Os companheiros de seção e as roupas inadequadas delatavam a baixa
camada social que o tragara: “Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo completo do espécimen
mais humilde da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa
cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha
descoberto no porão da varanda (BARRETO, 1993: p.24)”.
175
Ao documentar historicamente regras e hábitos do manicômio da Praia Vermelha, Francisco Carlos
da Fonseca Elia comprovou algumas das inquietações de Lima arroladas no Diário:
Quanto à admissão e saída dos alienados, os estatutos, no seu capítulo III,
discriminavam os internos em pensionistas, “aqueles que tivessem meios de pagar a
despesa de seu tratamento e curativo; e, em gratuitos, englobando estes as pessoas
indigentes, os escravos de senhores que não possuíssem mais de um e
comprovadamente não tivessem recursos para a despesa de seu tratamento, e, além
destes, os marinheiros de navios mercantes”. uma nítida estratificação na
distribuição dos doentes no espaço asilar e no tratamento a ser dispensado aos internos,
de acordo com a sua condição social e os seus recursos financeiros. Assim é que os
alienados eram distribuídos espacialmente no interior do asilo segundo o valor da
pensão que poderia ser paga pelo seu tratamento: o pagamento era mensal, de acordo
com o valor das cotas diárias. Na primeira classe, com direito a quarto separado e
tratamento especial, ficavam aqueles que podiam pagar a quantia mensal de 2$000. Na
segunda classe, com quarto para dois alienados e também com tratamento especial, o
valor da mensalidade era de 1$600. Finalmente, na terceira classe e que correspondia às
enfermarias gerais, e sem direito a tratamento especial, ficavam as “pessoas livres” e os
escravos que podiam pagar respectivamente, por mês, as quantias de 1$000 e $800
(ELIA, 1996: p.18).
Pela queixa constante de Lima sobre a desigualdade social no hospício, percebe-se que os estatutos
do Pedro II, datados da época da sua inauguração, continuaram a valer até o início do século XX. A
ascensão do autor no sistema hierárquico-manicomial foi possibilitada pela amizade com
funcionários amigos do pai. Nem pelos méritos literários tampouco por suas posses obteria sucesso
na empreitada, que a família era desprovida de condições financeiras para mantê-lo com
tratamento especial. No diário, ele deixa claro que passou a conviver com outras classes somente
após o pistolão do inspetor Santana (citado no capítulo 1).
Por outro lado, as leis do hospício eram precisas na divisão entre gratuitos (indigentes) e não-
indigentes (pensionistas):
(...) no capítulo IV dos Estatutos sobre o Serviço Sanitário, a primeira divisão que se faz
no interior do hospício é sexual; a segunda classificação é uma mistura de estratificação
176
econômico-social preenchida por observações empíricas acerca do estado dos internos:
“Os alienados indigentes e os pensionistas da última classe serão distribuídos nas
subdivisões seguintes: a primeira, de tranqüilos limpos; a segunda, de agitados; a
terceira, de imundos; a quarta, de afetados de moléstias acidentais. Os pensionistas das
primeiras duas classes serão distribuídos em duas subdivisões: primeira, de tranqüilos;
segunda, de agitados (ELIA, 1996: p.19)”.
A classe de indigentes compreendia subdivisões humilhantes: tranqüilos limpos, imundos e doentes.
Lima, pobre, maltrapilho e fisicamente combalido, amoldava-se no rótulo (classe). E demonstrava,
ele também, algum preconceito: “(...) não posso deixar de consignar a singular mania que têm os
doidos, principalmente os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel, dez por cento assim viviam,
num pátio que era uma bolgia do inferno. Por que será? (BARRETO, 1993: p.26)”. O autor não
se distinguia, a si, dos doidos, como dos internos de baixa extração, mostrando-se invariavelmente
deslocado na condição de a-social/a-intelectual, avesso a classificações e grupos. Embora fosse ele
próprio oriundo de baixa camada social, via seus pares com distanciamento: o escritor dos pobres e
oprimidos não se reconhecia entre seus semelhantes – um mal-estar vivenciado tanto no domínio do
asilo como nas ruas do Rio.
O desconforto diante da injustiça social reproduzida no Pedro II era assunto repetitivo no diário:
Os enfermeiros na secção que estou, são em geral bons. Há, porém, uma casta deles que
não presta. São os tais particulares. Estes são aqueles que os doentes abastados das
primeiras classes são autorizados a trazer. Nem todos são assim, mas com dous eu
implico solenemente; e me fazem lembrar a insolência do Bragança do Pavilhão, que
tem as costas quentes, por causa da proteção que lhe dispensa o poeta épico da
Psiquiatria, H.R [Henrique Roxo] (BARRETO, 1993: p.48).
Lima desabafava contra os estatutos: incomodava-lhe a regalia dos ricos, bem como a indigência
dos pacientes largados em seções destinadas a pobres. Não por coincidência, estes eram, em sua
maioria, negros, como Lima explicaria em O cemitério dos vivos:
Na secção Pinel, num pátio que ficavam os mais insuportáveis, dez por cento deles
andava nu ou seminu. Esse pátio é a cousa mais horrível que se pode imaginar. Devido
à pigmentação negra de grande parte dos doentes recolhidos, a imagem que se fica
177
dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e
contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no
nosso pensamento. É uma luz negra sobre as cousas, na suposição de que, sob essa luz,
o nosso olhar pudesse ver alguma cousa (BARRETO, 1993: p.147).
A maior incidência de negros no pavilhão de indigentes explicava-se no contexto de indigência
geral vivida por ex-escravos após a Abolição da Escravatura. Mais de trinta anos depois da Lei
Áurea, a sociedade brasileira demonstrava dificuldade em usar a o-de-obra negra e livre,
convertida, portanto, em refugo social.
No domínio do asilo, nada escapava à observação de Lima, que via tudo do mesmo a-lugar ocupado
no mundo externo, fazendo a apologia / justificativa de si de que fala Besançon:
Ao lado desse cuidado confessional, existe no autor de uma autobiografia a necessidade
de justificação, ou mesmo de uma apologia a si mesmo. Para Rousseau, para Berlioz, a
redação das memórias possui claramente o sentido de ativar um mecanismo de defesa
paranóica e de uma justificativa diante de seus perseguidores do passado e do presente.
Em termos mais gerais e ao largo do aspecto ‘em busca do tempo perdido’, sempre
presente na autobiografia, escrever a história da sua própria vida equivale à necessidade
de lhe dar uma forma, ou mesmo uma forma retrospectiva, de encontrar um sentido,
uma ordem lá onde, de fato, provavelmente havia desordem, ou ao menos confusão.[À
côté de ce souci de confession, il existe chez l’auteur d’une autobiographie le besoin
d’une justification voir d’une apologie de soi-même. Pour Rousseau, pour Berlioz, la
rédaction des mémoires a clairement le sens de la mise en oeuvre d’un mécanisme de
défense paranoïaque et d’une justification vis-à-vis des persécuteurs passés et présents.
Plus généralement et au-délà de l’aspect ‘recherche du temps perdu’, toujours présent
chez l’autobiographie, écrire l’histoire de sa vie équivaut au besoin de lui donner une
forme, voire une forme rétrospective, de trouver un sens, un ordre en fait il avait
peut-être désordre, ou au minimum confusion] (BESANÇON, 2002: p.66).
A literatura da urgência engloba algumas dessas características, sendo os mecanismos de defesa
paranóica e a justificativa diante de seus perseguidores as mais compreensíveis. Como signatário-
mor de uma escrita do hospício, provavelmente única, nesses moldes, naquele período de
internação, fazia-se urgente a denúncia de seus detratores do passado (o irmão, responsável pelo
178
ingresso no manicômio, por exemplo) e do presente (médicos e funcionários que o prejudicavam),
bem como se pressupunha emergencial a sua defesa ante o tribunal social-intelectual
(paradoxalmente, apesar da sua a-socialidade/a-intelectualidade). Contudo, nessa busca de ordem
em meio ao caos, a busca do tempo perdido resvalava numa rígida auto-análise, numa não-apologia
a si:
No começo, havia dinheiro na bolsa de todos e o parati entrava como mera
extravagância. O forte era cerveja; mas, bem depressa, com a fuga inexplicável do
dinheiro das nossas algibeiras, a cachaça ficou sendo o nosso forte; e eu a bebia
desbragadamente, a ponto de estar completamente bêbedo às nove ou dez horas da
noite.
O aparecimento do meu primeiro livro não me deu grande satisfação. Esperava que o
atacassem, que me descompusessem e eu, por isso, tendo o dever de revidar, cobraria
novas forças; mas tal não se deu; calaram-se uns e os que dele trataram o elogiaram. É
inútil dizer que nada pedi.
A minha dor ou as minhas dores aumentavam ainda; e, cheio de dívidas, sem saber
como pagá-las, o J.M. aconselhou-me que escrevesse um livro e o levasse para ser
publicado no Jornal do Commercio.
Assim o fiz. Pus-me em casa dous meses e escrevi o livro. Saiu na edição da tarde e
ninguém o leu, e veio a fazer sucesso, para mim inesperado, quando o publiquei em
livro. Desalentado e desanimado, sentindo que eu não podia dar nenhuma satisfação
àqueles que me instruíram tão generosamente, nem mesmo formando-me, não tendo
nenhuma ambição política, administrativa, via escapar-se por falta de habilidade, de
macieza, a única cousa que me alentava na vida – o amor das letras, da glória, do nome,
por ele só. (...) Bebi cada vez mais (...) (BARRETO, 1993: p.36).
Lima tecia uma auto-retrospectiva em tom dramático, refazendo passo a passo o processo de
decadência que culminara no hospital psiquiátrico: o alcoolismo; a frustração após a pálida
repercussão de Recordações do escrivão Isaías Caminha; a dificuldade financeira; o fracasso diante
das expectativas dos familiares (provavelmente pai e padrinho); a desilusão das letras. Pode-se
pensar, portanto, nesta literatura como a urgência máxima de reorganização de si, de
179
autocompreensão; uma autoarqueologia. Cada conflito, cada reviravolta da trama da vida real eram
expostos sem filtro. A dramaticidade do trecho dá a dimensão da emergência: os escritos do
hospício eram prementes, inadiáveis. Por esta razão, a investigação da própria poética do delírio era
fundamental:
Cheio de mistério e cercado de mistério, talvez as alucinações que tive, as pessoas
conspícuas e sem tara possam atribuí-las à herança, ao álcool, a outro qualquer fator ao
alcance da mão. Prefiro ir mais longe...
Certo dia, a minha alucinação foi tão forte, que resolveram levar-me para a casa de um
parente, para ver se melhorava; foi pior. Mandaram-me para o Hospício. No mesmo dia
que cheguei, no Pavilhão, nada sofri. Assim não foi no Hospital Central, nem na
Santa Casa, de Ouro Fino, onde as visões continuaram, no hospital por mais de vinte e
quatro horas e, em Ouro Fino, unicamente na noite de entrada.
Agora, que, creio, ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar
outra vez, penetrei no pavilhão calmo, tranqüilo, sem nenhum sintoma de loucura,
embora toda a noite tivesse andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma
delegacia, a fim de queixar-me ao delegado das cousas mais fantásticas dessa vida,
vendo as cousas mais fantásticas que se possa imaginar.
No começo, eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha; dessa forma, vi-as
familiarmente, como a cousa mais natural deste mundo. a minha agitação, uma frase
ou outra desconexa, um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha
razão.
O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá? (BARRETO, 1993: p.38).
Lima pesquisava a própria alucinação, descartando a hereditariedade e o alcoolismo. Preferia ir
mais longe, buscar outras razões, o que realizaria não somente em relação a si mesmo, mas ao
dissecar doentes, sintomas e delírios alheios. A narrativa das visões indicava a natureza temporária
da psicose alcoólica. Apercebia-se de que o delírio perpetuava-se por, no máximo, vinte e quatro
horas. No período passado em 1919/1920 no Pedro II, ele chegara lúcido, após alucinações
fantásticas e tão aterrorizantes que mesmo ele, agnóstico declarado, apelara para Deus, hesitante, a
indagar se aquilo era mesmo loucura. O questionamento pessoal alcançaria mais uma vez status
180
coletivo. O eu era o ponto de partida para um painel das origens da loucura, descrito de dentro, pelo
olhar do paciente:
Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se
tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da
natureza, indivíduos, casos individuais, mas não ou não se percebe entre eles uma
relação de parentesco muito forte. Não <há> espécies, não há raças de loucos; há loucos
só.
os que deliram; os que se concentram num mutismo absoluto. também os que
a moléstia mental faz perder a fala ou quase isso. Quando menino, vi muitos loucos e,
quando estudante, muito conversei com os outros que essas coisas de sandice estudavam
sobre eles, mas, pela observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi bem
a perplexidade deles em face de tão angustioso problema da nossa natureza.
uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; descrições
pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da
loucura não há. Procuram os antecedentes do indivíduo, mas nós temos milhões deles e,
se nos fosse possível conhecê-los todos, ou melhor, ter memória dos seus vícios e
hábitos, é bem certo que, nessa população que cada um de nós resume, havia de haver
loucos, viciosos, degenerados de toda a sorte.
De resto, quase nunca os filhos dos loucos são gerados quando eles são loucos; os filhos
de alcoólicos, da mesma forma, não o são quando seus pais chegam ao estado agudo do
vício e, pelo tempo da geração, bebem como todo o mundo.
Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo
o problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria que determinassem a
origem, sem explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até
hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda
gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes,
que a ciência tudo pode.
Se a estátua de Ísis lá estivesse, havia de cerrar mais o véu impenetrável que cobre o seu
rosto. Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda a gente,
181
tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é
o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor,
desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais elevada, desdobrando-se num
verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que – pergunto eu – não
é fator de loucura também?
Por que a riqueza, base da nossa atividade, cousa que, desde menino, nos dizem ser o
objeto da vida, da nossa atividade na terra, não <é> também a causa da loucura?
Por que as posições, os títulos, cousas também que o ensino quase tem por meritório
obter, não é causa de loucura? (BARRETO, 1993: pp.39-40).
Esse trecho de Diário do hospício revela o caráter inédito da experiência do autor no hospital
psiquiátrico: o eu deixava a queixa, o desabafo, a escrita como defesa do meio delirante, para ir
além. A busca da compreensão da loucura, se era (é) tarefa árdua para a psiquiatria, consistiu
objetivo hercúleo para um interno diluído na massa de delírios e ritos do manicômio. Lima, no
entanto, levou-o adiante, numa tentativa de entendimento racional. Entre dezenas de loucos,
procurava uma característica comum a todos. Porém, dada a diversidade de manifestações, concluía
tratar-se de casos individuais, não-rotuláveis em dogmas cientificistas. Ao contrário da psiquiatria,
que atribuía diagnósticos a partir de grupos de sintomas e designava classificações sortidas,
científicas, Lima, ao conviver com pacientes de igual para igual, no mesmo nível de privações e
tratamentos, enxergava tão-somente o indivíduo, as características pessoais. No diário, anotou: “A
impossibilidade em que se está de fazer uma generalização sobre qualquer aspecto da loucura. As
classificações, como todas as classificações, são precárias [...] (BARRETO, 1993: p.92)”.
Em seu breve ensaio sobre o tema, ele dividiu internos em poucas, concretas designações: os que
deliravam; os que se calavam; os que perdiam a fala. Conclusão de Lima: apesar do esforço da
medicina nas especificações dos casos, nunca houve uma explicação da loucura; as explicações
para a origem do mal eram, invariavelmente, pueris; faltavam tratamentos realmente eficazes. Isto
é, a ciência não podia tudo. No cerne da questão, dentro do domínio do hospício, o autor rebelava-
se contra o saber médico da época e abria uma brecha para a humanização dos loucos, ao largo da
aura cientificista que tentava apreender a loucura em classificações objetivas. Intuitivamente, Lima
ousava buscar razões na mistificação exacerbada do objeto amado, na desigualdade social e na
busca por tulos. Afinal, a seu ver, a paixão / desilusão amorosa, a brutalidade e humilhação
182
decorrentes das injustiças sociais e a desumana competição por dinheiro e prestígio podiam ser
fatores agravantes da insanidade. Na passagem do universal para o pessoal, Lima auscultava em si
alguns dos acontecimentos responsáveis pela própria situação e utilizava o diário como autoanálise,
poucas décadas depois da invenção da psicanálise por Freud, muitas décadas antes da inserção da
terapia psicanalítica no tratamento de pacientes em hospitais psiquiátricos no Brasil.
Como conseqüência da internação, esta literatura da urgência era inevitavelmente contaminada pelo
convívio com a loucura. Os escritos de Diário do hospício formulavam conceitos sobre o tema e,
sobretudo, radiografavam sintomas. Assim, doentes tornaram-se personagens: as peripécias do
intrigante V. de O. (citado no capítulo 2) espraiam-se por mais de quatro páginas. Os silenciosos
também merecem observações:
Outro silencioso interessante é um matuto de Cabo Frio, que parece uma estátua. É de
uma grande atonia, de uma inércia que não se concebe. Para deitar-se, é preciso ser
trazido para cama, mas logo se levanta e encosta-se à parede de um corredor e fica,
até que o tragam de novo. Ama o silêncio e estar de pé. Encostado à parede, hirto, olhos
parados, sem brilho nem expressão qualquer, parece uma estátua egípcia, um cimélio de
templo (BARRETO, 1993: p.47).
Dificilmente se encontraria nos arquivos médicos uma descrição de interno desta forma literária,
atenta à minúcia, a valores estéticos extra-asilo, com um toque de humor. Sobre outros, escreveu:
Um é um tipo acaboclado, com um cavaignac crespo, denunciando sangue africano, que
vive embrulhado em trapos, com dois alforjes pendurados à direita e à esquerda,
sequioso de leitura, a ponto de ler qualquer fragmento de papel impresso que encontre.
Não chega aos extremos de um português, que vive dia e noite, nas proximidades das
latrinas, senão nelas, e que não [trepida] os fragmentos de jornais emporcalhados, para
ler anúncios e outras cousas sem interesse, mas sempre delirando. O silencioso ledor
não faz tal, mas escolheu o vão de uma janela, para passar horas inteiras deitado,
como se fosse um beliche de navio (BARRETO, 1993: p.47).
