Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
BRUNO DE OLIVEIRA MOREIRA
DE HERÓIS A TIRANOS:
JORNAL A TARDE, AGÊNCIAS INTERNACIONAIS DE NOTÍCIAS E A
REVOLUÇÃO CUBANA COMO REPRESENTAÇÃO JORNALÍSTICA (1959-1964)
SALVADOR
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
BRUNO DE OLIVEIRA MOREIRA
DE HERÓIS A TIRANOS:
JORNAL A TARDE, AGÊNCIAS INTERNACIONAIS DE NOTÍCIAS E A
REVOLUÇÃO CUBANA COMO REPRESENTAÇÃO JORNALÍSTICA (1959-1964)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em História Social.
Orientador: Prof. Dr. Muniz Gonçalves Ferreira
SALVADOR
2010
ads:
__________________________________________________________________________
Moreira, Bruno de Oliveira
M838 De heróis a tiranos: Jornal A Tarde, agências internacionais de notícias e a
Revolução Cubana como representação jornalística (1959-1964) / Bruno de Oliveira
Moreira. – Salvador, 2010.
133 f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Muniz Gonçalves Ferreira
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, 2010.
1. Cuba – História – Revolução, 1959. 2. Imprensa – Bahia – História.
3. Agências de Notícias. 4. Hegemonia I. Ferreira, Muniz Gonçalves. II. Universidade
Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
CDD – 972.91064
Para Keka, Bia e Vivi
AGRADECIMENTOS
À minha mãe Ana Angélica, pelo seu esforço, incentivo e ajuda, fundamentais
para que eu aqui chegasse.
Ao meu pai Ernesto Moreira, por vibrar comigo a cada conquista.
À minha companheira Viviane, pelo amor e pelo apoio incondicional,
inexprimíveis em palavras.
A minha filha Beatriz, pelo amor, pela inspiração e por me ofertar seu sorriso
em tantos momentos que ele foi fundamental.
A minha família soteropolitana por terem me abrigado de maneira tão
carinhosa durante todo o período do Mestrado: minha avó Terezinha, meus tios
José Maurício e Fátima e minha prima Gabriela.
Ao Profº Muniz Ferreira, pela orientação e pelas considerações exatas nos
momentos mais oportunos.
À Professora Kátia Vinhático Pontes, pela ajuda inicial, fundamental e
abnegada.
À CAPES, por ter oferecido uma bolsa de mestrado durante o segundo ano
da pesquisa.
Aos amigos historiadores do Coletivo Casa de Taipa Danilo Ornelas, Erahsto
Felício, Gissele Raline e Taís Carvalho, pelas conversas produtivas, pela amizade,
e por continuarem me ensinando a viver em meio às diferenças.
Aos colegas do mestrado Jamile Silveira, Halysson Gomes, Henrique
Oliveira e André Jacobina pelos diálogos travados e pelo companheirismo
demonstrado.
Aos funcionários da Biblioteca Pública do Estado da Bahia e do Centro de
Memória da Fundação Pedro Calmon (em especial, Walter) pelo auxílio na
disponibilizão de fontes.
Aos professores que conduziram as disciplinas que cursei ao longo do
Mestrado, nas quais foi possível dialogar constantemente com as minhas intenções
da pesquisa: Antônio Fernando Guerreiro, Israel Pinheiro, Maria Cecília Velasco e
Cruz, e, especialmente, Maria Victória Espiñeira Gonzalez, por sua condução
aberta e frutífera das aulas e pelo seu jeito humano e sincero de lidar com os
alunos.
Aos professores da banca de qualificão Paulo Miguez e Lucileide Cardoso,
pelas opiniões e sugestões oportunas.
Aos que ofereceram informações centrais ou complementares para a
presente pesquisa também envio meus sinceros agradecimentos: Luiz Alberto
Moniz Bandeira, Luis Guilherme Pontes Tavares, Monica Celestino e Maria
Auxiliadora da Silva.
A todos, muito obrigado!
6
RESUMO
O presente trabalho objetiva investigar a cobertura envidada pelo jornal baiano A
Tarde à Revolução Cubana nos seus cinco primeiros anos pós-triunfo (1959-1964).
A incorporação por este veículo de um padrão político-discursivo marcadamente
pró-estadunidense e anticomunista, no contexto da chamada “Guerra Fria”, importa,
neste sentido, consideravelmente. Tamm são avaliados os textos do então
jornalista Milton Santos, publicados neste periódico, em 1960, e agrupados na
coluna “Visita a uma Revolução”. A coluna, que versou sobre Cuba, demonstrou
rupturas com relação à linha editorial formulada até ali pelo jornal com relação à
Revolução que se processava no ps caribenho. Finalmente, tamm avaliou-se
comparativamente a cobertura de dois dos mais importantes veículos baianos do
período: A Tarde (centro da investigação) e Jornal da Bahia, o que demonstrou que
o esforço de hegemonização informativa promovido pelas agências estadunidenses
de nocias pôde ser confrontado por outros tipos de abordagens em relação ao
tema.
Palavras-chave: Jornal A Tarde; hegemonia informativa; Revolução Cubana.
7
ABSTRACT
This research aims to analyse the coverage of the Cuban Revolution promoved by
the newspaper A Tarde (Salvador, Bahia) between 1959 and 1964. The
incorporation by this vehicle of a standard politic-discursive in favor of the United
States in the Cold War context, is a very important element for the present work. We
also evaluated the Milton Santo's news column, publicated on the vehicle in April
1960. The texts, who have spoken about Cuba, presented disruptions in relation to
A Tarde editorial line until there demonstrated on Cuban Revolution. Finally, we also
evaluated comparatively the coverage of two of the most importants Bahia vehicles
in the period: A Tarde e Jornal da Bahia, fact which has shown that the effort of U.S.
informative hegemony promoved by the american agences was confronted by other
types of approaches in relation to the issue.
Keywords: A Tarde newspaper; informative hegemony; Cuban Revolution.
8
SUMÁRIO
RESUMO ….................................................................................................... 6
ABSTRACT …................................................................................................ 7
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ….................................................... 10
INTRODUÇÃO …......................................................................................... 12
1 JORNAL A TARDE, AGÊNCIAS INTERNACIONAIS DE NOTÍCIAS E
HEGEMONIA INFORMATIVA NO CONTEXTO DA GUERRA FRIA: CUBA
COMO REPRESENTAÇÃO JORNALÍSTICA ….......................................... 17
1.1. Grande imprensa fiel à boa tradição”: A Tarde em campos-limites de
atuação ideológica ….................................................................................... 17
1.2. A Revolução Cubana como representação jornalística …............................ 26
2 REPRESENTAÇÕES DA REVOLUÇÃO CUBANA ANTES DA
VINCULÃO FORMAL AO SOCIALISMO: NA CONCILIAÇÃO ENTRE O
FEITO HERÓICO E O “BANHO DE SANGUE …........................................ 40
2.1. O feito heróico: primeiras representações do triunfo rebelde …................... 40
2.2. Críticas ao “banho de sangue” …................................................................. 49
2.3. Por uma “consciência democrática” …......................................................... 51
3 “VISITA A UMA REVOLUÇÃO”: UM REPRESENTANTE DO A TARDE EM
CUBA? (ESCRITOS DE MILTON SANTOS, 1960)..................................... 57
3.1. Na aparente contradição, o retrato amplo das indefinições …..................... 59
3.2. Sobre os temas tratados ….......................................................................... 63
9
3.3. Leituras do retorno................................................................................... 70
4 “OS VERMELHOS DE E DE CÁ”: CUBA NO CENTRO DA
REPRESENTAÇÃO ANTICOMUNISTA (1961-1964) ….............................. 79
4.1. Cuba como ameaça à América: a declaração socialista como marco da
intensificação das críticas à Revolução ….................................................... 79
4.2. Representações do discurso anticomunista sobre Cuba no contexto do pré-
golpe” …........................................................................................................ 88
4.3. Cuba como ameaça combatida: o jornal A Tarde e o golpe civil-militar de
1964 ….......................................................................................................... 93
5 A TARDE E JORNAL DA BAHIA CONFRONTANDO REPRESENTAÇÕES
SOBRE A REVOLUÇÃO CUBANA …....................................................... 101
5.1. O Jornal da Bahia num “tempo em movimento”: origem e aspectos
editoriais …................................................................................................. 102
5.2. A cobertura dos tribunais revolucionários por A Tarde e JB …................... 106
5.3. Representação jornasticas sobre as relações entre Cuba e Estados
Unidos …..................................................................................................... 113
5.4. A invasão da Baía dos Porcos, por A Tarde e JB …................................... 117
CONSIDERAÇÕES FINAIS …................................................................... 123
FONTES UTILIZADAS …........................................................................... 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …....................................................... 126
ANEXOS …................................................................................................. 131
10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ALN Aliança Libertadora Nacional
AFP ou FP Agence France-Presse
AP Associated Press
BRAC Buró de represión a las Actividades Comunistas
CIA Central Intelligence Agence
CGT Comando Geral de Trabalhadores
CPE Comissão de Planejamento Econômico
ESG Escola Superior de Guerra
EUA Estados Unidos da América
IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática
ILET Instituto Latino-Americano de Estudos Transnacionais
INRA Instituto Nacional de Reforma Agraria
IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
JB Jornal da Bahia
OEA Organização dos Estados Americanos
ONU Organização das Nações Unidas
PCB Partido Comunista Brasileiro
PSD Partido Social-Democrático
UDN União Democrática Nacional
UFBA Universidade Federal da Bahia
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UPI United Press International
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
11
O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma
informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isto
tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica
e social, a informação constitui um dado essencial e imprescindível.
Mas na medida em que o que chega às pessoas, como também às
empresas e instituições hegemonizadas, é, já, o resultado de uma
manipulação, tal informação se apresenta como ideologia.
Milton Santos
12
INTRODUÇÃO
duas formas de se encarar a designação “Revolução Cubana”: uma como
evento, datado de de janeiro de 1959, e a outra como processo histórico, ali
apenas iniciado. Adotando a segunda perspectiva, é notório que, com cinquenta e
um anos de idade, a Revolução Cubana mantém-se como um tema recorrente no
noticiário internacional. Através dele, seus passos foram transmitidos ao mundo
filtrados por diversos interesses e, meio século depois, o país em que ela se
processa mantém-se, na opinião de grande parte da mídia corporativa e liberal,
como uma ameaça ao mundo, como um lugar onde um ou dois ditadores
comandam um povo subjugado, miserável e ansioso para de lá sair.
É mesmo a partir de demandas do presente que definimos de que forma e
quais elementos iremos buscar no que se convencionou chamar de passado, ainda
que as ligações de um com o outro sejam o intrínsecas ao ponto de
questionarmos uma classificação tão dicotômica. Marc Bloch legou ao historiador
esta ideia e, aqui, ela figura como elemento norteador. Desta forma, foi mesmo a
partir das percepções de que as representações sobre Cuba no discurso
jornalístico recorrem, hoje, a sentidos vinculados aos interesses dos que detém o
poder de construir o mundo através de suas representações, que se configuraram
as primeiras inquietações entre as que levaram à escolha do tema aqui proposto.
Tamm é evidente que o quadro geral que hoje se formula em relação à
Revolução Cubana deve ser entendido como fruto de um processo histórico longo
de construção de representações em relação ao assunto, no qual determinados
sentidos foram sendo estabilizados” e se tornando interpretações mais “comuns”,
mais recorrentes, em relação àquela Ilha e ao processo revolucionário que se
configura
1
.
A presente pesquisa objetiva, de maneira central, avaliar, num momento
1
Sobre a formulação e a estabilização de certos sentidos no discurso jornalístico, ver MARIANI,
Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de
Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1998.
13
hisrico interessante, efervescente e tenso, ironicamente chamado de “Guerra
Fria”, a cobertura jornalística sobre a Revolução Cubana, cujas representações
foram atingidas pelas polarizações ideológicas típicas do período.
Centralizamos as investigações num veículo de comunicação específico,
configurado, naquele período, como a maior empresa jornalística da Bahia: o jornal
A Tarde. Mas, por que essa centralizão? Por que o A Tarde? Que fatores levaram
a pesquisa para essa definição? Para justificar, é preciso que se recorra a três
elementos essenciais, os quais apresentarei em ordem crescente de importância.
Em primeiro lugar, nos contatos emricos preliminares chamou a atenção o
volume de notícias, editoriais e avaliações sobre Cuba neste veículo, no período.
Ainda que a cobertura da imprensa em geral tenha sido, na medida das
possibilidades de cada jornal, “dia-a-dia” com relação ao evento, a quantidade de
textos e os espaços reservados no A Tarde ao tema eram maiores do que nos
outros jornais baianos do período. Segundo, o próprio poder de interferência e
alcance conquistados pelo A Tarde, e, consequentemente, sua força diante de
uma “opinião pública” soteropolitana e baiana - evidenciada empiricamente através
de elementos como a quantidade maior de páginas e de anúncios com relação a
seus concorrentes, qualidade de impressão avançada, entre outros -, seduzia no
sentido de se tentar compreender a sua cobertura específica, já que, pelo menos
no aspecto numérico, apresentava-se como a mais interferente.
Além desses, o terceiro e mais importante elemento para a definição diz
respeito à constatação de um padrão potico-discursivo no jornal, que pode ser
entendido como pró-estadunidense, marcado pelo diálogo entre traços do
liberalismo e valores aristocráticos, e anticomunista
2
. Padrão este que determinou a
vinculação dos editoriais do jornal aos esquemas formulados sobre Cuba pelas
grandes agências de notícias estadunidenses, colaborativas ao governo daquele
ps, no momento peculiar de disputas da “guerra fria”.
A adesão do veículo à ideia de liderança inconteste dos Estados Unidos no
2
O termo “padrão político-discursivo foi cunhado a partir das conversas com o amigo Erahsto
Felício, que também o utiliza na análise de objetos distintos daqueles que aqui o considerados.
Ver, neste sentido, SOUSA, Erahsto Felício de. Subalternos no caminho da modernidade: marginais,
politização do cotidiano e ameaças à dominação numa sociedade subordinadora do sul da Bahia
(Itabuna, década de 1950). Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – UFBA, Salvador, 2010.
14
bloco ocidental, e da sua consequente responsabilidade pelo impedimento de
ingresso do comunismo no continente americano, ficaria evidenciada de maneira
nítida em seus editoriais. E, neste sentido, a escolha de uma agência de notícias
exclusiva, e oriunda daquele país, para a reprodução das nocias sobre Cuba, se
conforma a esses declarados princípios. Ainda neste sentido, sua adesão à
propaganda de combate ao “perigo vermelho” e à retórica estratégica que levou à
deflagração do golpe civil-militar de 1964, tamm é importante, já que, neste
contexto, Cuba figurou como o mais recorrente e próximo exemplo de perigo
comunista.
Ou seja, estaremos aqui empenhados no sentido de tentar entender o jornal
A Tarde como um ator político, que atuou na sedimentão de um discurso
jornalístico repassado internacionalmente pela Associated Press, mas que se
adequava aos campos de atuação ideológica deste jornal, definidos conjuntura e
estruturalmente.
O recorte temporal es balizado entre 1959, quando se dão as primeiras
representações sobre o triunfo da Revolução Cubana; e 1964, quando a
propaganda anticomunista que a ela esteve associada converte-se em justificativa
de Estado, deixando de figurar como campanha p-golpe. Campanha esta na qual
o exemplo geograficamente próximo da Revolução Cubana fora tomado como
ameaça à segurança interna brasileira.
* * *
O primeiro capítulo da dissertação assume uma condição de efetiva
introdução teórica ao trabalho, no qual são apresentadas inicialmente questões
relacionadas ao perfil institucional do A Tarde. A partir disso, tentamos articular um
mapeamento dos campos possíveis de atuação ideológica deste jornal para, daí,
relacioná-los às respostas conjunturais que o mesmo estabeleceu no período
estudado. Nesse momento, tamm são avaliadas as relações entre as agências
internacionais de notícias e a imprensa brasileira, além das contribuições de
autores acerca do papel da imprensa como formuladora de consensos e
sustentadora de uma hegemonia definida pelos interesses das classes dominantes.
15
No último subitem do capítulo, tentei ainda dimensionar a representatividade da
Revolução Cubana - enquanto método insurrecional - para grupos de esquerda no
Brasil; com o objetivo de avaliar, paralelamente, a potencialização de sua imagem,
no seio da direita, de padrão revolucionário imitável por grupos contestadores no
Brasil e, que, por isso mesmo, colocava em risco a estabilidade da ordem político-
social vigente.
O capítulo seguinte dedica-se à análise de uma primeira fase de
representações sobre a Revolução Cubana no A Tarde, demarcada, basicamente,
entre o momento do triunfo rebelde, e a formalização da opção socialista declarada
por Fidel Castro em abril de 1961. Nesta fase, a força imagética de um movimento
saneador, que havia derrubado com o apoio da população de seu país um regime
corrupto e desgastado, dividiu espaço com as críticas aos rumos que eram
tomados pelos rebeldes, então convertidos em governo. Neste ínterim, as
execuções promovidas pelos tribunais instalados nos primeiros dias pós-triunfo
foram alvo de constantes e enfáticas críticas formuladas pelos textos jornasticos.
No ano de 1960, quando as ações em Cuba vão acentuando suas contradições
com relão aos Estados Unidos e aproximando o país, comercialmente, da União
Soviética, as especulações acerca do caráter ideológico do processo político que
se efetivava na Ilha vão cada vez mais conjecturando acerca da possibilidade da
escolha de uma opção de regime socialista por aquele governo.
O capítulo 3 avalia um conjunto de textos escritos pelo jornalista do A Tarde e
geógrafo Milton Santos que, após acompanhar o então candidato à presidência
nio Quadros, elaborou e publicou no vespertino em que atuava, treze artigos
sobre as suas impressões acerca da revolução que ali se processava. O teor
opinativo da coluna intitulada “Visita a uma revolução”, a qual abrigou as
produções, rivalizaram, no entanto, de maneira clara, com as tendências editoriais
exibidas pelo A Tarde, sobre Cuba, até aquele momento (abril de 1960).
Tentaremos avaliar tanto o conteúdo dos textos - os quais, além de tomarem Cuba
positivamente como um mbolo de independência para a América Latina,
apresentaram pontos de vista inéditos para o leitor do A Tarde - quanto as
condições que propiciaram a publicação do material. A coluna de Santos também
pôs em discussão as manipulações envidadas pelas agências estadunidenses no
16
tratamento dado ao tema “Cuba”, denunciando-as e subvertendo-as.
No quarto capítulo, uma segunda fase de representações sobre Cuba é
analisada, a qual percorre o período que vai da formalização do projeto socialista
para a nação, que joga Cuba no centro da representação anticomunista do período,
até a execução do golpe civil-militar que institucionalizaria o temor argumentado
pelas grupos conspiradores acerca da possibilidade da construção de uma
república nos moldes da cubana em território brasileiro. Neste capítulo,
apresentamos o comportamento adesista do jornal A Tarde à tal campanha e a
utilização da temática “Cuba” de maneira associada a um regime que estaria sendo
planejado para que se impusesse ao Brasil por certos “agentes vermelhos”.
Por último, o quinto capítulo se propõe a empreender uma avaliação
comparativa entre a cobertura do jornal que aqui temos tomado como espaço
central da investigação, o A Tarde, e aquela que foi dada pelo Jornal da Bahia, a
eventos e aspectos relacionados ao processo revolucionário em Cuba. Tal capítulo
originou-se de uma constatação preliminar da existência de diferenças significativas
entre as abordagens dos dois veículos, e que se vincularam tanto às origens das
informações consumidas, quanto à composição da equipe de jornalistas e
colaboradores de suas respectivas edições. Além disso, o fato reforça a ideia de
que as formulações estratégicas sobre a Revolução Cubana produzidas pelas
agências dos Estados Unidos, não se apresentavam como regras gerais, das quais
a imprensa do período não poderia escapar.
17
1
JORNAL A TARDE, AGÊNCIAS INTERNACIONAIS DE NOTÍCIAS E
HEGEMONIA INFORMATIVA NO CONTEXTO DAGUERRA FRIA”:
CUBA COMO REPRESENTÃO JORNALÍSTICA
1.1. GRANDE IMPRENSA “FIEL À BOA TRADIÇÃO”: A TARDE EM CAMPOS-
LIMITES DE ATUAÇÃO IDEOLÓGICA
Fundado em outubro de 1912 por Ernesto Simões Filho, bacharel em direito
e jornalista, o jornal A Tarde não tardaria para, já na metade do século XX, tornar-se
o vculo de maior poder de interferência política do Estado. Sua fundação
acompanhou, em grande medida, as transformações da imprensa brasileira na
transição de uma fase artesanal, que marcou as experiências jornalísticas do
século XIX, para uma de caráter empresarial, que gradativamente viria a se
consolidar ao longo do século XX. Em outras palavras, o A Tarde, na Bahia,
expressava de maneira representativa a fase organizada sob a ótica do
capitalismo que assumia a atividade de imprensa no Brasil do início do século XX
3
.
E, apesar de enfrentar dificuldades no primeiro ano de existência
4
, no seguinte
atingiu o nível de empresa competitiva e “passou a ter […] o mais completo parque
gráfico da cidade, capaz de prestar serviços a terceiros”
5
.
Neste momento de transição, que se insere num quadro geral de
redefinições da atuação da imprensa em todo o mundo, além das mudanças no
tocante à montagem da estrutura de produção, o conteúdo jornastico também
passava por reorientações, cujos dois sentidos essenciais eram: “o que noticiar” e
3
SANTOS, José Weliton A. dos. Formação da grande imprensa na Bahia. Dissertação de Mestrado
em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFBA, Salvador, 1985. A
periodização “imprensa artesanal - imprensa industrial”, considerada pelo autor, é baseada na
divisão estabelecida por Nelson Werneck Sodré ao caracterizar as fases da imprensa no Brasil. Ver
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
4
Nelson Varón Cadena, num artigo comemorativo publicado no periódico em ocasião de seus 70
anos, fez uma exposição de tais dificuldades. Segundo o autor, elas eram, principalmente, de ordem
técnica (utilização de uma velha máquina Marinoni para impressão) e de ordem comercial
(dificuldade de captar anúncios frente à disputa com jornais consolidados na capital); ambas
superadas em pouco tempo. CADENA, Nelson V. “A Tarde: uma empresa construída a partir de um
novo conceito mercadológico”. A Tarde, Salvador, 14 de out. 1982, p. 2.
5
SANTOS, José Weliton A. dos. op. cit., 1985. p. 62.
18
“como noticiar”.
Sobre o primeiro ponto, José Weliton Aragão dos Santos avalia que a partir
da eclosão da Primeira Guerra Mundial, a imprensa baiana (acompanhando as
transformações verificadas em outros locais do país) se reorganiza no sentido de
conceder atenção a eventos que se desenrolavam no nível internacional. Desta
forma, a importância das agências internacionais de notícias, em funcionamento
desde meados do século XIX, será superlativada, criando demandas novas para a
impressão dos jornais
6
. O autor reflete que, por exemplo, a Revolução Russa de
1917, que seria tema de inúmeros editoriais anticomunistas na imprensa baiana, no
combate às tendências “maximalistas”, demonstra “a abertura dos jornais para
outras preocupações que não somente as da política local”
7
.
Acerca do segundo eixo, o jornalismo baiano, também em conexão com as
novas demandas jornalísticas, tentará, gradualmente, estabelecer uma padrão
discursivo de “imparcialidade” nos seus textos, afastando-se, na medida do
possível, dos modelos anteriormente predominantes de discurso jornalístico, em
geral panfletários e vinculados a projetos políticos (partidários ou não) bem
definidos
8
. Tal prática se importante para o crescimento do público leitor e,
consequentemente, do mero de anunciantes, e também irá valorizar a produção
de consensos, uma vez que, abrigado por uma pretensa isenção na fala, as
narrativas jornalísticas tendem a tornar-se credibilizadas
9
. Ou seja, o discurso
jornalístico, travestido de isenção, também se fantasiava de verdade inconteste. E o
esforço era (e é) o de que a interpretação fosse entendida como o fato em si,
através de um modo específico de expô-la. O A Tarde acompanhará tais tendências
6
SANTOS, José Weliton A. dos. op. cit., 1985.
7
Id. Ibid., p. 4. Grifo meu.
8
No entanto, é importante verificar que, no geral, a grande imprensa da capital baiana esteve
associada a partidos ou líderes políticos do Estado na primeira metade do século XX e, ainda que se
verificasse um esforço de se atribuir isenção à descrição dos fatos (com citação de fontes, uso de
falas de especialistas, etc.); em certos momentos, e na abordagem de certos temas, o recurso ao
apelo político apaixonado irá se fazer presente de maneira aberta. Ver SANTOS, José Weliton A.
dos. op. cit., 1985.
9
Ver SANTOS, José Weliton A. dos. op. cit., 1985; e ALVES, Cristiano Cruz. Um espectro ronda a
Bahia: o anticomunismo na década de 30. Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas - UFBA, Salvador, 2008. Vale frisar ainda que, no final dos anos 40
do século XX, a tentativa de se separar “objetividade” e subjetividade no conteúdo jornalístico irá
delinear as preocupações dos teóricos da Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa”, a qual
abordarei em momento oportuno da dissertação.
19
e, gradualmente, se consolidará tanto como um jornal preocupado com a
reprodução noticiosa dos eventos internacionais, quanto atento aos modelos
normativos do jornalismo, vigorantes a vel internacional.
Enquanto esteve vivo, até 1957, Simões Filho acompanhou de perto o que se
publicava no seu vespertino. Nele, suas tendências político-ideológicas eram
expostas, num ideário que mesclava princípios de defesa da soberania das leis e
igualdade jurídica entre os homens, com traços elitistas, que afastavam-se da
defesa de reformas estruturais na sociedade. Tais valores foram definindo os
campos-limites das práticas discursivas do jornal, o qual foi assumindo, no aspecto
editorial, os valores do seu dono; tornando-se, nas palavras de Pedro Calmon, “o
retrato de seu fundador”
10
.
Em nota do dia 04 de abril de 1956 publicada no jornal, Simões Filho igualou
o A Tarde ao “espírito bahiano, conservador, avêsso a mudanças bruscas, fiel à boa
tradição”
11
. Para o proprierio, que comentava naquela ocasião as mudanças
gráficas por que passava o jornal, o vespertino deveria seguir sem extravancias,
conservando antigos bitos, que “a Bahia é em tudo medida e discrição. 'A
Tarde' não é e não quer ser outra coisa senão a sua sombra”
12
. Associando a
retórica do moderno à apologia da tradição, o A Tarde acenava, a meu ver, um certo
“conservantismo moderno”, típico das elites políticas baianas, tal como descreveu
Dantas Neto
13
. E, entendendo que as representações, “descrevem a sociedade tal
como (seus formuladores) pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”, tal
como bem assinala Roger Chartier
14
, a nota demonstrava o caminho por ele
escolhido a trilhar: as mudanças que a modernidade fosse impondo estariam
sempre condicionadas à preservação das tradições. Para Simões Filho, uma
posição condizente com o espírito baiano (do modo como ele o “lia” e o “dava a
10
CALMON, Pedro. Vozes da Bahia”. In: A Tarde, Salvador, 15 de out. 1962, p. 3. Pedro Calmon
(1902-1985), político e jurista baiano, também foi autor de uma biografia de Simões Filho (CALMON,
Pedro. A vida de Simões Filho. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1986) e costumava escrever
textos de elogio ao jornal em ocasiões especiais.
11
NOTAS diversas A nova “A Tarde”. A Tarde, Salvador, 04 de abr. 1956, p. 4. A nota não es
assinada mas foi atribuída a Simões Filho por CALMON, Pedro. op. cit., 1986. p. 217.
12
Ibid.
13
DANTAS NETO, Paulo Fábio. Quebra da casca do ovo: a elite baiana e a obra do golpe de 1964.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_01.pdf>. Acesso em 09/05/2009.
14
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel,
Bertrand Brasil, 1990.
20
ler”
15
): “avesso a mudanças bruscas”.
Parece-me ainda coerente concordar que o centro da linha editorial do A
Tarde era mesmo a defesa da ordem, ou a “defesa de uma ordem”, de um modelo
de democracia, que, para Antonio Sérgio Guimarães, aparecia no jornal como “uma
ordem capitalista onde se respeitem o direito à propriedade privada e as liberdades
individuais do cidadão (ou seja, dos que têm direitos)”
16
. O A Tarde, então,
apresentava um ideal de democracia liberal-burguesa centrada e reduzida
basicamente na igualdade jurídica e no direito à propriedade e ao voto. Sendo este
último previsto, invariavelmente, como a expressão mais sincera da satisfação ou
insatisfação popular
17
.
Considero importante a avaliação das historiadoras Heloísa de Faria Cruz e
Maria do Rosário da Cunha Peixoto, as quais, num artigo recente, nos fazem refletir
acerca de uma problemática crucial quando tratamos da relação entre imprensa e
hisria: será possível enquadrarmos um determinado jornal num projeto editorial
específico ou numa posição política e ideológica geral apresentada por ele ao longo
de sua trajetória?
18
Em outras palavras, será possível afirmar que o jornal “A” é
liberal, enquanto o “B” é conservador, ou que o jornal “C” é liberal-conservador?
As autoras rejeitam a possibilidade, alegando a necessidade de se
reconhecer, isto sim, os traços gerais apresentados pela linha editorial do vculo
analisado em momentos específicos de sua história, sob condições específicas de
circulação e sob o efeito de confrontos, tendências e disputas no seio de cada
conjuntura histórica
19
. É mesmo neste sentido que temos tentado trabalhar,
avaliando o comportamento do jornal no decorrer do período recortado para a
presente pesquisa (1959-1964), no sentido de entender de que maneira o jornal
repercutiu, deu a ler, os eventos considerados na pesquisa.
15
Considerando as terminologias utilizadas por Chartier (Id. Ibid.)
16
GUIMARÃES, Antônio S. Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia. Dissertação de
Mestrado em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas UFBA, Salvador,
1982. p. 69.
17
Não é prioritária aqui a discussão sobre os limites do sufrágio em meio ao modelo capitalista, mas
é importante ressaltar que questões como propaganda partidária com verba privada e,
principalmente, o poder da mídia corporativa como promotora de campanhas, integram, ao meu ver,
algumas dessas contradições.
18
CRUZ, Heloisa de Faria e PEIXOTO, Maria do Rosário da C. “Na oficina do historiador: conversas
sobre história e imprensa”. In: Projeto História, São Paulo, n. 35, dez. 2007, p. 253-270.
19
Id. Ibid.
21
No entanto, entendo que tamm seja plausível a busca de uma solução
analítica que dê conta de caracterizar o vculo em seus campos-limites discursivos
apresentados. Ou seja, sua trajetória, suas participações em determinados eventos
políticos, as pressões externas, os valores de seu dono, de seus redatores e
editores, seus vínculos políticos (ainda que variáveis), as escolhas das fontes de
informação, acabam definindo um campo de atuação ideológica demarcada por
limites “possíveis”, que no caso do A Tarde, transitava, de acordo com o momento,
entre os valores do liberalismo clássico e o elitismo. Assim procedendo, parece-me
improvável que o A Tarde pudesse, em algum momento específico de sua trajeria
(até o momento estudado), apresentar uma linha editorial que pudéssemos
classificar como “de esquerda”, por exemplo
20
.
Assim, ainda que seja evidente, como o dissemos, que as posições não
eram estáticas e poderiam inclusive demonstrar contradições, a linha editorial girou
em torno de um padrão político-discursivo predominante, que naquela conjuntura
aparecia substanciado pela articulação entre uma identidade do jornal marcada por
valores liberais não raramente associados a traços de conservadorismo; e o
ingrediente importante das tendências anticomunistas dos textos noticiosos que
lhes eram enviados, num contexto no qual a polarização entre esquerda e direita
figurava como uma constante no discurso jornalístico.
Ou seja, na presente pesquisa, busca-se apresentar um certo padrão
político-discursivo ou ideológico-informativo apresentado pelo jornal A Tarde
especialmente no momento histórico que se convencionou chamar de Guerra Fria.
Assim, tentaremos dar conta de avaliar que posições o jornal A Tarde adotou diante
de uma disputa tão acirrada e que afetava diretamente o trabalho da imprensa, uma
vez que as representações (varveis) sobre inúmeros temas tamm estavam
direta ou indiretamente vinculadas ao conflito em questão. No centro da avaliação,
e como mote ilustrativo, estará um tema cujas abordagens refletiram de maneira
importante as pretensões de hegemonização ideológica do período: o triunfo e a
trajetória da Revolução Cubana em seu primeiro quinquênio.
20
Seguindo as pistas de Norberto Bobbio, vamos tomar aqui o conceito de esquerda
consagradamente vinculado às noções de busca pela transformação social, de valores igualitários e
de não-aceitação da desigualdade como algo natural. Ver BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda:
razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora da UNESP, 1995.
22
* * *
É fato que as empresas jornalísticas tendem a defender os interesses dos
grupos ou indiduos que as detêm. Mas, no caso específico do A Tarde, o
invariável interesse de Simões Filho pelo conteúdo do jornal, mesmo em momentos
em que o emprerio esteve dedicado ao trabalho de Ministro da Educação e
Saúde, durante o governo Vargas, demonstra um sistemático esforço do
proprietário em acompanhar da maneira mais plena possível o quê e como se
imprimia em seu vespertino. Ou seja, mais do que uma orientação geral ou uma
política editorial definida e acompanhada pelo dono, o A Tarde, conviveu, a 1957,
com a presença marcante de seu fundador no processo de elaboração
21
. Seu
cuidado em interferir até mesmo nas posições das colunas, manchetes e
reprodução de textos do serviço telegráfico no A Tarde ficam demonstrados, por
exemplo, nas suas diversas cartas endereçadas à redação, das quais travei contato
com aquelas remetidas ao então diretor Ranulfo Oliveira, no período de 1938 a
1957
22
.
Em artigo jornalístico recente, Francisco Viana, relembrando seu trabalho no
jornal, no final dos anos 60, avaliou de maneira ilustrativa as características do
jornal que o abrigava:
Vivia de fama, da reputação modelada nos tempos do Dr. Simões
Filho, o liberal conservador que fundou o jornal. Seus olhos, nada
ingênuos, fixavam em duas instituições basilares: a Igreja e as
Forças Armadas. Mas equilibrava-se ao centro e seus movimentos
gravitavam no rumo do liberalismo clássico. Seu redator-chefe, o
venerando Jorge Calmon era um esteio contra o obscurantismo do
regime. Anticomunista, orgulhava-se de proteger os jornalistas de
esquerda ou contrários ao regime. Enfim, um jornalista honrado que
acreditava genuinamente no modelo liberal de fazer jornal.
23
Na fala do jornalista, Simões Filho é representado no diálogo entre os traços
21
Acredito que tal participação não se dava de forma diária, mas, ainda assim, constante.
22
O acervo privado de Simões Filho está guardado no Centro de Memória da Fundação Pedro
Calmon, em Salvador.
23
VIANA, Francisco. “Uma época de ouro”. In: Revista digital Terra Magazine, 3 de out. 2009.
Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4017443-EI6783,00-
Uma+epoca+de+ouro.html. Acesso em 01/04/2010.
23
liberais e conservadores. E o A Tarde, através de seu redator-chefe, é vinculado ao
modelo liberal de se fazer jornal. De acordo com tais princípios, num regime de livre
mercado sem interferência do Estado, as ideias também devem circular livremente
através dos jornais e a verdade é o resultado do “livre” embate daquelas
24
. Além
disso, o jornal também deve assumir um papel de “vigilante e fiscalizador do
Estado, de esclarecimento e orientação e posteriormente de representação do
indivíduo cidadão na sua mediação com o governo”
25
. Entende-se que o jornalista
Francisco Viana refere-se a esses aspectos quando fala da crença genuína do
então redator-chefe Jorge Calmon em tal modelo
26
.
Tal modelo liberal-clássico de se fazer jornalismo foi largamente criticado,
principalmente por setores progressistas e/ou socialistas, no sentido de que se
apoiava na ilusão de que as ideias poderiam circular livremente em veículos de
comunicação cada vez mais ligados aos grupos econômicos que os sustentavam e
dependentes de informações mercantilizadas, formatadas por agências de nocias
transnacionalizadas.
Na década de 40, as críticas descritas se associaram às que foram
formuladas contra a imprensa estadunidense por conta de sua cobertura
tendenciosa e influente durante a Segunda Guerra. Personalidades do mundo
empresarial e acadêmico reuniram-se, então, para discutir uma orientação geral a
ser seguida pela imprensa liberal, diante de tantas contradições. Foi criada, assim,
em 1942, a “Comissão Hutchins”, que tentava avaliar a função da imprensa na
sociedade moderna
27
.
Fortemente inspirada na “Teoria da Responsabilidade Social”, de filiação
liberal, que refletia sobre o papel social das empresas na sociedade, a Comissão
24
Tal como explicado por SERRA, Sônia. “Jornalismo político dos comunistas no Brasil: diretrizes e
experiências da 'Imprensa Popular'”. In: Anais do II Congresso da Associação Brasileira de
Pesquisadores em Comunicação e Política. Belo Horizonte, 2007.
25
Id. Ibid.
26
Em 1965, Jorge Calmon definiu o sujeito-jornalista como '… o depositário do contrato feito pela
sociedade com uma instituição particular – a imprensa para que proteja o interesse público,
fiscalize os governos, denuncie os abusos, clame contra as violências, ampare as liberdades,
advogue pelos desprotegidos, zele pelo Direito, propugne pelo progresso, pela prosperidade coletiva
para a construção pacífica e harmoniosa do futuro'”. CALMON, Jorge. “Discurso de Posse”.
Salvador, Revista da Academia de Letras da Bahia. 21. p. 85-93 apud MATTOS, Sérgio. Jorge
Calmon (1915-2006): o jornalismo e o jornalista. Mesa-Redonda. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=565FDS007. Acesso em 17/04/2010.
27
SERRA, Sonia. artigo citado, 2007.
24
tentou articular uma Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa”. No geral, a
teoria mantém os traços característicos do modelo liberal cssico, sendo os jornais
ainda entendidos como cães-de-guarda atentos a possíveis desmandos dos
governos; mas acrescenta alguns pontos importantes como o privilegiamento do
esclarecimento público, com utilização de distintas fontes de informação, além da
necessidade de serem separados “opinião e “fato” no discurso jornalístico. Ou
seja, apoiada na ideia da neutralidade da fala, a teoria regulava que os jornais
deveriam distinguir “objetivamente”, para o leitor, os textos jornalísticos
“informativos (notícias, notas, reportagens e entrevistas), pretensamente
imparciais; dos textos jornalísticos opinativos” (editoriais, comentários, artigos,
resenhas e colunas), nos quais a posição de um autor ou do jornal é evidenciada
de forma direta
28
.
No Brasil, a teoria, ainda segundo Serra, encontrou forte bloqueio na intensa
partidarização dos jornais. Mas, ainda assim, algumas de suas normatizações
foram adotadas por jornais brasileiros, o que pode ser observado de maneira clara
quando se avalia a evolução das abordagens jornalísticas na segunda metade do
século XX. Para os jornais, interessados no aumento constante do público-leitor,
era importante a adaptação de seus impressos aos modos como estes eram
produzidos nos grandes “centros” mundiais.
* * *
Ao longo do século XX, o jornal A Tarde acompanhou os grandes embates
políticos do restrito nível de tomada de decisões do poder estadual baiano,
concentrado em Salvador; tornando-se, em vários momentos, mais que
testemunha, ator das principais vicissitudes politicas que interessaram ao Estado
ao longo do século.
Em 1920, oito anos após seu surgimento, o A Tarde evidenciou sua força
alcançada como ator político no episódio conhecido como “Revolução Sertaneja”. O
evento, que confrontou coronéis do interior do Estado contra o grupo político de J.
28
SERRA, Sonia. artigo citado, 2007.
25
J. Seabra, contou com o trabalho empenhado do jornal, ao contribuir para a
desestabilização do governo de Antonio Muniz (1916-1920), aliado de Seabra; e ao
superdimensionar, em prol dos coronéis, a evolução dos acontecimentos no interior
do Estado. E, ainda que o desfecho do evento não tenha sido o esperado para
Simões Filho, o processo demonstrou o poder de atuação que detinha o A Tarde
naquele período
29
.
Durante a década de 30, o jornal também evidenciou sua importância política
ao se tornar veículo principal da campanha “autonomista” empreendida por políticos
baianos vinculados aos interesses da elite econômica do estado, que naquele
momento se indispunha ao projeto varguista de centralizão e dirigismo estatal;
posição que resultou no exílio de Simões Filho durante os momentos iniciais do
governo de Getúlio Vargas
30
. Nos anos seguintes, nas décadas de 1940, 50 e 60, o
A Tarde tornou-se palco do entrelaçamento entre o projeto liberal-burguês em
ascensão e os limites e contornos impostos pelas oligarquias do estado, passando
assim a conciliar os ideais desenvolvimentistas que o liberalismo carregava com as
prerrogativas de uma sociedade marcadamente aristocrática, sustentadas pelas
velhas elites baianas.
Com tais características, A Tarde chegou à metade do século XX como a
maior empresa jornalística da Bahia, com sucursais no Rio de Janeiro e Aracaju, 16
páginas diárias, número elevado de jornalistas e colaboradores, lotado num
imponente prédio na Praça Castro Alves, impressão de alta qualidade para a
época, e com um aspecto de jornal cosmopolita. Tendo realizado assinaturas com
agências nacionais e internacionais de notícias, também se destacava pela
amplitude dos temas e fatos abordados, acompanhando, inclusive, a tendência da
grande imprensa brasileira à época, de dedicar suas primeiras páginas, em geral,
aos temas internacionais. Assim, ao longo de sua trajetória, o jornal A Tarde foi se
consolidando como um veículo de foa frente a uma “opinião pública” baiana e
29
O interesse maior dos coronéis, e também do A Tarde, era o de impedir a vitória eleitoral provável
de Seabra e forçar uma intervenção federal no governo de Antonio Muniz, anulando assim as
eleições. Com as notícias manipuladas que vinham da Bahia, a intervenção se deu, porém em favor
de Muniz. A eleição de Seabra foi garantida e foi estabelecido um acordo com os coronéis, cujas
condições lhes foram bastante favoráveis. Ver SAMPAIO, Consuelo N. Os partidos políticos da
Bahia na Primeira República: uma política de acomodação. 2. ed. Salvador: Edufba, 1999 e
SANTOS, José Weliton A. dos. op. cit., 1985. p. 100-112.
30
SAMPAIO, Consuelo N. op. cit., 1999.
26
soteropolitana
31
.
1.2. A REVOLUÇÃO CUBANA COMO REPRESENTÃO JORNALÍSTICA
Quando, nos primeiros dias de 1959, os rebeldes da Sierra Maestra tomaram
as principais cidades de Cuba, sepultando definitivamente a desgastada ditadura de
Fulgêncio Batista, a imprensa internacional celebrou
32
. Nos textos das já
consolidadas agências internacionais de notícias, reproduzidos largamente nos
principais jornais do mundo, o tom elogioso e celebrativo predominou. A
transmissão telegráfica das notícias possibilitou a cobertura dia-a-dia do processo
nos principais veículos de comunicação do globo e, para estes, a vitória dos
revoluciorios em Cuba representava positivamente a derrubada de mais uma
ditadura no hemisfério.
As nocias sobre os eventos em Cuba chegaram ao Brasil unicamente
através destas empresas noticiosas estrangeiras. Os jornais brasileiros, em geral,
não possuíam correspondentes em outros pses e, desta forma, recebiam as
notícias internacionais através de empresas contratadas para prestar tal servo. Na
virada dos anos 1950-60, dominavam o serviço as estadunidenses Associated
Press (AP) e United Press International (UPI); e as européias Reuters e Agence
France-Presse (AFP), emitindo suas formas de ver o mundo e impondo suas
eleições de temas pertinentes para os mais diversos países.
31
Os números acerca da circulão dos jornais de Salvador nos anuários estatísticos do IBGE para
o período estão agrupados em periódicos “vespertinos” e “matutinos”, não sendo possível, por isso,
chegarmos à tiragem do jornal para o período. Recorremos, assim, tanto aos dados mencionados
acima, como às informações de alguns autores que confirmam o que o exercício empírico
demonstra: que o A Tarde era o jornal de maior circulação do período (Por exemplo, CARVALHO,
Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos
JK (1956-1961). Salvador: Edufba, 1999. p. 115).
32
O New York Times, principal jornal estadunidense, por exemplo, declarou: As notícias que o
presidente Fulgêncio Batista teria celebrado o Ano Novo fugindo de Havana para o abrigo preparado
pelo seu companheiro-ditador, Trujllo, na República Dominicana, foi bem recebida no país. Nós
saudamos o sucesso do movimento liderado pelo devotado Fidel Castro, o qual Herbert L. Mathews,
deste jornal, descreveu aproximadamente dois anos como disposto a lutar por ‘uma nova ordem
para Cuba: radical, democrática e portanto anticomunista’”. (FIDEL Castro's Cuba. New York Times,
18 de jan. 1959, p. e12). Disponível parcialmente em:
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F30812F93D5C1A7B93CAA8178AD85F4D8585F9&
scp=5&sq=fidel+castro&st=p. Acesso em 16/09/2009. Tradução do autor.
27
Pelo grau de organização e estrutura que apresentavam (e ainda
apresentam), essas agências internacionais podem ser melhor definidas como
“agências transnacionais de nocias”, dada “sua racionalidade de empresa privada
que persegue a expansão contínua e a otimização a longo prazo dos lucros”
33
.
Entendendo que tais empresas têm seus interesses essencialmente vinculados aos
pses e estruturas aos quais estão conectadas ou instaladas (dados os benefícios
ecomicos advindos destas relações), sua interferência na construção do mundo
através das interpretações noticiosas tendem a assumir a feição desejada por estes
espaços institucionais de origem
34
.
Ao passo em que foram se desenvolvendo os sistemas de envio de
informações pelo mundo e aumentando os veículos clientes destas produtoras de
notícias por todo o globo, as suas representações definiam o contato do crescente
número de leitores com uma maneira específica de ver o mundo, mas percebida
em geral como o fato em si. Tal como expressa Margarethe Born Steinberger, numa
análise da mídia contemporânea, os jornais possuem uma capacidade maior do
que a de traçar mapas ou contornos gerais do mundo, mas a de produzir
socialmente o mundo através da ampla circulação destas representações
35
.
Para o presente trabalho, interesso-me particularmente pela Associated
Press, agência escolhida pelo jornal A Tarde para a transmissão das notícias sobre
o tema da revolução cubana ao longo do período estudado
36
. Por isso, faz-se
relevante a apresentação ainda que introdutória do perfil geral desta agência
específica. Para tanto, utilizei uma série de estudos promovidos pelo Instituto
Latino-Americano de Estudos Transnacionais (ILET) e publicados num livro
33
SOMAA, Juan. “A estrutura transnacional de poder e a informação internacional: elementos para
a definição de políticas face às agências transnacionais de notícias”. In: MATTA, Fernando Reyes
(org.). A informação na nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 38.
34
SOMAVÍA, Juan. “A estrutura...”. In: MATTA, Fernando Reyes (org.). op. cit., 1980. p. 38.
35
STEINBERGER, Margarethe Born. Discursos geopolíticos da mídia jornalismo e imaginário
internacional na América Latina. São Paulo: EDUC; Fapesp; Cortez, 2005.
36
Apesar de algumas poucas notícias e imagens terem sido remetidas pela United Press
International (UPI), na quase totalidade dos textos os créditos de emissão são mesmo concedidos à
Associated Press (AP), tal como declara a nota presente em inúmeras edições do A Tarde do
período: “As informações telegráficas de 'A Tarde' procedem dos nossos correspondentes no país e
das agências 'Asapress' e 'Telepress' e as estrangeiras da 'Associated Press' (grifo meu). Ver,
por exemplo: A Tarde, 08 de jun. 1960, p. 1.
28
intitulado “A informação na nova ordem mundial”, de 1980
37
.
Da AP para o A Tarde: caixa de ressonância da propaganda anticomunista
A AP foi fundada em 1848 através de um sistema cooperativo envolvendo
proprietários de jornais estadunidenses. Em janeiro de 1870, dada sua considerável
inserção alcançada, compôs, juntamente com a Reuters e a Havas, o primeiro de
uma série de acordos entre as agências internacionais para dividir os locais de
atuação comercial no mundo. Em 1927, outro acordo assinado entre as três
referidas agências mais a United Press, definiu o direito da AP de estender seus
serviços à América do Sul
38
.
Os vínculos da Associated Press com o governo estadunidense eram
fundamentais para a permanência do crescimento comercial da mesma. Após a
Segunda Guerra, tal ligação assumiu um caráter mais institucionalizado, uma vez
que a dinâmica imposta pela Guerra Fria levou a AP e a UPI a reproduzirem a
propaganda oficial difundida pelo governo dos Estados Unidos de combate aos
“inimigos comunistas. As contribuições das duas agências ao governo
estadunidense e à propaganda anticomunista renderam-lhes a possibilidade de
inserir-se em mercados cada vez mais amplos. Matta considera então que
Os anos sessenta foram uma soma de exemplos da vinculação
entre as poderosas AP e UPI (...). A forma e qualificação dos fatos
na crise do Congo, em todos os movimentos nacionalistas do
Terceiro Mundo, no tratamento da Revolução Cubana, na crise de
São Domingos, na Guerra do Vietnam, para citar alguns exemplos,
demonstraram que os novos gigantes da informação internacional
correspondiam aos interesses políticos e econômicos do foco onde
se situavam seus quartéis generais: Nova York.
39
A escolha da Associated Press como agência telegfica condizia com os
traços liberais e o caráter marcadamente anticomunista do jornal A Tarde.
Vinculando-se ao projeto estadunidense de bloqueio à penetração comunista na
América, reproduziu os estereótipos e as propagandas advindas das agências
37
MATTA, Fernando Reyes (org.). op. cit., 1980.
38
MATTA, Fernando Reyes. “A evolução histórica das agências transnacionais de notícias no
sentido da dominação”. In: MATTA, Fernando (org.). op. cit., 1980.
39
Id. Ibid., p. 72.
29
daquele país, no combate ao “perigo vermelho”.
Para a viabilizão da difusão da ideologia oficial propugnada pelos EUA no
contexto da Guerra Fria, fez-se necessária a articulação de uma rede ampliada de
exportação de notícias e da ideologia nelas contidas. O processo de fabricação de
consensos era assim possibilitado pela ão conjunta de gabinetes oficiais norte-
americanos, agências internacionais de notícias e de publicidade colaborativas e
interessadas em benesses advindas de tal articulação, e jornais conveniados,
espalhados pelo mundo. Entre estes, o A Tarde. Por isso considero que, de maneira
estrutural, o veículo baiano mais repassou as ideias e as imagens confeccionadas
sobre Cuba pela correspondência noticiosa internacional do que propriamente criou
e elaborou de maneira original um quadro específico e próprio acerca do fenômeno
cubano.
No entanto, longe de tentar avaliar as representações do A Tarde como
meras reproduções fidedignas de uma propaganda estadunidense via AP,
considero que especificidades a serem analisadas, sobre as quais me ative ao
longo do trabalho. Especificidades que não se restringem à cobertura sobre Cuba,
mas que aparecem na propaganda anticomunista geral. Assim, do ponto de vista
empírico, seria um absurdo avaliar as nocias sobre Cuba no A Tarde como isenta
de particularidades. No entanto, seria igualmente insustenvel defender que tal
cobertura conviveu de maneira paralela e independente com aquela que foi
conduzida pelas agências telegráficas, pois se faz evidente que dela se alimentou.
Deste modo, mesmo considerando que inúmeros editoriais foram produzidos
pelo A Tarde analisando os passos do novo governo estabelecido em Cuba; suas
impressões, informações e tendências, no entanto, acompanharam em grande
medida o teor impresso pelas notícias telegráficas. Por isso interpreto o fenômeno
tal como designou a historiadora Elisa Servín num trabalho sobre o anticomunismo
nos jornais mexicanos: que a imprensa serviu de caixa de ressonância” da
propaganda ideológica fabricada nos gabinetes do governo estadunidense e
repassada internacionalmente pelas agências noticiosas deste e de outros países
40
.
40
SERVÍN, Elisa. Propaganda y Guerra Fria: la campaña anticomunista en la prensa mexicana del
medio siglo”. Signos Históricos. Jan-Jun. n. 011. Universidade Autônoma Metropolitana Iztalpalapa:
Distrito Federal, México, 2002, p. 9-39.
30
E, mesmo com a crescente expansão da televisão, a imprensa escrita ainda
mantinha-se como um “território chave das batalhas ideológicas” determinadas pela
Guerra Fria
41
.
Controle estrangeiro sobre a imprensa brasileira
Para Nelson Werneck Sodré, as transformações ocorridas na imprensa
brasileira a partir da segunda metade do século XX, acompanhando as
transformações no seio do capitalismo mundial e, no país, das conseqüências da
chamada Revolução Brasileira; são suficientes para as inserirmos num quadro de
“crise”, entendendo o autor que tal quadro materializa-se “quando as formas antigas
não satisfazem ou não correspondem ao conteúdo, e vão sendo quebradas, sem
que se tenham definido ainda plenamente as novas formas”
42
.
A partir de uma fundamentação marxista, o autor avalia que esta crise tem
como plano de fundo determinante uma etapa do capitalismo avançado em que
grandes empresas jornalísticas tendem a monopolizar o serviço da informação,
dadas as dificuldades de concorrência impostas às pequenas e alternativas
iniciativas. Além disso, a constante dependência da imprensa a conjunturas
favoráveis de câmbio e impostos para importação de papel, disponibilidade de
anunciantes, manutenção de um maquinário cada vez mais avançado, entre outras
coisas; aparecem como atenuantes fundamentais de tal quadro crítico.
Outro traço essencial desta fase é o controle opinativo das notícias por
grupos estrangeiros vinculados ao imperialismo estadunidense. Para Sod, dois
o os instrumentos essenciais para a efetivação deste controle: um primeiro
determinado pelas agências internacionais de publicidade, intermediárias do
repasse de verbas à mídia impressa e falada por empresas estrangeiras
anunciantes; e um outro que se refere ao controle do envio de informação pelas
agências internacionais de notícias, contratadas por veículos nacionais.
Sodré expõe que, em algumas ocasiões, as primeiras foram responsáveis
pela organização de campanhas vinculadas aos interesses de seu país de origem,
41
SERVÍN, Elisa. artigo citado, 2002, p. 11.
42
SODRÉ, Nelson Werneck. op. cit., 1999.
31
utilizando como instrumento de pressão o repasse das verbas dos anúncios
publicitários. Para exemplificar, o autor discorre sobre a operação levada a cabo
pela grande mídia brasileira contra as pretensões varguistas de controle petrolífero
pelo Estado, e a campanha contra a auto-sustentabilidade energética da ferrovia
Central do Brasil, na qual, segundo o autor, o jornal Diários Associados fora o
principal articulador da defesa da subordinação energética da ferrovia à empresa
estrangeira Light, além de outras situações semelhantes. Nesses casos, a mídia
nacional servira de instrumento para as ações estratégicas do imperialismo frente à
realidade nacional
43
.
Em 25 de outubro de 1962 a revista carioca Política e Negócios (PN), através
de seu editorial, abordou a questão da propaganda anticomunista estimulada pelas
empresas de publicidade representantes de empresários estrangeiros, através do
envio de vultosas somas em momentos politicamente oportunos. O texto possui um
conteúdo e um tom raro no conjunto da produção jornalística daquele período. Dele
reproduzo dois trechos:
Na verdade, dinheiro de procedência estrangeira rola em
quantidade generosa por esse Brasil. E o é mandado para
como auxílio econômico. Chega, farto, quando eleições se
aproximam. Mas essempre comparecendo, na sua missãozinha
de fazer os brasileiros adotarem um certo way of life.
(...)
Mas que diz ufano: 'sou anticomunista!'. E não sabe nem do que
está falando. Dinheiro dessa procedência também financia uma
fabulosa indústria no país, a do anticomunismo. E safadíssima, pois
que é decalcada na premissa de que o Brasil está praticamente
comunizado. Por isso os dólares vêm. E os relatórios vão. Para
inglês ver? Não, americanos.
44
O editorial está interessado em expor a relação íntima estabelecida entre o
dinheiro estrangeiro da publicidade e a “safadíssima campanha anticomunista
43
Na presente pesquisa, no entanto, possíveis relações estabelecidas entre as agências de
publicidade compradoras de espaços no jornal A Tarde e sua linha editorial assumem uma forma
meramente hipotética, dada a falta de sustentação empírica. Motivo que me constrange a afirmar
que tal interferência direta tenha de fato ocorrido. Apesar disso, a utilização de capitais estrangeiros
para negociações de conteúdo jornalístico em outros jornais brasileiros esbem demonstrada por
SODRÉ, Nelson Werneck. op. cit., 1999.
44
Política e Negócios, Rio de Janeiro, 25 de out. 1962. apud SODRÉ, Nelson Werneck. op. cit.,
1999. p. 422-423. Os grifos em itálico são do original.
32
capitaneada por grupos interessados em tais verbas, os quais, no texto, aparecem
como acusadores levianos de uma certa comunizão brasileira.
Vale frisar que ao longo da década de 50 e início dos anos 60, este tipo de
debate esteve associado à proibição pela Constituição de 1946 do controle
estrangeiro sobre a imprensa nacional, a qual definia inclusive a exclusividade de
orientação intelectual da imprensa a brasileiros, o que era desrespeitado por dois
tipos de ações: um de burla, através das agências internacionais de notícias,
fornecedoras em larga escala de textos a jornais brasileiros (orientando assim
intelectualmente as opiniões); e outro de infração direta à lei, efetivada através da
circulação de revistas como a Seleções e a Visão, propriedades de empresários
estadunidenses circulando livremente pelas bancas brasileiras
45
. A denúncia do
editorial acima citado vincula-se a este tipo de questionamento.
A problemática do controle opinativo exercido pelas agências internacionais
de nocias na imprensa brasileira, por sua vez, também se configurava como
uma pauta de questionamentos nesses anos. Em 1962, por exemplo, uma
publicação intitulada Imprensa brasileira: vultos e problemas”, escrita pelo
jornalista Fernando Segismundo, denunciava a “falta de objetividade” das agências
telegráficas
46
. Citando o editorial “Uma pergunta”, do Jornal do Brasil
47
, em que as
agências Associated Press, United Press e France Press eram criticadas pela
cobertura tendenciosa, o jornalista comentava:
Ao passo que pronunciamentos contrários a Cuba vinham narrados
na íntegra por aquelas agências, notícias referentes ao futuro da
ONU, ao movimento sindical africano e aos esforços de paz
desenvolvidos no Vietnam do Sul eram totalmente omitidos.
Terminava o Jornal do Brasil pedindo providências, a fim de que os
povos não percam, de todo, a confiança nos órgãos de informação
pública.
48
Para Sodré, no entanto, seria solução possível para esse problema a
constituição de uma agência brasileira organizada pelo Estado para fins de
recolhimento de notícias do exterior e envio para os jornais brasileiros. No entanto,
45
SODRÉ, Nelson Werneck. op. cit., 1999.
46
SEGISMUNDO, Fernando. Imprensa brasileira: vultos e problemas. Rio de Janeiro: Alba, 1962.
47
UMA pergunta. Editorial. Jornal do Brasil, 26 de jan. 1952. apud SEGISMUNDO, Fernando. op.
cit., 1962. p. 5.
48
SEGISMUNDO, Fernando. op. cit., 1962. p. 5.
33
figurando como traço essencial do discurso liberal brasileiro a negação de toda e
qualquer interferência do Estado nas páginas dos jornais, tal empreitada fica
dificultada. Para Sodré, “essa solução a nossa grande imprensa não aceita: prefere
depender de organizações estrangeiras do que de uma organização nacional de
que participe o Estado”, o que, segundo o autor, fora tentado durante o governo
nio Quadros e convenientemente arquivado
49
.
Dimensões do “político” e a noção de representação
Algumas reflexões teóricas parecem úteis para uma instrumentalizão na
análise dos vculos de imprensa como ferramentas de sedimentação de um dado
discurso. A primeira delas advém de Noam Chomsky, intelectual estadunidense
que, além dos estudos na linguística, tem se dedicado à análise política das ações
imperialistas promovidas pelos Estados Unidos
50
. Para este autor, é componente
essencial do atual modelo democrático definido por uma classe minoritária
dominante, a utilização de um determinado sistema doutrinário” para a
manutenção do afastamento da população em geral do nível de tomada de
decisões, e para a implantação de justificativas para ações autocráticas do Estado.
Entre os componentes deste sistema, está a propaganda, possibilitada pela
utilização de vculos de imprensa, por exemplo
51
.
Assim, a discussão acerca do papel e das ações de dominação cultural
exercidas pelos grandes veículos de imprensa contemporâneos deve estar aliada,
entre outras coisas, à análise do modelo de democracia pretensamente ideal
49
SODRÉ, Nelson Werneck. op. cit., 1999. p. 416. O autor, muito provavelmente, se refere à
implantação do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) durante o governo Jânio Quadros,
que previa a supervisão das rádios, emissoras e agências de notícias atuantes no país. Outros
decretos do período também tentavam orientar o conteúdo veiculado pela imprensa, tais como a
exibição de um filme nacional para cada dois estrangeiros, a proibição do sensacionalismo nas
exibições, cenas eróticas e outras regulações.
50
Interesso-me aqui pelo Chomsky analista e militante político, já que o próprio intelectual admite ter
dificuldades em encontrar pontos comuns entre os seus estudos de linguista e as suas reflexões
sobre questões políticas. Ver o documentário Consenso Fabricado: Noam Chomsky e a mídia, de
Marc Acbar e Peter Wintonick, produzido em 1992.
51
Tal idéia é apresentada em vários livros e artigos de Chomsky. Aparece bem elaborada em, por
exemplo: CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1999 e CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. trad.
Antônio Augusto Fontes. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.
34
implementado nos países integrados ao capitalismo globalizado: um modelo liberal
representativo no qual uma “classe especializada” e legitimada pela instituição legal
do voto tem garantido o afastamento do “rebanho assustado” das esferas de poder
na sociedade, absorvido por entretenimentos ou, num outro campo, por mitos
políticos fabricados intencionalmente e reproduzidos exaustivamente em aparelhos
doutrinários interligados
52
. O controle se não através da força, tal como num
estado totalitário, mas através de um processo de fabricação massiva de
consensos e verdades
53
.
Como exemplo, o autor analisa os processos de formulação de consensos de
legitimidade para as intervenções dos EUA em outras nações. Em “Controle da
Mídia”, Chomsky avalia a importância da extensiva propaganda neste âmbito e seu
elemento central naquele país: a disseminação do medo. A criação de um “outro
perigoso, mau e ameaçador tem sido o recurso central para a construção de uma
necessidade de intensificação militar. Assim fora com a Guerra do Vietnã e as
invasões mais recentes dos EUA no Oriente Médio. Chomsky alega que a
população não possui interesse, a priori, de participar de campanhas externas
envolvendo violência, terror e morte; a não ser quando uma ameaça terrível
impossível de se conter por outros meios. Forja-se, assim, com a utilização dos
dispositivos dispoveis, um inimigo externo grandioso cuja contenção demanda
uma ação de força
54
.
Além disso, considero pertinente a utilização do conceito de “hegemonia
social”, cunhada pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, como contribuição teórica
para a pesquisa. A análise do autor permite a compreensão acerca do papel de
determinados aparelhos empenhados no processo de construção de consenso e de
52
Sobre este trecho, duas questões: 1) Não pretendo aqui discutir comparativamente diferentes
modelos de organização social e os graus de participação popular nos mesmos, tal como pode
parecer tentador. Também não considero a democracia burguesa o único modelo que prevê o
afastamento da população do que temos chamado de “nível de tomada de decisões. Neste
momento, interesso-me apenas em avaliar o discurso elitista dos teóricos liberais, sustentando o que
entendemos como democracia no mundo ocidental contemporâneo, a partir das contribuições de
Noam Chomsky; e 2) As expressões classe especializada” e “rebanho assustado” foram extraídas
do texto de CHOMSKY, Noam. op. cit., 2003. Trata-se de um recurso bastante utilizado por este
autor de utilizar termos criados por teóricos da democracia e defensores de princípios liberais e,
redimensionando-os, conferir-lhes o status de conceitos em suas análises.
53
CHOMSKY, Noam. op. cit., 2003.
54
Id. Ibid.
35
consolidação da hegemonia. As escolas, as igrejas, as universidades, além da
imprensa, neste sentido, constituem, para Gramsci, a “sociedade civil”, formadora
de opinião e sedimentadora de uma dada ideologia; enquanto a “sociedade política”
é formada pelos sistemas implementados juridicamente pelo Estado. Na presente
análise, é compreensível o entendimento do veículo de imprensa estudado e das
agências a ele vinculadas como exemplos destes citados aparelhos componentes
da sociedade civil. Para Gramsci, os estratos intelectuais vinculados a tais
dispositivos são “comissários” do grupo dominante nos expedientes da hegemonia
social
55
.
É também a partir das contribuições de Gramsci que encaro a dimensão do
“político” no presente trabalho, uma vez que, podendo considerar razoável a
classificação deste como um expediente de “história política”, teremos que entender
aqui o espaço político como o palco de disputas e ações de diferentes classes
sociais, nem sempre relacionadas a demandas no nível estatal, mas que também
se operam no seio da sociedade civil, a partir da utilização de ferramentas diversas.
Ou seja, interessando-me aqui pelo tema do controle da mídia, pretendo conceder
uma dimensão política à análise do papel social da imprensa.
Penso, nestes termos, que a mídia em geral tende, a partir de estratégias
dos grupos no poder, a se tornar mecanismo de sustentação de determinados
programas, planos conjunturais ou projetos de sociedade. Sob a condição de
empresas e/ou grupos de associados, os grandes veículos de comunicação
tendem, na sociedade capitalista, a vincularem suas tendências opinativas
prioritariamente às estratégias de benefício econômico e, assim, a reproduzirem
enunciados sustentadores do status quo em que se inserem e do qual se
beneficiam. As ameaças estruturais ao modelo de organizão social são tamm
ameaças a estes veículos
56
. Concordando com Gramsci, entendo que é a partir
destes vínculos intransponíveis que a imprensa auxilia na construção de uma
hegemonia ideológica burguesa, justificadora e legitimadora de uma dada estrutura
55
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.
56
Tal iia não anula, no entanto, a verificação de que veículos que, mesmo sustentando-se
através de ferramentas básicas da sociedade capitalista (consumo, propaganda comercial...),
questionam a mesma. Ou seja, neste parágrafo, o estou me referindo a veículos de comunicação
vinculados a projetos anti-capitalistas, mas a empresas jornalísticas tipicamente liberais.
36
social.
Tenho utilizado ainda o conceito de “representação” para me referir ao objeto
desse estudo: a cobertura jornalística sobre Cuba em suas tendências,
ambiguidades e evoluções. Estou aqui interessado na utilização deste termo tal
como nos apresenta o historiador francês Roger Chartier: como “apreciações do
real”, discursos não-neutros envidados por indivíduos ou grupos, que utilizam
determinados métodos e se orientam por estratégias específicas para construí-los.
Para Chartier, desse modo,
as lutas de representações têm tanta importância como as lutas
ecomicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os
valores que são os seus, e o seu domínio.
57
Neste sentido, “representação”, no presente trabalho, refere-se a uma
interpretação da realidade definida invariavelmente pelos interesses e tendências
dos atores e grupos que a compõem. No nosso caso, a imprensa liberal. Busca-se
aqui uma compreensão acerca do esfoo envidado por essa imprensa no sentido
de tentar universalizar suas representações e assim impor seu domínio (consenso)
através delas. Estas, traduzindo posições, paralelamente, descrevem a sociedade
tal como seus formuladores “pensam que ela é, ou como gostariam que fosse
58
.
As contribuições de Chartier filiam-se a uma perspectiva de investigação
hisrica que, indo além da concepção da verdade documental, a qual valoriza o
documento como elemento de apreensão da realidade; concebe o “real” como algo
que é de fato existente, mas que nos é apresentado sob a forma de tais
“representações”. Concentrando-se, então, na avaliação destas, o objetivo central
passa a ser o de “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
realidade social é construída, pensada, dada a ler”
59
.
O impacto da Revolução Cubana à esquerda
Para a esquerda brasileira, o triunfo da Revolão Cubana ajudou a catalisar
57
CHARTIER, Roger. op. cit., 1990. p.17.
58
Id. Ibid., p. 19.
59
Id. Ibid., p. 16-17.
37
uma série de renovações no pensamento acerca das estragias de luta possíveis
para a realidade nacional
60
. Em verdade, o golpe civil-militar de 1964, que deixara
atônito o Partido Comunista Brasileiro (PCB), principal grupamento de esquerda do
período, levou correntes dissidentes a recusarem as ticas empreendidas pelo
partido e a buscarem soluções outras para a derrubada da ditadura militar recém-
instalada. A luta armada passou a ser uma resposta à intensa militarizão do
governo e às ões de violência por ele empreendidas, e intensificadas a partir de
1968: cassações, prisões, torturas e assassinatos.
A teoria do foco guerrilheiro, sintetizada a partir da experiência da Revolução
Cubana e difundido no Brasil principalmente pelos textos de Ernesto Che Guevara
e de Regys Debray
61
, neste sentido, figurava como metodologia possível ao afirmar
que as condições materiais para o início do processo revolucionário na América
Latina estariam dadas e que as condições subjetivas seriam criadas a partir da
situação revolucionária criada pelos primeiros rebeldes no foco guerrilheiro
62
.
Distanciava-se, assim, da visão mantida pelo PCB, cuja posição avaliava a
burguesia nacional como um grupo de atores importantes para uma primeira fase
anti-imperialista da revolução e também determinada a extinguir os resqcios
feudais da sociedade brasileira, através da construção, com este setor, de uma
frente estratégica de lutas. Posição que, no entanto, não descartava a possibilidade
da luta armada como meio de atuação, em uma situação que a exigisse
63
.
