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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
RAIMUNDO CLECIONALDO VASCONCELOS NEVES
LEITURA FEMINISTA: HERMENÊUTICA DE RESISTÊNCIA DA MULHER A
PARTIR DA CASA (Mc 1.29-31)
São Leopoldo
2010
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RAIMUNDO CLECIONALDO VASCONCELOS NEVES
LEITURA FEMINISTA: HERMENÊUTICA DE RESISTÊNCIA DA MULHER A
PARTIR DA CASA (Mc 1.29-31)
Trabalho Final de
Mestrado Profissional
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Linha de Pesquisa: Leitura e Ensino
da Bíblia
Orientador: Flávio Schmitt
Segunda Avaliadora: Valburga Schmiedt Streck
São Leopoldo
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha elaborada pela Biblioteca da EST
N518L Neves, Raimundo Clecionaldo Vasconcelos
Leitura feminista: hermenêutica de resistência da
mulher a partir da casa (Mc 1.29-31) / Raimundo
Clecionaldo Vasconcelos Neves ; orientador Flávio
Schmitt ; co-orientadora Valburga Schmiedt Streck. –
São Leopoldo : EST/PPG, 2010.
62 f.
Dissertação (mestrado) – Escola Superior de
Teologia. Programa de Pós-Graduação. Mestrado em
Teologia. São Leopoldo, 2010.
1. Jesus Cristo – Opinião sobre as mulheres . 2.
Bíblia. N.T. Marcos 1 – Crítica feminista. 3. Mulheres no
cristianismo. 4. Mulheres na Bíblia I. Schmitt, Flávio. II.
Streck, Valburga Schmiedt. III. Título.
RAIMUNDO CLECIONALDO VASCONCELOS NEVES
LEITURA FEMINISTA: HERMENÊUTICA DE RESISTÊNCIA DA MULHER A
PARTIR DA CASA (Mc 1.29-31)
Trabalho Final de
Mestrado Profissional
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Linha de Pesquisa: Leitura e Ensino
da Bíblia
Data:
Flávio Schmitt - Doutor em Ciências da Religião - Escola Superior de Teologia
Valburga Schmiedt Streck - Doutora em Teologia - Escola Superior de Teologia
À minha mãe, in memoriam,
Maria de Nazaré Vasconcelos Neves,
pelo exemplo e incentivo que me deu sendo tempo,
presença e exemplo em minha formação.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores e colegas do curso, que me incentivaram para que eu
pudesse manter e esperança;
Agradeço à minha esposa, Veleide, que é um porto seguro na minha vida;
Agradeço ao meu pai, Francisco Neves, e aos meus irmãos, que me incentivaram
na caminha;
Agradeço à professora Marga pela paciência e capacidade dialógica com leitura
feminista do texto sagrado.
RESUMO
Leitura feminista: hermenêutica de resistência da mulher a partir da casa aborda as
relações de gênero em um contexto social, religioso, familiar, político e econômico,
analisando a função da mulher e o processo de resistências construído a partir da
casa. As interpretações do texto sagrado apontam para uma libertação da mulher
em um sistema patriarcal em que o varão detém todo poder sobre seus filhos, sobre
sua esposa e sobre sua propriedade. Logo, Jesus inaugura um tempo novo e o faz a
partir de seus ensinamentos que ocorrem em casas.
Palavras-chave: Casa. Mulher. Igreja. Jesus. Hermenêutica.
ABSTRACT
Feminist reading: hermeneutics of woman’s resistance starting from home
approaches the gender relations in a social, religious, familiar, political and economic
context, analyzing woman’s function and the resistance process built from her home.
The interpretations of the sacred text point to a woman’s release from a patriarchal
system, in which the man withholds all power on his children, his wife and his
property. So, Jesus inaugurates a new time and he makes it from his teachings which
occur in homes.
Keywords: House. Woman. Church. Jesus. Hermeneutics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 9
1 HERMENÊUTICA DA LEITURA FEMINISTA ........................................................ 13
2 A REPRESSÃO DOS VALORES FEMININOS NO MUNDO E NA IGREJA.......... 23
3 LEITURA FEMINISTA E AS RELAÇÕES SOCIAIS: UM NOVO TEMPO
INAUGURADO POR JESUS .................................................................................... 29
4 A RESISTÊNCIA DA MULHER A PARTIR DO OIKOS ......................................... 44
CONCLUSÃO........................................................................................................... 57
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 59
INTRODUÇÃO
A leitura feminista quer fazer memória de mulheres que, lutando contra
tiranos, fizeram história, tornaram-se sujeitos, modificaram sua condição de vida, a
humanidade e a hermenêutica teológica. Em face disto, queremos compreender
suas dores, lágrimas, sofrimentos e a maneira como organizaram os textos
sagrados, fazendo com que fossem passados de geração a geração. Como afirma
Marga Sthöher, “as mulheres descobrem-se como sujeitos históricos, também na
atividade teológica”.
1
Percebe-se que a leitura feminista da Bíblia está relacionada com a teologia
feminista e com os diversos movimentos pelos direitos de mulheres, na América
Latina e em todo mundo, uma vez que tal leitura depende, de alguma maneira, da
vivência dessas mulheres e teólogas, como Elisabeth Fiorenza e Ivone Gebara que,
ao proporem uma nova exegese bíblica, ressignificam as funções das mulheres e
sua resistência a partir da casa (oikos) no texto sagrado, influenciando a
comunidade e, consequentemente, construindo uma nova organização social.
No oikos, as igrejas domésticas eram espaços para formação de igrejas em
cidades ou distritos, para a pregação da palavra, partilha da eucaristia e para a
gestação de líderes. Como afirma Fiorenza, “a igreja doméstica era o início da igreja
em determinada cidade ou distrito. Ela fornecia espaço para a pregação da palavra,
para o culto, e também para a partilha de mesa social e eucarística”.
2
O oikos tem uma função primordial para a atuação de Jesus e é o espaço
para que a igreja possa fazer suas experiências cristãs. Como elucida Sthöher, “o
oikos teve um papel fundamental no movimento de Jesus. A casa é um dos espaços
importantes para a atuação e o ensino de Jesus. [...] A experiência cristã é a da
‘igreja na casa’”.
3
1
STRÖHER, Marga J. Caminhos de resistência nas fronteiras do poder normativo. 2002. Tese
(Doutorado em Teologia) - São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, 2002. p. 40.
2
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica.
São Paulo: Paulinas, 1992. p. 209-210.
3
STRÖHER, Marga J. Casa igualitária e casa patriarcal: espaços e perspectivas diferentes de
vivência cristã: o caminho da patriarcalização da igreja no primeiro século do cristianismo. 1998.
Dissertação (Mestrado em Teologia) - São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, 1998. p. 11.
10
Observa-se que a leitura feminista do texto sagrado liberta a linguagem
simbólica e erótica de alguns textos, destaca questões de produção e de reprodução
dos textos, revela e questiona a estrutura patriarcal, genérica e androcêntrica e,
finalmente, destaca o objetivo último da hermenêutica feminista: avaliar, iluminar e
libertar a vida social, política e eclesial, a prática familiar, comunitária e religiosa, das
amarras do androcentrismo, da discriminação e de toda relação de dominação entre
homens e mulheres. Essa libertação, para a hermenêutica feminista, passa pelo
peso da história e, também, das que a produzem.
Ao ler o conjunto da Bíblia, nota-se que, na estrutura patriarcal, existe
poderosa brecha feminista. O método sociológico, por exemplo, revelou não
somente na análise das macroestruturas das realidades, mas, especialmente, na
análise das microestruturas, “brechas” e as “armadilhas” da questão de gênero.
A principal perspectiva da hermenêutica feminista está na questão do gênero
ou, como algumas exegetas afirmam, no método de gênero. Outras representantes
da teologia feminista questionam se a hermenêutica feminista consistiria
propriamente em um método específico de interpretação da Bíblia ou em uma
abordagem feminista dos textos. Segundo Silva:
A categoria de gênero tem de alguma maneira, modificado as ciências
exegéticas, pois parte das seguintes suspeitas:
a) A Bíblia nasceu em uma estrutura de patriarcado [...];
b) A Bíblia não só está condicionada ao contexto;
c) Mas também o estão as suas traduções e interpretações [...] à herança
patriarcal da Bíblia [...] Esse caráter de gênero do texto afeta a linguagem, a
gramática e também a sociologia subjacente ao texto.
4
Percebe-se a existência de poder nos grupos sociais, a relação de
dominação, o jogo de poderes entre masculino e feminino. Nota-se que este fato foi
de fundamental importância para superar o debate com a sociedade patriarcal, como
se suas estruturas retirassem totalmente, absolutamente, o poder das mulheres.
Com certeza, o acesso ao poder é desigual e marca as relações sociais, enquanto
relações de gênero, de classe, de raça e outras.
Sendo assim, a construção humana das sociedades acontece à medida que
as relações de força e de poder se organizam para estabelecer o desejo. Não são
4
SILVA, Cássio M. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 351-352.
11
ações individuais que as realizam, mas ações por um coletivo organizado. Isto nos
apontou para uma chave de leitura: as relações sociais como chave para a
compreensão dos acontecimentos, uma análise das relações sociais de gênero, de
raça, de classe e as relações que se entrecruzam e se interdeterminam. Não cabe à
nossa tarefa isolar a mulher como uma entidade ainda mal compreendida e
destituída absolutamente de poder, portanto, vítima de uma discriminação
incomparável, que agora precisa ser reparada.
Os textos sagrados, nesta perspectiva, foram norteadores para a reflexão do
papel da mulher na ótica bíblica. Algumas questões norteadoras foram indagadas:
Como fora elaborada a hermenêutica da leitura feminista? Como se deu a repressão
dos valores femininos no mundo e na igreja? Há possibilidade de uma leitura
feminista nas relações sociais e um novo tempo inaugurado por Jesus? E a pergunta
principal da pesquisa: Como se constituiu o processo de resistência das mulheres a
partir do oikos (casa)?
Os objetivos desta pesquisa foram: investigar a hermenêutica da leitura
feminista; analisar a repressão dos valores femininos no mundo e na igreja;
identificar a leitura feminista e as relações sociais de um novo tempo inaugurado por
Jesus; e compreender a resistência da mulher a partir do oikos. No que diz respeito
aos objetivos, realizou-se uma pesquisa descritiva a partir de trabalhos
elaborados.
O método utilizado foi a pesquisa do tipo bibliográfica, pois tomou como
fundamento bibliografias (livros, anais, periódicos e outros) e o método histórico que
consiste em partir do princípio de que as formas de vida social, as instituições, as
organizações e os costumes têm sua origem gestada por contingências do passado.
É importante pesquisar as raízes dos fenômenos estudados para melhor
compreender sua natureza e função. O objetivo é perceber a influência do passado
sobre o presente.
No primeiro capítulo, procuro a hermenêutica da leitura feminista,
analisando os fundamentos de uma hermenêutica na ótica feminista. No segundo
capítulo, apresento a repressão dos valores femininos no mundo e na igreja e as
implicações nas relações de gênero. No terceiro, Leitura feminista e a as relações
sociais: um novo tempo inaugurado por Jesus, faço a análise dos textos que
12
evidenciam as relações de poder e o novo paradigma inaugurado por Jesus. No
quarto capítulo, proponho um desfecho para as práticas de resistência da mulher a
partir do oikos.
Portanto, muitos aspectos podem ainda ser analisados no tocante à relação
de homens e mulheres. Em face disto, esta pesquisa não é a última palavra sobre o
tema. Ao falar e escrever sobre a mulher em qualquer contexto, deve-se revelar o
que está nas entrelinhas da história da humanidade, que talvez esteja escondido em
nossa memória e precise emergir e, com transparência, ser colocado em discussão
em toda parte. Mesmo que seja dolorida a memória de tantas mulheres que ainda
hoje são protagonistas de uma história de um povo que está a caminho de uma terra
prometida sem mar, sem templo, sem repressão, sem escravidão, sem
marginalização, sem exclusão, deve-se manter a esperança de um mundo de iguais
em sua adversidade.
1 HERMENÊUTICA DA LEITURA FEMINISTA
Na contemporaneidade, a discussão de uma teologia libertadora, em que
são oportunizadas várias possibilidades hermenêuticas
5
do texto sagrado, configura-
se como um marco histórico. Principalmente a teologia feminista, como afirma
Schottroff: “a intromissão de mulheres na interpretação da Bíblia cristã pode ser
verificada desde o início dos tempos modernos e até antes deles”.
6
Fiorenza afirma que “a teologia cristã feminista e a interpretação bíblica
estão no processo de redescobrimento de que o evangelho cristão não pode ser
proclamado se não se recordarem as discípulas mulheres e o que elas fizeram”.
7
Observa-se um processo de transição: a mulher de objeto transforma-se em
sujeito histórico, mudando o rumo da história e da sociedade, apresentando novas
práticas em vários campos do conhecimento e também na interpretação do texto
bíblico. Logo, ao ler a Bíblia, faz-se necessário um entendimento apontado por
Fiorenza: “a Bíblia não é mera coleção histórica de escritos, mas é também Escritura
Sagrada, evangelho, para os cristãos de hoje. Como tal, inspira não apenas a
teologia, mas também o comprometimento de muitas mulheres de hoje”.
8
Nesta perspectiva, a hermenêutica feminista quer romper com o paradigma
androcêntrico como afirma Fiorenza:
A mudança de uma interpretação androcêntrica do mundo, para uma
interpretação feminista, implica uma mudança revolucionária de paradigma
científico, uma mudança com ramificações de profundas consequências,
não somente para a interpretação do mundo, mas também para sua
alteração. Uma vez que os paradigmas determinam a maneira como os
estudiosos vêem o mundo e como concebem problemas teóricos, a
mudança de um paradigma androcêntrico para um paradigma feminista,
implica transformação da imaginação científica.
9
5
“A palavra ‘hermenêutica’ origina-se do verbo grego ~ermheu,ein/hermeneuein, cujo significado
é igual ao da palavra exegese, ou seja, ‘interpretar’. Hermenêutica significa, pois interpretação. [...]
a hermenêutica blica designa mais particularmente os princípios que regem a interpretação dos
textos”. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo:
Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998. p. 11.