Impressões desta qualidade certamente escapavam às classificações da medicina. Era necessário um
olhar diferente, o olhar arguto de um louco-escritor, ao qual nada fugia, pelo contrário, todo o
sistema tornava-se tema relevante, sobretudo, as minúcias perdidas na repetição de rituais do dia-a-
183
dia. Nota-se a simpatia especial de Lima, leitor contumaz, pelo silencioso ledor, sempre pronto a
coletar pedaços de papel impresso para leitura. Ou pelo português que, apesar da escatologia do
hábito, mereceu uma nota pela compulsão em ler jornais sujos próximos a latrinas. A utilização de
adjetivos e o apuro literário demonstrados em várias descrições da lida no hospício não caberiam na
rigidez dos prontuários médicos. O rigor era literário, não psiquiátrico.
A peculiaridade de Diário do hospício está, justamente, na qualidade rara de documentação e
investigação da loucura de um lugar desprivilegiado na rede de poderes. Subvertê-los, denunciá-los
e usá-los lucidamente como exemplos para realizar uma genealogia da loucura, no domínio mesmo
do hospício todo este esforço imprime a esta escrita autenticidade incomum. Além das confissões
de si, Lima deu um tom de crônica a alguns momentos da narrativa, por exemplo, quando contou
casos de brigas entre pacientes, ou revelou que no hospício, “como em todas as coleções de homens
que vivem juntos, o gosto pela alcunha depreciativa; o Gato, o Tetéia, etc. (BARRETO,
1993: p.53)”. Posteriormente, ele próprio, ao debochar do paciente Gato, era sarcástico, chamando-
o de “Marquês de Gato” ou “Gato, o nobiliárquico Gato”, pois lhe incomodava a “prosápia de
família”, “as alusões ao seu pai ex-ministro do Império (BARRETO, 1993: p.69)”. Lima também
mencionou a convivência com assassinos uxoricidas, fratricidas, homicidas em geral –, chegando
a diagnosticá-los:
Dos oficiais [uxoricidas], um é positivamente louco. Delira, e o seu delírio é típico (...).
É muito difícil reproduzir um delírio de louco, principalmente o deste, que é de uma
incoerência inacreditável. Eu quis segui-lo e guardá-lo, de memória, já por escrito;
mas nada pude conseguir, mesmo aproximadamente. Ele acaba em casas de alugar,
passa para o curso dos rios, história da guerra do Paraguai, etc., etc.
Além desse delírio em voz alta, a sua loucura se revela pela necessidade em que ele está
de quando em quando fazer o maior barulho possível. Ele murros nas mesas, bate
com estrondo as portas, levanta as cadeiras e fá-las cair sobre o assoalho com toda a
força, e assim por diante, tudo entremeado de palavras escabrosas e porcas. É geral nos
doentes essa necessidade de pornografia e de terminologia escatológica (BARRETO,
1993: pp.54-55).
Sobressaía o exame rigoroso do delírio, com a subseqüente conclusão de que a incoerência tornava
a tarefa impossível. A acelerada mudança de temas, da geografia à história etc., impossibilitava uma
184
análise científica. E a agressividade física e verbal, beirando a pornografia e a escatologia,
completava o intricado quadro. Daí o questionamento sobre a contaminação da loucura:
Haverá contágio na loucura? Ouvi sempre falar que alienistas notáveis atribuíam a
loucura de velhos guardas à ambiência dos hospitais; aqui, contaram-me vários casos. A
imitação, que é um poderoso fator de progresso social útil, positivo, pode bem ser
contada em sentido contrário, um fator de regresso do indivíduo, e aqui sobre uma
inteligência débil de modo a fazê-la copiar gestos e coisas dos loucos que a cercam. (...)
Debruçar sobre o mistério dela [a loucura] e decifrá-lo parece estar acima das forças
humanas. Conheço loucos, médicos de loucos, perto de trinta anos, e fio muito que a
honestidade de cada um deles não lhes permitirá dizer que tenha curado um só.
Amaciado um pouco, tirando dele a brutalidade do acorrentamento, das surras, a
superstição de rezas, exorcismos, bruxarias etc., o nosso sistema de tratamento da
loucura ainda é o da Idade Média: o seqüestro. Não dinheiro que evite a Morte,
quando ela tem de vir; e não há dinheiro nem poder que arrebate um homem da loucura.
Aqui, no Hospício, com as suas divisões de classes, de vestuário, etc., eu vejo um
cemitério: uns estão de carneiro e outros de cova rasa. Mas, assim e assado, a Loucura
zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos
incompreensíveis. (...) Todos eles [os doentes] estão na mão de um poder que é mais
forte do que a Morte. A esta, dizem, vence o amor; a Loucura, porém, nem ele
(BARRETO, 1993: pp.56-57).
Lima fazia o antielogio da loucura. Atingia a carne: a dor, o sofrimento, a impossibilidade de
qualquer iniciativa de romantizar a insanidade, partindo da forma como se apresentava ao seu olhar,
dia após dia, caso após caso. Observador preciso, espreitava loucos na infância / adolescência,
devido ao convívio forçado que certamente aguçou cedo alguma curiosidade mórbida.
Biograficamente, é repetidamente curioso verificar a insistência do tema loucura: recapitulando,
Lima morou nas colônias da Ilha do Governador; o pai enlouqueceu; o fator hereditariedade passou
a assombrá-lo; o alcoolismo provocou-lhe delírios; os delírios conduziram-no a duas internações no
hospício. Toda esta redundância fantasmática rondou-lhe a razão durante pelo menos ¾ da vida
pessoal, como foi visto. Isto significa que todo o pensamento sobre o assunto não surgiria no
185
internamento, imune à experiência, mas decorria desta, inseparável, sendo uma evolução de idéias
iniciadas /vividas anteriormente.
O a-social/a-intelectual alardeava: o sistema psiquiátrico era medieval, baseado no seqüestro, na
desapropriação do sujeito pelo Estado. Não vislumbrava, por outro lado, meio eficiente de
tratamento e cura do louco. A loucura continuaria, para ele, um mistério, algo incompreensível, um
poder maior do que a própria morte. Nesse trecho ele faz alusão à idéia do cemitério que intitularia
o romance O cemitério dos vivos. Denunciava: o rico tinha o carneiro (gaveta ou urna do cemitério);
o pobre, a cova rasa. O hospício era o grande sepulcro, dividido em classes de mortos-vivos.
Importante perceber como, nesse momento, o discurso do autor extrapolou a psiquiatria como poder
regulador: a Loucura (com letra maiúscula) ganhava status de força do mal, mais importante do que
a Morte, não redimida nem mesmo pelo Amor.
Ao citar o fator imitação e se perguntar sobre o contágio da loucura, Lima certamente retornava
para si a questão. Explicaria assim, pela ambiência do manicômio, a loucura do pai, quase como
uma defesa mimética. No entanto, como o mimetismo pressupõe uma adaptação ao meio, o eterno
inadaptável Lima recusava-se à loucura. Mesmo em meio a toda desesperança e compreensível
hesitação sobre a própria sanidade, a lucidez revelava-se imperiosa no diário uma lucidez que
sequer camuflava a melancolia:
Arrependo-me de tudo, de não ter sido um outro, de não seguir os caminhos batidos e
esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram. Tenho orgulho de me ter
esforçado muito para realizar o meu ideal; mas me aborrece não ter sabido
concomitantemente arranjar dinheiro ou posições rendosas que me fizessem respeitar.
Sonhei Espinosa, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoiévski, mas
me faltou a névoa (...)
Os outros deliram em redor de mim e, se não choro, é para não me julgarem totalmente
louco. Imagino que essa convicção se enraíze nos médicos e me faça ficar aqui o resto
da vida. Ainda agora, meu irmão veio visitar-me e, nos primeiros dias, um amigo; mas,
dos que me vieram ver, na primeira vez que estive aqui, nenhum veio. Se me demorar
mais tempo, ainda, ficarei completamente abandonado, sem cigarros, sem roupa minha,
e ficarei como o Gato e o Ferraz, que aqui envelheceram, vivendo aquele a fazer
transações de forma tão cínica, para arranjar cigarros. Troca pão por fumo e furta lápis
186
dos companheiros, para arranjar moeda para barganhar. Todos o perseguem, o
maltratam, o chasqueiam, na sua velhice, a ele que foi rico, filho de ex-ministro e
senador do Império. Sic transit gloria mundi...
Aceito todos os fins, mas não permita Deus que o tenha um destes. Enche-me de
angústia, quando este quadro se desenha a meus olhos; atribuo a mim mesmo a culpa do
que me sucede, ao mesmo tempo culpo F., culpo Z, culpo X, e toda a humanidade, a
sociedade em que vivo, mas não quero. Contudo, eu queria viver isolado, perder a
paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que ela me faz mal e lastimo não ter outra
forma de talento em que minha inteligência pudesse trabalhar, absorver toda a minha
atividade, sem comunhão com os meus semelhantes. Queria ser um geômetra, mesmo
medíocre, mas da família de Arquimedes, conforme o desenha Plutarco, na vida de
Marcellus, página 109 (BARRETO, 1993: pp.60-61).
Uma característica marcante do diário é a transparência, a sinceridade do relato, que nada escondia
de si, pelo contrário, existia justamente para dar conta desta auto-exposição. As emoções mais
brutas e os temores mais inauditos eram expostos com uma franqueza perturbadoramente bela. Por
meio do diário, fica-se sabendo, por exemplo, o quanto os ideais do autor eram altos: sonhara-se
Espinosa e Dostoiévski. No entanto, acabara confinado entre delirantes, sem direitos básicos de
cidadania: cigarros, roupas, liberdades. O trecho acima flagra um estado de exceção que soava a
pânico: o de ser confundido com loucos ao redor, sendo obrigado a envelhecer no manicômio
obviamente o maior receio de um interno lúcido. Nesse momento, apelava mais uma vez a Deus,
para que lhe evitasse fim tão trágico. E o mais importante: culpava-se, a si, pelo destino, consciente
do erro de se transferir a culpa para terceiros.
Essa passagem do diário reserva outra peculiaridade: a idéia da literatura como mal, compreensível
dada a dedicação a uma vida em prol do ideal literário. Lima ainda não percebia, contudo, o bem
advindo da escrita no manicômio; um exercício que o ajudara a se reconstituir, exemplar de um
cuidado de si capaz de salvá-lo da rotina da loucura no seu caso, provavelmente, da própria
loucura que sentia cercá-lo:
Voltei do café entediado. Um vago desejo de morte, de aniquilamento. Via minha vida
esgotar-se, sem fulgor, e toda a minha canseira feita, às guinadas. Eu quisera a
resplandecência da glória e vivia ameaçado de acabar numa turva, polar loucura. Polar,
187
porque me parecia que nenhuma afeição me aquecia, e turva, pois eu não via, não
compreendia nada em torno de mim. Eu me comparava a um explorador das regiões
árticas, que tivesse durante anos atravessado florestas lindas, cascatas, céus epinícios,
lagos de anil, mares de esmeraldas, nessas paisagens mais belas da terra, as suas
servências mais majestosas, e se houvesse de motu proprio atirado às banquises do pólo
e se deixasse mergulhar na sua noite imensa que, para o meu caso, era infinita. (...)
Sentia-me impotente por isso e os obstáculos invencíveis. Não me quisera curvar,
revoltara-me; entretanto, mais de uma vez vira-me obrigado a pedir pequenos favores
humilhantes aos camaradas. Curiosa independência! (BARRETO, 1993: pp.62)
O alto custo da posição independente era ressaltado pelo autor. A analogia ao bravo explorador
pode se remeter à aventura de Lima pela vida; uma aventura, por que não dizer, de tom épico, a
tentar a travessia de obstáculos intransponíveis para um a-social/a-intelectual. O medo da loucura,
que o rodeava desde a meninice com a intensidade da correnteza num pedaço de ilha, existia a
despeito da lucidez dos escritos. Ele dava sinais de esgotamento físico, mental e emocional.
Intelectualmente, no entanto, continuava en garde. E o mais importante: duvidava da independência
obtida a muito custo; levantava questões sobre o a-lugar alcançado sem se curvar aos poderosos, na
contramão do jogo social. Um a-lugar tão autônomo, recôndito, utópico, que o teria levado à
proximidade da loucura? Cabe lembrar que o próprio Lima auscultou em si uma tendência à
misantropia desde a infância, logo após a morte da mãe:
Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em
contrapeso, bem cedo me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de
todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém o que é um
alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da
vida e uma certa misantropia (apud BARBOSA, 1988: p. 40).
A a-sociabilidade deu indícios cedo: a dificuldade de se relacionar, a desconfiança dos outros, a
solidão melancólica. Além disso, era como se os ideais de pureza, honestidade e sinceridade fossem
melhor preservados no isolamento, pois o embate com o social era invariavelmente conflitante,
corruptível: “Quando me julgo nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo
(BARRETO, 1998: p.27)”. No Diário íntimo, em nota datada de 1908, percebem-se os altos e
baixos da auto-estima:
188
Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber
positivamente nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões;
sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e responsabilidades. Mas de tudo
isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado,
incompreensível e incompreendido, era a única cousa que me encheria de satisfação, ser
inteligente, muito e muito! A humanidade vive de inteligência, pela inteligência e para a
inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade. Isto é, na grande
humanidade de que quero fazer parte (BARRETO, 1998: p.89).
A alternância entre baixa e alta apreciação de si é uma decorrência da transparente maneira que
Lima apresentava ao se comunicar fosse nos diários ou nos romances, como se demonstrou.
Perto dos 30 anos, mostrava-se inseguro quanto ao que conquistara até então e duvidava até mesmo
da própria inteligência (em outros momentos, grande fonte de soberba). Além de incompreendido,
um dado inusitado era o fato de se declarar incompreensível. Nota-se nessa minúcia da adjetivação a
tendência a cada vez mais, com a maturidade, culpar-se, a si, e não somente a sociedade, pelas
conseqüências das escolhas feitas.
Após um passeio a São Gonçalo, no mesmo ano de 1908, Lima descreveria as recordações da avó
escrava, chamando atenção para a distinção de si entre os seus, o que ressoava como motivo de
orgulho:
Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida, dos meus
avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito
familiar, que me davam vagas notícias das origens da minha avó materna, Geraldina.
Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de
quem era cria.
Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia. Eram muito
novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, a caminho da corte, quando os seus
senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia ter sido por 1840, ou antes, e
nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto, eu não pude deixar
de procurar nos traços de um molequinho que me cortou o caminho, algumas vagas
semelhanças com os meus. Quem sabe se eu não tinha parentes, quem sabe se não havia
gente do meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia, passivos e
189
indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que as grandes forças da natureza
desfizeram e cujos pedaços vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de
sua força interior.
Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu não pude deixar de
lembrar-me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do seu, depois de volta de
três quartos de século, voltava àquelas paragens radiante de mocidade, saturado de
noções superiores, sonhando grandes destinos, para ser recebido em casa de pessoas
que, se não foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem da
mesma origem que o meu. (...) Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura
saíra minha avó, tinha se extinguido, e que deles, diretamente, pelos laços de sangue e
de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de várias
condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha (BARRETO,
1998: p.66).
O descendente de escravos vingava-se de toda uma nação pela submissão dos negros aos senhores
brancos e a seus abusos. Dado o renitente desejo de autonomia e insubmissão de Lima ao longo
de uma vida, distingue-se nesse excesso de alforria uma prestação de contas com o passado da sua
ascendência e com a herança que ainda influenciava diretamente a sua rotina diária. Revela-se
especialmente comovente a tentativa de se reconhecer entre moleques do subúrbio: imaginava ter
parentes nos arredores, mas taxava-os, a todos, de párias melancólicos, passivos e indiferentes,
fragmentados e perdidos em seu destino, sem consciência de si. Eis uma das raízes do grande
confronto – Lima contra o homem branco que submetera toda uma raça aos seus caprichos,
extraindo de cada indivíduo negro a possibilidade do cuidado de si, delindo-os na multidão, sem
feições, vontades, muito menos liberdades de qualquer espécie. E o pesar: a aceitação passiva dos
dominados.
O grito de independência de Lima era óbvio: buscava a confirmação da Abolição no cotidiano
concreto dos afro-brasileiros. Tal brado soava destemido, dada a lenta absorção dos alforriados na
época. Naquele momento, vinte anos depois da Lei Áurea, Lima Barreto vivia em si o milagre
histórico: era recebido por uma família branca, de ex-senhores de escravos, prováveis vizinhos dos
proprietários de sua avó materna. E isso numa situação privilegiada, saturado de noções superiores,
sendo provavelmente o mulato que mais prometia. Estava mais do que estabelecido o a-lugar do a-
social/a-intelectual que não somente queria ser livre, independente, mas, sobretudo, consciente da
190
cidadania uma condição rara na época e nas subseqüentes décadas de lutas contra o preconceito
racial que até hoje perduram num país alardeado como não-racista.
Toda essa incursão pela juventude de Lima (pré-internação) dá indícios deste a-lugar desde a
infância, idéia reforçada pelo biógrafo: “Era, na realidade, um menino contemplativo, vivia metido
consigo mesmo, fugindo sempre dos brinquedos, que nunca amou. Enquanto os colegas pulavam
sela ou faziam exercícios de barra fixa, durante o recreio, ele procurava o ‘mais afastado dos
bancos’, sob uma das mangueiras da chácara, e ia ler o seu Júlio Verne, ou simplesmente devanear,
olhando as nuvens, a recordar as aventuras do Capitão Nemo, de Roberto Grant, do Dr.
Lindenbrock, de Miguel Strógoff (BARBOSA, 1988: pp. 47/48)”.
Essa relutância em se imiscuir no coletivo foi provavelmente o que favoreceu o distanciamento da
loucura alheia. Nas notas de Diário do hospício, é visível a reflexão do autor na condição de
paciente um paciente incomum, que não se identificava com outros pacientes: “Conversa de
loucos. Dificuldade de reproduzi-la e o delírio também (BARRETO, 1993: p.76)”. “C. Braga,
jogando xadrez, vai muito bem e de repente vem-lhe o delírio e complica tudo (BARRETO, 1993:
p.76)”. “A loucura, a degradação humana – o horror desse espetáculo (BARRETO, 1993: p.84)”.
