Download PDF
ads:
Heberth Paulo de Souza
A METÁFORA E A FORMAÇÃO DE ESQUEMAS
NARRATIVOS EM TEXTOS ESCRITOS DE LÍNGUA
PORTUGUESA
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Heberth Paulo de Souza
A METÁFORA E A FORMAÇÃO DE ESQUEMAS
NARRATIVOS EM TEXTOS ESCRITOS DE LÍNGUA
PORTUGUESA
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudos Linguísticos, como requisito à obtenção do
título de Doutor.
Área de concentração: Linguística
Linha de pesquisa: Estudos da Inter-relação entre
Linguagem, Cognição e Cultura
Orientadora: Profª Dra. Heliana Ribeiro de Mello
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
ads:
3
4
Tese intitulada A metáfora e a formação de esquemas narrativos em textos escritos de
língua portuguesa”, de autoria de Heberth Paulo de Souza, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________________
Profª Dra. Heliana Ribeiro de Mello – UFMG – Orientadora
_______________________________________________________
Profª Dra. Ulrike Schröder – UFMG
_______________________________________________________
Profª Dra. Luciane Corrêa Ferreira – UFMG
_______________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Perini Frizzera da Mota Santos – PUC-Minas
_______________________________________________________
Profª. Dra. Neusa Salim Miranda – UFJF
Belo Horizonte, 27 de agosto de 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS
5
Dedico este trabalho àqueles que fazem das
atividades de ensino e de pesquisa um instrumento
para preparar melhor os indivíduos para a vida em
sociedade e um meio de promover uma sociedade
melhor para a vida dos indivíduos, em todos os
sentidos possíveis.
6
AGRADECIMENTOS
São muitos os entes queridos que, de alguma forma, colaboraram para o
desempenho do meu trabalho no transcorrer destes últimos anos, aos quais agradeço
profundamente, certo de que nossa jornada (recorrendo aqui a uma metáfora fundamental,
com todas as suas implicações) não termina aqui. Mais do que lembrados, eles se
encontram tão cristalizados e enraizados na minha vida, que, em alguma proporção, este
trabalho reflete um pouco de cada um. Assim, agradeço:
A Deus, incorporado nos sentimentos, atitudes, posturas e crenças no meu dia-a-dia, por
conceder a força necessária para superar todas as dificuldades e problemas, a proteção em
todos os momentos e o talento para lidar com os estudos, que, junto com a perseverança,
fez-me chegar a este momento sublime de minha carreira acadêmica;
Aos meus pais, Paulo e Aparecida, diante de cujos exemplos de vida, caráter e dedicação
me sinto um eterno aprendiz. A criança, que tempos atrás necessitava de vocês para ensaiar
os primeiros passos e levantar após as quedas, hoje cresceu, mas continua buscando em
seus olhares aquele mesmo brilho de aprovação por ter feito as coisas da maneira certa;
Aos meus filhos Paulo Filipe e Pedro Henrique, alentos na minha caminhada, orgulhos da
minha existência. Tudo que não fui e desejaria ser se realiza em vocês. Obrigado pela
educação, respeito, confiança e carinho que cada um manifesta à sua maneira, nas pequenas
coisas. E obrigado pelo principal ensinamento que me proporcionam na vida: a lição de ser
pai;
À Eunice, amor sincero e maduro, pela paz que sinto na sua companhia, pelo apoio
incondicional e pelo prazer de estar ao seu lado. Obrigado por me mostrar que nunca é
tarde para realizar os planos mais singelos da vida;
7
Aos meus irmãos Elaine e Herley, com toda diferença de escolhas e comportamentos.
Obrigado pelas deliciosas recordações dos tempos menos atribulados de que a maturidade
faz a gente distanciar, mas que acompanham os nossos dias durante toda a vida;
À minha orientadora Prof
a
. Heliana Mello, pela sabedoria, paciência e humanidade
manifestadas em toda a minha trajetória de doutoramento. Que seu profissionalismo lhe
renda ainda mais frutos para que seja capaz de continuar conduzindo mais e mais pessoas
com brilhantismo ao longo de sua vida acadêmica;
Aos professores componentes da banca de qualificação: Antônio Luiz Assunção (UFSJ),
Maurício Barcellos Almeida (ECI/UFMG) e Tommaso Raso (FALE/UFMG suplente),
pelas luzes que lançaram para o aprimoramento deste trabalho, bem como aos demais
professores que compõem a banca de defesa final: Ulrike Schröder (FALE/UFMG),
Luciane Corrêa Ferreira (FALE/UFMG) e Neusa Salim Miranda (UFJF), que aceitaram
prontamente a proposta de submissão da pesquisa aos seus olhares de reconhecida
expressão e competência, incluindo nessa lista os professores Deise Prina Dutra
(FALE/UFMG) e Pedro Perini Frizzera da Mota Santos (PUC-Minas), suplentes da banca
final.
Ao Professor Tony Berber Sardinha, da PUC-SP, que, mesmo sem conhecer o trabalho e o
seu autor, desde o início colaborou com os mesmos através de ajustes no programa de
identificação de metáforas e com o envio de textos e comentários muito importantes para o
progresso da pesquisa;
Ao Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da
UFMG, que abrigou a minha proposta e ofereceu todas as condições para o pleno
desenvolvimento da mesma, através da Direção, Coordenação, Colegiado, Secretaria,
Biblioteca e demais setores de apoio da Universidade;
Aos amigos do grupo de pesquisa InCognito, por compartilharem comigo as ideias,
debates, estudos, sucessos, angústias e os agradáveis momentos de intervalos das aulas,
cantina e participações em eventos. Mais que partilhar projetos de pesquisa, partilhamos
projetos de vida, e espero continuar assim;
À UNIPAC, pelo apoio e consideração em todos os anos em que atuo na Instituição,
prestados especialmente pela Reitoria, Vice-reitoria e Pró-reitorias, a cujos amigos
agradeço profundamente;
Ao IPTAN, instituição em que atuo há pouco tempo, mas suficiente para estabelecer
importantes laços de amizade e de amadurecimento profissional;
8
Aos amigos com quem convivo muitos anos, compartilhando os sucessos e as
dificuldades da vida acadêmica e também da vida pessoal, que sempre me incentivaram em
todos os sentidos. Entre estes, destaco o Prof. Ariel Novodvorski, da UFU, ex-aluno e ex-
colega de trabalho, cuja seriedade e competência são louváveis, além de ser um hermano
sempre disposto a ajudar em qualquer situação, seja com trabalhos concretos (a exemplo do
Resumen desta tese), seja através das conversas amigas, sempre com pontos de vista
extremamente ponderados sobre tudo; o Prof. Ronaldo de Freitas Moreira, da EPCAR, que
sempre abraçou prontamente as causas que lhe foram propostas, inclusive a elaboração do
Abstract deste trabalho e tantos outros importantes serviços de tradução por ele prestados;
o Prof. Vicente de Paula Leão (UFSJ) e o Prof. Carlos Henrique da Silveira (UNIFEI),
cujas trajetórias de tempos em tempos esbarram com a minha, desde o nascedouro de
nossas atividades até os nossos doutoramentos na UFMG, apesar das áreas bem distintas.
Enfim, percebe-se que a minha vivência é um misto de pessoas e
instituições, cada uma tendo contribuído de alguma maneira para a minha formação e para
a culminância deste trabalho. A elas, o meu sincero abraço e o desejo de que continuemos
sempre firmes em projetos cada vez mais arrojados. Afinal, ainda muito para
percorrermos juntos.
9
Metáfora
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
(Gilberto Gil)
10
RESUMO
Neste trabalho, desenvolve-se uma abordagem da metáfora no escopo da cognição humana,
utilizando os pressupostos teóricos da Linguística Cognitiva no âmbito das representações
mentais e aplicando-os à descrição da articulação textual. Para alcançar esse intento, partiu-
se de um estudo sobre as várias vertentes de abordagem da metáfora empreendidas ao
longo dos séculos pela Linguística e pela Filosofia, para centrar-se em alguns postulados do
final do século XX que a consideram como um recurso de facilitação do raciocínio, através
do qual conceitos mais complexos são elaborados na forma de conceitos mais simples.
Considera-se também que a metáfora é um fenômeno presente em todos os níveis da
comunicação, não se restringindo a algumas áreas e atividades do conhecimento humano.
Baseando-se especialmente na Teoria dos Espaços Mentais, de Fauconnier (1994), e na
Teoria da Mesclagem Conceitual, de Fauconnier e Turner (1994), a pesquisa desenvolveu-
se sobre um corpus pequeno-médio formado por textos escritos em ngua portuguesa, na
modalidade de redações de processos seletivos para o ingresso de alunos ao ensino
superior, descrevendo o papel que a metáfora exerce na articulação textual que vai além da
elaboração de pequenas frases ou trechos. Com o suporte dos recursos eletrônicos do
programa WordSmith Tools
©
, obteve-se uma sistematização de dados quantitativos para se
proceder à pesquisa qualitativa, a partir de onde foi possível alcançar os resultados
apresentados nesta tese. Entre estes, destaca-se a constatação de que, subjacente à
estruturação textual dos exemplares do nosso corpus, bem como em outros tipos textuais
que também foram submetidos à análise, existe uma forma de organização de elementos
típica do processo de narração, com a identificação de informações relacionadas a tempo,
espaço e personagens, considerando-se a inter-relação do nível metafórico e do não
metafórico. A partir dessa constatação, foi idealizado um modelo descritivo desse
fenômeno, através do qual apresentamos o chamado DCN Domínio Cognitivo da
Narrativa, no intuito de esclarecer esse processo, ensejando uma melhor compreensão de
como funciona a mente humana no que se refere à utilização da metáfora na articulação de
textos.
Palavras-chave: Metáfora – Semântica Cognitiva – Espaços Mentais – Mesclagem
Conceitual – Domínio Cognitivo da Narrativa
11
ABSTRACT
In this work an approach to metaphor, in the scope of human cognition, is developed,
taking into account theoretical assumptions of Cognitive Linguistics within the ambit of
mental representations, and having them applied to a description of textual articulation. In
order to achieve this goal, the research started from the study of different approaches to
metaphor done by both Linguistics and Philosophy over the centuries, to focus on a few
late twentieth-century postulates. Metaphor is thus assumed to be a resource used to
facilitate reasoning by means of which more complex concepts are elaborated in terms of
more simple ones. Metaphor is also considered as a phenomenon present in all levels of
communication, not being restricted to specific areas and activities of human knowledge.
Based especially on both Mental Spaces Theory, by Fauconnier (1994), and on Conceptual
Blending Theory, by Fauconnier and Turner (1994), the research was developed with the
use of a small-medium-size corpus composed of higher education entrance examination
compositions, written in Portuguese, describing the role – not limited to the construction of
small sentences or chunks of texts that metaphor plays in textual articulation. With the
aid of the electronic tool WordSmith Tools
©
it was possible to obtain a systematization of
quantitative data in order to proceed to the qualitative research, from where the results in
this thesis were made available. It thus becomes clear that, underlying the textual
structuring of the samples of our corpus, as well as in other textual types that were also
submitted to analysis, there is a pattern of organization considered as typical of the
narrative process that includes the identification of information relating to time, space and
characters, considering the interrelationship between metaphorical and nonmetaphorical
levels. Starting from this, a descriptive model was idealized by means of which we
introduce the so-called CDN – Cognitive Domain of Narrative, with the objective of
elucidating this process and introducing thus a better understanding of how the human
mind works, concerning the use of metaphor in textual articulation.
Keywords: Metaphor Cognitive Semantics Mental Spaces Conceptual Blending
Cognitive Domain of Narrative
12
RESUMEN
En este trabajo, se desarrolla un abordaje de la metáfora en el terreno de la cognición
humana, utilizando los postulados teóricos de la Lingüística Cognitiva en el ámbito de las
representaciones mentales y aplicándolos a la descripción de la articulación textual. Para
alcanzar ese propósito, se partió de un estudio sobre las distintas vertientes de abordaje de
la metáfora emprendidas a lo largo de los siglos por la Lingüística y por la Filosofía, para
centrarse en algunos postulados de fines del siglo XX que la consideran como un recurso
de facilitación del razonamiento, a través del que se elaboran conceptos más complejos en
la forma de conceptos más simples. Se considera también que la metáfora es un fenómeno
presente en todos los niveles de la comunicación, que no se restringe a algunas áreas y
actividades del conocimiento humano. Basándose especialmente en la Teoría de los
Espacios Mentales, de Fauconnier (1994), y en la Teoría de la Integración Conceptual, de
Fauconnier y Turner (1994), la investigación se desarrolló sobre un corpus de tamaño
pequeño-medio formado por textos escritos en lengua portuguesa, en la modalidad de
redacciones de procesos selectivos para el ingreso de alumnos a la enseñanza superior,
describiendo el papel que la metáfora ejerce en la articulación textual que va más allá de la
elaboración de pequeñas frases o fragmentos. Con el apoyo de las herramientas electrónicas
que proporciona el programa WordSmith Tools
©
, se obtuvo una sistematización de datos
cuantitativos para proceder a la investigación cualitativa, desde la cual se pudieron alcanzar
los resultados presentados en esta tesis. Entre estos, se destaca la constatación de que,
subyacente a la estructuración textual de los ejemplares de nuestro corpus, así como en
otros tipos textuales que también se sometieron al análisis, existe una forma de
organización de elementos pica del proceso de narración, con la identificación de
informaciones relacionadas a tiempo, espacio y personajes, considerándose la interrelación
del nivel metafórico y del no metafórico. A partir de esa constatación, se idealizó un
modelo descriptivo de ese fenómeno, a través del cual presentamos el llamado DCN
Dominio Cognitivo de la Narrativa, con el propósito de aclarar ese proceso, facultando una
mejor comprensión de cómo funciona la mente humana en lo que se refiere al uso de la
metáfora en la articulación de textos.
Palabras-clave: Metáfora Semántica Cognitiva Espacios Mentales Integración
Conceptual – Dominio Cognitivo de la Narrativa
13
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – As vertentes dos estudos em Linguística Cognitiva 31
Figura 2 – A composição de uma unidade simbólica 35
Figura 3 – A inserção da unidade fonológica na unidade semântica, no processo de
composição de uma unidade simbólica 36
Figura 4 – Simetria nº 45, ilustração do artista holandês M. C. Escher (1898-1972) 46
Figura 5 – Esquema de projeção de elementos entre espaços mentais diferentes 53
Figura 6 – Esquema de projeção de informações entre domínios diferentes 54
Figura 7 – Representação dos espaços mentais baseada no conto “Aquiles e a
Tartaruga”, cf. Fauconnier (1997, p. 48) 57
Figura 8 – Representação da flutuação de informação pressuposta do espaço da
realidade para o espaço da possibilidade 60
Figura 9 – Modelo de mesclagem conceitual proposto por Fauconnier e
Turner (1994) 67
Figura 10 – Modelo de representação do processo de mesclagem conceitual 69
Figura 11 – Representação analítica de caso de mesclagem conceitual através do
modelo de Coulson (2000) 70
Figura 12 – Análise de caso de mesclagem conceitual em construção ergativa 76
Figura 13 – Compressão de imagens num mesmo domínio 102
Figura 14 – Representação metonímica envolvendo os domínios fonte e alvo 105
Figura 15 – Descrição geral do corpus obtida através do listador de palavras do
WST 116
Figura 16 – Ocorrências da expressão “navegar pela Internet” e similares, no corpus
da tese 124
14
Figura 17 – Representação dos domínios cognitivos, elementos e esquemas
metafóricos do texto (17) 126
Figura 18 – Representação de caso de metaftonímia em redação do corpus 127
Figura 19 – Representação da interpenetração dos esquemas metafóricos do
texto (18) 131
Figura 20 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus,
dentro da norma padrão 138
Figura 21 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus,
envolvendo metaforização de lugar 139
Figura 22 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus, fora
da norma padrão 141
Figura 23 – Primeira tela de listagem das ocorrências da palavra “onde” no corpus 142
Figura 24 – Esquema da organização metafórica do texto (25) 144
Figura 25 – Mapeamentos entre elementos de domínios cognitivos do texto (26) 146
Figura 26 – Primeira tela de listagem das ocorrências da palavra “homem” no
corpus 148
Figura 27 – Listagem das ocorrências do nódulo “humanidade” no corpus 149
Figura 28 – Primeira tela da lista de ocorrências da forma verbal “tornar” e suas
flexões verbais 155
Figura 29 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se A
1
158
Figura 30 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se B 159
Figura 31 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se B
m
159
Figura 32 – Esquema da MC de Fauconnier e Turner (1994) com destaque para o
espaço de formação das metáforas 169
Figura 33 – Estrutura do DCN em relação ao modelo da MC 172
Figura 34 – Estrutura simplificada do DCN 173
Figura 35 – Representação da MC relacionada às informações de espaço no
texto (17) 179
Figura 36 – Representação da MC relacionada às informações de personagens no
texto (17), com a área de Informática sendo um dos espaços de entrada 180
Figura 37 – Representação da MC relacionada às informações de personagens no
texto (17), com a Justiça sendo um dos espaços de entrada 181
Figura 38 – Espaço da mescla englobando informações de espaço e personagens do
15
texto (17) 182
Figura 39 – Representação do DCN do texto (17) 184
Figura 40 – Representação dos espaços metafóricos e respectivos personagens
dentro do DCN do texto (25) 185
Figura 41 – Representação do DCN do texto (25) 186
Figura 42 – Representação genérica do DCN do texto (31) 187
Figura 43 – Representação mais detalhada do DCN do texto (31) 188
Figura 44 – Representação do DCN do segundo parágrafo do texto (31) 189
Figura 45 – Representação detalhada do DCN do texto (33) 192
Figura 46 – Representação das funções diferenciadas dos elementos de construção
metonímica do discurso político 196
Figura 47 – Representação do DCN do primeiro parágrafo do discurso político 202
Figura 48 – Representação de relação metonímica no discurso político no esquema
do DCN 203
Figura 49 – Representação geral do DCN do discurso político 205
Figura 50 – Representação do DCN do editorial 210
16
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Dados gerais dos textos do corpus, separados por grupos 117
Tabela 2 – Número de redações escolhidas para busca manual por metáforas, em
cada subgrupo do corpus 121
Tabela 3 – Ocorrências de nódulos com o radical “pirat-” no corpus 136
17
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
DCN = Domínio cognitivo da narrativa
EM = Espaços Mentais
LCog = Linguística Cognitiva
LCorp = Linguística de Corpus (ou Linguística de Corpora)
LSF = Linguística Sistêmico-Funcional
MC = Mesclagem Conceitual
MCI = Modelo Cognitivo Idealizado
pp. = Pressuposição ou pressuposto
VAD = Visão de acesso direto
VPP = Visão pragmática padrão
WST = WordSmith Tools
©
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 22
1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 27
1.1 Princípios da Linguística Cognitiva 27
1.2 A gramática como representação 34
1.3 Elementos da Gramática Cognitiva 37
1.3.1 Imagem 37
1.3.2 Esquema 39
1.3.3 Moldura (Frame) 41
1.3.4 Papel (Script) 42
1.3.5 Cena ou cenário 43
1.3.6 Domínio 43
1.3.7 Modelo cognitivo 44
1.3.8 Relevância 44
1.3.9 Elementos de perspectiva 45
1.3.9.1 Figura / Fundo (Figure / Ground) 45
1.3.9.2 Perfil / Base (Profile / Base) 47
1.3.9.3 Trajetor / Marco (Trajector / Landmark) 47
1.3.9.4 Ponto-de-Vista (Viewpoint) 48
1.3.9.5 Dêixis 48
1.3.9.6 Subjetividade / Objetividade 49
1.4 Considerações finais 49
19
2 A TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS E DA MESCLAGEM
CONCEITUAL 51
2.1 Apresentação 51
2.2 A Teoria dos Espaços Mentais 52
2.2.1 Aspectos básicos da teoria 52
2.2.2 Os EM no nível da significação implícita 58
2.2.3 Algumas considerações sobre a teoria dos EM 61
2.3 A Teoria da Mesclagem Conceitual 66
2.3.1 Aplicações da teoria da MC na linguagem 73
2.3.1.1 A MC e a formação de expressões lingüísticas 74
2.3.1.2 A MC nas regras de organização gramatical 75
2.3.1.3 A MC na estruturação de textos 76
2.4 Considerações finais 79
3 PANORAMA HISTÓRICO-CONCEITUAL DOS ESTUDOS
DA METÁFORA 81
3.1 Introdução 81
3.2 A visão tradicional a partir de Aristóteles 82
3.3 Desdobramentos da visão clássica 84
3.4 O século XX e o surgimento da noção de metáfora conceitual 88
3.5 O conceito de metáfora gramatical 91
3.6 O conceito de metáfora sistemática 93
3.7 A metáfora analisada sob o prisma da LCorp 94
3.8 Outros estudos 100
3.9 A correlação entre metáfora e metonímia 101
3.10 Algumas tomadas de posição em face do panorama dos estudos da
metáfora 108
4 DESCRIÇÃO E ANÁLISE LINGUÍSTICA DO CORPUS 111
4.1 Introdução 111
4.2 Descrição do corpus para análise 111
4.3 Procedimentos de tratamento do corpus 117
4.4 Descrição da ferramenta eletrônica: o WordSmith Tools© 118
20
4.5 Análise do corpus 119
4.5.1 Busca manual de metáforas 122
4.5.1.1 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo I 122
4.5.1.2 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo II 135
4.5.1.3 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo III 143
4.5.1.4 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo IV 145
4.5.1.5 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo V 150
4.5.1.6 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo VI 161
4.6 Conclusões preliminares 163
5 O DOMÍNIO COGNITIVO DA NARRATIVA 166
5.1 Pressupostos para identificação dos DCNs 166
5.2 Modelo teórico dos DCNs 168
5.3 A importância da narrativa dentro dos estudos cognitivos 173
5.4 Aplicações do modelo 178
5.4.1 A necessidade de ampliação do modelo da MC 178
5.4.2 Representações do DCN de outros textos do corpus 184
5.4.3 Aplicação em textos diferentes dos que compõem o corpus 192
5.4.3.1 Análise textual de exemplar do discurso político 194
5.4.3.1.1 Levantamento inicial de metáforas, metonímias e outros recursos 195
5.4.3.1.2 Enquadramento do texto no modelo do DCN 201
5.4.3.2 Análise textual de exemplar de editorial 206
5.4.3.2.1 Levantamento inicial de metáforas, metonímias e outros recursos 206
5.4.3.2.2 Enquadramento do texto no modelo do DCN 208
5.4.4 Algumas considerações a respeito da aplicabilidade do modelo em
outros gêneros textuais 211
5.5 Conclusão – perspectivas da consideração da existência dos DCNs
dentro dos estudos linguístico-cognitivos 213
CONSIDERAÇÕES FINAIS 216
REFERÊNCIAS 219
21
ANEXOS 227
Anexo A 227
Anexo B 235
22
INTRODUÇÃO
Desde que a metáfora foi evidenciada séculos atrás como uma forma de
sentido figurado, e ao longo dos séculos subsequentes foi sendo tratada sob os mais
diversos ângulos no âmbito da Filosofia e da Linguística, o fenômeno da linguagem verbal
humana foi-se descortinando cada vez mais claro, pois a partir daí emergiram
questionamentos da mais variada natureza: o que diferencia a metáfora de outras
ocorrências da linguagem verbal? Qual a relação entre a metáfora e a capacidade humana
de argumentar, convencer, persuadir? Em que medida é possível construir expressões
metafóricas? Qual a relação entre metáfora e Literatura? Em que aspectos a metáfora
carrega informações do meio extralinguístico no qual está sendo produzida? Existem
contextos em que o uso de metáforas deve ser incentivado, em detrimento de outros em que
elas devem ser evitadas? Existe a possibilidade de utilização de uma linguagem isenta do
recurso de metaforização? Quais são os limites entre o sentido metafórico e o não
metafórico?
Essas e outras investigações foram levadas a efeito durante muitos séculos
de pesquisas e especulações, sem que, até hoje, tenhamos uma posição firmemente
estabelecida sobre as respostas para tais – ou, pelo menos, sem que tenhamos uma resposta
unificada para cada um desses questionamentos. E, no fundo, a metáfora se encontra em
meio àquelas questões não raras dos estudos da linguagem que apresentam uma variedade
de definições, tal qual o número de formas de tratamento possíveis em relação ao objeto
em pauta. Afinal, a metáfora é um elemento, ou um fenômeno, ou um recurso
dependendo de sua abordagem que perpassa de um dos níveis mais elementares da
língua, que é a formação de palavras, até os processos mais complexos de formação
23
discursiva. Com toda essa magnitude, certamente jamais chegaremos a um conceito
unificado do termo, e nem devemos pretendê-lo.
Consultando diversas referências de estudo sobre a metáfora na tentativa de
vislumbrar o estado da arte em que ela se encontra no contexto do intenso aprofundamento
de pesquisas realizadas até o século atual, uma constatação nos intriga: os casos de
metáforas avaliados sob os mais diversos pontos de vista são, normalmente, de pequena
extensão linguística e desvinculados do seu contexto de elaboração. É certo que um dos
procedimentos típicos do fazer científico corresponde a que o analista parta das pequenas
partes constituintes do seu objeto de pesquisa na tentativa de esgotar a sua descrição
mínima para, depois, explicar o funcionamento desse objeto e suas partes num contexto
mais amplo. Encontramos essa técnica tanto na metodologia de ciências mais exatas quanto
na área de humanidades.
No entanto, por que, no caso da metáfora, mesmo depois de séculos e
séculos de investigação sobre o assunto, os estudos não avançaram mais do que o
tratamento de pequenas porções de sentenças? Por que não existe, até o momento, uma
teoria da metáfora que explique o seu comportamento em porções maiores de textos?
Uma possível resposta para esses questionamentos poderia ser, até meados
do século XX, a inexistência de recursos tecnológicos que capacitassem o manuseio de
grandes quantidades de textos aliado a uma sistematização metódica de resultados sobre os
quais se pudesse empreender uma investigação concisa do objeto e chegar a resultados
produtivos. Com a chegada dos recursos da Informática, esse quadro mudou, mas parece
imperar ainda uma mentalidade temporalmente consolidada que restringe o conceito de
metáfora em pequenas porções de textos. Em termos descritivos isso pode ser bom, mas
acaba por confinar a nossa compreensão sobre o objeto também nessas pequenas porções.
É evidente que existem estudos sobre a metáfora que vão além de sentenças isoladas, mas
eles ainda perfazem uma pequena minoria.
Não é nossa intenção repudiar – nem tampouco lamentar – os estudos
empreendidos, sejam eles em quais níveis forem. Contrariamente a isso, o objetivo é
acrescentar conhecimento, na tentativa de realizar uma investigação que direcione o
preenchimento dessa lacuna, mostrando como opera a metáfora na constituição textual
mais ampla. O pouco que conseguirmos desenvolver nesse sentido certamente será um
ganho para a ciência da linguagem.
24
Para realizar essa empreitada, elegemos não aleatoriamente, claro os
princípios da abordagem cognitiva como os mais adequados aos nossos propósitos, haja
vista que pretendemos um estudo que ultrapasse as fronteiras da superfície da organização
textual e atinja os mecanismos de funcionamento da mente humana diante dos artifícios
disponíveis para essa organização. Por essa razão, iniciaremos o nosso trabalho justamente
com a apresentação desses princípios básicos, no primeiro capítulo da tese. Nele, vamos
expor os elementos fundamentais da gramática que serve de suporte a essa abordagem,
oferecendo uma visão geral sobre o que significa trabalhar a linguagem no âmbito da
cognição. Serão retomados os pilares da área, em suas múltiplas abordagens, tanto no que
diz respeito a teorias quanto a autores e obras. A visão oferecida nesse capítulo, em parte
expositiva, servirá como base para prosseguir com as teorias que se enquadram no nosso
recorte de pesquisa, bem como para os levantamentos e as análises que serão realizados
posteriormente. Acredita-se que, nessa parte da tese, além da exposição teórica, está sendo
realizada uma importante sistematização de elementos com base em referências
diversificadas sobre o assunto, auxiliando na difícil e necessária tarefa de conferir um
estatuto mais organizado a essa área de estudos. Não é esse o foco principal do presente
trabalho, mas com a forma de organização do primeiro capítulo poderemos oferecer
alguma parcela de contribuição também nesse sentido.
Dando seguimento ao trabalho, vamos nos centrar em importantes teorias
dentro da Semântica Cognitiva, as quais descreveremos com detalhes e exemplos, além de
aproveitarmos a oportunidade para expormos análises, por ora, de pequenos trechos de
textos. Serão retomados, também, exemplos clássicos da área, a fim de expor os detalhes
que cada uma das teorias apresenta. O capítulo segundo será, portanto, uma sequência
coerente com o capítulo anterior, como um refinamento da teoria linguístico-cognitiva
geral apresentada no primeiro capítulo. Tomaremos como apoio especialmente as
publicações de Fauconnier e de Turner, além de alguns outros que trabalham no esteio dos
primeiros. Serão descritos os processos que envolvem os mapeamentos e as projeções
mentais, as relações entre domínios cognitivos, focalizando principalmente o processo de
formação do sentido no âmbito da cognição humana.
O terceiro capítulo será dedicado especialmente à metáfora, apresentando
um breve histórico que vai do momento em que ela – de acordo com as informações de que
dispomos atualmente ganha o estatuto de um artifício de linguagem, no contexto da
Antiguidade greco-romana, passa por várias abordagens diferentes ao longo dos tempos,
25
até desembocar nas modernas teorias dos séculos XX e XXI. Se, por um lado, as
gramáticas e manuais didáticos de língua portuguesa centram normalmente a definição e o
tratamento da metáfora na tradição aristotélica, por outro lado muitas inovações modernas
de tratamento desse fenômeno retomam aspectos já salientados por pesquisadores que
também se enquadram, em termos temporais, na tradição clássica, mas que adiantaram
importantes características que vão além do processo de simples-troca de palavras e
expressões no nível superficial da linguagem. Complementarmente a essa exposição, será
mostrado como as recentes tecnologias influenciam na concepção da metáfora devido às
possíveis abordagens da mesma operadas em volumosos corpora. A parte da Linguística
que se ocupa desse tipo de abordagem não corresponde a uma etapa histórica propriamente
dentro dos estudos da metáfora, mas sem dúvida está relacionada a procedimentos de
investigação desse objeto que acabam por interferir na concepção hodierna sobre metáfora.
Isso, graças às possibilidades que se abrem para o pesquisador quanto ao processo de coleta
e de sistematização de dados. E para desfechar o capítulo, serão apresentadas e discutidas
também importantes questões relacionadas à metonímia, uma vez que as características
desta e da metáfora muitas vezes se interpenetram, necessitando de alguns clareamentos
para uma boa aplicação das teorias sobre ambas.
No capítulo quarto, proceder-se-á à análise do corpus desta tese, constituído
de textos na modalidade escrita. Essa análise parte do levantamento realizado através de
uma ferramenta eletrônica muito empregada em estudos de corpora, cujo funcionamento
será descrito antes da apresentação dos resultados. Esse recurso eletrônico, no entanto, é
apenas o ponto de partida de nossa análise, que se desenvolverá de maneira
preponderantemente qualitativa. Aliás, embora pareça redundante, deve-se ter clara a noção
de que uma análise não se faz na ausência do analista, e o computador não é investido
dessa função. Cabe, pois, aos linguistas, juntamente com os especialistas da área de
Informática, aprimorar cada vez mais as técnicas de coleta e sistematização de dados para
que muitos avanços advenham daí. Nesse capítulo, serão apresentados vários fragmentos e
textos do nosso corpus, os quais serão acompanhados de uma análise voltada para a
identificação das metáforas e a descrição do seu papel na articulação desses textos.
Por fim, no quinto e último capítulo, será apresentado um modelo de
tratamento de textos baseado nos resultados alcançados e na observação mais acurada
possível destes, no intuito de demonstrar o papel da metáfora na organização textual. Nesse
capítulo, serão apresentadas as características básicas do modelo, aventando-se também a
26
possibilidade de aplicação do mesmo em textos além do nosso corpus. Para a apresentação
do modelo de análise, contaremos com uma investigação dos aspectos relacionados à teoria
narrativa, dada a necessidade de levantar aspectos linguístico-cognitivos dessa área em
virtude das conclusões a que se chegou com base nos resultados obtidos em nossa análise.
Além de procedermos à análise das metáforas propriamente, ficamos atentos
ao objetivo de lançar mão dos elementos que integram os estudos da cognição, certos de
que eles podem oferecer-nos vantagens muito valiosas para a compreensão da articulação
de textos. Os resultados alcançados serão, portanto, um ganho para os estudos sobre a
metáfora, a articulação textual e a inter-relação entre linguagem e cognição. E o desafio
maior é justamente porque trabalhamos sobre uma abordagem de metáfora envolvendo
mapeamentos mentais, e não palavras e expressões específicas que pudessem ser rastreadas
automaticamente, por exemplo, com a ajuda de programas eletrônicos. O nosso desejo,
diante disso, é que a pesquisa seja capaz de proporcionar muitas conclusões pertinentes
diante desse desafio e que o modelo oferecido seja capaz de refletir, de modo simples e
eficaz, a nossa realidade comunicativa.
27
CAPÍTULO 1
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
1.1 Princípios da Linguística Cognitiva
Para uma boa compreensão do fenômeno da linguagem, é necessário que
esse objeto seja abordado sob vários ângulos, descrevendo-se as suas várias facetas, as
quais, no conjunto, fornecem uma visão mais completa possível sobre a comunicação
verbal humana. Seccionar um objeto de estudo é uma necessidade de qualquer pesquisa;
assim o pesquisador poderá aprofundar-se no seu material de análise, calcado numa
consistência teórica que lhe proporcione os elementos básicos para a sua investigação a fim
de que ele possa contribuir com novas conclusões dentro de sua área de pesquisa.
Nesse contexto, a Linguística Cognitiva (doravante LCog) surge como uma
dessas maneiras específicas de encarar o fenômeno da linguagem. Inicialmente descrita
através da então chamada Gramática de Espaço (Space Grammar), conforme explicita
Langacker (1987) em seu prefácio, essa vertente da Linguística se organiza em torno do
estudo do processamento cognitivo da linguagem, diferentemente de várias outras áreas
cujos estudos se centram no nível da sentença. Dentro desse propósito, podem-se apontar
alguns fatores de especial interesse para a área, a saber: a categoria do sentido figurado,
incluindo elementos como as expressões idiomáticas e a metáfora, e uma nova
conceitualização de certos termos gramaticais tradicionais, como “nome”, “verbo”,
“modificador”, “sujeito”, “subordinação” etc.
1
1
Cf. Langacker (1987, p. 1-2).
28
Na sua proposta de oferecer uma Gramática Cognitiva que delineie com
bastante precisão essa linha de pesquisa, Langacker (1987, p. 2-3) aponta os seguintes
pressupostos para uma investigação linguístico-cognitiva, os quais serão sempre levados
em conta no presente trabalho para se alcançar a necessária consistência teórica:
i) não existem universais semânticos, diferentemente do que apregoam certas linhas de
pesquisa. A estrutura semântica de uma língua é definida em função de convenções
imagéticas e é caracterizada em relação às estruturas do pensamento;
ii) a organização gramatical não ocorre num nível de representação formal autônomo
destinado para tal. A gramática é naturalmente simbólica e decorre de convenções sobre a
estrutura semântica de uma língua;
iii) a divisão entre os componentes lexical, morfológico e sintático é arbitrária, não
existindo uma distinção significativa entre si. Eles formam um continuum que, na verdade,
se apõe ao chamado componente semântico.
Croft e Cruse (2003, p. 1) também apresentam três postulados que se
aplicam aos estudos na área de LCog, sendo que os dois primeiros praticamente
parafraseiam os pressupostos de Langacker (1987), e o terceiro vem apresentar uma outra
importante noção para essa linha de estudos: a noção de “uso”. Para aqueles autores,
i) a língua não se constitui uma faculdade cognitiva autônoma;
ii) a gramática é conceitualização e
iii) o conhecimento da língua emerge do uso linguístico.
No conjunto, os princípios aventados pelos teóricos da LCog se diferenciam
radicalmente de algumas teorias amplamente utilizadas nos estudos da linguagem, em
especial a teoria gerativista, segundo a qual a língua é um componente autônomo na mente
humana, e a teoria semântica baseada nos valores de verdade, segundo a qual os
enunciados linguísticos podem ser classificados como verdadeiros ou falsos em relação a
um mundo possível.
A ideia geral que vigora nos estudos linguístico-cognitivos é que a língua
não é uma faculdade humana diferente de outras habilidades cognitivas, como a percepção
visual, o raciocínio, a atividade motora etc. Os princípios que regem a habilidade humana
de lidar com a linguagem são os mesmos princípios que comandam outras habilidades
cognitivas. É claramente perceptível que o gênero humano é dotado de uma predisposição
genética e organicamente concebida para a comunicação verbal, mas o que interessa para a
29
LCog é a demonstração do papel desempenhado pelas habilidades cognitivas gerais através
da língua
2
.
O terceiro postulado de Croft e Cruse (2003) remete a uma importante
noção da área, chamada de Modelo Baseado no Uso (Usage-Based Model). Essa linha de
estudos tem em Barlow e Kemmer (2000) uma boa descrição de seus princípios. Em um
dos trabalhos dessa coletânea, Barlow (2000, p. 316) alude à estratégia fundamental desse
tipo de gramática, que é a análise das várias ocorrências de um determinado enunciado
num dado corpus, observando-se a regularidade de seu uso autêntico na língua.
A partir desse modelo, surge um fenômeno de acentuada importância para
os nossos estudos, que é a noção do entrincheiramento (entrenchment). A recorrência do
uso de um certo elemento na língua pode acarretar que este se torne uma “unidade” dentro
do sistema, o que ocorre de forma progressiva e com limites não muito bem definidos. É o
que acontece com certas expressões, por exemplo, cujos significados aos poucos se vão
cristalizando na língua, não sendo necessário que o falante depreenda o significado de suas
partes para chegar ao seu sentido final. Trata-se de um importante fenômeno na
organização cognitiva humana ligado ao fator de uso de uma expressão e, portanto,
relacionado com a questão de escala: uma expressão pode ir tornando-se mais
entrincheirada ou menos entrincheirada que outras dependendo do seu grau de uso e
cristalização na linguagem.
que citamos “unidade”, convém esboçar aqui a característica desse
elemento dentro dos estudos de LCog. Langacker (1987, p. 57) define esse elemento como
uma “estrutura que o falante domina completamente, tanto que ele pode empregá-la de
forma totalmente automática sem ter que focalizar sua atenção especificamente nas suas
partes individuais ou no arranjo das mesmas”
3
. Uma unidade não demanda nenhum esforço
construtivo do falante para a depreensão do seu sentido, como é normalmente requerido em
relação a estruturas novas
4
.
2
Cf. Croft e Cruse (2003, p. 2).
3
No original: “structure that a speaker has mastered quite thoroughly, to the extent that he can employ it in
largely automatic fashion, without having to focus his attention specifically on its individual parts or their
arrangement.”
4
É fácil vislumbrar a noção de “unidade” quando utilizamos certos nomes com sentido figurado: ao
caracterizar um mau motorista como “barbeiro” ou quando nos referimos à peça de vestuário feminino como
“fio dental”, não é necessário refazer o percurso das palavras a partir dos significados primários de “barbeiro”
ou “fio dental” para entender os seus significados em seus novos contextos.
30
O termo “cognitivo” não é utilizado somente em LCog, mas caracteriza
também várias outras disciplinas. Daí a facilidade de esse termo abarcar uma série de
significados que facilmente escapam aos propósitos da vertente da Linguística que
desenvolvemos no presente trabalho. Muitas vezes se confunde a LCog com outras ciências
cognitivas devido ao fato de que alguns segmentos daquela apresentam traços destas,
especialmente quando se trata de processamento computacional da linguagem. Palmer
(1996, p. 27-29), por exemplo, defende que a ciência cognitiva pode ser entendida como o
estudo da inteligência e seus processos computacionais, haja vista a possibilidade de poder
ser aplicada ao campo da computação portanto, preocupada com a descrição das
operações realizadas nas redes neurais. Enfim, é necessário descrevermos um pouco
melhor a LCog (pois ela mesma apresenta vertentes muito diferenciadas entre si),
visualizarmos em qual campo específico vamos desenvolver a nossa pesquisa e a qual(is)
campo(s) se relaciona a definição de Palmer acima, muito comum quando se trata de
cognição.
Com base nas pesquisas desenvolvidas até hoje em LCog, podemos resumir
o estado da arte dessa área de estudos numa abrangência que vai desde a concepção mais
biológica sobre cognição até estudos que realizam uma abordagem social, ou seja,
investigações que vão do cunho individual até o coletivo; e, por outro lado, a LCog abarca
também estudos que vão do nível da descrição de aspectos lexicais até o das representações
mentais, isto é, da pesquisa da palavra em si até os processos mentais que subjazem a sua
construção.
Esquematicamente, podemos vislumbrar os estudos da LCog como na
representação abaixo, sabendo-se que muitas pesquisas entrelaçam abordagens dos
diferentes polos do esquema:
31
Abordagem biológica
Estudo de aspectos Representações
lexicais mentais
Abordagem social
Figura 1 – As vertentes dos estudos em Linguística Cognitiva
Em cada um dos polos do esquema acima podemos citar expoentes que
desenvolvem pesquisas de alta relevância para a solidificação dos conhecimentos na área.
Outros pesquisadores de igual teor se situam no entrelaçamento das abordagens
apresentadas, algumas vezes com tendências maiores para uma vertente específica. Dessa
forma, citamos aqui apenas alguns desses pesquisadores, a título de exemplificação, alguns
dos quais serão retomados ao longo da nossa pesquisa, de acordo com o tipo de estudo que
vêm publicando nos últimos anos. De antemão, percebe-se que não existe um perfil teórico
unificado que possa ser atribuído à LCog; ela é um montante de teorias e abordagens que,
no conjunto, delineiam os seus objetos de análise nos campos biológico, social, de estudos
do léxico e das representações mentais.
i) No nível das representações mentais, que é a abordagem que nos interessa neste trabalho,
tem-se nos estudos de Gilles Fauconnier a sua representação máxima, muitos dos quais
desenvolvidos em parceria com Mark Turner. Essa parte da LCog se ocupa especialmente
de descrever como funciona a mente humana em processos desencadeados por certas
construções linguísticas, utilizando as noções de domínios cognitivos, espaços mentais,
projeções, mesclagem conceitual e outras. Nessa linha, destaca-se a grande contribuição de
Seana Coulson, Todd Oakley e Joseph Grady. As aplicações dessa área de pesquisa são
inúmeras, a exemplo da descrição de metáforas, metonímias, contrafactualidade, além da
descrição de fenômenos extralinguísticos. Neste último caso, os estudos de representações
mentais começam a tomar rumo em direção à abordagem que tem em Turner um grande
estudioso de traços comportamentais humanos manifestados, por exemplo, em narrativas.
32
ii) Edwin Hutchins também trabalha com representações mentais, com ênfase nos estudos
sobre a capacidade de lidar com redes de integração conceitual manifestada a partir do
momento da criação de objetos com os quais lidamos no nosso cotidiano. As pesquisas
desse autor mostram que tais objetos funcionam como âncoras para o desencadeamento da
mesclagem conceitual, funcionando como entradas (inputs) que integram o crescente
repertório de redes de integração no ser humano.
iii) que se destacar também a grande contribuição de Wallace Chafe, especialmente em
relação ao estudo de narrativas e de gêneros textuais. De maneira geral, esse tipo de estudo
no âmbito da cognição mostra que a linguagem verbal é reveladora de muitos aspectos
sócio-culturais incutidos no homem e que existe uma uniformidade muito grande na
estruturação de vários tipos de textos, como manifestação de uma espécie de inconsciente
coletivo.
iv) Erving Goffman, numa abordagem mais social dentro da LCog, desenvolve importantes
estudos relacionados ao sujeito no discurso, aludindo à cognição subjacente às
manifestações linguísticas explícitas. Esse autor mostra, com profundo nível de
detalhamento, como molduras, esquemas e protótipos guiam os pensamentos e as ações
humanas de uma forma geral. Destacam-se também, nessa linha de pesquisa, os trabalhos
de Gregory Bateson.
v) Também na linha social, direcionando para uma abordagem de estudos lexicais,
enquadramos os trabalhos de Gumperz e Tannen. Os trabalhos de John Gumperz tratam
com relevância sobre a relação entre o contexto e os processos linguísticos, a exemplo da
inferenciação, mostrando como os elementos da enunciação estão ligados ao conteúdo
proposicional e ao aspecto gramatical dos enunciados textuais. Esse estudioso mostra como
certos aspectos da variabilidade linguística refletem a história e a qualidade das relações
sociais dos interlocutores de um processo comunicativo, e que marcadores linguísticos
específicos de um grupo de falantes podem ser convencionalizados com o passar do tempo,
incluindo traços prosódicos e sinais paralinguísticos.
vi) Podemos destacar também os trabalhos de Deborah Tannen, desenvolvidos, em boa
parte, na linha da análise do discurso voltada para narrativas, em que a autora descreve
vários princípios relacionados à face do sujeito, como o distanciamento, a deferência e
outros.
vii) Na linha de estudos dos aspectos lexicais, Charles Fillmore é o principal representante.
Seus estudos realizados desde a década de 1970 apontam para uma abordagem cognitiva da
33
língua. Sua vasta produção bibliográfica tem servido de contraponto à semântica
componencial, sempre incluindo o usuário da língua nos processos ligados à formação
lexical. São relevantes os seus trabalhos sobre molduras (frames), pressuposições e vários
outros aspectos ligados ao estudo da palavra.
viii) Leonard Talmy aprofunda-se na relação entre língua e cognição, defendendo que a
classe fechada que denominamos Gramática e a classe aberta que denominamos Léxico são
dois subsistemas que se relacionam a diferentes porções da representação cognitiva,
respectivamente a parte da estrutura e a parte do conteúdo. Talmy desenvolve importantes
conceitos para o estudo lexical, utilizando categorias esquemáticas e sistemas imagéticos,
além de tratar da dêixis, da perspectivação, da atenção, entre vários outros aspectos de
interesse para a LCog.
ix) Com Ronald Langacker temos uma sólida fundamentação da gramática cognitiva,
apresentada nos dois volumes de seus Foundations of cognitive grammar (1987, 1991).
Além de se tratar de um compêndio que inaugura toda uma sistematicidade aplicável aos
fenômenos da linguagem no âmbito da cognição, é um minucioso tratado sobre estrutura
semântica, organização gramatical, estrutura dos nomes e estruturação de sentenças.
x) Adele Goldberg destaca-se na LCog ao tratar de operações cognitivas na gramática de
construções.
xi) Eve Sweetser, entre inúmeras contribuições, demonstra como as metáforas primárias
são biologicamente motivadas.
xii) No polo da abordagem biológica, encontramos George Lakoff, a partir principalmente
do clássico Metaphors we live by (1980) em conjunto com Mark Johnson. Nessa referência
e outras, o autor situa a metáfora como um recurso integrante da linguagem corriqueira, e
não da linguagem figurada, inserindo o procedimento metafórico também no
pensamento e nas ações humanas. Sob esse enfoque, o sistema conceitual humano é
metafórico por excelência, o que se revela através de gestos, posturas, comportamentos
etc., existindo também uma forte influência biológica na determinação de construções
metafóricas presentes na linguagem cotidiana.
xiii) Outro grande expoente na LCog que trata especialmente dos domínios relacionados à
biologia do conhecimento é Humberto Maturana, com vários estudos que mostram a
intrínseca relação entre o domínio fisiológico humano e o ambiente em que aquele se
encontra, estabelecendo comportamentos e condutas humanos.
34
Poderíamos citar muitos outros estudiosos que integram o quadro da LCog,
como os que atualmente desenvolvem grandes pesquisas na área do conexionismo, os que
desenvolvem as teorias vygotskyanas acerca da psicologia social etc. A apresentação desse
quadro sucinto, no entanto, tem como objetivo tão somente apresentar uma visão bem
superficial dessa área, a fim de aprofundarmo-nos na vertente que interessa aos propósitos
de nossa pesquisa.
Além de possuir muitos entrelaçamentos dentro de suas próprias vertentes, a
LCog também se inter-relaciona com outras áreas dos estudos linguísticos, além de outras
áreas do conhecimento humano. Aspectos linguístico-cognitivos são amplamente
desenvolvidos no bojo de áreas de estudos da linguagem como Fonética, Fonologia,
Sintaxe, Análise do Discurso, Pragmática etc., bem como em outras ciências distintas, a
exemplo da Teoria da Informação e a Sociologia. É por essa razão que até hoje o objeto de
inquirição da LCog é um tanto difuso, não raro se confundindo com o objeto de
investigação de outras áreas do conhecimento. Nas palavras de Janda (2000, p. 5):
A Linguística Cognitiva não surgiu totalmente formada a partir de uma
única fonte, ela não possui um “guru” central e nenhum formalismo
cristalizado. Nesse aspecto, ela é uma concatenação de conceitos
propostos, testados e ajustados por vários pesquisadores. (...) À medida
que cresce, a Linguística Cognitiva vai-se apresentando para nós com
ideias novas e novas maneiras de interagir com outras disciplinas.
5
1.2 A gramática como representação
A Gramática Cognitiva lida com construções que são entidades simbólicas
por excelência. Uma estrutura gramatical, sob essa perspectiva, consiste numa
simbolização convencional de um continuum entre uma estrutura semântica e uma
estrutura fonológica
6
. A associação entre essa unidade semântica (responsável pela
conceitualização de um elemento) e a unidade fonológica (responsável pela vocalização do
mesmo) resulta numa unidade simbólica. Esquematicamente:
5
No original: “Cognitive linguistics has not arisen fully-formed from a single source, it has no central “guru”
and no crystallized formalism. At this point it is a concatenation of concepts proposed, tested, and tempered
by a variety of researchers. (…) As it grows, cognitive linguistics continues to present us with fresh ideas and
new means for interacting with other disciplines.”
6
Cf. Langacker (1987, p. 76).
35
Figura 2 – A composição de uma unidade simbólica
Como foi dito anteriormente, a rigor, não existe, dentro da LCog, uma
distinção entre fonologia, morfologia e sintaxe. É por isso que, na composição de uma
unidade simbólica, vislumbramos somente um componente fonológico, que abarca as
informações que outras disciplinas chamariam de morfossintáticas, associado com um
componente que encerra as informações semânticas atinentes à unidade em questão.
Há, porém, um aspecto a ser levado em conta que acarreta uma pequena
mas substancial mudança na representação de uma unidade simbólica, fazendo-a
corresponder mais fielmente à realidade da linguagem: em algumas situações
comunicativas, o som é, por si mesmo, portador de significado. Sinais auditivos são
capazes de produzir impressões significativas nos ouvintes, razão pela qual os sons podem
ser considerados, por si mesmos, entidades perceptuais. Nesse caso, é adequado representar
o componente fonológico dentro da região do componente semântico, uma vez que aquele
é imbuído de significado
7
. Assim:
7
Ibid., p. 78.
Unidade
simbólica
Unidade
semântica
Unidade
fonológica
36
Figura 3 – A inserção da unidade fonológica na unidade semântica, no processo de composição de uma
unidade simbólica
Pois bem, essa concepção de Gramática nos possibilita entender a unidade
simbólica como uma estrutura (convencional) sancionadora de uma outra estrutura,
relacionada diretamente ao uso linguístico, chamada de “estrutura-alvo”, correspondente à
imagem criada no/pelo falante através de um processo de codificação. Nesse caso, acontece
um processo de sanção: as unidades convencionais da Gramática sancionam, plena ou
parcialmente, um determinado uso, sendo esse processo passível de gradação e dependente
do julgamento do falante. Influenciam nesse processo todas as experiências dos falantes,
desde as de nível sensorial até as de âmbito comportamental e cultural.
Toda essa carga de experiência dos usuários de uma língua sensorial,
comportamental, cultural interfere na sanção de estruturas porque está diretamente ligada
à formação de imagens. Palmer (1996, p. 47) descreve muito bem esse processo ao definir
“imagem”. Para este autor, “imagens são representações mentais que começam como
análogos conceituais da experiência imediata, perceptual que partem dos órgãos sensoriais
periféricos.”
8
Além disso, as imagens são também
análogos conceituais indiretos do ambiente, amplamente construídas de
modo a incluir a sociedade, os fenômenos naturais, nossos próprios corpos
e seus processos orgânicos (e mentais) e o restante do que é normalmente
chamado “realidade” ou “mundo exterior”.
9
8
No original: “Images are mental representations that begin as conceptual analogs of immediate, perceptual
experience from the peripheral sensory organs.”
9
No original: “indirect conceptual analogs of the environment, broadly construed to include society, natural
phenomena, our own bodies and their organic (and mental) processes, and the rest of what is often called
‘reality’ or ‘the world out there’.” (PALMER, 1996, p. 47).
Unidade
simbólica
Unidade
semântica
Unidade
fonológica
37
É de fundamental importância, tanto para os estudos de LCog, bem como
para outras vertentes dos estudos da linguagem, a exemplo da Linguística Antropológica e
a Linguística Cultural, conhecer as propriedades dos elementos básicos do funcionamento
da linguagem, tais como imagens, esquemas, modelos cognitivos, cenários, molduras
(frames), papéis (scripts) e outros, além dos processos que os envolvem e promovem a sua
inter-relação. É com o objetivo de oferecer uma visão sobre tais elementos que será
dedicada a próxima seção deste trabalho.
1.3 Elementos da Gramática Cognitiva
Tomaremos especialmente de Langacker (1987), Palmer (1996) e Croft e
Cruse (2003) algumas definições básicas de elementos e processos com os quais lidamos
em LCog para a compreensão do fenômeno da linguagem sob esse enfoque e para uma boa
fundamentação do trabalho aqui proposto.
1.3.1 Imagem
Conforme apresentado anteriormente, “imagem” é uma representação
mental criada no/pelo falante através de um processo de codificação e sob influência de
fatores sensoriais, comportamentais e culturais. Uma imagem pode ser criada através da
memorização ou mesmo através da imaginação, e não pela percepção direta de um
objeto ou evento. Várias imagens podem originar-se a partir de outras já existentes, uma
vez que cada imagem incorporada pelo falante passa a constituir um conjunto de
conhecimentos que serve de base para a geração de novos conhecimentos.
Além disso, a imagem não se restringe ao nível visual; existem imagens
desse tipo, bem como imagens auditivas, olfativas etc., e até imagens sobre eventos, que
descrevem como determinadas forças atuam sobre nós.
Tanto uma imagem (image) quanto um conjunto imagético (imagery)
“descrevem a ocorrência de uma sensação perceptual na ausência do correspondente input
perceptual”
10
. Em outras palavras, a imagem é um elemento autônomo em relação ao
10
No original: “describe the occurrence of a perceptual sensation in the abscense of the corresponding
perceptual input.” (LANGACKER, 1987, p. 110).
38
objeto que constitui a sua fonte. Trata-se de um elemento real cujo papel no processo de
conceitualização é substancial.
Finke (1989) estabelece cinco princípios gerais que regem a correspondência
entre as imagens e os objetos que lhes servem de entrada na sua construção:
i) Princípio da codificação implícita – as informações acerca das propriedades de um objeto
podem ser recuperadas a partir da imagem mental criada a partir desse mesmo objeto;
ii) Princípio da equivalência espacial o arranjo espacial dos elementos de uma imagem
mental corresponde à maneira como objetos físicos ou partes dos mesmos são arranjados;
iii) Princípio da equivalência perceptual no momento em que objetos são imaginados, os
processos ativados na mente são similares àqueles realizados quando os objetos são
percebidos;
iv) Princípio da equivalência transformacional transformações imaginadas e
transformações físicas apresentam características correspondentes e são regidas pelas
mesmas leis dinâmicas;
v) Princípio da equivalência estrutural a estrutura das imagens mentais corresponde à de
objetos reais, de forma que tal estrutura é coerente, bem organizada, podendo ser
reorganizada e reinterpretada.
A validade desses princípios de Finke, no conjunto, permite-nos explicar por
que determinadas crenças como as religiosas, míticas e folclóricas se baseiam na recriação
de fatos e na representação de objetos, evocando valores tais como se os fatos e os objetos
em questão estivessem presentes no momento da recriação. As imagens criadas nessas
crenças são tão reais e podem ser avaliadas e interpretadas nos mesmos moldes em que os
objetos e fatos o seriam.
Outras evidências envolvendo esses princípios também são possíveis de
serem percebidas no nosso cotidiano, como o ato de um indivíduo salivar instintivamente
quando cria a imagem de uma comida saborosa, na ausência dela; e o ato de indivíduos
apresentarem um comportamento violento diante de jogos que simulam situações que
envolvem violência. Aliás, nos dias atuais, é essa evidência que tem levado a muitas
discussões, limitações de uso e proibições de certos tipos de jogos e brinquedos que
envolvem armas e violência, com os quais o comportamento de crianças e adolescentes
torna-se igual àquele manifestado em situações reais.
39
1.3.2 Esquema
Esquematicidade é a relação estabelecida entre uma estrutura sancionadora e
uma estrutura-alvo. O esquema é uma estrutura superordenada em relação às possíveis
elaborações ou instanciações esquemáticas.
11
Uma noção como [ÁRVORE], por exemplo utilizando aqui a
representação convencional de Langacker (1987) pode ser elaborada de várias maneiras,
fazendo-se um refinamento de seus detalhes. Cada uso que se faz dessa noção num evento
linguístico específico seria uma instanciação do mesmo esquema, sendo que esta não pode
ser considerada uma unidade linguística. [ÁRVORE] é uma unidade semântica que está
associada à unidade fonológica [árvore]. A unidade simbólica resultante torna-se uma
estrutura sancionadora [[ÁRVORE]/[árvore]] que nos remete a uma estrutura-alvo não
convencional, criada pelo falante num contexto de uso específico, num processo que pode
ser elaborado ou instanciado em estruturas subordinadas. O conceito [ÁRVORE] pode ser
instanciado, por exemplo, em [IPÊ], [PINHEIRO], [MANGUEIRA] etc., como se mostra
através dos esquemas:
[IPÊ]: [[ÁRVORE] [IPÊ]],
[PINHEIRO]: [[ÁRVORE] [PINHEIRO]] e
[MANGUEIRA]: [[ÁRVORE] [MANGUEIRA]].
Obviamente, os elementos capazes de integrar um determinado esquema
possuem certas características que combinam com as do modelo oferecido. Quando a
estrutura-alvo preenche todas as características da estrutura sancionadora, diz-se que houve
sanção plena, tratando-se, nesse caso, de uma esquematicidade plena. Quando ocorre uma
sanção parcial (típica de uma modelização por protótipos), o que existe é uma
esquematicidade parcial. Esse aspecto tem relação com a capacidade humana de distinção
de traços, conforme o nível em que se está atuando. Lakoff (1987, p. 269) distingue um
“nível de interação do homem com o ambiente externo (nível básico), caracterizado pela
percepção gestáltica
12
, imaginário mental e movimentos motores” em que as pessoas, com
11
Cf. Langacker (1987, p. 68).
12
A Psicologia da Gestalt é uma das áreas que exerceu e exerce muita influência na LCog. Surge no início do
século XX como uma oposição ao caráter reducionista que explicava muito do comportamento do homem em
função de sua composição biológica, em detrimento da cognição. A Gestalt propõe que a percepção humana
dos objetos se dá em relação à sua totalidade, e somente a partir daí é que as partes se configuram como tal.
Além disso, apregoa o princípio da atenção seletiva, através do qual vários elementos emergem: a dicotomia
figura-fundo, a focalização etc.
40
bastante propriedade, “distinguem tigres de elefantes, cadeiras de mesas, (...) aspargos de
brócolis”
13
etc., de um outro nível de percepção mais profundo, que o autor chama de nível
“de esquema-imagem” (image-schematic level), em que as representações são mais
complexas.
Toda a experiência que o ser humano possui em relação ao seu contato com
o ambiente em que vive (sensações físico-químicas, experiências corporais etc.) contribui
para a formação de conceitos a partir mesmo do nível básico. Tais conceitos baseados na
experiência do homem com objetos físicos, ações e relações, pré-concebidas nesse nível
básico, entram na estruturação de esquemas que se manifestam tanto no comportamento
quanto na linguagem humanos. Lakoff (1987, p. 271-275) apresenta esses esquemas-
imagem cinestésicos, que correspondem a bases experienciais fundamentais para a
formação de metáforas, com base em Johnson (1987). São os seguintes:
i) Esquema do contêiner: o corpo humano é concebido como um contêiner, sendo
distinguidos o interior, a superfície-limite e o meio externo; a partir dessa noção, o conceito
de “dentro” e “fora” se aplica a várias situações
14
;
ii) Esquema parte-todo: a experiência de lidar com partes que compõem a totalidade do
corpo humano gera a formação de um esquema que se aplica também a organizações
sociais, como os membros que fazem parte da família, as castas que fazem parte da
sociedade etc.;
iii) Esquema da ligação (link schema): com base na primeira ligação que o ser humano
possui com o ente materno através do cordão umbilical, forma-se esse esquema que se
aplica às relações familiares e sociais. A independência e a liberdade do indivíduo são
normalmente concebidas como o rompimento da ligação com os responsáveis por ele ou
seus superiores;
iv) Esquema centro-periferia: a noção do corpo humano como possuindo um centro
(formado pelo tronco e órgãos internos) e uma periferia (dedos, cabelos etc.) é
esquematizada e aplicada a vários outros elementos, físicos ou não. Similarmente ao corpo
humano, o centro é tratado como mais importante, e a periferia como menos importante;
13
No original: “level of human interaction with the external environment (the basic level), characterized by
gestalt perception, mental imagery, and motor movements. (…) [people] distinguish tigers from elephants,
chairs from tables, (…) asparagus from broccoli”.
14
Em português, alguns verbos claramente refletem esse esquema, principalmente pelos seus prefixos, como:
injetar, ingerir, introduzir, introjetar, excretar, expelir etc., além de construções como: estar dentro das
expectativas, estar fora de controle etc.
41
v) Esquema origem-caminho-destino: o deslocamento do homem no espaço gera esse
esquema que é aplicado a várias situações, incluindo relações pessoais e sociais. Muitas
vezes, o ponto de partida é concebido como o início de uma relação ou evento; o caminho é
onde se encontram as venturas e as dificuldades; e o ponto de chegada é concebido como o
objetivo ou mesmo o término da relação ou evento.
Lakoff (1987) cita outros esquemas-imagem existentes, como: para cima
para baixo; para frente para trás; ordem linear etc., com a importância de que todos eles
mantêm uma base lógica quando se prestam à projeção de elementos para a criação de
metáforas, além de serem estruturadores básicos da nossa experiência.
1.3.3 Moldura (Frame)
A moldura é um elemento da cognição ligado diretamente ao fenômeno da
compreensão ou do entendimento. As palavras utilizadas num determinado texto evocam
ao mesmo tempo uma certa ideia do autor e uma ideia interpretada pelo receptor. Essa
compreensão realizada acerca de um determinado ser constitui o que chamamos de
moldura. Todo o processo de interpretação de sentidos se baseia numa constante retomada
desses elementos.
A construção de molduras é de fundamental importância para uma distinção
de entidades que vai além da pura segmentação de traços semânticos bem ao gosto de uma
semântica baseada em valores de verdade. A diferença entre “menino” e “homem”, por
exemplo, vai além do traço característico da diferença etária, atingindo outros aspectos
como comportamentos diferenciados, presença/ausência de ingenuidade, grau de
maturidade comportamental etc. Diríamos, nesse caso, que existe uma moldura específica
para “menino” e uma moldura para “homem”.
Da mesma forma, pode-se dizer que a diferença entre “menino”, “garoto”,
“rapaz”, “pirralho”, “fedelho”, “moleque” e “guri”, por exemplo, reside numa
diferenciação de molduras que abarca inúmeras informações de diferenças
comportamentais nesse caso, nem o traço [idade] seria capaz de estabelecer as distinções
visíveis entre os elementos. Esse aspecto, por si só, garante a importância das molduras
para a construção de imagens cognitivas e, consequentemente, a importância da
consideração e estudo desse elemento dentro da LCog.
42
Croft e Cruse (2003) apresentam a organização perfil-moldura como um
importante conceito linguístico-cognitivo, de forma parecida com a dicotomia perfil-base,
que será apresentada em seção mais adiante.
1.3.4 Papel (Script)
O papel ou script é o elemento que especifica as ações dos participantes de
uma cena, em que uma sequência de eventos ou ideias é definida. Com essa propriedade, o
papel orienta os sujeitos em relação à sua fala e às suas ações, podendo ser culturalmente
determinadas.
A formação de estereótipos linguísticos e culturais está relacionada
diretamente a esse elemento, que se liga necessariamente às vicissitudes de enunciação e
conhecimento prévio. A importância desse elemento no discurso reside principalmente no
fato de que ele ajuda na compreensão de um evento e permite prevermos o que vai ou pode
acontecer na sequência.
Em LCog é clássica como exemplo de papel ou script a ida de alguém a um
restaurante; constitui como papel dessa cena, por exemplo, a seguinte sequência de
eventos:
1º) o sujeito entra num restaurante;
2º) o sujeito se senta a uma mesa;
3º) o garçom leva o cardápio e anota o seu pedido;
4º) a refeição é servida;
5º) a conta é paga e
6º) o sujeito sai do restaurante.
Obviamente novas ações podem entrar em cena, assim como alguma(s)
ação(ões) pode(m) ser subvertida(s), mas, de toda forma, esse é o papel ou script
culturalmente determinado, que integra o conhecimento de mundo dos membros da
comunidade, em relação à utilização de um restaurante.
Existem vários papéis definidos no nosso meio cultural com uma
especificidade linguística maior, a exemplo do que acontece quando alguém estranho
oferece algo para outra pessoa. Pode ocorrer a seguinte sequência de eventos, cada um
acompanhado de expressões linguísticas relativamente uniformes:
1º) locutor 1 oferece algo para locutor 2 (Você aceita..?);
43
2º) locutor 2 recusa e agradece (Não, obrigado.);
3º) locutor 1 insiste na oferta (Pode aceitar.);
4º) locutor 2 aceita a oferta e agradece (Muito obrigado.).
1.3.5 Cena ou cenário
Segundo Palmer (1996), cena ou cenário é o elemento que estimula nossas
expectativas, onde se podem desenvolver vários esquemas imagéticos. O conceito de
cenário muitas vezes se confunde com o conceito de papel, pois ambos estão diretamente
relacionados com sequenciação de eventos e revelam um determinado sistema conceitual.
O estabelecimento de cenários é um elemento muito importante para o
estudo sobre as metáforas (além de outros fenômenos da linguagem), pois várias
construções linguísticas são reflexos daqueles e denotam uma conceitualização pré-
estabelecida que está além do nível da palavra.
Palmer (1996, p. 171-221) dedica um capítulo de sua obra à investigação de
como o próprio discurso é representado em cenários culturalmente definidos, distinguindo
aqueles ligados diretamente ao conhecimento verbal, que o autor chama de “cenários
discursivos”, os quais envolvem uma variedade de elementos como os atos de fala, a
sequenciação narrativa, a perspectivação etc.
1.3.6 Domínio
Chama-se domínio o conjunto de representações cognitivas que encerram
informações acerca de uma determinada área de conhecimento. O domínio possui natureza
bastante complexa, podendo apresentar, dentro de si, outros domínios. Esse elemento pode
comportar informações sobre eventos, objetos, categorias, esquemas etc.
Langacker (1987, p. 147) define o domínio como “um contexto para a
caracterização de uma unidade semântica”, uma vez que todas as unidades linguísticas, em
algum grau, são dependentes do contexto. Além disso, diz o autor que “Domínios são
necessariamente entidades cognitivas: experiências mentais, espaços de representação,
conceitos ou complexos conceituais”
15
(ibid., p. 147).
15
No original: “A context for the characterization of a semantic unit (…). Domains are necessarily cognitive
entities: mental experiences, representational spaces, concepts, or conceptual complexes.”
44
A noção de domínio é muito importante para o estudo de metáforas, uma
vez que, via de regra, esse fenômeno é tratado em termos de transposição de elementos de
um domínio (fonte) para outro domínio (alvo) assim ocorre desde as definições mais
tradicionais da metáfora como simples figura de linguagem até as abordagens mais
contemporâneas no nível da cognição, como veremos mais adiante neste trabalho. Esse
elemento é também de crucial importância para lidar com a teoria dos Espaços Mentais e
da Mesclagem Conceitual, razão pela qual ele será retomado inúmeras vezes ao longo desta
tese.
1.3.7 Modelo cognitivo
O modelo cognitivo é um complexo capaz de estruturar espaços mentais
(que serão bastante detalhados posteriormente), construído a partir de conceitos do nível
básico e do nível de esquema-imagem, sendo que estes esquemas imagéticos é que
oferecem elementos a serem utilizados nesses modelos.
Lakoff (1987, p. 284) apresenta importantes características do que ele chama
de Modelo Cognitivo Idealizado (doravante MCI). Para o autor, cada MCI é uma estrutura
simbólica complexa, podendo apresentar uma estrutura em bloco (quando o significado do
todo existe em função do significado das partes que o compõem) ou uma estrutura
gestáltica (quando o significado do todo não decorre do significado de cada uma das
partes). Lakoff (ibid., p. 284) apresenta cinco tipos básicos de MCI, de acordo com sua
estrutura básica: i) de esquema-imagem, ii) proposicional, iii) metafórico, iv) metonímico e
v) simbólico.
Ademais, os MCIs são especialmente úteis para se proceder à caracterização
de construções gramaticais; dada a natureza de uma estrutura sintática, podemos
representar as construções gramaticais em termos de modelos cognitivos. As expressões
linguísticas ou são associadas diretamente a um MCI ou contêm elementos de um MCI.
1.3.8 Relevância
A noção de relevância, nos estudos linguístico-cognitivos e no modelo da
gramática baseada no uso, é fundamental no estabelecimento das estruturas sintáticas de
uma língua, conforme atestam Croft e Cruse (2003), além de outros estudiosos da área.
45
Fatores diretamente ligados à estruturação sintática, como a ordenação das palavras, a
inserção de itens lexicais, o posicionamento de termos dentro das sentenças etc., são casos
decorrentes de forças semânticas que atuam sobre o nível morfossintático, nele se
manifestando. O que é relevante dentro de um dado contexto comunicativo imprime
marcas no nível da organização vocabular, sendo um fator de determinação deste nível.
A teoria da relevância é explorada no âmbito de diferentes áreas de estudos
da linguagem, a exemplo das pesquisas realizadas dentro da perspectiva funcional da
sentença, que tem em Ilari (1992), por exemplo, um detalhamento nítido dentro da
chamada articulação tema-rema – de como os fatores de estruturação sintática mencionados
acima manifestam importantes informações no nível semântico-pragmático. Na abordagem
da LCog, interessa mostrar que fenômenos da linguagem tais como a clivagem ou
segmentação, apassivação, focalização, topicalização e outros acontecem com um certo
grau de previsibilidade dentro do sistema obedecendo, primeiro, à força ilocucional que
envolve os enunciados. A preponderância do ilocutório sobre o nível de estruturação
morfossintática pode ser percebida nas possibilidades de utilização de um mesmo modelo
estrutural (por exemplo, de sentenças declarativas) para atender a diferentes finalidades
comunicativas, como fazer uma pergunta, realizar um pedido, emitir um comando etc. Para
a gramática cognitiva, esse fenômeno equivale à afirmação da preponderância do polo
semântico sobre o polo fonológico.
1.3.9 Elementos de perspectiva
Em LCog, são muito importantes os elementos relacionados ao processo de
perspectivação, ou seja, a maneira como os objetos são focalizados. Muitos desses
elementos apresentam fundamento em estudos relacionados à plasticidade dos objetos, com
predomínio do aspecto visual, mas com grandes aplicações também em eventos
linguísticos. Vejamos uma breve descrição acerca deles:
1.3.9.1 Figura / Fundo (Figure / Ground)
Figura e fundo são elementos que compõem uma importante dicotomia nos
estudos cognitivos, aplicável tanto a questões relativas à plasticidade de objetos quanto a
aspectos de linguagem. Uma cena pode ser focalizada de várias maneiras; dependendo do
46
modo como se a focalização, impõe-se um certo alinhamento em que uma região de
tamanho indeterminado se torna mais proeminente (foreground), em oposição à região
normalmente mais distante do observador ou na qual ele não fixa sua atenção
(background). Em relação a um mesmo objeto, foreground e background podem alternar-
se, dependendo da focalização realizada pelo observador.
Um elemento (figura) pode ter diferentes interpretações dependendo do que
se toma propriamente como sendo o fundo relativo ao mesmo. Na ilustração abaixo, por
exemplo, de Escher, podemos visualizar anjos claros como figuras num fundo escuro ou
demônios escuros como figuras num fundo claro:
Figura 4 – Simetria nº 45, ilustração do artista holandês M. C. Escher (1898-1972)
Na linguagem verbal, a alternância entre figura e fundo enseja a utilização
de construções gramaticais próprias, bem como o emprego de palavras e construções
específicas para tal. Uma mesma cena, por exemplo, pode ser descrita por um locutor de
diferentes formas: “uma xícara sobre um pires” e “um pires debaixo da xícara” variam
em função da escolha que se faz entre o que vem a ser figura e o que vem a ser fundo: no
primeiro caso, “xícara” é a figura evidenciada em relação ao fundo “pires”; no segundo
caso, “pires” está em evidência, e a “xícara” compõe o fundo.
47
1.3.9.2 Perfil / Base (Profile / Base)
De acordo com Langacker (1987, p. 183), perfil é o designatum de uma
predicação, enquanto a base é o escopo desta. A dicotomia perfil-base está relacionada com
a proeminência de um elemento na predicação, a seleção de uma subestrutura específica
para designação desse elemento.
Langacker utiliza como um dos exemplos para explicação sobre essa
dicotomia retomado e desenvolvido por Croft e Cruse (2003) a noção geométrica de
“raio”. O raio é um segmento de reta, mas não é qualquer segmento de reta; ele é definido
em relação ao círculo, ou seja, podemos compreender o conceito de raio através do
conhecimento prévio do conceito “círculo”. O círculo é, portanto, a base sobre a qual se
firma o conceito do perfil raio. “A base é aquele conhecimento ou estrutura conceitual que
é pressuposta pelo conceito perfilado”
16
.
1.3.9.3 Trajetor / Marco (Trajector / Landmark)
Segundo Langacker (1987, p. 231), a dicotomia trajetor-marco é “um caso
especial de alinhamento de figura e fundo”
17
. É uma noção fundamental para descrever
predicados relacionais uma vez que o trajetor funciona como figura nesse tipo de
construção – e subjaz à clássica distinção entre sujeito e objeto.
Em relação a construções linguísticas do tipo “A é igual a B” ou “A se
parece com B”, não se pode dizer que se trata de afirmações simétricas, sinônimas de “B é
igual a A” ou “B se parece com A”. No caso das primeiras, o elemento B funciona como
um ponto de referência sobre o qual é realizada a avaliação ou julgamento do elemento A.
Em outras palavras, o elemento A funciona como figura a ser construída em função das
características oferecidas pelo elemento de fundo – A é o trajetor e B é o marco.
A percepção de figura e fundo, sendo uma característica intrínseca da
cognição humana, manifesta-se na linguagem verbal através de várias construções. Sendo
um caso especial desse tipo de percepção, a dicotomia trajetor-marco está ligada a vários
outros fenômenos da linguagem, como a topicalização e a estruturação interna dos
16
No original: “The base is that knowledge or conceptual structure that is presupposed by the profiled
concept.” (CROFT; CRUSE, 2003, cap. 2, p. 7)
17
No original: “a special case of figure/ground alignment”.
48
predicados. Ao evidenciar um elemento de um enunciado na função de tópico, está-se
trazendo o mesmo para a função de trajetor. E ao selecionar-se um agente para um verbo de
movimento, por exemplo, para ocupar a função de sujeito de uma sentença, está-se
selecionando um trajetor que combine com as informações oferecidas pelo marco, contidas
no verbo em questão.
1.3.9.4 Ponto-de-Vista (Viewpoint)
Especialmente nas experiências sensoriais relacionadas com a visão, o
ponto-de-vista apresenta correlação direta com o grau de proximidade e saliência que um
observador possui em relação a um objeto. Os participantes de uma cena podem assumir
diferentes posições em relação a um objeto, ou um mesmo participante pode assumir tais
diferentes posições, o que confere um grau de complexidade e variação muito amplo ao
modo como um mesmo objeto pode ser focalizado.
A noção de ponto-de-vista abarca duas outras, que são importantes
habilidades cognitivas humanas: o ponto-de-vantagem (vantage point) e a orientação
(LANGACKER, 1987, p. 123). O primeiro diz respeito à posição a partir da qual um
objeto é observado, e a segunda é o alinhamento traçado entre o observador e o objeto em
relação ao eixo do campo visual. De um mesmo ponto-de-vantagem, por exemplo, um
observador pode mudar a orientação a partir do momento em que deixa de focalizar
sentado um objeto e passa a focalizá-lo de pé.
1.3.9.5 Dêixis
A dêixis é um fenômeno da linguagem amplamente estudado a partir dos
seus aspectos ligados à estruturação de textos, como importante elemento integrante dos
níveis de coesão e coerência textuais. É também um fenômeno largamente descrito no
âmbito da teoria gerativista, especialmente em relação ao processo de retomada de
elementos na passagem da estrutura profunda para a estrutura superficial das línguas
naturais, correlacionado com o estudo sobre a anáfora.
No âmbito da LCog, a dêixis é um elemento que integra os recursos de
ajuste focal. Langacker (1987, p. 126) diz que uma expressão dêitica é “definida como
aquela que inclui alguma referência a um elemento de fundo dentro do seu escopo de
49
predicação”
18
. Na categoria dos dêiticos, incluem-se alguns elementos primários, como
pronomes pessoais e advérbios, que fazem referência a elementos de fundo de um discurso
(exemplos: eu, você, aqui, aí, agora, hoje, amanhã), e algumas construções mais
complexas, como as que encerram certos pronomes e artigos exemplos: i) este lápis
quebrado, ii) uma montanha alta em decorrência da definitude e proximidade do falante
(exemplo i) e pela indefinição predicada pelo artigo (exemplo ii).
1.3.9.6 Subjetividade / Objetividade
Toda expressão linguística cria ou evoca uma conceitualização sobre objetos
ou eventos por meio das imagens construídas. Nesse processo, o falante (e, em outra
instância, também o ouvinte) vê-se obrigado a operar escolhas, no intuito de transmitir os
conceitos desejados.
Um observador (self) é o elemento detentor da máxima carga de
subjetividade. Em contato com um objeto, estabelece com ele uma relação de construção
da cena, a qual, em decorrência das escolhas operadas pelo observador, vai apresentar um
grau de menor subjetividade que o encerrado pelo observador e de menor objetividade que
o encerrado pelo objeto. A conceitualização decorrente desse processo, com uma escala de
variação muito grande, apresenta, portanto, uma escolha que se situa entre o grau máximo
de subjetividade (self) e o grau máximo de objetividade (objeto).
1.4 Considerações finais
Os aspectos aqui apresentados, no conjunto, conferem uma visão sobre o
arcabouço teórico de um programa de pesquisa que podemos chamar de LCog. A
preocupação central desse campo vem a ser, obviamente, o processamento cognitivo da
linguagem humana. Obviamente isso implica uma série de interseções com outras
disciplinas afins, que a linguagem é tratada como um componente mental interligado
com as demais habilidades cognitivas humanas, além de carregar uma grande gama de
traços de origem sócio-cultural.
18
No original: “defined as one that includes some reference to a ground element within its scope of
predication”.
50
Como uma área de estudos específica, a LCog é bastante nova, tendo-se
firmado principalmente a partir da revolução psicológica no início do século XX que deu
origem à Gestalt e com os questionamentos e postulados da Gramática Cognitiva na década
de 1980, destacando também a preocupação com os aspectos mentais relacionados à
linguagem empreendida pelos gerativistas no início da segunda metade do século XX.
Enfim, a LCog é uma área ainda em gestação – não obstante muitos resultados profícuos já
tenham saído dos seus estudos –, principalmente se comparada a outras áreas mais
solidificadas em função de séculos de existência.
É sob a égide do pensamento da LCog que se desenvolve o presente
trabalho. Após a visão geral apresentada neste capítulo, vamos nos adentrar em teorias que
serão fundamentais para a continuidade da nossa pesquisa. O capítulo que se vai iniciar
agora é uma espécie de refinamento do primeiro; entre os elementos e fenômenos
apresentados anteriormente, vamos nos centrar em alguns que terão maior aplicabilidade ao
presente estudo, mais especificamente relacionados a um tipo específico de domínio
cognitivo, cuja definição geral foi apresentada em seção anterior bem en passant. A noção
de “domínio” será estendida com um rico aporte teórico oferecido pelas pesquisas de
Fauconnier e Turner, reforçando a proposta de empreender nossa pesquisa no polo das
representações mentais, conforme também se mencionou mais acima.
51
CAPÍTULO 2
A TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS E DA MESCLAGEM
CONCEITUAL
2.1 Apresentação
Em LCog, mais especificamente no campo da Semântica Cognitiva, vigora
uma teoria de fundamental importância para o estudo do sentido e para a compreensão do
processamento da linguagem. Trata-se de um aparato teórico profundamente esclarecedor
acerca de como o sentido de palavras e expressões é processado na mente humana: a teoria
dos Espaços Mentais (doravante EM), postulada por Gilles Fauconnier, publicada
primeiramente em versão francesa de 1984
19
e amplamente difundida na obra de 1994,
Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language.
De uma forma bastante ampla, podemos caracterizar os EM como domínios
cognitivos de natureza semântico-pragmática que se configuram no processamento
discursivo. Eles explicam o processamento do sentido para além da linguagem verbal,
numa articulação tal que envolve conhecimentos prévios, informações contextuais e outras
habilidades cognitivas humanas.
Um discurso qualquer pode ser descrito através de um conjunto de EM que
vão sendo ativados à medida que o falante utiliza elementos de diferentes domínios
cognitivos, numa complexa rede de inter-relações entre esses domínios. Um arranjo
especial entre esses EM também foi modelado por Gilles Fauconnier em parceria com
Mark Turner, dando início a uma série de estudos dentro de outra importante teoria
19
Espaces mentaux: aspects de la construction du sens dans les langues naturelles, publicada em Paris.
52
semântico-cognitiva, a teoria da Mesclagem Conceitual (doravante MC), publicada pela
primeira vez em abril de 1994
20
na forma de relatório técnico e depois desenvolvida através
de várias obras desses autores e outros, muitas das quais serão discutidas aqui.
Os ganhos proporcionados pelo modelo da MC se devem ao fato de que se
trata de um arranjo muito dinâmico. Basicamente, qualquer espaço mental pode servir
como espaço de entrada (input), com informações que serão mapeadas com as de outro
espaço mental, resultando no espaço da mescla, como veremos detalhadamente a seguir.
Nessa configuração, vislumbra-se uma série de aspectos importantes para a compreensão
do fenômeno da linguagem, como:
i) a projeção de elementos para o espaço da mescla é seletiva; nem todas as informações
constantes nos espaços de entrada aparecem na mescla;
ii) as mesclas são motivadas pelos espaços de entrada, mas não são previsíveis a partir
destes, o que confere um grau de dinamicidade muito grande à categoria do sentido;
iii) existem sentidos emergentes, que surgem no processo da mesclagem, sem que tenham
uma origem pré-estabelecida.
No conjunto, essas características e as demais que serão apresentadas são
essenciais ao tratamento do nosso objeto de pesquisa, a metáfora. Esse recurso de
linguagem encontra nos EM e na MC um excelente apoio para a descrição do seu
mecanismo.
2.2 A Teoria dos Espaços Mentais
Vejamos, a seguir, o que define a teoria dos EM desde que foi postulada no
último quartel do século XX até os estudos mais modernos, que enriqueceram bastante a
teoria inicial, chegando até a mudá-la em alguns aspectos.
2.2.1 Aspectos básicos da teoria
Fauconnier (1994) caracteriza os EM como domínios cognitivos que são
ativados por certas expressões linguísticas e por alguns mecanismos de reconhecimento de
elementos em diferentes campos (psicológico, cultural, histórico, ficcional etc.). A
20
Conceptual projection and middle spaces, pela Universidade da Califórnia, San Diego.
53
dinâmica que envolve os EM se resume no seguinte: a referência a um determinado
elemento “a” situa-o num domínio cognitivo específico, chamado domínio-fonte. Através
de um conector, que pode ser uma expressão linguística ou um outro mecanismo construtor
de espaço, as características desse elemento “a são projetadas para um elemento “b”
pertencente a outro domínio cognitivo, chamado domínio-alvo. Esquematicamente, temos
o seguinte:
Conector
Domínio-fonte Domínio-alvo
Figura 5 – Esquema de projeção de elementos entre espaços mentais diferentes
O modelo acima é o princípio de uma complexa rede de relações entre
domínios cognitivos que se processa na linguagem. Durante uma prática comunicativa
qualquer, ativamos vários EM e inter-relacionamos elementos de vários desses espaços,
estabelecendo uma rede de projeções tal que a linguagem se configura como um intrincado
emaranhado de elementos, domínios e projeções. Esse modelo nos permite entender que a
linguagem humana é um jogo de projeções por excelência. Fazemos analogias o tempo
todo, sendo tais o fundamento do nosso raciocínio em várias situações, desde a
comunicação corriqueira mais elementar até as construções consideradas mais complexas.
Vejamos uma aplicação desse modelo de Fauconnier à sequência linguística
que destacamos no pequeno texto abaixo:
(1)
Dois carregadores estão conversando e um diz: “Se eu fosse Presidente da República, eu
acordava pelo meio-dia, depois ia almoçar lá pelas três, quatro horas. então é que eu ia fazer
o primeiro carreto.”
21
21
Transcrito de prova de Língua Portuguesa de Vestibular da Unicamp – SP. Grifo nosso.
. a
b .
54
Nesse caso, o domínio-fonte engloba as informações referentes ao mundo
do carregador (pobreza, necessidade de trabalhar, dificuldades de sobrevivência etc.),
enquanto o domínio-alvo abarca os dados relativos à vida do Presidente da República
(marcada pelo poder, regalias etc.). Para a compreensão do sentido do trecho, as
informações do domínio do carregador são transpostas para o domínio do Presidente da
República, e funciona como conector, nesse caso, a expressão introdutora da
contrafactualidade, “se eu fosse”. Nesse processo, toda a noção relativa aos
comportamentos e estilo de vida do carregador é compreendida no âmbito de outro
domínio, o do Presidente da República. Esquematicamente:
Conector – Se eu fosse
Domínio-fonte Domínio-alvo
Carregador Presidente da República
Figura 6 – Esquema de projeção de informações entre domínios diferentes
Esse modelo descritivo de Fauconnier é capaz de explicar como funciona a
mente humana diante de situações em que operamos vários tipos de analogias, mas ele não
é suficiente para explicar a seletividade que envolve o processo, ou seja, a imagem de um
carregador que possui certas regalias de um Presidente da República, ou a imagem de um
Presidente da República que precisa fazer carreto. Isso vai concretizar-se mais tarde com a
teoria da MC, como veremos adiante. De toda forma, a teoria dos EM veio esclarecer como
somos capazes de lidar com elementos de diferentes espaços, projetando informações de
um domínio para outro.
Esse modelo de projeção de informações de um domínio-fonte para um
domínio-alvo atende a um princípio mais geral, o Princípio de Identificação, também
Pobreza,
Necessidade de
trabalhar,
Dificuldades
Poder,
Regalias
55
chamado por Fauconnier (1997, p. 41) de Princípio de Acesso, segundo o qual se afirma o
seguinte:
Se dois objetos a e b se ligam por uma função pragmática F (b = F(a)), então uma
descrição de a (d
a
) pode ser usada para identificar sua contraparte b.
Por “função pragmática” entende-se o estabelecimento de “ligações entre
objetos de natureza diferente por razões psicológicas, culturais ou localizadamente
pragmáticas”
22
, noção bem desenvolvida por Nunberg (1978). Em outras palavras, existem
razões de natureza extralinguística que justificam o fenômeno da projeção, e esse é um
ponto crucial para o nosso estudo sobre metáforas, como veremos à frente. No caso acima,
não é por acaso que o carregador estabelece a analogia com o Presidente da República;
existe uma série de características sobre esta entidade que motivam o processo de analogia.
Um aspecto da dinâmica de projeção de elementos entre domínios que
algumas vezes pode trazer dificuldades de compreensão de detalhes da teoria dos EM é a
identificação de qual espaço se caracteriza como fonte e qual se caracteriza como alvo.
Posteriormente essa noção vai desembocar na ideia de mapeamentos, como veremos
depois, mas por ora é interessante definirmos melhor essa questão da direcionalidade da
projeção.
No caso da contrafactualidade (“se p, então q”), afirma Fauconnier (1994, p.
31) que um novo espaço H (hipotético) se instaura, sustentado pelas afirmações p e q. O
domínio-fonte é o espaço da realidade do falante, donde são projetadas as afirmações para
o domínio-alvo H. Voltando ao caso do carregador acima, o espaço que serve de base para
a construção hipotética é aquele que engloba as informações da realidade do mundo do
carregador, a partir do qual se constrói a hipotética imagem de alguém investido do cargo
de Presidente da República fazendo carreto.
Mas, mesmo na situação de contrafactualidade e em outras em que
normalmente acontece a projeção conceitual (construção de metonímias, utilização de
imagens, crenças, recorrências de tempo e espaço, emprego de certos tempos e modos
verbais etc.), o modelo pode mostrar-se mais complexo. A expressão “A garota de olhos
azuis tem olhos verdes”, um exemplo recorrente na bibliografia de Semântica Cognitiva,
22
No original: “links between objects of a different nature for psychological, cultural, or locally pragmatic
reasons” (FAUCONNIER, 1994, p. 3).
56
pode apresentar diferentes projeções conceituais dependendo do contexto maior em que se
encontra. No caso abaixo, descrito por Fauconnier (1994, p. 12-13):
(2) Na pintura de Len, a garota de olhos azuis tem olhos verdes.
a expressão adverbial “na pintura de Len” instaura um espaço imagético, no qual se insere
a garota de olhos verdes (domínio-alvo). O domínio-fonte para essa construção de imagem
é o domínio da realidade, que serve de modelo para a construção da imagem de Len, em
que existe uma garota de olhos azuis. Ou seja: nesse caso, parte-se de um objeto da
realidade do falante para a construção de uma imagem no domínio da realidade da pintura
de Len. Já nesta outra situação:
(3) Na realidade, a garota de olhos azuis tem olhos verdes.
em que o conector é a expressão “na realidade”, parte-se de uma imagem (“a garota de
olhos azuis”), que pode estar presente, por exemplo, numa pintura, para atingir o domínio-
alvo da realidade do falante, em que existe uma garota de olhos verdes. A garota de olhos
azuis serve como um “gatilho” utilizando aqui um termo comum na bibliografia sobre o
assunto, trigger para atingir o domínio da realidade, contrariamente ao que ocorre no
exemplo (2) acima.
Como dissemos anteriormente, a linguagem, na prática, é um complexo
jogo de ativação de EM e de projeção de elementos entre diferentes domínios conceituais.
Um bom exemplo desse jogo é também apresentado por Fauconnier (1997, p. 44-48) ao
analisar a fábula “Aquiles e a tartaruga”, do filósofo pré-socrático Zenão de Eleia. O trecho
analisado é o seguinte:
(4)
Aquiles vê uma tartaruga. Ele a persegue. Ele pensa que a tartaruga é lenta e que ele a
apanhará. Mas ela é rápida. Se a tartaruga fosse lenta, Aquiles a teria apanhado. Talvez a tartaruga
seja realmente uma lebre.
23
23
No original: “Achilles sees a tortoise. He chases it. He thinks that the tortoise is slow and that he will catch
it. But it is fast. If the tortoise had been slow, Achilles would have caught it. Maybe the tortoise is really a
hare.” (FAUCONNIER, 1997, p. 44)
57
Fauconnier apresenta, passo a passo, o esquema de ativação de EM à
medida que transcorre a narrativa acima, culminando numa rede de domínios cognitivos
representada na figura abaixo:
B
M
W
Espaço H
Figura 7 – Representação dos espaços mentais baseada no conto “Aquiles e a Tartaruga”, cf. Fauconnier
(1997, p. 48)
No esquema acima, B é o espaço-base, em que são apresentados os
elementos a (Aquiles) e b (tartaruga). Esse espaço encerra também as informações a b e
a persegue b. O verbo “pensar” instaura o espaço da crença M, em que o elemento b é
a
b
a’
b’
a’’
b’’
a nome Aquiles
b tartaruga
VER a b
PERSEGUIR
a b
RÁPIDO b
LENTO b’
APANHAR a’’ b’’
b
1
a
1
LENTO b
1
APANHAR a
1
b
1
b
2
Espaço da Possibilidade P
58
projetado revestido da característica “lento”. Com base nas informações desse domínio, é
criado o espaço do futuro W, em que a’’ apanha b’’. No entanto, surge o elemento “mas”
no texto responsável pela suplantação de todo o padrão estabelecido até então, retornando a
leitura ao espaço-base B, acrescentando a informação de que b é rápido. A partir
novamente desse espaço, é instaurado o espaço hipotético H, através do construtor
contrafactual, no qual a
1
apanha b
1
, na hipótese de b
1
ser lento. Finalmente, de volta para o
espaço-base, o elemento b serve de gatilho para a projeção de b
2
como sendo uma lebre no
espaço da possibilidade P, ativado pelo construtor “talvez”.
Esse esquema apresentado na Figura 7 é importante para mostrar que a
teoria dos EM é bastante dinâmica, em termos de articulação entre os domínios
instaurados. Não se trata de uma representação fixa e única, como a que se encontra nas
Figuras 5 e 6; ela vai sendo enriquecida à medida que transcorre o discurso representado
dentro desse modelo.
2.2.2 Os EM no nível da significação implícita
Pelos esquemas de análise apresentados anteriormente, percebem-se
nitidamente duas importantes características relacionadas à teoria dos EM: i) trata-se de um
modelo que lida com objetos e informações nem sempre presentes na realidade concreta
dos falantes; ii) os usuários da língua apresentam a capacidade de lidar com objetos e
informações no nível do imaginário da mesma maneira como lidariam com os mesmos no
domínio da realidade dos falantes.
Esse comportamento relacionado aos EM, de certa forma, tem correlação
com uma outra propriedade básica dessa teoria: elementos e informações existentes no
nível da significação implícita da linguagem na forma de pressuposições também são
passíveis de projeções dentro da rede conceitual. Entendemos que a correlação com as
características apresentadas acima se pelo fato de que informações implícitas não estão
presentes no domínio da realidade visível (explícita) da sentença
24
. Daí, podemos
reescrever as características acima da seguinte maneira, com o mesmo grau de validade
dentro da teoria dos EM: i) trata-se de um modelo que lida com objetos e informações nem
24
É importante lembrar, nesse ponto, que os pressupostos são informações presentes no nível implícito da
linguagem, porém sempre introduzidos por algum marcador linguístico explícito no nível do léxico ou da
sintaxe, conforme já descrevemos minuciosamente as características e propriedades desses elementos em
Souza (2000).
59
sempre presentes no vel explícito da linguagem; ii) os usuários da língua apresentam a
capacidade de lidar com objetos e informações no nível implícito da mesma maneira como
lidariam com os mesmos no domínio do sentido explícito.
A pressuposição é um fenômeno da linguagem amplamente estudado no
campo da Lógica e da Linguística. Aos estudos lógicos cabe principalmente o tratamento
dos chamados pressupostos existenciais, cujos exemplos apresentamos a seguir:
(5) O Rei da França é sábio.
pp.
25
– Existe um Rei da França, ou
Existe X tal que X é o Rei da França
(6) Quem descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas morreu na miséria.
26
pp. – Existe alguém que descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas, ou
Existe X tal que X descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas
a Semântica Linguística, que tem em Oswald Ducrot um dos maiores
expoentes no estudo da pressuposição, demonstra especial interesse nessa categoria do
sentido implícito introduzida por marcadores lexicais (exemplo: “além de” em (7)) e
marcadores sintáticos (exemplo: auxiliar de aspecto verbal “parar de” em (8)):
(7) Além de ser bonita, Maria é inteligente.
pp. – Maria é bonita
(8) João parou de fumar.
pp. – João fumava antes
27
Fauconnier (1994, p. 82-108), em capítulo dedicado ao estudo dos EM em
conteúdos pressuposicionais, apresenta dois tipos de fenômeno: a flutuação de
pressuposições (presuppositions floating) e a transferência de pressuposições
(presuppositions transfer). A maior parte desse estudo incide sobre o chamado “problema
25
Abreviatura utilizada tanto para “pressuposição” (para se dizer do fenômeno) quanto para “pressuposto”
(referindo-se à informação pressuposta, como nesse caso).
26
Exemplo transcrito de Frege (1892, p. 75-76).
27
O recurso mais eficiente para detecção de informações pressupostas é a negação; o pressuposto continua
inalterado mesmo nas formas negativas das sentenças em que se encontra, sendo somente a informação
explícita atingida pela negativa, como nos exemplos apresentados: (5a) O Rei da França não é sábio – pp.
Existe um Rei da França; (6a) É falso que quem descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas morreu na
miséria. – pp. Existe alguém que descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas; (7a) É falso que, além de
ser bonita, Maria é inteligente. – pp. Maria é bonita; (8a) João não parou de fumar. – pp. João fumava antes.
60
Espaço P
da projeção”, que consiste em analisar as condições de cancelamento e manutenção de um
conteúdo pressuposto de uma sentença simples como um pressuposto da sentença
complexa que a encerra. O pioneiro nesse assunto é Karttunen (1973), que estabelece três
tipos de predicado: “tampas” (plugs), “furos” (holes) e “filtros” (filters), conforme eles,
respectivamente, bloqueiem os pressupostos da sentença-complemento, mantenham os
pressupostos da oração encaixada como pressupostos da sentença inteira ou dependendo
das circunstâncias em que são empregados cancelem ou mantenham os pressupostos das
sentenças encaixadas.
Fauconnier discorre a respeito da flutuação e da transferência de
pressupostos através de vários exemplos, nos quais utiliza os construtores de espaço.
Tomemos um exemplo do próprio Fauconnier para descrever esse processo:
(9) Talvez Max tenha parado de fumar.
28
“Talvez” é um construtor de espaço que instaura o domínio da possibilidade
P dentro do espaço da realidade R. O enunciado “Max parou de fumar” pressupõe a
informação p “Max fumava antes”. No caso de (9) ser proferido por um falante que
detenha a informação pressuposta, esta flutua do espaço R para o espaço P, conforme
representado na figura abaixo:
p..........p
Espaço R
Figura 8 – Representação da flutuação de informação pressuposta do espaço da realidade para o espaço da
possibilidade
28
No original: “Maybe Max just stopped smoking.” (FAUCONNIER, 1994, p. 88).
61
No caso de ser negada a sentença, como em qualquer um dos exemplos
abaixo:
(9a) Talvez Max não tenha parado de fumar.
(9b) É falso que talvez Max tenha parado de fumar.
continua vigorando a informação pressuposta “Max fumava antes” tanto no espaço R da
realidade do falante quanto no espaço P da possibilidade, uma vez que o predicado da
sentença (9) é um predicado do tipo “furo”, na nomenclatura de Karttunen (1973).
Fauconnier (1994, p. 105-108) explica-nos também o procedimento da
transferência de pressuposição, paralelamente ao caso descrito acima. Tomemos o exemplo
abaixo, utilizando as informações da sentença (9) num novo contexto:
(10) Naquela foto, Max parou de fumar.
Expressões adverbiais como “naquela foto” são típicos construtores de EM,
pois instauram um domínio da possibilidade P dentro do domínio R da realidade do falante
(da mesma forma que na Figura 8). Mas, nesse caso, o pressuposto “Max fumava antes”
não flutua de R para P, pelo seguinte: entendamos que, na realidade, Max seja um fumante
inveterado, tanto que sua aparência comprova esse vício (coloração dos dentes, respiração
sôfrega, mau hálito etc.). Vigora, portanto, no espaço R, o pressuposto “Max fumava”. Na
foto, entendamos que Max apareça com as feições e o aspecto extremamente saudáveis:
bochechas coradas, dentes limpos etc., não vigorando, portanto, o pressuposto “Max
fumava”. Ao enunciar (10), o falante apresenta o Max saudável da foto atribuindo-lhe uma
característica do Max da realidade, sendo os dois bem diferentes. Ou seja, o falante
transfere o pressuposto “Max fumava antes” do espaço R para o espaço P, através de um
processo que Fauconnier (1994, p. 107) chama de “otimização” de informações entre
diferentes espaços.
2.2.3 Algumas considerações sobre a teoria dos EM
Desde que a teoria dos EM foi postulada, ela vem sendo aplicada na
descrição de vários fenômenos da linguagem. Através do arranjo proporcionado pela teoria,
62
somos capazes de entender melhor o mecanismo de processamento do sentido presente em
construções linguísticas que, até então, não eram vislumbradas mesmo sob o prisma de
uma abordagem cognitiva. É possível, inclusive, lançar mão dessa teoria para obter
avanços também em áreas que não especificamente a linguística, pois trata-se de um
modelo que explica o funcionamento da mente humana e nesse contexto a linguagem
verbal é vista como um componente da cognição humana atrelado a outras habilidades
cognitivas.
Além de se aplicar muito bem à descrição de elementos tratados por
outras teorias, oferecendo uma abordagem diferenciada sobre eles, os EM são capazes de
explicar uma série de outros fenômenos somente descritíveis a partir dessa teoria. Incluem-
se procedimentos que vão além do nível linguístico, como os mapeamentos analógicos
considerados como procedimentos de raciocínio de alto nível e o processo de referenciação
relacionado a figuras e representações que era relegado à Pragmática. Nesse contexto,
podemos tomar como exemplo a descrição do funcionamento das linguagens de sinais, em
que os usuários realizam, através da modalidade gestual, procedimentos bastante
complexos de referenciação discursiva tomando como base o espaço físico de que
dispõem.
Essa abordagem se difere radicalmente do postulado pela teoria gerativista
de Chomsky (1957, 1965 e outros) e seus seguidores, segundo a qual a língua é um
componente inato do ser humano, cujo funcionamento de ordem semântica advém de uma
rígida estrutura de regras de organização sintática. Também se difere bastante da teoria
modular da linguagem, que tem em Jerry Fodor seu expoente máximo. Segundo Fodor
(1983), a mente humana é formada por várias estruturas, de acordo com as faculdades nelas
distribuídas, e a língua estaria alocada numa dessas estruturas. Embora o autor avente a
existência de uma interação entre tais faculdades, o modelo fodoriano, assim como o
chomskyano, descarta importantes considerações relativas aos aspectos sociais, culturais e
pragmáticos no processamento do sentido na linguagem.
A esse respeito, o próprio Fauconnier defende que
A língua, da maneira como a utilizamos, é apenas a ponta do iceberg da
construção cognitiva. À medida que o discurso transcorre, muita coisa
acontece atrás da cena: novos domínios aparecem, ligações são
estabelecidas, mapeamentos abstratos são operados, a estrutura interna
emerge e se multiplica, o ponto-de-vista e o foco vão mudando. A fala do
dia-a-dia e o raciocínio do senso comum têm como suporte criações
63
mentais invisíveis e altamente abstratas, que a gramática ajuda a guiar, mas
que ela não define por si própria.
29
(FAUCONNIER, 1994, p. xxii-xxiii)
É sob a égide desse pensamento que se criou o modelo dos EM. A grande
vantagem de se adotar essa teoria reside principalmente no fato de que ela engloba tanto
elementos e recursos gramaticais quanto os não gramaticais. Entre os gramaticais
normalmente abarcados pela teoria, temos os seguintes: os elementos chamados de
“construtores de espaço” (space builders); tempos e modos verbais; descrições definidas;
nomes; anáforas; construções sintáticas; informações lexicais; marcadores
pressuposicionais e informações pragmáticas e retóricas introduzidas por elementos como
“até”, “ainda”, “mesmo”, que normalmente aparecem em escalas argumentativas. Entre os
recursos de natureza não gramatical normalmente abarcados pela teoria, citamos como
exemplos: funções pragmáticas; atitudes proposicionais; hipóteses; condições de verdade;
representações pictóricas; formação de metáforas, metonímias e sinédoques, que, conforme
a abordagem realizada em muitas teorias clássicas sobre o assunto, eram vistas como
elementos de adorno e retórica; e analogias que envolvem procedimentos de raciocínio que
ultrapassam o nível da interpretação linguística elementar. Fauconnier (1994, p. xxxiv)
destaca que os “espaços mentais são instaurados não apenas por construtores de espaço
explícitos, mas também por outros recursos gramaticais indiretos e também por fatores
pragmáticos, culturais e contextuais não linguísticos.”
30
Sweetser e Fauconnier (1996, p. 8) destacam a mudança que aconteceu nos
estudos da linguagem, de uma abordagem essencialmente lógica para um paradigma que
leva em conta os aspectos de construção cognitiva que permeiam as sentenças, tais como os
fenômenos de projeção metafórica, organização de molduras, papéis, configurações de
figura e fundo, funções pragmáticas metonímicas, ligações entre EM, esquemas cognitivos
e modelos culturais. Afirmam os autores que a teoria dos EM “ofereceu um modelo geral
de estudo sobre os pontos de contato entre conexões cognitivas e linguagem natural, além
29
No original: “Language, as we use it, is but the tip of the iceberg of cognitive construction. As discourse
unfolds, much is going on behind the scenes: new domains appear, links are forged, abstract mappings
operate, internal structure emerges and spreads, viewpoint and focus keep shifting. Everyday talk and
commonsense reasoning are supported by invisible, highly abstract, mental creations, which grammar helps to
guide, but does not by itself define.”. Nessa parte do prefácio, o autor nos apresenta a clássica metáfora do
iceberg, que é retomada em várias publicações posteriores nessa área.
30
No original: “mental spaces are set up not just by explicit space builders, but by other more indirect
grammatical means, and also by nonlinguistic pragmatic, cultural, and contextual factors.”
64
de propiciar também pesquisas numa multiplicidade de áreas em que esses pontos tenham
um papel principal.”
31
No decorrer dos estudos realizados por Fauconnier e outros, várias
passagens de narrativas tanto clássicas quanto mais populares foram descritas à luz da
teoria dos EM, o que demonstra a ampla aplicabilidade desse construto teórico, a exemplo
da análise da fábula “Aquiles e a tartaruga”, em seção anterior, e de várias outras análises
que se viabilizaram uma vez que esse modelo teórico foi acrescido com a teoria da MC,
que veremos adiante.
Chama-nos a atenção o fato de que, apesar de a maior parte da descrição dos
EM ser voltada para o estudo de sentenças isoladas, a teoria oferece a possibilidade de
aplicação em contextos mais amplos. No final da obra em que apresenta a teoria com
minúcias, o próprio idealizador afirma que
Atos de fala, referência discursiva, quantificação e genéricos são áreas
problemáticas tradicionais para as quais a perspectiva de espaço mental
sugere novas orientações de pesquisa. Pode-se investigar também o
discurso indireto, os múltiplos elementos de espaço subjacentes usados
para construir narrativas, o esquema [schemata] que estrutura espaços e
instaura certos conectores pragmáticos mais do que outros, ou os efeitos da
modalidade gestual, em vez da oral, na implementação dos fenômenos de
espaço.
32
(FAUCONNIER, 1994, p. 167)
Queremos destacar aqui a sugestão acima de Fauconnier quanto à
viabilidade de estudo dos “múltiplos elementos de espaço subjacentes usados para
construir narrativas”, que, como veremos, é a nossa proposta de contribuição através desta
tese.
De fato, muitas outras pesquisas têm sido levadas a cabo a partir das ideias
de Fauconnier. Em relação, por exemplo, à linguagem de sinais, Liddell (1995, 2003)
mostra como os usuários lidam com a construção de EM utilizando uma rica orientação
baseada no espaço (físico) de que dispõem no seu processo comunicativo. O autor toma
31
No original: “provided a general model for studying the rich interplay between cognitive connections and
natural language, and it prompted other research in a multitude of areas where this interplay has a major role.”
(SWEETSER; FAUCONNIER, 1996, p. 8)
32
No original: “Speech acts, discourse reference, quantification, and generics are traditional problem areas
for which the mental space perspective suggests fresh research orientations. One could also investigate
reported speech, the multiple spatial layers used to construct narratives, the social schemata that structure
spaces and set up certain pragmatic connectors rather than others, or the effects of a gestural modality, instead
of an oral one, on the implementation of space phenomena.”
65
por base a LAS (Linguagem Americana de Sinais)
33
, mostrando que a manipulação de
espaços é incorporada à gramática da língua, revelando mecanismos de referência textual
bastante complexos. Esse pesquisador, que desde a década de 1970 vem publicando
trabalhos sobre a gramática da linguagem de sinais, identifica diferentes tipos de espaço,
classificando-os em: espaço token, espaço surrogate e espaço real
34
. Por espaço token,
Liddell (2003, p. 367) entende como sendo um espaço real não topográfico separado do
usuário; o espaço surrogate é o espaço real no qual o indivíduo se confunde pelo menos
parcialmente com alguma outra entidade ou personagem; e o espaço real é a
conceitualização do ambiente imediato baseado nos inputs sensoriais do “aqui e agora” do
indivíduo. A respeito do progresso obtido no estudo da linguagem de sinais proporcionado
pela teoria de Fauconnier, além da própria gramática cognitiva, Liddell afirma que a teoria
dos EM se tem mostrado
essencial ao proporcionar progresso na compreensão de bases conceituais
dos dados espaciais da LAS. (...) Embora desenvolvidas para lidar com
fenômenos da linguagem verbal, a teoria do espaço mental e a gramática
cognitiva oferecem os elementos conceituais necessários para compreender
os signos direcionais em LAS. (...) Os dados da linguagem de sinais me
levaram a conceber a construção do significado como um processo
envolvendo mapeamentos de espaço mental do tipo proposto na teoria do
espaço mental elaborada ao redor de um núcleo central de significados
codificados gramaticalmente do tipo encontrado na gramática cognitiva.
35
(LIDDELL, 2003, p. xi)
Em relação às contribuições da teoria para o entendimento do processo de
construção narrativa, há que se destacar o trabalho de Azevedo (2006), resultado da tese de
doutorado apresentada pela autora. Nessa obra, é feito um estudo descritivo de narrativas
orais levando-se em conta os elementos de figura e fundo da Gestalt com foco nas
categorias de tempo, modo e aspecto verbais. Segundo Azevedo (2006, p. 150), a utilização
do modelo teórico dos EM “possibilitou um maior detalhamento na representação das
características tempo-aspectuais das estruturas oracionais integrantes das partes que
33
Ou ASL, American Sign Language.
34
Não encontramos nas referências da área uma boa tradução para os espaços “token” e “surrogate”, razão
pela qual mantivemos aqui os termos originais em inglês.
35
No original: “essential in making progress in understanding the conceptual underpinnings of the ASL
spatial data. (…) Although developed to account for vocal language phenomena, mental space theory and
cognitive grammar provide the conceptual elements necessary for understanding directional signs in ASL.
(…) The sign language data have caused me to conceive of meaning construction as a process involving
mental space mappings of the type proposed in mental space theory built around a central core of
grammatically encoded meanings of the type found in cognitive grammar.”
66
estruturam o texto.”. A figura, o fundo e o discurso direto foram tratados como domínios
cognitivos com funções discursivas e marcações linguísticas específicas, provando a plena
viabilidade de inserção do estudo de narrativas no modelo proporcionado pela teoria dos
EM.
É essa gama de possibilidades de aplicação do construto teórico de
Fauconnier que nos motiva à escolha dos EM como a base do presente estudo sobre o
processo de metaforização na linguagem humana além, evidentemente, da plena
pertinência da teoria em relação à moderna abordagem dos estudos semântico-cognitivos,
que incorporam, de maneira prática e eficiente, elementos extralinguísticos na descrição
sobre o processamento do sentido em textos.
2.3 A Teoria da Mesclagem Conceitual
Essa teoria é uma evolução dos estudos realizados sobre os EM, tanto que o
suporte dela são os mesmos domínios cognitivos descritos anteriormente. A MC surge
como uma teoria que explica a dinâmica funcional dos EM, com a vantagem de incluir
outros domínios indo além da simples relação entre domínios fonte e alvo –, o que
enriquece sobremaneira a compreensão sobre o processamento do sentido.
O modelo da MC descreve muito bem os processos que subjazem à mistura
de imagens, típica em situações de metaforização, contrafactualidade e outras. Uma das
vantagens dessa teoria em conjunto com a teoria dos EM é o não fechamento, ou seja,
trata-se de um modelo capaz de se estender a vários tipos de estudos sem que se perca a sua
essência, contribuindo para a realização de avanços em vários campos da pesquisa
linguística
36
.
Quando foi criada a teoria da MC, Fauconnier e Turner (1994, p. 4) faziam
alusão à existência de quatro espaços intermediários (middle spaces) no modelo e não
os espaços fonte e alvo mencionados anteriormente na teoria básica dos EM
indispensáveis para a compreensão do processamento linguístico e mental. Esse acréscimo
traz reconsiderações acerca do processamento do sentido, mostrando que ele sem sempre é
direto e nem se numa única direção (como se poderia depreender pelo modelo de
36
São teorias que se aplicam muito bem, a título de exemplo, à descrição de aspectos gramaticais, como
opera Cutrer (1994) em relação aos tempos verbais, além dos já mencionados estudos sobre a linguagem de
sinais e narrativas, entre outros.
67
projeção envolvendo apenas dois EM), e sim, pode envolver vários domínios cognitivos ao
mesmo tempo.
No modelo inicial de 1994, Fauconnier e Turner discriminavam os domínios
fonte e alvo, acrescentando os dois espaços, a saber: o espaço genérico e o espaço
mesclado
37
, de acordo com o seguinte arranjo:
Espaço genérico
Espaço-fonte Espaço-alvo
Espaço mesclado
Figura 9 – Modelo de mesclagem conceitual proposto por Fauconnier e Turner (1994)
Na passagem do espaço-fonte para o espaço-alvo, Fauconnier e Turner
(1994, p. 5) inserem o que chamam de espaço genérico, ou seja, um espaço abstrato que
“reflete os papéis, molduras e esquemas comuns aos espaços fonte e alvo”
38
. Aplicando o
modelo ao texto (1) anteriormente apresentado, caberiam nesse espaço genérico
informações comuns aos domínios do carregador e do Presidente da República por
exemplo, o fato de os dois serem indivíduos que se inserem numa sociedade organizada em
classes, a ocupação de um lugar na sociedade, o fato de os dois possuírem algum grau de
responsabilidade quanto a horários etc. A existência de características comuns a ambos os
37
Mantivemos aqui a nomenclatura original do relatório de 1994, “blended space”.
38
No original: “reflects the roles, frames, and schemas common to the source and target spaces.”