6
SCHOTTROFF, Luise. Exegese feminista: resultado de pesquisas bíblicas na perspectiva de
mulheres. São Leopoldo: Sinodal/EST/CEBI; São Paulo: ASTE, 2008. p. 11.
7
FIORENZA, 1992, p. 10.
8
FIORENZA, 1992, p. 11.
9
FIORENZA, 1992, p. 18.
14
Foca-se na dimensão da libertação das relações androcêntricas e da
dominação patriarcal e abre-se uma nova perspectiva alterativa de se interpretar o
texto bíblico. Em outras palavras, criar um novo paradigma hermenêutico. Logo,
esse paradigma norteará a prática e a luta de mulheres pela libertação.
Platão também acentuava as diferenças de gênero, em que o varão tem
plenos poderes. Notadamente em sua obra A República indicações para que a
sociedade mantivesse a ordem vigente de dominação do homem sobre a mulher,
como afirma Oliveira:
A obra A República aborda a necessidade de igualar a educação entre
homens e determinadas mulheres em seu modelo da polis governada pela
figura ideal do rei filósofo. [...] Tal sociedade é apresentada como desafio
aos governantes: seu objetivo reside na possibilidade de ampliar e manter a
coesão interna a partir de uma identidade grupal, e não individual. Esta
concepção revela o ponto de vista platônico na elaboração idealista de sua
ética.
10
uma relação de poder estabelecido nas estruturas sociais que precisa de
um novo paradigma, um novo regime alicerçado na verdade, como afirma Focault: “o
problema o é mudar a consciência das pessoas, ou o que elas têm na cabeça,
mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade”.
11
As sociedades que estabelecem uma relação de poder através da liberdade,
mas se essas sociedades não têm a práxis da liberdade são tão caóticas, doentias e
defeituosas. Adorno afirma que “a sociedade que, segundo seu próprio conceito,
gostaria de fundamentar as relações dos homens em liberdade, sem que a liberdade
tenha sido realizada até hoje em suas relações, é tão rígida quanto defeituosa”.
12
A nova ordem social planetária é caracterizada pela equidade entre homens
e mulheres. Esta ordem tem decisivamente a ação direta das práticas engendradas
pelas mulheres, principalmente pelas práticas de mulheres teólogas que influenciam
o pensamento mundial, criando uma nova maneira de se ver a vida e o próprio
mundo.
10
OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues. Para uma crítica da razão androcêntrica: gênero,
homoerotismo e exclusão da Ciência Jurídica. Disponível em:
<http://www.universia.com.br/docente/materia.jsp?materia=8949>. Vários acessos.
11
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1997. p. 14.
12
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 82
15
Estas práticas novas das mulheres nos remetem a uma reflexão das novas
propostas de relação social. Vivemos hoje em uma sociedade centrada na pessoa,
como afirma Boff: “[...] centrada sobre a força nucleadora da pessoa e do equilíbrio
de suas qualidades”.
13
Nesta ótica, a presença de mulheres como sujeito na
construção de novos saberes teológicos possibilita a quebra do silêncio e oportuniza
a inclusão de uma nova relação social norteada no princípio da equidade.
Mártires, viajantes, poetisas, visionárias, pedagogas, místicas, pregadoras,
narradoras, profetisas, fundadoras, rainhas, abadessas, lavadeiras, costureiras,
beatas, etc., legaram um patrimônio de experiências e de testemunhos – a ser ainda
explorado de extrema riqueza e profundidade. O conhecimento de seu
pensamento curaria o desequilíbrio que reinou durante séculos, redimensionando a
presunção dos varões que se consideram os únicos confiáveis intérpretes do mundo
e de Deus e estabelecendo uma novo paradigma: a construção da identidade
subjetiva feminina.
Nota-se que o fio de uma subjetividade cheia de dúvidas atravessa a ironia
feminina em muitos lugares da literatura religiosa. O importante é ter presente que a
Bíblia representa o instrumento principal pelo qual é possível reler criticamente a
tradição e o pensamento teológico numa perspectiva de gênero a partir de
instituições. Para Fiorenza, “a aliança Internacional de Santa Joana fundada em
1911 como uma sociedade sufragista para mulheres católicas começou a trabalhar
pelos direitos femininos dentro da igreja em 1959”.
14
Observa-se um processo de libertação do feminino, em que a busca pela
equidade, respeito, direitos e valorização do ser deve estar também sobre forte
discussão institucional. Por outro lado, há uma busca pela definição de identidade de
gênero, em que a mulher, em função da sociedade sexista, encontra-se alienada,
explorada em sua dignidade humana e isso é opressão que a sociedade legaliza.
Por isso, ela está legada neste momento ao serviço do lar, à procriação e às
vontades do marido. No entanto, é necessário ir além das diferenças sexuais. É
preciso compreender a dimensão humana na e da relação de gênero
13
BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 13.
14
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. Discipulado de iguais: uma ekklesia-logia feminista crítica da
libertação. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 34.
16
Para Ivone Gebara:
O que dizer exatamente do termo GÊNERO? Seria apenas a afirmação do
masculino e do feminino na humanidade? Como esclarecer esta palavra de
origem inglesa (gender) que, para ser, compreendida, exige uma
explicação. [...]. As análises do GÊNERO aparecem no feminismo dos anos
1980, como meio de avaliar a diferença entre os sexos e denunciar o uso de
certos poderes a partir da afirmação da diferença. O GÊNERO é
considerado um importante instrumento para mostrar a inadequação das
diferentes teorias explicativas da desigualdade entre homens e mulheres.
15
As diferenças de gêneros existentes, tendo como pano de fundo as
produções culturais, norteiam a relação do masculino e do feminino. Em outras
palavras, as diferenças são produzidas pela família, igreja, escola e sociedade em
geral, principalmente pela sociedade patriarcal. Logo, a soberania masculina é
perpetuada pela sociedade institucionalizada.
É necessário romper com este paradigma, buscando propostas alterativas
de relacionamentos sociais. Configura-se, nesta perspectiva, um novo quadro social
em que a mulher, quebrando barreiras, atinge um nível qualitativo de produção
intelectual, econômica, religiosa, política, cultural e, consequentemente, social.
Para ir além da dicotomia de gênero, deve-se buscar de fato a proposta
alterativa de convivência social. Nesta proposta, o entendimento é centrado nas
mudanças de mentalidades, ou seja, relações que têm como alicerce um novo ethos
mundial.
Nesta dialética de poder entre masculino e feminino, nota-se uma atitude
firme no tocante à interpretação do texto bíblico, como afirma Stanton:
“Chegou a hora para nós mulheres de ler e interpretar a blia por nós
mesmas”, havia afirmado Mrs. Cutler, em 1854, à Convenção americana
pelos direitos das mulheres em Philadelphia. Ainda, em torno de Virginia
Broughton, foram se formando grupos de mulheres chamados Bible Bands,
aos quais a leitura das Escrituras, freqüentemente ainda ingênua, forneciam
os instrumentos para uma crítica às Igrejas e as motivações em vista de um
envolvimento social mais consciente.
16
15
IVONE, Gebara. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes,
2000. p. 104
16
STANTON apud VALERIO, Adriana. A teologia, o feminino. Estudos Feministas, Florianópolis, v.
13, n. 2, p. 367-376, mai./ago. 2005. p. 369.
17
Busca-se uma capacidade dialógica entre homens e mulheres que vivem em
culturas diferentes. Em face disto, estabelece-se uma hermenêutica diatópica
17
em
que determinada cultura, por mais forte que seja, sempre encontrará fragilidade e
tentará buscar em outra cultura aquilo que lhe falta.
Essa possibilidade assegura o direito de toda a humanidade, mas exige uma
ação concreta, veemente, tenaz e persistente, como afirma Boaventura de Sousa
Santos:
A luta pelos direitos humanos e, em geral, pela defesa e promoção da
dignidade humana não é um mero exercício intelectual, é uma prática que
resulta de uma entrega moral, afectiva e emocional ancorada na
incondicionalidade do inconformismo e da exigência da ação.
18
Nota-se que o feminismo trouxe muitas contribuições para a consolidação do
processo democrático e para o estabelecimento de uma nova ordem social, como
fora dito. Em face disto, Miguel Reale Jr. E Janaína Paschoal afirmam: “o feminismo
contribuiu [...] para o fortalecimento da democracia e para uma maior efetivação
da dignidade humana, [...] a recente alteração do Código Penal, [...] Lei n.
11.106/05”.
19
No entanto, as teorias devem desembocar em uma prática, pois
ainda muita violência contra a mulher.
O percurso hermenêutico, em suas repercussões político-eclesiais, pode ser
reconstruído pela história da hermenêutica de alguns passos que marcaram
fortemente identidade e papéis sexuais. As tentativas de reler a Bíblia para encontrar
nela o fundamento da valorização do universo feminino para seu maior
reconhecimento no âmbito eclesial e social é um fator determinante no processo de
interpretação do texto sagrado, agora lido não mais para justificar a exclusão ou a
subordinação das mulheres. O papel encarnado por Eva na economia da salvação –
criação e queda, embora as feministas tenham superado esse dogma da
economia da salvação e a proibição dada por São Paulo às mulheres da
comunidade de Corinto de se pronunciarem em qualquer caso com palavra de
17
“A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes
que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem”. SANTOS, Boaventura
de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova política. São Paulo: Cortez, 2006. p. 448.
18
SANTOS, 2006, p. 447.
19
REALE JÚNIOR, Miguel; PASCHOAL, Janaína. Mulher e direito penal. Rio de Janeiro: Forense,
2007. p. 305.
18
autoridade constituem os textos fundamentais que inspiraram as estruturas dos
sistemas eclesiásticas e político.
A leitura distorcida de tais textos excluiu o sexo feminino da visibilidade
institucional, relegando-o tão somente ao exercício de papéis subordinados
paralelamente a uma esmagadora tradição hermenêutica. É possível reatar os fios
de uma leitura tênue, talvez, mas constante, feita por algumas mulheres que
souberam colher na palavra bíblica uma ocasião para ganhar força e consciência de
si, graças a novas perguntas postas aos textos que elas julgavam interpretados
erroneamente pela tradição hermenêutica.
Percebe-se que na teologia Bíblica, como fora dito, as entrelinhas dos
textos sagrados revelam uma organização de mulheres, em que a presença da
mulher é muito marcante, por exemplo, no Antigo Testamento: Cânticos dos
Cânticos, lido durante a FESTA DA PÁSCOA; Rute, lido durante a FESTA DE
PENTECOSTES; Coélet (Eclesiastes), lido durante a FESTA DAS TENDAS; Ester,
livro da FESTA DOS PURIM (um tipo de ano novo e carnaval juntos) e o livro de
Lamentações, lido no dia da MEMÓRIA DA DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM.
Nota-se que o Cântico dos Cânticos se alicerça na busca de valores da vida,
do amor, do sexo, do corpo, do encontro da mulher com o homem. No livro de Rute,
a organização das festas tribais dá à mulher um espírito de solidariedade para lutar
contra os poderosos. Entretanto, no livro de Coélet, ou Eclesiastes a mulher lutava
pela sobrevivência. Nesse período, com o avanço do comércio, fora implantado o
sistema de escravidão. Percebe-se que Coélet é um nome feminino em hebraico,
que significa “aquela que está em assembleia”. Porém, o texto foi masculinizado.
A partir da casa da mulher, o discurso passa por três provas em que a
resistência da mulher fora marcante: primeira prova: Tu me dizes, mas eu vejo!
Segunda prova: Qual é a diferença depois da morte? Terceira prova: aqui não tenho
comida. Na casa de Coélet, surge a crítica ao trabalho inútil do escravo.
Percebe-se também que na teologia de Rute, por ser viúva, estrangeira,
moabita, era a pior situação que poderia acontecer. Ainda lutava contra o poder
ideológico do Templo, a partir do qual o povo pensava que tudo o que acontecia de
ruim era castigo de Deus.
19
A teologia de Judite irrompe de seu grito: “Eu vou fazer alguma coisa, cuja
lembrança passará de geração a geração: Javé virá em socorro de seu povo por
minhas mãos” (Jt 8.32-33). Como afirma Gallazzi, a mão de Deus e a mão da
mulher... assim como Deus e Moisés: Eu desci... vai tu! Judite não esqueceu a mais
antiga lição da memória do povo”.
20
No Novo Testamento, outra possibilidade hermenêutica que Fiorenza fez
sobre o texto de 1Co 7.7
21
elucida e aponta algumas questões que esse trecho
elenca, como: matrimônio e celibato, quanto à mudança de condição, matrimônio e
virgindade, casamento misto, circuncisão e incircuncisão, escravo e livre, vida
sem sexo.
22
Paulo escreve respondendo a assuntos sobre os quais os cristãos de
Corinto lhe tinham escrito.
No tocante ao casamento, Paulo orienta: se esse era o estado que alguém
vivia quando se tornou cristã, que continuasse. Pois, é possível viver uma vida cristã
como pessoa casada. Mas, se ocorrer um divórcio, não se deve contrair um novo
casamento, ou fica solteira ou se reconcilia com o marido.
No casamento misto: o parceiro pagão tinha a decisão final sobre o
prosseguimento do casamento. Paulo atribui às esposas o mesmo poder
consagrador concedido tradicionalmente aos maridos.
Para a circuncisão e a incircuncisão: Paulo claramente não aconselha o
antigo judeu ou o antigo gentio a ficar em seu estado judaico ou pagão. Insiste, ao
invés, que o sinal religioso/biológico de iniciação à religião judaica não mais tem
relevância para os cristãos.
A respeito de escravo e livre: o conselho dado por Paulo aos escravos
cristãos é que “se ainda deves viver nos laços da escravidão, sem possibilidade de
ficar livre, mesmo assim fostes chamados à liberdade, não fique inquieto a este
respeito. Contudo, se tens a oportunidade de ficar livre, por todos os meios, usa esta
liberdade e viva de acordo com tua vocação à liberdade”. Tanto os escravos quanto
os nascidos livres são iguais na comunidade cristã, pois eles têm um só senhor.
20
GALLAZZI, Sandro. Por uma terra sem mar, sem templo, sem lágrimas: introdução a uma leitura
militante da Bíblia. Petrópolis: Vozes,1988. p. 97.
21
NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR GREGO-PORTUGUÊS. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2004. p. 629 -634.
22
FIORENZA, 1992, p. 256-262.
20
A opção de Paulo é pela vida sem sexo e estado livre de casamento. Para
os não casados, isto é, os enviuvados, os divorciados e os que se prometeram em
casamento, se o desejo sexual o exigir, eles devem casar-se. Contudo, se de todo o
possível, é melhor não se casar e ficar no estado livre de casamento. Paulo insiste
na igualdade e na mutualidade de relações sexuais entre maridos e mulheres.
Fiorenza apresenta uma situação em que o sexo é opressor, pois em vez de
servir como momento de engrandecimento a ambos, a palavra grega que se refere à
questão é domínio, ou seja, poder em relação ao outro. Paulo aqui se refere à
igualdade de ambos, pois a prática da vida sexual não pode ser encarada como
domínio de um sobre o outro, o que na realidade Paulo ressalta como ponto de
igualdade.
Outro ponto a mencionar seria a situação da discriminação que se entre
as solteiras e as casadas. Ao que parece, as solteiras e as virgens teriam
supremacia sobre as casadas, pois as primeiras cuidariam das coisas do Senhor e
as segundas, das coisas do mundo. uma ruptura entre a posição da mulher
casada e das virgens na comunidade, sendo a casada preocupada com o marido e
com a família e a segunda, pura e consagrada e, por isso, recebe o privilégio da
virgindade. No império romano, as casadas que tivessem três filhos e as libertas que
tivessem quatro filhos saíam da situação de subordinação ao poder patriarcal.
Também as virgens e a mulher do imperador se emancipavam do poder patriarcal.
Logo, o conselho de Paulo para ficar livre dos laços do casamento era uma afronta à
legislação matrimonial e contra os valores culturais da sociedade greco-romana.
Corinto é uma cidade em que a prática da prostituição é, inclusive, religiosa.
Ao que parece, no extremo oposto do “amor livre”, há os que excluem o matrimônio
(1Co 7.1 – não tocar em mulher) e os que excluem as relações sexuais.
Percebe-se que Paulo valoriza a igualdade entre marido e mulher, o dever
mútuo, o acordo mútuo. Ele também propõe o celibato como carisma, não como lei;
e carisma significa dom gratuito de Deus não se trata de proeza do esforço e do
controle humano; embora Jesus louve os que se fazem eunucos por causa do Reino
de Deus, Paulo não o impõe como preceito. Suposto o carisma em 1Co 7.7, entre
dois bens, Paulo considera preferível o celibato, porque o matrimônio, junto com
21
suas alegrias, traz muitas preocupações. Outra razão mais forte é a volta do Senhor
(parusia).
Apesar da lei judaica e seus comentários rabínicos admitirem o divórcio,
Paulo recorre ao mandamento do Senhor de que o matrimônio é uma graça e não
uma imposição da lei.
A vocação cristã não exige como condição prévia a circuncisão judaica nem
ao estado social de cidadão livre. O chamado de Cristo não está vinculado a uma
classe social; ser cristão é de certa forma emancipação, e ser servo de Cristo é uma
honra.
Paulo não pensa no estado de solteiro simplesmente, e sim na virgindade,
ou também viuvez, “consagrada ao Senhor em corpo e alma”. se fala de
consagração da mulher e não do homem. Para Fiorenza, Paulo estabelece um novo
paradigma de igualdade entre homens e mulheres e deixa clara a sua preferência
pelo celibato.
23
No mundo católico, a questão da virgindade e solteirice também adentrou no
universo doutrinal da igreja como fonte de supremacia, uma vez que observa-se que
a mulher, ou até o homem, para dedicar-se ao serviço do Reino, pela pertença à
igreja, deve manter-se na situação de solteira em que se encontrava no momento de
seu chamado.
Ao que parece, o sexo é visto como pecaminoso; como algo impuro que
pode ser permitido durante o casamento como possibilidade de procriação.
Os fundamentos hermenêuticos da leitura feminista não passaram, portanto,
por lugares acadêmicos; caracterizaram-se, antes, pela experiência mística,
sobretudo na Idade Média e Moderna. Hoje deve ser procurada na passagem da
tutela à responsabilidade, naquela tensão irresolvida entre a razão crítica, que as
mulheres adquiriram em relação às suas Igrejas de pertença, e sua indagação
inquieta, a busca por novos modos de redefinir os papéis, e também de viver a fé, a
interrogação sobre um renovado relacionamento com o transcendente; entre os
pedidos provocatórios de equidade e os chamados apaixonados pela diversidade;
entre a atração pela homologação e a necessidade da autossignificação.
23
FIORENZA, 1992, p. 261.
22
Observa-se que o acesso das mulheres às faculdades teológicas permite
hoje a aquisição de instrumentos aptos a redesenhar competências e a reescrever
conteúdos. No entanto, como afirma Fiorenza, “a teologia cristã [...] deve servir e
apoiar a comunidade cristã no caminho de uma liberdade escatológica e do amor”.
24
Portanto, a partir da teologia da mulher pode-se perceber a complexidade da
teologia feminista, analisando a formação teológica a partir dos textos sagrados.
Também percebemos a importância da práxis feminina na perpetuação dos textos
sagrados, na elaboração realizada por elas para o repasse das histórias sagradas,
na resistência e combate ao sistema dominante, mas, acima de tudo, pelo espaço
conquistado por elas e, fundamentalmente, pelas ações engendradas por teólogas
comprometidas com o desenvolvimento social e com a valorização de homens e
mulheres chamados à vocação ontológica não somente pelo ser, mas pela presença
no mundo. Paulo Freire preconizou isso, ao afirmar: “quer dizer, mais do que um ser
no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com
os outros”.
25
24
FIORENZA, 1992, p. 109.
25
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996. p. 18.
2 A REPRESSÃO DOS VALORES FEMININOS NO MUNDO E NA IGREJA
A compreensão dos valores femininos frente aos masculinos é inerente à
história da humanidade.
Pela ótica da antropologia, o ser humano ocupou a Terra em cerca de dois
milhões de anos e a maior parte desse tempo fora vivido nas culturas de coleta e de
caça. Nesses grupos, a mulher teve uma importância muito grande. Como afirma
Helcion Ribeiro: “nesses grupos em que a força física não era tão importante, as
mulheres ocupavam lugar central [...] Nesses grupos, são o princípio feminino e
masculino que governam o mundo”.
26
Quando a sociedade de caça se destaca e exige maior força física, a
superioridade masculina acontece. É relevante a percepção que o homem nas
sociedades de coleta e de caça tem sobre a procriação. Esse homem achava que a
mulher era fecundada por deuses. Logo, a mulher era vista como um ser sagrado
que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir a vida.
Quando o homem toma consciência que participa da fecundação do óvulo e
que esta fecundação se também através do espermatozóide, o cenário modifica-
se e os choques acontecem.
Com o avanço tecnológico, o embate se solidifica ainda mais, pois se a
mulher detém o poder biológico, por outro lado, o homem desenvolve o poder
cultural. No entanto, é importante observar que, apesar dessa diferença, havia uma
espécie de rodízio na liderança, ou seja, as relações entre homens e mulheres eram
norteadas pela hierarquia determinada pelo poder compartilhado.
A partir do período pré-histórico conhecido como neolítico, surge o
casamento. A herança e o poder que o homem tem sobre a mulher se estabelecem.
Com a busca da sobrevivência, surgem as primeiras aldeias, cidades, estados e
impérios. E a condição da mulher? Subjugada, excluída, o casamento passa ser
controlado pelo homem, e a mulher era obrigada a sair virgem das mãos do pai,
26
RIBEIRO, Helcion et al. Mulher e dignidade: dos mitos à libertação. o Paulo: Paulinas, 1989. p.
11.
24
ainda mais com a dependência econômica da mulher, entre outros traumas
causados pelas agressões que a mulher sofre em casa.
Outra percepção que pode ser analisada, para entendermos a evolução do
processo feminista, é a explicação da criação do mundo através da mitologia.
Ribeiro afirma que:
Segundo um mitólogo americano, em seu livro The masks of God: Ocidental
mythology [...] a criação do mundo ocorreu em quatro etapas: na primeira
etapa, o mundo fora criado por uma deusa. Na segunda, o mundo fora
criado por um andrógeno. Na terceira, um deus macho toma o poder de
deusa e cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial e a última etapa,
um deus macho cria o mundo sozinho.
27
Segundo a mitologia, estas etapas são transições entre a etapa matriarcal
da humanidade para a etapa patriarcal. Outra consequência dessas etapas é o
surgimento de grandes deuses, como: Gea, Olimpo, Zeus, Urano, etc.
Também existe o caso do mito Nagô da nação Ketu, que vem a dar origem
ao candomblé. Segundo a tradição da nação Ketu, um grande reino na África, antes
do inicio de tudo, no Orum – o espaço infinito – só existia Olorum, Deus supremo.
Tudo começou quando Olorum se remexeu, espreguiçou-se, criando uma
enorme massa de água. Essa água era Oxalá, o primeiro da grande família dos
Funfun, os orixás do branco. Ele recebeu o poder de sugerir e realizar, de dar vida
às coisas sem vida.
Depois disso, Olorum misturou com a água e respiração, criando a lama.
Continuou a respirar, a soprar, e fez surgir uma bolha nessa lama. Oxalá que olhava
tudo aquilo admirado, aproximou-se da bolha criada por Olorum e a assoprou.
Naquele momento, Exu, o primeiro ser vivo, nasceu.
Olorum criou Odudua e depois mais cento e cinquenta e dois orixás, Funfun.
Chamou o primeiro orixá do universo e disse: “- Vá, Oxalá! Tome o saco da criação e
criar o Aiyê, o mundo!”. Oxalá, pegou o saco da criação e seu cajado de prata, o
apaxorô, chamou os outros orixás Funfun e preparou-se para partir.
Odudua disse que iria mais tarde, pois precisava fazer umas obrigações
recomendadas por Ifá, o sábio adivinho, para ter sucesso na viagem. Oxalá não se
27
RIBEIRO, 1989, p. 13.
25
importou e partiu com os outros orixás. No caminho, porém, encontrou Exu, que se
pôs diante dele e perguntou: “- Sou encarregado de tomar conta dos espaços do
Orum. Fez sua obrigação? Onde estão as oferendas necessárias para a viagem?”.
Oxalá respondeu: “- Não quero lhe dar nada”.
Exu não gostou nem um pouco da atitude de orixá e disse: “- Quero avisar
que você vai ter problemas. E não vai realizar o que pretende!”. Oxalá não ligou,
desviou-se de Exu e seguiu caminho. Então Exu pensou: “- Vou dar uma lição nesse
orixá. Vou fazer a boca dele secar!”.
Oxalá, durante a caminhada, começou a sentir uma sede horrível, que
aumentava a cada passo que dava. Mal conseguiu andar quando avistou uma
palmeira. Não pensou nem um pouco. Rapidamente foi até ela e, com seu opaxorô,
furou o tronco da árvore. Um líquido jorrou, era vinho da palma.
Oxalá bebeu, bebeu tanto que ficou bêbado e adormeceu. Enquanto isso,
Odudua fazia as oferendas recomendadas pelo babalaô Ifá. Deu a Exu cinco
galinhas que tinham cinco dedos em cada pata, cinco pombos, um camaleão, dois
mil elos de correntes e outras coisas mais. Exu ficou com as outras coisas e
devolveu o resto para Odudua. Depois, Odudua conseguiu todo o material
necessário para preparar um dos pratos favoritos do Deus Supremo e foi ao palácio
entregar-lhe a oferenda. Olorum perguntou irritado. “- O que você está fazendo aqui,
Odudua? Por que não foi criar o Aiyê – o mundo – com Oxalá?”. Odudua respondeu:
“- Eu estava preparando esta comida para o senhor, meu pai. O sábio adivinho Ifá
recomendou que eu lhe fizesse esta oferenda, para que nossa tarefa tenha
sucesso”.
Ao ver seu prato de comida favorita, e depois de ouvir a explicação, Olorum
perdoou Odudua pelo atraso. O Deus Supremo preparava-se para comer e se
remexeu no trono. Percebeu que havia esquecido de colocar no saco da existência
que dera a Oxalá um dos ingredientes principais para a criação do Aiyê.
“- Ainda bem que você está aqui, Odudua. Esqueci de dar esta substância a
Oxalá”, disse Olorum, passando às mãos de Odudua um saquinho. “- e entregue
a ele”. Odudua foi. Andou um tempo e encontrou Oxalá desmaiado por causa da
bebida. Os outros orixás não sabiam o que fazer para despertá-lo.
26
Odudua pegou o saco da existência que estava com Oxalá e voltou ao
palácio de Olorum. “- Bêbado!”, exclamou Odudua, mostrando ao Deus Supremo o
saco da criação. É assim que está o orixá que meu pai mandou para criar o mundo!
Então Olorum disse: “- Se Oxalá está bêbado assim, então Odudua, pegue o
saco da criação e vá criar o Aiyê!”. Odudua foi.
Quando chegou ao local indicado pelo Deus Supremo, despejou o que havia
no saco. Era terra. Um grande monte se formou e seu cume ultrapassou a superfície
da água. Odudua colocou as galinhas naquele monte. Elas começaram a ciscar, a
arranhar e a espalhar a terra sobre a água, formando o mundo.
Quando Oxalá acordou soube que Odudua havia criado o mundo. Ficou
desapontado, inconformado e foi se queixar a Olorum.
O Deus Supremo, para consolar o Orixá, deu a ele outra missão, mas
também um castigo: “- Oxalá, Você vai modelar os seres que vão morar no Aiyê, a
terra que Odudua criou. Mas como castigo, fica proibido de beber vinho de palma e
de usar o azeite da palmeira do dendê”.
O Orixá foi para a Terra. Com o barro começou a modelar os peixes, as
aves, as árvores, os homens, todos os seres vivos. Contam, porém, que enquanto
modelava os homens, Oxalá, escondido, bebia vinho de palma. Ficava embriagado e
errava na medida. E por isso, os homens saíram de muitos tipos e tamanhos, e
outros sem cor, pois eles saiam do forno antes da hora e foi assim que aconteceu a
criação do mundo e dos homens na história dos Orixás.
Observa-se que na mitologia os deuses vão tomando o poder das mulheres
e se solidificando com supremacia. E assim acontece também com a Bíblia: o
criador do universo é Deus e com relação à mulher a cria após criar o homem
tirando-a de sua costela.
28
Tempos depois, com a institucionalização da religião, a diferença entre
homem e mulher aumenta cada vez. Logo, o catolicismo e o protestantismo
28
“O Senhor Deus fez com que o homem adormecesse e dormisse um sono muito profundo.
Durante o sono, tirou-lhe uma das costelas, e fez crescer de novo a carne naquele lugar. Da
costela que tinha tirado do homem, o Senhor Deus fez a mulher e apresentou-a ao homem e este
declarou: ‘Desta vez, aqui está alguém feito dos meus próprios ossos e da minha própria carne.
Vai chamar-se mulher; porque foi formada do homem’” (Gn 2.21-23).
27
contribuem para o decisivo fortalecimento e centralização do poder masculino e a
submissão da mulher.
No pentecostalismo, por exemplo, é mais notada esta submissão, pois
fazendo uma interpretação fundamentalista da Bíblia, algumas mulheres se
subjugam, submetem-se, ao poder masculino, pois, para Ribeiro, a mulher é um
perigo para a doutrina do pentecostalismo.
29
Ela deve ser controlada pelo homem
para que não se transforme em um perigo. um controle dos homens sobre as
mulheres nas atividades religiosas.
Hoje, no século XXI, com a urbanização das cidades, com a globalização e
com o avanço tecnológico, nota-se que muitos pensadores percebem a
necessidade de articular adequadamente os valores masculinos e os valores
femininos numa visão antropológica, unitária, integrada e não individualista, cujo
resultado final é a humanização do ser humano.
A consequência desses novos valores é a formação de uma nova relação
entre homem e mulher, como afirma Corrêa-Pinto: “as conseqüências para a
sociedade, para as igrejas, para a família, para a cultura, para a política etc., da
emergência da mulher como sujeito em equivalência com o homem”.
30
A participação das mulheres nas associações comunitárias, nas
comunidades eclesiais de base, nas lutas de classe, sindicatos e na política solidifica
a busca da equidade entre homem e mulher como imagem e semelhança de Deus.
O compromisso ético, da justiça, o resgate do papel da mulher e sua memória
histórica vão se estabelecendo e transformando as relações sociais.
French define muito bem o desfecho final da relação entre homens e
mulheres: as mulheres estão tomando frentes às várias atividades masculinas e
sustentando a esperança de futuras gerações, lutando contra a discriminação
econômica, social, penal, religiosa e sexual.
31
Portanto, as repressões dos valores femininos no mundo e na Igreja
norteiam todos os valores morais e éticos da sociedade que podem ser discutidos,
questionados e analisados com coerência e transformados em reflexão, que
29
RIBEIRO, 1989, p. 63.
30
CORRÊA-PINTO, Maria C. A dimensão política da mulher. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 9
31
FRENCH, Marilyn. A guerra contra as mulheres. São Paulo: Best Seller, 1991.
28
permeiam os debates filosóficos, teológicos, antropológicos, psicológicos,
sociológicos, etc.
Nesta ótica, algumas questões são pertinentes para nortear o processo
reflexivo, tais como: que tipo de sociedade se quer? Como estabelecer uma relação
entre direitos e deveres para homens e mulheres alicerçados em princípios iguais? E
ainda: como as políticas públicas voltadas para a educação podem contribuir para a
formação de homens e mulheres, sujeitos e não objetos, do processo democrático,
da valorização da pessoa humana e do desenvolvimento com justiça social? Todos
têm deveres e direitos sem discriminação de raça, cor, sexo e religião.
3 LEITURA FEMINISTA E AS RELAÇÕES SOCIAIS: UM NOVO TEMPO
INAUGURADO POR JESUS
A leitura feminista do texto sagrado deve ser também entendida dentro das
relações sociais. Existe, na sociedade, uma crise ontológica caracterizada pela falta
de comunicação entre as pessoas, pelas barreiras criadas pelo sistema neoliberal,
pelas relações sociais assimétricas gerando desigualdades gritantes manifestadas
nas formas de dependência ou discriminação social.
Em estado de dependência, o indivíduo perde a capacidade de se indignar,
perde a crítica e a liberdade, tornando-se submisso, inferiorizado, menor, perde a
solidariedade e fraternidade, torna-se insensível, frio, explorador e objeto.
O conflito social pode advir naturalmente das diferenças com que as
pessoas nascem! Se não vejamos: de cor: branca e morena; da raça: branca e
negra; de gênero: homem e mulher; de etnia: indígena e cabocla; de classes sociais:
ricos e pobres; de idade: velhos, adultos, jovens e crianças. Diferenças naturais
podem gerar xenofobia, estranheza e desconforto social.
O problema pode ser induzido e criado conscientemente ou não: pela
ganância leva à exploração econômica (salarial, comercial, etc); por ódio, raiva,
rancor, agressividade; por ciúme, inveja, fofoca, maledicências; por competitividade,
desamor, comodismo por má informação, falta de transparência; e por falta de
tato/jeito e falta de sensibilidade.
A relação social na ótica do evangelho apresenta-se na forma de:
estreitamento das relações, quebra das separações, derrubada de muros e cercas,
aproximação de quem se separou e distanciou e comunhão dos desiguais. Os
fundamentos bíblicos extraídos da Bíblia são: todos somos filhos de Deus. Se
todos filhos/as, todos irmãos/ãs entre si, pois todos com o mesmo Pai! (Rm 8.14-
16); amor irrestrito, porque Deus também ama assim! (Gl 3.26; Ef 2.11-19; Mt
5.43-48; Lc 6.32-36). Em Cristo estamos todos unificados não há mais distinção:
em Cristo somos todos um! (Rm 10.12; 1Co 12.13; Gl 3.28; Cl 3.11). O duplo
mandamento do amor: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Lv 19.18,34; Mc
12.28ss; Mt 22.34ss; Lc 10.25-28; Mt 5.43; 19.19; Rm 13.10; 1Co 13; Gl 5.14; Cl
3.14; Tg 2.8).
30
O mandamento do amor ao próximo provém de Lv 19.18. Aí “próximo”
refere-se ao compatriota judeu. Também em Lv 19.33s, esse mandamento está
estendido para estrangeiros que moram no país judeu. Jesus estende o amor ao
próximo para o amor aos inimigos (Mt 5.44; Lc 6.27s). Aparece já, excepcionalmente
no Antigo Testamento, em Pv 25.21s. O amor aos estrangeiros: parábola do bom
samaritano (Lc 10.25-32) e o amor aos marginalizados (Mc 2.15-17; Lc 7.31-35; Mt
11.16-19).
No entanto, ocorre também nas relações religiosas o problema das relações
sociais, personificadas na jactância/vanglória separam: kau,chsij. Para elucidar
temos o exemplo da parábola do fariseu e do publicano (Lc 18.9-14). O evangelho
de Mateus é ardoroso crítico desse pecado (Mt 6.1-5; 7.15-20,21-23; 23.23ss (por
fora x por dentro). Paulo também é bastante crítico em relação à vanglória: em Rm
2.17-24, a vanglória dos judeus; em Rm 11.17-21, a vanglória dos gentios. A
maneira de acabar coma a vanglória é reconhecer-se como pecador (Rm 3.9-18,27).
Logo, quem quer gloriar-se, glorie-se no Senhor ( 1Co 1.31) ou na cruz de Cristo (Gl
6.14; Ef 2.9).
Maior ou menor cultura religiosa separa teólogos e pessoas leigas (Mt 11.25-
26; 18.6,10; 23.5-11). A hierarquia dos dons/carismas pode separar (Rm 12.3,6;
14.10; 1Co 12.14-30). A maneira de evitar esse pecado é remeter os dons a Deus,
seu doador (Mt 5.16; 1Co 4.7; 12.6,11).
A discriminação religiosa dos gentios é combatida usando a “contraposição”
(Mt 8.11s; 11.20-24) ou remetendo a Deus como criador e redentor de todos (Rm
3.29-30; At 10.28,34). O uso de maior ou menor liberdade frente à lei, hábitos e
costumes divide os crentes em fortes e fracos na fé (Rm 14;15.7; 1Co 8.1-13; 9.1ss).
Jesus propõe o fim dos juízos frios e discriminatórios: “Não julgueis para que não
sejais julgados. Com a medida que julgardes, sereis julgados!” (Mt 7.1; Lc 6.37).
O evangelho implica a implosão da família consanguínea para a geração de
uma nova família de (Mc 3.31-35, 10.28-30). Porém, a obediência a Jesus está
acima da harmonia familiar (Mt 10.34-36; Lc 12.51-53) e acima do amor a pai/mãe
ou filho/filha: “aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim;
e aquele que ama filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10.37);
“se alguém vem após mim e não odeia o seu próprio pai e mãe, sua mulher, filhos,
31
irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14.26); “e sereis
entregues até por vossos pais, parentes, irmãos e amigos” (Lc 21.16).
Por que Jesus é o crítico à “família”? Por que o amor à família”?
Facilmente é excludente, tendendo a ser corporativista – é limitado, é só para os que
pertencem a ela. No fundo, contraria a dimensão includente do amor aos inimigos.
Facilmente é permissivo e compreensivo demais, justamente pelos vínculos de
sangue, raça, etnia e nação que são muito fortes. Ou seja: ele tende a acobertar a
verdade, a omitir a crítica. Por isso, a verdadeira “família” de Jesus é aquela que
cumpre a vontade de Deus (Mc 3.35).
O verdadeiro discípulo/a é aquele/a que está apegado à vontade de Deus e
de Jesus acima de quaisquer laços familiares, seja da família política
(partidos/ideologias), religiosa (igrejas), étnica/racial (negra/indígena/ alemã),
teológica (de centro, de esquerda, de direita; evangelical; Teologia da Libertação;
carismática ou outra). Seu apego maior a Cristo mostra-se quando ele/ela não omite
a verdade, mesmo que doa, nem silencia a crítica nas próprias fileiras. A propósito, a
implosão da família social os associa a Jesus (Mc 2.15-17; Lc 18.9ss; Lc 7.34: Jesus
amigo de publicanos e pecadores!).
Jesus ofereceu às mulheres relações sociais bem contrárias às do
patriarcado. Ele enaltece mulheres meretrizes (Mt 21.31); Jesus enaltece mulheres
pobres (Lc 21.1-4); Ele as defende em ocasiões em que são acusadas (Mc 14.3ss);
Ele cura vários de seus entes queridos (Lc 7.11-19); Ele lhes acesso ao saber
religioso (Lc 10.38-42); Ele lhes acesso ao discipulado (Mc 15.40s) e Ele aceita
sustento de várias mulheres (Lc 8.1-3). No entanto, nota-se que os rabinos não se
faziam acompanhar por mulheres. Outra crítica ao patriarcado também pode estar
contida em Mc 10.28-30:
Então, Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te
seguimos. Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém que tenha
deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por
amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, no presente, o
cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com
perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna.
Após a leitura do contexto social, é necessário estabelecermos uma
diferença entre leitura feminista de leitura feminina da Bíblia. A leitura feminista
32
inspira-se no “feminismo”, um movimento que preconiza a ampliação legal dos
direitos civis, políticos, econômicos, etc., da mulher, ou a equiparação de seus
direitos aos dos homens. Essa leitura pode tanto ser realizada por mulheres quanto
por homens.
O feminismo compreende mais que a mera luta pela igualdade de direitos
(direito ao salário justo, ao emprego, ao planejamento familiar, etc.). Segundo
Halkes, implica:
processo psicológico na direção de uma libertação radical da mulher,
exterior e interiormente; processo sócio-econômico, implicando análises
profundas das determinações sociais e econômicas responsáveis pela
opressão e inferiorizarão da mulher; Processo cultural. Ele é contrário a
uma cultura exclusivamente masculina, ao “machismo” (o “macho” é o que
manda o forte, o que decide etc.).
32
Aos itens de Halkes, tem sido acrescentado o processo político, em que
mulheres com homens atuam em várias frentes sociais e políticas por um mundo
mais justo e fraterno, luta que visa não a transformação das relações de gênero,
mas de toda espécie. Por essa razão, o feminismo implica libertação de mulher e
homem!
Schottroff dá outras definições de feminismo:
Refere-se a movimentos modernos de mulheres que procuram se libertar da
pré-dominação jurídica e econômica de pais”, mas também da tutela
psíquica e ideológica de homens. Diz D. Sölle: Feminismo é a saída de
mulheres da tutela e incapacidade impostas por outros e causadas por elas
mesmas.
33
Ciência feminista é o fazer científico de mulheres que não perdem de vista
o objetivo (ético-pragmático) de cada mulher tornar-se um sujeito. Leitura feminina é
a leitura na ótica da mulher realizada por mulheres. A leitura feminina não pressupõe
o homem (sexo masculino) como parceiro interpretativo. A expressão é mais aceita
do que a anterior nas igrejas, mas limita a abrangência da leitura na ótica da mulher
às mulheres.
32
HALKES, Catharina J. M. Perspectiva da teologia feminista. In: EICHER, Peter. Dicionário de
conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993.
33
SCHOTTROFF, 2008, p. 39.
33
A Leitura feminista por visar a libertação da mulher, é sensível a todas as
demais leituras engajadas nas diferentes libertações de explorações e
discriminações históricas. Por isso, ela combate o antijudaísmo na blia e é
parceira da teologia da libertação.
34
Ela também defende as lutas pelo direito de
opção sexual, pela igualdade de raças, pela liberdade religiosa, etc.
Quais são os fundamentos hermenêuticos dessa leitura? E quais as
experiências e as lutas das mulheres? A categoria hermenêutica usada é a das
relações de gênero. O pressuposto é que os atributos, funções, reações e
comportamentos atribuídos a mulheres e homens são construções sociais históricas,
condicionadas cultural, política, social e economicamente. Pergunta-se: tais papéis e
valores distintos atribuídos a mulheres e homens têm respaldo na revelação de
Deus, em especial na vontade divina revelada por Jesus?
A Bíblia foi escrita em uma época em que vingava o sistema patriarcal. O
patriarcado descrimina e oprime as mulheres.
35
Os que leem a Bíblia, sem nenhum espírito pré-concebido e, principalmente,
sem se apegar aos dogmas teológicos do passado, verão que nela a figura da
mulher é sempre de inferioridade em relação ao homem. É óbvio que debitamos isso
aos homens, portanto, nada de ser a vontade de Deus.
Por ser, naquele tempo, uma sociedade extremamente machista, ou ao
menos muito mais que a atual, a mulher está retratada, no livro sagrado, sempre
como uma personagem inexpressiva. Refletindo apenas a fatores culturais de um
povo, ou talvez amesmo de toda uma época, em que o machismo era o fator que
preponderava nas relações entre homens e mulheres
Nota-se que nos trechos bíblicos existem várias passagens que evidenciam
a superioridade masculina, como, por exemplo, no Antigo Testamento, em alguns
livros, tais como Deuteronômio e Eclesiastes, a mulher é colocada como objeto,
como mercadoria, como um ser que não tem sentimentos, subjugada, alienada,
portanto, excluída.
34
SCHOTTROFF, 2008, p. 56.
35
SCHOTTROFF, 2008, p. 50-54.
34
Esse processo de exclusão que se através do patriarcado tem duas
funções essenciais: a dominação do pai e a dominação do marido, ou seja, as
relações de geração e de gênero. Para Therborn, o papel do pai na lei romana é de
soberania total e se solidificava em três poderes básicos: potestas, incluindo o
direito de vida e de morte que o pai tinha sobre o filho durante toda sua vida;
manus, poder exercido sobre sua mulher; e dominium, poder exercido sobre sua
propriedade.
36
Diante da lei romana, a situação da mulher fica marcada por uma submissão
total ao homem, principalmente no casamento, como afirma Therborn:
Com relação às relações entre marido e mulher, os principais aspectos são:
a presença ou ausência da assimetria sexual institucionalizada, tal como na
poliginia e nas regras diferenciais para o adultério; a hierarquia de poder
marital, expressa pelas normas de chefia marital e de representação
familiar; e a heteronomia, ou seja, o dever de obediência da mulher e o
controle do marido sobre sua mobilidade, suas decisões e seu trabalho.
37
Os homens, sendo iguais diante da lei de Deus, devem -lo, igualmente,
diante da lei dos homens, pois este é o princípio de justiça: “Não façais aos outros o
que não quereríeis que vos fizessem”. Logo, uma legislação, para ser perfeitamente
justa, deve consagrar a igualdade dos direitos entre o homem e a mulher. É preciso
que cada um esteja colocado em seu lugar.
O patriarcado também se relaciona com a religião e com outros poderes
existentes em determinadas sociedade. Para elucidar Therborn, afirma:
Em algumas sociedades, particularmente nas africanas, mas, em princípio,
também na China imperial, o poder patriarcal era o poder supremo e
elaboraram-se práticas religiosas para a veneração dos ancestrais e para o
contato com seus espíritos. [...] O patriarcado está explicitamente
subordinado à autoridade da Igreja ou aos rituais religiosos
institucionalizados perante Deus e, em adição, ou alternativamente ou ao
Estado.
38
Neste contexto, a compreensão sobre o patriarcalismo no cristianismo
primitivo evoca duas vertentes na discussão de igualdades entre os fiéis: uma
36
THERBORN, Göran. Sexo e poder. São Paulo: Contexto, 2006. p. 30.
37
THERBORN, 2006, p. 30.
38
THERBORN, 2006, p. 31-32.
35
corrente que luta pela igualdade religiosa de todos os membros da ekklesia e outra
que luta pela superioridade espiritual dos apóstolos e outros ministros da ekklesia.
No entanto, a ekklesia deve torna-se um espaço em que são gestados
sujeitos capazes de redefinir e estabelecer um novo paradigma democrático,
assegurando o direto a todos como afirma Ströher:
A ekklesia se estabelece como um acontecimento político, ordinário, que
seguia determinadas regras, dentro de certos limites delimitações e de um
espaço definido. Era a assembléia plenária dos cidadãos considerados de
pleno direito, na qual tomavam as decisões fundamentais da cidade, tanto
as jurídicas como as políticas.
39
A lei humana, para ser equitativa, deve consagrar a igualdade dos direitos
entre o homem e a mulher, como já fora dito, pois todo privilégio concedido a um, ou
a outro, é contrário à justiça. Logo, na ekklesia, todos os fiéis podem e devem
participar intensamente, pois todos são chamados ao evangelho, como elucida
Ströher:
O termo ekklesia evoca a tradição da assembléia dos santos da
comunidade israelita diante de Javé e a assembléia dos cidadãos livres das
cidades gregas. A apropriação do termo, no entanto, se faz de uma forma
nova: não somente homens e cidadãos livres fazem parte da ekklesia, mas
todas as pessoas chamadas ao Evangelho. E esse chamado é uma
convocação aberta a todas pessoas, quer sejam mulheres, crianças,
homens, escravas, libertas ou livres.
40
Diante do exposto, a leitura feminista quer saber: o sistema patriarcal
influenciou tradições bíblicas? Autores bíblicos introjetaram esse sistema e o
repassaram nos textos?
O pressuposto da leitura feminista é: o Deus libertador do povo oprimido
desde o Êxodo não combina com opressão e discriminação das mulheres.
41
Logo,
textos discriminatórios das mulheres devem ser submetidos à crítica teológica. Por
outro lado, para defender igualdade de direitos e oportunidades às mulheres, a
crítica teológica faz com que a Bíblia apresente uma face ambivalente: certos textos
representam opressão; outros libertação e igualdade entre homens e mulheres. A
39
STRÖHER, 1998, p. 17.
40
STRÖHER, 1998, p. 26.
41
SCHOTTROFF, 2008, p. 46-49.
36
Bíblia, consequentemente, é também usada tanto para perpetuar opressão e
privilégios de homens como para garantir a equidade de gênero.
A tarefa da leitura feminista em relação às tradições e textos bíblicos é: VER
- identificar a sua natureza exata quanto ao que contêm de elementos relacionados
com mulheres e homens; JULGAR - criticar o anti-evangélico que se encontra nelas;
e JULGAR - destilar o libertador e igualitário em seu conteúdo.
A leitura feminista aplica essa criteriologia não em relação aos textos
canônicos. Ela verifica o mesmo processo no transcorrer da cópia dos manuscritos
(Crítica Textual: Priscila e Áquila); na seleção dos livros canônicos e nos critérios de
exclusão da literatura restantes; nas traduções bíblicas em uso (diakono,j); e na
história da interpretação dos textos, observando a tendência progressista ou
conservadora dos/as diferentes intérpretes.
Como o patriarcalismo tende a oprimir e discriminar as mulheres
(inferiorizando-as, omitindo-as, desconsiderando-as), a leitura feminista também
procura resgatar a identidade, a participação e a função exercidas pelas mulheres
diretamente mencionadas na Bíblia (dos 1426 nomes da Bíblia, somente 111 são de
mulheres).
Para o bom desempenho dessas tarefas, a leitura feminista serve-se de
várias “hermenêuticas”, de vários passos ou critérios interpretativos. Entre os
principais, constam: Suspeitar/Desconstruir a leitura dos textos bíblicos é feita
sob a suspeita de eles poderem estar influenciados e direcionados por interesses
patriarcais. Estes devem ser identificados e avaliados criticamente.
Recuperar/reconstruir conteúdos contrários ao patriarcalismo e igualitários. A
recriação imaginativa é aplicada sobre personagens e fatos, dos quais se tem
pouca informação. Os personagens escrevem “cartas”, “dirigem apelos” a
comunidades, etc., e a avaliação ética e teológica dos textos. Esta vai implicar em
algo assim como determinação de um “cânon dentro do cânon”. A Bíblia acaba
interpretando e “criticando” a si própria. A autoridade da Bíblia e de seus textos
literários passa pelo critério/crivo da prática libertadora de Deus e de Jesus.
A leitura feminista é muito sensível à descriminação ou repressão da
sexualidade em suas múltiplas expressões, parcialmente porque partes da Bíblia ou
intérpretes dessas partes tendenciosamente vinculam mulheres com pecados na
37
área da sexualidade. A leitura feminista procura valorizar o corporal e a sexualidade
positivamente como boa criação de Deus.
A metodologia aplicada pela leitura feminista nos textos sagrados tem
algumas questões norteadoras para argüir um texto, como por exemplo: Como se
dão no texto as relações de gênero? Quais são as relações invisíveis? Como se
encontra construída a identidade das mulheres e dos homens? Que atributos
recebem as mulheres e os homens? Quais são os estereótipos sobre as funções
das mulheres e dos homens? Como o texto afirma ou nega a vida das mulheres?
Quais papéis são exercidos pelas mulheres no texto? Como se legitima o
patriarcado no texto? Como se subverte o patriarcado no texto?
Que mulheres têm
voz no relato e quais são silenciadas? Que percepções desumanizantes e
humanizantes da mulher refletem o texto?
É possível que as vozes contra as mulheres no texto reflitam, em verdade,
uma prática libertária contrária em andamento no contexto pressuposto? Como
estava organizada a família na época, o matrimônio, o divórcio, a herança, etc.?
Como é percebido e avaliado o corpo da mulher e a sexualidade?
Como o texto comunica e articula os valores do patriarcado, ou: que sinais
de patriarcalização aparecem no texto? Que vozes ou práticas dissidentes
questionam o patriarcado no texto? O texto faz uso de linguagem androcêntrica?
Que sinais de relações igualitárias apresentam o texto?
Para analisar a ideologia patriarcal na Bíblia e literatura contemporânea, é
necessária a definição de Schottroff sobre o patriarcado: é um termo político desde
Aristóteles e referem-se ao domínio concreto do pater famílias (homem) sobre sua
casa (oikia)”,
42
isto é, não somente sobre sua família propriamente dita (esposa,
filhos e filhas), mas também sobre seus assalariados e escravos e escravas.
A implicação é a restrição da capacidade legal e política ao pater familias, ou
seja, a caracterização de todo o organismo do estado no sentido de patri-arcado.
(arch = princípio, poder, força). Logo, essa relação preconiza: “o termo é apropriado
para designar, de modo geral, “o domínio de pais”, com seus efeitos concretos de
42
SCHOTTROFF, 2008, p. 50.
38
dependência jurídica, política e econômica de mulheres, crianças e pessoas não-
livres”.
43
Se o patriarcado minimiza, inferioriza mulheres e destaca os homens, Jesus
apresenta uma nova proposta libertadora exaltando, elogiando e destacando várias
mulheres: prostitutas/meretrizes (Mt 21.31, em que a contraposição entre prostitutas
e justos fariseus é fato inédito na Bíblia); pecadoras (Lc 7.44-46, em contraposição a
fariseus); estrangeira, siro-fenícia (Mc 7.29; Mt 15.28); a mulher que ungiu Jesus (Mc
14.6; Mt 26.10); a mulher hemorroíssa (Mc 5. 34); e a viúva pobre (Mc 12.41-44).
A exaltação de Jesus tem como característica dar-se em meio ao repúdio ou
crítica de fariseus (Lc 7.40), discípulos (Mt 26.8; Mc 14.4) e dele próprio (Mc 7.27; Mt
15.23; Mc 5.31) em relação às mulheres! Ou seja: os textos mostram que Jesus
respeita e endossa iniciativas de participação e busca por salvação das mulheres.
Elas necessitam conquistar seu espaço e Jesus não coloca entraves a esse
processo (cf. iniciativas semelhantes em Mc 5.27s; Mc 10.13ss ).
Jesus iguala mulheres e homens diante do pecado (Jo 8.1ss) e diante da
necessidade de se praticar a vontade de Deus (Mc 3.31-35; Lc 11.27-28). Jesus é
sensível a pedidos por cura de terceiros, realizados por mulheres (Mc 7.31ss; Lc
7.11-17) Ele cura várias mulheres: hemorroíssa, filha de Jairo, mulher encurvada,
sogra de Pedro. Jesus oferece seu perdão a mulheres: à mulher adúltera, à
pecadora.
Jesus aceitava a companhia pública de várias mulheres em seu ministério, e
elas o seguiam e serviam (Mc 15.40-41; Lc 8.1-3). Em relação a isso, ele fere
convenções sociais (cf. Jo 4.27) e difere dos rabinos, que não admitiam a
companhia de mulheres como discípulas. O emprego do verbo akolouqe,w nesse
contexto poderia sugerir um discipulado (cf. Mc 1.18).
Também o verbo empregado, diakone,w, pode ter sentido abrangente (Mc
10.45), não precisando indicar serviço de cozinha. Jesus dava às mulheres acesso
ao saber e à “catequese” (Lc 10.38-42). Tamm esse aspecto poderia falar em
favor de que as mulheres eram discípulas e, dessa forma, participavam dos envios
missionários efetuados por Jesus.
43
SCHOTTROFF, 2008, p. 50.
39
As práticas libertadoras de Jesus destacam-se no Evangelho de João. No
quarto capítulo, a samaritana recebe a auto-identificação de Jesus como Messias e
passa a testemunhá-lo, convertendo fiéis. No capítulo 11, Marta (não Pedro)
confessa que Jesus é o Messias (= Cristo). A insistência da siro-fenícia, provoca o
assentimento de Jesus (Mc 7.31ss), semelhante à Parábola do Juiz Iníquo que
atende ao pedido da viúva que insistiu até ser atendida (Lc 18.1-8).
Jesus admitia o seguimento público de mulheres, de forma contrária aos
rabinos, sendo socialmente discriminado. Jesus, ao mesmo tempo, permitia a
instrução/catequese de mulheres (Lc 10.38ss), prática também contrária ao modelo
vigente.
Por outro lado, Jesus opta também por uma prática libertadora para os
homens, em especial para os dozes apóstolos. Essa opção de Jesus talvez se
explique melhor pela natureza, força e difusão do símbolo das doze tribos, vinculado
a doze homens no Antigo Testamento. O mbolo feminino teria tido aceitação?
Quem foi a primeira testemunha da ressurreição de Jesus?
quadro diferenciado
nos textos:
Maria Madalena (Mt 28.9s; Mc 16.9-11; Jo 20.11ss); discípulos de
Emaús (Lc 24.13ss); ou Pedro (Lc 24.34; 1Co 15.3ss.
Considerando-se que o testemunho da mulher tinha pouca validade jurídica,
com que razões se colocaria Maria Madalena secundariamente como testemunha
primeira da ressurreição? Jesus rompe com o paradigma patriarcal. Vários de seus
posicionamentos e ditos mostram que ele o era exatamente um mantenedor e
conservador da ordem patriarcal. A começar pela família, Jesus pode, antes, ser
considerado como desestabilizador dessa ordem.
Na diaconia de Jesus, existe uma possibilidade que a sociedade excluída
passou a vislumbrar. Em outras palavras, em Jesus uma luz libertadora, uma
salvação.
O contexto em que vivia a mulher na época de Jesus era muito tenebroso: a
começar pela legislação matrimonial, pelas prescrições à riqueza, pelo templo, pelo
40
fato de ser uma pessoa pobre. Por isso, quando uma voz feminina ecoa, um grito de
libertação inaugura-se um tempo novo.
44
Textos bíblicos como 1Co 14.33-36 e 1Tm 2.11-15 parecem sugerir que a
mulher não deve participar na catequese (ensino) e deve aprender em silêncio.
Pergunta-se: essa prática restritiva a mulheres é respaldada pela prática das
primeiras comunidades, ou deve ser considerada como “desvio”, “deturpação” de
uma prática originalmente mais igualitária?
uma participação de mulheres no cristianismo emergente, razão
teológica fundamental para considerar-se manifestações do tipo de 1Tm 2.11-15
como teologicamente inaceitáveis: essa razão é fornecida pela pneumatologia. A
pneumatologia diz que o Espírito foi derramado sobre todos/as (At 2.17-18) e que
ele distribui os dons “como lhe apraz” (1Co 12.11,18). Pretender, pois, que o Espírito
não possa escolher mulheres como apóstolas, mestres, evangelistas, etc., mas
homens, é restringir a liberdade do Espírito na distribuição dos dons.
De fato, ao contrário de textos que restringem a participação das mulheres
na missão cristã, vários textos diferentes que comprovam sua cooperação
primitiva, com desempenho de funções iguais ou semelhantes a dos ministros
homens, de forma ativa e ampla na missão cristã. Entre esses textos e indícios
destacam-se: Rm 16.1: Paulo recomenda a Febe, que é dia,konoj na igreja de
Cencréia. As traduções dão: “que é diaconisa”, “que está servindo”, etc.
Dia,konoj é termo que, relacionado a Paulo e a seu ministério apostólico,
é comumente traduzido por “ministro” (2Co 3.6; 6.4; 11.13-15; como referência ao
trabalho apostólico, também (1Co 3.5,9). Febe não seria também um “ministro” a
serviço do Evangelho? Febe é caracterizada como Prosta,tij de Paulo e de
muitos (Rm 16.3). Almeida traduz como “protetora”. O termo vem de proi,sthmi:
estar/colocar-se a frente de, presidir, dirigir. É assim que proista,menoi é
empregado aos que “presidem” nas comunidades em 1Ts 5.12 e em relação aos
bispos, diáconos e presbíteros que “presidem” as comunidades em 1Tm 3.4s e 5.17.
Portanto, Febe orientava, presidia e dirigia as comunidades, como um patrono dirigia
as associações religiosas da antiguidade.
44
GAEDE Neto, Rodolfo. A diaconia de Jesus: uma contribuição para a fundamentação teológica da
diaconia da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 163-187.
41
Kopia,w significa “afadigar-se”, “trabalhar muito”. É dito do trabalho de
Maria (Rm 16.6) e de Trifena, Trifosa e Pérside (Rm 16.12). Que trabalho era esse?
O termo é praticamente termus technicus para a atividade apostólica de Paulo (1Co
15.10; Fp 2.16; Gl 4.11; Cl 1.29). A suspeita é, pois, que essas mulheres não
realizavam trabalhos ordinários, mas ligados à difusão do Evangelho. Elas podem
ter sido também ministras da Palavra!
A participação de mulheres no cristianismo emergente é notadamente
marcada pela participação efetiva de Priscila e Áquila, ambos são colaboradores de
Paulo: sunergoi, (Cf. Rm 16.3-4) designa (1Co 3.5,9: dia,konoi) pessoas a
serviço de Deus, que levam outras à fé. Priscila, com Áquila, também expõe a Apolo,
“com mais exatidão”, o caminho de Deus (At 18.26). Ela tinha, portanto, funções
evangelizadoras e de mestra. Sua importância transparece pelo fato de ser
mencionada antes de Áquila em At 18.18,26 e em 2Tm 4.19 (depois de Áquila, em
At 18.2; 1Co 16.19).
Outras mulheres aparecem como apóstolas.
Menção explícita a apóstolas
45
temos em Rm 16.7: Júnia! “Saudai a Andrônico e a Júnias… notáveis entre os
apóstolos… e estavam em Cristo antes de mim”. Argumentos contrários a um
apostolado de Júnias afirmam que não se trata de uma mulher, mas o nome deriva-
se de um masculino: Junianus. “Notáveis entre os apóstolos” pode ser entendido
como “entre os apóstolos existentes”.
Segundo Fp 4.2-3, também Evódia e Síntique se “esforçaram” com Paulo na
divulgação do Evangelho. Também aqui é provável uma participação ativa na
atividade missionária.
Em relação à ação de mulheres como profetisas, há textos que textos
fornecem evidências diretas de que mulheres exerciam publicamente o dom da
profecia: as filhas de Filipe (At 2.17; 21.9) e mulheres de Corinto (1Co 11.4,7). De
forma paradoxal, 1Co 11.4 contraria frontalmente um entendimento generalizante de
1Tm 2.11-15.
Os indícios favorecem um entendimento muito concreto da “nova criatura”
formada por Cristo: “não mais macho e mea” (Gl 3.26-28). Todos são “um” em
45
Apóstolas: pessoas que tiveram revelação direta de Jesus e foram enviadas para a missão.
42
Cristo! Essa explosiva novidade reaparece em vários textos (Rm 10.12; 1Co 12.13;
7.19; Gl 3.28; 5.6; 6.15; Ef 3.11). O cristianismo primitivo confirma a liberdade do
Espírito de conceder dons como lhe apraz.
Textos ambivalentes ou contrários a esse igualitarismo e participação de
mulheres na evangelização primitiva devem ser analisados quanto à sua intenção
situacional: podem representar retrocesso, cautela, prudência, introjeção de valores
patriarcais ou outros fatores.
três coisas que surpreendem: talvez tenha sido uma mulher a primeira
testemunha da ressurreição (Jo 20.11ss; Mc 16.9 diferentemente de 1Co 15.5);
Mulheres transgridem regras normais de contato com Jesus (Mc 5; 7.34ss; Mt
15.21ss); a história do seguimento de Jesus por várias mulheres se perdeu (Mc
15.40s).
Entre as estratégias usadas por Jesus para defender as mulheres contam:
dar formação, acesso ao saber, espaço para atuação, acesso ao discipulado,
valorizar através de elogios e defender quando acusadas.
Após a ressurreição, há
profetisas (At 21.9; 1Co 11.5; Rm 16.7) e apóstolas. Em Gl 3.28 e Cl 3.11, a
declaração da nulidade valorativa das diferenças entre homem e mulher “em Cristo”.
A inserção social que Jesus proporciona à sogra de Pedro personifica os
excluídos socialmente que encontram em Jesus uma possibilidade de inclusão. O
evangelho de Marcos elucida os fatos:
29
Kai. euvqu.j evk th/j sunagwgh/j evxelqo,ntej h=lqon
eivj th.n oivki,an Si,mwnoj kai. VAndre,ou meta.
VIakw,bou kai. VIwa,nnouÅ
30
h` de. penqera. Si,mwnoj
kate,keito pure,ssousa( kai. euvqu.j le,gousin auvtw/|
peri. auvth/jÅ
31
kai. proselqw.n h;geiren auvth.n
krath,saj th/j ceiro,j\ kai. avfh/ken auvth.n o`
pureto,j( kai. dihko,nei auvtoi/j (Mc 1.29-31).
46
Nota-se que este fato narrado nos evangelhos de Marcos e de Lucas. Jesus
viu a sogra de Pedro, mas uma intervenção comunitária. “PEDIRAM”. O gesto de
Jesus: “levanta-te”, preconiza a inserção na comunidade. Logo, a resposta será:
46
“E logo ao sair da sinagoga, foi à casa de Simão e de André, com Tiago e João. A sogra de Simão
de cama com febre, e eles imediatamente o mencionaram a Jesus. Aproximando-se, ele a tomou
pela mão e a fez levantar-se. A febre a deixou e ela se pôs a servi-los”.
43
“SERVI-LO”. Em face disto, Jesus apresenta um novo projeto de libertação
principalmente da pessoas marginalizadas socialmente.
E, por fim, a participação das mulheres nos ministérios da Igreja tem como
fundamento último o fato de Deus conceder gratuitamente dons para todas pessoas
segundo lhe apraz (1Co 12.4-11).
O evangelho representa o respeito pelo
semelhante, logo, o fim da fofoca (Tg 3.1ss).
4 A RESISTÊNCIA DA MULHER A PARTIR DO OIKOS
A relação existente entre casa e a religião é a chave para uma hermenêutica
de resistência. A casa é fundamental para a experiência do sagrado, é o lugar do
encontro, o oikos sagrado, como afirma Ströher:
Religião e casa tinham uma relação intrínseca desde o começo da vida
sedentária e da formação das cidades. Cultos domésticos estiveram
presentes no período de formação da religião grega e romana [...] os cultos
e rituais domésticos eram um dever do pater familias. Toda casa de grego
ou romano tinha um altar com o fogo sagrado, chamado lar, que
representava a divindade da família.
47
É na casa que a família se reúne para se relacionar com o transcendente.
Na casa celebração da vida em sua plenitude: trabalho, oração, juízo de valor,
casamento, procriação, etc. O oikos é um espaço de aconchego e santidade é um
porto seguro. Como afirma Cícero:
O que é mais santo, o que faz de mais seguro por qualquer religião do que
a casa de cada cidadão? estão os altares; a lareira, os deuses
domésticos, o sagrado, o religioso, junto com as cerimônias. Este refúgio
é, assim, tão sagrado para todos, que ninguém tem o direito de profaná-lo.
48
No oikos havia um lugar para o fogo simbolizando a presença do sagrado.
Logo, o dono do lar tinha a responsabilidade de prover e de não deixar apagar o
fogo e a mulher tinha a responsabilidade de zelar pelo fogo.
Percebe-se um processo de funcionalidade hierárquica entre homem e
mulher, pois o pai e somente o pai pode ter seu lar. A mulher, mesmo cumprindo
suas obrigações, não pode ter um lar. Como afirma Ströher: “a mulher participa dos
atos religiosos da casa, mas ela não é senhora do lar. [...] Se não tinha um lar
também não tinha autoridade na casa”.
49
Nota-se que a religião também define outras relações de poder: a situação
de filhos, casamento, escravos e propriedades. Em face disto, o pai recebe total
poder legado pelo poder religioso que exerce sobre a família. Em outras palavras, o
pai é genitor e é também chefe da família, como afirma Ströher:
47
STRÖHER, 1998, p. 27.
48
VINCENT, Branick. A igreja doméstica nos escritos da Paulo. São Paulo: Paulus, 1994. p. 43.
49
STRÖHER, 1998, p. 29.
45
A palavra pater familias [...] pelo uso comum tornou-se palavra chave para
definir o pai não somente como o genitor, mas também como o chefe de
família com todas as suas prerrogativas religiosas e jurídicas da sociedade
patriarcal.
50
A relação entre oikos e polis presente na sociedade grega deixa claro que a
mulher não era considerada uma cidadã, seu dever era de submeter-se ao poder
constituído do marido. Socialmente, as mulheres gregas não participavam da vida
pública, como elucida Ströher: “as gregas não participavam de festas banquetes
públicos, que eram reservados aos homens a não ser como prostitutas e
hetaerae”.
51
O processo de resistência da mulher a partir do oikos tem como ponto de
partida a atuação de Demétrio de Falero que introduziu as ideias de Aristóteles no
pensamento Grego e o helenismo provocando uma possibilidade de discussão sobre
a atuação da mulher, influenciando inclusive a vida econômica da época.
52
A concepção de oikos muda a partir de então. As mulheres passam a ter um
domínio, ter controle sobre as situações que ocorrem dentro do oikos. Nota-se as
participações de mulheres jovens nos cultos públicos, nas celebrações aos deuses,
exercendo função de sacerdotisas, etc.
A estrutura social, econômica e política do mundo greco-romano perpassam
fundamentalmente pelo oikos. Para Ströher,
O termo oikoj oikos – desde os tempos de Homero é usado para
designar a casa [...] Com o desenvolvimento das cidades o oikos passa a
jogar também um papel político importante: a casa passa a ser somente a
base, mas também o modelo da vida social, econômica e política.
53
Nesta ótica, Platão pensou em uma sociedade em que a mulher pudesse
participar da governabilidade do oikos e da cidade. Para Filon e Josefo, havia uma
correlação entre poder do oikos e da cidade que deveria ser discutida.
54
50
STRÖHER, 1998, p. 31.
51
STRÖHER, 1998, p. 33.
52
STRÖHER, 1998, p. 32-33.
53
STRÖHER, 1998, p. 47.
54
STRÖHER, 1998, p. 49.
46
Sabe-se que o sentido da palavra oikos era entendido como casa para os
judeus, gregos, romanos, egípcios e para os povos da Ásia Menor. O oikos é o lugar
da manifestação da comunhão entre os membros da família.
Para o Novo Testamento, o oikos é o ponto de partida para a missão de
Jesus, seus ensinamentos e seus atos, desenvolvendo os núcleos familiares e a
diaconia. Nota-se que a família é o centro da missão da Igreja no primeiro século,
como afirma Ströher: “a família torna-se célula e unidade básica da missão e da
igreja cristã no século I”.
55
Nesta perspectiva, no evangelho de Marcos uma relação íntima entre a
comunidade e a casa, em cujo interior se celebra o culto. A casa também é o local
de formação. Em outras palavras, é o local de acolhimento e pregação para os
irmãos e as irmãs.
56
Diante do contexto social, entende-se que é impossível descontextualizar a
relação existente entre os membros das famílias e sua atuação no cotidiano. Pois,
busca-se uma harmonia, baseada em relações familiares ou relações grupais. Nota-
se uma consciência planetária, igualitária, a partir da qual todos partilham, não
havendo necessitados. Assim, os casamentos vão servindo de base para a
construção de uma sociedade baseada em princípios que são marcados pelo
processo cultural e os valores são internalizados a partir da troca de experiências
entre gerações.
57
Jesus apresenta um projeto novo a ser seguido, construído coletivamente.
Nesta ótica, o chamado feito aos discípulos deve ser respondido com uma
radicalidade extrema: o vocacionado é convidado a abandonar sua família. Em
outras palavras, abrir mão de sua família para formar uma nova família centrada na
proposta libertadora, em que todos os excluídos possam participar.
58
Observa-se que, para Jesus, a opção preferencial é pelos excluídos,
marginalizados e alienados da sociedade. Aqueles que estão e são colocados em
uma categoria inferior: os coxos, aleijados, cegos, e entre esses a mulher, neste
55
STRÖHER, 1998, p. 57.
56
ALDANA, Hugo O. Martínez. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus, 2008.
57
ALDANA, 2008, p. 18.
58
“Jesus perguntou: - Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos? Aí, olhou para as pessoas
que estavam sentadas em volta dele e disse: - Vejam! Aqui estão a minha mãe e meus irmãos”
(Mc 3.33-34).
47
caso, personificado na sogra de Pedro, cuja primeira atitude após ser curada é
colocar-se à disposição do mestre.
Essa disposição é característica marcante no gênero feminino, assumindo,
encarnando e aceitando a proposta de Jesus e, imediatamente, colocando-se em
ação. Em outras palavras, prontifica-se para formar e influenciar os outros, levando-
os a construir uma consciência crítica e uma mudança de mentalidade, ou seja, de
objetos, tornam-se sujeitos autônomos de resistência. Como afirma Aldana:
Jesus se dirige com os quatro discípulos à casa de Pedro, e ali cura da
febre a sogra de Simão. Esta senhora também se transforma em protótipo
de discipulado de Jesus, uma vez que, após ter sido curada, põe-se a servi-
lo daí em diante.
59
Na Bíblia, percebe-se que, em toda a história do povo de Israel,
principalmente no livro de Macabeus, a mulher sempre viveu em total
marginalização, opressão e submissão à tenda, à casa, ao palácio, ao quartel, ao
templo. A lei, a e o altar justificam a opressão sofrida pela mulher. Porém, no
silêncio, as mulheres organizavam sua resistência.
A mulher, por ser mulher, é considerada impura, isto é, pecadora! Nos
evangelhos, é significativo o trecho que fala da mulher com hemorragia: “a mulher,
temendo e tremendo sabendo o que tinha acontecido a ela veio e caiu perante ele e
disse a ele toda a verdade” (Mc 5.33).
No livro de Levítico, são apresentadas várias formas de “impureza”. A
mulher é impura quando tem fluxo de sangue, seja por menstruação, seja por
hemorragia. Por isso, ficará impura durante todo o tempo em que tiver perda de
sangue (Lv 15.19-25). Além disso, quem tocar nela e tudo que ela tocar se torna
impuro: seu leito e todo objeto em que ela sentar torna-se impuro (Lv 5.20); quem
tocar em seu leito ou nos objetos tocados por ela torna-se impuro (Lv 15.21-22); se
um homem tiver relações com ela, ficará impuro durante sete dias (Lv 15.24).
A mulher é impura quando dá à luz: durante 40 dias, se a criança for menino,
e durante 80 dias, se for menina. Durante este período, ficará afastada do santuário.
Ao cumprir os dias, fará sua oferta e será purificada (Lv 12.1-8). O ato sexual torna
impuros o homem e a mulher durante um dia (Lv 15.18).
59
ALDANA, 2008, p. 24.
48
Esta é a realidade concreta da vida da mulher, de seu corpo, da transmissão
da vida. Ela não tem como escapar disso. A mulher é assim. Ela não pode ser
diferente. Menstruação, parto e vida sexual fazem parte de sua condição de mulher.
Tudo isso, no entanto, passa a ser “impuro”.
Em Lv. 15.1-18, encontram-se descritas também as impurezas do homem.
Porém, neste caso, elas são exceções, são doenças. No caso, da mulher, as
funções normais de seu corpo são chamadas de impurezas. Com isso, a mulher,
pelo fato de ser mulher, é impura. Nota-se a carga de marginalização e opressão
que a lei, a fé e o altar representavam para as mulheres.
Da adolescência à menopausa, a mulher era marginalizada do convívio
social como impura e causadora de impureza.
Observa-se o dia a dia das mulheres do povo, das classes mais pobres.
Para as madames, talvez, fosse mais fácil cumprir estas leis, pois eram rodeadas de
empregadas e servos. Para elas, ficava a marginalização, mas podiam evitar tornar
impuro os outros.
E as mulheres pobres? Aquelas que deviam sempre tomar conta dos filhos,
do marido, da casa e o podiam passar sete dias por mês afastadas de tudo? Por
causa de sua situação de impureza, a família inteira era prejudicada. O marido não
podia nem deitar na mesma cama! E as crianças que estavam em contato contínuo
com a mãe?
Esclarece Oliveira: “Eva o surge, porém, como um ser autônomo. Nasce
de uma costela de Adão, à sua imagem, não tem mais voz própria, mas continua
sendo o caminho da perdição”.
60
A mulher perde sua autonomia, sua identidade. Ela
não decide e nem pensava por si, suas ações dependeram durante longos séculos
do poder do macho. A ela restou discriminação, estereótipos e os preconceitos
como impura e pecadora.
Neste caso, esta situação estava inserida no sistema dominante excludente
e opressor, assegurando a desigualdade não de classe, mas de gênero,
internalizando comportamentos que devessem ser vivenciados pelas mulheres.
Seabra e Muszkat afirmam:
60
OLIVEIRA, Malu. Homem e mulher a caminho do século XXI. São Paulo: Ática, 1997. p. 23.
49
A repressão é um mecanismo psicológico típico da cultura patriarcal. Freud
a define como operação psíquica, que tende a fazer desaparecer da
consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno, condicionando a sua
manifestação a dinâmica inconsciente.
61
Sendo assim, estes mecanismos são internalizados e tornam a mulher um
ser frágil, que precisa de proteção e controle social.
Os comportamentos vivenciados pelas mulheres foram resultados da
ideologia machista impregnada na sociedade desde os tempos mais remotos. A
mulher perde sua identidade. Ela se vê através do homem. Ela se transforma
naquilo que o sexo oposto quer que ela seja. Como afirma Ribeiro:
Ela passa a se ver com os olhos do homem, isto é, sua identidade não está
mais nela mesma e sim em outro. O homem é autônomo e a mulher é
reflexa. Daqui em diante, como o pobre se com os olhos do rico, a
mulher se vê pelo homem.
62
As mulheres eram economicamente e politicamente exploradas, tornam-se
marginalizadas ideologicamente, eram chamadas de “raça adúltera e pecadora”,
consideradas como causa de pecado e merecedores de castigo.
Por outro lado, aos animais também são catalogados como puros ou
impuros (Lv 11). Os impuros não podiam nem ser tocados. Quem se encostasse ao
cadáver de um deles se tornava impuro, obrigado ao ritual da purificação. É fácil
imaginar a situação que se criava para as pessoas do povo que, por seu trabalho
diário, sobretudo na roça, não tinham como evitar o contato com estes animais.
Também os doentes eram considerados impuros: aleijados, paralíticos,
coxos, leprosos, etc. Eram todos impuros e pecadores. E as mulheres, na casa, são
as que mais se ocupam deles. Um doente precisa de cuidados e atenção, mas quem
se aproxima dele se torna impuro.
Ainda têm os mortos: o cadáver é impuro e torna impuro (Nm 10.11-16). E
quem lida com o familiar morto? As mulheres!
E a complicação continua com a ordem de quebrar vasilhas de barro quando
tocadas por uma pessoa impura (Lv 25.12). Lembremos que os utensílios de barro
61
SEABRA, Zelita; MUSZKAT, Malvina. Identidade Feminina. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 14.
62
RIBEIRO, 1989, p. 16.
50
eram típicos do povo mais pobre e quem mais o usava eram as mulheres, no serviço
doméstico. Assim, acrescenta-se o prejuízo econômico à humilhação.
Observa-se que todos eram obrigados a denunciar o pecado dos outros, ou
iriam carregar a mesma falta (Lv 5.1). Com isso, quebrava-se qualquer convivência
solidária. Todo relacionamento humano era envenenado. Qualquer um podia ser
delator. Era preciso defender o outro!
Como ficava o marido, obrigado a denunciar as “impurezas” da esposa? E
as vizinhas? As amigas? As pessoas mais próximas tornam-se delatoras, para não
caírem na mesma situação de impureza.
A exclusão da mulher no templo, no culto e na lei é marcante. O Templo era
o centro das relações sociais. Ele tinha um lugar para os homens e outro para as
mulheres. A marginalização é tão forte que durante sua vida adulta a mulher não
tinha possibilidade de integração social, ficando alienada, subjugada, condenada a
permanecer no silêncio. E a lei justificava tal fato.
Percebe-se que a situação de opressão fortalecia ainda mais o Templo, pois
a forma de pagar os pecados era ofertar um sacrifício para a purificação do pecador,
neste caso as mulheres.
Por outro lado, a opressão do mercado “aliviava” a situação da mulher, pois
enquanto ficava grávida, ela estava protegida de tal oferenda. Nota-se que, para o
mercado, quem fornece a mão de obra é a mulher e, nas sociedades mais antigas, a
quantidade de mulheres grávidas era norteada pelo tamanho do campo e do
trabalho de cada um, ou seja, quanto maior a propriedade, mais filhos a mulher tinha
que parir.
63
Outro fator determinante da quantidade de filhos era o comércio, pois se
precisava cada vez mais de gente para trabalhar e gente para ser comercializada.
A opressão da mulher nesse período é notória, marcante e determinante
para a discussão de gênero. Logo, para a cultura existente nessa época como o
helenismo, em que o homem é comerciante, vendedor, ou seja, o homem se sente
63
GALLAZZI, 1998.
51
livre. Para o judaísmo, o homem é o proprietário, precisa de tranqüilidade e paz.
Quem lhe oferece isso é a mulher.
64
A construção da memória histórica e da tradição de resistência das mulheres
frente à dominação do Templo e do sagrado vem de longe. A ação de Ana, ao
recolocar o Templo da vida e da justiça contra os abusos cometidos contra o povo,
ficou marcada na memória dos deuteronomistas (1Sm 1-3).
Para organizar a resistência, o povo escolhe outra maneira de se expressar:
nascem as novelas, como por exemplo: Rute, Jonas, Jó, Ester, Judite e outros,
quase sempre em contestação à ideologia hegemônica do Templo.
Nestas novelas, a presença das mulheres é altamente significativa. Elas o
protagonistas de várias delas e têm traços em comum. A partir disso, é construída a
contra-ideologia. Podemos citar como exemplo: a mulher bonita (Rt 3.3); fiel ao Deus
dos pobres (Jd 9.11); fiel ao Deus dos pobres em sua casa (Jd 9.1).
Observa-se que os tempos messiânicos acontecem nos gestos de Judite. É
o sonho do povo da terra que se realiza. A terra como herança, como graça, como
dom divino, onde não cabe a opressão, a dominação e a exploração. Todos têm voz
e vez, desenvolvimento com justiça social, a valorização da pessoa humana e
liberdade. E isso ocorre porque está nas mãos da mulher.
Logo, a mulher está a favor da vida, contra a opressão do mercado, da casa
e do homem, contra a ideologia da opressão e fundamentalmente luta pela
liberdade.
As novelas ou parábolas contadas pelas mulheres valorizaram a construção
do texto sagrado. Logo, Cantares é o livro lido e celebrado na festa de Páscoa; Rute
era lido e celebrado na festa de Pentecostes; Qohelet era lido e celebrado na festa
das Tendas; Ester era lido e celebrado na festa dos Purin; Lamentações era lido e
celebrado no dia memorial da destruição de Jerusalém. O uso litúrgico destes livros
nas celebrações do povo nos mostra que os pobres alimentavam sua teimosia e sua
resistência à opressão do Templo, da casa e do mercado. E as mulheres estão lá,
indicando o rumo, rasgando caminhos e apontando saídas!
64
GALLAZZI, Sandro; RIZZANTE, Anna Maria. Ensaios sobre o pós-exílio. 2. ed. São Leopoldo:
Oikos, 2008.
52
Em Marcos, as mulheres apresentam adjetivos necessários para manter um
espírito de resistência, perseverança, amor, fé, sacrifício e zelo pelo corpo de Jesus.
Como afirma Blomberg:
A princípio, as mulheres do grupo aparecem mais avançadas do que o
círculo interno dos dozes homens. Elas manifestam (5.28,34; 7.29),
sacrifício (12.41-44) e amor (14.3-9) perseverantes. Elas presenciam a cruz,
observam onde Jesus é sepultado e vão ao sepulcro cuidar do corpo tão
logo termina o Sábado (c. 15 -16).
65
Nota-se que em Marcos o sofrimento é pressuposto para o fortalecimento da
comunitária. O contexto é de perseguição e esta situação causa muitas dores
inclusive para as famílias ao ponto de pais entregarem seus filhos e filhos
denunciarem seus pais por serem cristão. Como elucida Fiorenza:
Sofrer não é, porém, fim em si mesmo, mas é o resultado da práxis de vida
de Jesus marcada pela solidariedade com os marginalizados sociais e
religiosos de sua sociedade. [...] Essa teologia marcada por morte e
sofrimento é desenvolvida para os cristãos que estão sendo perseguidos,
entregues aos sinédrios, torturados nas sinagogas e passando por
processos nos tribunais diante de reis e governadores por “causa de Jesus”.
[...] São instigados por ódio aos cristãos, até de seus parentes e amigos
mais próximos: “O irmão entregará o irmão à morte, e o pai entregará o
filho. Os filhos se levantarão contra os pais e os farão morrer” (Mc 13,12).
66
O perfil de liderança pagã tinha como princípio norteador a dominação sobre
os outros. Jesus apresenta um novo paradigma que tem como característica o
serviço, a doação, a partilha, o respeito, amor recíproco e formação de novas
lideranças. Como afirma Fiorenza:
A liderança pagã baseia-se no poder e na dominação sobre os outros, são
proibidas entre os cristãos essas relações patriarcais de dominação. Os
líderes da comunidade devem ser servos de todos e os que são
preeminentes devem tornar-se escravos de todos. Os líderes da
comunidade não devem assumir posições de governantes, mas, ao
contrário, as de escravos, porque Jesus deus sua vida para a libertação de
muitos.
67
É neste contexto que mulheres também são chamadas a exercer liderança
na comunidade, a influenciar seus membros, a oportunizar a inclusão social,
65
BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4 evangelhos. São
Paulo: Vida Nova, 2009. p. 157-158.
66
FIORENZA, 1992, p. 362.
67
FIORENZA, 1992, p. 363.
53
religiosa, sexual e étnica. As mulheres não aceitaram o paradigma da opressão e
sim o paradigma da libertação.
68
Nota-se que as mulheres dão testemunho de como
ser um verdadeiro discípulo de Jesus, com afirma Fiorenza: “as mulheres, tornam-se
os paradigmas do verdadeiro discipulado”.
69
Em Marcos, Jesus inaugura um novo discipulado em que homens e
mulheres estão em igualdades de condições. Cada pessoa, ao receber a boa
notícia, recebe-a com sorriso e brilho no olhar, como afirmam Mesters e Lopes:
Mas a novidade maior é que Jesus inaugura um discipulado de iguais,
possibilitando que homens e mulheres o sigam em igualdade de condições
[...] realidade que aparece resumidamente, com aquelas boas notícias que
se conta ao do ouvido, com sorriso nos lábios e brilho no olhar (Mc 15,
40-41).
70
No oikos, a participação da mulher na vida e na organização das
comunidades cria resistência e um novo paradigma de cristianismo para todos
aqueles excluídos da sociedade da época. Como elucidam Mesters e Orofino:
Além disso, considerando a comunidade como a sua Casa, os cristãos
encontravam nela sua raiz, sua identidade. As comunidades ou igrejas
domésticas ofereciam uma Casa, um lar, para os sem-casa, os migrantes e
excluídos da sociedade da época.
71
A compreensão do universo perpassa pelo entendimento do oikos, ou seja,
percebia-se que o universo era o oikos de Deus. Logo, a organização do oikos aqui
na terra deveria ter como exemplo o oikos do céu, como afirmam Mesters e Orofino:
“o universo inteiro era visto por eles como a Casa de Deus. O universo, a Casa de
Deus, era o espelho que mostrava como deveria funcionar a Casa aqui na terra”.
72
A organização das mulheres no oikos passou a ter uma associação entre as
mesmas pessoas de várias categorias que, ao se organizar, lutavam por seus
direitos, como elucida Mesters e Orofino:
Além da Casa (domus), havia a Associação (Collegium). A palavra
Collegium definia a Associação de pessoas de uma mesma categoria. Tais
68
FIORENZA, 1992, p. 367.
69
FIORENZA, 1992, p. 369.
70
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes. Caminhando com Jesus. São Leopoldo: CEBI, 2003. p. 90.
71
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Atos dos Apóstolos. 2. ed. São Leopoldo: CEBI, 2002.
p. 163.
72
MESTERS; OROFINO, 2002, p. 162.
54
Associações eram reconhecidas juridicamente e serviam para ajudar as
várias categorias a defenderem os seus direitos. Por exemplo, pessoas da
mesma profissão: padeiros, ferreiros, tendeiros, etc. [...] O Collegium
representava uma tendência mais democrática de organização. Ele podia
ser de escravos e livres, de homens e mulheres, de negros e brancos, de
ricos e pobres. Tinha uma tendência mais igualitária. [...] a Associação era o
novo lugar de inserção dentro da sociedade.
73
A hermenêutica de resistência da mulher a partir da casa evoca um princípio
ético que contempla todos os excluídos socialmente, mas que exige uma posição,
um compromisso de toda conjuntura social. Hoje, a sociedade, cada vez mais
mergulhada na ideia do consumo, individualiza e segrega as categorias de pessoas
causando mais e mais diferenças e violências, desvalorização do ser humano. Em
outras palavras, a sociedade contemporânea vive em uma crise existencial
provocando as diferenças.
Nesta perspectiva, Zygmunt Bauman afirma que, na contemporaneidade,
uma crise ontológica e que a incerteza de estilo pós-moderno gera a procura da
religião, ou seja, o ser humano vive uma crise existencial e a todo custo tenta
compreender sua razão de viver.
74
Não obtendo respostas, tenta encontrá-las no
transcendente.
Esta crise desemboca em um conflito religioso, político, econômico, cultural,
social e ecológico. Logo, famílias são dilaceradas, destruídas e aniquiladas. Jovens
vivem sem perspectivas para o futuro, alienados e legados ao fracasso, tendo como
consequência a violência.
Esses guetos sociais, culturais, religiosos e, principalmente, econômicos
agem sem ética e sem piedade. A qualquer preço buscam seus objetivos não
importando os meios e sim os fins, como mencionado anteriormente.
O resultado disso percebemos em nossas realidades e com mais
notoriedade a crise entre israelenses e palestinos. Também podemos citar a forma
como a Amazônia é explorada, principalmente o oeste do Pará: a atuação dos
madeireiros, o agro-negócio, a luta pela terra, a prostituição infantil, a escravização e
venda de mulheres para o mercado sexual, as drogas com suas consequências para
a sociedade.
73
MESTERS; OROFINO, 2002, p. 163-164.
74
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
55
Estas ações fazem ocorrer um êxodo rural. Os colonos vedem suas terras e
invadem as periferias, aumentando o desemprego e crescendo a violência. Outra
situação é a sensação de segurança. Que resposta pode ser dadas às ações
terroristas? Para o alemão Robert Kurz, entretanto, era previsível que a série de
atentados acontecesse a qualquer instante: “não há proteção absoluta contra a
barbárie, não há nenhum escudo espacial que nos proteja da barbárie que se alastra
neste planeta”.
75
Nota-se uma busca ou tentativa de ressignificar o conceito de ser humano,
de humanidade. Percebe-se que, ao mesmo tempo em que se busca um processo
democrático que respeite as diferença, mais opressão se causa. Logo, pode-se
perguntar se o mundo globalizado pode ser melhor ou pior para o ecossistema? A
humanidade já chegou ao fim do túnel ou existe ainda um subsolo no fim do túnel?
A resistência continua, como afirma Boaventura de Sousa Santos, uma
corrente de alternativas sociais produzidas pelos movimentos sociais e pelas
organizações o governamentais na luta contra a exclusão e a discriminação dos
povos.
76
No entanto, esses grupos precisam criar uma forma de rede para poder ter
organização, logística e política para combater em bloco a hegemonia planetária
dominadora que, através de um processo pedagógico, apoiada por muitas
instituições religiosas, por capital estrangeiro, por intelectuais, pela educação e pela
grande parte da mídia, cresce dominando e causando exploração e as
desigualdades sociais. É notório que, sob o olhar do Ocidente,cumplicidade feita
de silêncio, hipocrisia e manipulação grotesca de tantas mazelas espalhadas pelo
mundo.
A hermenêutica da resistência perpassa pela desconstrução da hegemonia
social, mas, sobretudo, por um diálogo a partir das experiências vividas pala própria
sociedade, uma reinvenção da emancipação social, um combate a monocultura
linear. Logo, ressignificar os valores, a ética, a arte e a talvez seja o ato mais
difícil do ser humano, pois vivemos um momento em que a sociedade hegemônica
75
KURZ, Robert. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult 94u 2868.html>.
Vários acessos.
76
SANTOS, 2006.
56
produz uma consciência da inexistência. Em outras palavras, esquecemos o que
fomos, o que somos e o que podemos ser, tornando-nos marionetes sem
capacidade de reflexão, reação e atitude.
A hermenêutica da resistência tem como princípio norteador uma ética da
libertação no pobre, com a responsabilidade coletiva estabelecida na e da relação
entre pares, como afirma Dussel:
A ética da libertação é uma ética da responsabilidade a priori pelo outro,
mas responsabilidade também a posteriori La H. Jonas) dos efeitos não
intencionais das estruturas dos sistemas que se manifestam à mera
consciência cotidiana do senso comum: as vítimas.
77
Nesta perspectiva, a questão central é o processo de inclusão, pois os
marginalizados também produzirão conhecimentos epistemológicos. Logo, com eles
e a partir deles pode-se fazer uma leitura crítica, valorativa e ideológica sobre todos
os sistemas constituídos. Em outras palavras, criticar os sistemas impostos,
dominantes, absolutos, donos de uma única verdade.
Por fim, a hermenêutica da resistência da mulher a partir da casa deve ser
desenvolvida dentro de uma ação integrada, holística. O imperativo para um ethos
mínimo mundial tem como base a ética: do cuidado, compaixão pela terra; da
solidariedade, como lei cósmica, como solidariedade política, subjetividade da
natureza; ética da responsabilidade que busca sobrevivência de todos; ética do
diálogo para que todos tenham vez e voz; ética da com-paixão e da libertação que
se compadece do outro, do excluído; e a ética holística, não significando uma
homogeneização social, mas, um saudável convívio com a diversidade e
transversalidade cultural.
Toda libertação deve ser tradução, entendimento de que todos devem e
podem participar. E mais ainda, construir uma racionalidade da razão coletivamente
para que os sujeitos do processo libertador possam chegar à autonomia e liberdade
plena. Como afirma Dussel: “a responsabilidade pelo outro vulnerável e sofredor
transforma-se na própria racionalidade da razão”.
78
77
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes,
2007. p. 571.
78
DUSSEL, 2007, p. 572.
CONCLUSÃO
Uma hermenêutica de resistência da mulher a partir da casa fomenta uma
análise de conjuntura social tendo como vetor o processo de globalização e do
sistema econômico.
A revolução da moderna filosofia, ciência, tecnologia e indústria que se
completa na revolução democrática do Estado e da sociedade, com o avanço em
altíssima velocidade de informações que afetam diretamente as relações de
gêneros, requer novas respostas para novas perguntas, novo paradigma para
atender as necessidades globais. Este é o contexto da análise conflitiva de gênero e
de uma teologia feminista.
A exigência do discurso interreligioso, sem perder a identidade de qualquer
denominação ou expressão de fé, desemboca em um contexto milenar. De forma
especial neste novo milênio em que a busca de pontos comuns tem sido tarefa de
estudos de vários filósofos e teólogos, dentre outros. Este é um contexto que o
cristianismo e as práticas de resistência se encontram.
Muitos avanços ocorreram. No entanto, tarefas ainda estão abertas,
esperando a realização, pois alguma prática na igreja e na sociedade organizada,
muitas vezes, persiste em seu esquema medieval ou reformado. Excessivamente
fixadas em seu grande passado, elas recusam-se à nova mudança de modelo
mundial.
É necessário sair da posição defensiva para o paradigma da modernidade,
com alguns pontos relevantes, como elucida Hans Küng:
Em lugar da revelação cristã, que se tornou histórica, insisite-se agora na
religião natural originalmente dada. Em lugar da religião como confissão, é
propagada agora a tolerância em relação a todas as confissões religiosas.
Em lugar do apelo à reforma, ressoa agora o apelo ao iluminismo. Em lugar
da liberdade do cristão, a liberdade do homem em si: a liberdade religiosa e
de consciência, e ao mesmo tempo, liberdade de reunião, de discurso e de
imprensa.
79
Em outras palavras, nosso mundo encontra-se em transição para uma nova
época: pós-colonialista e pós-imperialista, modelo de nações verdadeiramente
79
KÜNG, Hans. Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus, 2004. p. 244.
58
unidas; pós-capitalista e pós-socialista, modelo de uma economia de mercado
ecossocial; pós-ideológico e pós-confessional, modelo de uma comunidade mundial
ecumênica multicultural e multirreligiosa.
Em vez de condenar a modernidade, é preciso afirmar seu conteúdo
humano: nada de tradicionalismo ou fundamentalismo, nada de subcultura nas
culturas, de qualquer que seja a origem, católica, ortodoxa ou protestante. Nada de
diferença entre homem e mulher. Ao mesmo tempo, combater os estreitamentos
desumanos e os efeitos destrutivos da modernidade, estabelecer uma política global
fundamentada na ética mundial, que possa ser sustentada pelos homens e mulheres
de todas as culturas e religiões, por crentes e não-crentes.
Dessa maneira, superar modernidade e antimodernidade, mostrando novas
dimensões de esperança smica: em vez de dominação, parceria do ser humano
com a natureza; esperança antropológica: em vez do patriarcado, a igualdade entre
homem e mulher; esperança social: em vez da religiosidade pré-moderna e da
irreligiosidade moderna, uma nova abertura para a realidade espiritual primeira e
última denominada, na tradição judaica, cristã e islâmica, com o nome de Deus.
80
Por fim, na resistência da mulher, personifica-se as categorias de pessoas
excluídas da sociedade em que vivemos. A contribuição que tantas companheiras
da própria Bíblia, e companheiras que ainda hoje fazem memória, ajudando outras
companheiras a se organizar, tomar rumo e pulso da própria história, sendo sujeito e
não objeto, fortalecendo as associações comunitárias, as comunidades eclesiais de
base, é a esperança num mundo justo, igualitário, onde todos têm vez e voz.
O grande desafio é manter a esperança de ensinar às novas gerações a
grande lição de Jesus: sem paz não podemos viver e para que haja paz é
necessário haver justiça. Para que isso ocorra, é preciso que homens e mulheres, e,
sobretudo políticos e líderes religiosos, estejam comprometidos com a paz, pois,
como afirma Hans Küng, “não haverá sobrevivência da humanidade sem paz entre
as nações. Mas não existe paz entre as nações sem paz entre as religiões. Nem paz
entre as religiões sem diálogo entre as religiões”.
81
80
KÜNG, 2004, p. 245-246.
81
KÜNG, 2004, p. 247.
REFERÊNCIAS
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ALDANA, Hugo O. Martínez. O discipulado no Evangelho de Marcos. São Paulo:
Paulus, 2008.
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1998.
BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4
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BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
CORRÊA-PINTO, Maria C. A dimensão política da mulher. São Paulo: Paulinas,
1992. p. 9
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Petrópolis: Vozes, 2007. p. 571.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
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