O escritor do povo não se enxergava como povo, bem como o escritor dos loucos (no sentido de
que delatava inúmeras questões fundamentais do tratamento da loucura na época, fazia anotações
para um futuro romance sobre o tema e era, afinal, um interno) não se identificava com os loucos. A
não ser quando a questão se aproximava da sua experiência: “Houve quem perguntasse: bebemos
porque somos loucos ou ficamos loucos porque bebemos? (BARRETO, 1993: p.85)”. O diário
traz vários questionamentos como este (citado no capítulo 2) acerca da loucura: “Dizia Catão,
segundo Plutarco, que os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles, porque os
sábios evitam os erros nos quais caem os loucos, enquanto estes últimos não imitam os bons
exemplos daqueles. V (idas) de Plutarco, página 178, 2v. (BARRETO, 1993: p.80)”. Esta citação é
aqui repetida para se perscrutar outra particularidade do processo literário de Lima: o percurso da
transformação das anotações do diário em romance, que pode ser minuciosamente analisado quando
se lê, em O cemitério dos vivos, a mesma idéia desenvolvida em reflexão mais densa:
O espetáculo da loucura, não no indivíduo isolado, mas, e sobretudo, numa
população de manicômio, é dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode
oferecer a quem ligeiramente meditar sobre os destinos, sobre ele. Dizia Catão que os
191
sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles. Deve ser assim, conforme
quem os interpela e o tempo que o [faz], mas o certo é que, à primeira vista, o
ensinamento não é, como queria o orgulhoso romano, para melhoramento e progresso
dos ajuizados; ao contrário, a primeira impressão é de abjeção para o seu espírito, pelo
enigma que nele se põe, diante de uma misteriosa interrogação sem resposta.
(BARRETO, 1993: p.111).
Sobre o aspecto crônica, Diário do hospício contém ainda uma ou outra história bem-humorada:
“Um maluco, vendo-me passar com um livro debaixo do braço, quando ia para o refeitório, disse: –
Isto aqui está virando colégio (BARRETO, 1993: p.87)”. Em meio ao tom sério e documental, Lima
extraía da adversidade casos curiosos: “O Torres, o tal que matou o rival em amor, diz que viveu
doze anos num ovo”. Ou: “O Torres matava camundongos, pelava-os, estripava-os, para dar aos
gatos, a fim que não tivessem trabalho de fazer isto (BARRETO, 1993: p.92)”. Além desta, contava
a história de um interno que se embebedara e subira no telhado, seminu, provocando estardalhaço;
ou denunciava roubos de roupas e dos poucos objetos pessoais que pacientes conseguiam guardar
debaixo dos colchões.
Quanto a O cemitério dos vivos, sobretudo no que concerne à investigação da loucura, constitui uma
literatura de si grampeada pela literatura da urgência. Trata-se de um romance em que o estado de
emergência apresenta-se flagrante. É uma espécie de decalque ficcional do diário. Ambos chegam a
esboçar frases idênticas em alguns trechos, que, declaradamente, a escrita de si do manicômio
serviu de base para a ficção. Nesse caso, esta também foi confeccionada sob o impacto da
experiência-limite, mas com o autor em liberdade, não mais submetido à lei estrita do hospício
forte fator de diferenciação entre os dois manuscritos.
Num artigo publicado no jornal A Folha, no dia 30 de janeiro de 1920, um jornalista noticiou a
internação de Lima Barreto, após visita ao escritor no Pedro II. Descreveu-o primeiramente como
homem lúcido, afirmando ter ele aparecido “vestindo a roupa de zuarte, usado no estabelecimento,
os cabelos desgrenhados e os dedos sujos de tinta, sinal evidente de que escrevia no momento em
que fora chamado (BARRETO, 1988: p.308)”. Ao estranhar o fato de o escritor não ser reconhecido
no hospício, contava que Lima, desconcertado, dizia preferir como se isso fosse possível viver
anônimo para colher as informações necessárias à obra O cemitério dos vivos. Já anunciava,
inclusive, o título, como se depreende do diálogo entre os dois:
192
– Então, Lima, que é isso?
É verdade. Meteram-me aqui para descansar um pouco. E eu aqui estou satisfeito,
pronto a voltar ao mundo.
– Boa, então, esta vidinha?
Boa, propriamente, não direi; mas, afinal, a maior, senão a única ventura, consiste na
liberdade; o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos
que mal nos permitem chegar à janela. Para mim, porém, tem sido útil a estadia nos
domínios do Senhor Juliano Moreira. Tenho coligido observações interessantíssimas
para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de loucos. Leia O cemitério
dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e
as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis. Tenho visto
coisas interessantíssimas (BARRETO, 1988: p.308).
Lima não extraía do hospício a sua literatura, como a alardeava, usando o artigo no jornal como
publicidade do romance por vir. Diante do tribunal social-intelectual, evitava revelar mazelas
íntimas que o incomodavam na rotina psiquiátrica. Afirmava apenas que o manicômio era uma
prisão como outra qualquer e buscava uma utilidade para a temporada sob a égide do Estado: a
escrita do romance isto é, a passagem da escrita de si para a literatura de si, ambas, neste caso,
assinaladas pela urgência. É possível comparar trechos similares de Diário do hospício e O
cemitério dos vivos para entender bem a travessia. No diário (repete-se citação transcrita no
capítulo 2 para melhor exemplificar a questão):
O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem-par. Sem
fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral
das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses
e outros mais exóticos, são os negros ronceiros, que teimam em dormir pelos desvãos
das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros,
cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com
educação, mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social
(BARRETO, 1993: p.25).
No romance:
193
O mobiliário, o vestuário das camas, as camas tudo é de uma pobreza sem-<par>. O
acúmulo dos doentes, o sombrio da dependência que fica no andar térreo e o pátio
interno é quase ocupado pelo pavilhão das latrinas de ambos os andares, tirando-lhe a
luz tudo isso lhe dá má atmosfera de hospital, de emanações de desinfetantes, uma
morrinha terrível.
Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas
mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses,
espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade,
teimando em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta
sórdida; são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e
proletários mais finos: tipógrafos, marceneiros, etc. (BARRETO, 1993: p.143).
Lima acrescentou dados novos à ficção: o acúmulo de doentes que superlotava o hospício,
agravando as condições de vida dos pacientes; o cheiro insuportável das instituições manicomiais
(não somente pela proximidade das latrinas, mas pelo descontrole dos pacientes que, sem noção,
faziam necessidades fisiológicas no chão dos próprios quartos). O aspecto sombrio do convívio com
a incivilidade perpassa outros trechos de O cemitério dos vivos:
Em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual, foi que
penetrei no Hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo doloroso da loucura mais
arraigou no espírito essa concepção de um mundo brumoso, quase mergulhado nas
trevas, sendo unicamente perceptível o sofrimento, a dor, a miséria, e a tristeza a
envolver tudo, tristeza que nada pode espancar ou reduzir. Entretanto, pareceu-me que
ver a vida assim era vê-la bela, pois acreditei quea tristeza, o sofrimento, a dor
faziam com que nós nos comunicássemos com o Logos, com a Origem das Coisas e de
trouxéssemos alguma cousa. Transcendente e Divina. Shelley, se bem me recordo,
dizia: “os nossos mais belos cantos são aqueles que falam de pensamentos tristes...”
Toda a minha vida particular, toda a minha existência doméstica, quer de filho, quer de
chefe, tendia para conceber e praticar essa concepção do Universo, sentido e
representado em nós pelos seus aspectos sombrios (BARRETO, 1993: p.130).
194
Vicente repetia o niilismo intelectual de Gonzaga de Sá (citado no capítulo 3), desta vez no
hospício, o a-lugar radical. A loucura era associada à bruma, à treva, ao sofrimento, à dor, à miséria,
à tristeza. Em outro trecho, ele radicalizou a sensação lúgubre: “De tanto pensar no meu destino,
entrelaçado com o daqueles que me eram companheiros, eu me apavorava mais do que se estivesse
no Inferno, perseguido por mil diabos (BARRETO, 1993: p.151)”. Porém, ele tentava entrever a
beleza nesse horror – no caso do autor, justamente pelo exercício literário.
Lima e Vicente apresentavam inúmeras semelhanças biográficas: ambos alcoólatras, haviam
ingressado no hospício no Natal; escreviam artigos em jornais e livros; observavam o manicômio
sob a ótica do interno lúcido: “Eu estava ajuizado e tinha muito que aprender com os loucos
(BARRETO, 1993: p.145)”. Esta e outras frases de Vicente revelam a distinção de si no meio: “(...)
a monotonia do pátio foi quebrada com o fazer eu as refeições no comedoiro dos enfermeiros.
Deixava um pouco o pátio, aquele curral de malucos vulgares (BARRETO, 1993: p.25)”. Em outro
trecho, se dizia um “maluco periódico (BARRETO, 1993: p.158)”. Lima emprestou ao protagonista
algumas de suas heranças, tomando o cuidado de despersonalizá-las: em vez do pai louco, Vicente
tinha uma sogra insana; em vez do irmão que o internara, o sobrinho de Vicente exercera esta
função e mais uma vez a passagem para a literatura de si deixava entrever o background do
escritor: num determinado trecho do manuscrito do romance Lima escreveu irmão no lugar de
sobrinho.
Vicente desenvolveu algumas queixas do seu criador:
Entrei no Hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de
ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no Pavilhão pouco tempo, cerca
de vinte e quatro horas. O Pavilhão de observação é uma espécie de dependência do
Hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por
miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados.
Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um indivíduo, não ao alvedrio
de policiais de todos os matizes e títulos, gente sempre pouco disposta a contrariar os
poderosos; mas à consciência de um professor vitalício, pois o diretor do Pavilhão deve
ser o lente de Psiquiatria da Faculdade, pessoa que deve ser perfeitamente independente,
possuir uma cultura superior e um julgamento no caso acima de qualquer injunção
subalterna.
195
Entretanto, tal não se dá, porque as generalizações policiais e o horror dos homens da
Relação às responsabilidades se juntam ao horror às responsabilidades dos homens do
Pavilhão, para anularem o intuito do legislador.
A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as mais
infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos,
polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor de ser
por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e
transportáveis em carros blindados (BARRETO, 1993: p.121).
Lima aproveitou o espaço ficcional para dar conta do desabafo autobiográfico: a tristeza por passar
as festas de fim de ano no hospício (a mando do irmão); o horror à arbitrariedade e à violência do
esquema médico-policial ao interná-lo. Chegou mesmo a valorizar o título acadêmico (!) ao achar
melhor estar nas mãos do lente (antigamente, o professor de escola superior ou secundária) de
Psiquiatria, detentor de uma cultura superior, do que nas garras da polícia. O paradoxo: apesar de
abominar títulos, preferia estar entre os de educação superior, evitando, assim, a truculência e
ignorância dos policiais além do denunciado preconceito racial. Mais adiante, Vicente resumiria
assim a contradição da sua situação no Pedro II:
Como é que eu, em vinte e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com
ficha na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem beira,
atirado para ali que nem um desclassificado [?] Por que o Estado queria-me gratuito,
comendo à sua custa, quando era mais simples tomar-me o ordenado e dar-me pelo
menos um paletot [?]...(BARRETO, 1993: p.121).
A revolta de Vicente foi também a de Lima, eternamente queixoso do ingresso no pavilhão de
gratuitos. Percebe-se a associação entre o hospício e a repartição pública sob a chancela Estado. Era
contra este e suas instituições que se insubordinava, fosse ao criticar o Pedro II, a Secretaria de
Guerra ou a polícia. De fato, parecia incrível que um funcionário público, registrado na folha de
pagamento do Estado, fosse internado por outra de suas instituições como indigente. Seria mais
simples, dizia ele, dispensá-lo do cargo e tomar-lhe o salário.
Um tema inédito em O cemitério dos vivos, ausente de Diário do hospício, é o inevitável sexo no
manicômio. Vicente não fazia vista grossa ao ver pacientes “de bruços, com um curativo negro de
196
um cáustico qualquer, que denunciava uma das mais nojentas formas de sodomia (BARRETO,
1993: p.153)”. Por meio do protagonista, Lima apresentava novas informações ou confirmava idéias
e histórias do diário: elogiava a dedicação dos funcionários (sobretudo os que o haviam ajudado),
geralmente partindo em sua defesa: “Os atritos entre guardas e doentes são raros, mas os há, porque
muitos destes são deveras insuportáveis, e alguns guardas são impacientes, por fadiga ou gênio;
mas, em geral, as relações são amistosas (BARRETO, 1993: p.155)”. O excesso de compreensão
era provável fruto da experiência do filho de um ex-funcionário de hospício, além da evidente
simpatia pelos pistolões arranjados (tema abordado no capítulo 2). Em relação aos médicos, era
invariavelmente implacável:
Eu tinha muito medo do meu médico da secção Pinel; ele tinha o orgulho e a na sua
atividade intelectual, e os pontos de dúvida que deviam tirar do seu espírito o
sentimento de sua evidência, pareciam que antes reforçavam-no. (...) O terrível nessa
cousa de hospital é ter-se de receber um médico que nos é imposto e muitas vezes não é
da nossa confiança. Além disso, o médico que tem em sua frente um doente de que a
polícia é tutor e a impersonalidade da lei, curador, por melhor que seja, não tem mais na
conta de gente, é um náufrago, um rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e desgraça
podem ainda ser úteis à salvação dos outros, e a sua teima em não querer prestar esse
serviço aparece aos olhos do facultativo, como a revolta de um detento, em nome da
Constituição, aos olhos de um delegado de polícia. A Constituição é para você?
(BARRETO, 1993: p.153).
O temor da autoridade psiquiátrica podia ser mais bem desenvolvido no romance, longe da austera
rotina no Pedro II e de possíveis censuras aos escritos que porventura caíssem nas mãos dos
médicos severamente julgados pela insolência do interno. O medo era imediatamente transformado
em crítica, ainda mais ferrenha do que no diário, como na seguinte descrição do chefe da seção:
Era um moço de minha idade, conhecido na rua, mas, conforme meu hábito, que ele
não se deu a conhecer, eu não me dei também. Em rigor, ali, doente indigente, pária
social, a mais elementar dignidade fazia que eu não o fizesse e, por estar em tal estado,
temia-o muito. Sentia, não sei por que, nesse rapaz, um grande amor à novidade, uma
pressa e açodamento, muito pouco científicos, em experimentar o “remédio novo”.
Percebia-se pelo seu ar abstrato, distraído, que era homem de leituras, de estudos; mas
também, por não sei que ar de fisionomia ou de olhar, que era inquieto e sôfrego.
197
Faltavam-lhe capacidade de meditação demorada, da paciência de examinar durante
muito tempo o pró e contra de uma questão; o havia nele a necessidade da reflexão
sua, de repensar o pensamento dos outros até admitir como sua a evidência, tida por um
outro como tal. Essa sua falta de método, junto a minha condição de desgraçado,
davam-me o temor de que ele quisesse experimentar em mim um processo novo de
curar alcoolismo em que se empregasse uma operação melindrosa e perigosa. Pela
primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda
a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver
de anfiteatro de anatomia. (BARRETO, 1993: p.175).
Primeiramente, Vicente mostrava que conhecia o médico fora do território manicomial, mas,
humilhado na condição de interno, preferira não insistir nisso. Em seguida, dissecava o perfil do
psiquiatra: um homem educado, culto, aparentemente arrivista, disposto a qualquer negócio para
testar a ciência nas cobaias humanas do manicômio. O pânico do paciente desapropriado pelo
Estado, dono de um corpo desarticulado pela interdição, era ficcionalizado, mas o autor já o
vivenciara como realidade (rever citação anterior, neste próprio capítulo, sobre situação semelhante
descrita no diário). Daí o testemunho de Lima Barreto, seja no diário ou em vários trechos de O
cemitério dos vivos, trazer esta marca do documento de relevância histórica, tal qual se lê, por
exemplo, Diário de Anne Frank e fica-se sabendo do horror do holocausto pelos olhos de uma
menina restrita a um esconderijo-cubículo (entre 1942 e 1944), dividido com outros judeus que
fugiam à violência nazista. Ao falar de si mesma, das peculiaridades dos companheiros de
esconderijo, narrar notícias de bombardeios e tecer críticas a Hitler, Anne Frank fabricou uma
escrita de si multifuncional sob o impacto de uma situação emergencial. A publicação póstuma do
diário contribuiria para a compreensão do dominador pelo dominado durante a Segunda Guerra,
sendo bem-sucedida justamente pela apresentação desta ótica inusitada: a da vítima que usa a
escrita como combate ao opressor, apontando-lhe erros e barbáries que permaneceriam recônditos
não fosse este olhar do contraponto.
O mérito documental do diário de Lima é estendido ao romance e encontra nas palavras de Vicente
uma síntese da urgência da situação-limite – bem como a explicação para o título do livro:
Olham-se (...) todos aqueles homens, muitas vezes moços, sem moléstia comum, que
não falam, que não se erguem da cama nem para exercer as mais tirânicas e baixas
exigências da nossa natureza, que se urinam, que se rebolcariam no próprio excremento,
198
se não fossem os cuidados dos guardas e enfermeiros, pensa-se profundamente,
dolorosamente, angustiosamente sobre nós, sobre o que somos; pergunta-se a si mesmo
se a cada um de nós está reservado aquele destino de sermos nós mesmos, o nosso
próprio pensamento, a nossa própria inteligência, que, por um desarranjo funcional
qualquer, se há de encarregar de levar-nos àquela depressão de nossa própria pessoa,
àquela depreciação da nossa natureza, que as religiões querem semelhante a Deus,
àquela quase morte em vida.
Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de vivos, que um diplomata brasileiro,
numa narração de viagem, diz ter havido em Cantão, na China.
Nas imediações dessa cidade, um lugar apropriado de domínio público era reservado
aos indigentes que se sentiam morrer. Davam-se-lhes comida, roupa e o caixão fúnebre
em que se deviam enterrar. Esperavam tranqüilamente a Morte.
Assim me pareceu pela primeira vez que deparei com tal quadro, com repugnância, que
provoca a pensar mais profundamente sobre ele, e aquelas sombrias vidas sugerem a
noção em torno de nós, de nossa existência e a nossa vida, vemos uma grande
abóbada de trevas, de negro absoluto. Não é mais o dia azul-cobalto e o ceú-ofuscante,
não é mais o negror da noite picado de estrelas palpitantes; é a treva absoluta, é toda
ausência de luz (...)
A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é possível que os estudiosos tenham
podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se apresenta como as árvores,
arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de cousas diferentes.
Uma generalização sobre o seu fundo pecaria pela base. Choques morais, deficiência de
inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas
e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é. (...) A explicação por
hereditariedade é cômoda, mas talvez seja pouco lógica (BARRETO, 1993: pp.148-
149).
Ao se flagrar, a si, na subcondição de cadáver de anfiteatro de anatomia, Vicente, olhando ao
redor, só descortinava a morte em vida. A convivência com pacientes que perdiam o controle das
próprias funções orgânicas o levava à reflexão sobre o cemitério dos vivos. No romance revelou que
199
o termo era importado de uma tradição da cidade de Cantão, na China, onde se reservava um lugar
afastado, nas imediações, para indigentes à beira da morte. Isolavam-nos intencionalmente para este
fim. Lima, sempre atento à injustiça social, associava esta prática ao hospício, instituição autorizada
a internar errantes pelas ruas do Rio, vítimas da indigência cabe lembrar a observação feita no
capítulo 1: um censo realizado em 1981 na Colônia Juliano Moreira revelou que 22% da população
de pacientes, internados ali desde a década de 1930, jamais haviam apresentado qualquer quadro
psiquiátrico.
Lima antecipou denúncias fundamentais no combate à perversidade do sistema psiquiátrico,
fazendo desta escrita da acusação um exercício de cidadania. Pode-se dizer que O cemitério dos
vivos completou Diário do hospício na empreitada de obrigar pessoas comuns e autoridades a
ouvirem – lerem – a loucura, a psiquiatria, pela voz/manuscrito de um paciente. Décadas mais tarde,
algumas dessas idéias-denúncias formariam a base da antipsiquiatria pelo mundo, responsável pelo
movimento antimanicomial que poria fim ao sistema fechado de manicômio, buscando na
arteterapia um apoio fundamental à humanização do tratamento da loucura.
O autor não se conformou com a classificação reduzida dos estudiosos e gritou contra a
arbitrariedade e o excesso de autoridade psiquiátrica na condenação dos pacientes à reclusão. Intuía
que a hereditariedade o determinava a loucura, sendo esta a soma de fatores sutis e complexos,
não encaixáveis em módulos práticos: deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios; ou,
ainda, nenhum deles. Mais ainda: intuía que o modo pelo qual eram tratados os ditos loucos não
lhes trazia muito alívio ao sofrimento, já que do tratamento a escuta estava excluída.
A vivência naquele cemitério havia lhe impregnado a lembrança mais mórbida e triste: a sensação
da treva absoluta, de toda ausência de luz. Ainda que sob esta sombra, mostrou iluminação
suficiente para mais uma vez transformar em fatos literários os fatos históricos” e constituir um
“índice privilegiado para o estudo da história social do período” de que fala Sevcenko.
No contexto da literatura da urgência, dado o seu caráter personalíssimo, O cemitério dos vivos é
obra igualmente marcada pelo sobressalto, pela revolta pós-internação. Se não foi totalmente escrita
sob estado de emergência, reuniu extratos brutos da urgência escritos no hospício e posteriormente
trabalhados literariamente no sentido da invenção de uma trama, de personagens, de uma
preocupação maior com a narrativa, de um refinamento formal. As idéias-base, contudo, foram
geradas, em sua maioria, no período de internamento. E esta característica particular, bem como
200
várias frases reproduzidas do diário, faz o romance tocar a literatura da urgência, ainda que não seja
um exemplar íntegro desta. Aliás, o mesmo pode ser dito de Recordações da casa dos mortos, obra
citada por Lima no diário e no romance, escrita por Dostoiévski com base na sua experiência nos
campos de trabalhos forçados na Sibéria: em vez de simplesmente narrar o seu período traumático
como prisioneiro, o autor russo expôs o dia-a-dia no presídio por meio do personagem Alexandr
Petrovitch, condenado pela morte da mulher (diferentemente de Dostoiévski, acusado de
subversão). Os títulos de ambos (O cemitério dos vivos e Recordações da casa dos mortos), com
clara alusão à relação cárcere-morte, se aproximam.
Importante assinalar que alguns romances de Lima Barreto contiveram, se não a urgência do diário,
a urgência da loucura. Uma breve incursão em vários trechos mostra como o escritor desvelava a
melancolia, o alcoolismo, ou mesmo a loucura, inoculando-a na ficção. Isaías Caminha apresentava,
em diversos momentos, uma melancolia, ou atonia, segundo o próprio: “Esse domingo foi um dos
últimos que passei com relativa satisfação. Invadia-me uma indiferença, uma atonia, que me fazia
viver sem me decidir a tentar o menor passo para sair da situação em que me achava. Media as
dificuldades, os óbices, os tropeços, achava-os iníquos, mas superiores às minhas forças
(BARRETO, 201: p.178)”. Nas linhas finais do livro, ele acrescentaria o alcoolismo a esse quadro
de debilidade geral – na época diagnosticado como neurastenia: “Lembrava-me de que deixara toda
a minha vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz.
Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool
e com os prazeres... (BARRETO, 2002: p.256)”. A mesma atonia encontrava-se no narrador de
Vida e morte de M. J. Gonzaga de : “Eu tinha uma grande atonia mental. A noite passada quase
em claro, e as suas emoções, tinham-me esgotado dando um forte torpor de corpo e uma imensa
lassidão cerebral. Respondi somente compreendendo as palavras do meu amigo, sem atividade
cerebral suficiente para que elas provocassem em mim um outro qualquer pensamento (BARRETO,
2002: p.611)”.
Essa atonia, espécie de lassidão cerebral, está presente na maioria dos escritos de Lima, em rios
gêneros, remetendo invariavelmente a si mesmo, como se vislumbrasse passo a passo da agonia na
direção do alcoolismo, o que o levaria à proximidade da loucura não apenas dos loucos do
hospício, mas do temor diante do próprio delírio. Por meio dos personagens, Lima auscultava em si
alguns sintomas que o preocupavam e não eram ignorados, pelo contrário, eram expostos nos
201
escritos íntimos e na ficção, sem pudor, quando atribuía a si a melancolia, uma fragilidade psíquica
mal vista na sociedade de homens viris da época.
Uma passagem de Recordações do escrivão Isaías Caminha revelava, por exemplo, o sarcasmo do
protagonista diante de um alienista, o jovem doutor Franco de Andrade, proprietário de títulos e
distinções, cuja idéia de descobrir a raça de criminosos por meio de mensurações antropológicas
era objeto de deboche. Loucos sempre passearam pela obra de Lima, ainda que coadjuvantes, a
exemplo de Lobo: ele “enlouquecera e estava recolhido ao hospício. A sua mania era não falar nem
ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semanas inteiras, pedindo tudo por acenos
(BARRETO, 2002: p.251)”.
Outra referência recorrente às colônias de alienados na obra de Lima surge em passagens de M. J.
Gonzaga de em que os personagens flanavam pelo Rio e visitavam os arredores da Ilha do
Governador, mencionando as colônias de alienados onde trabalhara e vivera o pai do autor. Augusto
e Gonzaga visitavam o local, e o narrador assim as descrevia: “Parecia mesmo um rio. Na frente,
margem esquerda, o manicômio com suas vetustas mangueiras joaninas e o seu campo liso e
arenoso. Um ilhote ficava no meio do canal e tinha ainda em pé as paredes de um sobrado
(BARRETO, 2002: p.576)”. Gonzaga adicionava informações:
Defronte, fica o Galeão, da Ilha do Governador, e o Fundão, uma outra ilha, povoados
ambos os lugares de mangueiras maravilhosas... Imagina tu que, afora as que o raio pôs
abaixo, as do Galeão são algumas dezenas em quadrilátero e viram Dom João VI... A
enfermaria de loucos que elas ensombram majestosamente foi casa de residência do rei
simplório e infeliz... (BARRETO, 2002: p.574).
Em Diário do hospício, por estar provisoriamente internado num lugar que evocava reminiscências
da infância, Lima estampou descrição mais acurada das colônias, ao encontrar com o inspetor Dias,
que o conhecia desde os nove anos:
Ele foi em 90, com meu pai, nomeado escriturário das colônias da Ilha do Governador,
exerceu as funções de enfermeiro-mor da Colônia Conde de Mesquita. As suas funções
eram árduas, porquanto, ficando ela a dous quilômetros e meio da sede da
administração, ele arcava com toda a responsabilidade de governar uma centena de
loucos, numa colônia aberta para um grande campo, cheio de vetustas mangueiras, a
202
que o raio e o tempo tinham desmanchado os maravilhosos quadriláteros, um dentro do
outro, formando uma alameda quadrangular, que devia ser soberba quando intacta,
pelos tempos de Dom João VI, que a conheceu, pois o edifício principal dela tinha sido
uma das muitas casas de recreio que o bom e gordo rei tinha pelos arredores do Rio
(BARRETO, 1993: p.29).
Duas referências repetem-se, na ficção e no diário íntimo: a admiração pelas vetustas e
maravilhosas mangueiras; a alusão ao simplório, infeliz, bom e gordo Dom João VI, antigo
habitante de uma das casas do manicômio. Pode-se pensar na obra de Lima também como índice
privilegiado para o estudo da loucura no período, parafraseando Sevcenko tornando-se possível
acompanhar o percurso do autobiográfico para o ficcional, sem grande disfarce. Por este trecho de
O cemitério dos vivos, é facilmente perceptível o episódio que inspiraria posteriormente a escrita de
um conto:
Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que <há> tantas formas de
loucura quanto de temperamentos entre as pessoas mais ou menos sãs, e os furiosos
são exceção; até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche
fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática almanjarra de ferro e grades.
É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de solitária, pouco mais
larga que a largura de um homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia
gradeada, por onde se enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem
descobrir quem é o doido que vai ali. A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau
antiga, no calçamento; sobe, desce, tomba pra aqui, tomba para ali; o pobre-diabo
dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de
encontro às paredes de ferro; e, se o jogo da carruagem dá-lhe um impulso para frente,
arrisca-se a ir de fuças de encontro à porta de praça-forte do carro-forte, a cair no vão
que entre o banco e ela, arriscando a partir das costelas... Um suplício destes, a que
não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica
a um desgraçado que teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos...
É uma providência inútil e estúpida que, anteriormente, em parte, me aplicaram;
contudo, posso garantir que iria para o Hospício muito pacificamente, com qualquer
agente, fardado ou não. Era o bastante que me ordenassem segui-lo, em nome do
203
poderoso chefe de polícia, eu obedeceria incontinenti, porquanto estou disposto a
obedecer tanto ao de hoje como ao de amanhã, pois não quero, com a minha rebeldia,
perturbar a felicidade que eles vêm trazendo à sociedade nacional, extinguindo aos
poucos o vício e o crime, que diminuem a olhos vistos.
Por mais passageiro que seja o delírio, um ergástulo ambulante dessa conformidade
pode servir para exacerbá-lo mais e tornar odiosa aos olhos do paciente uma
providência que pode ser benéfica. A medicina, ou a sua subdivisão que qualquer outro
nome possua, deve dispor de injeções ou lá que for, para evitar esse antipático e
violento recurso, que transforma um doente em assassino nato involuído para fera
(BARRETO, 1993: pp.121-122).
Lima usou a ficção para delatar a cruel forma de transporte de loucos na época, da qual também foi
vítima ao ser conduzido pela polícia, de Guaratiba até o Pedro II, em 1914. Daí a riqueza de
detalhes da literatura de si: nesse desdobrar do fato autobiográfico para o romance, a descrição
literária sai aprimorada, tanto nas informações precisas quanto na emoção do personagem
conduzido no carro-forte. Lima apimentou o texto com mordacidade ao adjetivar policiais de super-
agudos, despreparados para compreender loucos e suas nuances. Alardeou: nem os piores
criminosos eram transportados ali, apenas os que iam para o hospício, isto é, justamente os não-
criminosos. Acusou: conforme a lei, detidos por provável quadro psiquiátrico mereciam pior
tratamento do que assassinos. Em seguida, desdenhava sutilmente da psiquiatria, ao se referir à
medicina, ou a sua subdivisão que qualquer outro nome possua. E, profético, adivinhava uma
injeção (a ampla gama de medicamentos inventados a partir dos anos 1950, cada vez mais
aperfeiçoados, para conter surtos) capaz de conter furiosos a caminho do manicômio.
O traslado na vida real do escritor foi tão traumático que rendeu um conto, intitulado Como o
‘homem’ chegou, ao fim do qual o autor registra a data: 18/10/1914 (exatos cinco dias após a saída
do hospício). Se este primeiro período no manicômio não rendeu um diário, ou romance, deixou
vazar um conto que já prenunciava a urgência de Lima em desvelar as artimanhas da união polícia-
psiquiatria. No conto, policiais de uma ociosa delegacia do Rio viam-se obrigados a ir até Manaus
pegar o “homem”, ou seja, o louco, que poucas vezes era assim caracterizado na trama. Quase
sempre aparecia como “homem”: chamá-lo desta forma representaria talvez a forma de
humanização do doente, mas as aspas estavam sempre presentes para indicar que o louco não era
visto, pela polícia, no contexto do humano. O sujeito em questão, Fernando, empregado de uma
204
delegacia fiscal, teria sido diagnosticado como louco pela dedicação excessiva à Astronomia,
devido a certos gestos e preocupações excêntricas, bem como pelos hábitos boêmios. Fica evidente
a crítica de Lima ao juízo arbitrário, pouco científico; o conto soa a ajuste de contas.
O autor exagera na travessia do grupo: em vez de irem até o norte do país num navio de passageiros
para pegar o “homem” e trazê-lo com eles, os policiais levavam o famigerado carro-forte até
Manaus para trazê-lo ao Rio trancafiado na masmorra. É clara a ênfase na descrição do meio de
transporte:
Assim era; e foi sem dificuldade que atendeu ao pedido de Cunsono no que toca ao
carro-forte. Prontamente deu as ordens para que fosse fornecida a seu colega a
masmorra ambulante, pior do que masmorra, do que solitária, pois nessas prisões sente-
se ainda a algidez da pedra, alguma cousa ainda de meiguice, meiguice de sepultura,
mas ainda assim meiguice; mas, no tal carro feroz, é tudo ferro, há a inexorável
antipatia do ferro na cabeça, ferro nos pés, aos lados uma igaçaba de ferro em que se
vem sentado, imóvel, e para a qual se entra pelo próprio pé. É blindada e quem vai nela
levado aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do calçamento das vias
públicas, tem a impressão de que se lhe quer poupar a morte por um bombardeio de
grossa artilharia para ser empalado aos olhos de um sultão. Um requinte de potentado
asiático.
Essa prisão de Calístenes, blindada, chapeada, couraçada, foi posta em movimento; e
saiu, abalando o calçamento, a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora em busca
de um inofensivo (BARRETO, 1993: p.202).
O contraste entre o carro-forte e o inofensivo preso é salientado. Percebe-se na descrição do
episódio o chamado conhecimento de causa: o adjetivo feroz dado ao carro, a antipatia do ferro a
machucar várias partes do corpo, o exagero da blindagem, a insegurança do corpo aos trancos e
barrancos. Uma prisão em movimento, prenúncio do cárcere maior, imóvel, ao qual se dirigia o
candidato à loucura.
O conto é pontuado pela ironia, sobretudo na passagem em que os policiais decidem que “o carro
merecia ir para um camarote de primeira classe”. Detalhe: onde ficariam os burros que puxavam o
carro-forte? Ao telegrafarem para o delegado, receberiam pronta resposta: “Burros sempre em
205
cima”. E Lima, sem poupar o trocadilho, aproveitava-se da ignorância geral da polícia como
munição para a malícia: “Opinião como esta, tão sábia e tão verdadeira, tão cheia de filosofia e
sagacidade da vida, aliviou todos os corações e abraços fraternais foram trocados entre conhecidos e
inimigos, entre amigos e desconhecidos. A sentença era de Salomão e houve mesmo quem quisesse
aproveitar o apotegma para construir uma nova ordem social (BARRETO, 1993: p.205)”.
No trecho em que o trajeto até Manaus é narrado em minúcias, evidencia-se a crítica do autor à
tolice da proposta de levar o carro-forte vazio, expondo-o no camarote como um monstro de museu,
um fetiche a bordo. Em terra firme, a situação extrapolaria ainda mais o absurdo: os encarregados
de deter o “homem” muniam-se de artilharia pesada, num patético esforço de guerra, como se
combatessem um titã. Uma vez detido o cidadão avaliado como pacato pelo narrador, a caravana
seguia por terra para o Rio, levando quatro anos para atravessar o país, de norte a sudeste,
enfrentando ataques de jacarés e cortejos de urubus que, a certa altura do trajeto, descobriam as
carnes putrefatas do “homem”, morto após meses sem comida:
Sob um sol de fogo, o carro solavancava pelos maus caminhos; e o doente, à míngua de
não ter onde se agarrar, ia ao encontro de uma e outra parede de sua prisão couraçada.
Os burros, impelidos pelas violentas oscilações dos varais, encontravam-se e repeliam-
se, ainda mais aumentando os ásperos solavancos da traquitana; e o cocheiro, na boléia,
oscilava de para cá, de para lá, marcando o compasso da música chocalhante
daquela marcha vagarosa (BARRETO, 1993: p.209).
Como não existe registro de escritos íntimos na primeira internação de Lima, pode-se pensar neste
conto como a literatura de si em que explodiu a revolta, o sofrimento, a redenção a urgência, por
fim. Sob o efeito da internação, poucos dias após a alta, o escritor não se aprofundou nos dilemas da
loucura, nas limitações da psiquiatria, na dissecação dos delírios, tampouco no difícil convívio com
os pacientes. Ateve-se ao primeiro dos traumas nesse histórico que se ampliaria durante a segunda
temporada: a humilhação e insegurança do preso indigente, conduzido por burros como fera
enjaulada, sob arbitrária decisão da tríade psiquiatria-família-polícia.
A prospecção da loucura a assombrar os escritos de Lima desde o primeiro romance pode servir de
base para uma melhor compreensão desta vida-obra por vezes tão indissociável. O fato de a loucura,
exposta das mais variadas formas, cruzar a obra de Lima desde o começo supõe uma pré-condição
para a literatura da urgência espasmos desta surgiram antes mesmo da internação, por meio de
206
informações, personagens ou atonias que já desvelavam uma melancolia excessiva e indicavam uma
preocupação com o tema. E esta urgência detectada na literatura de si alcança o ápice na
composição do personagem Policarpo Quaresma, o louco quixotesco que fez a aproximação
loucura-morte esgarçar o limite final ao protagonizar o triste fim.
Desde o início de Triste fim de Policarpo Quaresma, o protagonista é apresentado como, no
mínimo, excêntrico, senhor de hábitos diferentes na comparação com um homem da sua idade, em
seu contexto social-intelectual. Patriota incorrigível, tentou ser militar, mas foi reprovado no quesito
saúde. Tornou-se então sub-secretário do Arsenal de Guerra para não se afastar do que acreditava
ser a sua vocação (militar). Descrito como “esquisito e misantropo”, “vivia num isolamento
monacal (BARRETO, 2001: p.261)”, numa casa em São Cristóvão. A pecha de louco,
simplesmente devido à misantropia, à diferença, pode ser identificada desde as primeiras páginas. A
simples decisão de aprender violão, por exemplo, foi motivo suficiente para aventarem ser ele
“perdido, maluco (BARRETO, 2001: p.262)”. Vários hábitos considerados estranhos à vizinhança
eram vistos como manias: a insistência em valorizar a modinha e folguedos populares do Nordeste
(a Chegança) como genuínas expressões da poesia nacional; a biblioteca abarrotada de livros que
sugeria uma ambição intelectual acima da condição de funcionário público; o estudo do tupi-
guarani; a pesquisa incansável das tradições e costumes indígenas. Ao se radicalizarem, as manias
logo se tornariam sinais de loucura: ao saber do estudo do tupi-guarani, por exemplo, colegas o
apelidaram, jocosamente, de Ubirajara; ao chorar em vez de apertar a mão de um conhecido, como
forma de resgate de um cumprimento típico dos tupinambás, perguntaram se estava doido.
Lima enxertou no personagem algumas de suas utopias em relação ao Brasil, sendo que, neste
exemplar da literatura de si, parecia obter maior distanciamento. Afinal, chegava à raia do exagero e
o ridicularizava, justamente em sua ingenuidade intelectual. Algumas idéias de Policarpo poderiam
bem constituir um belo projeto para o Brasil da época, trôpego em sua busca de identidade, ainda
dividido entre miscigenações / influências: a européia (do colonizador e da supremacia cultural-
literária); a indígena, alvo de eterno preconceito das elites; a negra, africana, que muito lentamente
fazia a transição da escravidão para a cidadania plena. Acima de todo desencontro, Policarpo
enxergava um país que beirava a perfeição:
(...) é preciso não esquecer que o major, depois de trinta anos de meditação patriótica,
de estudos e reflexões, chegara agora ao período de frutificação. A convicção que
sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande amor à pátria,
207
eram agora ativos e impeliram a grandes cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos
imperiosos a agir, de obrar e de concretizar suas idéias. Eram pequenos melhoramentos,
simples toques, porque em si mesma (era sua opinião), a grande pátria do Cruzeiro
precisava de tempo para ser superior à Inglaterra.
Tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais úteis e as melhores
terras de cultura, a gente mais valente, mais hospitaleira, mais inteligente e mais doce
do mundo o que precisava mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto,
dúvidas não flutuavam mais no seu espírito, mas no que se referia à originalidade de
costumes e usanças, não se tinham elas dissipado (...) (BARRETO, 2001: p.271).
O protagonista demonstrava a mesma preocupação recorrente de Lima: a valorização da cultura
nacional e a busca de uma originalidade que evitasse a cópia grosseira dos modelos europeus de
sucesso de nação. O Brasil tinha, naturalmente, todos os elementos para crescer e... superar até
mesmo a Inglaterra!
Um detalhe curioso em Policarpo é a sua descrição física: pequeno, magro, usava pince-nez e
vestia fraque e cartola. O tipo podia muito bem remeter a um típico europeu do século XIX, ainda
que o protagonista usasse tecidos e calçados nacionais e se recusasse a comer petit-pois por ser uma
especiaria estrangeira (lembremos que o narrador de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá
declarava, orgulhosamente, nunca ter posto uma casaca). Lima desenha um personagem com mais
condições financeiras, capaz de se vestir com elegância e dominar vários idiomas. Assim, talvez
merecesse mais crédito ao propor idéias e sugestões para o engrandecimento do país, sem desvelar
despeito pelas elites não era negro e pobre como Isaías nem amanuense mediano de repartição
como Gonzaga; na hierarquia do funcionalismo público, chegara mais alto.
O autor privilegiava no personagem a boa intenção, a ingenuidade, a ausência de malícia e de
ambições políticas passíveis de macular tão altos ideais de pátria. Fosse ambicioso, política ou
financeiramente, Policarpo seria menos comovente. Entre tantas idéias utópicas, que avançariam na
escala do delírio, teceu frases que até hoje se aplicam ao Brasil: “Entre nós tudo é inconsistente,
provisório, não dura (BARRETO, 2001: p.273)”. Essa “simplicidade d’alma (BARRETO, 2001:
p.278)”, no entanto, se exacerbaria de forma tão radical que o deslocaria abruptamente do meio em
que vivia.
208
A primeira alusão à loucura de Policarpo surgiu num diálogo em que os personagens o rotularam de
doido:
Nem se podia esperar outra coisa disse o doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela
mania de leitura...
– Pra que lia tanto? – indagou Caldas.
– Telha de menos – disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
– Ele não era formado, para que meter-se em livros?
– É verdade – fez Florêncio.
Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores observou Sigismundo. Devia
até ser proibido disse Genelício a quem não possuísse um tulo acadêmico ter
livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham? (BARRETO, 2001: pp.290).
Eis a loucura associada à leitura, idéia ventilada pela ampla pesquisa de Foucault, que registrou a
leitura de romances e a obsessão pelas letras (citadas no capítulo 1) como causas da insanidade ao
longo dos séculos – idéia igualmente defendida por Cervantes, ao ironizar a loucura de Dom
Quixote se originando na leitura dos livros de cavalaria. A passagem acima, entretanto, contém um
excesso de maldade: o Genelício que falava com tanta autoridade sobre o assunto havia sido
descrito, na página anterior, como sujeito carimbado por títulos, com um curso de direito por
terminar. O doutor em formação mostrava todo o preconceito dos estudantes e diplomados em
relação aos não-doutores, a-intelectuais. Chegava a dizer que os livros deveriam ser proibidos a
esses párias da sociedade/intelectualidade, sob o risco de provocar desgraças. Na seqüência, todos
os interlocutores concordavam. Genelício deixava entrever que a leitura, em almas simples, sem
formação acadêmica, era catastrófica cabe também lembrar o processo judicial que sofreu
Flaubert na época da publicação de Madame Bovary, acusado de influenciar boas burguesas e de
expor um tipo de adultério que se aproximava de uma espécie de loucura. Lima enfatizava essa
interdição, como que a denunciar a dificuldade de acesso do povo ao conhecimento mais um fato
nacional, entre tantos denunciados pelo escritor, que perdura até a atualidade.
209
Lima, aficionado de Cervantes a ponto de citá-lo num dos momentos mais desesperados da estadia
no hospício (trecho transcrito no capítulo 1), tocava num pormenor de grande importância na
construção de Policarpo Quaresma a verve quixotesca. O protagonista foi taxado de Dom Quixote
nacional ainda em 1916, ano da publicação do romance em livro, no artigo publicado por M. de
Oliveira Lima em O Estado de S. Paulo:
(...) o Major Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Ambos são
tipos de optimistas incuráveis, porque acreditam que os males sociais e sofrimentos
humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das
terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram paladinos.
Um levou sovas por querer proteger os fracos; o outro foi fuzilado por querer na sua
bondade salvar inocentes. Visionários ambos (...) (LIMA, 1997: p.422).
Estaria a loucura inoculada no excesso de otimismo, de idealismo? Ou na utopia que, uma vez
levada a cabo com e fervor, porém não concretizada, conduzia o sujeito à desesperança e ao
desespero? No que concerne à leitura, possível motor de influências negativas nos loucos citados,
também Dom Quixote partiu da literatura para viver um mundo de aventuras menos fictício e mais
arriscado do que a imaginação pressupunha:
Cumpre saber que o sobredito fidalgo, em seus momentos de ócio (ou seja, na maior
parte do ano), entregava-se a devorar livros de cavalaria, com tanta paixão e gosto, que
deu de esquecer-se por completo do exercício da caça, e até mesmo da administração da
fazenda; e a tanto chegaram sua curiosidade e desatino, que vendeu muitos alqueires de
terras de plantio para comprar livros de cavalaria, levando para casa todos os que pôde
encontrar. (...) Com tais razões, o pobre cavaleiro perdia o juízo, no afã de entendê-las e
desentranhar-lhes o sentido, coisa que não conseguiria nem o próprio Aristóteles, se
ressuscitasse unicamente para esse fim. (...) foi ficando tão obcecado com a leitura, que
a ler passava as noites de claro em claro e os dias de turvo em turvo. E assim, o pouco a
dormir e o muito ler se lhe secaram de tal maneira o cérebro, que acabou por perder o
juízo. Sua imaginação encheu-se até a borda com tudo aquilo que lia nos livros, tanto de
feitiçarias, como de contendas, batalhas, desafios, ferimentos, requebros, amores,
tormentas e disparates impossíveis; e de tal modo se lhe afigurou verdadeira toda a
trama das sonhadas invenções que lia, que para ele não poderia haver no mundo
histórias mais reais (CERVANTES, 1991: p.28).
210
Percebe-se em Dom Quixote o processo de enlouquecimento partindo dos livros de cavalaria até
tomar o protagonista de assalto, ocupá-lo por inteiro. Os liames entre ficção e realidade estavam
rompidos. O personagem acreditava verdadeiramente que as histórias dos livros eras as mais reais.
Assim, “pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para o engrandecimento de sua honra como
para o proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e sair pelo mundo com armas e cavalo, em
busca de aventuras, e a exercitar-se em tudo o que havia lido acerca das práticas dos cavaleiros
andantes, desfazendo todo gênero de agravos, enfrentando agruras e perigos, a fim de que,
vencendo, pudesse granjear fama e nome eternos (CERVANTES, 1991: p.28)”. Policarpo passava
ao largo de uma vida de aventuras fantásticas, mas os dois, cada qual em seu delírio privado,
parecem ter transformado em loucura o excesso de idealismo.
O anti-herói de Lima Barreto canalizou toda essa força idealista para a edificação de um Brasil
perfeito, original e autônomo. Para tanto, precisou, de imediato, modificar a língua portuguesa que,
como o próprio nome denunciava, não era brasileira, mas do colonizador. Após uma meditação
patriótica calcada em três décadas de leitura compulsiva sobre o país, decidiu concretizar suas
idéias com o que considerava pequenos melhoramentos, simples toques. E foi um destes que
desencadeou o escândalo: a tentativa de fazer do tupi-guarani a língua oficial e nacional da
população brasileira, por meio de uma requisição na Câmara. A reação foi automática: a troça, entre
colegas, amigos e leitores dos jornais que o ridicularizaram em público. Uma idéia ingênua,
utópica, oficialmente levada ao governo com toda seriedade por Policarpo Quaresma.
É comovente a descrição que o autor faz do isolamento e da inocência do protagonista:
Vivendo trinta anos quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma
sensibilidade muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca
sofrera críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu sonho incubado e
mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora deles, ele não conhecia ninguém; e, com
as pessoas com quem falava, trocava pequenas banalidades, ditos de todo o dia, coisas
com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver. (...) Esse encerramento em si
mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a tudo, às competições, às ambições, pois
nada dessas coisas que fazem os ódios e as lutas tinha entrado em seu temperamento.
Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho,
adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de idéia fixa, os
grandes estudiosos, os sábios, os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua,
211
mais inocente que as donzelas de poesia e outras épocas. É raro encontrar homens
assim, mas se os há e, quando se os encontra, mesmo tocados por um grão de loucura, a
gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais
esperança na felicidade da raça (BARRETO, 2001: pp.292-293).
Eis a perfeita descrição da loucura aliada à genialidade, por Lima Barreto. No hospício, ele notaria a
existência de tantas formas e espécimens de loucos. Este tipo, no entanto, o perfil de Policarpo, era
de um sujeito sensível, acostumado à retidão, anônimo. Um a-social/a-intelectual imerso em seu
sonho incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros, que buscava uma forma original de vida,
capaz de um distanciamento da sociedade que denunciava uma quase incomunicabilidade: trocava
banalidades, ditos de todo o dia, coisas com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
Isto é, consciente de que não falava a mesma língua dos outros, isolava-se, criava o próprio mundo
de idéias, inadaptava-se – ainda que, no caso de Policarpo, esta inadaptação fosse, de início,
discreta, não-revoltada, quase paralela. Até então gerada silenciosamente e guardada para si pelo
protagonista, a sua utopia não ameaçava a sociedade/intelectualidade. Uma vez exposta, translúcida,
contudo, transmutava-se em loucura, com direito a internação.
Bela a defesa da criatura pelo criador. Não se tratava da defesa da loucura como estado grave,
patológico, mas, justamente, da imaginação, da fantasia, do idealismo levado ao extremo,
automaticamente eletrificado ao tocar a cerca interposta pelo social. Lima destacava como pontos
fundamentais de Policarpo o desinteresse por dinheiro, glória ou títulos, a candura e pureza d’alma
que o faziam viver numa reserva de sonho. Grandes homens de idéia fixa, a exemplo de estudiosos,
sábios e inventores, comungavam das mesmas características, mas era possível, pelo sublime de
suas estaturas e objetivos, perdoar-lhes o inevitável grão de loucura.
Impossível não pensar no próprio perfil de Lima Barreto nesse elogio da loucura, ou melhor, deste
tipo de loucura, que esta era claramente relacionada à diferença, à incapacidade da sociedade em
absorver os diferentes que não necessariamente apresentavam quadros psicóticos, por exemplo.
Para a psiquiatria da época, era difícil criar classificações mais sutis, caso a caso eis a mágoa de
Lima Barreto. Por esta razão, o autor insistiu em alardear a inadaptação de um tipo como Policarpo,
delatando a inveja desencadeada pelas críticas a ele nos jornais; uma inveja que surgia no cotidiano
da repartição por parte de funcionários públicos medianos, incapazes de aceitar a superioridade de
um ou outro que, apesar de não diplomado, apresentava um nível cultural-intelectual acima da
instrução: “É como se visse no portador da superioridade um traidor à mediocridade (...)
212
(BARRETO, 2001: p.293)”. Lima quase diz: este tipo de louco tropeça no rótulo justamente por
ameaçar o status quo da mediocridade imperativa. Daí a inevitável inadaptação:
Olha-se para ele com ódio dissimulado com que o assassino plebeu olha para o
assassino marquês que matou a mulher e o amante. Ambos são assassinos, mas, mesmo
na prisão, ainda o nobre e o burguês trazem o ar de seu mundo, um resto da sua
delicadeza e uma inadaptação que ferem seu humilde colega de desgraça. (...) Em geral,
a incompreensão da obra ou do mérito do colega é total e nenhum deles se pode
capacitar que aquele tipo, aquele amanuense, como eles, faça qualquer coisa que
interesse os estranhos e que falar a uma cidade inteira. A brusca popularidade de
Quaresma, o seu sucesso e nomeada efêmera irritaram os seus colegas e superiores.
se viu! dizia o secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma coisa!
Pretensioso! O diretor, ao passar pela secretaria, olhava-o de soslaio e sentia que o
regulamento não cogitasse do caso para lhe infligir uma censura. O colega arquivista era
menos terrível, mas chamou-o de doido (BARRETO, 2001: p.294).
Facilmente distinguíveis a alusão à superioridade de Policarpo na lida do Arsenal de Guerra e a
dificuldade daquele pequeno círculo social em apreendê-lo nos ideais que, uma vez expostos ao
mundo, na bem-intencionada tentativa de engrandecer o Brasil, soavam estapafúrdios. Até o
compadre de Policarpo, sujeito simples, ao saber do escândalo nos jornais, pedia explicações à filha
Olga. Esta, afilhada de Policarpo, saía em defesa do padrinho: “É uma idéia, meu pai, é um plano,
talvez à primeira vista absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...
(BARRETO, 2001: p.297)”. Descrita como alguém de “bom senso”, com “amor às grandes coisas
(BARRETO, 2001: p.297)”, Olga era a única personagem interessada em compreender Policarpo,
um homem em busca do “seu sonho, isolado, obscuro e tenaz (BARRETO, 2001: p.297)”.
A trama do romance dá uma reviravolta com a petição escrita em tupi pelo protagonista e enviada,
distraidamente, para o ministro (cabe lembrar que este ministro seria o da Guerra, cargo mais alto
também da Secretaria de Guerra, onde o incompreendido Lima trabalhava). O imbróglio despertou
a fúria de um diretor da instituição, um coronel, que se aproveitaria da situação para humilhar o
sub-secretário Quaresma num diálogo em que lhe ressaltava, justamente, a falta de instrução
acadêmica: “Tem o senhor porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor Matemática,
Astronomia, Física, Sociologia e Moral? Como ousa então? Pois o senhor pensa em ter lido uns
romances e saber um francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau 9 em Cálculo, 10 em
213
Mecânica, 8 em Astronomia, 10 em Hidráulica, 9 em Descritiva? (BARRETO, 2001: p.299)”.
Valores relevantes na poética pessoal de Lima Barreto a literatura e a língua francesa (o que na
época possibilitava a leitura de romances em suas versões originais e fazia parte da formação da
maior parte dos literatos) eram destroçados em prol de conhecimentos de ciências matemáticas,
físicas, exatas. Era a literatura de si, mais uma vez aplicada num personagem fictício, desta vez, no
ingênuo Policarpo:
Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar da sabedoria do
seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio e pronunciara a frase para começar
a desculpa; mas, quando viu aquela enxurrada de saber, de títulos a sobrenadar em
águas tão furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéias e nada mais soube, nem
pôde dizer. Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel (...) (BARRETO,
2001: p.297).
O ideal do protagonista alcançara status social de crime. A humilhação ante a exposição de títulos e
diplomas bastara para abatê-lo. Em seguida, ao tomar o bonde e encontrar com um amigo, ele
travaria uma conversa em que lamentava o próprio idealismo:
– O major hoje parece que tem uma idéia, um pensamento muito forte.
– Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
– É bom pensar, sonhar consola.
Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os
homens... (BARRETO, 2001: p.299).
Era a constatação do isolamento, da diferença, pelo excesso de sonho, pela teimosia utópica: o
abismo entre ele e seus semelhantes culminaria com o diagnóstico de loucura, punida com a
internação. Ao descrever o manicômio em que Policarpo estava internado, Lima anunciava idéias
sobre o assunto, que gradativamente evoluiriam para verdadeiros tratados em obras subseqüentes
(Diário do hospício e O cemitério dos vivos). Flagra-se nesse romance, escrito antes da primeira
internação no Pedro II, a familiaridade com o tema e o lugar:
o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um
semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os
214
corpos raramente se ressentem. A saúde não depende dela e muitos que parecem até
adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe
porque orifício do corpo e para onde. (...).
No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do
povo por aquela casa imensa, severa, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil,
suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos metros, em face do mar imenso e
verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades. Entrava-se e viam-se uns homens
calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.
De resto, com aquela, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdia-se logo
a idéia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de tolices
ditas aqui e ali.
Não havia nada disso; era uma calma, uma ordem, perfeitamente naturais. No fim,
porém, quando se examinavam bem, na sala de visitas, aquelas faces transtornadas,
aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas, alguns idiotas sem expressão, outros como
alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, via-se também a excitação de
uns, mais viva em face da atonia dos outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o
angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga para o
espírito daquilo que se supõe real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou
de aparência das mesmas.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica
amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer
coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora
compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz
em si o seu mundo e para ele não mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro
muito outro do que ele vem a ser após (BARRETO, 2001: pp.300-301).
O rudimento do termo cemitério dos vivos estava exposto: o hospício era a sepultura em vida, o
enterramento do espírito. A associação loucura-morte era evidente, bem como a associação do
manicômio com os modelos institucionais do hospital e da prisão. Igualmente explícitas eram as
alusões ao horror da loucura, ao angustioso mistério, ao enigma indecifrável da nossa própria
215
natureza. Tornava-se claro o temor diante de um gérmen deste horror que, de uma hora para outra,
sem explicação razoável, crescia e ocupava um homem são.
Ao descrever internos mergulhados em um sonho íntimo sem fim, Lima deixava entrever uma das
suas questões básicas: em que momento exato da trajetória de um homem o que era um “grãozinho
de sandice” (BARRETO, 2001: p.301) transmutava-se em sandice condenável? Grande parte da
obra do autor, que toca no assunto loucura, parece um artifício para se encontrar respostas a esta
pergunta e, assim, decifrar o enigma indecifrável que afetou a maior parte da sua vida pessoal, sob
vários aspectos, em diversas fases. Policarpo Quaresma foi desenhado nesse sentido. Pelos olhos de
Olga, o autor destrinchou o processo de alheamento do protagonista:
Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele requerimento... Mas que era
aquilo? Um capricho, uma fantasia, coisa sem importância, uma idéia de velho sem
conseqüência. Depois, aquele ofício? Não tinha importância, uma simples distração,
coisa que acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a exaltação do eu, a
mania de não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os amigos, os
melhores. Como fora doloroso aquilo! A primeira fase de seu delírio, aquela agitação
desordenada, aquele falar sem nexo, sem acordo com o que se realizava fora dele e com
os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saía, de que ponto do
seu ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um
cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça, e enchia-o de indiferença
para tudo mais que não fosse o seu próprio delírio. A casa, os livros e os seus interesses
de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e
importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis
cujos nomes o seu delírio não chegava a criar (BARRETO, 2001: p.301).
A loucura de Policarpo era bem pontuada, em sua evolução: o patriota sonhador perdia a aura
romântica, idealista, e invertia realidade e ficção de forma radical, sem mais vestígio de charme ou
ingênua utopia. Nem mesmo os livros mantinham importância quando imperava o delírio delírio
este que, pela descrição, era persecutório (como os do pai de Lima e os do próprio escritor, quando
tomado pelo alcoolismo) e povoado por inimigos invisíveis. O personagem passou seis meses
internado e saiu abatido, segundo o autor, que, na seguinte passagem, aproveitou para mais uma vez
desfiar impressões sobre o grande mistério:
216
De todas as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais
depressora e pungente. Aquela continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo
imperceptível, mas profundo e quase sempre insondável, que a inutiliza inteiramente,
faz pensar em alguma coisa mais forte que nós, que nos guia, que nos impede e em
cujas mãos somos simples joguetes. Em vários tempos, a loucura foi considerada
sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de s quando, ao
vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que não é ele quem fala, é alguém,
alguém que por ele, interpreta as coisas por ele, está atrás dele, invisível!...
(BARRETO, 2001: pp.311).
Lima vaticinou: a loucura era a maior das tristezas, justamente por formar uma só e mesma entidade
com a própria morte (segundo Foucault, citado no capítulo 1). Aventou teorias antigas, baseadas no
fato de que loucos eram tomados por seres mortos, invisíveis, ocupados em governar seus corpos e
rotinas, extraindo-os de uma determinada lógica social aqui cabe lembrar frase famosa de Arthur
Bispo do Rosario: “O louco é um homem vivo guiado por um espírito morto (apud HIDALGO,
1996: p.78)”.
Um dado a mais na investigação de Lima sobre o tema é o interesse excessivo de Policarpo
evidentemente da ordem da simpatia / identificação – pela loucura da personagem Ismênia, uma das
filhas de um amigo general. Ao perceber que o noivo prometido a havia abandonado antes mesmo
do altar, a moça começava a demonstrar sinais de atonia, de uma loucura contida, não curável por
tratamentos tradicionais. O pai apelara então para o espiritismo dos escravos recém-libertos, em
cerimônias descritas com minúcia por Lima Barreto:
Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um curso governamental,
procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a filha.
Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça, davam um
estremeção, ficavam com os olhos desvairados, fixos, gritavam: “Sai, irmão!” – e
sacudiam as mãos, do peito para a moça, de para cá, rapidamente, nervosamente, no
intuito de descarregar sobre ela os fluídos milagrosos.
Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias para entrar no conhecimento das
forças ocultas que nos cercam, eram demoradas, lentas e acabadas. Em geral, eram
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pretos africanos. Chegavam, acendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um
sapo empalhado ou outra coisa esquisita, batiam com feixes de ervas, ensaiavam passos
de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O ritual era complicado e tinha a sua
demora (BARRETO, 2001: pp.300-301).
Em todo o corpus selecionado nesta tese diários, romances e contos pontuados pela escrita de si,
pela literatura de si e por uma literatura da urgência criada como forma de recusa à loucura o
trecho acima constitui referência única a cerimônias de exorcismo. Percebe-se como foi, sobretudo,
narrada com distanciamento cético: no rito, o autor destacava movimentos pouco convincentes,
truques com animais mortos e palavras ininteligíveis. A fé sincera no ritual fugia-lhe.
Além das preocupações com a própria condição mental, Policarpo dedicou grande atenção à
trajetória de Ismênia, que acabou por morrer jovem, vestida de noiva. O fato ganha relevância na
narrativa do romance: a loucura da moça teria decorrido da obrigação social, imposta pela
necessidade do casamento. Ela provavelmente teria sobrevivido, sã, não fosse o peso da sociedade
sobre os ombros, a forçar o encaixe na engrenagem perversa que relegava solteironas ao limbo
social. Era, afinal, mais uma inadaptada – portanto, castigada – às convenções sociais.
Esta influência da convenção sobre espíritos vulneráveis era igualmente atribuída a Policarpo, sob
outro aspecto. A certa altura, quando ele levava vida mais tranqüila num sítio do interior, tentando,
sem sucesso, engendrar campos de plantações de produtos nacionais, fica claro que não desistira
dos altos ideais: “As conseqüências desastrosas do seu requerimento em nada tinham abalado as
suas convicções patrióticas. Continuavam as suas idéias profundamente arraigadas, tão-somente ele
as escondia, para não sofrer com a compreensão e maldade dos homens (BARRETO, 2001:
p.330)”. O trecho sugere o óbvio: não importava a persistência da utopia, bela e ingênua, pois esta
não era, em si, traço de loucura; bastava camuflá-la, não explicitá-la à sociedade, normalmente
temerosa – e punitiva – diante da diferença.
No caso de Policarpo, o patriotismo, aquele tipo específico de patriotismo, se permanecesse
recôndito, não ameaçava a sociedade, não obrigava amigos a evitarem-no. Uma vez posto em
prática, tomava ares de surto, evoluindo para o delírio, o que o levara à internação. Após a alta do
manicômio, por exemplo, a loucura do protagonista pareceu curada. Restava, contudo, o gérmen, o
grão de sandice, que era claramente a utopia de um país perfeito, levada a cabo de forma inábil.
Pior, esta inocente mania patriótica o conduziria mais uma vez à superexposição de si: animado
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com idéias revolucionárias que, achava, transformariam as leis agrárias do Brasil e fortaleceriam a
República, Policarpo pediu um encontro com o presidente, o marechal Floriano Peixoto. Não
obteve o desejado, mas acabou deixando o sítio Sossego para fazer parte do batalhão Cruzeiro do
Sul, no posto de comandante de um destacamento de 40 homens, em defesa do governo do
marechal (1891-1894) durante, ao que tudo indica, a Revolta da Armada. Os florianistas, ou
jacobinos, eram fortemente nacionalistas, hostis aos monarquistas e combatiam a influência
estrangeira no país como forma de manter a República.
A desilusão patriótica de Policarpo não tardaria: o marechal taxou-o de visionário, reduzindo a
importância das suas idéias. Em seguida, com o avanço das batalhas (operações e bombardeios), o
protagonista finalmente cairia em si, reconhecendo-se cúmplice de assassínios em nome do
nacionalismo e se apercebendo de que a aplicação pragmática do patriotismo no dia-a-dia não fazia
sentido algum na direção de um real progresso:
(...) todo o sistema de idéias que o fizera meter-se na guerra civil se tinha desmoronado.
Não encontrara Sully e muito menos Henrique IV. Sentia também que o seu
pensamento motriz não residia em nenhuma das pessoas que encontrara. Todos vinham
vindo ou com pueris pensamentos políticos, ou por interesse, existia uma adoração
fetíchica pela forma republicana, um exagero das virtudes dela, um pendor para o
despotismo que seus estudos e meditações não podiam achar justos. Era grande a sua
desilusão. (...) A sociedade e a vida pareceram-lhe coisas horrorosas, e imaginou que do
exemplo delas vinham os crimes que aquela punia, castigava e procurava restringir.
Eram negras e desesperadas, as suas idéias; muita vez julgou que delirava (BARRETO,
2001: p.395).
O desmoronamento do sistema de idéias de Policarpo indicava a fragilidade de um patriotismo
utópico, pessoal, diante da irretorquível realidade nacional. Projetara ideais demasiado altos e
deparava com os mesmos cios e ambições políticas de sempre, agravados pela tendência ao
despotismo o marechal, mais de uma vez, é descrito como ditador. Terminava por detectar na
sociedade a culpa pelos crimes que ela mesma criava e punia. Era tamanha a decepção que por
vezes pensava delirar. O triste fim anunciado no título do romance concretizava-se: após dedicação
integral à pátria, Policarpo era preso e morreria justamente pela mania patriótica: “Gastara a sua
mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava,
como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de
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fruir na sua vida? Tudo (BARRETO, 2001: p.404)”. Concluía: a pátria “fora explorada pelos
conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir
às suas próprias ambições (BARRETO, 2001: p.405)”.
No ensaio “Uma ferroada no peito do (Dupla leitura de Triste fim de Policarpo Quaresma)”,
Silviano Santiago realiza uma síntese da situação do protagonista diante da sociedade /
intelectualidade de seu tempo:
Triste fim é dos romances brasileiros o que melhor tematiza a questão da repressão ao
intelectual dissidente, pois disso trata todo o tempo o romance. A força de dissidência
não reside tanto nas ações patrióticas do personagem com vistas a uma mudança radical
no Brasil, mas no fato de Policarpo ter as suas ações norteadas por um ideal, e é
perseguindo a este que se insurge contra as forças dominantes no contexto sócio-
político e econômico brasileiro. São estas: a força da facilidade com que adotamos o
português como língua materna, com que nos desvencilhamos do nosso passado
indígena; a força do abandono a que relegamos as nossas terras férteis; a força do
autoritarismo centralizado na capital da República. Insurgindo contra essas forças
dominantes que mantêm o Brasil e os brasileiros submissos, medíocres e
inconseqüentes, Policarpo atiça a ira dos Júpiteres menores e do grande Júpiter. A
repressão à dissidência aparece, então, no Triste fim não com as roupagens da violência
física e destruidora, mas sob o véu sutil com que a encontramos na modernidade
ocidental. A violência do manicômio; a violência das regras municipais manipuláveis; a
violência do sistema carcerário (BARRETO, 1997: pp.535-536).
A internação no hospício teria sido aplicada como repressão à dissidência de um intelectual que
ousou perseguir um ideal e, para tanto, tentou subverter forças dominantes no contexto sócio-
político e econômico brasileiro, suficientemente poderosas a ponto de manter a população brasileira
num eterno estado de submissão e mediocridade. Utopia tão desmedida mereceria punição à altura.
Esta idéia a da loucura inoculada no idealismo encontra-se igualmente embutida em Leonardo
Flores, personagem coadjuvante no romance Clara dos Anjos, que, ao empreender uma descrição
de si, remete invariavelmente ao seu criador:
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Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia
para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes
que tenho sofrido tudo, dores, humilhação, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu
não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha
mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não
desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução
rudimentar, sozinho complementei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e
autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as
ligava, o pensamento que as unia (...).
Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri
resignadamente. Meu nome, afinal, soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e
eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça
cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O
fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia,
aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por
não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me
aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a
minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo sacrifício. A arte ama a quem a ama
inteiramente, e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não a
minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça
cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes
conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá? (BARRETO, 2001:
p.705).
O tom deste auto-retrato assemelha-se ao de vários trechos da escrita de si de Lima Barreto.
Substitua-se poesia por literatura (gêneros sortidos) e descortinam-se, inevitavelmente, diversas
características do perfil do escritor. Inclusive quando o alcoolismo do personagem é exposto:
A loucura de Flores era curiosa. Não só ela se manifestava com intermitências de
grandes intervalos, como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha
contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo
ou tarde. Todos os que o conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diátese de
loucura. Os seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente
221
percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade mental. A
tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois forte, que sempre tomou; whisky, genebra,
gim, rum, parati para se compreender a natureza da insânia de Flores (BARRETO,
2001: p.738).
Lima diagnosticava a condição de Flores: tratava-se de loucura, insânia, sem o benefício da dúvida.
Independentemente do álcool, afirmou que esta ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde um tipo de
loucura decorrente da idealização da poesia que, a seu ver, não o havia recompensado. Consumido
por ela, no intuito de não desviar dos propósitos artísticos, deixara em planos secundários mulher,
filhos, todo um universo não-literário. Quando Flores diz que a vida, quando não traduzida em
poesia, o aborrece, é impossível não aludir aos escritos de Diário do hospício e à onipresente
sentença-chave (Ah! A Literatura, ou me mata ou me o que peço dela): nesta concisa frase,
ostentou a fé sincera, totalitária, no ideal literário, a ponto de rivalizá-lo com a morte.
Pode-se pensar que o alto idealismo, a aposta radical na literatura, levou Lima à proximidade da
loucura, assim como a poesia surtiu semelhante efeito em Flores, a literatura (agravada pela morte
da mulher) em Vicente e o excesso patriótico em Policarpo. No entanto, uma questão subliminar
sempre os acossou, autor e personagens loucos: a a-sociabilidade/a-intelectualidade. Por meio de
Vicente (idéia demonstrada no capítulo 3), Lima afirmou a sua recusa a carreiras especiais, certo
de que em nenhuma delas se enriquece ou mesmo se sobe em honrarias, sem ter nascimento ou
fortuna, ou senão empregando muita abdicação de suas opiniões, ou o que é pior perdendo
muito de sua autonomia e independência intelectual na gratidão por seu protetor. Para além da
literatura, o status de a-intelectual, livre, autônomo e puro, representou a grande utopia de Lima
Barreto que, como Flores, nasceu pobre, mulato e teve uma instrução rudimentar, sozinho, vendo-
se obrigado ao enorme esforço de complementá-la como podia: dia e noite lia e relia versos e
autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o
pensamento que as unia.
Esta aparentemente incansável busca de autonomia intelectual, ancorada numa base social frágil e
desprivilegiada, deve ter contribuído para esgotá-lo, física e emocionalmente, no cotidiano de um
país com tão enraizada herança escravocrata. Como Flores, Lima pareceu sacrificar a vida em prol
da obra; uma obra dialeticamente pontuada pela vida. Isto porque o totalitarismo do ideal de
literatura tinha uma finalidade: quando o autor diz, sobrepondo-se à voz de Flores, que a arte
ama a quem a ama inteiramente, e eu precisava amá-la, porque ela representava, não a minha
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Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor... Abre-se uma fresta para a compreensão da
função da literatura da urgência. Mesmo antes das internações, Lima sempre escreveu do pedregoso
a-lugar ocupado por um a-social/a-intelectual em busca de aspiração maior: a literatura como forma
peremptória de redenção do homem pobre, negro, descendente de escravos; a arte como equalizador
passível de reduzir distorções sociais-intelectuais, equiparando-o ao meio. Era mais do que a
literatura em si, era a alforria dos ditadores modelos sociais-intelectuais; era a possibilidade de
assimilação deste pária enjeitado pela sociedade, que passaria a ser recebido pela porta da frente,
como recompensa pela dedicação à arte esta, acreditava, era um fator amalgamador de diferenças
(pode-se dizer que Voltaire partiu desta idéia e alcançou admirável sucesso social na França, num
século, o XVIII, em que esta condição era raramente atingida).
Se a cruel comparação com Machado de Assis é inevitável, pode-se dizer que o autor de Dom
Casmurro obteve esta redenção, angariando todas as glórias e louros em vida, aclamado como
intelectual, escritor, apesar de mestiço e da origem pobre. Lima percorreu caminho tortuoso: queria,
provavelmente, ser aceito pela sociedade / intelectualidade de seu tempo em todo o seu ser, íntegro,
sincero, puro e negro. Isto incluía todo o pacote, sem filtragem: a pobreza, a cor, o alcoolismo, os
trajes inadequados, a loucura elementos raramente bem-vindos nos salões da Belle Époque.
Todos esses elementos, além de inscritos no corpo, no gestual, no olhar, estavam escritos na obra,
em diários íntimos e na ficção, recheados de críticas que desestabilizavam o meio social-intelectual
brasileiro, a ponto deste se calar à mera menção do nome do inconformado Lima Barreto.
Apesar de algumas falhas de ortografia e gramática, Lima criou um estilo literário de alta qualidade
com que pretendeu confrontar o dominador, na sua própria língua (portuguesa). Evitando apenas o
beletrismo, apurou o domínio do português para, com requinte formal, comunicar-se com a elite,
usando o código oficial. Como Jean Genet, Lima falava a língua do dominador para justamente
alcançá-lo e escandalizá-lo, fosse ao comentar assuntos inconvenientes, fosse ao exumar verdades
aparentemente mortas, artificialmente sepultadas pela beleza de um Rio europeizado, pela elite de
um país que trocava cortiços sujos por bulevares a la Haussmann e tentava abafar as evidências da
desigualdade social-racial.
Se a literatura da urgência explodiu em Diário do hospício de uma forma mais desesperada, foi
porque aquela situação-limite exigiu esforço extraordinário. No entanto, toda a situação anterior à
internação, este a-lugar, esta condição de intelectual clandestino criada por Lima Barreto ao longo
da vida, marca um processo de urgência que o ocupava, dia após dia, subliminarmente. O embate
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da alta e ingênua utopia literária do escritor com a baixa e medíocre realidade do amanuense o
levaria a um estado de intermitentes, diárias urgências, tratadas, de início, com excessos boêmios,
embriagadores. Antes mesmo de culminarem na urgência mais radical a existência confinada no
hospício – já se insinuavam nos escritos íntimos, romances, contos. O autor utilizava a escrita como
forma de auto-redenção diária; por vezes, usava uma ironia mais flagrante e objetiva menos fina e
requintada do que a de Machado de Assis como compensação ao sofrimento resultante do embate
cotidiano com o meio. Como Flores, Lima acreditou na literatura como missão diagnosticada por
Sevcenko. Entretanto, por nutrir interesses tão pessoais neste combate, fica difícil precisar o que
veio antes – a literatura como ferramenta para modificar o mundo imperfeito e como índice
privilegiado da história social; ou o aproveitamento da escrita para a emergencial redenção de si e,
por conseqüência, para a redenção dos pobres, negros, marginais e loucos que defendeu... ao
defender-se. Afinal, o eu era a origem, a causa principal, desta literatura.
Lima sobrecarregou a sua obra deste eu pleno de urgências, demasiado transparente para críticos
mais ferrenhos. Esta excessiva permissividade entre verdade e ficção, bem como a criação de um
espaço autobiográfico livre e autônomo, remete ao individualismo tão cultuado e exercitado
pelo a-social/a-intelectual independente. A literatura da urgência estabelecida por Lima nada mais
foi do que a expressão da urgência de si, de um eu que extrapolava padrões: intelectuais, sociais e
literários. Ao ignorar fronteiras entre verdade e ficção, o autor trafegou entre os gêneros sem
cerimônia nem respeito a cânones, como se a emergência da sua condição tudo consentisse. Assim,
esta literatura não camuflava o peso das questões pessoais; pelo contrário, provocava uma repetição
de si que tocava traumas, individuais e nacionais, provavelmente na tentativa desesperada, idealista,
de resolvê-los – o que, para parte da crítica, soou como artifício trôpego, mal-acabado.
Esta insistência autobiográfica marcada pela urgência é igualmente patente na obra de Arthur Bispo
do Rosario, autor de uma obra de múltipla semiologia, segundo ele, encomendada pelo Todo-
Poderoso. Alardeava cumprir uma missão: a confecção de um catálogo do mundo, a representação
de tudo o que havia na Terra, feita para Deus, sob ordens de anjos. Ao se afirmar Jesus Cristo,
empreendeu uma reinvenção de si mesmo, a serviço dos céus, engendrada num cubículo com
capacidade para um paciente deitado e uma latrina cavada no chão com fezes acumuladas, no mais
violento pavilhão da Colônia Juliano Moreira. Na retidão da cela, Bispo desfiou o uniforme azul do
manicômio para reaproveitar os fios que cerziriam seus bordados. Do emaranhado de linhas,
despontou, em forma de arte, a sua biografia uma parte autêntica, outra forjada. Compunha-se de
224
uma mistura de escrita de si (anotações pessoais) e de ficção de si. Era, acima de tudo, uma
fabulação em torno de si mesmo que prenunciava a sua grande utopia a criação de um mundo
novo: “No meu reino tudo será feito de ouro e prata, brilhante (apud HIDALGO: p.67)”.
Bispo entrelaçou vida e obra como elementos indissociáveis, mesmo quando, além dos dados
considerados reais, acrescentou autoficções aos bordados, estandartes, assemblages e objetos
(particularmente, os O.R.F.A., Objetos Revestidos de Fio Azul: uma série de miniesculturas, como
moinho de cana, escada etc., cobertos de linhas azuladas). Pode-se pensar que todo este trabalho
cotidiano, meticuloso, recheado de palavras, nomes e extratos poéticos, funcionou como uma escrita
plástica, de sobrevivência ao hospício, assim como o diário exerceu esta função para Lima Barreto.
No caso de Bispo, a obra, além da motivação claramente religiosa, pode ter surgido e se fortalecido
como mecanismo de alforria de um eu partido, de um pensamento cindido para novamente usar
expressão próxima à etimologia da esquizofrenia. Este eu, ainda que em fendas, está no epicentro
da obra produzida por Bispo para Deus e mais se assemelha a um enorme caderno pessoal recheado
de notas auto-referentes. Ao pretender englobar representações da Terra, ele deixou entrever
fragmentos da sua história – algo como um livro de vida em forma de bordados autobiográficos.
Em geral, trata-se de uma escrita assombrada pelo passado (a memória), com o norte apontado para
o futuro (a apresentação divina). Um dos estandartes é exclusivamente tomado por uma espécie de
planta baixa da Colônia Juliano Moreira, constando o pavilhão Egas Muniz, onde se realizavam
lobotomias, o Bloco Médico, a casa do diretor do hospício, os rios e inúmeros detalhes do pequeno
vilarejo rural onde funcionou o asilo nas cinco cadas em que Bispo residiu. Percebe-se como a
obra é inevitavelmente contagiada pela hierarquizada rotina de psiquiatras, enfermeiros, guardas e
pacientes do manicômio, possuindo, portanto, traços da mesma relevância documental-histórica
apresentada pelo diário de Lima Barreto.
Importante sublinhar que ambos nutriam ideais demasiado altos, aparentemente pouco compatíveis
com a realidade, cada qual em sua utopia privada (bastante diversas), sendo visionários, em busca
de um mundo perfeito muito distante daquele em que viviam. Os diagnósticos, entretanto, diferem:
Lima chegou a ter delírios alcoólicos, mas não apresentava quadro psiquiátrico, apenas
aproximando-se da loucura sob vários aspectos explicitados; Bispo, esquizofrênico-paranóico,
teve suas visões rotuladas de delírios místicos, e desfiava um discurso em que, por vezes, a fronteira
entre fantasia e realidade quase se apagava. Parecia, em vida, habitar este mundo paralelo, criado e
225
miniaturizado por ele, mais feliz, menos injusto, “sem planaltos nem abismos, de planícies”,
“sem doença mental (apud HIDALGO: p.89)”.
O que une Arthur Bispo do Rosario e Lima Barreto é, sobretudo, a utilização da escrita e da arte
para subversão de uma situação-limite dominada pela emergência. Bispo, ao salpicar bordados e os
O.R.F.A. com o fio azul do uniforme, desconstruía o poder estabelecido, simbolizado pelo
uniforme, e reutilizava a matéria-prima destituída de seu significado psiquiátrico para construir o
mundo perfeito. Em boa parte da obra, utilizou também as mantas pobres da Colônia como suporte
(dos estandartes) e as des-simbolizou, assim como, num estágio anterior, o uniforme havia perdido
a sua significação primeira a imposição de uma regra homogeneizadora na instituição para
ganhar novo sentido.
As assemblages também reúnem materiais institucionais reapropriados: os tênis tipo Conga usados
pelos pacientes, as canecas de alumínio surrupiadas do refeitório e todo tipo de sucata do
manicômio. A obra era realizada na instituição e extraída da instituição, isto é, do refugo da
psiquiatria. Qualquer peça daquele universo era reutilizada sob o senso plástico-místico de Arthur
Bispo do Rosario. A escrita de si e signos do entorno confundiam-se em harmonia, conferindo à
obra, entre outros valores, o de importante documento histórico do hoje obsoleto sistema de hospital
para alienados. A obra-escudo era uma forma de resistência à uniformização, à padronização de
sentidos. Elementos hospitalares eram transformados numa plasticidade alquímica. Uma obra
institucional (produzida dentro da instituição, em situação de cárcere/internação), que se traduzia,
dialeticamente, como antídoto à instituição – semelhante função de Diário do hospício.
Depois da morte de Bispo (em 1989), a obra saiu do domínio da instituição psiquiátrica para o
circuito nacional e internacional das artes plásticas exposta não em vários estados do Brasil,
como também na Suécia, França, Estados Unidos. Foi quando o crítico de arte Frederico Morais o
aproximou de movimentos de vanguarda como a Pop Art e o Novo Realismo, comparando-o, por
exemplo, a Marcel Duchamp pois Bispo criou uma Roda da Fortuna que se relaciona
coincidentemente (pois dificilmente Bispo teve acesso à obra de Duchamp) com a famosa Roda
de Bicicleta (1913/1964) do artista.
Pode-se especular que, assim como as vanguardas históricas e as neovanguardas testaram a
autoridade repressora da cultura tradicional do museu, desafiando-a (um exemplo são as latas de
fezes exibidas como arte por Piero Manzoni nos anos 1960), Bispo acumulou objetos da rotina do
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hospício em seu quarto-forte e confrontou o poder opressor do manicômio ao representá-lo
sucateado, reconstruído com peças retiradas do lixo institucional. Ao estudar o fenômeno das
vanguardas no século XX, o crítico de arte americano Hal Foster afirmou (em The return of the real
The avant-garde at the end of the century / O retorno do real: a vanguarda no final do século)
que grande parte da verdade da cultura contemporânea reside no sujeito abjeto ou traumático, no
corpo doente ou destruído, sendo este corpo a base dos testemunhos necessários contra o poder
(FOSTER, 1996). No caso de Bispo, o corpo combalido do paciente psiquiátrico em sua rotina
asilar constituiu um dos pontos básicos do seu embate com o poder um confronto simbolizado
pela desorganização do poder manicomial e subseqüente reconstrução de um universo marcado por
uma semiologia utópica, reordenado segundo lei subjetiva.
A leitura que Foster realiza da obra e do pensamento de Andy Warhol também traz alguns pontos
relevantes para a compreensão da obra de Bispo. Por exemplo, segundo o autor, quando Warhol
afirma que quer ser uma máquina, esta asserção aponta para um sujeito em choque, que se utiliza da
natureza daquilo que o feriu como uma defesa mimética contra a agressão (FOSTER, 1996). Esta
mesma defesa mimética pode ser percebida na obra de Bispo ao longo do seu processo de
sobrevivência à instituição. Ao utilizar a sucata do hospício para reorganizá-la em um inédito
universo de signos, Bispo aproveitou a própria natureza daquilo que lhe provocou o choque. Sob o
efeito da relação traumática com a instituição, ele criou uma obra essencialmente autobiográfica,
repetitiva e auto-referente, com raciocínio que dialoga com o de Warhol em relação à sociedade
industrial e autômata: se não era possível combater o mal-estar no manicômio, devia mergulhar nele
totalmente, flagrando-lhe as rotinas, as leis, os uniformes, para expô-lo e, em seguida, refazê-lo.
Uma explicação para esta arte reativa é apontada por Foster: “Se você não pode combatê-la (a
sociedade de consumo), sugere Warhol, junte-se a ela. Mais, se você entrar totalmente nela, pode
expô-la; isto é, pode revelar o seu automatismo, ou mesmo o seu autismo, pelo seu próprio,
excessivo, exemplo [If you can’t beat it, Warhol suggests, join it. More, if you enter it totally, you
might expose it; that is, you might reveal its automatism, even its autism, through your own
excessive example] (FOSTER, 1996: p.131)”.
Inevitável a analogia com Lima Barreto, capaz de empunhar o próprio corpo, doente, combalido,
desapropriado, como base do testemunho literário contra o poder no hospício. No embate com o
universo manicomial, mergulhou nele, participou da rotina de controle de gestos, para depois
explicitá-lo, documentá-lo, denunciá-lo. Ao escrever Diário do hospício, o autor se aproveitou da
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natureza do que o feria (etimologicamente, trauma significa ferida) como uma defesa mimética
contra o agressor. Ia além do choque, tocava o trauma e produzia uma obra inédita com dados,
informações, comportamentos, enfim, com todo o universo de signos da própria psiquiatria.
Daí esta literatura da urgência revelar-se invariavelmente auto-referente e repetitiva: no centro do
desconforto no hospício, recorria ao próprio, enfrentava-o em suas idiossincrasias e se deixava
imbuir do entorno para, num primeiro momento, pseudomimetizá-lo; em seguida, criticá-lo,
desfazê-lo, delatá-lo. Ou, como explica Foster sobre este mecanismo: “Esta é claramente uma
função da repetição, pelo menos segundo a compreensão de Freud: repetir um evento traumático
(em ações, sonhos e imagens) com a finalidade de integrá-lo numa economia psíquica, numa ordem
simbólica [Clearly this is one function of repetition, at least as understood by Freud: to repeat a
traumatic event (in actions, in dreams, in images) in order to integrate it into a psychic economy, a
symbolic order] (FOSTER, 1996: p.131)”.
A proximidade de Lima e Bispo pode ser entrevista na urgência das frases-sínteses: se o primeiro
sentenciou Ah! A Literatura, ou me mata ou me o que peço dela, o segundo enunciou: Eu
preciso destas palavras escrita (citada no capítulo 1). Para ambos, as palavras eram prementes,
ferramentas emergenciais. Na fronteira entre a esperança e o desespero, a vida e a morte, num
estado de exceção, compuseram obras que esgarçaram os limites do cotidiano e o transcenderam.
A literatura como antídoto à loucura foi também a que recorreu o escritor belga André Baillon ao
escrever o romance Le perce-oreille du Luxembourg (1928). Após experiência de confinamento no
hospício de Salpêtrière em 1923, o autor escreveu duas obras com elementos flagrantemente
autobiográficos: Un homme si simple e a acima citada: nesta, usa o personagem de si Marcel, para
refletir sobre si mesmo e a experiência da internação. O tema loucura surge nos primeiros
parágrafos, quando, ao se dar conta de estar sob o desígnio da psiquiatria, pede cadernos, lápis, e
afirma: a escrita funciona como alívio. A questão fundamental, entretanto, assemelha-se à de Lima:
a obra reflete a tentativa de compreensão da loucura não somente desta em si, mas do seu estado
de choque perante ela:
Vamos, de início, pôr um ponto final na questão que me trouxe aqui. Eu não sou
louco. Os loucos de verdade, que estão aqui, se enfurecem e se aliviam, urrando: ‘Não
sou louco! Não sou louco!’. No meu caso, digo o mesmo, e o escrevo, com calma. Essa
frase, se eu não me controlasse, a escreveria mil vezes, nas paredes, em meus cadernos
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e, até a última delas, a minha mão permaneceria calma [Finissons-en d’abord avec la
question que m’a conduit ici. Je ne suis pas fou. Les vrais fous que sont ici, ragent et se
déminent en hurlant: ‘Je ne suis pas fou! Je ne suis pas fou’. Moi, je le dis, je l’écris
avec calme. Cette phrase, si je ne me retenais, je l’écrirais mille fois, sur mes murs,
dans mes cahiers, et jusqu’à la dernière, ma main resterait calme] (BAILLON, 1984:
p.6).
A breve referência a André Baillon serve apenas para demonstrar como a urgência da loucura, seja
na situação de internação, ou apenas sob o estado de emergência que significa o surto, constituiu
tema prolífero para usuários de serviços da saúde mental ao longo da história e um exemplo atual
desta estatística é o poeta curitibano Loriel da Silva Santos.
Não mais submetido ao sistema antigo de isolamento em manicômios alienantes, Loriel desvelou
uma poesia igualmente pontuada pelo assunto ao participar de ateliês de arte e literatura
organizados por arte-educadores num centro de assistência em Curitiba. Diagnosticado como
portador de transtorno bipolar misto (termo atual para a antiga psicose maníaco-depressiva) em
1997, aos 19 anos, o que originou a primeira de uma série de internações em regime aberto, Loriel
não se exime de investigar o enigma indecifrável que tanto inquietou Lima Barreto. Não por acaso,
na contramão da mística em torno do louco, Loriel, num dos poemas do livro A arte da urgência,
lança a pergunta: “O que te assusta no mundo do insano? (apud HIDALGO / DRUMMOND, 2006:
p.67)”. Em outros versos, a questão se perpetua: “Loucura, / Loucura... / Como fosse assim / Uma
prosa indireta.” Mais adiante, suplica: “Razão, razão profana, que tens comigo / Que não me ouves
do universo do teu nirvana (apud HIDALGO/DRUMMOND, 2006: p.67)”. Ainda que não
desapropriado pelo Estado nem confinado no hospício, nota-se a redundância do tema em sua vida-
obra.
A grande maioria dos versos de Loriel está escrita em primeira pessoa de todos os poemas
selecionados para o livro A arte da urgência, apenas cinco trazem outros sujeitos. Eis uma
característica marcante da literatura da urgência: por trazer várias das multifunções da escrita de si,
afirma um eu onipresente que, lapidado, ganha valor estético, converte-se, muitas vezes, em escrita
com pertinência literária. Em alguns casos, o apelo autobiográfico não convive bem com a
ficção, mas vai além: ele a integra e a fortalece. O que dizer do eu barretiano, subterrâneo em tantos
personagens fictícios (Isaías Caminha, Policarpo Quaresma, Augusto Machado, Gonzaga de Sá,
229
Leonardo Flores, Vicente Mascarenhas)? Quem primeiramente aventou o conceito de heterônimos
para eles, aliás, foi o próprio biógrafo do escritor, Francisco de Assis Barbosa.
Não à toa pensa-se imediatamente em Fernando Pessoa, poeta que fez de si mesmo profícua fonte
de personagens, autores das mais diversas ficções. Ao criar heterônimos para desdobrar-se e esgotar
as possibilidades de um eu múltiplo, ele acabou criando uma espécie de esquizofrenia literária-
existencial. E o esforço de reuni-los, tentar entendê-los, catalogá-los, pode ser igualmente visto
como forma de organização de si. Uma organização que, para Pessoa, revelou-se por vezes urgente,
desvelando uma angústia pessoal que se avizinhou da loucura e, premida pelo estado de
emergência, converteu-se, alquimicamente, em poesia (sob o heterônimo Álvaro de Campos):
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido algum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
230
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, a por aquele manipanso
Que havia lá em casa, lá nessa, trazido na África.
Era feíssimo, era grotesco.
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!
(PESSOA, 1983: pp.324-325).
231
A iminência da loucura bastou para coagir o autor a tocá-la, enfrentá-la e, assim, tentar
compreendê-la. A angústia que transbordava a vasilha era quase loucura. O poeta classificou
poeticamente o mal-estar que lhe fazia pregas na alma como uma equação: loucura = lágrimas +
grandes imaginações + sonhos em estilo de pesadelo sem terror + grandes emoções súbitas sem
sentido algum. Fernando Pessoa dizia-se um internado num manicômio sem manicômio, ocupado
por sonhos que não eram sonhos (delírios?). O trecho mais comovente do poema, contudo, é
justamente a não-loucura total, a recusa a esta, que o rodeia, o assombra, mas não o ocupa
integralmente. E é este “Estar-entre / Este quase, / Este poder ser que...” uma das questões
fantasmáticas que mais marcou a vida-obra de Lima, inscrevendo-se em vários gêneros.
A literatura da urgência beneficia-se, portanto, desta assombração, deste estado do ser em que a
fronteira entre sonho e loucura é como uma linha de mapa: está ali, sabe-se dela como elemento da
cartografia, mas, geograficamente, in loco, inexiste. Esta literatura alimenta-se igualmente dos
sonhos das pessoas acordadas, dos delírios (alcoólicos ou não) súbitos e aparentemente sem
sentido, posteriormente utilizados pelos sonhadores e idealistas que puderam estar-entre, ir e voltar
dessa zona fantasmática, para acrescentá-los às suas poéticas. Esta literatura é favorecida por este
excesso de idéias, símbolos e imaginações, que vagam por vezes sem controle, construindo
universos paralelos à realidade mas tornados realidade, por escritores/artistas raros, no momento
alquímico em que acontece a literatura / arte.
Se é impossível fazer o elogio da loucura, com toda a dor e desespero que autores como Lima
Barreto expuseram ao vislumbrá-la, pode-se ao menos fazer a apologia da literatura do autor
sobrevivente. Não apenas alcança ele outros estados do ser como Lima, ao experimentar
alucinações alcoólicas e ver-se à beira da loucura-morte como os transpõe para a realidade no
minuto da escrita. Daí o encantamento geral, fundido ao medo, diante de visionários, loucos,
intermediários (os que estão-entre): na condição de criadores (vítimas?) de delírios (ficções?),
tornam-se ficções-ambulantes, ao verterem para a linguagem literária / artística outros mundos,
experiências não acessíveis à maioria dos ditos normais.
No caso específico de Lima Barreto, parece digno de reverência o esforço em lidar com as
alucinações, dele e dos vizinhos de hospício, investigá-las, inventariá-las, para transmutá-las numa
literatura lúcida. Esta escrita do extremo apresenta trechos de alta qualidade literária, ainda que
irregular, alternada a passagens menos aprimoradas, pois sob influência de emoções brutas ou por
serem meras anotações para futuros escritos. No entanto, uma das características mais relevantes
232
desta literatura da urgência é certamente a função de reconstituição de si diante da sombria
situação-limite. Pode ser pensada como uma espécie de combate à fragmentação do ser, por vezes
excessiva em alguns estados da loucura. Loriel, por exemplo, numa homenagem a Fernando Pessoa
(e ao heterônimo Alberto Caeiro), não esconde o desejo de unidade:
Ser tudo
E todo inteiro
Ser todo
Em tudo inteiro
Faz-se sombra
Ao sineiro
Que badala
O Seu Caeiro.
(apud HIDALGO/DRUMMOND, 2006: p.54).
Fernando Pessoa, por meio do heterônimo Ricardo Reis, escreveu:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
(PESSOA, 1983: p.223)
O poeta que se estratificou em eus tão heterogêneos para expressá-los e, neles, em última análise, a
si, demonstrava uma preocupação: ser inteiro. Com todos os paradoxos inerentes ao humano, Lima
233
foi perseverante na busca de uma integridade que acabaria interligando sobremaneira a sua vida-
obra. Na contramão do preconceito, persistente, em relação à literatura de si, pode-se pensar, com
Pessoa, que, para ser grande, nada teu exagera ou exclui. Lima Barreto ousou imiscuir-se, a si, na
ficção, assim como deu status literário a trechos dos escritos íntimos. A expressão de si era a grande
emergência, uma vacina contra a loucura. Se a literatura da urgência é invariavelmente
autoficcional, permanecem as questões: se Lima fosse branco, de família abastada, teria escrito
Isaías Caminha? Se tivesse subido alto na hierarquia do funcionalismo público, teria gerado
Gonzaga de Sá? Se não possuísse toda a experiência com a loucura desde a infância, nas colônias, e
depois com o pai, existiria o quixotesco Policarpo Quaresma? (afinal, segundo Monteiro Lobato,
citado no capítulo 4, “(...) se o ‘ordenam’, em vez de Policarpos, o Lima engorda e emudece”). De
todas as respostas possíveis para essas hipóteses, uma é certa: Diário do hospício não existiria sem
a experiência da internação.
Apesar da comum e compreensível resistência à inseparável vida-obra no estudo da literatura, torna-
se tarefa árdua ignorar a biografia do escritor na análise da obra, sobretudo em livros como Diário
do hospício, eixo desta tese, exemplar eloqüente da literatura da urgência. O tráfego insubordinado
entre gêneros, realizado por Lima, se o prejudicou na recepção crítica, foi também um fator de
integridade e coerência, estendendo, à literatura, a eterna inadaptação. Sobre este deslocamento,
pode-se pensar a partir de Philippe Lejeune:
Os gêneros literários não são seres em si: eles constituem, a cada época, uma espécie de
código implícito por meio do qual, graças ao qual, as obras do passado e do presente
podem ser recebidas e classificadas pelos leitores. (...) Memórias e autobiografia
tiveram igualmente um status exterior à literatura, antes de se integrarem mais ou
menos. Os estudos críticos sobre o gênero contribuem para a sua mudança de estatuto e
sua ‘promoção’. [Les genres littéraires ne sont pas des êtres en soi : ils constituent, à
chaque époque, une sorte de code implicite à travers lequel, et grâce auquel, les
oeuvres du passé et les oeuvres nouvelles peuvent être reçues et classées par les
lecteurs. (...) Mémoires et autobiographie ont eu également un statut extérieur à la
littérature, avant de s’y intégrer plus ou moins. Les études critiques sur le genre
contribuent à son changement de statut et à sa ‘promotion’] (LEJEUNE, 1996: pp.311-
312).
234
O trânsito livre entre gêneros e a permissividade entre vida e ficção são características marcantes da
dificuldade de integração do autor aos padrões literários da época e da tentativa de criação de um
gênero híbrido (tema do capítulo 3) que possuía estatuto exterior à literatura. No caso de Lima, por
que o eu invadiu a ficção? Uma das hipóteses é justamente a inoperância do jornal como espaço da
verdade, do fato, do real. Lima usou o diário como lugar de excelência deste eu. Utilizaria
igualmente o jornalismo como possibilidade de ampliar denúncias e reflexões, no entanto, os jornais
da época (e isso estende-se até hoje) não eram os meios ideais para verdades. Este compromisso
com a verdade pregado pelo jornalismo sempre esteve atrelado a políticas de interesse das cúpulas
dos jornais e a lobbies realizados no antigo sistema de apadrinhamentos e pistolões tão comum do
Brasil. Ou seja, a verdade pura, absoluta, sincera, como queria Lima, estaria mesmo liberta de
censuras, paradoxalmente, na ficção – ou no diário íntimo.
Outra hipótese remete à natureza da literatura da urgência, marcada pelo excesso de si, da urgência
de expressão de um eu que, acuado ante a situação-limite, explode sem filtro. A fronteira loucura-
morte modifica o louco-autor, o impregna e o obriga a constituir suporte emergencial para a
tentativa de compreensão desse estado. Um poema de Loriel indica semelhante caminho: “E por
mais morte que seja/ A palavra sempre viaja/ Retoma consigo/ A construção do amanhã (apud
HIDALGO / DRUMMOND, 2006: p.110)”. Para Loriel, assim como para Lima, a palavra alcança
status extraordinário, a ponto de garantir o futuro e perfazer um ciclo morte-renascimento que alça a
literatura a um patamar sublime. A morte é antes de tudo íntima da escrita. E esta intimidade com o
extremo parece levar à conquista ou pelo menos à impressão, o que é bastante de um poder
quase onisciente.
Dedicado a esse intricado e diário equilíbrio entre a fantasia e a concretude cotidiana, o alto
ideal e a sociedade brasileira da Belle Époque, Lima Barreto usou parte da sua obra literária para a
redenção de si. Obteve sucesso ao escandalizar a sociedade/intelectualidade com a recusa a vivê-las
em suas convenções. Contrapôs a sua utopia, o sonho de um mundo mais justo e harmônico, ao
incompatível mundo imperfeito em que viveu. Esta utopia podia não ser, em si, vestígio de loucura,
se mantida em sigilo; o idealismo, desde que clandestino, pessoal, não feria a sociedade. No
entanto, o a-social/a-intelectual mal-comportado, pobre, negro, bêbado, íntimo da loucura, não se
calaria, explicitá-lo-ia, faria os mundos colidirem.
Para dar conta desta empreitada heróica, criou esta literatura urgente, perturbadoramente
comovente, que muitas vezes substituiu a ão, a realização concreta de sonhos deslocados daí o
235
tom de ajuste de contas, a repetição de si e do tema loucura. A morte prematura de Lima Barreto e
inúmeras confissões íntimas dão indícios do sacrifício da vida em prol da obra. Entre a Literatura e
a Morte, contudo, talvez exista o a-lugar da literatura da urgência, pois, na fronteira do ser com o
não-ser, a vida é imperativa, desfoca aspectos irrelevantes; impõe-se a mera sobrevivência. Lima,
mergulhado em um sonho íntimo sem fim, ficou com as duas, que dialeticamente, se equivaliam:
afinal, por mais morte que seja, a palavra retoma, em si, a construção do amanhã. E esta literatura
redentora ignora limites, tratamentos psiquiátricos, elementos da realidade vulgar. Daí o seu poder
onipresente, quase onisciente/onipotente, como se prescindisse da realidade, extrapolasse a utopia.
Afinal, o eu, como indica Fernando Pessoa, talvez só exista, verdadeiramente, no ato da edição de si
em livro:
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda
quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os
campos, as cidades, as idéias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa
complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as
tornamos literárias (PESSOA, 1994: p.67).
A literatura, para Lima Barreto, teve esta função, a de legitimação do eu. Sem a escrita, restaria o
isolamento, o abafamento da subjetividade. Por meio dela, sublevou-se, individualmente, contra um
coletivo que não costuma assimilar bem os que dela discordam. Lima quis tudo dizer, sem
filtragem, e a sua literatura é esta exposição total de si, por vezes sem direito a sofisticações (termo
etimologicamente originado do grego, relaciona-se ao sofisma, à tentativa de falsificação, não
propriamente ao aprimoramento, sentido popularizado no Brasil). Como denunciou Artaud (citado
no capítulo 1), Van Gogh, Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard,
Hölderlin e Coleridge são exemplos de homens que optaram pela loucura, no sentido em que
socialmente a entendemos, em vez de degradar uma certa e superior idéia de honra humana, pois o
alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e quis impedir de dizer insuportáveis
verdades.
Tanta sinceridade e autoexposição de Lima Barreto infringiram regras e transgrediram fronteiras
entre gêneros literários. Apesar da agrura do desafio, o autor perpetuou o grande combate: dizer o
indizível, o que a princípio não se poderia dizer, dado o caráter socialmente inaceitável do seu
conteúdo. Por isso a literatura da urgência é, sobretudo, o espaço da expressão do indizível eis,
justamente, a relevância deste tipo de escrita no amplo estudo da literatura. Afinal, o quanto é
236
permitido dizer na literatura? Muito, pouco, tudo? Na vida prática sabe-se de antemão que não é
possível dizer tudo o que se pensa, ou corre-se o risco de melar o jogo social, inviabilizando, por
vezes, a própria vida. no espaço autônomo da literatura da urgência, provavelmente pode-se ir
mais longe, afinal, sob estado de emergência, despencam códigos estritos, relegam-se convenções a
segundos e terceiros planos, pelo menos em primeira instância. A iminência da doença (a psicose, o
alcoolismo etc.) é aterrorizante a ponto de prenunciar a verdade da morte. Tanto Artaud quanto
Lima aproximaram-se desta, sendo importante apenas frisar que a verdade do psicótico é
certamente distinta da que o alcoólatra experimenta.
Assim, compreende-se melhor o desespero do autor ao rasgar o suporte da literatura ficcional,
danificar a sua moldura (a ilusão da ficção, a interdição da união vida-obra), numa procura tão
desesperada por novas formas que beira a insolência. Nesse sentido, a literatura de Lima contém
elementos do teatro proposto por Artaud (citado no capítulo 1): como a peste, é salutar, pois faz
caírem as máscaras, desvela a mentira, a baixeza. A literatura da urgência é esta casca/escrita
arrancada da abjeção de um corpo pensante que, dada a situação crítica, não comporta a grande
encenação pressuposta pelo jogo ficcional. Por isto nasce como literatura conspurcada, respingada
pelo exagero, pela verdade – a (ilusão da) verdade da loucura?
Em Lima Barreto, romances flagram facetas da vida, enquanto diários ensaiam ficções. Na
interseção, ao tocarem-no, a si, no campo íntimo, estes escritos tocaram automaticamente a
sociedade, em suas questões nevrálgicas, pela violência, virulência, da sinceridade. Ao tentar
atingir um modo de ser, rendido à sua extravagante dança por contornos extremos, este bufão
incompatível e implicante esteve entre, foi um semilouco, um semi-responsável (como pressupôs
Mannoni, citado no capítulo 1), disposto a se redimir com o seu legado: uma literatura-alforria que
transgrediu códigos e esgarçou limites entre vida e obra, pele branca e negra, pobreza e riqueza,
ignorância e cultura, literatura popular e erudita, lucidez e loucura. Se a vida foi sacrificada em
nome desta escrita, fica autenticada, com o decorrer do tempo, a vitória literária de um eu
aparentemente vulnerável; como se, apenas no espaço autobiográfico, verdadeiramente autônomo,
Lima Barreto pudesse viver o ideal, prescindir da matéria, tripudiar sobre a finitude, tudo
transcender, até o humano – e, sobretudo, a própria loucura.
237
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de Rodez (mai-juin 1945). Tome XVII: Cahiers de Rodez (juillet-août 1945).Tome XVIII:
Cahiers de Rodez (septembre-novembre 1945). Tome XIX: Cahiers de Rodez (décembre
1945-janvier 1946). Tome XX: Cahiers de Rodez (février-mars 1946). Tome XXI: Cahiers de
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RESUMO
Nesta tese desenvolve-se o conceito literatura da urgência para definir o tipo de escrita realizado
sob estados de emergência, situações-limite: no caso específico de Lima Barreto, serve de base para
a análise do Diário do hospício produzido pelo autor em 1919-20, quando esteve internado no
hospício Pedro II, no Rio de Janeiro. Demonstra-se como esta literatura nasceu conspurcada,
contaminada pela loucura e pela rotina no manicômio, sendo simultaneamente uma escrita de si
(conceito de Foucault) criada para defender o eu acuado ante a instituição e um documento de valor
histórico capaz de denunciar, pelo viés do paciente, minúcias do dia-a-dia psiquiátrico normalmente
ausentes da literatura oficial do hospício. Desvela-se ainda como esta urgência contagiou outros
escritos de Lima Barreto, tornando-o autor de uma literatura-alforria que transgrediu códigos e
esgarçou limites entre vida e obra, pele branca e negra, pobreza e riqueza, ignorância e cultura,
literatura popular e erudita, lucidez e loucura.
ABSTRACT
This thesis develops the concept literature of urgency to define a type of writing produced in some
kind of emergency, in situations that are really close to the edge: in Lima Barreto’s specific case
this is the basis to the analysis of Diário do hospício (Hospice’s diary) written by the author in
1919-20, while he was a patient in the psychiatric hospital Pedro II, in Rio de Janeiro, Brazil. It
demonstrates how this literature has appeared already contaminated by insanity and by the
hospital’s routine, constituting simultaneously a self-writting (l’écriture de soi, a Foucault’s
concept) created to defend a trapped ego dealing with the institution and a document of historical
value that accuses, from de the patient’s point of view, details of the psychiatric routine normally
absent from the hospice’s official literature. This thesis shows how this urgency has contaminated
other Barreto’s writings, contributing to make him the author of a literature-liberation which
violated codes and enlarged the limits between life and work, white and black skin, poverty and
wealth, ignorance and culture, popular and scholar literature, lucidity and insanity.
248
TESE DE DOUTORADO
HIDALGO, Luciana. Lima Barreto e a literatura da urgência: a escrita do extremo no domínio
da loucura. Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada à Coordenação dos Cursos
de Pós-Graduação em Letras da Uerj. Rio de Janeiro, 2007. 248 páginas.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause (orientador)
Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha
Prof. Dra. Carlinda Fragale P. Nuñez
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
Prof. Dr. Adauri Bastos
Examinada a tese:
Conceito: Aprovada com distinção e com recomendação para publicação
Em 22/03/2007
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