68
elementos é que permite a transposição de um domínio para outro, o que é viabilizado
através do espaço genérico.
O espaço mesclado é caracterizado pelos autores como uma combinação de
informações tanto da fonte quanto do alvo, além de parecer mais rico que os outros e
possuir uma estrutura muitas vezes impossível de ocorrer na realidade. Ainda no caso do
texto (1), nesse espaço mesclado temos a imagem surreal de alguém que se investe das
características tanto do carregador quanto do Presidente da República, tendo a informação
sobre fazer carreto provindo do espaço-fonte e a não rigorosidade de horário provindo do
espaço-alvo.
De 1994 em diante, o modelo da MC veio sofrendo pequenas alterações, e a
teoria veio ganhando cada vez mais adeptos, que aos poucos foram realizando
aprofundamentos de grande relevância nos estudos da linguagem. A maior mudança na
configuração da rede de espaços interligados, bastante significativa em termos semânticos,
é a ausência de direcionalidade de projeção de elementos de um domínio para outro, como
se mostra no modelo inicial. Em vez disso, fala-se de mapeamentos entre domínios
cognitivos, levando à ideia de que os elementos de um espaço são compreendidos em
relação aos elementos de outro espaço mental, concomitantemente.
Fauconnier e Turner (2002), fazendo uso de exemplos bem práticos,
apresentam muitos detalhes sobre o processo de mesclagem, enfatizando especialmente os
elementos que compõem essa rede de integração conceitual. E especialmente em
Fauconnier e Turner (1996)
39
é apresentada a ideia de que os padrões gramaticais de uma
língua refletem, em grande parte, as mesclagens conceituais e o processo de integração de
eventos. Daí a noção de que o estudo da linguagem verbal é a chave para se alcançar o
entendimento dos processos de cognição humana.
Outra inovação no modelo da MC é a identificação do espaço da mescla
como uma estrutura emergente, sinalizado com um quadriculado. Nos estudos cognitivos
em geral, a noção desse tipo de estrutura é de fundamental importância para a compreensão
de vários fenômenos. Em entrevista concedida à Profª Carla Coscarelli em abril de 2004,
Fauconnier afirma que a estrutura emergente possui o seu próprio conjunto de
propriedades, ou seja, é uma estrutura que emerge com suas próprias características
inferenciais, e somos capazes de manipular essas estruturas no espaço da mescla de
39
Uma versão expandida desse trabalho se encontra em:
<http://markturner.org/centralprocess.WWW/centralprocess.html>. Acesso em: 06 fev. 2010.
69
maneira muito produtiva.
40
Nesse aspecto, vale ressaltar a importância de trabalhos como o
de Grady, Oakley e Coulson (1997), que mostram como uma sentença do tipo “aquele
cirurgião é um açougueiro” apresenta uma série de significados emergentes, provando que
o espaço da mescla não é um espaço de mera composicionalidade semântica.
Com essas modificações, o modelo básico atualmente utilizado para
representar o processo de MC é o que se mostra abaixo, no qual figuram o espaço de
entrada 1 e o espaço de entrada 2 como domínios que apresentam elementos mapeados
entre si, além do espaço genérico e o espaço da mescla, com as mesmas características do
modelo inicial de Fauconnier e Turner:
Espaço genérico
Espaço de entrada 1 Espaço de entrada 2
Espaço da mescla
Figura 10 – Modelo de representação do processo de mesclagem conceitual
Observe-se que, pelo esquema apresentado acima, os espaços de entrada
podem encerrar elementos que não são projetados para o espaço da mescla, bem como
elementos projetados podem não apresentar uma contraparte no outro espaço de entrada. E,
40
Cf. Coscarelli (2005, p. 299).
.
. . .
. .
.
.
. .
.
.
70
ainda, informações que emergem no espaço da mescla sem que tenham provindo de
qualquer espaço de entrada (sentido emergente).
Uma boa apresentação da teoria da MC é encontrada em Coulson e Oakley
(2000), em que os autores partem de uma sucinta apresentação da teoria dos EM, tratam de
vários aspectos da rede de integração conceitual e finalizam com a apresentação de críticas
feitas a esse modelo. A crítica maior que eles apresentam certamente é a de Raymond W.
Gibbs Jr., ao afirmar que as análises proporcionadas pela teoria da mesclagem não vão
além de análises de exemplos, ao que Coulson e Oakley rebatem dizendo que as teorias
mais produtivas acerca do sentido começam justamente com esse tipo de análise.
É relevante também a contribuição de Coulson (2000) para a teoria da MC,
apresentando uma extensa descrição teórica da mesclagem e uma ampla aplicação em
análises de sentenças. Além do modelo apresentado na Figura 10 acima, existe uma outra
possibilidade de representação dos espaços que compõem o processo de MC, que Coulson
aplica na análise de vários fenômenos da linguagem. Trata-se de um modelo de
representação linear, o qual vamos apresentar aqui em relação ao mesmo exemplo (1), no
início deste capítulo:
Espaço de Espaço de Espaço da Espaço
entrada 1 entrada 2 mescla genérico
Carregador Presidente Presidente que Cargo,
faz carreto ocupação
Elementos Elementos Elementos Elementos
Carreto Governo Carreto Atividade
Miséria Privilégios Privilégios Situação
Acordar cedo Acordar tarde Acordar tarde Possibilidade,
Necessidade
Relações Relações Relações Relações
Dificuldades Facilidades Incoerências Situações
Figura 11 – Representação analítica de caso de mesclagem conceitual através do modelo de Coulson (2000)
Esse modelo de representação possui a vantagem de ser mais explicativo do
que o apresentado na Figura 10, embora seja menos utilizado nos trabalhos de Semântica
Cognitiva pela menor possibilidade de vislumbrar as relações (mapeamentos e conexões)
entre os elementos e espaços, ao passo que o outro modelo oferece essa facilidade. De toda
forma, ambos os modelos são embasados nos mesmos princípios norteadores da teoria.
71
Um outro aspecto importante da teoria da MC são os princípios da
otimalidade (optimality principles) apresentados por Fauconnier e Turner (1998, p. 162-
163). Segundo os autores, esses princípios correspondem às condições sob as quais a
mesclagem funciona melhor, e são os seguintes:
i) integração A mescla deve constituir-se uma cena integrada que possa ser manipulada
como uma unidade;
ii) topologia Um elemento de um espaço de entrada projetado no espaço da mescla deve
ter sua relação estabelecida com a sua contraparte;
iii) rede – A manipulação da mescla como uma unidade deve manter facilmente a rede com
as conexões dos espaços de entrada;
iv) desempacotamento A mescla, por si só, deve ser passível de “desempacotamento”, de
forma a reconstruir os espaços de entrada, os mapeamentos, o espaço genérico e as
conexões entre esses espaços;
v) boa razão Todo elemento que aparecer na mescla deve apresentar alguma relevância,
incluindo relevância nas ligações com os outros espaços.
Entendemos que os princípios acima têm validade para a descrição de
algumas construções linguísticas canônicas, representando situações ideais, mas
questionamos se todos eles se aplicam efetivamente a todas as situações reais de uso
linguístico, especialmente no caso da metáfora. Acreditamos que o princípio do
desempacotamento, por exemplo, apresenta sérias restrições especialmente nos casos em
que ocorre o “entrincheiramento”, fenômeno que corresponde à cristalização de
construções linguísticas com a sua consequente incorporação no sistema como uma
unidade simbólica imutável. Sobre essa questão queremos desenvolver aqui uma
argumentação que julgamos de crucial importância para os estudos da linguagem, em
especial para o entendimento do processamento da metáfora.
Desde alguns estudos semânticos e pragmáticos desenvolvidos
especialmente a partir da década de 1960, vislumbrava-se o processamento do sentido
figurado na linguagem como uma etapa posterior ao processamento do sentido literal. Esse
ponto de vista é desenvolvido, por exemplo, por Ducrot (1969, 1977) em seu “projeto de
descrição semântica”. Segundo o autor, o sentido de um enunciado A numa determinada
circunstância X passa por um componente 1 chamado de “linguístico”, que abarca as
informações da língua L, e depois por um componente 2 chamado de “retórico”, que sofre
influência da circunstância X. A partir de então, determina-se o sentido de A em X.
72
Nessa mesma linha de raciocínio, Stalnaker (1972) defende que a formação
de sentenças de uma língua passa primeiramente pela articulação conjunta de regras
sintáticas e semânticas, a partir de quando é possível vislumbrar o que o autor chama de
“interpretação não ambígua” de sentenças. A partir daí, sob a ação dos traços contextuais
de uso da sentença, forma-se a proposição, que, num dado mundo possível, é sujeita à
aplicação de um valor de verdade.
Pois bem, teorias como essas tiveram um valor incomensurável nos estudos
da linguagem especialmente por incorporarem no sistema linguístico, como um elemento
determinante do sentido, o contexto. Essas ideias, em conjunto com o princípio da
conversação de Grice postulado em 1967
41
, revolucionaram as pesquisas linguísticas. Por
outro lado, disseminaram a noção de que o sentido se produz por partes, primeiro no nível
da língua e depois sob influência do contexto. A essa abordagem Gibbs Jr. (2002) chama
de “visão pragmática padrão” (standard pragmatic view) (doravante VPP), que o autor
opõe a um outro tipo de abordagem, através da qual em dadas situações “as pessoas
compreendem sentidos não literais sem primeiro analisar o sentido literal completo de uma
expressão”
42
, situação que Gibbs Jr. denomina “visão de acesso direto” (direct access view)
(doravante VAD).
Nessa mesma referência, Gibbs Jr. afirma que vários experimentos
demonstram que não é cito afirmar que existe um esforço cognitivo na interpretação de
enunciados de sentido não literal maior do que existiria no processamento em enunciados
de sentido literal. Além disso, o autor defende que a própria noção acerca do que vem a ser
literalidade e não literalidade, tanto no nível da palavra quanto no nível da sentença, é algo
bastante difuso, especialmente quando se vai contrapor a VPP e a VAD.
Voltando aos princípios da otimalidade de Fauconnier e Turner,
especialmente retomando o que diz o princípio do desempacotamento, acreditamos que ele
teria validade dentro da concepção da VPP, uma vez que o sentido de palavras e expressões
seria formulado passo a passo, e uma etapa do processamento do sentido seria dependente
de outra, ficando, assim, plenamente viável a reconstituição do percurso semântico de
palavras e expressões. Contudo, na concepção da VAD, mais condizente com os modernos
estudos da LCog, essa reconstituição nem sempre é possível. Muitas metáforas,
41
Ver Grice (1982).
42
No original: “people understand nonliteralmeanings without first analyzing the complete literal meaning of
an expression” (GIBBS JR., 2002, p. 457).
73
especialmente aquelas já entrincheiradas na linguagem, são utilizadas e compreendidas sem
que o interlocutor e muitas vezes o próprio analista da linguagem identifiquem os
elementos que as integram ou seja, a mesclagem acontece independentemente da
capacidade de identificarmos os elementos dos espaços de entrada, os mapeamentos, o
espaço genérico e as conexões entre esses espaços. Certamente existem elementos
motivadores para a constituição da mescla nos momentos do seu surgimento, mas eles
podem perder-se ou mesmo alterar-se sob o efeito do tempo, do espaço, do contexto, da
cultura etc.
43
De toda forma, os princípios da otimalidade servem como uma espécie de
descrição geral sobre o funcionamento básico do fenômeno da MC.
2.3.1 Aplicações da teoria da MC na linguagem
A MC é um fenômeno que se aplica ao entendimento da cognição humana
em geral. Comportamentos, gestos, atitudes, além de várias teorias envolvendo conceitos,
números e noções que nada têm a ver especificamente com questões de linguagem verbal,
podem ser explicados através da mesclagem. Muitas criações artísticas e publicitárias
atestam esse fato, e os exemplos são inúmeros: filmes de ficção, histórias em quadrinhos,
personagens e cenas que mesclam elementos da realidade e da não realidade etc.
Nesta tese, não vamos nos ater a essas aplicações da MC, restringindo-nos
ao nosso objeto de estudo, que é a linguagem verbal. E mesmo aqui se descortina um
imenso campo a ser explorado, estando a MC presente desde o nível da organização
43
Sem realizar um estudo à base de experimentos ou de análise de corpora específicos para esse fim,
podemos mencionar, a título de exemplo, algumas palavras e expressões cujo sentido é processado na forma
de mesclagem e normalmente o usuário não tem, necessariamente, conhecimento dos elementos que integram
o seu sentido: “lua-de-mel”; “cachorro quente”; “pão-duro”, sinônimo de sovina; “barbeiro”, aplicado ao mau
motorista; “a toque de caixa”, referindo-se a serviço rápido e mal feito; “bicho-de-sete-cabeças”, algo
intrincado e difícil; “biruta”, aplicado a pessoas malucas ou inquietas; “casa-da-mãe-Joana”, lugar em que
tudo pode acontecer; expressões populares como “com a avó atrás do toco”, “ver a avó pela greta”, “cheio de
nove horas”, “o diabo a quatro”, “fazer de gato sapato”, “chorar lágrimas de crocodilo”, “lavar a égua”, “do
tempo do onça”, “pagar o pato”, “pagar mico”, “por que cargas-d’água?”, “sem eira nem beira”, “tirar o pai
da forca”, “plantar batatas” etc. Certamente, esses exemplos apresentam comportamentos diferenciados em
relação aos possíveis procedimentos de desempacotamento, em menor ou maior escala, dependendo do
contexto e também do conhecimento de mundo dos interlocutores. Todavia, parece certa a ideia de que essas
palavras e expressões não apresentam processos de desempacotamento tão visíveis como em “entre a cruz e a
espada”, “maçã do rosto”, “colocar a mão no fogo”, “meia-tigela”, “passar a noite em claro”, “pé-rapado”,
“preto no branco”, “santo do pau oco”, “a sete chaves” etc.
74
linguística elementar, que é a formação vocabular
44
, passando pelas regras básicas de
organização sintática até atingir o nível da organização textual mais ampla, como veremos
a seguir.
2.3.1.1 A MC e a formação de expressões linguísticas
Turner e Fauconnier (1995) mostram que o processo de mesclagem ocorre
na formação de palavras da língua. Muitas expressões linguísticas formadas por duas
palavras e mesmo algumas formadas por uma única palavra são reflexos do processo de
MC. Os autores demonstram como isso ocorre em muitos vocábulos do inglês.
O ponto fundamental apresentado pelos autores nesse artigo é a
potencialidade de significados presente nessas formações. A multiplicidade de
interpretação nessas palavras é patente, e a emergência de significados é algo bastante
considerável, ultrapassando o nível da formação vocabular pura. Com isso, os autores
mostram que a categoria do sentido não é meramente composicional, e que a MC tem um
papel importante nesse processo.
Turner e Fauconnier apresentam vários exemplos de palavras cuja
mesclagem é muito produtiva em termos semânticos. Entre esses vocábulos, os autores
listam casos como Chunnel, vocábulo de alcunha usado pelos britânicos para se referirem
ao túnel do Canal da Mancha Eurotúnel (denominado Channel Tunnel); McJobs,
referência a empregos sem prestígio, sem grandes chances de progressão para os
empregados, tomando como base a rede internacional de alimentos instantâneos
McDonald’s; e outros exemplos.
Permeando a junção dos vocábulos, nota-se a emergência de significados,
num processo típico da rede de integração conceitual. Em português, muitos exemplos
podem ser apontados, mesmo que sua origem não seja nesta língua: motel (formada por
motor + hotel, palavra que, na mescla, perde a especificidade dos hotéis e a exclusividade
de serem à beira de estradas um pouso para motoristas –, incorporando ainda o traço de
se tratar de lugar para encontros clandestinos); pássaro-preto (nome de uma espécie de
pássaro que passa a ter características que vão além do simples fato de se tratar de uma ave
44
Acreditamos que existam grandes possibilidades de desenvolvimento dessa teoria também no nível da
organização fonético-fonológica, anteriormente à formação de vocábulos. Porém, não vamos explorar esse
aspecto em decorrência do grande distanciamento que seria provocado em relação ao nosso propósito de
pesquisa, envolvendo metáforas e organização textual.
75
de cor preta); noivorido (palavra de uso ainda informal no português do Brasil, que mescla
características de noivo e marido – no caso, a ausência do caráter jurídico típico do
casamento e a relação conjugal existente de fato)
45
.
Nesse artigo de 1995, Turner e Fauconnier explicam também um outro
importante processo de formação de palavras, que tem, contudo, forte relação com a
organização sintática da língua, razão pela qual vamos apresentá-lo na próxima seção.
2.3.1.2 A MC nas regras de organização gramatical
A MC se apresenta também na organização gramatical da língua, de forma
atrelada à interpretação dos sentidos. Os conceitos passíveis de mesclagem não são
somente informações semânticas, mas também os relativos à estruturação de sentenças.
Nesse caso, muitas vezes o que compreende um dos espaços de entrada é uma moldura
contendo informações de organização sintática.
Um exemplo clássico que Turner e Fauconnier (1995) apresentam é a
utilização do verbo “espirrar” na seguinte sentença:
(11) Jack espirrou o guardanapo para fora da mesa.
46
Apesar de existirem formas concorrentes do verbo acima, que poderiam ser
facilmente empregadas nessa sentença (por exemplo, “atirar”), a escolha do verbo
“espirrar” revela uma integração de eventos, que seriam:
i) Jack espirrou;
ii) o guardanapo se moveu;
iii) o guardanapo estava na mesa;
iv) o guardanapo agora está fora da mesa.
Mesmo se tratando de um aspecto de seleção lexical, esse fenômeno da
linguagem é parecido com outros casos de organização sintática, como a inacusatividade e
a ergatividade, que também podem ser descritos via MC. A sentença abaixo, por exemplo:
45
Em consulta à base de busca Google (www.google.com.br), na Internet, realizada em 19/01/2009,
encontramos 1.020 ocorrências desse vocábulo. Já em 08/02/2010, deparamos com 3.320 ocorrências na
mesma base, o que sinaliza que o vocábulo apresenta crescente uso no nosso meio.
46
No original: “Jack sneezed the napkin off the table”.
76
(12) O copo quebrou.
é resultante de uma mesclagem que engloba, de um lado, a sentença “X quebrou o copo”,
em que X é qualquer agente que ocupe a posição de sujeito sintático, e, por outro lado, a
estrutura SVO (sujeito-verbo-objeto) em português, na forma de uma moldura cognitiva.
Na mescla, o objeto direto “copo” é alçado à posição de sujeito sintático, resultando em
(12), conforme mostra o esquema abaixo:
Oração
X quebrou o copo.
O copo quebrou.
Figura 12 – Análise de caso de mesclagem conceitual em construção ergativa
No caso acima, acontece o processo de restrição selecional quando alguns
elementos dos espaços de entrada não são projetados para a mescla. Além disso, vários
sentidos emergentes em potencial na sentença mesclada, podendo ser um deles a intenção
de ocultamento de X como o agente da ação de quebrar o copo.
2.3.1.3 A MC na estruturação de textos
Ao longo da vasta produção técnico-científica de Fauconnier, Turner e
outros pesquisadores em torno dos EM e da MC, percebe-se quão ricas são essas teorias
para a compreensão do fenômeno da linguagem e do mecanismo do raciocínio humano.
Boa parte das análises de exemplos envolvendo essas teorias diz respeito a sentenças
isoladas, mas o conjunto dessas análises oferece uma boa visão de como os domínios
cognitivos se vão inter-relacionando no decorrer do discurso, novos domínios vão sendo
Termos da oração
Sujeito
Verbo
Objeto
77
ativados e outros vão sendo reformulados, retomados e até abandonados ao longo do ato
comunicativo.
Muitos textos foram analisados por aqueles autores, nos mesmos moldes do
que foi feito em relação à fábula “Aquiles e a tartaruga”, apresentada anteriormente neste
capítulo, na qual Zenão de Eleia apresenta um dos seus paradoxos com a observação de
que, na análise dessa fábula, os autores não chegam a utilizar a noção de MC. Somente
para esboçar o quanto foi feito até então em termos de análises de textos mais extensos
envolvendo mesclagem, apresentamos alguns que nos chamam a atenção pela importância
que adquiriram dentro dos estudos de Semântica Cognitiva:
i) Inferno, de Dante Alighieri Fauconnier e Turner (1994) tomam uma passagem do final
do Canto XXVIII, quando Dante descreve o Malebolge, ou Valas Malditas, que é, segundo
o autor, a morada daqueles que pecaram por algum tipo de fraude. Na vala 9 ficam os
criadores de intrigas, que são mutilados por um demônio, e eles também se mutilam o
tempo todo. É que surge a figura de Bertran de Born, célebre poeta e guerreiro que
semeou discórdia entre o rei da Inglaterra Henrique II e o filho deste, induzindo-o a rebelar-
se contra o pai. O que Fauconnier e Turner salientam, com base especialmente nos quatro
últimos versos
47
, é que acontece claramente o fenômeno da MC quando Dante (o autor, não
o personagem) lança mão de dois domínios cognitivos distintos, estabelecendo um
mapeamento entre os seus elementos, resultando na narrativa tal qual se apresenta. Um dos
domínios (espaço de entrada 1) é o dos traços físicos, e o outro (espaço de entrada 2) é o
dos valores morais. A separação da cabeça de Bertran de Born em relação ao seu corpo
representa a separação provocada entre pai e filho, no espaço dos valores morais; a cabeça
junto ao corpo representaria a união entre pai e filho; e a dor física sofrida pelo personagem
no Malebolge representa, no plano moral, a dor provocada pela separação entre pai e filho.
Obviamente o autor de A Divina Comédia não explicita tal processo, mas a
correspondência entre esses elementos é bastante visível no trecho da narrativa. Tanto é
que esse trecho é apontado por estudiosos do Inferno de Dante como o que apresenta de
forma mais contundente o “contrapasso”, que é a aplicação ao pecador de uma punição que
47
Laços tais como eu, pérfido, rompera, / Meu cérebro assim levo desunido / Desse princípio, que no
corpo impera: / Por lei sou, pois, de talião punido. Tradução do original italiano: “Perch' io parti' co
giunte persone, / partito porto il mio cerebro, lasso!, / dal suo principio ch'è in questo troncone. / Così
s'osserva in me lo contrapasso.” (Cf. ALIGHIERI, 1946)
78
corresponda o mais fidedignamente possível aos efeitos do pecado cometido – retomando a
conhecida lei de talião: “olho por olho, dente por dente”.
ii) Regata Fauconnier e Turner (1994) apresentam também uma análise de um excerto de
reportagem da revista de navegação Latitude 38 (vol. 190, abril de 1993, p. 100), em que é
narrada uma corrida entre dois barcos: o Great America II, que está realizando um percurso
em 1993, e o “fantasma” do Northern Light, que realizou o mesmo percurso em 1853.
três domínios cognitivos envolvidos além do domínio genérico –, sendo dois reais e
um imaginário: a viagem real de 1853, a viagem real de 1993 e o domínio imaginário da
mescla no qual são projetadas as duas embarcações obedecendo a uma moldura pré-
existente, a da corrida. Em virtude da nossa capacidade de mesclagem, somos capazes de
avaliar o desempenho do Great America II em relação ao Northern Light. Numa passagem
destacada pelos autores, a título de exemplo, o barco de 1993 é apresentado como
mantendo 4,5 dias à frente do barco de 1853. Como estrutura emergente dessa mescla,
podemos apontar as emoções e intenções dos navegantes e de quem acompanha essa
competição como se estivessem realizando uma corrida de fato, “com reduzido esforço
cognitivo e grande eficiência e conteúdo”
48
(FAUCONNIER; TURNER, 1994, p. 7).
iii) A charada do monge budista Fauconnier e Turner (op. cit.) analisam também uma
charada transcrita de Arthur Koestler em The act of creation (Nova Iorque: Macmillan,
1964, p. 183-189), cuja autoria é atribuída a Carl Dunker. Nessa charada, uma pequena
narrativa a respeito de um monge que sobe uma montanha, atinge o topo da mesma, medita
por vários dias, até que começa o caminho de volta ao da montanha. Pede-se que o
leitor prove que existe um lugar no caminho em que o monge fica na mesma hora do dia
nas duas jornadas, a de ida e a de volta. Uma solução possível para a charada é imaginar
que o monge caminha tanto para cima quanto para baixo no mesmo dia. Assim, o “lugar”
em que o monge fica na mesma hora nas duas viagens é o lugar em que ele se encontra
consigo mesmo, possível de ser construído graças às propriedades do espaço-mescla.
iv) Debate com Kant Fauconnier e Turner (1996) analisam um debate travado entre um
filósofo contemporâneo e o autor da Crítica da razão pura, sendo o primeiro um estudioso
do final do século XX e o segundo o filósofo de 1784. No debate, o filósofo
contemporâneo “conversa” com Kant a respeito de uma propriedade da razão, alegando ser
ela uma capacidade que se autodesenvolve, ao que Kant rebate dizendo ser inata no
48
No original: “with reduced cognitive effort and increased efficiency and content.”
79
homem. Essa discussão só é possível de ser concebida a partir do momento em que
vislumbramos um espaço de entrada compreendendo os elementos relativos ao filósofo
contemporâneo e um outro espaço de entrada relativo a Kant, com elementos de um e de
outro projetados para a mescla e com um compartilhamento de informações de ambas as
entradas no espaço genérico.
v) Histórias de Sherazade As famosas Histórias das Mil e Uma Noites são o tema de
abertura da obra de Turner (1996), em que o autor tece importantes considerações a
respeito do funcionamento da mente humana em relação ao princípio básico das obras
literárias, defendendo que nossa mente é literária por natureza, sendo a “história” a base
fundamental do nosso raciocínio. Nós realizamos, o tempo todo, projeções de histórias
sobre histórias, constituindo as parábolas, e o procedimento de Sherazade intercalando
histórias é o mesmo procedimento nosso na intercalação de discursos. A ênfase da MC está
nas fábulas, quando a presença de animais falantes é vista como absolutamente natural.
Nessa obra, várias outras histórias são retomadas enquanto o autor vai aplicando nelas um
procedimento de análise com base nos elementos da LCog. Nessa mesma linha de
raciocínio, muitas análises de textos menos extensos são desenvolvidas em Fauconnier e
Turner (2002), mostrando como os elementos da LCog estão intrinsecamente ligados à
maneira como processamos o nosso pensamento.
Essas análises de Fauconnier e Turner são clássicas nos estudos de
Semântica Cognitiva, não raro sendo retomadas por esses próprios estudiosos e outros
autores. A análise textual que pretendemos realizar nesta tese deverá tomar como base essa
mesma linha de raciocínio, focalizando especificamente a metáfora e sua inter-relação com
os elementos da LCog e a articulação do texto.
2.4 Considerações finais
Neste capítulo, sintetizamos as teorias dos EM e da MC, procurando
oferecer uma visão panorâmica sobre o assunto, incluindo o histórico do surgimento e
desenvolvimento das mesmas, até chegar às contribuições que ambas têm proporcionado à
ciência da linguagem.
Enquanto no primeiro capítulo fizemos uma descrição da LCog mostrando o
seu caráter mais disperso, embora rico e profundo, em relação a essas teorias de Fauconnier
e Turner podemos afirmar que são muito consistentes e pontuais, capazes de assegurar a
80
uma parte dos estudos de LCog uma solidez desejável e necessária ao bom andamento das
pesquisas na área, razão pela qual discorremos sobre elas em capítulo à parte do nosso
trabalho.
Uma das grandes vantagens de adoção dessas teorias é a ampla
aplicabilidade oferecida pelas mesmas, mesmo em conjunção com outras teorias e linhas
de pensamento dentro dos estudos da linguagem. A teoria dos EM, por exemplo, é
plenamente capaz de explicar fenômenos que, até então, as teorias clássicas descreviam,
mas não ofereciam uma visão tão convincente e dinâmica quanto aquela, envolvendo uma
relação entre domínios cognitivos que facilmente se adapta à intuição dos falantes e se
entrelaça com outras teorias, reforçando-as.
E, como decorrência natural do desenvolvimento da teoria dos EM, surge a
MC com um aparato teórico e um modelo descritivo que enriquecem ainda mais a noção da
inter-relação entre os domínios cognitivos. Através desse modelo, podemos visualizar
aspectos que outras teorias não explicavam tão claramente, como a restrição selecional e os
sentidos emergentes. Além disso, a adoção de um espaço genérico que abarca informações
comuns aos espaços de entrada foi outro grande avanço da teoria, pois ele esclarece e
justifica as possibilidades de mapeamentos entre elementos de diferentes domínios, o que
até então só era percebido intuitivamente, sem uma descrição mais concisa.
Essas teorias ainda têm muito para onde avançar, e é por isso que vários
estudiosos têm recorrido a elas, procurando aplicá-las em diversos aspectos não da
linguagem verbal, mas também de outras formas comunicativas. E um dos avanços
necessários no atual estágio em que se encontra a Linguística no nosso meio será estender
os preceitos teóricos dos EM e da MC para uma melhor compreensão da articulação
textual, tão bem quanto essas teorias se aplicam a sentenças e construções linguísticas
isoladas. Assim, seremos capazes de atender a uma demanda já firmada no nosso meio,
voltada para a compreensão dos fatos de linguagem calcados no uso efetivo da
comunicação, seja em sua modalidade oral ou escrita.
Ainda vamos retomar bastante as noções deste capítulo no decorrer do
nosso trabalho, mas antes faremos uma incursão específica nas abordagens sobre a
metáfora a fim de delimitar melhor nosso objeto de estudo da presente tese.
81
CAPÍTULO 3
PANORAMA HISTÓRICO-CONCEITUAL DOS ESTUDOS DA
METÁFORA
3.1 Introdução
Vários elementos e fenômenos da linguagem, ao longo dos séculos, vêm
sendo tratados de diferentes formas, dependendo da concepção que se tem sobre tais,
influenciada por fatores de ordem cultural, científica, artística, histórica, literária etc.
Dentre esses, muitos remontam à época clássica, tendo sido ressaltados em antigos tratados
greco-latinos, sendo alvos, evidentemente, de tratamentos dos mais diferenciados
possíveis.
Desde que foi evidenciada no campo da Filosofia e passou por várias
abordagens no campo da Lógica e da Linguística durante esses vários séculos, alguns dos
tratamentos da metáfora se mostram antagônicos, outros complementares, a maioria dos
quais descrevendo-a fora do uso ordinário da língua.
Partindo de uma definição dicionarizada do termo, segundo Bueno (1988, p.
2413), o vocábulo “metáfora” remonta ao grego metà, que significa “mudança, alteração,
translação”, e phora, de phero, “(eu) transporto”; portanto, tem a ver com mudança de
sentido, alteração de significado. Modernamente, inúmeras fontes mencionam “metáfora”
como sendo os caminhões de transporte e mudança que circulam nas ruas da Grécia
imagem que reforça a característica básica desse recurso da comunicação humana.
O conceito de “metáfora” como “mudança” perpassa praticamente todos os
estudos que serão apresentados aqui, e de fato corresponde à característica central da
82
metáfora, mas ao mesmo tempo ele encobre uma série de particularidades, e é nesse ponto
que muitas abordagens se mostram divergentes.
Faremos neste capítulo uma exposição de boa parte das principais
abordagens sobre a metáfora ao longo dos séculos, para uma visão mais completa possível
sobre a mesma, até chegarmos às modernas abordagens, definindo o nosso posicionamento
acerca desse recurso, a fim de aplicar sobre ela um tratamento bastante coerente e
produtivo dentro do nosso recorte teórico.
Ressaltamos, na oportunidade, que esta exposição não segue um padrão
estritamente cronológico. Até certo ponto estamos mantendo a cronologia das ideias
partindo de Aristóteles e passando por alguns dos grandes estudiosos da metáfora na
tradição clássica. Após isso, no entanto, abdicamos da sequenciação cronológica para
apresentar alguns tratamentos contemporâneos sobre a metáfora, que são estudos que co-
ocorrem praticamente em paralelo. Em relação a eles, importa-nos basicamente o seu
desenvolvimento conceitual e a contribuição que eles proporcionam ao estado da arte dos
estudos da metáfora na atualidade.
É importante salientar também que não tomaremos muitos dos fundamentos
aqui expostos como base para a nossa pesquisa. A apresentação que se fará aqui de muitas
das teorias sobre a metáfora servirá, quando não diretamente para o nosso trabalho, para
oferecer uma visão geral para balizar a nossa escolha para o desenvolvimento deste
trabalho frente a outras possibilidades de abordagem do tema.
3.2 A visão tradicional a partir de Aristóteles
Uma das primeiras menções que temos da metáfora se encontra em
Aristóteles, no séc. IV a.C. Em sua Poética, o filósofo discorre a respeito da “transferência
do nome de uma coisa para outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero,
ou de uma espécie para outra, ou por analogia”
49
. Nesse texto clássico, o autor considera a
metáfora um recurso que se afasta da linguagem corrente, assim como os nomes
estrangeiros, ornamentais, inventados, alongados, abreviados ou modificados, de acordo
com a própria nomenclatura aristotélica.
49
OS PENSADORES, 2000, p. 63.
83
Dentro dessa concepção de “metáfora”, podemos vislumbrar a noção de
metonímia, e desde então também a noção de analogia, que o autor descreve da seguinte
maneira:
Entendo que há metáfora por analogia quando o segundo termo está para o
primeiro assim como o quarto para o terceiro; o quarto poderá ser utilizado
em lugar do segundo, e o segundo, no lugar do quarto. Em algumas
ocasiões, os poetas acrescentam ao termo substituto algum outro com o
qual o substituído se relaciona (analogia). (...) Às vezes falta um dos
quatro termos da analogia; nem mesmo assim deixar-se-á de utilizar o
análogo; diz-se, por exemplo, semear o espalhar a semente, mas não
termo para o espalhar do sol a sua luz; essa ação, porém, relaciona-se com
o sol do mesmo modo como o faz com a semente; por esse motivo poder-
se-á dizer: semeando a luz criada pelos deuses”. (OS PENSADORES,
2000, p. 64)
Além da questão da transposição de significados, Aristóteles ressalta que
várias formas de construção da metáfora, o que as modernas teorias continuam
demonstrando, embora com outros termos. Ademais, é de suma importância a noção
aventada sobre a analogia, um processo cujas características continuam sendo exploradas
até hoje, em especial dentro da teoria dos EM.
Vários autores desde Aristóteles conferem um caráter especial à metáfora
em relação às chamadas figuras de linguagem que até hoje povoam os manuais e
gramáticas das várias línguas. Todavia, muitas publicações que têm o fim especial do
ensino de língua portuguesa, até hoje, apresentam uma demarcada classificação desses
recursos de linguagem, agrupando-os não raro em figuras de sintaxe, de estilo e de
pensamento, ou qualquer classificação que se aproxime disso, apresentando a metáfora no
mesmo rol de várias outras figuras.
Berber Sardinha (2007, p. 21) afirma: “Foi possivelmente na Renascença
que a classificação das figuras de linguagem se intensificou, em conformidade com a
tendência da época de classificar o mundo em categorias”. O autor continua o texto
exemplificando com a obra inglesa The garden of eloquence, de Henry Peacham, cuja
primeira edição, datada de 1577, chega a apresentar um repertório de 184 figuras.
Entre essas várias figuras, podemos dizer que, desde as abordagens mais
antigas sobre linguagem até os dias de hoje, subsiste bastante a necessidade de distinção
entre metáfora e metonímia. Inúmeros estudiosos têm em mente a diferença crucial entre as
duas: enquanto prevalece uma relação de similaridade de ideias entre os termos de uma
84
metáfora, a metonímia se caracteriza por uma relação de contiguidade, isto é, uma relação
de continuidade ou proximidade natural como a existente entre autor e obra, conteúdo e
continente, causa e efeito, instrumento e pessoa que o utiliza, lugar e habitante, parte e
todo, espécie ou classe e indivíduo, matéria e objeto etc. Um grande desajuste existe entre
as gramáticas e manuais de ensino da língua portuguesa justamente pela exagerada
preocupação classificatória em detrimento do conteúdo, especialmente quando entra em
cena também a figura chamada sinédoque, gerando muitas confusões, no mínimo, de
ordem conceitual.
50
Dada a importância do tema e a sua proximidade com a metáfora,
trataremos mais detalhadamente a metonímia ao final deste capítulo, em seção especial,
abordando-a no âmbito de um importante fenômeno cognitivo, o da compressão
(compression).
O pensamento aristotélico perdura por muitos séculos, e pode-se dizer
inclusive que muitos manuais modernos ainda apresentam a metáfora com um
aproveitamento quase integral do modelo oferecido pelo filósofo. Interessam-nos, porém,
os desdobramentos que o conceito veio sofrendo ao longo dos tempos, até chegar aos
modernos estudos da LCog e às metodologias de abordagem da Linguística de Corpus
(doravante LCorp), que apresentaremos mais adiante.
3.3 Desdobramentos da visão clássica
Santo Tomás de Aquino (1227-1274), filósofo e teólogo italiano, apresenta
em pleno século XIII uma visão sobre metáfora bastante polêmica especialmente em
relação ao padrão religioso da época: ele refuta vários preceitos da doutrina da Igreja
Católica, a qual apresenta veemente rejeição a esse recurso de linguagem, bem como a
símbolos, alegorias e outras formas de linguagem figurada, alegando que se trata de
recursos da então considerada a mais baixa ciência, isto é, a poesia. A Igreja defendia,
inclusive, que a Sagrada Escritura não deveria se utilizar de metáforas, haja vista que o
discurso teológico ocupa o ponto mais alto de todos, conforme nos explica Brittan (2003,
50
Só a título de exemplo, tomando duas gramáticas bastante conhecidas e tradicionais nos ensinos
fundamental e médio, enquanto Cegalla (1993, p. 545) apresenta a frase “Márcia completou ontem vinte
primaveras” como exemplo de metonímia, André (1993, p. 373) apresenta a sentença “Maria completa hoje
dezenove primaverascomo exemplo de sinédoque. Várias outras inconsistências desse tipo podem ser
encontradas tanto nessas referências como entre outros tantos autores de gramáticas e livros didáticos.
85
p. 30), e fazer uso de metáforas equivalia a obscurecer o sentido das verdades divinas,
especialmente quando se fazia alusão a coisas concretas, da realidade mundana.
Aquino faz forte objeção a esse dogma católico. O que para os historiadores
da religião pode ser apresentado como uma manifestação de heresia, para os estudiosos da
linguagem pode ser visto como uma grande contribuição para o pensamento da época
acerca da função social da linguagem. Essa objeção tomista é manifestada nos seguintes
termos: “A poesia emprega metáforas a bem da representação, na qual nos deleitamos. O
ensinamento sagrado, por outro lado, adota as metáforas pela sua indispensável
utilidade”.
51
Essa utilidade é apresentada por Santo Tomás de Aquino em termos de que as
verdades divinas expressas metaforicamente são mais convenientes, uma vez que, segundo
ele, a doutrina fica mais acessível a todos os indivíduos, já que os elementos retomados
para as construções metafóricas são coisas próprias da vivência terrena, oferecidas aos
homens pelo próprio Deus.
A noção da metáfora como elemento facilitador para a compreensão de
ideias mais complexas é um prenúncio de uma vertente da abordagem cognitiva da
linguagem, que se opõe à visão meramente estilística apresentada por Aristóteles. A
questão da escalaridade que subsiste no discurso da época nível superior de linguagem
para falar sobre coisas divinas e nível inferior quando se trata das coisas mundanas
certamente é objeto de ampla discussão religiosa, mas é certo que o pensamento tomista
revolucionou conceitos, inclusive no campo da linguagem.
Também constitui grande referência nos estudos da linguagem, quando se
fala de pensamento clássico, La logique ou l’art de penser, um conjunto de textos escritos
por Antoine Arnauld e Pierre Nicole entre 1660 e 1680, conhecido como “A lógica de Port-
Royal”. A arte do pensamento é apresentada nessa obra nos moldes do raciocínio lógico,
tendo-nos legado importantes contribuições especialmente no campo da Semântica Formal,
como, por exemplo, o estudo de conjunções, de comparativos etc.
Em La logique, os autores fazem referência à metáfora como um recurso
através do qual as “palavras possam (...) se relacionar com uma outra coisa”
52
, artifício que
proporciona, por exemplo, a solução de charadas. Não se vislumbra, nessa obra, um
51
No original: “Poetry employs metaphors for the sake of representation, in which we are born to take
delight. Holy teaching, on the other hand, adopts them for their indispensable usefulness”, tradução inglesa do
original latim: “poëtica utitur metaphoris propter repraesentationem, repraesentatio enim naturaliter homini
delectabilis est. Sed sacra doctrina utitur metaphoris propter necessitate et utilitatem” (AQUINO, 2006, p. 34-
35).
52
No original: “mots puissent (...) se rapporter à une autre chose” (ARNAULD et al, 1861, p. 276).
86
tratamento exaustivo sobre a metáfora, mas nota-se uma retomada do conceito aristotélico,
desta vez com a preocupação de uma descrição mais lógica. De uma forma geral, essa obra
revela muitos pensamentos que se coadunam com os de Blaise Pascal (1623-1662), até
porque este teve uma vivência muito grande com os jansenistas
53
em Port-Royal, local
onde se instalaram vários intelectuais, como Antoine Arnauld e outros.
Alguns estudiosos do século XVIII desenvolvem um ponto de vista sobre a
metáfora que se vai afastando cada vez mais da visão aristotélica, embora tais ideias
ficassem mais conhecidas a posteriori, através da filosofia de Nietzsche e de estudiosos
mais contemporâneos como Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. Trata-se da noção da
primazia da metáfora, defesa que tem início especialmente com o trabalho do filósofo,
historiador e jurista italiano Giambattista Vico (1668-1744).
A principal obra de Vico entre uma vasta produção escrita é Principii di
Scienza Nuova, com sua primeira edição lançada em 1725, na qual o filósofo defende, entre
várias outras ideias, a tese da linguagem literária e metafórica como sendo a linguagem
primeira, e não posterior ou secundária à linguagem literal. Tomando a tradução inglesa
dessa obra como referência, em sua terceira edição datada de 1999, vemos que Vico
considera que todas as figuras de linguagem podem ser reduzidas a quatro tipos: metáfora,
metonímia, sinédoque e ironia, e, além disso, o autor derruba a clássica defesa de que a
expressão poética é posterior e secundária em relação à escrita em prosa
54
. Nessa obra,
Vico não desvincula a metáfora da linguagem literária, e a importância desse trabalho
reside especialmente no fato de mostrar que a utilização de metáforas não é uma atividade
subsidiária na linguagem verbal. Afirma o autor: “Falando de uma forma geral, a metáfora
constitui a maior parte do vocabulário em todas as línguas”
55
(VICO, 1999, p. 181).
Como considera a maioria dos estudiosos da metáfora, Vico afirma que a
função desta é transportar o sentido de coisas de um determinado tipo para coisas de outro
tipo. O filósofo italiano, no entanto, estende essa noção quando apresenta a ideia de que a
metáfora confere sentido ao que supostamente não tem sentido, bem como confere
sentimento a seres que não o têm (inanimados); através da metáfora, os poetas criam as
53
O jansenismo é um movimento que nasceu com o holandês Cornélio Jansênio (1585-1638), que abalou os
dogmas da Igreja Católica. Buscava especialmente nas obras de Santo Agostinho (354-430) uma
possibilidade de conciliação entre as ideias do catolicismo e da Reforma protestante.
54
Cf. Vico (1999, p. 162).
55
No original: “Generally speaking, metaphor makes up the bulk of vocabulary in all languages”.
87
fábulas, dotando corpos físicos de capacidades sensíveis e emocionais
56
. Esta ideia de Vico
adianta o que séculos depois é explorado minuciosamente em termos da importância da
metáfora na criação de fábulas e narrativas, tema que também será trabalhado por nós ao
final desta tese.
Outro estudioso que também exerceu grande influência nos estudos da
linguagem do ponto de vista filosófico foi John Locke (1632-1704). Filósofo, cientista
político e médico inglês, exerceu enorme influência nos pensadores do seu tempo e
constituiu importante referência teórica especialmente para líderes políticos a partir do
século XVIII. Cânone incontestável do Iluminismo, Locke é famoso pela defesa da teoria
da tabula rasa, segundo a qual o homem é considerado como uma folha de papel em
branco ao nascer, e as suas experiências sensoriais de mundo vão preenchendo essa folha à
medida que o indivíduo vive.
O empirismo de Locke se manifesta também nos estudos da linguagem.
Sobre ideias, palavras e associações de significados, o autor afirma o seguinte:
Algumas de nossas ideias têm uma natural correspondência e conexão
entre si (...). Ao lado disso existe outra conexão de ideias totalmente
devida ao acaso ou costume; ideias que em si mesmas não são de todo
próximas, vêm a ser tão unidas em algumas mentes humanas, que é muito
difícil separá-las; elas sempre se mantêm juntas (LOCKE, 1819, p. 417-
418)
57
.
A respeito do fragmento acima, Brittan (2003, p. 129) ressalta que o que
Locke chama de acaso ou costume “parece indicar que a interpretação depende do contexto
do interpretante, e isso é absolutamente crucial para o moderno debate sobre ‘significado’ e
resposta do leitor.”
58
A importância do contexto na associação de ideias que permeia a criação de
metáforas bem como a questão da corporificação ou corporeidade – fenômeno muito
conhecido na LCog através do termo embodiment ficam patentes nesta sequência
apresentada por Locke:
56
Uma exposição sucinta das ideias de Vico em relação às metáforas é bem apresentada no artigo de Zir
(2009).
57
No original: “Some of our ideas have a natural correspondence and connexion one with another (…).
Besides this there is another connexion of ideas wholly owing to chance or custom; ideas that in themselves
are not at all of kin, come to be so united in some men’s minds, that it is very hard to separate them; they
always keep in company”.
58
No original: “seems to indicate that interpretation depends upon the context of the interpreter, and this is
absolutely central to the modern debate on ‘meaning’ and reader response.”
88
Essa forte combinação de ideias, não aliadas pela Natureza, a mente faz
nela própria voluntária ou ao acaso, e então ela surge em diferentes seres
humanos de modo bem diferente, de acordo com suas diferentes
inclinações, educação, interesses etc. O costume estabelece hábitos de
pensamento e raciocínio, bem como de determinação da vontade e de
movimentos corporais (LOCKE, 1819, p. 418).
59
Ainda dentro de um raciocínio eminentemente lógico, em 1892, o
matemático alemão Gottlob Frege instaura um modelo de interpretação do sentido que
primordialmente não apresentava nenhuma pretensão de análise da linguagem verbal, no
qual se inserem todos os tipos de expressão linguística, inclusive metáforas, perífrases,
epítetos etc. A ênfase de Frege é a existência de um triângulo sígnico em cujos vértices se
situam os seguintes elementos: Sinn (sentido), Bedeutung (referência, o objeto do discurso)
e Zeichen (expressão linguística)
60
. Através desse modelo, depreende-se que o sentido é
estabelecido na relação entre a expressão utilizada e o próprio objeto. Essa teoria, embora
pouca inovação direta tenha trazido para os estudos da metáfora, foi um divisor de águas
dentro dos estudos da linguagem – e consequentemente contribuiu para uma melhor
compreensão do fenômeno de processamento dos sentidos, inclusive o metafórico por
dois motivos: primeiro, porque se opôs radicalmente à lógica binária, que entendia que o
sentido se atrelava diretamente à palavra ou expressão; depois, porque incorporou um
importante elemento no processamento do sentido, o objeto.
3.4 O século XX e o surgimento da noção de metáfora conceitual
Na segunda metade do século XX, vários estudos são empreendidos com
foco no aspecto cognitivo. Essa característica se faz sentir em várias áreas do
conhecimento humano, e não ocorre diferente em relação aos estudos da linguagem. Com
Noam Chomsky e seus sucessores, conforme vimos anteriormente, o processamento mental
da linguagem é o centro da atenção das pesquisas linguísticas. Essa preocupação com o
59
No original: “This strong combination of ideas, not allied by nature, the mind makes in itself either
voluntary or by chance; and hence it comes in different men to be very different, according to their different
inclinations, education, interests, &c. Custom settles habits of thinking in the understanding, as well of
determining in the will, and of motions in the body”.
60
No artigo original em alemão Über Sinn und Bedeutung, o autor faz uma análise minuciosa de vários
exemplos de expressões e sentenças utilizando esse triângulo sígnico. Cf. tradução do artigo para o português
em Frege (1978, p. 61-86).
89
aspecto mentalista da linguagem vem desembocar nos estudos cognitivos, e com o advento
da Gramática Cognitiva de Langacker esse espaço se consolida, desenvolvendo-se cada vez
mais nos últimos decênios.
Em 1979, é amplamente difundida uma noção explicativa sobre o
funcionamento da linguagem humana através de um clássico artigo de Michael Reddy.
Segundo o autor, as palavras são concebidas como contêineres das ideias, e estas são
transmitidas como que passando por um tubo de indivíduo para indivíduo. Dessa forma, as
palavras podem ser entendidas como vazias de sentido ou plenas de significado, e o
processo de transmissão de ideias pode ser entendido como susceptível a quaisquer
vicissitudes picas da passagem de objetos por um canal. É sobre essa noção que Reddy
desenvolve o que ele denomina “metáfora do tubo” (conduit metaphor)
61
.
Finalmente, em 1980, foi publicada uma obra que revolucionou o
pensamento acerca da metáfora, inclusive alargando a sua concepção e relacionando-a à
experiência corporal, cultura, usos e costumes dos indivíduos. Lakoff e Johnson (1980)
defendem a ideia de que as metáforas não são recursos especiais de linguagem, como era
costume supor, específicos da linguagem literária ou retórica, mas fazem parte da
linguagem corriqueira. E, mais do que isso, a metáfora também está presente no
pensamento e nas ações humanas, não sendo tão somente um aspecto da linguagem verbal;
nosso sistema conceitual é metafórico por natureza. O homem pensa, age e comunica
através de metáforas.
Os autores apresentam metáforas fundamentais, a partir das quais muitos
elementos comunicativos como expressões linguísticas, gestos e posturas são criados,
como “para cima é bom; para baixo é ruim”, “argumentar é lutar”, “tempo é dinheiro”,
“ideias são objetos”, “palavras são contêineres”, “abstrato é concreto”, “seres abstratos são
entidades físicas”, “comunicar é enviar” etc. A título de exemplo, a primeira metáfora
orientacional desta lista se manifesta através de uma série de expressões linguísticas (A
bolsa de valores fechou em alta, Fulano está no fundo do poço, Beltrano está em alto
astral, Ela se encontra deprimida (= em depressão), Subir na vida, Chegar ao topo da
carreira, Fazer parte do alto escalão, Hoje estou meio down, Os planos caíram por terra),
de gestos (polegar apontado para cima para indicar estado bom, polegar apontado para
baixo para indicar estado ruim; referência ao céu para indicar o paraíso religioso, referência
61
Cf. Reddy (1979).
90
ao subterrâneo para indicar o inferno) e de posturas (ficar de cabeça erguida é bom, ficar
cabisbaixo é ruim). Uma importante ideia defendida por Lakoff e Johnson é que não existe,
a rigor, nenhum tipo de necessidade humana para se operarem tais conceitualizações; o que
existe, e que justifica a concepção de uma ideia em termos de outra, é o apego à cultura da
sociedade em que o indivíduo se encontra, além das suas experiências corporais. A
metáfora orientacional que foi explicada acima, por exemplo, pode ser justificada pela
própria experiência do ser humano, em seu primeiro ano de vida, ao tentar vencer a força
gravitacional e manter-se de pé, em postura ereta.
É importante ressaltar que esses esquemas metafóricos não são
propriamente universais semânticos, como poderia supor algum radical dentro dessa teoria.
Trata-se, na verdade, de tendências de conceitualização manifestadas pelo ser humano de
acordo com fatores ligados à sua vivência, cultura, constituição biológica. Portanto,
apresentam um grau de uniformidade bastante considerável dentro da espécie humana.
Existem casos que fogem a essa padronização, justamente por estarem
ligados a culturas que apresentam uma maneira particular de vislumbrar certos conceitos.
Por exemplo, quando se concebe o tempo em termos de espaço, como vários estudiosos
salientaram entre eles Lakoff e Johnson encara-se o futuro como o espaço que vem à
frente, e o passado como o espaço deixado para trás. Esse esquema se confirma na nossa
cultura, mas é diferente em algumas outras, como nos mostra Ribas (2008). Em artigo que
resgata aspectos da tradição cultural andina, o autor trata de duas línguas específicas, o
aymara e o quetchua, que são idiomas amplamente difundidos entre os povos dos Andes,
sendo inclusive ensinados nas escolas locais. Segundo Ribas (op. cit., p. 52), a linguagem
desses povos revela uma
curiosa percepção temporal dos povos andinos, igualmente contrária à
visão ocidental, pois a tradição andina “enxerga” o passado à frente e o
futuro às suas costas. Para compreender esse extravagante paradigma (ao
menos aos olhos ocidentais), devemos recorrer às principais línguas
nativas andinas, o quetchua e o aymara, pois elas revelam a curiosa relação
entre passado e futuro na perspectiva desses povos. Nessas línguas, os
termos que se referem ao passado, nayrapacha, ñawpa e ñawpaq,
encontram sua raiz etimológica nos vocábulos nayra e ñawi (aymara e
quetchua respectivamente), que significam olhos. Portanto, o que se
“adiante” é o passado.
Já o vocábulo quepa/quipa (aymara e quetchua), que significa
“costas”, é usado para descrever o futuro. (...) Assim, para essa tradição
andina o futuro está “para trás” e o passado “adiante”.
91
Muitos estudiosos partem da concepção de Lakoff e Johnson e empreendem
estudos arrojados dentro do escopo dessa teoria, destacando-se, entre eles, Kövecses
(2002), que desenvolve muito bem a distinção entre a metáfora conceitual e expressões
linguísticas metafóricas, com todos os desdobramentos dessa diferenciação. No primeiro
capítulo dessa obra, ao conceituar metáfora, Kövecses apresenta um extenso rol de
metáforas conceituais, desenvolvendo, nos capítulos subsequentes, questões básicas sobre
esse fenômeno, como os tipos de metáfora, os sistemas metafóricos, a relação entre
metáfora e metonímia, a universalidade das metáforas conceituais, variação cultural etc.
O surgimento das ideias sobre a metáfora conceitual impulsionou os estudos
desse fenômeno sob a ótica da cognição humana e constituiu um grande impacto
provocado sobre uma tradição de muitos séculos que encarava a metáfora como uma
relação de simples-troca de expressões – com ressalva, obviamente, para importantes
estudos empreendidos por filósofos desde alguns séculos passados que adiantam essa
postura que veio consolidar-se ao final do século XX e que adentra o século XXI.
3.5 O conceito de metáfora gramatical
A noção de metáfora gramatical é utilizada dentro dos estudos da
Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF), idealizada pelo britânico Michael
Halliday. A metáfora gramatical se opõe ao que os praticantes da LSF chamam de
“metáfora lexical”. Esta corresponderia ao tipo de metáfora estudado nas outras linhas de
pesquisa, que não afeta o sistema gramatical de uma língua em suma, todo tipo de
metáfora linguística a respeito de que comentamos até agora. a metáfora gramatical
corresponde a uma mudança de estatuto que ocorre no estrato léxico-gramatical.
De acordo com a LSF, existem três metafunções primordiais, fundamentais
para a compreensão da noção de metáfora gramatical e outros fenômenos da linguagem, as
quais expomos com base em Halliday e Matthiessen (1999) e que sintetizam várias outras
funções na linguagem:
i) ideacional relativa ao conteúdo da linguagem; é o nível no qual, através da linguagem,
construímos nossa experiência intelectual do mundo.
ii) interpessoal – relativa ao estabelecimento de relações entre pessoas na linguagem,
através da qual se firmam papéis sociais, inclusive os comunicativos; nesse nível se define
nosso próprio lugar na sociedade.
92
iii) textual – relativa ao modo como as pessoas organizam a fala e a escrita, de acordo com
as características da situação em que a linguagem é empregada; nesse nível, a linguagem –
elemento criador de informação e articulador do discurso não cria a realidade, mas
também faz parte dela.
Para entendermos o conceito de metáfora gramatical, é preciso compreender
a noção de congruência e não congruência dentro da LSF. O uso congruente da linguagem
corresponde ao uso da realização direta, tomado como padrão, não marcado. A
extrapolação do uso congruente acarreta consequências no sistema linguístico, produzindo
uma tensão. A formação de uma metáfora gramatical enquadra-se justamente nesse
contexto de tensão.
A metáfora gramatical pode acontecer dentro das metafunções ideacional e
interpessoal. Exemplifiquemos cada uma delas.
No uso congruente da linguagem, existem papéis semântico-discursivos
relacionados a cada categoria no nível léxico-gramatical
62
: os verbos são relacionados com
processos, os substantivos com participantes do discurso, os adjetivos com qualidades e as
conjunções com relações lógicas. Numa realização direta, enunciaríamos, por exemplo:
(13) A Santillana comprou
as editoras Moderna e Salamandra.
Se, no lugar dessa sentença em que a ação é expressa por meio de um verbo,
utilizarmos a nominalização, como abaixo:
(14) A compra
das editoras Moderna e Salamandra pela Santillana
63
estaremos diante de uma metáfora gramatical no nível ideacional.
A metáfora gramatical na metafunção interpessoal acontece quando não se
usa o modo congruente num determinado enunciado. Da mesma forma como acontece com
as categorias léxico-gramaticais, existem relações diretas entre oração declarativa e
declaração, oração interrogativa e pergunta, oração imperativa e comando. Ao utilizarmos
uma declarativa ou interrogativa para realizar o modo imperativo, por exemplo, estamos
62
Nível que se situa entre outros dois, de acordo com a teoria da LSF: o nível fonológico/grafológico e o
nível semântico-discursivo.