60
É evidente que não pretendo reduzir a ação das organizações de esquerda no Brasil aos vínculos
com os acontecimentos externos ligados aos movimentos comunistas e/ou populares. No entanto, é
inegável a força com que o exemplo cubano interferiu nas discussões no seio das organizações
comunistas brasileiras. Esta ressalva também é feita por SALES, Jean Rodrigues. O impacto da
revolução cubana nas organizações comunistas brasileiras. Tese de Doutorado em História. Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas – UNICAMP, 2005.
61
Ver, principalmente, GUEVARA, Ernesto Che. “A guerra de guerrilhas”. In: Obras completas. São
Paulo: Edições Populares, 1981 e DEBRAY, Regis. Revolução na revolução. São Paulo: Centro
Editorial Latino-Americano, s/d.
62
SALES, Jean Rodrigues. op. cit., 2005.
63
Extremamente significativa, neste sentido, a declaração de Luis Carlos Prestes, em entrevista
concedida em Salvador, em março de 1960: “Nossa linha política hoje é a do legalismo, que não
exclui a fidelidade à Revolução. Revolução o é violência, como se diz muito na América Latina e
no Brasil. A revolução é modificação de regime político. Em países como a China, a solução foi a
luta armada. Onde há algumas liberdades, o que interessa é utilizar os recursos legais para com êle
conquistar a emancipação econômica. É certo, porém, que o inimigo pode usar a violência.
Diante disso, haveria nova situação e, eno, ninguém menos pacífico do que nós”. Obtido de:
PARA Prestes (na Bahia) OPA é instrumento para guerra contra a Rússia. Jornal da Bahia, Salvador,
27 e 28 de mar. 1960, 1º caderno, p. 1. Grifo meu.
38
O foquismo convocava, por sua vez, a ação imediata dos grupos e indivíduos
dispostos a pegar em armas para o início da revolução popular nos países da
América Latina. Além disso, ao criticar a burocracia e as delongas discursivas dos
partidos comunistas, a teoria angariava adeptos no Brasil entre militantes de
esquerda que demonstravam desacordo com as posições da direção do PCB de
atribuição de possibilidades revolucionárias ao processo democrático, denunciadas
por estes setores como imobilismo. Tais posições, ratificadas pela “Declaração de
Março de 1958”, ponto de ruptura entre militantes no seio da organização, seriam,
porém, mantidas mesmo após o golpe
64
.
Jean Rodrigues Sales avalia que sofreram influência direta da revolução
cubana e da teoria foquista, por exemplo, as seguintes agremiações revolucionárias
brasileiras no pós-64: Partido Comunista do Brasil (PC do B), Ação Popular (AP),
Organizão Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP), Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Movimento Revolucionário Oito de
Outubro (MR-8), Aliança Libertadora Nacional (ALN), entre outros grupos
65
. O autor
tamm dedica uma parte de sua tese à análise das ligas camponesas que, antes
mesmo da implantão da ditadura militar, organizaram núcleos de treinamento
armado, inspirados nas teorias cubanas do foco guerrilheiro
66
.
Quero frisar que o presente trabalho se interessa centralmente no impacto da
revolução cubana à direita, ou seja, como ela foi encarada por setores que
defendiam, entre outros princípios, o alinhamento incondicional aos Estados Unidos
e à ideologia por este país propugnada, em defesa do dito “mundo livre”. E, mais
especificamente, como ela foi noticiada pela imprensa vinculada a tais posições. No
entanto, quis mencionar o impacto dela junto à esquerda brasileira como maneira
de dimensionar a importância do evento para a América Latina, área estratégica
para a manutenção da hegemonia estadunidense e tamm para ressaltar o perigo
que ela representava no imaginário anticomunista, dado o seu exemplo espetacular,
64
Para uma crítica memorialística e documentada das posições do PCB no contexto do golpe, ver
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998.
65
Para uma análise da influência do modelo de guerra de guerrilhas cubano especificamente para a
ALN e seu principal líder, Carlos Marighella, ver FERREIRA, Muniz. “Carlos Marighella: revolução e
antinomias”. In: NOVA, Cristiane e NÓVOA, Jorge (orgs.). Carlos Marighella: o homem por trás do
mito. São Paulo: Editora da UNESP, 1999. p. 221-255.
66
SALES, Jean Rodrigues. op. cit., 2005.
39
heróico e geograficamente próximo. Deste modo, ao influenciar as estratégias de
luta de segmentos da esquerda brasileira, o exemplo cubano cristalizou-se como
ameaça concreta de desestabilização da ordem político-social em vigor no Brasil,
catalisando com isso a mobilizão das classes dirigentes e de seus
representantes no combate à influência daquela Revolução.
40
2
REPRESENTAÇÕES SOBRE A REVOLUÇÃO CUBANA ANTES DA
VINCULAÇÃO FORMAL AO SOCIALISMO: NA CONCILIAÇÃO ENTRE
O FEITO HERÓICO E O “BANHO DE SANGUE”
2.1. O FEITO HERÓICO: PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES DO TRIUNFO
REBELDE
No dia dois de janeiro de 1959, o jornal A Tarde dedicou grande parte de sua
capa ao tema do triunfo da revolução em Cuba, marcado pela chegada dos
rebeldes em cidades importantes do país no dia anterior. A marcha rumo a Havana
tamm fora anunciada pelo jornal, o qual informava que
Na madrugada de hoje, as forças triunfantes de Fidel Castro
anunciavam que estava sendo convocada uma demonstração
gigante, no Parque Central de Havana, para a tarde de hoje, a fim
de pedir a entrega da presidencia da República ao ex-juiz Manuel
Urrutia.
67
A matéria versava sobre diferentes aspectos das situações que
determinaram a vitória das “forças triunfantes de Fidel Castro” sobre os batalhões
do governo, além de ter se preocupado em abordar as comemorações dos cubanos
exilados no Brasil, fugitivos da ditadura de Batista que, “com lágrimas de alegria e
brados de 'Viva Cuba en Liberdade'”, “celebraram manifestações realizadas na
sede da embaixada de Cuba”, festejando “com alegria, incontidos, o inesperado
presente de Ano Novo, a queda do ditador Fulgencio Batista.”
68
Com texto remetido
pela Associated Press (AP), o jornal noticiava ainda que
Despachos procedentes de Havana dão conta de que o presidente
Fulgêncio Batista, depois de entregar o poder a uma Junta Civil e
Militar, fugiu para o exterior, possivelmente para a República
Dominicana, depois do colapso das forças que combatiam os
rebeldes de Fidel Castro.
69
67
VITORIOSA após dois anos de luta a Revolução Cubana. A Tarde, Salvador, 02 de jan. 1959, p. 1.
68
Ibid.
69
Ibid.
41
Na mesma edição, além da matéria principal da capa, o jornal também
dedicou seu editorial ao tema. Intitulado “Uma ditadura a menos”, o texto abordava
o balanço de fim de ano das agências internacionais de imprensa, que descreviam
as lutas de libertação da América Latina como uma saudável melhoria dos seus
costumes políticos, varrendo regimes de força e os substituindo por formas de
governo democráticas”. A “lista”, iniciada por experiências como a luta da
“Venezuela liberal ao (contra o) ditador Jimenez”, se completaria, segundo o texto,
pelo exemplo de Cuba. O triunfo rebelde em Cuba era inserido, portanto, numa
conjuntura de “reformas nos hábitos da vida pública” pela qual passava a América
Latina. Um jornalismo sugerindo simpatia à causa rebelde cubana fazia-se evidente
no texto, o qual impôs ao evento em Cuba o caráter de capítulo da saga épica que
havia sido até ali a história do povo cubano
70
.
O editorial possui importância significativa por dois motivos essenciais: 1)
apresentou, a partir das seleções realizadas pelo jornal, um balanço” dos textos
das agências internacionais sobre o evento cubano e 2) “oficializou”, de forma
imediata, a posição do jornal acerca da chegada dos revolucionários ao poder, uma
vez que tal espaço, pretensamente, asseguraria este expediente. Segue um extrato
que considero importante do texto:
O episódio de Fidel Castro é mais um lance dramático dessa saga
cubana. Representou, por 25 mêses, a reação popular à oligarquia
de Batista, o famoso sargento, como ele era conhecido e
escarnecido pela imprensa mundial. Vinha se agüentando no poder
vários lustros, governando o país como se fora uma pequena
fazenda de sua propriedade particular. Isso feriu os brios nacionais,
até que esse sentimento se materializou, passando das reações
subterrâneas para um movimento de guerrilhas que, sem auxílio
externo de qualquer natureza, foi ganhando terreno, até obter a
vitória final.
71
O caráter de “reação” conferido ao movimento é bastante significativo, e,
acompanhando a tendência geral das opiniões midiáticas com relação ao tema,
referendava o caráter negativo da ditadura derrubada. A imagem construída de
Fulgêncio Batista como um oligarca autoritário também era corroborada pela
70
UMA DITADURA a menos. Editorial. A Tarde, Salvador, 02 de jan. 1959, p. 4.
71
Ibid.
42
alegoria da pequena fazenda” utilizada no texto. Num espaço do jornal cuja
pretensão é a de ser exclusivo para a emissão de “opiniões”, o A Tarde caracterizou
a Revolução Cubana como um “lance dramático”, popular e legítimo.
Sobre a divisão entre matéria e editorial, vale a pena a consideração de que
o discurso jornalístico, ao pretender impor-se como neutro, divide espacialmente a
“notícia” da “opinião” nos impressos. O editorial “Uma ditadura a menos” trazia a
mesma linha ideológica geral apresentada pelas notícias da capa. A utilização, no
entanto, de grupos de palavras como “despachos procedentes de Havana” buscam
o afastamento do teor opinativo na matéria, impondo o caráter de neutralidade ao
que é dito. O editorial, no entanto, trazido na página 4 e ao lado da logomarca do
jornal, definia a posição tomada pelo A Tarde, supostamente a partir da leitura do
“fato” narrado naquela outra página do exemplar.
Desta forma, em tal espaço “opinativo”, o jornal tratou a vitória do movimento
revoluciorio conduzido por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara, Camilo
Cienfuegos, Raul Castro e tantos outros, como um processo de superação popular
frente a uma ditadura corrupta. O respaldo da população e o vigor do apoio dos
cubanos ao exército rebelde tamm foram descritos. As referências ao sentimento
de integração nacional gerado pelo levante amparavam o discurso simpático ao
êxito rebelde, sendo Fulgêncio Batista representado como o símbolo do atraso
oligárquico e autoritário, então superado.
Importante notar que o editorial concentrou-se na descrição dos fatos que
levaram à derrubada de Fulncio Batista e da chegada dos rebeldes às cidades
cubanas, não aparecendo no texto, no entanto, preocupações em tentar avaliar as
contradições estruturais da sociedade cubana que propiciaram o aparecimento, o
crescimento e o êxito de um movimento revolucionário armado que acabara
chegando ao poder, depois de derrubar um governo que contava com auxílios
estadunidenses. Numa avaliação casuística, o “motivoprincipal daquela revolução
aparecia no editorial como a existência de uma ditadura que “feriu os brios
nacionais”. Assim, a revolução cubana era apresentada ao leitor como um evento,
no qual figuravam heróis, vilões e um final feliz; e não como um processo histórico,
ápice da intensificação de contradições sociais na realidade cubana.
De fato, o parece sensato esperar, naquela primeira semana pós-triunfo,
43
de qualquer jornal brasileiro do período uma análise apurada da realidade
neocolonial cubana, a qual submeteu o ps aos interesses imperialistas dos
Estados Unidos após a emancipação frente à Espanha; que mencionasse as
vinculações de vários presidentes cubanos com o governo e com empresas
estadunidenses, ou que avaliasse satisfatoriamente a situação de peria a que
estavam submetidos diversos camponeses por conta da desigualdade intensa na
distribuição de terras, entre tantos outros elementos que se vinculam à criação de
condições para a estruturação e êxito do movimento revolucionário em Cuba
72
.
Eram dias de “indefinição”, e a reprodução sistemática dos textos enviados pelas
agências estrangeiras tornava o quadro da Revolução Cubana marcado pela
superficialidade da exposição, esta concentrada no caráter espetacular atribuído ao
episódio. Por isso, não considero a cobertura do A Tarde, nesse primeiro instante,
particular, por ter assumido tal padrão discursivo.
O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, ao tratar da deposição de
Batista, concentrou-se no clima de euforia e de instabilidade social pela qual
passou a cidade de Havana no dia de janeiro, após a fuga do presidente, e a
situação dos apreensivos cidadãos estadunidenses que lotavam os hotéis cubanos
ansiosos em sair da Ilha. O jornal utilizou, na ocaso, textos das agências France-
Presse (FP), United Press International (UPI) e Associated Press (AP) para veicular
as informações sobre os acontecimentos em Cuba, e ressaltou as primeiras
declarações de Batista após a fuga, que atribuíam à tática da guerra de guerrilhas o
principal motivo para a vitória dos rebeldes
73
.
O jornais cariocas Tribuna da Imprensa e Correio da Manhã, por sua vez,
apresentaram as aclamações do povo cubano ao movimento que ali triunfava, além
de mencionar a simpatia conquistada pelos rebeldes ao longo do processo que
72
Para a avalião deste quadro, ver, entre outros, HARNECKER, Martha. Fidel: a estratégia
política da vitória. trad. Ana Corbisier. São Paulo: Expressão Popular, 2000; FERNANDES,
Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Expressão Popular, 2007;
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998 e SADER, Emir. A revolução cubana. São Paulo: Moderna,
1985.
73
FORÇAS de Castro em Havana. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 3 de jan. 1959, p. 1. Vale frisar
que o jornal O Estado de São Paulo, de maneira peculiar, enviou, em ocasiões esporádicas,
correspondentes a Cuba ao longo de 1959.
44
lograra êxito
74
.
Em Salvador, um outro jornal de grande circulação, o Jornal da Bahia, se
dedicou às informações acerca dos detalhes da chegada dos rebeldes a Havana, a
caça aos partidários de Batista por parte dos revolucionários e ao reconhecimento
de outros países ao novo governo, utilizando essencialmente, neste momento,
correspondências da Agence France-Presse. Numa crônica do dia 09 de janeiro
intitulada “E Viva Cuba”, e impressa neste jornal baiano, o jornalista Rubem Braga
analisou:
Mas a virada do ano teve uma coisa boa: deu por terra com mais
um ditador, o Batista de Cuba. Êle reuniu seus ministros na noite de
São Silvestre e disse que resolvera renunciar “para evitar
derramamento de sangue”. De seu próprio sangue, naturalmente,
porque o dos outros êle derramou largamente através de anos de
ditadura.
75
Assim, é possível verificar que os veículos brasileiros, no geral, recorreram
aos enquadramentos das agências de notícias internacionais para noticiar a
chegada dos rebeldes ao poder. Suas abordagens, apesar de apresentarem
algumas distinções por conta das diferenças das agências utilizadas, mantinham-se
restritas à descrição dos fatos ligados ao triunfo rebelde, silenciando quanto às
contradições sociais que o tornaram uma realidade irreversível, e apresentando-o
positivamente, em notas e editoriais, como a derrubada de mais uma ditadura na
América e o embrião de um possível renovado governo democrático. Além disso,
creio ser possível afirmar que a partir das demonstrações graduais de
radicalizão do processo revolucionário cubano com medidas populares e
nacionalistas é que irá se imprimir, em alguns veículos, textos com abordagens
mais aprofundadas sobre a situação da Cuba pré-revolucionária. Deste modo, se
nos primeiros instantes a Revolução Cubana figurou na imprensa de forma
desvinculada do processo histórico que a condicionou; a partir do aumento das
contradições com os Estados Unidos (ainda no início de 1959) e da busca por uma
avaliação do caráter ideológico que fundamentou aquele movimento, alguns jornais
74
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 5 de jan. 1959, p. 1; e Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3
de jan. 1959, p. 1.
75
BRAGA, Rubem. “E Viva Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 9 de jan. 1959, 2º caderno, p. 1.
45
procurarão avaliá-lo enquanto o ponto extremo de um processo histórico
sedimentado pelas contradições geradas pelo imperialismo
76
.
Além disso, é preciso se avaliar que as representações sobre Cuba na
imprensa mundial até aquele instante estiveram bastante vinculadas às reportagens
e entrevistas feitas por alguns jornalistas estadunidenses acerca do Movimento 26
de Julho e das ideias e argumentos expostos por Fidel Castro no contato com eles.
Em 1957 foi realizada a primeira e mais significativa destas, quando o jornalista do
New York Times, Herbert Matthews, além de desmentir as informações dadas por
Fulgência Batista de que o movimento rebelde estaria liquidado e de que Fidel
Castro estaria morto, atestou, depois de conversar longamente com Castro, que
aquele se tratava de um movimento “radical, democrático e portanto anti-
comunista”. Na reportagem, também envidou elogios à personalidade de Castro, às
suas ideias e ao modo hospitaleiro como foi recebido por ele e pelos rebeldes na
Sierra Maestra
77
.
Neste sentido, o quadro geral da Revolução em seu caráter de evento
imediato, apesar de vinculado a sentidos de exaltação do êxito daquele movimento,
figurou de maneira descolada do processo histórico que o condicionou. Reitero que
tais enquadramentos o perceptíveis nos primeiros dias após o triunfo rebelde,
tornando-se mais diversificados, no entanto, de acordo com as particularidades
editoriais de cada jornal, em fins de janeiro de 1959. No caso do A Tarde, foram
raras as investidas de aprofundamento do tema Revolução Cubana, vigorando, no
período estudado, a tendência da superficialidade dos dados apresentados e da
não-conexão da Revolução com as históricas relações de dominação efetivadas
pelos Estados Unidos frente à Ilha. No entanto, avaliando até aqui a imediata
recepção da imprensa ao triunfo rebelde de 1º de janeiro de 1959, é possível
verificar que a cobertura do veículo que tomamos como centro da análise,
celebrativa porém superficial, não se tratou de uma particularidade.
76
Falaremos disso com mais ênfase no Capítulo 5.
77
MATTHEWS, Herbert. Cuban rebel is visited in hideout”. New York Times, New York City, 24 de
fev. 1957, p. 1 e 34. A importância da reportagem e dos artigos de Matthews para a consolidação de
uma imagem bastante positiva de Fidel Castro e do movimento 26 de julho entre os anos de 1957 e
1959 foi analisada por DEPALMA, Anthony. O homem que inventou Fidel: Cuba, Fidel e Herbert L.
Matthews do New York Times. trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
46
* * *
Além dos textos, a iconografia também detinha uma importância significativa
na cobertura do tema. Fotografias, ilustrões e suas respectivas legendas
contribuíam para a representação do caráter heroico do movimento, nos primeiros
dias de 1959. Na capa de cinco de janeiro de 1959, uma fotografia remetida pela
UPI foi publicada acompanhada de uma legenda que traduzia o sentido épico e
heróico adotado pelo jornal na descrição da “saga cubana”. A seguir, reproduzo a
imagem e transcrevo a legenda:
Para o A Tarde, parecia o restar dúvidas de que o sentimento otimista
gerado pelos combatentes da Sierra Maestra generalizara-se pelo país. A
participação do povo simples cubano era, na representação do jornal, o que
conferia legitimidade à luta. Na foto remetida pela United Press, a presença de uma
mulher e de um ancião parece conferir um caráter de unidade quase mítica ao
movimento, uma vez que ilustrava a superação de barreiras de idade e sexo na luta
ração 1
Legenda original transcrita:
A luta de que foi
teatro o território da república cubana, envolveu homens,
mulheres e crianças numa demonstração de que era geral o
desejo de dias melhores para a nação do Caribe. Nesta
fotografia temos uma mulher c
ombatente e um ancião
também combatente, membros da própria coluna Fidel
Castro. Todos participaram das atividades revoluciorias
que viram coroados os seus esforços no raiar do novo ano.
(Foto: U.P.I.)”. (A Tarde, Salvador, 05 de jan. 1959, p. 1).
47
por dias melhores”. O termo “todos” figura oportunamente na legenda como meio
de ressaltar o caráter de integração sugerida pela fotografia.
Vale ressaltar que a Revolução Cubana, no ano de seu triunfo, ainda o
figurava no set de assuntos diretamente relacionados ao comunismo, estando este
ainda vinculado centralmente às ões da União Soviética. Sua imagem geral no
cenário internacional, forjada pela grande mídia, era, isto sim, de um movimento
popular, revolucionário, e aparentemente afastado do modelo tipicamente marxista-
leninista. Os textos jornalísticos apontavam nesta direção, apesar de especularem a
possibilidade dos rebeldes terem entre eles, um comunista, Ernesto Che Guevara:
Perguntaram a uma alto funcionário do Departamento de Estado se
Ernesto Guevara, médico argentino e um dos altos oficiais do
movimento revolucionário cubano era comunista, ou simpatizante. O
funcionário respondeu que havia muitos informes bre as
tendências comunistas de Guevara, mas que um amigo íntimo do
líder rebelde assegurara que pelo contrário, Guevara era inclusive
anti-comunista.
78
Neste sentido, a fabricação do consenso sobre a realidade cubana em 1959
era determinada pelo desenho de um quadro que envolvia heroísmo, moralidade e
aversão ao comunismo. Uma vez que o “outro” comunista representava o mal, sua
vinculação a um movimento tão celebrado mundialmente deveria ser rechaçada. O
reconhecimento internacional estava, assim, implicitamente condicionado, no
discurso do jornal, à não-vinculação de Cuba com a União Soviética ou a qualquer
outra “ditadura comunista”. Uma pequena reportagem de sete de janeiro informava
que o governo brasileiro reconheceria o novo governo cubano, dada a convicção
dos políticos brasileiros de que “Manuel Urrutia e Fidel Castro farão um governo
liberal e favorável à entrada no país de capitais estrangeiros”
79
.
Em nove de janeiro de 1959, um texto da AP remetido de Havana foi
publicado no A Tarde abordando uma entrevista concedida por Fidel Castro, através
da qual o representante cubano afirmava que o governo provisório cubano não
demonstrava interesse em manter relações com ditaduras de qualquer tipo. O texto
concluía então que se tratava de uma indicação de Castro de que Cuba não
78
ESTABELECIDO oficialmente o govêrno provisório de Cuba. A Tarde, Salvador, 03 de jan. 1959,
p.1.
79
BRASIL reconheceu novo govêrno de Cuba. A Tarde, Salvador, 07 de jan. 1959, p. 1.
48
manteria relações com a União Sovtica, sintetizada através do trecho: “o herói da
revolução cubana indicou que o regime provisório não manterá relações
diplomáticas com a União Soviética nem com as demais nações comunistas”. A
utilização do termo “indicou”, aliada à inexistência de referências de Fidel Castro
diretamente à URSS, sugerem que a conclusão central pertencia à agência no
processo de elaboração do texto, cujo subtítulo anunciava: “Não manterá relações
com a Rússia”
80
.
Moniz Bandeira ressalta que o interesse maior de Castro era o de manter
uma posão independente de filiações ideológicas, atribuindo um cater próprio,
autônomo para a revolução. Ao afirmar que “la Revolucion Cubana no es capitalista
ni comunista, es una revolución propia, tiene una ideologia propia”, Fidel Castro
objetivava, para o autor, encontrar uma saída talvez social-democrática para o
estabelecimento de um governo efetivamente popular que negasse a democracia
formal do tipo liberal
81
. Fugindo, assim, da bipolaridade pica do contexto da
Guerra Fria, Fidel tanto negava o totalitarismo, o que era interpretado ou “dado a
ler” por setores da opinião pública como demonstração de que não manteria
relações com o bloco soviético, quanto rechaçava o liberalismo capitalista. Suas
declarações foram recebidas, tal como estamos preocupados em expor, com
simpatia pela América Latina
82
.
A atenção estadunidense envidada ao processo revolucionário cubano
naqueles primeiros dias era considerável. A destituição do desgastado regime de
Fulgêncio Batista e a sua substituição por um governo revolucionário poderia, para
os EUA, representar a continuidade do projeto de dominação da Ilha, alicerçado,
desta vez, na possível cooptação de um governo popular e moralmente renovado.
Tal como expressa Che Guevara em relação a essa questão num de seus escritos,
80
FIDEL Castro entra em Havana como um triunfador. A Tarde, Salvador, 09 de jan. 1959, p. 1.
81
O trecho é atribuído a Castro por Moniz Bandeira e foi publicado no jornal El Mundo, Havana, em
09 de maio de 1959. (MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998). Além disso, numa gravação
em áudio datada de abril de 1959, Fidel Castro anuncia: Eu sei o que o mundo pensa de nós, que
nós somos comunistas, e é claro que eu devo dizer muito claramente que nós não somos
comunistas”. A gravação foi realizada pela UPI e es disponível em
http://www.upi.com/Audio/Year_in_Review/Events-of-1959/Cuban-Revolution. Acesso em
14/07/2010.
82
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op.cit., 1998.
49
“durante algum tempo o imperialismo apostou nisso, mas perdeu dolorosamente”
83
.
Para Motta, por exemplo, de forma conjugada ao imediato êxito do
movimento guerrilheiro em Cuba no ano de 1959, pode-se até mencionar uma
“simpatia americana no início”. Entretanto, “quando seu governo se encaminhou
para medidas nacionalistas e antiimperialistas, porém, houve a ruptura, processo
consumado com a transformão do regime castrista num modelo marxista-
leninista”
84
.
2.2. CRÍTICAS AO “BANHO DE SANGUE”
Ao longo do período analisado neste tópico, o quadro positivo da Revolução
Cubana no jornal, apesar de ter sido predominante nos primeiros dias de 1959,
passou a dar espaço crescente às críticas, principalmente àquelas voltadas às
execuções promovidas pelos tribunais revolucionários aos criminosos da ditadura
derrubada de Fulgêncio Batista. A crítica do A Tarde, expressa através de editoriais
como “Vitória ensangüentada” e O preço da liberdade”, repudiou as condenações,
caracterizando-as como “sumáriase desnecessárias; incompatíveis com o êxito
heroico dos rebeldes. Do primeiro editorial citado, transcrevo os seguintes extratos:
Como o Congresso e a imprensa norte-americanos, traduzindo um
sentimento aliás mundial, verberassem o procedimento dos atuais
detentores do poder na República de Cuba, estes procuram lavar
sua testada com a alegação de que “pelo menos 20.000 pessoas
foram sacrificadas, torturadas e perseguidas pelo terrorismo de
Batista e seus “sequazes”.
(...)
Na verdade a vocação com que se apresentam aos olhos do mundo
ameaça os revolucionários cubanos de perderem a aura de simpatia
que os cercava. Oxapasse depressa a euforia sanguinária e o
novo regime possa logo entregar-se às tarefas de reconstrução do
país, punindo os liberticidas, mas agindo com tolerância e
humanidade, como deve ser entre irmãos.
85
83
GUEVARA, Ernesto Che. “Cuba, exceção histórica?”. In: SADER, Eder (org.). Che Guevara:
Política. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 60.
84
MOTTA, Rodrigo. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).
São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 231.
85
VITÓRIA ensagüentada. Editorial. A Tarde, Salvador, 17 de jan. 1959, p. 4.
50
No primeiro trecho, chama atenção a demarcação de uma atitude moral
tomada pelas instituições estadunidenses na denúncia ao recém-instalado governo
cubano. A legitimão da atitude é efetivada através da argumentação de que o
“sentimento” expresso pelos EUA era mundial”, ou seja, compartilhado por um
grupo indefinidamente amplo de pessoas e instituições ao redor do mundo. Vê-se
que, concordando com o tom geral expresso pela cobertura das agências
estadunidenses de notícias, o A Tarde posicionou a poderosa nação do norte como
um centro irradiador de uma mensagem moralmente legítima de crítica, mesmo que
ainda cautelosa, às execuções em Cuba. Ainda nesse trecho, percebe-se uma
relativa desqualificação do argumento central do governo cubano na defesa da
continuidade dos julgamentos e das execuções. O termo “testada”, que, em sentido
figurado significa erro ou tolice, invalida, a priori, possíveis argumentações do
governo cubano defendendo os processos.
Sobre o segundo trecho, vale considerar que em primeiro lugar a tese central
era a de que a aura de simpatia” que conquistara o êxito rebelde estava
ameaçada, mas não definitivamente comprometida com as execuções públicas.
Além disso, a punição aos criminosos de Batista não era algo rechaçado. O texto
apresenta-os como “liberticidas” e, assim, passíveis de punição. No entanto, a
tarefa de reconstruir o país é colocada como elemento ideal a nortear os anseios do
novo governo, em detrimento dasões revolucionárias punitivas. Ao final, o trecho
evoca a moralidade e o sentimento fraternal como variáveis importantes na
condução dos trabalhos, necessárias para a contenção da “euforia sanguinária” dos
rebeldes.
O caráter conciliatório da representação impede a afirmação de que se
fazia visível, em 1959, uma intensificação de um oposicionismo ao regime cubano.
um diálogo claro entre a simpatia conquistada durante a luta, e a crítica às
condenações capitais. Neste sentido, parece pertinente concluir que para o A
Tarde, aderindo às tendências ideológicas das agências estadunidenses, os limites
para a lógica revolucionária estariam situados na garantia de vida a todos os
militares e policiais envolvidos nos crimes da ditadura de Fulgêncio Batista. Deste
modo, a crítica às condenações aparece como parte integrante de um modelo que,
51
para o jornal e para setores dos EUA, seria o ideal para a concretização do
processo revolucionário em Cuba. Para Moniz Bandeira, no entanto, grande parte
das críticas oriundas de círculos estadunidenses mais acobertavam oposição ao
caráter revolucionário do regime instalado em Cuba do que qualquer consideração
pelos direitos humanos
86
. Devo concordar.
Segundo o mesmo autor, foram cerca de 550 pessoas condenadas à morte
na fortaleza de La Cabaña acusados de assassinato, tortura e estupro de cerca de
20.000 pessoas durante a ditadura deposta
87
. As conferências e entrevistas de
Fidel Castro exibindo fotografias e testemunhos de casos de violência cometidos
pela pocia e pelo exército na era Batista não foram exploradas pelo A Tarde
88
. A
mensagem implícita era a de que qualquer argumento do novo governo em defesa
das condenações à morte estaria desqualificado pela ação “sanguinária” dos
tribunais revolucionários, um “banho de sangue”, tal como expresso pelo jornal em
várias ocasiões
89
.
2.3. POR UMA “CONSCIÊNCIA DEMOCRÁTICA”
À medida que as ações da Revolução Cubana, através do novo governo
instalado, tornavam-se mais “revolucionárias”, as críticas editoriais se
intensificavam. Para o jornalismo do A Tarde, o formato de revolução requerido para
a questão cubana deveria apoiar-se nos pressupostos de uma “consciência
democrática”, da qual se considerava um representante e da qual, para ele, o
governo cubano se afastava cada vez mais, isolando-se da solidariedade
internacional. No editorial “Liberticida”, de 19 de maio de 1960, o jornal criticou o
86
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 187.
87
O autor levanta a possibilidade de haver algum exagero neste número de vítimas da ditadura de
Batista informado por Fidel Castro. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 187.
88
Medeiros Lima, jornalista à época, afirmou que no período Batista eram comuns os casos de
tortura, seguida de castração. Após isso, o torturado era incendiado e jogado ao mar ou enterrado
num terreno baldio. Moniz Bandeira faz referência ao texto de Lima (“Batista na Escola Nazista”) que
fora publicado no jornal Última Hora, em 04 de nov. 1959. Ver MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op.
cit., 1998. p. 187.
89
Expressão utilizada, por exemplo, na matéria BANHO de sangue em Cuba: cerca de 150 já foram
passados pelas armas. A Tarde, Salvador, 13 de jan. 1959, p. 1.
52
fechamento do jornal Diário de la Marina, de Havana, avaliando-o como “um ataque
frontal à liberdade de opinião” e que distinguia Cuba “mais e mais, do conjunto das
nações americanas, cuja consciência democrática repele todo e qualquer gesto que
ofenda aqueles altos princípios”
90
.
No dia 31, um outro editorial era dedicado à questão da imprensa em Cuba,
desta vez relacionado ao fechamento do jornal cubano Prensa Libre. Neste, o A
Tarde, conclamando os membros da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)
a unirem-se contra os ataques à liberdade de imprensa, abriu espaço para a
publicação integral do último editorial produzido pelo jornal cubano, que não
chegara a ser publicado. O texto transcrito, de clara tendência anticomunista, falava
ao povo cubano:
Se se comete esse crime contra nós, contra ti, Cuba amadíssima,
que se saiba em cada família cubana, em cada coração cubano,
que tudo sacrificamos: nossos bens, nossa segurança pessoal e a
dos nossos filhos, por não querer submeter-nos aos que querem
substituir com o trapo vermelho a insígnia da estrela solitária.
91
Mais tarde, a ação do A Tarde foi entendida pela SIP como “digna de ser
imitada por todos os periódicos do continente”, através de seu diretor-executivo
James Canel, que enviara correspondência congratulatória ao jornal baiano. O
elogio foi publicado na primeira página do vespertino, a 2 de agosto de 1960. Antes
disso, no dia 15 de junho, o A Tarde tamm publicou uma mensagem transmitida
por José Ignácio Rivero, diretor-proprietário do Diário de la Marina, através da qual
o empresário agradecia aos jornais que se opuseram ao fechamento do seu
periódico
92
.
Gradativamente, as ões do governo cubano iam se distanciando das
vislumbradas por alguns setores liberais para o governo que se instalara. E, mais
uma vez, dados importantes eram ignorados. No caso dos jornais fechados, seus
hisricos e seus vínculos com a ditadura derrubada em nada foram abordados
93
.
90
LIBERTICIDA. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de mai. 1960, p. 5.
91
TODOS por um. Editorial. A Tarde, Salvador, 31 de mai. 1960, p. 5.
92
DIRETOR do 'Diário de la Marina' agradece apôio. A Tarde, Salvador, 15 de jun. 1960, p. 5.
93
No mês anterior, Milton Santos, após visita a Cuba, publicou um artigo com um nível maior de
informações sobre os perfis dos jornais cubanos. Ver SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução - Os
jornais. A Tarde, Salvador, 20 de abr. 1960, p. 5 e 16. No capítulo 2, faço uma análise específica
53
Os editoriais do A Tarde apontavam ainda para a legitimação dos Estados
Unidos como nação senhora dos destinos dos povos ocidentais, responsável pela
guarda contra o “perigo vermelho” e representante de um ideal de sociedade e de
um estilo de vida do qual o jornal se classificara como defensor. Neste sentido, a
adesão a um projeto estadunidense de liderança no hemisfério, apresentou-se
clara. Ao destacar suas responsabilidades como “líder do bloco ocidental”, o jornal
demarcava uma posição diante das tendências bipolares em que o contexto
específico forjava. Isto deve ser entendido como dado importante na investigação
acerca da reprodução, neste jornal, dos enquadramentos formulados pelas
empresas de notícias daquele país.
No quesito diplomacia, por exemplo. o jornal destacou que os EUA deveriam
articulá-la de modo que “não tenha que confessar seus equívocos, embora o
reconhecimento do êrro não seja um desdoiro”. Ainda para o jornal, no mesmo
texto, “a escolha de um estilo de vida, nas condições do mundo atual, depende
tanto da determinação dos povos quanto de conjunturas a êles estranhas” e, uma
vez que “O mundo não quer ser comunizado, os Estados Unidos, como líder do
bloco ocidental, têm uma grande responsabilidade na preservação da liberdade da
democracia, como a entendemos nós e êles próprios”
94
. Assim, refletindo nestes
marcos, referendava a posição reivindicada pelos EUA e expressa através da
Doutrina Truman de nação guardiã do mundo ocidental contra o avanço comunista,
lembrando-os de sua “grande responsabilidade” neste aspecto.
Fazendo jus a tal posição e, mais ainda, concordando com a linha
diplomática que “não tenha que confessar seus equívocos”, o A Tarde silenciou
quanto ao apoio dos Estados Unidos à ditadura de Batista, inclusive com o envio de
armas antes e durante a luta contra os rebeldes. As íntimas relações entre o
embaixador dos EUA em Havana Arthur Gardner e Batista, que envolviam desde
partidas de canastra a cerimônias blicas de concessões de armamentos, tinham
rendido ao governo cubano, entre 1955 e 1957, “sete blindados, uma bateria de
obuseiros leves para uso em montanhas, 4.000 foguetes, 40 metralhadoras
dos escritos de Milton Santos sobre a Revolução Cubana publicados no A Tarde ao longo do mês de
abril de 1960.
94
O PERIGO é comum. Editorial. A Tarde, Salvador, 25 de jun. 1960, p. 5.
54
pesadas, 3.000 fuzis semi-automáticos M-1, 15.000 granadas de mão, 5.000
morteiros e 100.000 balas calibres 50, de alta potência, para metralhadoras”
95
.
Além disso, a CIA colaborou na constituição do Buró de represión a las Actividades
Comunistas (BRAC), que perseguiu, prendeu e torturou suspeitos de atividades
revoluciorias.
96
As acusações de envolvimento orgânico entre a ditadura de Batista e a
representação estadunidense em Cuba eram constantemente enfatizadas por
Castro, que costumava indagar por que os EUA não se opuseram de forma o
incisiva, como aquela que se via, aos crimes de Batista realizados de maneira
extensiva e de amplo conhecimento da população cubana. O silêncio do A Tarde,
neste ínterim, era tamm o silêncio da Associated Press, motivado por razões de
“segurança do Estado”. Quando foram concedidos espaços para tais
questionamentos aos dirigentes de Cuba, faltaram dados importantes como os
mencionados acima e/ou as acusações foram agrupadas no que o jornal intitulou
de “sentimento anti-americanista ou campanha de “injúrias” de Cuba contra os
Estados Unidos
97
.
* * *
A partir do que foi exposto, é possível se delinear as configurações desse
que temos considerado como um primeiro período de representações sobre a
Revolução Cubana no jornal A Tarde, recortado, basicamente, entre 1959 e 1961.
Nesta fase, as declarações oficiais do governo cubano ainda não vinculavam de
maneira direta o país ao modelo socialista preconizado pela Uno Sovtica,
apesar das aproximões entre os dois países até ali efetivadas. O relativo esforço
de Fidel Castro em não estabelecer aproximões entre o modelo cubano e
qualquer outro existente, entretanto, foi gradualmente dando espaço à demarcação
de uma posição antagônica aos interesses estadunidenses, caracterizada pelas
95
SZULC, Tad. Fidel Um retrato crítico. São Paulo: Best Seller, 1986 apud MONIZ BANDEIRA,
Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 152.
96
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 158.
97
Tal como em: ESTIMULADO em Cuba sentimento anti-americanista. A Tarde, Salvador, 17 de jan.
1959, p. 1. ou FIDEL Castro prossegue na política de injúrias contra os Estados Unidos. A Tarde,
Salvador, 20 de jan. 1961, p. 1.
55
nacionalizações de empresas com sede nos EUA e pelos acordos econômicos
cada vez menos esporádicos com a União Soviética. E, diante disso, ao longo do
ano de 1960, as primeiras sanções ligadas à compra de úcar foram efetivadas
pelo governo estadunidense contra Cuba. Aumentavam-se as contradições e a
imprensa começava gradativamente a associar Cuba ao modelo socialista, ainda
que na ausência de uma declaração confirmatória.
Concordo com Steinberger ao afirmar que os jornalistas brasileiros
responsáveis pela cobertura de assuntos internacionais, quando impossibilitados de
fazerem-se presentes aos locais mencionados e consequentemente dependentes
dos textos noticiosos distribuídos em massa pelas agências de notícias, costumam
adotar as representações ali contidas como verdades. Neste sentido, além do leitor,
o jornalista também absorve a linha interpretativa das empresas noticiosas e passa
a construir suas notas, colunas e editoriais pautadas nestas tendências
98
. Assim,
quando comparamos as notícias traduzidas da AP no A Tarde com os editoriais
sobre os mesmos temas, percebemos que não variação significativa quanto às
informações e o teor ideológico geral das notas. Muito menos textos críticos com
relação à cobertura das referidas agências.
No entanto, no caso do A Tarde, é preciso que se avalie que a adoção das
tendências informativas dos textos da AP se conformaram aos campos de atuação
ideológica deste jornal e aos princípios por ele defendidos em editoriais diversos.
Além disso, considero que, neste caso, tal adoção não se explica primordialmente
pela impossibilidade de se multilateralizar as fontes informativas, mas por clara e
declarada identificação ideológica com o padrão político-discursivo dos textos
recebidos. Em outras palavras, a reprodução do teor opinativo dos telegramas
fornecidos não pode ser vista como inocente, pois perpassa basicamente primeiro
por uma identificação e, a partir desta, por uma decisão de reproduzi-los.
Gradativamente, a exaltação moral jornalística ao triunfo rebelde passou a
dialogar com a crítica às ações do novo governo tais como as execuções de
indivíduos acusados de cometerem crimes vinculados à ditadura de Batista. De
maneira conjugada, o crescente atrito entre Cuba e EUA determinou uma
98
STEINBERGER, Margarethe Born. op. cit., 2005.
56
otimização da propaganda contra-revolucionária difundida pela Associated Press e
repassada pelo jornal A Tarde que, a partir delas, fundamentou suas opiniões.
Tamm paralelamente, os editoriais do A Tarde passaram a levantar as
contradições entre o modelo democrático do qual se declarava defensor e as ações
do regime revolucionário. Ampliando-se as contradições, forjava-se uma nova fase
de representações sobre Cuba no jornal, marcada pela utilizão massiva de
termos condenatórios e/ou pejorativos, radicalizada a partir da declaração socialista
cubana de abril de 1961, ápice de um processo que vinha se sedimentando desde
o triunfo rebelde.
57
3
VISITA A UMA REVOLUÇÃO”: UM REPRESENTANTE DO A TARDE
EM CUBA? (ESCRITOS DE MILTON SANTOS, 1960)
Diante de um formidável movimento de opinião como foi e es
sendo a atual revolução de Fidel Castro, o estrangeiro tem de usar
de cautela, se quer emitir opinião ou julgamento. Mas, a
oportunidade de viver no próprio cenário dos acontecimentos, (…),
permite uma tomada de consciência muito mais autêntica do que
ensejam as interpretações, não raro deformadas que chegam de
outras fontes. Isso, sem dúvida, não exclui a observação de ser
estritamente pessoal o depoimento aos leitores da “A Tarde” sobre o
que vimos em Cuba.
99
Em 1960 concorriam às eleições presidenciais os candidatos Henrique
Teixeira Lott, Jânio Quadros e Adhemar de Barros. No mês de março, o embaixador
cubano no Brasil dirigiu aos dois primeiros um convite a uma visita ao seu país, em
nome daquele governo. Após consultar seus principais assessores e sua base
política, e tendo observado posições que ressaltavam a importância de aceitar o
convite como meio de redimensionar sua imagem junto a setores progressistas que
o viam como um representante das elites e dos trustes, Jânio, diferente de Lott, o
aceitou
100
. Protegera-se das críticas de alguns setores que consideravam sua ida a
Cuba como inoportuna diante das posições contrárias aos Estados Unidos tomadas
por aquele país, alegando que “um candidato à presidência da República não pode
ignorar fatos políticos do mundo contemporâneo”
101
.
Importante notar que, naquele contexto, figurava como o candidato
“nacionalista”, obtendo declaração de apoio inclusive de setores da esquerda -
incluindo a do então clandestino PCB (Partido Comunista Brasileiro), Teixeira Lott.
99
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Os fundamentos históricos e econômicos”. A Tarde,
Salvador, 13 de abr. 1960, p. 5.
100
Sobre o convite e as ponderações da base de Jânio Quadros acerca do tema, ver
QUINTANEIRO, Tania. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964): uma interpretação sobre a
política externa independente. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p. 30-33.
101
Afirmou ainda que: “Vou, pois, sem partidarismos nem paixões, conhecer causas, diretrizes e
propósitos da revolução cubana para fazer o meu juízo e, assim, bem informado, servir à nossa
terra. O temor e a ignorância nada constroem”. ('A FEDERAÇÃO é um mito': diz a 'A Tarde' em
Fortaleza o candidato Jânio Quadros. A Tarde, Salvador, 30 de mar. 1960, p. 1).
58
Assim, sua recusa fora recebida por alguns com algum grau de surpresa, já que os
setores progressistas em geral mantinham uma posição favovel ao regime
cubano, que gradativamente se consolidava
102
. A comitiva, formada por políticos da
base de apoio de Quadros, além de quatorze jornalistas convidados, esteve em
Cuba em fins de março de 1960 e contou com a presença do geógrafo e então
jornalista do A Tarde Milton Santos
103
. De janeiro de 1959, quando triunfou o
Movimento 26 de Julho em Cuba, até aquele momento, pouquíssimos periódicos
brasileiros enviaram jornalistas seus para observar o que se passava em Cuba,
cuja imagem chegava por aqui moldada pelas tendências das agências
internacionais de informação
104
. Tratou-se, assim, de um evento bastante peculiar
para o período e o primeiro contato direto efetivado entre membros das redações
de vários importantes veículos brasileiros, e Cuba. Na foto e legenda reproduzidos
na página seguinte, que foram publicadas no A Tarde no início de abril, o regozijo
do jornal por enviar um “representante” seu para Cuba com Jânio.
102
Mais tarde, no entanto, o PCB formularia suas críticas ao modelo de revolução propugnado pelos
dirigentes cubanos, representado pela teoria do foco guerrilheiro, mantendo, entretanto, o friso da
importância daquele movimento para a América Latina. Ver, neste sentido, SALES, Jean Rodrigues.
op. cit., 2005. Sobre a recusa de Lott, Milton Santos diria: “É mais fácil compreender porque Fidel
Castro fez convite a ambos candidatos de presidenciais para virem a Cuba, do que as razões de
Lott para recu-lo” (SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução - Dois coelhos, duas cajadadas”. A
Tarde, Salvador, 09 de abr. de 1960, p. 5).
103
Além de Milton Santos, viajaram com Jânio jornalistas como Luiz Alberto Moniz Bandeira, Rubem
Braga, João Dantas, Castelo Branco, Fernando Sabino, Maurício Alves, Carlos Mesquita, Emir
Nogueira, entre outros. (O CANDIDATO popular à presidência do Brasil foi ver Cuba de perto. A
Tarde, Salvador, 29 de mar. 1960, p. 3; e JÂNIO: consciência dos povos repeliria uma agressão
contra Cuba. Jornal da Bahia, Salvador, 31 de mar. 1960, 1º caderno, p. 1).
104
Dentre os periódicos brasileiros que enviaram jornalistas para Cuba para a realização de
matérias no período analisado, cito a Revista Manchete (nos primeiros dias após a queda de Batista)
e O Estado de S. Paulo (em momentos diversos ao longo do período). Ainda assim, trataram-se de
visitas, e não de correspondência jornalística constante, o que era desempenhado, invariavelmente,
pelas agências internacionais.
59
3.1. NA APARENTE CONTRADIÇÃO, O RETRATO AMPLO DAS INDEFINIÇÕES
Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, na Bahia, em 1926. Morou
em diversas cidades do estado até que, em 1948, em Salvador, formou-se em
direito. Mais tarde dedicou-se aos estudos na área de Geografia, lecionando por
algum tempo esta disciplina no Colégio Municipal de Ilhéus, e obtendo, em 1958, o
título de Doutor nesta área pela Universidade de Estrasburgo (França). Ao
regressar ao Brasil, lecionou na Universidade Federal da Bahia, onde fundou o
Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais e passou a trabalhar tamm
como jornalista do jornal A Tarde, expediente que cumpriria até 1964
105
. Fora, na
105
Para uma biografia coletivamente construída de Milton Santos, ver SOUZA, Maria A. Aparecida
de (org.). O mundo do cidadão, um cidadão do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
Ilustração 2
Legenda original transcrita:
'A TARDE NA COMITIVA DE
JÂNIO'
Pouco antes de tomar o avião que o levou a Cuba, o sr. Jânio
Quadros recebeu os cumprimentos do
prof. Milton Santos, no aeroporto
internacional do Galeão. O representante de “A Tarde”, que aparece na
fotografia acima com os srs. Leandro Maciel, Jânio Quadros e a srta. Dirce
Maria (Tutú), filha do candidato popular, foi apresentado ao ex-
governador
p
aulista pelo jornalista Joel Presídio, chefe do Serviço de Imprensa da
Executiva Nacional da Campanha Jânio Quadros. O candidato presidencial
teve palavras de exaltação para êste jornal e seu grande fundador, fazendo
questão de documentar o encontro com a
chapa fotográfica que aparece
acima.” (A Tarde, Salvador, 02 de abr. 1960, p. 1).
60
visita de Quadros a Cuba, como o “representante de A Tarde” indicado pelo então
redator-chefe Jorge Calmon, e assinou uma série de artigos que fora publicada no
jornal ao longo do mês de abril de 1960
106
.
Sua evidente simpatia com o novo regime marcara a coluna intitulada “Visita
a uma revolução”, em que Santos avaliou, a partir de observações e diálogos
travados em Cuba, em textos com certa riqueza de detalhes, determinados temas
como: imprensa em Cuba, opositores da revolução, tribunais revolucionários, entre
outros
107
.
Alguns aspectos tornam o expediente relevante para o que estamos
propostos a discutir neste trabalho. Destes, o fato dos escritos do intelectual ter
evidenciado uma tendência opinativa que não acompanhava as críticas já
envidadas pelo jornal a aspectos do novo regime cubano (em editoriais e
reportagens) é central. Além disso, duas outras dimensões são importantes: a
quebra de certo monopólio informativo das agências de notícias internacionais na
cobertura do caso cubano, uma vez que em nenhum outro momento do período
1959-1964 o A Tarde enviou jornalistas seus para cobrir o processo revolucionário;
e a denúncia, nestes escritos, de deturpões noticiosas intencionalmente
fabricadas pelosmeios de propaganda”, com relação ao que se passava em Cuba
naqueles anos
108
.
Foram, ao todo, 13 textos publicados ao longo do mês de abril de 1960.
Santos ganhara um espaço na página 5 e outro na última página (16). Nos escritos,
o jornalista procurou analisar fenômenos importantes da nova realidade cubana
isentando-se de determinados valores e modelos que apareciam de maneira
clara na linha editorial do A Tarde até aquele momento.
Neste sentido, poderíamos, de imediato, questionar: por que motivo o A
Tarde teria publicado o material, que rivalizava com opiniões do vespertino,
106
Ver CALMON, Jorge. “O jornalista Milton Santos”. In: SOUZA, Maria A. Aparecida de (org.). op.
cit, 1996. p. 62-64.
107
Achei importante mencionar o grau detalhado da abordagem de Santos por se tratar de uma
primeira distinção dos textos, quando comparados às notícias até então impressas pelo jornal, cujas
informações geralmente careciam de dados complementares.
108
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Cuba e os Estados Unidos”. A Tarde, Salvador, 29
abr. 1960, p.5 e 16.
61
explanadas, por exemplo, em editoriais como “O preço da liberdade”
109
e “Excessos
de propaganda”
110
. Mesmo com uma posição conciliatória com relação a Cuba,
evitando textos inteiramente condenatórios e ressaltando alguns aspectos positivos
do levante liderado pelo Movimento 26 de Julho, o jornal já havia demonstrado uma
oposição ao modelo político que gradualmente ia se implementando na ilha,
chegando inclusive a classificar como demonstração negativa a ida do então
candidato à presidência Jânio Quadros a Cuba naquele momento
111
.
Infelizmente, não podemos contar com a contribuição oral dos indivíduos
diretamente envolvidos neste evento: autor dos textos, diretor e redator-chefe. No
entanto, sobre tais motivos, cabem algumas especulações pautadas na leitura
atenta dos manuscritos e na percepção das transformações graduais das
tendências opinativas do A Tarde com relação a Cuba, ao longo do período
analisado.
Primeiro: apesar de não considerá-lo determinante, aponto o fato de o jornal
ter anunciado como seu representante oficial o professor Milton Santos naquela
comitiva. Suas contribuições e impressões eram, assim, naturalmente aguardadas
por leitores e colegas
112
. Segundo: o paradoxo aparente entre os escritos de
Santos e a tendência opinativa do jornal aali evidenciada - pautada em grande
parte nas representações contidas nas matérias enviadas via telégrafo ou avião
pelas agências noticiosas estadunidenses - ilustrava uma situação mais ampla de
indefinições gerais da imprensa mundial com relação à realidade cubana. Tratava-
se de uma etapa claramente anterior a uma outra que se iniciaria a partir de 1961
com a determinante sucessão dos fatos: invasão da Baía dos Porcos, declaração
socialista e rompimento radical de relações entre Estados Unidos e Cuba. Nesta
segunda fase, a imprensa liberal, receptiva ao discurso anticomunista emanado
pela linha opinativa dos textos das agências transnacionais de notícias, passou a
tratar Cuba como ameaça à América, modelo de ditadura ilegítima e centro de
109
O PREÇO da liberdade. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de jan. 1959, p. 3.
110
EXCESSOS de Propaganda. Editorial. A Tarde, Salvador, 02 de abr. 1960, p. 5.
111
Id. Ibid.
112
Assim informou o A Tarde: “O dr. Milton Santos demorar-se-á em Cuba durante cerca de 10 dias.
No seu regresso, publicará na “A Tarde” uma rie de artigos sôbre a situação na referida república,
analisando com a lucidez e imparcialidade que caracterizam seus trabalhos, as condições políticas,
sociais e econômicas ali vigentes, tomando como ponto de referência os atos do govêrno Fidel
Castro”. (REDATOR de ‘A Tarde’ vai a Cuba. A Tarde, Salvador, 28 de mar. 1960, p. 3).
62
“campos de concentração”
113
. Assim, a gravidade e/ou importância que possamos
dar hoje a esta aparente incoerência editorial não estaria dada àquele momento.
Também é importante frisar que, de acordo com o modelo liberal de produção
jornalística e da Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa, cujos
pressupostos orientavam de maneira significativa a produção jornastica do
período, um dos fundamentos de um regime jornalístico responsável é a impressão
de textos com visões distintas acerca de um mesmo tema, o que levaria o leitor a
uma melhor compreensão sobre o assunto tratado. Tal perspectiva também
contribuía para o estabelecimento de uma certa brecha, que, em momentos
específicos, evidenciavam a heterogeneidade da produção jornalística, abrindo
espaço para o dissenso frente ao esforço de homogeneização da linha editorial,
naquele momento marcada, no A Tarde, pela crítica a aspectos do novo regime em
Cuba
114
. Creio que não se trata de um princípio que se fazia efetivo invariavelmente
enquanto método, como busca metodológica constante por parte do jornal, mas
creio ser útil entendê-lo como um elemento possivelmente considerado antes da
publicação do material produzido por Santos, que se diferenciava da linha expressa
editorialmente como opinião do jornal sobre a revolução cubana
115
.
Além disso, podemos especular a combinação das explicações citadas ou
até mesmo a inexistência de uma controvérsia gerada pela leitura dos textos de
Milton Santos pelos seus colegas editores, antes de serem publicados. Neste
sentido, é mais compreensível que a situação confirme a heterogeneidade do
processo de produção jornalística que a existência de um possível confronto
ideológico-informativo consciente pelos indivíduos envolvidos. Entretanto,
113
O FIGURINO de Havana. Editorial. A Tarde, Salvador, 22 de mar. 1964, p. 5.
114
Sobre a heterogeneidade da produção jornalística em meio a homogeneidade da linha editorial,
ver MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989).
Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1998.
115
Não é impossível também que Milton Santos tenha redigido algum dos editoriais sobre Cuba
antes da sua viagem com Quadros. Se isto aconteceu, e, mais ainda, se algum dos textos que
temos avaliado como críticos a Cuba no período 1959-1960 é de autoria de Santos, os que foram
publicados na coluna “Visita a uma Revolução” marcaram uma ruptura com aqueles que foram
publicados anteriormente. Além disso, é preciso se destacar que a publicação de textos assinados,
onde se assume a autoria e a responsabilidade intelectual pelas ideias veiculadas (como na coluna
de Santos), confere ao jornalista um lugar de enunciador diferenciado daquele que lhe confere o
papel de redator da “opinião do jornal (na elaboração de um editorial), do qual se incumbe numa ou
noutra situação, e nas quais devem ser levadas em consideração questões para além das opiniões
pessoais.
63
controvertida ou não, a distância opinativa pode ser claramente percebida,
constituindo-se assim como um ponto de ruptura frente ao discurso dominante
forjado até então acerca do tema, no jornal.
3.2. SOBRE OS TEMAS TRATADOS
No primeiro artigo da série, Dois coelhos, duas cajadadas”, o autor avaliou
as possíveis repercussões da visita do candidato que acompanhava em Cuba.
Levantava, neste sentido, a possibilidade de Quadros “incompatibilizar-se com a
área pro-norteamericanos da opinião brasileira”
116
. Uma classificação justa acerca
de setores da opinião pública, e inclusive aplicável na avaliação do comportamento
do A Tarde naqueles anos. É fato que a anunciada viagem de Jânio Quadros havia
motivado a publicação de inúmeras notas no jornal, escritas por alguns colunistas
colaboradores. Nestas, a tendência geral era, utilizando a terminologia de Santos,
de incompatibilidade.
Em 16 de março, por exemplo, o A Tarde publicou a opinião contrária do
então cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro D. Jaime de Barros a viagens de
parlamentares brasileiros a Cuba, cujas notícias “são as mais desencontradas”
117
.
Dias após, a coluna do jornalista Cruz Rios, que apesar de ver em Jânio Quadros
um símbolo de uma nova mentalidade política brasileira, desvinculada de valores
externos; avaliava, no entanto, que “para guardar a coerência com o panorama
político de sucessão o sr. Jânio Quadros não deveria ir a Cuba”. Para o colunista,
caberia ao Marechal Lott, apoiado pelos “bolchevistas indígenas”, isto sim, aceitar o
convite. Ao final, entretanto, também considerava a viagem, em seu aspecto
positivo, como símbolo de desvinculação ideológica, para ele característica de
nio Quadros
118
.
Mas a opinião do A Tarde sobre a controvertida viagem ficara mesmo
116
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução - Dois coelhos, duas cajadadas”. A Tarde, Salvador, 09
de abr. 1960, p. 5.
117
DUAS opiniões do cardeal D. Jaime. A Tarde, Salvador, 16 de mar. 1960, p. 1.
118
RIOS, Cruz. “Ao correr da pena especial para A Tarde.” A Tarde, Salvador, 28 de mar. 1960, p.
4.
64
registrada no exemplar de 2 de abril de 1960. Nele, no espaço editorial, o jornal
fazia uma balanço das candidaturas de Jânio e Lott, avaliando o primeiro como um
“irrequieto candidato” que, ao tomar atitudes como a de aceitar o convite a Cuba,
“está desperdiçando a melhor oportunidade de sua carreira em demonstrações
negativas”. Em contrapartida, fazia referência elogiosa à equipe assessora de Lott
que aconselhou o candidato a não aceitar o convite cubano, “o que repercutiu muito
bem diante da declaração do líder cubano de que 'a democracia da América Latina
era um mito'”
119
.
Milton Santos, no entanto, procurava ver a revolução cubana por um outro
prisma, ponderando inclusive sobre a ausência de eleições e outros elementos
típicos do modelo democrático representativo, apontando, por exemplo, o “receio”
por parte dos dirigentes de que a corrupção azinhavre a vontade do povo,
permitindo a subida ao poder de políticos sem compromisso com a revolução, ou
que facilmente se rendam aos grandes interesses comerciais
120
, concedendo,
assim, espaço raro no jornal para as justificativas do governo rebelde, neste
quesito. A simpatia marcava os textos, tanto na avaliação positiva do contato com
aquele país quanto na atribuição de um caráter de “símbolo” ao movimento,
ressaltando elogiosamente sua luta contra o imperialismo sustentado pela ação de
grandes empresas:
Não há quem se ponha em contacto direto com os fatos que recuse
a êsse movimento a sua grande importância. Tem o valor de um
símbolo, na luta contra a pobreza e o subdesenvolvimento, que às
vezes se confundem com a ppria luta contra os trustes
internacionais, que sugam o resultado do trabalho dos povos.
121
Santos demonstrava convião acerca do caráter não-comunista da
revolução cubana, acusando “camadas da opinião brasileira” de, levianamente,
confundirem as posições “anti-trustes” do governo cubano com “tolerância em
relação ao comunismo ou à Rússia soviética”
122
. Acusaria ainda os trustes de
119
EXCESSOS de Propaganda. Editorial. A Tarde, Salvador, 2 de abr. 1960, p. 5.
120
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Cuba e os Estados Unidos”. A Tarde, Salvador, 29 de
abr. 1960, p. 5.
121
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução A Revolução continua”. A Tarde, Salvador, 14 de abr.
1960, p. 5.
122
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução - Dois coelhos, duas cajadadas. A Tarde, Salvador, 9
65
vincular Cuba com certas ideologias e métodos que a maioria dos governos e a
maior parte da população das Américas repele, como, por exemplo, o
comunismo”
123
. Não seria possível, no entanto, afirmar que Milton Santos manteve
uma posição anticomunista neste período e nestes escritos, que, em nenhum
momento, o afastamento teórico de Cuba do comunismo por este autor culminou
com uma crítica ao Estado socialista, da maneira como ficava evidente, por
exemplo, em outros textos analisados do período e publicados no próprio A Tarde.
Milton Santos também analisou as bases históricas do domínio
estadunidense sobre a ilha de Cuba, apontando alguns dados sobre as ligações
entre empresas e homens blicos dos EUA com a ditadura de Fulgêncio
Batista
124
. Fez, neste sentido menção à “emenda Platt”, que converteu Cuba numa
nação praticamente tutelada pelos Estados Unidos em 1901 e que gerou no povo
cubano um sentimento de oposição às aspirações imperialistas do vizinho rico.
Tamm avaliou, no mesmo texto, a concentração intensa de propriedades de
terras que marcava a economia cubana antes do advento revolucionário,
observando que enquanto apenas 1 por cento dos proprietários possuía mais da
metade das terras agrícolas, a grande maioria dos camponeses não dispunha de
um palmo de gleba para plantar”
125
.
Na coluna, o autor realiza uma conexão direta entre os EUA e a situação a
qual estava submetido o povo cubano antes de janeiro de 1959, o que costumava
ser evitado nos textos da AP desde os primeiros dias do governo rebelde. As bases
de dominação neocolonial estadunidense na Ilha após o desgaste do sistema
colonial espanhol não costumava figurar nos textos noticiosos e nos editoriais do A
Tarde até aquele momento. Fulgêncio Batista e o seu respectivo regime de
corrupção e terror apareciam como elementos isolados do processo histórico que o
condicionou, vinculados a uma certa ambição e traços autoritários pessoais. Deste
modo, quebrando o silêncio acerca do tema no A Tarde e conectando a situação
revolucioria cubana às contradições deste país com os vizinhos Estados Unidos,
de abr. de 1960, p. 5.
123
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Cuba e os Estados Unidos”. A Tarde, Salvador, 29 de
abr. de 1960, p. 5.
124
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Os fundamentos históricos e econômicos”. A Tarde,
Salvador, 13 de abr. 1960, p. 5 e 16.
125
Id. Ibid.
66
Santos escreveu que
(…) revolução social, pretendendo distribuir mais justiça em seu
próprio país, não podia deixar de atingir os Estados Unidos, cujas
emprêsas residentes em Cuba tinham interesses muito
profundamente ligados à situação moral, política e econômica que a
revolução iria derrubar.
126
Em outro artigo, entra no pantanoso terreno do tema dos tribunais
revoluciorios, argumento-chave para as críticas do governo estadunidense e da
imprensa liberal entre 1959-1960. Ao avaliar a posão geral do governo cubano
com relação ao tema, Santos, após considerar os limites e contradições inerentes
aos tribunais, apontando o problema deles instalaram-se diante de um clima
revoluciorio, expressa, no entanto, que
os cubanos, porém, apontam êsse Tribunal Revolucionário como
um motivo de elogio, não de crítica. Ora, dizem todos, seria muito
mais perigoso e grave se se deixasse o povo indignado fazer justiça
por suas próprias mãos. O Tribunal julga os acusados, mandando-
os depois cumprirem as penas a que se sujeitaram. Não houve um
trucidamento, linchamento ou assassinato.
127
Percebe-se que o autor apresenta duas dimensões relacionadas ao evento
que o figuravam entre as representações contidas nas notícias e editoriais
impressos pelo A Tarde até aquele momento. A primeira diz respeito a conceder
espaço ao argumento dos dirigentes cubanos na abordagem do sentimento de
indignação presente no seio do povo cubano, capaz de abrir brecha para vinganças
não-legais. A outra aparece no friso da inexistência de ações sumárias promovidas
pelo governo ou pelo povo cubano, sejam elas de “trucidamento, linchamento ou
assassinato”. Efetivamente, Milton Santos veiculara o argumento de cubanos que
viam os tribunais enquanto método de contenção da violência, e não de
exacerbação da mesma, tal como eram apresentados pelos editoriais do A Tarde
até aquele momento.
Já no artigo sobre a reforma agrária cubana, como complemento às
126
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução Os fundamentos históricos e econômicos”. A Tarde,
Salvador, 13 de abr. 1960, p. 5.
127
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução A revolução continua”. A Tarde, Salvador, 14 de abr.
1960, p. 5.
67
informações até então difundidas pelas agências noticiosas, que não apontavam os
detalhes acerca das expropriações para a utilização de latifúndios em Cuba para
fins de reforma agrária, Santos explicou os três métodos possíveis para a
conversão. O primeiro seria o da compra das terras pelo Instituto de Reforma
Agrária de Cuba (INRA). Neste caso, o valor-base para a operação seria aquele
declarado por último pelo proprietário ao fisco para fins de recolhimento de
impostos. A título de exemplo, Santos citou o caso da United Fruit que “agora
esbraveja porque, de acordo com as suas próprias declarações, o govêrno de Fidel
Castro vai lhe pagar menos de um quinto do que, agora, alega ter direito”
128
. A
segunda maneira seria o da expropriação de terras pertencentes a ex-funcionários
do Estado ou afins que, processados, não puderam explicar a origem do dinheiro
para a compra das propriedades. Havia ainda um terceiro método: o da
expropriação das terras de alguém acusado de corrupção ou roubo, antes mesmo
da conclusão das investigações. Em caso de inoncia comprovada, o latifundiário
receberia uma indenizão pela conversão
129
.
De toda a análise empreendida pelo articulista, a partir da leitura do conjunto
dos artigos, a discussão mais diretamente ligada ao que temos nos esforçado em
abordar de maneira central na presente pesquisa é mesmo a expressa na sua
coluna do dia 29 de abril. Nela, a questão da propaganda exercida pelas agências
de notícias a partir de demandas de grupos internacionais é diretamente abordada.
Caso raríssimo nos exemplares do A Tarde analisados, a denúncia feita por Santos
contra as “deturpações” contidas nas notícias sobre Cuba difundidas na imprensa
internacional e em discussão, por conseguinte, a sistemática fabricação de
consensos sobre o tema, transmitidos pelos “meios de propaganda”, mas orientado,
para ele, pelos trustes internacionais
130
.
128
SANTOS, Milton. Visita a uma revolução Dividindo as terras”. A Tarde, Salvador, 25 de abr.
1960, p. 5.
129
Id. Ibid.
130
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução – Cuba e os Estados unidos”. A Tarde, Salvador, 29 de
abr. 1960, p. 5 e16. “Raríssimo” porque em apenas um outro texto, do jornalista Fernando Sabino -
que apesar de não ser funcionário do A Tarde enviava textos ao diário e esteve em Cuba com Jânio
Quadros - pude verificar, impresso no jornal baiano, tal consideração. Disse ele: “Como separar o
verdadeiro do falso nas notícias que nos chegam? Os jornalistas que estiveram em Cuba
recentemente puderam verificar com os próprios olhos como aquêle país está submetido a um
verdadeiro cêrco de notícias falsas ou tendenciosas que dali se espalham para o resto do mundo”.
(SABINO, Fernando. A próxima invasão”. A Tarde, Salvador, 23 de abr. 1960, p. 2).
68
Neste aspecto, no entanto, Santos não vincula tal ação às demandas dos
órgãos governamentais estadunidenses, tal como temos considerado válido
entender, tratando-a apenas como atividades orientadas pelos interesses de
determinados grupos empresariais afetados pelas ações do novo governo cubano.
Assim, a denúncia isentava o governo estadunidense de participação no referido
expediente, o que considero um limite do texto, já que tenho aqui considerado a
utilização consciente dos veículos de comunicação pelos EUA (neste caso) como
instrumento-chave no contexto da Guerra Fria, concordando com a historiadora
Elisa Servin
131
. Mais ainda, percebo tal utilização como componente da atividade de
hegemonia cultural-informativa, exercida para além das fronteiras nacionais e, no
caso cubano, justificadora de ações contra-revoluciorias em curso naquele
momento
132
.
Milton Santos também escreveu sobre a imprensa em Cuba. E abordou, de
maneira central, os jornais de oposição, analisando de que maneira se dava a
relação entre a Revolução e estes. Situou, assim, os dois jornais oposicionistas
circulantes: o Diário de la Marina e o Prensa Libre, e explicou a prática da “coletilla”
ou “aclaración”, em que o comitê de empregados publicava nestes jornais, quando
havia discordância com relação às opiniões emitidas, uma tarja na parte inferior da
página apresentando tal oposição.
Também citou, em linhas gerais e a partir de informações do governo, alguns
aspectos políticos dos jornais, como as benesses ofertadas ao Prensa Libre
durante a ditadura de Batista, adquiridas “por meios tortuosos”, além da corrupção
da família Carbó, proprietária do jornal. Sobre o Diário de la Marina, levantou as
acusações a ele feitas sobre a “oposição aos ideais populares e sua
“subserviência aos interesses estrangeiros”. Não eram, friso, constatações de
Milton Santos, mas considerações sobre as acusações feitas pelo governo e pelo
povo em geral aos jornais. Terminava Santos dizendo que se “do ponto de vista
131
SERVIN, Elisa. artigo citado, 2002.
132
Jo Roberto Martins Filho avalia que, após nove meses de governo cubano, ainda em 1959, os
Estados Unidos já haviam concluído que o processo revolucionário em Cuba precisava ser contido.
Prosseguindo, o autor analisa que “A assinatura dos acordos comerciais com a URSS, em fevereiro
de 1960, apenas agravou a situação. Um mês antes, a CIA se decidira pela derrubada de Fidel.”
(MARTINS FILHO, João Roberto. “Os Estados Unidos, a revolução cubana e a contra-insurreição”.
Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 12, jun. 1999. p. 67-82).
69
teórico havia liberdade de imprensa, “de um ponto de vista prático é temerário
responder afirmativamente”, que os proprietários não dispõem de meios “para
impedir que em suas gazetas sejam chamados de mentirosos, mendazes e
antirevolucionários”
133
. Discussões e dados novos para o leitor do A Tarde.
No último texto da série, Milton Santos procurou avaliar as perspectivas que
se anunciavam para Cuba, opinando que se “no plano interno, a revolução está
vitoriosa”, no cenário das relações internacionais, a situação mostrava-se
complicada. Observando as crescentes oposições do país caribenho frente aos
EUA, Santos considerou a possibilidade, naquele momento bem perceptível, da
deflagração de um boicote envidado pela nação do norte, o que “poderia conduzir
Cuba a grandes dificuldades”. Para contornar o problema, sugeria Santos que fosse
concedido
o apoio maciço dos países latino-americanos, não apenas de um
ponto de vista moral, mas de maneira efetiva, forçando um comércio
mais amplo que os tirasse das dificuldades. Mas, respondamos com
franqueza, será lícito esperar que venha isso a acontecer? Não
parece provável.
134
Concluía o artigo voltando a atribuir a Cuba o caráter de símbolo, que os
outros povos dêste hemisfério passiva ou ativamente reconhecem. E referia-se
ainda à necessária vigilância da opinião pública latino-americana com relação a
possíveis investidas contra a ilha, lembrando a importância do cuidado na
estratégia dos Estados Unidos com relação a Cuba, zona de fricção.
Trata-se, evidentemente, de uma representação bem diversa daquelas
engendradas pelos editoriais do A Tarde; pois mesmo considerando que nos
primeiros dias de 1959 a exaltação foi a tônica do discurso daquele jornal, a crítica
parcial e a cautela passariam a dominar as opiniões a partir da enfatizão do
discurso anti-imperialista por parte de Cuba. Tomar Cuba como um símbolo, em
abril de 1960, num texto impresso num jornal declaradamente pró-estadunidense,
parece-me algo ousado.
Percebe-se que a referência aos países vizinhos americanos se aqui sob
133
SANTOS, Milton. “Visita a uma Revolução Os jornais”. A Tarde, Salvador, 20 de abr. 1960, p.
16.
134
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução – s/t”. A Tarde, Salvador, 30 de abr. 1960, p. 5.
70
a forma de conclame de apoio ao regime instalado no país caribenho dadas as
dificuldades previstas -, diferente do que viria a ser veiculado por um editorial do A
Tarde do mesmo mês, atribuindo às nações americanas o dever de lutarem pelos
“altos princípios” democráticos contra o ataque frontal à liberdade de imprensa,
promovido pelo governo cubano em ocasião do fechamento do jornal Diário de La
Marina
135
. Além disso, se Santos vê aqui Cuba em sua possibilidade de
aproximão aos países americanos a partir de seu exemplo, os textos escolhidos
para figurarem como opinião” do A Tarde a vêem como um modelo em constante
afastamento da consciência democrática típica de uma América que, não querendo
comunizar-se, deixar-se-ia capitanear pelos Estados Unidos da América e pelo seu
estilo de vida e valores
136
.
É importante ressaltar que a busca de Milton Santos por análises mais
pormenorizadas da situação de Cuba pode ser vinculada também a um certo
espírito de investigação científica do qual não podemos dissociar do jornalista-
geógrafo. Sua argumentação marcada pela utilização de dados diversificados,
fontes atualizadas e espírito argumentativo contrastava com as tendências
superficiais e carentes de informações complementares que marcavam os textos
jornalísticos sobre Cuba impressos pelo A Tarde até então. Não seria sensato
separarmos uma certa obstinação por uma objetividade científica, mais ligada ao
cientista-geógrafo Milton Santos, da prática do jornalista. Creio que não são
divisões cartesianamente demarcadas no exercício da escrita e da argumentação e
podem aqui ser apontadas como um dos possíveis condicionantes da situação
jornalística que se configurou.
3.3. LEITURAS DO RETORNO
Que revolução é essa? Poderá o leitor perguntar. Revolução
comunista? Revolução de rapazes que se diriam imberbes, não
fossem os bastos pêlos que escondem, no seu rosto, a mocidade?
Revolução de poetas e sonhadores? É uma revolução romântica, no
sentido mais puro da palavra, onde todos acreditam num futuro
135
LIBERTICIDA. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de mai. 1960, p. 5.
136
Ver O PERIGO é comum. Editorial. A Tarde, Salvador, 25 de jun. 1960, p. 5.
71
mais belo: revolução de idealistas. É uma revolução moralizada e
moralizadora: não notícias de abusos, até agora praticam o que
pregaram.
137
A simpatia de Santos com o governo cubano e com a situação vista durante
aquele breve período em Cuba, que ora aparece na forma de exaltação das
qualidades morais dos dirigentes cubanos e ora no friso do apoio maciço da
população ao novo governo, fez-se evidente. As atribuições negativas que
começavam gradativamente a compor a tendência predominante dos comentários
jornalísticos liberais brasileiros seja nas qualificações de Fidel como um caudilho
ou na atribuição do caráter sumário e imoral aos tribunais revolucionários - não
figuraram nos escritos do professor que, apesar de não vincular-se em termos
teóricos, em nenhum dos textos, a correntes de pensamento de esquerda; mostrou-
se receptivo a posições favoráveis a Cuba, naquele momento difundidas por alguns
setores progressistas
138
.
Ao retornar, fora atribuído pelo jornal, inclusive, uma certa influência exercida
pela visita ao país do Caribe e pelo contato com os seus dirigentes, como
importantes para um retorno repleto de boas impressões. Na charge do dia 4 de
abril, Milton Santos, nio Quadros e Juracy Magalhães Junior - político baiano da
UDN que havia acompanhado a delegação como membro da base de apoio de
Quadros -, identificados pela caricatura e pelas iniciais de seus nomes desenhadas
nas respectivas malas, retornam barbudos e influenciados pelo regime cubano, da
visita àquele país
139
.
137
SANTOS, Milton. “Visita a uma revolução – A revolução continua”. A Tarde, Salvador, 14 de abr.
1960, p. 16.
138
Bem mais tarde, Santos afirmaria a influência marxista sobre o seu pensamento e sua
metodologia de análise da realidade: “Eu me considero um marxista (...). Sobretudo hoje, porque
com a globalização, o que sobrou do socialismo fundado em realidades profundas como no caso da
China, por exemplo; e no mundo ocidental, que nós aprendemos mais a conhecer, interpretar e
analisar, se tornou todo ele capitalista... Então, se tudo se torna capitalista, obrigatoriamente se
instala a contradição”. Ver o documentário TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou o
mundo globalizado visto do lado de . [Documentário em DVD 86 minutos]. Rio de Janeiro:
Caliban Produções Cinematográficas, 2006. Apesar disso, seria precipitado ou exagerado afirmar
que tal posição já estaria demarcada em 1960, ou que pressupostos marxistas teriam sido
considerados quando Milton Santos escreveu os textos aqui analisados.
139
Com o então deputado Juracy Magalhães nior fora realizada uma entrevista pelo A Tarde, no
qual o político discorreu sobre as origens da Revolução Cubana, num tom não menos elogioso que
o evidenciado nos textos de Milton Santos: “O observador imparcial que chega a Cuba nota a
seriedade e a salutar intenção de propósitos que ornam o caracter dos líderes revolucionários”.
MAGALHÃES Jr., Juracy. “A Revolução Cubana nasceu nos campos”. Entrevista concedida. A
72
Num contexto de Guerra Fria, onde posições intermediárias pareciam
impossíveis diante da polarização esquerda/direita, as menções elogiosas de Milton
Santos ao governo cubano que gradativamente radicalizava sua ruptura com os
Estados Unidos, com ões como a nacionalização de importantes refinarias de
petróleo como a Shell e a Texaco, aumentando, paralelamente, suas parcerias
comerciais e políticas com a União Soviética; pôde ter soado como esquerdismo
para alguns setores, os quais haviam conferido a Fidel Castro a imagem de um
caudilho esgotado mentalmente
140
.
Em 19 de abril de 1960, enquanto prosseguia a publicação dos textos de
Milton Santos, a coluna assinada pelo jornalista Mario Piva, no jornal A Tarde,
criticava enfaticamente o modelo de nacionalismo reivindicado por determinados
setores da esquerda brasileira. No texto “Meu nacionalismo é assim”, o autor
Tarde, Salvador, 13 de abr. 1960, p. 2.
140
O PREÇO da liberdade. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de jan. 1959, p. 3.
ração 3
: DELEGAÇÃO de Janio vai a Cuba.
A Tarde
, Salvador, 04 de abr. 1960, p. 2.
73
posicionou-se da seguinte maneira:
Sou nacionalista porque defendo a liberdade em todos os
quadrantes da vida brasileira. Sou nacionalista pela livre emprêsa,
contra a estatização na órbita econômica e contra a subordinação
do homem como simples peça da máquina estatal. Sou nacionalista
por convicção e, não, por inspirações nascidas de ideologias
extremistas.
141
A crítica ao que o colunista classificou, mais a frente no texto, como
“nacionalismo de casaca vermelha” balizava-se, entre outros elementos, na
tolerância aos capitais estrangeiros, desde que resistentes à sua exploração. Ao
final do texto, insere a temática “Cuba”, ao afirmar: “não aceito o nacionalismo que
tem como bandeira um caudilho como Fidel Castro”
142
.
O texto é enfaticamente anticomunista. A referência a Cuba, neste caso,
aparece relacionada às posições das correntes tidas como nacionalistas e que,
para o autor, importava “idéias de nações extremistas”. Mesmo figurando ainda de
maneira indireta e especulativa no set de assuntos ligados ao comunismo
internacional, como um possível futuro aliado soviético, podemos, no entanto,
verificar a relação teórica estabelecida pela dita “área pro-norteamericanos da
opinião brasileira” entre Cuba e setores progressistas brasileiros, agrupados, no
texto de Piva, no conjunto dos “falsos nacionalistasvermelhos. Para Piva, tomar
Fidel Castro como um exemplo ou uma “bandeira” era mesmo inaceitável
143
.
Analisando de maneira estrutural, sinto-me a vontade para afirmar que as
opiniões de Piva representavam, naquele momento, muito mais a linha editorial do
veículo que o empregava do que as tendências expressas pelos textos de Milton
Santos aqui avaliados
144
. Trato como o elemento-chave de tal consideração o
incômodo demonstrado pelos textos com o que A Tarde tratava como “sentimento
141
PIVA, Mário. “Meu nacionalismo é assim”. A Tarde, Salvador, 19 de abr. 1960, p. 6.
142
Id. Ibid.
143
Vale ressaltar que Fidel Castro havia sido tema de um outro texto de Piva, publicado a 7 de
março, em que o autor, buscando motivos para a ação de jovens estudantes cariocas que
estenderam um retrato de Castro na fachada da UNE durante a visita do presidente estadunidense
Eisenhower ao Brasil, indagou: “Teriam sido motivos de ordem econômica? Mas, como? Que pode
esperar o Brasil do govêrno de Fidel Castro? Que estenda o pescoço à canga moscovita como es
agindo o tirano de Cuba? Dos Estados Unidos, cujo presidente nos visitava na época, podemos
esperar muito. Não somente de auxílios materiais, mas também na defesa dos postulados
democráticos”. (PIVA,rio. “Não consegui entender”. A Tarde, Salvador, 07 de mar. 1960, p. 6).
144
Ver subítem “Por uma 'consciência democrática”, do capítulo anterior.
74
anti-americanista” cubano
145
. O fato de Milton Santos o ter esboçado qualquer
reserva ao governo cubano por conta destas posões, a meu ver, insere-o num
setor opinativo diferenciado; solidário, no geral, a Cuba. Tal solidariedade não ficara
restrita ao campo teórico ou do mero discurso jornalístico. Em 26 de julho de 1960,
alguns meses após seu regresso do país caribenho, Milton Santos participava de
uma sessão pública de solidariedade ao governo cubano na sede da Associação
dos Empregados no Comércio da Bahia, noticiada no A Tarde com o negativo título:
“Comemoração fria de uma revolução sangrenta”
146
.
Assim, utilizando-me da formulação de Betânia Mariani de que “a prática
jornalística é heterogênea durante seu processo de produção, mas resulta em uma
enunciação homogeneizada quanto ao produto final”
147
, não podemos avaliar que
tais incongruências comprometiam a linha editorial homogeneizada do jornal, a qual
esteve marcada pela crítica cada vez menos cautelosa ao se abordar o tema
“Cuba”. Assim, ainda que nos pareça a priori curioso e interessante o fato, o
produto final jornalístico ainda mantinha-se homogêneo, definido por uma
construção sistemática do quadro da Revolução Cubana promovida pelo jornal até
ali, através dos textos da Associated Press publicados diariamente e de editorias
cada vez mais enérgicos contra as ações revolucionárias processadas em Cuba.
Entendo ainda que as análises de Santos, apesar de contrapostas às
posições críticas demarcadas pelo jornal com relação a Cuba, demonstram um
quadro de indefinições no campo político-ideológico em que esteve abrigada a
Revolução até aquele ponto. E nesse quadro, a Revolução Cubana mantinham-se,
do ponto de vista jornalistico, como um fenômeno interessante, porém ameaçado
de sucumbir à euforia sanguinária e/ou aos acenos da União Soviética.
Além disso, o fato de Santos ter assinado a coluna e observado ser
estritamente pessoal o que abordara sobre Cuba no primeiro artigo, também
integra a tendência jornastica de separação entre a “opinião” e o “fato”. Ao publicar
textos elogiosos a Cuba, o A Tarde demonstrava que, ainda que discordasse,
garantia ao jornalista o direito de se expressar. No entanto, as informações,
145
ESTIMULADO em Cuba sentimento anti-americanista. A Tarde, Salvador, 17 de jan. 1959, p. 1.
146
COMEMORAÇÃO fria de uma revolução sangrenta. A Tarde, Salvador, 27 de jul. 1960, p. 1.
147
MARIANI, Bethania. op. cit., 1998. p. 93.
75
evidentemente, não comprometiam a linha editorial geral assumida pelo A Tarde em
relação a Cuba. A assinatura na coluna retira o jornalista da posição enunciadora
pretensamente neutra do relato jornalístico. Traduz-se, assim, como uma opinião.
E, naquele contexto, figuraria como contrária não a uma outra opinião (do jornal,
através de seus editoriais), mas contrária ao “fato”, relatado pelas matérias da AP;
já que o discurso jornalístico impresso na construção das matérias ditas “não-
opinativas” pretende-se detentor da capacidade de narrá-lo sem paixões.
* * *
Em alguns relatos biográficos, sugere-se relação direta entre a ida de Milton
Santos a Cuba com as perseguições a ele direcionadas após o golpe civil-militar de
1964
148
. Durante o tempo em que esteve em Havana, o geógrafo manteve diálogos
cordiais com o candidato Jânio Quadros e, conquistando deste simpatia e alguma
identificação no campo político, fora convidado a participar de seu governo depois
de eleito, ocupando a subchefia do gabinete Civil.
Antes de vincularmos de maneira direta a experiência política da visita a
Cuba com a prisão e o auto-exílio forçado em 1964, precisamos tomar ciência de
que, além do primeiro cargo político no governo nio Quadros, Santos ocupou
ainda, de 1963 a 1964, a presidência da Comissão de Planejamento econômico
(CPE) durante a gestão de Lomanto Júnior como governador da Bahia. Nesta
pasta, passou a posicionar-se em defesa das ideias de planejamento econômico
desenvolvidas por economistas como Rômulo Almeida, as quais contrariavam os
velhos esquemas econômicos das elites baianas
149
.
Neste sentido, considero pertinente a avaliação de Fernando Pedrão, ainda
que o autor tenha adotado certo exclusivismo de motivo, acerca das conclusões
148
Tal relação aparece, por exemplo no texto de Délio Pinheiro: “Todavia uma viagem a Cuba com o
presidente da República e rios intelectuais fato que na época não parecia nem inusitado nem
perigoso o colocaria, algum tempo depois, no Index do regime militar. Em 1964 inicia-se uma
longa noite que duraria vinte anos”, em PINHEIRO, Délio J. F. “Milton Santos e a Bahia de belas
gravatas e verdades encobertas”. In: SOUZA, Maria A. Aparecida de (org.). op. cit., 1996. p. 179-
183.
149
Para uma análise das ideias de Rômulo Almeida, ver ALMEIDA, Rômulo Barreto. Rômulo: voltado
para o futuro. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil; Associação dos Sociólogos do Estado da
Bahia, 1986.
76
“míopesdos articuladores e/ou apoiadores do golpe civil-militar na Bahia ao avaliar
as posições econômicas de Santos na CPE como um risco aos planos econômicos
vislumbrados, “identificando planejamento com esquerdismo e tomando a
oposição à estrutura oligárquica como simétrica à luta com o capital industrial
150
.
Diante destes aspectos, considero sensato avaliarmos conjuntamente todas
as complexidades políticas advindas destas tomadas de posições e cargos, na
busca de explicações (ainda que parciais) para o ingresso de Milton Santos nos
registros da ditadura que acabava de se instalar e no seu consequente auto-exílio
após temporada numa cela do 19º Batalhão de Cavalaria (19º BC), em Salvador, de
onde sra após um princípio de derrame
151
.
Não pretendo aprofundar-me ainda mais neste terreno. Fui até este ponto
apenas para que evitemos estruturações teóricas precipitadas e parciais, atribuindo
casuisticamente um único elemento às desventuras de Milton Santos após a ação
dos golpistas de 1964.
* * *
Os escritos de Milton Santos aqui analisados, além de despertar uma
inevivel curiosidade por se tratar de um expediente incomum no conjunto da obra
de um geógrafo de prestígio internacional, ilustram um quadro específico. Uma fase
de indefinição, na qual Cuba aparece representada pelo diálogo conciliatório entre
o feito heroico do Movimento 26 de Julho ao derrubar uma ditadura criminosa -,
as execuções promovidas pelos tribunais revolucionários e um profundo anti-
imperialismo já demarcado por aquele governo que, no entanto, ainda não havia se
materializado como declaração por uma opção socialista.
A meu ver, as representações conciliatórias características desta conjuntura
possibilitaram, de maneira central, a abertura do espaço de publicação para os
textos que, mesmo rivalizando com a linha editorial do A Tarde e da maioria de seus
150
PEDRÃO, Fernando. “Uma injustiça atinada”. In: SOUZA, Maria A. Aparecida de (org.). op. cit.,
1996. p. 58-60.
151
Em conversa com o autor, Maria Auxiliadora de Souza, que conviveu com Milton Santos, afirmou
que o mesmo jamais falou abertamente sobre o episódio da prio, fazendo apenas,
ocasionalmente, menções metafóricas sobre o tema.
77
colaboradores, puderam ser impressos. Ainda que não esteja certo de que os
textos criaram uma real polêmica quando encaminhados para publicação,
considero que, numa fase posterior de radicalização da propaganda anticomunista
no Brasil às vésperas do golpe que derrubaria o presidente João Goulart - e da
vinculação direta de Cuba a um modelo socialista imitável pelos outros países do
continente, tal expediente estaria inviabilizado pela nova conjuntura de polarização
no plano ideológico.
Também chama a atenção a sobriedade analítica de Milton Santos ao evitar
enquadramentos teóricos ou o estabelecimento de vínculos ideológicos tentadores
num momento em que as condições conjunturais empurravam o discurso
jornalístico para tomadas de posições cada vez mais inflexivelmente demarcadas.
Ciente destas tendências, Santos o as subverteu - avaliando Cuba para além
dos enquadramentos correntes (ainda que especulativos e indefinidos nesta fase) -
como soube situar o tema no terreno das batalhas ideológicas e midiáticas. Claro
que sem o grau de teorização que alcançaria suas observações sobre a informação
como mecanismo da chamada “globalização”, ao final de sua vida
152
.
Nesta linha, seguiu apresentando dados inéditos ao leitor do A Tarde,
quebrando a exclusividade das agências internacionais na cobertura sobre o tema,
denunciadas por Santos como deturpadoras de notícias”, a servo de empresas
insatisfeitas com os rumos e perspectivas que se apresentavam para Cuba.
O material é, assim, um produto jornalístico da primeira avaliação coletiva in
locu de representantes de empresas jornalísticas brasileiras na Cuba
revolucioria. No caso de Milton Santos, é também testemunho do contato entre
um intelectual progressista e uma realidade política nova para a América Latina.
Contato este que determinou uma apreensão simpática da conjuntura cubana. Tão
simtica que os textos possivelmente soaram como esquerdismo para setores
cujas posições não toleravam a campanha antiimperialista promovida por Cuba
frente ao gigante vizinho, baluarte, para estes grupos, de certos “postulados
democráticos
153
.
152
Neste sentido, ver SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à
consciência universal. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
153
PIVA, Mário. “Não consegui entender”. A Tarde, Salvador, 07 de mar. 1960, p. 6.
78
Interessante, finalmente, mencionar que, mais de quarenta anos mais tarde,
Milton Santos refletiria diante de uma câmera sobre o tema do controle da
informação pelas agências internacionais. Ainda que estivesse tratando-o de
maneira conectada à análise do fenômeno da globalizão contemporânea, a
observação mostra-se perfeitamente aplivel para os fenômenos que aqui temos
discutido:
A chamada “mídia” tem um papel de intermediação que a gente
talvez não possa dizer que é inocente, mas o parte dela
realmente, ou não é dela o poder. O poder é de um pequeno
número de agências internacionais da informação, estreitamente
ligadas ao mundo da produção material, ao mundo das finanças e
que controla de maneira extremamente eficaz a interpretação do
que está se passando no mundo. E de uma forma que se torna
clara quando a gente pega os jornais e vê a repetição quase que
servil das mesmas fotografias, das mesmas manchetes, das
mesmas ideias, dos mesmos debates; que indicam que alguma
coisa está por trás de tudo isso.
154
Penso que o poder ao qual se refere Milton Santos é o de impor os contornos
do mundo e de sustentar imagens, interpretões e estereótipos como verdades.
Se, na sociedade “globalizada” de hoje é identificado por Santos tal poder exercido
por essas ancias, observa-se que tal condição se fazia verificável durante os
anos da chamada Guerra Fria, quando tais empresas apareciam em caráter
transnacional. Consolidando-se como hegemônicas do ponto de vista informativo,
as agências de notícias passaram a dominar os espaços jornalísticos, prestando
um serviço à “mídia” em geral. Esta, por sua vez, possui efetivamente um papel de
intermediação, como aponta Santos, o qual não pode, concordo, ser entendido
como inocente, que os valores adotados tendem a se adequar ao perfil
institucional das empresas compradoras dos textos.
154
TENDLER, Silvio. op. cit., 2006. A entrevista foi gravada em 4 de janeiro de 2001, 5 meses antes
de Milton Santos falecer.
79
4
“OS VERMELHOS DE LÁ E DE CÁ”: CUBA NO CENTRO DA
REPRESENTAÇÃO ANTICOMUNISTA (1961-1964)
4.1. CUBA COMO AMEAÇA À AMÉRICA: A DECLARAÇÃO SOCIALISTA COMO
MARCO DA INTENSIFICAÇÃO DAS CRÍTICAS À REVOLUÇÃO
Em abril de 1961, Fidel Castro, num discurso proferido em meio ao enterro
dos cubanos mortos após os primeiros ataques reos promovidos por exilados
cubanos treinados e armados pela CIA, declarou o caráter socialista daquele
governo: “Esta es la revolución socialista y democrática de los humildes y para los
humildes”, disse ele
155
.
A declaração fora o ápice de um quadro que vinha se sedimentando desde
os primeiros dias de 1959. Ao longo deste período, Cuba estatizou 75% de sua
indústria, além de diversos outros setores, incluindo o de serviços públicos, ferindo
diretamente os interesses dos grupos empresariais estrangeiros (principalmente
dos EUA) instalados na ilha. Ao passo que promovia reformas estruturais e de
caráter popular, o regime cubano tamm vinha se aproximando da URSS através
de parcerias comerciais. Em fevereiro de 1960, o primeiro acordo entre os dois
pses desencadeou a primeira do que viria a ser uma série de sanções
ecomicas impostas por Washington
156
. Escancaravam-se, assim, as contradições
entre Cuba e Estados Unidos e o governo da Ilha oficializava que encontrara na
opção socialista a reposta aos seus anseios de efetiva emancipação nacional e à
busca de um rompimento definitivo com uma passado neocolonial, no qual os
Estados Unidos foram os principais beneficiários. Tal como considerou Florestan
Fernandes,
A “revolução contra a ordem” tornou-se, alternativamente, uma
155
Extraído de MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., p. 295. O discurso de Fidel Castro, que fora
proferido em 16 de abril de 1961, está disponível em <http://www.cuba.cu/gobierno/discursos>.
Acesso em 17/08/2008.
156
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998.
80
realidade permanente e em aceleração constante. Porque não havia
nada mais a salvar do capitalismo e só o socialismo respondia ao
radicalismo nacional e democrático da maioria.
157
Para Moniz Bandeira, a declaração de Castro tinha ainda, em meio aos
confrontos, o intuito maior de “constranger a URSS a defendê-la (Cuba) contra a
invasão em curso, organizada pelos EUA”
158
. De fato, no dia 18, a URSS publicou
nota condenando a invasão e afirmando estar pronta, no caso de não cessar a
intervenção, a dar toda a ajuda necessária à República de Cuba”
159
.
Os exilados contaram com o suporte técnico da CIA e, depois de prepararem
cerca de 1.400 homens em regiões da América Central (principalmente na
Guatemala), puderam desembarcar no litoral sul de Cuba, na rego da Baía dos
Porcos, a 17 de abril de 1961
160
. Aparentando não valorizar muito o fator surpresa,
e objetivando, provavelmente, resultados adesistas com a propaganda, a invasão já
havia sido anunciada pelos exilados cubanos desde o início daquele mês
161
.
Mesmo antes, no dia 30 de março, um ofício confidencial do encarregado brasileiro
de negócios em Havana, Carlos Jacyntho de Barros, endereçado a Afonso Arinos
de Melo Franco, alegava saber dos preparativos da invasão e afirmava ser
inconcebível que o governo cubano o o soubesse
162
. Os exilados encontraram,
então, tropas cubanas organizadas que, cerca de dez horas depois do
desembarque, haviam dominado a situação, aprisionado rios contra-
revoluciorios e afundado dois navios que conduziram os invasores até a Ilha
163
.
157
FERNANDES, Florestan. op. cit., 2007. p. 35.
158
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 296.
159
Segundo o A Tarde, a nota foi lida pelos locutores da dio de Moscou no dia 18. Além disso, a
posição também foi expressa por Nikita Kruschev, então primeiro-ministro da URSS, em carta a
John F. Kennedy. PROGRIDE a invasão de Cuba. A Tarde, Salvador, 18 de abr. 1961, p. 1.
160
Vale ressaltar que, num primeiro momento, o presidente John F. Kennedy, em meio à invasão,
negou qualquer participação do governo estadunidense e da CIA no processo, tendo que,
posteriormente, reconhecer sua responsabilidade no fiasco. Moniz Bandeira faz uma análise muito
bem documentada do papel dos gabinetes oficiais dos EUA na invasão. MONIZ BANDEIRA, Luiz
Alberto. op. cit., 1998. p. 253-294.
161
No dia 9 de abril, o “líder anti-castrista” José Miró Cardona reuniu a imprensa em Nova York para
anunciar que uma invasão, cuja data não poderia obviamente revelar, estava sendo preparada e
convocava o povo cubano para apoiá-lo. CONTRA-REVOLUCIONÁRIOS cubanos intensificam
preparativos para invasão iminente da ilha. A Tarde, Salvador, 10 de abr. 1961, p. 2.
162
Ofício nº 51/600, confidencial, Carlos Jacyntho de Barros, encarregado de Negócios, ao
chanceler Afonso Arinos de Melo Franco, Havana, 30 de mar. 1961. apud MONIZ BANDEIRA, Luiz
Alberto. op. cit., 1998. p. 273.
163
A luta, no entanto, durou no total cerca de setenta e duas horas. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto.
op. cit., 1998.
81
A tentativa de invasão foi um fiasco, mas a rápida contenção das tropas
invasoras por parte do exército cubano não pôde, por questões práticas, ser
noticiada no dia seguinte pelo jornal A Tarde. Anunciava ele que as comunicações
diretas com Cuba achavam-se interrompidas em decorrência dos bombardeios e da
batalha. As notícias eram, assim, remetidas de Miami, local onde se encontravam
as principais forças de oposição à Revolução, pela agência Associated Press. As
informações valorizavam as ações dos invasores, declaravam êxitos sucessivos e
anunciavam deserções no exército de Castro. Baseando-se ainda nas informações
oriundas dos exilados, levantavam a possibilidade de que a cidade se Santiago, a
segunda mais importante de Cuba, talvez a esta hora esteja nas mãos dos
invasores”
164
. Para o leitor, embriagado pela força das informões unilateralmente
reproduzidas, o desfecho mais provável seria a queda do regime cubano dali a
algumas horas.
O texto falava, assim, de um lugar demarcado, que era o centro de
organizão e residência das forças anticastristas, e repassava a fala daí advinda
como fato. E, sem confrontar informações, impossibilidade que derivava da
interrupção dos principais meios de comunicações com Havana, reproduzia as
leituras superestimadas dos organizadores da invasão. Ou seja, informando
unilateralmente, construía uma realidade também unilateral, porém amparada num
discurso pretensamente neutro. Repassando as informações reunidas pela
Associated Press, o A Tarde reproduzia as perspectivas otimistas e/ou irreais tal
como demonstraram os estudos posteriores sobre a evolução do evento
165
dos
exilados.
Emir Sader, em seu livro “A Revolução Cubana”, publicado em 1985, esteve
atento à questão da cobertura da imprensa com relação à tentativa de invasão,
afirmando que:
Nas 72 horas que duraram os combates, as agências de imprensa
dos EUA United Press e Associated Press, fundamentalmente
se encarregaram de cumprir sua parte no plano, difundindo as
164
PROGRIDE a invasão de Cuba. A Tarde, Salvador, 18 de abr. 1961, p. 1.
165
Um trabalho-referência neste campo é o de GLEIJESES, Piero. Ships in the night: the CIA, the
White House and the Bay of Pigs. In: Journal of Latin American Studies. nº 27, Cambridge
University Press, 1995.
82
versões mais distorcidas da evolução da situação. A revolta popular
contra o governo de Fidel Castro, os bombardeios feitos por aviões
rebelados da própria Força Aérea de Cuba, a morte de Raúl Castro,
o bombardeio de Havana nos chegavam ao Brasil, fazendo parte
ativa da ação de agressão militar contra a Ilha.
166
Sader trata a cobertura tendenciosa como “parte ativa da ação de agressão”,
fazendo-nos refletir acerca da importância de uma frente ideológico-informativa
que, tamm atuante durante o processo de invasão, serviria como meio de
divulgação unilateral do avanço dos contra-revolucionários e também, a meu ver,
como um possível meio de estímulo ao que os organizadores entendiam como um
iminente levante popular contra o regime revolucionário cubano. Reforçando esse
argumento, frise-se que durante a invasão o fator divulgação” fora bastante
valorizado pelas forças contra-revolucionárias, que preocuparam-se em equipar-se
com uma poderosa emissora de ondas de rádio, cujas informões eram captadas
pelos correspondentes internacionais e repassados para os jornais assinantes de
seus serviços
167
.
No dia seguinte, no entanto, os textos anunciavam o êxito das tropas do
governo e as prisões dos invasores por ele efetuadas. Garantiam, no entanto, que
“nenhum americano desembarcou com os invasores”
168
. E no dia 27 de abril ainda
mantinha a informação de que os primeiros bombardeios aos aeroportos cubanos
foram realizados por cubanos dissidentes, que teriam se rebelado e partido de
Cuba depois de bombardear os aeroportos com aviões cubanos. Tal como foi
revelado pela própria imprensa dos EUA logo posteriormente, os aviões eram
estadunidenses, foram pintados improvisadamente com a bandeira de Cuba e os
pilotos vieram direto da Guatemala, bombardearam os aeroportos e seguiram para
Key West, na Flórida, Estados Unidos, onde encenaram um pedido de asilo
169
.
O A Tarde, no entanto, ignorando as discussões sobre o tema, as quais já
166
SADER, Emir. op. cit., 1985. p. 53-54.
167
Entre as notícias do dia 17 de abril, o próprio jornal A Tarde reproduziu um texto enviado de
Miami que dizia: “A poderosa emissora que as forças anti-castristas estão usando anunciou que as
oito 'estranhas embarcações', cuja presença nas imediações do local de desembarque foi
descoberta ontem à noite, eram apenas unidades da marinha de Cuba, que tentavam desertar e
buscavam estabelecer contato com os anti-fidelistas”. PROGRIDE a invasão de Cuba. Salvador, A
Tarde, Salvador, 18 de abr. 1961, p. 1.
168
PROGRIDE a invasão de Cuba. Salvador, A Tarde, Salvador, 18 de abr. 1961, p. 1.
169
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. op. cit., 1998. p. 286.
83
haviam sido travadas na Assembleia da ONU dez dias antes e mencionadas no
próprio jornal
170
, nem sequer conjecturou sobre as inúmeras denúncias de que
esses ataques foram promovidos pelos EUA, preferindo repassar mensagens como
a que abaixo segue transcrita, acompanhada da fotografia na qual figurava como
legenda:
A utilização consciente dos meios de divulgão no sentido de se construir
um consenso em relação à invasão foi levado às vias da negação da participação
170
Vale a pena transcrever o trecho onde foi veiculada a informação sobre as denúncias acerca da
participação dos EUA na invasão: “Os bombardeios contra os aeroportos cubanos deram ao regime
de Fidel Castro combustível para seu debate de hoje na Organização Mundial, sôbre as acusações
cubanas de agressão, contra os Estados Unidos. / O ministro das Relações Exteriores de Cuba,
Raul Roa, se prepara para lançar seu ataque, hoje, perante a Comissão Política da Assembleia
Geral. / O chefe da delegação americana, Adlai Stevenson, prepara-se para dar resposta,
imediatamente, às acusações cubanas e negará enfaticamente que o govêrno dos Estados Unidos
planeja a agressão ou atos de intervenção contra Cuba.” (CUBA invadida por contra-revolucionários.
A Tarde, Salvador, 17 de abr. 1961, p. 1). Explorarei esse trecho com mais afinco no capítulo 5.
Ilustração 4
Legenda original transcrita:
Na semana que precedeu
a invasão de Cuba pelos contra-
revolucionários de Miró Cardona,
aviadores do govêrno cubano abandonaram as fileiras castristas
fugindo para o exterior. Antes, porém, aproveitaram a oportunidade
para bombardear alguns aeroportos governistas, entre eles o de
Santiago de Cuba, cuja foto (da Associated Press para “A Tarde”
)
uma ideia do estado em que ficou.”
(CASTRO transformaria Cuba na
primeira república socialista da América. A Tarde
, Salvador, 27 de abr.
1961, p. 1).
84
estadunidense no evento, cuja possibilidade, ainda que considerada em textos
noticiosos publicadas no A Tarde, foram tratadas, no geral, como novas denúncias
cubanas frente aos Estados Unidos, as quais, classificadas como injúrias ou
agressões, faziam parte do quadro geral de representações sobre o governo
cubano, em que este assumia o papel de agressor. Constata-se aqui o que afirma
Betânia Mariani ao se referir à mídia contemporânea: que, ao agir sobre o
momento, a fabricação de uma representação social fortemente marcada por um
esquema discursivo que prevê a isenção, tende a perdurar, ainda que confrontado
com a realidade.
O alinhamento à argumentação estadunidense era o irrestrito que mesmo
as ações de censura de outros países às declaradas pretensões estadunidenses de
invasão a Cuba em caso de necessidade, foram relativizadas
171
. E o editorial de 25
de abril, por exemplo, que tratava da declaração conjunta dos governos brasileiro e
argentino contra as intervenções de um país por outro e pelo respeito à soberania e
à auto-determinação, confundiu de maneira astuta acusados e acusadores,
agredidos e agressores. E, sem fazer qualquer ressalva às declaradas pretensões
de Kennedy, avaliou:
A concretização de tais propósitos impõe-se, sejam quais forem os
esforços necessários, na defesa do mais inestimável dos bens a
que podem aspirar os povos livres ste continente: a paz com
dignidade e justiça. E, impõe-se sem demora ante os sucessos
verificados em Cuba, cujo govêrno, por circunstâncias conhecidas,
abriu umas das portas do hemisfério à penetração comunista,
pondo em perigo a estabilidade democtica das demais nações
americanas.
Aceitando o patrocínio da ssia à sua causa, provocado na
recente invasão da sofredora ilha das Antilhas, quer pelo
armamento usado contra os invasores (aviões Migs, tanques e
canhões russos), quer pelos pronunciamentos das nações
comunistas em sua defesa, o govêrno de Fidel Castro mostrou aos
demais países do continente a verdadeira face da sua revolução.
O princípio de auto-determinação que invoca não passa,
171
Ressalto que mesmo antes de Kennedy assumir a participão no ato da Baía das Porcos,
declarou, por exemplo, em 22 de abril, que, em caso de necessidade de contenção à “penetração
comunista estranha”, não titubearia em “cumprir suas obrigações primárias que são a segurança de
nossa própria nação”. E. UNIDOS agirão contra comunismo nas Américas. A Tarde, Salvador, 22 de
abr. 1961, p. 1.
85
infleizmente, de um embuste, porquanto, livrando da influência
norte-americana o seu país, não titubeou em levá-lo para a órbita
soviética, desprezando todos os recursos que lhe poderia oferecer a
solidariedade continental para dirimir a divergência com seu vizinho
da Norte América.
172
Importante notar que as posições que estavam sendo expressas por outros
pses diante do conflito que envolvia Cuba e Estados Unidos, foram
dimensionadas no editorial, no sentido de se atribuir a Cuba, e não aos EUA, a
responsabilidade pelos transtornos e tensões na América, naquele momento. Além
disso, o texto desqualificou a argumentação de Cuba e de outros países
americanos em prol da auto-determinação dos povos, tratando-a como “embuste”
cubano com o intuito de, livrando-se da influência dos EUA, abrir suas portas às
influências da União Soviética.
O momento histórico específico que envolve a declaração de Fidel acerca do
socialismo em Cuba e a invasão frustrada à Baía dos Porcos aparece como de
fundamental importância para o que estamos tentando desenvolver neste tópico.
Isto porque podemos avaliá-lo como “ponto crítico” para a deflagração de um
padrão discursivo que iria assumir a caracterização da Revolução Cubana nos
textos impressos pelo A Tarde a partir de então, diretamente vinculada aos padrões
negativos com que se avaliava o comunismo.
A formalização da aproximação de Cuba à órbita sovtica, que foi
precipitada tamm pelas ações armadas apoiadas pelos EUA contra Cuba, é aqui
considerada como o elemento fundamental para a posterior centralização de Cuba
no discurso anticomunista do jornal, em sintonia com as tendências emanadas
pela Associated Press. Esta, consciente de sua importância num contexto
específico de confrontos ideológicos demandados pelas tensões da Guerra Fria e
nos quais Cuba passava gradualmente a compor um quadro importante, veiculou,
não abnegadamente, as caracterizações tendenciosas da política oficial
estadunidense frente a Cuba e à revolução que ali triunfava.
No dia 19 de abril, o A Tarde produziu ainda uma reportagem que versava
sobre a repercussão da invasão, na cidade de Salvador. O texto tem uma
172
A BOA política. Editorial. A Tarde, Salvador, 25 de abr. 1961, p. 5.
86
característica marcante: utiliza, de maneira constante, termos negativos para
referir-se a Fidel Castro, o que não era comum aaquele ponto. Friso que, mesmo
com o acompanhamento do polêmico processo de julgamentos e execuções em
Cuba desde 1959 e dos passos tomados por Cuba desde eno, as notícias
costumavam utilizavam expressões menos adjetivadas para fazer referência a
Fidel, tais como premier”, “primeiro-ministro” ou “chefe do governo cubano”. No
entanto, naquele contexto de definições em relação ao projeto político que deveria
ser levado a cabo pelo governo cubano, termos mais enfáticos passariam a figurar
de maneira constante nos textos produzidos pelo A Tarde, mesmo que isto não se
desse de maneira fixa nos textos da Associated Press, os quais ainda valorizavam
a exibição de certa impessoalidade, ainda que em textos tendenciosos. Analisemos
os trechos seguintes, extraídos da referida matéria:
Os graves acontecimentos que se desenrolam em Cuba tiveram
repercussão em Salvador. Estudantes anunciavam ontem
ruidosamente, a realização de uma passeata partindo da Faculdade
de Direito até a Praça Municipal para apoiar o ditador Fidel Castro
e responsabilizar o governo norte-americano pela invasão que os
contra-revolucionários fizeram ao território cubano.
As paredes dos prédios escolares, os muros da encosta da cidade
alta e as fachadas de diversos edifícios do centro urbano
amanheceram hoje pixadas. Lêem-se inscrições que exaltam Cuba
e o seu ditador e critica os Estados Unidos. Legendas como esta
por exemplo:Estamos com Cuba contra os yankees”.
As manifestações aaqui foram moderadas. Os vermelhos estão
porém muito indoceis dispostos a agitar o ambiente, embora o
tenham encontrado até o momento grandes estímulos. O povo
mantem-se indiferente não participando de qualquer movimento de
apôio ao tirano cubano.
173
A reportagem detinha o título “Indiferença popular pela sorte de F. Castro” e,
sobre Salvador, foi produzida sem a utilização de textos remetidos por outras
empresas. Em todos os momentos em que foi textualmente exigido o emprego de
adjetivos para referir-se a Castro, o A Tarde recorreu aos dois termos grifados:
“ditador” e tirano”. Termos que agora eram conferidos ao antes “herói da saga
173
INDIFERENÇA popular pela sorte de F. Castro. A Tarde, Salvador, 19 de abr. 1961, p. 3. Os grifos
o meus.
87
cubana” de 1959.
Além disso, o texto, ao abordar as ões de estudantes pelas ruas de
Salvador tamm demarcava um lugar específico para estes e para todos os outros
que declaravam apoio a Cuba, através da utilização da expressão “vermelhos”,
uma categoria automaticamente demandada para a descrição ideológica de um
grupo indefinido de pessoas que declaravam seu apoio ao país do Caribe. Sem
nomes, vínculos institucionais ou argumentos, do texto extraía-se apenas a
conclusão de que os responsáveis pelas pichações nos prédios da cidade eram
“estudantes vermelhos”, comunistas, “indóceis” e “dispostos a agitar o ambiente” e
incomodar uma população “indiferente à sorte de F. Castro”. Observemos que o
texto fala da exaltação de “Cuba e seu ditador” e da crítica aos Estados Unidos”.
Um contraponto que induz o leitor a posicionar-se de um dos lados, uma vez que
diante da falta textual de uma justificativa expressa para se criticar os EUA, parece
inevivel tomar uma posição contra a exaltação de um ditador.
Para garantir o princípio essencial da “objetividade” na narrativa jornalística,
as adjetivações (tirano e ditador) foram incorporadas como elementos de coesão
textual, o seja, quando é demandado um termo para que não seja usado
repetidamente o nome “Fidel Castro”. Já se faz evidente, neste ponto, uma
radicalizão do discurso do jornal com relação a Cuba, rompendo inclusive com a
tendência dos textos noticiosos internacionais que costumavam evitar o emprego
de termos tão “parcializados”.
Construía-se, assim, o quadro geral anticomunista da Revolução Cubana que
esteve presente na grande imprensa até o momento em que se efetivou o golpe
civil-militar de 1964. Cuba deixava a posição de república rebelde popular e
assumia o lugar do “outro” comunista, algo construído pela propaganda
anticomunista como externo, estrangeiro, estanho às tradições típicas do Ocidente
liberal
174
.
174
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2002.
88
4.2. REPRESENTAÇÕES DO DISCURSO ANTICOMUNISTA SOBRE CUBA NO
CONTEXTO DO “PRÉ-GOLPE”
As declarações de Castro em 1961 se aliaram de uma forma crítica à
intensificação das ações de oposições no Brasil promovidas por grupos
conservadores (como os militares inseridos na esfera governamental) à chamada
política externa independente posta em prática pelo então presidente Jânio
Quadros, que renunciaria ao cargo meses depois
175
.
Tal princípio foi sustentado ao
longo do curto mandato, acompanhado pelo agravamento das tensões entre
Quadros e setores que defendiam acirradamente o alinhamento brasileiro ao
governo norte-americano no contexto da chamada “Guerra Fria”, e que tinham
como principal e mais propagandístico interlocutor o então governador do Estado
da Guanabara Carlos Lacerda. Em agosto de 1961, Jânio Quadros condecorou
com a Ordem do Cruzeiro do Sul o representante de Cuba, Ernesto “Che” Guevara,
numa cerimônia intencionalmente esvaziada. Em contrapartida, Lacerda concedeu
a Manoel Antonio Varona, líder anticastrista e membro da “Frente Revolucionária
Democrática Cubana”, as chaves da cidade do Rio de Janeiro. Além disso, o
político udenista fez, no mesmo dia, pronunciamentos na televisão denunciando a
tendência esquerdista do governo Quadros e a possibilidade de um golpe de
Estado.
176
Na dissertação A visita de Che, a mídia e a renúncia de Jânio Quadros”, o
autor Newton Duarte Molon avalia a condecoração como um elemento importante
no processo de intensificação de um oposicionismo à política de aproximão a
pses socialistas levada a cabo por nio Quadros. O autor considera que a
campanha de desestabilização foi estabelecida, basicamente, pela imprensa,
alimentada pelas ações e discursos do líder udenista Carlos Lacerda. De maneira
cuidadosa, o autor avalia o discurso do governador da Guanabara a 24 de agosto
de 1961, exibido pela TV Rio. Neste, Lacerda teria, para Molon, utilizado uma
estratégia no discurso que, ao final, formulou a hipótese de um golpe de Estado
que seria desfechado por Quadros com o apoio dos setores de esquerda no Brasil.
175
Jânio Quadros esteve na presidência da República de 31 de janeiro a 25 de agosto de 1961.
176
Ver QUINTANEIRO, Tânia. op. cit., 1988.
89
O episódio com Che serviria como argumento para validar o discurso. Para
surpresa geral, no dia seguinte, o presidente Jânio Quadros pediu a renúncia.
Assim, a homenagem prestada a Ernesto Che Guevara, não pelo seu real
significado, mas pelo uso que dela foi feito pela imprensa e pela oposição foi, para
o autor, “o ato presidencial que custou o mandato de Jânio”
177
.
Como tentativa de explicar a ação inesperada do presidente, o então
jornalista do Diário de Notícias Luiz Alberto Moniz Bandeira, num trabalho escrito
logo após o evento, e pautado, segundo ele, em informações oriundas até mesmo
de “círculos nacionalistas” no seio do Exército, afirmou que os dados por ele
colhidos indicaram que o objetivo de Jânio era “provocar um impasse entre o povo,
as Forças Armadas e o Congresso, o que lhe possibilitaria exigir poderes
extraordinários como condição para o seu retorno ao governo”
178
.
* * *
No decurso dos anos de aproximão ao golpe de caráter civil-militar no
Brasil, as tendências anticomunistas foram se tornando mais agudas. No ápice do
processo, ano de 1964, os textos do A Tarde demonstravam o recebimento e
reprodução da propaganda anticomunista corrente no restante do Brasil. Os títulos
alertavam contra o perigo comunista no país e a iminência de uma revolução,
especulando a existência de “10 mil comunistas infiltrados no Brasil
179
, ou
noticiando que “Comunistas tinham sêlo para comemorar revolução”
180
.
Paralelamente, Cuba, enquanto república na América então declaradamente
socialista, passava a compor uma posição central nas representações do discurso
anticomunista.
O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 institucionalizaria tal
propaganda. Às vésperas do golpe, uma parcela dos setores dirigentes
177
MOLON, Newton Duarte. A visita de Che, a mídia e a renúncia de Jânio Quadros. Dissertação de
Mestrado em Comunicação na Contemporaneidade. Faculdade Cásper Líbero. São Paulo, 2006. p.
10-11.
178
MONIZ BANDEIRA, Luiz A. A Renúncia de Jânio Quadros e a crise pré-64. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1979. p. 9.
179
A Tarde, Salvador, 10 de mar. 1964, p. 4.
180
A Tarde, Salvador, 14 de mar. 1964, p. 2.
90
aguardava e solicitava silenciosa ou abertamente - uma intervenção capaz de
frear a tendência considerada de esquerda do governo Goulart. As prometidas
reformas de base incomodavam setores da elite e o discurso popular e reformista
do presidente soava, em tempos de Guerra Fria, como um deslizamento para o
modelo socialista, na avaliação destes grupos.
Em 13 de março de 1964, o presidente realizou um grande comício no Rio de
Janeiro no qual reiterou a execução das reformas de base. O evento fora
contraposto pela primeira Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, ocorrida
em São Paulo a 19 de março, organizada por setores do clero e entidades
anticomunistas de classe, naquele momento emmero elevado no país
181
.
Em 23 de março de 1964, no ápice da campanha pela desestabilização do
governo Goulart e da conspiração pela sua derrubada, o A Tarde publicou um
editorial dedicado à análise de alguns itens de um documento publicado pela OEA e
que foram transcritos e publicados pelo jornal O Estado de São Paulo
182
. O
documento abordava as prisões efetuadas pelo governo cubano e a situação dos
prisioneiros políticos daquele país. O texto “O figurino de Havana” se iniciava
afirmando que
A realidade política de Cuba é bem diversa daquela que apregoam
os vermelhos de lá e de cá. Em lugar da liberdade, predomina a
violência e os debates, tão sadios, francos e necessários na
181
Podemos citar, entre estas, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES), O Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a Aliança Eleitoral da Família (ALEF), a Ação Democrática
Popular (ADEP), o Conselho das Classes Produtoras (CONCLAP), o Movimento Sindical
Democrático (MSD), a Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres (REDETRAL), o
Movimento Estudantil Democrático (MED), o Serviço de Orientação Rural (SORPE), entre outras.
Ver QUINTANEIRO, Tania. op. cit., 1988; e DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado
Ação política, Poder e Golpe de Classe. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
182
Neste ponto, três frisos são necessários: 1) Desde 1962, Cuba havia sido expulsa da OEA,
depois de uma campanha capitaneada pelos Estados Unidos, cujo principal argumento era o da
incompatibilidade do modelo marxista-leninista com os sistemas políticos tradicionais da América; 2)
O documento transcrito é o “Informe sobre a situação política dos presos políticos e seus familiares
em Cuba”, formulado pela OEA e publicado em 17 maio de 1963. O texto está disponível em:
http://www.cidh.oas.org/countryrep/Cuba63sp/indice.htm; e 3) O jornal O Estado de São Paulo, de
onde foram retiradas as informações, participou ativamente da campanha pela derrubada de Goulart
através, inclusive, da articulação entre o seu proprietário, lio de Mesquita Filho e grupos ligados à
Escola Superior de Guerra, atuando, às speras do golpe, no sentido de conclamar as Forças
Armadas para que salvassem “o País da trama diabólica que os comunistas lhe prepararam”
(TRAMA diabólica. O Estado de São Paulo, São Paulo 2 de fev. 1964, p. 3 apud FIGUEIREDO
FILHO, Celso R. “ESG e Estao em 1964: limites autoritários do liberalismo”. In: Revista Adusp, nº
34, mai. 2005, p. 85-98).
91
democracia, foram substituídos pelos campos de concentração.
183
O tema “Cuba” era então apresentado como espaço de disputa de
construção informativa dentro do Brasil, que, além dos cubanos, os “vermelhos
de cá” também estariam interessados em apregoar uma realidade política diversa
daquela que o editorial apontava.
Os trechos transcritos pelo A Tarde denunciaram abusos nas detenções
efetuadas pelas autoridades cubanas, tais como: prisões efetuadas sem
identificação ou sem conferência da identidade do detido, uso de violência (física e
verbal), realização de prisões a altas horas da madrugada, danos a propriedades,
ausência de explicações sobre os motivos das detenções, além de prisões de
magistrados. No parágrafo seguinte, sem demarcar, no entanto, a fonte de onde se
originava a informão, o jornal redigiu denúncias de que
Outro ato de horror os prisioneiros vivem no chamado tribunal
comum, onde julgamentos coletivos de dezenas e até centenas
de pessoas de uma só vez. E saem do julgamento para os campos
de concentração, onde os presos políticos são marcados, como
irracionais, com a letra “P”.
184
Duas conexões feitas com o regime cubano no discurso são fundamentais.
Primeiro, a aproximação com os horrores praticados pelo nazismo, que fica clara.
Apresentando ao leitor um regime que marca “como irracionais” seus prisioneiros e
os manda para “campos de concentração”, o jornal induz à aproximão não-
declarada com o sistema de encarceramento empreendido pelos executores do
holocausto. A segunda conexão, que reflete de maneira importante o momento
político vivido pelo país, é o da conexão deste regime com um certo modelo
pretendido no Brasil por grupos de agentes do comunismo internacional, ou algo
neste sentido, tal como é expresso ao finalizar o texto:
Êste apenas um dos aspectos negativos do comunismo cubano,
que os seus agentes não anunciam, mas em contra partida não
dispõem de elementos para desmentir. E ainda assim, sem
nenhuma cerimônia, é uma cópia do regime de Kruschev e Fidel
Castro que se esforçam, impatrioticamente, para impor ao Brasil!
185
183
O FIGURINO de Havana. Salvador, A Tarde, 23 de mar. 1964, p. 5.
184
Ibid.
185
Ibid.
92
Quero aqui ressaltar que não se trata de preocupação do presente trabalho
verificar a autenticidade das informações apresentadas pela OEA e pelos jornais,
com relação à situação prisional na Cuba revolucionária. Estamos aqui, isto sim,
dispostos a demonstrar como, no auge da campanha pela desestabilização do
governo Goulart, que contou com a argumentação central de que o presidente
pretendia implantar no Brasil uma república sindicalista com o apoio e a
participação dos comunistas que já se fariam infiltrados em todos os setores do
governo; o discurso jornalístico adesista à campanha, tratou de conectar o modelo
cubano ao projeto pretendido pelos setores-alvos da propaganda anticomunista.
Dentre as características de tal modelo inspirado por Cuba, o editoral levantava a
ampliação de arbitrariedades, a falta de liberdades sociais e até a montagem de
campos de concentração similares aos experimentados pelo exército nazista.
Tal como constata Mariani, as formões discursivas são sempre marcadas
por um teia memorial de representações que são ativadas por determinadas
expressões estabilizadas. Neste caso, a designação “campos de concentração”
alude a referentes sedimentados, e vinculados aos horrores das prisões de judeus
realizadas pelos nazistas. Ao ativar memórias como as do tratamento nazista dado
aos seus prisioneiros (ainda que o mencionadas diretamente), a representação
sobre Cuba e os países comunistas era utilizada no sentido de demonstrar um
modelo de violência a ser implementado no Brasil, já que o regime pretendido para
o Brasil por agentes” do comunismo seria uma “cópia do regime de Kruschev e
Fidel Castro”, sendo este último o centro do editorial.
O texto é, assim, bem característico do clima tenso propiciado pelas
acusações e previsões dos grupos anticomunistas e, as contrapor o modelo
cubano à democracia, salienta que agentes brasileiros interessados em “impor
ao Brasil” tal modelo antidemocrático. Um risco que exigia uma ação bloqueadora,
concluía implicitamente o texto
186
.
186
No mês anterior, o A Tarde, havia publicado um editorial que seguia a mesma linha do analisado
acima. Ver A ESCOLA da subversão. Editorial. A Tarde, Salvador, 28 de fev. 1964, p. 4.
93
4.3. CUBA COMO AMEAÇA COMBATIDA: O JORNAL A TARDE E O GOLPE
CIVIL-MILITAR DE 1964
O golpe civil-militar de 1964: antecedentes e desfecho
O comunismo. Eis a chave da questão. Que era, porém o
comunismo? Havia soviets no Rio de Janeiro ou em São Paulo?
Não. Goulart se propunha a abolir a propriedade privada dos meios
de produção? Não. O comunismo era o CGT, esse esforço de
organização e unificação do movimento sindical, que as classes
dominantes, pretendendo comprimir os salários, queriam interceptar.
Era a sindicalização rural. Era a reforma agrária. Era a lei que
limitava as remessas de lucros. Era tudo o que contrariava os
interesses do imperialismo norte-americano, dos latifundiários e do
empresariado. O comunismo era, enfim, a própria democracia que,
com a presença de Goulart na Presidência da República,
possibilitava a emergência política dos trabalhadores.
187
Jo Goulart assumiu a presidência da República sob um sistema
parlamentarista, depois de uma grande turbulência ocasionada pela renúncia
inesperada de Jânio Quadros em agosto de 1961. A controversa ação do
“presidente-relâmpago” levou um setor da oposição ligado aos ministros militares
Sylvio Heck, Odilyo Denis e Gabriel Grum Moss, mais Carlos Lacerda, alegando
descontentamento com as aproximações do Brasil com países socialistas e
declarando receios de que tal processo se intensificasse com a assunção legal do
poder por João Goulart, a iniciar uma campanha pelo impedimento à posse do vice-
presidente.
Um documento, assinado pelos três ministros militares, formalizava o pedido
de impedimento, declarando a absoluta inconveniência do retorno de Goulart ao
ps e alegava que o mesmo não poderia assumir o cargo, dadas as “suas
tendências ideológicas incentivando e mesmo promovendo agitações sucessivas
nos meios sindicais”. Além disso, para os signatários do documento, Goulart teria
demonstrado em viagem à URSS e à China, onde ainda se encontrava, “sua
admiração aos regimes desses países exaltando o êxito das comunas
187
MONIZ BANDEIRA, Luiz A. op. cit., 1983.MONIZ BANDEIRA, Luiz A. O governo João Goulart: as
lutas sociais no Brasil (1961-1964). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 178.
94
populares”
188
. No entanto, depois da recusa ao impedimento pelo Congresso,
Goulart pôde voltar ao Brasil e assumir, de forma limitada, o cargo de presidente
sob um sistema parlamentarista, fórmula tida pelos parlamentares como ideal para
superar o impasse.
Para Moniz Bandeira, as articulações conspirativas que culminariam com o
golpe de 1964 e com a derrubada de Goulart tiveram início em meio a este contexto
da tentativa de impedimento, em 1961. No entanto, é tamm importante
considerar a posição de Rodrigo Motta, ao avaliar que a conspiração ganhou
corpo definitivo no início de 1964, quando o aguçamento das lutas sociais no
campo, na cidade e no seio das Forças Armadas atingiu proporções que
preocuparam as classes dominantes, e tornaram irreversível a decisão pela
execução do putsch
189
.
Jo Goulart foi afastado forçadamente da presidência na madrugada de
de abril de 1964, quando se movimentavam tropas na direção do Rio de Janeiro
e de Brasília com o fim de destituí-lo
190
. Recebera de alguns a proposta de,
mediante a substituição de todo o ministério e da publicação de um manifesto
repudiando o comunismo e outras iniciativas parecidas, negociar uma permanência
no poder com os golpistas. Negou-se, argumentando que tais atitudes
demonstrariam medo, “e um chefe que revela medo não pode comandar coisa
nenhuma”
191
. Partiu, assim, para o Rio Grande do Sul, onde, depois de concluir
sobre a impossibilidade total de resistência, rumou para o exílio no Uruguai.
Goulart mantinha o governo até ali pressionado por uma crise econômica
aguda e pelas ações de oposição intensa e sistemática articulada por grupos que
abrigavam setores do empresariado, militares (cada vez mais articulados a partir da
Escola Superior de Guerra [ESG]
192
), políticos de oposição (vinculados,
188
O documento se encontra disponível em ANDRADE, Auro Moura. Um congresso contra o arbítrio:
diários e memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
189
MOTTA, Rodrigo. op. cit., 2002.
190
MONIZ BANDEIRA, Luiz A. op. cit.., 1983.
191
Depoimento de Juscelino Kubitschek a Hélio Silva. O Globo, 24 de ago. 1976. apud MONIZ
BANDEIRA, Luiz A. op. cit., 1983. p. 179.
192
A Escola Superior de Guerra foi criada a partir da execução de um convênio assinado entre Brasil
e Estados Unidos, em 1948, que, baseado no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca
(TIAR), previa assessoria militar dos Estados Unidos ao Brasil. O princípio norteador do TIAR, do
qual a ESG foi produto, era a ampliação do sistema militar interamericano subordinado à visão
estratégica global dos EUA e tendo como fornecedor de armas e métodos este país. Ver MARTINS
95
principalmente à UDN e ao PSD), setores das classes médias arregimentados pelo
discurso anticomunista, e a grande imprensa liberal. Sofria também a pressão dos
grupos de esquerda, forças progressistas e sindicatos diversos, os quais
reclamavam a aceleração da execução das reformas de base. Isolado,
gradativamente via a campanha de desestabilização promovida pela direita ganhar
os contornos de conspiração armada, com participação ativa da CIA e da
embaixada dos Estados Unidos no Brasil
193
. Negava-se, no entanto, a reprimir com
atitudes de força a conspirata.
O discurso essencial dos que queriam a derrubada de Goulart era o
anticomunista, a “fagulha principal a detonar o golpe militar de 31 de março”, tal
como considerou Rodrigo Pato Motta
194
. As tendências reformistas do
presidente e a política trabalhista eram apontadas pelas classes conservadoras
como evidências do desejo de construção de uma república comuno-sindicalista,
cuja referência mais próxima era a cubana. Os jornais integravam o coro e as
notícias de que o governo estava infestado de agentes do comunismo internacional
permeavam os textos noticiosos e os editoriais. O momento ímpar que vivia as
organizões de trabalhadores do campo e da cidade, unificado em torno do CGT
(Comando Geral dos Trabalhadores), era tratado pelos conspiradores como o
sintoma mais evidente da ameaça comunista.
Além disso, as ações do governo de restrição ao capital internacional
tamm gerou a oposão dos setores a ele associados e/ou por ele financiados
195
.
As contradições entre o governo brasileiro e a Casa Branca também vinham
sendo evidenciadas com as pressões do governo estadunidense, as quais se
situavam tanto no vel econômico, ao exigir o saneamento da economia brasileira
com a contenção dos salários dos trabalhadores e outras medidas similares
propostas pelo FMI, quanto no político, nas declarações deste governo com relação
FILHO, João Roberto. artigo citado, 1999. p. 69-71.
193
Ver, neste sentido, FICO, Carlos. O grande irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo
o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008; além de MONIZ BANDEIRA, Luiz A. op. cit., 1983.
194
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2002.
195
Ver ALVES, Maria H. Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1988. p. 21-22.
96
aos riscos derivados da penetração comunista no governo Goulart
196
.
Para reverberar os postulados estratégicos anticomunistas voltados para a
oposição ao governo Goulart, foram criados, no início da década de 60, o IPES
(Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática), os quais contavam com fundos vastos e com o apoio de políticos da
UDN e PSD e de outras organizações também voltadas para a desestabilização do
governo. Uma das frentes de atuação do complexo IPES/IBAD foi a imprensa,
utilizada largamente com o intuito maior de angariar as classes médias urbanas
para a causa dos conspiradores, apoiando-se na argumentação anticomunista, a
fim de dar-lhe alguma legitimidade popular
197
. À medida que se intensificavam as
manifestações de trabalhadores e ao passo em que se tornavam agudas as
contradições de classes no Brasil, na cidade ou no campo, as “denúncias”
passavam mais e mais a serem veiculadas na grande imprensa de todo o país,
grande parte dela, o só adesista ao golpe, como também preparadora dele.
* * *
As formulações anticomunistas típicas do período encontraram amparo e
conexão discursiva com a linha editorial empreendida até ali pelo jornal A Tarde.
Em verdade, os declarados receios que moviam os grupos de oposição estavam de
conformidade com os valores reclamados historicamente pelo jornal. Proponho-me
aqui a fazer uma breve análise do comportamento do jornal às vésperas do golpe
civil-militar e de sua recepção à propaganda anticomunista que justificaria a ão
golpista, no intuito de relacionar as tendências expostas em seus editoriais com as
representações que Cuba passará a assumir em tal contexto.
O editorial do A Tarde de 19 de março de 1964, por exemplo, Por quem os
sinos dobram”, especialmente veiculado na primeira página
198
, demarcou as
posições do jornal frente ao contexto de agitações populares por todo o país, além
196
MONIZ BANDEIRA, op. cit., 1983.
197
Para avaliações acerca da importância do IPES e do IBAD no contexto de preparação do golpe,
ver DREIFUSS, René Armand. op. cit., 1987; e MONIZ BANDEIRA, op. cit., 1983. Para avaliações
acerca da propaganda anticomunista na imprensa brasileira às vésperas do golpe, ver MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2002.
198
No período, os editoriais do A Tarde eram veiculados, geralmente, na página 4.
97
de evidenciar suas noções sobre controle do poder público e sua opinião acerca da
declaração de João Goulart, que alegou que as manifestações de rua seriam
legítimas, já que os parlamentares são representantes do povo, cabendo ao mesmo
a possibilidade da manifestação.
O editorial discordou, repudiando as manifestações populares nas ruas
contra o Congresso, em comícios classificados pelo jornal como “encomendados”.
Além disso, alegou que caberia unicamente aos congressistas, enquanto
representantes eleitos dizerem “o que convém e o que não convém ao país. Do
mesmo modo que os comandantes, e não os comandados, sabem como travar
uma batalha”
199
. Defendeu, além disso, o voto secreto como única ou mais eficaz
maneira de se avaliar como pensa a maioria. Também ressaltou: “Se alguns não
exprimem bem os ideais dos seus eleitores, não outro remédio senão esperar o
próximo pleito, para que os representados escolham melhor os seus
representantes. Nada mais”
200
.
O tipo de democracia aludido pelo A Tarde era então o representativo, sem a
possibilidade de manifestação popular, ainda que o povo demonstrasse
insatisfação, o que fora metaforizado na relação de comandantes e subordinados
numa caserna, onde os comandantes sabem o que convém (para se travar uma
batalha), e aos comandados cabe a obediência. Tratava-se de uma investida
discursiva que refletia a tentativa de contenção por setores conservadores de um
modelo de democracia que ameaçava se ampliar a partir do aguçamento da luta de
classes e do aumento do campo de atuação política das classes trabalhadoras.
Além de avaliar as manifestações populares, o editorial também se filiou de
maneira evidente às acusações recorrentes em vários setores da imprensa acerca
das tendências comunistas do governo Goulart, alegando: “Não é preciso ser
profeta ou adivinho para ver bem claro que o caminho escolhido pelo sr. João
Goulart ameaça de abrir as portas do país ao comunismo internacional”,
argumentando que a referida declaração do presidente acerca da legitimidade
das manifestações populares, tratava-se de mais uma ão de “incitamento de
199
POR quem os sinos dobram. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de mar. 1964, p. 1.
200
Ibid.
98
algumas parcelas da população contra o Congresso”, por ele promovida
201
.
No dia 4 abril, quando se configurava clara a deposição de Goulart, o
editorial do vespertino animou-se com a situação do País que, segundo o texto,
“pela voz de comando do patriotismo, decidiu fazer cessar o parasitismo que estava
sangrando a veia da saúde”. País que, para o editorialista, vivia “sobressaltado e
repleto de incertezas face aos ramos suicidas a que o conduzia o seu dirigente
máximo”. E, esforçando-se em livrar-se da ironia do golpe de estado ter sido
consumado no dia em que se consagra como o “dia da mentira” pelos brasileiros, o
editorialista tentou escapar à coincidência, afirmando: “Quis a ironia fazer coincidir,
marco indelével que permanecerá na lembrança como o término de um pesadelo, o
fim do período de engôdo com o dia consagrado ao engôdo”. E, ao final, ainda
prosseguiu com o tema: “Agora, todos respiram aliviados e voltam a sorrir desse
primeiro de abril, já que o dia da mentira passou a ser o dia da verdade”
202
.
* * *
Além dos receios declarados pelos setores conservadoras frente ao
fortalecimento das organizações de trabalhadores às vésperas da solução golpista,
tamm expresso no jornal A Tarde através do editorial “Por quem os sinos
dobram”; a oficializão do caráter socialista da Revolução Cubana acentuaria os
argumentos contra a permanência de Goulart na presidência, pois tomava-a como
um sintoma grave da presença do comunismo na América. Para fazer frente a tal
“perigo”, sedimentava-se o argumento da necessidade de um governo isento de
qualquer influência “esquerdista”.
A América Latina passava a ter então uma república que se organizava a
partir do modelo socialista e que mantinha relações importantes, em diversos
âmbitos, com A União Soviética, ligando-se a esta, em primeira e mais perigosa”
insncia, por seu modo de gestão política e social. O perigo comunista, localizável
201
POR quem os sinos dobram. Editorial. A Tarde, Salvador, 19 de mar. 1960, p. 1.
202
GLORIOSO de abril. Editorial. A Tarde, Salvador, 4 de abr. 1964, p. 1. É justo considerar, no
entanto, que, no dia 31 de março, quando já se movimentavam os blindados rumo ao Rio de Janeiro
com vistas à destituição do presidente, o jornal publicou um editorial que interrompia a constante de
investidas contra o governo, ressaltando a necessidade de soluções pacíficas à crise política. O
MOMENTO nacional. Editorial. A Tarde, Salvador, 31 de mar. 1964, p. 5.
99
outrora num terririo distante, euro-asiático, mas ainda assim perigoso; agora
passava circundar o espaço territorial do dito “mundo livre”. Por isso, o combate ao
modelo socialista também recorreu com afinco aos argumentos contra elementos
extraídos da trajetória em andamento da Revolução Cubana.
Logo após a derrubada de Goulart e do êxito do movimento que se articulou
em torno das representações anticomunistas, as relações entre o regime cubano e
o modelo que estaria sendo pretendido pelos grupos então vencidos, ainda figurava
no conteúdo do A Tarde. A seis de abril, por exemplo, a charge que reproduzo a
seguir, foi publicada, demonstrando tal tendência:
O encontro dos dois rebeldes cubanos com papéis nas mãos e sobre a
mesa, sugerindo a elaboração de um plano, parece melancólico frente ao que um
deles afirma: que os seus amigos do Brasil “entraram pelo cano”. A gravura objetiva
legitimar, logo após a deflagração do golpe civil-militar, o argumento central que o
motivou: a denúncia da presença de indivíduos a serviço ou relacionados a Cuba
(“nuestros amigos”) e/ou ao comunismo, organizando a implantação de uma
república nos moldes da cubana, na iminência de deflagrarem um golpe que
Ilustração 5
-
A charge “No Caribe” ilustra
de maneira significativa a aproximação
estabelecida entre o modelo cubano e
aquele supostamente objetivado por João
Goulart. A legenda diz:
“–
Camarada, nuestros amigos del
Brasil... entraram pelo cano...”. (A Tarde
,
Salvador, 6 de abr. 1964, p. 5).
100
estaria sendo planejado, ou de iniciar um processo revolucionário no Brasil.
Sendo assim, entendo que o contexto do golpe e suas repercussões
imediatas fornecem subsídios para que confirmemos a posição do jornal de recusa
ao comunismo e às ideias de esquerda que a ele poderiam ser relacionadas. O
anticomunismo do A Tarde fora definidor de uma radicalizão do discurso anti-
Cuba e do esforço deste veiculo de relacionar a realidade cubana com a
instabilidade política do governo João Goulart, sugerindo a existência de agentes
vermelhos interessados na implantação de um modelo governamental de esquerda
no país.
Nesse período analisado no presente capítulo, considerado por Motta como o
momento do segundo grande surto-anticomunista no Brasil
203
, o discurso sobre
Cuba marcou-se, no jornal A Tarde, pela crítica radicalizada e pela associação
direta daquela revolução a certos sentidos historicamente vinculados ao
comunismo pela propaganda contrária a esse ideário. Desta forma, Cuba vinculava-
se também, e de maneira não mais especulativa, a um “outro”, indesejável e
corruptor dos valores éticos e morais de uma sociedade ocidental reclamada pela
tradição conservadora.
203
O primeiro estaria localizado nos momentos que antecederam a implantação do Estado Novo,
por Vargas, em 1937. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2002).
101
5
A TARDE E JORNAL DA BAHIA CONFRONTANDO
REPRESENTAÇÕES SOBRE A REVOLUÇÃO CUBANA
Temos aqui visto que o fato do A Tarde ter reproduzido unilateralmente os
textos fornecidos pela agência de nocias Associated Press no tratamento da
Revolução Cubana no período analisado significou a ressonância de determinados
enquadramentos feitos por aquela agência, não acidentalmente oportunos frente
aos interesses do Departamento de Estado norte-americano. Desse modo, temos
tentado demonstrar que a reprodução não-inocente do quadro da Revolução
Cubana - que, passado o impacto celebrativo do triunfo rebelde, foi gradualmente
se tornando depreciativo esteve condicionado por uma conjuntura específica e
tensa, vinculada a um momento ápice no contexto da chamada “guerra fria” e
definido por uma tomada de posição deste jornal em tal conjuntura que pode ser
entendido como declaradamente pró-estadunidense.
No entanto, é importante avaliar que, no tocante aos demais jornais do
período, tal quadro não se configurou como uma regra geral invariável ou inevitável.
Apesar de, como já destacamos, as primeiras informações sobre Cuba na imprensa
brasileira terem se aproximado de maneira notória por conta das indefinições em
relação à realidade política da ilha; gradativamente, num processo que veio
transcorrendo desde o mês de janeiro de 1959, as abordagens e tendências
opinativas sobre Cuba foram se tornando diversificadas e, em vários casos,
contraditórias. Essas variações foram definidas tanto por conta da variedade de
agências de notícias utilizadas para as informações quanto pelas tendências
editoriais e campos-limites de atuação ideológica de cada jornal.
No universo empírico que estamos concentrados, tais distinções podem ser
percebidas quando avaliamos comparativamente os textos noticiosos, notas,
colunas e editoriais sobre Cuba produzidos e/ou reproduzidos por dois importantes
jornais da capital baiana do período: o A Tarde, locus central de avaliação na
presente pesquisa, e o Jornal da Bahia (JB), o qual, antes de expostos os
102
argumentos comparativos, merece ser sumariamente apresentado
204
.
5.1. O JORNAL DA BAHIA NUM “TEMPO EM MOVIMENTO”: ORIGEM E
ASPECTOS EDITORIAIS
A primeira edição do Jornal da Bahia saiu a 21 de setembro de 1958
205
.
Tinha como proprietário (na condição de principal acionista), diretor-presidente e
idealizador, João Falo, cuja principal atividade na área jornastica, até eno,
havia sido o cargo de direção no jornal O Momento, que, de 1945 a 1957 circulou
em Salvador vinculado ao Partido Comunista do Brasil. A experiência de O
Momento esteve vinculada a uma perspectiva de contato direto da imprensa com
as classes trabalhadoras e inseridas no projeto de “Imprensa Popular” levada a
cabo pelo PCB no período
206
.
Além do fim de O Momento em 1957, João Falcão tamm havia deixado o
PCB naquele ano. Projetou, então, segundo conta, a criação de um jornal que
estivesse para além de filiações ideológicas a priori demarcadas
207
. E, as ter
contratado um primeiro grupo de jornalistas, muitos dos quais companheiros seus
204
Circulavam em Salvador, no período analisado, os seguintes jornais diários: A Tarde, Jornal da
Bahia, Diário de Notícias e o Estado da Bahia. Os dois últimos, vinculados à cadeia de veículos
“Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, adotaram uma linha editorial em relação a Cuba que
não diferiu, de maneira geral, em relação àquela evidenciada pelo A Tarde. Além disso, utilizaram
também uma agência estadunidense para a cobertura sobre Cuba, a United Press International
(UPI).
205
O nome “Jornal da Bahia” já havia sido o título de um outro jornal baiano que circulou na segunda
metade do culo XIX. Detinha o registro do título, no momento da fundação do novoJornal da
Bahia, o então deputado Luis Viana Flho. Ver FALCÃO, João. Não deixe esta chama se apagar:
história do Jornal da Bahia. Rio de Janeiro: Revan, 2006; e TAVARES, Luís Guilherme Pontes
Tavares (org.). Apontamentos para a história da imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras
da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005.
206
Para uma alise das atividades do jornal O Momento, ver SERRA, Sônia. O Momento: história
de um jornal militante. Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – UFBA, Salvador, 1987.
207
Falcão relata em seu livro um episódio bastante ilustrativo deste declarado afastamento seu em
relação a ideologias fixas e, mais especificamente, ao comunismo, após o fechamento de O
Momento. Segundo ele, numa ocasião, ao ser indagado pelo Cardeal da Silva sobre supostas
tendências comunistas do veículo que inauguraria, teria respondido: “Fique tranqüilo, Cardeal. O
Jornal da Bahia não tem nenhuma ligação ou afinidade com o Partido Comunista. Tanto eu como os
outros diretores que foram comunistas, nos afastamos por convicção. Nosso propósito é fazer um
jornal independente, essencialmente informativo, fora e acima de ideologias, religiões e grupos
econômicos. Nossa bandeira é a informação livre” (FALCÃO, João. op. cit., 2006 [p. 31-32]).
103
da antiga experiência de O Momento e do PCB, lançou, em 1958, o Jornal da
Bahia
208
.
Do ponto de vista técnico, apesar da baixa qualidade de impressão dos
primeiros meros, algumas inovações foram trazidas pelo novo jornal. A
introdução, na imprensa baiana, do lead - um resumo do conteúdo da matéria no
primeiro parágrafo do texto - por exemplo, fora uma delas. Além disso, a
diagramação prévia, que evitava a publicação de textos em mais de uma página e a
utilização de suplementos culturais e literários também foram contribuições do
veículo à produção jornalística baiana do período
209
. Desta forma, o Jornal da Bahia
é apontado por alguns como um veículo renovador no cenário da imprensa baiana
da época. O depoimento do jornalista Jo Carlos Teixeira Gomes, por exemplo,
que foi editor-chefe do JB, avalia que
A Tarde era um jornal como hoje, de prestígio, mas conservador.
Tinha uma linguagem cartorial, com poucas fotografias e nariz-de-
cera. Era um jornal velho. O Diário de Notícias adotava uma linha
mais popular, mas não tinha expressão. E o terceiro, o Estado da
Bahia, era voltado basicamente para o esporte. Então, o jornal (da
Bahia) veio preencher uma lacuna.
210
O contexto em que o Jornal da Bahia é criado marca-se por uma notória
efervescência cultural, artística e intelectual na cidade de Salvador, com
importantes produções em diversas áreas, ainda que, em grande parte, vinculadas
aos círculos das classes média e rica intelectualizadas soteropolitanas. É nessa
época, por exemplo, que a crítica cinematográfica se expande com Walter da
Silveira, Gláuber Rocha, Paulo Correia, Jamil Bagdad e outros. O próprio Gláuber
Rocha, além de Luís Paulino dos Santos e Robert Pires “transformavam-se nos
primeiros baianos a fazer cinema”
211
. Artistas e intelectuais internacionais
residentes em Salvador, tais como Pierre Verger, Carybé e Lina Bo Bardi,
“confeccionam suas obras e reflexões e fazem os baianos atentar para uma riqueza
208
Os primeiros jornalistas contratados foram João Batista de Lima e Silva, Alberto Vita, Almir
Mattos, Flávio Costa, Ariovaldo Mattos, José Gorender, Inácio Alencar, Luis Henrique Dias Tavares,
Arquimedes Gonzaga, Nelson Araújo e Jair Gramacho (FALCÃO, João. op. cit., 2006, p. 29).
209
VIEIRA, Adenil Falcão. “Prefácio. In: FALCÃO, João. op. cit., 2006. p. 19-26.
210
Obtido de LUCENA, Suênio Campos de. Imprecisão e técnica na linguagem jornalística: uma
análise do Jornal da Bahia (1958-1960). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Comunicação
UFBA, Salvador, 1996. p. 70.
211
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. op. cit., 1999. p. 203.
104
que, muitas vezes, o parecia ter a dignidade de ser reconhecida como cultura”,
tal como avaliou Antonio Albino Rubim
212
. E, de maneira destacada, a Universidade
da Bahia, com as ações do reitor Edgard Santos, passa a investir maciçamente nas
áreas de produção artística, interferindo diretamente no cotidiano de alguns setores
da sociedade soteropolitana
213
. Diante de tais transformações, a cidade vai
ingressando definitivamente na modernidade cosmopolita
214
.
Neste sentido, alguns autores evidenciam a conexão do Jornal da Bahia,
tanto nos aspectos técnicos quanto nos ideológicos (dada a composição
progressista de sua equipe), com tal conjuntura de renovação modernizadora
apresentada na capital baiana. Maria Carvalho avalia, neste aspecto, que a “busca
do moderno era, naquele momento, a tônica da imprensa”
215
e que o Jornal da
Bahia figurava como melhor representante de tal contexto de transformações,
desse “tempo em movimento”, tal como o nomeou a autora
216
.
No aspecto editorial, a leitura dos editoriais e reportagens produzidos pelo
jornal nos anos e sobre os temas que a presente pesquisa se concentra, além das
informações acerca da composição da redação do jornal, integrada por ex-
militantes, integrantes e simpatizantes do PCB além de jovens intelectuais da
cidade, permitem que sejam balizados os marcos de atuação ideológica deste
jornal naquela conjuntura. Tais observações apontam, efetivamente, para a
presença de um caráter progressista nos seus textos. Além disso, apesar da
perspectiva apontada por Falcão de afastamento de posições ideológicas fixas, é
preciso que se frise que dentre as motivações apontadas pelo próprio Falcão para o
lançamento do Jornal da Bahia, depois do seu afastamento do PCB, esteve a
“convicção de que um jornal era a melhor forma de continuar aquela luta pelo
212
RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Cultura, política e mídia na Bahia contemporânea.
Comunicação & Política, Rio de Janeiro, n. s., v. X., n. 1, p. 93-155.
213
A importância de Edgard Santos no sentido da viabilização de atividades desta natureza não o
imunizou (nem o imuniza) das críticas aos seus traços autoritários. Ver, neste sentido, CARVALHO,
Maria do Socorro Silva. op. cit., 1999. p. 125.
214
Para discussões acerca de tal contexto, ver CARVALHO, Maria do Socorro Silva. op. cit., 1999;
RISÉRIO, Antônio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituo Lina Bo e P. M. Bardi, 1995; e
LUDWIG, Selma. Mudanças na vida cultural de Salvador (1950-1970). Dissertação de Mestrado em
Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFBA, Salvador, 1982.
215
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. op. cit., 1999. p. 116.
216
A autora ainda menciona os jornais baianos da cadeia “Diários Associados” como veículos
interessados em modernizar no aspecto técnico suas impressões naquele contexto, reformando
oficinas e melhorando a qualidade dos exemplares. Id. Ibid., p. 116.
105
socialismo no Brasil”
217
.
Neste sentido, ainda que, como empresa jornalística que objetiva lucros e
fidelização de leitores, o Jornal da Bahia reproduzisse os esquemas liberais de
produção noticiosa vinculados à teoria da Responsabilidade Social da Imprensa e
outros princípios teóricos considerados pela grande imprensa do período; pôde, a
partir de condições específicas de composição da sua equipe de jornalistas
colaboradores, dotar-se de uma tendência editorial que escapava dos esquemas
formulados sobre Cuba pelos setores da grande imprensa pró-Estados Unidos.
Muitos destes esquemas, tal como foi explicitado, foram reproduzidos
sistematicamente pelo diário baiano A Tarde no período.
Assim, evidenciando a possibilidade de se estabelecer uma cobertura
jornalística que escapasse da bipolaridade estimulada pelas disputas geopolíticas
de EUA e URSS no contexto da “guerra fria”, o JB, sem ter de assumir uma posição
pró-sovtica, produziu ou publicou análises que resistiam ao esforço de
hegemonizão das tendências opinativas das agências estadunidenses, cujo
objetivo era o da sedimentação de um quadro da revolução cubana no mundo
ocidental que silenciava em relação a rios aspectos vinculados às contradições
ente Cuba e EUA e que afastava o país caribenho de um certo ideal de modelo
político que deveria ser compartilhado pelas nações americanas. Assim, as
representações cristalizadas pelos textos do JB, que refletem o modo como os seus
executores encaravam as questões do mundo, foram marcadas, principalmente,
por posições que questionavam a hegemonia estadunidense no hemisfério e, no
caso das avaliações sobre Cuba, ficou claro o posicionamento contrário do jornal
em relação às investidas estadunidenses contra a ilha e de recusa a várias
formulações negativas que este país repassava através de sua imprensa sobre o
regime cubano
218
. Isto fica evidente tanto nos editoriais (tidos como opinião oficial
217
FALCÃO, João. “O Jornal da Bahia desde sua fundação seguiu uma linha editorial independente,
sem donos e sem partidos”. Entrevista concedida a Daniel Chalegre em 17 de junho de 2003. In:
MATTOS, Sérgio (org.). Memória da imprensa contemporânea da Bahia. Salvador: Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, 2008. p. 140.
218
Em termos de aprofundamento das discussões e dados apresentados, merecem destaque os
textos produzidos pelo jornalista Pimentel Gomes no período. (GOMES, Pimentel. “Cuba”. Jornal da
Bahia, Salvador, 9 de mar. 1960, 1º caderno, p. 2; Id., “Em Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 17 e 18
de mar. 1960, caderno, p. 2; Id., “A Revolução Cubana”. Jornal da Bahia, Salvador, 15 de abr.
1960, caderno, p. 2; e Id., “Cuba Anatomia de uma Revolução”. Jornal da Bahia, 15 de abr.
106
do jornal) quanto em diversos textos assinados publicados, ainda que tais
tendências não representassem completa unanimidade entre os colaboradores
219
.
Além disso, outra distinção importante entre os conteúdos jornalísticos
veiculados pelo A Tarde e pelo Jornal da Bahia refere-se às agências utilizadas
para a reprodução do noticiário sobre Cuba. No caso do A Tarde, vimos que, para
tanto foi utilizada apenas a AP. A multilateralidade também não foi algo presente no
Jornal da Bahia, que utilizou para o mesmo fim, no período analisado, unicamente a
Agence France-Presse (AFP), no jornal apenas mencionada como FP
220
.
Tal distinção se configurou como elemento importante que, ao se observar
os textos impressos no JB creditados à FP, vê-se que as informões oferecidas ao
leitor se distinguem de maneira considerável, em inúmeras e distintas situações,
daquelas que foram veiculadas e creditadas à AP no A Tarde. Tais contradições são
evidenciadas tanto no tocante à abordagem sobre um mesmo tema, quanto no que
se refere à quantidade de informações complementares oferecidas. Verifiquemos
então os dados que corroboram tais observações.
5.2. A COBERTURA DOS TRIBUNAIS REVOLUCIONÁRIOS POR A TARDE E JB
Para a avaliação do conteúdo dos textos jornalísticos sobre Cuba nos dois
veículos referidos, comparemos inicialmente o tratamento dado pelos mesmos ao
tema dos tribunais revolucionários cubanos implantados nos primeiros dias de 1959
e que, ao longo deste mesmo ano, condenaram à pena de morte indivíduos
1961, 1º caderno p. 2).
219
Por exemplo, nos textos de Tristão de Athayde, pseudônimo do jornalista carioca Alceu de
Amoroso Lima, que enviava textos esporadicamente ao JB, a simpatia ao regime cubano não era
uma marca. Num dos seus textos, afirmou: “Passado o momento inicial da marcha da vitoria até
Havana, ressurgiram de tal modo as violências, retornaram-se com tanta rapidez as facções, que o
novo regime recomeçou sem demora, ou antes prosseguiu, apenas com novos elementos, (…), o
mesmo processo ditatorial que recebera de suas origens” (ATHAYDE, Tristão de. “Fidel Castro”.
Jornal da Bahia, Salvador, 5 de abr. 1960, 1º caderno, p. 2).
220
A Agence France Presse (AFP ou FP) originou-se da antiga agência francesa Havas, uma das
primeiras do mundo. Na prática jornalística do período, poucos jornais logravam utilizar-se de um
número maior de agências para o tratamento dos temas internacionais, uma vez que o serviço
envolvia o pagamento de taxas. Nesse ínterim, O Estado de S. Paulo é uma destas exceções. O
jornal utilizava, no período, para o noticiário sobre Cuba, além de informações da AP, AFP e UPI, da
alemã Deutsche Presse Agentur (DPA) e da italina Agenzia Nazionale Stampa Associata (ANSA).
107
acusados de crimes cometidos durante o governo Batista. Tema controverso que,
tal como já indicamos, se configurou como ponto fundamental das primeiras críticas
internacionais (em grande parte oriundas de círculos estadunidenses) aos rumos
tomados pelo novo governo cubano.
Vimos que, no caso do A Tarde, tais execuções foram tratadas editorialmente
como “euforia sanguináriae, ainda que envolta num diálogo de conciliação com os
êxitos positivos do movimento 26 de Julho por ter derrubado uma ditadura corrupta
e cruel; foram criticadas, desaconselhadas e avaliadas como práticas vingativas
motivadas pela “embriaguez da vitória a custo conseguida”
221
.
No caso do JB, no entanto, ainda que o encontremos um editorial
especificamente voltado para tal assunto (tal como foi o caso do A Tarde), podemos
extrair do conjunto de textos publicados tanto produzidos por agências
internacionais quanto por jornalistas colaboradores do jornal uma tendência
opinativa diversa daquela que foi formulada pelo vespertino de Simões Filho.
Assim, de uma maneira geral, A Tarde e Jornal da Bahia apresentaram ao leitor
baiano, ainda nos primeiros dias de 1959, pontos de vista distintos em relação às
execuções cubanas, isso considerando tanto a produção quanto a “re-produção” de
textos noticiosos e “opinativos
222
.
No dia 15 de janeiro, por exemplo, um texto publicado no Jornal da Bahia e
assinado pelo jornalista Fvio Costa, um dos que integravam o JB desde sua
primeira equipe, versou especificamente sobre as execuções em Cuba. Nele, o
autor reproduziu a argumentão atribuída a Fidel Castro acerca da necessidade
das condenações diante dos crimes cometidos pelos indivíduos julgados. E
concordou, pelo exposto, com a mesma. Além disso, mencionou as entrevistas
coletivas dadas por Castro à imprensa internacional, nas quais o tema das
execuções foi constantemente tratado. Vejamos os três parágrafos seguintes,
retirados da coluna do jornalista:
Evidentemente, não cabe aqui o julgamento do acerto ou não das
221
Neste sentido, ver, especialmente, VITÓRIA ensaguentada. Editorial. A Tarde, Salvador, 17 de
jan. 1959, p. 4.
222
Sabemos que tal distinção entre textos “informativos” e “opinativosnão se sustenta num nível
prático, mas optei por uma distinção entre estes dois tipos de textos para distinguir as reportagens
em geral, dos textos assinados ou assumidos como posição editorial do veículo.
108
drásticas medidas tomadas pelos vencedores, mas talvez valha a
pena lembrar que não o santos os homens que estão sofrendo
nêste momento a pena capital, em Cuba. Falando à imprensa, Fidel
Castro teve oportunidade de declarar que “se alguém matou 15 ou
30 pessoas indefêsas, não tem direito de continuar vivendo”
querendo assim fazer ver que o sêu govêrno provisório está apenas
eliminando membros podres e irrecuperáveis da comunidade
cubana.
Para quem acompanha, tantos anos, as peripécias ditatoriais do
sr. Fulgêncio Batista, em Cuba, o fuzilamento de seus auxiliares
mais diretos, responsáveis êles próprios por um rosário de infâmias
e crimes hediondos, não pode suscitar nenhum sentimento de
piedade.
Levando tudo isto em conta, perguntaríamos com Fidel Castro: têm
esses homens o direito de continuar vivendo? Parece que, mesmo
para os mais sensíveis, a resposta é evidente.
223
dois aspectos importantes no texto: a concessão de um lugar de fala para
o novo governo cubano, através da reprodução aspeada dos argumentos de
Castro, os quais aparecem desacompanhados de ironias ou desqualificações
apriorísticas tal como se fez evidente em alguns textos do A Tarde do período
224
;
e a concordância com tal argumentação, muito bem ilustrada com o último
parágrafo transcrito. O jornalista, ciente do discurso moral formulado por setores da
imprensa e da opinião pública contrário às condenações capitais em Cuba, recorre
tamm a valores morais para invalidar tais críticas, alegando que, dada a
gravidade dos crimes cometidos pelos réus (“rosário de infâmias e crimes
hediondos”), neste caso, os fuzilamentos não podem suscitar nenhum sentimento
de piedade, “mesmo para os mais sensíveis”.
No dia 3 de fevereiro, a jornalista carioca Eneida Moraes também publicou
um artigo sobre o tema. Partindo de maneira evidente em defesa das condenações,
comentou, na ocasião, as reações de jornalistas e escritores cariocas criticando as
condenações capitais em Cuba e, segundo ela, “lançando manifestos, escrevendo
artigos, colhendo assinaturas para mandar mensagens a Fidel pedindo perdão,
clemência, absolvição, piedade para os fascistas cubanos”. Indagava, então, a
estas pessoas, por que não o fizeram quando Batista cometia seus crimes:
223
COSTA, Flávio. “Execuções em Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 15 de jan. 1959, 2º caderno, p.
1.
224
Tal como no editorial “Vitória ensaguentada”, já explorado no Capítulo 2.
109
O que faziam êsses apóstolos da bondade? Mandaram mensagens
a Batista, pedindo clencia? Exigiram que Batista deixasse de ser
monstro? Ficaram bem quietinhos, mas agora na hora em que o
povo exige não vingança mas justiça, revoltam-se, fazem apêlos,
mostram como são bonzinhos.
225
Tais opiniões, no entanto, marcadas pelos contra-argumentos às críticas
contra as execuções, figuraram em colunas assinadas, o que, diante das
pretensões do discurso jornastico, isenta o jornal, editorialmente, da
“responsabilidade” acerca das informações ali impressas. E, tal como vimos, em
casos específicos, uma opinião pode efetivamente aparecer num jornal de maneira
dissensual, afastando-se das tendências opinativas impressas pelo veículo numa
dada conjuntura
226
. Mas não se trata, aqui, de uma situação desse tipo. E vejamos
por quê.
No dia 23 de janeiro de 1959, por exemplo, o JB, utilizando-se de
informações enviadas pela Agence France-Presse, noticiou uma entrevista coletiva
dada por Fidel Castro na qual o líder do Movimento 26 de julho exibia fotografias de
indivíduos que foram torturados e assassinados por pessoas ligadas a Fulgêncio
Batista. O texto afirmava que as “provas estarrecedoras” causaram grande espanto
e comoção no seio da plateia formada principalmente por jornalistas dos EUA e da
América Latina. Tratou ainda de detalhar uma das fotografias, a qual “mostrava um
homem ao qual a polícia de Batista cortara os órgãos genitais, colocando-os depois
na bôca do desgraçado, ao assassiná-lo
227
.
Além de tratar-se de informões que não figuraram no jornal A Tarde,
versando sobre tal entrevista e sobre tais fotografias, o texto publicado no JB (e
produzido com telegramas da AFP) também detinha um caráter justificador dos
processos que levaram à pena de morte os indivíduos envolvidos em tais crimes.
Tais execuções vinham recebendo críticas de círculos estadunidenses pela sua
carga de impiedade ou por ferirem uma certa moral cristã e outros valores tidos
como americanos. Assim, no texto do dia 23, a descrição da foto do individuo morto
225
MORAES, Eneida de. “Viva Fidel!”. Jornal da Bahia, Salvador, 3 de fev. 1959, 2º caderno, p. 1.
226
Tal situação pôde ser percebida, por exemplo, quando avaliamos os textos de Milton Santos
sobre Cuba, veiculados pelo A Tarde em abril de 1960.
227
FIDEL Castro exibe provas estarrecedoras de crimes e torturas. Jornal da Bahia, Salvador, 23 de
jan. 1959,caderno, p. 1.
110
e com os órgãos genitais na boca e outras informões similares figuraram como
um contraponto, uma resposta do governo (e, neste caso, repassado
internacionalmente por estes telegramas) às críticas formuladas contra as
execuções daqueles que o novo regime acusava de serem responsáveis por tais
atrocidades.
Três dias antes, numa reportagem intitulada “Igreja cubana faz a defesa das
execuções”, o JB, utilizando novamente de informações da AFP, afirmou que o
bispo auxiliar de Havana, D. Alfredo Muller,declarou que a pena de morte, no caso
de Cuba, é plenamente justificável, fundamentando o seu raciocínio na admissão
dessa pena que a Igreja Católica faz, em certas eventualidades
228
. Tal informação
foi veiculada ainda no lead da matéria, o qual fora impresso em negrito. Além disso,
ao longo da reportagem, o texto comentou acerca do artigo do padre cubano
Ignacio Blain, publicado na revista Quinzenal, tamm justificando as condenações,
dadas as atrocidades cometidas pelos indivíduos punidos. Com tais informações,
ao leitor era apresentada a posição da Igreja Cubana, ou de setores dela, que
apoiavam de maneira declarada a necessidade das execuções decididas pelos
tribunais revolucionários. Informão importante, uma vez que parte das críticas
dirigidas aos rebeldes cubanos por conta das execuções reclamavam uma certa
“consciência cristã” na América que estaria sendo rompida
229
.
Vale ressaltar que, em tal aspecto relacional entre moral crise processo
revoluciorio, o A Tarde, por sua vez, publicou alguns textos da coluna “Vida
católica” que versaram sobre os tribunais cubanos instalados em 1959. No dia 21
de janeiro, por exemplo, Pereira de Souza assinou o texto Não convencem”, que
versou sobre sua reprovação e espanto diante das execuções cubanas, pondo em
questão ainda a culpabilidade dos indivíduos acusados e condenados, indagando:
“São criminosos, leio em muitos comentários. Quem prova? Não haverá ódios
228
IGREJA cubana faz a defesa das execuções. Jornal da Bahia, Salvador, 20 de jan. 1959,
caderno, p. 1.
229
Em 15 de janeiro, por exemplo, o A Tarde noticiou o protesto do parlamentar brasileiro Osvaldo
Lima Filho que, segundo o jornal, caracterizou o cenário cubano como “uma onda de fuzilamentos
sumários sem nenhuma forma de processo ou condenação judicial o que revoltou a consciência
cristã americana(RCA de seis mil pessoas ainda aguardam julgamento. A Tarde, Salvador, 15
de jan. 1959, p. 1).
111
inexplicáveis, inspirados por inconfessáveis conluios?”
230
. O texto encerra-se com o
seguinte parágrafo:
Não me convenço. Enfim, peço a Deus que tamanha fúria não entre
nossas fronteiras, que jamais se diga em terras do Brasil implantado
regime de fôrça tal que desprestigie as regras do direito, a paz
doméstica, o respeito que devemos ter uns aos outros. Se a moda
pegar, saindo duma ditadura, entra-se noutra pior. Para mim, que
venha o demo e escolha. Não me convenço. Outros meios de
sanearem aquilo existirão. A questão era de estudar e aplicar o
direito. Este de matar sumariamente pois disso se trata, não merece
aprovação nunca.
231
Quando comparamos outros dois textos, publicados nos dois jornais, em 15 e
16 de janeiro de 1959, constatamos que, apesar de concentrados nos mesmos
eventos desenrolados em Cuba e ambos alimentados por telegramas advindos de
Havana em 15 de janeiro, pode-se constatar distinções importantes no trato do
tema das execuções. Os dois textos comentam a declaração de Castro do dia
anterior e reproduzida no corpo das duas reportagens. Castro teria dito, segundo os
dois jornais: “Demos ordens para matar a cada um desses assassinos, e se temos
que combater contra a opinião mundial para realizar a nossa justiça, estamos
preparados para fazê-lo”
232
.
Antes de apresentar o centro distintivo dos textos, é necessária a
apresentação de um mapa geral dos temas e subtemas que compõem cada um
deles. A matéria do A Tarde, que foi publicada a partir das informões enviadas
pelo jornalista Larry Allen, da Associated Press, é bem mais longa que a do JB,
ocupando cinco colunas não-completas da primeira página do jornal. Compôs-se,
além do lead, de seis partes: na primeira, versou sobre o número de indivíduos
executados até aquele momento, sobre a declaração de Castro já mencionada e
sobre a continuidade das execuções; na segunda, abordou as projeções do
Departamento de Estado norte-americano com relão a Cuba. Já na terceira parte
figurou a resposta de Castro às críticas estadunidenses no tocante às
230
SOUZA, Pereira de. “Vida Católica – Não convencem”. A Tarde, Salvador, 21 de jan. 1959, p. 2.
231
Id. Ibid.
232
CÊRCA de seis mil pessoas ainda aguardam julgamento. A Tarde, Salvador, 15 de jan. 1959, p.
1; e FIDEL CASTRO: “de ordens para que fossem fuzilados todos os assassinos”. Jornal da Bahia,
Salvador, 16 de jan. 1959, 1º caderno, p. 4.
112
execuções
233
. Na quarta abordou a posição do PSP (Partido Socialista Popular)
cubano diante da revolução em triunfo. A quinta (com informões da agência
Asapress) mencionou a crítica do deputado brasileiro Osvaldo Lima Filho aos
“excessos da revolução vitoriosa em Cuba” e a sexta dedicou dois pequenos
parágrafos à manutenção da barba por Fidel Castro.
O texto do JB, bem mais curto e orientado por informações da France-
Presse, foi veiculado na quarta página do jornal. A primeira parte tamm foi
dedicada às declarações de Fidel sobre as condenações; a segunda ao apoio do
povo cubano às execuções, enquanto a terceira foi composta por um pequeno
parágrafo que avaliava a possibilidade de intervenção dos EUA em Cuba, a qual foi
levantada por um político estadunidense.
É importante notar que a diferença mais significativa esno fato de que o
Jornal da Bahia dedicou uma parte da matéria para ressaltar o apoio do povo
cubano às penas revolucionárias, afirmando que “os cubanos demonstram apoiar o
tipo de justiça pôsto em prática pelos revolucionários. Tal atitude é consequência
das mortes, torturas e outros delitos perpetrados durante o regime de Batista”
234
.
Desta maneira, o texto publicado fazia constar um dado importante para a
discussão acerca da legitimidade das condenações impostas aos acusados: a
demonstração de aprovação do povo cubano às penas. Algo que fora silenciado na
abordagem do A Tarde.
As ponderações sobre as reações do povo cubano às críticas
estadunidenses e seu apoio aos tribunais revolucionários já haviam sido veiculadas
pelo Jornal da Bahia através da mencionada reportagem do dia 20 de abril, que
noticiou que
Em povoações do interior tem havido reuniões de trabalhadores, em
apoio às execuções e de protesto contra as censuras estrangeiras.
Ontem à noite, houve reunião de trabalhadores diante do Palácio
Presidencial, com a mesma finalidade, e para quarta-feira está
233
Vale frisar que, ao veicular o argumento de Castro, o texto no A Tarde anunciou: “Referindo-se às
críticas que estão sendo feitas agora nos Estados Unidos, Castro disse com sarcasmo a um
jornalista: 'Diga aos norte-americanos que deveriam se preocupar quando o tirano estava no poder e
eles (os acisados [sic.]) o apoiavam”. RCA de seis mil pessoas ainda aguardam julgamento. A
Tarde, Salvador, 15 de jan. 1959, p. 1.
234
CÊRCA de seis mil pessoas ainda aguardam julgamento. A Tarde, Salvador, 15 de jan. 1959, p.
1.
113
sendo organizada uma grande concentração, também em frente ao
Pacio, em apoio à ação punitiva e contra os pronunciamentos do
exterior, principalmente dos Estados Unidos.
235
Desta forma, é possível entender que tanto os textos noticiosos quanto as
colunas assinadas que versaram sobre as execuções em Cuba no primeiro mês
após o triunfo rebelde e que foram publicados no Jornal da Bahia o assumiram o
teor opinativo de crítica irrestrita às condenações, tal como ficara visível nos
editoriais do A Tarde do período. Pelo contrário, as duas colunas assinadas que
versaram sobre o tema durante o mês que sucedeu a chegada dos rebeldes a
Havana, apresentaram argumentos, estes basicamente morais, que justificavam a
pena de morte para aqueles casos. Além disso, os textos publicados a partir dos
telegramas da Agence France-Presse possibilitaram aos leitores do JB o acesso a
informações importantes – as quais foram sistematicamente silenciadas pelo A
Tarde (enquanto consumidor das notícias produzidas pela AP) que permitiram a
elaboração de um quadro mais abrangente em relação ao tema e,
consequentemente, criou um campo possível de tomada de posição favorável aos
tribunais, para o leitor.
5.3. REPRESENTAÇÕES JORNALÍSTICAS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE
CUBA E ESTADOS UNIDOS
Vimos que, no caso do A Tarde, a publicação, em abril de 1960, da coluna de
Milton Santos sobre a Revolução Cubana logrou ir além de uma tendência
predominante no jornal aentão, de apresentar as informões sobre Cuba sem
um tratamento paralelo, ainda que sumário, do processo histórico que condicionara
os eventos descritos. A presença de dados, argumentos, contextualizações e
pontos de vista inéditos até então para o leitor do A Tarde com destaque para os
que avaliaram as relações históricas entre Cuba e Estados Unidos - foi mesmo uma
primeira e importante distinção observada entre os textos do geógrafo-jornalista e
235
IGREJA cubana faz a defesa das execuções. Jornal da Bahia, Salvador, 20 de jan. 1959,
caderno, p. 1.
114
aqueles publicados pelo jornal até então.
No caso do JB, é preciso que se frise que tais investidas não foram raras, nem
estiveram restritas a momentos excepcionais como aquele em que foi possível o
contato coletivo de jornalistas brasileiros com a realidade cubana. Vejamos alguns
exemplos.
No início de março de 1960, o Jornal da Bahia publicou um texto sobre a
hisria de Cuba, produzido pelo jornalista Pimentel Gomes. Gomes apresentou
dados do passado colonial cubano, das lutas pela independência política no final do
século XIX e da participação dos Estados Unidos no conflito que levou o país a
desvincular-se da Espanha. Foi além. Mencionou a emenda Platt, afirmando, sobre
esta, que
Baseados nela os Estados Unidos interviram várias vezes em Cuba.
Interviram com os seus fuzileiros e suas esquadras. Felizmente, a
emenda Platt foi revogada em 1934. Cuba deu, assim, um grande
passo para a sua completa independência. Agora luta bravamente
para completá-la e assegurá-la.
236
A evidenciação da condição de dependência que a emenda Platt impôs a
Cuba, no texto, é o primeiro dado a refletir sobre as contradições entre Cuba e
EUA. Sua revogação também não é apresentada como a independência completa.
Esta se se daria “agora”, com o processo revolucionário que ali se processava.
Gomes prossegue com referências ao controle exercido pelos Estados Unidos
sobre Cuba a o momento do triunfo rebelde. Usando os verbos no tempo
presente como recurso linguístico, primeiro descreve a realidade cubana p-
revolucioria, numa constante textual cuja culminância será a vitória do
movimento 26 de Julho:
Os Estados Unidos têm uma base em Santiago de Cuba. É uma
ocupação militar permanente. Ofende a qualquer povo de brio. E o
cubano tem brio. Dominam Cuba economicamente. Cerca de 25%
das terras cubanas, as melhores terras, estão nas mãos dos trustes
ianques. Pertencem a trustes ianques, que as exploram em
benefício próprio, todas as minas de valor. Possuem grandes hotéis,
236
GOMES, Pimentel. “Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 9 de mar. 1960, 1º caderno, p. 2. Num dos
seus textos, Pimentel Gomes fez uma análise do livro “Anatomia de uma Revolução”, de Leo
Huberman, sobre Cuba. (Id., “Cuba Anatomia de uma Revolução”. Jornal da Bahia, 15 de abr.
1961, 1º caderno p. 2).
115
estações de rádio e televisão, jornais, fábricas, bancos, em suma,
todos os bons negócios. Os cubanos sentem-se exilados em sua
própria pátria.
(…)
Contra essa conjuntura, reagiu a revolão chefiada por Fidel
Castro. Os norte-americanos julgavam tratar-se de mais uma
revolta, uma simples troca de homens. O ladravaz Fulgêncio Batista
e seus ladravazes asseclas estavam sendo substituídos por um
grupo de homens dispostos a enriquecer de qualquer forma.
Manteria a situação anterior. Participaria dos lucros. Acontece,
porém, que desta vez se trata de um grupo de idealistas. Podemos
não estar de acôrdo com suas ideias. Às vezes, penso que vão um
pouco longe demais na televisão e no rádio. Ninguém, porém, lhes
nega o idealismo e a honestidade.
237
É importante que se note que o jornalista apresenta como contradição
central, a qual levou à reação do grupo liderado por Fidel Castro, o predomínio
estadunidense sobre a nação cubana, detendo os melhores negócios e exilando os
cubanos “em sua própria pátria”. A ditadura de Fulgência Batista não aparece como
causa fundamental da revolução chefiada por Fidel Castro”. A “conjuntura”, tal
como ele chamou, de dominação estadunidense e a culminância do processo
hisrico que evidenciou, no seio do povo cubano, as contradições deste modelo
foram os elementos que definiram o levante, para Pimentel Gomes. Desta forma, o
êxito revolucionário aparece conectado a um processo histórico mais complexo do
que o da derrubada de um ditador.
Poucos dias depois, o JB publicou um editorial significativo sobre a
Revolução Cubana. Caracterizando-a, inicialmente, como “uma revolução popular”,
afirmou ainda que “quaisquer que sejam as restrições aos métodos de punição e
repressão utilizados por Fidel Castro, é fora de dúvida que seu Govêrno desfruta de
lido e maciço apoio do povo cubano”
238
. Para o jornal, as várias medidas
tomadas até então pelo governo (“a reforma agrária, a nacionalização de emprêsas
norte-americanas, o estabelecimento de relações econômicas com a União
Soviética”), as quais geraram reações no exterior, se caracterizavam como anseios
hisricos dos cubanos, “deles recebendo, por isso, aplausos e adesão”
239
. Também
avaliou as razões das hostilidades oriundas de parlamentares estadunidenses ao
237
GOMES, Pimentel. “Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 9 de mar. 1960, 1º caderno, p. 2.
238
CUBA. Editorial. Jornal da Bahia, Salvador, 16 de mar. 1960, 1º caderno, p. 2.
239
Ibid.
116
governo que se consolidava em Cuba:
Esta revolução poderia seguir seu próprio curso, sem maiores
embaraços, se não houvesse poderosos interêsses contrariados,
interêsses externos, mais do que internos. A verdade é que êsses
interesses se encontram em ação contra o Govêrno revolucionário
de Fidel Castro. Não por que desconhecer e mascarar os fatos.
Ninguém por um momento poderá acreditar que a vontade,
se não a hostilidade de certos círculos dirigentes norte-americanos
contra o novo regime cubano se fundamente no horror de
democratas contra os fusilamentos de elementos responsáveis por
uma rie de crimes contra a pessoa humana e os interêsses
públicos.
(…)
Evidentemente, outros interêsses, que não os princípios políticos e
morais ditam a hostilidade que certos círculos de influência
procuram criar, neste continente, contra o govêrno cubano. E basta
ver que interêsses estão sendo contrariados pelas medidas
recentemente tomadas naquela ilha da América Central, para logo
os identificar.
240
Nota-se, pelo trecho reproduzido, que é empreendida uma desconstrução
dos argumentos críticos estadunidenses em relação aos fuzilamentos, sendo
atribuídos outros elementos e interesses, “que não os princípios políticos e morais”,
em relação às hostilidades deste país frente a Cuba. O editorial sugere, então, que
o caminho trilhado por Cuba e as primeiras ações do novo governo
principalmente no campo econômico são, de fato, os elementos definidores de
tais campanhas de oposição oriundas dos EUA.
No mês seguinte, durante a viagem de Jânio Quadros e sua excursão a
Cuba, Pimentel Gomes voltou a publicar no jornal, desta vez abordando a presença
dos jornalistas e políticos brasileiros em Cuba e do envio das suas respectivas
informações aos veículos brasileiros. No texto, Gomes refletiu que a partir desta
situação foi possível se obter informações verdadeiras acerca do país caribenho,
referindo-se ainda uma não-nomeada agência de nocias, que até aquele momento
seria a principal responsável pelo cerco de informões mentirosas:
Começam a chegar notícias de Cuba, notícias agora verdadeiras,
enviadas por um grupo de políticos e jornalistas brasileiros.
Acompanharam o sr. Jânio Quadros até à Pérola das Antilhas.
Viram o que de fato está sucedendo. Romperam a cortina de
240
CUBA. Editorial. Jornal da Bahia, Salvador, 16 de mar. 1960, 1º caderno, p. 2.
117
mentiras criadas por uma certa agência de notícias. Aliás, esta
agência não deturpa apenas as notícias de Cuba. Deturpa as
notícias que manda do mundo inteiro. Acomoda-as aos seus
interêsses, aos interesses dos trustes que lhe pagam.
241
O anonimato conferido à agência não se apresenta como incontornável. A
principal agência de notícias estadunidense do período, fonte de informações
internacionais bastante utilizada pelos vculos brasileiros era a Associated Press,
à qual temos dedicado especial atenção. Vimos, por exemplo, que o principal jornal
baiano, o A Tarde, utilizou-se unicamente desta ancia para a reprodução do
noticiário sobre Cuba. Outras grandes empresas de comunicação brasileiras do
período, como O Estado de S. Paulo, O Globo e Folha de São Paulo, usaram a AP
como fonte de informões. Assim, ainda que no texto não figure o nome da
agência mencionada, a refencia deve estar mesmo relacionada à Associated
Press. E, ainda que não o seja, a denúncia que o jornalista formula em relação à
“cortina de mentiras construída pelas agências com sede nos Estados Unidos
sobre Cuba, e em questão, independentemente da agência a que se refere, os
interesses que se articulam na nação do Norte para a confeão dos textos.
As diferenças entre JB e A Tarde no tocante à análise das relações entre
Cuba e Estados Unidos, seja avaliando as relações históricas de dominação
desempenhada pela nação do Norte frente à ilha, quanto acerca das contradições
entre os dois países evidenciadas a partir das decisões tomadas pelo governo
revoluciorio em Cuba; apresentam-se como notoriamente distintos na abordagem
dos respectivos editoriais. Assim, no caso do JB, os artigos assinados que se
dispuseram a avaliar criticamente tais situações estiveram sintonizadas com a linha
editorial evidenciada pelo jornal. Algo que, como vimos, não pode ser estendido ao
A Tarde.
5.4. A INVASÃO DA BAÍA DOS PORCOS, POR A TARDE E JB
Em momento anterior, vimos que a tentativa fracassada de invasão ao
241
GOMES, Pimentel. “Em Cuba”. Jornal da Bahia, Salvador, 17 e 18 de abr. 1960, 1º caderno, p. 2.
118
terririo cubano promovida por exilados cubanos treinados e armados pela CIA em
abril de 1961, a invasão da Baía dos Porcos, foi representada pela principal
agência estadunidense de notícias - a AP - de maneira a isentar, enquanto isto foi
possível, a participação do governo estadunidense na invasão. Os relatos da AP
foram reproduzidos sistematicamente pelo jornal A Tarde, que, aderindo às
perspectivas adotadas, insistiam, ainda no dia 27 de abril, na tese de que os
primeiros bombardeios partiram do próprio território cubano. A tendência opinativa
culminou com a produção de um editorial intitulado “A boa política”, o qual, sem
estabelecer ressalvas à ão dos Estados Unidos, condenou Cuba por abrir uma
das portas do hemisfério à penetração comunista, pondo em perigo a estabilidade
democrática das demais nações americanas”
242
. Saliente-se ainda que, em meio ao
conflito, Cuba anunciaria definitivamente sua opção pelo socialismo e passaria a
ser inserida de maneira plena na intensa propaganda anticomunista do período.
Neste sentido, também é possível se destacar diferenças importantes entre A
Tarde e Jornal da Bahia com relação à cobertura do evento. O primeiro texto do JB
noticiando a invasão iniciou-se informando que Aviões militares 'B-25' de
fabricação norte-americana bombardearam, hoje, diferentes pontos de Cuba, entre
os quais Havana, San Antonio, Los Abanos e Santiago”
243
. Assim, o ponto de
partida da informação, contido no primeiro parágrafo da reportagem, e destacado
em itálico, apresentava a evidência da origem norte-americana daqueles aviões.
Mais à frente, o texto, produzido a partir de telegramas da AFP, reproduziu uma fala
atribuída a Fidel Castro e datada do dia 15, no qual afirmou: “Isso foi ataque de
surprêsa do covarde imperialismo contra o nosso país. Todos os comandos foram
postos em estado de alerta caso isso seja prelúdio de invasão do nosso país. Se
assim for, nosso povo destruirá qualquer tentativa contra cada um de nós”
244
. Ainda
mais adiante, dedicou um parágrafo à apresentação do editorial do jornal cubano
Revolucion, que, pouco antes dos bombardeios, havia acusado os EUA de
promoverem um incêndio num mercado popular em Havana
245
.
242
A BOA política. Editorial. A Tarde, Salvador, 25 de abr. 1961, p. 5.
243
HAVANA bombardeada ontem: sete mortos. Jornal da Bahia, Salvador, 16 e 17 de abr. 1961,
caderno, p. 1.
244
Ibid.
245
HAVANA bombardeada ontem: sete mortos. Jornal da Bahia, Salvador, 16 e 17 de abr. 1961, 1º
119
Na primeira reportagem do A Tarde sobre os bombardeios, por sua vez, os
textos informavam sobre os desembarques de “forças revolucionárias anti-
castristas” em Playa Larga, reproduzindo ainda uma frase que teria sido proferida
pelo líder contra-revolucionário José Miró Cardona: “começou a batalha pela
libertação da pátria”
246
. Argumentando faltar informões oriundas do palco dos
acontecimentos, o texto, utilizando os informes oriundos de Miami, onde se
localizavam o quartel-general dos forças exiladas, afirmou ainda que dois líderes do
movimento desembarcariam em Cuba assim que ”as tropas rebeldes tenham
estabelecido firme cabeça de ponte”
247
. O A Tarde tamm mencionou as
denúncias de Castro em relação à autoria estadunidense, sem, no entanto,
reproduzir as declarações públicas do líder cubano, as quais foram transmitidas
pela AFP e publicadas no Jornal da Bahia. O texto do A Tarde, inclusive se
antecipava às denúncias que estariam sendo preparadas pelo ministro de Relações
Exteriores de Cuba, Raul Roa, para que fossem apresentadas junto à ONU,
avaliando:
Os bombardeios contra os aeroportos cubanos deram ao regime de
Fidel Castro combustível para seu debate de hoje na Organização
Mundial, sôbre as acusações cubanas de agressão contra os
Estados Unidos. O ministro de Relações Exteriores de Cuba, Raul
Roa, se prepara para lançar seu ataque, hoje, perante a Comissão
Potica da Assembléia Geral.
248
Parece-me oportuno utilizar-me aqui das formulações da analista de discurso
Betânia Mariani, que, ao avaliar a função da memória para a solidificação de um
dado discurso, reflete sobre a necessidade da “manutenção de uma narrativa
coerente para uma formação social em função da reprodução/produção dos
sentidos hegemônicos”
249
. Neste aspecto, a articulação de um papel de ataque
conferido a Cuba e a seu ministro, recorre a um sentido construído de Cuba
como uma nação dotada de um governo agressivo, agitador, denuncista e injurioso.
Os jornais, ainda para essa autora, ao nomearem e produzirem explicações
caderno, p. 1.
246
CUBA invadida por contra-revolucionários. A Tarde, Salvador, 17 de abr. 1961, p. 1.
247
Ibid.
248
CUBA invadida por contra-revolucionários. A Tarde, Salvador, 17 de abr. 1961, p. 1.
249
MARIANI, Bethania. op. cit., 1998. p. 35.
120
“digeridas” aos leitores e envoltas numa aura de neutralidade que a fala impessoal
tenta lhe garantir, constrói uma relação lógica de causas e consequências que são
sedimentadas ao longo de um tempo
250
. Na situação que estamos avaliando, a
construção de Cuba como um país agressor e de seus representantes como
difamadores, permeiam a saída argumentativa expressa na nota em que se afirma
que o ministro Roa já prepara seu ataque contra os Estados Unidos. Há assim, uma
“direção de sentidos” fixa em relação a Cuba que se torna eficaz e que atribui ao
governo desse país a posição estabilizada do ataque.
Num dos últimos parágrafos, o texto mencionou a aparente fabricação
estadunidense detida pelos equipamentos que bombardearam Cuba, veiculando,
no entanto, que Antonio Silio, porta-voz do “Conselho revolucionário cubano” no
exílio, lembrou que desde a Segunda Guerra Mundial Cuba vinha recebendo aviões
e bombas dos Estados Unidos, complementando, ainda com as declarações de
Silio, que “mesmo que os fragmentos pareçam ser de fabricação norte-americana,
isto não pode ser aceito como prova de que os Estados Unidos atacaram os
aeroportos”
251
.
Um ponto interessante a destacar acerca das distinções entre as duas
matérias é mesmo o do lugar de enunciação das informões e argumentos
adotados pelos dois jornais, a partir das informações de suas respectivas agências
fornecedoras de notícias. Neste sentido, se no caso do JB, as informações
principais no dia seguinte ao evento foram extraídas predominantemente das falas
de Fidel Castro e do jornal cubano Revolucion
252
, as quais acusavam os Estados
Unidos pela invasão; o A Tarde, por sua vez, utilizou de maneira predominante as
informações prestadas pelos grupos exilados executores da invasão, publicando
em destaque, inclusive, a íntegra da nota de declaração emitida por Miró Cardona
em Nova York acerca da invasão. O subtítulo que apresentava a nota intitulava-se
“Restauração da liberdade cubana”
253
.
250
MARIANI, Bethania. op. cit., 1998.
251
CUBA invadida por contra-revolucionários. A Tarde, Salvador, 17 de abr. 1961, p. 1.
252
Em termos quantitativos, dos onze parágrafos que compõem a matéria do JB, apenas um
veiculou informação oriunda dos grupos contra-revolucionários, no qual foi exposta a declaração de
José Mi Cardona de que os aviões eram pilotados por contra-revolucionários exilados e que
partiram de um ponto da América Central.
253
CUBA invadida por contra-revolucionários. A Tarde, Salvador, 17 de abr. 1961, p. 1.
121
Ainda numa perspectiva comparativa, se o editorial do A Tarde do dia 25
apontou o erro de Cuba na situação, ao abrir o hemisfério para o comunismo; num
editorial do dia 20, intitulado “Autodeterminação”, o Jornal da Bahia, além de
abordar “as simpatias e demonstrações de solidariedades ao regime cubano”, que,
“se espalham por tôda a América Latina, pela Ásia e a África”
254
; tamm defendeu
o princípio da soberania e autodeterminação dos povos, condenando a ingerência
militar de um país sobre o outro e afirmando que “mais importante que o tipo de
regime ou govêrno que se estabeleça neste ou naquele País, é o respeito ao
princípio básico de não-ingerência nos assuntos internos de cada Estado”
255
.
* * *
No âmbito de uma campanha estratégica por parte dos Estados Unidos de
utilização consciente de veículos de comunicação transnacionalizados no sentido
de se estabelecer uma hegemonia informativa a partir da construção sistemática de
consensos oportunos, a cobertura específica do Jornal da Bahia demonstrou ser
possível resistir à mesma, ainda que nos marcos de uma lógica liberal de produção
jornalística; adotando, inclusive, em certos casos, uma postura crítica diante de tal
campanha notória.
Creio que, para o Jornal da Bahia, não somente a utilização de uma agência
de notícias distinta significou a elaboração de um quadro mais amplo da Revolução
Cubana, isento dos enquadramentos feitos pelo Departamento de Estado norte-
americano. Mas tamm a composição progressista de sua equipe, que tendia a
adotar uma postura mais crítica em relação às construções pré-formuladas pelos
meios estadunidenses.
Não é possível, no entanto, afirmar que a agência francesa AFP tenha se
oposto consciente e sistematicamente a uma cobertura proposta pela AP ou outra
agência dos Estados Unidos, apesar de ter apontado elementos e informações
254
AUTODETERMINAÇÃO. Editorial. Jornal da Bahia, Salvador, 20 de abr. 1961, 1º caderno, p. 2.
255
Ibid.
122
diferentes ou mais aprofundados em relação aos eventos noticiados por estas. Não
se trata, assim, de uma relação de antagonismo consciente, apesar de ser também
notório que os textos oferecidos pela AFP apresentaram informações que foram
sistematicamente silenciadas nos textos da AP.
Creio que, no caso do Jornal da Bahia, a utilizão de tais recursos
informativos oferecidos pela AFP articulou-se a uma linha editorial que não se
orientava por um alinhamento incondicional aos propósitos estadunidenses para o
continente, o que pôde definir uma cobertura diferente daquela desenvolvida pela
AP e reproduzida sistematicamente na Bahia pelo jornal A Tarde
256
.
256
No geral, as tendências do Jornal da Bahia com relação a Cuba seguiram a linha aqui avaliada
até 1964, marco final do recorte proposto. Não foi observado, neste periódico, o consumo dos
enquadramentos anticomunistas formulados por setores vastos da imprensa com relação a Cuba,
nos quais sua experiência foi relacionada ao modelo político pretendido por Goulart e seus aliados,
às vésperas do desfecho golpista. Em março, por exemplo, o jornal publicou um artigo do jornalista
francês Jean Daniel que avaliava criticamente o bloqueio estadunidense a Cuba. O jornal introduziu
o texto da seguinte forma: “Êste artigo, do qual reproduzimos hoje a primeira parte, foi publicado por
um dos órgãos da imprensa norte-americana que defendem uma linha menos conservadora para os
Estados Unidos, a revista The New Republic”. (DANIEL, Jean. “Bloquear Cuba: que interêsse tem
isto?”. Jornal da Bahia, Salvador, 1 e 2 de mar. 1964, 2º caderno, p. 1).
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Teorizando sobre o fenômeno da globalização, Milton Santos, cerca de
uma década, avaliou que o mundo contemporâneo se apresenta sob três formas
essenciais: “o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula”; o
mundo tal como ele é: a globalização como perversidade”; e o “mundo como ele
poder ser: uma outra globalização”
257
. Se das duas primeiras abstrai-se o
diagnóstico, na última se vislumbra a dissolução do modelo.
Na mesma obra, avaliou a questão da informação globalizada,
transnacionalizada; opinando que, no mundo de hoje, as técnicas da informação
o principalmente utilizadas por um punhado de atores em fuão de seus
objetivos particulares”
258
. Assim, o fenômeno da globalizão ganha destaque o
pela capacidade de fazer o homem conhecer o mundo através das notícias, mas
pela condição de poder difundir, de maneira rápida e global, e sob a forma de
ideologia, os mitos e as fábulas que a sustentam
259
.
A pesquisa que aqui se desenvolveu também tomou como aspecto central a
questão da informação transnacionalizada, ainda que, a partir de uma perspectiva
historiográfica, tenhamos voltado nosso olhar para um momento diferente daquele
que incomodava o geógrafo baiano em 2000. Diferente, porém conectado; já que o
fenômeno da informação transnacional advém de um processo histórico que não é
tão recente. Nos anos aqui destacados, inclusive, momento ápice da chamada
“Guerra Fria”, as empresas que desempenhavam a função de distribuir as nocias
pelo mundo, da maneira mais instantânea possível, apareciam consolidadas em
tal atividade. A AP, por exemplo, já havia completado seus cento e dez anos de
atuação nesta área em 1958.
No presente trabalho, vimos que a reprodução não apenas dos textos
noticiosos, mas também das tendências ideológicas, silenciamentos e
257
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 5.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 11.
258
Id. Ibid., p. 39.
259
Id. Ibid.
124
enquadramentos estratégicos da Associated Press em relação ao fenômeno da
Revolução Cubana, no jornal A Tarde; conformou-se às posições expressas pelo
diário baiano de alinhamento às doutrinas, valores e discursos formulados pelos
Estados Unidos em tal contexto. Ao realizá-la, o A Tarde entrava num roteiro pré-
definido de veiculação estratégica de imagens sobre Cuba, tornando-se, nesta
cadeia de reproduções noticiosas, o ponto mais próximo ao público que as leria.
Num âmbito geral, a Revolução Cubana que apareceu nos primeiros dias de
1959 como um fenômeno a ser celebrado e exaltado, cujos líderes figuravam como
heróis que conseguiram derrubar o tirano corrupto, passou gradualmente a se
converter imageticamente numa realidade perigosa para a América, cujos líderes
abriam as portas da América Latina a um comunismo estranho, nocivo e perigoso,
capitaneado pela União Soviética. Ao longo do trabalho, tentamos demonstrar as
nuances dessas transformações de maneira conjugada ao processo histórico que
se desenrolou em seu entorno.
No entanto, tamm foi possível notar que tal esforço pela hegemonização
de tais representações, pôde ser, em casos específicos, identificado, denunciado e
subvertido. Em duas situações, analisamos este exercício de confronto: na coluna
publicada por Milton Santos no A Tarde, em abril de 1960; e nas formulações de
editorialistas e colaboradores do Jornal da Bahia, ao abordar alguns aspectos do
regime que se instalara em Cuba e das relações deste país com o seu vizinho e
antagonista do Norte.
125
FONTES UTILIZADAS
Biblioteca Pública do Estado da Bahia – Setor de Periódicos (Salvador)
Jornal A Tarde – jan. 1959 a mai. 1964 / extratos de 1972 e 1982;
Jornal da Bahia – jan. 1959 a mai. 1964;
Diário de Notícias – extratos de 1959, 1961 e 1964;
O Estado da Bahia – extratos de 1959, 1961 e 1964
Banco de Dados de Periódicos na Internet
New York Times - http://query.nytimes.com/search/query?srchst=nyt&&srcht=a&srchr=n
Folha de São Paulo - http://bd.folha.uol.com.br/
O Estado de S. Paulo (dossiê “Revolução Cubana”) -
http://www.estadao.com.br/especiais/a-revolucao-cubana-nas-paginas-do-estadao,41834.htm
Fundação Pedro Calmon
Fundação Pedro Calmon. Centro de Memória da Bahia. Acervo Simões Filho.
Documentos considerados: Cartas de Simões Filho a Ranulfo Oliveira (1947- 1957)
Vídeos
ACBAR, Mark e WINTONICK, Peter. Consenso Fabricado: Noam Chomsky e a
mídia [Documentário em VHS 180 minutos]. Montreal: Necessary Ilusions
Productions, 1991.
TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou o mundo globalizado visto do
lado de . [Documentário em DVD 86 minutos]. Rio de Janeiro: Caliban
Produções Cinematográficas, 2006.
Anuários Estatísticos do IBGE
Anuários Estatísticos do Brasil 1961. Rio de Janeiro: IBGE, v. 22-27, 1961-1966.
126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Rômulo Barreto. Rômulo: voltado para o futuro. Fortaleza: Banco do
Nordeste do Brasil; Associação dos Sociólogos do Estado da Bahia, 1986.
ALVES, Cristiano Cruz. Um espectro ronda a Bahia: o anticomunismo na década de
30. Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas - UFBA, Salvador, 2008.
ALVES, Maria H. Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1988.
ANDRADE, Auro Moura. Um congresso contra o arbítrio: diários e memórias. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção
política. São Paulo: Editoria da UNESP, 1995.
CALMON, Pedro. A vida de Simões Filho. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia,
1986.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema
e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: Edufba, 1999.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Difel, Bertrand Brasil, 1990.
CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. trad.
Antônio Augusto Fontes. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.
____________. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1999.
CRUZ, Heloisa de Faria e PEIXOTO, Maria do Rosário da C. “Na oficina do
historiador: conversas sobre história e imprensa”. In: Projeto História, São
Paulo, n. 35, dez. 2007, p. 253-270.
DANTAS NETO, Paulo Fábio. Quebra da casca do ovo: a elite baiana e a obra do
golpe de 1964. Disponível em
<www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_01.pdf>. Acesso em 09/04/2009.
DEBRAY, Regis. Revolução na revolução. São Paulo: Centro Editorial Latino-
Americano, s/d.
DEPALMA, Anthony. O homem que inventou Fidel: Cuba, Fidel e Herbert L.
127
Matthews do New York Times. trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado ão potica, Poder e
Golpe de Classe. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
FALCÃO, João. Não deixe esta chama se apagar: história do Jornal da Bahia. Rio
de Janeiro: Revan, 2006.
FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São
Paulo: Expressão Popular, 2007.
FERREIRA, Muniz. O golpe de Estado de 1964 na Bahia. Disponível em:
<www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_02.pdf>. Acesso em 09/04/2009.
_____________. “Carlos Marighella: revolução e antinomias”. In: NOVA, Cristiane e
NÓVOA, Jorge (orgs.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. o
Paulo: Editora da UNESP, 1999. p. 221-255.
FICO, Carlos. O grande irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo o
governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
FIGUEIREDO FILHO, Celso R. “ESG e Estadão em 1964: limites autoritários do
liberalismo”. In: Revista Adusp, nº 34, mai. 2005, p. 85-98.
GLEIJESES, Piero. “Ships in the night: the CIA, the White House and the Bay of
Pigs”. In: Journal of Latin american Studies, 27, Cambridge University
Press, 1995.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
GUEVARA, Ernesto Che. “A guerra de guerrilhas”. In: Obras completas. São Paulo:
Edições Populares, 1981.
_____________. “Cuba, exceção histórica?”. In: SADER, Eder (org.). Che Guevara:
Política. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
GUIMARÃES, Antônio S. Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas - UFBA, 1982.
HARNECKER, Martha. Fidel: a estratégia política da vitória. trad. Ana Corbisier.
São Paulo: Expressão Popular, 2000.
128
LUCENA, Suênio Campos de. Imprecisão e técnica na linguagem jornalística: uma
análise do Jornal da Bahia (1958-1960). Dissertação de Mestrado. Faculdade
de Comunicação – UFBA, Salvador, 1996.
LUDWIG, Selma. Mudanças na vida cultural de Salvador (1950-1970). Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
– UFBA, Salvador, 1982.
MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais
(1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1998.
MARTINS FILHO, João Roberto. “Os Estados Unidos, a revolução cubana e a
contra-insurreição”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 12, jun. 1999,
p. 67-82.
MATTA, Fernando Reyes (org.) A informação na nova ordem mundial. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980.
MATTOS, Sérgio (org.). Memória da imprensa contemporânea da Bahia. Salvador:
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2008.
____________. Jorge Calmon (1915-2006): o jornalismo e o jornalista. Mesa-
Redonda. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=565FDS007. Acesso em
17/04/2010.
MOLON, Newton Duarte. A visita de Che, a mídia e a renúncia de Jânio Quadros.
Dissertação de Mestrado em Comunicação na Contemporaneidade.
Faculdade Cásper Líbero. São Paulo, 2006.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A Renúncia de Jânio Quadros e a crise pré-64. 2.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1979.
____________. De Martí a Fidel: A revolução cubana e a América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
____________. O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 4.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MOTTA, Rodrigo Pato Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo
no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.
QUINTANEIRO, Tania. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964) uma
interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1988.
129
RISÉRIO, Antônio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituo Lina Bo e P. M. Bardi,
1995.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Cultura, política e mídia na Bahia
contemporânea”. Comunicação & Política, Rio de Janeiro, n. s., v. X., n. 1, p.
93-155.
SADER, Emir. A revolução cubana. São Paulo: Moderna, 1985.
SALES, Jean Rodrigues. O impacto da revolução cubana nas organizões
comunistas brasileiras. Tese de Doutorado em História. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – UNICAMP, 2005.
SAMPAIO, Consuelo N. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma
política de acomodação. 2. ed. Salvador: Edufba, 1999.
SANTOS, José Weliton A. dos. Formação da grande imprensa na Bahia.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – UFBA, Salvador, 1985.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SEGISMUNDO, Fernando. Imprensa brasileira: vultos e problemas. Rio de Janeiro:
Alba, 1962.
SERRA, nia. “Jornalismo político dos comunistas no Brasil: diretrizes e
experiências da 'Imprensa Popular'”. In: Anais do II Congresso da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Comunicão e Política. Belo Horizonte,
2007.
____________. O Momento: história de um jornal militante. Dissertação de
Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
UFBA, 1987.
SERVÍN, Elisa. Propaganda y Guerra Fria: la campa anticomunista en la prensa
mexicana del medio siglo”. Signos Históricos. Jan-Jun. n. 011. Universidade
Autônoma Metropolitana – Iztalpalapa: Distrito Federal, México, 2002, p. 9-39.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
SOUSA, Erahsto Felício de. Subalternos no caminho da modernidade: marginais,
politização do cotidiano e ameaças à dominação numa sociedade
subordinadora do sul da Bahia (Itabuna, década de 1950). Dissertação de
Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
UFBA, Salvador, 2010.
130
SOUZA, Maria A. Aparecida de (org.). O mundo do cidadão, um cidadão do mundo.
São Paulo: Hucitec, 1996.
STEINBERGER, Margarethe Born. Discursos geopolíticos da mídia jornalismo e
imaginário internacional na América Latina. o Paulo: EDUC; Fapesp;
Cortez, 2005.
TAVARES, Luís Guilherme Pontes Tavares (org.). Apontamentos para a história da
imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia
Legislativa do Estado da Bahia, 2005.
VIANA, Francisco. Uma época de ouro”. In: Revista digital Terra Magazine, 3 de
out. 2009. Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4017443-
EI6783,00-Uma+epoca+de+ouro.html. Acesso em 01/04/2010.
131
ANEXO 1
Reprodução da primeira página da edição de 2 de janeiro de 1959 do jornal A Tarde, que
noticiou o triunfo do Movimento 26 de Julho sobre a ditadura de Fulgêncio Batista
132
ANEXO 2
Reproduções de capas e trechos de periódicos internacionais sobre Fidel Castro e o
Movimento 26 de Julho (1957-1959)
“Rebelde Cubano é visitado no
esconderijo -
Em fevereiro de 1957,
após Batista ter anunciado a mort
e de
Fidel e de todos os seus companheiros
após o desembarque do Granma, Fidel
Castro concede uma entrevista ao
jornalista do veículo estadunidense
New
York Times
, Herbert Matthews, na Sierra
Maestra. O lead da matéria afirma:
“Castro ainda está vivo e lu
tando nas
montanhas”. A reportagem acompanhada
de uma entrevista, que irá inaugurar uma
série de outras com o mesmo tema, é
tida como de fundamental importância
para a imagem que irá se consolidar na
imprensa e na opinião blica
internacionais acerca do M
ovimento 26
de Julho e de seu líder. (MATTHEWS,
Herbert. “Cuban Rebel is visited in
Hideout”. New York Times
, New York City,
24 de fev. 1957, p. 1)
Capa da revista Time, de 26 de janeiro de 1959.
“Castro em triunfante avanço para Havana”.
Capa da Revista Life, de 19 de janeiro de 1959.
133
ANEXO 3
Fotografias da viagem dos jornalistas brasileiros a Cuba, em 1960, na excursão do então
candidato à presidência Jânio Quadros
Fotos: Arquivo Pessoal de Luiz Alberto Moniz Bandeira
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo