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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ana Paula dos Santos
Água Viva: uma escritura de impressões entre prosa e poesia
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ana Paula dos Santos
Água Viva: uma escritura de impressões entre prosa e poesia
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Literatura e Crítica Literária sob a orientação do Profª.
Drª. Maria Rosa Duarte de Oliveira.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
______________________________________
Ao Jaime Souza Borges, meu esposo,
sempre me presenteando com o seu
amor incondicional...
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a minha orientadora Maria Rosa D. de Oliveira,
excelente profissional, sempre disposta a orientar-me com firmeza, paciência,
incentivo e carinho nesta trajetória de estudos, alegrias, surpresas e dificuldades.
Ao meu amor Jaime Souza Borges, pela paciência e compreensão durante a
pesquisa.
Aos meus pais que nunca hesitaram em me apoiar, seja com palavras, seja por meio
do silêncio.
A minha irmã e a meu cunhado, pelo carinho e apoio.
A todos os professores do Programa de Literatura e Crítica Literária da PUC/SP.
À Ana Albertina, secretária do Programa de Literatura e Crítica Literária, por ser
sempre carinhosa com os alunos.
Ao professor Fernando Segolin pelas aulas e pelas esclarecedoras orientações no
Exame de Qualificação.
Ao professor Ricardo Iannace pelas dicas no Exame de Qualificação.
À professora Maria Aparecida Junqueira, Coordenadora do Curso, sempre disposta
a ajudar os alunos, com suas palavras amigas e esclarecedoras.
Aos amigos do mestrado, em especial às amigas Elisa Cassamassimo e Érika Cintra
Ribeiro.
A todos os amigos que me apoiaram e realmente acreditaram em mim.
A Deus.
Neste Longo Exercício de Alma...
(Cecília Meireles, 1955)
Ciência, amor, sabedoria,
- tudo jaz muito longe, sempre...
(Imensamente fora do nosso alcance!)
Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos
fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.
Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo analisar a obra Água Viva, de Clarice
Lispector, enquanto uma escritura feita de impressões que oscilam entre a poesia e
a prosa. A questão de pesquisa que nos instigou foi a de responder em que medida
essa “escritura de impressões” se aproximava e se diferenciava da prosa
impressionista brasileira de final do séc. XIX? As hipóteses norteadoras da
investigação foram, em primeiro lugar, a de que a sua força propulsora estava na
busca de solução para um conflito de base da criação poética: a mediação inevitável
entre as palavras e as coisas; em segundo lugar, que essa diferença estava na
invenção de uma “escritura de impressões” capaz de captar o instante-já por meio
de palavras que investissem contra a representação e operassem como coisas
vivas, em correlações sinestésicas entre som-imagem-sentido, no breve intervalo de
uma aparição súbita. A análise das hipóteses fez-se em três capítulos a saber: no
primeiro, o foco foi a gênese de Água Viva em Objeto Gritante, além da fortuna
critica da obra em análise sob a ótica da linguagem poética; o segundo abarcou dois
aspectos: a prosa impressionista elaborada na literatura brasileira em finais do
século XIX e os fundamentos teóricos dessa “escritura de impressões” a partir de
pensadores como: Paul Valéry, Ezra Pound, Octávio Paz, Barthes e Décio Pignatari;
o terceiro pautou-se pela análise da obra Água Viva como um campo de forças
entre a poesia e a prosa, à semelhança de uma pauta onde som, imagem e palavra
se entrecruzam, vertical e horizontalmente, reverberando em massas de sensações
a partir de três focos estruturais: O eu e a cena da escrita no percurso água; as
instâncias do “tu”; tempo-espaço: o círculo e a linha. A conclusão a que chegamos
foi a de que Água Viva, interpretada a partir dessa perspectiva de uma “escritura de
impressões”, ganhou uma nova dimensão capaz de iluminar o sentido de um texto
que tem resistido às classificações tradicionais de gêneros.
PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; Água Viva; escritura; impressões; eu-texto
ABSTRACT
This present research has as its main objective to analyze the work “Água Viva”, from
Clarice Lispector as a writing made of impressions that oscillates between poetry and
prose. The research question which has instigated was in which measure this
“impression writing” was close and also different from the impressionist Brazilian
prose from the end of 19
th
century? The hypotheses that leaded the investigation
were, in the first place, that its propulsive strength was trying to search for a conflict
solution in the poetic creation base: the inevitable mediation between words and
things; In the second place, that this difference was the invention of an “impression
writing” that is able to catch the present-instant through words that invest against the
representation and operate as live things, which happens in a kinesthetic correlation
among sound-image-sense of a short break in a fast apparition. The hypotheses
analysis was done in three chapters: in the first, the focus was the genesis of Água
Viva in a Screaming Object, besides the criticism work analyzed through a poetic
language optic. The second has covered two aspects: the impressionist prose
elaborated in Brazilian literature in the end of 19
th
century and the theoretical basis of
this “impression writing” using authors like: Paul Valery, Ezra Pound , Octávio Paz,
Barthes and Décio Pignatari; the third one consists in the analysis of Água Viva as a
strength field between poetry and prose, very similar to a stave where sound, image
and word cross each other, vertically and horizontally, reverberating in a mass of
sensations from three structural focuses: the “I” and the writing scene in the water
trajectory; the instances of “You”; time-space: the circle and the line. We came to a
conclusion that Água Viva, interpreted from the “impression writing” perspective, has
received a new dimension that is able to illuminate the meaning of a text that has
resisted any traditional genre classification.
KEY-WORDS: Clarice Lispector; Água Viva; writing; impressions; Me-text
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................
8
Capítulo I Itinerários de Água Viva: da gênese à fortuna
crítica....................................................................................
11
1.1. Clarice Lispector e a gênese de Água Viva...................... 11
1.2. Água Viva para Clarice e para os críticos..........................
17
Capítulo II Da prosa impressionista à escritura de impressões........ 30
2.1. A tradição da prosa impressionista na literatura
brasileira................................................................................
30
2.2. A escritura de impressões à luz de uma rede teórico-
crítica.....................................................................................
36
Capítulo III Água Viva: uma escritura de impressões entre prosa e
poesia....................................................................................
51
3.1. O eu e a cena da escrita no percurso água....................... 53
3.2. As instâncias do tu...............................................................
71
3.3. Tempo-espaço: o círculo e a linha......................................
78
Considerações
Finais
................................................................................................
88
Referências ................................................................................................
91
8
INTRODUÇÃO
É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o
incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende musica:
ouve-se.
[...]
Entro lentamente na escrita assim como entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras. (Água Viva,
p. 10-14).
Mergulhar no texto Clariceano é descobrir um fluir rítmico, musicalizado e
dotado de grande carga poética. Apesar das características gráficas de texto corrido,
Água Viva mais parece um caleidoscópio de poesia e de sensações.
A criação artística é um desafio para aquele que escreve e se insere em
Água Viva, como um processo que ultrapassa a fronteira do contar, ou seja, prosa e
poesia questionam seus limites por meio de uma escrita que é, incondicionalmente,
reverberante.
Água Viva foge aos padrões de um texto narrativo. Percebemos, então, a
ruptura da linearidade, do tempo e do espaço, em que apenas um “eu” esboça um
diálogo com um “tu” e diversas indagações são feitas e refeitas ao longo do
desenrolar de palavras e pinturas justapostas. Sentimo-nos presos a esta leitura-
pintura tecida em constantes vaivéns, jogos de idas e vindas com palavras e
imagens. Impossível se desvencilhar desta enigmática escritura que não se define:
ora é um texto, ora é um quadro.
Isso nos levou a pensar que Água Viva marca o leitor pelos rastros de
impressões deixadas e pela distorção que embaralha nossos sentidos numa espécie
de “poesia-tela-narrativa”. Tudo isso nos motivou a pesquisar este texto em busca
de uma possível definição para tal distorção e um entendimento maior no que
concerne ao poético e à prosa de Clarice Lispector em Água Viva.
Daí emergiu a questão de pesquisa que nos instigou: em que medida Água
Viva poderia ser vista como uma escrita feita de impressões entre a poesia e a
prosa; o ir e vir do círculo e a progressão da linha? O que a aproxima e a distancia
da prosa impressionista presente na literatura brasileira de final do século XIX?
Para responder a estas indagações, traçamos as seguintes hipóteses:
9
1. Água Viva constrói um novo modelo de escritura de impressões,
diversa da prosa impressionista brasileira de final do século XIX, cuja força
vem da consciência do confronto insolúvel entre o desejo e a
impossibilidade da palavra poética ser aquilo que nomeia.
2. O texto de Água Viva resolve o conflito de base da criação poética -
a mediação inevitável entre as palavras e as coisas - por meio da invenção
de uma “escritura de impressões” feita por palavras que operam como
coisas vivas, em correlações sinestésicas entre som, imagem e sentido,
que dura o instante fugaz de uma aparição, a fim de iluminar o ser das
próprias coisas no instante-já do ato de se fazer texto-organismo.
3. Água Viva se estrutura num fluxo de palavras-imagens-sons-
sentidos que criam o confronto entre a condensação de palavras-coisas,
em movimento de idas e vindas (o círculo, o dançar, a poesia) e a busca da
progressão de uma linha (o andar, a prosa).
4. O “eu” que escreve em Água Viva é um eu-texto vinculado ao ato
escritural e não autobiográfico.
A fundamentação teórica para a análise das hipóteses apoia-se nos estudos
de Valéry (1999, 2003), Paz (1982, 2005), Pignatari (2005) e Pound (2006) no que
se refere à relação entre prosa e poesia; e Barthes (2004, 2007) para as questões
relacionadas a texto poético e escritura.
O trabalho se constitui em três capítulos, a saber: no primeiro, “Itinerários de
Água Viva: da gênese à fortuna crítica”, fazemos um estudo sobre a origem de
Água Viva em Objeto Gritante, texto que levou três anos para ser redigido,
reformulado e, enfim, publicado. Em seguida, apresentamos a fortuna crítica da obra
em análise, tendo por critério de seleção aqueles estudos que se centraram sobre
Água Viva como construção poética de linguagem. O segundo capítulo, “Da prosa
impressionista à escritura de impressões”, encontra-se centrado em dois aspectos: o
primeiro busca delinear a prosa impressionista elaborada na literatura brasileira em
finais do século XIX a fim de traçar correlações com o que denominamos “escritura
de impressões de Água Viva”,
a partir de outro contexto histórico, cultural e literário;
10
já o segundo procura refletir sobre os fundamentos teóricos desta “escritura de
impressões”, a partir de uma rede conceitual de pensadores e poetas diversos como
Paul Valéry, Ezra Pound, Octávio Paz, Barthes e Décio Pignatari. Finalmente, no
terceiro capítulo, Água Viva: uma escritura de impressões entre prosa e poesia”,
fazemos uma análise de Água Viva sob a ótica de um campo de forças entre a
poesia e prosa, à semelhança de uma pauta em que som, imagem e palavra se
entrecruzam, vertical e horizontalmente, reverberando em massas de sensações.
Víamos como dificuldade para prosseguir tal análise a escolha da
metodologia, isto é, o procedimento mais adequado para selecionar, num “fluxo de
água em movimento”, porções capazes de nos deter, mesmo que por instantes, para
procedermos à fragmentação analítica, sem que houvesse a descaracterização do
tecido movente. A estratégia foi traçar um diagrama desta escritura de impressões
de Água Viva a partir de três perspectivas oscilantes entre a prosa e a poesia: O eu
e a cena da escrita no percurso água; As instâncias do “tu”; Tempo-espaço: o círculo
e a linha.
Por fim, acreditamos que esta pesquisa possa enriquecer a fortuna crítica de
Água Viva, a partir de uma nova perspectiva a de uma escritura de impressões
que busca compreender o sentido de um texto que resiste às classificações
tradicionais de gêneros.
11
Capítulo I – Itinerários até Água Viva: da gênese à fortuna crítica
Água viva é anêmona que se espraia, onda que invade as orlas marinhas, força
vitalizante fundida na concreção da palavra. (Olga de Sá, 2004, p. 233).
As descobertas nesse sentido são indizíveis e incomunicáveis. E impensáveis. É por
isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. (Água Viva, p. 80).
1. Clarice Lispector e a gênese de Água Viva
Submersa entre o silêncio e a palavra, Clarice Lispector encontrou suas
próprias razões no ato apaixonado de escrever. Emudecida e sentada com uma
máquina de escrever no colo, revelava nas entrelinhas as vicissitudes e as paixões
das almas mais inquietantes: personagens nascendo, outras morrendo.
A necessidade de escrever era urgente e desesperadora na vida de Clarice,
fazendo-a viver numa espécie de ansiedade que o cessava. Passou, ao longo de
sua vida, por tratamentos terapêuticos a fim de amenizar estes impulsos.
Infelizmente, nenhum deles trouxe a significativa melhora que a escritora precisava
para ter paz. Escrever era a sua salvação, uma maneira, enfim, de pertencer a si
mesma, ao outro e ao mundo. Atribuía também qualidades negativas à escrita, como
podemos perceber em sua correspondência pessoal, quando desabafava com as
irmãs e os amigos sobre a luta que travava com a escrita. Devido a esta
insegurança, Clarice vivia declarando que a qualquer momento poderia
simplesmente deixar de escrever, algo que nunca aconteceu.
O mistério pairava sobre a aura de Clarice e os segredos de sua vida a autora
mantinha a sete chaves. Era completamente avessa às entrevistas, concedendo
poucos depoimentos à mídia. Então, o que se sabe sobre a vida pessoal da escritora
são fragmentos e sutis revelações daquilo que escreveu em suas crônicas
publicadas no Jornal do Brasil; ou de estudos de pesquisadores sobre Clarice a
partir de dados de sua obra e de informações que constam em suas missivas de
amigos e familiares e depoimentos de pessoas mais próximas da autora.
A escrita na vida de Clarice se fez presente desde muito cedo, inventando
histórias que eram, na verdade, sensações, uma vez que não apresentavam enredo.
12
Por este motivo, nunca foram publicadas, mas, ainda assim, a menina Clarice nunca
desistia de enviar suas produções. na adolescência, a escritora deixara de
determinar exatamente a que público se referia, apenas escrevia, deixando o
processo escritural escorrer de suas veias, quase tão natural quanto viver.
Em 1944, Clarice conseguiu publicar seu primeiro romance - Perto do
Coração Selvagem. A crítica apresentou diversas análises acerca da obra, positivas
e negativas, principalmente pelo caráter intimista e ensaístico do texto. Após isso,
Clarice não parou mais de escrever, apesar dos insuportáveis hiatos entre uma obra
e outra, que se faziam necessários para que houvesse um esvaziamento da mente e
assim novas ideias pudessem nascer.
Além de ter escrito romances, contos e crônicas, Clarice também atuou como
jornalista e tradutora. Traduziu textos e peças teatrais; escreveu livros infantis;
entrevistou pessoas famosas. E sempre ficava enjoada daquilo que escrevia, de
modo que não relia seus textos após serem publicados. Clarice nunca assumiu ser
uma escritora profissional, porque escrevia quando queria e, isso, na visão dela,
tornava-a amadora. Queria, antes, manter sua liberdade, a qual prezava muito.
Então por que Clarice escrevia? Porque queria se salvar, desabrochar.
Clarice escrevia para sentir-se viva
1
e disse, certa vez, que escrever é uma
maldição. Entretanto, uma maldição que salva. Por quê?
[...] porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase
impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma
presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que
nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é
procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento
que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar
uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 1999, p. 134).
Nadia B. Gotlib considera que a disjunção entre o que Clarice queria e o que
acabava fazendo talvez seja um eixo de explicação de toda a escrita de Lispector.
1
Informação que concedeu em uma brevíssima entrevista a José Castello, em 1976.
J.C. — Por que você escreve?
C.L. — Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?
J.C. — Por que bebo água? Porque tenho sede.
C.L. Quer dizer que você bebe água para o morrer. Pois eu também: escrevo para me manter
viva.
13
[...] a figura da escritora desdobra-se em múltiplas configurações: é a
personagem, ora mais, ora menos consciente do seu papel; é a narradora
solta, levemente dissimulada, ao mesmo tempo trágica, ao mesmo tempo
irônica e com postura crítica: é a autora implícita, manifestando-se diante
dessas todas, de modo ora direto, ora dissimulado; é a Clarice ocupando
um lugar que esem todos os lugares e em parte nenhuma, concreta nos
desdobramentos materiais da escrita, em comentários, atitudes, reações,
mas abstrata ao seu esconder por detrás da própria invenção,
realimentando assim o próprio jogo do fingimento ficcional. (GOTLIB, 1995,
p. 161, grifos nossos).
De todos os romances publicados por Clarice Lispector, um dos mais
irreverentes é Água Viva, que surgiu num momento em que a autora precisava de
mudanças em sua produção. Em um bilhete escrito para sua amiga Olga Borelli,
Clarice dizia: Tenho, Olga, que arranjar outra forma de escrever. Bem perto da
verdade (qual?), mas não pessoal”. (MOSER, 2009, p. 456).
Sonia Roncador (2002), em Poéticas do Empobrecimento A escrita
derradeira de Clarice, esclarece que a escrita clariceana, a partir dos anos 70 do
século passado, passou a ter drásticas mudanças quanto à proposta estética. Os
novos elementos inseridos por Clarice contrastam com suas obras anteriores, que
tentavam trazer uma maior homogeneidade de tom e estilo. Já nos últimos textos, há
referências a sua constante luta com a linguagem e busca pela heterogeneidade,
visto que o novo modelo de composição almejado é o da montagem, ou seja,
fragmentos dispersos que são colocados no corpo do texto. Roncador ressalta ainda
que Objeto Gritante é, provavelmente, o precursor desta nova experiência. Porém,
antes disso, na obra A paixão segundo G.H (1964), verificamos que algumas
mudanças começam a ser empreendidas na narrativa de Clarice Lispector: a
primeira seção do livro mostra uma narradora hesitante para descrever a experiência
obtida, alegando nada saber e dando a entender para o leitor uma escrita não
premeditada.
Este novo modo de escrever inspira Clarice e ela publica Água Viva em 1973,
contudo, antes disso, existiu um árduo trabalho que quase a fez desistir deste
projeto autoral. Clarice estava mudada, queria novas repercussões, novas
experiências. Acredita-se que o trabalho de Clarice como cronista no período de
14
1967 a 1973 no Jornal do Brasil a inspirou para um novo estilo de escrita, mais
parecido com as conversas informais e reveladoras das tempestades de sua alma.
O artigo As duas versões de Água Viva, de Alexandrino Severino (1989), nos
oferece um dado curioso sobre a composição de Água Viva: o fato de ser a versão
final, corrigida, de Objeto Gritante, o que soube apenas em 1971, quando Clarice
entregou-lhe uma cópia deste manuscrito (na época com o título Atrás do
pensamento: monólogo com a vida) para que ele o traduzisse para o inglês. A
partir desta data, o crítico passou a vê-la regularmente por aproximadamente dois
meses para discutirem os detalhes da tradução. Naquele momento, Clarice não
queria modificar sequer uma vírgula de seu texto, uma vez que considerava a sua
obra terminada.
Passado um ano, Clarice mudou de opinião sobre o projeto. Em 23 de junho
de 1972, a autora de fato escreveu uma carta a Severino comunicando sua decisão
de não mais publicar o manuscrito. Na carta ela dizia:
Quanto ao livro - interrompi-o – porque achei que ele não estava atingindo o
que eu queria atingir. o posso publicá-lo como está. Ou não o publico ou
resolvo trabalhar nele. Talvez daqui a uns meses eu trabalhe no Objeto
Gritante. (SEVERINO, 1989, p. 115).
E, de fato, Clarice resolveu trabalhar no texto, ou seja, revisá-lo. De certa
maneira, abandonou o programa estético inicial e operou transformações
significativas no original. Houve cortes radicais no processo de revisão do
manuscrito
2
, que sofrera a exclusão de alguns fragmentos autobiográficos,
substituídos por um relato ficcional entre o “eu” que escreve e o “tu” imaginário.
Na versão original de Objeto Gritante, havia muita irregularidade de tema,
estilo e tom caracterizando-se como uma estrutura heterogênea; mais parecia um
livro feito por montagem e colagem de fragmentos de crônicas e romances já
publicados, além de alguns textos inéditos.
2
Os manuscritos estão disponíveis para consulta no Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no
Rio de Janeiro.
15
Não importa muito se Clarice tomou seus artigos de jornal e os costurou
num manuscrito ou se saqueou um manuscrito à cata de material para sua
produção jornalística. No entanto, as duas explicações conflitantes
enfatizam que em Objeto Gritante ela ainda está lutando corpo a corpo, e de
modo um tanto culpado, com a ficcionalização. (MOSER, 2009, p. 459).
Em entrevista intitulada “Clarice Lispector esconde um objeto gritante”,
publicada no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, em 6 de março de 1972, a autora
diz que seu livro “será muito criticado. Ele não é conto, nem romance, nem biografia,
nem tampouco livro de viagens... Sabe, Objeto Gritante é uma pessoa falando o
tempo todo...”. (RONCADOR, 2002, p. 60).
É nítida a insatisfação da autora acerca de Objeto Gritante, conforme mostra
em outro depoimento em entrevista para a Revista Textura, n. 3, da Universidade de
São Paulo.
Esse livrinho tinha 280 páginas; eu fui cortando cortando e torturando
durante três anos. Eu não sabia o que fazer mais. Eu estava desesperada.
Tinha outro nome. Era tudo diferente. [...] Era Objeto Gritante, mas não tem
função mais. Eu prefiro Água Viva, coisa que borbulha. Na fonte [...].
(LISPECTOR, 1974, p. 22-26 citada por GOTLIB, 1995, p. 410).
O crítico José Américo Pessanha, a respeito da falta de unidade entre as
partes internas de Objeto Gritante, mencionou em carta a Clarice a “aparência de
bricolagem”, visto que aparecem fragmentos de textos publicados no Jornal do Brasil
ou em outros livros seus. Observa ainda que, ao contrário de obras anteriores,
Objeto Gritante não tem nenhum pudor em misturar diferentes tipos de discurso,
evitando rebuscar a forma. O trecho a seguir de Objeto Gritante parece comprovar
o que Pessanha diz:
Noto que muito tempo não chamo o
Deus
de Simptar e não me chamo
de Amptala. Que Simptar nunca deixe faltar comida a Amptala. Comida,
comida e comida. Não sei como são as outras casas de família. Na minha,
todos falam muito de comida. Este queijo é meu. (LISPECTOR, 1971, p. 70
citada por RONCADOR, 2002, p. 58).
Para Objeto Gritante, Clarice trouxe trechos que parecem questionar a
instituição literária em geral e, em particular, a sua própria obra. A autora fala
16
explicitamente de suas intenções “antiliterárias” e também das prováveis críticas que
o manuscrito sofreria se viesse a ser publicado. “Se você considerar isto aqui mais
do que uma carta, fique ciente que se trata de um anti-livro.” (LISPECTOR, 1971, s/p
citada por VASCONCELLOS, 2002, p. 13-14). Considera-se heróica, pois “[...] é por
heroísmo também que publico este livro que vai ser vaiado e cujas intenções de
antiliteratura serão captadas por poucos.” (LISPECTOR, 1971, s/p citada por
RONCADOR, 2002, p. 49).
Ao passo que Clarice considerava Objeto Gritante um antilivro, uma espécie
de antiliteratura intencionada, também fragmentos em que expõe sobre escrever
e sobre memória, detalhes que revelam um pouco de seu método de escrita.
De qualquer modo escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu.
Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? Assim: como se me
lembrasse. Com um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse
nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro e a lembrança é em
carne viva. Porque escrever dói. Entregar-se é bom, é ótimo, mas dói. Pelo
menos no começo. (1971, p. 86).
Além de passagens reveladoras sobre o processo escritural claricerano, como
pudemos conferir no trecho acima, também encontramos em Objeto Gritante certas
descrições elaboradas de maneira trivial, diferenciando-se da escritura anterior de
Clarice Lispector.
O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indolência. E também por
impaciência com o ritual necessário: barraca, areia colada por toda a pele. E
mesmo não sei ir ao mar sem molhar os cabelos. E, chegando em casa,
tem-se que tirar o sal. Mas um dia vou falar do mar de um modo melhor.
Aliás, acho que vou começar um pouquinho agora. Vou falar do cheiro do
mar que às vezes me deixa tonta. Sei que se chama maresia, que é nome
feminino. Mas para mim é cheiro masculino, sobretudo quando não usam
desodorante. (ibidem, p.84-85, grifos nossos).
Severino (1989, p.115) diz que “tanto ‘Água Viva’ como a sua primeira versão
em Objeto Gritante foram tentativas de chegar aum ponto inefável, para além do
raciocínio e até mesmo da imaginação”. O autor esclarece ainda que o âmago de
Água Viva se encontra nesta primeira versão, de maneira que os acréscimos
17
realizados foram tentativas de dizer melhor o que fora apenas esboçado ou dito de
forma inadequada.”
Roncador, por sua vez, contrapõe-se a este comentário, pois acredita que:
Houve, sim, um empenho da autora em eliminar o “âmago” de “Objeto
Gritante”, ou, como disse anteriormente, um desejo de abandonar um
certo projeto literário que havia gerado as quase 200 páginas desse
manuscrito. (2002, p. 51).
Durante o trabalho de recomposição a chegar ao livro definitivo, Clarice
precisou da ajuda de Olga Borelli, sua secretária e amiga inseparável. Borelli tomou
algumas decisões ao ordenar e selecionar os fragmentos do livro que depois eram
revisados sistematicamente pela autora.
Finalmente, em agosto de 1973, Clarice publica o livro Água Viva pela
Editora Artenova. O resultado foi surpreendente. A obra foi bem acolhida pela crítica,
conforme veremos a seguir.
1.2. Água Viva para Clarice e para os críticos
“Mas já que se de escrever, que ao menos não se esmaguem com
palavras as entrelinhas.” (Lispector, 1999, p. 200).
Água Viva desperta sabores, cores, sons e fragrâncias nos leitores que
mergulham nesta narrativa sinestésica, sem gênero definido. A própria narradora
nos alerta: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando,
gênero não me pega mais.” (Água Viva,
3
p.12-13).
Texto em forma de monólogo dialogado de um “eu” sem identidade explícita a
um “tu”, ora presente, ora subentendido, Água Viva é uma espécie de discurso
confessional a um interlocutor misterioso e sem nome. As palavras são lançadas
como se fossem águas-vivas, que ou nos queimam, ou nos seduzem. Medusa que
perturba numa escrita indefinível, este “eu” que se interroga e questiona o mundo vai
se lançando no fluxo desta água e fazendo jorrar vários temas que se desdobram
em ciclos.
3
A edição que usamos de Água Viva é a de 1998, editora Rocco. A partir daqui, usaremos a sigla
AV, seguida da página quando nos referirmos à obra.
18
Em julho de 1973, Alberto Dines
4
escreveu uma carta a Clarice Lispector
acerca de seu livro recém-publicado e, na missiva, considerou a obra uma belíssima
sinfonia. Vejamos:
Clarice,
Li o seu livro de um jato (Água viva). Sem parar. É curioso, pois sem
nenhum “plot” ele tem um suspense próprio, transmite grande carga de uma
ansiedade pelo que de bonito você vai dizer no parágrafo seguinte.
Sabemos que não um desfecho, mas corremos até o fim em busca dele.
E então é aquele suspiro final.
Acho-o maravilhoso. É um contato com o bonito-puro. E isto dito por mim
tão pouco abstrato, tão “operacional” mesmo na minha atividade como
escritor, é muito significativo. Você venceu o enredo, libertou-se do
incidente, do evento, do acontecimento. Mas mesmo sem estes o livro
prende e se enovela porque dentro da abstração uma série de vivências
muito nítidas e muito lindas. A gente vai encontrando a todo instante
situações-pensamento e vai se identificando com elas como se o livro
tivesse personagens, incidentes, tudo. Eu pessoalmente me liguei a uma
dúzia deles.
É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você
escreveu uma sinfonia. É o mesmo uso do tema principal desdobrando-se,
escorrendo até se transformar em novos temas que, por sua vez, vão
variando, etc. etc.
O Gustav Mahler está muito em voga, não? Mas apesar do modismo
mahleriano tenho tido um especial prazer em descobrir essas coisas só
minhas nas obras dele. Você certamente o conhece, mas deve cultivá-lo
porque se parecem nesta ansiedade elevada à condição de harmonia.
E acho que posso responder à sua pergunta fundamental: o livro está
terminado? Está. Definitivamente. Mas na mesma medida em que um
movimento de uma sinfonia se contém em si mesmo. Ou, na mesma medida
em que uma sinfonia de Beethoven ou do próprio Mahler dispensam as
outras. O seu Água-viva, assim como os movimentos e as sinfonias
“funcionam” individualmente, tem sua vida própria. Mas também podem
pedir uma continuação. (Aqui entra a minha furiosa imaginação e
onipotência te sugerindo dois outros movimentos: quem sabe um sobre
encontro-desencontro, mezzo-vivace e, depois, um outro andante-
majestoso, final?).
4
Alberto Dines é jornalista, dirigiu e lançou diversos jornais e revistas entre Rio, São Paulo e Lisboa.
Foi editor-chefe do Jornal do Brasil durante 12 anos. Escreveu e organizou mais de 15 livros.
19
O importante, porém, é isto: você concebeu e produziu algo exatamente
bonito. E terminado.
Abraço
Dines (20/07/1973)
Em setembro de 1973, a revista Veja publica uma resenha sobre o recém-
lançado Água Viva. Leo Gilson Ribeiro, o resenhista, instiga o leitor a ler a obra
caracterizando-a da seguinte maneira:
Não contente em ser a mais admirável contista da América Latina, Clarice
Lispector conseguiu superar o seu maior desafio pessoal. “Água Viva” a
meio caminho entre o conto e o romance conserva da história curta, a
concisão que condensa no mínimo de palavras o máximo de impacto,
reticência e profundidade de percepção sensível. [...] Agora, com o singelo
subtítulo de “ficção”, a escritora pernambucana consegue criar um
deslumbrante itinerário capaz de transcender o conto e superar seu fôlego
curto demais para o relato extenso. (p. 113).
Em 1974, numa resenha publicada pela revista Colóquio/Letras, Benedito
Nunes revela:
Água Viva é uma continuação, porque volta àquela experiência que O Livro
dos Prazeres interrompe, e é um recomeço, porque o duplo esvaziamento
consumado em A Paixão tanto do sujeito-narrador, cujo Eu se desagrega,
como da narrativa, que nada mais tem a narrar senão a própria errância do
sujeito transforma-se no realismo novo, atemático, do processo de
escrever, feito busca aleatória, conquista e perda de tempo, criação de
sobrevida e aproximação da morte. A escritura dilacerada, conflitiva, que
antes se atingira como um limite final e uma necessidade perturbadora é
agora a contingência assumida de transgredir as representações do mundo,
os padrões da linguagem, os gêneros literários e a fantasia protectora. (p.
91).
Continuação e recomeço, porque Água Viva, em seu conflito constante e
dilacerante, não tem começo, nem fim, fugindo de seus padrões e nos fazendo
lembrar os romances anteriores de Clarice. Nunes, na mesma resenha, informa
ainda que a narrativa de AV é moldada num “estilo de humildade”, quando afirma: “E
20
se eu digo ‘eu’ é porque não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’ ou ‘uma pessoa’. Sou obrigada
à humildade de me personalizar me apequenando, mas sou o és-tu.” (AV, p. 12).
Lispector assumiu, em sua crônica Humildade e Técnica, publicada no Jornal
do Brasil, suas dificuldades quanto ao ato de escrever, não se tratando, portanto, de
um problema de expressão, mas de concepção. E confessou ser humilde, não no
sentido cristão, mas sim da “humildade que vem da plena consciência de ser
realmente incapaz.” (LISPECTOR, 1999, p. 237). Esta humildade passou a ser
técnica para a escritora, conforme nos esclarece com o trecho a seguir:
Humildade como técnica é o seguinte: se aproximando com humildade
da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri esse tipo de humildade,
o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é
pecado, pelo menos tão grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como
se cai em gulodice. que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um
erro grave e, com todo o atraso que o erro à vida, faz perder muito
tempo. (op. cit.).
Em O Drama da Linguagem, Nunes (1995) analisa esta escritura humilde de
Lispector como reconhecimento da própria impotência e também uma forma de
abdicar-se de si mesma. O autor observa que os resultados do processo de escritura
de Clarice não são controláveis, nem previsíveis, levando a autora, “pelos erros de
que o feitos, ao ‘próprio assustador contacto com a tessitura de viver...’. (p. 147-
148).
Muito já se escreveu a respeito de Água Viva, mesclando reflexão crítica com
impressões pessoais. Aqui, vamos nos ater apenas àqueles trabalhos que
focalizaram, de alguma maneira, a escritura deste texto, oferecendo subsídios para
a temática que nos instigou a pesquisa: a escritura de impressões na fronteira entre
poesia e prosa.
Cíntia Schwantes (2008), no artigo Água-Sempre-Viva, deixa claro que sua
leitura de Água Viva foi árdua, causando-lhe desconforto físico. Após realizar várias
leituras foi conduzida à hipótese de que o movimento desta obra é o da respiração.
A construção do texto se pela alternância das pulsões de vida (inspiração) e
morte (expiração), conforme explicita: “Os movimentos do romance unem, como
duas forças opostas e complementares, os instintos de Eros (vida) e Tanatos
(morte)”. (p. 49).
21
Já Hélène Cixous, estudiosa e crítica francesa, diz que em Água Viva uma
continuidade, um fluxo e uma potência vital sustentando a obra e isso faz com que o
leitor continue a leitura ou, ao menos, perca o fôlego ao seguir o ritmo do corpo.
Para a estudiosa, AV é a melhor prática de Clarice de uma escritura feminina.
[...] um modelo de inscrição de uma feminilidade libidinal no nível formal. É
um texto que não começa, que não termina, constituído de inúmeros
começos; é uma enorme corrente de água, uma água viva, um texto que
não tem limite, moldura, que pede uma leitura diferente. Uma leitura que
seja uma aventura, como o próprio texto, em que é necessário mergulhar.
Trata-se de um movimento que as pessoas não têm o hábito de fazer.
(2009, s/p.).
Newton Murce (2008), em seu artigo Água Viva A palavra que treme, relata
que a leitura do livro desestabilizou sua respiração. Tremeu. Sentiu tal
dramaticidade, tal corporeidade que ultrapassava a literatura. Ficou estático, sem
palavras que pudessem definir o texto, mas conseguiu dizer “É corpo”. “É coisa”. (p.
255).
O autor observa, ainda, que a produção de Clarice em AV é um ótimo
exemplo de escrita como ato, como precipitação, pois, ao falar de seu ato criativo, a
narradora escreve e ao mesmo tempo abre espaços para que seu texto não esteja
separado da vida, mas capte o instante em que se diz; é o Instante-já! O corpo do
leitor é afetado diante de uma escrita que se realiza no instante-já e gera
estranhamento a cada confronto. O corpo do leitor é, então, afetado por este corpo
textual e desperta.
O leitor de fato não fica passivo diante das palavras de Água Viva. Inquieta-
se na tentativa de buscar respostas para o entendimento deste texto que, como os
demais de Lispector, não deixa de oscilar entre a linguagem e o ser. Telma Maria
Vieira (1998), em Clarice Lispector uma leitura instigante, debruçou-se sobre as
descobertas da linguagem clariceana e o tipo de leitor para estes textos que
instigam e nos convidam à leitura. A autora descobriu que Clarice rompe os limites
do signo, pois as palavras não conseguem revelar totalmente o objeto que
representa e isso mostra o inominável, o indizível. Lispector desconstrói para
construir, necessitando criar um mundo, recriar a realidade e plantar palavras que
ganham uma nova roupagem. A metalinguagem presente no texto envolverá
22
significativamente o leitor de forma a fazer dele um parceiro capaz de preencher as
lacunas do texto.
Sobre Água Viva, Vieira (1998) analisa o embate da protagonista-narradora
com a linguagem, quando se depara com o fato de que as palavras são necessárias
para narrar, mas descobre que, tal como signos, as palavras o expressam
inteiramente o objeto. Então, o que fazer? Usa, além da palavra, a pintura.
A pintura sempre lhe deu a possibilidade de se expressar inteiramente, pois
trabalha com imagens que se apresentam anteriores às idéias e, portanto,
conseguem abarcar totalmente o universo das sensações.
[...]
Portanto a pintura, que possui como base a imagem, suplanta a palavra,
pois enquanto esta traduz idéias, aquela pode manifestar sensações que
fogem à apreensão do intelecto. A pintura é menos apta que a palavra para
sugerir sensações.
[...]
Por meio da pintura, consegue expor suas profundas sensações, mas as
“mutações faiscantes” que experimenta não podem ser reveladas nem
mesmo pelas imagens.
Assim, recorre novamente à escrita para capturar os instantes das coisas,
para apossar-se do seu é. (p. 37- 38).
O instante-já que a narradora pretende capturar por meio da escrita “revela
uma tentativa semiótica de expressão, ou seja, as palavras que ela busca precisam
exprimir, ao mesmo tempo, a vibração da música e os traços da pintura.”, é o que
nos explica Vieira (idem, p. 39).
Enquanto isso, Sá (2004) avalia que a despreocupação com o enredo em
Água Viva faz “o Logos introspectivo” se espalhar em manchas de escritura,
“densas, gelatinosas, que o leitor deve ter Anima para sentir. O irracional irrompe e
não à toa o grotesco tem sua parte de leão.” (p 100).
Helena (2006) também acredita que em AV o tecido fragmentado da narrativa
apresenta manchas, porém, em “fugazes instantes, quase como pinceladas
impressionistas, sugerindo ao leitor a correlação entre o texto verbal e o imagético-
pictórico, ambos focalizados por Lispector como não-figurativos”. (p. 70).
As inovações em Água Viva radicalizam com os fundamentos da narração,
implicando a crise da literatura em uma linguagem transgressora. Helena analisou
23
AV objetivando mostrar estes aspectos. A pesquisadora compreende o instante-já
da obra como um lugar enfeitiçado, uma mescla de lugar-tempo que não tem centro.
E a quem pertence este lugar?
“Ele é o lugar do sujeito em deriva, da linguagem em transmutação e da
mímesis em produção. Esse é o lugar da alteridade e do silêncio, o lugar da
metáfora e não do conceito, em que a literatura transgressora se realiza.
(HELENA, 2006, p. 79).
E quanto ao sujeito em Água Viva? Por ser uma obra de representação, nos
explica Helena, em AV os sujeitos ‘eu’ e ‘tu’, ‘femininoe ‘masculino’ não se referem
a pessoas e objetos da realidade, portanto se relacionam com outros significantes, já
que o sujeito do discurso não é semelhante ao real. Isso significa que as relações
entre os sujeitos implicarão uma rede de complexidades, como veremos a seguir:
[...] o tu inicial, o masculino, o amado, o outro a quem esse eu endereça a
sua mensagem, vai-se tornando tu, o leitor, o sem gênero, o outro do
narrador, mas que, como o narrador, é capaz de conviver com a não-
palavra, o intervalo, o silêncio, a entrelinha, enfim, “a quarta dimensão da
palavra”. E tudo isso ocorre por meio de um processo complexo de
penetração, retraimento, permuta e diferenciação.
[...]
Assim, o sujeito, seja declinado no feminino ou no masculino, não é apenas
uma figuração da racionalidade, nem uma entidade diretamente encontrável
no real. Ainda que rememorem e se reportem ao real, o eu e o tu são seres
do discurso. E ao escrever eu, e ao escrever tu, Lispector dramatiza uma
outra cena, da qual a mímesis da representação não mais conta. Para
ser lida nessa instância, Água Viva requisita que o leitor se disponha a ver
vacilar as bases de muitas de suas crenças. (ibidem, p. 84-85).
Diante da impossibilidade das respostas e do fracasso da narrativa em Água
Viva, Duarte (1996) compreende que o “eu” enunciador de AV não é um simples
narrador em primeira pessoa, mas a própria scara do criador, que o livro
desvenda as contradições que são enfrentadas pelo escritor. um itinerário que
caminha ao mascaramento/desmascaramento do sujeito no discurso da obra, bem
como um embate entre a realidade da vida e a realidade da ficção.” (p. 46). Tal
24
embate entre ficção e vida revela contradições quanto ao ato de escrever e o que
parece mesmo importar no texto são as sensações.
O que percebemos é que Clarice Lispector tem a intenção de fazer uma
narrativa na qual o que importa são as sensações de um eu diante do
mundo e da criação artística num continuo presente onde ele não tem
tempo para a racionalização integral dessas sensações.
[...]
Por isso é que o lírico é o sentimento predominante na narrativa. Dessa
forma, a escritora consegue fugir da ingenuidade da crença na objetividade
do romancista. (DUARTE, 1996, p. 50).
Duarte ainda nos explica como ocorre o lirismo em Água Viva, que o texto
é uma rede de sentimentos de uma realidade fragmentada, mostrando os caminhos
entre o sujeito e o mundo.
O lírico em Água Viva é marca da suspensão, do apaziguamento da dor do
mundo vivida pelo narrador. Enquanto recurso estético, essa espécie de
“inflação lírica” possibilita o contato com o inacabado, com o núcleo
escorregadio da consciência que repensa o mundo ao se repensar. Longe
das respostas definitivas, do mundo pré-concebido, o sentimento lírico que
perpassa o livro nos empurra para o presente fluxo do pensamento que se
reelabora indefinidamente. (ibidem, p. 51).
Maria Helena Falcão Vasconcellos em Devir-Água do Texto: Uma Escrita em
Intensidade O livro Água Viva de Clarice Lispector - aproxima o pensar filosófico
de Giles Deleuze ao de Clarice Lispector no que se refere à concepção da
linguagem como potência intensiva. A autora revelou três movimentos em Água
Viva, que nomeou de correntes submersas: perplexidade indagativa (característica
da intensidade), dobra da linguagem (caráter metalinguístico do texto) e aquém e
além do humano (subjetivação que vai se instituindo junto com a criação de
linguagem literária), além de aproximar esta escritura da dança, que é para Valèry,
como veremos adiante, o correlato da poesia em oposição ao andar da prosa.
Vasconcellos diz que “O livro faz ‘dançar’ a linguagem e faz a linguagem ‘dançar’.
‘Dançar’ a linguagem no sentido de deslizar e movimentar-se e a linguagem ‘dançar’
no sentido de anarquizar, gorar, perder a vez”. (2002, p. 15).
25
Outra importante questão trazida pelo trabalho de Vasconcelos é a relação
que estabelece entre Água Viva e a pintura de sensações, pois a autora informa
que nos manuscritos anteriores a Água Viva, Clarice afirmou apreciar Cézanne, “o
pintor que queria pintar sensações.” (2002, p. 35).
A linguagem que diz sensações é uma potência, pois se as sensações não
são forças, é nelas que as forças nos atingem e fazem vacilar. E fazem
indagar. (ibidem, p. 37).
[...]
É a sensação que preside o ritual de iniciação. Através de sensações, a
água viva do mundo provoca queimaduras, abrindo passagem à
multiplicidade de forças que nos atravessam e criam palavras que se
deixam ensopar pelas sensações que as provocaram. É pela sensação que
as forças chegam até nós [...]. É assim: sentir no corpo as intensidades que
o percorrem e escrever sensações. Escrever com o corpo todo. (ibidem, p.
53).
Gotlib, por sua vez, em Clarice – Uma vida que se conta - oferece-nos
preciosas observações sobre a dificuldade de catalogar Água Viva em determinado
gênero, de forma a perceber um princípio regulador da estrutura.
Na verdade, essa colagem de registros variados ampliam o leque das
virtualidades intertextuais, possibilitando uma correspondência entre as
várias artes literatura, música, pintura, por exemplo –, em função de uma
semelhante postura ou práxis artística, que despreza anteriores princípios
reguladores da obra. (1995, p. 411).
E o sentido de autor? Segundo Gotlib, desaparece, pois o que se representa
na escritura de AV é este ser que se liberta de sua identidade pessoal e se
transforma em “verdade inventada”.
é que a linguagem germina, criativamente, em imagens orgânicas, tão
naturais que parecem fantásticas: ostras que se contorcem vivas quando
lhes pingam limão; gata que, depois de parir, come a placenta que envolve
a cria [...]. Assim como a narradora vai criando de si um ser: ‘Estou me
criando’. (ibidem, p. 411-412, grifos nossos).
26
Interessante, contudo, notar que o leitor, inicialmente, parece ficar perdido
frente a esta desestruturação: a obra é um não-livro, não tem autor, não tem gênero
e não tem enredo definido. Mas este leitor não é enganado, pois a narradora
alerta que seu jogo é limpo, que não contará os fatos de sua vida e que não acredita
em si mesma porque o seu pensamento é inventado.
Peixoto (2004) estudou a obra clariceana a fim de entender a relação
existente entre gênero, narrativa e violência. Para tanto, buscou exemplos em várias
obras de Lispector, inclusive em Água Viva.
De acordo com o autor, em AV o próprio escrever se torna objeto de suspeita
e surge para a voz narradora como um caminho traiçoeiro, pois, ao desejar
comunicar o que se passa no atrás do pensamento:
[...] representa também a vontade de escapar do codificado e das
construções da inteligência racional [...] como se a sua própria falta de jeito
com as palavras pudesse facilitar-lhe a apreensão do que existe além das
palavras. (ibidem, p. 142).
Quanto aos constantes reaparecimentos textuais em AV, o autor continua:
[...] contribuem para a indefinição dos limites entre autobiografia e ficção em
Água Viva. [...]. Para o leitor familiarizado com sua obra, o efeito desses
déjà vu textuais opera a contrapelo das revisões feitas por Lispector,
dotando a protagonista não-autobiográfica de uma equívoca ressonância
biográfica. (ibidem, p. 147).
Esta fronteira entre o autobiográfico e o ficcional acaba afetando as instâncias
dialogais com o “tu”, também ele dissolvido entre o espaço escritural e o biográfico
do leitor.
A um tempo amante, leitor e fragmento de uma subjetividade dividida, o
“tu” representa o espaço resistente para o qual a narradora dirige suas
palavras e do qual deve arrancar legitimação para uma escrita que, como
em tanto (sic) textos modernos e pós-modernos, menospreza as restrições
de gênero literário, de estruturas narrativas básicas, de progressão lógica e
de coerência. Essa legitimação, embora tenazmente buscada, nunca chega.
(ibidem, p. 156-157).
27
Adriano Martendal (2007), em A escrita no limiar do sentido, estudou como se
a produção de sentido e a circulação do nonsense no interior da escrita de
Clarice Lispector. O autor trabalha com algumas obras clariceanas, inclusive Água
Viva. A respeito desta obra, diz que:
[...] é pura circulação desenredada, onde o significante primeiro a
experiência, está em toda parte, nas linhas e nas entrelinhas, nos
caracteres formadores das palavras e nos espaços em branco que as
separam. Aqui, mais do que em qualquer outra obra, o leitor constrói o
enredo. (p. 19).
Martendal acredita que Lispector foi mestra ao oferecer múltiplos sentidos
para a dança das palavras em AV, que é um poema em prosa. “Tempo e ser,
experiência e o agora são tratados nessa obra de maneira poética”. (ibidem, p. 78).
Quanto ao caráter poético de AV, encontramos ainda a dissertação A imagem
no romance Água Viva de Clarice Lispector, de José Rogério Beserra (2008). O
objetivo desta pesquisa é mostrar como Clarice Lispector articulou as relações entre
as linguagens de prosa e poesia, num hibridismo de gêneros. O lirismo é um
princípio construtor do ritmo e das imagens poéticas e se materializa na potência da
palavra, fazendo-se e se refazendo em fluxos.
É como se esses sentimentos fossem pingos de tinta numa tela para a qual
o observador se transporta no instante do acontecimento-coisa, aquele
momento de simultaneidade, juntos, num lapso, não na hesitação que
acontece fora do corpo. (p. 12, grifos nossos).
Ainda segundo Beserra,
a pintura, o ritmo e o lirismo são forças para captar o
instante-já de AV, caracterizando-a como uma prosa-poética.
A pintura como metáfora da escritura sugere um questionamento do ato de
escrever. A busca da “palavra-coisa” não se encerra na palavra, mas pelas
estratégias utilizadas pela narradora-personagem, nos sentidos inerentes ao
ser humano para verbalizar aquilo que a palavra não consegue atingir. Por
isso a imagem é recurso recorrente para captar o é da coisa”, numa
perspectiva metafórica. (ibidem, p. 38-39).
28
Earl E. Fitz, em seu artigo O lugar de Clarice Lispector na História da
Literatura Ocidental: Uma Avaliação Comparativa (1989), nos mostra como a autora
firmou sua presença como uma das vozes literárias mais originais e poderosas de
toda a literatura brasileira, inserindo-a em três grandes tradições ocidentais: a da
narrativa lírica, a da tradição fenomenológica e a feminista.
Fitz comenta que os autores Lúcio Cardoso, Álvaro Lins e Antônio Cândido
haviam percebido o lirismo fundamental das narrativas de Clarice nas obras: Perto
do Coração Selvagem, A Maçã no Escuro, A Paixão segundo G.H. e Água Viva, nas
quais “unificação não das imagens poéticas, mas também das cenas e ações
dos personagens. Um herói ou um ‘anti-herói’ [...] é um ‘self-reflexive’ e converte
uma narrativa linear em alegoria auto-reflexiva”. (ibidem, p. 32).
Sobre o estilo de Clarice Lispector, bem como o caráter poético de sua obra,
Benedito Nunes (1995) nos explica que existem certas matrizes poéticas que
indicam o movimento em círculo da palavra ao silêncio e do silêncio à palavra. Ainda
segundo o autor, Água Viva, como um texto inclassificável, revela experiências
entre a vida e a literatura e entre o dizer e o ser. Os motivos que figuram no texto
são aparentemente desconexos, mas as entrelinhas dizem muito e são mais
importantes do que aquilo que se enuncia, pois exercem a função de fazer aparecer
o não-dito “o tom dos sentimentos, o halo dos objetos, o âmago de tudo, o limite
verbal de toda experiência, que ainda é palavra”. (p. 157-158).
E é com as palavras iluminadoras de Nunes que fechamos este capítulo e, ao
mesmo tempo, abrimos para o desenvolvimento, nos capítulos seguintes, desta
dança aquática de uma escritura de impressões entre a poesia e a prosa.
Nesse último texto
5
, tanto quanto em A paixão segundo G.H e Água
Viva, a meditação apaixonada, feita de lampejos intuitivos, e a ficção
propriamente dita, sempre meditativa, feita de súbitas iluminações,
produzem-se reciprocamente, produzindo o movimento dubitativo,
dramático, de uma escritura errante, autodilacerada, à procura de sua
destinação, como que impelida pelo “vago objeto do desejo”,
descendo ao limbo da vida impulsiva para subir a uma forma de
improviso intérmino, no qual parece abolir-se a distinção entre prosa
e poesia, e que, sucessão de fragmentos da alma e do mundo, já não
pode mais receber a denominação de conto, novela ou romance.
5
Trata-se da obra A Hora da Estrela.
29
Cabe falar em improviso porque, tal como o impromptu musical, a
escritura se desenrola ao léu de múltiplos temas e motivos
recorrentes [...]. (NUNES, 1995, p. 168-169, grifos nossos).
30
Capítulo II – Da prosa impressionista à escritura de impressões
Mais que um instante, quero o seu fluxo. (LISPECTOR, 1998, p. 15).
2.1. A tradição da prosa impressionista na literatura brasileira
Na Literatura, o impressionismo se incorporou por meio de uma escrita
pictórica, isto é, aquela que permite a digressão e a fuga da linha narrativa,
penetrando nos meandros das impressões, dos avanços e recuos no tempo da
memória e do espaço da consciência. Encontramos tal escrita impressionista em
Marcel Proust (1871-1922), Virginia Woolf (1882-1941), Henry James (1843-1916),
Pierre Loti (1850-1923), Katherine Mansfield (1888-1923) e no Brasil em Raul
Pompéia (1863-1895), Adelino Magalhães (1887-1969), Graça Aranha (1868-1931),
dentre outros.
O impressionismo literário aparece nos fins do século XIX e início do século
XX, com fortes influências da pintura impressionista. O novo ambiente que se
delineava em meados do século XIX, devido à velocidade que a vida urbana trazia e
às mudanças ocasionadas pela tecnologia, favoreceu o surgimento do movimento. O
novo estilo de viver, mais acelerado e tenso, provocava sentimentos que
culminavam na verificação de que os acontecimentos cotidianos são fugazes e que
cada momento da vida é único. Surgia então a pintura impressionista na França, na
segunda metade do século XIX. Com o seu advento, o cenário artístico mundial
obteve grandes inovações visuais. Configuram-se como principais nomes deste
movimento: Edgar Degas, Edouard Manet, Claude Monet, Camile Pissarro, Pierre
August Renoir, Alfred Sisley, Berthe Morisot, dentre outros.
Não vamos nos ater aos detalhes do surgimento do impressionismo pictórico,
mas se faz necessário reportarmo-nos brevemente ao assunto, que o movimento
impressionista literário sofreu influências da pintura.
O método pictórico impressionista consistia em traduzir pura e simplesmente
a impressão tal qual foi percebida materialmente, de maneira que o pintor
representava os objetos de acordo com as suas impressões pessoais, ou seja, quais
efeitos eram produzidos pela ação dos objetos exteriores sobre os órgãos dos
31
sentidos. Os adeptos do impressionismo pintavam ao ar livre (alguns preferiam o
ateliê), captando melhor a realidade que os cercava e todas as nuances da luz e da
natureza. A visão deste estilo é sempre renovada em função da luz e de suas
variações e o pintor quer captar uma impressão que é fugidia. É exatamente isso o
que atrai os artistas impressionistas: estes momentos efêmeros, fugazes, tudo o que
é fluido, reflexo. Em suas telas, temos a representação da imagem pela cor, ou seja,
a perda da linha pelas manchas de cores.
Fronteiriço com o realismo, o naturalismo e o simbolismo, o impressionismo
literário tem sua origem no realismo-naturalismo. Coutinho (1969) esclarece que
houve uma transformação na prosa a partir das últimas décadas do século XIX,
“resultante de um processo estético consistente na confluência do simbolismo com o
naturalismo, vindo a produzir em prosa o que hoje conhecemos pelo nome de
Impressionismo, processo que viria influir na gênese do Modernismo”. (p. 3).
O Impressionismo é uma forma do Realismo, porém uma diferenciação
quanto à representação da realidade nos dois estilos: embora em ambos a força da
observação seja a condutora da análise, os métodos são diferentes: enquanto no
Realismo a razão impera; no Impressionismo o que interessa é o registro da
impressão de uma dada realidade, no exato momento em que ocorreu. A realidade
impressionista é, então, vista como um processo, pois as coisas ao seu redor estão
em contínuo movimento.
Ao contrário, portanto, do Realismo, colaboração da subjetividade na
arte impressionista, e foi graças a esse elemento que o Impressionismo se
destacou do Realismo, como estilo peculiar de arte, confundindo-se, no
final, com o Simbolismo.” (ibidem, p. 13-14).
Os irmãos franceses Jules e Edmond Gouncourt criaram um estilo de escrita
denominado écriture artiste (escrita artista) e assim o considerados os fundadores
deste novo estilo, visto que com a estética por eles elaborada se deu a
transformação do Realismo-Naturalismo no Impressionismo, conforme as
explicações de Coutinho.
No Brasil, o Impressionismo não constituiu escola, mas uma corrente, uma
influência. Como principais representantes do impressionismo escritural brasileiro,
encontramos os seguintes autores: Graça Aranha, Adelino Magalhães e Raul
32
Pompéia. As primeiras marcas impressionistas são evidenciadas no romance O
Ateneu, de Raul Pompéia, publicado em 1880, constituindo-se em obra bastante
afinada com o modo impressionista. Sua classificação é complexa, pois
encontramos o apenas aspectos impressionistas no texto, mas também realistas,
naturalistas, expressionistas e simbolistas. Torna-se difícil resumir o romance
justamente pelo contraste entre “ação e reflexão”, como bem pontuou Eliane
Fittipaldi Pereira (1988) ao analisar a obra.
Pereira diz que em alguns momentos do texto a predominância da ação,
promovendo a linearidade dos eventos narrados por meio de frases objetivas.
quando a reflexão do narrador, percebemos que as digressões retardam a ação,
dando ao texto um caráter mais subjetivo, lento e poético, como se as recordações
da vida no internato de O Ateneu fossem manchas na narrativa. Este jogo de
contrastes torna o texto tenso e instigante pelo suspense que se instaura.
O Ateneu é uma obra repleta de sensações e plasticidade nas descrições,
semelhante ao método impressionista, quando podemos notar a presença de jogos
de luz, cores e sombra nas frases, além de impressões sobre o tempo, que são
lançadas na narrativa.
Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se
transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma
base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração
cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais
de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a
estrada da vida. (O Ateneu, p. 30).
O coração é o pêndulo universal dos ritmos. O movimento isócrono do
músculo é como o aferidor natural das vibrações harmônicas, nervosas,
luminosas, sonoras. Graduam-se pela mesma escala os sentimentos e as
impressões do mundo. estados de alma que correspondem à cor azul,
ou às notas graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha, que
se harmonizam no sentimento com a mais vívida animação. (ibidem, p.
127).
E se as imagens do impressionismo são vagas, os contornos dos objetos na
obra de Pompéia também são, que se dissolvem e se misturam, como neste
exemplo no qual o narrador descreve a casa (colégio).
33
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de
Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás
interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigia-se
na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como um
cenário animado de safira com horripilantes errantes de sombra, como um
castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos
romances cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para
uma entrevista de espectros e recordações. Um jacto de luz elétrica,
derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada ATHENEUM em arco
sobre as janelas centrais, no alto do prédio a uma delas, à sacada, Aristarco
mostrava-se. [...]. (O Ateneu, p. 40-41).
É inegável o caráter poético desta obra, conforme nos explica Pereira:
A linguagem de Pompéia é predominantemente metafórica, caracterizada
por “desvios” muitas vezes surpreendentes. Trata-se de uma linguagem
culta, conforme as regras gramaticais e por vezes até erudita, adequando-
se perfeitamente ao tema da retórica que perpassa em todo o livro, retórica
essa que é ironizada, destruída e recuperada no nível poético. (1988, p.
155)
O ponto alto do impressionismo na ficção no Brasil se com Adelino
Magalhães, de acordo com Coutinho (1969). A obra de estreia de Adelino, Casos e
Impressões (1916), texto que reúne quatro contos, traz à baila diversos recursos
impressionistas, que Coutinho sintetiza da seguinte forma
6
: sensações tanto físicas
como morais mostradas de maneira artística; reações das personagens fixadas nas
minúcias do movimento interno e externo; ambientes sendo definidos em notações
dinâmicas; cenas vistas para o leitor pela mente da personagem; a objetividade
tempo-espaço é estabelecida pela sequência mental da personagem, havendo uma
interferência do autor; a narrativa tem em vista o efeito; os elementos da realidade
se contaminam com as sensações, sentimentos e reações das personagens; o
Impressionismo psicológico em algumas passagens, pelo monólogo interior, em que
a despreocupação com a ordem lógica (os pensamentos são reproduzidos
6
Coutinho em A Literatura no Brasil separou as características impressionistas do livro Casos e
Impressões, de Adelino Magalhães pelos contos, mas optamos por explanar de uma maneira mais
geral.
34
conforme aparecem na mente); personagem num momento de semiconsciência,
cujos pensamentos são imagens imprecisas e fragmentadas.
Sobre Adelino Magalhães, Coutinho (1969) declara que se trata de um
escritor espontâneo com grande poeticidade nas palavras e também que se
esquivou dos gêneros.
E escreve casos, impressões, perfis, crônicas, “manchas”, instantâneos,
monólogos, devaneios, visões, caprichos de temas, pequenos poemas em
prosa, prosa à imitação musical exercícios, sonatilhas, rapsódias ,
sinfonias verbais. Esta fuga do gênero definido para o fragmentário acentua-
se de maneira definitiva a partir de Os Violões (1927), prosseguindo em
Câmera (1931), Iris (1937), Plenitude (1939) e Quebra-Luz (1946). Quanto a
Os Marcos da Emoção (1933) trata-se de uma coletânea de pensamentos
soltos de caráter muito pessoal. Em síntese, esquematiza tudo em função
de seu tratamento. (p. 188).
Canaã (1902), de Graça Aranha, é uma obra que também se amolda ao estilo
impressionista, embora entre também nas características do naturalismo, simbolismo
e realismo. Os aspectos impressionistas da obra Canaã não o tão fortes como os
encontrados em O Ateneu, mas se fazem presentes pela plasticidade nas
descrições, em anotações visual-auditivas-táteis, visual-tátil-olfativas ou puramente
olfativas, conforme nos explica Coutinho (1969).
Coutinho também inclui em sua extensa lista de escritores que se
aproximaram do Impressionismo a escritora Clarice Lispector, referente ao período
pós-modernista, especialmente com as obras Perto do Coração selvagem (1943), O
lustre (1946) e A cidade sitiada (1949).
Como vimos, o impressionismo literário brasileiro teve impacto com O Ateneu,
do final do século XIX e continuou no século XX, com Canaã e Casos e impressões.
Estas obras não são apenas impressionistas, mas contêm outros estilos literários.
Analisando com mais atenção algumas obras brasileiras, podemos notar
características impressionistas, como é o caso de textos de Clarice Lispector,
escritora preocupada não com o enredo e com os fatos em si, mas com o interior do
ser, seja este o narrador ou a personagem.
O escritor, frente às mudanças inevitáveis ao seu redor, começa a ter a
sensação de imediatez dos acontecimentos. Então, os momentos do aqui e agora
35
recebem um destaque especial aos olhos deste espectador-escritor que, diante do
que é mutável, contempla o que e tenta captar o instante presente por meio de
palavras. Suas experiências ópticas inspiram uma escrita que surpreende por
evocações inéditas, porém repleta de deformações sobre o objeto observado. O
material captado é fragmentado e os elementos tradicionais da narrativa aparecem
com uma estruturação diferente, com um enredo distorcido e subordinado a um
estado de espírito fugaz, nascido daquele exato momento.
O tempo, a lembrança e a memória também são temas da narrativa
impressionista. Se nos quadros impressionistas o pintor buscava captar as mais
sutis mudanças ocorridas na atmosfera, na escrita deste modelo, o escritor vai
apreender a variedade dos estados mentais das personagens. Acontecimentos
exteriores provocam estados de espírito num momento dado e é importante ressaltar
que a “valorização dos acontecimentos rememorados decorre da situação do
momento vivido, quer no plano do presente, quer no do passado, matéria de
memória.” (PROENÇA FILHO, 1981, p. 248).
Como saber se a produção textual é impressionista?
Sua produção será impressionista se as notações sentimentais ou
pitorescas forem analiticamente decompostas, justapostas em seguida,
reduzidas cada uma delas à sua simplicidade elementar. (MURICI, 1922,
s/p. citado por COUTINHO, 1969, p. 168).
Se na pintura impressionista há manchas de cores e luzes, na escrita temos
os fluxos de palavras-imagens, que evocam no texto a falta de linearidade, pois a
ênfase deste tipo de escrita não é no contar objetivo, mas nos “estados de alma” que
são detalhados no texto e o enredo fica subordinado a estes “momentos”. Os
pormenores das cenas descritas ganham suprema importância, bem como as
digressões que ocorrem por conta das constantes interrupções para circunstâncias e
impressões que fazem com que as personagens sejam conduzidas a recordações
(às vezes uma recordação dentro de outra recordação). Assim, a mesma indefinição
da pintura impressionista pode ser observada também na literatura.
Temos, no texto impressionista, um contar (prosa) mais voltado ao poético,
que faz com que as palavras circulem em vez de seguirem uma linearidade. Na
verdade, as palavras avançam e retrocedem no texto impressionista, estão em
36
constante movimento e marcam o texto como se realmente houvesse “manchas” na
narrativa, ou seja, fluxos de palavras-imagens que revelam as sensações e
impressões do narrador e das personagens. Deste modo, os estados da alma e as
emoções das personagens ganham mais importância do que o enredo propriamente
dito.
Enfim, um texto impressionista é fragmentado, contém o grande impacto de
sensações que ocorrem repentinamente nas cenas que retratam o cotidiano das
personagens, gerando impressões simultâneas que estimulam e transformam suas
vidas. O leitor deste texto não deixa de desestabilizar-se, pois o enredo, assim
disperso, não é completamente apreendido por quem lê. É preciso, então, unir todos
os pedaços de observações, sensações e sentimentos que são lançados pelo autor
nestas histórias, para que assim seja possível realizar uma interpretação.
2.2. A escritura de impressões à luz de uma rede teórico-crítica
Prosa: palavras na sua melhor ordem; poesia: as melhores palavras na
melhor ordem. (Coleridge)
A escritura faz do saber uma festa. (Roland Barthes)
Ouvir o ritmo da criação mas também vê-lo e apalpá-lo para construir
uma ponte entre o mundo, os sentidos e a alma: missão do poeta. (Octavio
Paz)
Refletir sobre a obra Água Viva hoje é vê-la em relações de proximidades e
diferenças com a prosa impressionista do século XIX. Fragmentos e manchas, tanto
em AV quanto na prosa impressionista, alteram a linearidade tradicional de uma
narrativa e nos faz leitores trôpegos nestas linhas difusas e cambaleantes, sorvendo
nosso fôlego no fluir da leitura.
Em Água Viva, sem compromisso com um plano construtivo, o “eu” escritural
opta por escrever ao acaso, instigado pela angústia referente às palavras, ao
constar que definitivamente o são as coisas que representam. Esta revelação é o
motor que levará este “eu” a uma escritura diferenciada, pautada no hoje, na
agoridade. O “eu” persegue um objeto: a palavra. Tal perseguição o faz lançar as
suas emoções e o seu desespero no fluir da narrativa. Porém, nota-se que o modo
37
de narrar escolhido pelo “eu” contém uma espécie de deformação, manchas que
invadem o texto, palavras que mais dançam do que andam, alterando o sentido
tradicional e linear de uma narrativa e revelando, por fim, uma nova escritura.
Esta nova escritura o é igual à prosa impressionista do século XIX, pois os
tempos e as propostas diferem, apesar de encontrarmos muitas semelhanças. Água
Viva segue outro modelo e consegue ir além da prosa impressionista ao apontar
mais manchas em seus contornos quanto à forma e uma preocupação que se faz
obstinada com relação à composição textual, fato que a aparece na prosa
impressionista do século XIX, mas não é o foco em sua composição. Se a obra O
Ateneu visa denunciar uma pedagogia ultrapassada, bem como uma hegemonia
patriarcal exagerada, em que o regime paternalista imperava (denúncias feitas por
recordações vivas do narrador-personagem), AV delata o fazer literário e o confronto
com a palavra poética por meio de um vaivém inédito entre a prosa e a poesia.
Denunciando o fazer literário e pensando sobre o próprio texto que se faz,
percebemos em Água Viva uma obra que se volta para si, uma metaliteratura. A
função metalinguística, conforme o modelo de funções da literatura, proposto por
Jakobson, enfatiza o recurso ao código. Acerca do discurso poético, Barthes (2004)
diz que seu surgimento é quando “a própria mensagem, a sua configuração, o lado
palpável dos seus signos são ressaltados.” (p. 142).
Tanto em AV quanto em O Ateneu torna-se difícil resumir a obra devido à
distorção que as palavras assumem em muitos pontos da narrativa: no primeiro,
um acúmulo de impressões e sensações sobre temas que vão se repetindo ao longo
do texto, alterando consideravelmente o sentido de um enredo tradicional; no
segundo, temos acontecimentos, sensações e impressões do passado (uma série
de recordações dentro de uma recordação principal) que vão sendo rememorados
pelo personagem Sérgio, sob a ótica subjetiva de suas recordações, fato que
adquire força no tempo presente, uma vez que fixa os climas, os momentos e as
atmosferas dos tempos anteriores como tentativa de recuperar o mesmo frescor e
nitidez de quando surgiram.
Pompéia tratou o romance O Ateneu como ficção e o texto, embora
fragmentado e inovador para a época, ainda mantém ao seu modo os elementos de
uma narrativa tradicional: personagens (lembranças de Sérgio), espaço (o colégio),
tempo (psicológico, sem a exatidão do tempo cronológico, mas tecido de memórias),
quem narra (primeira pessoa, narrador-personagem) e um enredo montado pelas
38
recordações do passado. O tratamento desta ficção é diferenciado porque se pauta
no poético, nos fluxos de palavras-imagens e na interrupção da narrativa em várias
passagens para inserir divagações e digressões.
em AV, percebemos que todos os elementos da narrativa foram
desestabilizados, de maneira ainda mais impactante do que n’O Ateneu e, sob a
perspectiva da inovação da forma, nota-se que AV vai além da prosa impressionista,
sem deixar de incorrer sobre as impressões e sensações que deformam as palavras
e lhes dão uma nova aparência.
Amaral (1988), acerca da inovação encontrada n’O Ateneu, explica que:
Num momento em que se esfacelam tantos conceitos formais e tantas
fronteiras literárias, em que os códigos da ficção, da poesia e do ensaio se
interpenetram livremente, não causa estranhamento este aspecto d’O
Ateneu. Ao contrário, sublinha sua independência e originalidade e projeta-o
num futuro em que a escritura busca novas formas, contrapondo-se a
esquemas prévios. Neste sentido, O Ateneu é um dos nossos primeiros
romances modernos. (p. 209).
Partindo do comentário de Amaral, notamos que O Ateneu, ao buscar novas
formas e a originalidade quanto aos esquemas de montagem da narrativa, pode ser
considerado um romance moderno e uma escritura. Quanto à metalinguagem
presente neste romance, encontramos no capítulo XII, episódio final da obra, as
seguintes palavras:
E fora preciso que soubesse ferir o coração e escrever com a própria vida
uma página de sangue para fazer a história dos dias que vieram, os últimos
dias.
E tudo acabou com um fim brusco de mau romance...
Um grito súbito fez-me estremecer no leito; fogo! fogo! Abri violentamente a
janela. O Ateneu ardia.
[...]
Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras
recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião
passageira dos fatos, mas, sobretudo - o funeral para sempre das horas. (O
Ateneu, p. 212-213-218).
39
A última frase d‘O Ateneu aponta para a sua escrita impressionista, ao dizer
sobre a efemeridade dos fatos e sobre o funeral das horas, isto é, cada momento da
vida é insubstituível, restando-nos “vasculhar” a memória em busca das recordações
mais marcantes, aquelas que ainda vivem em nós.
A linearidade de Água Viva dissolve-se em proveito das impressões que
circulam e revelam as facetas da própria palavra poética, que se apresenta de
diferentes maneiras no texto, fragmentada tal como um caleidoscópio em suas
múltiplas imagens. Também como um caleidoscópio, o colégio O Ateneu torna-se
irreconhecível em seus “mil fragmentos irreconhecíveis de pedagogia sapecada”
depois do incêndio. Tal desastre representa a destruição do colégio que reunia a
hipocrisia, a ambição do diretor e a pedagogia. A destruição d’O Ateneu se
também no nível da própria obra, da própria escritura,
[...] que Pompéia ataca a retórica tradicional, sujeita a regras que
impedem a criatividade. Ao se desviar dessas regras e ao destruir, assim, a
retórica, ele está fundando a liberdade de sua própria escritura. (PEREIRA,
1988, p. 159).
Temos, em Água Viva, além das impressões, as reflexões sobre as
impressões, representando a razão construtiva do texto ao privilegiar o pensar sobre
o próprio texto que se escreve. O caráter metalinguístico de AV é uma força que
instiga um modo de escrever entre prosa-poesia, ao qual a autora se lança no afã de
encontrar uma escritura capaz de traduzir a sua consciência dilacerada sobre os
limites da palavra e da sua separação das próprias coisas pela mediação inevitável.
É a mesma angústia do poeta que Pignatari diz: “vive o conflito signo vs. coisa. Sabe
[...] que a palavra ‘amor’ não é amor – e não se conforma...”. (2005, p. 11).
O impressionismo escritural que emerge de Água Viva é uma escritura de
impressões, pois se volta para si mesma, por meio de uma chave metalinguística.
Mas antes de explicar o que é uma escritura de impressões entre a prosa e a
poesia, faz-se necessário entendermos o conceito de escritura, para nos
aventurarmos na definição deste novo modo de narrar inenarrável de AV.
O termo “Escritura”, amplamente abordado por Barthes, define um novo modo
de escrever, diferenciando-se de “Escrevência”. Na “escrevência”, quem escreve
(escrevente) escreve algo (transitividade). Na escritura, quem escreve (escritor)
40
simplesmente escreve (intransitividade). Isso significa que na escritura não
conteúdos definidos e/ou padronizados do que se quer escrever, porque as formas
transgressoras ganham mais importância do que os conteúdos; o corpo é mais
importante do que o conceito e as perguntas mais importantes do que as respostas.
Barthes (2007) afirmava que a língua é fascista, uma vez que não impede de
dizer, mas obriga a dizer, constatação inegável e reveladora de que o poder e a
repetição estão encarnados na linguagem. Assim, trabalhar com a linguagem torna-
se uma repetição de modelos prontos, de conteúdos pré-estabelecidos e um
proliferar de discursos arrogantes que impõem o saber. O que fazer, então?
O autor propõe algo inovador para “fugir” do autoritarismo da língua com seus
estereótipos alienantes: deslocar a linguagem de seus centros de poder, desviando-
a das funções que lhe são comuns, jogando com ela, trapaceando-a, subvertendo-a,
em vez de limitar-se a transmitir mensagens, saberes e/ou verdades absolutas. E
tudo isso dentro da própria língua, no caso, da língua literária ou escritura, pois para
Barthes, “o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da ngua que a
língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o
instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é o teatro”. (ibidem, p. 16).
A escritura inova e produz múltiplos sentidos que jamais são estáticos. O
texto se transforma em escritura quando é capaz de criticar a linguagem fazendo-a
entrar em crise, por meio de uma forma transgressora, que fuja ao lugar comum.
na escritura o prazer do texto, o desejo do corpo, de quem escreve e de
quem lê. Se houver o saber com sabor, teremos uma escritura. Barthes define
este saber saboroso da seguinte maneira: “Na ordem do saber, para que as coisas
se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras.
É esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo.” (ibidem, p. 20-21).
E não é na escritura que o texto se efetiva, mas na leitura, pois cada leitor que
a obra produz novos textos, com múltiplos sentidos. Seu corpo-leitor, imerso no
deleite do que lê, várias vezes levanta a cabeça, interrompe a leitura com
frequência, faz associações, excita-se no contato com o texto, reflete sobre as cenas
descritas, rememora cenas suas e, assim, diversas outras ideias afluem em sua
mente. Estes cortes, decorrentes do movimento que o corpo-leitor realiza, formam
uma nova história na mente do leitor e um novo texto se projeta.
41
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, o é apenas pedir e mostrar
que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais
radicalmente, levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva
da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser
entendido como uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto,
se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo
trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa
memória e nossa consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as
linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza
achamalotada das frases. (BARTHES, 2004, p. 29).
Com a “morte do autor”, ou seja, com o apagamento de sua voz, de seu
corpo, de sua origem, nasce a escritura. E é na leitura que a estrutura se
descontrola, ou seja, que os sentidos desta escritura se dispersam. O escritor
moderno desloca o autor de seu centro para que o significado do texto não seja
único, fechado, mas para que os diversos significados sejam encontrados em cada
corpo-leitor que reescreve o texto, pois
um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que
entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas
um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor,
como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita
uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu
destino [...]. (ibidem, p. 64).
Paz (1982) corrobora com Barthes quanto à disseminação de sentidos
durante a leitura esclarecendo que é na leitura ou na recitação que a recriação do
poema acontece, ou seja, o “o poema se realiza plenamente na participação: sem
leitor, a obra só existe pela metade.” (p. 48).
Esta leitura revelará “algo” ao leitor que não é da poesia. Aquele que lê
encontrará alguma coisa que estava dentro dele, revelação surpreendente e ao
mesmo tempo familiar, que fará o interlocutor recriar o instante original.
42
No entanto, o poema não é senão isto: possibilidade, algo que se anima
ao contacto de um leitor ou de um ouvinte. uma característica comum a
todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participação. Cada
vez que o leitor revive realmente o poema, atinge um estado que podemos,
na verdade, chamar de poético. A experiência pode adotar esta ou aquela
forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais, para
ser outro. Tal como a criação poética, a experiência do poema se na
história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história. [...] O poema é
mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num
momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se
alimenta a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra
grande semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas;
o poema faz do leitor imagem, poesia. (PAZ, 1982, p. 30).
A escritura, para Barthes, além de caráter de crítica da linguagem, possui
também função utópica, que consiste em desejar, incessantemente, outra economia
de linguagem, que revelará novos sentidos num constante deslocar-se. A literatura
é realista e irrealista ao mesmo tempo: realista por ter o real como objeto de desejo;
irrealista por acreditar ser sensato o seu objeto de desejo; que é impossível, por isso
o seu caráter utópico.
O texto que se escreve na escritura tem de desejar o leitor (flertar com ele),
num movimento corporal, mesmo sem sequer conhecer quem porventura lerá o
texto, sem saber efetivamente onde ele se encontra. O corpo do escritor se
movimentará e se inscreverá no texto (suas pulsões inconscientes) e o corpo do
leitor, durante a leitura, também realizará os seus movimentos. Cria-se um espaço
de prazer e a escritura “produz uma significação circulante que não é de tipo
informativo. A significância não tem nem ponto de partida nem ponto de chegada:
ela circula, disseminando sentidos”. (PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 44).
Barthes (2008) diferencia o prazer da fruição (gozo)
7
. O prazer é dizível,
confortável e vem da cultura sem romper com ela (textos clássicos e legíveis, por
exemplo). A fruição (gozo) é um texto não dizível, desconfortável (textos radicais da
7
Em O prazer do texto, tradução de J.Guinsburg, é utilizada a palavra fruição para traduzir
Jouissance. Leyla Perrone-Moisés, no posfácio do livro Aula, explica que fruição é uma palavra
inadequada no contexto teórico de Barthes, pois jouissance é uma palavra libidinal, no sentido sexual
do termo, expressão emprestada da psicanálise (Lacan). Em contrapartida, Guinsburg acredita que
fruição reproduz poeticamente a palavra original e que esta não encerra o sentido de gozo, embora a
palavra seja mais suave.
43
modernidade). O sujeito-leitor se perde no texto de fruição, entrando em crise com
relação à linguagem, no contato com esta escritura indefinível e sem respostas.
Se em Água Viva a palavra não quer representar, mas ser objeto, sensação,
massa tátil, sonora e visual, isto é, uma escritura gestual/sensorial que tende para o
não-dito, num corpo a corpo entre leitor e texto, perguntamos: como é possível esta
palavra poética se aproximar da “coisa”?
Pignatari (2005) nos explica, conforme a esclarecedora distinção de signos
realizada por Charles Morris, que o signo-para é o da prosa porque “conduz a
alguma coisa, a uma ação, a um objetivo transversal ou extraverbal, que está fora
dele.” O signo-de é o da poesia, “quando você começa a ver, sentir, ouvir, pensar,
apalpar as palavras”. (p. 11).
Melhor dizendo:
O signo-de pára em si mesmo é signo de alguma coisa quer essa coisa
sem poder sê-lo. Ele tende a ser um ícone, uma figura. É o signo da poesia.
[...] o signo-para é um signo por contigüidade, enquanto o signo-de é um
signo por similaridade. (op. cit.).
O autor nos leva a pensar na poesia como um ser de linguagem, concreto,
assim como Pound, quando associou poesia ao ideograma ao dizer que “o
ideograma significa a coisa, ou a ação ou situação ou qualidade, pertinente às
diversas coisas que ele configura.” (2006, p. 26).
E como é possível a linguagem apresentar e exercer a função poética?
Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce função poética
quando o eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contigüidade.
Quando o paradigma se projeta sobre o sintagma. Em termos de semiótica
de Peirce, podemos dizer que a função poética da linguagem se marca pela
projeção do ícone sobre o símbolo ou seja, pela projeção de códigos não-
verbais (musicais, visuais, gestuais, etc.) sobre o código verbal. Fazer
poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura). Figura é
desenho visual? Não. Os sons de uma tosse e de uma melodia também são
figuras: sonoras. (PIGNATARI, 2005, p. 17-18).
44
Se fazer poesia é transformar o símbolo em ícone, a linguagem poética pode
também aproximar-se da “coisa” tão almejada pelo poeta por meio da concentração
de sentidos que a poesia carrega em si.
Para Pound (2006), a poesia apresenta maior carga de energia e é “a mais
condensada forma de expressão verbal.” (p. 40). A condensação na poesia implica
uma linguagem carregada de sentido até o máximo grau, o que permite dizer o
máximo com um mínimo de palavras, resultando numa escrita concisa, saturada por
múltiplos sentidos. As palavras poéticas são carregadas de significado até o máximo
grau por três modos - fanopéia (projeção de imagens visuais sobre a mente),
melopéia (palavras impregnadas de propriedade musical) e logopéia (dança do
intelecto entre as palavras) que, num poema, ocupam graus variáveis e se
contaminam entre si.
De acordo com Paz (1982), é por meio da poesia que a linguagem retornará à
sua origem primitiva e o poeta se incumbirá de purificar a linguagem devolvendo-lhe
sua natureza original: seu verdadeiro ser. E as palavras, em liberdade, mostrarão
profundidade e sentido. O que acontecerá com as palavras ao se libertarem das
agruras da prosa e do discurso falado?
Palavras, sons, cores e outros materiais sofrem uma transmutação mal
ingressam no círculo da poesia. Sem deixarem de ser instrumentos de
significação e comunicação, convertem-se em “outra coisa”. Essa mudança
ao contrário do que ocorre na técnica não consiste em abandonar sua
natureza original, mas em voltar a ela. Ser “outra coisa” quer dizer ser a
“mesma coisa”: a coisa mesma, aquilo que real e primitivamente são. (p.
26).
O poema é dotado de sentido inseparável do ritmo, pois “aquilo que as
palavras do poeta dizem já está sendo dito pelo ritmo em que as palavras se
apoiam. E mais: estas palavras surgem naturalmente do ritmo, como a flor do caule.”
(1982, p. 70).
Também Valéry (1999) aponta para a questão da indissolubilidade entre som
e sentido na poesia, bem como entre a forma e o conteúdo, entre o poema e o
estado de poesia.
A partir do que Paz e Valéry esclarecem, conclui-se que o ritmo é inseparável
da forma poética. É também imagem e sentido e não está fora de nós, pois o ritmo
45
é vida humana, é temporalidade concreta, não abstrata. Então, a frase poética é
tempo vivo, concreto, é ritmo, tempo original e constantemente se recria e renasce.
O dizer poético é indizível. “Há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa;
só existe uma em poesia”. (PAZ, 2005, p. 48).
As palavras de Paz nos lembram da questão da tradução, pois, ao traduzir um
poema, de certa maneira, o tradutor está recriando o texto, uma vez que o poema
traduzido jamais será idêntico ao original. O que a imagem faz com as palavras? O
que acontece com a linguagem ao ser tocada pela poesia? Mais uma vez,
recorremos a Paz para responder estas indagações.
A imagem faz com que as palavras percam a sua mobilidade e
intermutabilidade. Os vocábulos se tornam insubstituíveis, irreparáveis.
Deixaram de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser um utensílio. O
retorno da linguagem à natureza original, que parecia ser o fim último da
imagem, é apenas o passo preliminar para uma operação ainda mais
radical: a linguagem, tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser
linguagem. Ou seja: conjunto de signos móveis e significantes. O poema
transcende a linguagem. [...] Nascido da palavra, o poema desemboca em
algo que a transpassa. (op. cit.).
A linguagem do poema é pura tensão, pois mostra o outro lado da fala: o
silêncio, o que não pode ser explicado, a não-significação, que é também o outro
lado da prosa. Enquanto o poema apresenta o objeto, a prosa o representa. A prosa
alude à realidade, o poema a recria. Não falta de sentidos no poema, mesmo
quando há o silêncio. De acordo com Paz “o próprio silêncio está povoado de
signos.” (1982, p. 23).
Paz usou a comparação esfera e linha como uma forma de explicar as
fronteiras entre prosa e poesia. O poema se apresenta como uma ordem fechada,
assim como a esfera ou o círculo, e a prosa tem tendência para manifestar-se como
uma construção aberta e linear. (ibidem, p. 83).
A prosa é aberta e linear porque segue para frente, a marcha do pensamento;
já a poesia é fechada, autossuficiente como um círculo, porque retorna a ela mesma,
num contínuo ir e vir rítmico objetivando retornar ao seu tempo original, numa
espécie de recriação do tempo arquetípico, conforme o pensamento analógico.
46
Paul Valéry (1999) diferencia a prosa da poesia por meio da correlação
entre o andar e a dança. A prosa implica apontar para uma meta fora de si e, assim
que o objetivo for atingido, a prosa desvanece; a poesia, à semelhança da dança,
fecha-se sobre si mesma por meio de repetições e retornos sobre o seu próprio
corpo. Segundo o autor, um contraste entre prosa e poesia, visto que, embora
elas se sirvam das mesmas palavras, o modo como vão coordená-las será diferente.
O poema não morre por ter existido, mas renasce sempre, reproduzindo-se em sua
forma, é o que afirma Valéry.
O que acontece quando nos deparamos com um texto que é classificado
como um gênero, mas na verdade poderia ser outro? Paz (2005) oferece exemplos
de textos em prosa que poderiam muito bem ser classificados como poemas, mas
não são assim classificados porque a distinção de metro e ritmo nos proíbe de assim
os classificarmos, tais como: Os Cantos de Maldoror, Alice no País das Maravilhas e
El jardin de los Senderos que se Bifurcam.
O que realmente acontece com estes textos?
Neles a prosa se nega a si mesma; as frases não se sucedem obedecendo
a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas pelas leis da
imagem e do ritmo. um fluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas,
sinal inequívoco da poesia. O mesmo deve dizer-se do verso livre
contemporâneo; os elementos quantitativos do metro cederam lugar à
unidade rítmica. (ibidem, p. 15).
Paz (1982) ainda esclarece que metro e ritmo não se confundem. Ritmo é
imagem e sentido, portanto, “ritmo, imagem e significado apresentam-se
simultaneamente numa unidade indivisível e compacta: a frase poética, o verso.” (p.
84-85).
Quanto ao metro, que é medida abstrata, pode apresentar-se vazio de
sentido, em si mesmo, independente da imagem. o ritmo não é medida e sim
conteúdo qualitativo, temporalidade concreta. Se dois poetas, por exemplo, usarem
o mesmo metro, ainda assim suas poesias serão diferentes, pois cada uma terá o
seu ritmo.
O autor acredita que não devemos reduzir a poesia às formas épica, lírica e
dramática, pois ela transcende. Existem romances, por exemplo, que simplesmente
são carregados de poesia, são os chamados poemas em prosa ou prosa poética. De
47
acordo com o pesquisador, “todas as atividades verbais, para não abandonar o
âmbito da linguagem, são susceptíveis de mudar de signo e se transformar em
poemas: desde a interjeição até o discurso lógico.” (PAZ, 1982, p.17).
Este é o caso de Água Viva, que pode ser considerado um poema em prosa,
por ser autossuficiente, inenarrável, irrepetível, cujas palavras são coisas e o que
impera são as imagens e o ritmo e não uma ordem temporal dos acontecimentos.
Quanto à imagem, explica-nos Paz que: “é toda forma verbal, frase ou
conjunto de frases que o poeta diz e que unidas compõem um poema.” (2005, p.
37). A imagem simplesmente diz o indizível e se dissermos que as plumas leves são
pedras pesadas, temos nesta frase um significado contrário, aproximação de
realidades opostas entre si, mas isso é possível porque o sentido da imagem poética
está nela própria; na prosa, uma frase pode ser explicada por outra frase, num
circuito que avança em direção a alguma meta que está à frente.
A prosa sofre mais do que a poesia, tensão entre imagem e conceito, pois
no poema a imagem sempre triunfará ao abraçar os contrários sem destruí-los. A
prosa, por sua vez, ao necessitar do conceito sofre mais do que a poesia porque, ao
abraçar os dois contrários, trava uma luta entre as duas instâncias.
A partir desta rede teórico-crítica, buscaremos estudar agora o sentido de
uma “escrita de impressões, para nos referirmos a Água Viva como uma escritura
singular que guarda aproximações e diferenças com a prosa impressionista de fins
do século XIX.
Em Água Viva, o Instante-já é capturado por meio da palavra e ganha sua
importância no texto por meio de uma escritura de impressões, de caráter
inacabado, por vezes sensual e insinuante, nunca reveladora de verdades fixas e
repleta de lacunas para que o leitor possa preenchê-las no gozo de sua leitura.
Sendo uma escritura poética e pautada no aqui e agora, Água Viva subverteu
os elementos tradicionais de um texto narrativo, mostrando-se como uma escritura
de impressões, que implica o lançamento de sentimentos, impressões, sonhos,
sensações, delírios, pesadelos, pensamentos e observações do “eu” escritural, num
jorrar poético que pretende capturar o aqui e o agora por meio da palavra, em
anotações instantâneas e fugazes que vão compor a tela-texto deste livro-pintura
ritmado como uma poesia.
As anotações de instantes o uma forma de subverter a narrativa tradicional
e formam no texto manchas que revelam a circularidade escritural e a quebra parcial
48
da linha do texto, que os temas (morte, vida, escrita, pintura, música, amor, eu,
tempo etc.) se repetem. O enredo tradicional da narrativa é substituído em Água
Viva por borrões na escritura que tentam contar algo à sua maneira, isto é, uma
tentativa de dizer aquilo que não pode ser recontado por ninguém, nem pelo próprio
“eu”, pois significaria alterar a escritura moldada nos instantes-já: única, irrepetível e
insubstituível.
Diante de tantas deformações, o leitor não consegue entender imediatamente
o que o eu-texto lançou, impedindo-o de recontar a história. Nesse sentido, a noção
de escritura se fortifica ainda mais, pois Clarice Lispector realizou uma crítica à
linguagem, questionando-a, desestruturando-a, escrevendo como uma tentativa de
captar o que é impossível. A linguagem é colocada em crise e o leitor, diante de
tantas manchas textuais, acaba por criar um novo texto durante a sua leitura, que
é impossível retomar com exatidão o que foi “contado” pelo “eu” enunciador. É uma
crítica ao fazer literário e ao trabalho de composição textual em que o escritor se
debruça, incansavelmente, em busca das palavras certas que lhe escapam. A
metalinguagem presente em Água Viva assume uma dimensão utópica da
linguagem, uma vez que o “eu” textual possui o ideal de recuperar todas as palavras
que fluem na mente, buscando a liberação da angústia do ato de escrever, que as
frases não mais lhe escapariam.
A escritura de impressões é tecida por este “eu” escritural que precisa
registrar algo a alguém, mas não quer um mero registro. Este registro é e o
representa, ou seja, pretende ser o aflorar de uma espécie de “estado poético”,
como diz Valèry, que este “eu” joga para fora de si, em direção a outrem,
exatamente como saem de seu pensamento, ou até mesmo, atrás de seu
pensamento, expressão muito usada em AV e que alude aos conteúdos
inconscientes do ser humano. O texto pretende ser um “isto” e não um registro
representativo, mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, ao se alçar ao plano
metalinguístico estará envolvido com os conceitos, ou, como esclareceu Pignatari é
a “linguagem que se usa para analisar”. (2005, p. 48).
O material lançado nesta escritura de impressões de Água Viva o é de
fácil classificação, devido ao caráter caleidoscópico das palavras que o “eu”
escritural oferece ao leitor, confundindo aquele que lê. O leitor percebe que na
escritura-poesia de Água Viva as palavras ora são dizíveis, ora o puro silêncio e
esta ambiguidade contamina os sentidos: o confronto entre a linha e a entrelinha
49
provoca reflexões intermináveis e múltiplos textos são formados na mente de cada
leitor que se depara com Água Viva.
A escritura de impressões é a única saída para o “eu” escritural que se
desespera diante das palavras e precisa mergulhar em sua matéria, almejando a
essência dela e por isso excursionará em uma experiência inovadora. A verdade
dilacerante para este “eu” é que as palavras o inalcançáveis e fugidias. Mas para
fixar o instante-já é necessário usar palavras, mesmo que sejam insuficientes para
exprimir o exato do momento. Por que não tentar? uma tentativa e uma luta com
a vibração da palavra, pois ao passo que a palavra aparenta ser fascinante, ela é
estranha e escorregadia. uma entrega total do “eu” às palavras a tal ponto que,
em determinado momento do livro, o “eu” chega a ser a própria palavra e o seu eco,
tamanho é sua entrega ao objeto de desejo, de busca, de angústia.
É necessário quebrar os estereótipos para que a linguagem entre em crise e
para que nasçam novos sentidos, novas possibilidades textuais, por isso este eu-
enunciador de Água Viva vai se transformando em outros no decorrer das
anotações desta escritura de impressões. O lugar-comum simplesmente não existe
em Água Viva, percebemos isso pelas evocações inéditas que são inseridas, frases
que surpreendem e desestabilizam o leitor, como um poeta que transcende os
limites de sua linguagem, como dizia Paz (1982).
Escrever no exato momento é uma experiência de prazer para este “eu” no
contato íntimo com as palavras, todavia o autor nem sempre consegue captar o que
lhe vem de maneira exata, pois algumas palavras fogem, escapam. Esta fugacidade
das frases quebra o prazer que emana do “eu” no contato com o texto e gera uma
terrível angústia e a seguinte reflexão: por que as palavras não são as coisas?
Prazer e angústia fazem parte do percurso escritural do “eu” nesta nova maneira de
expressar-se, num jogo que aparenta ser interminável entre impressões e reflexões
sobre as impressões.
Por fim, dizemos que qualquer estilo escolhido para explicar Água Viva o
daria conta de desfolhar, sozinho, todas as pétalas textuais, justamente porque AV é
um texto movente, cuja classificação é difícil de ser delineada e cuja intenção do
“eu” textual é justamente não ser apanhado por gêneros, pois estereótipos limitariam
a sua produção. Concordamos com Helena (2006) quando diz sobre AV que “seria
um empobrecimento assim rotular-lhe a obra ou procurar lê-la segundo parâmetros
conhecidos, querendo nela reencontrar estilos e estratégias bem realizados no
50
passado.” (p. 90). Fica, então, a nossa sugestão de escritura de impressões como
uma possível definição para Água Viva.
51
CAPÍTULO III - Água Viva: uma escritura de impressões entre prosa
e poesia
Minha palavra estala no espaço do dia. (Água Viva)
É curiosa a sensação de escrever. Ao escrever o penso nem no leitor
nem em mim: nessa hora sou mas de mim sou as palavras
propriamente ditas. (Um sopro de vida)
Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções porque em
tais períodos faço tudo para que as horas passem; e escrever é prolongar o
tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma
vida insubstituível. (Clarice Lispector)
Os fluxos de palavras-imagens em Água Viva duram o tempo breve da
percepção, por isso não conseguimos memorizar o seu conteúdo. Podemos ler este
texto milhares de vezes e ainda assim, não seremos capazes de contar a história a
alguém. O que fazer então para analisar AV?
Percebemos que em AV, a poesia entra em confronto com a prosa, ou seja, a
tentativa de criar uma linha, de contar algo, entra em tensão com a escrita
metafórica, poética e dançante do texto. Como recolher histórias neste fluxo? Como
compreender o que o eu-texto diz entre as massas de sensações que o
pinceladas na tela-texto? E como apreender significados diante de tantas
impressões entre o ir e vir do círculo e a progressão da linha?
Água Viva constrói um novo modelo de escrita, que é a escritura de
impressões entre prosa e poesia, conforme esclarecemos no capítulo anterior.
Também pudemos conferir as diferenças e as semelhanças entre a obra e a prosa
impressionista do século XIX. Neste capítulo, analisaremos o livro à luz das
hipóteses que foram delineadas na introdução.
A escritura de impressões é uma estratégia encontrada pelo eu-texto a fim
de expressar a sua angústia, própria de um poeta e, ao mesmo tempo, tentar criar
uma linguagem que é e não que seja uma representação das coisas, comovimos.
Esta escritura se fará de modo circular em avanços e retornos ao redor de seu
próprio corpo, feito uma dança à semelhança da poesia, mas sem abolir totalmente
52
a linha, ou seja, o seu caminhar, que quer avançar e criar uma continuidade em
direção a um outro a quem se dirige e espera um espaço de acolhimento e escuta.
Se fôssemos diagramar a escritura de impressões de Água Viva, diríamos
que dentro dela inscrevem-se focos estruturais oscilantes entre prosa-poesia e que
se contaminam reciprocamente, a saber: O “eu” e a cena da escrita no percurso
água; as instâncias do “tu” a quem o texto se dirige e o tempo-espaço entre os
retornos do círculo e a progressão da linha. Tais aspectos poderiam compor um
diagrama que corporificasse o sentido da escritura de impressões da seguinte
forma:
O centro de raiz é a própria escritura de impressões, estratégia para capturar o
instante-já e uma tentativa para resolver as angústias diante da linguagem, cujo foco
do eu é a palavra.
Como podemos visualizar no diagrama, a escritura de impressões entre prosa-
poesia é a responsável por esta nova forma de narrar sem narrar e de fazer poesia
sem versos. Pretendemos redefinir esta forma escritural de Água Viva dilacerada e
53
dissolvida em fluxo, em água. Esta prosa-poesia-impressionista coloca em tensão e
desestabiliza os demais centros da estrutura tradicional de uma narrativa.
Ao atentarmos para a gênese de Àgua Viva, perceberemos que houve um
árduo percurso para transformar o texto durante três anos. Objeto Gritante foi
remodelado e se transformou em Água Viva. A partir destas informações, sabe-se
que o texto não foi escrito de um fôlego como aparenta ser, porém, a intenção é
justamente mostrar isso: uma escritura de impressões, uma forma transgressora
quanto à classificação para deixar o texto nuançar-se de modo espontâneo, como se
fosse um lançar ininterrupto dos pensamentos, na busca angustiada do criador (o
eu-escritural) pelo “é” das coisas, no seu presente instantâneo e puro, não
contaminado ainda pelo fluxo ininterrupto do tempo e da representação inevitável.
3.1. O “eu” e a cena da escrita no percurso água
Aqui nos questionamos: quem é que narra em Água Viva? É um eu sem
nome, um eu que é textual, portanto, eu-texto. Percebemos nesse sujeito que narra
uma assinatura autoral contaminada e dissolvida pela voz anônima do texto.
Percebemos também que esse eu quer conosco ‘jogar’, escondendo-se e
regozijo nisso, ou seja, prazer em trapacear. O sujeito perde-se em seu gozo, numa
linguagem que é subvertida. Percebemos isso no seguinte trecho:
[...] eu mesma estátua a ser vista de longe, eu que estou sempre me
perdendo. Estou fruindo o que existe. Calada, aérea, no meu grande sonho.
Como nada, entendo então adiro à vacilante realidade móvel. O real eu
atinjo através do sonho. Eu te invento, realidade [...]”. (AV, p. 68, grifos
nossos).
Esta nova forma inventada é uma armadilha da linguagem montada pelo eu-
texto, no sentido barthesiano. Como tentar entendê-la? Perrone-Moisés responde:
A convicção de Barthes expressa na Aula é de que a língua deve ser
combatida e desviada do interior, por gestos de deslocamento. Assim,
Barthes desloca as palavras, desfocaliza significantes, desnivela a
enunciação, marginaliza o discurso institucional, submetendo o terreno
54
lingüístico a breves, mas constantes sismos. E esses leves abalos fazem
oscilar o sujeito pleno no discurso logocêntrico, colaborando para que um
novo sujeito aflore na História, liberto do imaginário (discurso, ideologia)
que, por enquanto, o lastreia e entrava esse é o alcance político (no sentido
largo) e a dimensão utópica da obra barthesiana. (2007, p. 69).
O sujeito inominável de Água Viva trapaceia com a língua, encena e joga
com ela. Afirma, reafirma, nega, renega, teima e se desloca, difícil entendê-lo porque
não obedece a uma regra de estruturação fixa e vai movimentando-se no fluxo. Este
sujeito é livre para criar e, criando a sua própria estrutura, insere novas
significações, novos valores e sabores no tecido movente. As palavras de AV
assumem vida própria, numa linguagem saborosa, significativa, adotando um caráter
de encenação, conforme as explicações de Perone-Moisés:
O fingimento, a encenação, são os únicos meios de o sujeito se processar
na escritura. A “heteronímia” generalizada que, segundo Barthes, a escritura
institui “no seio da língua servil”, atinge primeiramente o sujeito da
enunciação. Teatro e escritura são inseparáveis. (ibidem, p. 88).
Este “eu” barthesiano poderia até ser comparado ao “eu” poético, assim como
os poetas, ele explora, nas palavras, suas conotações, suas ambigüidades,
a “cintilação do sentido” mais do que o sentido. A palavra é para ele um
objeto sensual, núcleo de onde pode expandir-se todo um movimento
textual ou, inversamente, concentração ideal, lugar onde se condensa todo
um pensamento. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 73).
Os fragmentos de Água Viva comprovam que o “eu” escritural de fato é um
eu-texto e não um eu autobiográfico, conforme podemos verificar no quadro a
seguir:
Eu
-
texto
Eu não autobiográfico
1) “Entro lentamente na escrita assim como
já entrei na pintura.” (AV, p 14).
1) “Na hora de pintar ou escrever sou
anônima. Meu profundo anonimato nunca
ninguém tocou.” (AV, p. 32).
2) [...] e sufoco porque sou palavra e
também o seu eco.” (AV, p. 15).
2) “Muita coisa não posso te contar. Não vou
ser autobiográfica. Quero ser bio.” (AV, p.
55
33).
3) “Encarno-me nas frases voluptuosas e
ininteligíveis que se enovelam para além
das palavras. E um silêncio se evola sutil do
entrechoque das frases.” (AV, p. 20).
3) “Só não conto os fatos de minha vida: sou
secreta por natureza.” (AV, p. 41).
4) “Eu, obra anônima de uma realidade
anônima justificável enquanto dura a
minha vida. E depois? depois tudo o que vivi
será de um pobre supérfluo.” (AV, p. 21).
4) “Sou explícita? Pouco se me dá. Agora
vou acender um cigarro. Talvez volte à
máquina ou talvez pare aqui mesmo para
sempre. Eu, que nunca sou adequada.” (AV,
p. 50).
5) “Nesse âmago tenho a estranha
impressão de que não pertenço ao gênero
humano.” (AV, p. 27).
5) “Repare que não menciono minhas
impressões emotivas: lucidamente falo de
algumas das milhares de coisas e pessoas
das quais tomo conta. Também não se trata
de emprego pois dinheiro não ganho por
isto. Fico apenas sabendo como é o
mundo.” (AV, p. 56).
6) “[...] eu tenho o impessoal dentro de mim
e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal
que às vezes me encharca: mas seco-me ao
sol e sou um impessoal de caroço seco e
germinativo. Meu pessoal é húmus na terra
e vive do apodrecimento. Meu “it é duro
como uma pedra-seixo.” (AV, p. 28).
6) “Tomo conta para não me ultrapassar.
nisto tudo aqui grande contenção”. (AV, p.
76).
7) “E logo elástica pulei da cama. Vim te
escrever. Quer dizer: ser.” (AV, p. 33).
8) “E eis que te faço perguntas e muitas
estas serão. Porque sou uma pergunta.”
(AV, p. 36).
9) “Não tenho estilo de vida: atingi o
impessoal, o que é tão difícil.” (AV, p. 43).
Os trechos da primeira coluna nos mostram que o eu-texto é impessoal e não
pertence ao gênero humano, tornando-se pessoal poucas vezes e quando isto
acontece, ele apodrece: “Meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento.”
(AV, p. 28). E, sendo um eu-texto, revela ao leitor que não pode se resumir: “Não me
posso resumir porque o se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma
56
cadeira e duas maçãs. E não me somo.” (AV, p. 67). E quanto ao “eu” não
autobiográfico?
A frase “Não há arte que o aponte sua máscara com o dedo.”, presente no
livro O grau zero da escritura, de Roland Barthes, foi escolhida por Clarice
Lispector para compor uma das epígrafes de Objeto Gritante, projeto de escritura
que não chegou a ser publicado, como vimos no primeiro capítulo referente à
gênese de Água Viva. A epígrafe parece apontar algo importante para a nossa
análise, que não podemos ignorar o percurso de AV, o labor com as palavras e o
que realmente esta frase poderia significar mesmo após a sua exclusão.
A origem de AV nos mostrou que Clarice Lispector escreveu alguns dados
que pareciam ser autobiográficos em Objeto Gritante, coincidências que apontam
para o cotidiano e para os dados pessoais da escritora. Os cortes, os acréscimos e
as substituições realizados, na tentativa de apagar a escritura anterior e elaborar
outra, podem revelar que Lispector, ao passo que não queria suas nuanças e
segredos sendo descortinados pelos leitores, tinha consciência de que a entrelinha
poderia revelar algo e que, portanto, a máscara usada poderia apontar para ela
mesma, em dados momentos do texto.
Água Viva é um texto mutilado, fragmentado, nascido de outros textos,
gerado de outras tentativas e, nas mãos de sua criadora, foi remodelado tal como
um boneco de barro que vai se formando conforme os diferentes toques dos dedos e
mãos inventivos. Mas em algumas linhas e nas entrelinhas ficaram o que se poderia
chamar de biografemas, termo usado por Barthes e que significa “pequenas
unidades biográficas.” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 9).
Lispector aproveitou em Água Viva muitos trechos de suas crônicas para o
Jornal do Brasil. Sobre esta questão de reaproveitar os próprios textos, “plagiando-
se”, Lispector confessou em carta ao filho Paulo:
Continuo trabalhando forte para Manchete. As crônicas no Jornal do Brasil
não me preocupam porque tenho um punhado delas, é só escolher uma e
pronto. Além do mais eu pretendo me “plagiar”: publicar coisas do livro A
legião estrangeira, livro que quase não foi vendido porque saiu quase ao
mesmo tempo que o romance, e preferiram este. (LISPECTOR, 2002, p.
276).
57
Constatamos que Clarice não se mostrou autobiograficamente nas páginas de
Água Viva pelas mudanças ocorridas na gênese do texto, nas alterações
cuidadosamente selecionadas pela escritora e também porque o “eu” de Água Viva
é um eu-texto, conforme comprovamos por meio dos trechos que constam do
quadro eu-texto X eu o autobiográfico. Podemos apreender sobre a relação da
escritora com a escrita, sobre o modo como a escrita se fazia em sua vida, mas não
sobre sua vida pessoal, talvez possamos encontrar ressonâncias que não
comprovam que se tratava dela própria, mas que sugerem aproximações, ficando ao
nosso encargo de leitor curioso e atento a possível relação, pois
o biografema é o detalhe insignificante, fosco; a narrativa e a personagem
no grau zero, meras virtualidades de significação. Por seu aspecto sensual,
o biografema convida o leitor a fantasmar; a compor, com esses
fragmentos, um outro texto que é, ao mesmo tempo, do autor amado e dele
mesmo – leitor.” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 15).
Nas dobras do eu-texto entram também os biografemas que nos remetem a
estes fragmentos de Clarice Lispector sobre a sua angústia de escritora ao escrever;
uma mulher sempre agonizada com o trabalho de composição textual: a alegria
estava nas anotações soltas e o martírio se fazia na hora em que Clarice precisava
organizar todo o material. Em correspondências pessoais e em suas crônicas
publicadas no Jornal do Brasil, Clarice Lispector revelou muitas de suas impressões
pessoais e reflexões profundas sobre a arte de escrever, até mesmo suas angústias
e alegrias referentes às incertezas deste processo. Estas informações clareiam em
Água Viva como biografemas.
A preocupação em não se mostrar como um “euempírico também aparece
em algumas de suas missivas trocadas com o amigo Lúcio Cardoso:
[...]
como eu
tenho medo de usar minhas próprias palavras, de me explorar
[...]
”. (LISPECTOR,
2002, p. 42). Também revelou em entrevista datada de 1976 as seguintes
informações: “Porque eu não escrevo como catarse, para desabafar. Eu nunca
desabafei num livro. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si.”
(LISPECTOR, 2005, p. 155).
Clarice confessou em uma de suas crônicas que não se delatava nos
romances. “Estes não são autobiográficos nem de longe, mas fico depois sabendo
58
por quem os que eu me delatei”. (LISPECTOR, 1999, p. 78). Mas havia um
paradoxo nisso, confessado pela própria escritora, pois
[...] lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, o desejo
intenso de me confessar em público e não a um padre. O desejo de enfim
dizer o que nós todos sabemos e, no entanto, mantemos em segredo como
se fosse proibido dizer às crianças que Papai Noel não existe, embora
sabendo que elas sabem que não existe. (LISPECTOR, 1999, p. 78-79).
Clarice queria a “coisa em si”, ou seja, a palavra materializada. Quando
criança, “pensava que livro era como árvore, como bicho coisa que nasce. Não
sabia que havia um autor por trás de tudo. Quando descobriu disse: ‘Eu também
quero.’. ” (BORELLI, 1981, p. 66).
Em outra carta direcionada a Lúcio Cardoso, Lispector fala sobre este mesmo
assunto: “O fato é que eu queria escrever agora um livro limpo e calmo, sem
nenhuma palavra forte, mas alguma coisa real - real como o que se sonha, e que se
pensa uma coisa real e bem fina”. (LISPECTOR, 2002, p. 41-42).
Sobre uma escrita instantânea como é Água Viva, Clarice também se
pronunciou em uma carta sem data a Lúcio Cardoso: “Eu queria fazer uma história
cheia de todos os instantes, mas isso sufocava o próprio personagem. Acho mesmo
que meu mal é querer ter todos os instantes. Que eu estou idiota, você não precisa
dizer, sei bem...”. (LISPECTOR, 2002, p. 62). muito a autora vinha se
interessando pelos instantes, mas possuía consciência de que este tipo de escritura
“sufocaria” a personagem, e de fato em AV nos deparamos com a complexidade
que é o eu-textual, não tendo ele nenhum vínculo com o modo tradicional de ser de
uma personagem.
Segundo nos esclarece Borelli (1981), escrever era um experimento na vida
de Clarice, semelhante a um cientista que
experimenta, testa, comprova ou refuta suas hipóteses quando as submete
ao rigor de seu método e sua teoria. Nela, a matéria a pesquisar eram os
sentimentos, as sensações, as intuições provocadas pelo simples fluir da
vida. Seu único método: manter-se perplexa, em ‘estado de pergunta’, no
oco da vida.” (p. 67)
.
59
A escritura de impressões, em seus clarões instantâneos, poderia ser uma
metáfora da memória fotográfica da própria escritora, pois Lispector registrava os
fatos observados captando os detalhes das cenas. Borelli (1981) aqui novamente
nos elucida:
Sua memória era fotográfica, instantânea, registrando ininterruptamente
tudo. Assim, o mais vulgar movimento do mundo, como um simples
estender de mãos esmolando, ou o regaçar de uma calça expondo uma
ferida, juntavam-se em sua mente a mil outros fragmentos de visões, até o
momento em que, diante da máquina de escrever, ‘via’ nitidamente, por
exemplo, um conto inteiro, acabado e pronto a partir de uma dessas
imagens. (p. 70).
Voltando ao eu-texto e fazendo-o reverberar para os biografemas, nota-se
que apresenta várias dobras, por isso é difícil defini-lo, “Inútil querer me classificar:
eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.” (AV, p. 12-13).
Ou como Clarice escreveu em uma de suas crônicas: “Nestes momentos de agora
mesmo estou vivendo tão leve que mal pouso na página, e ninguém me pega
porque dou um jeito de escorregar. Tive que aprender.” (LISPECTOR, 1999, p. 398).
Mesmo escorregando e não querendo ser pega, é possível capturar os
biografemas de AV no que se refere a angústias, dores e alegrias de Lispector frente
ao ato de escrever. O eu-texto e os biografemas contaminam-se no texto,
semelhante à poesia que faz as vozes se contaminarem.
De acordo com Paz (1982)
O ato de escrever poemas se oferece a nossos olhos como um nó de forças
contrárias, no qual nossa voz e a outra voz se enlaçam e se confundem. As
fronteiras se extinguem: nosso discorrer se transforma insensivelmente em
algo que não podemos dominar totalmente; e nosso eu cede lugar a um
pronome inominado, que não é inteiramente um tu ou um ele. Nessa
ambigüidade consiste o mistério da inspiração. (p.194).
As facetas fugazes do eu-texto são inúmeras para fugir, escapar e assim
jogar com o leitor, a saber:
1) eu-texto; 2) barata; 3) bicho de cavernas (ecoantes); 4) palavra e seu eco;
60
5) tempo; 6) obra (anônima); 7) rainha dos medas e dos persas; 8) (lenta) evolução;
9) luminosidade (obscura); 10) morte; 11) Diana, a caçadora de ouro;
12) entidade (elástica) e separada de outros corpos; 13) não humano;
14) pessoal e impessoal; 15) coração batendo no mundo; 16) coração da treva;
17) mundo; 18) inconsciência; 19) não-autobiográfico; 20) vida (bio); 21) it (coisa);
22) pergunta; 23) árvore que arde com duro prazer; 24) tu;
25) fruta roída por um verme; 26) luz de lamparina acesa;
27) feiticeira dessa bacanal muda; 28) hoje; 29) estátua a ser vista de longe;
30) espelho; 31) máquina de escrever; 32) objeto; 33) objeto sujo de sangue;
34) objeto (urgente); 35) objeto (gritante).
Além desta classificação que inserimos aqui (facetas do eu-texto) também é
possível classificar este eu por meio da adjetivação encontrada no corpus, vejamos:
1) ecoante; 2) anônima; 3) sozinha; 4) orgânica; 5) obscura; 6) implícita; 7) viva;
8) misteriosa; 9) caleidoscópica; 10) coerente; 11) secreta; 12) inocente;
13) ingênua (porque se entrega sem garantias); 14) inadequada; 15) inquieta;
16) áspera; 17) desesperançada; 18) intrinsecamente má;
19) boa (por pura bondade); 20) calada; 21) gritante; 22) aérea;
23) exposta às intempéries; 24) dura; 25) mole; 26) elástica, etc...
A personagem e o enredo encontram-se contaminados na ação de escrever
de Água Viva, assim como o sujeito que narra acaba sendo também a personagem
e faz parte da constituição do próprio enredo, numa escrita dramática, porque é a
encenação da própria língua, em suas convulsões e confrontos internos, no sentido
barthesiano, conforme verificamos as várias posições assumidas pelo eu-texto,
tornando-se difícil classificá-lo ou mesmo resumir o que acontece em AV.
No desenrolar do texto, uma impressão vai conduzir o eu-texto a outra
impressão e assim sucessivamente. “Um instante me leva insensivelmente a outro e
o tema atemático vai se desenrolando sem plano, mas geométrico como as figuras
sucessivas num caleidoscópio.” (AV, p. 14). Instaura-se com isso um enredo
completamente diferenciado, onde a nova forma criará o conteúdo.
Aqui, o enredo, na verdade, não é uma história a ser narrada, mas são “os
nós” de impressões sensoriais que avançam e se sucedem em torno de algumas
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constantes temáticas como: alegria, medo, instante-já, tempo, silêncio, segredo,
liberdade, palavra, música, amor, Deus, it, vida, morte, escrita, pintura, eu, tu,
nascimento, dor, etc. Estes “nós” de impressões entrelaçam-se nas linhas textuais
(verticais e horizontais), deixando marcas, amarras que criam vínculos inseparáveis.
Tais ligas barram a sequência temporal cronológica do texto e constituem o
conteúdo das anotações soltas que foram lançadas na escritura de impressões em
Água Viva. Alguns dos “nós” se destacam mais e aparecem com maior frequência,
outros aparecem menos, mas não deixam de ter importância no corpo do texto.
Estes temas retornam numa repetição obsedante e circular, num ritmo cíclico:
“Escrevo redondo, enovelado e tépido, mas às vezes frígido como os instantes
frescos, água do riacho que treme sempre por si mesma.” (AV, p. 11).
À medida que as conexões constituem o enredo também se materializam e
atuam como personagens, numa espécie de personas-sensações que ganham vida
no texto. Enredados entre si, os “nós” de impressões condensam imagens-sons-
sentidos.
Vieira (1998), em seu livro Clarice Lispector uma leitura instigante, estudou
sobre o paralelo entre a existência e a criação literária na obra clariceana e nos
explica que
Ao realizar uma comparação entre as questões existenciais de suas
personagens e as questões inerentes ao fazer literário, o texto clariceano
ultrapassa o simples contar de uma história para flagrar um processo.
Temos, então, a “ficcionalização” do curso da criação literária.
Ao “ficcionalizar” o ato de escrever, todos os elementos envolvidos na obra,
como autor, narrador, leitor, são “ficcionalizados” e tornam-se
“personagens”. (p. 18).
Entende-se, pelos apontamentos de Vieira (1998), que os elementos da
narrativa o ficcionalizados por conta da metalinguagem que, como a própria
pesquisadora diz: “permite que o autor, o narrador e o leitor, assim como próprio
texto, sejam personagens.” (p. 58). Ou seja, deste processo reflexivo sobre o próprio
texto que se faz vão surgindo as demais personagens “ficcionalizadas”, de modo
que “as questões literárias se cruzam com as questões existenciais.” (p. 58).
Segundo Segolin,
(1978, p.73-81 citado por VIEIRA, 1998, p. 58), “a ação é
assumida pelo texto que tece a trama textual metalinguisticamente, enquanto as
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personagens anulam-se, relegadas a segundo plano.” Segolin refere-se à
funcionalização perdida pelas personagens, presente em muitos tempos modernos.
Para entendermos esta alteração quanto à forma de um enredo, encontrada
em AV, trazemos à baila as palavras de Perrone-Moisés (1983), que nos esclarece
como se instaura a forma que se faz conteúdo na escritura barthesiana.
Na escritura não temos idéias ou pensamentos; temos idéias-palavras,
pensamentos-palavras, onde a forma não exprime, mas faz o conteúdo. A
escritura, diferentemente do estilo, não se presta à análise tópica. Podemos
mostrar as técnicas que fazem um bom estilo, mas não podemos isolar
aquilo que transforma um bom estilo em escritura. (p. 54).
Algumas paisagens, pessoas e outros itens desfilam diante dos olhos do eu-
texto, que vai fotografando cada instante com o olhar e recupera tudo isso pela
escritura, lançando no texto todo o material que observou/fotografou. Sobre esta
questão do olhar na obra clariceana em geral, Kadota (1995) nos esclarece que
Toda busca em Clarice é feita através do olhar, semelhante a um fotógrafo
e sua câmera. Com ele, Clarice cristaliza o instante. Para o fotógrafo, um
leve toque e ... clic. Um instante do mundo sensível é retido com toda a sua
magia no mecanismo da câmera escura. Para o olhar de Clarice, também,
em relação à escrita, num processo de inversão reflexiva da informação
“luminosa”. Momento único em que a pulsão interior predomina e aquele
que escreve fisga um recorte privilegiado do cosmo, e com esse ato se
inscreve na leitura desse mundo, eternizando-o, pela mensagem que
veicula; a sua mensagem. É o “flash” de Clarice (“epifana”, segundo Olga de
Sá), e o seu olhar pleno de significado, cuja omissão das palavras se traduz
não no prazer estético da criação, mas em um registro insólito dos fatos,
rarefeitos pela descontinuidade, através de uma pluralização dos
significantes. (p. 15).
As formas das coisas são concebidas pela luz e o pelas linhas no
impressionismo. Em AV, o olho e a mente que tudo capta/fotografa, para depois
escrever ao correr da mão e dos pensamentos, simplesmente está se importando
mais com o fulgor das palavras do que com a linearidade delas, ou seja, importa
mais o fluir das frases do que o seu começo-meio-fim, o que nos lembra as palavras
63
de Perrone-Moisés (2007) sobre a “cintilação do sentido” (p.73)
ter mais validade do
que o próprio sentido na escritura barthesiana.
As cenas de AV nascem instantâneas do pensamento e são captadas pelo
eu: “Com esta frase fiz uma cena nascer, como num flash fotográfico.” (AV, p. 21).
Acontece que esse eu perde o controle do que capta e se desespera: “Só que aquilo
que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o
desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar.” (AV, p.
15).
O que interessa ao eu-texto de Água Viva é uma escrita que almeja ser
concreta, algo parecido com a pintura ou com um objeto artístico.
Ao escrever o posso fabricar como na pintura, quando fabrico
artesanalmente uma cor. Não pinto idéias, pinto o mais inatingível “para
sempre”. Ou “para nunca’, é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E
antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com
a mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo de
fruta [...] (AV, p. 12, grifos nossos).
A palavra em Água Viva é indizível e dizível. Metaforicamente no texto, a palavra
pode ser corpórea e tocável/palpável como quem toca/pega um objeto. Quando
tocada, a palavra transforma-se em coisa-palavra, palavra-objeto, pesada e dura.
Quando o eu escritural cai em si e percebe que a palavra é intocável gera frustração
e angústia. E esta agonia é tão intensa que o ‘eu’ questiona se deve continuar ou
não o seu jorrar escritural de impressões.
Fiquei de repente tão aflita que sou capaz de dizer agora fim e acabar o que
te escrevo, é mais na base de palavras cegas.
[...]
Bem sei que terei de parar. Não por falta de palavras, mas porque estas
coisas e, sobretudo, as que penso e o escrevi não se dizem. (AV, p.
51-78).
Esta sensação angustiante de assumir a impotência da palavra pode
encontrar fundamento na explicação de Paz no que diz respeito ao poema puro,
desejo do eu-texto.
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Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria literalmente
indizível. Ao mesmo tempo, um poema que não lutasse contra a natureza
das palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus
significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível,
permaneceria simples manipulação verbal. (1982, p. 225).
O poema é um ser de palavras e consegue ultrapassá-la. Como explicar este
fenômeno? Paz nos diz que o ‘algo além’ do poema constitui o seu próprio ser e as
palavras do poeta carregam significados implícitos, “dualidade íntima e irredutível,
que outorga às suas palavras um gosto de libertação.” (p. 231).
A freqüente acusação que se faz aos poetas de serem aéreos, distraídos,
ausentes, nunca totalmente deste mundo, provém do caráter de seu dizer. A
palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva
mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades. A poesia
parece escapar à lei de gravidade da historia porque sua palavra nunca é
inteiramente histórica. A imagem nunca quer dizer isto ou aquilo. Sucede
justamente o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo
tempo. E mais ainda: isto é aquilo. (ibidem, p. 231).
Existe um embate, um choque e uma luta constante entre o dizível e o
indizível em Água Viva. Palavra e entrelinha encenam: o que uma mostra, a outra
revela ou vice-versa. E esta relação entre as duas instâncias acompanhará todo o
trajeto do texto, em uma colisão dramática, sendo a palavra e a não-palavra também
personagens em AV.
um paradoxo em AV: é um jogo entre o pôr e o tirar da palavra. Tanto a
palavra como a não-palavra são repletas de significação, conforme nos aponta
Vieira: “O silêncio, na concepção de Clarice Lispector, é a plenitude da
comunicação, que dispensa o uso da palavra e se apresenta como a solução para
uma linguagem original que expressa o ser na sua totalidade.” (1998, p. 53).
A palavra como isca, como engodo, seduz e ao mesmo tempo ameaça. Às
vezes, as palavras atropelam-se umas às outras e se tornam ininteligíveis num
conglomerado de frases que nada dizem, o que provoca o silêncio do eu e a
percepção de que o real é inatingível, assim como as palavras, pois mesmo
escrevendo ao correr das palavras, muitas delas são perdidas nos desvãos de seu
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pensamento: nem sempre a exata captação da frase que quer nascer inteira,
pronta e em plenitude, como deveria ter fluído do pensamento para o papel.
O “eu” se arrisca à desconexão, a esta maneira nova de escrever, que é a
escritura de impressões, com a finalidade de ser, de conhecer a si mesmo, de
entender os porquês dos espantos e dos revigoramentos que ocorrem diante do
contato com a palavra e também da complexidade que o ato de escrever indica:
escrever é ser em Água Viva. Viver, entender e ser: eis três experiências que se
mesclam e transformam o eu-texto mergulhado na escritura poética, que vive
enquanto dura o texto.
Os “estados da alma” deste “eu são parcialmente revelados por meio de
metáforas, pois não querem revelar claramente as nuanças de seus segredos. Este
fato faz com que o leitor acompanhe, curioso, os pensamentos que vão sendo
lançados no fluxo, num enredo que é distorcido e subordinado a estes estados.
Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão
atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. Parece com
momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir,
pois fui ao fundo dos momentos. É um estado de contato com a energia
circundante e estremeço. Uma espécie de doida, doida harmonia. (AV, p.
13, grifos nossos).
Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de
maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na
relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento
e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida.
Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar
palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente
como quando se olha. (AV, p. 16, grifos nossos).
Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca
realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado em redor da
sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. (AV, p. 17, grifos nossos).
Atrás do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a dividi-lo em palavras
e o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus
segredos. (AV, p. 65, grifos nossos).
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O “eu” entra em contato com a energia circundante da própria escritura de
impressões e seu corpo estremece, porque não escreve apenas com a o, mas
com o corpo todo, uma vez que
um texto é escritural quando nele ouvimos a voz única de um corpo, e a
recebemos como um gozo: e o gozo é inanalisável, irrecuperável por
qualquer metalinguagem. Ele é sentido como intensidade, como perda do
sujeito pensante e ganho de uma nova percepção das coisas. (PERRONE-
MOISÉS, 1983, p. 54-56
).
Maravilhado e imerso em suas anotações de instantes, o “eu” terá momentos
epifânicos no contato com as próprias palavras. Epifania é um momento de
revelação que ilumina o ser, bita sensação que dura por instantes e, em seguida,
desaparece, numa espécie de curto circuito instantâneo. (2000) nos apresenta a
seguinte explicação sobre a epifania clariceana:
Embora não exista em Clarice nem sequer a menção da palavra epifania,
contudo pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante,
essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de
nomear os seres. Essa poética se formula claramente em Água Viva. (p.
201).
Especificamente sobre a epifania em Água Viva, com relação ao captar a
quarta dimensão do instante, (2000) esclarece que “esse é da coisa tem que ser
captado no átimo do tempo presente e seu maior obstáculo é a discursividade da
linguagem, contra a qual Clarice luta, corpo a corpo.” (p. 201). O que aparece nesta
escritura de instantes em AV está repleto de efeitos epifânicos.
A expressão “jardim com água correndo” em AV pode ser uma metáfora para
“escrita ao correr da o”, onde os efeitos sinestésicos condensam o sentido desta
escritura. Cada vez que os momentos iluminados/epifânicos acabam, este “eu” volta
para a sombra, ou seja, para o espaço sem luz, e precisa se refazer e refazer
também o outro. Isso significa que a escritura de impressões, captação exata das
palavras como elas surgem no instante-já, ganha força quando o “eu” está iluminado
e quando o próprio instante está repleto de luz, metaforizado no texto como um
67
“pirilampo que acende e apaga”. Quando a luz se apaga, o “eu” concentra-se para
voltar à luz.
Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O
presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca
minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num
imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e
tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago,
acendo e apago. que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo
agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais
instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo.
(AV, p. 15, grifos nossos).
O ser fica no vazio, no silêncio e no desespero quando as palavras somem e
assim o “eu” desaparece por um instante, apagando-se, mas retornará assim que as
palavras voltarem. É preciso um esforço nesta recomposição, por isso o “eu” está
sempre se contorcendo, estremecendo-se, pois vive na dependência destes flashes
de palavras que o instante-já lhe mostra e, ainda assim, não consegue dizer com o
mesmo frescor do momento exato em que aflorou a sensação. Sá (2000) nos explica
que em Água Viva ocorre a epifania do escrever, uma epifania da escritura. É
“singular e rara em língua portuguesa essa epifanização do tormento de escrever.”
(p. 218).
O “eu” se esconde atrás da narrativa e depois reaparece através dos vários
“eus” que se instalam no texto, num jogo de mostra-esconde teatralizado. O próprio
sujeito que tenta narrar na medida de seu lego acaba: uma personagem, o próprio
texto que é narrado e também é um dos “nós” de impressões. Assumindo várias
posições no texto, devido ao seu caráter caleidoscópico, este “eu” vai se
metamorfoseando: “Divido-me em milhares de vezes em tantas vezes quanto os
instantes que decorrem, fragmentaria que sou e precários os momentos.” (AV, p.
10).
Além do mais, este “eu” nasce, vive e morre em várias passagens do livro e
vai assumindo novas facetas, justamente por “acender e apagar” e estar sempre
atormentado no ato de escrever, tão dependente que é dos momentos iluminados
que a escritura de impressões lhe proporciona.
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Que febre: conseguirei um dia parar de viver? Ai de mim, que tanto morro.
Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a
paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas. À duração
de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um
ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, presente e o futuro, o
tempo que lateja no tique-taque dos relógios. (AV, p. 20-21).
Minha aura é mistério de vida. Eu me ultrapasso abdicando de mim e então
sou o mundo: sigo a voz do mundo, eu mesma de súbito com voz única.
(AV, p. 23).
Eu sou a morte. É neste meu ser mesmo que se a morte como te
explicar? (AV, p. 24).
As mutações faiscantes deste “eu” surgem como clarões, exatamente como
momentos epifânicos: nascem, vivem e morrem em instantes fugazes. Perrone-
Moisés (1978) nos esclarece que “[...] para Barthes a escritura não determina (nem
revela) um ser próprio, mas produz um sujeito em permanente crise e em
permanente mutação (ou, como diz Kristeva, um sujeito “em processo”)”. (p.46).
Temos, então, um sujeito em crise, um sujeito em metamorfose que em Água
Viva não consegue ser apanhado por ninguém e por gênero algum e, além do mais,
é um sujeito que brilha e em seguida apaga, nos “instantes que decorrem no ar que
respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço.” (AV, p. 9).
Como interpretar-se? Ou mesmo formular-se? O “eu” precisa de “novos sinais
e articulações novas em formas que se localizem aquém e além” de sua história
humana. (AV, p. 21), por isso a escritura barthesiana em Água Viva, no sentido de
subverter a forma narrativa. O “eu” precisa transfigurar a realidade textual,
inventando-a de uma maneira inovadora capaz de suportar tantas facetas deste
“eu”, tantas metamorfoses e múltiplos sentidos, pois as interpretações tradicionais
do que é um narrador, uma personagem e um enredo não dão conta de condensar a
multiplicidade destes elementos de Água Viva. Esta nova forma poética é a
escritura de impressões, irrepetível e inefável.
Equilibrar-se na linha tensa e bamba de AV é difícil, escrever de maneira
acrobática torna-se mais viável porque o “eu” é elástico neste percurso. Andar
objetivamente em linha reta não ocorre no texto porque o eu desequilibra-se, cai e
levanta a todo o momento.
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Mas ninguém pode me dar a mão para eu sair: tenho que usar a grande
força - e no pesadelo em arranco súbito caio enfim de bruços no lado de
cá. (AV, p. 19).
Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para
experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da
liberdade de errar, cair e levantar-me. (AV, p. 62).
O “eu” escritural se faz e se refaz nas linhas e esse movimento enovela as linhas
textuais e o eu se emaranha junto ao texto, querendo que o outro também se perca,
para que desta confusa experiência surja uma relação.
[...] perguntarás por que os traços negros e finos? É por causa do mesmo
segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti, escrevo redondo,
enovelado e tépido, mas às vezes frigido como os instantes frescos, água
do riacho que treme sempre por si mesma. (AV, p. 11).
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida,
mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com
palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se
enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do
entrechoque das frases (AV, p. 20).
Água Viva abarca os três tipos fundamentais de concisão poética, conforme
Pound (2006): fanopéia, melopéia e logopéia, condensando as palavras-coisas-vivas
em movimentos de idas e vindas e, por isso mesmo, quebrando a linearidade do
tempo e inserindo na trama outro tipo de temporalidade e saturando-as de
sensorialidade.
Ao tentar contar uma história à sua maneira, mesmo que isso seja uma ação
frustrada, encontramos a logopéia: uma tentativa de inserir ideias (prosa) junto às
sensações no texto (poesia). Ao refletir sobre a língua, metalinguisticamente, há o
confronto do conceito com as sensações.
De vez em quando te darei uma leve história ária melódica e cantabile
para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir
uma clareira na minha nutridora selva. (AV, p. 31).
70
O que te escrevo o tem começo: é uma continuação. Das palavras deste
canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases,
você sente? (AV, p. 60).
Minha história é de uma escuridão tranqüila, de raiz adormecida na sua
força, de odor que não tem perfume e em nada disso existe o abstrato. É o
figurativo do inominável. Quase não existe carne nesse meu quarteto. (AV,
p. 74).
As palavras-coisas associadas à música, ao canto, à melodia (até mesmo
quando ela nega que o seu texto pode ser musicalizado) cria a melopeia.
Vejo que nunca te disse como escuto música, apóio de leve a mão na
eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: ouço a eletricidade
da vibração, substrato último no domínio da realidade, e o mundo treme nas
minhas mãos. (AV, p. 11).
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra
repetida em canto gregoriano. (AV, p. 11).
O que diz este jazz que é improviso? Diz braços enovelados em pernas e as
chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco
agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. (AV, 21-22).
Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos
ásperos contrários. Para onde vou? E a resposta é: vou. (AV, p. 27).
Quanto à fanopeia, podemos encontrá-la abundantemente em Água Viva,
pelas diversas imagens, metáforas e comparações no texto, atribuindo-lhe um
caráter mutante ao passo que as imagens são bem diversificadas e muitas delas se
contradizem e fazem o eu-texto se metamorfosear.
Entro lentamente na escrita assim como entrei na pintura é um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras limiar de
entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer.
(AV, p. 14).
Com esta frase fiz uma cena nascer, como num flash fotográfico. (AV, p.
21).
71
Quando eu morrer então nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os
traços de espuma do mar na praia. (AV, p. 27).
Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o chão que é terra. O resto é ar e o
resto é lento fogo em perpetua mutação. (AV, p. 34).
Este modo de condensação em Água Viva é o que faz a palavra ser viva
como almeja. As sensações são elementos capazes de resumir o sentido poético de
AV. A durabilidade desta palavra viva, carregada de sensações e sentidos, será
instantânea e tão rápida como um relance de olhar, capaz de iluminar quem escreve
e quem lê.
3.2. As instâncias do “tu”
Afinal, a quem se dirige o texto? A possível resposta é a palavra direcionada
ao outro (o “tu” seja ele o leitor, seja uma dobra do próprio “eu” inscrito no texto em
monólogo dialogal consigo mesmo).
Assumindo as suas várias facetas, o “eu” não quer que o outro descubra com
exatidão quem ele é e abre o jogo: “O que saberás de mim é a sombra da flecha que
se fincou no alvo.” (AV, p. 16).
Na verdade, este “eu” quer jogar com o outro, trapacear com a língua,
escondendo-se e mostrando-se de várias formas, configurando-se em escritura,
conforme Barthes nos diz. Revela que o principal está escondido, pois é um eu”
implícito. “E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.” (AV, p. 23).
A relação com o outro ocorre de várias maneiras, seja convidando o
interlocutor (leitor) para participar do texto, seja remetendo-se a um interlocutor
imaginário (um possível ex-amante do “eu”), ou mesmo pelas dobras do próprio “eu”
que revela os seus outros. Vejamos, a seguir, trechos de Água Viva que nos
mostram as diferentes instâncias do “tu”.
Leitor Ex-amante Dobras do eu
1) “Você que me que me
ajude a nascer.” (p. 33).
1) “Como traduzir o silêncio
do encontro real entre nós
1) “E se eu digo “eu” é
porque não ouso dizer “tu”,
72
dois? Dificílimo contar: olhei
para você fixamente por uns
instantes. Tais momentos
são meu segredo. Houve o
que se chama de comunhão
perfeita.” (p. 49).
ou nós” ou “uma pessoa”.
Sou obrigada à humildade
de me personalizar me
apequenando mas sou o és-
tu.” (p. 12).
2) “Este instante é. Você que
me lê é.” (p. 33).
2) “Vou agora mesmo
prestar-te contas daquela
primavera que foi bem seca
[...] Falamos pouco, tu e eu.
[...] E os nossos grandes
olhos inexpressivos como
olhos de cego quando estão
bem abertos no terraço
estava o peixe no aquário e
tomamos refresco naquele
bar de hotel olhando para o
campo. “ (p. 57).
2) “Já entrei contigo em
comunicação tão forte que
deixei de existir sendo. Você
tornou-se um eu. É tão difícil
falar e dizer coisas que não
podem ser ditas. É tão
silencioso.” (p. 49).
3) Ajude-me porque alguma
coisa se aproxima e ri de
mim. Depressa, salva-me.”
(p. 19).
3) “Guardo o seu nome em
segredo. Preciso de
segredos para viver.” (p. 66).
3) “Tu és uma forma de ser
eu, e eu uma forma de te
ser: eis os limites de minha
possibilidade.” (p. 61).
4) “Também tenho que te
escrever porque tua seara
é a das palavras
discursivas e não o direto
de minha pintura. Sei que
são primárias as minhas
frases, escrevo com amor
demais por elas e esse
amor supre as faltas, mas
o amor demais prejudica
os trabalhos.” (p. 11).
4) “Hoje de tarde nos
encontraremos. E não te
falarei sequer nisso que
escrevo e que contém o
que sou e que te dou de
presente sem que o leias.”
(p. 67).
4) “Por enquanto
diálogo contigo. Depois
será monólogo. Depois o
silêncio. Sei que haverá
uma ordem.” (p. 43).
5) “O que te escrevo não 5) “Mas como fazer se 5) “Eu te conheço todo por
73
tem começo: é uma
continuação. Das palavras
deste canto, canto que é
meu e teu, evola-se um
halo que transcende as
frases, você sente?” (p.
44).
não te enterneces com
meus defeitos, enquanto
eu amei os teus. Minha
candidez foi por ti pisada.
Não me amaste, disto
eu sei. Estive só. de ti.
Escrevo para ninguém e
está-se fazendo um
improviso que não existe.
Descolei-me de mim.”
te viver toda. Em mim é
profunda a vida. As
madrugadas vêm me
encontrar pálida de ter
vivido a noite dos sonhos
fundos.” (p. 48).
6) “Você que me lê diria: é
verdade que muito
tempo não penso em
tartarugas.” (p. 51).
6) “Escuta: eu te deixo
ser, deixa-me ser então.”
(p. 24).
7) “Preste atenção e é um
favor: estou convidando
você para mudar-se para
um novo reino.” (p. 52).
Importantes descobertas podem ser feitas por meio destes fragmentos
selecionados. Em primeiro lugar, no quinto fragmento da segunda coluna, o “‘eu” nos
informa que o improviso o existe, o que corrobora com o que dissemos
anteriormente acerca da “espontaneidade como um recurso”, uma maneira de
transgredir as formas da narrativa, pondo-as em crise. “Escrevo para ninguém”
significa que até o “interlocutor” e suas diversas facetas foram ficcionalizados, uma
maneira diferente de invocar o outro e com isso estabelecer uma rede de relações
complexas.
Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas que se interpenetram em
traços finos e negros, e tu, que tens o hábito de querer saber por que e
porque não me interessa, a causa é matéria de passado perguntarás por
que os traços negros e finos? É por causa do mesmo segredo que me faz
escrever agora como se fosse a ti, escrevo redondo, enovelado e tépido,
mas às vezes frigido como os instantes frescos, água do riacho que treme
sempre por si mesma. (AV, p. 11, grifos nossos)s
74
A complexidade maior destas instâncias do “tu” encontra-se nas dobras do
“eu”, quando o “eu” encarna no “tu” e em outros. No diálogo com o “tu”, o eu-texto se
transforma, mescla-se a ele e também dele se afasta, como podemos perceber no
quarto fragmento da terceira coluna, quando se apresenta o diálogo, o monólogo e
depois o silêncio (que pode ser ouvido e captado pelo outro) e tudo é intencional
para este “eu” textual que sabe perfeitamente quando deverão ocorrer as
aproximações e os distanciamentos. Jogo encenado que nos confunde e é
justamente esta a intenção: deslocar ao modo barthesiano.
Quando o “eu” abdica de um nome é porque quer a pluralidade, quer ser ele e
todos ao mesmo tempo em seus variados deslocamentos, por isso este “eu é
impessoal. “Eu me ultrapasso de meu nome, e então sou o mundo. Sigo a voz do
mundo com voz única.” (AV, p. 44).
Paz cria o conceito de “outridade”, que aqui seria pertinente destacar, pois a
fala do poeta revela outra coisa além daquilo que diz, operação de palavras capaz
de revelar a condição humana. “Também nós nos fundimos com o instante para
melhor ultrapassá-lo; também, para sermos nós mesmos, somos outros.” (1982,
p.233). O “eu que tenta narrar em Água Viva, direcionando-se ao outro, na
verdade, direciona-se a si mesmo, que a outridade é outra coisa e ao mesmo
tempo é o próprio ser.
A inspiração, a outra voz”, a outridade” são, na sua essência, a
temporalidade brotando, manifestando-se sem cessar. Inspiração,
“outridade”, liberdade e temporalidade o transcendência. Mas são
transcendência, movimento do ser para o quê? Para nós mesmos.” (PAZ,
1982, p. 218).
A realização completa do ser se quando ele se torna outro, de acordo com
Paz, pois é desta experiência que poderá recuperar, “reconquistar seu ser original,
anterior à queda ou ao despencar no mundo, anterior à cisão em “eu” e em “outro”.”
(ibidem, p. 219).
A relação corpo a corpo com ele próprio e com o outro é sensorializada,
amálgama dos cinco sentidos no ato de escrever.
75
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato
como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e
na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se
compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro.
Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às
minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. (AV, p. 10).
E se eu tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido
quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. (AV, p. 11).
Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que
se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. (AV, p. 12).
O leitor foi ficcionalizado na ação de escrever. Vieira nos diz:
Desse modo, Clarice Lispector proporciona ao leitor a possibilidade de
preencher, com sua interpretação, as impressos e idéias em suspenso,
tornando-o um co-autor da obra. (1998, p. 84).
Para que fique claro o papel que o leitor deverá desempenhar, ele é
textualizado e freqüentemente convidado a participar do processo de
criação do texto. (VIEIRA, 1998, p. 84).
O leitor foi ficcionalizado em Água Viva para que, juntamente ao eu-texto,
pudesse captar o instante-já, pois o que interessa é o tempo presente, a atualidade.
Então, o “eu” pede para que o outro capte o que ele diz/escreve/canta/pinta. “Capta
essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante
escuridão”. (AV, p. 14).
O eu-texto dirá os instantes para o outro, esta é a intenção e a única história
que interessa, sendo a escritura de impressões uma ponte que liga aquele que
escreve e àquele que lê. Mas será que o interlocutor está interessado no tempo
presente? Será que está preparado para isso? Estas dúvidas afligem o “eu” textual e
ele pergunta: “Pergunto se você agüenta que o tempo seja hoje e agora e ”. (AV,
p.32).
O leitor terá que preencher as lacunas nesta luta entre palavra e o-palavra,
que elas sempre indicam a incompletude do texto, a angústia do “eu” que lança a
palavra e tem a entrelinha como um mistério. O texto sempre seum segredo,
76
que ninguém será capaz de explicar com exatidão o que por trás das linhas de
Água Viva, mas o leitor pode brincar e encenar também, inventando/improvisando
ao seu modo os tais mistérios do texto, já que
o
texto oferece ao leitor “vazios” que são preenchidos com suas projeções,
mas, ao mesmo tempo, os vazios regulam as projeções. Eles indicam os
segmentos do texto a serem conectados, isto é, assinalam a quebra das
conexões dos segmentos textuais, mas também proporcionam essas
quebras, aumentando as possibilidades de significação. (VIEIRA, 1998, p.
87).
Em Água Viva, houve o apagamento do Autor pela instauração do texto como
sujeito da escritura que, conforme Barthes (2004) significa a “morte do autor” para
que a escritura possa nascer, de maneira que a explicação da obra não seja
buscada sob o enfoque de quem a escreveu, mas sim do próprio texto: a linguagem
sobressai-se, marcando os textos modernos. Apagando o autor, abre-se as
possibilidades de interpretações em cada corpo-leitor, já que “a unidade do texto não
está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 2004, p. 64).
O leitor de Água Viva, além de ser uma das instâncias do “eu”, ficcionalizado,
é alguém que também construirá o texto. Sobre o leitor enquanto personagem,
Barthes (2004) explica:
Uma maneira de ligar o leitor a uma teoria da Narração ou, mais
amplamente, a uma Poética, seria considerar ele mesmo como ocupante de
um ponto de vista (ou sucessivamente de vários); em outras palavras, tratar
o leitor como uma personagem, fazer dele uma das personagens (mesmo
que não necessariamente privilegiada) da ficção e/ou do Texto. (p. 40).
Retomando os biografemas explicados anteriormente, é possível verificar que
apontam também para as instâncias do “tu” seja para o leitor, seja para as “dobras
do eu” onde a junção do eu-texto com o “tu”. Lispector, em suas crônicas para o
Jornal do Brasil, escreveu as seguintes palavras sobre o leitor: “O personagem leitor
é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo em que inteiramente
individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na
verdade ele, o leitor, é o escritor.” (LISPECTOR, 1999, p. 79).
77
Além de considerar o leitor intrínseco ao escritor, Lispector queria, em seus
livros, uma comunicação profunda com o leitor e consigo mesma, pois considerava
que
o contato com o outro ser através da palavra escrita é uma gloria. Se me
fosse tirada a palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar ou pintar.
Alguma forma de comunicação com o mundo eu daria um jeito de ter. E
escrever é um divinizador do ser humano.
[...]
Não dou pão a ninguém, sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre.
Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a
lua cheia sou muito mais lunar que solar. E uma solidão tão maior que o
ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu
vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer eu vos
amo” é quase mais do que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor
impotente. Continuo, porém a esperar. (LISPECTOR, 1999, p. 95-96).
Lispector amava os seus leitores e sabia que o seu caminho estava no outro,
nos outros, conforme podemos verificar no trecho a seguir:
O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de
um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras
refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja
finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não
sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro
estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada. (LISPECTOR, 1999,
p. 118-119).
Clarice encontrava-se nos outros, nos seus leitores: “E tantas vezes não
consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto
dizemos: “Ah!”. Às vezes esse encontro consigo mesmo se consegue através do
encontro de um ser com outro ser.” (LISPECTOR, 1999, p. 201).
A autora sabia que ao ultrapassar-se, saindo de si mesma, fatalmente cairia
nos outros, o que significava autoconhecimento e também o entendimento do outro
ser. “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi
então que eu tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria
ser o âmago dos outros: e o âmago dos outros era eu”. (LISPECTOR, 1999, p. 385).
78
Lispector desejava que o seu leitor preenchesse as lacunas de seu texto. É a
autora afastando-se para o seu texto nascer no corpo do leitor: “Sinto que já cheguei
quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava
meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio. E cada um que olhasse
o espaço em branco, o encheria com seus próprios desejos.” (LISPECTOR, 1999, p.
347).
3.3. Tempo-espaço: o círculo e a linha
Desde o princípio, o eu-texto em Água Viva é tomado por várias impressões
que o fazem mergulhar no tempo, pelos flashes epifânicos que duram fugazmente.
O instante-já é a obsessão de quem narra pela constante necessidade de captá-lo.
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de
tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que
também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero
apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem do ar que respiro:
em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. (AV, p. 9).
É na escritura de impressões que está a possibilidade de capturar as frases
que veem ao eu no momento mesmo em que narra-escreve:
Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura
como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo e
não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é
este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si
mesmo iminente ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua
passagem para outro instante. (AV, p. 69).
O eu-texto tem consciência da impossibilidade de apossar-se da vida, tem
consciência de que a vida é um constante devir e que os fatos são efêmeros, e não
esconde isso de seu interlocutor, porém essa constatação não o impede de
continuar a sua experiência: “Como vês, é-me impossível aprofundar e apossar-me
79
da vida, ela é aérea, é o meu leve hálito. Mas bem sei o que quero aqui: quero o
inconcluso.“ (AV, p. 25)
Captar o instante-já faz com que o ‘eumergulhe nessa experiência mesmo
sem compreendê-la:
Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas nunca o ato de
entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma vez, mergulho que
abrange a compreensão e, sobretudo, a incompreensão. E quem sou eu
para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei, porém, que
andando é que se sabe andar e – milagre – se anda. (AV, p. 62).
Tão imerso e envolvido esse eu está em capturar o que lhe ocorre no
instante-já dessa escritura de impressões, que método e conteúdo acabam não
tendo muita importância: “Sim, esta é a vida vista pela vida. Mas de repente esqueço
o como captar o que acontece, não sei captar o que existe senão vivendo cada coisa
que surgir e não importa o que: estou quase livre de meus erros.” (AV, p. 18).
As linhas do tempo em AV estão disseminadas, multiplicadas no texto,
esparramadas no espaço textual. Essas linhas podem ser entendidas por
movimentos horizontais e verticais, que, perdidas no texto, podem ou não retornar e
se empilhar, ou ainda, o cruzamento vertical entre elas pela correspondência e
retorno no espaço da verticalidade. Na tabela a seguir, é possível verificar a
propagação do tempo e a demarcação do espaço de maneira original, contaminada,
subvertida, enfim, sem limites.
Tempo subvertido Espaço inventado
1) “(...) o próximo instante é o
desconhecido. O próximo instante é feito
por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo
juntos com a respiração?” (AV, p. 9).
1) “Entro lentamente na escrita assim
como entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas,
madressilvas, cores e palavras limiar
de entrada de ancestral caverna que é o
útero do mundo e dele vou nascer.” (AV,
14).
2) “O que te falo é puro presente e este
livro é uma linha reta no espaço.” (AV, p.
2) “Só que aquilo que capto em mim
tem, quando está sendo agora
80
17). transposto em escrita, o desespero das
palavras ocuparem mais instantes que
um relance de olhar.” (AV, p. 15).
3) “O que canta a natureza? A própria
palavra final que não é nunca mais eu.
os séculos cairão sobre mim. Mas por
enquanto uma truculência de corpo e
alma que se manifesta no rico escaldar
das palavras pesadas que se atropelam
umas nas outras.” (AV, p. 38).
3) “E não te sou e me sou confortável;
minha palavra estala no espaço do dia.”
(AV, p. 16).
4) “Os objetos são tempo parado?” (AV,
p. 40).
4) “Palavras movo-me com cuidado
entre elas que podem se tornar
ameaçadoras.” (AV, p. 21).
5) “Só me comprometo com vida que
nasça com o tempo e com ele cresça:
no tempo espaço para mim. (AV, p.
10).
5) “Estremeço de prazer por entre a
novidade de usar palavras que formam
intenso matagal.” (AV, p. 22).
6) “A palavra é minha quarta dimensão.”
(p. 10).
6) A densa selva de palavras envolve
espessamente o que sinto e vivo, e transforma
tudo o que sou em alguma coisa minha que fica
fora de mim.” (AV, p. 23).
7) “Isso que te escrevi é um desenho
eletrônico e não tem passado ou futuro:
é simplesmente já”. (AV, p. 11).
7) “O risco estou arriscando descobrir
terra nova onde jamais passos humanos
houve. Antes tenho que passar pelo
vegetal perfumado.” (AV, p. 41).
8) “Fixo instantes súbitos que trazem em
si a própria morte e outros nascem fixo
os instantes de metamorfose e é de
terrível beleza a sua seqüência e
concomitância.”(AV, p. 13).
8) “Finco a palavra no vazio
descampado: é uma palavra como fino
bloco monolítico que projeta sombra.”
(AV, p. 44).
9) “Nova era, esta minha, e ela me
anuncia para já. Por enquanto estou
tendo: porque venho do sofrido longe,
venho do inferno de amor mas agora
9) “Estou neste instante num vazio
branco esperando o próximo instante.”
(AV, p. 48).
81
estou livre de ti. Venho do longe de
uma pesada ancestralidade. (AV, p.
15).
10) “Agora é um instante.
Já é outro agora.
E outro. Meu esforço: trazer agora o
futuro para já.” (AV, p. 27).
Pignatari (2005) explica a diferença entre tempo lógico (discursivo, linear,
causa e efeito, princípio/meio/fim) e analógico (tudo ao mesmo tempo).
Logicamente, teríamos um texto narrativo mantendo a linearidade temporal, de
modo analógico, haveria a sincronia de todos os elementos. Água Viva é constituída
analogicamente, num espaço-tempo não-linear: tudo ao mesmo tempo, como diz o
autor: “Esse elemento a mais é o espaço não-linear, que cria um tempo também
não-linear é a parataxe no espaço. Dessa forma, você não lê, como também
as palavras no espaço – como se fossem coisas concretas, objetivas.” (p. 49-50).
Se o tempo, como movimento em progressão irreversível, distingue as etapas
de uma transformação, em Água Viva tal sequencialidade é perturbada pelas
interrupções frequentes de outro movimento de retorno e retomada, numa espécie
de repetição obsedante, onde tudo se faz no instante condensado da
simultaneidade, que tenta sincronizar a multiplicidade perceptiva num instante único
do tempo, na sua presentidade. Esse é o lugar de outro princípio lógico que opera
por meio da analogia que faz próximo o distante, como Pignatari (2005) nos explica:
é um corpo analógico dentro de um corpo lógico representado pela
palavra e suas relações lógico-gramaticais, que obedecem a um
processo linear (causa-efeito, principio/meio/fim). A poesia concreta
rompe com esse sistema. Uma causa não pode ser um efeito, um
efeito não pode ser uma causa? Por que não criar logo uma sintaxe
analógica, em que causas e efeitos se confundam e pareçam ocorrer
ao mesmo tempo, simultaneamente, em lugar de uma coisa-depois-
da-outra? Por que não tratar as palavras como figuras, como imagens
que a gente monta no espaço e no tempo? (p. 54-55).
82
Para Olga de Sá, AV é uma “escritura em que o analógico se sobrepõe ao
lógico, a estrela toma o lugar do sol.” (2004, p. 232). Por isso, a efemeridade do
instante-já se contrapõe à tentativa de propagar a linha no tempo em Água Viva. É
o totalizante e indivisível metaforizado pela dança, pela escrita circular em confronto
com a divisibilidade que a escrita impõe: uma coisa depois da outra; o tempo que
quer seguir adiante, mas que retrocede porque os elementos tradicionais da
narrativa foram contaminados, subvertidos.
Por isso, é possível traçar a indissolubilidade de tempo-espaço em AV, numa
cena imersa em poeticidade.
Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de
maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na
relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento
e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida
meu estado é o de jardim
com água correndo. Descrevendo-o tento misturar
palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido
rapidamente como quando se olha. (AV, p. 16; grifos nossos).
Condensadamente o eu que escreve, o lugar desta escrita e aquele que
sincronizam-se num mesmo tempo-espaço inventado, feito de palavras que
reverberam imagens visuais, tatéis e olfativas. É a metáfora que comanda a
construção da cena poética por meio da equivalência entre a descrição do espaço
físico - reflexos do sol na água, jardim de perfumes, sombras, água correndo - e o
lugar da escrita onde autor e leitor convivem no instante efêmero do ato de escrever
e brilhar na imaginação daquele que lê. Lugar de passagem e trânsito, mas que
possui densidade suficiente para instalar a presença de um corpo vivo na fração de
tempo de um acontecimento único: o ato da escritura-leitura.
No entanto, embora as marcas da passagem do tempo cronológico e do
espaço físico se dissolvam neste espaço-tempo escritural de sensações e
impressões nômades, é possível percebê-las como ressonâncias entre o fora e o
dentro da escritura em momentos como os citados abaixo.
Tempo cronológico Espaço físico
1) “Agora está amanhecendo e a aurora 1) “Moscas azuis cintilam diante de
83
é de neblina branca nas areias da praia.
Tudo é meu, então. Mal toco em
alimentos, não quero me despertar para
além do dia”. (AV, p. 13).
minha janela aberta para a rua
entorpecida.” (AV, p. 17).
2) “Às três e meia da madrugada
acordei. E logo elástica pulei da cama.
Vim te escrever. Quer dizer: ser. Agora
são cinco e meia da manhã. De nada
tenho vontade: estou pura.” (AV, p. 33).
2) “Estou ouvindo agora uma música
selvática, quase que apenas batuque e
ritmo que vem de uma casa vizinha onde
jovens drogados vivem o presente.” (AV,
p. 18).
3) “Hoje é domingo de manhã. Neste
domingo de sol e de júpiter estou
sozinha em casa.” (AV, p. 60).
3) “Vitória-régia está no Jardim Botânico
do Rio de Janeiro. Enorme e até quase
dois metros de diâmetro. Aquáticas, é de
se morrer delas. Elas o o amazônico:
o dinossauro das flores.” (AV, p. 54).
4) “Mas esses dias de alto verão de
danação sopram-me a necessidade de
renúncia”. (AV, p. 24).
4) “O que se chama de bela paisagem não
me causa senão cansaço. Gosto é das
paisagens de terra esturricada e seca, com
uma luz alvar e suspensa.” (AV, p. 36).
5) “Hoje é dia de lua cheia. Pela janela a lua
cobre a minha cama e deixa tudo de um
branco leitoso azulado.” (AV, p. 29).
5) “Não quero ser engavetada na parede
como no cemitério São João Batista que não
tem mais lugar na terra. Então inventaram
essas diabólicas paredes onde se fica como
num arquivo.” (AV, p. 42).
6) “De dois em dois dias a rosa
murchava e eu a trocava por outra.” (AV,
p. 47).
6) “Escrevo-te sentada junto de uma
janela aberta no alto de meu atelier.”
(AV, p. 50).
Observamos que, em cada um dos fragmentos, as referências à
temporalidade e à espacialidade, como marcas exteriores ao “eu” textual, o
interrompidas para a inserção de impressões, sensações e digressões, que
transformam o tempo-espaço numa marcação interna à própria escritura
impressionista.
Em Água Viva, uma tentativa de integrar, num mesmo espaço-tempo da
escritura, o observador e o observado que estão em lugares e tempos diferentes,
84
veem a partir de outras marcas históricas e contextuais, mas estão juntos neste
instante do tempo (da escrita e da leitura), que é também o espaço vivo da escritura
vista como um corpo, cuja densidade se concretiza e se dissolve entre a palavra e a
não-palavra, o silêncio.
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra a entrelinha
morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a
entrelinha, poder-se-ia com alivio jogar apalavra fora. Mas cessa a
analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então
é escrever distraidamente. (AV, p. 20).
O eu-texto instala-se no vazio, no silêncio, ao esperar o próximo instante e
confessa que a falta de linearidade é uma opção na construção textual: ”Contar o
tempo é apenas hipótese de trabalho. Mas o que existe é perecível e isto obriga a
contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar. Nunca.”
(AV, p. 48).
Sobre a palavra-objeto, Borelli nos traz considerações enriquecedoras sobre o
processo escritural clariceano, que nos auxilia a entender Água Viva como espaço-
tempo da escritura de impressões.
Para ela, a palavra era um objeto a ser tateado no escuro. Nunca inventava
uma história, para depois ‘transcrevê-la’. Não - suas histórias, os ‘enredos’
de seus contos ou romances brotavam desse mergulho na região onde as
palavras, segundo Carlos Drummond de Andrade, se encontram em estado
de dicionário, à espera de quem venha desvendar-lhes o segredo. (1981, p.
77).
Aqui também é possível inserirmos os biografemas clariceanos no que tange
ao tempo-espaço, pois Lispector já refletiu acerca destes elementos.
O infinito é um vir-a-ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito
é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender
de física e de matemática para poder, nessa minha divagação gratuita,
pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que
sinto.
85
Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o
tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em
dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o
coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa
consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa
forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma
vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente
humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-
lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um
modo do infinito. Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais
adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao
inconsciente, como foi dito, este o admite pela simples razão de também
sê-lo. (LISPECTOR, 1999, p. 291-292).
O interessante é que Lispector cita o círculo como tentativa de entender o
infinito.
Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo?
Errei. O circulo é uma forma perfeita, mas que pertence à nossa mente
humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo
seria um adjetivo inútil para o infinito. (1999, p.292
).
Se o tempo retorna, o espaço torna-se curvo, enrola-se no corpo das palavras
que encapsulam o eu-texto: “E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me
acrescentando em folhas.” (AV, 21). E diversas outras articulações corporais serão
utilizadas como tentativas de contar as conexões de impressões, os substitutos do
enredo. O eu-texto, além de andar (em corda bamba), rola, permanece no lugar,
navega, trota, cai, levanta, pula e faz piruetas. “Escrevo por acrobáticas e aéreas
piruetas – escrevo por profundamente querer falar.” (AV, p. 12).
Estes vaivéns corporais diferenciados, do início a o fim do texto, se
assemelham ao dançar por meio de coreografias não ensaiadas, dança estranha,
complexa, sensual e única, que estremece e contorce o corpo diante dos mistérios
da vida, dos enigmas da palavra, da angústia por saber que as palavras não são as
coisas, sendo a dança uma tentativa de buscar as possíveis respostas: “Um sujeito
‘vindo a ser’, cujas partículas fluem num marítimo balé, entre algas e águas vivas.”
(HELENA, 2006, p. 82).
86
Paul Valéry, ao se referir à dança, nos diz que o prazer de quem dança e
de quem vê. O espaço é o lugar da dança, mas é no tempo que ela exercerá o papel
mais importante, criando um “ciclo de atos musculares que se reproduz, como se a
conclusão ou o término de cada um deles engendrasse o impulso do seguinte.”
(2003, p. 36).
Estes dois modos transformam-se um no outro, sendo o primeiro aquele que
se atém aos movimentos em intervalos e, o segundo, o que focaliza as repetições
dos motivos no espaço.
É neste campo que o eu-texto oscila entre a densidade da terra e a fluidez da
água, pois ora caminha no espaço firme, ora navega na liquidez fazendo do tempo-
espaço um corpo indivisível feito de nós de impressões que avançam e voltam em
círculos, repetindo-se na cena escritural.
A possível prosa que tenta se delinear em Água Viva não é uma história, mas
uma espécie de narração ensaística feita de impressões e comentários sobre o
escrever em ato poético e metalinguístico.
Renuncio a ter um significado, e então o doce e doloroso quebranto me
toma. Formas redondas e redondas se entrecruzam no ar. Faz calor de
verão. Navego na minha galera que arrosta os ventos de um verão
enfeitiçado. Folhas esmagadas me lembram o chão de infância. (AV, p. 24).
A palavra quer ser tocada pelos sentidos neste tempo-espaço: “Quero como
poder pegar com a mão a palavra.” (AV, p. 12); “Transmito-te não uma história, mas
apenas palavras que vivem do som.” (AV, p. 25). Por isso, seu caráter é sinestésico,
criando correspondências entre o som, a imagem visual, tátil e olfativa e os sentidos,
numa mixagem simultânea destes elementos no tempo-espaço da percepção.
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato
como o instante. (AV, p. 10).
[...]
A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho que
me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente
viva. (AV, p. 12).
[...]
Criar de si um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão
completa à procura de s mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de
87
parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o
âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida da matéria elementar.
(AV, 41-42).
A dramática deste corpo escritural no tempo-espaço se faz em movimentos
ora contínuos, ora quebrados por abruptas passagens e é deste choque faiscante
que brotam iluminações epifânicas sobre o sentido desta escritura de impressões:
um lugar onde palavras-coisas surgem para se dissolverem em seguida, sugerindo o
próprio movimento do tempo, que tudo consome, não sem antes deixar rastros,
manchas da passagem fugaz de um corpo no espaço.
E uma bem aventurança física que nada se compara. O corpo se
transforma num dom. E se sente que é um dom porque se es
experimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de existir
milagrosamente e materialmente. (AV, p. 80).
As manchas no tempo-espaço nos mostram que o “eu” e a cena da escrita,
bem como as instâncias do “tu”, ao existirem como palavras sensoriais e carnais,
passaram por ele e deixaram seus rastros, indiciando que um dia existiram, mesmo
que fugazmente: “A criação me escapa. E nem quero saber tanto. Basta-me que
meu coração bata no peito. Basta-me o impessoal vivo do it.” (AV, p. 61).
88
Considerações finais
Não se faz uma frase. A frase nasce. (Clarice Lispector)
Como vimos ao longo desta pesquisa, Água Viva é pura poesia gestual que
se movimenta o tempo todo em busca da captação do instante, em confronto com o
seu outro: o gesto prosaico em manchas. Ao lado do desejo intenso do eu-texto por
uma escritura til e visual de sensações, haverá também uma forte angústia ao
constatar que isso é uma utopia da linguagem. Do desejo e da angústia nasceum
novo modo de escrever: uma escritura de impressões entre prosa e poesia, uma
maneira de subverter a linguagem, dramatizando a língua a fim de criar uma nova
realidade que atenda às expectativas do “eu” enunciador.
Metalinguagem (tentativa de manter uma linha) e escrita de sensações (o
escrever em círculos que vão e vêm) lutam para encontrar cada uma o seu tempo-
espaço em Água Viva e ganham materialidade ao condensarem sentidos numa
dramática viva, cujo tempo-espaço é a cena da escrita, a grande personagem.
Mas, afinal, o nosso corpus consegue resolver este conflito de base da
criação poética? É capaz de eliminar a mediação entre as palavras e as coisas,
tornando-as coisas vivas em puras sensações?
Chegamos à seguinte consideração: as palavras também encenam em Água
Viva, portanto, o coisas vivas no texto e ganham um novo sentido ao se
condensarem entre sons, imagens e sentidos, gerando uma escritura carnalizada e
viva em fluxo, no seu percurso água. Abarcando os três tipos de condensação
poética poundiana, Água Viva amalgama sentidos que iluminam quem escreve e
quem apenas no fugaz momento em que ocorrem. São frases em flashes
capturadas pela escritura de impressões, algumas delas deixadas pela metade,
que o correr da mão nem sempre acompanha o pensamento que flui em jato.
Como, enfim, romper a mediação da linguagem? Como libertar-se da
palavra? possíveis soluções: a primeira é silenciar-se e a outra é usar a própria
palavra, mas de uma outra maneira: “Bem sei que terei que parar. Não por falta de
palavras mas porque estas coisas e sobretudo as que só penso e não escrevi – não
se dizem.” (AV, p.78), diz o eu-escritural de Água Viva, duplo autoral de Clarice
Lispector, em ato metalinguístico.
89
A escritura de impressões é um paradoxo, uma vez que é a tentativa de “ser
um livro como linha reta no espaço” entrando em tensão com a “escritura redonda,
enovelada e tépida” (AV, p. 11-17). Ou seja, o caráter metalinguístico e conceitual
confronta-se com as palavras-sensações da escrita poética. Ao mesmo tempo em
que se pensa sobre a própria escritura, numa tentativa de firmar-se, logo em seguida
descentra-se, ficando em suspensão no percurso água. Conclui-se disso que
uma construção racional contaminando-se e lutando corpo a corpo com o seu
oposto, deixando marcas inapagáveis no texto.
Apreendemos disso que há um fracasso do eu-texto de AV neste embate que
parece ser interminável entre as impressões e as reflexões destas impressões,
principalmente, ao constatar que as palavras-coisas-imagens duram apenas fugazes
instantes: “Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam.” (AV,
p. 37).
Este “eu” que narra não pode ser autobiográfico, mas é um eu-texto, à medida
que se encarna na própria linguagem. Ficam apenas os biografemas como
ressonâncias do fazer literário de Clarice Lispector, todavia não como reverberações
de sua vida pessoal.
Água viva encontra aproximações com a prosa impressionista do século XIX
no sentido de que ambas têm suas raízes dilaceradas, no que concerne à forma
narrativa. A prosa impressionista do século XIX diferenciou-se da prosa realista e
naturalista de sua época por importar-se mais com as impressões e sensações das
personagens do que com o enredo propriamente dito, como acontece com O
Ateneu, por exemplo, no qual encontramos muitos cortes bruscos da narração para
a inserção das lembranças e impressões de Sérgio.
Em Água Viva, porém, não temos personagens pessoais como as d’O
Ateneu, mas as persona-sensações. AV trabalha com o nível interrogativo, trazendo
para si um caráter metalinguístico inegável e uma obsessão pela palavra que almeja
ser coisa. Entre as impressões e as reflexões, Água Viva firma um sentido em seu
texto-organismo e, na realidade, a espontaneidade que percebemos é parte da
escritura de impressões, sendo uma estratégia para recolher o é das coisas liberto
da mediação trazida pelo tempo e, assim, subverter a narrativa, contaminando-a
com a poesia.
A estratégia metodológica de análise do livro à luz de três focos estruturais -
O eu e a cena da escrita no percurso água, as instâncias do “tu” e o tempo-espaço;
90
o círculo e a linha - revelou a consistência da hipótese de partida de que AV é
realmente uma escritura de impressões movida pela busca da não mediação entre a
palavra e as coisas. É esta consciência do ser da linguagem que leva o “eu”
escritural a encontrar uma forma de escritura centrada no instante-já, na tentativa
desesperada de deter o fluxo do tempo e colher o presente na fulguração de uma
“quase” palavra viva, embora saiba que “A palavra apenas se refere a uma coisa e
esta é sempre inalcançável por mim.” (AV, p. 73).
Ao fundamentarmos por meio da análise de AV o sentido do que chamamos
de escritura de impressões, acreditamos trazer uma nova perspectiva interpretativa
para a obra, contribuindo para a redefinição de seu gênero, questão polêmica
enfrentada pela crítica e fonte de tantos mal entendidos.
Nada melhor do que as próprias palavras de Clarice Lispector para
testemunhar a fonte e a angústia do ato criativo de um escritor, que está na raiz não
apenas de AV, mas de todo o seu trabalho de escritora.
[...] infelizmente não sei redigir, não consigo relatar uma idéia, não sei vestir
uma idéia com palavras. O que escrevo não se refere ao passado de um
pensamento, mas é o pensamento presente: o que vem à tona vem com
suas palavras adequadas e insubstituíveis, ou não existe. (LISPECTOR,
1999, p. 285
).
91
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