63
Exemplo baseado em trecho de corpus utilizado na dissertação de mestrado de Novodvorski (2008), em
que o autor realiza uma extensa análise da representação de atores sociais, na linha da LSF.
93
diante desse tipo de metáfora. É o caso de empregarmos expressões do tipo “Você deve
fazer tal coisa.” ou “Você pode fazer tal coisa? exprimindo uma ordem ou comando.
Nitidamente esse tipo de metáfora possui uma correlação direta com a clássica teoria dos
atos de fala de Austin (1962).
3.6 O conceito de metáfora sistemática
Embora a área de estudos de metáfora sistemática não se tenha consolidado
propriamente como uma teoria, ela apresenta um programa de estudos bastante promissor.
Essa linha resulta praticamente de algumas questões levantadas em relação à metáfora
conceitual (de Lakoff e Johnson e outros) somadas a alguns conceitos e aspectos utilizados
na LCorp. Nascida das ideias de Lynne Cameron, essa abordagem se apoia nas pesquisas
empreendidas por grandes nomes como Bakhtin, Vygotsky, Firth e Sinclair.
Em síntese, a metáfora sistemática corresponde ao uso habitual de
construções metafóricas, evidenciado através de metodologias de estudo da língua em uso,
com o objetivo de entender o comportamento de indivíduos e grupos específicos, bem
como de determinados tipos de discurso. Berber Sardinha (2007, p. 37-38) esclarece que
o nome metáfora sistemática advém da crença de que o ponto de partida
devam ser as metáforas recorrentes, que sistematicamente indiquem que os
participantes de alguma interação estão ativando algum tipo de
representação metafórica mental. O principal ponto dessa abordagem é a
primazia dada à metáfora em uso. (...) Na metáfora sistemática,
podemos fazer alegações de que os usuários da língua acessam alguma
metáfora abstrata e mental se houver várias instâncias de uso de metáforas
linguísticas (expressões metafóricas) que as indiquem. Ou seja, antes de
tudo, é preciso uma ocorrência sistemática de metáforas linguísticas para
podermos alegar que alguma metáfora mental está em jogo em
determinado contexto.
Em Cameron (2008, p. 45-62), a autora descreve o que acontece com as
metáforas a partir do momento em que elas são empregadas pela primeira vez num
determinado discurso. Cameron se baseia em duas situações de fala diferentes: uma num
contexto didático em sala de aula e outra num discurso de conciliação, em que se
encontram duas pessoas, sendo uma delas a responsável pela morte por atentado do pai da
outra. A autora mostra que a mudança da natureza das metáforas em uso se dá em
diferentes níveis. Partindo da análise dos veículos (termos metafóricos do domínio-fonte),
94
Cameron descreve os procedimentos que acontecem nesses discursos, que se resumem na
repetição de veículos, na sua relexicalização, na explicação da metáfora e no contraste
(com o emprego de termos antonímicos ou contrastantes). À medida que transcorre o
discurso, metáforas do tipo “a vida é uma viagem” vão sendo modificadas através dos
procedimentos acima, especializando-se de acordo com a situação, diferindo-se nesse
ponto das metáforas conceituais de Lakoff e Johnson (1980), cuja diferença crucial a autora
aponta nos seguintes termos:
A teoria da metáfora cognitiva estabelece que metáforas conceituais são
mapeamentos estáticos, fixos entre os domínios tópico (ou alvo) e veículo
(ou fonte). Quando nós estudamos a metáfora no contexto dinâmico do uso
da linguagem, nossa preocupação é com os mapeamentos linguísticos que
são adaptativos e mutáveis. Esses são acompanhados por sucessivos usos e
mudanças no termo que se constitui como veículo, além de palavras e
sentenças relacionadas (CAMERON, 2008, p. 46)
64
.
Esse procedimento de análise é bastante próximo ao empreendido por
Goatly (1997), com a diferença de que este realiza análises baseadas na teoria da relevância
e na teoria funcional, oferecendo um modelo de compreensão de como a metáfora funciona
em situações comunicativas reais. Além de discutir os limites do sentido literal e
metafórico, Goatly realiza análises sobre vários gêneros diferentes, incluindo conversações,
reportagens, novelas, peças e poemas literários.
3.7 A metáfora analisada sob o prisma da LCorp
Esta seção destina-se a apresentar os pressupostos básicos da pesquisa
linguística baseada em corpora, sendo importante salientar que não se trata propriamente de
um segmento histórico dentro dos estudos da metáfora, nem tampouco um programa de
pesquisa exclusivo dos estudos metafóricos. Inserimos este assunto no presente capítulo
porque, de fato, a aplicação de métodos da LCorp com vistas ao tratamento da metáfora
tem proporcionado avanços notáveis, e cabe-nos dar uma mostra desses avanços.
Nas últimas décadas, têm crescido em larga escala os estudos linguísticos
baseados em dados autênticos de linguagem, seja na modalidade oral ou escrita. Os
64
No original: “Cognitive metaphor theory holds that conceptual metaphors are static, fixed mappings
between Topic (or target) and Vehicle (or source) domains. When we study metaphor in the dynamic context
of language use, our concern is with linguistic mappings that are adaptive and changing. These are tracked by
successive uses of and changes in the Vehicle term, and related words and phrases.”
95
avanços na área de Informática vêm proporcionando ganhos incomensuráveis nesse
aspecto, fazendo com que a LCorp enriqueça-se cada vez mais em termos de consistência
técnica, teórica e metodológica, impulsionando o nível das pesquisas em todas as áreas da
linguagem.
No Brasil, pesquisas nesse campo têm alcançado muito êxito,
principalmente com a criação de programas específicos para análises linguísticas, como os
etiquetadores, concordanciadores etc. Juntamente a isso, a montagem e o incremento de
extensos bancos de textos disponíveis para análise os corpora têm proporcionado às
nossas pesquisas enormes vantagens.
Berber Sardinha (2004) oferece uma boa visão desse tipo de pesquisa,
reunindo os aspectos fundamentais para os estudos baseados em corpora, desde o histórico
sobre essa área, a descrição de bancos de textos, até os detalhes de ordem técnica para
utilização de ferramentas eletrônicas. Nas palavras do próprio autor:
um debate na definição do status da área: a Linguística de
Corpus é disciplina ou metodologia? Claramente, a Linguística de Corpus
não é uma disciplina tal qual psicolinguística, sociolinguística ou
semântica, pois seu objeto de pesquisa não é delimitado como em outras
áreas. A Linguística de Corpus não se dedica a um assunto definido (...).
Ao contrário, ocupa-se de vários fenômenos comumente enfocados em
outras áreas (léxico, sintaxe, textura). É então uma metodologia da qual
outras áreas podem se fazer valer? A princípio, sim. (...)
Se a Linguística de Corpus é metodologia ou não, depende da
definição de metodologia que está sendo usada. Entendendo metodologia
como instrumental, então é possível aplicar o instrumental da Linguística
de Corpus livremente e manter a orientação teórica da disciplina original.
(BERBER SARDINHA, 2004, p. 35-36)
Uma clara contribuição dessa chamada “metodologia” para a Linguística é o
fato de o pesquisador lidar com dados reais da linguagem, e não chegar a conclusões
baseadas em exemplos construídos artificialmente, ainda que correspondendo à intuição
dos falantes. E mais: com esse procedimento, o número de informações com que o
linguista é capaz de lidar é inúmeras vezes maior, alcançando enorme fidedignidade entre
as conclusões alcançadas em relação a um corpus e as conclusões que podem ser imputadas
à língua como um todo. Enfim, quase todos os estudos quer da linha diacrônica, quer da
sincrônica encontram na LCorp um suporte jamais alcançado na história da pesquisa em
linguagem.
96
Como os demais temas de pesquisa, os estudos sobre a metáfora também
voltam os olhares para as técnicas e métodos proporcionados pela LCorp, especialmente
quando se pretende investigar as ocorrências dessa modalidade de linguagem no cotidiano
dos usuários da língua. Berber Sardinha (2009, p. 1) destaca, na introdução de um texto
ainda não publicado, que
Tem existido um crescente interesse na utilização de corpora na pesquisa
sobre metáfora nos últimos anos, e como resultado disso um certo número
de ferramentas e técnicas tem sido proposto e utilizado para identificação
de metáforas. No entanto, muito pouco se sabe a respeito de suas
habilidades para recuperar todas e somente metáforas a partir dos
corpora.
65
Apesar dessa dificuldade, é inegável a contribuição que modernas
tecnologias vêm dando à ciência no âmbito do estudo da metáfora. Questões jamais
imaginadas até então passam a ser investigadas, como: qual a relação entre a metáfora e o
processamento cognitivo humano? Quais são os limites entre o sentido literal e não literal
na linguagem? Em que situações os falantes fazem uso de construções metafóricas em vez
das correspondentes construções não metafóricas? Qual o grau de ocorrência de
construções metafóricas numa dada língua?
Muita contribuição no sentido de possíveis respostas a esses
questionamentos vem sendo dada por dois grandes estudiosos do assunto: Anatol
Stefanowitsch e Stefan Gries. Stefanowitsch (2005), por exemplo, realiza um estudo de
extrema relevância com vistas a explicar se o uso da linguagem metafórica é motivado por
questões estilísticas ou por princípios cognitivos. O autor desenvolve essa questão
analisando as ocorrências de algumas expressões metafóricas da língua inglesa,
comparando as situações de uso das mesmas em contraposição à situação de uso das
respectivas expressões não metafóricas.
Nesse artigo, o autor defende a hipótese cognitiva sobre a metáfora, segundo
a qual ela é um elemento sistemático e pervasivo na linguagem cotidiana, um fenômeno
conceitual/mental que nos possibilita a compreensão de uma ideia (mais abstrata) em
termos de outra ideia (mais concreta), em oposição à hipótese estilística, cujos adeptos
defendem que a metáfora é um recurso extraordinário de linguagem, uma figura de
65
No original: “There has been growing interest in using corpora in metaphor research in recent years, and as
a result a number of tools and techniques have been proposed and used for metaphor identification. However,
very little is known about their ability to retrieve all and only metaphors from corpora.”
97
linguagem empregada para obter efeitos estéticos, largamente empregada na literatura,
retórica e outros registros que utilizam a linguagem como “ornamento” das ideias
(STEFANOWITSCH, 2005, p. 163). Como argumentos em favor da hipótese cognitiva,
são apresentados os seguintes:
i) se a metáfora fosse um fenômeno estilístico simples, ela não apresentaria tão alto grau de
sistematicidade e ocorrência;
ii) se a metáfora fosse um recurso ornamental da linguagem, existiria sempre uma
expressão literal correspondente a cada expressão metafórica;
iii) nas metáforas, o mapeamento é sempre unidirecional, acontecendo do domínio mais
concreto para o mais abstrato, e não vice-versa. Se a metáfora fosse um recurso puramente
estilístico, a unidirecionalidade seria acidental, e não sistemática.
A ideia central sobre a linguagem metafórica na hipótese cognitiva é que o
seu uso pode reduzir dificuldades de processamento do sentido. Assim, a metáfora pode ser
descrita como um elemento que oferece “suporte conceitual” para a nossa apreensão de
conceitos complexos. Daí o fato de concebermos os conceitos mais abstratos dentro de um
domínio mais concreto.
66
Estudos desse porte desmistificam a ideia de que o modo básico de
utilização da linguagem humana é o uso do sentido literal e que o sentido metafórico é um
mero correspondente opcional daquele. Tais estudos vêm demonstrando que a linguagem
metafórica – e, por extensão, o raciocínio metafórico – é um elemento essencial da
cognição humana. Gibbs Jr. (2002) expusera em seu artigo que não faz sentido
simplesmente contrapor o sentido literal ao sentido não literal, uma vez que não existe uma
linha divisória entre essas duas formas de processamento do sentido, além de que não
existe uma única forma de sentido literal nem tampouco uma única forma de sentido não
literal. No bojo deste, existem, por exemplo, o sentido metafórico, o idiomático, o irônico,
o metonímico etc. No processamento de uma sentença não literal, diferentes tipos de
sentido são ativados em diferentes pontos da sentença.
Voltando a Stefanowitsch (2005), o autor analisa o grau de distintividade
(distinctiveness) de alguns lexemas, que ele mesmo define como sendo uma “associação
66
Um bom exemplo disso é o fato de conceitualizarmos o tempo (abstrato) em termos de dinheiro (concreto),
no emprego de várias expressões verbais: gastar tempo, ganhar tempo, economizar tempo, perder tempo,
ceder tempo, tomar tempo etc. O contrário não ocorre, ou seja, não conceitualizamos dinheiro em termos de
tempo, medindo-o em segundos, minutos, horas etc.
98
estatisticamente significante com um membro de um par de padrões”
67
. Ele toma, a título
de exemplo, as expressões “no coração de” (in the heart of) e “no centro de” (in the centre
of), buscando, por intermédio dos recursos oferecidos pela LCorp, os colexemas dessa
expressão num dado corpus
68
. Stefanowitsch (2005, p. 166) chama de “colexema” o
“lexema ocorrente num lugar específico dentro de um padrão”.
69
Stefanowitsch percebe que os colexemas significativamente distintivos da
expressão literal “no coração de” seguida de um sintagma nominal são nomes referentes a
localizações geográficas, tanto na forma de nomes próprios quanto de nomes comuns. Por
outro lado, os colexemas de “no centro de” são nomes bastante heterogêneos referentes a
localizações, tais como partes de construções, móveis e itens domésticos, grupos de
pessoas e partes do corpo.
O autor foi buscar nas premissas da psicologia da Gestalt uma explicação
para essa diferença de uso entre expressões metafóricas e não metafóricas correspondentes,
que foi detectada também na análise de várias outras expressões além das mencionadas
acima. Com base nessas premissas, Stefanowitsch (2005, p. 170) elabora várias assunções,
que ele mesmo afirma, em nota de fim de documento, não serem infalíveis, mas que se
aplicam muito bem aos padrões investigados e oferecem larga adequação dentro dos
estudos da LCorp. Essas assunções são as seguintes:
i) como decorrência do princípio de figura e fundo da Gestalt, conceitos representando
entidades pequenas são menos complexos do que aqueles que representam entidades
grandes, uma vez que os objetos são mais fáceis de conceitualizar na sua totalidade;
ii) conceitos representando entidades que têm formas simples ou limites definidos são
menos complexos do que aquelas de formas complexas ou limites difusos, por serem mais
facilmente delineáveis;
iii) conceitos de objetos percebidos holisticamente são mais simples do que conceitos de
detalhes ou partes componentes do todo;
iv) conceitos representando ações atribuíveis aos seres humanos são mais simples do que
processos não atribuíveis a eles, porque aquelas são mais próximas da nossa experiência
diária e da nossa interação com o ambiente;
67
No original: “statistically significant association with one member of a pair of patterns”
(STEFANOWITSCH, 2005, p. 166).
68
Trata-se do BNC – British National Corpus, que Berber Sardinha (2004, p. 8) caracteriza como um dos
principais corpora da língua inglesa, criado em 1995, composto por 100 milhões de palavras do inglês
britânico escrito e falado.
69
No original: “lexeme occurring in a particular slot in a pattern”.
99
v) conceitos representando objetos concretos são menos complexos do que os que
representam abstrações, uma vez que aqueles são mais acessíveis à nossa experiência
direta.
Retomando a ideia do autor de que as metáforas servem de suporte
conceitual para a nossa compreensão de conceitos mais complexos, Stefanowitsch observa
que o emprego da expressão metafórica “no coração de” é restrito a localizações
geográficas, que são objetos grandes; portanto, de conceitualização mais complexa,
conforme a premissa (i) acima. Já a expressão literal “no centro de” se aplica a todo tipo de
nomes locativos, que se referem a objetos bem menores que as localizações geográficas;
portanto, mais fáceis de serem conceitualizados. A premissa (ii) acima também reforça essa
conclusão, uma vez que a percepção dos indivíduos em relação a cidades, estados, países
etc. não envolve a visão de limites definidos como na percepção de peças de mobiliários e
outros itens domésticos, por exemplo. Daí a recorrência da expressão metafórica no
primeiro caso, de acordo com o autor.
Diante dessas considerações realizadas no âmbito da LCorp, evidencia-se
uma clara concepção da metáfora que vai de encontro à tradição aristotélica, rechaçando a
questão estilística em que se envolve esse fenômeno da linguagem e valorizando os pontos
defendidos pela gramática baseada no uso e pela gramática cognitiva. Por outro lado, o
próprio Stefanowitsch (2005, p. 174-175) afirma que
Isso não significa que os fatores estilísticos podem ser completamente
ignorados na escolha entre as duas alternativas; claramente, a expressão no
centro de SN é estilisticamente neutra e igualmente encontrada em todos
os gêneros e registros, enquanto no coração de SN é associada a gêneros
escritos. Então, num nível bem geral, considerações estilísticas claramente
desenvolvem um papel. No entanto, esse papel não pode ser tomado como
suporte para a hipótese estilística, uma vez que considerações estilísticas
meramente influenciam a disponibilidade da escolha entre a expressão
literal e a metafórica elas não surgem para influenciar a escolha por si
própria.
70
70
No original: “This does not mean that stylistic factors can be completely ignored in the choice between the
two alternatives; clearly, the expression in the center of NP is stylistically neutral and likely to be found in all
genres and registers, while in the heart of NP is associated with written genres. Thus, at a very general level,
stylistic considerations clearly play a role. However, this role cannot be seen as support for the stylistic
hypothesis, as stylistic considerations merely influence the availability of the choice between the literal and
the metaphorical expression – they do not appear to influence the choice itself.”
100
Stefanowitsch utiliza em várias de suas pesquisas um procedimento bastante
comum na LCorp, que é a análise dos colocados, isto é, as palavras que ocorrem com
frequência considerável na vizinhança de alguns nódulos (palavras e expressões)
escolhidos para análise. Com esse procedimento, numa extensão da análise colocacional,
Stefanowitsch e Gries desenvolveram um método através do qual é investigada a interação
de lexemas e as estruturas gramaticais a eles associadas, com aplicação no estudo de
expressões linguísticas de vários níveis (palavras, expressões fixas, estruturas de
argumento etc.). A esse procedimento os autores chamam de análise colostrucional
(collostructional analysis)
71
.
Stefanowitsch e Gries (2003, p. 210) afirmam que “recentemente (...) o foco
dentro da linguística de corpus mudou para uma visão mais holística da língua”
72
,
chamando a atenção para o fato de que gramática e léxico não são elementos
fundamentalmente diferentes, da maneira como essa antiga dicotomia tem sido vista nos
estudos da linguagem, existindo muitas expressões ignoradas ao longo dos tempos que
servem de importantes elos entre esses dois polos. Trata-se de um estudo que toma por
base preceitos da chamada Gramática de Construções, aplicando-se de forma muito
pertinente ao estudo de collocations, chunks
73
e outras expressões linguísticas. Não se trata
especificamente de uma metodologia para estudo da metáfora, mas como a língua é plena
de expressões metafóricas entrincheiradas, esse tipo de estudo também nos é de grande
valia.
3.8 Outros estudos
Muitos estudos que realizam descrições sobre a metáfora e estudos que, em
algum ponto, utilizam a metáfora de algum modo como suporte para análise linguística
vêm sendo realizados, contribuindo para enriquecer a compreensão da linguagem humana
sob os mais diversos prismas. Várias dessas abordagens não foram mencionadas neste
trabalho por se distanciarem mais do nosso objeto de investigação. Porém, revestem-se de
uma importância crucial tanto para uma melhor descrição da estrutura linguística quanto
71
Cf. Stefanowitsch e Gries (2003).
72
No original: “recently (...) the focus within corpus linguistics has shifted to a more holistic view of
language”.
73
Mantivemos aqui os originais em inglês por não existirem, até o momento, boas traduções para esses
termos em português.
101
para uma melhor compreensão de fenômenos que residem além da superfície da língua,
remetendo a fatores contextuais, culturais e sociais mais amplos.
Em Linguística Aplicada, várias pesquisas vêm sendo realizadas abordando-
se a metáfora como elemento de investigação de fatores relacionados ao processo de ensino
e aprendizagem de língua materna e de línguas estrangeiras. Nessa área, a metáfora é
tratada, entre várias outras coisas, como um importante recurso de manifestação de
ideologias acerca da prática docente, do processo de aprendizagem, das instituições etc.
Esse tipo de estudo proporciona ganhos enormes à prática pedagógica, em relação à qual
novas metodologias são elaboradas de forma a atender os objetivos educacionais de forma
mais eficiente e produtiva.
Além disso, existem muitos trabalhos que realizam análises das metáforas
presentes em textos humorísticos, textos políticos, textos religiosos, cartuns etc. Como
exemplos de coletâneas de artigos com esse teor destacamos as obras de Pontes (1990) e de
Paiva (1998), além do artigo de Zanoto (1995), que inter-relaciona a metáfora e o ensino de
leitura, explorando o processo de compreensão de metáforas em textos poéticos e charadas.
3.9 A correlação entre metáfora e metonímia
Nesta seção, vamos nos dedicar à apresentação e discussão de características
de outro recurso de linguagem muito parecido com a metáfora, cujo tratamento em grande
parte também pode ser enquadrado na abordagem desta, não sendo raras as confusões que
ocorrem entre uma e outra. Trata-se da metonímia, que, tanto quanto a metáfora, pode ser
tratada no âmbito estilístico ou cognitivo e cujos limites não são tão claramente
demarcados. Também já foi evidenciada nos estudos linguísticos e filosóficos muitos
séculos, como explicamos mais no início deste capítulo, nascendo da concepção
aristotélica e subsistindo até hoje com várias mudanças de abordagem.
Não vamos apresentar aqui um percurso histórico-evolutivo das concepções
particulares sobre a metonímia, uma vez que o que nos interessa é a sua inter-relação com a
metáfora. Por isso, vamos esboçar um tratamento da mesma no âmbito da LCog e das
representações mentais, sabendo-se que esse recurso de linguagem estará presente também
nas nossas análises textuais. Para isso, aproveitaremos o ensejo para descrevê-la no âmbito
de um fenômeno cognitivo muito importante que também se aplica às metáforas e que
possui forte relação com o processo de MC: a compressão (compression).
102
De fato, a mesclagem, da maneira como já a descrevemos, é uma ferramenta
de compressão por excelência, conforme afirmam Fauconnier e Turner (2002, p. 114). A
compressão ocorre quando projetamos, num mesmo domínio, informações em estado de
fusão que podem encerrar diferentes tempos e espaços, ou apresentar relações
fundamentais de mudanças, intencionalidade, causa e efeito, parte e todo e é
especialmente nestes dois últimos casos que entra em cena a metonímia.
A compressão acontece em várias situações do nosso quotidiano, como, por
exemplo, quando entramos em uma loja, visualizamos um utilitário doméstico e
imaginamos como ficaria aquele objeto em nossa própria casa. Nesse caso, comprimimos a
imagem do objeto na loja e a imagem do ambiente doméstico em questão num espaço.
Nesse exemplo, o processo de compressão pode ser representado da seguinte maneira,
mesclando o objeto no domínio à esquerda com a imagem da casa representada no domínio
à direita:
Figura 13 – Compressão de imagens num mesmo domínio
Também ocorre a compressão no nível das ideias, quando imaginamos, por
exemplo, os efeitos que a fala de um grande líder mundial poderia causar em outros lugares
ou mesmo em outras épocas. E, claro, ocorre a compressão também na linguagem, quando
se utilizam expressões do tipo “Canadá recebe estudantes de braços abertos”
74
, “Aids mata
uma criança a cada 15 minutos”
75
, as quais envolvem, respectivamente, as relações parte-
74
Transcrito de <http://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/cursos-exterior/materia_404276.shtml>.
Acesso em: 12 fev. 2010.
75
Transcrito de <http://www.sistemas.aids.gov.br/imprensa/Noticias.asp?NOTCod=62907>. Acesso em: 12
fev. 2010.
103
todo (o nome do país representa os habitantes, os homens do Governo, as pessoas do
sistema educacional etc.) e causa-efeito (a AIDS seria, a priori, uma consequência –
crianças morrem de AIDS –, e no enunciado aparece como um agente causador de mortes).
O fenômeno da compressão, que permeia a formação de metáforas e
metonímias, é atrelado ao que Fauconnier e Turner (2000) chamam de “descompressão”
(decompression), ou seja, a capacidade que os indivíduos possuem de fazer o trajeto
inverso da mistura de elementos, um processo de “esticamento” a partir do domínio que
apresenta a compressão. Tomemos o seguinte enunciado para visualizarmos esse processo:
(15) Somos pentacampeões mundiais e nunca deixamos de participar de uma Copa do
Mundo.
76
Ao enunciar-se (15), é estabelecida uma relação metonímica através da qual
o “nós” se apresenta na forma de uma compressão que envolve indivíduos presentes e
ausentes na atualidade, não jogadores da Seleção Brasileira de Futebol, mas também
qualquer cidadão brasileiro. A partir da mescla, somos capazes de operar a descompressão,
refazendo o caminho contrário de sua formação.
Fazemos aqui, porém, a mesma observação que apresentamos em relação
aos princípios da otimalidade (FAUCONNIER; TURNER, 1998), em relação ao
desempacotamento (capítulo 2, seção sobre a teoria da MC): acreditamos que não há como
proceder à descompressão de elementos em todas as situações, especialmente nos casos em
que temos expressões entrincheiradas na nossa língua, da mesma forma que, em várias
situações, não conseguimos refazer todo o percurso dos elementos de uma MC.
Fauconnier e Turner (2000) apresentam um caso bastante diferente de
compressão, envolvendo qualificação de indivíduos. Enunciados do tipo: “Ele parece
violento”, “Ele parece um criminoso” etc., para os autores, constituem-se casos típicos de
compressão, nos quais o indivíduo denotado por “ele” assume traços de um indivíduo
violento, criminoso etc.
77
76
Transcrito de <http://www.museudofutebol.org.br/historia/salas/copas-do-mundo>. Acesso em: 13 fev.
2010.
77
Esses e outros casos são bem explanados por Fauconnier, além das publicações escritas, em palestra
proferida por ocasião da Ninth Conference on Conceptual Structure, Discourse, and Language, ocorrida em
18/10/2008, intitulada “How Compression Gives Rise to Metaphor and Metonymy”, promovida pelo
Departamento de Ciência Cognitiva da Case Western University, disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=kiHw3N6d1Js>. Acesso em: 14 fev. 2010.
104
Um outro item que clama por grande interesse pela descrição do fenômeno
da compressão é apresentada por Sweetser (2000). A autora mostra a relação que esse
fenômeno possui com o aspecto da performatividade, baseando-se na descrição de rituais
que comprimem ações presentes e futuras. Ela exemplifica com um ritual em que se encena
uma caça a búfalos bem sucedida, realizado antes de acontecer a caça real. Com essa
prática, o sucesso da caça (diga-se, o espaço de entrada 2) é influenciado pelo sucesso
ocorrido no espaço da simulação da caça (diga-se, espaço de entrada 1), numa típica
relação de causa e efeito.
Retomando especificamente a questão da metonímia, vejamos algumas
características fundamentais nos dizeres de estudiosos de renome internacional no assunto.
Conferimos destaque, aqui, a importantes pesquisas realizadas na Espanha, nas quais se
destacam Antonio Barcelona (Universidade de Murcia) e Francisco José Ruiz de Mendoza
(Universidade de La Rioja).
Barcelona desenvolve várias ideias sobre metáforas e metonímias no âmbito
da cognição. Afirma o autor que
A metonímia tem recebido muito menos atenção por parte dos linguistas
cognitivos do que a metáfora, embora ela seja provavelmente ainda mais
básica para a linguagem e a cognição. A metonímia é uma projeção
conceitual através da qual um domínio experiencial (o alvo) é parcialmente
entendido em termos de um outro domínio experiencial (a fonte) incluído
no mesmo domínio experiencial.
78
(Cf. BARCELONA, 2000a, p. 4)
O que particulariza a metonímia, conforme podemos depreender da
definição de Barcelona acima, é que o domínio-fonte e o domínio-alvo que podem ser
vislumbrados também na teoria da metáfora possuem a mesma natureza experiencial, ou
seja, as informações se encontram num mesmo domínio cognitivo. Esboçando uma
representação para a expressão abaixo, muito comum nos dias atuais:
(16) Apenas um rosto bonito na TV
78
No original: “Metonymy has received much less attention from cognitive linguists than metaphor, although
it is probably even more basic to language and cognition. Metonymy is a conceptual projection whereby one
experiential domain (the target) is partially understood in terms of another experiential domain (the source)
included in the same common experiential domain.” (grifo do autor).
105
teríamos o seguinte (entendendo-se “pessoa”, nesse caso, em relação ao corpo físico do
qual o “rosto” faz parte –, e não em termos de comportamentos, personalidade etc.):
domínio-alvo
domínio-fonte
Figura 14 – Representação metonímica envolvendo os domínios fonte e alvo
Não queremos estender aqui a questão da maior ou menor importância da
metonímia em relação à metáfora para os estudos cognitivos, aventada nos dizeres acima
de Barcelona (2000a), mas é importante destacar que Mendoza também compartilha desse
pensamento. Em entrevista concedida a Joseph Hilferty em 2005, afirma o pesquisador que
“muito mais trabalho tem sido realizado em relação a molduras, protótipos, metáfora e
esquemas imagéticos, enquanto muito pouca atenção tem sido dispensada à metonímia”
79
.
Além disso, também para Mendoza, “a metonímia é talvez um fenômeno ainda mais
central para a linguagem do que a metáfora”
80
.
Barcelona, também em entrevista a Hilferty, justifica, de certa forma, o
interesse maior que existe no estudo das metáforas em comparação com o das metonímias
em vista da maior abrangência alcançada pelo primeiro. O autor afirma o seguinte:
O papel da metáfora parece ser mais “genérico”, no sentido de que a
maioria das construções gramaticais podem ser vistas como extensões
metafóricas dentro de domínios abstratos da nossa esquematização de
experiências corporais básicas (...). A metonímia, por outro lado, parece
ser mais diretamente envolvida no campo da forma gramatical e do
significado, isto é, na motivação de novos sentidos de formas gramaticais,
79
No original: “so much work had gone into frames, prototypes, metaphor, and image schemas while so little
attention had been paid to metonymy” (HILFERTY, 2005, p. 3).
80
No original: “[I realized that] metonymy was perhaps even a more central phenomenon to language than
metaphor” (ibid., p. 4).
rosto
pessoa
106
na motivação para a reclassificação transitória ou permanente de certas
construções gramaticais (...), ou (com menos frequência) na motivação de
formas de um lexema ou uma construção (...). A metonímia parece ser
particularmente pervasiva na estrutura léxico-gramatical.
81
que se levar em consideração que falta até hoje, dentro dos estudos
cognitivos, uma base que seja capaz de discriminar uma tipologia teórica para a metonímia,
além de dizer que são estabelecidas relações como causa e efeito, parte e todo, conteúdo e
continente, autor e obra etc. entre os domínios envolvidos na compressão. O próprio papel
referencial que caracteriza em grande parte esse recurso de linguagem é muito discutido
entre os estudiosos, a ponto de alguns defenderem não se tratar de uma característica
exclusiva das metonímias
82
.
Barcelona (1997, p. 28-30; 2000b, p. 43-44) acrescenta duas situações que
tornam o quadro ainda mais complexo: existem metáforas que são conceitualmente
motivadas por metonímias, e metonímias conceitualmente motivadas por metáforas. Não
se trata de casos em que os estudiosos sejam totalmente acordes, mas na atualidade
Barcelona é um dos que mais têm desenvolvido pesquisas nesse campo, apresentando uma
abordagem bastante consistente, razão pela qual a apresentamos sucintamente aqui.
De fato, encontramos o desenvolvimento desse estudo realizado por
Antonio Barcelona em alguns textos a partir de 1986, quando Lakoff e Kövecses
83
apresentam o esquema ESTAR TRISTE = PARA BAIXO, que serve de suporte para uma
série de expressões em várias línguas, as quais retratam algum tipo de postura corporal
“caída” para retratar situações de infelicidade
84
. Barcelona mostra que existe uma
motivação metonímica para a formação dessas expressões metafóricas. Quando se diz, por
exemplo, em português: “Ele ficou cabisbaixo (= de cabeça baixa)”, “Ela andava com os
81
No original: “The role of metaphor seems to be more ‘generic’, in the sense that most grammatical
constructions can be seen as metaphorical extensions into abstract domains of our schematization of basic
bodily experiences (…). Metonymy, on the other hand, seems to be more directly involved in the extension of
grammatical form and meaning, i.e. in the motivation of the new senses of grammatical forms, in the
motivation of the transient or permanent reclassification of certain grammatical constructions (…), or (less
often) in the motivation of forms of a lexeme or a construction (…). Metonymy seems to be particularly
pervasive in lexicogrammatical structure.” (ibid., p. 8).
82
A esse respeito, ver, por exemplo, Taylor (1989) e Barcelona (1997). Dirven (2002) também trata
exaustivamente da questão tipológica em que se envolvem as metonímias, partindo dos polos metafórico e
metonímico estabelecidos por Jakobson (1956). Para Jakobson, há uma correlação direta entre a metáfora e
operações paradigmáticas baseadas em seleção, substituição, similaridade e contraste, e entre a metonímia e
operações sintagmáticas baseadas em combinação e contiguidade. Dirven, no entanto, amplia esse quadro
através de uma série de análises.
83
Cf. Kövecses (1986) e Lakoff (1987).
84
Esquema metafórico decorrente de outro mais geral aventado por Lakoff e Johnson (1980): “para cima é
bom; para baixo é ruim”.
107
ombros caídos”, “Eles nos fitavam com os olhos baixos”, em que todos os enunciados
denotam situação de tristeza, funciona o seguinte esquema: “cabeça”, “ombros” e “olhos”
estão no domínio-fonte de uma compressão metonímica que atinge o domínio-alvo do
corpo físico inteiro do indivíduo em questão. A parte do corpo representa o todo do
indivíduo, e isso é uma metonímia. Ora, existe uma orientação espacial dentro do domínio
corporal, mas não existe nenhum tipo de orientação espacial no domínio dos sentimentos,
como a tristeza. A partir daí é que se processa a metáfora, quando a postura corporal
constitui-se um domínio que é mapeado com um outro domínio diferente, o da tristeza,
numa típica relação de causa (o sentimento) e efeito (corpo caído). Temos aí, então, a
metáfora conceitualmente motivada pelo esquema metonímico anterior.
Destacamos, em relação à explicação acima, que a mencionada
anterioridade de formação do esquema metonímico em relação ao mapeamento metafórico
é uma questão de entendimento sobre o processo de formação semântica do enunciado.
Isso não implica afirmar que os usuários de uma língua têm consciência desse processo
até porque se trata de uma questão ainda pouco estabelecida mesmo no campo da ciência –
e nem que, na prática, aconteça primeiro um processo para depois suceder o outro. De toda
forma, da maneira como é apresentado, esse modelo é um grande avanço para a
compreensão do procedimento cognitivo da linguagem, revelando que por detrás da
formação de metáforas existem vários fatores, além dos mapeamentos stricto sensu, que
devem ser focalizados e que também entram em jogo quando da elaboração das mesmas.
Retomando a outra situação descrita por Barcelona, o autor explica que,
inversamente ao apresentado acima, existem metonímias somente compreensíveis a partir
de mapeamentos metafóricos. Barcelona (1997, p. 30-31) exemplifica esse caso lançando
mão do esquema metafórico ATENÇÃO = ENTIDADE SICA (NORMALMENTE
MOVENTE). Por essa entidade física, entende-se algo que normalmente é possível de ser
pego, atraído ou mesmo chamado, e o autor analisa enunciados que, em português, são
semanticamente próximos à expressão metafórica “puxar as orelhas de alguém” – que, fora
do domínio da linguagem verbal, possui o correspondente ato de se puxar uma orelha
quando se quer recriminar sobre alguma atitude reprovável de quem sofre a ação nessa
parte do corpo.
Trata-se de uma metonímia, pois temos aí uma parte do corpo representando
todo o indivíduo o sentido da expressão “puxar as orelhas de alguém” está ligado a uma
intenção no nível pragmático da linguagem de chamar a atenção do indivíduo; é a parte do
108
corpo sendo utilizada como fonte para representar o corpo inteiro. Essa metonímia, no
entanto, acontece com o elemento “atenção” metaforizado em “orelha”, atendendo ao
esquema metafórico ABSTRATO É CONCRETO
85
.
Esses e vários outros casos são muito bem discutidos também por Geeraerts
(2002). O autor procede à análise de vários idioms e compostos na língua holandesa,
utilizando as noções dos eixos sintagmático e paradigmático, mostrando como as metáforas
e as metonímias atuam ao longo desses eixos. A integração entre esses dois recursos é tão
grande e tão produtiva em termos morfossintáticos, que levou a autores como Louis
Goossens e o próprio Geeraerts a adotarem a expressão “metaftonímia” (metaphtonymy)
para se referirem a esse fenômeno
86
.
3.10 Algumas tomadas de posição em face do panorama dos estudos da metáfora
Antes de prosseguirmos no nosso trabalho, partindo para a descrição e
análise dos textos de nosso corpus, convém esclarecer nossas considerações sobre o
conceito de metáfora sobre o qual iremos trabalhar, estabelecendo o nosso recorte teórico,
bem como a abordagem que pretendemos dentre as várias possibilidades oferecidas pela
LCog.
Faremos isso na forma de tópicos, visando a um clareamento prévio das
posturas que empreenderemos frente ao nosso objeto, diante dos mais variados pontos de
vista apresentados nestes capítulos iniciais da tese:
i) Nossa pesquisa se insere claramente nos preceitos da LCog, o que está evidenciado desde
as primeiras linhas deste trabalho, no âmbito das representações mentais. Dessa forma,
eximimo-nos de realizar qualquer empreendimento cujo enfoque, ainda que inserido nos
parâmetros gerais dos estudos de cognição, não esteja voltado para a descrição de como se
processa o sentido na mente humana em termos de representações mentais. Dentro desse
ponto de vista, lançaremos mão, em larga escala, dos conceitos de domínio cognitivo, EM,
MC, mapeamentos e outros que estejam diretamente relacionados a esses, constituindo-se
elementos fundamentais para as nossas análises.
ii) Entre os vários estudos empreendidos no âmbito da LCog que selecionamos para
apresentar neste trabalho, destinamos um capítulo em especial para apresentação dos EM e
85
Também de Lakoff e Johnson (1980).
86
A respeito desse termo, cf. Goossens (2002).
109
da MC em razão da importância que eles terão para as nossas análises e também pela
proximidade de abordagem que faremos nos textos do nosso corpus, coincidindo em
grande parte com o modo como Fauconnier e Turner abordam as representações mentais
em suas análises de frases e textos. A diferença evidente estará na amplitude maior que
empreenderemos no nível da organização textual, como um alargamento dos estudos
desses dois pesquisadores.
iii) Pela exposição feita neste capítulo desde os primórdios dos estudos sobre a metáfora
até as abordagens mais contemporâneas, destacando pontos diferentes – e até divergentes –
sobre ela, é necessário que nos detenhamos um pouco mais nesse aspecto a fim de
delimitarmos bem o nosso objeto de inquirição. Stefanowitsch contrapõe muito bem as
duas visões que se pode ter sobre a metáfora: a estilística, que tem origem em Aristóteles e
perpassou estudos em vários séculos da história da humanidade, tendo sido influenciada
por uma ou outra postura que acrescentou informações especialmente sobre a importância
do contexto, mas permanecendo a ideia central da metáfora como elemento de adorno; e a
cognitiva, que considera a metáfora como um importante recurso de facilitação do
raciocínio, defesa esboçada em estudiosos de alguns séculos atrás e consolidada pelas
pesquisas empreendidas no século XX. Tomaremos por base esta segunda ideia, que se
coaduna plenamente com os propósitos da LCog, empreendida muito bem pelo próprio
Stefanowitsch, por Gries e outros pesquisadores dessa linha. Além de ser esse recurso de
facilitação do pensamento, que promove a acessibilidade a conceitos mais complexos com
a utilização de conceitos menos complexos, a metáfora também manifesta posturas
individuais; os indivíduos, no ato da interlocução, escolhem conceber uma coisa em termos
de outra, de acordo com os seus conhecimentos de mundo, sua história de leitura das coisas
do ambiente ao seu redor, os conhecimentos que eles julgam pré-existentes em seus
interlocutores, as ideologias envolvidas no ato comunicativo etc. Nesse aspecto, tomamos
emprestada a concepção de metáfora de Lakoff e Johnson, restringindo-nos, no entanto, às
metáforas linguísticas, que são o nosso objeto de análise, não nos atendo àquelas que dizem
respeito à corporeidade.
iv) A escolha acima em relação ao conceito de metáfora nos leva a concebê-la como um
recurso de linguagem, e não um elemento ou fenômeno da comunicação humana, que
seriam condizentes com outras abordagens dos estudos da linguagem.
Adotando essas concepções, acreditamos ter feito uma boa delimitação
dentro de todo o arsenal teórico que expusemos anteriormente, estabelecendo o nosso
110
recorte para lidar com a análise de textos. Com isso, acreditamos que vamos estabelecer
um procedimento de pesquisa bastante coerente com os propósitos estabelecidos para este
trabalho, contribuindo de alguma maneira para o avanço das pesquisas na área.
111
CAPÍTULO 4
DESCRIÇÃO E ANÁLISE LINGUÍSTICA DO CORPUS
4.1 Introdução
Uma vez apresentados e discutidos os aspectos gerais da LCog, os
elementos e fatos relacionados à teoria dos EM e da MC e as características da metáfora
sob o prisma de várias escolas com uma breve incursão no estudo das metonímias –,
vamos partir para a descrição e a análise do nosso corpus de textos escritos, atendendo à
nossa proposta de mostrar as inter-relações entre a metáfora e a organização textual.
Neste capítulo, procuraremos aplicar o máximo do arcabouço teórico que
apresentamos nos capítulos precedentes, procurando, ao mesmo tempo, estabelecer um
procedimento de análise cabível a outros textos da ngua portuguesa e ampliar os limites
de estudo da metáfora alcançados até então em relação a aspectos textuais mais amplos.
4.2 Descrição do corpus para análise
Procederemos à análise de textos escritos em língua portuguesa, de forma
que os resultados alcançados possam mostrar-se aplicáveis a uma ampla variedade de
textos dentro da língua. Em outras palavras, nosso objetivo é chegar a resultados que
possam expressar, na máxima medida possível, a realidade da inter-relação entre a
metáfora e a organização textual dentro da modalidade do nosso corpus, mas não se
fechando para os outros tipos de texto. Tendo isso em vista, e começando com um
procedimento que seja favorável à consecução desse intento, partiremos da análise de
112
exemplares do nosso corpus, que vem descrito logo a seguir, e posteriormente aplicaremos
o modelo de tratamento do nosso objeto de pesquisa a outros textos fora do corpus,
testando a viabilidade de adoção da nossa proposta.
Nos estudos da linguagem, acirram as controvérsias em relação aos
parâmetros a serem estabelecidos para a definição sobre tipos e gêneros textuais. Nosso
trabalho não tem como objetivo oferecer algum tipo de contribuição nesse aspecto, mas
como lidaremos diretamente com essa questão, vamos esboçar algumas considerações
nesse sentido.
Os tipos textuais são definidos pela predominância de alguns elementos
linguísticos, a saber: aspectos lexicais, aspectos sintáticos, tempos verbais, relações lógicas
etc. Trata-se de formas de organização do texto, que é constituído por construtos teóricos
definidos por propriedades linguísticas intrínsecas
87
. Os tipos textuais mais citados são o
narrativo, descritivo, expositivo ou dissertativo, argumentativo e injuntivo.
Ao apresentar-se, portanto, um tema para redação de processo seletivo para
o ingresso de alunos no ensino superior, exige-se do candidato o enquadramento do texto
num tipo específico; no caso dos textos do nosso corpus, o tipo expositivo ou dissertativo,
amplamente difundido nas aulas de redação do Ensino Médio.
Por outro lado, o tipo textual não define exatamente o gênero a que pertence
um texto. A noção de gênero está diretamente ligada à finalidade comunicativa do texto.
Na constituição do gênero, entram em jogo outros elementos, tais como características
sócio-comunicativas, definição de conteúdos, propriedades funcionais, características de
composição etc. Diferentemente dos tipos textuais, que se restringem a poucos, os gêneros
são inúmeros e praticamente ilimitados, podendo comportar um ou vários tipos textuais.
Como exemplos de gêneros, temos: telefonema, sermão, correspondência oficial, carta, e-
mail, bilhete, bula de remédio, receita culinária, romance, horóscopo, lista de compras,
cardápio, manual de instruções, outdoor, resenha, edital, piada etc. A redação de vestibular
pode ser considerada um gênero específico, uma vez que é produzida para atender a uma
determinada demanda social, embora não se constitua uma forma de comunicação
espontânea.
Entre tipos e gêneros textuais, existe uma relação muito grande, embora a
existência de um não seja pré-requisito para a existência específica de outro. Para a
87
Sobre essa definição, cf. Marcuschi (2005, 2008), entre outras referências.
113
constituição do gênero redação de vestibular, por exemplo, atrela-se à exigência do tipo
textual indicado no comando dado no momento da elaboração do texto.
A importância da constituição do gênero textual é muito bem explicada por
Bakhtin (1992, p. 302), que afirma que
as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do
discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência
conjuntamente. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados
(porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda,
é óbvio, por palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da
mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas).
Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do
outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o
gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão aproximada do todo discursivo),
a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início,
somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala,
evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso
e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.
Embora o autor se tenha centrado mais na questão da fala no excerto acima,
fica claro que a identificação dos gêneros textuais (atrelados aos tipos textuais), mais do
que mera questão classificatória ou didática, reflete uma necessidade típica do processo de
comunicação verbal humana.
Voltando especificamente para o nosso corpus de análise, optamos pelo
gênero textual redação de vestibular. Trata-se de um tipo de produção textual muito
difundido no meio escolar, cujo propósito é autorrecursivo, ou seja, o objetivo principal é
treinar ou demonstrar habilidades de comunicação escrita dentro da norma padrão da
língua. As redações de vestibular, sejam do estilo tradicional (realizado ao final do Ensino
Médio) ou seriado (realizado ao longo dos anos que compõem o Ensino Médio), são
produzidas num contexto específico de avaliação de desempenho de escrita e concatenação
de ideias em torno de um tema. Elas não atendem a um propósito comunicativo externo à
instituição de ensino e correspondem a um tipo de produção induzida, não espontânea.
Essas características, no entanto, não invalidam estudos sobre esse tipo de produção. Nas
palavras de Bezerra (2008, p. 138),
Embora defendamos a utilização de situações efetivas de escrita em sala de
aula, não estamos eliminando o fato de que o texto, ao chegar aí, perde
parte da carga comunicativa que tem, que se torna objeto de
114
ensino/aprendizagem. Com isso, observamos que o trabalho com a redação
(entendida como um texto inerte), com a produção textual (concebida
como um texto produzido em uma situação comunicativa) e com o gênero
textual (entendido como um enunciado produzido em uma situação
comunicativa específica, de acordo com um tema, uma composição e um
registro linguístico) tem um ponto comum, que é ser objeto de ensino. Por
isso, não se deve desfazer-se dessa característica, a ponto de não mais se
ensinar a produzir um texto em sala de aula, sob o pretexto de que o
importante é respeitar as práticas sociais da escrita e seus usos.
Em outras palavras, ressalvado o fato de que redações escolares e
incluímos as redações de vestibular não atendem a um propósito comunicativo
espontâneo, trata-se de um tipo textual muito difundido na prática escolar, capaz de revelar
muitos fatos no âmbito do raciocínio com a linguagem.
O nosso corpus foi composto por um total de 500 (quinhentas) redações
produzidas entre os anos de 2005 e 2007 em diferentes processos seletivos para ingresso no
ensino superior da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), instituição
multicampi da rede particular cuja sede se localiza na cidade de Barbacena (MG) e que
possui unidades de ensino em várias outras cidades, incluindo uma unidade no estado de
Tocantins (ITPAC – Instituto Tocantinense Presidente Antônio Carlos).
A escolha desses textos foi aleatória. Esse procedimento faz parte do
método estatístico da pesquisa científica, aplicando-se a seleção de amostragem casual
simples, em que todos os conjuntos de textos disponíveis tinham igual probabilidade de
serem escolhidos. Com isso, pretendemos detectar construções de uso metafórico no
corpus e sobre elas realizar nossa análise qualitativa, de forma que tais construções tenham
a probabilidade de serem representativas de todo o montante de textos à nossa disposição.
Encontramos em Popper (2001) o suporte lógico-matemático para esse
procedimento. Sobre sequências aleatórias ou casualoides, que é o caso com que lidaremos
na nossa pesquisa, afirma o autor que
O fato de nossas estimativas de frequência em sequências empíricas
aleatórias serem hipóteses não tem qualquer influência sobre a maneira de
podermos calcular essas frequências. Com respeito a classes finitas, não
tem a menor importância, é claro, a maneira como obtemos as frequências
de que partem nossos cálculos. Essas frequências podem ser obtidas por
contagem real, pela aplicação de uma regra matemática ou de uma hipótese
desta ou daquela espécie. Ou podemos, simplesmente, inventá-las. Ao
calcular as frequências, aceitamos algumas como dadas e delas derivamos
outras.
88
88
Cf. Popper (2001, p. 184).
115
A proposta de analisar textos escritos autênticos justifica-se pelo objetivo de
lidar com elementos da língua em uso real e efetivo (ainda que a produção dos textos seja
induzida, conforme comentamos), e não criados para satisfazer a alguma hipótese de
pesquisa. Na composição do corpus, mantivemos a escrita original dos textos, a fim de
evitar qualquer tipo de interferência que pudesse prejudicar os nossos resultados, ferindo a
autenticidade dos mesmos.
89
Para se ter uma noção da dimensão do nosso corpus, ele possui um total de
84.450 palavras, conforme se pode levantar através do listador de palavras do WordSmith
Tools
©
(doravante WST), um programa muito utilizado como suporte para vários tipos de
análises linguísticas, como será detalhado mais adiante. Desse total de ocorrências (tokens),
são identificadas 8.734 palavras diferentes, ou tipos (types). Vejam-se os dados na Figura
15 abaixo, em que está destacado o total de palavras ocorrentes no corpus:
89
A escolha dos textos para a composição do corpus foi anterior ao trabalho de correção que a equipe do
processo seletivo realiza para a classificação dos candidatos. Foram incluídas, assim, redações de níveis
muito diferenciados, de candidatos que tanto foram aprovados quanto reprovados nos concursos. Portanto, a
nota obtida pelos candidatos nas redações em nenhum momento influenciou a nossa escolha.
116
Figura 15 – Descrição geral do corpus obtida através do listador de palavras do WST
De acordo com Berber Sardinha (2004, p. 26), um corpus dessa natureza é
classificado como pequeno-médio, em classificação baseada na observação dos corpora
normalmente utilizados em pesquisas (um corpus pequeno-médio, segundo o autor, possui
de 80.000 a 250.000 palavras).
117
Na montagem desse banco de textos, eles foram numerados de 001 a 500. A
tabela a seguir apresenta uma descrição geral dos subconjuntos de redações que compõem
o corpus, compreendendo a quantidade produzida em cada local, os locais em que as
mesmas foram escritas e o tema que serviu de motivação para a produção de cada
subconjunto:
REDAÇÕES QUANTIDADE LOCAL TEMA
001 a 181 181 Araguaína (TO) Crimes virtuais
182 a 229 48 Araguaína (TO) A pirataria no Brasil
230 a 246 17 Medina (MG) A felicidade
247 a 256 10 Teófilo Otoni (MG) Sonhos de simplicidade
257 a 466 210 Araguaína (TO) A internet
467 a 500 34 Barbacena (MG) A destruição da natureza
Tabela 1 – Dados gerais dos textos do corpus, separados por grupos
4.3 Procedimentos de tratamento do corpus
Como se trata da composição de um corpus de pesquisa que futuramente
pode servir também a outros tipos de investigação, e com o intuito de não incorrermos em
falhas metodológicas, seguimos os procedimentos gerais para tratamento do corpus, que
normalmente integram esse tipo de abordagem, a saber:
i) Uma vez que as redações são manuscritas, após selecionadas elas foram transcritas ao
computador utilizando-se o programa Microsoft Word for Windows
©
, em espaço simples,
fonte Times New Roman tamanho 12, alinhamento de margem à esquerda. Seguimos um
procedimento corriqueiro desse tipo de montagem de corpus: deixar um espaço em branco
entre os parágrafos, apesar de não interessar diretamente para a nossa pesquisa a
identificação de tais. Entre o título da redação – quando existente e o primeiro parágrafo,
deixaram-se dois espaços em branco para a identificação daquele.
ii) Após organizados em pastas no computador, os textos foram salvos também como
“texto sem formatação” (com a extensão .txt), procedimento fundamental para que a
aplicação de ferramentas eletrônicas como o WST não seja prejudicada com a identificação
de caracteres estranhos ao programa.
118
iii) A partir daí, levantamos as informações gerais sobre o corpus, a exemplo dos dados da
Figura 15, para se ter uma noção geral do ambiente de pesquisa com que estamos lidando.
O software utilizado serviu como ponto de partida para a identificação das características
gerais do banco de textos e também para realizar buscas de palavras e expressões no corpus
à medida que fomos realizando leituras e análises de cunho qualitativo.
As buscas de palavras e expressões no corpus com o apoio de recurso
eletrônico são de fundamental importância num trabalho desse porte, uma vez que
proporcionam levantamentos que seriam impossíveis de serem feitos somente através da
chamada leitura manual. O grau de precisão dessas buscas é altíssimo, além da capacidade
de obtenção de dados importantes para a análise em tempo imediato.
4.4 Descrição da ferramenta eletrônica: o WordSmith Tools
©
Esse programa possui uma ampla aplicação nos estudos que envolvem
corpus para análise, pela eficiência das ferramentas que o compõem e pela capacidade de
lidar com bancos de textos muito extensos. Ele é da autoria de Mike Scott, tendo sido
publicado pela Oxford University Press anos antes de 2000, com versão demonstrativa
disponível na internet
90
. Antes da versão usual moderna, o programa passou por vários
protótipos que eram lançados em pequena escala, segundo Berber Sardinha (2004, p. 86).
No nosso trabalho, estamos utilizando a versão 5.0, de 18/06/2009.
O WST possui três ferramentas básicas: o concordanciador (Concord), o
listador de palavras (WordList) e o listador de palavras-chave (KeyWords).
O recurso do concordanciador permite que o analista visualize os
“colocados”, que são os itens lexicais que ocorrem com um nódulo de uma busca. Essa
busca pode ser realizada com alcances diferenciados, chamados de “janelas” ou
“horizontes”, que consiste em quantidades de palavras à esquerda e à direita escolhidas
pelo pesquisador. O concordanciador também fornece a “frequência”, que é o número de
ocorrências tanto do nódulo quanto de seus colocados.
Através do listador de palavras, outro recurso do WST, é possível obter
informações do corpus analisado em três segmentos diferentes: um relativo às informações
gerais do banco de textos (número de palavras, tipos e ocorrências; número de parágrafos;
90
Disponível em: <http://www.liv.ac.uk/~ms2928/> e vários outros sites.
119
razão entre tipos e ocorrências; extensão média das palavras e dos parágrafos etc.); outro
relativo à frequência de ocorrência de cada palavra do corpus, medida em porcentagem em
relação às demais palavras do texto, da mais frequente até a menos frequente do corpus; e o
último relativo à listagem de todas as palavras do corpus em ordem alfabética,
acompanhadas da frequência em que ocorrem.
Por fim, o listador de palavras-chave estabelece uma comparação entre as
palavras de um texto ou conjunto de textos selecionados em relação a um corpus que serve
como referência. No caso de nossa pesquisa, não utilizamos esse recurso.
4.5 Análise do corpus
O grande desafio para os estudos sobre metáfora baseados em corpora é a
identificação de nódulos que podem ser considerados metafóricos, extensivo também ao
estudo das metonímias, que os mapeamentos entre domínios cognitivos não estão
ligados a formas linguísticas específicas. Na tentativa de dar um rumo à nossa análise tendo
em vista essa dificuldade, buscamos algum suporte em Stefanowitsch (2006). O autor
apresenta algumas estratégias para contornar esse problema, que se resumem no seguinte
91
:
i) busca manual Muitos estudos se baseiam na coleta manual das ocorrências de
construções metafóricas, o que limita muito o trabalho do pesquisador, evidentemente, no
caso de trabalhos baseados em corpora extensos.
ii) busca por vocabulário de domínio-fonte Algumas expressões metafóricas baseiam-se
em itens lexicais específicos do domínio-fonte. Constitui, portanto, uma estratégia de
pesquisa realizar a busca começando por elementos do léxico ou conjuntos de elementos
que são potencialmente formadores de metáforas.
iii) busca por vocabulário de domínio-alvo Muitos estudos sobre a metáfora são
realizados tendo-se em vista domínios-alvo específicos, bem como os mapeamentos
conceituais que os estruturam; assim, esse tipo de busca pode ser bastante producente.
Existem algumas restrições quanto a esse aspecto, especialmente o fato de que esse método
se aplica muito bem quando se trata de um corpus muito representativo de textos que lidem
com um domínio-alvo específico, além de funcionar bem, obviamente, quando se trata de
91
Cf. Stefanowitsch (2006, p. 2-6). O autor confere especial importância às três primeiras estratégias
apresentadas.
120
construções cujo domínio-fonte apresente uma associação sistemática e previsível com o
domínio-alvo em questão.
iv) busca por sentenças que contenham itens lexicais tanto do domínio-fonte quanto do
domínio-alvo Os dois tipos de busca apresentados anteriormente podem combinar-se no
mesmo processo. E, assim como os dois procedimentos anteriores não são completos, este
também pode apresentar problemas. Trata-se de um processo que funciona muito bem em
se tratando de expressões cujo mapeamento conceitual é conhecido de antemão ou, para
utilizar uma expressão do próprio Stefanowitsch, no caso de “padrões metafóricos”
(metaphorical patterns).
v) busca de metáforas baseada nos “marcadores de metáfora” (markers of metaphors)
Existe um certo número de expressões na língua, muitas vezes de natureza metalinguística,
que sinalizam explicitamente a presença de metáforas, tais como “metaforicamente
falando”, “figurativamente falando”, “literalmente” etc., bem como o recurso gráfico das
aspas. Esse tipo de busca, no entanto, não apresenta total aceitação entre os estudiosos da
metáfora com base em corpora, existindo algumas pesquisas que mostram a ineficácia
desse procedimento.
92
vi) extração a partir de um corpus etiquetado por campos/domínios semânticos A
primeira estratégia descrita acima pode ser estendida da seguinte forma: pode-se
especificar um domínio-fonte e operar a busca por todos os itens lexicais pertencentes a
esse domínio, em vez de trabalhar com conjuntos de lexemas, que ficam sempre
incompletos. Stefanowitsch qualifica esse método como bastante promissor.
vii) extração a partir de um corpus etiquetado por mapeamentos conceituais Esse tipo de
busca seria grandemente valioso para os estudos da metáfora, mas o grande problema em
relação a ele é justamente realizar as marcações que discriminem os mapeamentos
conceituais.
A etiquetagem é muito produtiva em análises textuais, mas, no caso de
pesquisas envolvendo metáforas, ainda se constitui um procedimento muito complexo. A
identificação de metáforas realizada por recursos eletrônicos é feita, atualmente, em termos
92
Em relação a esse procedimento, Goatly (1997) destina um capítulo especial à descrição dos chamados
“marcadores de metáforas”, como recursos linguísticos explícitos que sinalizam a ocorrência de processos
metafóricos nos textos. Por outro lado, Wallington et al (2003) demonstram que esses marcadores não se
constituem, de fato, uma sinalização consistente da presença de metáforas, não sendo, portanto, um recurso
eficiente para um trabalho com corpora. De qualquer forma, a área necessita de estudos mais pormenorizados
acerca da utilização desse método.
121
de probabilidade de emprego metafórico de uma determinada expressão com base na
comparação com a co-ocorrência desse mesmo nódulo em outros corpora pré-analisados
93
.
Levando-se em consideração todos os aspectos levantados, e tendo em vista
o foco da nossa pesquisa voltado para uma análise qualitativa envolvendo metáforas e
organização textual, diante dos recursos colocados à disposição para a nossa pesquisa que
nos levem a um grau de total confiabilidade em relação aos resultados alcançados,
estabelecemos os seguintes procedimentos metodológicos para análise dos textos:
i) busca manual de metáforas mais relevantes em textos escolhidos aleatoriamente nos seis
subgrupos de redações apresentados na Tabela 1, de maneira a contemplar uma análise
preliminar em textos elaborados sob diferentes propostas de tema. Como os subgrupos de
redações variam muito entre si, em relação ao número de textos que os compõem,
estabelecemos a proporção de escolha de um texto para cada conjunto de no máximo
setenta redações dentro de cada tema. Assim:
SUBGRUPO TOTAL DE REDAÇÕES
DO SUBGRUPO
NÚMERO DE REDAÇÕES
ESCOLHIDAS PARA A
BUSCA MANUAL
I) redações 001 a 181 181 3
II) redações 182 a 229 48 1
III) redações 230 a 246 17 1
IV) redações 247 a 256 10 1
V) redações 257 a 466 210 3
VI) redações 467 a 500 34 1
TOTAL GERAL 500 10
Tabela 2 – Número de redações escolhidas para busca manual por metáforas, em cada subgrupo do corpus
ii) identificação de possíveis vocabulários de domínio-fonte e domínio-alvo a partir da
busca manual nos dez textos mencionados acima. Embora esse procedimento não garanta o
93
São muito raros os programas de identificação de metáforas, sendo o único disponível na Internet o do
CEPRIL – Centro de Pesquisa, Recursos e Informação em Linguagem, da PUC-SP (disponível em:
http://www.corpuslg.org/tools/), que realiza buscas em língua portuguesa e língua inglesa. Esse identificador
funciona como um etiquetador, apresentando, para cada palavra do corpus a que o usuário pode submeter,
uma informação correspondente à probabilidade de ela ser metafórica. Essa probabilidade varia de 0,01%
(zero vírgula zero um por cento, ou seja, praticamente nenhuma probabilidade) a 100% (cem por cento, isto
é, certeza de uso metafórico), que o programa oferece através da indicação “Avg.Prob”.
122
alcance de grande número de ocorrências metafóricas no corpus como um todo, pode
constituir-se um ponto de partida para buscas mais minuciosas em etapas posteriores.
iii) levantamento de construções metafóricas em outros textos do corpus, além dos dez
textos iniciais, num processo que mescla a busca manual e a busca realizada através do
WST com base nos possíveis vocabulários de domínio-fonte e domínio-alvo mencionados
acima.
iv) análise qualitativa de variados textos do corpus, de acordo com a relevância dos
levantamentos feitos até então, com vistas ao comportamento da metáfora dentro desses
textos.
Observe-se que traçamos os passos metodológicos acima com base nas
estratégias i), ii), iii) e iv) de Stefanowitsch (2006), que julgamos bastante pertinentes ao
tipo de pesquisa que estamos empreendendo. Com isso, procuraremos identificar os
padrões metafóricos recorrentes no nosso corpus a fim de que, a partir dos mesmos,
possamos identificar o papel que a metáfora assume no âmbito da organização textual.
4.5.1 Busca manual de metáforas
Nesta parte do trabalho, procederemos a uma leitura geral dos dez textos
selecionados para levantamento prévio de construções metafóricas, conforme definido na
seção precedente. Cumpre salientar que não se pretende levantar todas as ocorrências
metafóricas nesses textos, tarefa que exigiria uma metodologia mais apurada. A intenção é
destacar as metáforas mais relevantes nos textos, especialmente aquelas que se enquadram
em padrões recorrentes ao longo dos mesmos.
4.5.1.1 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo I
Neste subgrupo, onde se encontram as redações de número 001 a 181,
realizaremos a busca manual em três textos, conforme foi especificado. O tema sobre o
qual versam as redações é “crimes virtuais”, e a partir daí já esperamos encontrar a
ocorrência de expressões ligadas à informática, tanto metafóricas quanto não metafóricas.
Por se tratar de textos pequenos especialmente porque, no formato
digitado, as redações têm o seu tamanho bastante diminuído em comparação com o
123
manuscrito vamos apresentá-los aqui mesmo no corpo do capítulo, seguidos
respectivamente das considerações que temos sobre eles.
(17)
O mundo sem lei da Internet
94
Nos dias atuais, ficar em frente à um computador navegando pela internet, em sites de
relacionamentos é muito legal. Mas para alguns jovens não é apenas isso que eles querem, pois seu
desejo é ter uma identidade secreta e fazer justiça com as próprias mãos, uma vez que a justiça é
lenta e ineficaz.
Com esse raciocínio, um grupo de jovens decidiu assumir o papel de justiceiros da rede,
invadindo sites que contêm pregações racistas, anti-semitas, mensagens homofóbicas ou fotos de
pedofilia.
O desejo desses jovens é de ajudar a justiça, fazendo com que sejam descobertas estas
redes que anunciam estas pregações, por isso consideram-se hackers com uma missão, ou seja de
ajuda a justiça.
Na prática, alguns ferem tanto a lei quanto quem invade computadores alheios para xeretar
e fazer piadas de mau gosto, no entanto satisfazem seu desejo adquirindo uma identidade secreta.
Graças a eles, muitos sites como esses vem sendo descobertos e entregues as autoridades
competentes, e como dizem eles, é um serviço que alguem tem de fazer, uma vez que a justiça é
lenta e ineficaz.
Como o próprio tema sugere, existem muitas referências a elementos do
mundo informatizado, a partir mesmo do título: Internet, computador, sites, rede, hackers.
E, paralelamente a esses elementos, que se inserem num domínio cognitivo específico, um
outro domínio é explorado, o da justiça, também suscitado pelo tema proposto, que se
manifesta em elementos como: lei, justiça, justiceiros, autoridades.
Uma vez que identificamos esses dois domínios cognitivos básicos no texto
(17), vamos expandir os elementos destacados dentro de cada domínio, procurando
associar a eles as palavras com as quais co-ocorrem, seja na função de núcleo quanto em
alguma função complementar ou adjunta, no âmbito da metáfora.
No domínio da Informática, vislumbramos as seguintes construções
metafóricas: “navegar pela internet”, “invadir sites”, “redes que anunciam pregações”,
“invadir computadores”, “sites são entregues a autoridades”. De antemão, verifica-se a
existência de duas metáforas conceituais básicas: ELEMENTOS DE INFORMÁTICA
SÃO LUGARES, e no texto tais lugares se mostram como navegáveis (internet) e passíveis
de serem invadidos (sites, computadores); e o outro esquema metafórico resume-se a
ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO PESSOAS, revelando-se como agentes que
anunciam pregações (redes) e indivíduos entregues às autoridades legais (sites).
94
Redação nº 133 do corpus.
124
Quanto à expressão “navegar pela Internet”, trata-se de algo tão utilizado no
nosso dia-a-dia, na linguagem falada e na escrita, que parece apresentar um bom grau de
entrincheiramento na nossa língua, não só pelo seu índice de ocorrência como também pela
cristalização desse composto, co-ocorrendo com a forma similar “navegar na Internet”. A
título de confirmação desse fato, operamos uma busca rápida no nosso corpus por essa
expressão, através da ferramenta Concord do WST, com as possíveis flexões da forma
verbal, e encontramos vinte e duas ocorrências, como mostra a figura a seguir:
Figura 16 – Ocorrências da expressão “navegar pela Internet” e similares, no corpus da tese
A recorrência do uso dessa construção metafórica no nosso corpus é um
reflexo da conceitualização existente sobre essa expressão. O ato de se associar a utilização
da Internet com a ação de navegar corresponde a mapear itens desses dois domínios
cognitivos. Nesse caso, imputa-se à Internet muitas características pertinentes à navegação,
tais como: a amplitude do espaço disponível à exploração, a sensação de aventura frente a
um mundo ainda em parte desconhecido, a possibilidade de deparar com surpresas e
perigos, o desafio de não ser “atacado por piratas” etc. Nas sequências transcritas na Figura
16 é possível identificar todas essas interpretações.
Examinemos agora os elementos do domínio Justiça, procurando relacioná-
los com as metáforas. A própria palavra “justiça” aparece cinco vezes no texto, sendo todas
elas metafóricas: “fazer justiça com as próprias mãos”, “a justiça é lenta e ineficaz” (duas
125
ocorrências) e “ajudar a justiça” (duas ocorrências). em relação a essa palavra,
vislumbramos a existência de dois esquemas metafóricos: A JUSTIÇA É UM OBJETO,
que, como tal, é manipulável, factível pelas mãos de alguém; e A JUSTIÇA É UMA
PESSOA, e, como tal, ela é caracterizada como lenta e ineficaz, além de ser passível de
receber a ajuda de outrem.
Vejamos o que ocorre em termos metafóricos em relação aos outros
elementos do domínio cognitivo Justiça: lei, justiceiros e autoridades. A maioria das
referências a esses elementos no texto não são metafóricas, destacando-se, no entanto, a
construção “ferir a lei”, que atende a um padrão metafórico muito parecido com um dos
que foram identificados em relação à justiça: A LEI É UMA PESSOA, conceitualizada
como um indivíduo que pode ser ferido. Podemos juntar esse esquema metafórico com o
outro sobre o elemento “justiça” e enunciar que, dentro desse texto, vigora a metáfora
ELEMENTOS DA JUSTIÇA SÃO PESSOAS.
Pois bem, esse levantamento nos capacita a traçar algumas conclusões
preliminares sobre o texto transcrito em (17) e nos fornece subsídios para buscas em outros
textos, principalmente do Subgrupo I, que compartilham a mesma temática.
Representando os dois domínios cognitivos básicos que encontramos no
texto, com seus respectivos elementos, e associando a eles os esquemas metafóricos
encontrados, temos o seguinte:
126
Domínio cognitivo Domínio cognitivo
da Informática da Justiça
Esquemas metafóricos:
ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO LUGARES
ELEMENTOS DE INFORMÁTICA E DA JUSTIÇA SÃO PESSOAS
A JUSTIÇA É UM OBJETO
Figura 17 – Representação dos domínios cognitivos, elementos e esquemas metafóricos do texto (17)
No caso da conceitualização da justiça e da lei como pessoas, remetemo-nos
também à ocorrência da metonímia, nos moldes como explicamos ao final do capítulo
anterior, ou, mais especificamente, das metaftonímias de Goossens (2002). Quando se
afirma que a justiça é lenta e ineficaz, da mesma forma quando se diz sobre ferir a lei, esses
elementos justiça e lei são apresentados como um domínio-fonte que tem como alvo as
pessoas, os processos e as instituições que compõem esse conjunto maior. Ou seja, existe
um mapeamento entre domínios contíguos, paralelamente à personificação na forma de
metáfora. Representando esquematicamente o enunciado sobre a justiça, temos o seguinte:
Internet
computador
sites
rede
hackers
lei
justiça
justiceiros
autoridades
127
Domínio cognitivo Domínio cognitivo
da Justiça dos atributos humanos
Figura 18 – Representação de caso de metaftonímia em redação do corpus
Na figura acima, a seta vertical representa a metonímia, e a horizontal
representa o mapeamento metafórico. Esse caso é parecido com o que foi apresentado
anteriormente com base nas ideias de Barcelona, sendo uma metáfora que possui, embutida
no mapeamento entre dois domínios cognitivos diferentes (da Justiça e dos atributos
humanos), uma relação metonímica na qual o todo (Justiça) representa a parte (pessoas,
processos, instituições). que se salientar também que o processo metonímico
representado acima é inverso ao processo do exemplo (16), em que o domínio que
representava a parte (rosto) era a fonte que atingia o alvo, o domínio do todo (corpo). Neste
caso, a Justiça, que é o todo, é que funciona como fonte em relação ao domínio-alvo
(parte), que são os elementos componentes da Justiça.
Em termos de produção textual, percebemos que esse processo enriquece
sobremaneira a carga semântica do texto, pois envolve um complexo jogo de palavras e
sentidos no qual diferentes elementos são envolvidos. No caso do texto (17), quando se
afirma que “seu desejo é ter uma identidade secreta e fazer justiça com as próprias mãos,
uma vez que a justiça é lenta e ineficaz”, a caracterização de lentos e ineficazes incide
diretamente sobre pessoas, processos e instituições, mas, realizada à maneira de
metonímia, ocultam-se os verdadeiros alvos da caracterização. Ou seja, a utilização da
metáfora tem como efeito a reificação de uma noção abstrata, a justiça, tornando-a um
elemento concreto; e, paralelamente a isso, a metonímia também exerce um papel
importante, colocando os possíveis alvos da crítica num patamar de generalização e
indefinitude. Note-se que o processo metaftonímico nesse trecho distingue dois tipos de
justiça: a justiça 1, digamos, “a se fazer com as próprias mãos”, que se subentende rápida e
Pessoas
Processos
Instituições
Justiça
Lentidão
Ineficácia
128
eficiente; e a justiça 2, a que vigora oficialmente no nosso mundo, lenta e ineficaz. Vemos
aí, portanto, uma importante característica das metáforas e das metonímias, como
elementos de referenciação dentro do texto.
Com base no que vimos até agora em relação ao texto, os elementos
abstratos Informática e Justiça são concebidos, genericamente, como lugares, pessoas e
objetos. Sobre a concepção metafórica de lugar, discutiremos mais adiante lançando mão
de levantamentos realizados em outros textos do corpus. Sobre a concepção de pessoas e
objetos, convém desenvolvermos aqui algumas considerações à luz da teoria da metáfora
conceitual.
Existe uma tendência muito grande em conceitualizarmos entidades
abstratas como entidades concretas, e isso ocorre – conforme já foi discutido anteriormente
por uma questão de facilitação do raciocínio ou mesmo para acesso ao mundo das ideias.
Tratar entidades abstratas como elementos concretos, manipuláveis, com delimitação física
definida é mais acessível do que tratar daquelas entidades em termos também abstratos.
Muitas vezes, nem existe vocabulário específico no domínio abstrato, sendo o mapeamento
dos elementos num domínio concreto não uma alternativa de tratamento, mas, sim, a
única forma de tratamento. Sobre essa questão, vimos que Stefanowitsch (2005) argumenta
muito bem em favor de uma visão cognitiva da metáfora com base nas premissas da
psicologia da Gestalt.
Queremos acrescentar aqui as considerações que fazem Lakoff e Johnson
(1980) a respeito dos dois casos específicos de conceitualizações de entidades abstratas
como objetos físicos e como pessoas. No primeiro caso, os autores classificam esse tipo
como metáfora ontológica, afirmando que
nossas experiências com objetos físicos (especialmente nossos próprios
corpos) oferecem a base para uma variedade extraordinariamente grande
de metáforas ontológicas, ou seja, modos de conceber eventos, atividades,
emoções, ideias etc. como entidades e substâncias.
95
(op. cit., p. 25)
E continuam, fazendo referência às personificações:
Talvez as mais óbvias metáforas ontológicas são aquelas em que o objeto
físico é especificado como sendo uma pessoa. Isso nos leva a compreender
uma ampla variedade de experiências com entidades não humanas em
95
No original: “our experiences with physical objects (especially our own bodies) provide the basis for an
extraordinarily wide variety of ontological metaphors, that is, ways of viewing events, activities, emotions,
ideas, etc., as entities and substances.”
129
termos de motivações, características e atividades humanas.
96
(op. cit., p.
33)
Vejamos se esses esquemas metafóricos se repetem nos outros textos deste
subgrupo, e mesmo nos outros textos do corpus, a começar da próxima redação
97
,
pertencente ao mesmo subgrupo que a anterior:
(18)
A internet é um dos meios de comunicação e informação mais utilizados no mundo, com a
ajuda dela nós podemos montar sites expondo ideias, costumes, gostos, etc.
Ela serve como uma grande fonte de pesquisa onde encontramos tudo o que quisermos, o
único problema é que alem do que é útil e interessante existe o que, diante dos conceitos da
sociedade, é inútil, vergonhoso e, muitas vezes, criminoso, como é o caso de sites sobre pedofilia,
pornografia, racismo e inumeras outras formas de agressão a sociedade, alem dos hackers que
invadem os computadores em busca de senhas bancárias, arquivos particulares ou para infectar
os arquivos com virus e mensagens de mau gosto.
Esse é um problema difícil de ser resolvido, pois é muito complicado rastrear o computador
de onde vem essa informação, alem do mais não existe, no Brasil, leis contra esse tipo de crime, a
unica saida é tentar ignorar esse tipo de informação agreciva e proteger o computador contra
invasões aprendendo a utilizar a internet de uma forma mais produtiva e divertida
No texto transcrito em (18) são mais frequentes as remissões feitas à Internet
do que ao campo da Justiça, mas podemos identificar alguns pontos em comum com o
texto (17).
Com relação ao esquema metafórico ELEMENTOS DE INFORMÁTICA
SÃO LUGARES, vislumbramos, de imediato, construções linguísticas como: “hackers que
invadem os computadores”, “rastrear o computador de onde vem essa informação”,
“proteger o computador contra invasões”. Nesses enunciados, o elemento “computador” é
conceitualizado em termos de um local passível de ser invadido e que deve ser protegido
contra essas possíveis invasões. No segundo enunciado acima, temos também a informação
de que existem possíveis rastros para se chegar a esse lugar (computador) e que nele
existem informações importantes, ou seja, ele abriga elementos nocivos à sociedade.
Em alguns pontos do texto visualizamos outras conceitualizações feitas em
relação aos elementos do domínio cognitivo da Informática. Ora eles são concebidos como
objetos, ora como pessoas, no domínio da metáfora.
96
No original: “Perhaps the most obvious ontological metaphors are those where the physical object is further
specified as being a person. This allows us to comprehend a wide variety of experiences with nonhuman
entities in terms of human motivations, characteristics, and activities.”
97
Redação nº 10 do corpus.
130
No caso da conceitualização ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO
OBJETOS, as referências feitas não se dão através de objetos concretos muito explícitos,
sendo utilizados substantivos de abrangência semântica mais ampla. No primeiro
parágrafo, por exemplo, a Internet é concebida como um “meio de comunicação e
informação”, com a ajuda da qual “nós podemos montar sites”. “Meio de comunicação” é
um hiperônimo de objetos concretos, tais como telefone, televisão, rádio etc., e a Internet é
inserida no rol desses objetos concretos. E, com relação ao outro enunciado, que somos
capazes de montar sites com a ajuda da Internet, ela é conceitualizada como uma
ferramenta que podemos manipular.
Ao enunciar que “com a ajuda dela nós podemos montar sites”, vigora
também o esquema metafórico ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO PESSOAS, uma
vez que, além da noção de ferramenta, a Internet é investida da capacidade de realizar a
ação de “ajudar”. Nesse ponto, percebemos que a formação de esquemas metafóricos no
desenrolar da tessitura textual é interpenetrativa, ou seja, diferentes domínios cognitivos
podem ser compreendidos numa única construção linguística, sem que um afete a
compreensão do outro. Pelo contrário, esse fenômeno parece enriquecer o texto em termos
de possibilidades de interpretação, gerando ambiguidades (não contraditórias, mas
complementares) no escopo da metaforização. Vejamos o comportamento dos elementos
desses domínios – lugares, objetos e pessoas – no restante do texto.
Em “Ela serve como uma grande fonte de pesquisa onde encontramos tudo o
que quisermos”, assim como foi feito o levantamento em relação a “computador”, também
a Internet é concebida como lugar. E, nesse lugar, encontramos elementos caracterizados
como “úteis e interessantes”, bem como elementos “inúteis, vergonhosos e até criminosos”.
Nessas passagens, reforça-se o esquema ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO
PESSOAS, já que se revestem dessas qualidades típicas de seres humanos.
Em relação ao enunciado “rastrear o computador de onde vem essa
informação”, salientamos que o computador é concebido como lugar, mas é
importante destacar que acontece mais uma vez o processo de interpenetração de domínios
conceituais. Não lugares podem ser rastreados, mas indivíduos também o podem,
principalmente se tomarmos a acepção de “rastrear” em seu sentido original relacionado a
rastros, pegadas deixadas, evidentemente, por seres vivos em caminhos por onde passam
98
.
98
Cf. definição em Bueno (1988, p. 3368).
131
Nota-se que essa possibilidade de co-ocorrência de diferentes conceitualizações
metafóricas em relação a uma mesma construção linguística ou conjunto de construções
linguísticas no texto não é aleatória ou ocasional, por dois motivos básicos: primeiro,
porque a ocorrência desse fenômeno se mais de uma vez num mesmo texto, o que nos
leva a querer descartar o seu caráter da ocasionalidade; depois, porque os esquemas
metafóricos se mantêm coesos ao longo de todo o texto, independentemente de os
domínios conceituais co-ocorrerem com outros em relação às mesmas construções
linguísticas. A conceitualização dos elementos da Informática como lugares transcorre
normalmente no texto independente da conceitualização dos mesmos elementos em termos
de objetos e de pessoas. Esse fenômeno nos leva a esboçar a seguinte representação da
organização do texto (18), na qual os esquemas metafóricos são representados pelos
quadriculados e os enunciados representativos desses esquemas estão inseridos nos
domínios cognitivos (círculos):
Figura 19 – Representação da interpenetração dos esquemas metafóricos do texto (18)
Existem ainda outras construções metafóricas dentro da redação transcrita
em (18), a exemplo de uma que confirma a concepção metafórica de elementos da
Informática como pessoas, através da utilização de adjetivo específico para tal, “agressivo”
(“tentar ignorar esse tipo de informação agreciva”) e também uma construção metafórica
altamente recorrente no mundo contemporâneo, em que os processos da Informática são
ELEMENTOS DE
INFORMÁTICA
SÃO LUGARES
ELEMENTOS DE
INFORMÁTICA
SÃO PESSOAS
ELEMENTOS DE
INFORMÁTICA
SÃO OBJETOS
Computadores
são espaços
invadidos e
que devem ser
protegidos.
Computadores
podem ser
rastreados.
A Internet nos
ajuda a montar
sites.
elementos
úteis,
interessantes,
inúteis,
vergonhosos
A Internet é
um meio de
comunicação e
informação
132
concebidos simultaneamente em dois domínios cognitivos: o domínio de escritórios de
trabalho (constituído por pastas, arquivos, blocos de nota, lixeira, papel de parede etc.)
99
e
o domínio do sistema fisioimunológico humano (constituído por vírus, antivírus, vacinas
etc.), manifestados no enunciado “infectar os arquivos com rus e mensagens de mau
gosto”.
Vejamos, agora, o comportamento das metáforas em outro texto do primeiro
subcorpus, que segue abaixo, em comparação com os fenômenos apresentados até agora.
(19)
Sites Incriveis
100
No mundo da internet, temos acesso a varios sites interessantes, atraves deles podemos nos
dividir como também trabalhar. Esses sites facilita nossa vida na sociedade, assim podendo
conhecer pessoas novos e lugares diferentes.
Mais a internet não é maravilhas, como por exemplo fazer amigos, arrumar namorado,
fazer compra ou vender. Pois pessoas que invade seu site para fazer brincadeira sem graça, te
ameaça, manda fotos de pedofilia, descobrem seu endereço e acaba destruindo seu interior.
Com toda essa polêmica temos que ficar mais atentos, saber bem com quem estamos
conectando, que site estamos navegando se é seguro. Algumas pessoas quando começa à navegar
na internet pede a noção do tempo e não querem mais sair, mais tudo tem que ter limite, pois essas
pessoas podem estar sendo prejudicadas sem saber.
Existem varios casos de pessoas que perderam tudo, todos os bens por se envolverem com
alguém da internet, se conhecem marcam encontros e por fim acaba sem nada.
Assim é a história de muitos pessoas brasileiros que sofre por ter perdido um filho ou seus
bens por falta de limite ou desinteresse. Achando a internet incrivel e muito legal.
Alguns esquemas metafóricos identificados nos textos anteriores se
repetem na redação acima. Em relação à forma como a Internet é apresentada, por exemplo,
vemos mais uma vez a sua concepção como lugar – um local em que se pode tanto divertir
quanto trabalhar, comprar e vender, conhecer pessoas diferentes etc. A ideia do espaço
invadido também se encontra nesse texto, manifestada no enunciado “há pessoas que
invade seu site”, bem como a ideia do espaço navegável (“que site estamos navegando”,
“Algumas pessoas quando começa à navegar na internet pede a noção do tempo e não
querem mais sair”).
99
A respeito da conceitualização metafórica da interface do computador como uma área de trabalho, ver
Rohrer (1998). Nesse trabalho, o autor desenvolve importantes considerações a respeito da carga ideológica
presente nas chamadas “mesclas visuais” (visual blends), que, segundo Rohrer, “são representações visuais de
uma ou mais metáforas conceituais que, da mesma maneira que na mesclagem conceitual (...), induzem um
considerável trabalho de inferenciação por parte do usuário.” (op. cit.). No original: “are visual
representations of one or more conceptual metaphors which, like conceptual blends (...), prompt considerable
inferential work on the part of the viewer.”
100
Redação nº 26 do corpus.
133
indícios também da conceitualização dos elementos relacionados à
Internet quando não ela própria a seres humanos, mas esse aspecto não é explorado tão
intensamente nesse texto, em comparação com os dois anteriores. Pela adjetivação
conferida a alguns elementos, a entender um processo de metaforização nesse sentido,
ou, pelo menos, direcionado para uma visão desses elementos como objetos concretos. Eis
algumas passagens que nos levam a essa observação: “Sites Incriveis” (título), “sites
interessantes”, “a internet não é maravilhas”, “Achando a internet incrivel e muito
legal”. Em “Esses sites facilita nossa vida na sociedade”, acontece um reforço do processo
de personificação, uma vez que aos “sites” é imputado o traço de agentividade em relação à
ação “facilitar”.
que se destacar também a concepção de elementos da Internet como
objetos, meios ou ferramentas de acesso a alguma coisa. Algumas dessas construções,
envolvendo tanto as metáforas quanto as não metáforas, refletem o esquema da ligação
(link schema) de Lakoff (1987), sobre o qual falamos no primeiro capítulo. Os
enunciados que realizam esse tipo de conceitualização são os seguintes: “No mundo da
internet, temos acesso a varios sites interessantes”, “atraves deles podemos nos dividir
[divertir] como também trabalhar”, “temos que (...) saber bem com quem estamos
conectando”.
No ponto a que chegamos dos nossos levantamentos sobre as construções
metafóricas nos textos, cumpre-nos salientar algo sobre a fronteira entre o sentido
metafórico e o não metafórico na linguagem. Ao destacarmos algumas sentenças do nosso
corpus, deparamo-nos com palavras e expressões claramente metafóricas, outras
claramente não metafóricas, mas o limite entre um campo e outro não é bem delineado. O
esquema da ligação mencionado no parágrafo acima, que se faz ver em alguns enunciados
da redação, não se reflete num nível ou no outro. Na prática, o texto mescla vários
tipos de sentido, e as próprias concepções metafóricas por exemplo, de lugar, objetos e
pessoas são ratificadas no âmbito da não metáfora. Por exemplo, no texto (19) aparece
uma referência a “lugares diferentes” em que a noção de espaço, aí, não é necessariamente
metafórica.
Gibbs Jr. (2002) desenvolve muito bem essa questão, mostrando que o
sentido das palavras se processa em diferentes pontos da linguagem figurada, não existindo
um limite definido entre esta e a linguagem não figurada. O autor afirma ainda que
134
existem numerosos, talvez muitas dúzias de tipos de sentido. Por exemplo,
muitos tipos de sentido figurado, incluindo metáforas, idioms,
metonímias, ironias, sátiras, provérbios, hipérboles, oxímoros etc. (...) Os
estudiosos frequentemente consideram, no contexto de um conjunto
simplificado de pesquisa, que existem dois processos que funcionam na
compreensão do sentido figurado, tais como literal x idiomático, literal x
metafórico ou literal x irônico.
101
(GIBBS JR., 2002, p. 467)
Para Gibbs Jr. (op. cit., p. 468), é mais razoável considerar que “alguns
aspectos do significado das palavras se revelam durante o processamento da linguagem
figurada”.
102
Portanto, coadunando com as ideias do autor, não desenvolvemos um trabalho
centrado no estudo das metáforas excluindo o não metafórico presente nos textos. A noção
de uma linha divisória entre metáfora e não metáfora não explica a realidade do
processamento do sentido. Nos textos, percebemos que esses dois níveis da linguagem
que costumamos separar para efeitos didáticos e de compreensão – se mesclam e se
completam.
Com base nessas três leituras de redações do Subgrupo I do nosso corpus,
acompanhadas das teorias que nos servem de suporte, importantes características sobre o
comportamento da metáfora na organização textual já podem ser ressaltadas, as quais
resumimos no seguinte:
i) os esquemas metafóricos altamente recorrentes nos textos são a conceitualização de
elementos como lugares, como objetos e como pessoas;
ii) podem-se identificar diferentes esquemas metafóricos vigentes numa mesma construção
linguística, sem que isso afete negativamente tanto uma forma de leitura quanto a outra;
iii) a compreensão de muitas conceitualizações se no âmbito da metáfora conceitual,
mas ela se dá também no âmbito não metafórico.
Vamos dar prosseguimento às nossas análises iniciais partindo para o
Subgrupo II do nosso corpus, verificando se os esquemas identificados até então e as
observações acima continuam válidos dentro da nossa pesquisa.
101
No original: “there are numerous, perhaps many dozens of, types of meaning. For instance, there are many
types of figurative meaning, including metaphoric, idiomatic, metonymic, ironic, satirical, proverbial,
hyperbolic, oxymoronic, and so on (…). Scholars often assume within the context of a single set of studies
that there are two processes at work during figurative language understanding, such as literal vs. idiomatic,
literal vs. metaphoric, or literal vs. ironic.”
102
No original: “some aspects of word meaning are processed during figurative language processing”.
135
4.5.1.2 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo II
Este subgrupo de redações é formado por 48 textos, produzidos a partir do
tema “A pirataria no Brasil”. Para representar esse conjunto, escolhemos aleatoriamente a
redação que segue transcrita abaixo, de número 210 do nosso corpus:
(20)
Brasil o país da pirataria.
Atualmente, este país era conhecido internacionalmente como: “Samba, futebol, Pelé, Rio
de Janeiro, ...”; porém hoje ele é conhecido como “País da Pirataria”.
Especula-se que este surgimento, deu-se fruto das desigualdades sociais, principalmente de
uma cultura esfacelada, onde a corrupção, impunidade arraigada em todas partes do Estado
Brasileiro, propiciou-se a violência, “o jeitinho brasileiro” de burlar as leis, bem como a
sobrevivência da grande maioria da população, por meio de atos ilícitos como a tão temida
pirataria.
Entretanto, este tipo de clonagem de produtos para sua comercialização sem respeitar os
direitos autorais e a legislação, não deve ser justificada, pois ela lesa diretamente os autores e
artistas das obras, bem como só favorece a criminosos, que geralmente pertencem ao crime
organizado, e lesa também as produtoras, gravadoras, coautores, profissionais direta e
indiretamente envolvidos na criação, desenvolvimento destes produtos e pricipalmente o país que
não recolhe impostos para subsidiar no atendimento das necessidades básicas da população
(Saúde, Segurança, Infra-estrutura,..).
Portanto, este crime vêem crescendo neste país e pouco se faz para reduzir esta atividade.
Contudo, este mal e muitos outros arraigados no Brasil serão extintos através de uma reforma
que não é a “Reforma do Judiciário”, “Reforma do Executivo” e sim a “Reforma Cultural”, que
pode até levar 50 anos, mas seu benefício ou seus frutos deixarão 1000 anos, assim nunca haverá
pirataria, pois se não há demanda, não existirá oferta.
Comecemos por destacar algumas construções metafóricas relevantes, a
exemplo de como procedemos nos textos anteriores.
A partir do próprio título, e por motivação do tema proposto, temos a
ocorrência da palavra “pirataria”, que aparece mais três vezes ao longo do texto. Trata-se
de um vocábulo empregado metaforicamente, haja vista que os elementos que fazem parte
desse domínio cognitivo (piratas, contrabando, produtos, roubos etc.) podem ser mapeados
com os do domínio da ilegalidade em que se envolve a prática da qual trata o texto.
“Pirataria” e “pirata” (na sua acepção como substantivo ou como adjetivo),
bem como as formas do derivado verbal “piratear”, são termos muito utilizados na
linguagem moderna no âmbito do sentido metafórico, referindo-se à prática e aos
indivíduos ligados à cópia de produtos protegidos por direitos autorais, para usufruto
próprio ou para comercialização. Trata-se de metáforas entrincheiradas na nossa prática
136
comunicativa, em que, partindo do espaço da mescla, é possível vislumbrar os elementos
pertencentes aos dois espaços de entrada.
Foi realizada uma busca dos nódulos “pirata” e “pirataria”, no singular e no
plural, no nosso corpus, bem como um levantamento de ocorrências da forma verbal
“piratear” e suas flexões, e outras formas possíveis. O resultado foi o seguinte:
Nódulos “pirata/piratas”
40 ocorrências, sendo muitas de valor adjetivo
qualificando nomes como “cópia”, “mercadoria”,
“produto”, “CD”, “DVD”, “mundo” etc.
Nódulos “pirataria/piratarias” 160 ocorrências, referindo-se à prática ilegal de
cópias de produtos.
Forma verbal “piratear” e flexões 18 ocorrências, cuja maioria se encontra na forma de
particípio verbal (produtos pirateados etc.).
Nódulo “pirateiros” 1 ocorrência
TOTAL 219 ocorrências
Tabela 3 – Ocorrências de nódulos com o radical “pirat-” no corpus
É importante ressaltar que, entre as 219 ocorrências de palavras com o
radical “pirat-” no corpus, nenhuma é empregada no espaço não metafórico, nem na forma
de comparações simples. Esse fato nos mostra quão enraizadas essas metáforas estão na
nossa linguagem.
103
Vejamos como esse esquema metafórico envolvendo a pirataria e seus
elementos se comporta dentro do texto transcrito em (20). As referências metafóricas feitas
à pirataria são as seguintes:
i) Ela é fruto das desigualdades sociais;
ii) Ela é temida;
iii) Ela lesa diretamente os autores e artistas das obras, produtoras, gravadoras, co-autores e
outros profissionais;
iv) Ela vem crescendo no país;
v) Ela é um mal arraigado no Brasil só podendo ser extinto através de uma reforma
cultural.
103
Ressalte-se também que consideramos, entre essas ocorrências, as formas ortográficas não oficiais, como
“piratiados” etc.
137
Através dessas imagens exploradas no texto, podemos identificar os dois
esquemas relacionados à pirataria: A PIRATARIA É OBJETO, com base nas ideias
apresentadas em i) e v); e A PIRATARIA É PESSOA, baseando-se no que foi exposto em
ii), iii) e iv). Isso faz incluir a pirataria nas mesmas metáforas conceituais de Lakoff e
Johnson (1980) explicadas anteriormente.
Há outros elementos metafóricos que co-ocorrem com a pirataria nessa
mesma redação. Podemos identificar uma série de entidades abstratas que são apresentadas
como objetos concretos, a saber:
i) a cultura, em “cultura esfacelada”;
ii) a impunidade, em “impunidade arraigada”;
iii) a reforma cultural, em “seus frutos deixarão 1000 anos”.
E há outro elemento que também é apresentado na forma de personificação:
o país, em “o país não recolhe impostos”.
Portanto, confirmamos a existência de esquemas metafóricos nos quais
entidades abstratas são conceitualizadas como entidades concretas e também na forma de
personificação de seres a princípio não humanos.
Buscamos, no texto, também as referências feitas a lugares, que esta foi
muito recorrente nos textos anteriores. Encontramos uma remissão metafórica, através da
qual o espaço “em todas as partes do Estado Brasileiro” é concebido como terra, solo,
que nelas se encontra arraigada a impunidade
104
. Outras concepções de espaço aparecem no
texto de forma não metafórica, como “neste país” e “no Brasil”.
Em se tratando de um corpus formado por redações, que são uma
modalidade de texto em que é avaliado, entre vários itens, o emprego da norma padrão da
língua portuguesa, é visível que essa norma nem sempre prevalece, não sendo raras as
construções linguísticas nas quais acontecem alguns desvios mais ou menos previsíveis. No
corpo da nossa discussão a respeito das metáforas conceituais de lugar, resolvemos
desenvolver algumas considerações a respeito do uso bastante difundido da palavra “onde”
no português contemporâneo em contextos que não apresentam informações sobre lugar, já
que esse caso se manifestou na redação analisada acima.
104
Faça-se aqui uma ressalva: essa concepção de espaço só é considerada metafórica se tomarmos a origem
da palavra “arraigada”, de “raízes”. Conforme acontece em relação a muitas outras construções que estamos
tratando como metafóricas nesta pesquisa, na prática, nem todos os usuários da língua têm essa noção,
dependendo de sua história de leituras, contexto, formação, nível de escolaridade etc.
138
Comecemos por considerar os casos em que o “onde” é empregado de
acordo com a norma padrão, sendo visível a remissão feita a algum elemento que exprima
a noção de lugar. A dinâmica do emprego desse conectivo envolve duas sentenças, como
podemos ver abaixo na transcrição de um fragmento de outra redação do nosso corpus:
(21)
(...) ao verem suas obras valorizadas nas vitrines de lojas onde clientes se dão por satisfeitos
ao adquirirem produtos de alta qualidade.
105
No trecho acima, o pronome “onde” faz remissão a “lojas”, dando sequência
à ideia de que “nas lojas os clientes se dão por satisfeitos ao adquirirem produtos de alta
qualidade”.
Seguindo o princípio de que o nível linguístico é a porta de entrada para a
compreensão dos fenômenos cognitivos, entendemos que o emprego da palavra “onde”
está associado a algum tipo de processamento mental que justifique o seu uso. No caso de
(21), o pronome em questão é um conector que completa uma lacuna na Oração 2, fazendo-
se referência a “lojas”, mencionado na oração anterior. Assim:
Oração 1 Oração 2
ONDE [clientes se dão por satisfeitos ao adquirirem
produtos de alta qualidade]
Figura 20 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus, dentro da norma padrão
Voltando à redação (20), vamos nos ater especificamente à construção que
apresenta o pronome relativo “onde”, motivador das nossas elucubrações:
105
Fragmento transcrito da redação n° 213 do corpus, dentro do Subgrupo II. Grifo nosso.
[clientes se dão por satisfeitos ao
adquirirem produtos de alta
qualidade] EM X
Ao verem suas obras valorizadas
nas vitrines de lojas
139
(22)
“Especula-se que este surgimento, deu-se fruto das desigualdades sociais, principalmente de
uma cultura esfacelada, onde
a corrupção, impunidade arraigada em todas partes do Estado
Brasileiro, propiciou-se a violência”
(grifo nosso)
De acordo com a norma padrão do português, a palavra “onde”, na categoria
de pronome relativo, pode ser empregada se houver um antecedente que possa ser por
ela substituído correspondendo nitidamente a uma informação de lugar. Na prática,
percebe-se que o uso de “onde” é bem mais generalizado, como um conectivo que liga
termos e orações sem existir, necessariamente, um antecedente que exprima ideia de
espaço. Mas, continuamos com a ideia de que o nível linguístico é o indicador do que
ocorre no nível da cognição, e se esse uso do “onde” é bastante generalizado na nossa
prática linguística, é sinal de que acontece algo em termos cognitivos que a norma padrão
não adota como oficial.
No caso de (22), não existe, a rigor, um antecedente com essa característica.
Porém, o “onde” retoma cultura esfacelada”, e a oração relativa segue dizendo que a
corrupção propicia o surgimento da violência NESSA CULTURA ESFACELADA. Em
outras palavras, o pronome “onde” funciona como um conectivo (em termos sintáticos) e
um conector (em termos semântico-cognitivos) responsável pela metaforização de
“cultura” como espaço.
Nesse caso, em que não se encontra um correspondente explícito com
sentido de lugar na Oração 1, retoma-se algum outro elemento, que passa a ser
conceitualizado em termos de lugar. Assim:
Oração 1 Oração 2
ONDE [a corrupção, impunidade arraigada em todas partes
do Estado Brasileiro, propiciou-se a violência]
Figura 21 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus, envolvendo metaforização de
lugar
[a corrupção, impunidade
arraigada em todas partes do
Estado Brasileiro, propiciou-se a
violência] EM X
Especula-se que este surgimento,
deu-se fruto das desigualdades
sociais, principalmente de uma
cultura
esfacelada
140
Esse caso ainda é considerado aceitável dentro da norma padrão por alguns
gramáticos, mas outras sentenças que fogem completamente da normatização oficial do
português, como a que encontramos em nosso levantamento, que segue transcrita abaixo,
não apresentando, a princípio, nenhum antecedente a que pudéssemos imputar a noção de
lugar para que se fizesse a correspondência com o pronome “onde”.
(23)
Em grande escala tal ato fere o orgulho de produtos pirateados, que por sua vez são
injustiçados na medida que sofrem “solitariamente” as conseqüências, onde
muito se encontram
incapacitados.
106
Com relação ao fragmento acima, o caso se torna mais complexo, não por se
tratar de uma construção fora do padrão oficial da língua, mas pelo fato de que a retomada
feita pelo conector “onde” não é feita claramente a alguma palavra da Oração 1. Ou seja,
se, de fato, existe a intenção de um mapeamento da lacuna na Oração 2 em termos de lugar,
ele é preenchido com algum elemento que pode estar explícito ou implícito na Oração 1.
No caso de um elemento explícito, pode tratar-se de qualquer palavra da oração; no caso de
informação implícita, pode tratar-se de algum subentendido
107
, cuja depreensão é
totalmente dependente das intenções comunicativas do falante. Assinalamos, no nosso
esquema, essa situação com um sinal de interrogação na Oração 1, representando da
seguinte maneira:
106
Fragmento transcrito da redação n° 185 do corpus, dentro do Subgrupo II. Grifo nosso.
107
Segundo Ducrot (1977), o subentendido é um tipo de informação que integra o implícito discursivo, tendo
de ser recuperado abdutivamente, isto é, não existe nenhuma marca linguística que possa ser utilizada para se
proceder a algum tipo de dedução lógica. Como exemplo baseado no próprio autor, se enunciarmos “Ele
come caviar todos os dias no café da manhã”, um dos subentendidos possíveis em relação a essa sentença é
“Ele é rico”. Trata-se, portanto, de uma informação totalmente dependente do seu contexto de uso,
envolvendo conhecimentos de mundo, intenções do falante etc.
141
Oração 1 Oração 2
ONDE [muito se encontram incapacitados]
Figura 22 – Análise de emprego do pronome “onde” em fragmento do corpus, fora da norma padrão
Ao fazermos uso da interrogação na Oração 1 dentro do esquema acima,
queremos resguardar as possibilidades interpretativas, não centrando numa única
possibilidade. Entendemos que, no caso desse fragmento, o elemento da Oração 1 a
projetar-se para o ONDE podem ser, por exemplo, informações do tipo: “na atual
sociedade”, “na situação descrita”, “nesse estado de solidão” etc., ou até a palavra
“consequências”, no caso sendo concebida como lugar.
Encontramos uma situação parecida em outro fragmento do nosso corpus,
que transcrevemos abaixo:
(24)
A cada tecnologia lançada no mercado, seja ela desde brinquedos à eletrônicos, vem-se
avançando as táticas da pirataria, onde
a venda atrai os consumidores, na maioria das vezes, menos
favorecidos, atrapalhando o trabalho de pessoas que lutaram para fazer esse produto entrar no
mercado.
108
O emprego do “onde” acima enquadra-se no mesmo caso do esquema da
Figura 21, podendo a interrogação corresponder a “no mercado” (retomando um elemento
explícito da sentença), ou a “na pirataria”, “no mundo da pirataria” (metaforizando um
elemento explícito da sentença como lugar), ou a quaisquer outros elementos implícitos no
enunciado.
para termos uma noção da frequência com que ocorrem os casos de
emprego do relativo onde” no nosso corpus inteiro, realizamos uma busca através do
WST, começando pelo levantamento de todas as ocorrências da palavra no nosso banco de
108
Fragmento transcrito da redação n° 196 do corpus, dentro do Subgrupo II. Grifo nosso.
[muito se encontram
incapacitados] EM X
[produtos pirateados (...) por sua
vez são injustiçados na medida
que sofrem “solitariamente” as
conseqüências] (?)
142
redações. A figura abaixo apresenta a primeira tela dos enunciados que contêm esse
nódulo:
Figura 23 – Primeira tela de listagem das ocorrências da palavra “onde” no corpus
Através do concordanciador, identificou-se o total de 174 ocorrências da
palavra “onde” no conjunto das redações. Apurando melhor esses dados, manualmente,
identificamos o seguinte: num total de 139 ocorrências (79,88% do total de vezes em que a
palavra aparece no corpus), a palavra “onde” funciona como pronome relativo, sendo que
em 39 enunciados ela é empregada com um antecedente que possui o sentido claro de
lugar; em 60 enunciados ela é empregada com um antecedente metaforizado na forma de
lugar; e em 40 enunciados a palavra se enquadra no mesmo uso exemplificado em (23),
sem uma referência a um lugar específico.
Observe-se que, comparando o número de cada tipo de ocorrência, são
muito relevantes os casos em que o relativo “onde” não remete a nenhum antecedente
explícito com sentido de lugar, fugindo totalmente da norma padrão, mas, de fato ele é
utilizado. Esse caso corresponde a 28,77% do total de ocorrências desse pronome relativo
143
no nosso corpus, fato que não pode ser desconsiderado num estudo em que a noção de uso
linguístico é fundamental para a compreensão dos aspectos da cognição.
Enfim, o que é importante salientar no breve estudo que fizemos em relação
ao anafórico “onde” pode resumir-se no seguinte: trata-se de um elemento que pode
estabelecer conexões entre espaços em diferentes níveis: i) retomando elementos explícitos
numa das orações de entrada para a mescla, com ideia clara de lugar; ii) retomando
elementos explícitos numa das orações de entrada para a mescla, metaforizando-os em
termos de lugar; iii) retomando elementos não claramente depreendidos numa das orações
de entrada para a mescla, quer no nível explícito, quer no implícito, metaforizando-os ou
não em termos de lugar, sendo essa retomada totalmente dependente das intenções do
usuário da língua.
4.5.1.3 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo III
Passemos, agora, à análise de uma redação representativa do terceiro
subgrupo de textos do corpus da tese, cuja temática é bem diferente da dos subgrupos
anteriores. Tomamos a redação número 232, que segue transcrita abaixo:
(25)
Você é realmente feliz?
A maioria das pessoas não são mais felizes porque pensam que a felicidade está nos bens
materiais. Alguns acham que seriam bem mais felizes se comprasse um carro, uma casa ou se
tivesse uma grande poupança no banco.
Quando conseguem, descobre que não era isso e continuam insatisfeitos.
E para o ser humano encontrar a verdadeira felicidade, deve procurar nas pequenas coisas;
como o abraço de um irmão, o sorriso de uma criânça quando ela está feliz, dar uma palavra de
conforto a um necessitado e não críticas maldosas como a maioria faz, ter um momento de lazer,
sair com a família e ler um bom livro.
Assim, realmente serás bem mais feliz.
Mais uma vez, encontramos, com alto grau de recorrência, o esquema
metafórico ABSTRATO É CONCRETO, através do qual o elemento “felicidade é
conceitualizado em termos de um objeto que se encontra em certos lugares.
Logo na primeira linha da redação, deparamos com um introdutor de espaço
mental, a forma verbal “pensam”, que cria um domínio no qual serão inseridos elementos e
ideias os quais serão contestados a posteriori. Imediatamente nesse espaço se instaura o
elemento “felicidade”, já metaforizado como um objeto concreto que se encontra no espaço
144
também metaforizado “bens materiais”. Esses bens materiais são pormenorizados na
forma de uma remissão catafórica, resumindo-se em “casa”, “carro” e “poupança”.
Mais adiante no texto, o autor torna a falar sobre a felicidade, mas diferente
da anterior; desta feita, ele fala sobre a “verdadeira felicidade”, que, mais uma vez, aparece
na forma de um objeto concreto que se encontra no espaço metaforizado das “pequenas
coisas”: “abraço de um irmão”, “sorriso de uma criança”, “palavra de conforto” etc.
O texto inteiro pode ser representado na forma de um esquema metafórico
da concretização de elementos abstratos, conjugado com outro esquema metafórico,
segundo o qual OBJETOS SÃO LUGARES. Esses esquemas se manifestam em relação
aos dois grandes elementos do texto (“felicidade” e “verdadeira felicidade”), da maneira
como representamos abaixo:
Esquema metafórico ABSTRATO É CONCRETO
Esquema metafórico OBJETO É LUGAR
Figura 24 – Esquema da organização metafórica do texto (25)
No quadriculado à esquerda do esquema acima se encontram inseridos todos
os elementos que se apresentam sob a metáfora ABSTRATO É CONCRETO. A
“felicidade” e a “verdadeira felicidade” são duas entidades abstratas que, no texto, são
reificadas, como objetos que se encontram em determinados lugares. No caso da
Felicidad
e
Verdadeira
felicidade
Bens materiais
(carro, casa,
poupança)
Pequenas coisas
(o abraço de um
irmão, o sorriso de
uma criança, dar
uma palavra de
conforto a um
necessitado, ter um
momento de lazer,
sair com a família,
ler um bom livro)
145
“felicidade”, segundo o conteúdo da redação, alguns supõem que ela se encontra nos “bens
materiais”, que são elementos concretos apresentados no texto (carro, casa, poupança);
daí a razão de alocarmos o domínio fora desse primeiro esquema metafórico. No caso da
“verdadeira felicidade”, que se encontra nas “pequenas coisas”, alocamos os dois domínios
no esquema metafórico da concretização das entidades abstratas. Observe-se que, nesse
caso, também as ações (dar uma palavra de conforto a um necessitado, ter um momento de
lazer, sair com a família, ler um bom livro) são metaforizadas em lugares concretos onde se
encontra a “verdadeira felicidade”. O esquema metafórico OBJETO É LUGAR,
representado no quadriculado mais à direita do esquema, engloba tanto os elementos
concretizados (pequenas coisas) quanto os objetos concretos (bens materiais).
A oposição apresentada no texto entre o caráter material e o imaterial dos
lugares onde se encontrariam, respectivamente, a felicidade e a verdadeira felicidade
acompanha a defesa central da redação de que a felicidade está ligada à concretude das
coisas do mundo, enquanto a verdadeira felicidade se liga a sentimentos e ações, que são
entidades abstratas.
É interessante notar também, em relação ao texto (25), que a noção de
felicidade, em sua natureza primária, é apresentada lançando-se mão do recurso da
marcação, através da expressão “a verdadeira felicidade”, levando o leitor à dedução de
que existe também, no caso, “a falsa felicidade”. Esta última é apresentada em relação aos
bens materiais, de forma não marcada no texto, simplesmente como “felicidade”.
4.5.1.4 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo IV
O tema em torno do qual giram as redações desse subgrupo, assim como no
anterior, é bastante abstrato (“sonhos de simplicidade”), o que de certa forma nos prepara
para o fato de que deve ser muito explorado o uso das metáforas, que, conforme vimos
especialmente através das ideias de Stefanowitsch, conceitos envolvendo entidades
abstratas são menos acessíveis à nossa experiência imediata, existindo uma predisposição a
que se manifestem metaforicamente mais do que os conceitos relacionados a entidades
concretas.
Para análise, tomamos aleatoriamente como representante do Subgrupo IV a
seguinte redação, de número 247 do nosso corpus:
146
(26) No Piloto-automático
Em meio à tanta correria, confusão cotidiana e da busca pela sobrevivência em meio à lei da
selva imposta pela modernidade urbana, o homem não toma consciência de como sua vida e
automática e em busca... sabe-se lá de quê. Vive-se como máquina, sem sonho, sem poesia.
São dois caminhos paralelos: a busca incessante pelo glamour para estar sempre em
evidência, quase uma estrela de cinema e a busca pela simplicidade bucólica. Para não ser
atropelado é preciso parar um pouco, às vezes e refletir para onde caminhamos e para quem
estamos vivendo. Se não pisarmos nos freios e tomarmos a direção poderemos chegar em qualquer
lugar, isto é, em um lugar qualquer. Temos que ser atentos aos pequenos detalhes do caminho,
aqueles que fazem toda a diferença da viagem, dão graça e beleza. Por outro lado se a marcha for
muito lenta poderemos não chegar a tempo e até mesmo sermos atropelados no meio do caminho,
atrapalharemos o trânsito, precisaremos de socorro.
Toda viagem tem um roteiro; um plano de partida e de chegada. É importante não vivermos
no piloto-automático.
Logo de início, identifica-se que o texto todo é estruturado nos moldes da
metáfora conceitual A VIDA É UMA VIAGEM, tratada exaustivamente por vários autores
dentro dos estudos cognitivos
109
. Através desse esquema metafórico, fatos e elementos da
vivência diária são concebidos como ocorrências de uma grande jornada, manifestando-se
da seguinte maneira no texto (26):
Domínio cognitivo da vida Domínio cognitivo da viagem
Figura 25 – Mapeamentos entre elementos de domínios cognitivos do texto (26)
109
Entre eles, Lakoff e Johnson (1980) e Lakoff (1993).
Fatos cotidianos
Alternativas de vida
Ficar excluído da sociedade
Acalmar
Pensar, refletir
Ter controle da situação
Apatia
Atingir negativamente a vida de
outrem
Projeto de vida
Inércia
Correria, confusão
Caminhos paralelos
Ser atropelado
Parar um pouco
Pisar nos freios
Tomar a direção
Marcha lenta
Atrapalhar o
trânsito
Roteiro de viagem
Piloto automático
147
A maioria dos mapeamentos apresentados na figura acima é comum em
vários estudos que tratam desse tipo de esquema metafórico, do qual derivam outros
bastante comuns também, a exemplo de O AMOR É UMA VIAGEM,
RELACIONAMENTOS PESSOAIS SÃO UMA VIAGEM etc. Um aspecto relevante que
se percebe no texto (26) é que, uma vez desenvolvido o esquema metafórico A VIDA É
UMA VIAGEM, dentro dele vários elementos praticamente novos podem surgir, a
exemplo de “piloto automático”, no domínio cognitivo da viagem, que corresponde a uma
postura semelhante à inércia daqueles indivíduos que vivem a vida sem grandes emoções,
sem tomar atitudes ativas em relação à própria vida. É nesse ponto que entra em cena a
criatividade do usuário da língua, com o desafio de se manter a coerência de mapeamentos
entre os elementos de ambos os domínios.
Afora essas questões relativas ao esquema metafórico acima descrito,
vejamos se ocorrem outros tipos de metáfora, nos moldes dos textos de redação analisados
anteriormente.
Existem algumas ocorrências que se enquadram na metáfora ABSTRATO É
CONCRETO, como nos seguintes enunciados: “em meio à lei da selva imposta pela
modernidade urbana” (a modernidade urbana é concretizada, e até personificada, ao tornar-
se agente da imposição da lei da selva); “os pequenos detalhes do caminho (...) fazem toda
a diferença da viagem, dão graça e beleza” (os detalhes também são apresentados à maneira
de elementos concretos, além de animados).
outras expressões que expressam metaforicamente a noção de espaço,
como atestam os seguintes enunciados, nos quais sublinhamos o elemento que exprime
essa ideia: “Em meio à tanta correria, confusão cotidiana
”; “em meio à lei da selva imposta
pela modernidade urbana” etc.
Nas primeiras linhas do texto (26), surge também uma construção
metonímica, representada pelo substantivo “homem”, que ele está sendo empregado no
sentido mais amplo do que ao referir-se a um simples indivíduo; ele representa toda a
humanidade. Trata-se de uma metonímia bastante comum na nossa prática linguística. A
título de ilustração, resolvemos fazer o levantamento de quantas vezes o nódulo “homem”
aparece no corpus inteiro da pesquisa, analisando também a proporção em que se enquadra
na metonímia. A primeira tela dos resultados é a seguinte:
148
Figura 26 – Primeira tela de listagem das ocorrências da palavra “homem” no corpus
Foi detectado o total de 132 ocorrências do nódulo “homem” no conjunto
das redações, e, através de busca manual, constatou-se que em sua grande maioria (130
enunciados 98,48% das ocorrências) essa palavra é empregada metonimicamente. Os
únicos casos em que “homem” não está associado à metonímia são quando o autor faz um
relato à moda das clássicas narrativas, centrando a atenção em algum indivíduo
110
. Nessa
situação, o nódulo em questão é precedido pelo artigo indefinido “um”. No entanto,
existem outras três ocorrências no corpus que, mesmo na presença do artigo indefinido
como o colocado imediato à esquerda de “homem”, não se referem a um indivíduo em
110
Cf. os trechos das redações em que acontece esse caso: “Quinta-feira (13/07/2006) passou no programa
Linha Direta o caso de Edson, um homem
que seduzia as mulheres e as destabilizavam financeiramente, o
mesmo mostrou várias comunidades do Orkut que foram criadas pelas vítimas de Edson, uma delas é ‘Eu
odeio Edson’, as vítimas postam fotos do infrator solicitando ajuda.” (redação n° 40) e “Morava em uma
fazenda um homem
muito triste. Todos os dias, o pobre, levantava muito cedo, para cuidar dos seus
afazeres.” (redação n° 243). Grifos nossos.
149
especial
111
. É visível que a maioria dos casos em que “homem” remete a toda a
humanidade ocorre quando está precedido pelo artigo definido “o”.
Buscamos também as ocorrências do nódulo “humanidade”, e notamos que
o seu uso é mais restrito do que o de “homem” em sua acepção metonímica: há 26
ocorrências em todo o corpus, o que corresponde à exata proporção de 20%. Dentre as
ocorrências, somente uma se refere à humanidade na forma de sentimento, não ao conjunto
de homens, conforme podemos observar na linha 7 da tela abaixo:
Figura 27 – Listagem das ocorrências do nódulo “humanidade” no corpus
Nota-se que, no nosso corpus, é nítida a preferência pelo uso da metonímia
baseada no substantivo “homem” ao uso do seu sinônimo abstrato “humanidade”. A
explicação que aventamos para esse fato, com base na função das metáforas e das
metonímias como recursos facilitadores para a compreensão de ideias, é que preferimos
utilizar elementos concretos uma vez que são mais acessíveis à nossa experiência de
mundo, conforme o que foi explicado em relação aos estudos realizados por
111
Nesses casos, a ideia que parece mais apropriada é mesmo a de indefinição de indivíduo. Cf. os trechos,
com grifos nossos: “Nota-se hoje um homem
totalmente parasita de seu computador, podendo realizar
pequenas compras e até mesmo satisfazer prazeres através de um só click.” (redação n° 309); “Pois a
qualquer instante somos vítimas de uma grande força destruidora, como pode gerar o próprio fim de um
homem.” (redação n° 496); “Os sonhos de um Homem” (título da redação n° 251).
150
Stefanowitsch a utilizar nomes abstratos, que não possuem plasticidade nem limites
definidos. Assim, falar de “humanidade” utilizando o hipônimo “homem” proporciona uma
compreensão mais clara e acessível aos interlocutores.
4.5.1.5 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo V
Vejamos, agora, o comportamento das metáforas em três redações do
Subgrupo V do nosso banco de textos, na tentativa de confirmar a existência dos esquemas
já identificados nos levantamentos anteriores e de identificar novas ocorrências envolvendo
metáforas e metonímias que sejam relevantes para o nosso trabalho.
Comecemos com o texto abaixo, correspondente à redação número 363 do
nosso corpus:
(27)
Justiceiros da rede
Ter um computador em casa virou uma necessidade, tanto para o trabalho quanto pesquisas
e trabalhos escolares. Mas os pais tem que estar alertas aos filhos para não ficarem dependentes,
viciados em jogos e ao se comunicarem com estranhos.
Os justiceiros virtuais invadem sites para pregarem piadas de mau gosto, fotos explicitas, até
mesmo de crianças, roubam dinheiros de contas alheias. As mensagens de racismo como negros e
gays os ofendem sem nada ter como fazer justiça.
Na maioria dos casos são jovens de classe média que até mesmo traficam pela internet, sem
falar nos casos de sequestro e estupro de jovens que marcam encontros com estranhos a procura de
um namoro. Na internet você tem muitas diversidades como bancos, shopping etc. sem sair de
casa.
No texto acima, confirmamos a existência do esquema metafórico
ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO LUGARES através dos seguintes enunciados:
“Os justiceiros virtuais invadem sites para pregarem piadas de mau gosto” (sites são
espaços passíveis de invasão); “jovens de classe média que até mesmo traficam pela
internet” (a Internet é um local em que acontece o tráfico); “Na internet você tem muitas
diversidades como bancos, shopping etc. sem sair de casa.” (a Internet é concebida como
um lugar parecido com uma cidade).
Nessa redação, encontramos também outros elementos sobre os quais
comentamos anteriormente, a exemplo do que foi discorrido em relação à palavra “justiça”.
No título do texto, “Justiceiros da rede”, uma ambiguidade em relação a
“rede”, podendo ela ser interpretada metaforicamente como um ser animado que possua
151
justiceiros, ou como um lugar também metafórico que apresenta justiceiros. Pelos
elementos levantados no decorrer do texto, esta última interpretação parece mais aplicável,
mantendo-se a coerência dentro do esquema explicado acima.
O espaço metafórico da Internet co-ocorre com o espaço não metafórico
“casa”, que é mencionado nos seguintes trechos: “Ter um computador em casa
virou uma
necessidade” e “Na internet você tem muitas diversidades como bancos, shopping etc. sem
sair de casa
.” (grifos nossos). A importância das metáforas de lugar, nesse caso, está, mais
uma vez, no fato de que o autor traz para o domínio concreto, mais perceptível para os
indivíduos em decorrência de sua experiência quotidiana, o que, a priori, faz parte do
mundo imaginário. A ideia de Internet seria pouco acessível à compreensão humana se
fosse elaborada lançando mão somente de conceitos do campo da Informática e da
Eletrônica. Ao ser concebida como um espaço concreto, no entanto, seus limites e
constituintes tornam-se mais facilmente visualizáveis, justificando aí a função cognitiva da
metáfora.
Passemos a outra redação desse mesmo subgrupo, tendo sido escolhida
aleatoriamente a de número 259 do nosso corpus, que segue transcrita abaixo:
(28)
O mundo sem limite da Internet
A Internet é um mundo paralelo, onde é possível se ter acesso a janelas de toda e qualquer
natureza. É um mundo sem limite, o qual “o que se procura acha” e encontram também o que não
procuram. E para a infelicidade de muitos, há essa última opção, a qual um número grande número
pessoas são lesadas, através da Internet, não apenas pelos inumeros danos morais que ocorrem,
mas principalmente roubos de dinheiro de contas bancárias.
Existem sites inseguros e ou suspeitos, e-mails enviados com falsas propagandas ou cartões
virtuais que, por falta de maiores esclarecimentos, as pessoas clicam sobre o link (endereço), sem a
devida atenção na extensão do mesmo - exe, ser que é vírus - e então têm acesso a página, ou
melhor, dão ao vírus o qual os anti- vírus podem ser incapazes de acusar acesso a seus
computadores. Vírus são programas criados por hackers para terem acesso aos computadores
alheios – para simplesmente xeretar ou causar aborrecimentos e danos morais ou até mesmo
maiores transtornos como roubar – acesso esse que hackers adquirem quando outrem clica no link,
sendo o de vírus, então ele se instala automaticamente no computador, ficando este a mercê do
hacker. Portanto, assim eles podem conseguir senhas, como as bancárias e estorquir seus
respectivos dinheiros.
Sendo a Internet um mundo paralelo ao nosso, ela é também como o nosso, onde muita
cultura, laser e informação: entretanto, “também” muita maldade, com uma certa diferença, no
mundo virtual não existem leis e muitos malfeitores, ainda, se mantêm impunes.
A partir do tulo da redação, “O mundo sem limite da Internet”, existe a
concepção da Internet em termos de lugar, que é confirmada ao longo de todo o texto
através de outros enunciados, mas sob um aspecto relevante para o nosso estudo. Vimos
152
que a metáfora possui a função de trazer para a realidade dos indivíduos conceitos que
seriam muito complexos de serem apreendidos na forma não metafórica alguns, até
inexistentes nesta forma (por exemplo, a noção de lidar com o tempo, que sempre é
manifestada em situações nas quais este se apresenta como um objeto concreto). Quando o
autor se refere ao mundo da Internet como um espaço ilimitado, faz isso com base na noção
de limite de espaço dentro da nossa concepção de mundo concreto, sensível. Ou seja,
mesmo que a noção de espaço apresentada seja a mais ampla possível, ela o é com base no
nosso espaço concreto, relativamente ao que somos capazes de entender como “sem limite”
no nosso dia-a-dia.
São os seguintes os enunciados que confirmam a presença do esquema
metafórico ELEMENTOS DE INFORMÁTICA SÃO LUGARES no texto (28): “A
Internet é um mundo paralelo, onde é possível se ter acesso a janelas de toda e qualquer
natureza.”; “[A Internet] É um mundo sem limite”; “ele [o vírus] se instala
automaticamente no computador”; “Sendo a Internet um mundo paralelo ao nosso, ela é
também como o nosso, onde há muita cultura, laser e informação”.
Identifica-se no texto também a metáfora da personificação de elementos da
Informática, especialmente através da construção “Existem sites inseguros e ou suspeitos”,
cuja adjetivação, embora não seja exclusiva para seres humanos, é empregada em ampla
escala para tal.
Podemos identificar também, nesse texto, a presença de um dos esquemas
postulados por Lakoff (1987), “origem-caminho-destino”. Normalmente, a comunicação
humana é concebida nesses termos, e nela se inclui a comunicação realizada através da
Internet. Quando se fala sobre “e-mails enviados com falsas propagandas”, o autor está
reproduzindo o esquema de Lakoff, manifestado em várias outras expressões facilmente
encontradas no nosso quotidiano, como “receber e-mail”, “e-mail devolvido”, “enviar e-
mail”, “interceptar uma mensagem”, “remetente”, “destinatário” etc. A comunicação por
meio eletrônico que se instaurou há poucas décadas na nossa vida diária incorporou
praticamente por completo as formas de linguagem utilizadas na comunicação via postal,
que em grande parte foi substituída.
Nessa mesma construção linguística, temos a presença também da metáfora
do contêiner: os e-mails são concebidos como recipientes capazes de conter objetos, que,
no caso, são as “falsas propagandas”. Isso também é um reflexo das expressões comumente
utilizadas na comunicação verbal humana, seja via oral, escrita, eletrônica etc. Além disso,
153
é válida a relação entre essa forma comunicativa com a metáfora do tubo, de Reddy (1979),
também explicada anteriormente. O percurso da comunicação eletrônica, no caso, é
metaforizado na forma de um conduto que liga emissor e receptor, concepção que também
gera uma série de outras construções metafóricas.
O que queremos demonstrar com essa rápida explanação sobre esquemas e
metáforas é que, na organização de um texto, esses elementos se sobrepõem em função da
busca da maior clareza possível sobre as ideias a serem apresentadas. Ou seja, não existe
um esquema metafórico único num texto. Muitas vezes, uma mesma construção linguística
corresponde a mais de um tipo de esquema ou metáfora.
Vejamos outro exemplar desse mesmo subgrupo de redações para esse
mesmo tipo de levantamento a que estamos procedendo. Trata-se da redação número 400,
que segue transcrita abaixo:
(29)
Luto inútil
No mundo inteiro os orgãos que exercem a justiça não conseguem ou não querem atender as
necessidades mundiais. Em uma grande quantidade de paises o sistema judiciario é falho, corrupto
e ineficaz, dando espaço para grupos justiceiros.
Esses grupos ja cansados de esperar tomaram uma atitude ofensiva ao que eles consideram
errado. Atacando sites de pedofilia e discriminação eles nos livram dessas más influências
temporariamente. Ja era ora de parar de esperar tudo e agir.
Porém a forma que eles escolheram para agir não é a melhor opção. Não se pode combater
os assassinatos assassinando, assim o indivíduo se tornaria o próximo alvo. Muitas outras
alternativas pode ser aplicadas com mesma eficácia e menor risco.
Para o combate tanto da divulgação de material ofensivo, quanto da questão desses
justiceiros, é necessário uma maior atuação das autoridades que praticamente ignoram essa
questão. Uma forte atuação da justiça não inibiria, mas diminuiria e muito esse problema.
Os justiceiros existem para aqueles que as autoridades não alcançam essa lei a única
alternativa encontrado, lutar numa guerra sem fim; pois as paginas que vão sendo destruídas são
rapidamente reconstruídos.
No primeiro parágrafo dessa redação, surge uma metáfora construída através
de uma sequência de adjetivos que levam à concepção do “sistema judiciário” como uma
pessoa, investido da caracterização “falho, corrupto e ineficaz”. Dentro desse esquema
metafórico ELEMENTOS DA JUSTIÇA SÃO PESSOAS, emergem outras construções,
cujo elemento personificado foi grifado por nós: “No mundo inteiro os orgãos
que exercem
a justiça não conseguem ou não querem atender as necessidades mundiais.”; “Esses grupos
ja cansados de esperar tomaram uma atitude ofensiva ao que eles consideram errado.”;
154
“Atacando sites de pedofilia e discriminação eles [esses grupos] nos livram dessas más
influências temporariamente”.
Um aspecto de interesse para os nossos estudos surge na redação ora
analisada, e nos leva a desenvolver algumas considerações que podem ser interessantes
para a compreensão da presença de metáforas na organização textual. Ele se centra na
construção “assim o indivíduo se tornaria o próximo alvo”, em que aparece um verbo
relacional (“tornar-se”), que, da mesma forma que o verbo “ser”, é um elemento investido
de grande potencialidade para a formação de metáforas, especialmente quando estabelece
ligação entre formas substantivas.
No trecho em questão, observamos um movimento contrário ao processo de
personificação, pois, nesse caso, fala-se de um ser animado (“indivíduo”) que é concebido
como um ser não animado (“alvo”), denotando destituição de traços humanos em relação
ao primeiro. Embora essa construção não possua a mesma estrutura das metáforas de
personificação, ambas tratam de processos que envolvem seres animados e não animados, e
como esse par dicotômico é muito recorrente no nosso levantamento, detivemo-nos um
pouco mais nesse assunto.
Analisando as ocorrências em que aparece o nódulo “tornar” no corpus, em
todas as suas variações verbais possíveis, percebemos que é muito ampla a diversidade de
casos a que se relaciona esse verbo, podendo ser descritos à luz dos elementos da LCog.
Com auxílio da ferramenta de concordanciação do WST, identificamos 149 ocorrências do
nódulo em todo o banco de textos, cuja primeira tela de resultados segue abaixo:
155
Figura 28 – Primeira tela da lista de ocorrências da forma verbal “tornar” e suas flexões verbais
Para descrever essas ocorrências, tomamos a noção sobre compressão,
explicada sucintamente ao final do terceiro capítulo deste trabalho. Segundo Fauconnier e
Turner (2000), um enunciado como “Ele parece violento” apresenta o fenômeno da
compressão porque se misturam duas imagens num domínio: a do indivíduo em questão
e a de um indivíduo violento. Ao arrolar as ocorrências no corpus com a forma verbal
“tornar”, percebemos que muitas delas apresentam adjetivos como seus colocados
imediatos à direita, podendo ser enquadradas no mesmo caso acima de Fauconnier e
Turner. Tomemos um exemplo para uma descrição mais detalhada:
(30) Com a globalização, a internet tornou-se essencial na vida da humanidade.
112
A forma verbal “tornou-se” funciona como um conector de espaços que
viabiliza a conceitualização do elemento “internet” em termos de algo “essencial”, sob o
112
Trecho transcrito da redação número 303 do corpus.
156
processo de compressão, semelhante ao representado na Figura (13) no capítulo anterior.
Acontece uma mesclagem para cujo domínio são projetados os elementos “internet” (sem a
característica de ser essencial na vida da humanidade) e a caracterização “essencial” típica
de qualquer elemento na vida da humanidade.
Outras ocorrências envolvendo a construção tornar + adjetivo” (sem que,
necessariamente, o adjetivo seja o colocado imediato à direita do verbo) foram encontradas
no corpus, a exemplo das seguintes: “tornando a vida das pessoas mais tranqüilas”
113
, “um
meio de informação importante, que acaba tornando fundamental pra muitos casos”
114
,
“que a nossa justiça se torne mais ágil”
115
, “com um click tudo se torna possivel”
116
,
“tornando prazeroso e eficaz o trabalho humano”
117
, “passar horas em frente a um
computador se tornou comum aos internautas”
118
, “O mundo virtual está se tornando cada
vez mais popular na vida de quase toda população mundial”
119
, “torna bem mais fácil e
eficaz sua divulgação”
120
, “o problema se tornará irreversível”
121
, “a internet se tornou
indispensável”
122
, “o ser humano se torna cada vez mais cruel”
123
, entre várias outras.
Não concebemos as construções acima como metafóricas propriamente,
pois não existe o emprego de um elemento do domínio-fonte que atinja outro elemento de
um domínio-alvo. O fenômeno da compressão, juntamente com o da MC, é de fato a
melhor explicação que se tem para essas ocorrências. Com o uso de adjetivos, o que
acontece nesses enunciados é a evolução de característica de um mesmo ser. Em relação ao
enunciado (30), por exemplo, passa-se de uma concepção da Internet destituída do caráter
“essencial” para uma nova concepção sobre a mesma, agora no âmbito de sua
essencialidade na vida dos homens.
Já em relação ao enunciado identificado na redação (29) (“assim o indivíduo
se tornaria o próximo alvo”), existe um mapeamento entre elementos de diferentes
domínios, caracterizando um processo metafórico: a evolução do “indivíduo” denotada
pela forma verbal “tornar-se não diz respeito a uma simples incorporação de
113
Trecho da redação nº 333.
114
Trecho da redação nº 321.
115
Trecho da redação nº 319.
116
Trecho da redação nº 344.
117
Trecho da redação nº 354.
118
Trecho da redação nº 334.
119
Trecho da redação nº 339.
120
Trecho da redação nº 284.
121
Trecho da redação nº 263.
122
Trecho da redação nº 449.
123
Trecho da redação nº 475.
157
característica, mas, sim, acontece a projeção de um domínio a outro, do humano
(“indivíduo”) ao inanimado (“alvo”).
Foram identificadas várias outras ocorrências em que a forma verbal
“tornar” se liga a mapeamentos entre diferentes domínios, a exemplo das seguintes:
“verdadeiramente a internet se tornou uma ‘terra sem lei’”
124
, “a internet tornou-se o meio
de comunicação mais usado de todos os tempos”
125
, “a internet veio se tornando um vício
para a maioria dos seres humanos”
126
, “o perigo virtual pode se tornar uma arma contra a
sociedade”
127
, “as fantásticas invenções tornaram-se armas nas mãos de malfeitores”
128
, “a
internet se tornou o melhor ataque de bandidos”
129
, “E esse que era para ser um ‘mundo de
magias’ vem se tornando um labirinto com armadilhas”
130
, “A internet atualmente está se
tornando um vício entre os jovens brasileiros”
131
, “a necessidade por segurança virtual
tornou-se a célula deste organismo”
132
, “Este fato está se tornando uma falta de
respeito”
133
, entre outras.
Comparando as ocorrências metafóricas nas redações anteriores e o tipo de
conceitualização realizado pelas construções acima, que também o metafóricas,
percebemos que os padrões aventados por Lakoff e Johnson (1980) e as premissas
desenvolvidas por Stefanowitsch (2005) não se aplicam muito bem quando entra em cena
no enunciado o verbo relacional “tornar”: enquanto os padrões metafóricos apresentados
por esses autores são do tipo OBJETOS SÃO PESSOAS e SERES INANIMADOS SÃO
SERES ANIMADOS, identificamos a possibilidade de ocorrência de padrões invertidos:
SER ANIMADO TORNA-SE INANIMADO e PESSOA TORNA-SE OBJETO. Vamos
desenvolver melhor essa questão, à luz dos princípios e dos elementos da Semântica
Cognitiva.
124
Trecho da redação nº 328.
125
Trecho da redação nº 268.
126
Trecho da redação nº 451.
127
Trecho da redação nº 369.
128
Trecho da redação nº 422.
129
Trecho da redação nº 388.
130
Trecho da redação nº 388. Nesse trecho, existe ainda a ocorrência do verbo “ser” ligando dois elementos
de uma relação conceitual.
131
Trecho da redação nº 4.
132
Trecho da redação nº 54.
133
Trecho da redação nº 219.
158
Analisando os enunciados do nosso corpus que apresentam o verbo
“tornar”
134
, conseguimos divisá-los em três grupos distintos, que representamos da seguinte
maneira:
i) A torna-se A
1
, em que A é um elemento de natureza substantiva e A
1
é o elemento A
acrescido de uma caracterização típica de qualquer outro elemento X. É o caso, por
exemplo, de enunciados como “o ser humano se torna cada vez mais cruel”, possíveis de
serem entendidos dentro do processo de compressão. No esquema abaixo, em relação a
esse mesmo exemplo, A = “ser humano”; 1 = característica “cruel”; X = qualquer
elemento:
Figura 29 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se A
1
ii) A torna-se B, em que A é um elemento de natureza substantiva e B é um elemento
diferente de A e não metafórico. Esse caso pode ser descrito à luz da teoria dos EM, em
que a forma verbal “tornar(-se)funciona como um conector, estabelecendo uma relação
de identificação de A em termos de B. É o caso de enunciados como “as maldades se
tornem lealdades”
135
, em que A = “maldades” e B = “lealdades”
136
. Esquematicamente:
134
Essa análise pode estender-se também a construções com outros sinônimos relacionais, como “virar”,
“transformar(-se em)”, além, evidentemente, do verbo “ser”, que é um verbo relacional por excelência
utilizado nesse tipo de conceitualização, mas preferimos nos centrar somente no verbo “tornar” para não
incorrermos em desvios desnecessários no nosso trabalho.
135
Trecho da redação nº 249.
136
Esse exemplo é bastante parecido com o clássico de Gilles Fauconnier: “A garota de olhos azuis tem olhos
verdes”, já comentado anteriormente, em que elementos à primeira vista antagônicos podem ser entendidos
no mesmo contexto.
A
A
1
X
1
159
Figura 30 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se B”
iii) A torna-se B
m
, em que A é um elemento de natureza substantiva e B
m
é um elemento
diferente de A e metafórico. Nesse caso, cuja descrição mais adequada é via MC, incluem-
se construções do tipo encontrado na redação transcrita em (29): “o indivíduo se tornaria o
próximo alvo”. A diferença crucial desse modelo em relação ao anterior é que A é
conceitualizado através de algum entendimento metafórico, envolvendo personificação,
relação abstrato/concreto etc. No esquema abaixo, A = “o indivíduo”, B = “alvo” e B
m
=
“alvo” metafórico. Para que “o indivíduo” seja metaforizado como “alvo”, é realizado um
mapeamento com o objeto “alvo” não metafórico, e a metáfora propriamente é formada no
espaço emergente da mescla:
Figura 31 – Representação de enunciados do tipo “A torna-se B
m
A
B
A
B
B
m
160
A categoria que mais nos interessa é esta representada imediatamente acima,
justamente por constituir-se uma metáfora. Na tentativa de oferecer uma explicação
plausível para o fato de que, na construção metafórica exemplificada, parece ter havido
uma inversão dos elementos que constituem um esquema metafórico (uma pessoa torna-se
um objeto, e não o contrário, como foi encontrado em vários casos, atendendo-se ao padrão
apresentado por Lakoff, Johnson, Stefanowitsch e outros), chegamos ao seguinte:
quando nos postamos diante de esquemas como ABSTRATO É CONCRETO, SERES
INANIMADOS SÃO PESSOAS, ELEMENTOS DA INFORMÁTICA SÃO LUGARES
etc., manifesta-se a conceitualização através do verbo “ser”, mas este não aparece,
necessariamente, na superfície linguística; nós é que depreendemos a relação através da
apresentação de somente um dentre os dois elementos. Quando se diz que “o sistema
judiciario é falho, corrupto e ineficaz”, vigora a metáfora ELEMENTOS DA JUSTIÇA
SÃO PESSOAS, mas somente o primeiro termo dessa concepção aparece explícito na
sentença (“o sistema judiciário”). A conceitualização deste como uma pessoa se dá através
do emprego de adjetivos próprios de pessoas.
em construções nas quais se utiliza a forma verbal “tornar(-se)”, ambos
os elementos são explicitados na construção linguística. Nesse caso, um pode ser
facilmente concebido em termos do outro, sem que a direção estabelecida seja
necessariamente do abstrato para o concreto, do inanimado para o animado etc. Em outras
palavras, o procedimento de trazer ambos os elementos para a superfície linguística por
exemplo, através do verbo “tornar(-se)” parece viabilizar o duplo direcionamento da
relação conceitual entre eles, justamente por estarem explícitos no enunciado.
Outras ocorrências no corpus enquadram-se nesse caso, como atestam os
seguintes enunciados: “o homem contemporâneo acaba se tornando um robô”
137
e “criando
barreiras para que crianças não aprendam para não se tornarem futuros frutos desta
criminalidade virtual”
138
. Nesses casos, temos também seres animados (“o homem
contemporâneo” – que se liga também a uma metonímia – e “crianças”) que passam a ser
137
Trecho da redação nº 255.
138
Trecho da redação nº 148.
161
concebidos como seres inanimados (“robô” e “frutos”).
139
4.5.1.6 Levantamento metafórico inicial no Subgrupo VI
Como último texto do corpus para se proceder à análise inicial das
metáforas, escolhemos o que segue abaixo, correspondente ao número 499 do nosso banco
de redações, cuja temática gira em torno da destruição da natureza.
(31)
Respostas da natureza
Nestes últimos tempos, presencia-se, em todo o mundo, situações drásticas relacionadas com
a natureza. São enchentes, furacões, ciclones, terremotos, maremotos, entre outros. Situações estas
que abalam e transtornam a vida de muita gente; são pessoas desabrigadas, feridas e até mortas.
Os meios de comunicação, como televisão e internet têm mostrado cenas tristes de pessoas
desesperadas lutando para conseguir o que comer e tentar sobreviver depois de terem perdido tudo
para os ventos, para as águas, para a terra.
Vento, água, terra... todos elementos da Natureza. Mas então, por que será que eles
resolveram se juntar para provocar tanto mal, para destruir tantas vidas? Muitas vezes se faz esta
pergunta, mas o homem nunca parou para perguntar a si mesmo por que tantas vezes prejudicou a
natureza, causando-lhe mal.
Estas “catástrofes” que têm acontecido são apenas respostas da natureza para a ação do
homem sobre ela; foi o único meio que encontrou para alertá-los sobre os perigos que estes vêm
lhe causando.
Mas, é claro que esta situação não pode continuar e cabe ao próprio ser humano revertê-la. E
como fazer isso? Reconciliando-se com a natureza, para que esta possa mandar ao mundo
respostas favoráveis.
Nesse texto, encontra-se logo de início uma remissão temporal, de forma
não metafórica, que serve como um introdutor de espaço mental no qual serão inseridos
todos os elementos e situações apresentados no texto: a expressão adverbial “nestes
últimos tempos”. É no âmbito desse domínio temporal que se vai desenvolver todo o texto.
No segundo parágrafo da redação, os “meios de comunicação, como
televisão e internet” são metaforizados como seres animados, que são apresentados na
forma de agentes do verbo “mostrar”. Nesse mesmo parágrafo, e dentro desse mesmo
139
Existem muitos casos na nossa comunicação diária que mostram que, a partir do momento em que
elementos de uma conceitualização metafórica são apresentados explicitamente no enunciado, a direção do
mapeamento é facilmente reversível. Por exemplo, da mesma forma que computadores são concebidos como
cérebros humanos, estes também são concebidos em termos de máquinas. Vejam-se os enunciados seguintes:
“O cérebro é uma máquina extremamente complexa” (disponível em:
<http://www.portaldascuriosidades.com/forum/index.php?topic=73726.0 >. Acesso em: 17 abr. 2010) e “a
máquina é o cérebro vazio” (disponível em:
<http://www.notisul.com.br/conteudo.php?conteudo_cod=19575&tipo=e&editoria_cod=&colunista_cod=&P
HPSESSID=da8005aec52a2a65d5895c8280b992f8>. Acesso em: 17 abr. 2010).
162
esquema metafórico, as “cenas” também são personificadas, através do adjetivo que
acompanha esse termo, “tristes”, típico qualificador de um estado de espírito humano.
No terceiro parágrafo também acontece a personificação de forma bastante
contundente. De acordo com o texto, os elementos da Natureza (vento, água, terra)
praticam uma série de ações fundamentalmente humanas: “resolveram se juntar”,
“provocar tanto mal” e “destruir tantas vidas” especialmente a primeira, que é
tipicamente volitiva. Continuando dentro do esquema da personificação da natureza, surge
no parágrafo seguinte a afirmação de que ela respostas à ação provocada pelos homens,
sendo “o único meio que encontrou para alertá-los sobre os perigos que estes vêm lhe
causando”.
Ao longo de todo o texto, fala-se de conflitos e possibilidades de
reconciliação entre “homem” e “natureza”, no mesmo patamar, sendo ambos apresentados
como seres animados, investidos de vontades e capacidades, praticantes de várias ações por
vontade própria – o primeiro, em sua acepção comum; o segundo, metaforicamente.
Portanto, o esquema ELEMENTOS DA NATUREZA SÃO PESSOAS vigora no decorrer
de toda a redação, a partir do próprio título. Ao escrever “Respostas da natureza”, o autor já
começa por personificar a “natureza”, atribuindo-lhe a capacidade de emitir respostas, ação
também tipicamente humana.
Algumas ações atribuídas ao elemento “natureza” no texto seja no sentido
genérico, seja especificando seus componentes (vento, água, terra) não são
exclusivamente humanas, mas, no conjunto, percebe-se que o trabalho do autor é
apresentá-la como um ser em condições de igualdade com o “homem”, que interage e
dialoga com ele. Enfim, um personagem tão imbuído de anima quanto o próprio “homem”.
Os elementos como “enchentes, furacões, ciclones, terremotos, maremotos,
entre outros”, mencionados no início da redação, não são apresentados propriamente como
elementos da natureza, e sim, “situações drásticas relacionadas com a natureza”. Seriam
situações decorrentes do conflito existente entre homem e natureza. Sobre essas situações
também existe um procedimento de metaforização, já que elas “abalam e transtornam a
vida de muita gente”. Não se chega ao ponto de tratar-se especificamente de
personificação, como acontece com outros elementos, mas existe um grau de
metaforicidade direcionado a esse tipo, que essas “situações” são investidas de
agentividade, praticam a ão de abalar e transtornar algo. No decorrer do texto, elas
acabam se confundindo com “vento”, “água” e “terra”, e daí com os elementos da natureza
163
propriamente. Ou seja, ainda que não se confirme a ideia da personificação logo no
primeiro parágrafo, na continuidade do texto essa conceitualização fica clara.
4.6 Conclusões preliminares
Tomando o levantamento inicial feito nas redações que compõem o nosso
corpus de pesquisa, observa-se a recorrência de alguns esquemas metafóricos já salientados
por vários estudiosos da LCog como padrões de processamento mental existentes na
espécie humana. O reconhecimento desses padrões se não pelo grande número de
ocorrências nos textos de redação, como também pela sistematicidade com que ocorrem.
Isso nos leva a acreditar na existência de um modo de processamento de sentidos, no
âmbito da cognição humana, que segue uma certa tendência na conceitualização de ideias.
Essa tendência, pelos casos levantados e discutidos acima, resume-se no
seguinte:
i) elementos de natureza diversa, quer concretos, quer abstratos, são concebidos como
lugares, espaços onde acontece alguma coisa;
ii) elementos abstratos que, portanto, dizem respeito a ações e sentimentos são
concebidos como elementos concretos, que possuem uma corporeidade física;
iii) elementos inanimados, quer concretos, quer abstratos, são concebidos em termos de
seres animados, que possuem vida própria, que praticam ações.
Outros esquemas metafóricos foram encontrados no corpus, mas esses três
têm uma presença tão marcante nos textos a ponto de todo o conteúdo girar em torno deles.
Não se trata de ocorrências isoladas; muitas vezes, são até interpenetrantes, ou seja, seres
inanimados podem ser metaforizados como seres animados que ao mesmo tempo praticam
ações em espaços também metafóricos.
A essas alturas, cremos ter ficado bastante claro que a metáfora não é
mero recurso estilístico, sendo um elemento intrínseco do modo de raciocinar humano.
Dando continuidade a esse ponto de vista, através do levantamento que fazemos no nosso
corpus, mais do que corroborar esse pensamento, fica visível que a metáfora participa
sistematicamente da organização do texto como um todo, estabelecendo parâmetros de
inserção de conteúdos no mesmo.
Porém, a metáfora não atua sozinha nessa função. Na verdade, informações
de ordem metafórica e não metafórica se juntam no decorrer do texto e atuam
164
concomitantemente na apresentação dos conteúdos. Ações são praticadas em espaços tanto
metafóricos quanto não metafóricos, os elementos que possuem corporeidade física são
apresentados no texto também de forma metafórica ou não metafórica, e assim por diante.
Não se quer exaltar a importância do processo de metaforização em detrimento de outros
recursos de organização textual, assaz importantes para a manutenção da coesão e da
coerência textuais, mas fica claro que, sem as metáforas, esse quadro não seria instaurado –
ou seria de forma incompleta, só no âmbito não metafórico.
Foi realizada uma breve incursão sobre a metonímia nesse contexto, nos
pontos em que detectamos a sua ocorrência, e percebemos que esse recurso de linguagem
também entra nesse jogo, juntamente com a metáfora. Ambas se situam num domínio
cognitivo da organização textual capaz de nos fazer vislumbrar esses textos escritos à
maneira de narrativas típicas, já que afloram, na tessitura do texto, os seguintes elementos:
i) espaço ou lugar, apresentado de maneira geral no texto, onde ocorrem todas as ações
descritas, ou de forma localizada, existindo pequenos espaços para um grupo circunscrito
de ações;
ii) personagens, elementos metaforizados ou não, que atuam ao longo do texto. A
existência deles é vital para a compreensão dos textos como narrativas;
iii) tempo, informação nem sempre explícita nas redações, frequentemente não metafórica.
Muitas vezes ele se manifesta na sequenciação das ações, sendo um importante recurso da
coerência textual
140
;
iv) ações, apresentadas explicitamente nos textos em relação a personagens metafóricos ou
não, através de formas verbais que também podem ser metafóricas.
Pelo tipo de texto que compõe o nosso corpus, não é densamente trabalhado
o foco narrativo, sendo as ideias, pelo propósito das redações, apresentadas sob o ponto de
vista dos próprios autores dos textos. Certamente essa característica seria diferente se a
produção textual estivesse voltada para fins estilísticos ou literários.
Dentro da tipologia textual clássica, raríssimos textos ou passagens de
textos do nosso banco de redações poderiam ser categorizados como narrativos, que
normalmente são marcados com a existência dos elementos listados acima na própria
superfície textual
141
. Em outras palavras, para que um texto seja considerado narrativo, é
necessário que apresente explicitamente os elementos espaço, personagem, tempo e ação,
140
Marcuschi (1983), por exemplo, afirma que a base da coerência é a continuidade de sentidos entre os
conhecimentos ativados pelas expressões do texto.
165
ou pelo menos a maioria deles, na nossa tradição cultural. No caso do objetivo da produção
de redações em processos seletivos, essa estrutura é até desaconselhável, uma vez que o
comando para a elaboração dos textos direciona para a produção de ideias ou apresentação
do ponto de vista dos candidatos sobre um determinado tema, ou seja, recai-se no esquema
tradicional das dissertações escolares.
Quando dizemos sobre a apresentação explícita de informações relativas a
espaço, personagem, tempo e ação, não queremos afirmar que a metáfora seja um elemento
integrante do nível implícito da linguagem. O fato é que, quando existe metaforização, ela
acontece no âmbito do processamento cognitivo da linguagem e imprime marcas desse
processamento na superfície linguística. Existem metáforas bastante explícitas na
linguagem, bem como outras não tão explícitas, e isso tem a ver até, conforme vimos, com
o conceito de metáfora com que elegemos trabalhar. A metáfora é um recurso cognitivo, e
este se manifesta tanto em relação com o nível explícito quanto com o implícito.
Na tentativa de esclarecer melhor essas questões e aprofundar um pouco
mais o estudo da relação entre narração e metáfora, propomos, com base nos postulados da
Gramática Cognitiva, a existência de um domínio no qual todas as informações narrativas
são processadas, isto é, no qual convergem elementos como espaço, personagem, tempo e
ação, cujo reflexo se manifesta no texto escrito. Retomando a imagem do iceberg de
Fauconnier (1994) apresentada no segundo capítulo desta tese –, é como se cada texto do
nosso corpus estivesse localizado no topo do iceberg, enquanto o que estamos chamando
de Domínio Cognitivo da Narrativa (doravante DCN) se encontrasse em algum ponto da
base do iceberg, sustentando o texto, servindo de suporte para as criações mentais
relacionadas com ele.
No quinto e último capítulo desta pesquisa, vamos descrever esse domínio
com detalhes, avançando nas nossas análises de texto e justificando o porquê de centrar
nosso estudo nesse âmbito. A compreensão sobre a existência desse domínio certamente
lançará muitas luzes sobre a relação entre metáfora, narrativa e organização textual.
141
Um exemplo desse caso é parte da redação número 243 do corpus: “Morava em uma fazenda um homem
muito triste. Todos os dias, o pobre, levantava muito cedo, para cuidar dos seus afazeres. Trabalhava como
condenado, queria ganhar muito dinheiro. Passando o tempo e ele nem percebeu que a vida não era só
trabalhar e que o divertimento também é viver e viver bem. Quando isso chegou ao seu entendimento já
estava com a idade um pouco avançada. Antes para ele, tudo era acumulo de recursos financeiros.”
166
CAPÍTULO 5
O DOMÍNIO COGNITIVO DA NARRATIVA
5.1 Pressupostos para identificação dos DCNs
Neste último capítulo, temos a proposta de consolidar um novo modelo de
análise de metáforas em textos escritos, com base nas teorias semântico-cognitivas e no
levantamento e discussão iniciais que foram realizados em diversos textos do nosso corpus,
constituindo-se a contribuição maior desta tese. Essa proposta se esboçou a partir da
insuficiência dos modelos existentes até então dentro da LCog para uma descrição mais
apurada desse tipo de domínio cognitivo que estamos explorando, haja vista que a maioria
dos procedimentos de análise existentes até então não abordam o desenvolvimento dos
textos, e sim, pequenas porções deles isso, quando não se trata de sentenças isoladas
propriamente.
Através dos dados levantados na pesquisa e apresentados no capítulo
anterior, somos levados a empreender um modelo que abarque as informações relativas às
metáforas e à organização textual, como contribuição à continuidade e aprofundamento de
estudos sob esse mesmo escopo e outros com os quais a pesquisa possa estabelecer uma
interface.
Antes de descrever esse modelo, faz-se necessário sistematizar as
informações gerais inerentes ao trabalho desenvolvido até aqui, que serão levadas em conta
para o estabelecimento das nossas ideias. São as seguintes:
i) A metáfora é um recurso da linguagem capaz de ser descrito para além dos limites da
sentença, sendo investida de uma função dentro da organização textual que vai além de
mero significado não literal de palavras e expressões. Essa função pode ser descrita tanto
167
no âmbito da coerência textual, uma vez que tem a ver diretamente com a sequenciação de
apresentação de ideias num texto, quanto no âmbito do próprio discurso, entrando em cena
aspectos pragmáticos, culturais, cognitivos etc., dependendo do tipo de inserção social que
os interlocutores realizam. Nesse aspecto, a metáfora não é dissociada nem de outros
aspectos de organização da linguagem verbal, nem das condições extratextuais de produção
enunciativa.
ii) A abordagem que fazemos da metáfora no modelo que se apresentado parte dos
pressupostos básicos da metáfora conceitual. Todos os conceitos de metáfora que
descrevemos, mais outros que não tenham sido mencionados neste trabalho, possuem alto
grau de contribuição para a compreensão desse recurso. Todavia, acreditamos na eficácia
da noção de metáfora conceitual com vistas à realização de uma abordagem da metáfora
em termos de organização textual aplicável aos textos escritos, ultrapassando as barreiras
das “fórmulas prontas” para análise de exemplos isolados.
iii) É de crucial importância que nos atenhamos sempre aos postulados das teorias dos EM
e da MC para a compreensão deste modelo, sem as quais nossa teoria perde a sua
fundamentação.
iv) Existe um padrão metafórico que perpassa a grande maioria dos textos que compõem
nosso corpus, o que nos leva a crer numa sistematicidade em elevado grau presente
também em outros textos escritos em ngua portuguesa. Esse padrão se justifica pelo fato
de que não nos prendemos ao nível de formação de sentenças, mas, sim, exploramos
aspectos ligados à constituição dos textos no âmbito da cognição. Em hipótese alguma
pretendemos que esse padrão seja encarado como uma fórmula ou receita para proceder a
análises de textos; antes, que seja visto como um procedimento que viabiliza a
compreensão dos esquemas que subjazem à composição textual.
v) Dentro desse padrão metafórico identificado em nossas análises de textos, apresenta
uma frequência muito elevada a ocorrência de metáforas ontológicas que correspondem à
conceitualização de seres abstratos na forma de seres concretos, obedecendo ao esquema
ABSTRATO É CONCRETO, bastante conhecido na bibliografia linguístico-cognitiva.
E, dentro desse esquema, a personificação é um fenômeno que também apresenta alto grau
de recorrência. Portanto, além de se tornarem concretas, muitas das entidades abstratas são
concebidas como portando características humanas e realizando ações tipicamente
humanas.
168
vi) Na organização do texto, não se distingue, a priori, a organização metafórica e a
organização não metafórica. para efeito de análise é que separamos esses dois
segmentos. Na prática, elementos metafóricos se coadunam com elementos não
metafóricos, não sendo vislumbrado nenhum limite entre os dois. Em outras palavras: os
textos se desenvolvem com absoluta naturalidade, sendo a coerência normalmente
estabelecida com procedimentos de tessitura que vão e voltam do metafórico ao não
metafórico, ou vice-versa, sem que isso afete negativamente o processamento dos sentidos
na sequenciação dos fatos nos textos.
vii) Dentro da mencionada sistematicidade encontrada em nossas análises, é muito
recorrente a apresentação de informações de tempo e espaço nos textos do corpus. Em
especial, a informação sobre espaço aparece ora na forma de palavras e expressões não
metafóricas, ora na forma de entidades metaforizadas assumindo as informações sobre o
lugar onde acontecem as ações e onde atuam os personagens.
Diante dessas considerações, vamos ao modelo proposto, abarcando todos
os itens acima.
5.2 Modelo teórico dos DCNs
Em função especialmente das observações feitas nos itens (v), (vi) e (vii)
acima, detectadas nos levantamentos iniciais realizados em exemplares do corpus e
demonstradas no capítulo anterior, somos levados à clara concepção de que os textos se
organizam através de elementos metafóricos e não metafóricos conjuntamente, e mais:
tanto na forma metafórica ou não, emergem elementos portadores de informações
relacionadas a ação, tempo, espaço e personagem.
No que diz respeito ao elemento “ação”, ele está sempre ligado de alguma
forma aos demais, especialmente aos personagens. Como ele acompanha outros elementos,
não aparecerá diretamente no nosso modelo, razão pela qual nos centraremos no tempo, no
espaço e no personagem.
Na concepção mais primordial da tipologia de textos, tempo, espaço e
personagem são elementos picos de narrativas, o que nos levou a conceber um domínio
cognitivo dessa natureza permeando toda a composição textual. O desafio maior que
abraçamos é transpor esses elementos para um quadro teórico consistente dentro da LCog,
169
a fim de demonstrar as relações entre a organização textual e o processamento cognitivo da
linguagem.
Para conseguirmos esse intento, vamos retomar o esquema de representação
da MC de Fauconnier e Turner (1994), que é um aparato que conjuga vários EM e capaz de
descrever a ocorrência de metáforas no espaço emergente da mescla. Assim, temos o
seguinte:
Espaço genérico
Espaço de entrada 1 Espaço de entrada 2
Espaço da mescla
Espaço de formação das metáforas
Figura 32 – Esquema da MC de Fauconnier e Turner (1994) com destaque para o espaço de formação das
metáforas
Retomamos aqui também a noção de domínio, de Langacker (1987),
apresentada no primeiro capítulo deste trabalho (seção 1.3.6), lembrando que se trata de
uma entidade capaz de abarcar uma série de representações, conceitos, experiências etc.
Como a organização textual é algo que envolve todos esses tipos de fatores, além dos
linguísticos propriamente, julgamos conveniente utilizarmos a noção de domínio para
inserir nele todas as ocorrências de um determinado texto, inclusive as ocorrências
metafóricas.
O domínio, nos moldes como é concebido por Langacker e outros
estudiosos da área, é de natureza eminentemente cognitiva. Não obstante, como o domínio
170
é um elemento explorado e descrito em outras áreas do conhecimento com as acepções que
melhor convêm a elas, resolvemos utilizar a denominação “domínio cognitivo” sem querer
incorrer em algum tipo de redundância, com o fim único de que fique bem estabelecido o
nosso tipo de abordagem.
E, por fim, identificando a recorrência de informações de tempo, espaço e
personagem nos textos do nosso corpus, propomos a inclusão desses elementos nesse
domínio cognitivo, razão pela qual o denominamos “domínio cognitivo da narrativa”
(DCN).
A natureza do DCN, conforme nomeamos esse domínio, é essencialmente
cognitiva. Isso equivale a dizer que, a partir do estabelecimento da teoria, são esperados
certos padrões de ocorrência em outros campos de estudo como a Psicologia, a
Neurobiologia e outros –, que podem corroborar ou não a procedência dessa teoria. O fato
é que a linguagem verbal revela elementos e manifesta fenômenos de interesse para os
estudos cognitivos, e a partir daí a LCog sistematiza teorias que são aplicáveis em outros
ramos do conhecimento humano.
A esse respeito, Núñez (2007) afirma, com bastante propriedade, que
Para questões específicas, tais como a “realidade psicológica” de alguns
fenômenos cognitivo-linguísticos em particular (por exemplo, a realidade
psicológica de uma dada metáfora conceitual), o processo pode seguir as
seguintes etapas: primeiro, os linguistas cognitivos descrevem e analisam o
fenômeno em termos linguísticos; depois, os psicólogos realizam os
experimentos para verificar se tal fenômeno possui alguma realidade
psicológica.
142
Da mesma forma como acontece com vários outros fenômenos estudados no
bojo da LCog, acredita-se que a existência de um DCN no âmbito da linguagem verbal seja
investida também de uma realidade psicológica, o que pode ser analisado no vel
experimental.
No contexto dessas ideias, também defende Silva (2010) que
a investigação cognitiva da linguagem tem descoberto uma série de
importantes e frequentes estruturas conceptuais e pré-conceptuais, entre as
quais estão (...) modelos cognitivos idealizados, metáforas e metonímias
142
No original: “For specific questions, such as the ‘psychological reality’ of some particular cognitive
linguistic phenomena (e.g., the psychological reality of a given conceptual metaphor), the process may indeed
follow those steps. First, cognitive linguists describe and analyze the phenomenon in linguistic terms, and
then the psychologists run the experiments to find out whether the phenomenon has some psychological
reality.”
171
conceptuais, protótipos e esquemas imagéticos. Todavia, também é certo
que estudos experimentais psicológicos, psicolinguísticos e de outras
áreas da ciência cognitiva poderão justificar a realidade psicológica destes
conteúdos da mente, expressos na linguagem.
No conjunto dessas estruturas conceituais e pré-conceituais mencionadas
acima pelo autor, podemos incluir também o DCN, pelas características compartilhadas
com as demais.
Ainda em relação à natureza do DCN, não é conveniente associá-lo a uma
unidade textual propriamente dita, uma vez que esse domínio diz respeito a uma rede de
mapeamentos e projeções que se realizam num nível subjacente à tessitura. Existe uma
estreita relação entre o domínio cognitivo e o texto, servindo o primeiro de suporte para
este, mas os elementos que compõem o DCN não são os mesmos identificados na
superfície, revestindo-se de caráter eminentemente cognitivo.
Para o falante/escritor, bem como para o ouvinte/leitor, em situações
comunicativas de rotina, é possível ter a percepção da existência do DCN, mas uma
percepção certamente mais superficial por não levar em conta os esquemas metafóricos e
não vislumbrar certas relações estabelecidas entre o metafórico e o não metafórico. Para o
analista da linguagem e para leitores em geral mais perspicazes esses elementos e
relações são claramente perceptíveis, mesmo que a leitura analítica se proceda num âmbito
diferente do da LCog.
O DCN é, pois, um espaço cognitivo no qual vislumbramos a conjugação de
elementos metafóricos e não metafóricos na realização das ações e na apresentação do
conteúdo narrativo. Os limites do DCN coincidem basicamente com os limites do texto,
entendido este em sua acepção mais ampla, além da mera sequência de elementos da
superfície (palavras, frases, parágrafos etc.), atingindo os fatores cognitivos envolvidos na
sua organização. Esse domínio engloba, claro, informações de ordem pragmática, cultural,
contextual etc., envolvidas no processo de composição textual.
O espaço da mescla é insuficiente para abarcar todas essas informações. Ele
explica muito bem a ocorrência de metáforas e outros fenômenos, mas muitas informações
contidas num texto estão fora da mescla, incluindo informações não metafóricas. O espaço
da mescla é o espaço da compressão, e o texto não é compressão. Em virtude disso,
propomos situar o DCN de forma a englobar o espaço-mescla e, ao mesmo tempo, abrigar
172
as informações não metafóricas do texto e quaisquer outras informações que sejam
pertinentes para a compreensão do mesmo em termos narrativos.
Assim, chegamos ao seguinte modelo de apresentação do DCN em relação
ao modelo da MC:
Espaço genérico
Espaço de entrada 1 Espaço de entrada 2
DCN – Domínio cognitivo
da narrativa
Espaço da mescla
Figura 33 – Estrutura do DCN em relação ao modelo da MC
Pensando na aplicabilidade do modelo em análises textuais, e diante da
desnecessidade de se refazer o percurso das construções metafóricas que se encontram nos
textos em relação aos outros domínios presentes no modelo da MC (espaço genérico e
espaços de entrada), podemos simplificar a representação acima, centrando-nos no espaço
emergente da mescla inserido no domínio mais amplo, que é o DCN. Assim:
173
Figura 34 – Estrutura simplificada do DCN
Uma vez apresentado o modelo teórico geral, na seção seguinte vamos tecer
algumas considerações a respeito do caráter narrativo presente nessa proposta e depois
vamos partir para aplicações práticas desse modelo.
5.3 A importância da narrativa dentro dos estudos cognitivos
Identificado o fenômeno de estruturação narrativa dos textos no âmbito
metafórico aliado ao não metafórico, levantamos os seguintes questionamentos: por que os
textos se organizam com uma tendência a apresentarem informações de tempo, espaço e
personagem, mesmo que, de acordo com os elementos de sua estrutura linguística
superficial, eles não se enquadrem na classificação tradicional das narrativas? Por que
ocorre que tais textos se organizem especificamente de modo narrativo, e não de acordo
com qualquer outro modo?
O estudo da narrativa é tão desenvolvido e importante para a compreensão
de vários fenômenos nas diversas áreas do conhecimento humano, que existe uma ciência
específica para esse objeto, a Narratologia. Dentro dela, vários pesquisadores desenvolvem
estudos que mostram a importância da narrativa para a compreensão de vários aspectos do
ser humano. Além disso, vários estudiosos da cognição fazem incursões nos estudos da
narrativa, mostrando que a prática da narração é uma atividade que vai além da simples
organização da estrutura textual.
Talmy (2000, p. 417-483), por exemplo, apresenta vários aspectos de grande
importância considerando a existência de um chamado sistema cognitivo narrativo, uma
espécie de faculdade mental para a geração e experimentação da narrativa, não numa
abordagem modular da mente, mas integrada com outros componentes mentais.
174
O autor apresenta três elementos norteadores da narrativa: os domínios
(áreas em que se aplicam os próximos elementos), os estratos (strata – propriedades
estruturais da narrativa) e os parâmetros (princípios organizadores gerais). Os domínios se
aplicam a relações estabelecidas entre o texto e o contexto; por seu turno, os estratos dizem
respeito à estruturação interna da narrativa, considerando tempo, espaço, ação e outros
elementos; e os parâmetros constituem o lugar da emergência de vários elementos,
correspondendo a espécies de direcionamentos que são estabelecidos dentro da narrativa,
como granularidade, vagueza, implicitação e outros.
Observe-se que, para Talmy, a importância da narrativa vai bem além da
identificação dos elementos linguísticos estruturadores da mesma. O autor também chama
a atenção para a grande importância que exercem os aspectos culturais e contextuais na
estruturação da narrativa e para as questões psicológicas que a envolvem.
De acordo com as ideias de Talmy, a organização dos elementos ligados a
tempo, espaço e personagem como identificamos em nossa análise –, que são os
elementos componentes dos estratos, atende a uma propriedade cognitiva humana, baseada
em informações de cultura e contexto em que se insere o indivíduo. Antes de atender a uma
estruturação dos elementos da superfície linguística, a narração corresponde a uma
vicissitude cognitiva do homem, o que nos leva a entender como um procedimento natural
da espécie. Isso certamente direciona para a resposta do segundo questionamento que foi
feito no primeiro parágrafo desta seção.
Wallace Chafe, outro grande estudioso de narrativas, faz importantes
considerações acerca da relação entre esse tipo de texto e o funcionamento da mente
humana, partindo do pressuposto de que esta não recria propriamente as coisas que
acontecem no mundo ao nosso redor, mas ela cria os seus próprios modelos de mundo. Sob
essa ótica, Chafe (1990, p. 79) afirma que, de modos bem variados, “as narrativas oferecem
evidência para a natureza da mente”.
143
Numa abordagem psicológico-cognitiva que de certa forma se coaduna com
os pensamentos de Talmy e Chafe, destacamos Bruner (1997). No segundo capítulo dessa
obra, o autor trata especificamente da existência, segundo ele, de dois modos de
pensamento: um chamado paradigmático ou lógico-científico, bastante bem desenvolvido
por várias ciências exatas e que tem por objeto o estabelecimento dos valores de verdade de
143
No original: “narratives provide evidence for the nature of the mind.”
175
proposições em relação aos fatos do mundo; e um outro modo de pensar, que é o narrativo,
que lança mão de critérios totalmente diferentes do primeiro. “A narrativa trata das
vicissitudes das intenções humanas”
144
, afirma o autor.
Também afirma Bruner (op. cit., p. 14) que
A aplicação imaginativa do modo narrativo leva, na verdade, a histórias
boas, dramas envolventes, relatos históricos críveis (embora não
necessariamente “verdadeiros”). Ele trata de ações e intenções humanas ou
similares às humanas e das vicissitudes e consequências que marcam seu
curso. Ele se esforça para colocar seus milagres atemporais nas
circunstâncias da experiência e localizar a experiência no tempo e no
espaço.
No nosso entendimento, é isto que justifica a modo de procedimento
narrativo que verificamos nos textos do nosso corpus: por ser a narração um procedimento
diretamente ligado às ações e intenções humanas ou ações e intenções similares às
humanas, nas palavras acima de Bruner, quando o indivíduo depara com a situação de
tratar de um tema ligado aos aspectos sociais e culturais humanos (como todos os temas
das redações que coletamos), não como fazê-lo fora do modo de pensar narrativo ou,
pelo menos, é mais adequado fazê-lo dentro do modo narrativo. A recorrência desse modo
de pensar está patente nas pesquisas de Bruner e muitos outros, e a nossa contribuição
está sendo dada no sentido de mostrar que esse modo narrativo se manifesta mesmo nos
textos que, pelos elementos visíveis na estrutura superficial, não sejam tradicionalmente
identificados como narrativos.
O fato de termos relacionado, em nossas análises, as informações sobre
tempo, espaço e personagem com uma concepção narrativa do texto encontra em Bruner
(1997, p. 41) uma justificativa bastante plausível, embora ele não trate especificamente da
categoria “tempo”, mas que pode ser entendida como sendo subsumida nos outros
elementos:
A inseparabilidade do personagem, ambiente e ação deve estar
profundamente arraigada na natureza do pensamento narrativo. É com
dificuldade que podemos conceber cada um deles isoladamente. Existem
maneiras diferentes de combinar os três na construção das dramatis
personae da ficção (ou da vida, em geral). E estas construções não o, de
modo algum, arbitrárias. Elas refletem (...) nossas convicções sobre como
as pessoas se enquadram na sociedade.
144
Cf. Bruner (1997, p. 17).
176
A variação da combinação dos elementos que encontramos em nossas
análises (personagens metafóricos e não metafóricos, espaços metafóricos e não
metafóricos etc.), de certa maneira, também encontra respaldo nessas palavras de Bruner,
quando ele afirma que personagem, ambiente e ação, além de não existirem separadamente,
possuem diferentes modos de combinação.
É especialmente em Turner (1996) que encontramos as melhores
explicações para sustentar a ideia central deste capítulo. Toda a obra desse autor é dedicada
a mostrar que a mente humana é literária por natureza, e para isso o autor desenvolve
importantes considerações acerca de histórias, parábolas e projeções.
Sobre histórias, que Turner associa diretamente à imaginação narrativa, o
autor afirma que
[A imaginação narrativa] é o instrumento fundamental do pensamento.
Capacidades de raciocínio dependem dela. Ela é nosso principal meio de
olhar para o futuro, de fazer previsões, de planejar e de explicar. É uma
capacidade literária indispensável à cognição humana em geral.
145
Sobre as parábolas, que são projeções de uma história sobre outra, Turner
afirma ser também um instrumento fundamental da cognição humana, bem como as
próprias projeções de características e informações que realizamos entre diferentes
domínios cognitivos, processo básico na criação de metonímias, personificações e outros.
Nesse ponto, remetemo-nos aos aspectos já apresentados sobre a teoria dos EM e do
fenômeno da MC. O processo da mesclagem apresenta-se, pois, além de um eficiente
modelo para descrição da metáfora e outros, como “um processo básico do pensamento”,
nas palavras de Turner (1996, p. 11)
146
.
Turner insiste na inseparabilidade da imaginação narrativa com o
funcionamento da mente. Logo no prefácio, o autor afirma que
A mente literária não é um tipo separado de mente. Ela é a nossa
mente. A mente literária é a mente fundamental. Embora a ciência
cognitiva esteja associada a tecnologias mecânicas como robôs e
instrumentos de computador que parecem não literários, as questões
centrais para a ciência cognitiva são de fato as questões da mente literária.
145
No original: “is the fundamental instrument of thought. Rational capacities depend upon it. It is our chief
means of looking into the future, of predicting, of planning, and of explaining. It is a literary capacity
indispensable to human cognition generally.” (TURNER, 1996, p. 4-5).
146
No original: “a basic process of thought”.
177
A história é um princípio básico da mente. A maior parte da nossa
experiência, nosso conhecimento e nosso raciocínio é organizada na forma
de histórias.
147
O fato de associarmos eventos e objetos, através do recurso da
metaforização especificamente a personificação a personagens que praticam ações
dentro do domínio narrativo que identificamos nos textos analisados encontra também em
Turner uma explicação bem contundente, em seção do The literary mind que discute
questões relativas à animação (animacy) e à agentividade (agency) dos personagens. O
autor afirma que “Pequenas histórias que se desenvolvem no espaço envolvem eventos e
objetos. Nós reconhecemos alguns desses objetos como personagens animados.”
148
Em relação a essa propriedade, Turner lança um questionamento de
fundamental importância para a compreensão tanto do funcionamento da mente humana
quanto da importância e função da narrativa sob a ótica da cognição. O autor questiona: “O
mundo não vem rotulado com pequenos signos categoriais que dizem ‘Isto é um
personagem.’ Como nós formamos categorias conceituais de personagens?”
149
Frente aos
fatos que detectamos no nosso procedimento de análise do corpus selecionado para esta
pesquisa, arriscamos uma resposta a essa questão: certamente não existem rótulos para
identificação de eventos e objetos como personagens de narrativas, e é justamente por essa
ausência de rótulos que tais personagens em potencial emergem como personagens efetivos
da narrativa através do recurso da metaforização. Assim como uma das funções da
metáfora é facilitar a compreensão de conceitos mais complexos, tornando-os menos
complexos (como bem nos mostram Stefanowitsch e outros), emerge também uma outra
função dentro do nosso modelo de análise: transformar potenciais personagens (abstratos,
mais complexos) em personagens reais (concretos, menos complexos) da narrativa que se
afigura no domínio cognitivo.
147
No original: “The literary mind is not a separate kind of mind. It is our mind. The literary mind is the
fundamental mind. Although cognitive science is associated with mechanical technologies like robots and
computer instruments that seem unliterary, the central issues for cognitive science are in fact the issues of the
literary mind. Story is a basic principle of mind. Most of our experience, our knowledge, and our thinking is
organized as stories.” (TURNER, 1996, p. v). Nessa obra, Turner considera sinônimos os conceitos de
“narrativa” e “história”, conforme ele afirma: “o instrumento mental que eu chamo de narrativa ou história é
básico para o raciocínio humano.” (No original: “the mental instrument I call narrative or story is basic to
human thinking.” (Ibid., p. 7)).
148
No original: “Small spatial stories involve events and objects. We recognize some of these objects as
animate actors.” (Ibid., p. 20).
149
No original: “The world does not come labeled with little category signs that say ‘This is an actor.’ How
do we form conceptual categories of actors?” (Ibid., p. 10).
178
5.4 Aplicações do modelo
Nesta parte do trabalho, vamos demonstrar como o modelo do DCN se
aplica à análise de textos, tomando alguns exemplares do nosso corpus de pesquisa que já
foram apresentados anteriormente, bem como outros textos que eventualmente vamos
analisar para comprovação de sua eficácia.
Na subseção que segue, retomaremos uma das redações que passaram
pelo levantamento inicial das construções metafóricas, demonstrando a necessidade de
ampliação do modelo da MC para compreensão do fenômeno que estamos tratando. A
seguir, aplicaremos o modelo a outras redações do corpus, e finalmente empregaremos o
mesmo modelo de análise a exemplares de gêneros textuais diferentes daquele que compõe
o nosso corpus, a fim de verificar a aplicabilidade em outros textos escritos em língua
portuguesa.
5.4.1 A necessidade de ampliação do modelo da MC
Para justificar o estabelecimento do nosso modelo de análise como uma
extensão do esquema da teoria da MC, vamos tomar um dos textos comentados no capítulo
anterior e analisá-lo à luz da teoria de Fauconnier e Turner, para posteriormente darmos
sequência utilizando o que postulamos como a teoria dos DCNs.
Para esse trabalho, tomemos a redação número 133 do corpus, transcrita em
(17), cujo título é “O mundo sem lei da Internet”. Nesse exemplar, encontram-se
informações sobre tempo, espaço e personagens metafóricos e não metafóricos –, os
quais serão tratados primeiramente via MC. Além disso, esse texto encerra uma série de
esquemas metafóricos que identificamos como recorrentes no levantamento realizado no
quarto capítulo desta tese.
Pois bem, o texto (17) apresenta a possibilidade de ser entendido como uma
grande mescla em termos de espaço e personagens. Comecemos a descrevê-lo em relação
ao espaço, cuja concepção começa a ser feita a partir do próprio título do texto, podendo
ser visto sob a forma de compressão de dois espaços de entrada fundamentais: o espaço de
entrada 1 representando o mundo físico em que vivemos, e o espaço de entrada 2
representando a área da Informática. Tomando palavras e expressões do texto concebíveis
como lugares, podemos vislumbrar a mescla e os espaços de entrada da seguinte maneira:
179
Espaço de Espaço de
entrada 1 entrada 2
(Mundo real) (Área de Informática)
Espaço da mescla
(Mundo da Informática)
Figura 35 – Representação da MC relacionada às informações de espaço no texto (17)
De acordo com a representação feita no esquema acima, nota-se que os
elementos tomados da área de Informática (Internet, sites e computadores) passam a ser
concebidos em termos espaciais, uma vez mapeados com elementos e ações que integram o
nosso mundo físico real.
A concepção desses elementos como lugares advém, em alguns casos, da
projeção dessa informação constante no espaço de entrada 1, especificamente no caso de
“navegação” e “invasão”, que supõem esse sentido locativo. Com relação aos outros dois
elementos, no entanto, não há, necessariamente, a concepção suposta de lugar, sendo esse
sentido emergente no espaço da mescla. Contribui para essa concepção, evidentemente, o
fato de que esses elementos integram o mundo real, ou seja, inserem-se num determinado
espaço físico.
Vejamos, agora, o entendimento que podemos construir em relação aos
personagens do texto, utilizando os mesmos espaços do esquema anterior da MC:
- Crimes de vários
tipos
- Navegação de
várias formas
- Invasão de vários
tipos de lugares
- Posse indevida
de objetos alheios
- Mundo sem lei
da Internet
- Navegação pela
Internet
- Invasão de sites
- Invasão de
computadores
alheios
- Internet
- Sites
- Computadores
180
Espaço de Espaço de
entrada 1 entrada 2
(Mundo real) (Área de Informática)
Espaço da mescla
(Mundo da Informática)
Figura 36 – Representação da MC relacionada às informações de personagens no texto (17), com a área de
Informática sendo um dos espaços de entrada
Na figura acima, estão representados os personagens que aparecem sob o
processo de metaforização no texto (17) dentro do campo da Informática. Redes de
computadores e sites apresentam mapeamentos com pessoas e instituições do mundo real e
são projetados para o espaço da mescla, onde se apresentam sob a forma personificada.
O texto apresenta também outras personificações que podem ser
vislumbradas dentro do processo de MC, porém com outro tipo de espaço de entrada: o
espaço da Justiça. Como foi visto anteriormente, além de os elementos da Justiça serem
apresentados sob a forma de objetos, também são personificados, o que pode ser visto na
seguinte representação:
- Grupos de
pessoas ou
instituições
racistas
- Criminosos
- Redes que
anunciam
pregações racistas
etc.
- Sites descobertos
e entregues às
autoridades
- Redes de
computadores
- Sites
181
Espaço de Espaço de
entrada 1 entrada 2
(Mundo real) (Justiça)
Espaço da mescla
(Mundo da Informática)
Figura 37 – Representação da MC relacionada às informações de personagens no texto (17), com a Justiça
sendo um dos espaços de entrada
Como se observa acima, no espaço da mescla existem elementos
apresentados também na Figura 36, quando se tinha a área de Informática como o espaço
de entrada 2. Isso significa queredes que anunciam pregações racistas etc.” e “sites
descobertos e entregues às autoridades”, como projeções da área de Informática, são
espaços onde acontecem pregações ilegais, alguns dos quais sendo descobertos e entregues
às autoridades competentes. E esses mesmos elementos, como projeções do espaço da
Justiça, são criminosos correspondentes a pessoas ou instituições, que praticam ações
ilegais, sendo alguns descobertos e entregues às autoridades. Ou seja, o texto trabalha com
as duas concepções metafóricas, concomitantemente.
Se juntarmos todas as representações feitas nas Figuras 35, 36 e 37, teremos
uma visão geral sobre o que é o texto (17) quanto às mesclas que acontecem em relação às
- Pessoa lenta e
ineficaz
- Grupos de
pessoas ou
instituições
- Pessoa
- Justiça lenta e
ineficaz
- Redes que
anunciam
pregações racistas
etc.
- Sites descobertos
e entregues às
autoridades
- Ferir a lei
- Sistema
judiciário
- Criminosos
- Lei
182
noções de espaço e personagem, tendo como entradas a área da Informática e a Justiça.
Vejamos como ficam dispostos esses elementos, apresentando somente o espaço da
mescla:
Figura 38 – Espaço da mescla englobando informações de espaço e personagens do texto (17)
Na representação acima temos, portanto, uma síntese do que é o texto (17)
em termos do processo de mesclagem básico envolvendo os elementos locativos e os
personagens apresentados metaforicamente.
Somente por essa representação, é possível vislumbrarmos uma organização
narrativa do texto, haja vista que é viável conceber essa modalidade com a quantidade de
informações disponíveis em termos de espaços e personagens. No entanto, ela não é
suficiente para retratar toda a realidade narrativa do texto. Existem elementos fora desse
esquema que também integram a organização cognitivo-narrativa e, mais do que isso,
interagem com os elementos da Figura 38. Vamos elencá-los mostrando a relação
estabelecida com os elementos da mescla, destacando-se somente os itens envolvidos
diretamente nessa relação:
i) “Nos dias atuais” Esse construtor de espaço aparece logo no início do texto, de forma
não metafórica, relacionando-se com todo o conteúdo textual constituindo-se como um
importante elemento – embora não obrigatório – da narrativa, que é a situação temporal dos
fatos a serem apresentados.
ESPAÇOS
Internet (mundo sem lei, lugar por onde se navega)
Sites (locais invadidos)
Computadores (locais invadidos)
PERSONAGENS
Redes (anunciam pregações racistas)
Sites (descobertos e entregues às autoridades)
Justiça (lenta e ineficaz)
Lei (é ferida)
183
ii) “Jovens” Essa categoria é apresentada várias vezes no texto, de forma não metafórica,
interagindo com personagens metafóricos e atuando em espaços também metafóricos. Em
“seu desejo é (...) fazer justiça com as próprias mãos”, eles são apresentados como agentes
de uma ação claramente metafórica. Em “um grupo de jovens decidiu assumir o papel de
justiceiros da rede, invadindo sites que contêm pregações racistas, anti-semitas, mensagens
homofóbicas ou fotos de pedofilia”, eles são apresentados como personagens atuando num
espaço metafórico (sites). Em “O desejo desses jovens é de ajudar a justiça”, eles aparecem
como aliados do personagem metafórico justiça. Em “alguns ferem tanto a lei”, os jovens
são agentes diretamente relacionados com outro personagem metafórico, a lei, sobre quem
praticam a ação de ferir. No último parágrafo do texto, diz-se que “Graças a eles, muitos
sites (...) vem sendo descobertos e entregues as autoridades competentes”, ou seja, eles
atuam diretamente na captura de personagens metafóricos tidos como fora-da-lei.
iii) “Autoridades” Apresentadas no último parágrafo do texto, as autoridades surgem
como personagens diretamente relacionados com a ação dos jovens (personagens não
metafóricos) e com a recepção dos sites (personagens metafóricos), concebidos como
criminosos capturados por terem realizado ações ilegais.
Com esses elementos, completamos o quadro narrativo em que se
desenvolve o texto (17). “Nos dias atuais” possui uma função diferente de “jovens” e
“autoridades”, que situa todas as ações e elementos metafóricos e não metafóricos no
âmbito temporal, enquanto estes dois últimos são personagens investidos de ações
específicas dentro do texto.
Nossa proposta de representação do DCN se esboça da maneira como
estamos fazendo pelo seguinte: o espaço da mescla, dentro da teoria da MC, é insuficiente
para representar todas as relações de cunho narrativo estabelecidas no texto, uma vez que
existem elementos e relações no âmbito metafórico, outros no âmbito não metafórico e
outros ainda na junção do metafórico e do não metafórico. Nosso modelo de representação
do DCN oferece margem para as mais variadas representações possíveis, considerando o
espaço da mescla e um outro espaço restante ainda dentro do domínio da narrativa que
pode abarcar elementos e relações de natureza cognitiva manifestados através da
linguagem verbal. Esse domínio corresponde ao ambiente em sua acepção mais ampla
no qual transcorre toda a narrativa, cujo limite corresponde às fronteiras de organização
cognitiva do texto.
184
Da maneira como está sendo proposto, o DCN é capaz de englobar
metáforas, metonímias e todas as formas de sentido possíveis no nível explícito e implícito
da linguagem (no âmbito deste, pressupostos e subentendidos, entre outros), envolvendo
quaisquer manifestações do sentido literal e do não literal relacionados ao processamento
narrativo do texto.
Ainda em relação ao texto (17), podemos representar o DCN da seguinte
forma:
Figura 39 – Representação do DCN do texto (17)
Após essa apresentação mais detalhada acerca da estruturação do DCN, na
seção seguinte será realizada uma aplicação desse modelo interpretativo a outros textos do
nosso corpus de pesquisa, incluindo redações que passaram pelo levantamento inicial de
construções metafóricas e outras escolhidas aleatoriamente para enriquecer a exposição.
5.4.2 Representações do DCN de outros textos do corpus
Tomaremos outro exemplar do nosso banco de textos para esboçarmos a
representação do domínio em que se inserem os elementos da narrativa. A análise será feita
ESPAÇOS
Internet
Sites
Computadores
PERSONAGENS
Redes
Sites
Justiça
Lei
TEMPO
Nos dias atuais
PERSONAGENS
Jovens
Autoridades
185
em relação ao texto (25), apresentado no capítulo anterior, correspondente à redação
número 232 do nosso corpus.
Nesse texto, vimos que dois espaços são instaurados metaforicamente: o
espaço “bens materiais”, onde se encontra o personagem “felicidade”; e o espaço
“pequenas coisas”, no qual se situa o personagem “a verdadeira felicidade”. Trata-se de
dois espaços diferenciados, cada um caracterizado à sua maneira dentro do texto, que
podem ser representados da seguinte forma, já no esquema do DCN:
Figura 40 – Representação dos espaços metafóricos e respectivos personagens dentro do DCN do texto (25)
Os dois espaços, com seus correspondentes personagens metafóricos,
poderiam ser representados num espaço-mescla, mas a intenção de representarmos na
forma de duas mesclas diferentes é mostrar que o modelo do DCN é flexível e dinâmico,
podendo ser aplicado a diferentes estruturas narrativas, prestando-se a representar tantas
mesclas quantas houver num determinado texto. Essa seria mais uma vantagem da adoção
ESPAÇO
Bens materiais
(carro, casa,
poupança)
PERSONAGEM
Felicidade
ESPAÇO
Pequenas coisas
(o abraço de um irmão, o
sorriso de uma criança, dar
uma palavra de conforto a um
necessitado, ter um momento
de lazer, sair com a família,
ler um bom livro)
PERSONAGEM
A verdadeira felicidade
186
desse modelo de análise em relação ao esquema da MC, que normalmente é utilizado para
descrever fatos isolados.
Dentro do DCN desse texto, surgem outros personagens, não metafóricos,
que se interagem harmonicamente no desenrolar da narrativa. São os seguintes: “você”, “a
maioria das pessoas”, “alguns” e “ser humano”. Assim, fecha-se a representação do
domínio da seguinte maneira:
Figura 41 – Representação do DCN do texto (25)
Tomemos outro texto do corpus de pesquisa, entre os que já foram
apresentados no capítulo anterior, a fim de complementar a representação em termos de
DCN. Escolhemos a redação transcrita em (31), correspondente ao número 499 do nosso
banco de textos, cujo tema gira em torno da relação entre o homem e a natureza.
Nesse texto, foi identificado anteriormente que muitos elementos não
humanos atuam como personagens humanos: vento, água, terra, que “resolveram se juntar
para provocar tanto mal, para destruir tantas vidas”. Ou seja, trata-se de elementos da
natureza personificados que atuam paralelamente com outro personagem do texto, o
próprio homem. No primeiro parágrafo, outros elementos da natureza também emergem
ESPAÇO
Bens materiais
PERSONAGEM
Felicidade
ESPAÇO
Pequenas coisas
PERSONAGEM
A verdadeira
felicidade
PERSONAGENS
Você
A maioria das pessoas
Alguns
Ser humano
187
como personagens metafóricos: enchentes, furacões, ciclones, terremotos, maremotos,
entre outros, que se resumem em “situações (...) que abalam e transtornam a vida de muita
gente”.
outros seres não concretos e não humanos conceitualizados como
pessoas e/ou agentes de algum tipo de ação: “os meios de comunicação, como televisão e
internet” e “cenas”, que se ligam às “pessoas desesperadas” (personagens não metafóricos)
que perderam tudo para “os ventos, para as águas, para a terra”, constituindo-se estes
também como personagens metafóricos, integrando os elementos da natureza.
Outro importante elemento narrativo que surge no texto é a apresentação
temporal não metafórica realizada pela expressão adverbial “nestes últimos tempos”, no
início da redação, instaurando todo o domínio da narrativa que se vai desenvolver.
Enfim, retomamos aqui sucintamente o levantamento que foi apresentado
no capítulo anterior, com o intuito de enquadrar os elementos no esquema do DCN.
uma gama de personagens relacionados à natureza conceitualizados metaforicamente como
pessoas, agindo concomitantemente com o ser humano, que aparece no texto sob a forma
não metafórica. De forma bastante genérica, no texto (31) percebe-se o embate entre esses
dois personagens, homem e natureza (mesmo que nem todas as metáforas estejam ligadas à
natureza propriamente, aparecem relacionadas a ela), cada um num espaço diferente.
Podemos representar o DCN do texto da seguinte maneira:
Figura 42 – Representação genérica do DCN do texto (31)
Utilizando uma representação mais detalhada do texto (especialmente em
relação ao personagem “natureza” apresentado no espaço da mescla dentro do DCN),
teríamos o seguinte:
PERSONAGEM
Natureza
PERSONAGEM
Homem
TEMPO
Nestes últimos tempos
188
Figura 43 – Representação mais detalhada do DCN do texto (31)
Uma grande vantagem oferecida pelo modelo do DCN é a possibilidade de,
além de apresentar os elementos que correspondem às informações sobre espaço, tempo e
personagem, apresentar as relações estabelecidas entre esses elementos. Ainda quanto ao
texto (31), se quisermos nos centrar na passagem apresentada especificamente no segundo
parágrafo da redação, explicitando mais o processo narrativo, podemos fazê-lo da seguinte
maneira (veja-se a representação gráfica após a transcrição do parágrafo em questão):
(32)
Os meios de comunicação, como televisão e internet têm mostrado cenas tristes de pessoas
desesperadas lutando para conseguir o que comer e tentar sobreviver depois de terem perdido tudo
para os ventos, para as águas, para a terra.
PERSONAGENS
- Natureza
- Situações
drásticas
(enchentes,
furacões,
ciclones,
terremotos,
maremotos, entre
outros)
- Meios de
comunicação
(televisão e
internet)
- Cenas
- Elementos da
natureza (vento,
água, terra)
TEMPO
Nestes últimos tempos
PERSONAGENS
- Homem, ser
humano
- Muita gente
- Pessoas
desabrigadas,
feridas e até
mortas
- Pessoas
desesperadas
189
Figura 44 – Representação do DCN do segundo parágrafo do texto (31)
Em outras palavras, através do modelo de representação do DCN ora
proposto, somos capazes de reconstituir o processo narrativo, explicitando as relações de
sentido estabelecidas entre os elementos, mais do que simplesmente apresentar as
informações relacionadas a tempo, espaço e personagem. O esquema da MC também
apresenta essa potencialidade, sendo essa uma das razões pelas quais utilizamos a teoria da
mesclagem como base para a descrição narrativa da forma como estamos apresentando
neste trabalho.
É importante salientar que o procedimento representado na Figura 44 é
bastante subjetivo, não apresentando regras formais para reconstituição da narrativa, o que
torna a teoria bastante adaptável às várias situações em que ela pode ser aplicada.
PERSONAGENS
- Meios de comunicação
(televisão e internet)
Praticam a ação de
mostrar
- Cenas
tristes
- Elementos da natureza
(vento, água, terra)
PERSONAGENS
- Pessoas
desesperadas
Perderam
tudo para
190
Vamos reforçar esse tipo de análise aplicando-o a outro texto do banco de
redações que é o alvo desta pesquisa. Desta vez, vamos tomar outro exemplar do corpus,
aleatoriamente, que ainda não foi apresentado nem discutido neste trabalho. Tomemos a
redação número 187:
(33)
Pirataria, uma necessidade.
Como se sobressair dos problemas que atingem hoje a maioria da sociedade brasileira? A
miséria está presente em muitas famílias no nosso país, e isso faz com que elas procurem vários
tipos de emprego, instantâneos, para que possam ir sobrevivendo. Devido à grande carência do
povo brasileiro, a pirataria tornou-se um negócio tão lucrativo, e o único para alguns.
É notável a situação em que vive a maioria do povo brasileiro, salários baixos, endividados
devido ao grande consumo, e sem mão de obra qualificada. Tudo isso deixa a própria sociedade
numa “saia justa”, e para não entrarem no mundo da criminalidade, as pessoas vêem como solução
trabalhar com produtos pirateados. A pirataria é ilegal sim, porém, para alguns é a única base de
sobrevivência.
No Brasil a pirataria tornou-se muito comum, e por ser um comércio que tanto cresceu
beneficiando os mais pobres, e por ser também de baixo custo, causou abalo no mercado dos
produtos originais, que por possuírem um alto custo para compra não são viáveis à comunidade
mais pobre.
É certo que em todo o mundo a pirataria é ilegal, um crime. Porém, dentro dos padrões de
criminalidade do Brasil, esse é um crime suave, e por uma boa causa. Comparado com outros
crimes atuais, a pirataria deve ser classificada como um bem, pois está dando comida e dignidade
às famílias brasileiras que necessitam de apoio.
No texto acima, podemos apontar os seguintes elementos componentes da
narrativa:
- Tempo (não metafórico): hoje.
- Personagens não metafóricos: a maioria da sociedade brasileira; o povo brasileiro;
famílias brasileiras.
- Personagens metafóricos: miséria (ela está presente no espaço metafórico “muitas
famílias”); famílias (elas procuram vários tipos de emprego para sua sobrevivência); a
sociedade (fica numa “saia justa”); pirataria (está dando comida e dignidade às famílias
brasileiras).
- Espaços não metafóricos: no nosso país; Brasil; todo o mundo.
- Espaços metafóricos: muitas famílias (local onde se encontra a “miséria”); mundo da
criminalidade (onde as pessoas tentam não entrar); mercado dos produtos originais (sofreu
abalo causado pela pirataria); saia justa (onde fica a sociedade).
No texto (33), da mesma maneira como acontece em outros textos, o tempo
é marcado não metaforicamente, através do introdutor de espaço “hoje”. Em relação a esse
191
tempo, personagens e espaços são apresentados, no âmbito da metáfora e da não metáfora,
conforme a listagem apresentada acima.
Em relação aos espaços metafóricos estabelecidos no texto, percebe-se que
eles se ligam exclusivamente a alguns personagens, não funcionando como locais de ação
de vários deles. Por isso, uma representação mais detalhada no modelo do DCN é capaz de
representar melhor essa situação.
Os personagens e os espaços não metafóricos aparecem, em alguma
proporção, repetidas vezes, através de expressões linguísticas bem similares, podendo ser
resumidos no seguinte:
- Personagens não metafóricos: brasileiros.
- Espaços não metafóricos: Brasil; mundo.
Já em relação aos personagens e espaços metafóricos, nota-se uma variedade
muito maior, não sendo possível resumi-los, como fizemos com os não metafóricos.
Diante desse quadro, podemos traçar a seguinte representação do DCN do
texto transcrito em (33):
192
Figura 45 – Representação detalhada do DCN do texto (33)
Nem todas as relações de sentido estão representadas na figura acima;
portanto, a narrativa não se esgota com as relações que foram apresentadas. Essa é uma
maneira de exemplificarmos como se dão tais relações, envolvendo diferentes elementos
metafóricos e não metafóricos, para a constituição narrativa do texto no âmbito de sua
representação semântico-cognitiva.
5.4.3 Aplicação em textos diferentes dos que compõem o corpus
O estabelecimento de uma representação do DCN nos moldes como está
sendo proposto nesta tese não implica afirmar que todos os textos do corpus se enquadrem
exatamente nesse modelo, muito menos que aconteça em relação a qualquer redação de
PERSONAGENS
- Miséria
- Famílias
- Sociedade
- Pirataria
ESPAÇOS
- Muitas famílias
- Mundo da
criminalidade
- Mercado dos produtos
originais
- Saia justa
TEMPO
Hoje
PERSONAGENS
- Brasileiros
ESPAÇOS
- Brasil
- Mundo
Dá comida
e dignidade
Abala
Tornou-se
comum
193
vestibular. O modelo está sendo proposto como uma tendência a encarar tais produções
textuais em termos de narrativas no âmbito semântico-cognitivo, tendência que se confirma
a cada exemplar do corpus que vamos tomando para análise, e mesmo nas redações que
não foram analisadas, mas que passaram por nossa leitura prévia.
que se considerar também que estamos tratando de textos de produção
induzida, não espontânea, e esse aspecto pode interferir nas estatísticas. Ou seja, o
vislumbre da organização textual em termos de narrativas pode ficar condicionado, em
algum grau, ao gênero textual de que se trata, à modalidade discursiva, aos propósitos
comunicativos e vários outros fatores. Nossa contribuição é mostrar que o modelo do DCN
é uma tendência que se confirma muito claramente no nosso corpus e que certamente se
aplica em outros corpora ou outros gêneros textuais, ficando aqui, desde já, lançada a ideia
de expansão desse estudo no âmbito do que acabamos de mencionar.
De toda forma, ao tratar dessa teoria, somos impelidos a investigar um
pouco além do nosso traçado inicial, verificando se existem outros contextos de aplicação
do modelo. Mesmo que isso não signifique que o modelo deve aplicar-se a toda a gama de
textos escritos em língua portuguesa ou em qualquer outra língua, por uma questão de
convicção teórica outros textos também devem ser investigados, confirmando a
possibilidade de que o modelo apresente um grau de aplicabilidade mais amplo do que no
corpus de redações.
Nossa hipótese é que o modelo se aplica tão bem em outros tipos textuais
como acontece com os exemplares do nosso corpus, pelo menos naqueles textos que
apresentam uma certa organização de ideias, uma vez que, conforme desenvolvemos
anteriormente, o ato de narrar é uma característica intrínseca do ser humano; portanto,
integraria os procedimentos de escrita de uma forma geral a tendência à narrativa, dada a
sua importância na organização do pensamento humano.
Para confirmar ou não essa hipótese, selecionamos os seguintes textos para
análise de seus constituintes semântico-cognitivos e para apreciação do comportamento da
metáfora e seu entrelaçamento com a organização narrativa do texto:
i) discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse de seu primeiro
mandato presidencial, proferido no Congresso Nacional Brasileiro em 01/01/2003, escrito
por Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência;
ii) editorial da Revista Veja, datado de 27 de janeiro de 2010, da edição número 2.149
dessa publicação;
194
iii) outros textos e fragmentos de textos, sobre os quais teceremos alguns comentários, sem
operar uma análise linguística específica como nos anteriores. A saber, serão: um texto
técnico-didático, uma bula de remédio e uma receita culinária.
Nesse pequeno apanhado de textos, acreditamos na possibilidade de
confirmar a existência, na maioria deles, de uma malha narrativa que envolve a composição
textual em termos da organização cognitiva que subjaz ao processo de elaboração dos
mesmos.
5.4.3.1 Análise textual de exemplar do discurso político
Tendo em vista a ampla repercussão mundial da cerimônia de posse do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ocorreu no dia 01/01/2003, escolhemos o seu
discurso de posse para tentar representá-lo nos moldes do DCN.
Outro elemento motivador para essa escolha é a tão afamada característica
metafórica das falas do Presidente Lula, que a imprensa especialmente alguns anos atrás
insistiu em divulgar enfaticamente. Para uma pesquisa que tem como o cerne de sua
atenção a metáfora, achamos pertinente tecer breves comentários sobre essa questão, sem
sair, obviamente, dos nossos rumos de análise linguístico-cognitiva.
A fama dos discursos eivados de metáforas do Presidente rendeu até a
publicação de um livro pelo diretor de jornalismo Ali Kamel
150
, em que o autor acompanha
e organiza as falas de Lula em boa parte de sua trajetória na Presidência da República.
Segundo Kamel, uma das razões para a boa performance comunicativa do Presidente é o
uso de metáforas
151
, mas evidentemente tanto o autor quanto a dia de uma forma geral
centram a atenção no conceito de metáfora nos moldes da Estilística, que a trata como
elemento de adorno da comunicação verbal, conforme já discutimos anteriormente.
As metáforas estilísticas de Lula rendem também muitas críticas negativas,
por parte dos adeptos da ideia de que se trata de uma banalização da linguagem, ao que
Possenti (2009) rebate dizendo que
as falas de Lula são genericamente classificadas como metáforas. (...)
Claro, deve haver muitas (o linguista Roman Jakobson mostrou que
150
Cf. Kamel (2009).
151
Cf. reportagem transcrita do Jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, datada de 06/09/2009. Disponível em:
<http://www.ediouro.com.br/frog/upload/gazetadopovo.pdf>. Acesso em: 04 maio 2010.
195
metáfora e metonímia são as leis básicas da língua), mas o que se classifica
aqui de metáfora quase sempre foi outra coisa.
Talvez se devesse começar por um esboço de classificação das
falas de Lula. Simplificando muito: pequenas "parábolas", gafes,
quebras de etiqueta (ou sinceridade inusitada) e passagens que podem
lembrar metáforas, mas são mais propriamente comparações (...). E, sim,
eventuais metáforas.
Afora as questões estilísticas envolvidas nesse assunto, a veracidade ou não
sobre a intermitência de ocorrências metafóricas nas falas do Presidente Lula não
interferem na nossa investigação, principalmente pelo fato de que no nosso foco de
trabalho estão as metáforas conceituais, o processamento cognitivo da linguagem, e não o
nível superficial em que se encontram as famosas formações metafóricas tão perseguidas
pela mídia.
Assim, continuando a nossa abordagem, vamos tratar do texto selecionado
realizando um levantamento de alguns elementos de interesse para os estudos cognitivos,
conduzindo para a tentativa de representá-lo dentro do modelo da MC e do DCN. O
discurso em questão corresponde ao Anexo A.
5.4.3.1.1 Levantamento inicial de metáforas, metonímias e outros recursos
Logo no primeiro parágrafo do texto do discurso político que está sendo
analisado, deparamos com a apresentação de alguns elementos metafóricos, especialmente
na forma de personagens: “a sociedade brasileira” (responsável por emitir uma “grande
mensagem” e pela decisão de “trilhar novos caminhos”), “esperança” e “medo” (“A
esperança finalmente venceu o medo”). É apresentado também um construtor de espaço
mental, a expressão adverbial “nas eleições de outubro”, que de certa forma é responsável
por instaurar o tempo-espaço em que tudo acontece – além da informação temporal relativa
ao mês de outubro, a forma de introduzir essa expressão por meio da preposição “em”
alude também ao espaço metafórico das eleições, lugar onde a sociedade brasileira
manifestou a grande mensagem.
Além desses elementos, já no primeiro parágrafo do texto, é utilizada
também uma expressão que se enquadra no esquema origem-caminho-destino, de Lakoff
(1987), quando o autor insere um personagem metafórico no enunciado “a sociedade
brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos”.
196
O segundo e o terceiro parágrafos são construídos em função da sociedade
brasileira como um personagem investido de agentividade e volição. Nesses parágrafos,
vários elementos são apresentados metaforicamente como lugares, concepção que se
realiza através da expressão “diante de”: “Diante das ameaças à soberania nacional”, “da
precariedade avassaladora da segurança pública”, “do desrespeito aos mais velhos” etc.
Trata-se de pequenos espaços que se instauram nesses parágrafos diante dos quais “a
sociedade brasileira escolheu mudar e começou (...) a promover a mudança necessária”.
No quarto parágrafo, o elemento metafórico “a sociedade brasileira” muda
para “o povo brasileiro”, que pratica a ação de eleger o Presidente da República. O
referente é o mesmo, e destacamos aqui a presença da metonímia, já que se emprega o todo
(sociedade, povo) pela parte (cidadão, indivíduo).
No quinto parágrafo do discurso, acontece um fenômeno bastante relevante
em termos semântico-cognitivos: a construção metonímica, que até então fazia referência
aos atos de decidir os rumos, trilhar novos caminhos, promover a mudança etc., nesse
ponto do texto é desfeita, passando-se a referir à parte desse conjunto (“todo cidadão e
cidadã do meu País”), a fim de que o autor reitere a cada um “o significado de cada palavra
dita na campanha”. Em outras palavras, enquanto o elemento representativo do todo é
apresentado como agente, a parte é vista como a receptora da ação tanto é que ela surge
na forma de um objeto indireto de “reiterar”. Ou seja, percebe-se que, dentro de uma
mesma construção metonímica, os elementos podem se investir de diferentes funções
dentro do texto. Esquematicamente:
Todo (sociedade, povo)
Emite a grande mensagem
Decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos
Escolheu mudar
Começou a promover a mudança necessária
Parte (cidadão, cidadã)
Reiterar o significado de cada palavra dita na campanha
Figura 46 – Representação das funções diferenciadas dos elementos de construção metonímica do discurso
político
197
Entre os possíveis efeitos de sentido decorrentes dessa quebra da metonímia
com diferenciação de funções dentro do texto está o fato de que o autor enfatiza a força que
todo o conjunto possui para praticar as ações mencionadas e, ao mesmo tempo, retribui a
realização dessas ações favoráveis ao autor a cada indivíduo, separadamente, e não a
todo o bloco de maneira vaga e indefinida.
O fenômeno da compressão envolvendo construção linguística é bastante
visível também nesse quinto parágrafo, nos mesmos moldes apresentados por Fauconnier e
Turner (2000), quando o autor fala sobre “transformar o Brasil naquela nação com a qual a
gente sempre sonhou”. Nesse caso, comprime-se a imagem do Brasil com a de uma nação
sempre sonhada, sendo essa compressão relacionada diretamente com a metáfora, uma vez
que tal nação se apresenta como “soberana, digna, consciente da própria importância no
cenário internacional” e “capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus
filhos”. Nesse caso, a nação é conceitualizada como personagem e também como um
espaço.
No sétimo parágrafo do texto, encontra-se mais uma vez uma construção
linguística que manifesta o esquema origem-caminho-destino, de maneira mais
especializada, já que o Brasil é metaforizado como uma embarcação: “Não podemos deixá-
lo seguir à deriva, ao sabor dos ventos”. Trata-se basicamente do mesmo elemento que no
início do texto também se inseria nesse esquema metafórico, a “sociedade brasileira”.
Surge também, nesse mesmo parágrafo, uma construção que reforça a metáfora
orientacional de Lakoff e Johnson (1980): PARA CIMA É BOM, PARA BAIXO É RUIM.
Trata-se do enunciado “todos possam andar de cabeça erguida”.
No parágrafo seguinte, é empregado novamente o esquema origem-
caminho-destino, mas, desta vez, não voltado para algum elemento metafórico, e sim
direcionado a “nós”, conjunto de pessoas no qual se inclui o autor: “teremos que pisar na
estrada com os olhos abertos e caminhar com os passos pensados, precisos e sólidos”.
Temos nesse trecho também uma série de conceitualizações relacionadas a “olhos” e
“passos”, vigorando, entre elas, o esquema ABSTRATO É CONCRETO. A ideia da
temporalidade é expressa também de forma metafórica: “ninguém pode colher os frutos
antes de plantar as árvores”.
No nono parágrafo, reforça-se o esquema origem-caminho-destino, através
do enunciado “uma longa caminhada começa pelos primeiros passos”.
198
Por tratar-se de um texto de extensão bem maior que as redações de
vestibular analisadas, é possível identificarmos partes organizacionais diferentes no
decorrer do mesmo. Por exemplo, a partir do décimo parágrafo, nota-se uma mudança em
termos de organização por meio de esquemas conceituais e metáforas. O autor faz várias
remissões a lugares, mas desta vez não metafóricos, como as referências a regiões e estados
da Federação: Amazônia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Vale do Paraíba etc. Já não
aparecem mais, com tanta ênfase, os personagens metafóricos apresentados nos parágrafos
anteriores nem expressões reveladoras do esquema origem-caminho-destino. O uso de
palavra metafórica que se destaca nessa porção do texto se encontra no décimo terceiro
parágrafo. Trata-se de “Brasil”, conceitualizado como um ser concreto e animado, nos
seguintes enunciados: O Brasil conheceu a riqueza dos engenhos e das plantações de
cana-de-açúcar”, “[o Brasil] não venceu a fome”, “[o Brasil] proclamou a independência
nacional”, “[o Brasil] aboliu a escravidão”, “[o Brasil] conheceu a riqueza das jazidas de
ouro (...) e da produção de café”, “[o Brasil] industrializou-se e forjou um notável e
diversificado parque produtivo”. Passa por esse mesmo tipo de conceitualização o
elemento “campos do Brasil”, apresentado como um ser vivo, animado, nas seguintes
frases do décimo nono parágrafo: “para que os campos do Brasil produzam mais e tragam
mais alimentos para a mesa de todos nós, tragam trigo, tragam soja, tragam farinha, tragam
frutos, tragam o nosso feijão com arroz”.
No parágrafo seguinte, há uma interação de personagens no âmbito da
metáfora e da não metáfora: apresenta-se o “homem do campo”, no desejo do autor de que
ele recupere sua dignidade, e a ele se relaciona a metáfora “cada movimento de sua enxada
ou do seu trator irá contribuir para o bem-estar dos brasileiros do campo e da cidade”. Em
outros termos, o elemento abstrato “movimento” é reificado e até personificado através da
metáfora.
A metáfora do Brasil como um ser vivente volta a ser empregada no
vigésimo terceiro parágrafo, utilizando o hiperônimo “país”: “é absolutamente necessário
que o país volte a crescer, gerando empregos e distribuindo renda”.
No parágrafo seguinte, uma conceitualização espacial, em que o
“mercado de trabalho” é visto como um lugar de inserção de indivíduos apresentados não
metaforicamente: “jovens, que hoje encontram tremenda dificuldade em se inserir no
mercado de trabalho”. Fica patente, mais uma vez, a importância da interação da metáfora
199
e da não metáfora para a apresentação de ideias do texto no âmbito da teoria que estamos
postulando.
Nota-se um aspecto importante na organização desse discurso político:
quando se vai operar uma mudança na exposição do conteúdo, delimitando partes
específicas do texto, tal mudança é assinalada de forma veemente pelo tipo de
metaforização empregado. Percebe-se um novo turno de ideias a partir do parágrafo de
número 26, e nesse mesmo parágrafo já uma série de metáforas diferentes são empregadas:
volta-se ao esquema origem-caminho-destino (“Para avançar nessa direção”); surge outro
elemento imaterial (“inflação”) apresentado metaforicamente como um ser vivo,
reforçando o padrão de Lakoff e Johnson (1980) (“travar combate implacável à inflação”);
uma informação espacial é também apresentada metaforicamente (“nos solos internacionais
do comércio globalizado”).
Independentemente dessas partes nas quais o texto se organiza, pelo próprio
teor do discurso político em pauta, os elementos “Brasil”, “país” e similares aparecem
inúmeras vezes, algumas correspondendo a metáforas e outras não. Por essa razão, não
vamos citá-los mais neste levantamento que estamos operando, voltando a enquadrá-los
posteriormente no nosso modelo do DCN.
O “mar aberto do desenvolvimento econômico e social” é o lugar metafórico
apresentado ao final do parágrafo 27, onde o autor do texto deseja que o país navegue.
No parágrafo 30, ao falar sobre a união de indivíduos e entidades, o autor
apresenta a irmandade de homens, mulheres, velhos e jovens, mas apresenta também a
união entre elementos envolvendo metonímia e não metonímia: “O empresariado, os
partidos políticos, as Forças Armadas e os trabalhadores estão unidos”.
No parágrafo 31, a metáfora exerce um papel muito importante. Através
dela, caracterizações próprias de indivíduos são imputadas para as ações desses mesmos
indivíduos, numa espécie de adjetivação indireta. Ocorre com os elementos “adesão” e
“energia”: “contamos também com a adesão entusiasmada de milhões de brasileiros e
brasileiras”, “uma poderosa energia solidária que a nossa campanha despertou” e “energia
ético-política extraordinária”. Em meio a essa conceitualização surge também a metáfora
da personificação do elemento “campanha”, no segundo trecho transcrito acima.
Da mesma forma como ocorre com o elemento “inflação” personificado no
parágrafo 26, no trigésimo terceiro parágrafo são apresentados outros elementos com os
200
quais é empreendida metaforicamente uma batalha: “corrupção” e “cultura da
impunidade”.
No parágrafo seguinte, mais elementos abstratos são personificados, cuja
ação se dá sobre o elemento “população”: “a corrupção, a sonegação e o desperdício
continuem privando a população de recursos que são seus”.
No parágrafo 39, surge mais uma vez a metáfora do desenvolvimento como
uma caminhada, envolvendo o “nós”, e não propriamente um elemento metafórico: “O
ponto principal do modelo para o qual queremos caminhar é a ampliação da poupança
interna e da nossa capacidade própria de investimento”.
Construções metafóricas e metonímicas com características comentadas
anteriormente são empregadas no parágrafo seguinte, no enunciado “A riqueza que conta é
aquela gerada por nossas próprias mãos, produzida por nossas máquinas, pela nossa
inteligência e pelo nosso suor”.
Nos parágrafos subsequentes, o autor expõe perspectivas envolvendo as
relações internacionais com as quais o Brasil de estabelecer. Além da metáfora do país
como um ser concreto e animado, após fazer menção à Alca, Mercosul, União Europeia e
Organização Mundial do Comércio (não metafórica propriamente), fala-se da “construção
de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida” (parágrafo 50). Nesse
ponto do texto, nota-se que a metaforização de espaços geográficos abrange porções
maiores que regiões e países (principalmente o Brasil), atingindo o continente todo. No
parágrafo seguinte, dando sequência a esse raciocínio, ao fazer referência ao Mercosul,
afirma metaforicamente o Presidente Lula que “esse projeto repousa em alicerces
econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”. Reitera-se
a metáfora da construção da América do Sul utilizada no parágrafo anterior, além da
personificação do “projeto”, que é apresentado em estado de repouso. Outra metáfora
marcante nessa parte do texto é a empregada no enunciado “para que possa florescer uma
verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul” (parágrafo 53).
Até o parágrafo 62, outras construções metafóricas e metonímicas aparecem,
sob a temática das relações internacionais. No parágrafo 63, o autor volta-se para as
questões internas do país, e novos esquemas metafóricos são esquadrinhados, a começar
por “temos uma mensagem a dar ao mundo”. Nesse enunciado, é visível o emprego da
metáfora do tubo (REDDY, 1979), uma vez que um conteúdo comunicativo (mensagem) é
201
apresentado como que passando de um ponto ao outro de um conduto que interliga emissor
e receptor.
Uma série de pequenas metáforas se apresenta no parágrafo 64: “a
deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas decorrentes de políticas
econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem ameaçadora ao padrão
tolerante da cultura nacional”. Além de os “laços sociais” serem concretizados, a
“deterioração” dos mesmos é personificada por praticar a ação de trazer algo no caso,
“uma nuvem ameaçadora”, que metaforiza uma situação indesejável à cultura nacional.
Outros elementos são concretizados metaforicamente no sexagésimo quinto
parágrafo: “Crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o país e fizeram do
cotidiano (...) uma experiência próxima da guerra”.
Desse ponto do texto até o final, abundam as construções metafóricas de
personificação do Brasil. Fala-se também a respeito da posse do novo Presidente da
República como “um novo capítulo na história da Brasil” (parágrafo 72) e também como o
dia do “reencontro do Brasil consigo mesmo” (parágrafo 74).
Outra característica textual que marca o desfecho do texto é o emprego da
primeira pessoa do singular nos parágrafos 70, 75 e 76, não estando relacionado
diretamente com metáforas.
5.4.3.1.2 Enquadramento do texto no modelo do DCN
O levantamento apresentado na seção anterior revela algumas construções
metafóricas e mesmo algumas não metafóricas que já foram direcionando para o construto
do DCN desse discurso político. Tomando uma pequena porção do texto e mesmo o
discurso por completo, somos capazes de esboçar as relações estabelecidas entre o
metafórico e o não metafórico nos moldes de uma grande narrativa cognitiva. Esse texto
encerra partes que se enquadram basicamente em quase todos os tipos textuais
apresentados na seção 4.2, não sendo somente narrativo. Porém, levando-se em conta os
esquemas cognitivos utilizados, somos, sim, levados a compreendê-lo como uma narrativa
por excelência.
O que difere entre a representação de pequenas partes do texto e a
representação do texto completo utilizando o esquema do DCN é a quantidade de
elementos e informações dentro dos espaços que compõem o modelo. De qualquer
202
maneira, a contribuição maior da teoria não é propriamente a sua forma de representação
escrita, mas a ciência da existência desse tipo de domínio em textos de diferentes tipos e
gêneros no nível de sua organização cognitiva.
Todavia, para o fim de exemplificação de aplicação do modelo, tomemos
algumas partes do texto, procurando representar alguns elementos e as relações
estabelecidas entre eles.
Comecemos por representar a narrativa que se desenvolve no primeiro
parágrafo. Vimos que vários elementos são apresentados de forma personificada, além de
ter sido feita a situação dos fatos no âmbito do espaço e do tempo. Assim, temos a seguinte
representação:
Figura 47 – Representação do DCN do primeiro parágrafo do discurso político
Observe-se que optamos por alocar “Decidiu (que estava na hora de) trilhar
novos caminhos”, praticada pelo personagem metafórico “a sociedade brasileira” no
domínio da mescla pelo fato de se tratar também de uma ação metafórica (“trilhar novos
caminhos”). No nosso modelo, essa não é uma forma de representação obrigatória, mas
constitui mais uma potencialidade representativa do nosso diagrama. Não fizemos o
mesmo a respeito deEmitiu a grande mensagem da mudança” pelo fato de ter sido
PERSONAGENS
A sociedade
brasileira
Esperança
Medo
TEMPO-ESPAÇO
Nas eleições de
outubro
Emitiu a grande
mensagem da
mudança
Decidiu trilhar
novos caminhos
Vence
203
apresentado pelo texto apenas o enunciado “Mudança: (...) esta foi a grande mensagem”.
Existem nesse parágrafo as metáforas criadas com a forma verbal “é” (“esta é a palavra
chave”) e com a forma verbal “foi” (“foi a grande mensagem”), mas essas
conceitualizações não estão representadas na figura acima.
A metonímia presente em grande parte do texto, através da qual se
vislumbra a sociedade brasileira como um todo representando cada cidadão e cidadã do
país pode ser inserida também no modelo do DCN, sendo que cada elemento se enquadra
numa parte diferente do esquema: o todo é metafórico, e a parte é não metafórica. Essa
relação metonímica, que culmina no quinto parágrafo do texto, pode ser representada da
seguinte maneira:
Figura 48 – Representação de relação metonímica no discurso político no esquema do DCN
As partes sombreadas no esquema acima evidenciam os termos constituintes
da relação metonímica descrita, que, no caso, por envolver também uma relação metafórica
do elemento que representa o todo, remete-nos à existência de uma metaftonímia, nos
termos de Goossens (2002) e outros autores.
Outro aspecto importante dentro desse modelo é a possibilidade de interação
do narrador, na forma de um personagem não metafórico do texto, com outros
PERSONAGENS
(Todo)
Sociedade,
Povo
PERSONAGENS
(Parte)
Cidadão,
Cidadã
Reitera o significado
de cada palavra da
campanha
Eu (narrador)
204
personagens. No caso acima, o narrador (“eu”) pratica a ação de reiterar o significado de
cada palavra do seu discurso para cada cidadão e cidadã brasileiros.
Enfim, se tomarmos partes específicas do discurso político, nota-se a
possibilidade de representação das informações especialmente relacionadas a personagens
e espaços através do modelo do DCN, como mostram os casos acima, cuja sistemática não
varia muito em relação aos demais casos.
Uma vez que identificamos diferentes esquemas metafóricos de acordo com
as partes organizacionais do texto, tentemos sintetizar cada uma dessas partes a fim de
chegar a uma representação do texto todo dentro do nosso modelo analítico. Basicamente,
vimos que o discurso, de acordo com a predominância de alguns grupos de metáforas, pode
ser divido da seguinte maneira:
i) Primeira parte parágrafos 1 a 9 esquema metafórico predominante com os elementos
“Brasil”, “sociedade”, “povo” sendo apresentados como personagens metafóricos
investidos de volição e ações concretas, relacionados metonimicamente com “cidadão”,
“cidadã” como elementos o metafóricos sendo alvos de ações. Predomina também a
metáfora A VIDA É UMA VIAGEM (esquema origem-caminho-destino) especialmente
voltada para os elementos que representam o “todo” da relação metonímica mencionada, já
que a “vida”, nesse esquema, diz respeito à vida em sociedade, à vida política.
ii) Segunda parte parágrafos 10 a 25 predominam as conceitualizações do Brasil como
um personagem praticante de várias ações, o qual interage com vários outros, bem como
elementos relacionados ao país (inclusive abstratos) sendo também personificados.
muitas referências a lugares, a maioria dos quais não metafóricos.
iii) Terceira parte parágrafos 26 a 44 volta-se à imagem metafórica das viagens, além
de serem apresentados muitos elementos abstratos como concretos, implementando-se
também a metáfora da guerra, do combate a esses elementos. Fala-se de muitas instituições
sociais e aspectos culturais do próprio país, misturando-se elementos metonímicos,
metafóricos e não metafóricos.
iv) Quarta parte parágrafos 45 a 68 as conceitualizações sobre o Brasil voltam-se agora
para as relações internacionais. Nessa parte, metaforizam-se projetos e relações
internacionais, e até mesmo os próprios países com os quais o personagem “Brasil”
mantém contato.
v) Quinta parte parágrafos 69 a 77 volta-se a tratar especificamente sobre o Brasil,
através de várias construções metafóricas, inserindo-se o narrador no próprio texto, com a
205
utilização da primeira pessoa do singular. O discurso nessa parte é bastante laudatório, até
o desfecho do texto.
Inserindo os elementos dessa síntese no modelo de representação do DCN,
temos o seguinte:
Figura 49 – Representação geral do DCN do discurso político
Na representação acima ficam subsumidos, evidentemente, uma série de
outros elementos, repetidos e novos, que se encontram presentes no texto, bem como as
relações estabelecidas entre os elementos da mesma parte do texto e entre as partes. Com a
PERSONAGENS
1ª Parte
Brasil,
Esperança sociedade,
Medo povo
2ª Parte
3ª Parte
Adesão, energia
Inflação, corrupção, cultura da
impunidade
Sonegação, desperdício
4ª Parte
5ª Parte
TEMPO-ESPAÇO
1ª Parte
Brasil
Nas eleições de outubro
PERSONAGENS
1ª Parte
Presidente da
República
Cidadão, cidadã
2ª Parte
Regiões e estados
brasileiros
3ª Parte
Instituições brasileiras
População
4ª Parte
Organizações
internacionais
Continentes e outros
países
5ª Parte
Eu (narrador)
206
ausência de tais nessa representação geral, através dela é possível termos uma visão mais
ampla do discurso político que analisamos em termos de domínio da narrativa.
Passemos, agora, para a análise de outro gênero textual, sempre na tentativa
de representação do texto nos moldes da teoria e da representação do DCN.
5.4.3.2 Análise textual de exemplar de editorial
Como texto representante de outro gênero da escrita em língua portuguesa,
escolhemos um editorial da Revista Veja, publicação de ampla repercussão e distribuição
no país. Trata-se do texto do Anexo B, de publicação recente, sobre o qual vamos nos deter
agora.
Em comparação com o texto do Anexo A, o editorial é bem menor,
aproximando-se mais da estrutura típica das redações de vestibular analisadas
evidentemente apresentando características próprias, em termos de nível vocabular,
organização da linguagem e maior inserção nos fatos da realidade, além de eventual
passagem metalinguística, que é bastante encontradiça nesse gênero.
O editorial como gênero textual “está inserido no domínio discursivo
jornalístico, mais especificamente no jornalismo opinativo”, conforme destaca Figueiredo
(2008, p. 47)
152
. Trata-se de um tipo de produção textual que não leva a assinatura do
autor, refletindo, em grande parte, a ideologia do meio de comunicação escrita onde ele é
veiculado.
O exemplar que analisaremos trata mais especificamente sobre o trágico
terremoto que assolou o Haiti no mês de janeiro de 2010. Com base nesse acontecimento, o
autor tece uma série de comentários a respeito do comportamento humano em geral.
5.4.3.2.1 Levantamento inicial de metáforas, metonímias e outros recursos
No início do texto, várias construções linguísticas são utilizadas na forma de
metonímias, fazendo-se referência a ações praticadas por grupos de indivíduos, no lugar
dos indivíduos propriamente, ou mesmo sobre a situação em que tais grupos se encontram.
São estas: “uma população vivendo quase em estado natural”, “Gangues armadas
152
A esse respeito, cf. também Marcuschi (2005).
207
saqueiam, roubam, estupram e matam” e “Grupos de haitianos desabrigados pelo terremoto
se entrelaçam nas calçadas”.
Neste último enunciado da sequência, vislumbra-se também a
personificação de “terremoto”, como o agente responsável por desabrigar grupos de
haitianos. Outras construções metafóricas personificando fenômenos da natureza são
utilizadas no primeiro parágrafo, uma das quais repetidamente para “terremoto”: “um país
que, antes de ser arrasado pelo terremoto” e “A catástrofe natural fez emergir no Haiti o
que há de pior na espécie humana”.
O autor emprega também, no primeiro parágrafo, algumas construções
metafóricas aproveitando-se do campo semântico explorado nessa temática do editorial: “É
um quadro aterrador mesmo para um país que, antes de ser arrasado pelo terremoto,
duas semanas, era um dos mais abalados
pelo banditismo e pela miséria.”
153
O adjetivo
“aterrador”, que qualifica “quadro”, remete ao conceito de “terra”; e “abalados” que
qualifica “países”, remete à ideia de “abalo” são duas metáforas ligadas diretamente ao
tema do abalo sísmico sofrido pelo Haiti. A forma participial “arrasado”, presente nesse
fragmento, pode também ser considerada metafórica, embora o seu uso esteja mais
entrincheirado na nossa língua, considerando-se a sua origem a partir de “raso”. Com isso,
remete-nos também à metáfora orientacional de Lakoff e Johnson, PARA BAIXO É
RUIM, já que a imagem evocada por “raso” nos remete à visão de proximidade do chão.
No trecho transcrito acima, identifica-se também a personificação dos
elementos “banditismo” e “miséria”, os quais praticam a ação de abalar o país.
Em relação à metáfora orientacional, encontramos também, ao final do
primeiro parágrafo, outra expressão que se enquadra nesse esquema: “A catástrofe natural
fez emergir no Haiti o que de pior na espécie humana”. Apesar de a forma verbal
“emergir” significar “ir para cima, ir à tona”, o seu sentido no texto não é positivo, como
poderia atestar o esquema PARA CIMA É BOM. Apesar do sentido “para cima”
manifestado pelo verbo, ele faz referência a algo que se encontra abaixo, metaforicamente
no subterrâneo do país, que seria, no caso, o aspecto ruim da espécie humana.
Outra construção metafórica que surge nesse parágrafo é “tapetes humanos”,
fazendo-se referência aos montes de pessoas amontoadas nas calçadas, numa espécie de
coisificação (como tapetes), destituídas de suas características humanas. E encontramos
153
Grifos nossos.
208
também o elemento “vida humana” caracterizado como “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, aproveitando-se o autor das palavras do escritor Thomas Hobbes.
No segundo parágrafo desse editorial, logo no início, continua vigorando a
conceitualização do “terremoto” como um ser vivo e praticante de ações. Nesse caso, ele
pratica uma ação também metafórica, a de fazer “brotar a solidariedade” ou seja, a
solidariedade é metaforizada como uma planta ou uma flor, imagem bastante recorrente em
vários outros textos e contextos.
Também as “ofertas de ajuda” são metaforizadas, concebidas como seres
que viajam, através da expressão “partiram (...) de todas as partes do planeta”.
Ainda no segundo parágrafo, várias instituições, grupos de profissionais e
países são mencionados, mas não necessariamente na forma de metáforas.
Se a solidariedade, nesse parágrafo, foi concebida como uma planta ou flor,
no início do terceiro parágrafo emerge a imagem da solidariedade como outro elemento
natural: “a onda sem precedentes de solidariedade”. Essa nova metaforização vem
acrescentar conteúdo à outra metáfora: enquanto planta, ela brota do chão que sofrera o
abalo sísmico; como onda, ela se movimenta e vai ganhando proporções maiores. Ou
seja, o jogo metafórico vai acompanhando as ideias do autor do texto, que ele fala das
proporções internacionais que o sentimento de solidariedade alcançara.
Nessa mesma parte do texto, o “desastre haitiano” é personificado, uma vez
que é ele que promove “a onda sem precedentes de solidariedade”.
Termina-se o texto fazendo-se referência a “outros países” que são vítimas
de “catástrofes naturais”, dando sequência a tudo que foi falado a respeito do Haiti.
5.4.3.2.2 Enquadramento do texto no modelo do DCN
Alguns dos elementos mencionados na seção acima se constituem como
claros elementos organizadores de uma narrativa, capazes de mostrar como o texto se
compõe nesses moldes.
Tais elementos são os seguintes:
i) Espaço não metafórico: Haiti.
ii) Personagens no âmbito metafórico-metonímico:
- População, gangues, grupos de haitianos – resumiremos utilizando “população”;
- Terremoto, catástrofe natural, desastre haitiano – resumidos por “terremoto”;
209
- Banditismo;
- Miséria;
- Solidariedade;
- Ofertas de ajuda.
iii) Personagens no âmbito não metafórico:
- Haiti;
- Outros países.
Ressalte-se, mais uma vez, que não estão sendo levantados exatamente
todos os elementos metafóricos e não metafóricos; trata-se de listar os elementos de maior
destaque no texto capazes de oferecer a visão de que o mesmo se constitui como uma
grande narrativa em termos cognitivos.
Podemos fazer a seguinte representação dos elementos da narrativa dentro
do nosso modelo proposto do DCN:
210
Figura 50 – Representação do DCN do editorial
Note-se que estabelecemos uma ligação entre o espaço “Haiti” e o
personagem “Haiti”. A razão é que, de fato, esse elemento é concebido tanto em termos
geográficos como um personagem que interage com outros personagens do texto,
metafóricos e não metafóricos.
Da mesma forma que nas análises anteriores, ressaltamos que não estão
representados todos os elementos que compõem o texto, restringindo-nos àqueles
principais capazes de revelar a tessitura do editorial como uma grande narrativa.
PERSONAGENS
População
desabriga
Terremoto
arrasa
promove
Solidariedade
brota
Banditismo
abalam
Miséria
Ofertas de ajuda
partem de
PERSONAGENS
Haiti
Outros países
ESPAÇO
Haiti
saqueia, rouba,
estupra e mata
211
5.4.4 Algumas considerações a respeito da aplicabilidade do modelo em outros gêneros
textuais
Uma vez desenvolvida a aplicação do modelo do DCN em textos diferentes
do nosso corpus, cumpre esclarecer alguns aspectos a respeito da possibilidade de
aplicação desse mesmo modelo de análise em outros gêneros textuais diferentes de
discursos políticos e editoriais, além das redações de vestibular, evidentemente.
Ao tomarmos um exemplar do discurso político e um editorial para
tentarmos entendê-los de forma atrelada à narração, foi feita uma seleção aleatória e que
atendeu à nossa suposição inicial. Outros textos de outros gêneros também atendem,
certamente, ao modelo de narrativas, sendo possível identificar neles elementos associados
a tempo, espaço e personagem metafóricos e não metafóricos possíveis de serem
enquadrados no modelo do DCN. Bem genericamente, citamos aqui textos didáticos,
históricos, religiosos, humorísticos, bem como sermões, cartas, romances, etc. Textos de
alguns outros gêneros podem não se enquadrar nesse modelo, dada a sua estrutura na forma
de tópicos ou a sua extensão pequena, a exemplo de receitas, bulas de remédio, horóscopo,
lista de compras, outdoor etc. Mas, claro, pode haver casos dentro desses grupos que, ainda
que minimamente, enquadrem-se no modelo.
De uma forma geral, o que percebemos é que, diante de textos estruturados
na forma de frases nominais agrupadas em blocos ou parágrafos, a exemplo das redações,
discursos políticos e editoriais, o modelo se aplica muito bem, com maior ou menor
intensidade, dependendo da extensão do texto e do rol de elementos apresentados pelo
autor, independentemente da temática desenvolvida.
O fragmento abaixo, por exemplo, pertence a um texto técnico-didático
transcrito da Internet, e ele claramente não pertence ao chamado tipo narrativo. No entanto,
somos capazes de identificar vários personagens e espaços metafóricos, que formariam o
DCN relativo ao mesmo em conjunção com as informações não metafóricas:
(34)
Quando o é possível eliminar totalmente um invasor, podem ser construídas paredes para
aprisioná-lo. Essas paredes são formadas por células especiais e são denominadas granulomas. A
tuberculose é um exemplo de infecção que não é totalmente eliminada; as bactérias causadoras da
tuberculose são aprisionadas no interior de um granuloma. A maioria dos indivíduos saudáveis
expostos a essas bactérias rechaça a infecção tuberculosa, mas algumas bactérias sobrevivem
indefinidamente, geralmente no pulmão, circundadas por um granuloma. Se o sistema imune
212
enfraquecer (mesmo 50 ou 60 anos depois), as paredes da prisão desmoronam e as bactérias
causadoras da tuberculose recomeçam a multiplicar-se.
154
Por outro lado, existem textos que apresentam mais dificuldade em
vislumbrar o DCN, justamente porque a sua forma de elaboração é baseada em tópicos
quase independentes, com uma malha textual em que não se identifica um fio condutor
através do qual os elementos se interajam. Um exemplo dessa situação é o texto abaixo,
que se enquadra no gênero de bula de remédio:
(35)
Quadriderm creme ou pomada é uma preparação dermatológica tópica altamente eficaz no
tratamento de numerosas afecções cutâneas. Quadriderm é indicado para uso tópico nas
dermatoses causadas, complicadas ou ameaçadas por alguns tipos de infecção bacteriana ou
fúngica, inclusive monilíase. É indicado para a prevenção e o tratamento de infecções causadas por
bactérias ou fungos em grande variedade de eczemas e outras dermatoses alérgicas e inflamatórias.
Foi usado com sucesso no tratamento da dermatose inguinal, das dermatoses crônicas das
extremidades, eritrasma, otite do ouvido externo, balanopostite, herpes zóster, dermatite
eczematoide, dermatite de contato, dermatite microbiana, dermatite folicular, disidrose,
paraqueratose, paroníquia (cândida), prurido anal, eczema seborreico, intertrigo, dermatite
seborreica, acne pustulosa, impetigo do couro cabeludo, neurodermatite, estomatite angular, zona
occipital, dermatite por fotossensibilidade, dermatofitose inguinal liquenificada e infecções por
tínea, como: Tinea pedis, Tinea cruris e Tinea corporis. (...) Uma pequena quantidade de
Quadriderm creme ou pomada deverá ser aplicada suavemente nas lesões, 2 ou 3 vezes por dia. A
frequência da aplicação deverá ser baseada na gravidade da afecção. A duração do tratamento será
determinada pela resposta do paciente. Em casos de Tinea pedis pode ser necessário um tratamento
mais prolongado (2 a 4 semanas).
155
No texto (35), existem algumas pequenas passagens em que podemos
visualizar um resquício narrativo, mas com poucas informações a ponto de podermos
caracterizar uma narrativa propriamente dita. Em “A duração do tratamento será
determinada pela resposta do paciente”, pode-se entender “a resposta do paciente” como
um personagem responsável por determinar “a duração do tratamento”; e “dermatoses”
pode ser concebido como o lugar em que se o “uso tópico”, mas a narração não iria
muito longe desse ponto.
Casos mais difíceis ainda de serem considerados como textos narrativos no
nível semântico-cognitivo podem ser exemplificados com a receita que segue transcrita
abaixo:
154
Disponível em: <http://www.msd-brazil.com/msdbrazil/patients/manual_Merck/mm_sec16_167.html>.
Acesso em: 04 dez. 2009.
155
Disponível em: <http://www.bulario.net/quadriderm/>. Acesso em: 04 dez. 2009.
213
(36) Filé de merluza ao molho de camarão
Ingredientes:
1 kg de filé de merluza lavado e cortado ao meio
500g de camarão fresco
2 tomates picados
1 cebola grande picada
1 pimentão médio picado
1 xícara de coentro picado
5 colheres de azeite
6 dentes de alho bem amassados
1 colher de sopa de amido de milho dissolvido em 1 xícara de água
2 colheres de sopa de coloral
1/2 colher de sopa de tempero baiano
Sal a gosto
Modo de Preparo:
Em uma panela grande coloque o azeite, alho, tomate, cebola, pimentão, coloral e tempero baiano
deixando fritar até que os temperos fiquem cozidos. Coloque o camarão lavado mexendo até
levantar fervura. Acrescente a cara de amido sempre mexendo. Por último coloque o filé de
merluza já com o sal e deixe cozinhar por 10 minutos em fogo baixo. Depois de cozido jogue o
coentro e sirva em seguida com arroz branco e purê de batatas.
156
No texto de receita, somos capazes de identificar alguns elementos
relacionados a lugar (“Em uma panela grande”), tempo (“por 10 minutos”), mas não se
identifica um fio condutor entre esses elementos a ponto de considerarmos o texto como
uma narrativa. A estrutura em tópicos, como nesse caso e no de bulas de remédio, dificulta
a concepção do texto como uma narrativa, pelo menos de maneira mais completa como
vislumbramos nas análises anteriores.
5.5 Conclusão – perspectivas da consideração da existência dos DCNs dentro dos estudos
linguístico-cognitivos
Considerar que, no processo de produção de textos de variados gêneros, a
mente humana apresenta o funcionamento próprio da estruturação narrativa é, em outras
palavras, apresentar a narração como o principal procedimento linguístico-textual, o
princípio organizador das ideias, mesmo que, na estrutura superficial, o texto resulte numa
não narrativa de acordo com a clássica tipologia textual.
O que se mostra como novidade no contexto da nossa pesquisa é a forma
como esse processo se desenvolve, envolvendo metáfora e não metáfora.
156
Disponível em: <http://receitas.maisvoce.globo.com/>. Acesso em: 11 out. 2009.
214
A partir dessa constatação, o esquema dos DCNs pode ser incorporado pela
Linguística Textual, que é a área por excelência que deu impulso às descobertas dos
aspectos de coesão e coerência textuais aplicados a textos de natureza diversa; pode ser
aproveitado também para os diversos tipos de estudo realizados no bojo da Semântica, área
que trata dos processos de produção do sentido e sua correlação com aspectos que vão além
do texto, interagindo com a Pragmática; o modelo se constitui também como um bom
subsídio para os estudos empreendidos nas diversas vertentes da
Análise do Discurso, uma vez que as informações sobre tempo, espaço e personagens são
claramente relacionadas a fatores de ordem pragmática, histórica e linguística a que essa
área comumente recorre; e, apesar de apresentar embasamentos teóricos e formas de
abordagem diferentes das teorias linguísticas, o modelo também pode ser utilizado em
estudos literários, uma vez que seja feita a necessária equalização dos conceitos de
metáfora e narrativa. Mais do que uma contribuição teórica para a Literatura, pensa-se na
possibilidade de aproveitamento do modelo de análise para esclarecer aspectos que não são
exclusivos da teoria linguística.
Sendo mais específico em nossa abordagem, o trabalho apresenta também
ampla abertura para a aplicabilidade de ferramentas eletrônicas da LCorp, não
empreendendo pesquisas em direção ao grau de eficácia das mesmas quando o tema é a
metáfora, mas contribuindo para mostrar também o nível de dificuldade e o alcance de
procedimentos quando do seu uso efetivo. Nesta tese não desenvolvemos um aparato
dentro dessa vertente, mas lidamos com elementos de um corpus organizado, e cada
trabalho que é feito com a utilização de corpora específicos constitui um ganho tanto no
âmbito da análise linguística em si, quanto em relação à avaliação dos procedimentos
técnicos capazes de serem empreendidos nessa análise.
Ademais, outras áreas do conhecimento humano podem ser beneficiadas de
alguma maneira com a adoção do modelo proposto, desde que estejam interessadas na
descrição das representações mentais envolvidas na articulação textual. Referimo-nos aqui
superficialmente a algumas áreas mais ligadas à cognição humana, tais como a Psicologia,
a Psicanálise, algumas vertentes da Pedagogia, a Ciência da Informação etc. Enfim, são
muitas as possibilidades que se abrem a partir da adoção desse modelo, dentro e fora dos
estudos linguísticos na mesma proporção em que cada descoberta científica numa
determinada área acarreta, no mínimo, muitas responsabilidades de investigação na própria
área e nas suas correlatas. Não vamos nos enveredar aqui nessas possibilidades de
215
aplicação do modelo em outras áreas, pois isso requereria conhecimentos específicos
dentro das mesmas, mas lembramos que os termos “cognição” e, por extensão, “domínio
cognitivo” aplicam-se muito bem a praticamente todo tipo de estudo que envolve
processamento de sentido, raciocínio lógico, processos mentais, redes neurais, estados
psicológicos etc. E, conforme mostramos, sendo a narração um processo inerente à espécie
humana, a adoção de um modelo que considere a existência de um domínio cognitivo em
que se processa a narração certamente é capaz de trazer muitos benefícios em termos de
uma melhor compreensão de como funciona a mente humana.
216
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este trabalho, espera-se ter oferecido aos estudiosos de questões da
linguagem um subsídio para melhor compreensão de vários aspectos: i) os fundamentos da
Gramática Cognitiva; ii) o mecanismo de funcionamento de mapeamentos e projeções de
elementos envolvendo diferentes domínios cognitivos; iii) as diferentes abordagens sobre a
metáfora; iv) a relação entre a metáfora e a articulação textual; v) um modelo de tratamento
de textos considerando-se a relação entre metáfora e narrativa.
Num âmbito mais amplo, a maior contribuição que se pretende oferecer com
esta pesquisa é uma compreensão mais aprofundada a respeito do funcionamento da mente
humana. O mundo da ciência se encontra em plena e franca ascensão, principalmente com
o aumento de recursos de investigação à disposição dos pesquisadores. E, nesse contexto, a
pesquisa linguística não pode ficar alheia a esses avanços, presa que esteve durante séculos
à superficialidade dos textos, e em tratamento de pequenas porções destes. Mais do que
realizar descrições que se voltam única e exclusivamente para a própria área, ela deve
incluir em seu programa de estudos a preocupação com aspectos que vão além da
organização textual stricto sensu. A partir principalmente da década de 1960 ficou patente
que os estudos da linguagem devem ir além do nível literal. Agora, mais do que isso, o
rumo em que a ciência do século XXI se encontra exige que sejam considerados os
aspectos de processamento mental se quisermos empreender pesquisas efetivas em vários
campos do conhecimento humano. Com vistas nisso é que se propôs o presente trabalho.
Considerar que lidamos o tempo todo com elementos de um domínio
cognitivo estruturado em termos de uma grande narrativa e que abarca indistintamente
informações metafóricas e não metafóricas não é mera questão de organização textual.
Trata-se de uma propriedade da mente humana, a todo momento influenciada e enriquecida
217
por fatores de ordem cultural, comportamental, histórica, pragmática, filosófica etc.
Afirmar a existência desse domínio cognitivo nos gêneros textuais aqui trabalhados
equivale a afirmar que, enquanto nos interagimos através desses gêneros, estamos
colocando em funcionamento essa propriedade básica da mente humana.
Essa investigação pode ser ampliada para além da comunicação escrita,
pesquisando-se a pertinência dessas ideias na comunicação oral, por exemplo, e mesmo em
várias outras modalidades comunicativas, como a gestual. É óbvio que nesses casos
necessitamos de outros aportes teóricos, outras coletas de dados, outras metodologias de
pesquisa, principalmente por sabermos que o discurso oral é mais livre e espontâneo e se
pauta também nas lacunas, que se constituem importantes elementos na formação do
sentido isso, sem mencionar outras características que integram essa modalidade. Mas,
pela bibliografia estudada no desenvolvimento desta tese e pela observação de fatos da
nossa comunicação cotidiana, indícios de que essa ideia procede. Fica aqui, portanto,
mais essa contribuição: a sugestão de que o fenômeno que tratamos exaustivamente neste
trabalho seja investigado em outras formas comunicativas.
Centramos nossas análises em textos de língua portuguesa, porém o nosso
embasamento teórico e o modelo de análise que oferecemos não são exclusivos dessa
língua, até mesmo porque a dinâmica de mapeamentos e projeções de elementos entre
diferentes domínios é uma propriedade da mente humana independente de qualquer língua
em que ela se manifeste. A priori, não vemos nenhuma restrição à aplicabilidade do
modelo do DCN em textos de outras línguas. A escolha de efetuar a pesquisa em textos do
português se justifica no nosso recorte teórico meramente pela maior facilidade do
pesquisador em manejar os aspectos de coesão e coerência textuais nessa língua. A partir
do modelo e dos resultados que estamos oferecendo, também é possível pensar em
pesquisas em que seja feito um cotejamento de características de formação de domínios
cognitivos narrativos na superfície de diferentes línguas. Obviamente, tratar-se-ia de
estudos que levassem em conta as formações metafóricas nesses idiomas, que podem
apresentar diferenciações – e normalmente apresentam em virtude de diferenças culturais
que acarretam variações na elaboração de conceitos em seus falantes.
Voltando especificamente para a questão da metáfora, esperamos ter
oferecido uma clara visão da mesma sob a concepção de um importante recurso cognitivo
com alto grau de pervasividade na linguagem humana. Entre as várias abordagens sobre a
metáfora que foram empreendidas ao longo de séculos e séculos de investigação, destaca-
218
se para nós a sua função como reveladora de conceitos ligados à formação cultural e
ideológica dos seus usuários, bem como o seu papel como um facilitador da compreensão
de conceitos mais complexos pelo homem. O ato de projetar elementos de um domínio
para outro não é fortuito, e acaba por revelar uma série de características pela escolha de
espaços envolvidos nesse processo. E é nessa escolha que se revelam importantes dados de
ordem social, pragmática, ideológica etc.
Cabe aqui ainda uma importante consideração sobre a metodologia que
utilizamos para a realização deste trabalho quanto ao auxílio do software e sobre o traçado
do modelo do DCN a partir dos resultados obtidos. No caso do WST, ele vem sendo
aprimorado através das várias versões que vêm sendo lançadas nos últimos anos, tanto que
lançamos mão da versão mais atual de que dispomos, a fim de usufruirmos de recursos e
procedimentos mais recentes e que, portanto, foram aprimorados por especialistas de várias
áreas ligadas ao programa.
Sobre o traçado do modelo do DCN, uma vez identificada a existência desse
tipo de domínio em textos de diversos gêneros, ele pode ser aplicado diretamente a
qualquer corpus, sem a necessidade de utilização de qualquer ferramenta eletrônica. É
óbvio que, conforme demonstramos, textos em que não é tão visível a existência do
DCN, e, a bem da verdade, não é necessário visualizar esse domínio em absolutamente
qualquer tipo de texto para que a teoria tenha validade. Num trabalho dessa natureza com
qualquer outro tipo de texto ou de corpus, basta identificar elementos relacionados a
personagens, tempo e espaço sabendo-se especialmente que muitas informações acerca
de personagens e espaço são metafóricas e identificar relações de significado
estabelecidas entre eles, que se estará lidando dentro de um DCN. O suporte teórico
desse procedimento e o percurso para se chegar a esse ponto são basicamente a essência
desta tese.
Por fim, queremos relembrar aqui os postulados fundamentais da LCog, que
foram apresentados no primeiro capítulo deste trabalho, reafirmando o nosso objetivo geral
de contribuir com algum avanço nessa área. Ao elegermos a metáfora, que permeia toda a
comunicação e é um complexo recurso da cognição humana, dentro da delimitação de
nossa pesquisa, e ao conseguirmos relacioná-la com a prática da narração também nos
moldes da cognição humana, esperamos ter alcançado esse objetivo a contento.
219
REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia, vol. 1. Trad. de José Pedro Xavier Pinheiro. São
Paulo: Leia, 1946.
ANDRÉ, Hildebrando A. de. Gramática ilustrada. 4 ed. São Paulo: Moderna, 1993.
AQUINO, Santo Tomás de. Summa theologiae - vol. 1. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006.
ARNAULD, Antoine et al. Logique de Port-Royal. Paris: Librairie de L. Hachette et
Cie., 1861.
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer; palavras e ação (1962). Tradução de
Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 (série Discurso
Psicanalítico). Original inglês.
AZEVEDO, Adriana Maria Tenuta de. Estrutura narrativa e espaços mentais. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BARCELONA, Antonio. Clarifying and applying the notions of metaphor and metonymy
within Cognitive Linguistics. Atlantis XIX (1), p. 21-48, 1997.
_______________ (Ed.). Metaphor and metonymy at the crossroads; a cognitive
perspective. The Hague: Mouton, 2000a (Topics in English Linguistics).
_______________. On the plausibility of claiming a metonymic motivation for conceptual
metaphor. In: Barcelona, Antonio (Ed.). Metaphor and metonymy at the crossroads; a
cognitive perspective. The Hague: Mouton, 2000b. p. 31-58 (Topics in English
Linguistics).
BARLOW, Michael. Usage, blends, and grammar. In: BARLOW, Michael; KEMMER,
Suzanne (Eds.). Usage-based models of language. Staford: CSLI Publications, 2000, p.
315-345.
220
BARLOW, Michael; KEMMER, Suzanne (Eds.). Usage-based models of language.
Staford: CSLI Publications, 2000.
BERBER SARDINHA, Tony. An assessment of metaphor retrieval methods. 2009. 25 p.
Draft.
_______________. Linguística de corpus. Barueri: Manole, 2004.
_______________. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007 (Lingua(gem) 24).
BEZERRA, Maria Auxiliadora. Da redação ao gênero textual: a didatização da escrita na
sala de aula. In: MOURA, Denilda (Org.). Os desafios da língua: pesquisas em língua
falada e escrita. Maceió: EDUFAL, 2008. p. 135-138.
BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua
portuguesa – Vol. V e VII. São Paulo: Lisa, 1988.
BRITTAN, Simon. Poetry, symbol, and allegory: interpreting metaphorical language
from Plato to the present. Virginia: University of Virginia Press, 2003.
BRUNER, Jerome. Realidade mental, mundos possíveis. Tradução de Marcos A. G.
Domingues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Original inglês.
CAMERON, Lynne. Metaphor shifting in the dynamics of talk. In: ZANOTTO, Mara
Sophia; CAMERON, Lynne; CAVALCANTI, Marilda C. (Eds.). Confronting metaphor
in use: an applied linguistic approach. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins
Publishing Company, 2008. p. 45-62 (Pragmatics & Beyond New Series).
CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 36 ed.
São Paulo: Nacional, 1993.
CHAFE, Wallace. Some things that narratives tell us about the mind. In: BRITTON,
Bruce K.; PELLEGRINI, Anthony D. (Eds.). Narrative thought and narrative language.
Hillsdale: Lawrence Earlbaum Associates, 1990. p. 79-98.
CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Massachusetts: The MIT Press
Cambridge, 1965.
_______________. Syntactic structures. The Hague: Mouton, 1957.
COSCARELLI, Carla Viana. Uma conversa com Gilles Fauconnier. Revista brasileira
de linguística aplicada, v. 5, n. 2, p. 291-303, 2005.
COULSON, Seana. Semantic leaps. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
COULSON, Seana; OAKLEY, Todd. Blending basics. In: Cognitive Linguistics, 11, 3/4,
p. 175-196, 2000.
221
CROFT, William; CRUSE, D. Alan. Cognitive linguistics. Disponível em:
<http://lings.ln.man.ac.uk/Info/staff/WAC/WACpubs.html>. Acesso em: 17 jun. 2003.
CUTRER, L. Michelle. Time and tense in narrative in everyday language. Tese de
doutorado. San Diego: University of California, 1994.
DIRVEN, René. Metonymy and metaphor: different mental strategies of conceptualisation.
In: DIRVEN, René; PÖRINGS, Ralf (Eds.). Metaphor and metonymy in comparison
and contrast. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2002. p. 75-112 (Cognitive
Linguistics Research).
DUCROT, Oswald. Présupposés et sous-entendus. In: Langue française, 1 (4), p. 30-43,
1969.
_______________. Princípios de semântica linguística: dizer e não dizer. Tradução de
Vogt, Ilari e Figueira. São Paulo: Cultrix, 1977. Original francês.
FAUCONNIER, Gilles. Espaces mentaux: aspects de la construction du sens dans les
langues naturelles. Paris: Minuit, 1984.
_______________. Mappings in thought and language. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997.
_______________. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
FAUCONNIER, Gilles; TURNER, Mark. Blending as a central process of grammar. In:
GOLDBERG, Adele (Ed.). Conceptual structure, discourse, and language. Stanford:
Center for the Study of Language and Information (CSLI) / Cambridge University Press,
1996. p. 113-129.
_______________. Conceptual integration networks. In: Cognitive science, vol. 22 (2),
p. 133-187, 1998.
_______________. Conceptual projection and middle spaces (1994). Report 9401.
University of California, San Diego. Disponível em
<http://www.cogsci.ucsd.edu/research/files/technical/9401.pdf>. Acesso em: 08 fev. 2008.
_______________. Compression and global insight. In: Cognitive Linguistics 11 – 3/4,
p. 283-304, 2000.
_______________. The way we think: conceptual blending and the mind’s hidden
complexities. New York: Basic Books, 2002.
FIGUEIREDO, Irislane Rodrigues. A heterogeneidade tipológica no gênero editorial.
Cadernos do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, vol. XII, n° 07,
p. 42-53, 2008.
222
FINKE, Ronald A. Principles of mental imagery. Cambridge, Massachusetts: The MIT
Press, 1989.
FODOR, Jerry A. The modularity of mind: an essay on faculty psychology. Cambridge /
Massachusetts: Bradford / The MIT Press, 1983.
FREGE, Gottlob. Über Sinn und Bedeutung (1892). Trad. de Paulo Alcoforado: Sobre o
sentido e a referência. In: Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix/EDUSP,
1978. p. 61-86.
GEERAERTS, Dirk. The interaction of metaphor and metonymy in composite
expressions. In: DIRVEN, René; PÖRINGS, Ralf (Eds.). Metaphor and metonymy in
comparison and contrast. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2002. p. 435-468
(Cognitive Linguistics Research).
GIBBS JR., Raymond W. A new look at literal meaning in understanding what is said and
implicated. Journal of pragmatics, 34, p. 457-486, 2002.
GOATLY, Andrew. The language of metaphors. London/New York: Routledge, 1997.
GOOSSENS, Louis. Metaphtonymy: the interaction of metaphor and metonymy in
expressions for linguistic action. In: DIRVEN, René; PÖRINGS, Ralf (Eds.). Metaphor
and metonymy in comparison and contrast. Berlin/New York: Mouton de Gruyter,
2002. p. 349-378 (Cognitive Linguistics Research).
GRADY, Joseph E.; OAKLEY, Todd; COULSON, Seana. Blending and metaphor. In:
GIBBS JR., Raymond W.; STEEN, Gerard J. (Eds.). Metaphor in cognitive linguistics;
selected papers from the Fifth International Cognitive Linguistics Conference. Amsterdam
/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1997. p. 101-124.
GRICE, H. Paul. Lógica e conversação. In: DASCAL, Marcelo (Org.). Fundamentos
metodológicos da linguística, IV – Pragmática. Tradução de João Wanderley Geraldi.
Campinas: Ed. do autor, 1982. p. 81-103. Título original: Logic and conversation.
HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, Christian M. I. M. Construing experience
through meaning: a language-based approach to cognition. London: Cassell, 1999.
HILFERTY, Joseph. An interview with Antonio Barcelona and Francisco José Ruiz de
Mendoza. In: Barcelona Language and Literature Studies. Barcelona: Edicions de la
Universidad de Barcelona, 2005. p. 1-14.
ILARI, Rodolfo. Perspectiva funcional da frase portuguesa. Campinas: Editora da
Unicamp, 1992 (Série Teses).
JAKOBSON, Roman. The metaphoric and metonymic poles. In: JAKOBSON, Roman;
HALLE, Maurice (Eds.). Fundamentals of language. Vol. 2. The Hague/Paris: Mouton,
1956. p. 90-96.
223
JANDA, Laura. Cognitive linguistics. University of North Carolina, 2000. Disponível
em: <http://www.seelrc.org/glossos/issues/8/janda.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2008.
JOHNSON, Mark. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination, and
reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.
KAMEL, Ali. Dicionário Lula: um presidente exposto por suas próprias palavras. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
KARTTUNEN, Lauri. Presuppositions of compound sentences. Linguistic inquiry, 4, p.
169-193, 1973.
KÖVECSES, Zoltán. Metaphor: a practical introduction. Oxford: Oxford University
Press, 2002.
_______________. Metaphors of anger, pride, and love; a lexical approach to the
structure of concepts. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1986 (Pragmatics and
Beyond, VII:8).
LAKOFF, George. The contemporary theory of metaphor. In: ORTONY, Andrew (Ed.).
Metaphor and thought. 2
nd
Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p.
202-251.
_______________. Women, fire, and dangerous things: what categories reveal about
the mind. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1987.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago/London: The
University of Chicago Press, 1980.
LANGACKER, Ronald W. Foundations of cognitive grammar, volume I – Theoretical
Prerequisites. Stanford: Stanford University Press, 1987.
_______________. Foundations of cognitive grammar, volume II – Descriptive
Application. Stanford: Stanford University Press, 1991.
LIDDELL, Scott K. Grammar, gesture, and meaning in American sign language.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
_______________. Real, surrogate, and token space: grammatical consequences in ASL.
In: EMMOREY, K.; REILLY, J. (Eds.). Language, gesture, and space. Hillsdale, NJ:
Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 1995. p. 19-41.
LOCKE, John. An essay concerning human understanding - vol. I. London: Hackett
Publishing Company, 1819.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel e BEZERRA, Maria Auxiliadora
(Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. p. 19-36.
224
_______________
. Linguística de texto: o que é e como se faz. Recife: Editora da UFPE,
1983.
_______________. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.
NOVODVORSKI, Ariel. A representação de atores sociais nos discursos sobre o
ensino de espanhol no Brasil em corpus jornalístico. 2008. 279 f. Dissertação
(Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2008.
NUNBERG, G. The pragmatics of reference. Bloomington: Indiana University
Linguistics Club, 1978.
NÚÑEZ, Rafael. Inferential statistics in the context of empirical cognitive linguistics. In:
GONZALEZ-MARQUEZ, Monica; MITTELBERG, Irene; COULSON, Seana; SPIVEY,
Michael J. (Eds.). Methods in cognitive linguistics. Amsterdam/Philadelphia: John
Benjamins, 2007. p. 87-118.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e (Org.). Metáforas do cotidiano. Belo
Horizonte: Ed. do Autor, 1998.
PALMER, Gary B. Toward a theory of cultural linguistics. Austin: University of Texas
Press, 1996.
OS PENSADORES. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
PONTES, Eunice (Org.). A metáfora. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1990 (série
Pesquisas).
POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. 13 ed. Tradução de Leonidas
Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2001. Original alemão.
POSSENTI, Sírio. Metáforas e metonímias oficiais. O Estado de S. Paulo, 04/04/2009.
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,metaforas-e-
metonimias-oficiais,350145,0.htm>. Acesso em: 04 maio 2010.
REDDY, Michael J. The conduit metaphor: a case of frame conflict in our language about
language. In: ORTONY, Andrew (Org.). Metaphor and thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 1979. p. 284-324.
RIBAS, Wanderson Ka. Resistência, valorização e resgate da tradição cultural andina.
Cadernos de História, vol. 10, n° 13, p. 47-55, 2008.
ROHRER, Tim. Even the interface is for sale: metaphors, visual blends and the
hidden ideology of the internet. 1998. Disponível em:
<http://www.tulane.edu/~howard/LangIdeo/Rohrer/Rohrer.html>. Acesso em: 28 fev.
2010.
225
SILVA, Augusto Soares da. A linguística cognitiva: uma breve introdução a um novo
paradigma em linguística. Disponível em: <http://www.facfil.ucp.pt/lingcognit.htm>.
Acesso em: 17 jun. 2010.
SOUZA, Heberth Paulo de. A pressuposição linguística na estrutura da língua
portuguesa. 2000. 211 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
STALNAKER, Robert C. Pragmatics. In: DAVIDSON, Donald; HARMAN, Gilbert
(Eds.). Semantics of natural language. Dordrecht: Reidel, 1972. p. 380-397.
STEFANOWITSCH, Anatol. Corpus-based approaches to metaphor and metonymy. In:
STEFANOWITSCH, Anatol; GRIES, Stefan Th. (Eds.). Corpus-based approaches to
metaphor and metonymy. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2006. p. 1-16 (Trends
in Linguistics 171).
_______________. The function of metaphor. International Journal of Corpus
Linguistics, 10:2, p. 161-198, 2005.
STEFANOWITSCH, Anatol; GRIES, Stefan Th. Collostructions: investigating the
interaction of words and constructions. International Journal of Corpus Linguistics, 8:2,
p. 209-243, 2003.
SWEETSER, Eve. Blended spaces and performativity. In: Cognitive Linguistics 11 –
3/4, p. 305-334, 2000.
SWEETSER, Eve; FAUCONNIER, Gilles. Cognitive links and domains: basic aspects of
mental space theory. In: FAUCONNIER, Gilles; SWEETSER, Eve (Eds.). Spaces,
worlds, and grammar. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1996. p. 1-28.
TAYLOR, John R. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford:
Clarendon, 1989.
TALMY, Leonard. Toward a cognitive semantics, vol. II – Typology and process in
concept structuring. Massachusetts: MIT Press, 2000.
TURNER, Mark. The literary mind: the origins of thought and language. New York /
Oxford: Oxford University Press, 1996.
TURNER, Mark; FAUCONNIER, Gilles. Conceptual integration and formal expression.
In: JOHNSON, Mark (Ed.). Journal of metaphor and symbolic activity, vol. 10, n. 3, p.
183-203, 1995.
VICO, Giambattista. New science: principles of the new science concerning the common
nature of nations. 3 ed. Tradução de David Marsh. New York: Penguin Books, 1999.
Original italiano.
226
WALLINGTON, Alan; BARNDEN, John A.; BARNDEN, Marina A.; FERGUSON, Fiona
J.; GLASBEY, Sheila R. Metaphoricity signals: a corpus-based investigation (2003).
Technical report CSPP-03-5. School of Computer Science – The University of
Birmingham.
ZANOTO, Mara Sophia. Metáfora, cognição e ensino de leitura. Delta, vol. 11, nº 2, p.
241-254, 1995.
ZIR, Alessandro. A tese da primazia da metáfora, defesa e problematização: um estudo a
partir de Vico. Linguagem em (Dis)curso, vol. 9, n. 1, jan./abr. 2009.
227
ANEXOS
ANEXO A
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido na cerimônia de posse de seu
primeiro mandato presidencial, no Congresso Nacional Brasileiro, em 01/01/2003.
157
"Mudança"; esta é a palavra chave, esta foi a grande mensagem da sociedade
brasileira nas eleições de outubro. A esperança finalmente venceu o medo e a sociedade
brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos.
Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu
estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do
egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das
comunidades.
Diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança
pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse
econômico, social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela
mesma, a promover a mudança necessária.
Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar.
Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro José Alencar.
(5)
E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes
de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a
todo cidadão e cidadã do meu País o significado de cada palavra dita na campanha, para
imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de
transformar o Brasil naquela nação com a qual a gente sempre sonhou: uma nação
soberana, digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo
tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.
Vamos mudar, sim. Mudar com coragem e cuidado, humildade e ousadia. Mudar
tendo consciência de que a mudança é um processo gradativo e continuado, não um
simples ato de vontade, não um arroubo voluntarista. Mudança por meio do diálogo e da
157
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44275.shtml>. Acesso em: 04 maio
2010. Para facilitar a referência a elementos do texto em nossa análise e a identificação dos mesmos durante a
leitura, numeramos os parágrafos através dos dígitos que se encontram no início de cada conjunto de cinco
parágrafos.
228
negociação, sem atropelos ou precipitações, para que o resultado seja consistente e
duradouro.
O Brasil é um país imenso, um continente de alta complexidade humana, ecológica e
social, com quase 175 milhões de habitantes. Não podemos deixá-lo seguir à deriva, ao
sabor dos ventos, carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um
planejamento de fato estratégico. Se queremos transformá-lo, a fim de vivermos em uma
nação em que todos possam andar de cabeça erguida, teremos de exercer quotidianamente
duas virtudes: a paciência e a perseverança.
Teremos que manter sob controle as nossas muitas e legítimas ansiedades sociais,
para que elas possam ser atendidas no ritmo adequado e no momento justo; teremos que
pisar na estrada com os olhos abertos e caminhar com os passos pensados, precisos e
sólidos, pelo simples motivo de que ninguém pode colher os frutos antes de plantar as
árvores.
Mas começaremos a mudar já, pois como diz a sabedoria popular, uma longa
caminhada começa pelos primeiros passos.
(10)
Este é um país extraordinário. Da Amazônia ao Rio Grande do Sul, em meio a
populações praieiras, sertanejas e ribeirinhas, o que vejo em todo lugar é um povo maduro,
calejado e otimista. Um povo que não deixa nunca de ser novo e jovem, um povo que sabe
o que é sofrer, mas sabe também o que é alegria, que confia em si mesmo em suas próprias
forças. Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a
nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o
nosso medo.
O povo brasileiro, tanto em sua história mais antiga, quanto na mais recente, tem
dado provas incontestáveis de sua grandeza e generosidade, provas de sua capacidade de
mobilizar a energia nacional em grandes momentos cívicos; e eu desejo, antes de qualquer
outra coisa, convocar o meu povo, justamente para um grande mutirão cívico, para um
mutirão nacional contra a fome.
Num país que conta com tantas terras férteis e com tanta gente que quer trabalhar,
não deveria haver razão alguma para se falar em fome. No entanto, milhões de brasileiros,
no campo e na cidade, nas zonas rurais mais desamparadas e nas periferias urbanas, estão,
neste momento, sem ter o que comer. Sobrevivem milagrosamente abaixo da linha da
pobreza, quando não morrem de miséria, mendigando um pedaço de pão.
Essa é uma história antiga. O Brasil conheceu a riqueza dos engenhos e das
plantações de cana-de-açúcar nos primeiros tempos coloniais, mas não venceu a fome;
proclamou a independência nacional e aboliu a escravidão, mas não venceu a fome;
conheceu a riqueza das jazidas de ouro, em Minas Gerais, e da produção de café, no Vale
do Paraíba, mas não venceu a fome; industrializou-se e forjou um notável e diversificado
parque produtivo, mas não venceu a fome. Isso não pode continuar assim.
Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos
motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha.
(15)
Por isso, defini entre as prioridade de meu governo um programa de segurança
alimentar que leva o nome de "Fome Zero". Como disse em meu primeiro pronunciamento
após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de
tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida.
É por isso que hoje conclamo: vamos acabar com a fome em nosso país.
Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foram no passado a
criação da Petrobras e a memorável luta pela redemocratização do país.
Essa é uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido,
ideologia. Em face do clamor dos que padecem o flagelo da fome, deve prevalecer o
229
imperativo ético de somar forças, capacidades e instrumentos para defender o que é mais
sagrado: a dignidade humana.
Para isso, será também imprescindível fazer uma reforma agrária pacífica, organizada
e planejada.
Vamos garantir acesso à terra para quem quer trabalhar, não apenas por uma questão
de justiça social, mas para que os campos do Brasil produzam mais e tragam mais
alimentos para a mesa de todos nós, tragam trigo, tragam soja, tragam farinha, tragam
frutos, tragam o nosso feijão com arroz.
(20)
Para que o homem do campo recupere sua dignidade sabendo que, ao se levantar com
o nascer do sol, cada movimento de sua enxada ou do seu trator irá contribuir para o bem-
estar dos brasileiros do campo e da cidade, vamos incrementar também a agricultura
familiar, o cooperativismo, as formas de economia solidária.
Elas são perfeitamente compatíveis com o nosso vigoroso apoio à pecuária e à
agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio, são, na verdade, complementares
tanto na dimensão econômica quanto social. Temos de nos orgulhar de todos esses bens
que produzimos e comercializamos.
A reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares hoje
disponíveis para a chegada de famílias e de sementes, que brotarão viçosas com linhas de
crédito e assistência técnica e científica. Faremos isso sem afetar de modo algum as terras
que produzem, porque as terras produtivas se justificam por si mesmas e serão estimuladas
a produzir sempre mais, a exemplo da gigantesca montanha de grãos que colhemos a cada
ano.
Hoje, tantas e tantas áreas do país estão devidamente ocupadas, as plantações
espalham-se a perder de vista, locais em que alcançamos produtividade maior do que a
da Austrália e a dos Estados Unidos. Temos que cuidar bem muito bem deste imenso
patrimônio produtivo brasileiro. Por outro lado, é absolutamente necessário que o país
volte a crescer, gerando empregos e distribuindo renda.
Quero reafirmar aqui o meu compromisso com a produção, com os brasileiros e
brasileiras, que querem trabalhar e viver dignamente do fruto do seu trabalho. Disse e
repito: criar empregos será a minha obsessão. Vamos dar ênfase especial ao Projeto
Primeiro Emprego, voltado para criar oportunidades aos jovens, que hoje encontram
tremenda dificuldade em se inserir no mercado de trabalho.
(25)
Nesse sentido, trabalharemos para superar nossas vulnerabilidades atuais e criar
condições macroeconômicas favoráveis à retomada do crescimento sustentado para a qual a
estabilidade e a gestão responsável das finanças públicas são valores essenciais.
Para avançar nessa direção, além de travar combate implacável à inflação,
precisaremos exportar mais, agregando valor aos nossos produtos e atuando, com energia e
criatividade, nos solos internacionais do comércio globalizado. Da mesma forma, é
necessário incrementar muito o mercado interno, fortalecendo as pequenas e
microempresas. É necessário também investir em capacitação tecnológica e infraestrutura
voltada para o escoamento da produção.
Para repor o Brasil no caminho do crescimento, que gere os postos de trabalho tão
necessários, carecemos de um autêntico pacto social pelas mudança e de uma aliança que
entrelace objetivamente o trabalho e o capital produtivo, geradores da riqueza fundamental
da nação, de modo a que o Brasil supere a estagnação atual e para que o país volte a
navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social.
O pacto social será, igualmente, decisivo para viabilizar as reformas que a sociedade
brasileira reclama e que eu me comprometi a fazer: a reforma da Previdência, reforma
230
tributária, reforma política e da legislação trabalhista, além da própria reforma agrária. Esse
conjunto de reformas vai impulsionar um novo ciclo do desenvolvimento nacional.
Instrumento fundamental desse pacto pela mudança será o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social que pretendo instalar a partir de janeiro, reunindo
empresários, trabalhadores e lideranças dos diferentes segmentos da sociedade civil.
(30)
Estamos em um momento particularmente propício para isso. Um momento raro da
vida de um povo. Um momento em que o Presidente da República tem consigo, ao seu
lado, a vontade nacional. O empresariado, os partidos políticos, as Forças Armadas e os
trabalhadores estão unidos. Os homens, as mulheres, os mais velhos, os mais jovens, estão
irmanados em um mesmo propósito de contribuir para que o país cumpra o seu destino
histórico de prosperidade e justiça.
Além do apoio da imensa maioria das organizações e dos movimentos sociais,
contamos também com a adesão entusiasmada de milhões de brasileiros e brasileiras que
querem participar dessa cruzada pela retomada pelo crescimento contra a fome, o
desemprego e a desigualdade social. Trata-se de uma poderosa energia solidária que a
nossa campanha despertou e que o podemos e não vamos desperdiçar. Uma energia
ético-política extraordinária que nos empenharemos para que se encontre canais de
expressão em nosso governo.
Por tudo isso, acredito no pacto social. Com esse mesmo espírito constituí o meu
Ministério com alguns dos melhores líderes de cada segmento econômico e social
brasileiro. Trabalharemos em equipe, sem personalismo, pelo bem do Brasil e vamos
adotar um novo estilo de Governo com absoluta transparência e permanente estímulo à
participação popular.
O combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos
centrais e permanentes do meu governo. É preciso enfrentar com determinação e derrotar a
verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida pública.
Não permitiremos que a corrupção, a sonegação e o desperdício continuem privando
a população de recursos que são seus e que tanto poderiam ajudar na sua dura luta pela
sobrevivência.
(35)
Ser honesto é mais do que apenas não roubar e não deixar roubar. É também aplicar
com eficiência e transparência, sem desperdícios, os recursos públicos focados em
resultados sociais concretos. Estou convencido de que temos, dessa forma, uma chance
única de superar os principais entraves ao desenvolvimento sustentado do País. E
acreditem, acreditem mesmo, não pretendo desperdiçar essa oportunidade conquistada com
a luta de muitos milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Sob a minha liderança o Poder Executivo manterá uma relação construtiva e fraterna
com os outros Poderes da República, respeitando exemplarmente a sua independência e o
exercício de suas altas funções constitucionais.
Eu, que tive a honra de ser Parlamentar desta Casa, espero contar com a contribuição
do Congresso Nacional no debate criterioso e na viabilização das reformas estruturais de
que o País demanda de todos nós.
Em meu governo, o Brasil vai estar no centro de todas as atenções. O Brasil precisa
fazer em todos os domínios um mergulho para dentro de si mesmo, de forma a criar forças
que lhe permitam ampliar o seu horizonte. Fazer esse mergulho não significa fechar as
portas e janelas ao mundo.
O Brasil pode e deve ter um projeto de desenvolvimento que seja ao mesmo tempo
nacional e universalista, significa, simplesmente, adquirir confiança em nós mesmos, na
capacidade de fixar objetivos de curto, médio e longo prazos e de buscar realizá-los. O
ponto principal do modelo para o qual queremos caminhar é a ampliação da poupança
231
interna e da nossa capacidade própria de investimento, assim como o Brasil necessita
valorizar o seu capital humano investindo em conhecimento e tecnologia.
(40)
Sobretudo vamos produzir. A riqueza que conta é aquela gerada por nossas próprias
mãos, produzida por nossas máquinas, pela nossa inteligência e pelo nosso suor.
O Brasil é grande. Apesar de todas as crueldades e discriminações, especialmente
contra as comunidades indígenas e negras, e de todas as desigualdades e dores que não
devemos esquecer jamais, o povo brasileiro realizou uma obra de resistência e construção
nacional admirável.
Construiu, ao longo do século, uma nação plural, diversificada, contraditória até, mas
que se entende de uma ponta a outra do território. Dos encantados da Amazônia aos orixás
da Bahia; do frevo pernambucano às escolas de samba do Rio de Janeiro; dos tambores do
Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de Brasília à música sertaneja.
Estendendo o arco de sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do Paraná, de
Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e da Região Centro-Oeste. Esta é uma nação que fala
a mesma língua, partilha os mesmos valores fundamentais, se sente que é brasileira.
Onde a mestiçagem e o sincretismo se impuseram dando uma contribuição original
ao mundo. Onde judeus e árabes conversam sem medo, onde toda migração é bem-vinda,
porque sabemos que em pouco tempo, pela nossa própria capacidade de assimilação e de
bem-querer, cada migrante se transforma em mais um brasileiro.
(45)
Esta nação que se criou sob o céu tropical tem que dizer a que veio; internamente,
fazendo justiça à luta pela sobrevivência em que seus filhos se acham engajados;
externamente, afirmando a sua presença soberana e criativa no mundo. Nossa política
externa refletirá também os anseios de mudança que se expressaram nas ruas.
No meu governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva
humanista e será, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional. Por meio do
comércio exterior, da capacitação de tecnologias avançadas, e da busca de investimentos
produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das
condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de renda e
gerando empregos dignos.
As negociações comerciais são hoje de importância vital. Em relação à Alca, nos
entendimentos entre o Mercosul e a União Europeia, que na Organização Mundial do
Comércio, o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela eliminação e tratará de obter
regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento.
Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos
que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com
igual empenho, esforçar-nos-emos para remover os injustificáveis obstáculos às
exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços
de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de
meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico.
Não perderemos de vista que o ser humano é o destinatário último do resultado das
negociações. De pouco valerá participarmos de esforço tão amplo e em tantas frentes se daí
não decorrerem benefícios diretos para o nosso povo. Estaremos atentos também para que
essas negociações, que hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e
englobam um amplo espectro normativo, não criem restrições inaceitáveis ao direito
soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.
(50)
A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de
uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais
democráticos e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização
232
do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas
vezes estreitas e egoístas do significado da integração.
O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é
sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-
comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados.
Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do
processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um
vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos.
Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma
verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem
hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas
possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos
preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país.
O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com
todos os países da América Latina.
(55)
Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base
no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a
cooperação com a União Europeia e os seus Estados-Membros, bem como com outros
importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão.
Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a
Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros.
Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa
disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes
potencialidades.
Visamos não a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio
econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a
estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional
contemporânea.
A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é
tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da
democracia no interior de cada Estado.
(60)
Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a
quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.
As resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielmente cumpridas. Crises
internacionais como a do Oriente Médio devem ser resolvidas por meios pacíficos e pela
negociação. Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da
realidade contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias
regiões do mundo entre os seus membros permanentes.
Enfrentaremos os desafios da hora atual como o terrorismo e o crime organizado,
valendo-nos da cooperação internacional e com base nos princípios do multilateralismo e
do direito internacional.
Apoiaremos os esforços para tornar a ONU e suas agências instrumentos ágeis e
eficazes da promoção do desenvolvimento social e econômico do combate à pobreza, às
desigualdades e a todas as formas de discriminação da defesa dos direitos humanos e da
preservação do meio ambiental.
Sim, temos uma mensagem a dar ao mundo: temos de colocar nosso projeto nacional
democraticamente em diálogo aberto, como as demais nações do planeta, porque nós
somos o novo, somos a novidade de uma civilização que se desenhou sem temor, porque se
233
desenhou no corpo, na alma e no coração do povo, muitas vezes, à revelia das elites, das
instituições e até mesmo do Estado.
É verdade que a deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas
decorrentes de políticas econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem
ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional.
(65)
Crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o país e fizeram do
cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma experiência próxima da guerra de todos
contra todos.
Por isso, inicio este mandato com a firme decisão de colocar o governo federal em
parceria com os Estados a serviço de uma política de segurança pública muito mais
vigorosa e eficiente. Uma política que, combinada com ações de saúde, educação, entre
outras, seja capaz de prevenir a violência, reprimir a criminalidade e restabelecer a
segurança dos cidadãos e cidadãs.
Se conseguirmos voltar a andar em paz em nossas ruas e praças, daremos um
extraordinário impulso ao projeto nacional de construir, neste rincão da América, um
bastião mundial da tolerância, do pluralismo democrático e do convívio respeitoso com a
diferença.
O Brasil pode dar muito a si mesmo e ao mundo. Por isso devemos exigir muito de
nós mesmos. Devemos exigir até mais do que pensamos, porque ainda não nos
expressamos por inteiro na nossa história, porque ainda não cumprimos a grande missão
planetária que nos espera.
O Brasil, nesta nova empreitada histórica, social, cultural e econômica, terá de
contar, sobretudo, consigo mesmo; terá de pensar com a sua cabeça; andar com as suas
próprias pernas; ouvir o que diz o seu coração. E todos vamos ter de aprender a amar com
intensidade ainda maior o nosso País, amar a nossa bandeira, amar a nossa luta, amar o
nosso povo.
(70)
Cada um de nós, brasileiros, sabe que o que fizemos até hoje não foi pouco, mas sabe
também que podemos fazer muito mais. Quando olho a minha própria vida de retirante
nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou
torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e
acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de supremo mandatário da
nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.
E, para isso, basta acreditar em nós mesmos, em nossa força, em nossa capacidade de
criar e em nossa disposição para fazer.
Estamos começando hoje um novo capítulo na história do Brasil, não como nação
submissa, abrindo mão de sua soberania, não como nação injusta, assistindo passivamente
ao sofrimento dos mais pobres, mas como nação altiva, nobre, afirmando-se corajosamente
no mundo como nação de todos, sem distinção de classe, etnia, sexo e crença.
Este é um país que pode dar, e vai dar, um verdadeiro salto de qualidade. Este é o
país do novo milênio, pela sua potência agrícola, pela sua estrutura urbana e industrial, por
sua fantástica biodiversidade, por sua riqueza cultural, por seu amor à natureza, pela sua
criatividade, por sua competência intelectual e científica, por seu calor humano, pelo seu
amor ao novo e à invenção, mas sobretudo pelos dons e poderes do seu povo.
O que nós estamos vivendo hoje neste momento, meus companheiros e minhas
companheiras, meus irmãos e minhas irmãs de todo o Brasil, pode ser resumido em poucas
palavras: hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo.
(75)
Agradeço a Deus por chegar até aonde cheguei. Sou agora o servidor público número
um do meu país.
234
Peço a Deus sabedoria para governar, discernimento para julgar, serenidade para
administrar, coragem para decidir e um coração do tamanho do Brasil para me sentir unido
a cada cidadão e cidadã deste país no dia a dia dos próximos quatro anos.
Viva o povo brasileiro!
235
ANEXO B
Editorial da Revista Veja, edição nº 2.149, de 27 de janeiro de 2010, p. 10-11.
O pior e o melhor do homem
Os relatos enviados à redação de VEJA por Diego Escosteguy, nosso repórter no
Haiti, dão conta de uma população vivendo quase em "estado natural", condição que teria
prevalecido na humanidade antes do estabelecimento das formas mais rudimentares de
organização social. Gangues armadas saqueiam, roubam, estupram e matam. Grupos de
haitianos desabrigados pelo terremoto se entrelaçam nas calçadas formando enormes
tapetes humanos, de modo a passar a noite com um mínimo de segurança. É um quadro
aterrador mesmo para um país que, antes de ser arrasado pelo terremoto, duas semanas,
era um dos mais abalados pelo banditismo e pela miséria. O inglês Thomas Hobbes
(1588-1679) teria agora em Porto Príncipe a chance de ver a realidade apenas teorizada por
ele de um mundo sem lei em que a vida humana é "solitária, miserável, sórdida, brutal e
curta". A catástrofe natural fez emergir no Haiti o que há de pior na espécie humana.
Mas o terremoto no Haiti fez brotar também o que a espécie humana tem de melhor,
a solidariedade. Horas depois do dimensionamento da magnitude da tragédia, partiram
ofertas de ajuda de todas as partes do planeta, da vizinha República Dominicana à distante
Turquia, da pobre Bolívia a potências econômicas como os Estados Unidos e a Alemanha.
Logo se somariam aos 9.000 homens da força permanente da ONU no Haiti, comandada
pelo Exército brasileiro, milhares de bombeiros e dezenas de equipes médicas de quase
uma dezena de nacionalidades. As doações em dinheiro, alimentos e remédios superaram
em volume e rapidez aquelas feitas em outros desastres naturais de larga escala. A Cruz
Vermelha recebeu em uma semana o dobro das doações recolhidas durante todo o ano de
2009.
Seria extraordinário se a onda sem precedentes de solidariedade promovida pelo
desastre haitiano fosse sucedida de um esforço internacional de igual intensidade com o
objetivo de criar as bases de uma nação soberana e estável naquele tão sofrido espaço
geográfico. Se para outros países vitimados por catástrofes naturais o objetivo imediato é
voltar à normalidade, no Haiti o desafio é, pela primeira vez em sua história, saber o que é
desfrutar uma vida normal.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo