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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
AS COVINHAS:
Práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular
Irene de Araújo van den Berg Silva
Natal/RN
2010
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Irene de Araújo van den Berg Silva
AS COVINHAS:
Práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciências Sociais, área de concentração: Dinâmicas Sociais,
Práticas Culturais e Representações.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção
Natal/RN
2010
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Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Silva, Irene de Araújo van den Berg.
As Covinhas : práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular.
2010.
241 f. : il.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, Natal, 2010.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção.
1. Etnografia. 2. Santuário As Covinhas Rodolfo Fernandes, RN. 3.
Religiosidade popular. I. Assunção, Luiz Carvalho de. II. Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 39
Irene de Araújo van den Berg Silva
As Covinhas: práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, área de concentração Dinâmicas Sociais,
Práticas Culturais e Representações.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção
Data da aprovação: _____ de _______________de___________.
_______________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção UFRN
Orientador
_______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Steil UFRGS
Examinador
_______________________________________________________
Profa. Dra. Maristela Oliveira de Andrade UFPB
Examinadora
_______________________________________________________
Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior - UFRN
Examinador
_______________________________________________________
Profa. Dra. Eliane Tânia Martins de Freitas UFRN
Examinadora
Para os amores da minha vida,
que me ajudaram de todas as formas a concretizar esse trabalho.
Canindé, esposo, amigo e companheiro de pesquisa,
e Helena, minha filha.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande Norte que me proporcionou mais esta oportunidade de formação,
encerrando com o doutorado uma história que se iniciou em 1997, quando ingressei na
Graduação em Ciências Sociais dessa mesma Universidade.
Durante essa longa jornada muitos foram os mestres que participaram direta e
indiretamente de minha caminhada e aos quais eu reputo toda minha gratidão e estima, porém,
faço aqui uma menção especial aos professores: Profa. Dra. Eliane Tânia Martins de Freitas,
Profa. Dra. Ilza Araújo Leão de Andrade, Prof. Dr. José Willington Germano, Prof. Dr. João
Emanuel Evangelista, Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior, Prof. Dr. Orivaldo Pimentel e Prof.
Dr. Alípio de Souza Filho.
De modo ainda mais especial quero agradecer ao Prof. Dr. Luiz Carvalho de
Assunção, com quem venho construindo 10 anos uma intensa relação acadêmica,
profissional, mas acima de tudo de cooperação e amizade. Zelo, integridade, honestidade e
humildade são alguns dos qualificativos do maior de todos os mestres que tenho. De sua
conduta emanam exemplos de humanidade e generosidade que faz dele além de um grande
docente, um grande homem. Obrigada, mais uma vez!
Agradeço à Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, na instância do
Colegiado do Curso de Ciências da Religião onde leciono que me permitiu uma flexibilidade
no exercício de minhas funções para a realização desse trabalho. Também quero agradecer
aos meus colegas professores que se solidarizaram com minhas dificuldades e me apoiaram
nos momentos de maior dificuldade: Rodson Ricardo, meu grande amigo, Genaro Camboim,
Araceli, Augusta, Josineide, Daniel, Pires e Ângela. Aos funcionários do curso de Ciências da
Religião sempre solícitos e compreensivos, Washington e Fátima. Agradeço ainda aos meus
alunos, grandes apoiadores, torcedores e colaboradores em pesquisas e levantamentos.
Aos romeiros das Covinhas que na sua simplicidade me mostraram a superação de
uma vida de sofrimentos e privações, vendo na alegria da a chama de uma vida. Agradeço
em especial a Seu Bento que me acolheu em todas as estadas por Rodolfo Fernandes e com
quem estabeleci uma relação de diálogo e intensa colaboração.
Quero registrar um agradecimento especial a toda minha família que compartilhou a
parte mais pesada dessa jornada. As ausências, o cansaço, as negativas, os aborrecimentos e
os humores instáveis.
Aos meus pais, Anália e Bartholomeus, que colaboraram ao seu modo para que hoje
eu pudesse estar aqui, quando plantaram em mim as bases de uma educação sólida e o
compromisso com minha formação. Meu pai, exemplo de inteligência, perspicácia e
pesquisador. E à minha mãe, que além de uma grande mulher, foi sempre minha companheira
e apoiadora. Que me ajudou nas horas mais críticas, cuidando de Helena para me liberar para
as minhas atividades. Mais uma vez o que ela fez por mim é irrecompensável.
Agradeço aos meus irmãos, Tiago e Expedito, que mesmo sem a participação mais
direta sempre se solidarizaram e se preocuparam com os encaminhamentos da minha
pesquisa. Estendo os agradecimentos também à Sandra, Vanderli e Sthefanne que juntos
formamos uma história.
Aos meus tios, primos, cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, também sou grata
pelos momentos de alegria e descontração que sempre vivemos, fazendo com que o fardo da
rotina seja mais leve.
Reservei as últimas palavras para os meus grandes amores: Helena e Canindé.
Para a minha filha, a mais linda, esperta e carinhosa de todas as crianças, submetida
desde muito jovem aos percalços da pesquisa etnográfica, tenho uma imensa dívida para
contigo, pelas ausências e falta de atenção que a rotina do trabalho me solicitava. Mas agora,
livres para voar poderemos brincar muito, como sempre quisemos.
E ao meu amor, companheiro inseparável de todos os momentos. Que esteve comigo,
literalmente, em toda a pesquisa, me dando o suporte e o apoio que tornavam as distâncias
mais curtas e as viagens mais alegres. Minha pesquisa e, principalmente, minha vida não
seriam jamais as mesmas sem Canindé, com quem, sem sobra de dúvidas, compartilho
alguns anos os melhores e mais bonitos dias de minha existência. Eu te amo!
A fé, a cura, a promessa,
Sagrado, bento, o profano,
Padre, missa, horto, cigano,
Ex-votos de muitas peças...
A caminhada começa,
Antes de raiar o dia,
Romeiros em romaria
Produzem a devoção,
Inventam a tradição...
Meninas, santas, Marias.
Meninas que para alguns,
Crianças de retirantes,
Vagando de modo errante,
Em tempo e lugar nalguns,
Morreram em busca de uns
Bocados pra seu sustento,
(Idos de mil e oitocentos).
Na visão do sertanejo,
Surgiram muitos lampejos:
O sagrado sinais bentos.
Outro olhar bem diferente
Do orago dão os ciganos,
Remetendo aos gitanos
A origem daquela gente.
Alimentando em sua mente
Inexistência peregrina.
Porquanto a mesma sina,
Mesmo destino, fadário.
A imagem do santuário
É de ciganas meninas.
Meninas que de passagem,
Na visão teve Seu Bento,
Em face do sofrimento,
Três visitas, três visagens:
Na primeira, das imagens,
Desmaiando, esmaeceu,
Logo após adoeceu,
Já quase sem sobrevida...
Só na visita seguida,
O mal desapareceu.
E na terceira, a promessa
Do cruzeiro (em nome delas),
Da cova, de uma capela,
Construção a toda pressa!
Na cura, Bento professa:
As Covinhas invenção,
A visita, a comissão,
Romeiros e romarias,
A festa para o seu dia
Culto, missa, devoção.
Na festa de tudo tem:
Tem romaria e romeiro,
Tem feira, tem biriteiro,
Muita esmola de vintém!...
Na intenção... o porém:
Bento de chapéu na mão...
Pede o padre comissão!
Ânimos tornam-se agres.
Santuário dos milagres,
Vira um céu de ambição.
(Francisco Canindé da Silva)
RESUMO
Esta tese é um estudo etnográfico sobre um santuário popular conhecido como as
Covinhas, localizado em Rodolfo Fernandes, município do Rio Grande do Norte. O
objetivo do trabalho é analisar a constituição e a dinâmica desse espaço a partir das
relações sociais e simbólicas que o instituem e fomentam enquanto referência religiosa
da região onde ele se situa. Nessa intenção, são evidenciadas três dimensões: a das
práticas, que atuam (re)produzindo ritualmente os significados que põem a devoção às
Meninas das Covinhas em curso; o conflito, que sugere a qualidade polifônica do
santuário quando os diversos sujeitos envolvidos naquele espaço colocam em relação
sentidos e interesses que freqüentemente coligem; e as mudanças, que resultam em
maior ou menor grau das percepções, disposições e operações dos sujeitos que vivem o
santuário na prática, de modo a mantê-lo num processo constante de invenção.
Palavras-chave: Religiosidade popular; Santuário: Ritual; Conflito.
RESUMEN
Cette thèse est une étude ethnographique sur un temple populaire, connue comme As
Covinhas, situé dans Rodolfo Fernandes, une municipalité de Rio Grande do Norte.
L'objectif de cette étude est d'analyser la formation et la dynamique de l'espace des
rapports sociaux et symboliques que les établir et les promouvoir comme férence
religieuse de la région où il se trouve. Dans cette intention, est exploré trois dimensions:
de les pratiques, quand c‟est activités permit rituellement la (re)produisant de les
significations que mis la dévotion aux Meninas das Covinhas em marche ; de les
conflits, que suggérant la qualité polyphonique du sanctuaire, quand les différentes
sujects impliquées dans ce lieu mettre em relation les sens et les intérêts qui recueillent
souvent ; et les changements, qui aboutissent à des degrés divers des perceptions, des
disposions et des opérations des sujects qui vivant le sanctuaire dans la pratique, afin de
le maintenir dans le processus constant de l'invention.
Mots-clés : Religiosité populaire; Lieu de pèlerinage; Ritual; Conflit.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - MAPA DO POLÍTICO DO RIO GRANDE DO NORTE ..................................................................... 49
FIGURA 2 CONFIGURAÇÃO DO SANTUÁRIO EM OUTUBRO DE 2009 .......................................................... 52
FIGURA 3 - CAPA DO "LIVRO" COMERCIALIZADO POR SEU BENTO E QUE CONTA A HISTÓRIA DAS COVINHAS
(2007) ........................................................................................................................................... 188
LISTA DE FOTOGRAFIAS
FOTO 1- VISTA FRONTAL DA CAPELA (2005) ............................................................................................ 53
FOTO 2 - A CAPELA NA PAISAGEM (2005) ................................................................................................. 53
FOTO 3 - ESTRADA DE ACESSO À CAPELA, NA FAZENDA SOSSEGO (2009) ................................................. 54
FOTO 4 - SEU BENTO (2005) .................................................................................................................... 54
FOTO 5 - A COVA (2005) ......................................................................................................................... 60
FOTO 6 O ALTAR (2009) ....................................................................................................................... 60
FOTO 7 - DESTAQUE PARA AS IMAGENS DE PE. CÍCERO E FREI DAMIÃO (2009) ......................................... 61
FOTO 8 - A PAREDE DE FUNDO DO ALTAR (2005) ...................................................................................... 61
FOTO 9 - HOMEM LAVANDO OS OLHOS COM ÁGUA DO FOSSO (2009) ......................................................... 63
FOTO 10 - AO CENTRO, DUAS MULHERES SE PREPARAM PARA DESPEJAR ÁGUA NO FOSSO(2008) ................ 63
FOTO 11 - À ESQUERDA, MULHER DESPEJA ÁGUA. AO CENTRO, DE BLUSA BRANCA, OUTRA RECOLHE COM
COPO DESCARTÁVEL (2008) ............................................................................................................. 64
FOTO 12 - A COVA NO INÍCIO DA FESTA, AINDA COM AS PEDRAS PARCIALMENTE DESCOBERTAS (2006) ..... 64
FOTO 13 - O CRUZEIRO (2005) ................................................................................................................. 67
FOTO 14 - MULHERES E CRIANÇAS COLOCANDO PEDRAS NO CRUZEIRO (2007) .......................................... 67
FOTO 15 - VISITA AO CRUZEIRO DE UM GRUPO QUE ACABARA DE CHEGAR AO SANTUÁRIO (2006) ............. 68
FOTO 16 - O USO SOCIAL DO GALPÃO (2008) ............................................................................................ 70
FOTO 17 - FILA E EXPECTATIVA PARA A DISTRIBUIÇÃO DOS PRESENTES (2006) ......................................... 70
FOTO 18 - A ENTREGA DOS PRESENTES (2007) ......................................................................................... 70
FOTO 19 - ACENDENDO VELAS NA COVA (2008) ....................................................................................... 71
FOTO 20 - ACENDIMENTO DE VELAS NA LATERAL DO ALTAR, MESMO CONTRARIANDO AS DETERMINAÇÕES
PARA NÃO FAZÊ-LO (2008) ............................................................................................................... 71
FOTO 21 - A PARTE AMPLIADA DO GALPÃO (2008) ................................................................................... 72
FOTO 22 - BANHEIROS (2009) .................................................................................................................. 72
FOTO 23 - CAIXA D'ÁGUA INSTALADA AO LADO DA CAPELA (2008) .......................................................... 73
FOTO 24 - VISTA FRONTAL DO SANTUÁRIO (2006) .................................................................................... 73
FOTO 25 - BARRACAS (2007) ................................................................................................................... 74
FOTO 26 - COMÉRCIO DE BRINQUEDOS POPULARES (2009) ....................................................................... 74
FOTO 27 - COMÉRCIO DE QUADROS, ESTAMPAS E SOUVENIRES DE SANTOS DIVERSOS (2009) ..................... 74
FOTO 28 - ÁREA DE ESTACIONAMENTO NA LATERAL DIREITA DA CAPELA (2009) ...................................... 75
FOTO 29 - VEÍCULO CARACTERÍSTICO DE TRANSPORTE DOS ROMEIROS, CHAMADO DE CARRO (2006) .... 90
FOTO 30 - ALGUNS DOS ÔNIBUS USADOS NO TRANSPORTE DOS ROMEIROS (2009) ..................................... 91
FOTO 31 - DUPLA DE CIGANOS TRAJANDO SUAS CAMISETAS NA ÁREA DAS BARRACAS (2008) ................. 101
FOTO 32 - MONTAGEM DA ESTRUTURA E O GRUPO DE CIGANOS (2005) ................................................... 110
FOTO 34 - RESTOS DE PARAFINA DAS VELAS SE MISTURAM À ÁGUA (2007) ............................................. 112
FOTO 33 - NA DISPUTA POR APROXIMAR-SE DA COVA AS GARRAFAS CAEM NO FOSSO (2009) .................. 112
FOTO 35 - JUNTO DE SEUS NETOS, UMA SENHORA DEPOSITA UMA GARRAFA DE LEITE NA COVA (2009) .... 113
FOTO 36 - MAMADEIRA DEIXADA COM LEITE (2005) .............................................................................. 113
FOTO 37 - ROMEIRAS AJOELHADAS REZAM NO ALTAR (2006) ................................................................. 117
FOTO 38 - O CESTO DAS ESMOLAS (2006) ............................................................................................... 120
FOTO 39 - O ALTAR DA MISSA E O PADRE (2008) .................................................................................... 123
FOTO 40 - ROMEIRA TRAJANDO VESTE FRANCISCANA (2009) ................................................................. 132
FOTO 41 - SEU BENTO PARAMENTADO EM DIA DE FESTA ....................................................................... 132
FOTO 42 - SEU BENTO NARRANDO AOS ROMEIROS SUA HISTÓRIA (2006) ................................................ 133
FOTO 43 - AUDIÊNCIA DE SEU BENTO (2006) ......................................................................................... 133
FOTO 44 - SEU BENTO, CHORANDO DURANTE SUA PERFORMANCE (2006) ............................................... 134
FOTO 45 - RETRATO FALADO DAS MENINAS DAS COVINHAS (2009)........................................................ 183
FOTO 46 - RELEITURA DO RETRATO FALADO DAS MENINAS (2009)......................................................... 184
FOTO 47 - RESSIGNIFICAÇÃO DE PRODUÇÃO MASSIVA (2009) ................................................................. 185
FOTO 48 - A COVA ORIGINALMENTE (2005) ........................................................................................... 207
FOTO 49 - MULHERES RECOSTADAS NOS BANCOS DE PROTEÇÃO (2008) .................................................. 208
FOTO 50 - A COVA CERCADA (2009) ...................................................................................................... 208
FOTO 51 - TRATAMENTO DADO ANTERIORMENTE AOS MILAGRES (2005) ................................................ 209
FOTO 52 - SALA DE MILAGRES (2009) .................................................................................................... 210
FOTO 53 - MESA DOS MILAGRES (2009) ................................................................................................. 210
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO À PESQUISA: PERCURSOS E PRESSUPOSTOS .............................................. 16
1.1. Dos pertencimentos teóricos às percepções sobre o campo..................................................... 23
2. SANTOS LOCAIS, CULTURA POPULAR E COTIDIANO ......................................................... 33
2.1. Que popular é esse? Os sujeitos sociais e os santos locais ...................................................... 33
2.2. Religião e religiosidade ......................................................................................................... 44
3. AS COVINHAS: UMA DESCRIÇÃO ............................................................................................ 49
3.1. A capela ................................................................................................................................ 53
3.2. A cova ................................................................................................................................... 62
3.3. O cruzeiro .............................................................................................................................. 66
3.4. O galpão ................................................................................................................................ 68
3.5. O comércio ............................................................................................................................ 73
3.6. A área de estacionamento ...................................................................................................... 75
3.7. As Covinhas: de lugar a espaço.............................................................................................. 76
4. AS COVINHAS E SUA DINÂMICA: OS ANTECEDENTES DA FESTA .................................... 79
4.1. A rotina do santuário ............................................................................................................. 79
4.2. Antecedentes da festa: as Meninas, os recursos e os romeiros ................................................ 82
4.3. A organização: como e porque ir às Covinhas ........................................................................ 90
4.4. Outros interesses, outros sujeitos ......................................................................................... 102
4.5. Um santuário local ............................................................................................................... 106
5. EM DIAS DE FESTA: ETNOGRAFIA DOS USOS SOCIAIS DO SANTUÁRIO ....................... 109
5.1. O culto, os romeiros e os conflitos ....................................................................................... 109
5.2. A enunciação narrativa e a performance de Seu Bento ......................................................... 128
5.3. A negociação da narrativa: o cruzeiro .................................................................................. 142
6. A INVENÇÃO DA DEVOÇÃO:DOS SANTOS LOCAIS ÀS MENINAS DAS COVINHAS ...... 150
6.1. A invenção dos santos locais: enraizamento simbólico e prático .......................................... 150
6.2. Do ideal ao real: religião ética e prática reflexiva ................................................................. 157
6.3. O diacrítico dos santos locais: a morte ................................................................................. 165
6.4. Do mito fundador ao santuário: o espaço inventado ............................................................. 175
7. INTERESSES E MUDANÇAS: OS SUJEITOS EM CENA ......................................................... 194
7.1. As vozes do santuário: Seu Bento, o padre e os romeiros ..................................................... 194
7.2. O discurso em ação: as promessas do padre e a racionalização popular do santuário ............ 203
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 214
9. REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 219
APÊNDICE A Resultados preliminares da cartografia dos santos locais no Rio Grande do Norte ...... 227
APENDICE B - Relação das devoções que podem ser indicativas de culto a santos locais, produzida por
Verissímo de Melo (1976) .................................................................................................................... 239
REFERÊNCIAS RELATIVAS AOS APÊNDICES A E B ................................................................... 240
ANEXO A Reprodução do panfleto comercializado nas Covinhas como o livro da história do santuário
............................................................................................................................................................. 241
16
1. INTRODUÇÃO À PESQUISA: PERCURSOS E PRESSUPOSTOS
Esta tese é um estudo etnográfico sobre um santuário popular conhecido como
As Covinhas, localizado no município de Rodolfo Fernandes, no Estado do Rio Grande
do Norte. O objetivo do trabalho é analisar a constituição das Covinhas
1
como lugar e
móvel de relações sociais, cujas operações e interesses dos diversos sujeitos implicados
conferem uma dinâmica própria ao espaço.
O santuário é um complexo de estruturas relativamente recente, datado da
década de 1980, embora sua história se associe a um enredo da memória local
referenciado há mais de um século. O lugar é palco de uma grande festa anual a cada dia
12 de outubro, para a qual se dirigem milhares de pessoas de diversos municípios da
região, além de outras localidades que paulatinamente vêem se introduzindo no circuito.
Tanto a festa como as atividades ordinárias das Covinhas giram em torno da
memória de duas crianças (as Meninas das Covinhas
2
) que teriam morrido no local,
vítimas do flagelo da seca ainda no ano de 1877. Contudo, é apenas com a experiência
do milagre vivida pelo proprietário da fazenda onde se abriga o santuário que o culto
começa a conquistar as fisionomias atualmente presentes.
O trabalho de campo teve início em 2005 e se estendeu até 2009. Nesse
intervalo, viajei a Rodolfo Fernandes seis vezes. Fiz duas visitas para realizar
entrevistas e participei quatro anos seguidos da festa. Ainda que as “instruções”
etnográficas sugiram a realização de um trabalho de campo intenso, com a exposição
exaustiva aos contextos nativos, acredito que a brevidade da minha presença por o
teve conseqüências substantivas do ponto de vista da coleta de informações, entretanto,
senti a necessidade de retornar várias vezes para reforçar alguns dados. O resultado
dessa circularidade foi que pude acompanhar processos, relações e mudanças em curso
durante os quatro anos, os quais se mostraram ao final da pesquisa o núcleo central da
1
Utilizo o termo Covinhas grafado em maiúsculo para referir-me ao complexo que constitui
todo o santuário.
2
Adoto o termo Meninas, grafado em maiúsculo para reportar-me às Meninas das Covinhas.
17
tese. Com isso, posso enfim afirmar que o interesse do trabalho é compreender a
dinâmica dos diversos agentes nas Covinhas, pois é sobre essa vitalidade das relações e
suas repercussões conjunturais do que trata esse estudo afinal.
Mas, se hoje posso estar apresentando um trabalho com um objeto definido e
seus objetivos articulados, essa não foi uma realidade que me acompanhou durante toda
a pesquisa. Como todo pesquisador social, sabia desde o princípio que minhas questões
não eram ou não estariam fechadas por completo até a conclusão da tese, uma vez que o
próprio campo se encarrega em parte de fornecer direções no curso da investigão.
Todavia, nunca imaginara que essa instabilidade me acompanharia por tanto tempo.
A pesquisa é um processo, algo em fluxo, em dinâmica, em movimento. Ela
compreende mudanças, retornos, progressos, mas, sobretudo, superação. O pesquisador
precisa buscar além de suas próprias metas de investigação, as estratégias para transpor
os obstáculos, os impasses. Precisa conquistar segurança para fazer escolhas, enfrentar
medos e, muitas vezes, frustrar expectativas. A pesquisa é assim, em última medida, não
a ilusão da descoberta, da revelação, mas os caminhos que conduziram até ela, naquilo
que Bourdieu (2004a) chamou de a construção do objeto. Ao pensar sobre este processo
espelho-me numa sua crítica quando ele se refere aos pesquisadores que permanecendo
imersos na presunção de que fazem pesquisa, obliteram o simples exercício de seu
ofício, em cujo percurso os entraves epistemológicos são uma marca universalmente
partilhada (2004b). Assim, diferentemente do que anseia o homo academicus, que
gosta do acabado, que faz desaparecer dos seus trabalhos, como os pintores de mesma
natureza [acadêmicos], os vestígios da pincelada, os toques e os retoques
(BOURDIEU, 2004b, p. 19), acredito ser necessário explorar os caminhos da
investigação, expondo os percalços e as escolhas que realizei, evidenciando assim o
modus operandi que acionei durante a construção da tese.
Tal como os anos que levei para consolidar meu estudo, foram muitos os
caminhos que percorri, fossem eles os metafóricos, fossem os quilômetros reais das
avenidas e rodovias. Andei pelo sertão, desbravando santos e cultos, pelas bibliotecas e
institutos de pesquisa, procurando vestígios de um objeto que tencionava construir, mas,
além desses, viajei por estradas distantes, encontrando e abandonando idéias, na solidão
povoada dos meus pensamentos.
18
E porque falar disso agora, quando o trabalho já está escrito e as dificuldades já
ficaram para trás? Quando o texto autonomiza-se, reifica-se, e quando todos os
constrangimentos que o atravessaram o precisam necessariamente fazer parte da sua
vida pública? Por que, afinal, publicar um diário se o que ele conta pode ficar guardado
no silêncio da memória de seus mortos
3
?
Sinto importante registrar o processo de construção da pesquisa, posto que ele
não tenha sido linear, mas recursivo. Assim, ao dividir essa biografia, além de
registrar a memória da investigação, encontro uma forma de permitir ao leitor a sua
exegese, de introduzi-lo numa espécie de hermenêutica da investigação. Começarei,
redundantemente, do começo. Do que me levou ao campo, ao tema e, por conseqüência,
ao estudo.
O encontro com a temática foi parcialmente fortuito. Desde a infância inserta
em um contexto que oscilava entre experiências com os domínios populares e o acesso a
uma cultura letrada, sempre tive fascínio pelas produções do povo. Particularmente, a
religião me chamava atenção. Uma relação íntima com esse mundo talvez tenha me
assegurado a aproximação.
Embora nutrisse a afinidade com o campo, permaneci durante minha formação
acadêmica, tanto na graduação como no mestrado, mais ligada a temas institucionais do
catolicismo (VAN DEN BERG, 1999; 2003). Para o doutorado, comprometi-me com a
idéia de “encontrar” uma temática popular sobre a qual me dedicaria. Busquei-a durante
certo tempo até que ela me chegou através da convergência de falas de duas pessoas
bem próximas a mim.
Em uma conversa preliminar com o professor Luiz Assunção, consultava-o
acerca de uma temática que despontava como foco de interesse momentâneo para mim,
pois se ligava a questões educacionais que estavam presentes na minha prática
profissional contemporânea àquele instante. Recordo que Luiz franziu a testa, com claro
ar de reprovação ao que eu me propunha. Num momento posterior, ele veio ao meu
encontro munido de um verdadeiro arsenal: indicava-me algumas preciosidades
antropológicas que guardara para futuras pesquisas ou para indicar aos seus pupilos. À
3
Lembro do diário de Malinowski (MALINOWSKI, 1997) e de toda repercussão que sua
publicação causou no universo antropológico desde quando sua viúva, Valetta Malinowski,
entregou-o para edição em 1966.
19
medida que ele me mostrava uma série de recortes de jornais e anotações pessoais, dizia
repetidas vezes: “isso aqui eu não mostro para qualquer um, viu?”. Recordo que fiquei
lisonjeada pela confiança depositada em mim. Entre os temas estavam alguns
personagens, fatos e lugares pitorescos, mas no conjunto um deles me chamou atenção,
talvez pelo fato de se cruzar com outro recente relato que eu ouvira.
Numa viagem de trabalho para um pequeno município do Oeste do Estado, por
ora de ministrar um curso, minha mãe visitou um “ponto turísticoda cidade que sediou
a capacitação. Impressionada com a história que dava “sentido” ao tal lugar, ela me
ofereceu as pistas que viriam se somar às de Luiz, que ainda acresceria uma terceira. Os
três casos depois se potencializariam numa progressão aritmética em conversas pela
academia e pelo sertão.
Propus, então, na forma de projeto para o programa de Pós-Graduação, um
estudo comparativo envolvendo aspectos recorrentes nas três situações que identificara
inicialmente. Ao longo do tempo, não abandonei a proposta inicial, mas modifiquei-a
permitindo assim alguns ajustes. Diria que, na mainversa do que recorrentemente
tentamos fazer e somos cobrados pelos nossos pares a realizar - o famigerado corte e
delimitação do campo - a despeito de reduzi-lo o que fiz foi ampliá-lo, ou talvez,
amplificá-lo, com base nas constatações que o trabalho de campo me proporcionava.
No texto que apresentei no seminário doutoral, eu concluía o parágrafo anterior
com a assertiva: “para minha própria sorte, espero tê-lo feito com propriedade”. Agora,
concluída a tese, reformulo-a: para minha própria sorte e seguindo os conselhos da
banca examinadora
4
, redimensionei novamente meu trabalho.
O que me levara ao texto apresentado no seminário doutoral foram o contato e
a empolgão com o campo. À custa de encontrar informações sobre meus casos
iniciais, me lancei no exercício de pesquisar em fontes de diversas naturezas alguma
forma de registro sobre eles, além do que realizei viagens para os destinos onde se
localizavam esses cultos. Em pouco tempo, me dei conta que o hagiário popular
4
Os professores Dr. Edmilson Lopes Júnior (UFRN) e Dra. Eliane Tânia Martins de Freitas
(UFRN).
20
potiguar era bem maior que aquele punhado de casos que colecionava inicialmente.
Chegara, portanto, ao que reuni naquele momento sob a categoria de Santos locais
5
.
Santos locais são personagens para quem se destinam cultos específicos, que
cristalizam relações de afinidade e ligação com aspectos da história, geografia e cultura
das comunidades/regiões onde se inserem. Em geral, eles emergem como vultos
populares em razão de sua condição de milagreiros e sua respectiva projeção resulta do
fato de suas histórias serem marcadas por episódios de intensa disjunção, culminados
com a morte. Com a repercussão desse enredo, se processam formas de mobilização
social e de reconhecimento público dos referidos personagens, os quais são alçados
popularmente como entidades espirituais portadoras de potências especiais.
Os personagens-santos que enredam essas narrativas populares diferem quanto
à idade, sexo e contexto de suas mortes, mas todos se localizam numa unidade de
classe: são pobres. As histórias/biografias que alimentam os mitos locais se cruzam em
alguns aspectos da mesma forma como os processos de assunção popular são similares,
contudo, eles não são intercambiáveis. O elemento diacrítico de cada um desses santos é
justo o caráter local que eles assumem, articulando no enredo da narrativa e nas práticas
devocionais sentidos que se enraízam na geografia, na memória e nas concepções dos
grupos partilhantes dos respectivos cultos.
A abrangência desses cultos, mormente, está circunscrita a um raio
dimensional geograficamente próximo, tornando-os assim cultos locais, pois sua lógica
de promoção/projeção o os desprende do lugar sagrado, hierofanicamente marcado.
Com isso, apesar de as ações e potencialidades do santo poder ser propaladas para além
do seu lugar, esse permanece como o ponto de referência em torno do qual gravita a
devoção. Resulta desse movimento que os santos locais não se projetam numa
perspectiva “universalizante”, tal como os santos canônicos, mas se enraízam no pólo
oposto, de interligão com uma identidade autóctone, posto que sua razão de ser esteja
vinculada ao contexto que os enseja. Portanto, sem o seu lugar e sua história esses
santos não existem.
5
Ainda que o foco da tese tenha se modificado, como apresento a seguir, permaneci com essa
categoria analítica entendendo-a como elucidativa para compreender o que ocorre nas Covinhas.
Isso se deve ao fato de mesmo constituindo-se singular, o caso das Meninas se enquadra como
exemplo notório daquilo que problematizo através da idéia de Santos locais.
21
Os indícios que juntei na busca por esses personagens me conduziram à
descoberta de que apesar de não figurar em estatísticas, relatórios e/ou outras formas de
registros escritos
6
, a prática popular de culto a santos locais era mais comum do que eu
podia imaginar. Assim, num intervalo de três anos, sem muito esforço, e com perguntas
simples, tal como você sabe se na sua cidade existe alguém que após morrer tenha sido
considerado santo e para quem se direcione algum culto especial?, acumulei pelo
menos duas dezenas de casos, dos quais me apropriei sistematicamente como universo
de pesquisa.
Conquanto buscasse registros e publicações que pudessem me oferecer
referências sobre os cultos a santos locais que identifiquei no Estado o as encontrava
com facilidade
7
, do que deduzi ser esse um campo ainda em aberto, com perspectivas
pouco ou nada exploradas
8
. Decidi lançar-me àquela altura na empresa de conhecer a
devoção popular na forma desses santos desconhecidos, dos quais pouco se fala, a não
ser o próprio povo que os produz e fomenta seus respectivos cultos.
De imediato à decisão me cerquei de alguns questionamentos: Por que inventar
esses santos diante de tantos que estão disponíveis num leque canônico completo e
complexo, cuja especialização assegura um mediador para cada tipo de problema?
6
Apenas no segundo semestre de 2008 “descobri” por acaso entre os empoeirados livros de
história do RN, na Biblioteca Central Zila Mamede-UFRN, um pequeno volume sob a autoria
de Veríssimo de Melo (1976), no qual é apresentado um calendário das devoções populares do
Estado. Essa intenção soma-se ao levantamento que o próprio autor refere-se como “sumário”
dos “acontecimentos marcantes e nomes de alguns homens e mulheres mais notáveis de nossa
terra (ou que aqui viveram) nestes trezentos e setenta e sete anos de nossa existência como
Província e Estado” (MELO V. d., 1976, p. 9).
7
Excetuando fragmentos que abordam alguns desses cultos e personagens em trabalhos de Pós-
Graduação sobre o imaginário e festas religiosas na região do Seridó (DANTAS M. I., 2002;
SILVA JUNIOR, 2005), identifiquei uma tese (FREITAS E. T., 2006) e uma monografia
(SILVA A. S., 2007) que juntas abordam os casos de culto a bandidos santos nos cemitérios de
Natal e Mossoró. Além dessas, encontrei três monografias de graduação (PALHARES &
OLIVEIRA, 2004; SILVA & AZEVEDO, 2004; SILVA A. P., 2008) também na região do
Seridó e algumas notas esparsas em livros de historiadores e pesquisadores locais (CASCUDO
L. d., 1974; CASCUDO L. d., 1985; SARAIVA, 1984; ALVES A. , 1997). Afora esses, uma
solitária e recente publicação (FERNANDES J. B., 2008) se dedica a apresentar as fisionomias
de um culto na região Oeste do Estado.
8
Cabe destacar que a iniciativa de discutir essa temática não é nova. Embora um pouco escassa,
a produção acadêmica e literária sobre devoções locais conta com significativos trabalhos que
retratam casos e realidades diferentes tanto no Brasil (FAGUNDES, 2003; FREITAS, 2006;
NÓBREGA, 2000; PEREIRA, 2005; SÁEZ, 1996; SCHNEIDER, 2001; SANTOS & MAIA,
2008); como em outros países (JAMOUS, 1995; COLUCCIO, 1994; MARTIN, 2007; BLANC,
1995).
22
Afinal, cada causa tem seu padroeiro particular. Quais critérios fazem esses
personagens se diferenciarem em relação aos outros sujeitos de seu universo que
esses santos são, a princípio, pessoas comuns, sem qualificativos especiais que os
investissem de faculdades distintas dos demais? O que leva tantas pessoas a acreditar
que esses personagens m poderes de intervenção no curso dos acontecimentos uma
vez que eles são simplesmente pessoas que morreram como quaisquer outras que um dia
estiveram vivas? Que sentimentos e motivações movem as pessoas no sentido de
acreditar nesses santos posto que elas realizam práticas e rituais que se confrontam com
uma ordem institucional avessa a esse tipo de culto? Por fim, será que estão vivos esses
santos a despeito de todas as mudanças que acompanharam a sociedade brasileira,
mesmo nas comunidades mais remotas, onde supostamente o movimento de inserção
das demandas da modernidade suplanta os valores arcaizantes presentes nas culturas
locais?
Munida dessas questões e dos santos locais que encontrara, me propunha a
produzir um trabalho inserido na lacuna dos estudos sobre religiosidade popular no Rio
Grande do Norte, buscando mapear algumas dessas manifestações e recuperar, através
de registros, narrativas e práticas devocionais, a memória e os sentidos de alguns dos
cultos que se dirigiam a esses personagens e se distribuíam por diferentes pontos do
Estado. Além disso, o objetivo era registrar a recorrência do fenômeno, no tempo e no
espaço, promovendo o diálogo entre aspectos que uniam e separavam os respectivos
cultos, de forma que fosse possível compreender os processos e estratégias simbólicas
que semantizavam as devoções e concorriam para a elaboração de uma plausibilidade
nativa. Sintetizando, me propunha a produzir uma cartografia dos santos locais
9
, ainda
que me amparasse em dados etnográficos para reali-la.
Fui convencida, pela banca, pelo orientador, e pelas próprias limitações que o
trabalho envolvia, a mudar o foco, sem perder o tema. Depois de tantos investimentos e
às vésperas de expirar o prazo de conclusão do doutorado, precisava redimensionar o
trabalho. Mais que isso, precisava realinhar meus pensamentos. Não obstante, a
mudança representava menos do que ela parecia, uma vez que o trabalho etnográfico
sempre estivera em mente e em curso.
9
Ainda que o foco da tese tenha se modificado, apresento nos Apêndices A e B alguns
resultados que o mapeamento já havia produzido até então.
23
Durante todas as idas e vindas da pesquisa, seus contornos e reconfigurações, a
única coisa que havia ficado inabalada era a pesquisa de campo em Rodolfo Fernandes.
Porém, de o envolvida que estava com a idéia de fazer uma cartografia, adiara cada
vez a escrita da etnografia, ainda que tivesse feito todos os registros necessários para
executá-la e o campo revelasse uma riqueza impressionante. Com a mente embotada da
empresa anterior, só quando precisei drasticamente mudar os planos percebi o mundo de
possibilidades que as Covinhas me forneciam. A partir de então passei a investir com
mais ênfase naquilo que eu tinha de melhor, razão pela qual ainda voltei a campo em
outubro de 2009.
1.1. Dos pertencimentos teóricos às percepções sobre o campo
O trabalho do antropólogo embora fortemente marcado pela experiência de
campo, que se tornou marca registrada do fazer antropológico, não se restringe a ele.
Desse modo, além das condições do campo e dos movimentos que por vezes se
processam ao seu sabor, existem outras questões epistemológicas que esteiam o métier,
condicionando a investigação.
As operações do olhar, do ouvir e do escrever, na prática da pesquisa social,
ganham fisionomias de atos cognitivos implicados, os quais, ultrapassando a
trivialidade, se enraízam nos condicionamentos dos sujeitos que os realizam
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Assim, resultante da disciplinarização que sofrem
esses atos é inevitável que o objeto sofra uma dupla refração. A primeira, durante o
processo de construção do objeto, quando “preparados para a investigação empírica, o
objeto, sob o qual dirigimos nosso olhar, foi previamente alterado pelo próprio modo
de visualizá-lo” (p. 19). Posteriormente, quando o campo se transforma em discurso, as
observações se contaminam pelo contexto do being here (p. 27).
É acerca dessas contaminações que passo a falar a partir de agora, buscando
apresentar sob que lentes eu vi e ouvi o campo e cuja presença me acompanhou no
registro da escrita. Deter-me-ei, sobremaneira, nesse momento, a evidenciar os
pressupostos que situam minha compreensão acerca do objeto que construí, ao passo
24
que as disposições de foro mais conceitual reservei-as para as seções propriamente
teóricas e analíticas da tese.
O tema da tese se insere no âmbito daquilo que se costumou caracterizar como
expressão de um catolicismo popular, mas como esse campo é amplo e controverso
sinto necessário expor sob que bases estou discutindo esse universo. Busquei produzir,
então, uma leitura da religiosidade popular que fosse além da dicotomia
popular/institucional, sobre a qual algumas vezes se construiu a compreensão do
primeiro a partir do referencial edificado pelo último. Tal enfoque se produz em razão
de um enraizamento dessas perspectivas que buscam no suporte da religião
institucionalizada as ferramentas para ler e interpretar as formas e produções populares.
Esse movimento, recorrentemente, encerra uma visão dos cultos e formas de piedade
popular localizando-os num sincretismo que se destaca pela negatividade. Emergem
assim a falta de coerência, consistência e racionalidade” como produtos de relações
deslocadas e desvirtuadas no que tange aos delineamentos teológicos e doutrinários
elaborados originalmente no seio institucional, cujo mérito se apresenta sob o selo de
uma presumida unidade (BIRMAN, 1992).
Parto do pressuposto, portanto, de que para compreender o universo empírico
para o qual me volto é preciso lançar-se num exercício interpretativo que busque
apreender as significações dos significados presentes na prática dos sujeitos em ação.
Logo, para que isso se realize é fundamental, é exigência elementar, buscar relativizar
os modos de crença. Tal exercício possibilita o fechar-se de antemão ao universo
complexo de elaborações que ultrapassam o conjunto previamente programado nos
delineamentos institucionais. Essa postura favorece perceber o quão diversos são esses
modos de crença, da mesma forma como permite pensar interconexões explicativas que
realçam aspectos para além das fronteiras institucionais “rigidamente” estabelecidas.
Destarte, não estou situando essas manifestações como produtos autônomos,
destacados de quaisquer formas de relação com o conjunto institucional. Antes, estou
buscando apresentar sua singularidade a partir dos processos sociais e culturais que
acionam elementos integrantes do repertório hegemônico, mas que o fazem de maneira
reelaborada, construindo para eles um sentido novo, no curso de suas reavaliações
práticas. Assim, quanto mais as coisas parecem iguais, mais elas mudam (SAHLINS M.
, 1994, p. 181). De partir, portanto, da lente institucional, com suas categorias
25
estabelecidas, para ver e ler o fenômeno popular, eu adotei a orientação inversa, qual
seja, de entender os cultos populares a partir das relações que se constroem nos seus
universos próprios.
Busquei explorar aspectos e condições que concorrem para a compreensão, ou
melhor, a interpretação das relações em curso. Procurei realizar o exercício de
desvendar a linguagem oculta dos significados implicados nas ações dos sujeitos. E,
como esse exercício não acontece por outras vias que não aquelas de um mergulho na
cultura”, de uma experiência tida e densa com seu contexto (GEERTZ, 1989), ao
tencionar compreender as Covinhas e as relações ancoradas no desenvolvimento do
culto às Meninas, além das concepções que sustentam sua vitalidade, foi inequívoco
produzir um esforço de leitura com o qual pudesse interpretar a linguagem que dá vida à
sua gramática. Esse caminho, portanto, se construiu pela etnografia.
Tomando essa perspectiva como pressuposto conceitual e metodológico,
busquei produzir o trabalho na prática da observação, notadamente participante, com o
registro etnográfico e a partir da análise comparativa. Para isso, recorro ao trabalho de
campo como fonte prioritária de levantamento empírico, mas também utilizo fontes
secundárias.
Realizei entrevistas, mas principalmente me detive em conversas informais,
dado que pelo despojamento da cerimônia, os interlocutores se mostravam mais livres e
menos receosos. Com essa estratégia os sujeitos podiam ser mais autênticos, sem
preocupar-se em medir o alcance de suas declarações. Por vezes, não apresentei de
imediato minha identidade de pesquisadora ou intenções de estudo, pois notei ser mais
profícuo somar-me à multidão de anônimos e curiosos que se interessavam por saber e
falar sobre as Meninas e seu culto. Nessa posição, entendo, não feria eticamente as
relações da pesquisa, posto que observava e participava de rodas de conversa como
qualquer outro que se aproximava.
À medida que me familiarizei com os padrões de interação no interior dos
eventos que participei, haja vista que os contatos com os devotos se processaram em sua
maior parte durante as festas anuais nas Covinhas, me sentia mais livre para engatar
conversas que sempre ouvia se repetir entre os freqüentadores. Assim, investi-me do
repertório nativo e com isso, freqüentemente, lançava comentários ou questões de forma
26
a provocar uma conversa, debate ou mesmo disputas, de plausibilidades. Desses
episódios, me foi possível extrair grande parte dos aspectos que substanciam o trabalho.
Participam da análise informações que interceptei em conversas, discursos e
entrevistas, nas cerimônias e em seus preparativos, nas práticas rituais e nos elementos
congêneres nele integrados ofertas, presentes e ex-votos -, nos registros escritos
(cartas e bilhetes) depositados pelos devotos, nos usos do espaço e seus determinantes,
e, por último, nas relações sociais e simbólicas que se desenvolvem em torno das
Covinhas e dos sujeitos ali implicados.
A opção por esse trajeto se justifica pelo entendimento de que sujeitos sociais
são personagens ativos e reflexivos (GIDDENS, 2003), capazes de construir os sentidos
de suas ações cognoscitividade - , amoldando, em conformidade com suas realidades,
os elementos que se inserem em sua conjuntura cultural. Isso permite a esses sujeitos
dotar seus conteúdos numa semântica nova, articulada consoante os esquemas práticos e
intelectuais de seus respectivos contextos. Tal como afirma Sahlins (2004), numa
relação onde se integram sistema mundial e local, os nativos recorrem às suas categorias
para mediar/adequar os produtos e relações externas aos esquemas culturais locais.
Entendendo a equação de Sahlins como convalidada para a realidade em análise, a
religião institucional pode ser vista como um “sistema mundial”, por seu caráter
universalizante, que exercendo uma forte influência na cultura e religiosidade das
comunidades que aderem ao culto das Meninas, ao mesmo tempo em que lhes
determina também é subvertido de acordo com as demandas locais.
O interesse em evidenciar essa preocupação se inscreve no fato de perceber que
olhar as produções populares sobre as quais vou me deter sob o ponto de vista da
“convenção” institucionalizada implica em -las enquanto expressões distorcidas
daquela, o que na verdade elas não são. Os cultos aos santos locais, de maneira especial
as Meninas, são outra coisa que pode ser pensada se feita a sua leitura “de cabeça
para baixo”. Ao partir desses cultos propriamente, entendendo-os enquanto produções
culturais que estão enraizadas no terreno de uma religiosidade, articulando elementos
situados no âmbito das práticas e tradições orais das comunidades em que se inserem, é
possível perceber, enfim, que elas revelam uma congruência com o sistema simbólico
que as fomenta e aparelha as visões de mundo de suas populações. O resultado que se
alcança a partir dessa forma de olhar é perceber que nesse contexto a realidade não
27
separa magia de religião, tampouco milagre de cotidiano, antes, esses pares se implicam
mutuamente. Da associação, é possível reler a “religião” de forma a apropriar-se dos
elementos que ela oferece enquanto definidores de um culto dito católico, mas que se
consorcia com aspectos outros circundantes e provenientes dos enraizamentos culturais
mais amplos.
Os cultos destinados aos santos locais, portanto, não podem antecipadamente
ser rotulados enquanto formas depreciadas, desvirtuadas, desviadas ou desviantes da
religião canônica, pois que nenhum deles tem explícita e relevantemente a preocupação
em inscrever-se no reduto canônico oficial. As comunidades que os realizam
prescindem da autorização eclesiástica como legitimadora da devoção, que o caráter
milagroso do personagem é que cumpre esse papel. Apesar disso, em muitos dos
santuários que acolhem esses personagens a presença oficial da Igreja, mesmo cotejando
intenção adversa, significa um acréscimo na plausibilidade do orago. A relação com o
catolicismo nesses cultos é, portanto, mais de natureza que de forma, posto que articula
santos e algumas práticas eminentemente católicas mas o faz de maneira heterodoxa, à
exemplo do que freqüentemente se produziu na história do catolicismo pré-romanizado.
Importa ainda destacar outra questão implicada na temática da tese, uma vez
que ela busca romper com o paradigma “tradicional” dos estudos sobre religiosidade
popular não apenas no que tange à abordagem, mas especialmente - e talvez aquela seja
fruto desta - na escolha do objeto. O diferencial do trabalho reside no fato de este
ocupar-se de um tipo de culto para o qual pouco se olhou, posto que sempre fosse visto
como forma residual de ignorância, superstição ou magia. Ainda que esses
qualificativos não figurem enquanto “privilégio” das formas de culto que aqui abordo,
tendo em vista que a categoria “popular” sempre foi associada a modos arcaicos de
pensar e agir socialmente, é possível afirmar que as adjetivações são ainda mais
contundentes quando remetidas ao objeto de estudo em pauta. Isso porque a partir de
uma clivagem que demarca o próprio universo popular, estariam dispostos em uma
escala os diferentes níveis de práticas e crenças, de modo que os cultos aos santos locais
estão alocados num patamar bastante elevado de uma graduação que mais se aproxima
da magia e da superstição
10
.
10
Sobre essa questão Birman problematiza a idéia de popular tomando-a enquanto “categoria
que ao mesmo tempo em que permite aproximar, num corte horizontal, as inúmeras
28
A preocupação em proceder à análise de um culto periférico se dirige pelo fato
de entender que boa parte da literatura produzida sobre a religiosidade popular
freqüentemente a aborda sob o ponto de vista das questões de “maior destaque”
11
nesse
universo, desprezando assim as temáticas “menores”. Desse modo, é nitidamente visível
que por mais diversos que tenham se orientado os enfoques - festas, tradições,
movimentos, lugares sagrados, disputas ideológicas etc. -, os estudos sobre religiosidade
popular derrocaram em maior ou menor grau na discussão sobre o culto aos santos,
que esse aspecto tornou-se produto emblemático do catolicismo nacional. Contudo, os
bem-aventurados selecionados para esse fim gravitaram sempre num universo de
personagens e/ou espaços institucionais ou institucionalizáveis.
Em geral, essa abordagem considerou dois direcionamentos. Primeiramente,
em atenção aos processos de sincretismo que grassam no catolicismo, abraçando
práticas e crenças que acolhem desde paganismos europeus a elementos de origem
africana e indígena, as análises tomaram como referência as relações entre as variantes
religiosas do que derivava a constatação da miríade de sentidos que se construíam para
os personagens veiculados inicialmente pelo cristianismo (BASTIDE, 1971; VAINFAS,
1995; SOUZA L. d., 2005). Numa outra linha, considerou-se antes a capacidade de
mobilização que determinados cultos populares eram capazes de promover,
arregimentando as massas em torno de personagens alinhados ou não
institucionalmente. Nesses casos, figuram estudos clássicos que analisam a religiosidade
popular tomando como parâmetro os centros de devoção e peregrinação que vão se
consolidar no cenário nacional (DELLA CAVA, 1976; FERNANDES R. C., 1982;
BRANDÃO, 1980; STEIL, 1996; SCARANO, 2004; GUTTILLA, 2006; MENEZES,
2004).
Mesmo nos estudos de comunidade que se desenvolvem nas décadas de 1950-
60 e que tomam como parâmetro as devoções locais, os santos populares ai
considerados são as apropriações populares dos santos canônicos (ZALUAR, 1983).
Assim, em todos os casos, os estudos partem de uma abordagem que considera os
características que marcam os cultos diversos aí localizados, pode conduzir a uma forma
redutora e etnocêntrica quando a abstração desconsidera a especificidade dos cultos em pauta,
“apagando” as diferenças efetivamente significativas” (1992, p. 169)
11
O destaque ao qual me refiro se dá pela visibilidade, projeção ou abrangência que esses cultos
assumem publicamente.
29
santos sempre a partir de uma relação institucional. Nessa medida, os santos populares,
por mais “desviantes” ou “ressemantizados” que sejam, guardam uma relação de
proximidade com a instituição.
A religiosidade popular, todavia, comporta produções que estão para além das
elaborações que gravitam no circuito institucional. Sua riqueza reside na polissemia das
formas que se multiplicam de maneira infinita em pequenos cultos e nas diversas
modalidades de crença, cujas práticas e valores guardam relações com a religião e o
universo mágico, construindo, enfim, um sistema religioso dotado de coerência própria.
Esses cultos se enraizaram profundamente nas práticas religiosas gestadas na formação
do catolicismo popular brasileiro, entretanto, suas expressões permaneceram
duplamente marginalizadas ao longo dos anos.
Em primeiro plano, a marginalidade se dá no interior do próprio sistema
religioso que promove, a partir do processo de romanização
12
, no século XIX, um
movimento de rejeição ao modelo tradicional do catolicismo que tinha na centralidade
do culto aos santos uma de suas principais características. Contudo, a despeito de suas
intenções, a aversão plantada no interior do catolicismo em relação à religiosidade
tradicional não logrou o êxito almejado, de forma que mesmo um pouco ofuscados pela
sacramentalização da religião, os santos permaneceram com um papel privilegiado,
sobretudo entre os segmentos populares, cuja visão “instrumental” da religião se projeta
com maior intensidade em detrimento de uma perspectiva intelectualizada, a qual goza
de maior penetração entre os grupos de classe média. O reflexo direto dessa mudança
foi o enraizamento das práticas tradicionais nas camadas populares, que por sua vez são
deslocadas para as margens difusas do sistema social e religioso.
O processo de marginalização, por seu turno, parece ter produzido reflexo
semelhante no universo acadêmico, que esse meio por muito tempo permaneceu
alheio ao desenvolvimento de questões sobre esse tipo de temática. Não obstante,
alguns trabalhos contemporâneos se inserem numa onda de atualização dos estudos
populares e vêm (re)descobrindo os cultos da periferia. Particularmente, no que tange ao
culto de santos locais podemos destacar os estudos que dedicaram atenção às
canonizações populares (COLUCCIO, 1994), recuperando o processo de
12
Sobre o processo de romanização ver Oliveira (1985)
30
construção/produção/invenção desses santos cultuados em cemitérios (SÁEZ, 1996;
SCHNEIDER, 2001; MARTIN, 2007; FREITAS E. T., 2006; PEREIRA J. C., 2005) ou
em lugares que guardam relação com suas hagiografias (FAGUNDES, 2003;
NÓBREGA, 2000; SILVA JUNIOR, 2005; SILVA & AZEVEDO, 2004; PALHARES
& OLIVEIRA, 2004; BIRMAN, 1992).
Ao conhecer essa literatura e cruzá-la com o campo que realizo, busco inserir a
tese no rol das produções que discutem os cultos periféricos, procurando, através da
exposição sobre as Covinhas, apresentar a dinâmica que marca seu espaço a partir das
relações que nele se processam. Desse modo, além da dimensão simbólica e ritual que
recupero através da descrição e análise das crenças e práticas ali implicadas, recupero as
relações de poder e os interesses em conflito dos diversos sujeitos em ação. Por fim,
procuro mostrar como o espaço social do santuário se transforma em conformidade com
as operações de seus sujeitos, os quais na busca por construir plausibilidades encerram
por produzir novas conjunturas e fisionomias do culto.
A tese está estruturada em seis capítulos. No primeiro deles, Santos locais,
cultura popular e cotidiano busco apresentar uma problematização teórica acerca dos
conceitos de popular e cultura popular, entendendo-os como categorias elucidativas para
a discussão de aspectos inseridos no contexto em que se processa a experiência do
santuário. Todavia, busco contemporizar algumas polêmicas que a categorização
implica, pressupondo que é no plano das práticas e das operações dos sujeitos que estão
situados os sentidos para o santuário, para o culto e suas relações. Nessa perspectiva,
aponto a noção de religiosidade, em detrimento de religião, como uma saída possível
para pensar o que acontece nas Covinhas.
O segundo capítulo, As Covinhas: uma descrição, como o próprio título
demonstra, objetivo apresentar uma leitura operacional do santuário, mostrando as
estruturas que se distribuem no complexo, bem como quem as freqüenta e a partir de
que intenções. Mesmo introduzindo esse plano geral dos significados engendrados no
espaço das Covinhas, reservo a discussão mais sistemática de suas apropriações práticas
para um capítulo posterior. Todavia, encerro essa seção mostrando que para além de um
lugar, as Covinhas constituem um espaço experimentado e significado a partir de
percepções que não são unívocas.
31
Em As Covinhas e sua dinâmica: os antecedentes da festa evidencio as
relações que se processam na rotina do santuário, bem como mapeio as estratégias de
articulação e mobilização de romeiros nas suas comunidades de origem, as quais
freqüentemente contam com uma ajuda extra de alguns personagens que potencializam
essa organização. Também exploro nesse capítulo as razões que impelem os diversos
sujeitos a destinar-se às Covinhas no dia 12 de outubro, entendendo que, assim como
são diversos os freqüentadores, também são muitas as justificativas para se colocar em
marcha. Não obstante, para além dos romeiros, existem outros personagens e interesses
que contribuem para dinamizar as relações e os sentidos da romaria e da festa.
Na seção seguinte, Em dias de festa: etnografia dos usos sociais do
santuário, reconstruo etnograficamente as vivências do santuário a partir das práticas
rituais e das formas complexas de pôr a piedade em curso. Nessa apresentação, busco
mostrar que embora a experiência do santuário esteja ancorada numa vivencia
ritualizada da festa e do espaço, nas Covinhas a dimensão do conflito é uma presença
sempre iminente. As razões para isso tanto são conseqüência do caráter precário do
culto, que por um lado exige um trabalho simbólico continuado, como também resultam
das contradições evidentes que os interesses dos sujeitos fazem emergir nas suas
relações. É nesse contexto que se desenvolvem as performances, as elaborações
discursivas e narrativas que evidenciam desde uma dimensão dramática da história do
santuário à exasperação política de seus agentes, além do que ofereço uma visão
preliminar das apropriações e dos processos criativos que envolvem a fenomenologia
das Covinhas.
O penúltimo capítulo A invenção da devoção: dos santos locais às Meninas
das Covinhas trata de situar o fenômeno das crianças-santas cultuadas no santuário
como expressão de uma forma singular da piedade que ao cruzar a imagem do martírio,
relida a partir das formas violentas de morrer, com os sinais indexadores da santidade e
a virtualidade da ação de alguns personagens locais, alça-os à condição do que chamo
santo local. Ainda que representativas dessa categoria, ao analisar a devoção às Meninas
das Covinhas, ultrapasso as feições operativas que circunstanciam minha compreensão
geral daqueles personagens, isso porque, considero indispensável entender cada santo
local a partir de sua especificidade ou, como afirmei, a partir de sua história. Essa
“história” que defendo é também alvo de discussão deste capítulo, quando recupero as
32
formas como a tradição da devoção é inventada. Nesse sentido, o que chamo de história
é a investigação de algumas formas e estratégias através das quais as personagens são
capitalizadas no repertório local e alçadas à condição de milagrosas. Nesse processo,
são evidenciadas as diversas maneiras pelas quais o culto se estabelece enquanto
referência espacial, mas também no plano de sua atualização mítica. Igualmente,
procuro demonstrar que esse movimento longe de estar recolhido nas origens da
devoção é uma recursividade sistemática, que entre outras coisas busca atualizar e situar
no plano das novas conjunturas o santuário e seus freqüentadores.
Por último, sistematizo as informações relativas aos Interesses e mudanças:
os sujeitos em cena. Nesta seção demonstro como do ponto de vista do discurso e da
ação, as relações são percebidas e vivenciadas, suscitando mudanças, reinventando o
espaço e capitalizando seus agentes. Precipito a discussão retomando uma espécie de
retrospectiva dos debates e conflitos, situando seus contentores e as razões que os
mobilizam. Na parte final, demonstro de maneira processual como as rotinas da festa e
do santuário, bem como a configuração do espaço m sendo modificados em resposta
de demandas simbólicas, mas também em consonância com as operações e estratégias
dos atores que fazem as Covinhas acontecer.
33
2. SANTOS LOCAIS, CULTURA POPULAR E COTIDIANO
Desde as primeiras reflexões acerca de uma presumida cultura do povo, a
definição do que seja popular é objeto de controvérsias. Passados tantos anos desde
então, longe de os debates se esgotarem, parece que são recorrentemente renovados.
Embora se constitua ponto de inflexão, o popular, problemático como o é, ainda
permanece como a melhor adjetivação para compor o predicado que define as
produções e movimentos das camadas socialmente mais baixas. Entretanto, em razão
das implicações múltiplas que a terminologia sugere, ela não deve ser usada sem
circunspecção. Nesse sentido, antes adentrar nas questões propriamente etnográficas,
vou recuperar algumas reflexões teóricas e analíticas que participando desse debate são
também importantes para esta tese.
2.1. Que popular é esse? Os sujeitos sociais e os santos locais
Na Introdução à edição de Cultura popular na Idade Moderna, Burke (1989)
recupera algumas das principais críticas que se dirigiram à sua obra no intervalo de pelo
menos duas décadas desde a publicação original. Além disso, ele acresceu discussões
que sucederam seu material. Retomo esse debate pelo caráter de síntese que ele
representa na discussão acerca da noção de popular e cultura popular, além do que
compreendo que algumas das questões suscitadas em seu texto traduzem preocupações
que cercam também esta tese.
A primeira delas resulta dos debates intelectuais empreendidos em torno da
qualidade da cultura popular, uma vez que a partir do emprego da terminologia ecoaria
“uma falsa impressão de homogeneidade entre os grupos que dela participam. A esse
problema, estudiosos como Mandrou e Ginzburg teriam respondido substituindo a
terminologia em suas obras pela expressão, no plural, “cultura das classes populares”.
Em consonância com o discurso, reverberou entre os intelectuais que se dedicaram a
“temas populares” uma tendência em assumir posicionamentos análogos (CERTEAU,
34
1994; CANCLINI, 2003; CHAUÍ, 1987; FERNANDES R. C., 1982; BOSI, 1992;
BIRMAN, 1992).
Trazendo para o universo da pesquisa, a precaução em destacar certa
pluralidade dos grupos que participam dos cultos também é pertinente. Isso porque,
embora nas comunidades ou nas festas dos santos locais seja impositiva a presença de
segmentos que foram reunidos sob o rótulo de populares”, os grupos e as disposições
culturais dos mesmos não são uniformes. A variação entre eles longe de residir
unicamente no par urbano rural, porque essa condição em geral o está bem
delimitada, se instaura também entre os grupos de um único conjunto, o rural. É
possível perceber que no interior do mesmo grupo existem disposições culturais
distintas, as quais se ligam a coordenadas diversas. Os grupos populares e as respectivas
culturas que eles representam são plurais e situadas, não cabendo, então, homogeneizá-
las. Elas são distintas, o que, porém, não as faz menos populares.
Outra questão muito mais complexa é também listada por Burke (1989) e situa-
se no plano das relações e fronteiras entre as diferentes culturas disponíveis num mesmo
conjunto social. Isso porque se as culturas populares são plurais, também a cultura da
elite não é uniforme. Além do que os intercâmbios processados no interior dessas
culturas dão azo a pensar em relações muito mais intensas e profundas que meramente
uma suposta subordinação direta entre dominantes e dominados. Os produtos resultantes
desse mutualismo cultural, portanto, seriam matizados e distribuídos em gradientes
caleidoscópicos, os quais se sobrepõem em implicadas relações de poder, envolvendo
subordinação, mas também transgressão, barganha e negociação. A partir disso,
resultam arranjos complexos, onde as produções populares mesmo se ligando aos
segmentos sociais mais baixos se articulam com elementos de uma cultura de elite que a
eles se apresenta. Todavia, se a cultura de elite não está disponível integralmente aos
segmentos populares, mesmo porque seu capital se reserva em boa medida apenas a
grupos isolados da sociedade, o pouco que se oferece ao povo tem, virtualmente, as
condições de ser por ele reelaborado sob inúmeras maneiras.
No que tange ao movimento inverso, a assertiva também corresponde, dentro
do que Burke (1989) chamou de biculturalidade, ou seja, da situação onde os sujeitos
ligados a alta cultura, também conhecem, em maior ou menor grau, a cultura do povo.
Os muitos episódios que o autor retrata apresentam a aproximação dos dois contextos
35
culturais, mas de forma condensada o trecho selecionado abaixo uma mostra sobre a
argüição do autor:
O carnaval, por exemplo, era para todos. [...] [Mas] Não era apenas
nesses tempos de comemorações coletivas ritualizadas que as classes
altas ou cultas participavam da cultura popular. Pelo menos nas
cidades, ricos e pobres, nobres e plebeus assistiam aos mesmos
sermões. [...] Os palhaços eram populares tanto nas cortes como nas
tavernas, e muitas vezes eram os mesmos. [...]Folhetos e livros de
baladas parecem ter sido lidos por ricos e pobres, cultos e incultos.
[...] Curandeiros tinham protetores nas classes altas. [...] Os nobres
usavam objetos geralmente descritos hoje em dia como produtos de
arte folclórica. (BURKE, 1989, pp. 52-53)
Não obstante, em relação ao intercâmbio entre os segmentos sociais, cabe a
ressalva de que esse não se faz sem gradações e, como o próprio Burke destaca, a noção
de participação sob a qual se demonstrado a inserção dos sujeitos oriundos da alta
cultura na realidade popular é ela mesma indefinida, variando da total imersão do
sujeito à simples observação desinteressada. O problema que reside nessa questão,
ademais, se localiza no caráter semiótico da produção cultural, posto que uma
manifestação popular não guarda, em absoluto, o mesmo sentido quando dirigida para
grupos populares ou quando, noutra situação, é realizada para expectadores da elite.
No plano das relações sociais, portanto, a forma como essas culturas são
interceptadas e assimiladas materializam um circuito de apropriações que não são
desinteressadas ou aleatórias, antes, delineiam o campo das trocas que, pinçadas” dos
seus contextos, traduzem as disputas de força e poder no interior da sociedade. Nesse
ínterim, aparece o conceito gramsciano de hegemonia cultural, que apesar de não ser
acionado no trabalho do historiador, emerge enquanto solo fértil para reflexões.
A contribuição de Gramsci (1968) para a discussão é contundente, pois articula
de forma dialética o universo da cultura com os interesses e disputas políticas no
interior da estrutura social, repercutindo na formação das conjunturas que evidenciam o
jogo de forças de uma sociedade. O valor na leitura de Gramsci reside justamente na
forma dinâmica a partir da qual é possível perceber as articulações sociais no interior de
uma dada conjuntura. Ele evidencia a forma ativa como os movimentos realizados entre
as classes sociais se processam, demonstrando com isso que a hegemonia não representa
homogeneidade, tampouco uma condição absoluta e final, uma vez que ela é histórica.
36
Cabe ressaltar, que é nesse processo de conquista continuada da hegemonia que as
relações sociais se constroem, revelando, inclusive, um estreito intercâmbio das classes
dominantes com a cultura popular. Relações essas que definem os contornos
hegemônicos. A inovação teórica de Gramsci, portanto, está em revelar que os
processos envolvendo os grupos sociais numa dada conjuntura histórica são muito mais
complexos que relações de subordinação diretas e unívocas.
No tocante à seara das relações entre uma cultura popular e outra de foro mais
intelectualizado, que traduzem os movimentos dos sujeitos sociais ai empenhados, o que
se pode notar em atenção ao culto dos santos locais são os intercâmbios que uma cultura
religiosa popular promove em estreita associação com os dispositivos da religo
institucional. Os santos locais, de forma breve, podem ser definidos como um produto
resultante da convergência entre as idéias de alma, de martírio e de santidade, todos
ligados, enfim, ao sucedâneo da piedade.
Convém lembrar, que todas essas disposições têm raízes em construções que
não são exclusivamente populares, mas articulam-se com um aparato teológico e
institucional que as molda e fomenta. Basta pensar que a alma e o relevo que esta noção
ocupa na cosmologia cristã vai ser capitalizada de forma mais intensa apenas num
período relativamente recente na história da Igreja, na segunda metade do século XII,
quando emerge o terceiro lugar do além, o purgatório (LE GOFF, 1993). Porém, essa
nova noção que altera não apenas a geografia do além, mas também opera uma
revolução mental enraizada nos processos sociais que estavam em curso, sofre
determinações que tanto provêem dos debates e sistematizações teológicas como das
disposições de uma cultura folclórica medieval. Em relação aos santos e mártires,
expressamente nas formas de piedade sob as quais se estabelece o culto, mas também a
partir da condução que a instituição assume no controle e promoção desses personagens,
são quase infinitos os exemplos que retratam os intercâmbios entre a cultura eclesiástica
e a do povo.
Os santos locais e o sistema de crenças a que esses personagens se ligam, o
catolicismo popular, portanto, não são outra coisa que o resultado de complexos e
compósitos processos de convergência histórica e cultural que reúnem sob um mesmo
substrato aspectos populares e institucionais. Entendendo, nesse ínterim, que as relações
não são unilaterais, mas, antes, os movimentos são mutuamente alimentados, num
37
processo de diálogo e ajustamento contínuo. Assim, não foram apenas “leituras”
populares da religião formal que se processaram no continuum da história cristã, mas os
contornos que delineiam a trajetória do culto aos santos está profundamente ligada ao
incentivo e apropriação clerical das práticas de piedade popular. Não por acaso, um
processo de canonização oficial obedece a etapas racionalizadas que devem ter em sua
origem um fenômeno de ordem popular, ou melhor, uma “devoção que nasce no povo”
(WOODWARD, 1992).
Estou, assim, privilegiando uma leitura orgânica dos processos em detrimento
de relações mecânicas, entendendo por orgânica uma implicação contínua entre cultura
popular e cultura de elite. Os santos locais não representam outra coisa que a
concretização desses intercâmbios, pois como demonstro ao mesmo tempo em que o
sistema local se investe de disposições formais para oferecer certa plausibilidade a seu
orago, a Igreja, em muitas situações, se insere nos cultos num duplo processo que
envolve, ao mesmo tempo, negação e apropriação.
Um debate final, ainda em Burke, é interessante de ser resgatado.
Primeiramente, a partir do trabalho de William Chistian (apud Burke, 1989), que
comunga das pretensões de outros pensadores contemporâneos, para quem o adjetivo
popular foi preterido em função de local. A escolha pela nova terminologia testificou o
descompasso que a categoria anterior representou na leitura de alguns contextos
particulares, isso porque, no caso investigado por Christian, as práticas religiosas do
camponês eram similares à da aristocracia espanhola do século XVI. Contudo, na
avaliação de Burke, a oposição binária popular/elite teria sido simplesmente substituída
por outra tão problemática quanto a anterior. A mudança em si o reduziria as
ambigüidades pelo fato de a espacialização das relações não assegurar uma congruência
entre o que o centro diz e o que ele faz. Nas palavras dele:
A noção de centro, por exemplo, é difícil de definir, pois os centros
espaciais e os centros de poder nem sempre coincidem (pensamos em
Londres, Paris, Pequim...). No caso do catolicismo, podemos
razoavelmente assumir que Roma seja o centro, mas é bastante claro
que as devoções não oficiais eram tão comuns naquela cidade santa
quanto em qualquer outro lugar. (BURKE, 1989, p. 20)
38
Uma vez que a mudança de eixo apenas altera uma dificuldade conceitual, a
equação para o problema da cultura popular resolve-se no termo final apresentado por
Burke, quando ele ativa a noção de hábitos culturais populares, forjada por Chartier
(1990), mas embebida das proposições de Bourdieu (1992) e de Certeau (1994), e que
articula, no terreno da prática, os usos sociais das produções culturais que fazem os
sujeitos ou agentes.
Cabem, em relação aos últimos posicionamentos de Burke (1989), alguns
comentários que fazem dialogar as preocupações dele com as da tese. Primeiramente,
em relação à discussão sobre a noção de local. É apropriada a crítica que faz o
historiador: o lugar por si não define em absoluto as diferenças no plano das relações
sociais, nessa medida, a oposição centro/periferia apenas reiteraria a mesma
precariedade que o par popular/elite enseja. Contudo, quando tenho em tela o contexto
religioso do culto aos santos locais, a associação entre as noções de popular e local
funcionam numa espécie de complementação recíproca.
É preciso, entretanto, ficar claro que o estou, nesse momento, tratando como
local aquela condição de enraizamento identitário, cuja alusão tingiu as primeiras
páginas deste documento, quando defini quem são os personagens agrupados na
categoria dos santos locais. Para essa terminologia o adjetivo local permanece unívoco,
sinônimo de localidade, espacial e cultural. Fazendo, porém, a interligação de conceitos
com o debate acadêmico, esse outro local de que falo agora assume conotação diversa: a
de posição na espacialização dos sistemas de crença, os quais, ao distribuírem-se no
conjunto social das produções simbólicas, obedecem a gradações hierarquizadas sob o
ponto de vista de sistemas dominantes.
Partindo, então, desse entendimento e compreendendo que as terminologias
adotadas por Birman (1992), modos periféricos de crença, e por Pereira (2005),
devoções marginais, têm sentidos análogos ao que prefigura Christian (apud BURKE,
1989) com sua defesa do local, recorro à elas de modo a não embaraçar a discussão.
Quando afirmo que as idéias de popular e periférico se complementam tenho
em vista o fato de que uma não se equivale a outra e, portanto, ambas o se reduzem
mutuamente. Como conseqüência, o uso de uma em detrimento de outra não representa
simples substituição como argumenta Burke, posto que cada uma ultrapasse sentidos
39
que a outra o comporta na singularidade. A equação se coloca, então, nos seguintes
termos: se nem tudo que é periférico é popular, o fluxo inverso também é verdadeiro,
nem todas as produções populares são periféricas
13
.
Do silogismo, é possível concluir que quando um fenômeno é ao mesmo tempo
periférico e popular e que as categorias individualmente não instrumentalizam a sua
explicação impõe-se como prédica a associação de ambos os conceitos. O jogo retórico
aqui não é recurso desinteressado, aliás, nenhum jogo retórico o é. A intenção é
demonstrar que no caso do culto aos santos locais, o mesmo fenômeno é periférico e
popular.
O culto aos santos locais, portanto, pode ser lido, conceitualmente, a partir da
noção de popular por estar enraizado enquanto experiência social situada numa classe
(classes populares), por ter seu funcionamento regulado a partir de dispositivos mentais
ligados a essa classe (mentalidade popular) e por operar sua dinâmica a partir de
movimentos que se confrontam a uma estrutura dominante, mesmo que esse processo
não seja racionalmente pensado de maneira intencional (oposição cultural e política).
Não obstante, além de popular, o culto aos santos locais também deve ser
compreendido como devoção periférica ou marginal, posto que sua localização no
campo religioso se constrói a partir de uma distribuição hierarquizada dos modos de
crer, a qual supõe um sistema central ou dominante. Para entender essas posições, tomo
de empréstimo a noção de campo religioso de Bourdieu (1992) para quem as
configurações do campo resultam da disputa entre grupos de interesses (agentes),
cristalizada numa economia dos bens de salvação (bens simbólicos), a qual opera a
partir de contínuos e intensos processos de divisão do trabalho religioso, além da
moralização e sistematização das práticas e crenças. Com isso, na renhida disputa pelo
monopólio dos bens de salvação, os grupos que conseguem se projetar no campo na
13
Uma produção popular necessariamente não é periférica, posto que apesar de oriunda de
segmentos subalternos pode destinar-se ao consumo dos grupos dominantes. São exemplos
típicos dessas relações as produções artísticas populares como alguns gêneros musicais ou o
artesanato. Também redunda esse valor, a lógica que move contemporaneamente a cultura de
massa, na qual as produções voltadas para as camadas populares correspondem simetricamente
aos produtos consumidos pelos grupos dominantes. Assim, o popular reflete, em suas
proporções, os movimentos da elite. No fluxo inverso, periferia-popular, tomando como
exemplo movimentos sociais, religiosos ou artísticos de vanguarda, embora eles freqüentemente
estejam ligados a grupos intelectual e economicamente de elite, até que se institucionalizem, são
considerados periféricos em relação às conjunturas hegemônicas vigentes.
40
condição de dominantes pautam a superioridade e plausibilidade, tanto de suas crenças
quanto de suas instituições, em dispositivos que desautorizam os demais. Deste modo,
embora a disputa deflagre grupos dominantes, o campo o se reduz a estes. Ele não se
homogeneíza, em razão de serem as conjunturas do campo religioso formações sociais e
históricas. Portanto, o porvir de plausibilidades está sempre em curso tanto entre
dominantes quanto entre sectários.
Pensando não a partir dos processos dos quais se ocupa Bourdieu (1992), mas a
partir de conjunturas, quando evoco a noção de modos periféricos de crença estou me
associando ao esforço de compreensão que Birman (1992) construiu ao explicar o culto
às almas e, especialmente, à escrava Anastácia, no Museu do Negro, na cidade do Rio
de Janeiro, como suporte que também ilumina o entendimento acerca do culto aos
santos locais. E, apesar de ela não mencionar a teoria dos campos de Bourdieu (1992), é
possível perceber que uma ressonância entre os trabalhos, quando Birman supõe
naquele locus social um processo de racionalização e hierarquização de crenças.
O argumento de Birman parte de dois pressupostos: a idéia de crença, enquanto
categoria relativa ou “relativizável”, antropologicamente falando, e o suporte racional
sobre o qual se sustentam alguns dispositivos de crença. A primeira das conjecturas
remete ao plano da precariedade que a noção de crença comporta, pois, o sendo
novidade as contribuições que diversos estudos antropológicos introduziram nessa
seara, as formas religiosas, em diferentes contextos culturais, são interpretadas cada vez
mais sob a ótica de sistemas, os quais alimentam visões de mundo e disposições éticas
particulares. Também não é recente o fato de alguns dos exercícios etnográficos ou
comparativos terem se investido de exemplos esdrúxulos para ratificar no plano das
crenças uma suposta irracionalidade que marcaria os povos primitivos, notadamente
entre os evolucionistas este expediente era prática comum.
A primeira experiência é muito mais sugestiva que a segunda, sob o ponto de
vista que ela alerta para a necessidade de pensar as crenças a partir das relações internas
que elas fomentam em detrimento dos modelos externos. Numa equação, é necessário
projetar-se num esforço hermenêutico, mais do que num plano prescrito. Contudo, a
segunda acepção também é reveladora, se tomada sob um prisma crítico, pois demonstra
como são reproduzidas no terreno intelectual as operações mentais que se edificam em
relações sociais históricas.
41
Tomando a perspectiva da crença enquanto objeto plural com disposições
também diversas, o produto a que se chega é que se, sob o ponto de vista ontológico,
um sistema de crenças oferece um modelo explicativo (cosmologias e teologias) para o
mundo, na medida em que vários deles estão em evidência num campo de relações, o
resultado natural é que eles venham a coligir, posto que imbuídos do interesse de se
tornarem absolutos, ofereçam respostas diversas para questões similares. As
explicações, por seu turno, enquanto produções oriundas de uma divisão do trabalho
religioso e de uma elaboração sistemática, acompanhada de uma moralização, refletem,
no plano das relações mais amplas, a própria divisão do campo religioso. Com isso, os
sistemas que se projetam numa posição dominante tendem a descredibilizar os que se
situam em condição sectária ou periférica.
Em relação a essa questão, se a resposta bourdiesiana para o problema do
status da crença está na divisão do trabalho e na racionalização, em outras palavras, mas
em sentido análogo, para Birman, a questão está numa visão de mundo totalizadora que
impregna os grupos simples, em oposição a uma perspectiva monista, traço das
sociedades modernas, cuja tendência é segmentar e excluir. A culminância sugerida pela
antropóloga brasileira enquanto fator explicativo para o culto à escrava Anastácia
residiria, então, mais nas concepções de mundo que orientam os grupos participantes do
culto, notadamente, umbandistas, candomblecistas e espíritas, do que em um viés
identitário forjado a partir das ligações étnicas ou de uma condição subalterna (a
escravidão ou a pobreza, por exemplo).
Uma vez que a visão de mundo que embasa o culto à Anastácia é a mesma que
compõem o repertório das religiões afro-brasileiras, para ambas, a suposição de que o
campo religioso é um produto de ordem humana seria, no mínimo, equivocada. Para
esses segmentos, o campo religioso seria o resultado da ordem natural que criou tanto o
mundo como os homens que o habitam e, nessa medida, os homens nada mais seriam
que a condensação das forças e substâncias que o forma à orbe. Desse ponto de vista,
a segmentação religiosa para o afro-brasileiro não é percebida enquanto uma diferea
de natureza, antes, é a cristalização de um universo composto ontologicamente por
espécies desiguais. A perspectiva afro-brasileira conduziria então para uma conjunção e
42
não para a clivagem, da mesma forma que tenderia ao sincretismo e não ao
ecumenismo
14
.
Recorrendo às pistas que Birman (1992) oferece é possível construir uma
simetria entre o que ela indica para a compreensão do culto à Anastácia e o culto aos
santos locais. De entrada, é forçoso dizer que no caso dos santos locais
15
o componente
afro-brasileiro não se mostrou tão contundente como no culto observado no Rio de
Janeiro. Inequívoco, porém, é o fato de que alguns elementos, em casos isolados,
induzem a pensar aproximações com as religiões afro-brasileiras, sobretudo, a umbanda,
entretanto, essa relação não pareceu determinante. Assim, se os santos locais não têm
como devotos os sujeitos ligados às religiões afro-brasileiras, os argumentos da
antropóloga carioca se associam ao campo da tese guardando sentido equivalente, mas a
partir de outra unidade social: o povo.
Para se entender como o modo periférico de crença dos santos locais ganha
vida é imprescindível compreender a maneira como os sujeitos que o ativam pensam e
praticam seu cotidiano. Nesse sentido, se no universo da devoção aos santos locais não
figura uma cosmologia delineada como aquela que pressupõe os cultos afro-brasileiros e
cujo resultado é a partilha das diferentes ofertas de crença sob um mesmo substrato
cósmico, por outro lado, uma lógica compósita ou totalizante participa da mentalidade
dos estratos populares, sobretudo, aqueles ligados ao mundo camponês ou seu
continuum urbano, na forma do catolicismo popular. E é essa lógica que assegura
movimentos específicos no terreno das crenças que os segmentos partícipes do
catolicismo popular vivenciam.
Inseridos numa condição subalterna, os sujeitos que partilham do catolicismo
popular estão muito mais voltados para os processos orgânicos de sua sobrevivência do
que disponíveis para sistematizações racionalizadoras acerca de prováveis fatores que
habitam seu mundo. Assim, expostos que estão às intempéries de natureza ecológica,
mas, sobretudo, àquelas de ordem econômica, política e social, esses sujeitos projetam
em suas formas religiosas mecanismos que possibilitam a eles superar as adversidades
14
Ao passo que o primeiro tem uma tendência à composição, o último aciona um parâmetro
geral para equivaler todas as crenças ou grupos e com isso ao invés de privilegiar as
singularidades como faz o sincretismo, reduz uma crença à outra.
15
Pelo menos naqueles casos que mapeei inicialmente no projeto da cartografia.
43
cotidianas. A lógica que se instaura, apesar de exalar pragmatismo, é sintetizada por
Brandão (1980, p. 157) quando afirma que “entre os subalternos, a religião é
considerada como um somatório de recursos a mais para servir a uma vida de provações
e, não tanto, para ser servida como um compromisso a mais de subordinação”. Da
sentença, duas questões merecem destaque: o suposto pragmatismo empenhado nas
relações do catolicismo popular e os intercâmbios com a religião instituída.
O primeiro termo resolve-se ao convocar a compreensão para a complexidade
que vida ao catolicismo popular. Do ponto de vista de uma sua hermenêutica, é
inverossímil pensá-lo sob a forma de movimentos dirigidos a partir de um ponto de
vista “econômico” que comporta relações contratuais de troca, encerradas mediante o
cumprimento de acordos firmados. O catolicismo popular, embora apressadamente
apresente fisionomias que o fazem ligar-se ao modelo de agência religiosa, no sentido
weberiano do tipo mágico, subentende um conjunto de padrões que envolvem
disposições de crença e adesão a um universo simbólico:
Se elas [as pessoas das classes populares] parecem intensificar a
procura e as provas de fidelidade ao sagrado nos tempos de aflição, é
porque, na esteira da rotina, crêem nele. E crêem porque reconhecem,
a seu modo, que “tudo está cheio de deuses” e que elas próprias são,
entre os homens do lugar, a fração mais ativa e fiel de um campo de
trocas entre seres deste lado do mundo e os do outro, estejam elas
mergulhadas apenas no âmbito da crença difusa da religião primária,
ou envolvidas com compromissos de vida com algum sistema católico
ou com uma seita pentecostal. (BRANDÃO, 1980, p. 140)
A adesão a este sistema de crenças, por seu turno, tem disposições particulares
no plano de um ethos, que se traduz operativamente nas formas de conceber o mundo e
de se relacionar com a natureza e os outros homens. Nessa medida, ao passo que a
leitura do mundo se constrói a partir do reconhecimento e trânsito de poderes e
entidades que habitam o cotidiano (almas, santos, Nossa Senhora, diabo, demônios,
curas, milagres etc.), a forma de agir é orientada por condutas que replicam tanto no
plano social (solidariedade e sociabilidade), quanto no religioso (novenas, promessas,
votos, romarias), relações edificadas numa ordem sobrenatural.
O mundo a realidade cósmica e social de todas as coisas divide-se
em dois: “este mundo” e o “outro mundo”. Mas o mundo está na
verdade dividido em dois lados e dois planos. Os dois planos são: o
terreno, território natural dos homens vivos, mas por onde passam e
44
atuam seres do outro plano; o sobrenatural, território do sagrado
celeste e do infernal, reinos absolutos de Deus e do Diabo, separados
por lugares de estados provisórios, como o purgatório (...). Os dois
lados de que tenho falado aqui são o “do Bem”, associado ao Céu, e o
“do Mal”, associado ao Inferno; são espaços éticos por onde os seres
humanos podem transitar, passando de um lado para o outro de acordo
com a qualidade de suas ações “neste mundo”, e onde os seres
sobrenaturais estão separados e opostos para sempre. (BRANDÃO,
1980, p. 182)
É essa oposição cósmica edificante do ordenamento do mundo que vai se
replicar nas leituras e relações cotidianas dos grupos que vivem o catolicismo popular,
de modo que as disputas do plano sobrenatural são substancializadas no plano terreno.
Por sua vez, as lógicas do ordenamento simbólico sob os quais as relações entre vivos,
mortos, santos, deuses e as legiões de demônios vão se estabelecer não são outras que
aquelas pertencentes ao modelo da sociedade de classes. Conseqüência direta destas
percepções, além da alquimia popular do embate entre as classes sociais, a oposição
também repercute na segmentação entre a religião institucional e o catolicismo popular.
Aquela, enquanto depositária de uma cultura de elite, erudita, letrada, além de uma
religião “secularizada”, sacramental e metafórica, se confronta no campo religioso com
a vivência popular, de ordem sensorial, interativa, direta e mágica.
A partir desse ponto é possível pensar os intercâmbios do catolicismo popular
com a religião instituída, percebendo que sobre essas relações estão corporificados
processos dialéticos que ao se comunicarem não o fazem sem tensão, tampouco sem
conflitos. Tendo em vista essa dinâmica, o que proponho de agora em diante é pensar o
catolicismo que observei no campo a partir do ponto de vista da ativação de uma
religiosidade e não de uma religião.
2.2. Religião e religiosidade
A opção pela noção de religiosidade em detrimento de religo parte da
constatação de que embora nas comunidades onde o campo da pesquisa se replica,
considerando os diversos locais de origem dos romeiros das Covinhas, é evidente a
45
presença do catolicismo institucionalmente organizado, contudo, o que prevalece em
relação ao universo do culto às Meninas é algo mais da ordem da religiosidade que
propriamente da religião. Isto porque, se por um lado a natureza e as formas do culto
estão em coerência com o conjunto das práticas associadas ao campo do que se
convencionou chamar catolicismo popular, por outro suas expressões e concepções
heteróclitas não participam oficialmente das manifestações autorizadas pelo sistema
religioso que supostamente as acolhe. O catolicismo, portanto, “inspira”, mas não limita
o culto às Meninas. Por isso, entendo que falar em religiosidade nesse caso é mais
verossímil que falar em religião.
Religiosidade, aqui, está sendo compreendida como o conjunto das
contingências dispostas no plano das práticas sociais, as quais obedecem a uma lógica
de consumo arbitrária às intenções e contextos fundantes dos programas religiosos. A
perspectiva adotada, portando, parte das formas religiosas em ação e não dos modelos
prescritos. Á moda do que fez Chartier (1990) com a investigação das práticas de
leitura, ou Certeau (1994) com as táticas do cotidiano, ou ainda Sahlins (1994) com a
mitopraxis, o que procuro é demonstrar como as formas religiosas que se corporificam
na ação dos sujeitos religiosos que freqüentam as Covinhas se produzem a partir de
crenças e atitudes combinadas em jogos diversificados. Esses, porém, tanto se efetivam
a partir dos repertórios institucionais como daqueles não formais, posto que,
independente de suas fisionomias, as formas de performance religiosa sempre
compreendem a “aplicação” prática dos universos simbólicos.
A religiosidade, portanto, é um produto que se realiza na ação dos operadores
sociais quando, envolvidos em situações religiosas, acionam de seus repertórios
elementos que dão suporte à sua prática. Nesse sentido, ela compõe um conjunto de
disposições abertas e direcionadas para o estabelecimento de relações com o universo
sagrado, cujo objeto e conteúdo não estão necessariamente vinculados a sistematizações
racionais (teologias, doutrinas etc.), não obedecem amiúde a prescrições rituais inscritas
em códigos prepostos, e, conseqüentemente, não se definem em termos de fronteiras
rígidas e claramente definidas tal como a religião propugna.
Como no plano das práticas, os cruzamentos e as recombinações dão margem a
produtos insólitos e diversos, o que estou chamando de religiosidade precisa ser
pensado também numa condição plural, comportando, assim, as distintas formas em
46
curso dos sistemas de crença ou daqueles propriamente religiosos. Com esse
entendimento, não intuo construir qualquer forma de hierarquização dos sistemas de
crença, pensando as religiões institucionalmente elaboradas como produtos
sistematizados, e por isso superiores, em oposição às formas precárias e instáveis
localizadas no terreno das camadas populares. O fito é destacar que se existe uma
distinção ancorada no terreno das formas de sistematização e do controle, ou do
descontrole, isso não significa inferir serem os sistemas institucionais mais coerentes ou
plausíveis, pois ambos são postos à prova no processo de manipulação que os sujeitos
sociais realizam. As questões de sentido dentro dos sistemas de crenças se enraízam no
plano das construções discursivas e práticas que os sujeitos religiosos se permitem, de
forma que nenhum sistema de crença pode ser entendido enquanto falso, mas como
construção associada a condições dadas da existência humana (DURKHEIM, 1996).
Quando destaco uma prevalência da religiosidade em detrimento da religião o
faço pelo fato de constatar que os sujeitos que freqüentam as Covinhas estão ainda
imersos num contexto marcadamente relacionado com práticas religiosas tradicionais a
despeito dos modelos doutrinais e sacramentais presentes numa religião mais
intelectualizada. Esse quadro descortina o produto do processo de integração à religião
dominante na sociedade brasileira, cuja dinâmica se pautou fortemente sob o comando
das lideranças leigas, notadamente num modelo familiar ou doméstico, com a
veiculação de práticas e crenças voltadas para a piedade, além de um forte pendor para
associações heterodoxas.
Mesmo com a assunção contemporânea de um novo modelo sob orientação do
controle eclesiástico e com as diretrizes vinculadas a uma vivência religiosa articulada
com os planos sacramentais e litúrgicos, os modos tradicionais de “praticar” a religião
ainda são centrais em muitas comunidades. Ademais, o fato de muitas delas
permanecerem a maior parte do tempo distantes dos “serviços do padre” e da nova
pedagogia da Igreja contribui decisivamente para que as formas religiosas tradicionais
se reproduzam e se renovem.
O que interessa aqui, ao estabelecer a distinção é, além do fato de mostrar que
são diversas e por isso, do ponto de vista analítico, merecem tratamentos diferenciados,
frisar um diacrítico que gravita na oposição do prescrito ou presumido e do vivido,
daquilo idealizado para o que se pratica. A partir desta perspectiva é possível, inclusive,
47
pensar de que maneira repercute no cotidiano o que está delineado do ponto de vista
institucional.
Entendo ainda ser importante a distinção porque o trabalho se ocupa
precipuamente de analisar um fenômeno que ao mesmo tempo é localizado, do ponto de
vista de suas vivências como manifestação de uma forma de catolicismo, enquanto sob a
perspectiva institucional essas práticas são admitidas como expressões supersticiosas,
magia ou mesmo práticas desviantes que pouco ou nada m de catolicismo autêntico.
Nessa situação, a distinção que proponho se presta também para instrumentalizar uma
leitura das concepções religiosas e da prática popular do catolicismo. Com isso, não
estou situando a religiosidade enquanto manifestação exclusiva de um tipo de
catolicismo. Pelo contrário, quero deixar claro que a prática religiosa para a qual estou
dedicando esse esforço compreensivo é algo da ordem de um produto híbrido que
acumula ao mesmo tempo sob a insígnia cristã uma miríade de crenças e disposições
convergentes de outros sistemas religiosos. Por fim, quando me reporto à religiosidade,
estou agrupando num mesmo conjunto uma constelação de concepções e atos que me
apareceram intimamente consorciados na observação empírica. E se para o que estou
propondo interpretar essa conceitualização funciona, para outras realidades ela pode não
permitir os mesmos resultados.
Estou, assim, pensando a religiosidade enquanto conjunto de disposições
religiosas, não sistematizadas sob o ponto de vista de uma racionalização religiosa
institucional, mas que se articula sob a forma de sistema, crenças e práticas dotadas de
sentidos. Disso resultam equações contínuas em que as convenções programadas nos
sistemas religiosos são reavaliados em conformidade com as demandas contingentes
dos sujeitos que as vivenciam no cotidiano. Partindo dessa compreensão espero poder
construir uma leitura da religiosidade empenhada no culto às Meninas revelando-a
como produto híbrido, mas coerente, que intercepta seus sentidos de forma ativa durante
seu processo de utilização, mas que também, mesmo sem intenções premeditadas,
produz resultados recalcitrantes da ordem estabelecida.
O culto e as personagens-santas, portanto, estão sendo aqui entendidos como
avatares da resistência popular, que tomam suas formas a partir das relações de força
construídas dialeticamente pelo encontro e pelo confronto com os valores e as práticas
48
da cultura dominante. Essas encarnações, amiúde, se apresentam como expressões
tradutoras de um diálogo subversivo.
49
3. AS COVINHAS: UMA DESCRIÇÃO
O santuário
16
das Covinhas está situado em Rodolfo Fernandes, município da
região Oeste do Rio Grande do Norte, que dista 390 km da capital Natal (Figura 1) e faz
fronteira com o Ceará.
Figura 1 - Mapa do político do Rio Grande do Norte
As referências históricas do município remetem ao ano de 1921 quando, graças
“ao espírito empreendedor de Francisco Régis Filho (1884-1967), antigo comerciante de
Apodi e proprietário de terras com grande quantidade de gatos-do-mato, conhecidos na
16
Utilizo esta terminologia para definir o conjunto de equipamentos e estruturas físicas que se
distribuem no entorno da capela e que formam uma unidade integrada distinta do restante da
propriedade em que se localiza, inclusive pela delimitação física da cerca. Entretanto, embora
recorra ao termo “santuário” para distinguir quando me reporto ao templo ou complexo, esta
não é uma categoria utilizada para definir o lugar no repertório nativo dos freqüentadores.
RODOLFO
FERNANDES
CEARÁ
NATAL
MOSSORÓ
PARAÍBA
OCEANO
ATLÂNTICO
APODI
Seridó
Vale
do
Assu
50
região como maracajás” (PORPINO, 2005, p. 59), iniciou-se a construção do Açude
São José.
Após o reservatório, Francisco Régis mandou edificar a capela de São José em
homenagem ao santo mais popular da região e devido a isso a localidade até então
conhecida como Serrote dos Gatos ou Fazenda dos Gatos ganhou o nome de São José
dos Gatos. Seria apenas com a emancipação política em 1962, quando o distrito se
desmembrou de Portalegre, que o município ganharia o título atual, cuja alusão
homenageia o renomado salineiro e industrial da região que organizou a célebre
emboscada contra o ataque de Lampião e seu bando à cidade de Mossoró em 1927.
Rodolfo Fernandes é um município pequeno, com 143km² de extensão e uma
população estimada em 4.467 habitantes, segundo o censo demográfico do IBGE de
2000 (Perfil dos municípios do RN, 2008). Seu porte, suas condições climáticas,
geográficas, econômicas e históricas não colocam o município em evidência por
qualquer uma dessas razões, mas é no âmbito de sua cultura religiosa que um aspecto
em especial desponta no cenário da região como referência: as Covinhas. O lugar se
tornou um marco religioso reconhecido e freqüentado por moradores daquela localidade
além de outras de seu entorno
17
.
Ali, todos os anos é realizada a tradicional festa das Covinhas, no dia 12 de
outubro. A celebração atrai alguns milhares de pessoas que se dirigem ao lugar
especialmente por razões de fé, conquanto não seja impróprio afirmar que tamm é
crescente o número daqueles que para lá se dirigem por motivos de ordem mais profana.
17
Apesar de o blico massivo ser de comunidades próximas de Rodolfo Fernandes, algumas
evidências etnográficas demonstram que o raio de alcance do culto vem se expandindo. Ao
longo dos cinco anos em que essa pesquisa se processou foi possível observar um incremento na
presença de romeiros vindos de municípios distantes geograficamente da capela. Notadamente,
um percentual elevado dos freqüentadores são oriundos de municípios que fazem divisa com
Rodolfo Fernandes ou estão na mesma região [Apodi (RN), Severiano Melo(RN), Martins(RN),
Portalegre(RN), Viçosa(RN), Riacho da Cruz(RN), Alexandria(RN), Pau-dos-Ferros(RN),
Umarizal(RN), Mossoró(RN), Itaú(RN), Potiretama(CE), Iracema(CE) e Souza(PB)],
entretanto, registra-se uma presença considerável de pessoas advindas de municípios do Seridó
e do Vale do Assu, no RN. É importante dizer ainda que não há qualquer tipo de controle ou
registro dos freqüentadores por parte de quem organiza o evento. Os dados aqui apresentados
foram por mim levantados sem qualquer preocupação em demonstrar evidências estatísticas,
contudo, na seção em que discuto os preparativos e a mobilização dos romeiros para a festa (
Ver 4.2 - Antecedentes da festa: as Meninas, os recursos e os romeiros) apresento aspectos que
me levaram a concluir por essa expansão.
51
Indubitavelmente, o fato é que a festa vem se consolidando como referência no
calendário social e religioso da região.
A capela é o marco principal que se impõem no espaço, mas o santuário é
composto por um complexo que abrange além dessa, um cruzeiro, dois galpões
cobertos, com duas salas em um deles, os banheiros, um reservatório de água e uma
grande área livre, ocupada por barracas de comércio e estacionamento de veículos
(Figura 2). Durante os anos de realização da pesquisa foi possível acompanhar
intervenções e/ou ampliações nalguns desses equipamentos, enquanto a capela sofreu
alterações em características de menor relevo físico. Sendo a capela, porém, o núcleo
geográfico que se coloca em primeiro plano no espaço, é importante começar pela sua
descrição.
52
3
4
9
13
11
12
10
5
7
6
1
2
8
14
15
LEGENDA
1 - Sala com ex-votos
2 - Sala dos milagres
3 - Área coberta antiga
4 - Nova área coberta
5 - Capela
6 - Patamar de onde o
padre celebra a missa
7 - Público participante da
missa
8 - Público em circulação,
consumo e diversão
9 - Banheiros
10 - Barracas de comércio
11 - Reservatório de água
12 - Cruzeiro
13 - Ipueira
14 - Área de
estacionamento
15 - Porteira e estrada de
acesso
Figura 2 Configuração do santuário em outubro de 2009
53
3.1. A capela
A capela é uma pequena edificação em
alvenaria com uma torre e um campanário (Foto
1). Sempre caiada em branco, sua alvura se
destaca na ressequida paisagem da campina
aberta em meio à vegetação nativa. Quebrando a
monotonia da pálida caatinga, um viçoso
pereiro
18
ampara a edificação e lhe faz companhia
o ano inteiro (Foto 2).
O templo se localiza a 6 km da sede do
município e seu acesso se através de uma
estrada improvisada (Foto 3) que passa por dentro
da fazenda Sossego, propriedade de 450 hectares
onde está abrigado o santuário. Embora não exista
qualquer indicativo que oriente sua localização, em razão da geografia relativamente
plana da região, a torre com seu
campanário são perceptíveis desde a
saída da cidade.
No trajeto em direção à
capela está a casa do Sr. Raimundo
Honório Cavalcanti de Oliveira,
conhecido popularmente como Seu
Bento
19
. Além de proprietário da
fazenda, Seu Bento (Foto 4) acumula
outros papéis: o de idealizador do
santuário e o de organizador da festa das Covinhas. O empenho desse homem é
18
Espécie vegetal de pequeno a médio porte a Aspidosperma pyrifolium é muito difundida pela
caatinga.
19
Por ter nascido no dia desse santo sua mãe embora tenha lhe colocado o nome de Raimundo
ficou chamando-o por Bento. Disso resulta que em Rodolfo Fernandes as pessoas o conhecem
por Bento Honório ou Seu Bento. Utilizo, portanto, o último vocativo para mencioná-lo ao
longo do trabalho, uma vez que esse é o cognome de predileção usado pelos romeiros no
santuário.
Foto 1- Vista frontal da capela (2005)
Foto 2 - A capela na paisagem (2005)
54
tamanho que nenhum visitante se dirige para a capela sem antes pedir-lhe permissão ou,
o que é mais comum, receber a companhia dele na estada pelo santuário. Sempre
disposto a contar sua história e divulgar os milagres do lugar, Seu Bento acompanha os
romeiros que por lá aparecem em peregrinação para pagar promessas ou simplesmente
para saciar a curiosidade de conhecer a capela.
A biografia de Seu Bento se confunde com a do santuário e nas várias vezes
que visitei o lugar freqüentemente o
encontrei relatando a história das
Covinhas que é também a história da
capela. Em atos carregados de
emoção, Seu Bento repete de forma
intensa a narrativa que retrata como e
porque tudo começou. Por ora,
sintetizo-a em alguns aspectos
importantes para a compreensão
imediata do projeto da capela, ainda
que em seção posterior
20
esse assunto seja objeto de análise.
Tudo começa com uma doença no s de agosto de 1980. Após ter sido
acometido por uma grave e misteriosa moléstia, que deixou suspeita e dividida uma
extensa equipe médica de um dos principais hospitais de Fortaleza, Seu Bento foi
submetido a vários e penosos exames e tratamentos, não atingindo melhoras, nem um
consenso clínico acerca do
diagnóstico da doença que o afligia.
Ao longo de alguns dias e muitos
sofrimentos, Seu Bento
experimenta três visões, numa delas
uma mulher acompanhada de duas
crianças administra procedimentos
em seu leito hospitalar.
Percebendo que as
mensageiras taumatúrgicas não
20
Ver 5.2 - A enunciação narrativa e a performance de Seu Bento.
Foto 3 - Estrada de acesso à capela, na Fazenda
Sossego (2009)
Foto 4 - Seu Bento (2005)
55
faziam parte da equipe médica que vinha acompanhando-o sem sucesso, o enfermo
interpreta serem as meninas visitadoras as crianças das quais ele ouvira falar em um
antigo relato narrado a ele por sua avó ainda na infância. Na história, Mãe Cândida,
contava que quando passavam pela região, onde atualmente é de Rodolfo Fernandes, um
grupo de retirantes oriundos do Ceacom destino para Macau ou Areia Branca, portos
onde a coroa imperial distribuía víveres para os flagelados da grande seca de 1877, duas
crianças morreram. O local da tragédia conforme referências da anciã situava-se em
terras que à altura da doença de Seu Bento faziam parte da propriedade que ele próprio
adquirira no ano de 1953. E, embora não houvesse indícios materiais ou registros dessas
mortes, a história do martírio das crianças marcara a memória de Seu Bento, de sorte
que seria ele o responsável por tornar evidente o episódio da tragédia, mesmo tendo
sido transcorridos mais de cem anos desde a suposta data do acontecimento.
Com as visões, Seu Bento faz a promessa de plantar uma cruz e ainda no
hospital ele sonha com o lugar onde as Meninas haviam morrido. Quando regressa para
casa, não tarda a procurar e encontrar as pequenas covas. Em seguida à aposição da
cruz, ele se dispõe a construir uma capela para abrigar a memória das Meninas e
registrar a grandeza do poder milagroso das crianças-mártires.
Em meados da década de 1980 a capela é construída por intermédio e
articulação de seu idealizador, mas conta com a ajuda de pessoas de Rodolfo Fernandes
e de algumas outras comunidades. No relato de Seu Bento, todas essas pessoas
aparecem como beneficiadas por milagres que se seguem ao seu próprio. Como não
existem registros formais acerca da capela, nem mesmo do seu processo de construção
ou beneficiários, a história do lugar passa a ser aquela contada incansavelmente por seu
mentor e que, por seu turno, passa a ser reproduzida, em segunda mão, pelos
freqüentadores que a ouvem. Em suma, a história relatada por Seu Bento assumiu
paulatinamente para os partilhantes do culto um status factual.
No aspecto físico, a capela é um pouco mais elevada que o terreno e à sua
frente se projeta um patamar em forma de semicírculo rodeado de degraus. Três
pequenas portas frontais e quatro laterais dão acesso ao átrio. Além dessas, duas janelas
comunicam a sacralidade com a paisagem tórrida. Ao redor do prédio, acompanhando o
nível do patamar frontal, está uma faixa de calçada elevada que nos dias de festa serve
como ponto de descanso para muitos dos freqüentadores.
56
Em relação ao local da construção do templo, esse, como dito, se vincula ao
milagre experimentado por Seu Bento quando, dias após viver a visão taumatúrgica das
Meninas, ele sonha com a exata localização das covas. A partir das referências oníricas,
ele identifica o lugar onde as Meninas supostamente teriam morrido e sido enterradas. A
escolha do local, portanto, longe de ser arbitrária é indicativa do lugar que rememora o
episódio da morte das crianças. Assim, ele diz que se deparou com um montículo de
pedras no meio do mato e como não havia quaisquer indícios que vinculassem aquele
amontoado a outra coisa, o marco foi reconhecido como sendo a sepultura ambicionada.
A seqüência de eventos registrados na memória local em Rodolfo Fernandes
introduz a comunidade no rol das localidades que abrigam santuários “espontâneos”, os
quais se originam a partir de uma presumida sacralidade manifesta, experimentada por
leigos e canalizada por eles. Em geral, nesses espaços, o processo que leva ao
estabelecimento de um lugar com o status de sagrado pressupõe, antes que qualquer
outra coisa, a manifestação diferencial em relação à homogeneidade que a princípio
existira. Essa manifestação se apresenta, sobretudo, a partir dos sinais, predecessores da
clivagem e delimitação do espaço, além de indicativos da localização do ponto a ser
fixado (ELIADE M. , 2001).
São infindos os relatos que noticiam a presença desses sinais
21
diacríticos da
sacralidade, contudo, no contexto brasileiro, especificamente no repertório do
catolicismo, alguns dos mais comuns se apresentam nas reiteradas narrativas de
aparições de imagens em locais de difícil acesso ou em circunstâncias não esperadas.
Essas marcas e acontecimentos miraculosos tornam-se a gramática explicativa da
origem e introduzem a concretude dos lugares e a humanidade dos santos na
imponderabilidade da transcendência. Numa palavra, a história passa a se confundir
com o mito.
Fernandes (1982) problematiza essa questão quando, em seu estudo sobre os
cavaleiros que peregrinam ao santuário do Bom Jesus de Pirapora, no Estado de São
Paulo, demonstra que a relação híbrida entre mito e história caracteriza um traço
marcante dos centros de peregrinação/devão cristã, fato também observado por
21
Nas Covinhas um desses sinais que aparece com relativo destaque na narrativa é a insistência
provocativa de um clarão que acontece nas imediações do lugar onde as crianças teriam
morrido. Sua existência era inexplicável e insondável, haja vista ser aquela uma área desabitada
e ainda não desbravada na região. Mesmo inóspita, em decorrência do episódio mítico, a área
passou a ser referenciada pela comunidade local com o termo “as Covinhas”.
57
pesquisadores em outros espaços (STEIL, 1996; BIRMAN, 1992; FREITAS, 2006;
GUTTILLA, 2006; SÁEZ, 1996; BREGA, 2000; BLANC, 1995). Em conseqüência
dessa relação emergem produtos singulares da memória, consorciando lenda e realidade,
transmutando uma em outra, fundindo-as quase que numa unidade, de modo que para
compreender a dinâmica desses santuários é impossível o considerar as duas
instâncias.
O exemplo de Pirapora se multiplica indefinidamente, com elementos e
cruzamentos únicos, em um padrão mítico que delineia as histórias de fundação seja dos
povoados, seja dos templos e/ou lugares sagrados que cada comunidade abriga.
Contudo, para além das conexões que se processam no interior de um repertório
canônico que consagrou essa prática, o modus operandi da religiosidade popular
costuma eleger também outras personalidades como patronos ou intercessores, os quais,
embora se encontrem à margem das fileiras institucionais, obedecem a processos de
seleção mítica similares, ou seja, manifestam-se também através de sinais. Nesses casos,
sepulturas que racham, experiências oníricas com justiçados ou vítimas de
violência/fatalidade extremadas, aparição de olheiros ou outros fenômenos naturais”
inesperados, todos podem manifestar-se indicativos de uma graduação diferenciada dos
lugares e dos personagens que a eles se vinculam.
Nesse ponto cabe ainda problematizar um último aspecto que é o fato de o
“manifestar-se sagrado”, seja um lugar, seja uma personalidade, o participar de uma
relação causal e linear na qual inexoravelmente tem-se como produto um santuário ou
um santo popular. Na verdade, vários estudos sobre devoções populares apontam que os
resultados numa equação de tal natureza dependem muito mais das relações sociais que
se constroem no entorno do fenômeno, fazendo-o ter uma repercussão social a ponto de
torná-lo significativamente relevante, que propriamente do objeto da manifestação em
si. Entendendo ainda que, em última instância, a própria manifestação é também
produto de relações sociais, já que a percepção dos sinais pressupõe necessariamente
um exercício de interpretação humana e isso implica em considerar as conjecturas,
processos e determinações daqueles sujeitos que interpretam.
Nesse sentido, o caso das Covinhas é exemplar, pois embora as narrativas (da
morte das crianças e do(s) milagre(s) sejam públicas, exista o reconhecimento de um
local como sendo o das mortes e, da associação entre espaço e milagre, tenha sido
suscitada a construção de uma capela, o sucesso das personagens e do santuário não se
58
deve ao simples fato de registrarem-se os eventos da morte e do milagre, mas resulta da
forma como esses episódios foram construídos num processo que combina diversos
fatores. Dentre os aspectos a ser considerados na intenção compreensiva do lugar, o
sentido mítico que os freqüentadores absorvem e reelaboram tanto do santuário como da
capela está perfilado à sua história, como algumas situações apresentadas a seguir
indicam.
Após encontrar as pequenas covas, a construção de uma capela no local passou
a ser o grande desejo de Seu Bento, porém, um empreendimento daquela magnitude
implicava em recursos dos quais ele faz questão de destacar que não dispunha. Isso
aumentava ainda mais o fosso entre o sonho e a realidade. Na sua narrativa, as
dificuldades o o fizeram retroceder, mas impulsionaram-no a buscar alternativas
22
para a realização da construção. Ele busca, assim, auxílio entre conhecidos, parentes e
pessoas da comunidade que se dispõem a contribuir com a obra.
Embora nesse momento inicial as relações pessoais tenham relativa
importância é, sobretudo, através da propagação do milagre e do caráter providencial
que se pode extrair, na fala de Seu Bento, as razões do sucesso do projeto, seja da
capela, seja das demais estruturas que a seqüenciam. A mística e o milagre, portanto,
são coetâneas à experiência de edificação da obra física, atuando substancialmente na
capitalização do culto e dos personagens nele empenhados.
O milagre experimentado por Seu Bento, à medida que se torna público, e é
relatado nessa intenção, ganha adesão popular. Assim, não tarda que outros relatos
também apareçam, atribuindo às Meninas o mérito pela conquista de graças alcançadas.
Desse momento em diante, as relações tradicionais que em geral se institucionalizam
nas práticas voltadas para o culto aos santos, bem como nos santuários de predileção do
catolicismo popular, vão também se evidenciar em Rodolfo Fernandes.
Ancoradas numa economia do milagre, as relações que se processam a partir de
então fundam uma lógica de reciprocidade entre fiel e mediador. Nessa relação, amiúde,
tanto a perpetuação do testemunho de fé, que contribui para a propagação do culto,
como a retribuição concreta, através de um veículo material (oferta, ex-voto etc.), são
algumas das conseqüências previstas na relação de contraprestação do devoto
23
. Assim,
22
Alternativas essas que se perpetuaram com regularidade na história do santuário e que até
hoje existem sob a alegação da melhoria e ampliação das estruturas que compõem o espaço.
23
Esse princípio de reciprocidade é recuperado por Steil a partir da literatura que trata o tema
como sendo uma forma de contrato diádico, no qual “cada pessoa é o centro de uma rede
59
com freqüência, no relato da construção da capela estão retratados episódios em que
alguém colabora com sacos de cimento, ou com tijolos, com trabalho ou mesmo com
dinheiro, todos na intenção de pagar uma promessa junto às meninas milagrosas.
Mas o milagre não está reservado apenas a pessoas, favorecidas com graças.
Ele se estende como veículo que atua em prol do próprio santuário, o qual passa a ser
percebido como produto resultante da providência divina, cuja intervenção, através de
instrumentos humanos e naturais, possibilita fazê-lo edificar-se. Nesse sentido, Seu
Bento faz questão de relatar que quando a capela estava sendo construída, num período
de seca, não havia água para tocar a obra
24
. O pedreiro, então, teria se dirigido até ele e
dito: Bento, não tem água! Vai parar a obra?”. Seu Bento, embora tenha se
preocupado, resignou-se e buscou no poder das Meninas a solução para a continuidade
do empreendimento. Também assumiu o compromisso de, se preciso fosse, transportar
pessoalmente água na carroça, contanto que a capela fosse levantada.
Eis que, milagrosamente, durante a noite, caiu uma chuva inesperada e mesmo
sendo pouco o volume de água, constituiu-se um reservatório natural próximo à capela,
numa formação chamada pelos sertanejos de ipueira
25
. Da água que teria se acumulado,
erguera-se o templo, ainda que ao cessar a obra o precioso líquido tenha escasseado por
completo. A essa altura, entretanto, o milagre já havia se processado e a capela já estava
de pé.
Além da provisão material, a virtualidade das personagens santas também se
reflete no intercurso das dinâmicas e relações engendradas naquele ou para aquele
espaço sendo freqüente o uso de exemplos para ratificar a eficácia e a ação das Meninas.
Um desses exemplos é retratado no episódio em que dois homens, um católico e outro
evangélico, trabalhavam no alto da capela, ajeitando os últimos detalhes da arrumação
da igreja para o dia seguinte, de festa. Durante o trabalho, o pintor, católico, sofre uma
queda do campanário, alguns metros de altura do solo e disso o resulta nenhum
dano físico. Embora o relato não se detenha tanto à distinção das crenças em jogo
privada de laços contratuais que se estabelecem entre as pessoas do mesmo status social e entre
os homens e os seres sobrenaturais” (1996, p. 101).
24
Não cursos d‟água nas imediações do santuário, nem abastecimento encanado até hoje,
além do que o reservatório mais próximo, o açude da fazenda, fica aproximadamente a três
quilômetros da capela.
25
Ainda que Ferreira (1975) defina Ipueira como sendo um “lagoeiro formado nos lugares
baixos pelo transbordamento dos rios e onde as águas, em geral piscosas, se conservam meses a
fio”, esse tipo de formação natural também se produz em ambientes distantes de rios, desde que
o terreno e a precipitação pluviométrica assim o propiciem.
60
quanto se preocupa em mostrar que o poder das Meninas é intenso, saindo o acidentado
ileso, ainda assim o episódio serve para marcar a virtualidade da ação de uma crença em
relação à outra e, como conseqüência, capitalizar a
eficácia das Meninas.
No plano da geografia do santuário, as
covinhas que antes estavam desamparadas ao
relento passam agora a objeto central e de destaque
no interior de uma capela inteiramente dedicada a
elas. Embora a narrativa fale em duas crianças, e a
alusão é sempre referendada no plural, as covinhas,
a suposta sepultura tem uma estrutura unificada, ou
seja, uma cova única (Foto 5). Esse marco, além
de ser o aspecto de maior destaque no interior da
capela também é o lugar mais concorrido em dias
de festa, ainda que no Altar
26
existam outros
elementos que participam intensamente da
sacralidade do espaço.
O Altar se localiza na parte posterior da capela, após a cova, e para se ter
acesso a ele é preciso transpor um degrau em relação ao piso. Seu acesso é irrestrito e
costumeiramente esse é um local,
literalmente, de muito fluxo
27
. Na
mesa costumam estar uma Bíblia
aberta, alguns jarros de flores e
nalguns anos (2007 e 2008) havia um
livro de assinaturas para os visitantes.
No altar (Foto 6) estão
emparelhadas muitas imagens de
26
Utilizarei Altar para referir-me ao conjunto de equipamentos elevados (mesa e altar) que se
localizam no fundo da capela, enquanto altar define o suporte posterior no qual repousam as
imagens de santos entre outros objetos que os romeiros depositam por lá.
27
As pessoas costumam subir por um lado e descer pelo outro.
Foto 5 - A Cova (2005)
Foto 6 O altar (2009)
61
diversos santos que participam dos circuitos simbólicos do catolicismo popular. Merece
destaque a estatueta do Pe. Cícero, que embora não reconhecido oficialmente pela igreja
é reverenciado pelo povo com fervor invejável a qualquer canônico (Foto 7) e, na
capela, a maior de todas as imagens é a desse santo
controverso.
Outra personagem importante, o tanto
pelo número, mas pela disposição e pela freqüência
dos devotos que se dirigem em oração para essa
imagem nos dias de festa, é Nossa Senhora
Aparecida, que partilha a data comemorativa em
sua homenagem com as Meninas das Covinhas.
Esse dado é relevante, pois ao passo que na
vivência dos fiéis essa “divisão” não apresenta
qualquer óbice ou conflito, no discurso formalizado
da instituição ele é usado como instrumento para
distinguir e capitalizar a disputa pela plausibilidade
e pelo poder. Isso fica evidenciado com maior clareza nos conteúdos explorados pelos
sacerdotes nos sermões das missas celebradas durante a festa nas Covinhas, em cujas
mensagens o discurso sobre o que é ou quem está com a Verdade é sempre pauta.
Nesse exercício retórico, então, Nossa Senhora é evocada como personagem que se
sobrepõe às mártires crianças.
Por fim, um último
aspecto da capela a ser
mencionado é a utilização das
paredes próximas ao altar (Foto
8), cujo uso indiscriminado
produz sempre uma
configuração estética própria a
cada término de festa. Embora
existam imagens e quadros que
permaneçam relativamente fixos ao longo do tempo como é o caso das telas que
representam as Meninas e alguns santos, uma rotatividade intensa de outras
produções (cartas, bilhetes, fotografias, adesivos etc.). As paredes, portanto, funcionam
Foto 7 - Destaque para as imagens de
Pe. Cícero e Frei Damião (2009)
Foto 8 - A parede de fundo do altar (2005)
62
como veículo de registro e divulgação da , de testemunho dos milagres ou mesmo de
publicidade dos acordos e pedidos.
O ambiente é profuso em formas e estratégias, revelando, além das intenções
subjetivas empenhadas entre fiel e santo, processos comunicativos e relações de poder e
reciprocidade, cujo teor último é impossível recuperar, mas indicia aspectos importantes
a serem analisados. Assim, mais adiante, procuro recuperar através de algumas dessas
estratégias, comunicativas e representativas, pistas para interpretar relações engendradas
no e para além do espaço de culto.
3.2. A cova
A cova é a principal estrutura do santuário. Todos que o freqüentam,
independentemente das razões que justificam o estar lá, procuram sempre visitar o
marco situado no centro da capela. Esse é o local mais concorrido, não apenas porque é
o mais visitado, mas também pela disposição do espaço que não favorece uma presença
simultânea de grande público. Disso resulta que, durante todo o dia da festa, um
fluxo intenso de pessoas se revezando ao redor do horto para poder realizar suas
atividades.
A cova consiste numa construção retangular, em alvenaria, revestida de
azulejos azuis, cravejada com uma cruz, e que obedece inicialmente ao padrão de um
túmulo popular de cemitério, seja pelo tamanho, seja pela arquitetura. Três aspectos, no
entanto, diferem-na das sepulturas comuns: o fosso com água, as pedras e as práticas de
culto.
O fosso é uma estrutura incorporada à cova, ladeando-a por toda sua extensão
(Foto 5, p.60) e cujo objetivo é acomodar a água usada com várias finalidades pelos
freqüentadores do santuário. Em geral, o abastecimento do reservatório é feito ao longo
do ano por Seu Bento, mas no dia da festa devido à intensa utilização do líquido, a
dinâmica das práticas em torno da cova encarrega-se de cumprir esse papel. Assim,
embora seja freqüente a retirada de água do fosso nunca o vi completamente seco. Isso
63
porque ao passo que uns subtraem
o quido muitos outros o repõem,
integrando-se essa ação no rol das
práticas incorporadas à rotina do
culto (Foto 9).
A água é usada como
veículo de taumaturgia e participa
intensamente das práticas e do
imaginário local, pois se articula
no repertório imagético da
narrativa que enreda o lugar. Isso porque, na
história das Covinhas, as Meninas teriam
morrido de fome e sede, saga posteriormente
atualizada por Seu Bento, quando na sua
doença foi privado de consumir água durante
dias. Assim, a água torna-se uma das principais
ofertas que os devotos realizam seja em
cumprimento de promessas, seja no mero ato
de visitar o lugar. Mas, à medida que ela é
ofertada, também é extraída, pois os
freqüentadores consideram-na milagrosa. Desse
modo, são habituais as cenas em torno da cova
onde as pessoas realizam abluções em si ou em terceiros (Foto 10), enquanto outras
preferem envasar um pouco do líquido e conduzi-lo para utilizá-lo em suas casas (Foto
11).
Além da água, as pedras contribuem para fazer da cova um lugar especial. Elas
preenchem a estrutura de azulejos e são as mesmas indicativas das sepulturas primárias,
encontradas por Seu Bento na busca pelas covinhas (Foto 12). A permanência das
pedras, mesmo após a construção da capela e da cova em alvenaria, permite ao devoto
encontrar-se com as Meninas e assim reviver a experiência que Seu Bento teve ao
deparar-se com seu achado pressagiado em sonho. Possibilita ainda uma experiência
Foto 9 - Ao centro, duas mulheres se preparam para
despejar água no fosso(2008)
Foto 10 - Homem lavando os olhos com
água do fosso (2009)
64
íntima de e de proximidade com as crianças-santas que provaram dos dissabores que
muitos dos que estão lá enfrentam no cotidiano.
Dificilmente, alguém remexe
nas pedras, mas é natural que algumas
pessoas tragam novos seixos para
depositar na cova ou, o que é mais
comum, para colocar no cruzeiro
localizado na campina. Tal como a
água, as pedras não estão por acaso.
Notadamente, a presença das últimas
participa de esquemas e disposições,
mentais e práticas, que circunscrevem
a piedade popular voltada para o culto
de mortos especiais e lugares considerados sagrados. Contudo, ainda que esse seja um
costume relativamente disseminado, nas Covinhas ele ganha fisionomias próprias,
cruzando-se com interpretações que carreiam aspectos míticos do santuário. Assim,
embora as pedras estejam primariamente associadas à idéia da sepultura, elas são
investidas de novos significados, os
quais tanto se vinculam com demandas
subjetivas dos sujeitos que freqüentam
o lugar, quanto instauram relações de
reciprocidade localizadas nas práticas e
nos rituais desenvolvidos.
É possível dizer com isso que
é do cruzamento entre a narrativa
mítica, a permanência das pedras e a
presença da água que a cova se fixa
como o centro desencadeador de sentido para todo o santuário. Com isso, fica evidente a
síntese dinâmica agregada a esse núcleo, cujo desenvolvimento se processa
simultaneamente em movimentos articulados. O primeiro deles, de natureza centrífuga,
se apresenta quando as ões se esboçam para fora, através dos investimentos
simbólicos e das elaborações discursivas, que favorecem a projeção social das Meninas,
Foto 11 - À esquerda, mulher despeja água. Ao
centro, de blusa branca, outra recolhe com copo
descartável (2008)
Foto 12 - A cova no início da festa, ainda com as
pedras parcialmente descobertas (2006)
65
sua história, seu suposto poder de atuação, e, conseqüentemente, seu lugar. Em
contrapartida, seu reflexo é o retorno para o santuário, em fluxo centrípeto, no qual se
processam as diversas formas rituais e as relações de reciprocidade que cristalizam o
culto e reforçam a eficácia simbólica.
Nesse sentido, além de caracterizar-se como lugar para realizar orações, fazer
abluções e depositar pedras, a cova acumula uma quarta função que a movimenta tanto
quanto o uso da água: é a entrega ou o pagamento de grande parte dos acordos
pactuados entre os devotos e as Meninas. Estabelece-se com isso uma movimentada
atividade de deposição dos mais diversificados “pagamentos” no local e essa prática,
ainda que intensificada durante o período da festa, se replica continuamente ao longo de
todo ano.
Nisso emerge um último aspecto a ser acrescentado. Como já mencionei no
início do capítulo, são várias as razões para se ir às Covinhas, porém, algumas das que
se mostraram mais freqüentes estavam atreladas à piedade e ao seu sucedâneo ritual.
Assim, verifiquei que um dos pretextos mais mencionados como justificativa para se
estar no dia da festa no santuário era o fato de se ir pagar uma promessa ou cumprir um
voto
28
. Tornou-se, então, comum ouvir variantes de afirmações do tipo eu alcancei
uma graça e vim pagar minha promessa” ou também eu vim porque prometi que se
alcançasse uma graça colocava X coisa na cova.
A natureza dessa X coisa depende de vários fatores, desde o tipo de acordo
firmado até o tipo de associação (pára)simpática com algum aspecto empenhado na
relação. Assim, por exemplo, se a graça alcançada for a cura de uma doença, o devoto
pode levar um exame ou uma foto, de quando convalescente ou de quando já
restabelecido, ou um bilhete ou um ex-voto ou uma variedade de outros tipos de ofertas.
Tornam-se praticamente infinitas as possibilidades, contudo, é possível antecipar que
são raríssimos os casos em que “pagamentosde natureza pecuniária são feitos na cova
propriamente e, quando eles acontecem, são sempre em episódios embaraçosos e
controversos.
28
A promessa é temporalmente mais frouxa, pois em geral é acordada a retribuição em uma ou
em poucas parcelas, enquanto o voto pressupõe uma lógica de continuidade e de freqüência
ininterrupta, por exemplo, ir à festa todos os anos até o fim da vida.
66
Essa, e algumas outras, constituíram questões que me intrigavam no início da
observação e foi apenas depois de certo tempo de pesquisa e de distanciamento do
campo que comecei a perceber que existia uma lógica parcialmente estabelecida sobre a
natureza das ofertas. Assim, descobri que na medida em que elas eram segmentadas
também se instituíam sujeitos e locais reconhecidos como legítimos para a
deposição/recebimento de cada espécie delas. Daí, passei a compreender porque em
algumas situações, posturas e atitudes aparentemente irrisórias, suscitavam tanta
polêmica, a ponto de, nalguns casos, quando o “aconselhamento” ou a “persuasãonão
surtiam o efeito desejado, a repreensão e o falatório tornarem-se as saídas possíveis
29
.
Por fim, igualmente pude ver esse lugar da oferta como espaço político, de
disputa e de subversão, pois logo atrás, ou mesmo na frente, do ato de doar estavam em
questão as relações sociais que espelham o jogo de interesses dos sujeitos em ão. Por
isso, ao mesmo tempo em que as ofertas serviam para evidenciar as posições sociais de
quem as fazia, também se prestavam para ratificar as divisões entre aqueles que as
recebiam. Am disso, foi por meio da linguagem da oferta e dos espaços onde ela se
realiza que pude perceber alguns discursos dissonantes, de vozes microscópicas que
embora não inclusas numa disputa pública e polarizada que existe, também formulavam
avaliações sobre seu lugar social e sobre a conjuntura do santuário, revelando
insatisfações com situações estabelecidas ou ainda em curso.
3.3. O cruzeiro
O cruzeiro (Foto 13) consiste em uma estrutura com a base em forma de
degraus, construída em alvenaria, e encimada por uma cruz de metal. Ele está localizado
paralelamente alguns metros à direita da capela. Embora muito discreto em suas
proporções físicas, o monumento participa intensamente das práticas de culto
engendradas no santuário, de forma que o conjunto cruzeiro-cova-altar acumula quase
que a totalidade do capital sagrado do lugar, concentrando assim as respectivas
repercussões que a piedade sugere.
29
Desenvolvo esse ponto na seção 5.1 - O culto, os romeiros e os conflitos.
67
No aspecto da freqüência, o fluxo de pessoas
em torno do cruzeiro é constante e, em geral, o
monumento recebe o mesmo público que visita a
capela, pois, ainda que não exista um roteiro
obrigatório, fixando a assiduidade dos devotos, no
ranking das Covinhas, esse é o segundo espaço do
santuário e os romeiros costumam prestigiá-lo. Como o
cruzeiro está mais próximo da área destinada ao
estacionamento de veículos é comum que ele seja o
local inicial a ser visitado, apesar de que alguns
prefiram fazê-lo num momento secundário.
Em volta do cruzeiro e subindo por seus degraus estão dispostas muitas pedras
encontradas com facilidade no terreno do santuário e que perfazem ali uma
concentração evidente. Isso se deve ao fato de as práticas realizadas nesse local
pressuporem como requisito a deposição das pedras. Assim, durante todo o dia,
encontra-se devotos que, dirigindo-se ao cruzeiro, recolhem no caminho pequenos
seixos na intenção de deixá-los nas encostas do obelisco. Também, aqueles que,
despreocupados em portá-los de outros derredores, preferem recolhe-los entre os que
estão na base e num gesto incessante
os reconduzem aos degraus (Foto 14).
Existe uma rotatividade
intensa das pessoas que vão ao
cruzeiro e essa freqüência é
regularmente feita em grupos, padrão
que nem sempre se reproduz
integralmente nas outras atividades,
como as visitas à cova e ao altar. Isso
porque, quando o cruzeiro é o
primeiro local visitado, os grupos formados desde antes da viagem ou nela própria
permanecem brevemente reunidos ali para as orações, conversas ou a deposição das
Foto 13 - O cruzeiro (2005)
Foto 14 - Mulheres e crianças colocando pedras no
cruzeiro (2007)
68
pedras (Foto 15). Porém, concluída essa etapa, as atividades que se sucedem costumam
fragmentar o grupo de origem.
Além das qualidades acima
relacionadas que fazem do cruzeiro um
espaço muito interessante do ponto de
vista das práticas rituais, uma última
revelou-o ainda mais rico, dessa vez,
como o lugar da controvérsia. Perfilado à
cova, o cruzeiro é o palco microscópico
das especulações, das disputas de
plausibilidade e da expressão do
inconformismo. Foi, especialmente,
nesses lugares que encontrei os sujeitos pondo em ação suas maneiras de fazer
(CERTEAU, 1994), eclipsando os sentidos instituídos e fabricando eles próprios sua
leitura do lugar, do mito e dos outros agentes
30
.
3.4. O galpão
Quando estive pela primeira vez no santuário, no ano de 2005, encontrei,
ladeando a capela, à esquerda, uma construção equiparável àquela em tamanho. O
prédio era recoberto com telhado, mas suas paredes, afora as colunas de sustentação, só
atingiam pouco mais de 1 metro de altura, criando assim o efeito de grandes janelas.
Além disso, embora totalmente vazado, o galpão contava com dois portões de ferro que
podiam impedir o acesso livre ao prédio através de suas portas.
Ao fundo do galpão localizavam-se duas pequenas salas, fechadas com portas
de madeira. Tive acesso a elas nesse primeiro encontro quando consultei Seu Bento a
cerca dos ex-votos que os romeiros traziam. Como as peças eram guardadas naquele
local, fui levada até lá. Foi possível perceber que aquelas eram salas parcialmente
30
Desenvolvo esse tema na seção 5.3 - A negociação da narrativa: o cruzeiro.
Foto 15 - Visita ao cruzeiro de um grupo que
acabara de chegar ao santuário (2006)
69
ociosas, cujas funções de depósito ou de apoio se efetivavam a cada 12 de outubro.
Na sala da direita, havia alguns tonéis vazios que serviam para guardar a água de uso
geral, especialmente no período da festa. Como àquela época o abastecimento, a
quantidade e as formas de reservar a água ainda eram extremamente precários, os
reservatórios improvisados constituíam estruturas importantes para propiciar um acesso
público mínimo à água. Essa, inclusive, embora imprópria para o consumo, era muitas
vezes usada com essa finalidade. A situação da água vai sofrer melhoras apenas em
anos subseqüentes, com a instalação de um reservatório maior do outro lado da capela,
mas que ainda assim é insuficiente.
Na sala da esquerda, havia apenas num recanto, amontoados numa pilha,
alguns ex-votos de madeira e de gesso, dos quais foi possível observar uma significativa
presença de pernas, braços e cabeças, além de um par de muletas. Da visita inicial, levei
a impressão de que os ex-votos deixados pelos romeiros no lugar não tinham muita
relevância, haja vista a marginalidade de sua localização e a relativa falta de zelo para
com eles. Anos mais tarde, porém, a continuidade da pesquisa permitiria ver que
progressivamente esses objetos ganhariam destaque
31
.
Em minha iniciação na festa, no ano de 2006, acompanhei o uso do galpão e
compreendi como aquela estrutura aparentemente ociosa acumulava importantes
funções. A primeira e mais pública é seu uso coletivo como abrigo que protege os
devotos do sol causticante que normalmente faz no dia da festa. Foi só nesse dia,
quando para minha surpresa me deparei com uma multidão que ultrapassava de longe
quaisquer expectativas pessoais, que me dei conta de que a ampla campina contava com
espaça e rarefeita vegetação. Além dessa, restavam apenas a capela, o galpão e algumas
tendas improvisadas como refúgios razoavelmente confortáveis para proteção da aridez
do clima. Como nesse ano a celebração da missa, marcador temporal mais importante
no dia da festa, foi celebrada às 10h da manhã, quando a concentração de pessoas
chegou à sua culminância era quase impossível encontrar um lugar à sombra.
Mesmo com a intensa utilização do galpão este não oferece qualquer lenitivo
afora a proteção do telhado e alguns poucos bancos da capela que são deslocados para
31
Desenvolvo esse processo na seção 7.2 - O discurso em ação: as promessas do padre e a
racionalização popular do santuário.
70
. Com isso, as pessoas buscam se
acomodar como podem: se apóiam nas
muretas, sentadas em seu patamar ou
apenas recostadas nele, sentam-se no
chão ou permanecem de (Foto 16).
Um aspecto, contudo, costumava chamar
a atenção ali, é que embora o acesso ao
local fosse facultado a qualquer um
participante da festa havia uma incrível concentração de mulheres com crianças nesse
espaço. A razão para isso se devia à
segunda função para a qual o galpão, ou
propriamente uma de suas salas, se
reservava: a distribuição de presentes
(Foto 17 e Foto 18).
Entre as ofertas que se costuma
fazer como pagamento de voto ou
promessa existe uma prática estabelecida
de distribuir presentes, os quais tanto
podem ser brinquedos, como doces e
guloseimas. Esse tipo de oferta se
embasa na lógica que privilegia a
condição infantil das Meninas, aliás, fato
que além de justificar a natureza do
presente, também foi determinante para a
escolha da data em que se passou a
celebrar a memória das crianças
martirizadas
32
.
32
Seu Bento explica que por não se saber ao certo qual foi a data de suas mortes, o dia
selecionado para ser consagrado às Meninas das Covinhas foi aquele em que se comemora
oficialmente no Brasil o dia das crianças.
Foto 16 - O uso social do galpão (2008)
Foto 17 - Fila e expectativa para a distribuição dos
presentes (2006)
Foto 18 - A entrega dos presentes (2007)
71
A distribuição era organizada por Seu Bento na sala do galpão e sua duração
não ultrapassava mais que uma fração de minutos, haja vista serem muitos, crianças e
também adultos, aqueles que acorriam para o local esperando ser agraciados com uma
dádiva (Foto 18). Ao longo dos anos, porém, essa prática foi sendo modificada por
inúmeros fatores, todavia, o espaço que servia a esse fim assumiu outro papel bastante
diverso.
A partir do ano de 2008, a sala utilizada para armazenar os presentes passou a
ser usada como local para acender velas, prática até então correntemente realizada no
interior da capela. O gesto reproduzido com freqüência ao redor da cova e no chão, ao
lado do altar (Foto 19 e Foto 20), passou a ser visto como potencialmente perigoso à
segurança das pessoas, pois os riscos de incêndio eram um fato iminente. Assim, por
instituição dos organizadores da festa (Seu Bento e familiares), a sala dos presentes
passou a ser destinada ao acendimento
de velas a partir daquele ano. A
novidade, no entanto, não conquistou
a adesão imediata dos devotos e
naquela festa foi motivo de muitos
desentendimentos e confrontos.
No ano seguinte, além das
velas, estavam na sala as fotos e cartas
deixadas pelos devotos ao logo dos
anos, as quais haviam sido acumuladas
por Seu Bento. As paredes foram
revestidas pelos inúmeros milagres
enquanto no piso eram distribuídos
ininterruptamente os queimadores de
parafina ao lado dos diversos ex-
votos.
A constituição de uma sala
dos milagres como demonstro não é
uma novidade casual, mas se insere
Foto 19 - Acendendo velas na cova (2008)
Foto 20 - Acendimento de velas na lateral do altar,
mesmo contrariando as determinações para não
fazê-lo (2008)
72
num processo que associa diferentes esforços na tentativa de projetar ainda mais as
Covinhas como um santuário popular. Esse conjunto de ações participa do processo que
chamei de racionalização popular
33
e que se contrapõem a algumas medidas e
interesses institucionais.
O galpão vem sofrendo desde
2007 uma ampliação (Foto 21). O novo
edifício veio substituir as palhoças
improvisadas com elementos vegetais
(troncos e palhas de palmeiras) e as
barracas montadas com caibros e lonas.
Com a construção do novo galpão, os
antigos abrigos foram desprezados
parcialmente.
Além dos galpões, a derradeira estrutura fixa que se encontra no santuário são
os banheiros de uso coletivo (Foto 22). Eles se localizam no extremo do complexo, ao
fundo, do lado esquerdo, do galpão velho e, embora a quantidade de pessoas que
circulem pelo santuário no dia da festa
seja contabilizada na cifra dos milhares
(6.000 pessoas em 2004, conforme
dados de Seu Bento), a estrutura de
banheiros além de precária é
insignificante. São apenas dois
sanitários, supostamente um masculino
e outro feminino, resguardados por
detrás de frágeis portas de madeira,
desgastadas pelo intenso uso e pelas
intempéries do clima. Como os banheiros o têm água e não contam com qualquer
serviço de limpeza, as condições extremas de falta de higiene que se apresentam no
local obrigam muitos dos freqüentadores a buscar alternativas mais “naturais” para
resolver suas necessidades fisiológicas.
33
Exploro esse processo na seção 7.2 - O discurso em ação: as promessas do padre e a
racionalização popular do santuário
Foto 21 - A parte ampliada do galpão (2008)
Foto 22 - Banheiros (2009)
73
Em 2007, foi instalada uma grande caixa d‟água (Foto 23) com capacidade
razoável de armazenamento, mas ainda assim não atende às necessidades do grande
público que freqüenta o lugar. Isso se ajunta ao fato de as estratégias de abastecimento e
distribuição ainda serem as mesmas da época dos tonéis: transporte em carroça de
tração animal e acesso exclusivamente local à água, que agora se faz através de uma
torneira, quando antes era realizado pela
imersão de vasilhames diretamente na
água.
A energia elétrica no santuário
também ainda é novidade, pois sua
chegada se deu em 2008. Até então
todas as atividades que dependiam de
alguma fonte elétrica o faziam
através de gerador ou de baterias. Era o
caso, por exemplo, do carro de som
usado durante a missa. No caso das
barracas que comercializam produtos que requerem refrigeração, como bebidas e
sorvetes, essas contavam com estruturas improvisadas de caixas de isopor e gelo.
3.5. O comércio
Devido à quantidade e às
proporções que as estruturas fixas
(construções) das Covinhas apresentam a
maior parte da área reservada para as
atividades do complexo são destinadas a
funções o religiosas, quais sejam, o
comércio e o estacionamento (Foto 24).
Foto 23 - Caixa d'água instalada ao lado da capela
(2008)
Foto 24 - Vista frontal do santuário (2006)
74
O comércio se desenvolve em
quase toda parte, mas sua concentração
é mais evidente nas barracas que
margeiam, em 90 graus, a capela (Foto
25). Essas armações móveis são
montadas especialmente com lonas
plásticas e contam com equipamentos
diferenciados de acordo com as
necessidades dos produtos
comercializados.
É possível comprar várias
coisas nos dias de festa, mas em geral
são negociados produtos de consumo
imediato como comidas e bebidas.
Além desses, algumas barracas
especializadas que vendem artigos
como bonés e chapéus, brinquedos
(Foto 26) e imagens de santos (Foto
27). Além desses, em 2006, havia um
caminhão estacionado onde se podia
adquirir vistosas melancias.
As barracas são de propriedade
de comerciantes locais e regionais, os
quais relativamente estabelecidos
costumam circular “fazendo feiras e
festas nas redondezas”. Desse modo,
anualmente é possível encontrar os
mesmos negociantes: o do churrasco e
pastel, o da batata frita, o dos bonés, os
dos brinquedos etc.
Todavia, o comércio não se reduz às barracas. Existe o comércio menor, feito
por pessoas que não atuam nesse tipo de agência, mas que vêem o dia da festa como
Foto 25 - Barracas (2007)
Foto 26 - Comércio de brinquedos populares (2009)
Foto 27 - Comércio de quadros, estampas e
souvenires de santos diversos (2009)
75
uma oportunidade de fazer um bico e ganhar algum trocado. Graças à singeleza desse
comércio, desprovido de maiores estruturas, aqueles que o fazem se estabelecem de
forma dispersa na multidão com caixas de isopor, carrinhos de picolé e de doces,
churrasqueiras etc.
Por fim, quanto ao comércio, a sua dimensão pecuniária e transacional durante
a festa é importante, mas sua relevância precisa ser vista para além dessa
movimentação. O comércio, principalmente o das barracas, demarca uma área
diferencial da e na festa. Esse espaço, que acontece simultânea e contiguamente a
outros de ordem sagrada, concorre com aqueles na medida em que é atravessado por
uma relativa segmentação, além de fomentar relações de sociabilidade distintas
daquelas observas em outras áreas da festa. O espaço do comércio, portanto, é também
responsável para dar colorido às Covinhas, incrementando sua dinâmica.
3.6. A área de estacionamento
A área restante do santuário é
destinada para o estacionamento de
veículos, os quais são cada vez mais
numerosos (Foto 28). Entre ônibus,
caminhões, caminhonetes, carros de
passeio e motos, a ocupação do espaço
é multiplicada a cada ano. A razão para
isso é que a expansão da festa e do culto
vem acompanhada de um fluxo maior
de veículos particulares, uma vez que
não existe transporte público até o local.
Os veículos se distribuem por toda a área, mas uma concentração
considerável deles nas imediações da porteira de acesso. Isso se por que quando a
missa é encerrada uma debandada massiva do público e aqueles que estão mais
próximos da saída julgam gozar de maior facilidade no trânsito. Essa estratégia,
Foto 28 - Área de estacionamento na lateral direita
da capela (2009)
76
contudo, não assegura uma saída expressa, que a estrada por dentro da fazenda é
estreita e freqüentemente o encontro de veículos de grande porte, deslocando-se em
sentidos contrários, costuma obstruir a pista por tempo considerável.
A área do estacionamento também conta com intensa circulação de pessoas,
pois como no santuário são poucos e concorridos os locais para repouso e proteção do
sol, muitos dos freqüentadores costumam dar uma volta na festa e retornar
temporariamente para os veículos. Em geral, são as mulheres com as crianças que fazem
isso. Muitos desses grupos passeiam um pouco, visitam a capela e o cruzeiro, compram
alguma coisa nas barracas de comércio, angariam seus presentes e voltam para os
veículos para avaliar ou consumir aquilo que se conquistou.
Como dito, a campina conta com pouquíssima vegetação e quando essa
existe é muito rala e baixa, não se prestando para descanso ou abrigo. Em 2007, a área
sofreu com a ação do fogo, que consumiu toda a cobertura seca ao redor da capela.
Nesse ano, além do calor intenso e da poeira avermelhada do solo, as rajadas de vento
levantavam cinzas deixando a todos incomodados. A partir de 2008 foram plantadas
algumas mudas pelo terreno na tentativa de arborizar o lugar, mas aquelas que
conseguiram vingar ainda não passam de pequenos arbustos.
3.7. As Covinhas: de lugar a espaço
Ao longo do capítulo busquei apresentar as fisionomias do lugar conhecido
como as Covinhas, dando especial ênfase em descrever com detalhes as estruturas que
lá existem e suas supostas finalidades. Primeiramente, a intenção desse levantamento é a
de poder apresentar que ambiente é esse, analisando sua geografia e seus objetivos.
Nessa perspectiva, inevitável se tornou o relato da sua história e os motivos que
fomentaram sua produção, afim de que com isso fosse possível compreender seu
surgimento e transformação.
Ao perseguir as informações e buscar dar forma aos dados, percebi que essa
não era uma história que se fazia por meio de fontes oficiais, de registros ou
77
documentos, mas para reconstituí-la precisaria recorrer à memória e à narrativa oral.
Foi, então, através do porta-voz legitima e socialmente constituído que busquei
recuperar algumas dessas informações que colaboram para entender o complexo
emaranhado entre a obra de características únicas e as relações que ela suscita.
Ainda que tenham sido as palavras de Seu Bento aquelas que me conduziram
no resgate da história das Covinhas o foi ele quem ouvi. Escutei vozes acordantes
e dissonantes, que tanto me trouxeram elementos novos, como ratificaram aqueles que
eu ouvira do meu interlocutor privilegiado. Aos poucos, nesse exercício, me
introduzia noutra seara tão complexa quanto a inicial. Percebi que não existia uma
versão da história, no sentido de uma versão mais fidedigna” em oposição a outras de
menor valor. O que existiam eram histórias, narrativas que se mesclando àquela
apresentada por Seu Bento se rearrumavam constituindo arranjos novos e cujo conteúdo
comportava desde os motivos públicos da narrativa primária àqueles de ordem mais
subjetiva e imaginária. Mito e história, portanto, terminam por se fundir e refundir num
movimento contínuo.
A equivocidade, todavia, conduziu a uma nova qualidade do lugar: sua
dinâmica. As Covinhas não constituem um local encerrado, com uma história definida e
uma forma definitiva. Ainda que eu tenha buscado apresentar as estruturas que estão lá
e as funções que elas costumam cumprir não significa que elas são, foram e serão
sempre assim. Com isso, mais do que conjunturas estáticas que possam ser inscritas na
relativa permanência de um trabalho acadêmico, o que o campo aponta é a vitalidade de
sentidos que estão expostos a um processo de atualização incessante. Isso porque
embora o santuário seja um lugar com suas coordenadas enraizadas aqueles que o
experimentam o fazem sob a ótica do espaço.
Recorro nesse momento à distinção entre lugar e espaço proposta por Certeau
(1994) quando analisa as práticas de espaço como iluminadora para a compreensão do
santuário enquanto unidade de disposição geográfica, arquitetônica, funcional, mas,
especialmente, como campo de ação dos sujeitos.
Para Certeau (1994), o lugar remete ao ordenamento segundo o qual se
distribuem os elementos nas suas relações de coexistência. Nessa medida, o lugar
expressa “uma configuração instantânea de posições” (p. 201), implicada de
78
estabilidade. Por outro lado, a noção de espaço pressupõe a idéia de movimento e
direção, cuja efetivação se processa através das operações que “o orientam, o
circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de
programas conflituais ou de proximidades contratuais”. Em suma, como ele sentencia,
“o espaço é um lugar praticado (p. 202).
Nas Covinhas, o lugar se produziu e continua se produzindo enquanto
ordenamento, com estruturas que são erguidas, fixadas e estabelecidas a partir de
funções pressupostas, entretanto, sua fenomenologia, atravessada das experiências
sociais, biográficas e históricas dos que vivenciam o santuário, termina por transformá-
lo em espaço. O móvel dessa mutação são as operações e estratégias dos sujeitos
históricos que no momento da ação subvertem o prescrito e reescrevem o lugar, dando-
lhe fisionomias novas, registrando suas marcas, especulando seus sentidos, instaurando
novos significados.
Compreender esse processo, contudo, requer mirar as condições de produção
desse espaço e as táticas empenhadas no curso das ações. Para isso, mais adiante
procedo à descrição etnográfica das maneiras de usar o lugar, entendendo que essas
repercutem em modos de (re)fazê-lo, estabelecendo configurações sempre em curso.
79
4. AS COVINHAS E SUA DINÂMICA: OS ANTECEDENTES DA
FESTA
A cada 12 de outubro é possível presenciar uma intensa movimentação de
pessoas e a realização de várias atividades e práticas rituais no santuário. Ao longo do
ano algumas dessas situações se repetem, mas não atingem nem de longe a intensidade
que se observa durante a festa.
Mesmo em tempos distintos, existe uma relação entre as atividades do período
comum e as do calendário festivo, de modo que para compreender o funcionamento do
santuário e a organização da festa é necessário apresentar como alguns aspectos se
articulam, notadamente, nos processos que perfazem a rotina e os preparativos para o
evento. Passo a descrevê-los, portanto.
4.1. A rotina do santuário
As atividades que se processam no santuário afora o período da festa se
realizam em estrita dependência com a demanda da piedade particular. Assim,
motivados por razões que na maior parte dos casos envolve o pagamento de votos e
promessas, as pessoas vão ao santuário deixar algum objeto, fazer suas ofertas e realizar
suas orações.
Salvaguardo em situações onde o pagamento da promessa envolva grupos
maiores, articulando familiares e conhecidos, o mais comum é que a visita seja feita em
pequenos grupos, de duas a cinco pessoas, em carros de passeio ou mesmo em
motocicletas e numa única visita. A extensão desses grupos e a freqüência, mormente,
dependem daquilo que se promete, uma oração ou uma novena, e das condições de
contraprestação, por exemplo, se no momento do pagamento as condições financeiras
são mais favoráveis ou não. Ainda sobre a quantidade de pessoas, quando o grupo é
80
relativamente grande, o número de carros pode se assemelhar a uma carreata-romaria.
Mas, esses casos, embora já tenham acontecido, são fatos excepcionais.
Tanto Seu Bento
34
como moradores da comunidade com os quais conversei,
afirmaram ser rotineiro que pessoas tanto de Rodolfo Fernandes como de localidades
próximas ou distantes venham pagar suas promessas nas Covinhas em período diferente
da festa. A justificativa para as visitas intempestivas podem ser de várias ordens.
Aquelas que me foram fornecidas podem ser classificadas sob três espécies: as que
envolvem questões espaciais, as que expressam a diligência das Meninas e as que
pressupõem um prolongamento temporal.
A primeira é também a mais mencionada, sobretudo, por Seu Bento. Nessas
situações são relatados casos de pessoas oriundas de lugares distantes que enfrentaram
longas e difíceis jornadas a fim de vir pagar uma promessa com as Meninas, das quais
os visitantes já tinham ouvido falar por terceiros.
Em geral, são mencionados como lugar de origem os Estados de São Paulo e
Rio de Janeiro, entretanto, também foram citados alguns Estados do Norte e do
Nordeste. Ouvi ainda alusão “a pessoas que vieram do estrangeiro”, de países da
América Latina, como Peru e Argentina. Em todos os casos, porém, é a distância
geográfica que separa as Covinhas do lugar de origem dos romeiros que é usada como
artifício retórico importante para a capitalização do culto e de suas personagens. A
presença dessas pessoas funciona, e é assim explorada, como argumento para mostrar o
quanto as Meninas são milagrosas e do quanto seu poder se desenraizou da área local
de difusão e abrangência do culto.
Ao motivo espacial segue-se outro, diria geograficamente especular. Os
romeiros que moram em localidades próximas ao santuário, conhecedores do poder
intercessor e milagroso das Meninas costumam fazer promessas para alcançar graças
que carecem de certa urgência. Ao serem atendidos em seus pedidos, os devotos
sentem-se compelidos a pagar suas promessas o mais rápido possível, sobretudo,
quando ela não tem implicados elementos que requeiram um tempo de espera, como no
caso das promessas feitas para se cumprir durante a festa. Nesses casos, figura uma
lógica de reciprocidade imediata, que na demora da contraprestação uma espécie de
34
Seu Bento me disse certa vez que praticamente toda semana ele recebe romeiros na capela.
81
quebra de acordo, como se o devoto estivesse enrolando o santo. Assim, tal como
atendidos com presteza, os devotos devem corresponder com atitude à altura das santas.
Nessa mesma categoria também podem estar os casos em que por alguma
conjuntura seja mais cômodo ir ao santuário em dias não festivos e devido à
proximidade espacial isso possa acontecer de forma mais flexível. Podem ser razões
para isso alguma facilidade de deslocamento, como um convite de alguém que também
vai para pagar promessa, ou alguma necessidade especial, como em situações de
doenças, estado de saúde ou condições físicas que não permitiram, permitam ou
permitirão ir às Covinhas no dia da festa.
Enfim, afora esses pretextos, também aqueles que pressupondo uma
seqüência temporal de atividades, como no caso das novenas, é necessário realizar
visitas sucessivas e seqüenciadas que não podem ser concentradas num único dia. Além
das novenas, votos como acender velas no santuário durante um período de dias
também podem impelir os devotos a realizar suas visitas necessariamente em períodos
distintos da festa.
No que tange às práticas rituais, aquilo que se faz no santuário em dias comuns
não se diferencia muito das ões executadas em dias de festa. Os romeiros costumam
fazer orações individuais e coletivas, de acordo com a conjuntura da visita, na cova, no
altar e no cruzeiro. Rezam terços, rosários, ladainhas e nos casos próprios, fazem
novenas dedicadas a algum santo em especial. Além disso, reproduzem a prática de
apresentar seus ex-votos na cova ou no altar, de fazer o uso da água reservada no fosso e
de acender velas.
Não obstante, as ofertas nesse período são dirigidas estritamente às Meninas
sob a forma de mamadeiras, chupetas, brinquedos e garrafas d‟água. Além dessa, outra
modalidade pode ser a contribuição com recursos financeiros entregues à Seu Bento
para melhoria e manutenção do santuário. a oferta de presentes, mesmo quando sua
distribuição era um dos pontos altos da festa, ela não se realizava durante o calendário
comum, a o ser quando a visita acontecia em período que antecedia proximamente a
festa e os presentes podiam ser entregues a Seu Bento para distribuí-los na solenidade.
Exceto no dia da festa não acontecem no santuário atividades dirigidas ou
assistidas pelo padre ou equipe leiga ligada à paróquia. Serviços como batizados,
82
casamentos, missas e celebrações não são realizadas na capela pelo simples fato de essa
não ser uma estrutura da Igreja, mas figurar em última instância como um templo
particular. Além do aspecto formal de pertença, que impede por meio de orientações
pastorais e canônicas a realização dos serviços mencionados, existe uma pública disputa
entre o padre que atende no município e Seu Bento, articulador e mantenedor da capela.
Assim, o primeiro se recusa expressamente a realizar quaisquer atividades no santuário,
à exceção da missa celebrada no dia da festa, enquanto as Covinhas não pertencerem à
Igreja.
Mediante a querela, multiplicam-se as queixas registradas entre os devotos,
pois eles costumam se comprometer com as Meninas de “mandar rezar uma missa na
capela” pelas suas almas ou em agradecimento pela saúde/cura de alguém ou ainda por
uma graça alcançada etc. Independentemente dos motivos, todos são reincidentemente
negados pela autoridade paroquial e com isso a contraprestação da promessa o se
cumpre.
Diante do cenário, embora o sacerdote busque contornar esses episódios com
saídas possíveis, como rezar a missa na igreja matriz de Rodolfo Fernandes ao invés de
na capela, as alternativas freqüentemente não são acolhidas ou quando são, rescendem
nos devotos o peso do compromisso incompleto. Tal como as missas, os batizados
também são, amiúde, objeto de controvérsias, ainda que seja as missas o alvo mais
freqüente.
4.2. Antecedentes da festa: as Meninas, os recursos e os romeiros
No início de outubro já existe uma constante movimentação em torno das
Covinhas, cuja aproximação da data da festa faz intensificar-se. Embora seja notório
que esse período mobilize mais pessoas, por meio de algumas estratégias e do fluxo de
freqüentadores que tende a se acentuar, existem operações que antecedem a todos esses
movimentos e, por vezes, os definem. Para explicá-las preciso contextualizá-las no
trabalho de campo e por isso faço um breve retrospecto.
83
havia se passado quatro anos desde que eu conhecera as Covinhas e
começara a freqüentar a festa. Algumas coisas já me eram naturais” e transpiravam
pouca novidade. Além das histórias novas de milagres que eu sempre ouvia, de algumas
mudanças na organização da festa e dos movimentos e interesses de alguns sujeitos,
especialmente Seu Bento e o padre, que cada vez se revelavam mais nítidos, nenhuma
notícia recente me vinha do campo. Provavelmente porque não encontrara ainda uma
fonte que ma relatasse.
No fim de 2009, quando muito do trabalho estava encaminhado e não havia
mais planos de voltar a campo, algumas questões com respostas parciais me
impulsionaram a percorrer mais uma vez aqueles tantos quilômetros que separam Natal
das Covinhas. Não descobri nenhum segredo, tampouco alguma revelação bombástica,
mas encontrei um elo para uma questão que ainda não havia se fechado por completo
entre as inquietações suscitadas pelo trabalho de campo: como é que a festa ganhava as
proporções que a vi atingir, com o fluxo de pessoas de outras cidades que a
freqüentavam, contando com estratégias de divulgação tão singelas e pouco sistemáticas
como aquelas que eu havia levantado a priori?
Não conhecia artifícios de divulgação do culto que não fossem aqueles
inscritos nos padrões tradicionais de comunicação de pequeno alcance, resultante das
interações face-a-face. Essa estratégia, embora ao longo dos anos pudesse alcançar um
raio de abrangência razoável nas cercanias de onde se processa o culto, precisaria de
outros elementos que justificassem sua eficiência em continuar fazendo crescer o
número de participantes que vêm ao santuário. Não obstante, a proximidade, a
circulação de informações e um prestígio social continuamente em produção poderiam
até esclarecer essa adesão local ao culto.
Mas não parava por ai. Para além daquela pergunta, como se explicava uma
expansão do culto para novas fronteiras? O que nesses lugares fomentaria a aspiração
pelo culto, estabelecendo-o como referência que movimenta romarias anuais no dia da
festa? Será que o boca-a-boca desinteressado seria capaz de ter repercussão a ponto
de criar disposições para a formação de grupos que se deslocam com custeio privado a
fim de participar de uma festa local direcionada para “santas nativas” ?
84
As respostas para essas questões suponho tê-las encontrado a partir da conversa
com uma senhora de Itajá, município localizado no Vale do Assu, distante 200 km do
santuário. Dona Antônia me disse que muitos anos vem às Covinhas, pois é comadre
de Seu Bento e desde que ele começou aquela devoção ela freqüenta o lugar. Sem
maiores pretensões, a anciã me repetiu muitas das histórias que havia ouvido várias
vezes, contudo, quando perguntei a razão de ela vir de tão longe para a festa Dona
Antônia me forneceu as coordenadas de algo que até então eu desconhecia.
Existia um grupo organizado que vinha de Itajá para prestigiar a festa já
certo tempo e, pelo que me pareceu na conversa, Dona Antônia foi a articuladora dessas
romarias em sua comunidade desde o início. Seu fervor cristão e a crença no poder das
Meninas lhe motivavam a vir às Covinhas e divulgar a ação daquelas santas por toda
parte. A estratégia posta em ação por Dona Antônia não se diferenciava muito daquelas
que se replicam entre os diversos grupos de outras comunidades que anualmente se
dirigem à festa, salvo pela presença circunstancial de Seu Bento no processo de
mobilização para a viagem.
Aproximadamente 30 dias antes da festa Seu Bento costuma ir até Itajá, onde
se hospeda na casa de sua comadre. Por lá ele realiza visitas nas casas de alguns
moradores que tanto podem lhe ser apresentados por Dona Antônia como por outros
romeiros que já foram às Covinhas. Durante o encontro, Seu Bento narra sua história e a
do santuário, além de apresentar os muitos casos de milagres operados pelas Meninas.
Concluída a “divulgação”, Seu Bento passa ao momento de “captação”, no qual ele
pede aos interlocutores que colaborem com “esmolas
35
para obras/manutenção do
santuário ou para a aquisição de presentes para ser distribuídos na festa. Na mesma
visita, ele convida as pessoas a participar da festa, incentivando-as assim a fazer
romaria até as Covinhas.
Embora a atuação de Seu Bento demonstre pelo menos três enfoques distintos,
o desempenho delas é indissociável. Divulgação, captação e mobilização fazem parte de
uma mesma estratégia conhecida como comissão. A prática de comissão consiste na
organização de um calendário de visitas a residências e propriedades com vistas à
35
Termo empregado por Seu Bento
85
exposição de alguma ão e à arrecadação de fundos em prol dessas atividades
36
. Na
comissão, os encarregados realizam um trabalho corpo-a-corpo, em conversas
envolvendo pequenos grupos de parentes e vizinhos que se encontram num local de
conversação doméstica como o alpendre de casa, a calçada ou o terreiro. A conversa é
encaminhada numa linguagem familiar, com relações bastante próximas e afetivas, nas
quais os interlocutores são interpelados pelo nome ou por vocativos que estabelecem
ligações pessoais como “cumade”, ”cumpade”.
Nas condições gerais que esteiam a prática, “sair em comissão” pode resultar
em saldos de diversas espécies, desde dinheiro a animais ou gêneros alimentícios, além
do que quando ela se realiza em áreas de comércio os produtos podem assumir uma
variedade ainda maior. A razão para essa amplitude se relaciona com o fato de que as
pessoas quando se dispõem a colaborar, podem fazê-lo ofertando o que tem. Nessas
situações, contudo, são requeridas estruturas logísticas para o recolhimento das doações,
as quais acredito não existirem no caso de Seu Bento. Dessa forma, sua coleta é
exclusivamente pecuniária, sob a forma de esmolas.
Ainda sobre a noção de comissão, esta pressupõe a incumbência personalizada
de alguma tarefa, cujos executores perfazem o papel de comissários. Essa terminologia
não é uma expressão nativa, utilizada pelas pessoas para definir o emissário que faz as
visitas, entretanto, sua condição é alvo de reconhecimento público. Assim, instituído
pela praxe da ação, as pessoas passam a identificar aquele que faz a comissão como seu
representante legítimo.
Na comissão existe ainda o aspecto da recursividade, haja vista que as ações
que ela representa em geral têm caráter contínuo, portanto, pressupõem uma espécie de
repetição cíclica. Com isso, à medida que a comissão se estabelece enquanto prática
circular, ela também costuma ser acompanhada da formação de uma rede de relações de
cooperação. Nessa, passam a estar posicionados os doadores tradicionais, além de
outros que são percebidos como potencialmente assimiláveis. Em Itajá, pelas palavras
de Dona Antônia, fazer comissão para as Covinhas me pareceu uma prática instituída
36
Ainda que não tenha encontrado referências em outros trabalhos acerca desse exercício, creio
ser essa uma estratégia razoavelmente disseminada pelo menos em áreas rurais do Estado do
RN, pois tenho conhecimento de sua prática há mais de 40 anos na região do Potengi.
86
e que acontece com uma regularidade esperada: “quando vai chegando aqueles dias, ele
[Seu Bento] não deixa de ir, viu? E as pessoas ajuda muito a ele por lá”.
O papel de Dona Antônia, como articuladora local, contribui na produção da
rede de contatos, uma vez que é ela que apresenta Seu Bento aos moradores, além de
acompanhá-lo durante sua peregrinação pela comunidade. Segundo ela, da mesma
forma como todo mundo no Itajá a conhece, ela própria também conhece muita gente.
Disso resulta que Dona Antônia funciona como agente privilegiado na mediação das
relações que se processam naquela localidade.
Além de Itajá, Dona Antônia me acrescentou que embora nunca tenha
acompanhado Seu Bento em outras comissões é de seu conhecimento que ele as realiza
noutras localidades. Essa informação se tornou preciosa, pois, enfim, pude colar
pedaços que dispunha, mas que não sabia onde se encaixavam.
Numa fala de Seu Bento, em resposta a algumas acusações proferidas pelo
padre durante a homilia e noutros momentos da missa, ainda no ano de 2007, ele fez
questão de agradecer a ajuda/esmolas dos romeiros de diversas comunidades. Durante o
discurso ele listou mais de uma dezena de lugares, especialmente sítios e distritos, mas
mencionou municípios como Mossoró, Serra do Mel, Pau-dos-Ferros, Martins e
Portalegre. Àquela altura, deslocada do contexto de sua fala que se reportava sutilmente
a uma experiência pregressa, entendi equivocadamente que os agradecimentos eram
voltados para os que ali estavam, procedentes dessas localidades e que o tinham ajudado
naquelas condições presentes.
Com as informações de Dona Antônia, voltei à precária gravação do discurso
que havia conseguido coletar e percebi com maior nitidez que todos esses eram lugares
por onde ele havia passado em comissão antes da festa. Diferentemente do que pensava
até então, descobri todo um esquema relativamente organizado e estabelecido de
contatos e visitas que articula lideranças e pessoas em muitas comunidades da região,
mas também fora dela: “Nós sai por aí na garupa de uma moto, andando por ai, pegando
carro por aqui, por aculá, pedindo”(Seu Bento, Depoimento público, 2007). Naqueles
dias que antecedem a festa, portanto, existe um calendário firmado e articuladores
posicionados, geralmente parentes e compadres, que organizam previamente o campo
para a atuação de Seu Bento.
87
Considerando que a prática das comissões institui um padrão de relações mais
sistemáticas e organizadas do que aquelas fortuitas que se produzem no santuário,
sobretudo no dia da festa, é possível pensá-la como explicação razoável para a expansão
do culto. Por meio das comissões, Seu Bento divulga o lugar e as Meninas, além do que
cria através das esmolas um elo entre os doadores e o santuário, transformando-os em
rumeiros
37
.
Em última instância também, para além das relações humanas, o ato de ajudar
as Covinhas estabelece uma parceria entre o doador e as Meninas. Possibilitando, com
isso, o início de uma relação mais duradoura que se efetiva por meio da continuidade na
colaboração e da romaria.
Além do esforço pessoal de Seu Bento em realizar as comissões, outras formas
de articulação semelhantes também podem colaborar nesse mesmo sentido,
proporcionando com isso uma espécie de capilaridade, cuja ação singular daquele
comissário não consegue alcançar.
Em 2007, quando estive no santuário em período não festivo, além de novas
conversas com Seu Bento pedi-lhe permissão para fotocopiar algumas das cartas
deixadas pelos devotos na capela e que eu sabia ele costumava guardá-las. Com a
presteza que sempre me atendeu durante toda a pesquisa, Seu Bento colocou-se a
recolher nos quatro cantos de sua casa pequenas epístolas e alguns bilhetes com
mensagens singelas e testemunhos diversos.
Numa dessas, a maior de todas, se seqüenciavam no texto a reprodução de
passagens bíblicas, o relato de uma graça e a especificação da forma de sua
contraprestação. A carta me chamou atenção não tanto pelo tamanho ou pelo formato,
que explicitamente se preocupava em estabelecer todas as condições e cláusulas do
acordo firmado entre o agraciado e as Meninas. Mais do que isso, o dado sugestivo era
o da constituição de uma espécie de rede de arrecadação que se consorciava no esforço
de contraprestação do milagre. Reproduzo abaixo o trecho onde o devoto registra o
contexto da graça e o voto firmado:
37
Rumeiro, para além da noção de romeiro que pressupõem deslocamento, peregrinação, é uma
categoria acionada por Seu Bento para definir todos aqueles que colaboram com o santuário sob
a forma das esmolas. Assim, alguém pode ser rumeiro sem nunca ter ido às Covinhas.
88
Dessidiu tentar uma saída em busca de cura que lhe arremidiace a sua
situação.
Porcurou os médicos diverssas vezes para se consultar mais mesm
assim o medicamento não dava serto:
No dia 12 de outubro de 2007 êle veio visitar as meninas das
Covinhas pela primeira vez. Ela vio a multidão de muitas pessoas e
vio quer naquela capela alir distante da cidade de Rodolfo Fernandes
tinha um mistério muito grande mandado por nosso superior. O senhor
Jesus Cristo. Chegou alir na localidade das Covinhas justamente onde
se avia-se sepultada as meninas das covinhas por volta as 12 horas do
dia e se ajuelho-se na terra quente e pediu umas graças as meninas das
covinhas se ficase boa da infermidade que ela vnha sofrendo diante do
nosso superior e salvador Jesus Cristo sair pedindo umas
contribuições para as meninas da covinhas.
A promessa foi feita assim!
1 VOTO
Para pedir as pessoas de bom coração qualquer contidade em dinheio
seijas quanto for.
As pessoas que colaborarem, com Jesus e as crianças vão lhe
abençuar.
Terminado o prazo de recadar, um pouco do dinheiro para o
padroeiro São Francisco das Chagas, que fica na capela do sítio racajú
município de Riacho da Cruz/RN.
Tirar o dízimo das ofertas para o Sagrado Coração de Jesus na cidade
de Riacho da Cruz
- o restante das ofertas para as meninas das Covinhas.
Seqüencia o texto uma prestação de contas” que relaciona a arrecadação, os
contribuintes e a forma de sua aplicação:
*Sagrado Coração de Jesus Valor do dízimo:
= total R$ 14,00
Padroeiro São Francisco no Sítio Aracajú RN
Também recebeu o valor em dinheiro:
R$ 18,00
O restante para as meninas das covinhas
= o valor em dinheiro de:
89
R$ 100,35
2,00
102,35
O nome das pessoas são:
São as seguintes: quer está na lista a seguir:
[Seguem várias assinaturas]
Analisando o fragmento é possível perceber que para além da dimensão
subjetiva registrada comumente nas cartas, e que aparece na primeira parte desta, o que
a missiva traz de elemento diferencial é sua forma de contraprestação. Nela estão
implicados esforços que articulam a promessa num circuito maior de relações do que
aquelas de foro do sujeito ou de suas relações próximas, parentais. Tal como Seu Bento,
o devoto que redige a carta pôs em curso uma espécie de comissão, com estratégias
semelhantes àquelas usadas em Itajá.
As informações do discurso de Seu Bento e o relato de Dona Antônia me
permitiram associar as ações registradas na carta como participante do circuito ampliado
das comissões, haja vista que conhecedor da limitação de seu alcance, Seu Bento
costuma pedir aos romeiros que o ajudem na sua obra. Assim, sempre que uma pessoa
ou grupo visita o santuário - e eu mesma passei por isso - é sensibilizada a colaborar
com as Covinhas. Essa colaboração pode ser do “tamanho que for”, e mesmo quando
não seja possível ao interlocutor sozinho colaborar ele pode pedir a outros que ajudem.
Num primeiro momento compreendi que a ajuda era aquela de caráter
imediato, que os visitantes costumam oferecer durante suas visitas. A descoberta das
redes de colaboração, no entanto, me revelou que havia estratégias mais dinâmicas e
eficientes que potencializam a divulgação e a arrecadação, difundindo-as capilarmente
nas comunidades próximas, mas também conquistando novos horizontes. Assim, o que
aparece no discurso como condição de uma providência divina, revela as estratégias
muito mais concretas e singulares. Faz delas, também, mais eficazes a ponto de
permitirem que o culto ultrapasse suas fronteiras iniciais.
90
4.3. A organização: como e porque ir às Covinhas
A festa pode contar com um número elevado de freqüentadores, gravitando na
casa dos milhares, mas essa cifra é de definição imprecisa uma vez que não existe
qualquer estrutura responsável pela sua contagem. O público, embora conte com
moradores da sede do município e dos distritos que se avizinham, é potencializado com
as levas exteriores de romeiros que participam da festa. Para constatar isso basta
observar o intenso e extraordinário fluxo de veículos que transitam pela estrada vicinal
de acesso a Rodolfo Fernandes a cada 12 de outubro. Esse dado, assomado a outros
fatores, leva a perceber que aquela é, principalmente, uma festa para os de fora.
Desde as primeiras horas do dia é possível acompanhar a movimentação de
pessoas que esperam por seus transportes nas margens das rodovias ou em pontos de
concentração nos povoados e sedes de municípios da região. Pude acompanhar isso
devido o fato de me hospedar a cada ano em hotéis de diferentes municípios próximos
38
e nos meus deslocamentos matinais encontrava os romeiros caracteristicamente
posicionados no caminho, além do que
cruzava freqüentemente na estrada
com muitos dos veículos que os
conduziam.
Em geral, o transporte dos
grupos de comunidades mais próximas
é realizado em caminhonetes,
equipadas com lonas que recobrem a
carroceria e bancos improvisados de
madeira (Foto 29). Esse tipo de
condução ainda é muito comum especialmente nas comunidades rurais, denominadas
sítios, mesmo que sua prática seja considerada ilegal, haja vista as condições do
38
Em 2006 e 2009 fiquei em Portalegre, donde pude observar o fluxo proveniente dos
municípios da região serrana, além daqueles do alto oeste e da Paraíba. Em 2007 e 2008, como
permaneci em Mossoró, observei o movimento advindo da direção oposta e que se acentua
notavelmente a partir da área próxima à Apodi.
Foto 29 - Veículo característico de transporte dos
romeiros, chamado de “carro” (2006)
91
transporte dos passageiros que oferecem riscos à sua segurança. Nesses transportes, as
pessoas se acomodam por toda parte, amontoando-se nas carrocerias em números que
algumas vezes desafiam a própria capacidade do veículo.
Os grupos que vêem de mais
longe realizam a viagem em ônibus
(Foto 30) e vans fretados ou em carros
de passeio particulares. Enquanto isso,
o deslocamento individual ou de
pequenas famílias (de 2 até 4
membros) de localidades próximas é
feito de moto, a nova montaria do
sertão”. Ao longo da pesquisa nunca
vi pessoas chegando sob o lombo de
animal e raramente vi bicicletas, isso se deve certamente à desvalorização que esses
meios de transporte gozam na conjuntura motorizada atual.
Há ainda aqueles que se deslocam a pé, seja por razões concretas de o ter
veículo e ou o poder pagar um transporte até o santuário, seja por motivos de fé,
quando a peregrinação é parte de algum voto. Na primeira situação, em geral, encontrei
moradores pobres da cidade e dos distritos próximos das Covinhas, na segunda, embora
tenha identificado claramente apenas um caso
39
, sabia que essa era uma prática
relativamente comum de pessoas procedentes de localidades que perfazem não mais que
poucas horas de caminhada do santuário.
Quando o deslocamento é feito em veículos motorizados, dependendo da
procedência do grupo, a viagem pode ser feita em estradas asfaltadas ou de terra e o
tempo de deslocamento também varia de acordo com as distâncias que separam as
Covinhas das respectivas comunidades de origem. Conforme o tempo que leva a viagem
os grupos podem iniciar seu percurso ainda quando é escuro, enquanto as mais
próximas o fazem com a luz do sol. Além da distância, outro fator importante que
colabora para a definição da partida é a hora marcada para a celebração da missa nas
39
Conversei apenas com uma senhora de aproximadamente 50 anos que vinha de Potiretama e
gastara 3 horas para realizar a caminhada em companhia da filha e do esposo.
Foto 30 - Alguns dos ônibus usados no transporte dos
romeiros (2009)
92
Covinhas. Como essa ao longo dos últimos anos vem sendo antecipada
40
, os romeiros
também vêm abreviando seu horário de saída.
Durante a viagem os romeiros costumam criar formas de distrair-se, de modo a
amenizar as condições da viagem ou (des)ligar-se das expectativas que o tempo do
deslocamento separa. Assim, podem ocupar-se conversando, cantando, rezando ou até
desafiando
41
os que cruzam o caminho.
Quando perguntei a uma romeira sobre o que se conversa durante a viagem ela
me disse que “se fala de tudo”, mas é natural que na vinda se compartilhem os episódios
sobre as graças e milagres pessoais e de terceiros, mesmo aqueles que se ouviu falar,
além do que também se recorda o que aconteceu em experiências anteriores da festa. Na
volta, os comentários são outros e costumam contemplar uma espécie de avaliação: o
que se fez, o que mudou, quem foi visto, o que se conquistou (os presentes) etc.
A organização dos grupos em geral é feita por algum articulador tradicional.
Alguém que foi às Covinhas e por essa razão começa a mobilizar outros para também
participar da festa. Nos primeiros anos, esse articulador encarrega-se de convidar
algumas pessoas, relatando experiências e milagres e incentivando a participação dos
interlocutores. Com o passar dos anos, costumam se delinear grupos relativamente fixos
com pessoas de lugar cativo, embora exista sempre uma parte de público flutuante.
Na conversa com uma romeira na cidade de Portalegre, quando o dia 12 de
outubro ainda alvorecia, em 2009, ofereci-lhe uma carona até o santuário, mas ela
recusou-o de imediato. Provavelmente a negativa deveu-se ao fato de eu e meu marido
sermos-lhe desconhecidos, mas o apenas por isso. Dona Rosa me disse que havia
acertado seu transporte no “carro que ela sempre vai e que estava ali na calçada da
matriz justamente o esperando. Assim, ela não podia ir com outro transporte, pois iam
estranhar o fato de ela não estar no lugar combinado. No final da festa, naquela data,
avistei, no meio do tumulto dos carros que buscavam um acesso para a saída, Dona
Rosa em sua frágil estrutura física, acomodada na carroceria de uma pequena
caminhonete, com uma toalha de mesma cor de seu nome na cabeça.
40
Em 2006 e 2007 a missa foi celebrada às 10h, em 2008 passou para as 09h e em 2009 seu
horário foi às 7h.
41
Em alguns veículos abertos, as crianças costumam promover brincadeiras jocosas com gestos
e gritos.
93
A viagem é sempre paga e seu valor tanto pode ser acertado de forma
antecipada como no momento do embarque ou do retorno, pagando-se em geral
diretamente ao motorista. A articulação com o chofer pode ser mediada pelo
mobilizador do grupo, mas também pode ser iniciativa do próprio motorista, uma vez
que ele tem conhecimento das demandas da comunidade que ele atende
ordinariamente. Em geral, os carros” que vão às Covinhas são os mesmos que já
servem às comunidades no transporte do cotidiano, constituindo uma espécie de linha
que transporta os moradores às sedes de municípios para realizar suas atividades
corriqueiras como a ida semanal à feira e ao comércio, o acesso aos serviços bancários
para recebimento de rendimentos e pagamento de contas, além do atendimento nas
necessidades ambulatoriais de saúde. Assim, freqüentemente, os próprios motoristas
sabem, por consulta ou aviso, quem quer viajar para as Covinhas naquele ano e, com
isso, estipulam seu preço e as condições da viagem, como o horário de ida e volta.
Para o motorista a viagem tem uma dimensão notadamente pecuniária, pois ele
presta um serviço à comunidade e espera um retorno financeiro dela, como mostra a fala
de Luiz: “faz mais de dez anos que eu trago o povo de Iracema. Os romeiros se
organizam e contratam o ônibus”. Embora a relação como prestação de serviço seja
muito presente, casos em que os motoristas também podem viajar na condição de
romeiros. Não obstante, quando isso acontece, os papéis não podem se misturar, pois
esse resultado é potencialmente desastroso, como registra um episódio que me foi
relatado por Dona Antônia.
Há alguns anos o motorista que costumava fazer a viagem com os romeiros de
Itajá teria passado por um sério problema de saúde e, aproveitando a oportunidade da
visita às Covinhas, firmou a promessa de que se alcançasse a graça daquela cura
realizaria a viagem do ano seguinte sem custo algum para os passageiros. O motorista
fora atendido em seu pedido, porém, quando se aproximou as vésperas da viagem ele
passou a cobrar trinta reais de quem interessasse viajar. Conhecedores de sua dívida, os
passageiros tradicionais, entre eles a própria Dona Antônia, começaram a questionar a
cobrança “indevida” da viagem. Como contra-argumento o motorista emendou que
apenas as crianças seriam abonadas no deslocamento, pois teria sido esse o seu trato na
promessa. Resultado, naquele ano, o motorista conquistou três passageiros, ele, sua
94
esposa e sua mãe, de modo que sua viagem foi frustrada. Os demais romeiros
procuraram outro transporte para o deslocamento.
A história contada por Dona Antônia revela as percepções dos romeiros acerca
da segmentação de interesses e dos papéis sociais que são acionados no circuito da
romaria, cuja temporalidade envolve desde os antecedentes da festa asua vivência
propriamente. Ir para as Covinhas significa, portanto, por em curso diferentes visões do
que é a romaria, mas também expressar expectativas distintas acerca da festa e do que
nela se oferece. Como fala Steil (1996), a romaria instaura um ambiente de polifonia, no
qual são evidenciados os diferentes sentidos que os diversos grupos fazem dela. Disso
resulta que a romaria costuma ser um espaço de colisão e de desentendimentos entre os
diversos atores.
A razão religiosa mais habitual para se ir às Covinhas é certamente o
compromisso com um voto ou promessa. Esse resulta do acordo firmado pelo romeiro,
ou por um terceiro em seu nome e geralmente implica na freqüência à festa. Com isso,
ainda que exista a possibilidade de o acordo ser previamente limitado tanto em relação à
quantidade de visitas quanto acerca do tipo e montante de ofertas que se entrega no
santuário, é comum que se estabeleça um vínculo contínuo entre o romeiro a festa. É
natural então encontrar pessoas que freqüentam as Covinhas 10, 15 anos sem
interrupção.
Mas, uma vez que na rotina do santuário existe a possibilidade de que as
pessoas para se dirijam ordinariamente em cumprimento dos seus votos ao longo do
ano, porque a massa dos que se destinam a pagar promessas costuma convergir para as
Covinhas no dia da festa? A explicação para essa confluência sugere que é preciso ver a
romaria não apenas do ponto de vista de uma “oportunidade” pessoal para cumprir um
acordo utilitário
42
firmado entre pactuantes, mas principalmente como um espaço de
42
Sobre esta dimensão supostamente utilitária das religiões populares Fernandes (1994, p. 15)
coloca o discurso pelo avesso:” O lugar do santo é um imenso depósito de desejos e lamentos.
Tantos sinais podem induzir comentários simplesmente mundanos a propósito das
peregrinações. É a tentação do raciocínio instrumental que mais afeta o noticiário. A julgar pela
maioria das matérias jornalísticas e por boa parte da literatura sociológica, este gênero de
religiosidade não passaria de uma forma compensaria das carências dos serviços públicos.
Perde-se então o principal, que não se limita ao preenchimento das faltas, mas se expande para
um outro patamar simbólico. Em ritos como a romaria, a dor é integrada a um longo ato
sacrificial, que por princípio, justamente, ultrapassa a lógica estreita do cálculo e da utilidade.
Com o sacrifício, a dor passagem ao valor, o lamento se transforma em afirmação de fé,
95
liminaridade (TURNER, 1974), que potencializa as relações transformando homens e
mulheres em peregrinos
43
, ao passo que sua mística transforma os caminhos rotineiros
em paisagens (FERNANDES R. C., 1994, p. 14). Assim, as atitudes que primariamente
estão situadas no plano de uma voluntariedade pessoal ultrapassam esse patamar e se
enraízam na constituição de uma rede de solidariedade, cuja cristalização se efetiva no
contexto da romaria.
Nessa perspectiva, a romaria não é a somatória de uma multidão deinteresses
individuais” que se desloca em direção a um local sagrado e quem tem por resultado
óbvio colocar em marcha certa coletividade. Para além do sentido aparente que a
mobilização suscita, a romaria deve ser vista como um conjunto de disposições mentais
e práticas que tanto coloca em movimento pessoas e relações quanto articula crenças e
valores à espera de um efeito tão simbólico quanto concreto. Nesse sentido,
praticamente inevitável é somar-se à redundância de ver a romaria como performance
(TAMBIAH, 1985; STEIL, 1996) integrante de um drama (TURNER & TURNER,
1978; TURNER, 1974; DA MATTA, 1990) que se ocupa em exacerbar o cotidiano
através da linguagem religiosa do milagre.
Os romeiros que se deslocam para pagar seus votos realizam a viagem a partir
da percepção de que aquele deslocamento não é o mesmo que se faz nos dias
convencionais, naquele mesmo carro, com o mesmo chofer e muitas vezes com aquelas
mesmas pessoas de sua comunidade. Ir para as Covinhas em dia de festa significa
somar-se à multidão de outros romeiros que assim como ele tem algo a agradecer às
Meninas, tem uma oração para executar na margem da cova ou do cruzeiro, tem um
restos e rastros ilustram relações preciosas. A romaria, na verdade, enriquece a sociologia com
atos intencionais que escandalizam a mentalidade utilitária. Subir a ladeira com uma pedra na
cabeça, por exemplo, ou, mais perto do mito original neste caso, deixar-se crucificar”.
43
Para Turner (1974, p. 117) “Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares
são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou
escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e
posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio
e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções, cerimonial.
Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos,
naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais”. A partir do conceito
expresso é possível situar os romeiros como esses personae liminares, como aqueles que não
estando em suas comunidades de origem, ocupando seus papéis convencionais, nem se
enraizando no território do santuário propriamente, são parte das duas coisas e experimentam
uma condição transitória que permite ligá-las, ainda que por fim eles reingressem modificados
ao seu tempo e espaço de origem.
96
presente para entregar, tem uma esmola para oferecer, tem uma carta ou uma foto para
deixar na sala de milagres, tem a missa para celebrar a vida, o estar ali.
A ida às Covinhas, portanto, não é uma simples excursão. Ela indexica os
valores de ingresso numa outra esfera, a do sagrado, e faz isso por meio do ritual.
Assim, a romaria introduz o romeiro não apenas num espaço distintivo, mas numa
temporalidade especial, que tem início dias antes da festa, quando as comunidades se
articulam para a viagem, quando o romeiro adquire os presentes, quando reserva o valor
de sua esmola, quando escreve seus bilhetes etc. A festa é a culminância, quando todos
se encontram, quando o sagrado se sublima, mas a temporalidade do ritual não se
encerra na fenomenologia do santuário. Em muitos casos, ela se prolonga após o
retorno, com o uso da água, das pedras, de um punhado de terra, ou ainda, mais
atualmente, com as fotografias que se leva do santuário.
Mas nem todos que estão no santuário o romeiros no sentido profundo que o
termo implica. Existem aqueles que ainda não sendo peregrinam às Covinhas motivados
pelo incentivo de romeiros cativos ou dos articuladores de suas comunidades. Ambos
costumam acentuar para seus interlocutores o santuário como um espaço de milagres e
graças. Nesses casos, a festa aparece como o espaço apoteótico dessas potências,
quando acorrem para as Covinhas levas de romeiros das mais diversas procedências
com o objetivo de registrar suas graças, deixando suas cartas, ex-votos e testemunhos
públicos. Como me disse uma romeira certa vez: Isso aqui é mesmo que o céu. Você
vê que é graça, milagre por todo canto!”.
Além das práticas da piedade que articulam o pagamento de promessas, as
orações e as visitas à capela e ao cruzeiro, também a celebração da missa é fator
importante para se estar na festa, sobretudo para os idosos e algumas mulheres adultas.
Vale frisar, porém, que essa participação na missa, embora seja destacada por muitos
dos romeiros como importante ou até decisiva, nem sempre tem sua freqüência definida
pelos critérios alentados institucionalmente.
Como o momento da missa não é exclusivo, permanecendo em funcionamento
todas as demais atividades do santuário durante a celebração, suas etapas podem ser
hierarquizadas, permitindo ao romeiro escolher” qual é o momento mais importante
para participar dela. Assim, é possível ver alguns romeiros que embora tenham ficado
97
circulando pelo santuário durante algum tempo da missa, se dirijam ao altar no
momento da comunhão. Essa lógica classificatória, ainda que motivada por outro
contexto, se expressou na fala de Dona Antonia que em 2009 chegou atrasada devido a
novidade no horário: cheguei atrasada para a celebração, mais ainda alcancei a
comunhão e é isso que importa!”.
Esse uso da missa por alguns romeiros demonstra que para eles é possível fazê-
la equivaler-se” às outras ofertas que o santuário oferece. Assim, tal como a missa e a
eucaristia têm poder restaurador, curador, a cova ou o cruzeiro também o tem e nesse
sentido elas estão muito próximas. Ir ao altar receber a comunhão pode ter significado
similar, por exemplo, a beber a água do fosso, afinal, ambas participam de uma
economia taumatúrgica tão ansiada por parte do público que freqüenta o santuário.
Nesse sentido, os romeiros não vêem contradição alguma em poder colocar em curso
essas duas ações. Ambas figuram como caminhos de uma mesma busca.
Mas nem todos os que estão percebem a missa sob essa visão. pessoas
que estão ali por acreditarem na força do milagre e no caráter excepcional do lugar e das
Meninas, contudo, na medida em que esses também já vêm de outras experiências
religiosas ligadas ao catolicismo renovado, como pastorais e movimentos leigos, suas
percepções tendem a se diferençar da massa dos romeiros.
Esses freqüentadores mais “institucionalizados” encaram com maior rigidez a
celebração e buscam se comportar mais em acordo com a disciplina ascética que a
Igreja propugna. Suas percepções acerca do culto e das práticas que se processam no
interior da capela e do cruzeiro também são distintas daquelas que os romeiros
partilham. Desse modo, embora reconheçam a mística do lugar, não concordam em
como ela é direcionada. Assim, por exemplo, as práticas envolvendo o uso da água são
freqüentemente percebidas mais como coisas da superstição do que da fé.
Existe um gradual entre os freqüentadores institucionalizados. O mais intenso
deles é constituído pelos grupos que acompanham o padre em seus trabalhos pastorais
como a equipe de música e a equipe litúrgica, as quais se dirigem às Covinhas na
intenção de auxiliar durante a celebração. O engajamento desses grupos nas atividades
paroquiais, com relações mais próximas e contínuas, favorece-lhes certa ruptura com as
práticas e percepções tradicionais, haja vista que suas vivências se articulam em
98
experiências mais centradas nas estratégias e percepções de um catolicismo renovado,
que preconiza a obediência, a hierarquia, a instrução e a vivência dos sacramentos como
pilares da vida cristã.
Além dos indivíduos e grupos efetivamente engajados, existem entre os
freqüentadores alguns outros de vínculos menos fixados, mas que participando mais
intensamente dos serviços paroquiais e estando mais expostos às recomendações
eclesiásticas também costumam distinguir-se dos romeiros quanto às avaliações que
fazem do lugar e da piedade.
As formas de interpretar as práticas e as crenças em ação no santuário revelam
a distinção de posições, os pertencimentos e as cosmovisões que lhes respaldam. Assim,
o santuário, a festa, as Meninas e os sujeitos, todos podem ser percebidos a partir de
escalas que vão da graça à sedição, da mística à degradação, da fé à superstição. O
momento da festa, então, transforma-se no tempo excepcional para que os sujeitos
coloquem em atividade seus referenciais, processando suas avaliações, mas também
externando seus interesses.
Nessa perspectiva, é possível focalizar os motivos da participação institucional
na festa. Todos os anos em que a pesquisa se processou, o altar foi transformado em
palanque do qual verborragicamente os sacerdotes enalteciam a fé, mas criticavam sua
forma, revelando uma ambivalência enraizada em interesses precípuos. Embora
discordantes dos contornos da devoção, os padres não disfarçavam o desejo de ocupar
aquele cenário e o demonstravam freqüentemente de forma contundente e objetiva,
como apresento na seção que resgata as vozes clericais nas Covinhas
44
. Algumas vezes,
as falas podiam ser mais eufêmicas, contudo, nunca abandonavam as intenções
essenciais. A razão de se estar lá como disse o sacerdote em 2008 é que “embora aquela
capela não fizesse parte da Igreja, uma vez por ano, no dia da festa, vem sempre um
padre celebrar que é pra não deixar o povo que tem descoberto”. Estar nas Covinhas
para a Igreja é, portanto, uma forma de conquistar o espaço.
Além dos motivos e atores expostos existem pelo menos três outros tipos
que participam da festa sob óticas e interesses diversos. Apresentarei dois deles agora e
guardarei o terceiro para o final da seção.
44
Ver 7.1 - As vozes do santuário: Seu Bento, o padre e os romeiros.
99
Afora os interesses propriamente religiosos, existem outros pretextos que se
mostraram fortes para se ir às Covinhas no dia da festa. Eles giram em torno da
dimensão profana do evento. Para alguns grupos, notadamente compostos por jovens e
homens adultos, ir para o santuário no dia 12 de outubro significa aproveitar suas
opções de lazer, mesmo que essa diversão aconteça sobre bases razoavelmente
controladas
45
. O outro grupo concentra especialmente mulheres e crianças e tem como
foco de interesse o recebimento dos presentes.
As atividades de lazer se processam sobremaneira nos atrativos que se ligam à
área do comércio. Assim, embora este serviço ofereça opções destinadas a todo o
público, a clientela jovem e masculina é aquela que com maior freqüência a desfruta no
local. Nas barracas e área de comércio que concentram a venda de comidas e bebidas
esses grupos costumam se reunir para consumir, conversar, observar ou flertar. Com
isso, a festa faz convergir num mesmo lugar e tempo o sagrado e o profano.
Certa vez, interceptei uma conversa de dois jovens que ao se encontrarem
próximos a uma barraca comentavam acerca da festa. Um deles foi taxativo quando
afirmou “faz tempo que cheguei. Não fui nem lá dentro e também não sei se vou!”. O
dentro de que ele fala é a capela e pela expressão que o jovem empregou era visível
perceber que seu interesse na festa não era o mesmo daquele que movia os romeiros.
A razão de se estar lá, portanto, também pode ser para encontrar amigos da
cidade ou das comunidades, pode ser para beber e divertir-se, pode simplesmente ser
para se observar a circulação das pessoas ou pode ainda ser para se ser visto. Não por
acaso, as pessoas costumam vir arrumadas, os homens trajam sempre calças, em geral
jeans, camisas ou camisetas, bonés ou chapéus e botas ou tênis. as mulheres usam
vestidos, saias, shorts e bermudas, acompanhadas por blusas ou camisetas, mas o que
chama atenção para elas é o fato de muitas usarem sapatos de salto. Esse tipo de calçado
do ponto de vista “técnico” não seria o mais aconselhado para a ocasião, uma vez que o
terreno é arenoso, contudo, a preocupação em demarcar no próprio corpo a distinção em
relação ao tempo ordinário permite que se veja esse uso com pertinência. O cuidado
45
O consumo de bebidas alcoólicas durante a festa é pequeno, a ponto de jamais ter presenciado
alguém bêbado. A música é apenas a religiosa, canções que preparam o tempo antes da
celebração da missa ou que são entoadas liturgicamente nela. Em relação à dança, esta nunca foi
por mim presenciada.
100
com a aparência, enfim, demonstra que as pessoas vêem aquele momento como
diferencial e a festa como espaço de relações e evidência social.
O segundo pretexto profano para se estar nas Covinhas no 12 de outubro se
articula especialmente com o público infantil, o qual contribui de maneira decisiva para
incrementar o volume dos freqüentadores do santuário nessa data. A entrega de
presentes é a sua razão e, eu diria, ela está para as crianças e suas mães ou
acompanhantes, como a missa está para os idosos.
Durante toda a manhã é possível acompanhar os movimentos dos grupos
(crianças e mulheres) que se deslocam de um lado para outro do santuário à procura de
conquistar seus presentes, os quais embora módicos como saquinhos de doces ou
brinquedos baratos tornam-se alvo de muita disputa. Cria-se um verdadeiro sistema de
alerta, no qual todo e qualquer pacote ou veículo potencial tornam-se objeto de
abordagem ansiosa e às vezes virulenta das crianças e seus acompanhantes. Quando
um foco de distribuição, uma massa agitada se aproxima daqueles que presenteiam.
Como expus, em 2006 e 2007, Seu Bento encarregava-se de receber os
presentes e organizar “uma grande entrega”, contudo, essa prática mais sistemática me
parece deixou de ocorrer
46
. Quem tem promessas a pagar com esse tipo de oferta
ultimamente vem realizando-as no estacionamento, nos próprios carros, na área da
capela ou mesmo próximo à cova. Com a mudança na distribuição ficou claro perceber
porque essa é uma boa razão para se ir às Covinhas, uma vez que é grande o número de
pessoas que retribui suas graças a partir dessa prática. Embora não fosse possível
acompanhar cada entrega de presentes, pois a observação da pesquisa requeria um
deslocamento contínuo entre os vários espaços do santuário, pude perceber que a
distribuição acontecia durante toda a manhã acompanhando o fluxo dos romeiros que
chegava.
Ainda resta um derradeiro grupo que se desloca até às Covinhas. Sua
peculiaridade me motivou a apresentá-lo no final: são os ciganos. Esse grupo foi na
verdade quem primeiro eu encontrei no campo, no meu debut da festa. Em 2006, me
deparei com um grupo de aproximadamente 30 pessoas dispersas ao redor da capela
46
Digo me parece pelo fato de não -la presenciado nos dois últimos anos, embora uma
margem de possibilidade de que ela continue ocorrendo em lugar diverso daquele tradicional
que foi redirecionado para a sala dos milagres.
101
ainda na véspera da festa. Instalados de forma improvisada no local, com algumas
esteiras no chão ou recostados em seus carros e motos, os ciganos bebiam, conversavam
e comiam. Perguntei a alguém que ajudava nos preparativos se eles eram um grupo de
romeiros que havia se antecipado. Em resposta, a senhora me foi taxativa: “não minha
filha, isso são uns ciganos! Mas logo, logo eles vão embora!”. Pois bem, eles não
foram!
Ao longo dos quatro anos de pesquisa pude observar que o que os ciganos
fizeram foi se estabelecer enquanto público cativo, mesmo considerando que seu
deslocamento costuma ser em relação aos romeiros aquele que implica em percorrer a
maior distância espacial. Uma parcela razoável dos ciganos vem da região do Seridó
(Ver Figura 1, p.49), notadamente do município de Florânia, onde existe uma
comunidade estabelecida. Contudo, eles mobilizam uma rede de contatos com outros
grupos ciganos, situados em muitas localidades do Rio Grande do Norte e de Estados
vizinhos como Ceará e Paraíba, que articulados convergem para as Covinhas desde suas
vésperas.
Pela resposta que recebi daquela senhora em 2006 talvez eu pudesse ter
deduzido ser os ciganos uma novidade na festa, mas com tantas outras informações
ocupando a mente e o olhar deixei os ciganos meio de lado e não os procurei em 2007.
No ano seguinte, sua organização chamou a atenção de todos na festa. Seu crescimento
numérico era notório, além do que o grupo confeccionou uma camiseta especial que
funcionou como elemento diacrítico do grupo naquele ano (Foto 31). Estampada na
vestimenta estava, na parte frontal, a reprodução de um retrato das Meninas que se
encontrava dependurado na capela,
enquanto nas costas, se via uma foto do
santuário em dia de festa, acompanhada
dos dizeres: Romaria às Meninas das
Covinhas Peregrinas da Seca. Tanto a
imagem como o enunciado reproduziam
literalmente informações veiculadas por
um panfleto, chamado por Seu Bento
livro, que foi por ele confeccionado e
Foto 31 - Dupla de ciganos trajando suas camisetas
na área das barracas (2008)
102
vendido ao preço de R$2,00 desde o ano anterior (2007).
Em 2009, o grupo era ainda maior, em torno de 60-80 pessoas, e nas vésperas
encontrei-o estabelecido no alpendre da casa de Seu Bento. Numa conversa um tanto
breve com o líder do grupo naquela data finalmente soube que eles eram
contemporâneos meus na festa e que nosso encontro inicial foi igualmente novidade
para ambos. Os ciganos haviam chegado em 2006, mas sua identificação com o
santuário e a festa foi tamanha que eles resolveram replicar a romaria
47
anual. Estar
para os ciganos tornou-se uma forma de reunir a comunidade cigana, que via na
celebração da festa um momento de estreitar as relações em torno de uma identidade e
de uma sociabilidade. A romaria para os ciganos, portanto, significa, sob a alegação da
, a culminância de relações enraizadas em suas tradições
48
.
4.4. Outros interesses, outros sujeitos
É interessante registrar que mesmo em bem menor escala que os romeiros e os
freqüentadores profanos” da festa, há ainda duas outras categorias de pessoas que se
dirigem ao local. As razões que movem a destinação desses grupos embora diversas se
cristalizam sob pretextos inicialmente não religiosos. No segmento dos “investigadores”
se enquadram os repórteres, estudiosos e interessados, que procuram especular as
configurações e conjunturas do culto e seus participantes. A outra categoria é a dos
turistas, que embora seja um grupo muito modesto do ponto de vista numérico, se
apresenta enquanto uma possibilidade real do vir-à-ser do santuário. Nesse último
conjunto, se enquadrou a minha mãe quando de passagem pela cidade foi recomendada
a conhecer uma “curiosidade do lugar. Devo, portanto, àquela sua visita os créditos da
descoberta do campo!
47
Embora os ciganos empreguem o termo romaria para definir seu deslocamento até as
Covinhas, a romaria dos ciganos não é a mesma dos romeiros convencionais, especialmente
porque os motivos de que os levam são de outra natureza que não o voto tradicional.
48
Discuto o processo de identificação dos ciganos e sua sociabilidade na seção 6.4 - Do mito
fundador ao santuário: o espaço inventado.
103
O grupo que chamei de “investigadores” é importante por um duplo processo:
do ponto de vista da publicização do culto e do santuário, quando esses ganham uma
módica, porém concreta visibilidade em outros espaços sociais (da mídia e da academia,
por exemplo) que estão além do alcance que a romaria per se permitiria. E, em um
processo reativo ao primeiro, quando a presença desses sujeitos “notáveis” é revertida
como estratégia de capitalização do culto, na forma da assimilação no discurso de um
seu comparecimento ao local como prova do reconhecimento público e da
plausibilidade da manifestação.
Obtive informações de que o santuário havia sido alvo de reportagens em
rádios
49
, jornais e revistas
50
, além de programas televisivos locais e nacionais
51
,
anteriormente à minha presença por . Não consegui encontrar a maior parte deles,
mas, durante a pesquisa tomei conhecimento de outros interessados que assim como eu
também se dedicavam a produzir algo sobre as Covinhas.
Em 2008, identifiquei um rapaz que fazia entrevistas para uma monografia de
conclusão de curso em meio ao alvoroço da festa, do que suponho, ele não tenha
conquistado muito sucesso, pois presenciei duas ou três negativas de informantes que
claramente sentiam-se constrangidos em responder às suas perguntas. Talvez pela forma
como ele as fizesse
52
.
49
Enquanto forma de mídia mais acessível, o rádio é o meio mais comum de apresentar as
Covinhas para as comunidades que são atingidas pela sua freqüência. Não tenho noticiais mais
substantivas de programas que tenham tido por foco uma reportagem propriamente sobre o
santuário, mas a rádio Maracajá, situada em Rodolfo Fernandes, costuma divulgar a
programação da festa e fazer o convite para a participação das comunidades no dia 12.
50
Quando estive nas Covinhas pela primeira vez Seu Bento fez questão de me apresentar o
santuário levando consigo o número de uma revista na qual se apresentava na capa uma
chamada para a reportagem A força da (1997). Identifiquei também uma reportagem sobre o
município de Rodolfo Fernandes presente num periódico cultural editado pela Fundação José
Augusto (PORPINO, 2005), no qual o santuário é mencionado como um dos principais aspectos
culturais da comunidade.
51
Não obtive informações mais detalhadas sobre essas mídias no santuário, contudo, através de
informações de Seu Bento a história das Covinhas foi veiculada em programas jornalísticos
de Mossoró e Natal (TV Cabugi, atual Intertv, afiliada da Rede Globo) e no Programa do
Ratinho, atração televisiva que esteve nacionalmente no ar há alguns anos pela emissora SBT.
52
Sempre posicionado com um gravador em riste, o rapaz pareceu-me preocupado em catalogar
casos de milagres, conclusão que deduzi a partir de presenciar suas abordagens que sempre
começavam com “Você conquistou alguma graça com as Meninas?”. À primeira pergunta se
seguia “Me conte como foi essa graça?”.
104
Em 2009, conversei com uma equipe de alunos de jornalismo da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte que estavam no local com a intenção de produzir um
vídeo-documentário sobre as Covinhas. Naquele ano, eles se tornaram a grande “atração
da festa”, com suas câmeras e equipamentos de filmagem. O trabalho resultou num
vídeo de 15 minutos (DANTAS, DOOLAN, & GURGEL, 2009), apresentado em
exibição pública numa sala de cinema de Natal, em 22 de dezembro de 2009, durante a
defesa da monografia da qual o vídeo era também produto. Durante a exposição, a
equipe de diretores divulgou a intenção de voltar ao campo para projetar o vídeo para os
moradores de Rodolfo Fernandes na praça da cidade, em meados de março de 2010.
O último tipo de visitantes, mesmo representando uma parcela microscópica
daqueles destinatários das Covinhas, como no caso dos investigadores, é importante de
ser pensado, pois suscita aspectos que embora ainda não estejam explicitamente em
foco no contexto do santuário poderão vir a tornar-se.
Rodolfo Fernandes é um pequeno município e assim como muitos outros que
lhe estão próximos tem uma economia baseada em atividades tradicionais, notadamente
a agricultura e a pecuária
53
. Além desses potenciais as demais fontes de renda se
distribuem no setor de serviços, especialmente o comércio de pequeno porte, na
administração municipal e estadual, e nos benefícios sociais do governo federal.
Todavia, não é preciso investigar muito para se chegar à constatação de que este é um
município de pobres e de pobreza
54
.
Alguns municípios da região, vêm a alguns anos explorando e se projetando a
partir do potencial turístico que desfrutam em virtude da geografia serrana, do clima
53
Suas principais culturas são as de algodão, feijão, milho e caju, sendo a última a que ocupa
maior destaque na economia do município e que tem sua produção voltada especialmente para a
extração da castanha. No âmbito da pecuária merecem destaques os rebanhos bovino, ovino e
caprino. Os dois últimos, porém, vem paulatinamente crescendo em razão do incentivo a esse
tipo de criação, às condições favoráveis da região para o manejo do rebanho, além do próprio
crescimento do mercado consumidor de carne e derivados desses espécimes.
54
Conforme os dados do Atlas do desenvolvimento humano PNUD/IPEA/FJP, 67,64% da
população do município vive em situação de pobreza, enquanto 36,65% se situam no nível da
indigência. Esse dado é reforçado quando se constata que numa população total de 4467
pessoas, 2082 informaram ter algum tipo de renda e dessa, apenas 5 disseram ganhar mais de 20
salários mínimos, enquanto 1599 ganham até um salário mínimo e 277 ganham entre 1 e 2
salários mínimos (Perfil dos municípios do RN, 2008).
105
ameno ou de outros atrativos que favorecem esse tipo de atividade
55
. Rodolfo
Fernandes, porém, assim como outros municípios que o circundam, não foi agraciado
com dotes daquelas naturezas, o que faz desse um lugar virtualmente despossuído de
potencial para o turismo.
Diante da carência de outros atrativos, as Covinhas costumam ser apresentadas
como um ponto turístico, que embora modestamente indicado pela população, apenas há
poucos anos vem sendo mostrado pelo poder público como espaço de referência para a
cultura e calendário locais
56
. Essa menção pode indiciar uma intenção pública de
capitalizar o espaço, embora eu jamais tenha ouvido qualquer especulação nesse
sentido. Contudo, diante do cenário em que muitos municípios em situação similar à de
Rodolfo Fernandes, ou até mais confortável que ele, vem descobrindo o turismo
religioso como uma alternativa interessante para o incremento da economia local
57
,
investir nas Covinhas pode significar a emergência de uma nova fonte de renda para a
55
Três exemplos são os mais nítidos: Martins e Portalegre, com boa estrutura hoteleira e de
serviços, que foca sua imagem no clima e na gastronomia, enquanto Apodi investe no turismo
histórico, a partir do complexo arqueológico do Lajedo de Soledade.
56
Ainda que eu o tenha me aprofundado quanto a esse aspecto, diante de alguns depoimentos
que ouvi, percebi que havia uma disputa política entre Seu Bento e o prefeito que administrou o
município até 2008. Não posso também afirmar quais são as bases de diálogo com a nova
gestora, entretanto, é fato que na divulgação oficial do município através da página da prefeitura
na internet é possível ver a festa das Covinhas como um atrativo turístico da cidade. Embora
muito sutil, a inclusão já representa minimamente uma forma de reconhecimento daquele
espaço, o que não se vislumbrava na gestão anterior.
57
Em Marcelino Vieira, município também situado na região Oeste do RN, ao longo de quase
oito anos e à custa de alguns milhões de Reais a prefeitura investiu na construção do que seria a
maior estátua do Brasil. A escultura gigante do padroeiro Santo Antônio faria parte de um
complexo arquitetônico projetado para lançar o município numa onda de desenvolvimento,
resultado esperado a partir da repercussão que o turismo religioso suscitaria no município. A
falta de recursos no fim da obra postergou sua inauguração, prevista para meados de 2009 e que
ao que parece ainda não aconteceu. Outro exemplo notório dessa febre do turismo religioso no
RN conta com dotação orçamentária bem maior e apoio público da prefeitura do município e do
Governo do Estado. O complexo Alto de Santa Rita de Cássia, em Santa Cruz, deverá abrigar a
maior estátua de toda América e a maior escultura católica do mundo, com 42 metros que
somados ao seu pedestal perfazem 56 metros em total. Com a conclusão da obra seus
idealizadores esperam aditar a economia local com uma nova fonte de desenvolvimento e renda.
Afora essas novas ofertas do turismo religioso, outros santuários e festas religiosas tradicionais
do Estado continuam recebendo incentivos e melhorias em suas infra-estruturas e organização,
fato que evidencia um cenário e um calendário propício e fecundo no RN.
106
cidade
58
. Dessa forma, fazer turismo nas Covinhas, embora atividade ainda incipiente,
pode se tornar uma ótima razão para se ir lá.
4.5. Um santuário local
Diferentemente do que aconteceu com a comemoração a Nossa Senhora de
Aparecida, a qual se moveu no calendário até estabelecer-se por força de lei, a data da
festa das Meninas das Covinhas não sofre alterações, independente do dia da semana em
que o 12 de outubro coincida cair. O sucesso da data da festa não se apenas pela
exitosa escolha do dia, um feriado nacional, mas pelo cruzamento entre as disposições
populares da piedade e o desenvolvimento de algumas estratégias eficazes de
divulgação e adesão ao culto. Ambos os fatores contribuem decisivamente para a
projeção da festa como referência no calendário da região onde o santuário está situado.
Ao longo do capítulo apresentei o fluxo e a dinâmica das atividades ordinárias
nas Covinhas, as táticas de divulgação do culto, as formas de captação de recursos, os
modos de organização dos romeiros, além das disposições que se ativam para motivar
os sujeitos a participar da romaria ou para deslocar-se junto dela. Evidencio que tal
como são múltiplos os sujeitos, são também diversos seus interesses e seus olhares
sobre o santuário, as Meninas e a festa em si. Mas como explicar a constituição de um
santuário popular que, com pouco mais de 20 anos, gozando apenas dos recursos que
seus pobres
59
romeiros oferecem sob a forma de esmolas e sem quaisquer apoios do
poder público ou eclesiástico, conseguiu se projetar num cenário relativamente
abrangente a partir da liderança e das estratégias de um camponês?
58
A exemplo do que acontece hoje em Patos, no Estado vizinho da Paraíba, onde o investimento
público em associação com os interesses diocesanos transformou uma pequena devoção
marginal em uma referência cultural. O caso da Cruz da Menina é excepcional nesse sentido.
Construído em 1993 com recursos da prefeitura, atualmente o santuário conta com uma infra-
estrutura grandiosa, com um parque coberto, sala de ex-votos, sala de velas, lanchonete, teatro
de arena, loja de souvenires, um cruzeiro de 10 metros de altura, além de área de circulação com
jardins. Afora a estrutura, o local costuma abrigar festas e eventos religiosos que atraem para o
lugar milhares de pessoas. Sobre a emergência desse santuário ver Nóbrega (2000).
59
Alguns não são tão pobres. Embora a massa dos romeiros seja composta de pessoas de
segmentos mais populares, há a presença ocasional de romeiros de classe média, em geral
advindos de Fortaleza, Mossoró ou Natal.
107
Fernandes (1994) oferece uma pista interessante para pensar essa questão
quando apresenta a noção de policentrismo, que para ele sintetiza o caráter segmentador
do catolicismo brasileiro. A partir dessa idéia, Fernandes defende que o catolicismo
brasileiro se projeta num movimento de regionalização dos seus santuários, os quais
exercem inconteste influência em suas áreas de abrangência. Com esse argumento, se
explicaria, por exemplo, como o “título de „Rainha do Brasil‟, que pertence a Nossa
Senhora de Aparecida do Norte, é afirmado pelo clero e reconhecido pelo Estado, mas
não tem penetração maior na consciência dos fiéis. O domínio de Aparecida é profundo
apenas em sua própria região
60
(FERNANDES R. C., 1994, p. 42).
Compartilhando essa perspectiva, é possível dizer que o dilema de Aparecida é
a alternativa das Covinhas, ainda que o último não tenha envergadura nem mesmo
interesse para disputar com o primeiro ou com outros grandes santuários mais próximos.
Todavia, é pela lógica da regionalização que é possível encontrar uma das
possibilidades explicativas para o que acontece em Rodolfo Fernandes, embora esseo
seja um critério exclusivo de seu sucesso. Na abertura de Os cavaleiros do Bom Jesus
essa segmentação está assim sistematizada:
O romeiro cumpre a devoção fazendo uma viagem, e, de romaria em
romaria, os devotos desenham um círculo imaginário em torno de
determinado santuário. círculos de alcance internacional, como os
traçados pelos peregrinos que vão à Roma ou a Jerusalém, há os
nacionais, como o de St. Patrick, na Irlanda, Czestochowa, na Polônia,
ou de Guadalupe, no México; os regionais como o do Pe. Cícero, em
Juazeiro, ou do Bom Jesus da Lapa, nas margens do São Francisco, e
uma infinidade de círculos locais, em torno ao santuário de uma
vila, ou mesmo em capelas de beira de estrada. (FERNANDES R. C.,
1982, p. 9)
A capilaridade desses santuários se processa em razão da centralidade que eles
ocupam na vivência das práticas religiosas populares e de toda uma rede de relações
sociais e sociabilidade que elas repercutem. O que acontece na preparação para a ida às
Covinhas se replica em outras datas de um calendário de romarias e festas que articulam
romeiros e outros interessados de modo a constituir uma espécie de circuito desses
deslocamentos, naquilo que compõem o que DaMatta (1990, p. 39) chamou de
60
A realidade de Aparecida mudou razoavelmente desde a época em Fernandes proferiu sua
conferência (1986), contudo, a meu ver, o cleo da idéia que ele defende ainda permanece
atual.
108
extraordinário construído pela e para a sociedade. Assim, comunidades e romeiros que
vão a Rodolfo Fernandes, também costumam ir ao Santuário do Lima, em Patu RN,
no período da Festa dos Impossíveis, ou se organizam para participar das festas de
padroeiros locais, sobretudo a partir da lógica de alguns votos domésticos, ou ainda se
programam para as tradicionais romarias do Juazeiro e do Canindé
61
, em uma espécie de
hadj
62
nordestina.
Enquanto os demais santuários costumam contar com uma estrutura e
articulação institucional, contando com mecanismos de divulgação e de participação
tradicionais, as Covinhas inovam em suas formas de mobilizar e atrair, convencionando
estratégias profusas ao mesmo tempo em que localizadas, mas que enfim suscitam um
efeito desejado. Além disso, as atividades que se realizam no santuário são capazes de
atrair um público diferenciado, o qual, a partir de demandas distintas, nas Covinhas
um espaço interessante para se estar no dia 12 de outubro.
61
Juazeiro do Norte CE e São Francisco do Canindé CE.
62
O hadj consiste na peregrinação à cidade santa de Meca e sua obrigatoriedade é um princípio
inscrito entre os deveres rituais dos mulçumanos. Todos os crentes que professam o islamismo
são convocados a empreender pelo menos uma vez o hadj, mas se forem capazes de arcar
com a viagem e puderem garantir que a família estará provida durante sua ausência (COOGAN,
2007, p. 117)
109
5. EM DIAS DE FESTA: ETNOGRAFIA DOS USOS SOCIAIS DO
SANTUÁRIO
O dia 12 é importante não apenas pelo fato de ser a data da festa, mas por ser a
festa o dia em que os diversos sujeitos se encontram nas Covinhas. Assim, para
compreender a dimensão e vitalidade do santuário é essencial mostrar os usos do
espaço, a dinâmica das relações, as manobras e os interesses dos sujeitos em evidência.
Ainda que a visitação se prolongue durante o dia inteiro é notadamente no
período da manhã que o núcleo da “programação” da festa acontece. Deter-me-ei,
portanto, a descrever esse intervalo temporal a partir das observações que realizei
buscando mapear as atividades e operações em curso durante a estada dos diversos
sujeitos no santuário, ressaltando suas atitudes, gestos, ofertas, conflitos e
interpretações, todos, aspectos de um cenário ritual e ritualizado que se apresenta,
sobretudo, pela intensidade e dinamismo.
5.1. O culto, os romeiros e os conflitos
Desde o dia 11 se evidencia um incremento na movimentação das Covinhas,
quando algumas barracas começam a ser montadas e são finalizados os ajustes das
estruturas que irão acolhem os romeiros no dia seguinte
63
. Além desses organizadores
64
é possível encontrar um ou outro romeiro na véspera, o qual antecipou sua visita por
alguma razão pessoal, mas, em geral, os que estão vieram para entregar esmolas ou
presentes a Seu Bento, ambos resultantes de votos ou promessas. De certo mesmo, o
63
Os preparativos como pintura, abastecimento de água, limpeza do terreno e melhoria da
estrada costumam ser feitos com alguns dias de antecedência, enquanto a organização da capela,
a arrumação dos bancos e a instalação de pontos de energia são realizados na véspera.
64
Na organização do santuário sempre colaboram com Seu Bento um ou dois funcionários seus
da fazenda, além de algumas mulheres que têm relação de parentesco com o anfitrião, sobrinhas
e noras. Elas costumam especialmente dar suporte nos preparativos e revezar-se em algumas
atividades durante a festa.
110
grupo que é assíduo na véspera são os
ciganos. Eles costumam chegar ao
início da tarde e se estabelecem onde
podem, sob as árvores, lonas, telhados
ou no interior de seus carros (Foto 32).
O alvorecer do dia 12 é que
marca propriamente a chegada dos
romeiros. Desde muito cedo, com os
raios de sol, despontam na estrada de
terra levantando poeira os primeiros
veículos e seus passageiros. Seu Bento
costuma já estar lá para recepcioná-los, saudando a todos com gestos fraternais. Durante
todo o dia essa cena se repete volta e meia enquanto o anfitrião permanece circulando
entre os participantes da festa. Caracteristicamente com um saco ou um cestinho de
palha trançada, Seu Bento ocupa-se de coletar as esmolas ao mesmo tempo em que
divulga e vende o livro das Covinhas, justificando ser aquela renda revertida para ajudar
nas obras do santuário.
Defronte à capela é montado um altar improvisado de onde o padre celebrará a
missa. Enquanto isso não acontece, um carro de som contratado especialmente para dar
suporte às atividades da programação religiosa veicula canções católicas. Não tarda,
porém, uma equipe de músicos e cantores da paróquia assume o comando do som, numa
espécie de louvor. O padre costuma chegar ao santuário somente momentos antes da
missa, já os romeiros antecipam-se em algumas horas, uma vez que encerrada a
celebração a maior parte dos seus carros costuma retornar imediatamente para seus
destinos de origem. Assim, para poder visitar com tranqüilidade a cova e o cruzeiro,
pagar as promessas, fazer as orações, entregar ou receber presentes, além de divertir-se
um pouco, é preciso estar nas Covinhas com certa antecedência.
Na entrada da capela, voltados para o altar, a saudação habitual de persignar-se
e realizar uma breve genuflexão é quase obrigatória entre os romeiros, ainda que os
Foto 32 - Montagem da estrutura e o grupo de
ciganos (2005)
111
signos e sentidos originalmente relacionados aos gestos não estejam
65
. Eles
rapidamente alcançam a cova onde permanecem durante alguns minutos rezando,
louvando, agradecendo, relatando um milagre ou a história das Meninas a um terceiro. É
comum que tragam algo para deixar por lá, ainda que alguns realizem apenas orações ou
se dediquem a fazer o uso da água do fosso.
A utilização da água é um dos aspectos que mobiliza muitas das práticas
naquele espaço. Os romeiros se aproximam e espontaneamente realizam benzimentos e
abluções aplicando o líquido em diversas partes do corpo de acordo com a presença de
enfermidades físicas ou espirituais ou, quando essas não existem, ainda assim podem
usá-la como uma espécie de veículo de proteção e salvaguarda.
Nem todos que visitam a cova fazem uso da água. Mas, os que recorrem a ela
não obedecem a qualquer critério de exclusividade etária ou de gênero, ainda que
habitualmente sejam os adultos e os idosos aqueles que incentivam ou intermedeiam as
crianças nas práticas em que o líquido é empregado. Essa indistinção, todavia, não se
replica nos planos sociocultural e econômico, pois é perceptível que o emprego da água
é feito com maior freqüência por pessoas mais simples, geralmente oriundas do meio
rural ou dos segmentos mais populares das periferias urbanas.
Entre os que o usam a água é mais freqüente que sejam moradores das
cidades, os quais, via de regra, vivenciam mais proximamente o contato com alguns
conhecimentos sanitários, além do que também costumam ter se afastado relativamente
das práticas religiosas tradicionais que valorizam aquele tipo de vculo. Fruto dessa
associação, é mais recorrente entre esse grupo que se interprete o uso da água como
atitude desprovida de higiene” ou coisa de superstição”. Por vezes, ouvi comentários,
especialmente de mulheres da cidade, que diziam não ser aquela água limpa e, por isso,
65
Os dois gestos são práticas do repertório católico que significam tanto o reconhecimento
como a reverência em relação à presença de Cristo no templo. Essa presença é materializada
pelas partículas (hóstias) consagradas que permanecem guardadas no sacrário, espécie de
pequeno armário que se normalmente ao lado do altar nas igrejas. Como reforço dessa
presença, também se localiza ao lado do sacrário uma lamparina vermelha, cujo fulgor
representa que ali está o Corpo de Cristo. Essa lamparina é apagada no pôr-do-sol da quinta-
feira santa, quando liturgicamente se celebra a morte de Cristo. Esse episódio inclusive é o que
justifica a inexistência da celebração da missa acompanhada de distribuição da comunhão na
sexta-feira da paixão. Na capela das Covinhas não existe o sacrário, tampouco a lamparina,
contudo, os romeiros reproduzem o gesto de reverência, talvez pelo fato de desconhecerem o
sentido original do cumprimento ou por expandi-lo.
112
elas desaprovavam seu uso, especialmente sobre ferimentos ou em crianças muito
pequenas
66
.
A razão do conflito de visões
reside no fato de a certa altura, o que
outrora fora uma água meio turva,
devido as condições locais de captação
e armazenamento
67
, transforma-se
num caldo viscoso, mistura de água e
terra, que ora se dilui, ora se concentra
de acordo com o fluxo de seu uso (Foto
33 e Foto 34). Assim, do ponto de vista
sanitário, o uso dessa água vai de
encontro a qualquer perspectiva de
salubridade e isso faz emergir entre os
grupos um confronto de
representações
68
daquilo que se
considera como puro/impuro,
saúde/doença.
As controvérsias sobre a
qualidade da água, entretanto, pouco
interferem na crença daqueles que
advogam em favor de suas
propriedades. Mas para evitar
quaisquer constrangimentos, é
possível criar alternativas que
contemporizem os ânimos. Dessa forma, há aqueles que, talvez imbuídos de certa
66
Algo que me impressionou bastante foi o costume corrente de trazer muitas crianças
pequenas, às vezes mesmo com dias de nascida, para participar da festa. Também era muito
comum que se fizesse uma espécie de benção dessas crianças com a água do fosso.
67
Em geral a água é proveniente de açudes e riachos com pouca capacidade o que, associado às
condições geológicas do terreno, contribui para deixar a água com alta concentração de
sedimentos.
68
Sobre essa distinção que se ampara em pressupostos simbólicos ver Douglas (1976).
Foto 33 - Na disputa por aproximar-se da cova as
garrafas caem no fosso (2009)
Foto 34 - Restos de parafina das velas se misturam à
água (2007)
113
vigilância ou por razões de ordem prática mesmo, preferem levar a água em garrafas
plásticas de refrigerantes e colocá-las sobre a cova, ao invés de despejar seu conteúdo
no fosso para em seguida retirá-la. Depois de alguns minutos em contato com a
sepultura e executadas algumas orações, a
garrafa é removida e levada por seu
portador inicial, que acredita ter
potencializado o líquido com seu gesto.
Além desses, há ainda os casos em que as
garrafas são colocadas como parte de
algum voto e nessas situações o portador
não as leva de volta, deixando-as para que
outros interessados possam recolhê-las.
As atitudes de entrega e retirada
fazem parte da dinâmica que se estabelece em torno da cova, instituindo um padrão
daquilo que é doado ao mesmo tempo em que instaura a lógica para o seu recolhimento.
Além da água, existem outras possibilidades de ofertas que são deixadas no horto (e
retiradas também), mas essas, diferentemente daquelas que se realizam em outros
espaços do santuário, se caracterizam por
uma natureza muito peculiar, pois se
cruzam com aspectos do imaginário
fomentado pela história das Meninas. Em
geral, são deixados na cova mamadeiras
ou garrafas com leite/mingau, chupetas,
brinquedos e doces, todos, elementos que
se vinculam, concreta e imaginariamente,
com o consumo infantil e que, na leitura dos devotos, foram privados das crianças
mártires (Foto 35 e Foto 36).
Brinquedos e doces compõem a categoria dos presentes e podem destinar-se
objetiva e metaforicamente para as Meninas. Quando se traz um único presente ele
costuma ser deixado na cova efetivamente destinado às Meninas, mas, quando em maior
quantidade, eles são distribuídos entre as crianças que participam da festa. Os presentes
são vistos por quem os doa e por quem acompanha a doação - como uma espécie de
Foto 35 - Junto de seus netos, uma senhora deposita
uma garrafa de leite na cova (2009)
Foto 36 - Mamadeira deixada com leite (2005)
114
compensação simbólica que tem na imagem de privação em vida das Meninas o
simétrico oposto da fartura que o culto propicia. Assim, as Meninas, outrora carentes,
podem finalmente saciar-se ou mitigar o desejo de tantas crianças pobres como aquelas
que visitam o seu santuário no dia 12.
Mas se por um lado os presentes são a evidência de uma grande comunhão
entre os romeiros, através da qual generosa e ritualmente é possível transpor a carência
em direção à fartura, por outro, esse é amiúde um espaço de conflito, de disputa e de
desentendimentos por pelo menos três razões. A primeira e mais freqüente delas é que
embora numerosos os presentes e as sessões de distribuição nunca são suficientes para
atender às demandas quase infinitas daqueles que os pelejam. Por isso, todas as entregas
são momentos de muito alvoroço e correria, além do que sempre sai alguém insatisfeito
por que não recebeu, ou porque recebeu algo de qualidade inferior etc. Afora isso,
devido à virulência de algumas mobilizações sempre a possibilidade de alguém sair
machucado, com ferimentos leves, mas que se tornam motivos de xingamentos e
censuras, inclusive respingando nos organizadores da festa que o sabem controlar
isso para que aquele seja “um momento bonito das Covinhas” ou ainda que não
entregam todos os presentes que lhes são confiados.
O papel dos organizadores também aparece na segunda razão que faz dos
presentes motivo de conflito. A grande distribuição realizada por Seu Bento na festa,
resultante do acúmulo de presentes que ele recebia dos romeiros, não era na verdade um
acontecimento trivial, mas um espaço para demonstração de poder. Quanto mais se
distribuía, mais se podia mostrar o poder das Meninas, todavia, sobremaneira, essa
prática reforçava o papel político de Seu Bento à frente do santuário. Nesse sentido,
uma cena que presenciei em 2009, na cozinha de sua casa me sugeria isso com ainda
mais clareza.
Um grupo dos ciganos, instalados no alpendre de Seu Bento, chegara dizendo
que trouxera 300 presentes para entregar nas Covinhas, contudo, em razão da ansiedade
o grupo precipitara sua entrega na véspera, na sede do município e em suas periferias.
Com isso, a esposa de Seu Bento, Dona Sinhá, relatava indignada ao marido o
acontecimento e sugeria em sua fala que aquilo não poderia ter acontecido, pois os
presentes deveriam ser entregues durante a festa. Sabendo que Seu Bento é um
personagem político importante do município e que rivaliza com outro grupo de forte
115
influência na cidade, entregar os presentes nos domínios dos opositores sem a
ritualidade adequada que o gesto pressupõe, implica em considerar o esforço vão.
Assim, aqueles 300 presentes não contaram naquele ano como presentes das Covinhas.
A última razão para o conflito se instaura a partir da lógica que distingue os
presentes para as Meninas daqueles para as Meninas através das crianças. Um
episódio que presenciei em 2008 demonstra essa tensão, quando acompanhei o drama
de uma velhinha que entrou na capela apoiada em sua neta. Ela trazia uma bonequinha
enrolada numa sacola plástica. Quando se aproximou da cova, desmanchou
cuidadosamente a embalagem para retirar o mimo e com muita dificuldade devido à
aglomeração do entorno tentava inutilmente colocá-la sob as pedras. Quando finalmente
conseguiu, mal tocou o solo sagrado, uma criança que estava próxima subtraiu o
brinquedo. A senhora pôs-se a chorar e num pranto de lamúria dizia que o havia
completado sua promessa por que aquela criança travessa não permitira. Solidários com
a velhinha, muitos que presenciaram o episódio manifestavam sua indignação com
aquela ousadia e suas falas seqüenciavam avaliações negativas do comportamento da
criança, de sua atitude e, principalmente, da falta de orientação da família. Enquanto
isso, a neta buscava consolar a avó consternada que soluçava e vertia lágrimas num
pranto quase convulsivo. A jovem tentava convencê-la de que sua parte no trato fora
cumprida e que “as Meninas iam entender” o que aconteceu, todavia, até onde
acompanhei o drama, não vi resultado naquela persuasão.
Ao observar a dinâmica da cova percebi que a cena protagonizada pela
velhinha não configurava um lance pontual, ainda que noutras situações eu não tenha
vislumbrado tamanha dramaticidade como aquela que se processou no episódio
69
. O
foco da questão, porém, não estava no simples fato de a criança haver subtraído a
boneca, mas na ruptura cerimonial das regras de protocolo que orientam tacitamente as
condições de retirada dos presentes que são destinados para as Meninas. Assim, embora
freqüentemente acompanhado de algum tipo de reprovação, o comportamento de retirar
os presentes é parte da dinâmica da cova, tal como acontece com a água.
69
Talvez porque eu mesma diante da fragilidade daquela senhora senti-me comovida com sua
dor.
116
Se aceita com reservas o fato de os presentes serem aproveitados por quem por
eles se interessem, contudo, é preciso observar as regras de uma “etiqueta da subtração”.
O romeiro que vem depositar sua oferta realiza esse gesto acompanhado de algumas
orações, de uma pausa cerimonial e de ativação de performances corporais, como
benzer-se, ajoelhar-se, elevar as mãos, tocar o coração, tocar a cova etc. Executadas
essas etapas, o romeiro afasta-se da cova e, cumpridas suas obrigações rituais, aquilo
que por ficou não mais lhe pertence. Com a retirada do romeiro do local, aqueles que
se interessem podem aproveitar as dádivas deixadas e que concretamente as Meninas
não farão uso. Os interessados que aguardam o protocolo realizam a retirada com raros
ou mesmo nenhum comentário, mas aqueles que se antecipam à seqüência cerimonial
costumam ser apontados como aproveitadores, desrespeitosos em relação à ,
inconseqüentes por mexer com e nas coisas santas, entre tantas outras acusações das
quais a mais substantiva é a incriminação de roubo
70
:
-Isso ai não é para vocês não, sabia? Isso ai, quando alguém coloca é
pras Meninas! É das Covinhas! O que vocês estão fazendo é roubo,
sabia? Quando a gente pega o que não é da gente, isso é roubo!.
(Depoimento de romeira, 2007)
A fala da romeira é elucidativa não apenas porque expõem a resposta indignada
de um sujeito em relação a uma atitude publicamente reprovável. Para além, a acusação
revela a convencionalidade do ritual, partilhada pelos freqüentadores do santuário, e que
se opõe a despeito do que se possa pensar à primeira vista a uma aparente liberdade
sobre a qual o culto se processaria. Todavia, são nesses momentos críticos do ritual que
as convenções tanto ficam mais nítidas, porque exacerbadas, quanto se tornam mais
propícias aos seus fins. Por último, ainda resta falar que essas convenções não atuam no
70
Existia, inclusive, uma fisionomia que se mostrou tradicional na “função” de subtrair as
ofertas. Posicionada estrategicamente, desde muito cedo, uma mulher magra, com aspecto de
sofrida, algumas vezes acompanhada de auxiliares infantis, se ocupava durante a manhã inteira
de analisar os objetos deixados na cova e usurpar aqueles que lhe interessavam. Ao término do
turno, ela costumava estar com uma sacola cheia, na qual se podia ver um pouco de tudo. Ela é
uma personagem muito controversa, pois costuma burlar o protocolo quando se sente ameaçada
em seus interesses. Assim, tanto ela como suas crianças são constantemente alvo de acusações,
o que para eles me parece já tornou rotina de toda festa. Assim, mesmo com todo o falatório eles
transparecem sentir-se pouco atingidos e usam sua condição econômica como argumento que
lhes justifica a atitude.
117
sentido de restringir ou limitar em definitivo a inovação das práticas, mas lhe asseguram
uma coerência entre sua emergência e os valores sociais em curso.
A cova embora importante espaço
cerimonial não é exclusivo. Assim, ainda na
capela, no script da romaria, uma passagem pelo
Altar constitui também prescrição habitual. Os
romeiros costumam dirigir-se alá, onde repetem
orações acompanhadas de gestos amplos e
intensos, como ajoelhar-se nos degraus (Foto 37),
prostrar-se em reverência, abrir os braços, chorar,
enxugar as lágrimas, persignar-se novamente,
tocar as imagens de santos que repousam no
patamar, estender as mãos em direção ao retrato
das Meninas e muitas vezes deixar fotos e
bilhetinhos cuidadosamente arrumados entre as
estatuetas.
Essas cenas costumam se repetir indefinidamente num padrão de pouca
inovação, porém, em 2008, quando eu circulava pelo Altar acompanhei uma seqüência
ritual diversa das que costumava ver. Uma cigana tomou à frente no altar e recostada em
seu centro, olhava fixamente para o retrato das Meninas dependurado na parede
enquanto balbuciava algumas palavras. À altura de concluir sua prece, a senhora sacou
de sua bolsa um vidro de perfume e num gesto solene derramou um pouco de seu
líquido sobre a pedra. Em seguida, retirou-se, mas antes disso se benzeu. Alguns que
estavam mais próximos entreolharam-se, como a se perguntar o que aquilo significava.
Tal como eles, eu também fiquei sem respostas, contudo, ver a cena ajudou-me a
reforçar a idéia de que aquele lugar ritual era um espaço em aberto. Seu significado não
é unívoco, mas continuamente reconstruído em conformidade com as práticas e as
referências religiosas que nele se operam.
No altar, tanto é possível rezar para as Meninas, como para qualquer um dos
santos perfilados, que, aliás, são muitos. Pode-se agradecer, mas também se pode pedir.
Pode-se fazer reverência, tal como é possível aproximar-se e persuadir o santo de
devoção numa intimidade que às vezes impressiona. Pode-se falar baixinho,
Foto 37 - Romeiras ajoelhadas rezam
no altar (2006)
118
sussurrando, o que é mais habitual, todavia, também tenha presenciado casos eventuais
de pessoas que falavam alto e choravam, numa explosão dramática. Enfim, o espaço é
dinâmico, não existindo formas prescritas, cristalizadas, ainda que algumas sejam mais
convencionais. Por outro lado, existem os interstícios, as brechas, por onde é sempre
possível inovar, através dos quais é cabível construir novas possibilidades, como o fez a
cigana.
Mas o espaço não está em atividade apenas do ponto de vista das concepções
em curso. Ele se reconfigura também no seu traçado que a cada período é infundido de
novas disposições. Assim, tanto é possível colocar objetos novos (cartas, fotos,
imagens
71
, fitas, flores e bibelôs) como subtrair os que estão lá
72
. Além disso, é
admissível manipulá-los, beijá-los, amarrá-los, desatá-los, redistribuí-los ou perscrutá-
los. A última atitude, diga-se, realizada em seus mais íntimos detalhes, desde a análise
da textura e integridade até a identificação de alguma inscrição que indique seu
proprietário original ou a condição do milagre de quem ali o deixou.
A partir desses momentos de análise costumam emergir alguns dos diálogos
que redundam nas inúmeras formas de por em curso a devoção falada
73
, naquilo que é
uma das faces do ritual a despeito de ser uma fala sobre o ritual (FREITAS E. T., 2006,
p. 145). Estar no altar e manipular seus objetos, portanto, é um meio caminho para
iniciar alguma conversa na qual se desenrolam depoimentos pessoais e de terceiros,
envolvendo freqüentemente graças e milagres, ou se partilhar as aflições de alguém que
71
Particularmente sobre a procedência das imagens de santos soube que elas não chegam à
capela apenas por razões de promessa, mas algumas vezes motivos supervenientes podem
justificá-las. Acerca disso conversei certa vez com uma romeira que estando próxima ao altar
apontava algumas imagens como sendo aquelas de uma finada conhecida sua. Indaguei-lhe o
porquê de elas estarem e a senhora me informou que quando sua comadre estava perto de
morrer “recomendou que não deixassem de trazer todos os seus santos para a capela das
Covinhas. Pois era um lugar santo e certo para as imagens ficar”. A preocupação da falecida
com a destinação da sua herança religiosa provavelmente se articula com uma incerteza quanto
ao porvir dos objetos e diante da indefinição era preciso assegurar um local afiançado, e
apropriado do ponto de vista religioso, para elas ficarem. A partir disso foi possível
compreender que a proliferação das estatuetas pode ligar-se a outras dinâmicas que não apenas
aquelas próprias das práticas rituais do santuário.
72
Notadamente fitas e flores de plástico
73
O altar e o cruzeiro o precisamente os espaços mais freqüentes para o desenrolar dessa
modalidade enunciativa, ainda que a cova por vezes também possa abrigá-la. Afora esses
espaços, a devoção falada costuma se replicar em situações domésticas e comunitárias que tanto
envolvem a socialização de promessas e graças como se implicam na articulação da romaria.
119
está recorrendo às Meninas no presente, ou, principalmente, se especular/ratificar a
eficácia das anfitriãs, projetando por seu turno o santuário como um lugar milagres.
Essa prática enunciativa, entretanto, o é arbitrária ou trivial, mas se insere
em esquemas rituais, que embora possam estar frouxamente formalizados, ainda assim
constituem operações diria - fundamentais do funcionamento e da dinâmica do culto.
Assim é elucidativo pensar a partir do cenário apreciado por Freitas quando diz que
Todas essas falas [dos devotos de Baracho e Jararaca] ocorrem em um
contexto de interação social pública. Nenhuma acontece sob a forma
de um monólogo, mesmo quando parece -lo, pois todas supõem
inúmeros e diversificados elos de narração, anteriores, presentes e
posteriores, os ouvintes ali presentes durante o culto, os transmissores
da versão ouvida e agora narrada (quando não é o testemunho da
experiência própria). Mesmo quando se trata de um depoimento
somente para a pesquisadora, essa fala supõe e inclui retoma, reitera,
contradiz - aqueles outros elos da cadeia narrativa na qual vem se
inserir. O narrador nunca fala somente para seu ouvinte naquele
momento, pois sua fala, no momento mesmo da enunciação, é dita
com a intenção de que seja repetida. Não é gratuita a repetição de
fórmulas, a enunciação insistente de certas verdades-chave, a
sabedoria a ser transmitida ou a “lição de moral” da história,
depoimento, testemunho. (FREITAS E. T., 2006, p. 148)
Em última instância, portanto, é a partir dessas falas que o culto se alimenta e
se produz, que se reinventa continuamente tomando por base alguns roteiros
sedimentados
74
nos repertórios tradicionais
75
, mas que ganham a vitalidade e a profusão
que só na ação e na performance dos sujeitos é possível vislumbrar.
Ainda que privilegiada a palavra o é a única ferramenta de mediação do
culto. Existem outros instrumentos que embora silenciosos, são tão densos quanto
eficazes em suas funções comunicativas. Reporto-me aqui aos registros visuais e
escritos que se localizam nas imediações do altar sob a forma de fotografias, cartas ou
74
Penso aqui nas estruturas narrativas habituais de enunciação do milagre aonde se observa uma
seqüência relativamente estabelecida como válida para se narrar esses episódios: crise, busca de
auxílio, tentativas frustradas, promessa, recebimento da graça e desfecho ritual de pagamento do
acordo junto ao santo.
75
É importante destacar o papel do milagre fundante das Covinhas e que figura de forma
recursiva entre os inúmeros relatos que se pode ouvir no santuário. Como uma espécie de relato
precursor e diacrítico, o milagre de Seu Bento costuma ter um status diferencial entre os demais,
pois “ele foi o primeiro e graças a ele é que hoje tem essa festa tão bonita” (Depoimento de
romeira, 2008).
120
mesmo quadros com estampas de santos
76
que se pregam ou penduram nas paredes ou
que repousam sob a pide na companhia das imagens dos santos. Am desses mais
habituais, peculiarmente em 2008, como o 12 de outubro seqüenciou o pleito nacional,
as paredes também ganharam o colorido dos adesivos de candidatos, suponho eleitos,
aos cargos do aparelho municipal.
Além da singularidade daquele último tipo de registro, era interessante
perceber o fervor com que muitos dos romeiros colavam seus decalques. A intensidade
do gesto durante a afixação fazia transbordar os sentimentos e a paixão típicos de que a
disputa e a rivalidade política costumam se revestir principalmente nas comunidades de
pequeno porte. Ao colar o adesivo de seu candidato eleito, o romeiro parecia mostrar
para os demais a força do seu lado político, o qual fora suficientemente poderoso a
ponto de derrotar seu adversário.
Próximo ao Altar e no anteparo da cova também se costumava acender velas,
mas, a partir de 2008, essa prática começou a ser orientada a mudar. Muitas pessoas se
preocupavam com a segurança do culto, uma vez que havia muitos materiais
potencialmente combustíveis no local, além do que durante os picos de circulação na
capela a prática dificultava imensamente o fluxo. Algumas mulheres, parentes de Seu
Bento, que cuidam de administrar o cesto das
esmolas (Foto 38), que fica diante da cova e
abaixo da mesa do Altar, tomaram para si naquele
ano a tarefa de persuadir por todos os meios os
romeiros a acender suas velas na sala destinada
especialmente para isso no galpão.
Como eu havia mencionado, essa
mudança foi vista com muita antipatia por parte
dos romeiros que relutavam em ir para a nova sala
e insistiam em acender suas velas na capela.
certo momento, uma romeira expressou sua
indignação dizendo que não fazia sentido acender
as velas lá na sala, pois ela queria “acender as
76
Esses tanto podem ser trazidos de casa como adquiridos nas barracas do comércio da festa.
Foto 38 - O cesto das esmolas (2006)
121
velas pros anjinhos
77
”. Ora, se as Meninas estão indexicadas pelas suas “relíquias” na
capela, qual o sentido de cumprir o voto numa sala que o guarda vínculo qualquer
com sua memória, a não ser o fato de estar situada fisicamente no santuário? Uma vez
que a lógica que instaura o voto e, por conseguinte, que mobiliza a participação na
romaria é aquela de poder cumprir o acordo o mais próximo possível do lugar em que
simboliza a presença do sagrado manifesto, no caso das Meninas esse lugar é a cova, é
praticamente um contra-senso fazê-lo em local diverso. Assoma-se a isso o problema de
que para o romeiro o que delimita o pleno cumprimento do voto é fazê-lo em sua
integralidade e não parcialmente.
Naquele dia, outras falas se seqüenciaram revelando insatisfação com a
mudança na forma tradicional de se fazer as coisas, naquilo que até então eram as regras
do lugar. Porém, o desentendimento ganhou proporções ainda maiores quando as
mulheres-parentes resolveram abandonar a atitude pedagógica e prescritiva, pela qual
pediam e aconselhavam os romeiros a o acenderem as velas na capela, e assumiram
uma postura combativa, abandonando seus postos junto ao cesto e apagando com água
do fosso as velas que já estavam na iminência de provocar um incêndio.
Esse episódio foi razão de muito bate-boca, com ânimos acirrados e troca de
acusações. Aqueles que haviam desafiado as mulheres-parentes e acendido suas velas,
além de outras pessoas que estavam apenas observando o início do desentendimento,
avaliaram a atitude de apagar as velas como uma postura autoritária. Com isso, alguns
exclamavam em voz alta e dedos em riste que elas estavam fazendo aquilo porque
eram parentes e que eles (a família de Seu Bento) queriam ser os donos das Covinhas e,
por suposto, mandar ali. Outra mulher, em defesa dos romeiros que acendiam velas,
dizia que as mulheres-parentes não podiam ter feito aquilo, porque acender velas era
coisa de , além do que aquele lugar não era de ninguém, a não ser das próprias
Meninas.
Por outro lado, vozes de defesa advogavam em favor da atitude extremada. Nos
seus argumentos, as falas reverberavam como cabíveis e pertinentes as preocupações
expressas na atitude das mulheres-parentes. Justificavam ainda que a violência de
77
Anjinhos é outra possibilidade que também define as Meninas, tanto que pode se falar nos
Anjinhos das Covinhas ou ainda nas Inocentes das Covinhas.
122
apagar as velas deveu-se à exasperação resultante das infrutíferas tentativas de controlar
o acendimento. O gesto, afinal, não significaria qualquer prova de autoridade ou
hierarquia que mostrasse quem era dono do quê, mas apenas veiculava uma
preocupação com o bem-estar de todos os que estavam ali.
As acusações duraram um tempo, mas se acalmaram com a retirada dos mais
afoitos. As mulheres-parentes, contudo, resmungavam sem cessar, buscando convencer
aos expectadores que permaneceram próximos dos motivos de sua atitude. O episódio é
importante o apenas porque expõem as controvérsias acerca das mudanças que o
santuário começa a experimentar notadamente a partir de 2008, mas, além disso, a
discussão evidenciou a compreensão dissonante de alguns populares acerca do papel
daqueles que se ocupam do zelo do santuário. Nessa conjuntura, foi possível perceber
que assim como existem aqueles que vêem como natural e legítima a função de Seu
Bento e seus congêneres nas Covinhas, para outros eles utilizam o santuário como uma
forma de tirar proveito da fé do povo, dos romeiros que lá estão.
A explosão momentânea da insatisfação tornou manifesta uma disputa que é
latente em algumas vozes populares do santuário e ainda que elas raras vezes ganhem
proporções públicas, como no episódio que foi descrito a pouco, elas são mais
freqüentes do que se possa imaginar à primeira vista. Ainda que o santuário seja
percebido por muitos como um lugar bonito, de , de generosidade, de graças, de
milagres e de igualdade, em alguns depoimentos, vez por outra, eu me deparei com
acusações, contradições, suspeitas e reprovações. Assim, mesmo que muitos vissem na
figura de Seu Bento um personagem legitimamente constituído para estar à frente do
santuário, nem sempre os romeiros avaliavam suas atitudes de maneira imparcial.
Entre os sujeitos que percebem a figura de Seu Bento como contraditória está o
padre
78
, cuja contundência, contumácia e publicidade do discurso não deixam quaisquer
dúvidas acerca de sua rivalidade com o anfitrião do santuário. Disso emerge outro
78
É necessário grifar que quando falo padreo estou me reportando a um sacerdote em
específico, mas a um lugar social que alguém ocupa e de onde se fala (BOURDIEU, 2001, p.
55). Essa compreensão se justifica inclusive porque o houve continuidade do mesmo
sacerdote no papel de proferir a missa durante os anos da pesquisa. Todavia, aqueles que
executaram essas funções mostraram-se coerentes em posicionamentos de embate e oposição a
Seu Bento.
123
espaço e outros atores que no desenrolar da festa se conflitam ora com os romeiros, ora
com Seu Bento.
A missa é celebrada no patamar frontal da capela, onde é improvisado um altar
com uma mesa e que às vezes ganha a proteção de uma tenda plástica (Foto 39). A
celebração é realizada voltada para a área aberta em frente ao templo que é limitada
pelas barracas que a circundam. Os romeiros se distribuem por essa esplanada, mas
também ocupam os galpões laterais e a parte posterior da capela, no fundo do altar
improvisado.
Embora a capela seja
pequena, a opção de a missa acontecer
no seu espaço externo não se processa
por preocupações objetivas, tal como a
capacidade de acolher um quantitativo
elevado de público. A meu ver, as
razões que justificam o uso desse lugar
se situam na ordem de uma instituição
e demarcação dos espaços e limites de
cada ator em ação no santuário. Dessa forma, nunca vi o padre circulando no interior da
capela ou mesmo próximo à cova. Ele, por vezes, limita-se a olhar o movimento a partir
da porta ou de seus umbrais. Seu espaço é o do altar externo, seu público são os que
assistem à celebração, enquanto seu tempo é o da execução da missa.
Quando os primeiros romeiros chegam a mesa do altar costuma estar lá,
ainda que seus paramentos venham depois com a equipe litúrgica. Bem antes da
missa e de o padre chegar, o grupo de cantores anima os romeiros ao embalo de canções
religiosas. Junto com os músicos alguns leigos encarregam-se de registrar as intenções
para a missa. Como ao longo dos anos o horário da missa foi abreviado, também essa
programação pré-litúrgica foi encurtada. Em 2006 foram quase três horas de louvor que
antecederam a missa, enquanto em 2009 esse não chegou uma hora. Durante essa
fase inicial, os músicos costumam fazer menção às atividades ordinárias da matriz,
convidam os romeiros a participar dos grupos leigos das paróquias, divulgam
programações religiosas dos municípios próximos ou registram a presença de lideranças
religiosas que estão na festa.
Foto 39 - O altar da missa e o padre (2008)
124
Com a chegada do padre as músicas são intercaladas com mensagens do
sacerdote convidando os romeiros a se organizarem para o início da missa. Em suas
palavras iniciais costumam estar registrados agradecimentos a apoiadores que
colaboraram para a presença do grupo de música e do som, dos assistentes da liturgia,
além de algumas lideranças que eventualmente podem ser mencionadas. Além disso, o
sacerdote costuma fazer algumas chamadas aonde busca evidenciar para o grande
público do santuário a importância de cada um se fazer presente e ativamente
participante na missa, uma vez que ela é o principal momento da vida cristã. Aquele
que traz o alimento para o corpo e para o espírito. O celebrante costuma se posicionar
veementemente em relação àqueles que vêm a festa e participam exclusivamente das
atividades profanas, como o comércio com suas bebidas, comidas e sociabilidade.
Noutro extremo, mesmo as atividades da piedade que se desenrolam no santuário
também sutilmente são classificadas nessa categoria
79
.
Intercaladas a essas sessões “pedagógicas”, noutras chamadas, o padre divulga
a coleta de ofertas para a Igreja que deve ser feita no altar, além das intenções que
podem ser “dadas” a um representante instituído e posicionado próximo à mesa. Em
2009, uma intenção custava R$3,00 e duas saiam pelo preço de R$5,00.
Desde os primeiros momentos é perceptível que existe uma guerra em curso e
a tomada das intenções, além da disputa pelas ofertas é indicativa disso. Noutro
momento deste capítulo mencionei que um cesto posicionado próximo à cova e que
ele é administrado pelas mulheres-parentes, além do que o próprio Seu Bento ocupa-se
durante toda a manhã de circular entre os romeiros fazendo suas coletas eventuais na
área externa. Pelo que é possível perceber, as estratégias de captação do anfitrião do
santuário são muito mais eficazes e eficientes que aquelas do padre, assim, enquanto
durante a manhã os cestos de Seu Bento podem ser esvaziados algumas vezes, o do
padre nunca chega sequer a encher.
Na capela, as mulheres-parentes incumbem-se precipuamente de garantir que
todas as ofertas pecuniárias sejam entregues em seu cesto, ainda que alguns romeiros
insistam em colocá-las na cova ou no altar. Quando isso acontece, as encarregadas
79
Reservo uma sessão para apresentar o discurso de padre e suas ambivalências e interesses. Por
ora, sintetizo apenas o cenário da sua participação com a celebração da missa.
125
rapidamente se ocupam de recolhê-las antes que algum interessado próximo o faça. A
quebra nos protocolos da oferta é relativamente incomum, contudo, quando isso
acontece se insurge como um foco de resistência. Nessas situações, o romeiro tenciona
entregar diretamente sua oferta ao beneficiário sem o intermédio de qualquer mediador
(Seu Bento ou o padre). Assim, vi algumas poucas vezes uns romeiros que obstinados
em seu capricho, conversavam em suas orações com as Meninas, depois num gesto
intenso, aproximavam a oferta do coração ou beijavam as notas dobradinhas ou as
moedas e as deixavam recônditas nos lugares “proibidos”. Numa dessas vezes, devido à
persuasão da mulher-parenta em indicar que a oferta deveria ser feita no cesto, ouviu-se
uma forte exclamação: “eu vou colocar isso aqui é pras Meninas! E pra mais ninguém!.
Ainda que eventuais, esses episódios são representativos de uma insatisfação
manifesta, tal como no caso das velas, contudo, para além do inconformismo com os
administradores, a voz da resistência demarca sua discordância em relação ao jogo de
interesses que se reveste a disputa pública pelo controle do santuário e daquilo que lá se
processa. A ressonância do “E pra mais ninguém!significa que todo o valor simbólico
cristalizado sob a forma da oferta não se destina nem para o aproveitador da do
povo”, nem para o ambicioso” que quer substituir o primeiro. A está para além dos
interesses mundanos dos homens.
Em campo aberto, Seu Bento seguimento à coleta das esmolas tão caras à
sua obra, mas também recebe volumes maiores, resultantes de promessas que foram
acordadas com as Meninas. Pelo menos em duas ocasiões
80
presenciei essas entregas
que somavam uma quantia considerável de notas altas em cada uma delas.
Diferentemente dessas doações, nas esmolas prevalecem as notas baixas e as moedas. O
balanço da festa, por fim, ainda acumula a renda procedente da venda dos livros e da
contribuição compulsório-voluntária dos comerciantes.
Diante desse cenário, o padre do outro front costuma compelir os romeiros a
redefinir a lógica em curso que segmenta as ofertas. Literalmente nesse esforço o padre
convida os romeiros a deixar suas ofertas e intenções no altar da missa e não dentro,
80
A primeira vez foi em um final de festa, quando eu me despedia de Seu Bento, um romeiro de
classe média o chamou próximo para sentar-se num banco e lá lhe entregou reservadamente sua
doação “para ajudar no santuário”. A outra vez foi numa véspera, quando um cigano lhe
entregou uma quantia em pagamento de uma promessa.
126
na capela. Com a proximidade do início da missa esse lembrete é ainda mais enfático. A
disputa pelas ofertas, porém, não encerra o combate, pelo contrário, o inicia. Assim,
seqüenciam-se na missa toda uma série de falas acusatórias e descredibilizantes que tem
por objetivo descompor, e porque não depor, Seu Bento como o administrador do
santuário. As denúncias vão desde a insinuação de que ele ludibria o povo até sua a
improbidade na manipulação dos recursos coletados em prol do santuário.
A missa transcorre em sua liturgia habitual, a qual vou economizar de
apresentar, uma vez que não existem quaisquer especificidades que a faça distinguir-se
em seu formato no espaço das Covinhas. Todavia, longe da sua estrutura, é no plano do
discurso e das performances que a missa oferece aspectos importantes para ser
analisados. Desses apresentei a disputa pelas ofertas e a descredibilização de Seu
Bento, restando um terceiro que vou introduzir brevemente, uma vez que é alvo de
capítulo posterior
81
.
Existe uma disputa propriamente simbólica, cuja tradução se manifesta numa
ambigüidade da posição do padre em relação ao próprio culto. Ao mesmo tempo em que
ele se compelido e fascinado pela intensidade da do povo que movimenta toda
aquela romaria, por outro lado sua posição o obriga a manter-se reservado e sobrestado
em relação às fisionomias que o culto assume. Considerando que ele fala de um lugar
que é institucionalmente produzido, regulado e delimitado, não é de se estranhar que
reverbere em sua voz o discurso e as estratégias da Igreja sobre essas formas de piedade.
E é nesse discurso que se situa o descompasso entre a forma de religião que a instituição
pretende por em curso e as bases sobre as quais ela claramente é feita, naquilo que situei
anteriormente como modalidade de uma religiosidade. A partir desse conflito, as
interpretações institucionais acerca dessas formas de piedade costumam ser
notoriamente antipáticas com os contornos que as fomentam.
Assim, acontece nas Covinhas. Mesmo não querendo deixar desassistidos
todos aqueles romeiros que têm e que estão ali por essa razão, o padre oblitera
intencionalmente o motivo de eles estarem lá. Raramente em seu discurso o sacerdote
faz qualquer alusão às Meninas ou quando faz menção ela é puramente alegórica. Não
obstante, reiteradas vezes busca incutir nos romeiros o valor de Nossa Senhora
81
7.1 - As vozes do santuário: Seu Bento, o padre e os romeiros
127
Aparecida enquanto a mediadora privilegiada do povo católico brasileiro. Para isso, usa
o subterfúgio retórico de que o pretexto para se estar reunidos naquela unidade católica
em pleno dia 12 de outubro é com o propósito de celebrar a padroeira nacional. E ainda
que poucos instantes o separem da insistente batalha por intenções de ações de graça
oriundas de promessas feitas às Meninas, durante a missa essas personagens são
estranhas em sua própria casa. No encerramento da celebração ainda se ouvirá um
pálido convite a um “viva às Meninas das Covinhas!” ou “uma salva de palmas para
elas”.
A partir do cenário exposto torna-se claramente perceptível a posição
embaraçada na qual o padre se encontra durante sua participação na festa e ainda que a
missa seja um marcador importante da programação sua execução é controversa,
contracensual e circunscrita. Os romeiros embora valorizem a presença do padre no
santuário e cobrem a realização da missa como culminância da programação, também
percebem aquele espaço e o tempo como qualitativamente diferentes das práticas,
temporalidade e relações das demais atividades que se processam no santuário. Em
ofensiva, pois cativo nas suas funções mais óbvias, o sacerdote busca promover
continuamente estratégias para projetá-lo, a si e a instituição, para além da circunscrição
que tradicionalmente o comporta. Nesse sentido, a cada ano o sacerdote busca mobilizar
mecanismos que o introduzam mais na realidade do santuário provocando mudanças,
interferindo na dinâmica, suscitando novos sentimentos
82
. Enfim, na disputa que se
deflagra publicamente, o padre e a Igreja se querem não apenas convidados, mas parte,
quiçá, controladores das Covinhas.
Encerrada a participação do padre, ele e sua equipe se retiram do altar e vão
embora. Nos instantes seguintes, esse mesmo espaço, às vezes, é ocupado por Seu
Bento. Quando cheguei às Covinhas naquele primeiro ano de festa e à guisa de levantar
informações sobre o santuário, sua história e interpretações dos romeiros, volta e meia
recebia um “ah! não sei te contar direito, mas é você esperar a missa terminar que
Seu Bento conta como tudo começou”.
82
Apresento esses desdobramentos na seção 7.2 - O discurso em ação: as promessas do padre e a
racionalização popular do santuário
128
Existe, ou pelo menos existiu até 2006
83
, um momento de narração pública no
qual Seu Bento contava para os romeiros a história do seu milagre e a
idealização/construção do santuário. Esse era um momento muito importante,
especialmente para aqueles que estavam visitando as Covinhas pela primeira vez, pois
era a oportunidade de ouvir o relato precursor do espaço. Além disso, dada sua
qualidade de anterioridade, o milagre de Seu Bento costuma ter um status diferencial
entre os romeiros, de forma a resistir como espécie de redundância ritual nas Covinhas,
e, era ali, naquele momento em que ele se oferecia publicamente para os que quisessem
ouvi-lo. Essa enunciação, porém, o acontece de maneira trivial, tampouco
despretensiosa, mas se insere como parte relevante do ritual enquanto performance e ato
performático que têm substantivas repercussões na atividade do culto e das práticas dos
romeiros.
5.2. A enunciação narrativa e a performance de Seu Bento
A discussão acerca da noção de performance é algo que na atualidade da
antropologia e de outras áreas próximas conquistou um relevância e prolixidade
extraordinária. São muitos os autores e as possibilidades através das quais é possível
singrar, contudo, não sendo essa uma discussão-chave da tese serei econômica quanto
àquilo que estou definindo enquanto performance e que julgo necessário delimitar a fim
de iluminar e compreender algumas questões que se apresentaram no campo.
Compreendendo a performance no seu sentido lato
84
enquanto capacidade e
desempenho que põe em ação formas comunicativas e prescritivas enraizadas
culturalmente no plano simbólico da linguagem e das convenções sociais, que se
83
Nos anos subseqüentes da pesquisa o aconteceu a narrativa blica que por informações
dos romeiros Seu Bento costumava fazer tradicionalmente a cada ano. Assim, observei-a no
primeiro ano. Todavia, é importante destacar que ainda em 2007 Seu Bento ocupou o altar, mas
o fez com um discurso diverso daquele costumeiramente esperado e do qual falarei na seção 7.1
- As vozes do santuário: Seu Bento, o padre e os romeiros.
84
A performance enquanto qualidade e exercício inseparável da própria condição antropológica
de comunicação humana e que o funda ontologicamente.
129
processa principalmente mas para além do momento e das condições de interação entre
os sujeitos; e que o ritual
85
é essencialmente um sistema cultural de comunicação
simbólica que, a partir de variados graus de formalidade, estereotipia, condensação e
redundância, projeta eventos considerados especiais, os quais sublimam sob formas e
linguagens dramáticas e intensas os aspectos ordinários do cotidiano; compartilho das
conclusões de Tambiah (1985) para quem as ações rituais são sobremaneira ações
performativas, as quais se produzem em três sentidos: no primeiro, de natureza
ilocucionária
86
, quando dizer alguma coisa é também fazê-la; no segundo, quando os
participantes experimentam a performance a partir de vários meios comunicativos; e,
terceiro, quando no processo da ação os atores criam e inferem valores sociais àquilo
que executam.
Com efeito, embora esteja compreendendo que onde ritual, performance,
ela não é homogênea, nem poderia ser, uma vez que atua no e pelo ritual através de
relações que são, mais cedo ou mais tarde, desiguais. É, portanto, e especialmente, pela
performance onde o ritual tende a se produzir enquanto espaço social que faz diferençar
seus agentes e lhes incute/reforça valores e relações. Com isso, quero dizer que embora
exista um repertório mais ou menos comum (socializado) de uma performance ritual
nas Covinhas, por outro lado existem performances que se projetam para além dessas
formas mais prosaicas. Assim, há um episódio em específico durante a festa
87
, no qual a
ativação daquela performance ritual, em toda a sua carga dramática, delineia um ato
performático
88
ímpar, cuja execução tem repercussões profundas na dinâmica do culto
em si. A esse ato estou chamando a performance de Seu Bento, distinguindo-a no
interior da performance ritual mais ampla. Todavia, considero-as de modo relacionado,
85
Embora não expressa literalmente nesses termos a noção de ritual que apresento se espelha
em autores como Turner (1974; 2008), Tambiah (1985) e Peirano (2000).
86
O ato ilocucionário é um dos três níveis implicados nos atos de fala, teoria desenvolvida
inicialmente por John Austin, para quem determinadas sentenças proferidas nos processos de
interação lingüística ao mesmo tempo em que expressam algo veiculam uma ação. Assim, ao
proferir uma determinada sentença seu sujeito põem em curso o ato locucionário (ato de dizer a
frase), o ilocucionário (dizer é sempre fazer algo como ato convencional) e o perlocucionário
(dizer está implicado em provocar um efeito no outro).
87
Ele também pode acontecer fora da festa, como demonstro.
88
O que estou aqui chamando de ato performático pode acontecer sob diferentes circunstâncias,
todavia, considerando que em sua forma e estrutura uma relativa redundância estou
convencionando-a numa unidade distintiva.
130
pois à medida que a performance ritual se caracteriza por todas as demais seqüências
ordenadas e padronizadas que se desenrolam no ritual de forma mais ampla é na
apropriação da performance de Seu Bento que aquela encontra um dispositivo de
reforço/atualização. Do ponto de vista da performance ritual, acredito ter mostrado
suficientemente parte daquela que se (re)produz entre e pelos romeiros nas Covinhas. Já
em relação à performance de Seu Bento pretendo dedicar essa sessão para sua
apresentação.
A performance de Seu Bento tanto pode acontecer em campo aberto, para os
romeiros que desejem dela participar, nos momentos últimos da programação da festa
que seqüenciam a missa, quanto pode se realizar para uma pequena audiência, desde um
grupo aapenas um indivíduo, nas comunidades que ele visita durante sua campanha
de comissões ou quando se vai ao santuário. Embora cada situação apresente alguns
investimentos que lhes são característicos (os meios técnicos, microfone ou voz limpa, a
postura, sentado ou em pé, o cenário, o santuário com suas referências imediatas ou um
lugar qualquer, a indumentária, traje da festa ou roupa usual), ambas m como produto
final o mesmo efeito o qual intentam produzir. Além disso, a reincidência de vezes, em
condições diversas
89
, em que pude observar Seu Bento repetir a narrativa, me
permitiram mapeá-la enquanto uma enunciação com uma estrutura e marcações muito
próximas, quando não, a maior parte das vezes, idênticas.
Antes de começar propriamente a descrição é pertinente ainda fazer alguns
comentários acerca das estratégias que proporcionaram apresentar os dados que virão
logo em seguida. Primeiramente, do ponto de vista técnico da pesquisa. Entrevistei Seu
Bento três vezes, mas em apenas uma tive sucesso na gravação
90
, de forma que me
89
A primeira vez foi na minha visita inicial, na capela. A segunda foi na sua exposição pública,
na esplanada da festa. A terceira, numa entrevista em sua casa, na companhia de sua esposa. A
quarta em nova entrevista na capela. No mesmo ano, pela quinta vez, no alpendre de sua casa
quando contava para os ciganos. Por último, através do filme Covinhas: uma história de
(2009).
90
Na primeira entrevista de tão eufórica que estava para minha primeira ida à campo levei tudo,
mas esqueci as baterias. Com isso, nada de gravação. Foi tudo manual. Na segunda entrevista,
levei as baterias, mas de última hora resolvi usar um gravador digital que nunca havia
manuseado. Ao término da conversa, ao invés de salvar eu deletei o arquivo. Tudo se perdera
novamente. Na terceira e última tentativa, gravei em três mídias concomitantes para assegurar
que não seria novamente vítima de um novo golpe do destino e assim voltar novamente para
casa de mãos vazias.
131
reporto à transcrição de uma das enquetes. Todavia, como à medida que transcorriam as
conversas eu sempre registrava seus pontos-chave, pude compará-las e perceber que ele
me repetiu praticamente a mesma versão em todos os encontros. Além disso, como pude
observá-lo mais três vezes narrando sua história, isso também me ajudou pela conclusão
anterior.
Não dispus de equipamento para a filmagem, todavia, fiz notas no caderno
sobre a desenvoltura corporal e vocal de Seu Bento. Assim, durante a transcrição da
entrevista me reportei às minhas notas no intuito de registrar as marcações da fala, do
tempo, da emoção etc., buscando com isso dar uma vitalidade à narração estéril tão
comum quando a fala é grafada. No fim da jornada, uma cópia do vídeo-documentário
Covinhas: uma história de (DANTAS, DOOLAN, & GURGEL, 2009) também me
foi útil para recuperar alguns detalhes da desenvoltura da enunciação que a efemeridade
da experiência em campo me subtraiu.
Quando a performance foi executada em campo aberto, suas condições eram
pouco propícias para registro: a dificuldade de dicção de Seu Bento, a péssima
qualidade do som e o barulho da conversa das pessoas, das buzinas dos carros, do ronco
dos motores etc., todos juntos não permitiram uma gravação que pudesse agora ser
reproduzida. Amargando essa lacuna, busquei criar uma estratégia descritiva que
pudesse recuperar as condições da performance integrando o conjunto das expressões
com a palavra. Isso porque quando estou pensando em performance, como indiquei
(TAMBIAH, 1985), a comunicação não se estabelece apenas pela palavra. As cnicas
corporais, vocais e a interação com o público propiciam a constituição de toda uma
sensibilidade ampliada pela qual se pode experimentar a enunciação. E é o produto da
associação desses fatores que constitui verdadeiramente a performance.
Recupero, portanto, a enunciação de Seu Bento a partir de dois momentos:
primeiro, apresento algumas questões de fundo daquilo que foi a conferência pública de
Seu Bento em 2006 e em seguida transcrevo sua versão do milagre que me foi relatada
em entrevista em 2009.
132
Naquele primeiro ano de minha visita
tudo me era novidade. Desde cedo me dirigia a um
romeiro e outro perguntando acerca daquele
santuário, daquelas Meninas: quem eram? Qual era
sua história? etc. Como referi anteriormente,
recebi algumas vezes como resposta a indicação de
aguardar o término da missa, pois Seu Bento
“sempre conta a história dos anjinhos e do seu
milagre”. E assim foi. Não sabia eu que aquele
seria o último ano em que Seu Bento executaria
aquela tradição.
Durante toda a manhã, Seu Bento circulara
com sua sacola entre os romeiros a recolher suas
esmolas. Desde muito cedo chegara às Covinhas devidamente paramentado (Foto 40)
com uma túnica marrom, um cordão branco atado à cintura e um chapéu, estilo panamá,
que lhe completava a indumentária. As
vestes franciscanas, usadas por Seu Bento
exclusivamente no dia da festa, são parte
importante do repertório performático do
catolicismo popular. Tão freqüente ela é
entre penitentes, romeiros e pagadores de
promessa que vez por outra se encontra no
santuário alguém com roupa similar (Foto
41), seja vestido, seja retirando-a do corpo
para entregar como prova do milagre. O uso
dessa indumentária, porém, é um importante
elemento indexador, pois, para além da idéia da
piedade e da devão que lhe são constituintes, sua
imagem representa mais que tudo o valor da
humildade, numa simetria com o que fez São Francisco de Assis.
A vestimenta de Seu Bento, portanto, não é trivial, mas parte de sua
performance. E ainda que outros possam também estar com as vestes, em Seu Bento
Foto 40 - Seu Bento paramentado em
dia de festa
Foto 41 - Romeira trajando veste
franciscana (2009)
133
elas agregam um valor distintivo. Elas o fazem ligar a um imaginário que sobeja a
pobreza e a submissão, características que são tão caras aos propósitos do anfitrião. Para
conquistar a adesão daqueles que lhe ajudam com suas esmolas, ele está ali como um
pobre e humilde servo que implora por uma ajuda em prol de uma obra da fé. Ele
atualiza um São Francisco, incompreendido em suas escolhas, mas incontestavelmente
um homem de fé que se desapegou dos bens materiais.
Quando se encerra a missa, após a saída do padre, Seu Bento toma para si o
microfone (Foto 43). Sua platéia não é numerosa, porém atenta (Foto 42). Muitos não
permanecem porque ouviram aquela história ou ainda, por questões mais objetivas,
não podem ficar porque os carros se apressam em retornar para as comunidades.
Seu Bento começa agradecendo a
presença dos romeiros. Ele elenca algumas comunidades que estiveram ali presentes,
aponta para os carros ou com gestos amplos tenta mensurar a distância que eles
percorreram. Diz estar muito satisfeito por estar vivo naquele ano e ainda poder
participar daquela romaria, de poder ver tanta gente participando e colaborando com
aquela grande obra. Uma obra que faz questão de dizer não ser sua, “isso aqui é dos
rumeiros, isso aqui é rumaria”.
A voz forte e impetuosa que marca os agradecimentos aos poucos vai
declinando para uma forma mais suave. Poucos instantes depois ele dará início ao relato
Foto 43 - Seu Bento narrando aos romeiros sua
história (2006)
Foto 42 - Audiência de Seu Bento (2006)
134
de sua história, de seu milagre. Antes, porém, justifica que conta a história porque os
romeiros pedem, porque querem saber como tudo aquilo começou.
Durante a exposição, Seu Bento gesticula com freqüência. Não costumam ser
movimentos amplos, mas suas mãos estão sempre em atividade. Sua voz intercala
ênfases e declínios. Algumas vezes, os últimos, de tão baixos são quase inaudíveis,
balbucios, mas sua expressão corporal, notadamente a da face e os braços
complementam a enunciação. No relato dos sofrimentos pelos quais passou faz caretas,
comprime os olhos, expressa inquietude e desconforto manipulando a fisionomia e
apontando para o peito. Há também os tempos, as marcações, as pausas, os choros (Foto
44). Pouco antes de chorar, ele embarga a voz, antecipando para sua audiência o porvir.
Como sem suportar a emoção, respira fundo, curva a cabeça, coloca as mãos trêmulas
nos olhos e faz uma pausa. Às vezes breve, noutras se demora um pouco mais. Em
seguida, suspira fundo e enquanto se ergue, enxuga as lágrimas dos olhos. Há
momentos que ele precipita a história, acelerando a velocidade da narração, enquanto
noutras etapas ele prolonga a voz, fazendo o expectador se distanciar do presente e se
aproximar ao seu passado, naquele
hospital, naquele vexame, naquele
sofrimento.
A performance de Seu Bento
é dramática em todas as dimensões do
termo. Ele infunde no presente de sua
atuação um sentimento de comoção
com sua dor. Uma experiência de
aflição que é engolfante. Na sua
exposição é possível ouvir, ver, sentir,
numa palavra, reviver o seu drama
91
.
Quando conclui seu relato breve, em torno de 7 8 minutos, ele costuma agradecer os
romeiros e justificar mais uma vez que foi aquele milagre a razão de começar a história
do lugar e que tudo o que ali é dos romeiros. Assim, ele não perde a oportunidade de
pedir mais uma vez àqueles que podem, que contribuam para melhorar o santuário,
dando as suas esmolas.
91
Pude ver umas duas romeiras que também choravam com ele.
Foto 44 - Seu Bento, chorando durante sua
performance (2006)
135
Para compreender com maior nitidez aquilo que estou apresentando até agora
transcrevo um trecho da entrevista a mim concedida por Seu Bento na capela das
Covinhas, na qual ele me relata a narrativa do milagre. E ainda que essa fala tenha sido
induzida pelo meu desejo de ouvi-la, seu teor é similar àquele que ele apresentou no fim
de festa de 2006. Para efeito de convenção, quando ele altera o tom de voz eu grafo a
fala em maiúsculas.
Narrativa
Performance
Ai quando foi em 80 eu cai doente, numa dia de quarta-feira.
Aqui não tinha posto.
Ai eu fui pro Itaú, me internei, no sábado voltei.
Domingo já não suportava mais de dor.
Mas no domingo eu tava no quarto à noite quando aparecia duas meninas.
É sempre que os meus exames são negativo. você não fez exame?
Mas eu juro perante a minha salvação, seu eu não tiver visto essas meninas. seu
tiver direito à salvação, se eu te tiver jurando falso, deus num me livre.
No momento que eu vi as meninas aparecer eu fiz uma prece à deus e às meninas
da covinhas QUE SE EU ESCAPASSE DAQUELA DOENÇA EU IA
PROCURAR AS COVINHAS E ZELAR ENQUANTO EU EXISTISSE NA
MINHA VIDA.
Que eu também não sabia onde era, sabia que existia, sabe?.
Ai quando foi segunda-feira viajemo pra Fortaleza.
Quando eu cheguei em Mossoró me internaram.
Achavam que eu não botava a viagem.
Passei a noite.
Quando foi de manhã chegou Laire Rosado e outro médico e eles me
desenganaram que eu podia procurar outra medicina que ali não tinha jeito.
Viajei pra Fortaleza.
Lá morava Doutor Manoel , um filho meu. Lá eu fui pro hospital geral.
Lá eu meu consultei, fui me internar no Fernando Távora.
Passei a noite.
Lá naquele tempo eu levava 10 mil cruzeiro.
Passei a noite o medico medicando.
Ficava dentro do banheiro pra ver se passava aquele sofrimento.
Ai, quando foi de manhã o médico chegou e disse:
- Seu Honório, eu vou fazer uns exames de hepatite.
Eu to achando que é hepatite.
Tô achando a sua pele amarelando...
Ai tirou sangue, fez exame...num deu nada.
Telefonou pro hospital geral pedindo uma junta médica.
Chegou quatro médico.
Fizeram a junta médica.
Pergutaram de que eu vivia.
De que eu plantava.
De que lutava.
Tudo eu sabia responder.
Ai doutor Afonso :
- SEU HONÓRIO A DOENÇA QUE NÓS PENSA QUE O SENHOR TA É
MUITO DIFÍCIL.
[voz baixa]
[acelera, passagem de
tempo]
[aumenta a voz]
[entonação]
[declina, apelo ao
interlocutor]
[acelera, passagem de
tempo]
[fala acelerada]
[redução da celeridade]
[pigarro]
[voz de incômodo, expressão
corporal de desconforto]
[Reporta-se à fala de outro
sujeito, o médico]
[pausa reflexiva]
[Acelera, passagem de
tempo, de ação]
[Reporta-se à fala do
médico, constatação,
entonação, argumento de
136
-No meu conhecimento eu tratei dois e todos dois morreram. O senhor também não
vai escapar não!
AGORA É PRA IR PRO ISOLAMENTO NO HOSPITAL GERAL.
Ai Doutor Manoel não queria que eu fosse pro isolamento. Mas ele e doutor Flavio
conversou com ele pra eu ir pro isolamento.
Lá eu não ficava só não.
era a junta médica, mas o meu médico era da junta médica da Clínica São
Raimundo.
Era dotô Célio.
Pra conversar com a família, pra medicar, pra conversar com a junta médica. Ai ele
concordou.
Ai me levou pro Hospital Geral.
Quando cheguemo lá me internaram, bateram o raio X e deu negativo.
DE QUATRO E MEIA DOUTOR CÉLIO CHEGOU.
Quando ele chegou ele me colocou nos aparelho. Fiquei com três médico..
Ai, naquele momento daquela aflição,
já eraaa 7 horas da noite e a energia apagou de uma vez.
Ligaro o motor. Voltou.
Mas ali, naquele momeento
eu senti uma visão
chegar ali.
Quando voltou o médico estranhou.
Disse que coisa que tinha acontecido que ele parece que não tava ali.
Mas me passô!
Ai ficô comigo até a meia noite e depois ele foro embora e fia enfermera.
Quando foi de manhã, doutor Célio chegou.
Entrou conversou com essa junta médica que tava comigo a noite.
Voltou. E disse:
- SEU HONÓRIO, A JUNTA MÉDICA EXIGIU UM EXAME DE SANGUE
QUE ESSE EXAME PODE SER FEITO NO RIO. TIRA SEU SANGUE E
VAI DE AVIÃO.
Com quatro dias os exame volta, agora durante esses quatro dia o senhor o toma
água.
Minha Nossa Senhora! Como é?
Eu fiquei...
Minha família mostrava tava lá naquela janela de vrido.
Só que tava tudo de máscara. Doutor, enfermeira.
Eu perguntava o que era aquilo comigo.
Ói, juro, Maria, perante a Deus!
Eles disseram essa sua roupa é pra queimar!
autoridade]
[exacerbação do drama]
[Declina voz, chora, respira
fundo]
[entonação]
[acelera, passagem de ação]
[Declínio]
[Respira fundo]
[entonação]
[expressão corporal, indica
como indicador a disposição
dos médicos]
[abaixa a cabeça e chora,
enxuga as grimas, reergue-
se]
[toma lego, recomeça]
[alongamento da fala]
[passagem da ação]
[alongamento da fala]
[choro, pausa, voz
embargada]
[pausa longa, expressão
corporal de choro, abaixa a
cabeça, mãos trêmulas nos
olhos, enxuga lágrimas, se
reergue]
[retoma a fala]
[seqüência reflexiva, pausa,
respiração]
[acelera a fala, passagem de
ação]
[funga]
[reporta-se à fala do médico,
entonação]
[declina, cala]
[seqüência reflexiva,
balbucia]
[indica em frente]
[representa uma mascara na
face]
[seqüência reflexiva]
[apelo ao
interlocutor/audiência]
[exacerbação do drama]
137
Era muito triste.
Como aquilo fosse uma doença contagiosa.
Ai passou o primeiro dia, o segundo, o terceiro.
Nos quatro dia (pausa) eu tava de manhazinha na cama colocaro os aparelho.
Ói, juro perante a Deus!
Quando chegaro uma muié e duas menina.
Pegaro os aparelho, tiraro , colocaro válvula, medicaro...
MAS NAQUELE MOMENTO EU PENSAVA QUE FOSSE UMA EQUIPE DO
HOSPITAL.
Que quando doutor Célio entrou, que viu os aparelho foi e me perguntou:
- Seu Honório, quem tirou esses aparelho?
- Eu disse foi uma muié de branco que chegou aqui mais duas menina.
Ai disse:
- seu Honório não pode ser, o senhor ta no isolamento. Eu nem autorizei ninguém,
nem esse medicamento que dero pro senhor não ta no seu prontuário.
Ai já tava nos quatro dias dos exames chegare, chegô.
Ai ele ent conversô com os médicos, voltô e disse:
- Seu Honório, seus exame chegaro e deu negativo, mas a junta médica não se
conforma. Vai voltar novos exames e o senhor vai passar mais quatro dias sem
beber água.
Eu digo doutor, eu vô morrê de sede, eu tô com muita sede!
Ele disse, é seu Honório, grande é os poder de Deus, mas o senhor não pode tomar
água.
Se o senhor resisti!?.
Ai passei a noite com aquilo pra amanhecê o dia. Eu alarmei no Hospital.
Pedia água pelo amor de Deus, pedia a enfermeira e ela NÃO VINHA MAIS.
Que quando doutor Célio entrô, que eu tava naquela condição, pedindo água.
AI ELE CHAMOU A ENFERMERA:
-Vamo aplicar o soro na veia!
Que quando aplicou o soro, a enfermera foi e falou pra ele:
-Doutor, o homem não ta recebendo soro não! O sangue ta cuaindo!
Ai naquele momento eu fui e falei com ele:
- EU DIGO DOTOR MAS SERA POSSIVE QUE EU O POSSA FALÁ COM
UMA PESSOA MINHA?
Ai ele me perguntou o que é que eu queria.
- É porque eu fiz uma prece na minha terra e queria pedir a uma pessoa minha que
mesmo que eu moresse eu queria pagasse.
Ai ele puxou uma cadeira, encostou na cama e pediu pra eu contar a história:
- Seu Honório, pode relaxar! Tenha calma! Eu quero ouvir!
Ai eu contei a visão que eu tive com as meninas, a prece.
Ai quando foi de quatro horas minha famia veio, ai ele perguntô a minha mulé
se existia essas covinhas aqui.
Ela disse:- EU JÁ VI FALAR!
- Pois a senhora fique ai, quando esse pessoal descer do hospital eu vou arranjar
um traje de enfermera pra senhora entrar que ele qué pedi uma coisa à senhora.
Ai ela entrou, com ele, e eu pedi a ela que SE EU MORRESSE ela mandasse fazer
o túmulo das covinhas. PROCURASSE ALGUMA PESSOA QUE PUDIA
[apelo emocional, pausa,
choro,abaixa a cabeça, posta
as mãos nos olhos, reergue-
se, retoma]
[drama, chora, funga]
[acelera, passagem de
tempo]
[apelo ao interlocutor,
audiência]
[expressão dos olhos, reporta
à visão]
[passagem da ação]
[entonação]
[reporta a fala de outro
sujeito, o médico]
[reproduz resposta, depois
declina voz]
[reporta a fala do médico]
[pausa, interrogação
reflexiva]
[acelera, passagem de
tempo]
[reporta a fala do médico]
[pausa reflexiva, apelo
emocional da audiência, co-
mover-se]
[drama, declina voz]
[reporta a fala d o médico]
[drama, apelo emocional]
[expressão corporal de
angústia, desconforto]
[drama, entonação]
[drama, declina voz]
[entonação, reporta a fala de
outro sujeito, o médico]
[reporta a fala de outro
sujeito, a enfermeira,
expressão de constatação]
[entonação, reporta-se à sua
fala]
[suspira]
[reporta-se à sua fala]
[passagem da ação]
[reporta-se à fala do médico]
[passagem do tempo e da
ação]
[reporta-se à fala da esposa]
[reporta-se à fala do médico]
[passagem do tempo, da
ação, entonação, drama]
138
ENCONTRAR!
E fiquei, e a junta médica desenganava todo dia.
Os dias foi passando. Quando foi nos oito dias os exames chegaro, deu negativo de
novo.
Doutor Célio chegou:
- Seu Honório, seus exames chegaro e dero negativo.
Olhe, Maria, eu juro perante a Deus!
Fazia oito dias que eu não bebia água, ELE TROUXE MEIA GARRAFA
D‟AGUA GELADA E EU NÃO BEBI TODA.
Passei mais dois dias no isolamento. Foi dez dias de isolamento.
Ai nos dez dias:
- Seu Honório eu vou tirar o senhor do isolamento. O senhor vai escapá, agora o
seu acompanhamento é que vai sê de seis mês.
Ai empurrou a cama, no quarto.
Ai quando foi nessa noite, pra mim foi um pesadelo, eu dormindo.
Eu tava vendo essas cova aqui do jeito que ta acolá, no retrato delas.
Não tinha cruzeiro, só a ruma de pedra.
ACULÁ NAQUELE TÚMULO EU VIA PANO, NUM TINHA TÚMULO, MAS
EU VIA PANO PELO CHÃO E COISA.
Que quando eu fui espertando, quando ia saindo duas meninas encostada na cama.
Eu vi quando elas dizia:
com os poder de Deus você tá curado.
Ai quando o médico chegou, perguntou como eu tava.
Eu disse que tava bom. Que eu queria me levantar.
- Não seu Honório, tenha calma que eu vou trazer uma junta médica aqui pro
quarto...
Trouxe quatro médicos, a junta dica.
A dotora me mostrou os exame, mando .
Quando termio dotô disse:
- Bem, mas nós não pode atestá a doença do homem que os exame tão negativo.
(Declina, respira)
PASSEI QUATRO DIA ME RECUPERANO.
Nos quatro dia eles me levaro numa junta médica de vinte médico, assim numa
sala.
Tava tudo numa bancada .
Todos falaram que como eu tava...
Quando o derradeiro falô.
Mas vocês num pode atestar a doença do homem, que os exame tão negativo e fica
como doutor Célio acompanhou.
AGORA A GENTE VAI COMBINAR AQUI COM O SENHOR QUE O
SENHOR VAI VOLTAR AQUI COM OITO DIA, COM QUINZE, ATÉ CINCO
MÊS O SENHOR VAI FAZER EXAME. EU SEI QUE O SENHOR TA BOM,
RECUPEROU. MAS SUA DOENÇA FOI UMA DOENÇA QUE PREOCUPOU
A JUNTA MÉDICA 10 DIAS.
De momento chegou, de momento desapareceu
Com vinte dia eu tive alta.
No dia que completou um mês eu cheguei aqui, eu trazeno aquele cruzeiro de
[respira fundo, pausa]
[passagem do tempo, ênfase
dramática]
[pausa reflexiva breve,
balbucia]
[reporta-se à fala do médico]
[apelo ao
interlocutor/audiência]
[Exacerbação do drama,
entonação]
[aceleração, passagem do
tempo]
[respira]
[reporta-se à fala do médico,
reversão do drama, anúncio
de desfecho]
[passagem de tempo e ação]
[aponta para o altar]
[aponta para o cruzeiro,
entonação]
[pausa reflexiva]
[apelo emocional]
[embarga a voz, pausa
seqüenciada de choro,
abaixa a cabeça, as mãos
trêmulas, enxuga lágrimas,
reergue-se, retoma]
[Passagem da ação, reporta
terceiro]
[reporta sua fala]
[reporta fala do médico]
[passagem da ação]
[reporta fala do médico,
constatação]
[passagem do tempo,
entonação]
[Argumento de autoridade]
[indica o espaço]
[constatação]
[entonação, reversão final e
desfecho do drama]
[balbucia, pausa reflexiva]
[passagem do tempo]
[introduz o novo drama, a
139
Fortaleza.
COM AQUELA DE QUE EU ENCONTRAVA chamei duas pessoas e
vinhemo pra qui e eu encontrei.
Do mesmo jeito da visão, de quando eu vi as cova. Onde eu vi as coisas de romeiro
produção do santuário]
[entonação, argumento de
contraprova]
[desfecho final, constatação
da revelação onírica]
O conjunto da narrativa e da performance de Seu Bento permitem analisar não
apenas o ponto de vista do seu desempenho enunciativo, mas também de sua ação sobre
a audiência. Assim, sintetizo alguns aspectos que se mostraram decisivos para a
emergência dessa narrativa enquanto referência para o desenrolar do ritual.
A começar, merece destaque a qualidade redundante da performance. Como
mencionei, durante seu desempenho Seu Bento tem marcações precisas do
encadeamento enunciativo nas quais são seqüenciadas as expressões corporais e vocais,
além das estratégias de apelo emocional. Independente das condições da performance,
se para uma grande ou pequena audiência, essas fórmulas se equivalem em tamanha
precisão, que em última instância é possível dizer que elas são reproduzidas
92
.
No tocante à temporalidade, Seu Bento joga com os tempos presente e passado,
num fluxo que tanto ativa a participação de seu interlocutor contemporaneamente,
quanto projeta-o no tempo passado, na experiência, no drama da doença dele. O
espectador pode reviver através de seus gestos, de suas expressões faciais, do
detalhamento de sua narrativa toda aquela aflição e vexame que acometeu aquele pobre
homem. E o que fazer? Quando após circular por várias instâncias médicas cada
autoridade clínica apenas reforçava em seu discurso a incapacidade, a incompetência:
“que eu podia procurar outra medicina que ali não tinha jeito”, “que a doença que nós
pensa que o senhor ta é muito difícil. No meu conhecimento eu tratei de dois e todos
dois morreram. O senhor também não vai escapar o!”. Diante da exacerbação do
drama, refém de uma doença misteriosa o que restava a Seu Bento? Apenas apegar-se à
fé. Fé que por sinal já havia se manifestado momentos antes de ele deixar sua casa,
quando saiu doente.
92
Mesmo no momento em que ele apela ao interlocutor com a rmula “Ói, Maria”, quando
numa audiência maior ele costuma permanecer com ela apenas obliterando o vocativo, Maria.
140
Seu Bento convida a audiência a deslocar-se na sua narrativa, por meio de suas
palavras, nas quais é possível projetar-se àquela porta
93
por onde as crianças lhe
apareceram pela primeira vez, ainda em casa. Depois, na clarividência da assistência,
quando as crianças acompanhadas de uma mulher de branco lhe administram
procedimentos em seu leito hospitalar. Nessa ocasião, a experiência é tão verossímil que
fez Seu Bento confundir-se, acreditando momentaneamente, por mais absurdo que
pudesse ser, que aquelas crianças fossem “uma equipe do hospital”. De tão imbuído que
estava em sua tragédia, Seu Bento sequer percebia que pudesse confundir algo tão
óbvio. Mas é com a terceira e última visão que finalmente, depois do sonho, ele
compreende os sinais: as Meninas lhe curaram da moléstia a ponto de fazer desaparecer
com a mesma celeridade e mistério aquilo que chegou em situação simétrica, “de
momento chegou, de momento desapareceu”.
Que explicação razoável para entender tudo aquilo? Sofrimento? Provação?
Desengano? Mistério?... Noutro momento da entrevista quando me esclarece acerca do
seu papel como administrador das Covinhas, ele expõe o que na continuidade da
enunciação ele costuma dizer como justificativa para seu papel ali:
Hoje as Covinhas pra mim é um patrimônio milagroso permitido por
Deus. Se passaro cem ano aqui, as covinhas sem ninguém. Sem
parente, sem ninguém. E uma pessoa... veio uma doença e foi curado
pelo um milagre e assumiu isso aqui. Eu tenho aqui como um
patrimônio das covinhas pra eu zelá até o fim da minha vida. (SEU
BENTO, entrevista, 2009)
Seu Bento costuma seqüenciar a narrativa do milagre com a razão de hoje
existir aquele santuário. Ele propicia ao expectador a compreensão daquela obra, mais
espiritual que física, no seu entendimento, que por si se mostra como ímpar, dada a
evidência dos inumeráveis milagres e a expressividade das romarias que as Covinhas
abrigam. Nessa medida, Seu Bento induz sua audiência a perceber todo aquele
sofrimento, angústia e aflição como provações o triviais, mas propositais, ainda que
suas razões possam estar situadas no imponderável. Ele passou por aquilo tudo para
93
Noutra narrativa ele localiza a visão através da porta do quarto.
141
que as Covinhas pudessem finalmente ter seu lugar, numa palavra, pudessem existir
concretamente
94
.
A experiência de Seu Bento por outro lado faz atualizar o martírio daquelas
crianças, que perecendo de fome e sede, permitiram a ele que vivenciasse sua fatídica
sorte. Durante oito dias Seu Bento implora, clama por água, mas as restrições clínicas
que a equipe médica institui nos seus procedimentos investigativos para diagnóstico da
doença misteriosa lhe impedem de beber uma gota que fosse do precioso líquido. Não
bastasse o sofrimento, a imagem do apelo de Seu Bento implorando humildemente ao
médico por água: “Dotô, eu morrê de sede? é exacerbada com o desafio do clínico:
Se o senhô resisti!”. Em resposta, ele resiste, propiciando a reversão do drama e os
mesmos sujeitos de autoridade que sucessivamente lhe desenganaram, agora constatam
que ele vai “escapá”. Mas, como o restabelecimento é também cercado de mistério, não
se processa o retorno sem circunspeção: o senhor vem aqui durante seis meses.
Um último aspecto ainda a ser explorado é a exacerbação do sofrimento. Em
todo o encadeamento narrativo, Seu Bento utiliza estratégias narrativas (argumentos),
vocais (entonação) e corporais (expressão facial e corporal) que propiciam exaltar sua
aflição mais do que qualquer outro aspecto da seqüência: suas roupas vão pra serem
queimadas, sua doença é contagiosa, aqueles que dele se aproximam precisam usar
máscaras, sua sede é capaz de fazê-lo morrer, seu sangue coalha e, noutra seqüência
observei
95
, se ele morresse seu corpo ia ser levado para estudo. Enfim, tudo encaminha
Seu Bento para a condição de um agente excepcional, quando seu sofrimento atualiza a
narrativa mítica, quando sua institui um novo espaço (o santuário) e quando sua
história suscita novos milagres.
Recuperando as sentenças que me aproprio (TAMBIAH, 1985) para delimitar a
natureza performática das ações rituais posso enfim situar a tripartição da performance
de Seu Bento como uma participação não prosaica, mas estilizada. Ela, ao passo que
anuncia, faz. Ele diz o milagre, ao mesmo tempo em que ele é, representa, indexica,
94
Em oposição à existência que se fazia no imaginário, no lendário. Seu Bento diz que outras
pessoas já tinham procurado as Covinhas, mas de forma infrutífera. Assim, no sonho, ele recebe
as exatas coordenadas, tal como contava Mãe Candida, sua avó, que dizia existir perto das
covas, cobertas com pedras, uma ipueira na qual o gado vinha beber.
95
Na primeira entrevista.
142
infunde o mistério, a graça, a providência entre tantas outras. Num segundo aspecto, a
linguagem de Seu Bento é a de uma sensibilidade ampliada que flui pela palavra, mas,
sobretudo, pelo corpo, pelo drama, pelas expressões, pelo apelo, pela interação com a
audiência sob diferentes modos. Por fim, quando ele, seu Bento, e seu milagre
corporificam enquanto metáfora e metonímia as Covinhas, na amplitude de suas
relações, mas no enraizamento de sua projeção.
5.3. A negociação da narrativa: o cruzeiro
Tendo descrito as relações na festa, as práticas na capela, os movimentos dos
sujeitos e a performance de Seu Bento, resta ainda apresentar um último espaço que
suscita questões pertinentes a considerar no dia 12 de outubro. Falo do cruzeiro, marco
espacial precursor das Covinhas, uma vez que segundo Seu Bento subseqüente à sua
recuperação, quando ele retorna de Fortaleza para Rodolfo Fernandes, traz consigo a
cruz que encima o obelisco. Todavia, embora pioneiro, com a construção da capela e
sua conseqüente proeminência, o cruzeiro se embaraça na percepção dos romeiros e
assim muitos são os significados a ele atribuídos. Daí, provavelmente, a razão de ele ter
se tornado o espaço mais controverso do santuário.
No cruzeiro é possível observar com regularidade disputas e debates acalorados
acerca da sua razão de ser e dos motivos de sua localização. Isso se deve essencialmente
à associação de dois aspectos: o cruzeiro como marco tradicional de indicação de morte
e a cova como estrutura sinalizadora da sepultura. O fato é que, na tentativa de
estabelecer uma relação entre a narrativa das Meninas e os sucedâneos materiais por ela
provocados, os romeiros especulam a história quando se apercebem de que existem dois
lugares para indicar a morte. Com isso, buscando estabelecer uma plausibilidade que
situe o cruzeiro no enredo das Covinhas, ou mesmo que torne coerente a narrativa e o
santuário, os devotos freqüentemente criam e recriam novas possibilidades explicativas
para aquele espaço.
A explicação fornecida por Seu Bento, mentor das construções, é de que
quando ele chegou ao local indicado em sonho, teria encontrado próximo a uma ipueira
143
“umas coisas de retirante”. Mais adiante, no entanto, ele encontrara as covas
propriamente, conforme pressagiara sua experiência onírica, com as pedras empilhadas
e sugestivas do enterramento. Com isso, ele manda erguer um cruzeiro, em homenagem
aos pais das Meninas, que tiveram destino incerto, enquanto a capela restou demarcando
a sepultura das crianças. Essa versão, embora tornada pública por Seu Bento é
raramente explorada por ele nas suas exposições, cujo foco privilegia notadamente o
milagre e, secundariamente, a história da capela. Mesmo assim, esse detalhamento pode
ser apresentado quando alguém interpela o anfitrião sobre o significado das construções.
A relativa omissão de Seu Bento, contudo, não pode ser pensada como causa
da fertilidade de interpretações que se apresenta em relação ao local, até porque os
aspectos narrativos sobre os quais ele concentra o discurso também sofrem processos
análogos de seleção e reelaboração. Assim, para além de uma debilidade das estratégias
de enraizamento de um suposto sentido unívoco para o espaço e seus personagens, o
que se apresenta é mais uma feição da natureza precária do culto, cujo processo de
invenção está continuamente em curso. Desse modo, o fato de não haver uma
unanimidade acerca do que representa o cruzeiro permite instaurar uma dinâmica
envolvendo as pessoas e o lugar em torno das práticas que lá se realizam.
Ainda acerca do significado, as histórias que me foram narradas para explicar o
cruzeiro, embora tenham apresentado algumas variações, podem ser agrupadas em três
conjuntos: um que reproduz a narrativa de Seu Bento, articulando a memória das
Meninas com a dos pais, outra que prima pela distinção entre o lugar de morte e o local
de enterramento e uma terceira queo se detém aos aspectos míticos do lugar, fazendo
daquele um espaço parcialmente desenraizado.
A primeira versão é a menos comum, embora fosse possível esperá-la ser a
mais divulgada. Um ou outro devoto faz alusão a ela e pareceu-me que aqueles que a
reproduziam eram sempre pessoas que tinham uma relação de proximidade maior com
Seu Bento como conhecidos, compadres, parentes etc. A segunda versão é a mais
freqüente e participa intensamente do discurso e imaginário das pessoas que a evocam,
principalmente, quando a história é requerida para introduzir alguém no culto. Assim,
muitas foram as cenas que presenciei nas quais mulheres apresentavam o cruzeiro a
alguém, especialmente, a crianças e a outras mulheres e assim diziam: “olha, foi aqui
que os anjinhos morreram”. A prédica, amiúde, vinha acompanhada de uma avaliação
144
do episódio e do sofrimento das martirizadas, tal como: As bichinhas. Elas sofreram
muito, até que morreram, viu? De fome e de sede”.
Seqüenciando a explicação, os interlocutores primários, costumam argüir o(a)
narrador(a), interpelando-o(a) acerca da biografia das crianças e das condições de sua
morte. Nesse momento, como as explicações são normalmente feitas em voz alta, é
recorrente que ocorram situações de adesão de interlocutores secundários à conversa e
que, ao se introduzirem no colóquio, transformem-no num verdadeiro jeux-de-rôle. É
nesse momento em que se desenrolam as disputas de plausibilidade, quando emergem
diferentes pontos de vista, ajuizando fatos e razões, além de serem suscitadas
especulações e controvérsias: quem seriam realmente essas Meninas? De onde vinham?
O que faziam ali? Teriam morrido mesmo? E onde estavam seus pais? Porque não
cuidaram delas? Porque não as levaram para o hospital? Porque não pediram ajuda?
São infinitas as questões que se processam, emergindo de acordo com o
direcionamento que cada versão narrada oferece, bem como com os itens “escolhidos”
de sua apresentação para se polemizar. Entretanto, embora seja difícil reproduzi-las em
sua prolífica atividade cabe externar um aspecto que as unifica. Em todos os casos, mais
do que o conteúdo das narrativas e suas repercussões, a capacidade de os
freqüentadores, apoiados na defesa de seus pontos de vista, produzirem realidade é um
aspecto recorrente. À seu modo e com os artifícios de que dispõem, os sujeitos em ação
buscam tornar presente e concreto o mito através da materialidade dos vestígios que
passam a ser apresentados como indiciadores da sacralidade do espaço e, em última
medida, da coerência entre que lugar é aquele e o que eles próprios fazem ali.
Os devotos procuram demonstrar que existiam pedras” no lugar ou “pedaços
de pano” ou um “pereiro que morreu de tanto o povo acender vela” etc. Os sinais se
alternam, mas a “facticidade” não. A conjuntura das disputas, contudo, conduz a dois
processos que envolvem tanto a análise quanto a persuasão. O primeiro, de ordem
pública, objetiva através da exposição dos argumentos e da negociação das
controvérsias e especulações produzir um “resultado narrativo”, razoavelmente
consensual, desbastado de seus excessos e possíveis contradições. Seu alvo final é
conquistar, durante o ato discursivo, a adesão dos interlocutores para o “texto em
curso”, ainda que seu efeito seja circunstancial e se prolongue apenas até a próxima
avaliação. O outro processo, muito mais complexo, é de caráter subjetivo e confronta
145
expectativas, incertezas e convicções do sujeito, fazendo abrir-se diante de si uma
reflexividade, da qual alguma forma de plausibilidade necessariamente emerge. Em
última instância, isso permite ao romeiro a produção de uma “estabilidade psíquica”, na
qual são igualmente validadas as razões e as práticas, bem como o espaço e as
personagens.
Entre as histórias que me foram relatadas uma em especial é significativa do
ponto de vista dos arranjos de plausibilidade que ela constrói. Uma romeira, que hoje
mora no Ceará, mas que é natural de Rodolfo Fernandes se identificou como sendo uma
das pessoas que acompanha aquela devoção desde o começo. Ela me explicou sem
hesitar que o fato de existir um cruzeiro e uma cova se devera a um equívoco inicial de
Seu Bento. Esse, não reconhecendo com a devida precisão o local exato onde teriam
sido enterradas as Meninas, fizera primeiro o cruzeiro e depois, reconhecendo o seu
erro, localizou as covas e então construiu a capela. Nessa narrativa, a confusão que a
princípio poderia ser objeto de questionamento da fidedignidade do sinal ou mesmo da
autoridade de Seu Bento enquanto interlocutor da revelação, é sutilmente superada pela
imediata substituição do espaço de culto. Assim, a dubiedade não tem repercussão como
contradição, mas como falha humana que é tangível a qualquer um. A transparência da
solução fica ainda mais evidente nas palavras conclusivas da romeira: “no final das
contas, esse cruzeiro não tem significado nenhum, mas as pessoas criaram o costume de
rezar aqui, né? Então, eu acompanho. Eu rezo também. Porque reza é sempre bom!”.
O espaço do cruzeiro é preponderantemente feminino, não apenas pela
presença desse segmento em detrimento do masculino, mas principalmente pela postura
de iniciativa e liderança que em geral marca a participação das mulheres no local. Elas
tomam a frente no desenvolvimento das atividades, seja nas orações, seja no relato de
fatos e experiências sobre/do lugar, seja ainda precipitando a aposição de pedras no
cruzeiro. Enquanto isso, apenas circunstancialmente, é que veremos um homem
assumindo esse papel.
São também as mulheres que administram os grupos e quando neles
diversas delas, normalmente, existe uma que assume o comando, conduzindo as
atividades que o coletivo desenvolve durante toda sua estada. A escolha dessas líderes
obedece em geral ao critério de anterioridade da experiência, ou seja, aquelas que já
vieram outras e mais vezes à festa são as que atuam tanto como agenciadoras,
146
incentivando e mobilizando o grupo para a viagem, quanto como uma espécie de guias-
chefe. A experiência, nessas situações, permite às líderes determinar ao grupo o que
fazer, onde ficar e como se portar. Também a autoriza a instituir procedimentos visando
a controlar aquilo que é ameaçador ao grupo ou que pode le-lo a instabilidades, como
por exemplo, situações de perda de algum membro na multidão.
Ainda que o papel feminino tenha ressaltada importância em diversas situações
do culto e também fora dele como venho demonstrando, nesse momento sua
compreensão é necessária por serem as mulheres os agentes por excelência que
mobilizam as atividades no cruzeiro. As guias-chefe costumam conduzir seu grupo,
antecipando para quem está pela primeira vez a explicação acerca do significado
daquele local, atitude que também se repete na cova, no altar e na sala de milagres. Essa
pedagogia do culto, todavia, não está restrita aos neófitos, mas se prolonga nas visitas
subseqüentes com conteúdos de reforço, como novos milagres/graças que foram
experimentados ou se ouviu falar. Com isso, ao longo dos anos, as mulheres que
inicialmente acompanhavam e estavam submetidas a uma guia-chefe, à medida que
acumulam experiência na festa, podem tornar-se elas próprias guia-chefe de outros
grupos ou ainda transformar-se em uma espécie de auxiliar, cujo papel é participar tanto
da formação como das decisões em relação ao grupo.
Ao redor do cruzeiro essas mulheres costumam incentivar o grupo a depositar
as pedras nos degraus do obelisco, bem como a fazer algumas orações. Não obstante, os
freqüentadores das Covinhas reproduzirem esse gesto e interpretarem-no a partir de
novas conjecturas, recriadas ao longo dos tempos, o hábito de colocar pedras em
sepulturas ou em cruzeiros é um costume que remonta à antiguidade
96
e, no primeiro
caso, é tradição dispersa em diversas culturas.
Na narrativa das Covinhas, as crianças martirizadas, despossuídas que eram,
não tiveram condições de um enterro à altura da expectativa social e, portanto, teriam
sido inumadas precariamente no local de sua morte. Como lápide, as pedras que
brotavam da terra árida fariam às vezes de sepultura. Com isso, recolher as pedras e
96
Cascudo (1985) registra esse hábito entre os romanos, que consideravam o direito ao túmulo
como o primeiro e mais sagrado dos direitos. Desse modo, o Jus Pontificum ordenava, sob pena
de impiedade, considerado crime capital, que todos inumassem os corpos insepultos. Assim,
quaisquer cadáveres encontrados deveriam ser cobertos com pequenos montículos de terra e
quando isso não fosse possível deveria esconder-se o corpo sob pedras.
147
reproduzir o ato de depositá-las na cova é para o devoto uma forma de co-mover-se em
relação às Meninas, atualizando num processo contínuo a solidariedade com o episódio
de suas mortes.
A reciprocidade, porém, não se estabelece apenas na relação de partilha
sentimental evocada pela precipitação da morte. Ao longo das conversas com os
devotos, ouvi outras explicações, cujos conteúdos se inseriam em um repertório muito
mais subjetivo do que público. Assim, colocar a pedra é amiúde significado como um
ato que acompanha uma prece, um pedido. Ao se depositar o seixo, o romeiro solicita às
Meninas que intercedam por ele em alguma aflição que o acomete. Desse modo, ambas
as atitudes cerimoniais devem ser observadas, do contrário, o romeiro corre o risco ser
retaliado, como revelou a fala de uma romeira:
A gente faz a prece e coloca a pedra. Porque tem que fazer as duas
coisas, senão não adianta. Tem uns anos um irmão meu veio pra festa.
Ele rezou, pediu, mas não colocou a pedra como eu disse pra ele.
sei que ele passou num sei quantos dias sonhando com as Meninas
jogando pedra nele. ( 2006)
As pedras também podem pressagiar infortúnios. Ouvi de outra romeira a
explicação que quando as pedras rolam é porque quem colocou a derradeira é portador
de um grande pecado. Ainda que possam emergir interpretações mais ou menos
próximas de um conteúdo mágico, o mais freqüente é que aquele gesto se vincule ao
pedido/agradecimento de graças. Assim, cabe destaque o fato de que se costuma agir
com muita solenidade na visita ao cruzeiro, pois ali embora por vezes confusa sua
interpretação, inequivocamente, está a marca de um espaço sagrado. Dessa maneira,
presenciei atitudes instrutivas, notadamente entre crianças e mulheres, nas quais se
evidenciava o caráter de respeito por ser aquilo um lugar de . Num desses episódios,
quando uma criança brincava com as pedras, foi impetuosamente repreendida por sua
mãe, uma vez que não se deve fazer aquilo [mexer nas pedras] nem por brincadeira,
nem com ignorância. Interagir com o sagrado, portanto, não é coisa para amadores e
isso se aprende desde criança.
148
Noutro capítulo busquei mostrar como as Covinhas passam da condição de
lugar à espaço. Naquele momento, argumentei que esse estatuto é antes que qualquer
coisa conseqüência da experiência e experimentação - social e ritual que os sujeitos
realizam daquele local. A partir disso, dediquei algumas páginas na tentativa de
apresentar uma parte significativa das operações e relações que esses sujeitos põem em
curso desde antes da festa, mas especialmente no seu contexto.
Mapeei algumas das práticas que se desenvolvem com maior freqüência, além
de também constituírem aquelas de ordem mais pública. Percorri o roteiro daquilo que
se faz ao longo da festa, afora quando, como e com quem se realiza. Por último, busquei
demonstrar que papéis e espaços esses sujeitos ocupam e de que forma isso se enraíza
na produção do ritual, naquilo que indiquei como delimitando uma performance ritual.
Ao percorrer todo esse trajeto etnográfico que circunda a festa e a devoção às
Meninas pude perceber toda uma dimensão ritual e ritualizada ali empenhada, mas que é
distante de se apresentar enquanto algo que excepcionalmente se destaca da
ordinariedade. Embora tenha evidenciado que a vivência da festa e do culto se
processem sob formas mais ou menos formalizadas, aquilo que se busca e se faz no
santuário não é algo de ordem exterior ao que se ou se processa no cotidiano, ainda
que nesse contexto a experiência é investida de uma dramatização maior. Afora essa
qualidade do ritual, também é interessante percebê-lo como processo que embora se
referencie a partir de certa estruturação ela o é algo de natureza rígida, imóvel, mas
um arcabouço mais ou menos estável sobre o qual os intensos e constantes movimentos
dos sujeitos fazem-na modificar-se.
É justo sobre esses movimentos, razoavelmente apontados até então, que
buscarei me dedicar a partir de agora. Com a narrativa do milagre de Seu Bento que
registrei na seção onde exploro sua performance, mas também na parte seguinte em que
apresento as operações de plausibilidade que se processam em torno do cruzeiro, desde
esses momentos preparava o terreno para situar a discussão a respeito dos processos
que viabilizam o culto, os quais se produzem sobretudo a partir dos movimentos de seus
sujeitos. Me inspiro para isso duplamente na idéia de invenção. A primeira, articulada
por Hobsbawn (2006) quando analisa a tradição enquanto uma produção social,
inventada, investida e da qual se desprendem valores e interesses que se forjam na sua
constituição. Por outro lado, as idéias de Certeau (1994) quando fala de uma invenção
149
do cotidiano, também me são caras na medida em que permitem visualizar através dos
arranjos e das operações dos sujeitos os mecanismos que atravessam as relações de
consumo simbólico dos grupos populares, os quais costumam fazê-lo a partir de uma
fabricação muito peculiar.
Nesse sentido, tenciono no próximo capítulo apresentar como ao mesmo tempo
em que o culto das Meninas das Covinhas é resultado singular de um processo
razoavelmente recorrente, naquilo que chamo de a invenção dos santos locais, por outro
lado, e principalmente, essa produção está marcada por fisionomias e arranjos que lhe
são particularmente constituintes e implicados, já que resultam da conjuntura histórica,
política e social de emergência e atividade do santuário. Enfim, as Covinhas consistem
em um produto dos diversos sujeitos e relações que põem o santuário em curso.
150
6. A INVENÇÃO DA DEVOÇÃO:DOS SANTOS LOCAIS ÀS
MENINAS DAS COVINHAS
Ao investigar os cultos a personalidades não canônicas no Rio Grande do Norte
identifiquei um universo muito prolífico dessas expressões. Isso ao mesmo tempo em
que me levou à revisão de uma literatura sobre o tema, proporcionou também, pela
comparação de algumas situações empíricas, a considerar contornos peculiares que são
reincidentes quando da promoção desses personagens. Ponderando acerca disso,
compreendo que o entendimento do culto às Meninas das Covinhas pressupõe inteligir
formas e razões que levam à produção desse tipo de piedade. Dessa forma, procuro
inicialmente oferecer um panorama do que compreendo ser o contexto de produção de
um santo local, com as implicações que isso acarreta. Em seguida, porém, exploro
algumas condições concretas dessa invenção, seus sujeitos e seus produtos, no contexto
do santuário que venho analisando.
6.1. A invenção dos santos locais: enraizamento simbólico e prático
A emergência dos santos é uma gina coetânea à assunção do cristianismo. A
intensidade da presença desses bem-aventurados na religião, entretanto, foi resultante de
capitalizações empreendidas ao longo da história da tradição religiosa e experimentou
reforços mais acentuados em alguns períodos particulares. O investimento nos santos
por parte da Igreja foi tamanho que nalgumas situações eles enevoaram o culto das
presumidas personagens centrais do cristianismo, implicando em reavaliações,
reinterpretações e reorientações institucionais no que tange ao papel que deveriam
ocupar, sobretudo, no plano das práticas religiosas
97
. Contudo, há que se reter não serem
97
Apenas para citar dois grandes exemplos desses movimentos institucionais vale destacar
primeiramente a grande polêmica das imagens, e por extensão dos próprios santos, que teve
significância para toda a cristandade ocidental e foi condensada nos debates do Concílio de
Nicéia II (SCHMITT, 2007). Outro exemplo pode ser encontrado no processo que, apesar de
151
as ações institucionais as únicas determinantes para a promoção do culto aos santos,
uma vez que nesse processo os agentes consumidores, os devotos, têm um papel ativo
nos contornos que a prática religiosa assume.
Adotando essa perspectiva, é possível entender que o forte enraizamento e a
ampla repercussão que os santos assumiram no cotidiano popular são resultantes tanto
de incentivos institucionais, através de desenvolvimentos teológicos que construíram”
um lugar para eles na religião, como das disposições sociais que os engajaram na
prática, a partir das formas populares de conceber e ativar o mundo. Assim, ao passo
que os santos ocuparam posições ativamente reconhecidas no panteão e cosmologia
cristãs, sua vitalidade pôde ser aferida nos inúmeros elementos que corporificaram as
práticas devocionais populares tão mais freqüentes que aquelas ligadas a um corpus
institucional.
Se por um lado a Igreja reconhece os santos enquanto agentes autorizados de
seu repertório cosmológico - da mesma forma como também faz com os anjos - é na
maneira e na intensidade que os primeiros são acionados onde reside o problema, ou
seja, o ponto de tensão entre a compreensão institucional e a interpretação popular. Esse
desencontro hermenêutico se deve aos dispositivos sociais colocados em ação nessas
conjunturas, os quais refletem as diferenças culturais de classe pautadas em estruturas
mentais que significam as relações a partir de contextos particulares. Desse modo,
entendendo a religião como um substrato discursivo e prático que fornece aos seus
sujeitos explicações do mundo e formas de comportamento frente a ele, a implicação
imediata é a de que um modelo douto de religião termina por se revelar inconsistente e
incoerente para segmentos sociais que costumam engajar seu mundo a partir de formas
menos racionalizadas e mais pragmáticas de religião. A distinção apontada, entretanto,
não repercute em qualquer tipo de hierarquização, seja em termos de abstração ou
mesmo de um valor intrínseco a cada modalidade religiosa, mas apenas revela que elas
são de ordens diferentes, por que correspondem a demandas histórica e socialmente
construídas.
não estar limitado ao Brasil, aqui ficou conhecido como romanização, cujo teor espelhava
tardiamente as preocupações tridentinas de maior controle eclesiástico da religião, investindo-a
de um caráter mais doutrinal e sacramental, em oposição ao caráter mágico e leigo que ela
experimentava até então (OLIVEIRA P. R., 1985).
152
Essa mesma diferenciação que emerge no campo religioso tem
correspondências em outros domínios da vida social como na arte, na literatura, na
música, na saúde, enfim, nas diversas instâncias da experiência humana, e é sobre ela
que a historia cultural tem se voltado a fim de revelar as incongruências entre as
produções da elite e aquelas dos segmentos populares
98
. Todavia, independentemente do
domínio que se coloque em evidência, a descoberta da distinção vem acompanhada de
uma segunda, de ordem mais geral, na qual se constata que as diferenças não são
devidas apenas às especificidades materiais que cercam o viver de cada segmento, mas,
mais precisamente, elas residem na forma como esses grupos articulam o pensamento,
de acordo com as categorias que nele são acionadas e os sentidos que elas comportam.
Podemos a partir de esta perspectiva entender como no fim do período
medieval e início da idade moderna, apesar de os intercâmbios culturais entre os grupos
sociais não poderem ser obliterados, enquanto nas camadas altas uma cultura mais
sofisticada fomentava relações formais com o conhecimento erudito e profilaticamente
desembaraçado do folclore e das superstições, entre os segmentos populares grassava a
tendência à composição, alimentada especialmente pelos conhecimentos da tradição
(BAKHTIN, 1992; BURKE, 1989). Essa conjuntura tinha implicações concretas na
forma como cada um desses grupos interpretava o mundo que os circundava, da mesma
forma como as respostas que eles ofereciam a problemas comuns da existência também
tinham conteúdos e articulações distintas.
O homem ordinário desse período não baseava seu pensamento, tampouco suas
ações, em formas de cálculo racional. As estratégias de ativação da vida se processavam
em correspondência com a experiência do viver, o qual estava imerso num mundo
“magicamente religioso”. Quanto às classes altas, apesar de essas sofrerem influências
das concepções populares, a proximidade com a religião institucional assegurava um
maior controle de suas práticas religiosas, processo que não se reflete com a mesma
98
Nas palavras de Chartier “a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa desse tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz
respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as
classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas,
próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às
quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado
(CHARTIER, 1990, p. 17).
153
intensidade entre o povo. O homem comum medieval, e mesmo o pré-moderno,
portanto, é um homem que interpreta o mundo a partir da relação com um sobrenatural
onipresente e a mediação que faz dele freqüentemente não obedece aos padrões da
ortodoxia institucional
99
.
Ao olhar o medievo e os albores da idade moderna, o que vários estudiosos
(GINZBURG, 1987; LE GOFF, 1993; SCHMITT, 1999; SCHMITT, 2007; SCHMITT,
1976; VAUCHEZ, 1995) encontram é um homem que define sua vida a partir de
valores e concepções religiosas, mas essa religião não é aquela prefigurada pela
instituição. Ela conforma um conjunto heteróclito, onde se misturam elementos cristãos
com fortes traços pagãos, numa mescla que articula religião e magia. E, notadamente, é
na intensa e íntima relação com os santos que essas misturas aparecem de forma mais
evidente, reflexo provável das disposições que mediaram os intercâmbios que viriam a
assegurar o enraizamento do culto cristão dos santos.
Não cabe neste momento antecipar discussões que ensejam muito mais
páginas, mas é importante destacar que o estabelecimento do cristianismo e sua
expansão pelos territórios europeus se deveram em boa medida aos processos de
cooptação com as tradições locais que eram pagãs. Apenas a título de exemplo geral, a
associação dos personagens e das celebrações cristãs com o calendário pagão oferece
uma amostra de como se produziu a consolidação do cristianismo nesses novos espaços
em que penetrava. Essa prática freqüente reforça a compreensão de que a estratégia da
Igreja não era outra que a de estabelecer-se a partir de bases identitárias
sedimentadas, mesmo que tencionasse intimamente arrefecer as crenças autóctones e
substituí-las por outras marcadas com o selo da religião cristã. Nessa empresa, os santos
acumularam função capital, pois reuniam a dupla identidade, local e cristã, ao mesmo
tempo em que atuavam como mediadores da mensagem e da ética religiosa quando do
processo de conversão do paganismo ao cristianismo, como demonstra Atienza:
Mas, provavelmente, foi a hora da expansão cristã pelo âmbito do
Império que marcou as mais sutis adaptações, destinadas a congregar
o maior número de catecúmenos entre certos povos pagãos que,
enquanto estiveram submetidos ao Império, conservaram suas crenças
99
Essas disposições explicitamente aparentes no medievo e que vão se prolongar até a
modernidade correspondem a formas que permaneceram ativas desde as tradicionais culturas
pagãs, (SCHMITT, 1976; ATIENZA, 1995) a custa de intensos e distintos processos de
reelaboração, contanto que conseguiram perpetuar-se.
154
alteradas apenas por sutis mudanças de nomes mais utilizados
inclusive pelos conquistadores romanos do que pelos autóctones e
pelo único culto que o sistema imperial considerava imprescindível na
hora de manter a coesão de tão vastos territórios: o que obrigava a
deificar a figura do imperador do momento.
Júlio César, em seus Comentários sobre a guerra das Gálias, nos
proporciona uma visão diáfana do que significava para Roma as
crenças dos povos que ia submetendo. Partindo da perspectiva de seus
próprios princípios, os deuses dos Gauleses não eram mais do que
projeções de seu panteão e, embora respeitando como sempre se
respeitavam as crenças, César, da mesma forma que fariam depois
todos os representantes do Império nos territórios conquistados, se
dedicou a romanizar aqueles nomes sagrados numa tentativa que nem
sequer podia ser considerada ecumênica, mas uma aclaração de certas
crenças que, assim, poderiam ser perfeitamente entendidas pelos
cidadãos romanos.(...)
A Igreja aprendeu bem a lição. Estava se expandindo por um mundo
que, embora majoritariamente proclamado como politeísta, tinha a
noção superior do sagrado profundamente implantada na consciência
coletiva. E, se é certo que deu nomes a numerosos presumíveis deuses
e até lhes rendeu culto e lhes oferecia sacrifícios, tinha firmemente
implantada a idéia do divino como unidade e daqueles presumíveis
deuses como manifestações mais ou menos individualizadas de seus
poderes. Não era difícil, então, adotar um truque que Roma havia
adotado com êxito. Sobretudo se contasse, como contava a Igreja,
com um exército de mártires em sua maioria, anônimos que, desde
os confins da glória, podiam metamorfosear-se, segundo a
conveniência das autoridades de plantão, naqueles deuses que iriam
substituir. E, até mesmo, quando faltava aquele duplo que pudesse
exercer as funções correspondentes, poderia ser cuidadosamente
moldado a partir de qualquer personalidade definida que desse sentido
ao anonimato absoluto no qual haviam vivido e no qual haviam
morrido. (ATIENZA, 1995, p. 11)
O personagem mediador exemplar que se tornou referência para o cristianismo
na figura do santo, porém, não é uma exclusividade cristã, mas uma “tendência”
observável em diversos sistemas religiosos que presumem em suas respectivas
estruturas tipos humanos exemplares os quais materializam modelos éticos em que se
espelham. Daí, inclusive, é que foi possível construir as equivalências supracitadas, as
quais o cristianismo engendrou com tanto empenho. As diversas tradições religiosas,
desde a mais tenra idade, se estabelecem à custa de modelos que orientam as
disposições de seus seguidores. Com isso, desde os deuses, divindades menores e
mesmo os mediadores, carreiam consigo aspectos éticos, seja em suas hagiografias, seja
na virtualidade de sua ação no mundo. No cristianismo, entretanto, essa condição foi
155
fortemente capitalizada na figura dos santos, embora Jesus Cristo, encarnação humana
da divindade, segundo a tradição cristã, seja também acionado enquanto modelo ético
que inaugura novas posturas, mas cujos delineamentos são definidos de acordo com as
interpretações e correntes teológicas que as defendem.
O modelo ético, contudo, não é um paradigma definitivo, mas móvel,
correspondendo às expectativas sociais e teológicas de conjunturas históricas. Disso
decorre o fato de, no caso cristão, a santidade não ter um arquétipo encerrado. Pelo
contrário, a história da santidade compreende a sucessão de ideais da beatitude cristã
que permitem apontá-la como uma construção social (FORTES, 2005). De fato, ao
recuperar a história da santidade no cristianismo, o que se é a sucessão de modelos
que se iniciam com o martírio enquanto diacrítico beatífico da comunidade primitiva, ao
qual Woodward (1992) vai denominar martírio vermelho, e que progressivamente é
substituído pelo martírio branco, no qual são capitalizados personagens das fileiras
institucionais que se destacaram pela piedade, zelo pastoral ou mesmo castidade, em um
exercício contínuo de renúncia ao mundo em nome do Cristo. Inaugura-se, assim, a era
dos confessores que não ocupam completamente a cena, mas ofuscam em parte a
centralidade dos mártires.
Na corrida da história, ambos chegam ao período contemporâneo enquanto
modelos de santidade, porém, proclamar um santo atualmente exige submeter-se a uma
complexa estrutura, eivada de processos burocráticos que se justificam como
preocupação no “controle de produção”, além do que tem como pressuposto atender aos
interesses políticos de uma instituição que busca projetar-se num cenário de disputa por
fiéis no mundo inteiro.
Retomando a questão dos santos a partir do medievo, não é estranho entender o
porquê de eles terem gozado de amplo sucesso entre a cristandade ocidental. Numa
realidade onde os sentidos filtravam a experiência muito mais que o pensamento
abstrato, ver um humano de carne e osso que vivera relativamente próximo ao seu
mundo e que fora depositário das vicissitudes prefiguradas pela religião era a condição
cabal para que o homem comum nele se espelhasse ou pelo menos nele confiasse.
Fidúcia, aliás, que se ratificava na medida em que os sentidos experimentavam todo um
reforço na credibilidade das potências do santo: ouvia-se e reproduzia-se oralmente o
relato dos milagres, as liturgias enchiam os olhos numa verdadeira encenação teatral
156
com belos cenários (as catedrais e abadias), vistosas roupas do clero e da aristocracia,
além do apoteótico momento da elevação eucarística e dos pomposos desfiles nas
procissões. Também as longas e exaustivas peregrinações, que deixavam marcas no
corpo equivalentes ao sofrimento do santo, do Cristo, ou ainda representavam, aos olhos
dos fiéis, atos meritórios dignos de recompensa (os milagres), tudo isso sem contar o
desejado contato com as imagens e relíquias, objetos mediadores da taumaturgia dos
santos. O jogo destes elementos contribuía para o reforço dos intercâmbios entre os
sistemas de crença e para a promoção de uma resultante compósita.
Se por um lado a experiência religiosa prefigurada no culto aos santos punha
em ação a performance habitual de ordem pagã articulada em seu interior com a
mensagem cristã, por outro, a distância em relação à religião institucional assegurava
um solo fértil para os desenvolvimentos populares, os quais, “livres” para criar,
reelaboravam a prática religiosa a partir de suas categorias nativas.
Partindo dessa breve conjuntura, para pensar pistas para a invenção dos santos
locais é preciso ter em vista algumas questões. Primeiramente, que o culto aos santos
sofreu desenvolvimentos tanto institucionais como populares, os quais se cruzaram com
interpretações sobre a vida (modelos éticos), a morte (formas de morrer) e a virtualidade
da ação no mundo (poder de intervenção). Segundo, requer entender que no curso
prático a relação dos sujeitos religiosos com os santos é interceptada por representações
e interpretações de quem são, como atuam e para que servem esses personagens. Por
último, é necessário reconhecer que a forma como a prática religiosa é engendrada na
cultura católica brasileira, principalmente naquela que envolve os santos locais, ainda é
atravessada por dispositivos e concepções tradicionais.
Assumindo essas pistas me deterei a explorar algumas delas. No presente, farei
isso a partir da discussão que conduz ao entendimento daqueles modelos éticos
enquanto constituintes importantes da ativação da vivência religiosa.
157
6.2. Do ideal ao real: religião ética e prática reflexiva
Tomando como ponto de partida algumas noções antropológicas e sociológicas
elementares no que tange às relações sociais, é possível compreender que tanto a
direção do comportamento coletivo como os fundamentos das condutas individuais têm
origem e sustentação social. Assim, adoto como pressuposto a condição de ser o homem
um ser social que tem suas relações mediadas por regras e valores e que esses se
vinculam diretamente com processos simbólicos numa ordem cultural dada.
Disso é possível extrair que tanto o pensamento como o comportamento
humano ao mesmo tempo em que estão intimamente associados, ambos se espelham em
referenciais estabelecidos por uma comunidade social. Logo, tanto as formas de
conceber o mundo como as maneiras de conduta perante ele são construções sociais que
se produzem a partir de processos expressamente elaborados no interior das relações
humanas, num movimento dialético de exteriorização, objetivação e interiorização
(BERGER & LUCKMANN, 2001). Am do que, no curso desses processos sociais,
coetaneamente, emergem conteúdos simbólicos que passam a significar o mundo e as
relações que nele se constroem, configurando o homem enquanto ser eminentemente
simbólico que realiza a interpretação de seu mundo (GEERTZ, 1989) a partir da
cognoscitividade que lhe é socialmente constituinte (GIDDENS, 2003).
Assumindo como parâmetro a constatação de que a partir dos processos de
interação são sedimentados padrões com o fito de orientar as relações entre os sujeitos e
que esses são acompanhados de sentidos socialmente partilhados, o que se encontra ao
final é que as diversas disposições de conduta no interior dos grupos reverberam
referenciais socialmente construídos. A alguns desses referenciais estou chamando
modelos éticos e os entendo enquanto “cristalização ideal
100
de convenções gerais
dispersas no tecido social, cuja edificação se processa em situações particulares quando
as ações dos sujeitos se cruzam com as expectativas sociais em torno dos pais e
funções sociais.
100
Ideal pois, apesar de funcionar como parâmetro, não se estabelece em completude no real.
158
Embora estejam integrados a um conjunto mais amplo que articula as
disposições éticas, os modelos éticos são paradigmas que se ligam aos valores de maior
evidência do seu contexto histórico. Logo, o modelo ético do medievo cristão difere
substancialmente do modelo ético vigente na modernidade capitalista, uma vez que, se
para o primeiro são os valores religiosos aqueles que se sobressaem, para o segundo os
contornos de uma economia produtivista se impõem como força determinante. Contudo,
considerando ambas as situações, os mecanismos sociais que elaboram as referências
permanecem imperecíveis, posto que ocupam as mesmas funções de modelação da
conduta.
Quando no curso de suas ações, os sujeitos espelham-se nos modelos éticos,
histórica e socialmente enraizados, como fonte de orientação para suas condutas
101
e
eles o fazem articulando-se num jogo de identidades. Tal perspectiva permite extrair a
condição exemplar localizável em qualquer realidade histórica e cultural que conforma
o estereótipo do que é ser um Homem bom e como os qualificativos que respaldam esse
paradigma tanto se prestam como parâmetros para a auto-referenciação (identidade)
como para a avaliação do outro (alteridade).
Muito embora os modelos éticos sejam importantes para orientar as condutas e
referenciar os sujeitos, eles não se cristalizam na totalidade, bem como, pelo fato de
sempre representar interesses de grupos em disputa na realidade social, são alvos
freqüentes de avaliação e crítica. A estabilidade desses modelos, portanto, é relativa e se
produz continuamente em função de negociações e barganhas ideológicas que objetivam
garantir a sua sustentação. Assim, do ponto de vista da ação, sendo o sujeito religioso
um indivíduo dotado de cognoscitividade e implicado numa conjuntura social, ele
compreende e interpreta os valores e condicionamentos da realidade que o envolve e
com isso, ao por em curso uma determinada forma de religião ou religiosidade,
acionando o modelo ético que o ampara, esse sujeito confronta o idealmente proposto
com o concretamente experimentado.
101
Dizer que os sujeitos se orientam a partir de modelos socialmente estabelecidos não implica
em afirmar que eles o fazem à risca. De formas diferente Giddens (2003) e Sahlins (1994; 2004)
demonstraram isso quando expuseram que a apropriação dos papéis e das estruturas sociais
tanto podem servir como forma de colocar em curso as expectativas sociais delas esperadas
(reprodução) como também se prestam a instrumentalizar os sujeitos para no curso da ação as
burlar.
159
Convém lembrar que a ideologia não é absoluta, nem a alienação é onipresente.
Os sujeitos são personagens sociais ativos e mesmo o homem comum, por mais imerso
que esteja na ordem social e amarrado aos valores que a urdem, é capaz de perceber
contradições do e no sistema pelo simples fato de que ele interpreta seu mundo e
reinventa os elementos de seu cotidiano na prática. Como evidencia Certeau, mesmo se
estendendo por toda parte uma rede de “vigilância”, precisada por Foucault (1979) na
Microfísica do Poder, “por trás dos bastidores, tecnologias mudas determinam ou curto-
circuitam as encenações institucionais”. Isso faz com que uma sociedade inteira não se
reduza aos dispositivos da disciplina, antes, através de procedimentos populares
(também „minúsculos‟ e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se
conformam com ela a não ser para alterá-los” (CERTEAU, 1990, p.41). Criam,
portanto, maneiras de fazer que conformam a contrapartida, do lado dos consumidores,
dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política.
Nessa fabricação cotidiana, os valores e condutas apregoados pelos modelos
éticos (justiça, abundância, fraternidade, amor, solidariedade etc.), que dão sustentação
ao estereótipo do homem bom, na prática, são confrontados com as incongruências que a
realidade alimenta e cujo cenário comporta relações bastante diversas daquelas
almejadas exemplarmente. Assim, os sujeitos religiosos em ação, mesmo envoltos no
manto ideológico que os encapsula e os projeta para a legitimação e reprodução da
ordem, não permanecem completamente alienados aos processos sociais e às disputas de
poder que acontecem no seu entorno.
Esses sujeitos percebem amiúde que os mesmos homens que usam a religião
como mensagem ética para amoldar condutas e estruturas da ordem são aqueles que
dela se investem para fazer marcar diferenças na sociedade de classes. E ainda, embora
a integração ao universo religioso implique em adesão a um modelo ético e,
conseqüentemente, a uma ideologia, os sujeitos não estão de todo alheios aos
movimentos que os cercam, tampouco atuam como agentes passivos. O caráter ativo
dos sujeitos se constrói a partir da prática, na qual é possível perceber a nítida
incongruência entre o modelo veiculado pelos dominantes e a realidade, além do que é a
partir dela que os agentes produzem suas ticas de diálogo e apropriação do modelo.
Assim, é possível aos consumidores edificar valores e interpretações sobre eles que são
160
de outra ordem daqueles dos modelos dominantes, logo, a idéia de justiça, por exemplo,
assume formas diferentes conforme os sujeitos e contextos que a presentificam
102
.
O catolicismo popular, em seus inúmeros exemplos, é a evidência dessa
formulação, pois cristaliza nas suas práticas, principalmente, no culto aos santos
populares os diacríticos que traduzem a tensão entre as classes sociais. A religiosidade
popular, contudo, não se constrói apartada do modelo ético veiculado pelas camadas
dominantes, antes reconhece nele muitos dos valores com os quais se identifica, mas
percebe em suas lacunas práticas os espaços onde constrói estratégias que revelam a
diferença e a insubordinação. Duas teses clássicas sobre religiosidade popular no Brasil
exemplificam esses aspectos.
No trabalho de Zaluar (1983), ela demonstra que no conjunto de quatro
comunidades apresentadas em seu estudo a identificação com os santos se dava a partir
de critérios que envolviam aspectos de origem sócio-econômica, além do que no interior
das devoções, diferiam as relações entre patrões e trabalhadores para com os santos,
refletindo na religião a estrutura da sociedade e as relações que ela encetava. Entretanto,
era através dos santos que se tornava possível construir mecanismos de burla à ordem,
por exemplo, com as folias. Os santos, portanto, funcionavam ao mesmo tempo como
mecanismos institucionais da ordem, inscritos que estão no culto e representando
valores institucionalizados, embora na prática os sentidos que os agentes cambiavam,
seja entre si, seja entre eles e os santos, pudessem ser de outra natureza, inclusive
contestatória.
Noutra perspectiva, em Os deuses do povo, Brandão (1980) demonstra que na
religião popular se constrói uma concepção onde o mundo é uma extensão do universo
cósmico e no qual simbolicamente as entidades que encenam as batalhas sobrenaturais
estão representadas em personagens mundanos. Com isso, freqüentemente são os
patrões e a elite associados ao lado do mal, enquanto os trabalhadores e camponeses são
vistos como emissários do bem. Nesse caso, através das potências que qualificam o
mundo entre caos e ordem, o povo, os homens comuns, estão freqüentemente perfilados
com os santos e toda a legião de entidades beatíficas, enquanto rivalizando com eles se
102
Em lingüística, como apresenta Certeau (1994), essa “divergência” se produz a partir da
distinção entre performance e competência, esta última assentada no primado do conhecimento
da língua, enquanto a outra privilegia as relações que se produzem no ato enunciativo.
161
apresentam os opressores e as deidades do mal. Para o povo, a verdadeira ordem,
portanto, não está no ordenamento criado pelos homens que ocupam o poder,
marionetes das potências negativas, mas reside numa dimensão imperecível e para a
qual todos um dia terão de prestar contas: a justiça divina.
Ambos os trabalhos evidenciam cenários populares onde os modelos éticos
reverberam conjunturas de uma ordem que não está definitivamente consolidada embora
imersa nos dispositivos que a ordem institucional constrói para sua segurança. Além do
que demonstra que os modelos éticos, muitas vezes, servem de pontes para a projeção
de uma identidade situada e coletiva, embora não articulada formalmente, na qual os
dispositivos do controle são relidos à luz da subversão.
A partir desse entendimento emerge a suposição que orienta o argumento
explicativo para a invenção dos santos locais, qual seja, a de que esses personagens são
construções coletivamente gestadas no âmbito de grupos populares que as produzem a
partir da intersecção de uma identidade local e de classe em conjunto com a experiência
do martírio, da qual resulta uma linguagem religiosa própria, através de narrativas e
práticas, que veicula uma mensagem de não conformidade com a ordem estabelecida.
Embora nesta linguagem a alegoria principal ponha em curso elementos de
natureza religiosa, com a centralidade na presença dos milagres, a mensagem subliminar
se dirige ao ordenamento mais amplo da sociedade envolvendo a contestação da
estrutura social, política e econômica de natureza excludente e opressora. Daí nasce a
singularidade da releitura do martírio elaborada no interior da hagiografia popular, cujo
enredo oferece como cenário questões que ultrapassam o terreno da religião: é a
violência contra a mulher numa sociedade masculina e patriarcal, é a exploração do
trabalho numa economia que fomenta desigualdades, é a pobreza em oposição à
opulência, é a não posse mediante a concentração de poder.
As mensagens implicadas no martírio dos santos locais são mensagens políticas
de insatisfação as quais não podem ser ditas às claras e por isso são construídos tempos
e lugares onde elas possam ser veiculadas sem comprometer os sujeitos que as
162
pronunciam. Esses espaços e tempos são, entre outras possibilidades
103
, aqueles
dedicados aos santos locais.
Dessa forma, os santos locais são os personagens que condensam, na condição
ordinária do homem em suas respectivas comunidades e a partir de um processo
identitário, os enfrentamentos e as expectativas locais, além de projetarem nos sujeitos
aquilo que Certeau (1994) apresenta, como contraponto ao espaço polemológico das
disputas sociais entre pobres e poderosos, o espaço utópico.
Usando como exemplo, a fala dos lavradores pernambucanos sobre sua
condição em 1974 e sobre as gestas de Frei Damião, ele apresenta a fala do milagre
como a fabricação discursiva na qual se elabora um dispositivo de enfrentamento à
ordem, uma vez que é na intervenção sobrenatural através do milagre que se
encontra a recusa ao estatuto natural da ordem histórica.
Para afirmar a não-coincidência entre fatos e sentido, era
necessário outro cenário, religioso, que reintroduzisse, ao modo
de acontecimentos sobrenaturais, a contingência histórica desta
“natureza” e, com referenciais celestes, um lugar para esse
protesto. No entanto dizia-se uma inaceitabilidade da ordem
estabelecida, a justo título sob a forma do milagre. Ali, numa
linguagem necessariamente estranha à analise das relações
sócio-econômicas, podia-se sustentar a esperança que o vencido
da história corpo no qual se escrevem continuamente as
vitórias dos ricos ou de seus aliados possa, na pessoa” do
“santo” humilhado, Damião, possa erguer-se graças aos golpes
desferidos pelo céu contra os adversários. (CERTEAU, 1994, p.
77)
O culto ao santo local, portanto, fomenta questões existenciais nativas e por
isso, mesmo mediante a desautorização ou desaprovão institucional, normalmente
goza de credibilidade e se projeta num diálogo híbrido com os signos da religião formal.
A teologia popular, como mais adiante apresento, tem uma tendência à heterodoxia,
fruto da recusa ao estatuto da ordem, mas também por formatar-se a partir de processos
de conjunção e não de compartimentação. Com isso, torna-se possível forjar o santo
local interceptando valores e símbolos de natureza cristã que se cruzam com as
103
Inclusive entre essas costumam estar as apropriações e ressignificações dos santos canônicos.
163
disposições interpretativas daquilo que Hoefle (1997) chamou de mundividência
encantada, espécie de visão de mundo onde cambiam entidades e poderes das mais
diversas naturezas e cujo poder de interferência no curso dos acontecimentos é admitido
enquanto certo pelos sujeitos partilhantes. Dentre tantos aspectos partícipes dessa
mundividência, as questões relativas às representações e interpretações sobre a morte e
os mortos emergem enquanto elemento de destaque, uma vez que esses personagens
têm um papel ativo no interior das relações sociais na cultura nacional.
Como afirma DaMatta (1997, p. 158), “no Brasil, a morte mata, mas os mortos
não morrem”, pois, sendo o Brasil uma sociedade relacional, os mortos se impõem de
forma mais pujante que a morte
104
, de sorte que nem mesmo a decrepitude do corpo faz
apagar as relações construídas no interior da intensa economia que liga os vivos aos
mortos e vice versa.
DaMatta realça alguns aspectos que se consorciam com aquilo que tratava
linhas antes quando recuperava o espaço utópico de Certeau (1994): é a noção de
isonomia no outro mundo. Na verdade, quando o espaço do além aparece em evidência
nas relações sociais gestadas na cultura brasileira, um traço marcante que a define é a do
outro mundo enquanto território da esperança, naquilo que DaMatta diz ser um local de
síntese, marcado pelo signo da eternidade e da relatividade, onde todos os desejos não
realizados, pessoal e coletivamente, poderão, enfim, se concretizar e tornar-se
imperecíveis. A esses sonhos se vincula uma dimensão moral e ética que por sua vez
aparece no discurso sobre os mortos, haja vista que esses estão na intemporalidade e
desde podem estar olhando para os que aqui permanecem. Além do que, é no tempo
da zona eterna que todos os equívocos e males se desfazem, como a prova cabal de que
sempre existe um outro lado das coisas.
Mas esse outro mundo é também um espaço que demarca uma
zona de incrível igualdade moral, pois no “outro mundo” tudo
104
A prevalência da morte sobre os mortos, conforme DaMatta (1997), é marca das culturas
modernas, pois requer a condição de individualismo presente na ética e nas instituições sociais
próprias da modernidade. Assim, a morte aparece enquanto um problema filosófico e
existencial da modernidade, enquanto nas sociedades tradicionais, onde o indivíduo ainda não
existe enquanto entidade moral autônoma de seu grupo, cabe uma preocupação mais acentuada
em relação aos mortos. Daí é possível extrair, por exemplo, dentre os diversos registros
antropológicos, os inúmeros casos em que toda uma atenção, nas sociedades tradicionais,
com os rituais que estabelecem e fixam os lugares e os tempos dos mortos, bem como as
atividades dedicadas a eles.
164
“será pago” e todas as contas irão se ajustar com honestidade.
Essa honestidade que nem sempre é possível aqui na terra, onde
os ricos e os poderosos sempre escapam e os “santos” estão
sistematicamente “pagando pelos pecadores”. Mas no “outro
mundo”, deste outro lado da nossa humanidade, existe uma
verdadeira isonomia e todos são vistos e pesados pelas ações
pelas quais realmente foram responsáveis aqui neste mundo.
(DaMATTA, 1997, p. 152)
As imagens e discursos que evocam a idéia de um espaço sobrenatural, o outro
mundo, onde impera uma ética que não é aquela distorcida da qual se utilizam os
dominantes, é elaboração freqüente que se reflete nas concepções e práticas religiosas
que se desenvolvem no seio das camadas populares. Mas, se de fato essas produções
emergem enquanto possibilidades contradiscursivas, ao mesmo tempo fica realçada sua
condição precária, de modo que as vozes se multiplicam indefinidamente num processo
contínuo de reelaboração a fim de assegurar uma plausibilidade mínima que
sustentação ao objeto de culto.
No caso dos santos locais, seja a plausibilidade, sejam os processos de
elaboração discursiva que a ensejam, ambas se produzem a partir do território comum
da narrativa da morte. É no episódio disjuntivo e, principalmente, nas especulações
sobre ele onde reside a chave de desenvolvimento para o culto, pois, como demonstro
mais adiante, é a condição da morte que sela o diacrítico do morto. Além do que, como
opõe Benedetti (1983), numa ordem onde impera o Deus estabelecido, a presença da
religião popular não se por outra forma que o seja a da precariedade e, nesse
campo, se a construção do sagrado vigente, institucional, se por meio do dogma, no
caso das expressões populares ela se constrói através da lenda, elaboração de um
sagrado alternativo que se articula no insólito jogo das justaposições e do imaginário. E
tudo isso começa com a morte.
165
6.3. O diacrítico dos santos locais: a morte
Embora situados em locais, tempos e condições distintas, em geral, os cultos
dedicados aos santos locais têm em comum o fato de, em suas narrativas de origem, ser
apresentado um evento trágico. Esse é, portanto, o elemento que define esses
personagens-santos: a morte. O episódio marca a condição de santidade do orago e
culmina-o com as potências que o revestem de poderes taumatúrgicos. Nesse sentido, as
situações-limite são objeto por excelência das narrativas, em cujo enredo os detalhes de
violência, crueldade e/ou sofrimento reforçam a condição de beatitude dos canonizáveis.
Aliás, é apenas pela condição extraordinária de sua morte que é possível passar de uma
situação indiferenciada em vida para a de um morto muito especial, recorrendo à
expressão cunhada por Brown (1984). Disso, emerge que os mortos especiais o são
mortos ordinários e é esse fato que os distingue. Assim, o que faz os santos locais
personalidades excepcionais não é a princípio a vida, posto que são “indiferenciados”,
mas é o momento da morte que revela sua distinção.
Do momento da morte ao reconhecimento das qualidades que o atestam
“promotor de milagres”, os mortos especiais experimentam um certo intervalo temporal
e alguns caminhos distintos da assunção popular, entretanto, costumam ser
reconhecidos em suas “ações” numa franca associação com o modelo de mediador
cristão. Muito embora os mortos especiais acumulem as marcas distintivas que os
relacionam ao martírio, o santo popular é muito mais reconhecido pela condição de seus
poderes e faculdades que mesmo por ter a outorga de uma insígnia. Assim, são raros os
casos em que um santo local, nos discursos dos seus próprios devotos
105
, aparecerá
como o vocativo “santo”
106
. O que está em jogo não é a patente, mais associada aos
cultos institucionalizados, e sim a eficácia que se ratifica em razão do caráter
105
No trabalho de Freitas (2006) ela indica que no processo de pesquisa nos cemitérios era
muito comum que os freqüentadores do culto se furtassem a assumir publicamente o
reconhecimento da santidade dos bandidos-santos. Antes, eles preferiam atribuir ao anonimato a
condição em questão, com frases prontas tal como dizem que é santo. Com essa saída, era
possível isentar-se de qualquer responsabilidade à respeito da definição do que realmente seriam
Baracho ou Jararaca.
106
Nos casos que fiz levantamento no RN apenas a Santa Menina de Florânia leva a insígnia
acionada como revela seu cognome e subliminarmente Mártir Francisca, pois opera
lingüisticamente com o veículo da santidade.
166
milagreiro, intercessor ou protetor do orago. Nesse movimento, o é pelo fato de ser
santo que o morto opera milagres, antes a equação popular se resolve no sentido
inverso: é pelo fato de curar, de pressagiar, de interceder, de promover graças que o
orago é santificado, sem com isso precisar ser chamado “santo”. Esta condição está,
portanto, implícita.
Na verdade, os mortos especiais que chamo santos locais são assim definidos
mais por sujeitos exteriores, como eu, que propriamente por seus devotos. Esses
preferem defini-los como milagreiros”. Inevitavelmente, entre os qualificativos
atribuídos a esses personagens a santidade vai figurar apenas como um designativo que
se equivale a tantos outros forte, poderoso, protetor, mediador etc. Essa postura revela
o artifício popular no qual o reconhecimento da condição exemplar e taumatúrgica está
dissociado de uma estrutura institucional, a qual dispõem critérios formais para atestar a
legitimidade dos oragos. Em oposição aos lugares “definitivos” dos santos oficiais, a
religiosidade popular joga com seu caráter de inacabamento, permitindo aos
personagens que ela fomenta uma atualização na qual eles são reinventados
constantemente.
Em suas biografias, os santos locais são sujeitos comuns que, quando muito,
espelham personagens ordinários das realidades onde se situam, acumulando ao longo
de suas trajetórias terrenas valores situados numa lógica social que oscila entre
positividade e negatividade. Em geral, são os acontecimentos em torno de sua morte que
permitem elevá-los ao estatuto de santos, condição alçada pelo fato de eles
protagonizarem um evento trágico. Assim, o curso da existência terrena interrompido
violentamente confere ao falecido um status diferenciado. Essa distinção se constrói
tanto no imaginário quanto nos discursos sociais que mobilizam valores de uma
“economia da vida e da morte” a qual confere papéis, tempos e espaços especialmente
alocados para cada sujeito social.
A morte enquanto fenômeno complexo, envolvendo aspectos diversos no
âmbito da cultura, sociedade e tempo histórico em que se situa, é marcador que define
desde atitudes, representações e a produção de discursos. Não por acaso, a morte e o
morrer passou a ser a menina dos olhos de alguns historiadores, notadamente no esforço
hercúleo de produzir uma História das mentalidades. Sem embargo, pensar a morte
exige cautela, pois como um fato amplo ela participa de um comércio que faz cambiar
167
várias instâncias da vida dos vivos. Nesse sentido, o modelo que propõe Vovelle (1996)
pode ser útil para pensar a morte enquanto problema amplo que ele destrinça pelo
menos a partir de três níveis.
Como Vovelle afirma “o primeiro nível impõem-se por si mesmo: o fato
concreto da morte”. É a morte sofrida. Nesse plano, estão em jogo os parâmetros que
distinguem o morrer desde a estratificação etária, de gênero e social, até as formas de
sentir esse morrer. A morte atua como revelador metafórico do mal de viver”
(VOVELLE, 1996, p. 26), pois evidencia os componentes sociais da desigualdade, além
da desigualdade sentida no morrer. Homens, mulheres, crianças, pobre e ricos, não são
vistos de modo equivalente no momento da morte e isso revela os valores que se
atribuem na condição do existir vivente. A clivagem que se estabelece nesse nível
considera aspectos que informam mais sobre a vida, que sobre a morte
107
. Também as
representações que cercam o morrer em torno do que é uma morte boa ou
108
,
definem o estatuto do morto, mas principalmente seu destino póstumo. A isso se
vinculam, especificamente na cultura brasileira, juízos que avaliam aquelas mortes e
mortos que carecem de atenção especial. Dentre esses, os santos locais são aqueles que
107
Pensando a partir da situação observada nas montanhas colombianas, Alvarez (2001)
apresenta as diferentes reações mediante a morte a partir dos sujeitos sociais que estão em
evidência: os mortos. Ele indica como em cada situação a forma e razão de morrer, além dos
vínculos sociais do morto, colaboram definitivamente com as demonstrações de solidariedade
local: “a comunidade, através de diferenças qualitativas e quantitativas nos ritos nebres, julga
o significado social do morto e de sua morte. Ela expressa seletivamente, na sua solidariedade,
um julgamento social acerca do defunto (ALVAREZ, 2001, p. 52). Com isso, a morte de
patriarcas políticos ou mesmo de homens que são acometidos pela tragédia assume grandes
proporções, de sorte que o tratamento destinado a esses homens equivale à glória atribuída no
caso dos heróis. Nesses sepultamentos, Alvarez registra que uma participação massiva da
comunidade, além da comensalidade e da presença dos mariachis, que revelam uma condição
de status ao féretro. Nos casos de suicídio feminino um contraste extremo quanto à
participação da comunidade. Nessas situações, a morte é vista como um ato de egoísmo extremo
e faz aflorar as disputas interpretativas acerca do morrer, as quais revelam uma tensão de gênero
fortemente enraizada nas desigualdades entre homens e mulheres e na violência doméstica. Os
casos que envolvem sepultamentos de justiçados da guerrilha não articulam muitos convivas,
como também pouco se fala, uma vez que o poder dos grupos do narcotráfico têm uma ação
agressiva na região. Valor intermédio é o caso dos idosos que morrem de morte natural. Em
seus sepultamentos são evidenciados o caráter de reverência em relação aos mais velhos,
contudo, o status de heroísmo não lhes está reservado. Ainda em relação às percepções sobre a
morte é interessante o estudo que produz Vailati (2002) acerca das repercussões que assumem
os funerais de Anjinhos no século XIX, no Brasil.
108
Acerca da idéia de uma boa morte ver Reis (1991) quando investiga as formas de bem morrer na Bahia
do século XIX.
168
tomam evidência pública uma vez que seu tratamento diferencial assume os contornos
de culto coletivo.
É na perspectiva do culto e ritual que se enquadra o segundo nível de que fala
Vovelle: “a morte vivida é muito simplesmente um complexo de gestos e ritos que
acompanham o percurso da última doença à agonia, ao túmulo e ao além” (1996, p. 13).
Não obstante, é evidente que esse plano se vincula necessariamente ao primeiro pelo
fato de deliberar acerca das práticas funerárias que envolvem a fortuna do morto, bem
como as obrigações individuais e coletivas para com ele. Assim, é na morte vivida que
se refletem plenamente as relações mais contumazes das quais participam
inexoravelmente todos os grupos humanos. Nesse momento, estão projetados os valores
e as práticas que definem as expectativas do além, mas de maneira mais intensa, os
processos de continuidade do viver. Não por acaso, os mortos perigosos, como os santos
locais o são, dado seu caráter ambíguo, pedem rituais elaborados, fórmulas contínuas,
orações e preces, ofertas e cuidados, de modo a circunscrever sua presença no mundo,
sobremaneira nos locais que se vinculam à sua memória.
As mortes sofrida e vivida, contudo, não se reproduzem de forma aleatória,
mas são carreadas na esteira de construções discursivas que amparam sua percepção,
além do que têm definidos os dispositivos práticos que o evento exige. Disso se
depreende o terceiro nível: o discurso da morte. Nele, conjugam-se os repertórios
sociais e históricos que legitimam os juízos sobre a morte, o morrer e os mortos,
atribuindo valores e relações que traduzem uma alteridade dos vivos, ou melhor,
projetam os viventes e suas relações no além.
Embora os discursos, juntamente com as formas de morrer, as instituições e os
rituais, evoluam na história e nas culturas, dando margem, contemporaneamente a
modos mais “objetivosde enfrentar a morte - o discurso médico, o hospital, as formas
de luto entre tantos dispositivos dos quais falam Ariés (1975) e Elias (2001) -, ainda é
muito forte nas culturas tradicionais, como a brasileira e nordestina, as percepções
mágicas e sobrenaturais acerca do evento e seus personagens, além dos
desdobramentos, prescritivos e interditos que cercam o morrer.
No caso dos santos locais, o discurso e o ritual demonstram a centralidade das
percepções tradicionais do morrer e a emergência dos cultos nada mais é que a
169
demonstração da relevância que a morte assume na existência terrena e das relações que
ela fomenta. Como mencionado, a morte não é representada de maneira uniforme,
mas existem rupturas nas percepções sobre esse acontecimento. Há mortes que são
consideradas boas ou naturais e para as quais se orientam os rituais habituais que se
destinam à salvaguarda da alma e à memória do morto. Noutras situações, os
acontecimentos em torno da morte corporificam um quadro diferencial que impele os
sujeitos a enfrentá-la com maior circunspecção. Fazem parte deste seleto grupo as
mortes que envolvem acontecimentos trágicos, com violência extremada e,
eventualmente, explícitas demonstrações de altruísmo por parte do moribundo.
Nessas situações, os mortos são percebidos de forma ambígua, além do que os
espaços que demarcam a tragédia, amiúde, são investidos de poderes especiais,
igualmente dúbios. Com vistas ao ordenamento do que foge ao controle, à regra da
morte boa, são elaborados procedimentos específicos como a demarcação do espaço,
freqüentemente, chantando cruzes e cruzeiros a fim de marcar o desnível do espaço
agora um espaço sagrado bem como as demandas rituais conseqüentes disso. Cabe
destacar que nem todos os cruzeiros assumem a condição de milagrosos, como é o caso
daqueles dos santos locais, mas o simples fato de erigir uma cruz ou capela das almas
ou alminhas, como são conhecidas essas construções, implica desde uma percepção
diferencial do espaço.
Embora o espaço e seus símbolos atuem como marcas visíveis do sagrado, da
hierofania (ELIADE, 2001), é no âmbito das representações e dos discursos que as
revelam - e das prestações rituais onde a memória do sagrado se ativa e atualiza.
Operativamente, elas emergem de acontecimentos misteriosos ou presságios
interpretados como sinais da ação do morto através dos corpos secos ou da
incorruptibilidade dos corpos, dos invultamentos de corpos e imagens sagradas, dos
odores característicos, freqüentemente de rosas, das rachaduras de sepulturas, dos
sonhos e visões ou visagens que os mortos protagonizam com os vivos etc., todos esses
amparados na idéia da deambulação das almas errantes ou penadas ou na da
comunicação e ação entre mortos e vivos. Com isso, instaura-se a urgência em
corresponder com as expectativas do outro mundo, realizando prestações rituais, as
quais, no mais das vezes, deságuam na emergência de cultos mais sistemáticos. É
170
comum nesse sentido que o culto aos santos locais se inicie a partir de eventos
extraordinários que se produzem a partir das rotinas ordinárias do zelo com o morto
109
.
O fato, porém, é que essas percepções e disposições se originam da antevisão
do homem da sua condição perecível. Ao antecipar esse acontecimento, as culturas
projetam interpretações para explicar a morte, construindo explicações plausíveis de
acordo com sua cosmologia e universo simbólico, e com isso tencionam enquadrar a
imponderabilidade do caos, afinal, desde tempos imemoráveis, o homem trava uma
batalha cotidiana contra a morte e o caos (ALVES R. , 2000). Esse exercício, refundido
nas distintas culturas históricas, cruza valores e disposições que articulam práticas e
crenças sobre as quais redundam nada mais nada menos que as relações entre vivos e
mortos. Schmitt (1999) resume essa assertiva dizendo que “os mortos têm apenas a
existência que os vivos imaginam para eles”, decorrendo desse episódio uma estreita
relação de solidariedade entre os viventes e as construções sociais especialmente
elaboradas para abrigar os mortos, sejam tempos, espaços, formas, discursos etc. Com
isso, os homens constroem a partir de seus referenciais culturais e históricos as
percepções de uma vida no além, cujo sentido é situar objetivamente a si e aos seus
mortos numa comunidade de destino: eles estão lá, tal como um dia também estaremos.
É patente, assim, o fato de que a vidacontinua após a morte, pelo menos a
existência concreta que os vivos legam aos mortos fazendo-os lembrados em sua
condição no além. Esse exercício se corporifica em investimento social o qual se
justifica pela necessidade humana de explicar e classificar os fenômenos que envolvem
a realidade. Nesse sentido, já afirmava Durkheim (1996), que a construção de categorias
e classificações se orienta no sentido de edificação social de referências para a
experiência da vida em sociedade. Portanto, o fato de destinar aos mortos lugares e
formas particulares se assenta na condição antropológica de ordenamento social, o qual
se realiza em oposição à ameaça do caos. Os discursos sobre a morte e os mortos,
portanto, nada mais são que o exercício do controle social, forma de assegurar a
estabilidade dos próprios vivos, que aqueles que partem não devem voltar ou se
voltam devem ter seu retorno circunspecto sob formas bem particulares de aparição.
109
Como a visão das covas, sua descoberta por Seu Bento e a afixação de um cruzeiro.
171
Dentro desta lógica que dirige a gramática da morte, se edificam os sentidos
que ela instaura. Dentre eles está aquele que segmenta os mortos. Assim, os mortos
comuns participam da lógica geral que lhes assegura um lugar partilhado na memória
doméstica do grupo social de pertença, enquanto os mortos especiais ganham vulto
público e participam de outros esquemas sociais que investem e reforçam seus
qualificativos diferenciais. Como defende Freitas (2006), esses mortos passam à
condição de mortos públicos em oposição aos mortos privados e isso se produz a partir
de uma cultura que valoriza a relação de cuidado com os mortos. Nessa medida, os
mortos públicos, freqüentemente desgarrados sociais, destituídos de qualquer espécie de
vínculo, mesmo aqueles mais elementares (familiares), são personagens que não tem
quem por eles olhem, ou melhor, quem por eles orem ou façam as prestações rituais
esperadas postumamente. A adesão ao cuidado com esses mortos públicos, entretanto,
não significa apenas solidariedade para com o morto, mas, principalmente, no caso dos
bandidos e dos santos locais, representa proteção para os próprios viventes, uma vez que
esses são mortos ambíguos e potencialmente capazes de fazer o mal.
Embora concorde com a tese de Freitas (2006) no que tange à lógica do morto
público, reforço o caráter da condição da morte e do significado de seus personagens
como fator decisivo para a assunção dos santos locais. Isso porque, diferentemente dos
bandidos santos, que exigem uma alquimia discursiva cruzando morte e vida a fim de
construir uma plausibilidade mesmo que precária para o culto, no caso dos santos locais,
na medida em que a maior parte deles são personagens sem biografia, o que os faz
ícones é especialmente a representação de uma condição: sofrimento, abuso,
exploração, fatalidade, dominação.
Enquanto os bandidos santos são personagens públicos que por sua existência
histórica, seja real ou ficticiamente construída, puderam ser nominados e reelaborados a
partir de biografias que se entrelaçam com o legendário popular corrente o herói dos
pobres -,o santo local é comumente um personagem sem nome, sem biografia, sem
vínculos, sem registros, quiçá, nem histórico é, mas apenas projeção lendária. Assim, o
que os faz relevantes não é sua história, mas sua morte. É ela quem nos informa quem é
o santo local e que mensagem ele veicula. Óbvio que especulações biogficas se
constroem nas narrativas, inclusive porque são através delas que o culto respira, todavia,
isso se desenvolve num processo bastante distinto daquele cujos personagens se
172
projetaram intensamente num cenário público de um tempo e lugar históricos. Os santos
locais, portanto, se constroem a partir dos lugares de sua morte, articulando evento e
personagem no produto de uma condição subalterna.
A partir desse entendimento, o santo local assume os contornos de um mártir
social, pois sua morte trágica traz para o centro do foco não um personagem, mas uma
questão social. Inevitavelmente, dentro de uma cultura personalista como a brasileira, o
personagem cristaliza o acontecimento, porém, é sobre a condição que ele representa
que estão mais fortemente expressas as chaves para a compreensão do culto. Dessa
maneira, alguns santos podem não ter nome, outros não ter vínculos, mas é justamente a
partir dessas lacunas que eles se projetam: eles são anônimos, porque podem ser
qualquer um. Eles são tão anônimos que não fosse pela forma de suas mortes passariam
despercebidos como tantos em iguais condições. A compreensão, portanto, é a de que o
diacrítico dos santos locais ainda reside na morte, pois é ela que evoca a marca da
distinção, a marca dos dilemas da subalternidade, bem como as sementes da subversão.
Tal como a morte revela a marginalidade dos sujeitos, é em torno da memória
do acontecimento que se tecem as malhas do inconformismo, mesmo que este se afirme
em outro plano, seja na perspectiva do milagre mediado pelo santo não autorizado, seja
na certeza da justiça eterna, a qual virtualmente desde já se apresenta quando alberga na
plenitude da santidade um pequeno, fazendo-o intercessor das causas de seus pares.
Nessa medida, o santo local é o mártir, não aquele cristão que morria na defesa dos
ideais religiosos, mas o inocente, o injustiçado, o explorado, que sem forças ou armas
para combater se resigna heroicamente na condição de vítima extremada de uma ordem
dominante.
Esse mártir, todavia, não é um produto singular local do Rio Grande do Norte,
mas uma evidência freqüente em distintas culturas e tempos históricos
110
. Considerando
essas evidências, Coluccio (1994) produziu levantamento das ocorrências de cultos
populares na Argentina, a partir do qual construiu uma tipologia que se revela também
válida para leitura dos fenômenos de mesma natureza no Brasil. Ele aponta duas
categorias sob as quais se distribuem os “santos não-canônicos”. Uma dessas categorias
110
Apenas à titulo de amostra, os casos de Hélèna Soutade, cultuada no cemitério municipal de
Toulouse na França (BLANC, 1995) e o de Gilda, no cemitério de Chacarita, na Argentina
(MARTIN, 2007), demonstram o quão multiplicados são esses personagens.
173
seria a dos Iluminados y lideres espirituales”, grupo que divide dois tipos de
personagens, aqueles que em vida dedicaram-se a atividades de caridade, destacando-se
pelo amor ao próximo e virtuosidade, e os que se notabilizaram pela celebridade de suas
carreiras
111
. É comum aparecer nos relatos que abordam a história da vida desse tipo de
santo, passagens e feitos miraculosos, que se transmutam em situações ancoradas no
território do fantástico e do maravilhoso. São exemplos notórios desse tipo de narrativas
relatos que retratam o Pe. Cícero
112
, Frei Damião e, no Rio Grande do Norte, o Pe. João
Maria. Os três clérigos protagonizam no repertório popular uma infinidade de histórias
fantásticas que se fundem na memória do povo dispensando os limites entre realidade e
imaginário
113
.
Quase em sua integralidade os santos iluminados se localizam nas fileiras da
própria instituição, reproduzindo no terreno da religiosidade popular, o modelo
historicamente acionado na hagiografia oficial que elabora um ideal de santidade
111
A categoria forjada por Coluccio (1994) emparelha líderes espirituais e alguns vultos
públicos, entre os quais está Carlos Gardel, eminente músico que se notabilizou pelo seu estilo
musical, o tango, transmutado em identidade nacional argentina. Vítima de trágico acidente
aéreo esse personagem ganhou ainda mais repercussão. No cemitério onde estão depositados
seus restos mortais uma multidão de pessoas, entre elas artistas e cantores, se reúne nos dias 24
de junho para render homenagem ao famoso intérprete. Outro culto argentino que se assemelha
ao de Gardel é o de Gilda (MARTIN, 2007), também cantora vítima de acidente
automobilístico. Em Natal, guardadas as proporções, o cemitério do Bom Pastor igualmente
acolhe as homenagens dos fãs de Carlos Alexandre, cantor brega que se projetou com músicas
que retratavam figuras e atributos relacionados ao universo feminino como “Feiticeira”,
“Ciganinha”, “Índia”, Sertaneja”, Traiçoeira” entre outras. Desde sua morte, em 1989,
resultante de acidente automobilístico, alguns “eternos fãs” freqüentam o túmulo do ídolo para
render-lhe homenagens, especialmente no dia de finados, quando vestem camisetas com a
estampa do cantor ou portam LP‟s que recuperam os grandes sucessos e a carreira que
abruptamente foi interrompida em pleno auge. No trabalho de Freitas (2006), contudo, ela
verifica que a freqüência ao túmulo do artista tem se apresentado bem pouco significativa em
relação, por exemplo, ao de Baracho, outro famoso personagem que divide a cena do cemitério
no dia dedicado ao culto dos mortos.
112
Oliveira (2000) resgata algumas das narrativas míticas em torno da figura de Pe. Cícero, num
trabalho que realiza com romeiros em peregrinação para o Juazeiro.
113
Indícios dessas produções são as narrativas das facetas do Pe. Cícero no Vaticano, que o
tem minorado o seu valor pelo fato histórico de o clérigo jamais ter sido recebido pelo pontífice.
No caso de Frei Damião as elaborações em torno da sua personalidade miraculosa promoveram
a imagem de um homem que não andava, mas “flutuava” por entre as multidões nordestinas,
espaço por onde realizou suas missões. Também não comia, nem dormia, negando aos olhos dos
comuns a possibilidade de identificá-lo enquanto homem que carece de necessidades físicas e
fisiológicas tal como qualquer outro humano. Por fim, o Pe. João Maria que ofereceu a partir de
sua trajetória de atenção aos doentes de varíola e aos flagelados da seca, as fontes para se
produzir a imagem do santo padre que curava de tocar ou ordenar ao corpo enfermo que se
reabilitasse (VAN DEN BERG, 2008).
174
pautado no exemplo de personagens que se destacaram pela fidelidade à confissão de fé.
O movimento de produção dos santos, sejam eles canônicos ou não, obedece a relações
e protótipos que se implicam mutuamente, transitando entre a piedade popular e a
sistematização institucional. Assim, no território da devoção popular, os personagens
virtuosos eleitos para figurar enquanto objeto de culto são selecionados entre os
representantes de Deus legitimamente instituídos pela Igreja, da mesma forma como os
santos que se elegem a partir da tragicidade de sua morte têm no modelo do martírio o
exemplo da consagração.
As demais categorias construídas por Coluccio (1994) são a que ele chama de
Principales devociones”, reunindo os cultos que envolvem “martírios”, e outra de
epítome Los gauchos milagrosos”, na qual se aditam alguns “fora-da-lei”. Em ambas
as categorias estão agregados os santos que têm como referência para a sua beatificação
um episódio de morte violenta ou injusta. Os personagens que compõem a classificação
estão distribuídos em três grupos distintos:
O primeiro, constituído pelos “anjos” isto é, crianças que faleceram
ainda na primeira infância, vítimas de abandono ou de outras formas
de desatendimento; um outro grupo é constituído de vítimas inocentes,
adolescentes e adultos espancados, estuprados e assassinados; nesta
categoria é elevado o número de mulheres; finalmente aparecem
pessoas de “vida errada” bandidos e prostitutas cujos devotos
acreditam que tiveram oportunidade de arrepender-se e obter perdão
dos pecados “in extremis”. (BENJAMIN, 2001, p. 43)
Apesar da classificação, é preciso reforçar que ela não se estabelece de forma
definitiva em cada situação de canonização popular. Para compreender, portanto, cada
santo local é preciso como eu afirmei ainda na introdução, conhecer a sua história. Não
aquela no sentido de uma hagiografia necessariamente, mas uma outra que enreda sua
emergência e a constituição do seu culto. É isso, enfim, que faço a partir de agora com
as Meninas das Covinhas.
175
6.4. Do mito fundador ao santuário: o espaço inventado
Irene Mas Seu Bento, o senhor me contava que essas Meninas
morreram no ano de 1877, num foi? E que assim, na década de
80[1980], agora, quer dizer, cem anos depois é que o senhor teve essa
visão e o senhor então encontrou as covas, e resolveu montar tudo
isso. E como é que começou realmente essa devoção às Meninas?
Durante esse tempo em que não se falava das Meninas das Covinhas,
como é que o senhor sabia da história delas?
Seu Bento - Porque a minha avó era criada pelo avô, dono dessa
propiedade, era dono, o avô dela e ela tinha dez ano em 77[1877]. A
minha avó. Ela era neta de Luiz de França e ela contava a hisria que
ela tinha dez anos em 77. Ai contava desses aretirante. E AQUELE
POVO MAIS VELHO SABIA, NÉ? E ela ficava contando pro povo.
Por que tem uma visão na, na, na revista... que Mãe ndida morava
aqui no Riachão. Que era minha avó. E tinha... Você sabe que o
tempo, o tempo nos 70 ano aqui era escuro, né? Aqui não tinha
energia. E as meninas começava a conversar com ela e história de
trancoso e aparecia um claro aqui. Ai elas entrevistaro a avó:
Vó, e aquele claro que aparece aculá? E o que ela dizia assim, minha
filha aculá foi o lugá onde umas criança morrero de fome e de sede e
foro enterrada lá. sabia que ixistia. E pra vocomo são as
vontade de Deus. Porque eu tinha vontade de comprar essa propiedade
e não pudia. As coisas tudo acontece. Quando eu era solteiro, me casei
e falei pra muié que eu queria compessa propiedade que não era
mais da famia. E o dono dessa propiedade falava em vendê pro mode
ir se imbora pro Goiás. Ai eu fiquei com tanta vontade de comprá
aquele lugá. Ai eu num pudia. Ai quando eu cheguei um dia ai ele me
disse: a propiedade foi vendida. Ai quem compro foi um prefeito de .
Ai passo um mês ai acabaro o negóço. Ai passo oto tempo. Ai quando
eu cheguei a muié me contou, cumpade Diógenes compro a
propiedade que você queria. Passou uma semana acabo o negoço. No
dia treze de junho de cinqüenta e três eu comprei a propiedade. Ai eu
fiquei trabalhando na enxada. (...)
Irene E quando o senhor comprou e veio pra cá, mas ainda assim
não se falava das Covinhas?
Seu Bento Não. em famia. em história. Ou se uma
comparação. Se um dia, um vaqueiro andasse nessa região, num era
conhecendo as covinhas, e onde foi que você achou? Acheeei laaá
perto das covinhas.
Irene - Então o pessoal da região já conhecia esse lugar como as
covinhas?
Seu Bento - Porque tinha um senhor que era cumpade meu, que era
dono dessa propiedade ai, Manel Negreiro, que era de Mossoró. Ele
pesquisou, lutou tanto para descobrir onde era essas covinhas, que
queria sabê... Que se ele fosse vivo hoje ele me ajudava. (Choro)Mas
176
nunca ninguém descobriu. Vei descobri quando eu tive essa visão, que
eu tive essa doença (soluço) Ai dero testemunho,pessoas que ainda
chego aqui, que alcançou os vaqueiro da época.
Irene Quer dizer que mesmo o sabendo exata localização, o
pessoal sabia que esse lugar existia?
Seu Bento Pois é. Quando o padre foi celebrar a primeira missa.
Celebrando, foi no sermão e disse um fenômeno. Eu pedi a ele a
palavra. Eu digo num é! A minha avó quando acunteceu esse caso
aqui criava, ela era craiada pelo avô dela, o dono dessa propiedade
Luiz de França Moura. Ela tinha dez ano. E ela contava a história.
Num é uma coisa inventada, não. Coisa de eu vi dizer, não.
Irene Foi um fato mesmo?
Seu Bento Foi um fato. Se ela fosse viva ia dizê.
(SEU BENTO, entrevista, 2009)
O trecho da entrevista que acabo de transcrever é aquele no qual Seu Bento
situa a origem mítica primeira das Covinhas. Noutro momento, eu havia apresentado
uma segunda narrativa que àquela altura defini como sendo a precursora do santuário.
Há bem da verdade, não existe aqui qualquer contradição em apresentá-las, ambas,
como pioneiras, uma vez que elas são tão fundantes quanto interligadas na ontologia do
espaço.
Em certa medida, a narrativa do milagre de Seu Bento é aquela que precipita a
constituição do espaço do santuário, no entanto, para que isso acontecesse fora
necessário um substrato anterior, recuperado de uma memória local relativamente
socializada, que substancializa a experiência do prodígio e da cura: as Meninas que
morrerram de fome e sede em 1877. A partir desse consórcio, entendo que ambas as
narrativas participam daquilo que aqui estou chamando a invenção das Covinhas,
enquanto processo e produto.
Como processo, as Covinhas emergem enquanto investimento simbólico
(divulgação do milagre, formalização do culto, das personagens-santas, articulação de
crenças e representações enraizadas tanto no imaginário, quanto na memória etc.) e
prático (a mobilização dos primeiros romeiros, a constituição de uma rede de
colaboradores, a construção das estruturas físicas do santuário) de vários sujeitos que se
integram como promotores do culto e do espaço. Por outro lado, enquanto produto, o
conjunto santuário-piedade aglutina as formas dinâmicas de experiência de um espaço,
177
bem como conforma os delineamentos das atividades rituais que nele ou a partir dele se
realizam.
Nesse contexto, Seu Bento desponta como sujeito proeminente que atua em
prol da constituição daquilo que ele mesmo segmenta como sendo uma obra física (o
santuário em si) e espiritual (a promoção do culto). Todavia, ele não está sozinho nesse
processo, ainda que sua participação seja decisiva em algumas situações. Isso permite
perceber que integrado à lógica daquilo que Hobsbawn (2006) chamou a invenção das
tradições, a produção das Covinhas não se encerra enquanto um produto acabado, mas
em constante fabricação (CERTEAU, 1994). Nessa medida, o processo de produção do
santuário está atravessado pelas inúmeras leituras e releituras que outros sujeitos, além
do próprio Seu Bento, fazem num movimento de atualização do culto.
Hobsbawn inicia seu célebre texto afirmando que “muitas vezes, tradições
que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são
inventadas (2006, p. 9). No caso das Covinhas, ainda que a emergência do santuário e
do culto propriamente seja um acontecimento relativamente recente, contando em torno
de trinta anos, a percepção de muitos dos sujeitos que freqüentam o lugar tende a
considerá-lo como algo já tradicional e em certa medida antigo. O produto, nesse caso, é
resultado de uma tradição.
A relação entre antigo e recente quando se analisa o que acontece nas
Covinhas, pode ser pensado pelo menos em duas direções que se complementam: a
primeira, é a inserção do santuário e suas relações naquilo que vou chamar de um
continuum da piedade popular, o qual faz ligar as Covinhas a um arcabouço de práticas
e operações que ultrapassa a sua temporalidade histórica. A segunda, diz respeito
propriamente ao estabelecimento do santuário enquanto referência religiosa local, que
ao sedimentar-se tende a distanciá-lo temporalmente do presente, situando-o num tempo
mítico.
As descrições em que apresento os contornos da piedade que marcam tanto a
festa como a rotina das Covinhas permitem situar esse espaço enquanto locus que
reproduz em grande medida disposições e práticas que são comuns em muitos dos
santuários cristãos. As relações com os santos, as formas de prece, a pactuação de
promessas e o seu pagamento, a deposição de ex-votos, a entrega de ofertas, as
178
performances rituais, a romaria em si, entre tantas outras facetas, são algumas das
possibilidades que tanto se verificam nas Covinhas, quanto constituem um repertório
relativamente ordinário dos santuários populares. Essa espécie de redundância ritual
está sendo aqui chamada de continuum da piedade popular e seu caráter repetitivo tem
na dimensão da tradição, da convenção, da instituição de algumas práticas, as razões
que lhe explicam a reincidência. Assim, um santuário popular para figurar com o status
que o equivalha nessa condição pressupõe quase que necessariamente a existência
daquela paleta ritual em sua vivência.
Nessa medida, embora acionado a partir de um enredo, sujeitos e relações que
lhe são singulares, as Covinhas em última instância presentificam uma tradição que
ultrapassa sua dimensão espacial, temporal ou semântica. Assim, ainda que seja
possível encontrar uma história, uma festa ou uma capela que se vinculem a um
contexto em específico, por outro lado o continuum da piedade popular que lhe
alimenta a experiência é algo que não lhe é privilégio. Com isso, ir às Covinhas é uma
possibilidade de por em curso um forma de engajamento religioso que é tradicional, que
não foi instituída pelo ou para aquele santuário em particular, mas que existe desde
sempre. As Covinhas, portanto, redundam o que tradicionalmente qualquer outro
santuário também tem, seja ele o Bom Jesus da Lapa, o horto do padre Cícero, o
Canindé ou qualquer outro de caráter mais localizado.
O segundo aspecto que leva à percepção da antiguidade e, por conseguinte, da
tradição se produz num movimento muito mais local que disperso. Embora
relativamente recente, como registrei, as Covinhas contaram com um investimento
intenso na sua produção enquanto marco religioso de referência local. Entre os aspectos
que colaboraram para isso é possível mencionar, em âmbito mais geral, o policentrismo
(FERNANDES R. C., 1994) e uma conjuntura religiosa favorável, enquanto na
singularidade do santuário aparecem as estratégias de organização e divulgação do
culto, além da articulação e empenho de Seu Bento. Todos esses fatores concorrem para
estabelecer as Covinhas enquanto um lugar da tradição, no entanto, do ponto de vista
simbólico há ainda um último aspecto que lhe encerra essa condição, é a exitosa relação
do mito enquanto narrativa instituinte.
Nas palavras de Seu Bento, a história das Covinhas começa no tempo dos
antigos, quando “aquele povo velho sabia”. Numa outra conversa, ele me introduzia na
179
narrativa com a contextualização do ano da tragédia, 1877, como no tempo da grande
estiage”. A invocação desse tempo anterior, primordial, “quando tudo era escuro”,
“quando não tinha energia”, faz remeter a uma distância temporal profunda e
qualitativamente distinta do tempo histórico do santuário. Com isso, a invenção da
tradição mesmo constituindo processo recente, se enraíza na percepção de uma
antiguidade que por natureza a justifica.
Com efeito, para além da tradição como produto que é alvo de interpretações, é
possível rastrear a constituição do santuário enquanto invenção no sentido estrito que a
conceptualização proposta por Hobsbawm afere:
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras cita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente uma continuidade em relação ao passado. (2006, p.
9)
A partir do que sintetiza a conceitualização é importante ver no caso das
Covinhas como ambas as narrativas instituintes se implicam de modo a proporcionar
um ordenamento do lugar. Elas ocupam-se intensamente, através da pessoa de Seu
Bento, a imprimir numa dada geografia os sentidos e a lógica de uma percepção que
heterogeneiza o espaço, naquilo que Eliade (2001) chamou de sacralização.
Inicialmente o que se oferece enquanto dispositivo precursor do ordenamento é
o episódio trágico da morte de duas crianças inocentes e “arretirantes”, cujas referências
se encerram por ai. Em decorrência do acontecimento, os anjinhos
114
são ali enterrados,
114
Expressão que costuma referir as crianças que morrem com pouca idade, assim, não são
chamados defuntos ou mortos, mas anjos. Cascudo registra que “o recém-nascido, que o foi
amamentado e morre batizado, não participando, portanto, de alguma coisa deste mundo, é um
serafim, anjo da primeira jerarquia celestial, e vai ocupar um lugar entre seus iguais; o que
recebeu amamentação e as águas do batismo é simplesmente um anjo, porém, antes de entrar no
céu passa pelo purgatório, para purificar-se dos vestígios da sua efêmera passagem pela terra,
expelindo o leite com que se amamentou; e o que morre pagão fica eternamente privado da luz e
glória celestiais, e vai habitar as sombrias regiões do Limbo (1980, p. 39). Acerca desse tipo de
morte há todo um investimento simbólico que a significa, instituindo por seu turno um conjunto
de formas e disposições rituais bastante particulares ao tratamento desses episódios. O trabalho
de Vailati (2002) é muito interessante e elucidativo no que tange as representações e práticas
dessa expressão, cujo registro o autor recupera através de toda uma literatura de viagem dos
século XVIII.
180
tal como abandonados por quem lhes devesse obrigatoriamente certa atenção ritual.
Seus pais teriam rumado em direção ao objetivo inicial que colocara todo o grupo em
movimento: receber mantimentos que naquele período era distribuído nos portos por
determinação da coroa imperial.
Abandonadas à sua própria sorte, enterradas num ermo distante, a tragédia das
crianças permaneceria registrada na memória de Mãe Cândida, que época já tinha 10
anos e entendimento suficiente para compreender os acontecimentos. Am dela, o
episódio permanece vivo na memória local ainda que de forma subliminar. Embora
perdidas no meio do mato e inacessíveis a tantos interessados que lhe perseguiram, a
área ficou conhecida na comunidade como Covinhas. Foi notadamente pela voz dos
vaqueiros, personagens errantes e misteriosos que desbravam a terra inóspita à procura
de animais perdidos, que aquele espaço inicialmente ganhou vida: “encontrei nas
bandas das Covinhas”.
Na infância, Seu Bento ouvira por vezes a história contada pela avó, durante as
sessões de trancoso
115
ou ainda quando em resposta às interpelações dos netos: “vó, que
clarão é aquele que aparece aculá?”. O clarão, conforme Seu Bento, era a manifestação
do lugar das covas, era sinal prestidigitador do porvir daquelas terras
116
.
As covas estavam situadas no interior das terras que foram de seu bisavô, mas
que tempos depois fora vendida a diversos proprietários. Não intencionado pelas
Covinhas, mas por reconquistar as terras que outrora fora de sua família, Seu Bento
finaliza com sucesso a seqüência de compradores que se interessaram por aquelas
paragens da Sossego. Não imaginara àquela altura, em 1953, que quase trinta anos
depois aquele chão seria um divisor em sua vida e na da comunidade.
Quando cai doente, em 1980, Seu Bento, surpreendentemente experimenta a
visão das Meninas que ele ouvira falar desde a infância e, naquele momento, faz a elas
uma prece. Nos dias seguintes ele sofrerá as mais intensas dores e padecimentos e é por
115
Histórias que evocam um fabulário misterioso e temeroso.
116
Uma vez que ouvi de uma romeira fazer alusão à anterioridade narrativa de Mãe Candida, a
peregrina me explicava que a razão de aquele clarão aparecer nessas bandas era “as coisas de
Deus. As luzes apareciam aqui que era pra poder descobrir esse mistério”. Na percepção da
romeira, o mistério que sondava o lugar forçava à sua descoberta, todavia, é apenas com a
doença de Seu Bento que isso vai se concretizar.
181
meio deles que Seu Bento revive a tragédia das crianças: oito dias clamando por água e
sem poder tomar uma gota que fosse dela. Sucede-lhe, porém, de experimentar novas
visões, uma de ordem mais interventiva, quando as crianças administram-lhe cuidados,
enquanto a outra é de natureza mais prescritiva. A última consiste na clarividência das
coordenadas das Covinhas: a cova, a ipueira, as coisas de romeiro.
A voz da aàquele momento se assoma ao sonho reverberando a autoridade
de quem de fato conheceu, viveu o tempo da tragédia. “minha avó contava que quando
o tempo veio que o povo criava, o gado fizero razero(sic) no lugar onde as Meninas
morrero, então fizero uma ipuerinha”. Ninguém mais autorizado para atestar a
veracidade da história e oferecer os indicativos que orientam a identificação do lugar
que Mãe Cândida “Ela tinha dez ano. E ela contava a história. Num é uma coisa
inventada, o. Coisa de eu vi dizer, não.”. Do cruzamento das informações, Seu Bento
pode comparar o que lhe diz o discurso factual
117
da autoridade, ao lado da vívida
experiência do sonho. Com isso, ele, assim que retorna de Fortaleza, busca as Covinhas
e finalmente, após infrutíferas investidas de terceiros, chegar ao lugar ambicionado
E com aquela de que eu encontrava chamei duas pessoas e vinhemo
pra qui e eu encontrei. Do mesmo jeito da visão, de quando eu vi as
cova. Onde eu vi as coisas de romeiro... (SEU BENTO, entrevista,
2009)
Vencido o primeiro obstáculo, o de localizar fidedignamente o lugar das covas,
Seu Bento lança a estrutura que antecipa o santuário: o cruzeiro. O marco foi plantado
no local onde inicialmente ele pressupõe ser o da morte: “É porque lá eu encontrei umas
coisa de retirante. Ai eu fiquei imaginando será que elas morrero aqui?”. Com um
tempo, Seu Bento se apercebe de que havia mais adiante a cova, marcada pelas pedras e
então “eu vi que eles enterraram cá.”. Diante das duas referências, as coisa de
retirante e o monte de pedras, Seu Bento resolve-se por estabelecer dois marcos: um que
referencia as Meninas e que dá as bases para a construção da capela, enquanto o outro, o
cruzeiro, demarca a memória dos retirantes-pais que partiram para não mais voltar.
Os acontecimentos que seqüenciam a descoberta das covinhas são decisivos
para a constituição das Covinhas enquanto santuário propriamente. Ainda que
117
Factuais pois o testemunho da avó faz suas informações conquistarem esse status.
182
inicialmente a intenção e o compromisso de Seu Bento se limitem a fazer um cruzeiro e
construir uma cova, proporcionando dignidade e acompanhamento ritual àquelas que
ficaram abandonadas por tanto tempo, o descobridor sente-se chamado como alguém
em especial para fazer daquele espaço e sua tragédia algo muito maior.
É. Mas... Deus mostra. Ele manda na Terra e escreve por linhas tortas.
Porque ele eu fico pensando que naquele lugar uma mãe viu suas duas
filhinha morrendo de fome e sede na sua presença. Pai e mãe embora.
Enterraro aqui pra nunca mais... passaro cem ano, sem cistência
(emoção), aparecê uma pessoa que alcanço a graça. (SEU BENTO,
entrevista, 2009)
Seu Bento então assume o papel de um enviado que recebeu através do milagre
a incumbência de cuidar, zelar do local, mas para além disso, promovê-lo em toda sua
potencialidade. Não tarda, o conhecimento público do desfecho de sua doença
misteriosa ganha adesão, segundo ele, movida pela providência divina, uma vez que
sem ele chamar ou fazer qualquer propaganda começaram a aparecer os primeiros
romeiros. Esses, por sua vez se dispunham voluntária e despretensiosamente a
contribuir com a obra do santuário “Eu nunca fiz campanha aqui na cidade. Nunca,fiz
leilão, fiz bingo, nunca fiz nada. Isso aqui é uma romaria.”
Em pouco tempo aquilo que outrora fora um ermo, isolado e abandonado,
torna-se um dos focos de peregrinação das circunvizinhanças, o qual inclusive na sua
emergência era alvo de descrédito, sobretudo, da igreja.
O primeiro padre foi o padre de Portalegre que veio celebrá. Ai eu
tava cavando os alicece aqui. Ai vim mostrá a ele. Ele chegô, olho...
Disse: -Mas grande! Pra quê isso? Devia uma igrejinha mais
pequena!. Aconteceu que a primeira missa que ele veio celebrá aqui
na igreja foi ... ainda não tinha nem porta... quando ele chegou viu a
multidão. - E agora? Vou celebrar campal, que na Igreja não cabe. Eu
disse: - o senhor não disse que era pequena [emenda] que era grande...
Ele achou graça. Aquilo é porque ele pensava que nunca ia vim
ninguém aqui. (SEU BENTO, entrevista, 2009)
A compreensão do padre e sua percepção do lugar estavam duplamente
equivocadas. Primeiro, pela certeza que a experiência do milagre plantara no coração de
Seu Bento. Se as Meninas foram poderosas a ponto de lhe curar e usaram-no, por meio
da provação, para instituir aquele espaço, a razão óbvia era de que aquele seria um lugar
183
de êxito, um lugar de milagres. Por outro lado, do ponto de vista da evidência
conjuntural da atualidade do santuário, aquele padre talvez não pudesse imaginar a
envergadura popular que aqueles primeiros alicerces fomentariam, a tal ponto que hoje
o santuário se constitui um espaço de inflexão e disputa entre Seu Bento e a instituição
católica.
No processo de invenção da
tradição existe ainda um elemento
muito significativo do ponto de vista
da produção do culto e das relações da
piedade: refiro-me ao “retrato” (Foto
45) das Meninas que repousa afixado
na parede central do altar. O retrato é
uma pintura óleo sob tela, com
dimensões aproximadas de 50x80cm.
O quadro registra a imagem de duas
fisionomias femininas que emergem
em meio a um a paisagem alaranjada, flutuando acima de um monte de pedras,
encimado por uma cruz e um ramalhete de flores viçosas. Ainda compondo a cena está
um pote de cerâmica ladeando o monte de pedras.
O artista preocupou-se em produzir um efeito visual da paisagem, oferecendo
pela perspectiva a sensação de amplitude de uma campina limitada ao fundo por uma
densa vegetação espinhosa. Também como elemento do segundo plano está a gradação
de cores e a disposição de nuvens na parte posterior das figuras humanas, que permite
um efeito esfumaçado que remete a uma aura mística em torno das personagens ali
representadas. As figuras humanas pintadas pouco guardam de traços infantis a não ser
suas proporções, além do que seus cabelos finamente arrumados e os brincos que
emergem através das mexas do penteado, as faz distinguir da imagem de pobreza e
sofrimento que o mito evoca.
É, porém, no plano da paisagem e dos objetos retratados no quadro onde estão
representados os motivos que fazem ligar a obra ao martírio. Conforme me relatou Seu
Bento, o “retrato falado” que está na capela é obra de um artista de Fortaleza que
chegou às Covinhas logo nos primeiros momentos do santuário, acompanhando um
Foto 45 - Retrato falado das Meninas das Covinhas
(2009)
184
mecenas que lhe contratara o trabalho. A intenção daquele empresário cearense era
poder com a obra pagar uma promessa feita às Meninas. Nas Covinhas, porém, ficou à
cargo de Seu Bento descrever as personagens e caracterizar a paisagem em consonância
com as imagens que ele visualizara em sonho.
De acordo com o que viu oniricamente, Seu Bento, portanto, proporciona ao
artista a possibilidade de adensar sua produção a partir da inclusão do pote que é
integrado à cena, constituindo a metáfora pela qual é possível ler a condição de sede e
fome que vitimou as crianças. As flores, provavelmente, remetem à vida e à
permanência da memória das Meninas.
A composição apresentada foi alçada por Seu Bento na constituição do espaço
como a representação fidedigna (o retrato falado) das Meninas e do cenário que ele
vislumbrou em sonho. Como mostra Schmitt “o sonho foi um meio privilegiado de
legitimação dos indivíduos, dos lugares, das crenças religiosas e das práticas sociais”
(2007, p. 303). Assim, o que faz Seu Bento é usar seu sonho como elemento de
instituição de sentido na medida em que “um sonho não pode ser conhecido, não existe
verdadeiramente, senão pelo relato que se faz dele (SCHMITT, 2007, p. 304).
O sonho de Seu Bento e sua interpretação passam a compor a tessitura
imagética das Covinhas, a qual se esboça a partir do retrato auferido como o legítimo.
Essa avaliação é outro aspecto importante quando se considera que existem outras
produções artísticas também expostas
na parede, as quais também tentam
representar as Meninas e seu cenário,
todavia, essas produções são
consideradas ilegítimas, uma vez que
resultam da experiência de terceiros
que ou releram (Foto 46) a tela original
do retrato falado ou ressignificaram
(Foto 47) produções da indústria de
Foto 46 - Releitura do retrato falado das Meninas
(2009)
185
massa
118
.
Com a tela se encerram o
conjunto das produções iniciais,
todavia, outras estruturas se
acresceriam ao conjunto cova-
cruzeiro-altar que durante muito tempo
ocupara a cena do santuário. Não
obstante, como a invenção da tradição
não se produz num único momento,
mas é objeto de constantes
investimentos, a (re)invenção do
santuário se prolonga por toda sua história. Cabe nesse sentido, mencionar mais um
incremento inventivo do espaço para em seguida passar às considerações de ordem mais
simbólicas.
Anteriormente, nessa seção, eu defendi a idéia de que as Covinhas se
inserem ritualmente num arcabouço que chamei de continuum da piedade popular. Essa
inserção é decisiva para os desdobramentos inventivos que marcam a inovação do
santuário enquanto espaço e do culto enquanto prática, naquilo que Hobsbawn justifica
quando expõe que “inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações
suficientemente amplas e pidas tanto do lado da demanda quanto da oferta (2006, p.
12). Nesse sentido, entendo a constituição de uma sala de milagres como invento que
responde a um duplo pleito. Por um lado, para se completar no arcabouço do continuum.
As Covinhas, à exemplo de tantos outros santuários populares freqüentados igualmente
por seus romeiros, precisava de um espaço organizado para publicizar seus feitos e
acomodar as práticas que dele sucedem. Essa era uma demanda expressa pelos próprios
romeiros, que viam nas Covinhas esse ficit. De outra face, o acirramento da disputa
pelo santuário por parte da Igreja, termina por suscitar em Seu Bento, administrador do
santuário, a elaboração de estratégias defensivas/ofensivas. Nesse ínterim, emerge não
apenas a sala dos milagres, mas todo um conjunto de inovações e operações que
118
Vale destacar que foi esse o retrato utilizado pelos ciganos na confecção de suas camisetas, mas
embora eles tenham colocado a “imagem errada o que valia era o sentido”(Fernando Cigano, depoimento,
2009).
Foto 47 - Ressignificação de produção massiva
(2009)
186
cristalizam a racionalização popular do santuário, alvo de discussão no capítulo
seguinte. Enfim, do ponto de vista da inventividade do espaço e das práticas que a ele se
associam é possível concluir que esse é um terreno em constante produção.
Se do ponto de vista do espaço é possível falar numa invenção continuada da
tradição nas Covinhas, da perspectiva da apropriação e reelaboração mítica através das
operações dos sujeitos esse processo não é menos intenso tanto quanto é prolífico. A
constatação desse cenário é quase uma obviedade, basta considerar que o quantitativo
do público, a diversidade dos agentes, as motivações que os impulsionam e os interesses
que eles expressam em suas ações, todos juntos, esses aspectos evidenciam desde um
primeiro plano o caráter polifônico do santuário.
Analiticamente, a resignificação do mito, põem em evidência relações não
apenas do ponto de vista simbólico, mas sobretudo interfere no plano das formas de
percepção e nas disposições práticas que enredam o seu contexto de produção. Com
isso, aquilo que Sahlins (1994) chamou de reavaliações práticas do mito, ou muito
simplesmente, mitopraxis, constitui a possibilidade de atualizar sob novas bases, numa
conjuntura particular, o conteúdo que referencia uma dada estrutura mítica. Essa
possibilidade iminente resulta do confronto entre interesse e sentido:
As pessoas colocam, na ação, seus conceitos e categorias em relações
ostensivas com o mundo. Esses usos referenciais põem em jogo outras
determinações dos signos, além de seus significados recebidos, ou
seja, o mundo real e as pessoas envolvidas. A práxis é, portanto, um
risco para os significados dos signos da cultura (...) O risco subjetivo
consiste da possível revisão dos signos pelos sujeitos ativos em seus
projetos pessoais. [Isso porque] enquanto conceito [convenção] o
signo é definido por relações diferenciais com outros signos,
[todavia], o objeto simbólico representa um interesse diferencial para
diversos sujeitos, de acordo com a sua posição em seus esquemas de
vida. “Interesse” e sentido” são dois lados da mesma coisa, ou seja,
do signo, enquanto este é respectivamente relacionado a pessoas e a
outros signos. No entanto, meu interesse em algo não é igual ao seu
sentido. (...) Da maneira como o signo for posto em ão, ele estará
sujeito a outro tipo de determinação: aos processos de consciência e
inteligência humana. (SAHLINS M. , 1994, pp. 185-188)
Noutros termos, aquilo que Certeau (1994) propõem como um processo de
fabricação, de invenção, é, resguardadas as respectivas preocupações analíticas, aspecto
similar do que está denunciando Sahlins. Ainda que os signos, os produtos para o
187
consumo, sejam instituídos e convencionados, seu uso não é feito de forma equivalente
pelos diversos agentes e pelos diversos grupos. O que acontece em resposta àquela
produção primeira, convencional, é a elaboração de “outra produção, qualificada de
„consumo‟: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua
ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios,
mas nas maneiras de empregar os produtos impostos” (CERTEAU, 1994, p. 39).
São dois desses dispositivos ou apropriações, que observados durante a
pesquisa, tenciono a partir de agora apresentar. O primeiro é parte da invenção das
Covinhas sob a orientação de Seu Bento, enquanto o segundo diz respeito à apropriação
identitária das Meninas por parte dos ciganos.
A essa altura não é novidade alguma dizer que Seu Bento é o agente precursor
que as fisionomias iniciais do culto nas Covinhas, contudo, as bases sobre as quais
ele elabora todo um significado mítico e místico no interior de uma tradição, não se
encerra no momento de suas origens. As Meninas das Covinhas, nomenclatura pela qual
ficaram conhecidas as crianças-santas que enredaram inicialmente o lugar, são
personagens sem atributos ou referências maiores do que aquelas que as liga a uma
condição enraizada em um contexto social-histórico.
As crianças eram parte de um grupo de retirantes que buscava alternativas ao
flagelo da grande seca de 1877. Sem nome, sem referências genealógicas, sem origem
determinada e com um destino provável, um porto, essas crianças-santas ficaram
registradas na memória como sendo duas meninas que morreram na infância em
conseqüência da privação de comida e água, além da provável dificuldade de uma
viagem desgastante. Por suposto, as informações explicitadas na conjuntura que
contextualiza as personagens faz acreditar que elas deveriam ser parte de uma família
muito pobre, obrigada a migrar para sobreviver.
Ainda que pudesse ser um exercício interessante investigar e até mesmo
averiguar a facticidade dessas informações, compreendo que elas são tão ou mais
inteligíveis do ponto de vista da articulação de uma bagagem simbólica que essas
personagens carreiam do que propriamente da sua historicidade. Assim é que as
meninas-mártires como mencionei presentificam uma condição, em detrimento de
uma biografia(hagiografia). Sua história se confunde com a de muitos dos romeiros que
188
freqüentam seu santuário em dias de festa. Elas são pobres, sofridas, martirizadas,
oprimidas, vítimas tanto do flagelo, quanto da estrutura social e política desigual, uma
condição ainda ordinária do sertão nordestino. Morrer de fome e sede, portanto, longe
de uma excepcionalidade é uma condição concreta do existir para quem vive naquela
região.
As imagens e o valor da morte e da seca são, portanto, duas constantes que
atravessam uma identidade do ser sertanejo. É então, a partir dessa imagem, desse
vínculo de pertença que se inaugura uma nova forma de significar, de consumir a
narrativa das Covinhas, num novo processo de invenção. Refiro-me aqui propriamente
ao investimento discursivo fomentado por Seu Bento quando, a partir de 2007, lança o
“livro” do santuário (Ver Anexo A) no qual se registra em letras de destaque o novo
vocativo pelo qual ele nomina as Meninas (Figura 3).
Figura 3 - Capa do "livro" comercializado por Seu Bento e que conta a história das Covinhas
(2007)
À primeira vista, a mudança o parece tão significativa, uma vez que ao que
tudo indica na história do santuário jamais tenha existido uma unidade nominativa para
as crianças, tanto que ao realizar as enquetes ouvi referências há pelo menos três
variações: as Meninas, os Anjinhos ou as Inocentes das Covinhas. Essas terminologias
embora expressem significados mais ou menos densos do ponto de vista do seu valor
189
semântico e simbólico
119
, são em última instância vocativos que se enraízam na
localidade a partir de seu qualitativo designativo, “das Covinhas”.
Considerando todo o contexto de projeção do culto para além de suas fronteiras
originais e das estratégias que se produzem com esses objetivos, compreendo a
emergência do novo vocativo enquanto parte integrante e importante desse processo de
expansão, de (re)invenção e de ressignificação do mito. Assim, a mudança denotativa
não é um incremento trivial, mas uma estratégia abalizada em intenções mais ou menos
evidentes.
Quando situadas enquanto peregrinas, as Meninas evocam seu qualitativo de
fluxo, de deslocamento, mas diferentemente da condição de retirantes que enraíza um
estatuto profundamente humano, a noção de peregrino invoca fins propriamente
religiosos. Com isso, ser peregrinas é desde sempre se dirigir para uma condição de
santidade, cujo martírio celebra a culminância. Por outro lado, em mudando também o
adjunto, das Covinhas para da Seca, é possível cambiar implicitamente uma imagem
muito mais generalizada e aderente do ponto de vista de uma identidade regional, que
propriamente quando a menção recai sobre um lugar, as Covinhas. A transformação em
Peregrinas da Seca, enfim, permite associar santidade a identidade.
Mas se do ponto de vista da reelaboração mítica estão em cena interesses e
sentidos, é possível dizer que nas Covinhas não é a personagem de Seu Bento e seus
articuladores quem inova, reinventa. Os ciganos também filtram suas experiências a
partir de referências do seu próprio universo cultural.
Quando comecei a perceber que os ciganos constituíam um grupo que ganhava
destaque no contexto da romaria a primeira das questões que me veio à mente foi:
porque um grupo de ciganos se deslocaria desde comunidades relativamente distantes
para participar de uma festa dedicada a personagens nativos? Emendava essa uma
segunda questão quando descobri a procedência do grupo: sendo os ciganos em boa
parte oriundos de Florânia, porque estar em Rodolfo Fernandes quando na sua cidade
119
Por exemplo, “meninas é muito menos denso do ponto de vista simbólico do que
“inocentes”.
190
existe um santuário institucional estabelecido, o Monte das Graças, além de dois santos
locais
120
com relativa proeminência popular?
Uma pista muito interessante de ser explorada me apareceu sutilmente na fala
do líder do grupo numa conversa breve no alpendre da casa de Seu Bento. Antecipo de
antemão que embora tenha anunciado que falaria sobre os ciganos, muito pouco soube
deles nessa minha estada pela festa. Todavia, aquilo que Fernando Cigano me dissera
naquele dia me chamou a atenção e acredito merece registro, quem sabe para
explorações futuras.
Os ciganos chegaram nos últimos anos às Covinhas. A forma específica como
eles chegaram até me permanece uma nebulosa. Quando os questionei a esse respeito
recebi como resposta um enigmático “nós viemos através de Seu Bento que nos
recebeu”. Essa resposta pode levar a dois caminhos: um pelo qual Seu Bento nas suas
andanças teria cruzado com os ciganos e mobilizado um grupo inicial para participar da
festa. Ou ainda, essa alternativa eu acredito ser a mais provável, de que eles vieram por
intermédio de algum cigano da região que conhecendo o culto articulou outros membros
da comunidade a se achegarem. Suponho isso porque Fernando Cigano me afirmou que
eles sempre passavam por ali, mas não conheciam às Covinhas. O através de Seu
Bento”, então pode explicar simplesmente a acolhida que desde o princípio acontecera
nos domínios do anfitrião
121
.
Os ciganos têm uma identidade muito acentuada pela qual eles tanto se
autodefinem como costumam ser reconhecidos. Em geral, são duas as características
que esses grupos reclamam para demarcar suas fronteiras identitárias: a alusão a uma
ancestralidade nômade e o uso social de uma língua que vem desde às origens, o cale ou
calo (GOLDFARB, 2004). Ambos os traços embora ainda sejam decisivos para acionar
o conteúdo identitário dos grupos são características que adquiriram contornos novos
com a sedentarização das comunidades em cidades e a descontinuidade geracional do
uso da língua. As mudanças, porém, não comprometem a definição dessa identidade,
120
Refiro-me a Zé Leão e à Santa Menina. O primeiro, embora contemporaneamente esmaecido
fora um culto bastante organizado num passado não tão remoto. o culto à Santa Menina
permanece em evidência ainda que estabelecendo-se sob forte tensão com o culto de Nossa
Senhora das Graças que tem um intenso investimento institucional.
121
Ainda que no princípio a fizesse com certas restrições.
191
sobretudo, quando ela é pensada como produto de relações dinâmicas e que está em
constante processo de elaboração.
Ainda que não tenha dados substantivos para generalizar a presença de grupos
ciganos pelo sertão nordestino, trabalhos (GOLDFARB, 2004; SILVA L. F., 2009)
demonstram que algumas comunidades razoavelmente estabelecidas no sertão da
Paraíba e Ceará. Durante a pesquisa, tomei conhecimento também dessa outra
comunidade relativamente numerosa que habita diversos municípios do Seridó, ainda
que se concentrem de forma mais organizada em Florânia. A partir das constatações é
possível perceber que existe uma região de forte presença cigana que ocupa uma área de
intercessão entre os três Estados nordestinos. Disso é interessante notar que Rodolfo
Fernandes se localiza dentro da área de confluência, mesmo que não exista a presença
de qualquer grupo estabelecido por lá. O dado geográfico de distribuição dos grupos
pode indicar pistas para a chegada dos ciganos nas Covinhas, principalmente pelo fato
de eles manterem ostensivas redes de contato e comunicação.
O grupo que vai às Covinhas se define como uma grande família, mesmo que
agrupe ciganos de vários lugares. O que os move até lá é outro traço marcante do grupo,
a religiosidade. Portanto, eles encerram uma grande família piedosa, que cristaliza
organização e devoção na articulação da “Romaria para as Meninas da Covinhas
Peregrinas da Seca”
122
. Em decorrência dessa religiosidade marcante, os ciganos
costumam freqüentar muitas festas religiosas e santuários de peregrinação cristã,
todavia, eles dizem que foi as Covinhas o lugar que eles elegeram como destino
principal de suas atividades de devoção.
Nós temo duas cidades que agente visita também: é Canindé e
Juazeiro. Ave-Maria! Quando eu falo em São Francisco eu me
arrupeio todinho! Agora Juazeiro e Canindé agente vai mais assim...
muitos vão sozinho, isolado... Agora de romaria mesmo a gente temos
as Covinhas. Porque essas Menina é uma deusa na nossa vida, as
Meninas da Covinhas. Essas inocente sabe? Elas tem uma história
muito bonita. Porque antigamente ... Bento Honório sabe, que
antigamente não existia retirante. Naquele tempo não existia retirante.
Era cigano. (FERNANDO CIGANO, entrevista, 2009)
122
Conteúdo registrado na parte posterior das camisetas dos ciganos, bem como nos adesivos
que estavam afixados em seus carros.
192
Pela fala do líder do grupo é possível sutilmente identificar a razão da eleição
privilegiada das Covinhas para a participação organizada do grupo. As Meninas não
eram crianças quaisquer, mas crianças ciganas. É interessante perceber como essa
releitura do mito se processa a partir dos referenciais identitários do grupo. Assim,
compreendendo o nomadismo como característica marcante de uma ancestralidade
cigana, o grupo tende a perceber essa condição como traço exclusivo e emblemático do
ser cigano. Dessa forma, aquilo de identificá-las como retirantes constituiria um grande
equívoco, pois “naquele tempo” o que existia mesmo eram os ciganos, com sua vida
errante.
A participação cigana, portanto, realiza-se como uma forma de atualização
mítica na qual o grupo projeta seus valores e percepções, mas, por outro lado, a romaria
é também uma possibilidade concreta de fazer atualizar as referências míticas do ser
cigano. Assim, a romaria é a oportunidade de reunir o grupo deveras fragmentado sob a
forma de uma sociabilidade e um modo de vida ciganos que eles hoje não experimentam
mais. Dessa forma, eles não buscam hospedar-se em locais convencionais para esse tipo
de propósito, mas atualizam o modo cigano de ser, quando, em contraste com seu
cotidiano sedentarizado em casas e cidades, eles revivem a ancestralidade dormindo em
esteiras, sob a proteção das árvores, reúnem-se em torno de uma fogueira para comer,
divertir-se e conversar. É também a romaria o espaço de os ciganos velhos encontrarem
os novos, de poder contar as coisas da tradição e com isso manter viva a chama de uma
identidade. Enfim, a romaria dos ciganos mesmo definindo-se como um móvel religioso
faz cambiar de modo intenso uma espécie de sociabilidade que reforça uma identidade.
Assim, a ida às Covinhas funciona em última instância como uma forma de reforço
simbólico do que significa ser cigano.
Os estudos sobre as práticas sociais trazem para o cenário das Ciências
Humanas a riqueza da percepção acerca do entendimento de que não existe uma
linearidade entre produção e consumo. As razões para isso se processam com a
compreensão de que embora socialmente se constituam mecanismos instituintes e
repressores (controle), a atividade humana e as relações dos sujeitos na experimentação
cotidiana do viver são muito mais dinâmicas do que aqueles engenhos cristalizados
193
possam encerrar. É a partir dessa percepção, também, que se pode verificar os processos
de mudança que atualizam as estruturas e move-as para novas conjunturas.
Quando analisei as formas peculiares sobre as quais se assenta a produção das
Covinhas, desde os mecanismos simbólicos e as disposições práticas que circundam as
percepções culturais da morte e do morrer em cruzamento com o arquétipo religioso do
mártir-santo até algumas linguagens sobre as quais o espaço e as Meninas são
inventados e interpretados, tinha em mente apresentar uma apreciação que privilegiasse
o caráter polifônico e processual do culto.
Com efeito, embora a devoção se dirija a personagens reconhecidas
popularmente no santuário e até para além desse espaço, a forma como elas são
acionadas é desde sempre precária. O enredo apresentado como fundante é
constantemente alvo de reavaliações, de atualizações, as quais consideram referências e
interesses em jogo na situação da devoção de forma a engajar uma narrativa sempre
implicada em relações sociais. Disso resulta que a “mesma história” pode ser recontada
agregando novos sentidos em conformidade com expectativas daqueles que as contam.
Por outro lado, essa precariedade também se apresenta quando é possível
perceber que a devoção às Meninas das Covinhas é um produto inventado no sentido de
que sua emergência resulta de investimentos e operações muito concretas de sujeitos
envolvidos na sua promoção. Seu Bento, por razões óbvias de articulação, é agente
privilegiado nesse processo, todavia, o corpo de romeiros e outros sujeitos que se
integram à empresa são tão responsáveis quanto o administrador do santuário na
projeção do culto. As Covinhas, portanto, é um produto resultante de relações que
colaboram cada qual à sua maneira de forma a definir as diversas fisionomias que a
devoção costuma assumir.
A polifonia, todavia, não é característica reservada às especulações que se
ligam à promoção e interpretação, mas constitui uma faceta pública de por em cena as
visões contrastantes que se tem acerca do santuário, das Meninas, do papel de Seu
Bento e das disputas pelo controle do espaço. É no âmbito desse conflito, por vezes
microscópico, por vezes público, que o próximo capítulo encerra a análise da devoção
explorando as vozes do santuário e os processos delas resultantes.
194
7. INTERESSES E MUDANÇAS: OS SUJEITOS EM CENA
Durante todo o tempo que acompanhei a festa duas coisas sempre me
chamaram a atenção: a prevalência de uma participação de romeiros de fora da cidade
de Rodolfo Fernandes e a circunspecta participação do padre, além das contumazes
acusações públicas que ele dirigia freqüentemente a Seu Bento. Com o desenrolar da
pesquisa percebi que aquelas questões, especialmente a última, eram alvo constante de
análise por parte dos romeiros que freqüentam as Covinhas no dia 12 de outubro e sua
presença contribuía para revelar que aquele espaço não é percebido apenas como um
lugar de milagres e comunhão fraternal, mas como um campo aberto de conflito.
Apresentarei inicialmente nessa seção final as vozes do santuário, registrando
um pouco do que vi e ouvi dos romeiros, de Seu Bento e do discurso do padre. Num
segundo momento, apresento as repercussões que essas vozes cristalizam na prática do
santuário tanto como mudança quanto como expectativa.
7.1. As vozes do santuário: Seu Bento, o padre e os romeiros
Minha primeira ida às Covinhas não foi em período festivo. Nesse encontro
inicial pude conversar com Seu Bento que me ofereceu uma visão “operacional” do
santuário. Ele mostrou o espaço e aquilo que significava cada coisa, além de ter me
colocado a par do que os romeiros costumam fazer, trazer, enfim, viver na festa.
Quando o argúi acerca das atividades que aconteciam na capela, ele me informou que,
em geral, eram coisas ligadas às promessas e aos romeiros, ainda que vez ou outra o
padre celebrasse por lá. Afora isso, noutro momento do encontro, Seu Bento me
proporcionara uma visão idílica do santuário e da festa como o momento de encontro
dos romeiros, quando todos, além de iguais, estavam ali num mesmo propósito de bem e
milagre.
A imagem que Seu Bento me oferecera contrastava suavemente com outras
informações que embora circunstanciais me alertavam para um olhar crítico em relação
195
ao que o anfitrião me dissera. Antes de chegar ao santuário, naquela incursão primeira,
circulei um pouco pela cidade, notadamente por alguns estabelecimentos comerciais.
Nessas oportunidades, aproveitei de forma desinteressada para puxar conversa sobre o
santuário. Embora breves comentários, percebi que as Covinhas não era um lugar tão
idílico como dizia Seu Bento, além do que as percepções sobre o administrador e sua
atuação eram freqüentemente mal avaliadas por uma parcela de moradores da cidade.
Depois desse encontro, apenas em 2006 participei da festa. Algumas coisas que
Seu Bento me dissera quando da visita observei in loco naquele ano. Porém, muitas
outras questões, sobretudo aquelas que envolviam alguma forma de conflito, só as pude
encontrar a partir da segunda data e não demorou muito para que elas aparecessem.
No caminho do santuário, ofereci uma carona a uma dupla de romeiras que se
dirigia para as Covinhas carregando uma porção de filhos cada uma. Quando perguntei
se elas costumavam vir com freqüência à festa, uma delas mais adiantada foi logo
respondendo. Ela me informou que costumava vir por causa das Meninas, pra quem
tinha feito promessa, e também por causa dos filhos, que gostavam de receber presentes,
entretanto ela achava que tinha “muita coisa errada ali”. Antes que eu precisasse
perguntar o que significava aquela “muita coisa errada ali”, ela me respondeu
espontaneamente o que eu queria saber através de um breve comentário do meu marido
acerca da qualidade da estrada
123
. Nas palavras da romeira, Seu Bento ganhava muito
dinheiro todos os anos com aquela festa e aquilo que o povo dá” ele não aplica nas
Covinhas, para melhorar nada, mas apenas em benefício próprio. Com o comentário,
não precisava mais que eu perguntasse qualquer coisa. A fala da romeira se somou
nesse instante ao conjunto de outras vozes que ouvira na cidade e que eu escutaria
repetidas vezes em anos seguintes por outros interlocutores.
Nos primeiros instantes que cheguei às Covinhas me ocupei de conhecer o
santuário em funcionamento e percebi que embora houvesse um altar preparado para a
celebração da missa, o padre aindao estava por lá. Quando ele chegou, não demorou,
tratou logo de dar início à solenidade. A missa transcorreu liturgicamente em sua
normalidade, todavia, foi do ponto de vista do conteúdo do discurso que entendo
algumas coisas merecem ser destacadas.
123
Que estava um pouco melhor em relação ao ano anterior.
196
Antes de explorar esses pontos é importante dizer que 2006 foi o ano em que o
discurso do padre foi mais ameno em relação às críticas e menos direto em relação aos
cuidados pastorais. Nos anos seguintes, os ânimos se acentuaram e com isso, as
acusações passam a compor um repertório que nitidamente evidencia a explosão de um
conflito.
A primeira questão a se destacar na participação do padre é que ele raramente
menciona as Meninas das Covinhas em seu discurso. Desde o início da celebração o
sacerdote ressalta que aquela missa é realizada em homenagem à padroeira, Nossa
Senhora de Aparecida. Assim, é apenas no fim da missa, quando alegoricamente o
presbítero convida a uma saudação às Meninas que as anfitriãs são lembradas. Essa
forma de tratamento dedicado ao culto e seus freqüentadores longe de ser exclusiva
daquele ano foi atitude recursiva nas festas seguintes. Embora estando nas Covinhas no
dia da festa das Meninas, os padres evitam fazer qualquer alusão às crianças, sob pena
de com isso reforçar uma forma de piedade que institucionalmente eles tentam demover,
ou mais propriamente, transformar.
No fim das contas, embora carreando um público que poucas outras
manifestações religiosas da região conseguem congregar, alguns aspectos da piedade e,
sobretudo, os contornos de seus personagens e eventos (as Meninas, Seu Bento e os
milagres) são bastante controversos do ponto de vista do controle institucional. Desse
modo, não sendo as Meninas santas oficiais, como tampouco elas não se enquadram
propriamente no modelo de santidade que a Igreja atual almeja, não é interessante para a
instituição fomentar aquele tipo de devoção. Todavia, sendo definido pelos romeiros e
pelos contornos da piedade como um culto católico e considerando suas dimensões, a
Igreja enquanto instituição não pode se furtar a estar próxima, do contrário, pode
favorecer a emergência de movimentos que fujam por completo ao seu controle.
Foi a partir dessa preocupação que gravitou o discurso do padre em 2006,
quando ele fez questão de reforçar a necessidade de obediência ao papa, ao padre e à
instituição: “vamos seguir, acompanhar de fato as orientações que o padre nos diz”.
Assim, é que “para realizar qualquer celebração é preciso ter autorização expressa do
padre. Ninguém pode sair por ai celebrando, batizando, casando se o for o padre ou
alguém recomendado por ele”.
197
A preocupação do sacerdote naquele ano, embora se voltasse para os cuidados
pastorais com as Covinhas e com o tipo de culto e práticas que ali se processavam,
estava especialmente dirigida para um fenômeno” que percorrera os rincões do Rio
Grande do Norte na figura dePadre Xanduzinho”
124
e que deixou seguidores com forte
atuação no Estado. A Igreja Católica Apostólica Brasileira (ICAB)
125
conquistara
especialmente através de suas práticas sacramentais dissidentes a adesão de muitos
católicos, notadamente no interior do RN. A questão mais grave do ponto de vista
institucional é que a ICAB ao apresentar uma liturgia e hierarquia similar à Igreja
Romana, além de não se preocupar na sua atuação em distinguir-se da confissão de onde
se apartara, tendia a confundir seus fiéis, os quais compreendiam a religião sectária
como parte da Igreja Romana. Essa conjuntura durante muito tempo ocupou as forças
do clero católico romano no Rio Grande do Norte, no sentido de desembaraçar e
combater a confusão.
Mesmo que o foco do sermão tenha se dirigido de forma mais direta para a
distinção entre as duas instituições e suas práticas, no discurso do sacerdote havia uma
mensagem subliminar que era extensiva às Covinhas. Embora não tencionando fundar
uma religião propriamente, o que Seu Bento fazia nas Covinhas era uma forma de
desafiar a autoridade da Igreja. Ao promover as Meninas à condição de santas
milagrosas e organizar um santuário destinado ao seu culto, o que Seu Bento
representava era uma ameaça, sobretudo, quando sua mensagem e seus propósitos
tinham a adesão de um público massivo. Foi nesse sentido, então, que o sacerdote
encerrou o seu sermão naquela missa destacando que a única e verdadeira cristã é
aquela que se volta para Maria, para Jesus e para a Igreja”.
Antes de concluir a missa o padre consultou a multidão acerca da vontade de os
romeiros em contar com a presença do Bispo durante a celebração da festa. Os romeiros
124
Alexandre Martins de Carvalho(1911-1995) fora seminarista do Seminário São Pedro da
Arquidiocese de Natal, mas abandonou essa profissão de fé para tornar-se o primeiro sacerdote
da Igreja Católica Apostólica Brasileira - ICAB no Rio Grande do Norte. Xanduzinho ficou
muito conhecido, sobretudo na região de Assu onde dirigia uma paróquia. Sua fama se espalhou
por muitas cidades, sobretudo porque, em consonância com os preceitos de sua confissão, ele
administrava sacramentos com exigências bem menos disciplinadas que aquelas requeridas pela
Igreja Católica Romana. Assim, por exemplo, inúmeros foram os casamentos de desquitados
que Xanduzinho celebrou no RN (MEDEIROS FILHO, 2002).
125
Igreja cismática, fundada em 1945 por Dom Carlos Duarte, conhecido por Bispo de Maura.
198
ovacionaram a sugestão e o padre comprometeu-se em fazer o possível para viabilizar
sua vinda. No dia anterior, quando conversei com Seu Bento, ele me dissera que o
Bispo não celebra nas Covinhas porque não tem energia”, mas o prelado havia
afirmado ao padre que quando a energia chegasse, ele viria. Essa “promessa” é
importante porque ela irá aparecer noutras situações de festas subseqüentes, no entanto,
até 2009 ela nunca se cumpriu.
Após a participação do padre, o altar foi ocupado por Seu Bento em sua
tradicional performance. Sem maiores contratempos, a festa se encerrou. Naquele
momento, não podia imaginar que a partir do ano seguinte as configurações iriam
mudar, bem como as palavras do padre agregariam maior contundência e a defesa de
Seu Bento se tornaria mais pública. Digo mais pública, pelo fato de que Seu Bento é
conhecedor das inúmeras críticas a ele dirigidas, todavia, ele costuma rebater as
acusações em escala mais pessoal, no corpo-a-corpo com os romeiros. Em 2007, porém,
essa estratégia foi diferente.
Em 2007, a missa foi antecipada para as nove horas da manhã. Desde cedo, o
altar defronte a capela estava montado, mas nesse ano não havia a cobertura habitual da
tenda. O padre quando começou a celebração a iniciou desfechando críticas diretas à
administração do santuário: “esse ano querem o padre aqui, mas não colocam nenhuma
cobertura para a gente ficar debaixo”. A essa, muitas outras se desdobrariam ao longo
da missa, que foi pontuada de reclamações acerca da estrutura precária que é oferecida
para a celebração e para os romeiros que vêm até as Covinhas.
O evangelho lido na missa daquele ano foi o trecho de João, capítulo II,
versículos de 1 a 11, no qual se registra o episódio das Bodas de Caná em que Jesus
transforma água em vinho. A narrativa enfatiza a apresentação do primeiro milagre de
Jesus, ao mesmo tempo em que demonstra a liderança de Maria ao determinar aos
garçons que serviam na festa a “fazerem tudo o que ele disser”. A partir desse contexto
presente na liturgia é possível compreender as palavras do sacerdote em seu sermão
daquele ano:
O evangelho dizia claramente que o primeiro milagre de Jesus
aconteceu não pros convidados, mas na presença de Maria. Ela
testemunhou esse milagre de Jesus. O primeiro milagre. E quantos
outros milagres ocorreram e aconteceram na vida do povo que
crê? Do povo que sofre? Do povo que é judiado, como aqui está sendo
199
judiado mais uma vez com a falta de sombra. Com a falta de estrutura
para proteger esse povo que vem caminhando ai de madrugada, a pé,
no sol, na poeira. Mas é a que arrasta. É a fé que faz com que vocês
aqui venham para cumprir com a sua devoção, fazer os seus votos e
cumprir com as suas promessas. (SACERDOTE, discurso da homilia
da missa, 2007)
Pela fala expressa do sacerdote está manifesta a emergência de uma tensão que
se potencializa ainda mais ao longo da celebração com as críticas que se voltam para a
organização do evento. Essa postura provocativa do padre embora tenha se avolumado
devido a “questões técnicas”, como a ausência da tenda e a qualidade do som, reflete a
acentuação de uma guerra deflagrada entre a Igreja e Seu Bento, quando a primeira
passou a solicitar ostensivamente que o proprietário das terras do santuário transferisse
para a diocese o controle das Covinhas. Entretanto, Seu Bento é irredutível na posse do
santuário, ainda que ele use outros subterfúgios para demarcar sua posição. É então,
nesse cenário de confronto, que Seu Bento ocupa o altar após a missa. Assim, naquele
ano, ele não contou a história das Covinhas, mas respondeu às críticas do padre
desferindo também uma série de acusações:
Eu aqui... mandei fazê 1000 livros que eu to vendendo a R$ 3,00
que é pra comprá telha, tijolo, pra mandá faze isso aqui. [aponta para a
obra de expansão do galpão]. Isso aqui não foi cobertura de
empresário, não! Aqui, o que se gastô...eu vim falá dos rumeiros que
me ajuda, não é empresário. Aqui quem me ajuda, o que tem aqui o
é meu não! Essas coisa é dos rumeiros. Esse galpão é dos rumeiros, é
das Meninas das Covinhas. Isso aqui não é nada arranjado com
prefeito. É com os rumeiros. É quem tem o prestijo aqui. Que me
ajuda, me três real, me cinco, me dez e eu fico juntando esse
dinheiro pra fazê a cubertura. Num é falá, dizê que o povo sofre,
mas com esse sofrimento nós vamo vencê. Eu fazê a cobertura [a
cobertura do galpão para acomodar os romeiros durante a missa] (SEU
BENTO, discurso, 2007)
Após a réplica, Seu Bento também expõe no discurso o conflito com a Igreja:
Ninguém venha dize aqui pur amor de Deus... Quem manda aqui é os
rumeiros. Essa igreja não é minha, não! É minha participação, é dos
rumeiros. Esse galpão é dos rumeiros. Aqui teve uma vez que o pade
vei falá de passá a escritura pra diocese. Eu disse que num pudia passá
que isso aqui é dos rumeiros, é das Meninas, pois então que elas
viesse passá a escritura. Isso aqui é dos rumeiros e eu não posso
assumir essa responsabilidade. (SEU BENTO, discurso, 2007)
200
Como forma de prestar contas de sua atuação e rebater mais uma vez as
acusações do padre Seu Bento prossegue:
Pode ignorá, mas nós vamo vence. Quando eu cheguei aqui só tinha as
cova cuberta de pedra. Hoje eu vejo um galpão, um cercado, vejo
energia chegando aqui.... E é aqui com os rumeiros, o é um
empresário que veio ajudá aqui não. Aqui é romaria! (SEU BENTO,
discurso, 2007)
Nesse ano a festa se encerrou em meio a um clima muito tenso. Não pelos
ânimos exacerbados dos dois personagens públicos, mas principalmente pelas
repercussões que os discursos suscitaram nas avaliações dos romeiros. Existiam aqueles
que se posicionavam favoráveis ao padre, concordando que tudo o que ele dissera era
verdadeiro, pois Seu Bento angariava muitos recursos e “estava sempre pedindo a um e
a outro”, contudo as coisas nunca mudavam. Tudo continuava igual ou com mudanças
pouco significativas: “E o que é que ele [Seu Bento] faz com esse dinheiro? Esse era
sempre o argumento dos adversários do administrador. Uma vez que praticamente a
totalidade dos recursos (esmolas, ofertas) era arrecadada por Seu Bento, como se
justificava nunca haver melhorias substanciais no santuário? A resposta dos contentores
era acusar Seu Bento de aproveitar-se da bondade e generosidade, além da inocência, do
povo para beneficiar-se. O santuário, para os antagonistas, era no fim das contas uma
mina de riqueza, da qual Seu Bento não queria abrir mão.
Por outro lado, aqueles que defendem Seu Bento considerando que ele fora
quem começou a obra e deu todo o seu esforço e suor para que o santuário se
concretizasse enquanto um empreendimento de sucesso como ele é hoje. Dessa forma,
nada mais justo que ele continue administrando o espaço. Para esses partidários, as
denúncias de quem é contra Seu Bento” partem sempre de quem é ou adversário
político do anfitrião ou de alguém que quer se aproveitar da obra que ele construiu. A
última apreciação recai em geral sobre o sacerdote, que segundo um romeiro de Itajá,
explica a disputa dele com Seu Bento como “ambição do padre”. Na primeira situação,
porém, se enquadram relações para além do santuário.
A disputa que acontece nas Covinhas, embora veiculada freqüentemente a
partir de argumentos que se querem religiosos, faz transbordar questões muito mais
201
extensas, pois se por um lado existe o interesse da Igreja em controlar o santuário para
efeito de organizar a devoção e de circunscrever os limites da piedade, por outro a
querela também precisa ser vista enquanto cenário que põe em evidência as diferenças
dos grupos políticos que dividem a conjuntura da cidade de Rodolfo Fernandes.
Embora não tenha investigado com mais profundidade a história e as relações
políticas do lugar é importante que se registre que Seu Bento é uma das mais ativas e
antigas lideranças políticas de Rodolfo Fernandes
126
, figurando como candidato a cargos
eletivos ou atuando como apoiador local em todos os pleitos eleitorais desde a
emancipação política do município. Com histórico similar figura seu grande adversário,
o senhor Francisco Germano Filho tornado um mito na região por ser considerado o
homem que se manteve por mais tempo no poder de uma municipalidade
127
no Estado
do Rio Grande do Norte.
A história política da cidade, portanto, esteve sempre marcada pela oposição de
dois grandes e acirrados grupos, um encabeçado por Seu Bento, enquanto o outro se
manteve sob a liderança de Chiquinho Germano. Considerando essa conjuntura, é
possível entender o porquê de a festa das Covinhas ser um evento que congrega tanta
gente de fora em detrimento daqueles mais próximos, da sede, por exemplo. Os grupos
que emulam o poder na cidade constituíram-se ao longo dos anos não apenas como
adversários, mas como rivais, no sentido mais denso que a palavra possa acumular.
Nessa medida, aqueles que se encontram no grupo antagônico a Seu Bento têm forte
tendência a não freqüentar as Covinhas, pois vêem na festa uma extensão dos domínios
do adversário. Enquanto inimigos ferrenhos, portanto, os grupos se evitam.
A disputa é o acentuada que pelo menos em 2006 e 2007 a prefeitura sob a
gestão de Chiquinho Germano desenvolveu na sede de Rodolfo Fernandes um evento
destinado às crianças da rede escolar pública do município, no dia e hora da festa das
Covinhas, o qual contava com atividades culturais além de distribuição de presentes.
126
Mesmo já contando 87 anos de idade.
127
quase cinqüenta anos Chiquinho Germano, como é conhecido na região, se mantém na
liderança política da cidade, tendo sido eleito prefeito por cinco mandatos, além de ter
conseguido eleger mais cinco outros candidatos que o sucederam. Seu último mandato
encerrou-se em 2008 e sua atual sucessora foi por ele apoiada.
202
Não é necessário se esforçar muito para entender essa estratégia como forma de se
contrapor ao que acontece no santuário.
A altercação iminente que se registra no cenário político local é potencializada
com as investidas dos padres em sua persuasão popular desde o altar. No ano de 2008, o
sacerdote fez questão de repetir algumas vezes que aquela capela não era da “Igreja” e
por isso é que ele vinha celebrar uma vez por ano ali, por razões maiores, quais
sejam, as de não deixar os fiéis (inocentes) descobertos. A contumácia do discurso que
destacava o descolamento institucional do santuário, me parece, se registrava pelo
agravamento das relações entre os interesses de Seu Bento e da Igreja. Assim, embora
apenas suspeite disso, acredito que havia um intercâmbio maior do padre no santuário
até 2006, quando ele podia celebrar na capela em outras datas a convite de devotos que
pagavam promessas. Contudo, acredito que fora a partir dos episódios da última festa
que algumas mudanças se processaram, sobretudo, porque se introduzira um novo
clérigo que encarava a devoção com muito mais circunspecção e as práticas com mais
rigor, além do que claramente com uma visão muito mais ambiciosa de ocupar aquele
cenário.
Nesse ano o sermão fundamentou-se na leitura de Apocalipse, capítulo 12, no
qual através de uma linguagem metafórica é apresentado o combate entre uma mulher e
um dragão. São inúmeras as formas de interpretar essa metáfora, mas a escolhida pelo
padre naquele 12 de outubro se dirigia especialmente para Seu Bento. No texto uma
passagem na qual se relata que após uma batalha no céu travada entre Miguel e seus
anjos contra o Dragão e seus anjos, o segundo grupo prevaleceu e precipitou-se sobre a
terra. Essa confraria na verdade congrega Satanás e sua legião de demônios. Usado
como artifício retórico mais forte no seu discurso, o padre explora a presença do diabo
no mundo, tanto como sedutor quanto como enganador. E para ser ainda mais preciso
ele dizia que muitas vezes esse diabo se apresenta na forma de “falsos profetas que
agem no mundo enganando a fé do povo”.
Não seria preciso dizer mais nada, a mensagem havia sido recepcionada
pelos romeiros e um burburinho se instalou entre os presentes, ainda que não tenha
ganhado maiores proporções devido à observância aos encaminhamentos litúrgicos da
celebração. Nesse dia encontrei Seu Bento momentos após a missa, mas ele ainda
estava notavelmente incomodado com as duras palavras do padre. Mesmo discordando
203
do que acabara de ouvir, Seu Bento não subiu mais a tribuna a partir daquele ano, nem
para contar a história das Covinhas, tampouco para se defender. Mesmo assim ele
recriminava e rebatia as acusações do sacerdote no corpo-a-corpo.
Em 2009 o discurso foi mais ameno, ainda que mais ardiloso. Provavelmente,
repercussões negativas acerca do discurso anterior fizeram com que o padre procurasse
outras estratégias para ganhar terreno em sua empresa de conquista das Covinhas.
Assim, nesse ano a mensagem se voltou para a importância da missa e a centralidade da
eucaristia. O padre se dedicou expressamente a distinguir aqueles que se entregam às
coisas do mundo daqueles que participam da missa e com isso ele almejava encontrar
um argumento para motivar parcela significativa de público que permanece dispersa
durante a celebração eucarística. Mais de uma vez, então, o sacerdote convocou os
freqüentadores das barracas a se aproximar para a celebração, convite, porém que não
atingiu o sucesso esperado. Ainda nessa festa foi o momento em que mais publicamente
se disputou os recursos trazidos pelos romeiros, como apresentei numa seção anterior.
A descrição dos conflitos e discursos empenhados pelos diferentes sujeitos no
curso da festa não encerram as repercussões que interesses em jogo estimulam. Para
além daquilo que se diz ou se comenta, existem estratégias e intervenções que
redefinem as características e estruturas ligadas ao culto, configurando, a ação do
discurso. É sobre isso que me detenho a seguir.
7.2. O discurso em ação: as promessas do padre e a racionalização
popular do santuário
Os dois últimos anos que estive em campo foram férteis do ponto de vista da
emergência e implementação de mudanças em relação às atividades e espaços do
santuário. Esses movimentos precisam ser pensados como resultantes de um processo
dialético que põe em relação vários sujeitos e seus interesses. Inevitável, portanto, é a
emergência de conflitos e a busca por estratégias que correspondam às demandas
implicadas nas conjunturas. Inicialmente vou apresentar algumas dessas táticas que
204
foram postas em curso pelo padre. Em seguida, mostro as inovações e mudanças
articuladas por Seu Bento.
Mais de uma vez afirmei que a participação do padre não se de outro modo
que não aquele de um visitante especial. O sacerdote não tem poder para intervir nas
atividades do santuário a não ser naquelas mesmas que estão sob o seu controle: os
serviços sacramentais. Assim, foi que progressivamente os sacerdotes que se sucederam
na execução da missa nas Covinhas começaram a introduzir sutis modificações na
programação da festa como a alteração do horário da celebração. Embora essa questão
tenha se justificado tendo em vista um maior conforto para os presentes, haja vista o
calor causticante que marcara a missa celebrada às dez horas em 2006, do ponto de vista
das operações dos padres essa foi uma manobra que significou uma inicial forma de
empoderamento deles no santuário. Ao mudar o horário da missa o padre mostrava para
os romeiros que ele também tinha poder de fazer algo, ele também era agente decisório
no curso dos acontecimentos nas Covinhas. Com a mudança também o que é um
relativo encurtamento da permanência dos romeiros no santuário, haja vista que eles
programam sua viagem a partir da referência temporal da missa.
Outro aspecto importante é que, em razão de suas promessas, muitos dos
romeiros se comprometem com as Meninas de mandar rezar missas ou receber algum
sacramento, de maneira especial o batismo, na capela das Covinhas. No primeiro caso, o
padre é taxativo, celebra missa ordinariamente nas Covinhas quando a capela passar
para o controle da paróquia, do contrário, só em dias de festa, em atenção aos romeiros.
A segunda situação é mais estratégica. Tal como a missa, o padre se recusa a batizar ou
casar nas Covinhas, todavia, com a abreviação do horário da missa criou a possibilidade
de oferecer esses serviços na igreja matriz de São José, na sede de Rodolfo Fernandes.
Assim, quando a missa é concluída ele anuncia que está indo para a matriz realizar os
batizados.
Dentre as estratégias do padre existe outra que figura recorrentemente no seu
discurso, mas que até 2009 não aconteceu. Como artifício para buscar valorizar a
presença da Igreja na festa, os padres prometem que vão trazer o Bispo da diocese para
celebrar nas Covinhas. Com esse estratagema o padre planta expectativas no povo, que
embora não se preocupe diretamente com o estatuto do culto (se oficial ou não) na
presença do Bispo um reforço de autoridade na plausibilidade da piedade. Essa
205
promessa do padre, entretanto, é sempre vista com circunspeção, uma vez que ela foi
reincidentemente frustrada.
Por último, aparece não uma, mas um conjunto de mudanças pelas quais sua
realização significaria uma guinada radical no roteiro das atividades do santuário. Em
2009, o padre propôs inicialmente que fosse celebrada uma missa às seis horas da
manhã na matriz e que os romeiros viriam em procissão, acompanhados pelo Bispo, até
as Covinhas. Talvez por perceber que a proposta radicalizara demais a vivência ritual do
santuário e dessa forma não fora bem acolhida pelos presentes, no fim da missa houve
uma inversão de planos. Os romeiros se encontrarão nas Covinhas e de seguirão em
procissão até a cidade. Aparentemente, essa programação ficou acordada, mas será
apenas em outubro de 2010 que se poderá avaliar a repercussão de sua instituição. Me
intriga saber: quem vai estar no andor?
O conjunto de intervenções e promessas que o padre vem realizando na festa
demonstra que esse é um espaço em transformação. Mas esse movimento não acontece
de forma isolada. outra frente organizada que ao mesmo tempo em que institui,
também confronta, compondo o cenário de um processo em intensa atividade.
Noutra seção situei as Covinhas como participante de um repertório que faz
ligar o santuário a um continuum da piedade popular. É a partir dos conteúdos desse
universo que se situam as principais mudanças implementadas por Seu Bento no
santuário desde 2007. Chamo esse processo de racionalização popular do culto por
entender que essas mudanças não são fenômenos circunstanciais, mas estratégias
razoavelmente articuladas que têm como objetivo situar as Covinhas enquanto um
santuário que se integra plenamente num estatuto, o de um santuário popular, bem como
a partir disso assegurar a sua projeção.
Percebendo de forma processual essas mudanças, também é necessário -las
de maneira relacional, ou seja, é possível dizer que as transformações refletem em parte
a disputa com o padre, mas o lhe são determinantes. Para além da controvérsia que
obriga Seu Bento a reforçar suas estratégias de fixação no santuário e assim legitimar
seu papel de administrador privilegiado, as mudanças/inovações são também uma
espécie de resposta às demandas concretas e simbólicas dos romeiros. Buscarei,
portanto, mostrar essa seqüência a partir de uma cronologia.
206
Com efeito, não posso afirmar que 2007 foi o período em que a racionalização
começou a acontecer, mas essa data funciona para mim como parâmetro comparativo,
uma vez que 2006 foi minha inauguração das Covinhas. Duas mudanças significativas
aconteceram nesse ano: a primeira, que mencionei várias vezes, é a produção do
“livro” das Covinhas e a outra é a introdução de um livro de registro deixado sob o
altar.
Com o livro das Covinhas, além das razões pecuniárias óbvias que por si
justificavam sua produção, existem pelo menos três outros aspectos que sua veiculação
implica. A primeira delas é que com o livro tornou-se mais “massiva” e
“descentralizada” a divulgação da Meninas, do santuário e, especialmente, do milagre
de Seu Bento, considerando que esse é o principal teor do panfleto. Com a circulação
desses impressos, a divulgação das Covinhas que antes dependia imensamente dos
esforços e deslocamento de Seu Bento, o qual realizava um trabalho corpo-a-corpo de
abrangência restrita, agora pode ser feito de forma mais difusa, além de prescindir da
presença do comissário.
Por outro lado, a introdução do livro também responde em parte a razão de Seu
Bento ter abandonado o altar e sua performance tradicional, haja vista que com o livro,
além de vender sua história, ao invés de contá-la, ele pode economizar suas energias
pessoais empenhadas nos episódios performáticos. Afora esses, a relativa “segurança”
de um texto escrito, notadamente não redigido por Seu Bento, permite um desgaste bem
menor do ponto de vista das avaliações de plausibilidade às quais sua performance lhe
expunha.
A terceira e talvez menos intencional de todas as questões ligadas ao livro é
que seu ingresso na rotina do santuário favoreceu a sua apropriação por parte de alguns
romeiros como uma espécie de “relíquia”, que faz ligar de forma mais intensa as
Covinhas ao cotidiano das práticas desses sujeitos em suas vivências domésticas.
Assim, ouvi de algumas romeiras que adquiriam o santinho das Covinhas” que elas
iriam colocá-los em seus altares domésticos para não se esquecerem de rezar pelas
Meninas.
Sobre o livro de registro não estava explicitamente claro qual o objetivo
daquele volume, entretanto, à critério dos próprios romeiros eles o usaram tanto para
207
anotar milagres, graças, pedidos e depoimentos, como para registrar sua presença
conforme fosse uma lista de assinaturas. Ainda que embaraçada a sua finalidade é
importante situar essa inovação como a precursora de uma onda de investimentos que
tem por foco a evidenciação do santuário e seu público, bem como dos milagres que ali
se realizam. A culminância desse investimento último, como demonstro, será
corporificada na instituição da sala dos milagres.
No ano seguinte continuavam presentes o livro das Covinhas e o livro de
registro, ambos razoavelmente estabelecidos como parte do repertório do santuário.
Todavia, o que se processou de novidade naquela festa foi a experimental e polêmica
transferência do local de acendimento de velas, objeto de descrição detalhada
anteriormente. Sobre esse deslocamento cabe comentar que além de uma preocupação
evidente com a segurança do culto, sua motivação inseria-se na mesma onda que linhas
atrás referi como sendo aquela que justifica a introdução do livro de registro.
2009 foi o ano mais prolífico da racionalização. Depreendem-se desse período
três aspectos: dois que se dirigem para a evidenciação dos milagres e um terceiro que
visa organizar as práticas em tono da cova. Começo
pelo último.
A cova (Foto 48) é provavelmente o local
mais importante de todo o santuário, concentrando
a massa dos romeiros num movimento incessante.
Durante toda a manhã, as pessoas se revezam no
seu entorno para rezar, entregar presentes e ofertas,
além de usar sua água mística. Em geral, devido o
grande influxo de pessoas e a diversidade de
atividades que se realiza ali, esse tamm costuma
ser um lugar muito tumultuado. Concorrem para
isso a sensibilidade tática que marca a piedade
popular e impele alguns romeiros a manipular os
objetos da cova, notadamente as pedras que podem ser subtraídas para práticas
taumatúrgicas domésticas, mas também as retiradas de água e de presentes que
encerram o conjunto das manipulações.
Foto 48 - A cova originalmente (2005)
208
Diante do cenário, durante alguns anos a organização da festa costumava ladear
a cova com os bancos da capela de forma a criar uma barreira de proteção na cova (Foto
49). Essa estratégia, porém, era infrutífera uma vez que as pessoas insistiam no
momento de suas performances rituais em afastar os bancos para com isso se aproximar
da cova-relíquia. A alternativa organizacional, portanto, não apenas não resolvia como
agravava o tumulto, considerando que
era um eterno pra e prá dos
bancos. Essas cenas costumavam
mobilizar as mulheres-parentes,
zeladoras da capela e do cesto das
esmolas, em prol de restabelecer a
ordem do culto. Assim, além das
questões propriamente operacionais da
proteção, os bancos colaboravam para
criar situações de conflito entre os
romeiros e as mulheres-parentes.
No último ano a questão foi resolvida com a afixação de uma grade de proteção
ao redor da cova (Foto 50). Com isso, não seria mais necessário recostar os bancos e a
manipulação dos objetos da cova ficariam mais dificultados. A novidade, no entanto,
não contou com a receptividade de
muitos romeiros que reclamaram
bastante, especialmente em razão da
dificuldade de acesso à água, ou seja,
tornou-se, por exemplo, operação
extremamente desgastante recolher a
água da cova em garrafas para levá-la
para casa. A insatisfação que a grade
provocava nos romeiros se voltava
justamente para aquele principal
objetivo que a cerca tencionava atender: minimizar a falta de higiene daquela água, cuja
manipulação desregrada costumava atingir níveis preocupantes de salubridade. Não
posso afirmar com certeza, mas acredito que essa mudança assim como a das velas, foi
Foto 49 - Mulheres recostadas nos bancos de
proteção (2008)
Foto 50 - A cova cercada (2009)
209
uma reivindicação das mulheres-parentes que acompanhando de perto a rotina da cova
ouviam os comentários e também os reproduziam
128
.
A mudança mais substantiva desse período, contudo, foi a criação da sala de
milagres. O cômodo antes destinado à entrega de presentes agora se prestava para
acolher, mas principalmente, para pôr em evidência o conjunto de graças e milagres
alcançados pelos romeiros que visitam o santuário (Foto 51). Essa novidade corporifica o
resultado de outros investimentos que
vinham sendo realizados nesse sentido
e que juntos objetivam capitalizar o
santuário como um espaço intenso e
poderoso, como um lugar de
milagres. Essa conclusão se depreende
do fato de os milagres serem os objetos
por excelência que manifestam a
intensidade da atividade taumatúrgica
e miraculosa do lugar, de modo que não por acaso os romeiros ao visitarem as Covinhas
costumavam dedicar um tempo no altar para analisar os milagres ali deixados. Esse
momento era importante não apenas do ponto de vista subjetivo de quem os apreciava,
mas principalmente da perspectiva do reforço ritual, uma vez que a avaliação dos
milagres sempre costumava ser seqüenciada por uma repercussão de narrativas e
comentários relativos ao poder de atuação das Meninas, a devoção falada (FREITAS E.
T., 2006).
Concentrar num espaço os registros rituais acumulados ao longo dos anos
que atestam a ação das Meninas significa, além de manobra de ratificação do seu poder,
a capitalização da sua virtualidade, ou seja, elas não fizeram como podem fazer
muito mais. Uma sala de milagres (Foto 52), nessa medida, funciona como um
incremento na plausibilidade do santuário e de suas personagens-santas. Por outro lado,
a emergência dessa estrutura permite dotar as Covinhas de um equipamento essencial do
128
Certa vez quando uma delas tentava organizar o uso da água devido a um momento de muito
fluxo em que algumas pessoas imergiam garrafas sujas, com restos de refrigerante e areia, pois
tinham sido recolhidas do chão, nesse episódio ouvi um seu comentário de que aquela “bagunça
estava fazendo da água uma imundície”.
Foto 51 - Tratamento dado anteriormente aos
milagres (2005)
210
ponto de vista da piedade popular, uma vez que entre as razões para a constituição de
um santuário está justamente o caráter de dar visibilidade ao poder do santo patrono,
coisa que tradicionalmente se
processa através da sala de milagres.
É no esforço conjunto de
evidenciar os milagres que se insere
a última das inovações na tradição
do santuário: a mesa dos milagres
(Foto 53). Em 2009, numa das
laterais da capela, estava disposta
uma mesa plástica que acomodava o
antigo livro de registro, algumas fotografias, ofertas e presentes, além de duas caixas,
revestidas em papel de presente, uma verde e outra vermelha, sob as quais repousava o
título milagres alcançados. No rebuliço da festa, esse equipamento o alcançou tanto
destaque, bem como não sei se cumpriu sua intenção inicial de recolher os milagres,
haja vista que as pessoas insistiam em afixá-los nas paredes ou deixá-los no patamar do
altar. Todavia, a introdução dessa nova estratégia é importante tanto mais pela intenção
que pelos resultados, pois ela se associa
processualmente aos demais aspectos
mencionados que visam a racionalizar o
culto, otimizando, assim, sob o ponto
de vista da publicização dos milagres, a
evidenciação da eficácia das Meninas.
No conjunto, portanto, o que
se observa é que um encadeamento
de inovações que visam a formalizar
uma estrutura objetiva, com
finalidades bastante claras. Entretanto, essas estratégias precisam ser vistas não como
intenções maquiavélicas ou simplesmente calculistas, mas antes como alternativas que
se produzem a partir de demandas das conjunturas e relações implicadas na dinâmica
das Covinhas. Dessa forma, enfim, a racionalização impetrada por Seu Bento precisa ser
vista enquanto resposta à tensão da relação com o padre, pois com isso ele presta contas
Foto 52 - Sala de milagres (2009)
Foto 53 - Mesa dos milagres (2009)
211
à comunidade de romeiros acerca de sua atuação, como um bom administrador,
conectado com aquilo que o povo anseia (ver os milagres). Por outra perspectiva, a
introdução das inovações resulta de uma pressão popular que nas Covinhas a
ausência de uma peça fundamental que eles encontram noutros santuários que também
freqüentam, dentro daquele continuum. Essa falta induz a uma avaliação negativa por
parte dos romeiros que ao sucessivamente vir às Covinhas percebem que seus milagres
foram retirados para dar lugar a novos, isso suscita em parte um sentimento de
desvalorização com aquilo que as Meninas têm de mais óbvio a mostrar, que mudam a
vida das pessoas que nelas confiaram seus problemas. A sala de milagres, portanto,
tanto empodera Seu Bento perante a opinião pública dos romeiros, e com isso minimiza
os riscos de uma “destituição”, como também valoriza as experiências e subjetividades
daqueles que são em última instância a razão de o santuário existir, o povo.
Por último, a racionalização popular que articula aspectos imediatamente
ligados ao culto também é acompanhada de outras preocupações de ordem mais técnica,
cuja intenção é no fim das contas dotar as Covinhas de uma infraestrutura que
corresponda às expectativas dos romeiros e que faça constar o complexo numa ordem
organizacional que os santuários, mesmo os mais populares, atualmente costumam
dispor. Embora constituindo inovações mais estruturais esse cuidado se associa àquele
processo primeiro considerando que ambas as demandas estão integradas na vontade de
ver o santuário crescer e consolidar-se cada vez mais enquanto referência religiosa da
região.
No rol das mudanças consta a tentativa de organização do estacionamento,
esquadrinhando com linhas de cal as vagas para a parada dos carros, além de definir
uma área para ônibus e outra para veículos de menor porte, a arborização da campina, a
ampliação do galpão, a instalação da caixa d‟água, a ligação da rede elétrica e, em
planos prospectivos do administrador, a construção de uma lanchonete. A emergência
de todos esses equipamentos deve ser vista, porém, sob duas óticas: enquanto melhoria
estrutural que acompanha necessariamente a projeção do santuário e o aumento de
romeiros que o visitam, mas, por outro lado, corporifica através de ações visíveis o
esforço de Seu Bento em aplicar os recursos que ele recolhe por meio as esmolas. Com
isso, se por um lado o santuário pode se oferecer enquanto estrutura arquitetônica viável
e atrativa, por outro, busca legitimar ainda mais Seu Bento na condição de
212
administrador, prestando contas aos romeiros daquilo que ele gerencia. Enfim, mesmo a
racionalidade técnica é aqui operacionalizada enquanto dispositivo e investimento
simbólico.
Iniciei o texto da tese afirmando que meu interesse era proporcionar certa
inteligibilidade do que acontece nas Covinhas, mas que para isso consideraria seu
caráter processual e dinâmico. Embora em outras seções tenha buscado evidenciar esse
caráter, acredito que foi nesse último momento quando ele fica mais adensado. Isso
acontece não pela qualidade do texto, mais porque a natureza das relações agora
esboçadas conduz inevitavelmente a essa percepção.
As Covinhas em sua multiplicidade de formas e agentes constitui um território
propício à criação e recriação, mas as estratégias que embasam essas produções não são
operações desenraizadas ou despretensiosas. Mesmo se por vezes elas não funcionem
sob a forma de um cálculo mais intencional, os resultados que elas produzem são
concretos e, amiúde, redefinem fisionomias, práticas, estruturas e espaços que estão
empenhados nas relações do santuário.
Essas mudanças emergem sob o manto de discursos e agentes que põem em
atividade suas percepções e interesses na tentativa de instituir valores e relações de
poder. Com isso, é de modo especial o padre e Seu Bento quem movimenta o cenário
público da disputa e que de forma mais contundente interfere no curso dos
acontecimentos, estabelecendo rotinas novas ao passo que buscam capitalizar-se nos
seus papéis e lugares sociais.
Noutro ângulo, essa luta não se trava apenas no plano dos agentes mais
notórios, mas é apropriada pelos romeiros que freqüentemente aderem a um dos lados
do conflito, ainda que não seja incomum alguns possam se posicionar para além dele.
Essa última forma de avaliação fica patente nas sentenças de dois romeiros - “disso aqui
ser um lugar de louvor, é causa de confusão” e “até na religião têm ambição” - que viam
na peleja do padre e de Seu Bento as contradições entre o lugar de milagres e os
interesses humanos. Com isso, é possível ver enfim que embora a romaria ponha em
movimento os romeiros na busca de um extraordinário milagroso e ritualizado, que tem
na superação dos dilemas e das aflições um objetivo mais evidente, ela coloca no centro
213
de sua fenomenologia o conflito enquanto marca patente. Como demonstra Fernandes
quando analisa a presença do santo e as relações que esses personagens fomentam em
suas diversas acepções populares
Na presença da santidade [como aquela que se processa na festa das
Covinhas], a crise é normal. [...] A santidade nesse contexto não se
associa a um universo regrado segundo leis universais, de eventos
previsíveis, e crises extraordinárias. Ao contrário, com a aparição do
santo, manifesta-se a condição crítica do dia-a-dia. (FERNANDES
R. C., 1994, p. 198)
A despeito, portanto, de um espaço e tempo de unidade, perfeição e harmonia,
o que se encontra no santuário é, em escala dramatizada, as relações contraditórias do
cotidiano, para as quais se coloca como saída possível um trabalho simbólico
permanente, que tem no par precariedade-inovação a chave de sua continuidade e
plausibilidade.
214
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o percurso deste trabalho busquei apresentar e analisar alguns dos
aspectos que entendi ser importantes para a compreensão das Covinhas enquanto espaço
dinâmico de relações sociais que se desenvolvem a partir da devoção às Meninas que
enredam a emergência da piedade no lugar. Assim, ainda que essa mesma realidade
pudesse ser contada por outro enfoque, foi pela construção (do objeto) que indiquei no
início da tese que procurei formular uma seqüência narrativa coerente.
Comecei por estabelecer as bases metodológicas, teóricas e analíticas que
respaldaram minha empresa de inteligibilidade do fenômeno empírico que investiguei,
sobremaneira, por meio da prática etnográfica, e de cuja sensibilidade da experiência me
foi possível estabelecer os delineamentos do enfoque e as bases conceituais que
permeiam a compreensão do contexto do santuário. Desta feita, emerge a percepção de
que categorias como popular e religiosidade popular, embora pertinentes para pensar
algumas questões do campo, ao mesmo tempo em que requeriam uma apropriação
crítica, por si só não se bastavam para elucidar os processos em curso nas Covinhas.
Ainda que me amparasse em sistematizações que estabelecem pontos de
reflexão acerca de relações e concepções que se projetam como populares, é apenas do
ponto de vista da evidenciação concreta de como elas se processam na prática, na sua
fenomenologia, que é possível compreendê-las em sua plenitude. Portanto, embora
ancorada em bases conceituais que me permitiram circunscrever alguns
desenvolvimentos que se seqüenciam no santuário enquanto parte de um repertório mais
amplo, é apenas na e pela condição de descrição e interpretação das vivências que se
torna possível entender a emergência de um culto periférico (o culto às Meninas das
Covinhas) e a ativação de uma forma de religiosidade (a piedade nas Covinhas), bem
como os sentidos que elas evocam e as relações que elas fomentam.
Nesse sentido, recupero através da apresentação das coordenadas do lugar, o
santuário das Covinhas, os marcos e significados que cada local de vivência sagrada e
profana m ativados e experimentados pelos romeiros na prática. Com isso, além de
intuir objetivamente descrever e situar cada estrutura que corporifica o complexo das
Covinhas, bem como situar em parte a sua história, pretendi mostrar que aquele não era
215
apenas um lugar, num sentido enraizado e estático que essa noção pressupõe, mas um
espaço em constante construção, que se produz no curso das operações de seus sujeitos,
fazendo-o, portanto, um lugar praticado.
As formas de significar e viver o espaço e as relações que nele acontecem,
embora condensadas na grande festa do 12 de outubro, não são experiências
circunstanciadas apenas no momento de realização dessa data, mas compreendem
formas de preparação e organização bastante anteriores, através das quais se processam
os esquemas de articulação local em prol dos recursos e da mobilização dos romeiros.
Esse período é marcado pelas visitas de Seu Bento a algumas comunidades e pela
especulação dos romeiros tradicionais acerca da participação comunitária na festa,
cruzando assim expectativas que acionam as vivências anteriores da romaria como
artifícios para organizar a viagem e conquistar a adesão de novos romeiros. Essa prévia
da festa, portanto, colabora intensamente para introduzir os devotos em um tempo
diferenciado, o tempo da romaria.
Os romeiros deslocam-se como podem, a partir dos transportes que dispõem,
mas, assim como diversos são seus veículos e estradas, também são plurais suas razões
para peregrinar até as Covinhas. Os motivos podem ser religiosos ou não, podem
acionar o milagre, a missa ou o interesse em receber presentes ou ainda podem articular
uma identidade católica razoavelmente enraizada através das relações da piedade, da
promessa e do voto, tanto quanto pode criar novas afinidades eletivas mesclando
representação, mito e sociabilidade, numa releitura da ancestralidade dos ciganos.
O foco, embora decisivo para quem e o que se faz nas Covinhas, é algo que
se revela com maior intensidade na vivência do santuário, quando espaços,
segmentações, padronizações de conduta e operações são postas em curso, enfim,
quando na diversidade da experiência o santuário se constitui espaço polifônico. Essa
multivocalidade se processa a partir da performance ritual e do discurso. Na primeira,
estão evidenciadas as inúmeras expressões da piedade que acontecem quando os
romeiros ativam suas formas de relacionar-se com as Meninas, com o espaço, com os
demais romeiros, com os administradores das Covinhas, com os ciganos e com o padre.
Nesse conjunto, porém, havia uma culminância que funcionava de forma a adensar e
reforçar as instâncias rituais do evento, todavia, embora essa performance executada por
216
Seu Bento tenha se transformado ela o foi de toda abandonada, mas encontrou em
outras vias uma forma de se reinventar.
No plano propriamente do discurso, se por um lado está Seu Bento com a fala
da autoridade, a voz criadora por meio de quem o lugar e as meninas sagradas se
revelaram e infundiram um significado às Covinhas, por outro aparece a Igreja, na
figura de seus padres, reclamando para si o direito de gerir uma manifestação que se
quer inserida no rol do catolicismo, mas que “contraditoriamente” ganhou vida
prescindindo de qualquer autorização. Do choque de percepções (culto oficial-culto não
autorizado, milagre-superstição) e interesses (romeiros, espaço e ofertas) emerge uma
conjuntura de conflito que se evidencia tanto na disputa pública pela legitimidade de
uma forma de religião, como pela administração do santuário.
O jogo de forças se exacerba para além do discurso, nas formas patentes de
empoderamento de seus sujeitos privilegiados, os quais na busca por posições
introduzem novos sentidos ou instituem novas rotinas para a vivência ritual do
santuário. Nessa disputa, porém, as vozes microscópicas, mesmo que em posições
menos privilegiadas fazem valer formas de insubordinação e de manifestação que
aparecem de maneiras tênues, pontuais e aparentemente insignificantes, mas que no seu
conjunto revelam operações e táticas que também deixam suas marcas, em síntese,
igualmente reinventam as Covinhas.
Um lugar por excelência dessa fabricação subversiva se produz com maior
freqüência no campo das ofertas, quando na contramão dos espaços socialmente
instituídos para esse fim e que rivalizam entre si, o romeiro se insurge criando outras
formas de relacionar-se com as santas, dispensando, por seu turno, os intermediários
que por vias diferentes vêem no objeto pecuniário da oferta uma das motivações pelo
controle da devoção. É nesse contexto também que emergem as diversas falas
acusatórias, que explodem em episódios de embate com a organização do santuário,
cuja intenção de instituir e regular as práticas da piedade, acaba por ser percebida
enquanto manobras autoritárias ou que visam de alguma forma se aproveitar do povo.
Por razões similares, porém de maneira ainda mais sutil, a Igreja também é
retaliada. Uma vez que mesmo insistentemente convocando os romeiros a contribuírem
com o verdadeiro altar, da verdadeira religião, os freqüentadores das Covinhas
217
silenciosamente o comparecem ao cesto do padre. Essa atitude se processa em razão
da disputa pública pelas ofertas, mas também pela ambivalência que a postura do padre
evidencia. Mesmo cotejando ocupar o espaço do santuário a Igreja não sabe lidar com a
forma de piedade que lhe vida. Desse modo, freqüentemente com posturas explícitas
e arrogantes os padres submetem os romeiros a constrangerem sua própria fé,
embaraçando as razões e os propósitos patentes que colocaram os romeiros em romaria.
Nesse campo de confrontos emerge as personagens que enredam o santuário, as
quais articulando as condições expressas na assunção de um santo local, se produzem
mesclando relações que fomentam as representações sobre a morte e o morrer com as
condições iminentes do viver. As crianças retirantes são a imagem de uma população
castigada pelo fenômeno climático, social e político da seca, que recursivamente quando
não mata, obriga a deixar o chão, a abandonar as raízes e referências, a tornar-se um
errante, sem nome e sem ter quem por ele ore no momento de sua morte. Pela
linguagem do martírio de um igual desconhecido(as crianças), os devotos põem em
evidência seu cotidiano de privações, de flagelo, de falta de assistência, enfim,
exacerbam sua condição de sertanejos pobres.
Mas, se por um lado, as Meninas das Covinhas articulam essa dimensão
identitária, a qual passa a ser atualizada no processo de invenção do santuário e de suas
mártires pelo novo vocativo que as desenraiza de Rodolfo Fernandes e as projeta numa
condição amplificada (as peregrinas da seca), por outro lado, a recriação dessas
personagens não se encerra num processo unilinear. Tal como são vários os sujeitos em
convergência para as Covinhas, são plurais as intenções e interpretações que as põem
em movimento, ou seja, que alimentam o seu culto, sua festa e as relações que gravitam
em torno destes.
É, todavia, do ponto de vista do ritual que essa densidade de sentidos se
processa de forma mais premente. Ainda que exista uma tentativa de institucionalização
das práticas e de regulação dos espaços, a natureza própria do culto e as fisionomias que
lhe configuraram ao longo de sua história asseguram à devoção uma maleabilidade que
tanto permite inovar em atitudes, em ofertas, em procedimentos, quanto na
reconfiguração da geografia e nos sentidos que são impressos ao lugar. Nisso cabe
destacar, porém, que embora as Covinhas comportem uma prolixidade de formas que se
reproduzem no interior do culto, o caráter formal e estereotipado que acompanha todo
218
ritual, mais cedo ou mais tarde cobra dos sujeitos a obediência prescritiva e observância
de regras. Logo, existe uma linguagem ritual e social minimamente estabelecida que
sustentação as relações que se processam no interior do santuário e que fazem produzir
“etiquetas rituais” compartilhadas.
Por fim, mas não menos importante, está a carga simbólica da qual se reveste o
espaço do santuário, suas personagens e, especialmente, a culminância social do evento
festivo. É nessa data que a carência se transubstancia na imagem da fartura e
abundância que a entrega dos presentes corporifica permitindo que aquelas que
morreram de fome e sede, hoje possam saciar as expectativas de tantas crianças que se
não estão em condição similar, se aproximam muito dessa. O investimento simbólico,
nesse momento, é o que permite ao santuário revestir-se da sua percepção de espaço de
unidade, igualdade, comunhão, mesmo que essas expectativas não estejam de todo
afastadas do seu oposto. O ritual, portanto, funciona ai como a linguagem que
intensifica o cotidiano, colocando na imagem do milagre e na esperança da abundância,
as saídas simbólicas para as contradições e conflitos do dia-a-dia.
219
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APÊNDICE A RESULTADOS PRELIMINARES DA CARTOGRAFIA DOS SANTOS LOCAIS NO RIO GRANDE DO
NORTE
Município
Santo local
Circunstâncias
Fonte
Carnaúba dos
Dantas
Joana Turuba
Vítima de catapora ou bexiga verdadeira, Joana Turuba foi privada do convívio
social, vivendo no isolamento até seus suspiros finais. Quando morreu também
não foi permitido o sepultamento no cemitério, em razão do temor de contágio.
Posteriormente, no local de seu sepultamento são registrados episódios onde
sentia-se um forte odor de rosas. Sem demora, moradores locais passam a fazer
pedidos e promessas e disso decorre a construção de uma capela dedicada à
Santa Rita de Cássia, personagem que acompanhava Turuba em seu isolamento.
Dantas ainda afirma que essa é uma devão muito forte na cidade.
(DANTAS M. I.,
2002)
Cova da Negra
Nesse local estão guardados os restos mortais de uma escrava pertencente à
casa-grande de José da Anunciação Dantas, criador de gado que viveu na
região, no século XIX. Duas versões existem para a morte, numa a escrava teria
morrido numa epidemia de cólera, enquanto noutra, mais freqüente na tradição
oral, o fazendeiro teria matado-a por pura maldade.
Cemitério do
Riacho Fundo
Local onde estão enterradas as vítimas da cólera morbus que residiam naquelas
imediações. Os restos mortais encontram-se cobertos por pedras e cercados por
uma antiga parede de alvenaria. Há um fluxo de moradores para realizar e pagar
promessas.
Cemitério das
Cruzes
Nele encontram-se sete sepulturas, cobertas com pedaços de rocha, com sete
cruzes, pertencentes todos a uma mesma família, da qual uma apenas
sobreviveu. Todos morreram vítimas da bexiga verdadeira e são reconhecidos
no imaginário dos moradores como mártires.
Considerado sagrado pela comunidade, o santuário recebe peregrinos da região
228
que buscam resolver, por intermédio dessas almas milagrosas e abandonadas,
problemas materiais e espirituais, oferecendo como dádivas, peregrinações
rezas, velas e cruzes de madeira ou de gesso, que contêm o nome do pedinte e
que são depositadas junto às sepulturas. As promessas são, normalmente, pagas
com sete peregrinações consecutivas, às sextas-feiras, acendendo-se sete velas a
cada dia.
Cova do Menino
Contam que um dia um homem assassinou um menino sem qualquer motivação
aparente. No local plantou-se uma cruz na qual se depositam pedras e se
realizam rezas para a alma da criança. Se pede graças e intercessões no lugar.
Cova do Negro
Maurício
Teria sido escravo do Alferes Manoel Avelino Dantas, criador de gado da
região, no século XIX. Um certo dia, quando ele cavalgava em alta velocidade
numa besta braba, a pastorear o gado do fazendeiro, sofreu um acidente, que
resultou no estrangulamento e degola a partir dos galhos de uma catingueira,
árvore nativa. Ele foi enterrado no local. O lugar é considerado sagrado.
Lagoa Nova
Zé Nicácio
Zé Nicácio sofria de um retardo mental e um dia quando estava numa “budega”
da comunidade fizeram uma mistura de “cachaça, creolina e rapa de unha” e
deram para ele tomar, com o objetivo de matá-lo. Mesmo resistindo obrigaram-
no a tomar todo o líquido. Além da bebida, que aos poucos foi fazendo efeito,
espancaram-no e pisotearam seu corpo. Depois de enterrado, passado certo
tempo, o corpo foi exumado, quando constatou-se tratar de um corpo santo,
portanto, sujeito que a morte transformou em divindade. Nos relatos ainda
aparece a imagem de desconhecidos que teriam vindo buscar o tal corpo santo,
levando-o para Roma.
(SILVA JUNIOR,
2005)
Cerro Corá
Alma de
Vaqueiro
Existia no lugar um bravo vaqueiro, honesto e trabalhador. Um dia, vagando
pelas matas à procura de animais, sofreu uma queda, que o impossibilitou andar
e daí definhou até a morte. Depois de percebida sua ausência, outros vaqueiros
saíram em sua busca, identificando o local de sua morte devido um forte e
agradável cheiro que seu corpo exalava. Ao encontrarem o corpo, viram que ele
não havia qualquer traço de decomposição. A alma do vaqueiro resistiu na
memória local como intercessora milagrosa, embora, pelo que o texto indica,
229
não há qualquer indício de marco ou capela que registre sua morte.
Jardim do
Seridó
Menina da Cruz
Ao dirigir-se à casa de uma pessoa da comunidade para buscar o leite, Maria de
Lourdes, ainda uma menina de 9 anos, teve seu trajeto interrompido quando foi
atropelada por um caminhão que transportava algodão para uma empresa de
beneficiamento da cidade. A forma trágica como o acidente se deu, esfacelando
a cabeça da criança, chocou a população e entre discursos que iam desde a
simples especulação até o relato de sonhos e presságios, emergiu a imagem da
criança enquanto santa. Não demora, o local de sua morte é reconhecido lugar
sagrado, enquanto a criança assume poderes taumatúrgicos, demonstrados com
o acendimento de velas e a deposição de ex-votos.
(SILVA &
AZEVEDO, 2004)
Canguaretama
José Lucas
No ano de 1912, o jovem José Lucas de apenas 15 anos que recentemente teria
conquistado um trabalho como carregador no transporte de sal em uma empresa
local foi atropelado pelo mesmo trole no qual trabalhara. Tendo saltado
anteriormente à parada final do veículo, ele escorregara tendo sua cabeça
esmagada. O crime chocou a comunidade local e a família erigiu em
homenagem ao garoto uma cruz. Devido uma promessa feita por um popular, a
cruz foi substituída e um dia, na casa dos pais do garoto, o obelisco primeiro
começou a exalar um forte cheiro de flor de laranjeira. Logo identificada a
procedência do odor, acendeu-se uma vela que ao ter cessada sua a chama a
família também viu sustado o perfume. Do episódio, a população começou a
reconhecer José Lucas como personagem milagroso. Posteriormente, a cruz foi
substituída por uma capela que abriga novenas, catequese e orações.
(DINI, 2000)
Extremoz
Maranne
Crime bárbaro que ocupou o noticiário local em abril de 1999, a menina
Maranne foi vítima de abuso sexual e tortura pelo maníaco da bicicleta, como
ficou conhecido seu assassino. No local onde foi encontrado o corpo, um
matagal à beira da estrada de Genipabú, foi erguida uma ermida com uma cruz
em homenagem à menina. Em seguida, as pessoas iniciaram diversas formas de
piedade popular no local, como orações, acendimento de velas e deposição de
ex-votos.
(PIMENTEL, 2001)
Caicó
Ana Freire de
Na ainda Vila do Príncipe, nos idos de 1842, Ana Freire de Brito, considerada
(CASCUDO L. d.,
230
Brito
uma santa já em vida, foi traiçoeiramente assassinada por um grupo de escravos
à mando de seu senhor e esposo da vítima, Francisco Galdino. Registrou-se que
o fazendeiro já caído de amores por outra mulher, de Campina Grande,
premeditara o crime tencionando casar-se com a outra. Não era a primeira vez
que ele tentara o episódio, anteriormente já havia feito sucessivas tentativas de
envenenamento e tendo-as frustradas, maquinou o bestial assassinato da
cônjuge. Os escravos confessaram o atentado, relatando ter asfixiado Ana
Freire. A eles foi imputada a pena de morte, enquanto o mandante,
temporariamente preso, conseguiu fugir e nunca mais se soube notícias precisas
de seu paradeiro. Vale destacar, que esse episódio envolveu a primeira e única
execução de pena de morte no interior da Província.
1982)
Lagoa de
Velhos
Antônio Anselmo
O cruzeiro na entrada de Lagoa de Velhos sinaliza o local onde Antônio
Anselmo, filho do fundador do município foi assassinado em 14 de setembro de
1896. O crime teria sido cometido por um sobrinho da vítima, chamado Rafael.
(Lagoa de Velhos,
2005)
Florânia
Zé Leão
Esse Zé Leão narrou-nos o Sr. Sebastião Laércio de Menezes, zelador da
capela em 1877 desentendeu-se com outro agricultor do município, José
Porfírio, por questões de terra. Este último então premeditou crime bárbaro,
assassinando José Leão no local onde está hoje a devoção, sendo esquartejado
dizem uns ou queimado vivo dizem outros.
Corre na tradição ainda que o crime teria ficado impune, ou porque o
criminoso fugiu ou porque a justiça da época não se interessou em elucidar o
fato delituoso. Dizem ainda que José Porfírio foi apenas o assassino, enquanto
o mandante teria sido um figurão do município.
Muitos anos depois, José Porfírio reaparece na cidade e é visto, diariamente, à
tarde, rezando, ajoelhado, pela alma do homem que ele próprio assassinara!
As mulheres e beatas passaram também a imitar o homem que rezava pela
alma de Zé Leão e daí aos milagres foi um passo. Nascera a devoção.
No começo havia apenas um cruzeiro. A capela veio depois, com o fim de
guardar os “milagres” que eram depositados e acender velas também em
pagamento de promessa. Gente de todo Nordeste tem ido a Florânia pagar
(MELO V. d., 1977, p.
40)
231
promessa a Zé Leão.
Florânia
Santa Menina
A narrativa que deu origem ao mito da Santa Menina traz em seu enredo a
paisagem do atual Monte das Graças e um pé de umburana como cenário. No
cume da montanha teria sido encontrado um “corpo santo” de uma criança do
sexo feminino. Na legenda popular, o corpo santo se caracteriza pela
incorruptibilidade do cadáver e essa evidência é indício da natureza santa de seu
portador. Amiúde, as narrativas que retratam a descoberta de corpos santos são
acompanhadas de outro fenômeno extraordinário e indicativo: um característico
odor de rosas exalado pelo corpo e que normalmente precipita o encontro dos
restos mortais. Notadamente, no caso da Santa Menina, ambos os sinais são
ressaltados e se consorciam a um terceiro, no caso, a enigmática figura de um
religioso que teria encontrado o corpo após ter sonhado com sua exata
localização. A quimera trouxera de terras longínquas o frade, mas a mesma
sorte que o trouxe o levou, porém, dessa vez, carregando consigo o valioso
corpo por ele exumado no alto da serra.
Posteriormente, teria chegado à Florânia a imagem de uma menina, que
conforme a versão da Igreja é de Nossa Senhora Menina, orago que foi
especulado como possibilidade de ensejar devoção no Monte, contudo, como na
conjuntura da organização do santuário havia fortes embates com uma igreja
dissidente, a Católica Brasileira, que tem por padroeira aquela santa, julgou-se
oportuno não incentivar o culto. O recolhimento da imagem, porém, plantaria
no espírito da população local uma nova expectativa em relação ao caráter
místico da Santa Menina.
(SILVA JUNIOR,
2005)
(MEDEIROS FILHO,
2002)
(VAN DEN BERG,
2009)
Lages
Menino José
O enredo que articula o culto e a devoção é apresentado na narrativa que relata
o caso de uma criança muito pequena, talvez com uns cinco anos de idade, do
sexo masculino, que se perdera na Serra do Feiticeiro ainda no ano de 1903: era
o menino José Alexandrino. Os depoimentos dão sempre conta do
acontecimento como fruto de uma fatalidade. A criança teria se perdido da mãe
após acompanhar um grupo de cabritos que subira a serra. Desesperados, os
(VAN DEN BERG,
2009)
232
pais e a comunidade mobilizaram-se para encontrá-lo, entretanto, já
transcorridos cerca de três dias apenas o corpo em avançado estado de
putrefação fora localizado.
No exato local da tragédia uma cruz fora firmada, a exemplo do que
freqüentemente na tradição cristã se realiza como prática de demarcação de
sepultura ou morte violenta. Posteriormente, uma capela e um cruzeiro
encerrariam o complexo espaço sagrado, ambos, porém, foram construídos mais
abaixo que o local onde o corpo fora encontrado. Como a descoberta do corpo
deu-se num dia 03 de maio, o espaço passou a ser conhecido como capela da
Divina Santa Cruz, embora o orago que mobilize as romarias seja mesmo o
menino José.
Ipanguaçu
Maria Romana
No atual município de Ipanguaçu, no ano de 1927 um crime bárbaro chocou a
comunidade. Maria Romana foi degolada traiçoeiramente pelo seu próprio
marido, que imbuído de ciúme infundado acreditava que a esposa o traia. Os
requintes de crueldade foram ainda mais exacerbados pelo fato de que Maria
Romana estava grávida de seu primeiro filho. No local onde ela morreu havia
um pé de juazeiro, que depois do sucedido nunca mais frutificou. Foi erguida
uma capela em sua homenagem, a qual se situa no bairro que também leva o
nome de Maria Romana.
(VAN DEN BERG,
2009)
Tenente
Ananias
Mártir Francisca
Na memória local, Francisca é relembrada como uma jovem extremamente
virtuosa e devota, além de acumular a candura da castidade e inocência juvenis.
Num final de tarde, ela saíra para colher jerimuns num roçado de sua família
que era próximo de casa. Lá encontrara um primo que talvez já lhe viesse
fazendo galanteios há certo tempo, mas que nessa tarde insistiu
demasiadamente em seduzi-la. Frustrado em suas intenções pelas reiteradas
negativas de Francisca, João Olinto desfechou-lhe golpes de machado e depois
de matá-la, jogou seu corpo num poço que ficava nas imediações do lugar onde
o crime ocorrera. Premeditadamente, talvez buscando eximir-se da culpa, ele
dispõe sobre o corpo uma estaca que asseguraria a completa submersão do
mesmo. Em seguida, ele se integra aos grupos da comunidade destacados para
(FERNANDES J. B.,
2008)
233
realizar as buscas pela moça como inocente fosse. Passados três dias do
homicídio sua culpa é descoberta e o matador vai a julgamento, no qual é
condenado à prisão. Sua pena é leve e ele permanece apenas três anos recluso.
De acordo com as circunstâncias da morte da virgem, muito em breve começam
a aparecer os primeiros sinais de sua santidade, como o odor de flores bastante
ativo que emanava da cova da garota, além dos dois rachões em forma de cruz
na sepultura. O próprio assassino afirma ter experimentado um encontro onírico
com a virgem mártir e nesse, ela assegurara ter-lhe perdoado o mal causado.
Cumulado com outros discursos que corroboram a santidade da virgem mártir,
os populares começam a atribuir-lhe milagres e a freqüência tanto ao local onde
morrera como no cemitério onde fora sepultada se multiplica. Contudo, mesmo
com o vulto que o culto paulatinamente assume primeiro com a cruz, depois
com uma pequena ermida e em seguida com a construção da capela, é apenas
no ano de 1991 que ele ganha feições mais organizadas.
Atribuindo a conquista de um milagre graças à intercessão de Mártir Francisca,
o monsenhor Manoel Fernandes de Vieira, conjuntamente com o médico
Antônio Mousinho Fernandes, translada os restos mortais da virgem garota do
cemitério de Alexandria para a capela construída em sua homenagem, na cidade
de Tenente Ananias. Para lá, destinam-se pessoas das mais diversas origens
buscando conforto espiritual, mas principalmente entrevendo alcançar milagres.
Ainda hoje a crença em Mártir Francisca é muito forte entre os moradores
locais, mas também daqueles de localidades próximas, juntos esses
freqüentadores registram o pleno vigor da piedade evidenciado nos inúmeros
ex-votos deixados no local.
Angicos
Damasinha
Contam os antigos que Damásia Francisca Pereira, mulher de Francisco Lopes,
parente próximo da família fundadora de Angicos, vivia em perfeita calma na
pobreza honrada de seu lar. Essas duas existências, conjugadas eternamente
pelo matrimônio, pareciam ter sido predestinadas, uma à outra, pelas doçuras de
uma vida feliz, entre os lazeres da criação e momentos de repouso.
(ALVES, 1997)
234
Um dia, porém, tudo muda. O marido nega à esposa fiel e dedicada os carinhos
costumeiros, passando a tratá-la com grosseria inaudita. Damasinha, alma
privilegiada de mulher, boa filha, boa amiga, e que sacrificara o tempo da
mocidade às esperanças de um casamento venturoso, compreende a
transformação radical, mas, mesmo assim, sofre com paciência e resignação.
Uma palavra de sua boca não pronuncia. Um gesto de arrependimento e tortura
íntima nunca lhe escapou. Cada hora que passa, mais Francisco Lopes se revela
indelicado e estranho.
Em 1843, realizava-se na vila a festa da padroeira. Toda a população católica
acorria ao templo, recitando as suas preces de salvação e de fé.
Francisco Lopes convida a esposa para assistirem os festejos do santo patriarca.
Chegando em Angicos, tomam parte nas cerimônias religiosas, como todos os
anos.(...)
Voltou o casal para o sítio “Santa Cruz”, onde ficava a casa de sua residência,
hoje de Luís Rodrigues. No caminho, Damásia compreende que o desenlace se
aproxima. O marido, momento a momento, ferreteia-a com a ponta do punhal. E
não se enganou...
Logo ao chegarem, Francisco Lopes manda-a deitar-se na mesa da sala de
jantar. A vítima obedece sem relutância. E ali mesmo, fria e barbaramente, a
arma assassina degola a mulher heróica.
Cercando o cadáver com dois sírios bruxuleantes, o tresloucado Lopes vai à
casa do seu compadre João Filipe da Trindade, figura de saliência na vida
municipal, e comunica-lhe sorrindo, o fato hediondo. Abriu-se inquérito, que
ainda hoje existe no cartório de Angicos. Francisco Lopes confirmou o
assassínio em palavras desconexas.
A morte de Damasinha ecoou dolorosamente. As suas virtudes foram revividas
por todos os que a conheceram. A mesa do seu sacrifício e uma pedra que se
alteava do ladrilho irregular, ficaram indelevelmente manchadas pelo sangue
inocente. E, diz a lenda, quando o cadáver, acompanhado por grande multidão,
chegou à Favela, arrabalde da vila de onde esta se desenhava lindamente, os
235
sinos dobraram sem que ninguém lhes tocasse...
Francisco Lopes, tendo recebido um jato de sangue no peito, viu transformar-se
quase que numa única chaga, e, louco, terminou os seus dias miseravelmente.
Ainda hoje, entre o tímido fanatismo do nosso povo, existe quem levante os
olhos para o céu, numa oração fervorosa à Santa Damasinha.
Mosso
Jararaca
Jararaca ficaria registrado na memória local de Mossoró logo após a investida
do grupo de cangaceiros chefiado por Lampião, do qual ele fazia parte. Durante
o ataque, os cangaceiros foram recebidos à bala por uma força armada
organizada por homens da cidade e cujo célebre feito foi resistir heroicamente à
investida. A resistência foi tamanha a ponto de os cangaceiros, conhecidos pelo
destemor, serem obrigados a recuar. Aquele que se tornou um dos principais
marcos da história local mossoroense teve ainda como resultado a captura de
um dos líderes do bando. Jararaca, tendo sido ferido à bala, foi deixado para trás
pelo grupo durante a debandada. Depois de preso e torturado pela polícia, a
narrativa popular retrata que o cangaceiro teria sido enterrado vivo numa cova
no cemitério São Sebastião. Nalguns relatos, esse episódio é capitalizado com a
imagem do cangaceiro cavando sua própria sepultura.
(FREITAS, 2006)
Natal
Baracho
João Baracho, o ladrão que se projetou no cenário natalense nos anos de 1959-
1962 como o “matador de motoristas” e que gozou de repercussão pública
ocupando tanto a mídia como o imaginário local do período. Os fatos que
levaram à acusação de Baracho enquanto autor de furtos e homicídios que à
época inquietavam a cidade, além da produção e investimento em sua imagem,
tanto por parte da polícia quanto da mídia, fizeram do suposto ladrão um vulto
público temido e admirado. As circunstancias que o enquadraram no estereótipo
do grande bandido, além da multiplicação de discursos sobre o personagem e
suas façanhas, garantiram a equivocidade de interpretações para os
acontecimentos e ações em torno de sua vida e morte.
Tendo assumido o assassinato de um motorista, mesmo sob condições
(FREITAS, 2006)
236
questionáveis, a assinatura da confissão fez recair-lhe imediatamente a
suspeição em relação à autoria de homicídios similares anteriores. A esse
episódio viria se somar uma série de outros (fugas e capturas) que construídos
ou potencializados pela mídia e polícia projetariam Baracho enquanto o
responsável por uma série de crimes na capital. Com efeito, quando as
acusações que pesam sobre Baracho se cruzam com os depoimentos de seus
vizinhos e convivas elas distinguem-se substancialmente, tanto que ninguém
jamais confirmou a versão da polícia de que ele era um ladrão.
Da condição incerta entre o homem Baracho e o personagem público que é
construído, emerge uma última imagem que o marca profundamente no
imaginário local. Após ser preso pela polícia, no ano de 1961, ele consegue
fugir da prisão serrando as grades de sua cela. Na fuga, desesperado, buscando
evadir-se dos algozes, ele pede água numa residência e o líquido lhe é negado.
Em seguida, é alvejado por vários tiros e morre com sede. No imaginário
popular essa cena se replica através dos discursos, mas também das práticas que
posteriormente se vinculam ao seu culto. No âmbito dos discursos, são
carreadas as imagens do sofrimento, cuja elaboração se processa através do
juízo onde morrer com sede ou ser-lhe negada a água é um ato de
desumanidade, mesmo que fosse em relação a um bandido. No plano das
práticas, a água se precipita ritualmente enquanto a oferenda suprema que
participa da economia da devoção. Assim, os freqüentadores de seu túmulo
costumam deixar garrafas com água na cova ou “energizá-la”, através do
contato, para em seguida fazer os usos mais diversos.
Natal
Cruz do Amaro
Até mais ou menos 1908, no cruzamento da avenida Presidente Quaresma com
a rua Fonseca e Silva, no Alecrim, local denominado “Alto da Bandeira”, havia
um simples madeiro tosco, cru, ciforme, fincado na elevação do terreno. Toda a
gente , no despovoado Alecrim, conhecia esse sinal que denuncia assassinato ou
morte por acidente. Sabiam todos seu nome e sua história muito simples
apaixonou os velhos natalenses de outrora. Era a “Cruz de Amaro”. Foi um
(CASCUDO L. d.,
1974)
237
crime bárbaro, motivado por ameaça e contou com requintes de crueldade.
Natal
Cabocla
Em linhas gerais, o que está retratado na narrativa mítica que enreda o culto é o
episódio onde uma índia ou cabocla que perdida de seu bando juntamente com
duas crianças, teria perecido naquele local enquanto buscava alimentos. As
versões variam, mas é possível reter que desse episódio trágico teriam sido
fincadas três cruzes para demarcar o local do morticínio. Consta também na
memória local que com o passar do tempo as pessoas costumavam solicitar a
intercessão da Cabocla como mediadora para questões de ordens diversas.
Sendo atendidos em seus pedidos, esses populares começaram a depositar os
votos de agradecimentos aos milagres alcançados. Não tardou, ao cruzeiro foi
acrescida uma ermida e, anos depois, ambos seriam fundidos numa única
edificação mais ampla, a capela da Cruz da Cabocla.
No caso desse culto é interessante perceber que sua emergência e dinâmica se
ligam diretamente com os processos de desenvolvimento do bairro onde se
localiza, uma vez que, pelo que os indícios apontam a Cruz da Cabocla é
provavelmente o primeiro marco religioso da comunidade de Felipe Camarão.
Embora esse dado venha se ratificar, outro de natureza processual o intercepta,
qual seja, o fato de uma tensão liminar fazer estremecidas as relações entre um
culto de natureza popular e os valores institucionais. Nessa medida, um forte
investimento na projeção de um personagem canônico foi impetrado como
estratégia de obscurecer o culto ao personagem híbrido, de forma que, a
Cabocla não apenas disputa espaço físico, mas também simbólico com Santa
Luzia.
(VAN DEN BERG,
2009)
São José de
Mipibu
Gervásio
A história de Gervásio parece ser a única no Rio Grande do Norte que se liga ao
ciclo da escravidão. Pelas ainda exíguas informações a respeito, Gervásio ele
seria ou um escravo ou um feitor que se implicaria num episódio de conflito
com um oponente em razão de ter mandado/resistido a uma jornada de trabalho
em dia impróprio, um domingo ou dia santo talvez. Desse incidente, Gervásio
morre e sua cruz passa a ser considerada milagrosa. De fato, as informações
(VAN DEN BERG,
2009)
238
ainda são titubeantes, mas há fortes indícios de que essa narrativa seja exemplar
de uma realidade histórica que não se apagou da memória e cultura locais.
239
APENDICE B - RELAÇÃO DAS DEVOÇÕES QUE PODEM SER
INDICATIVAS DE CULTO A SANTOS LOCAIS, PRODUZIDA POR
VERISSÍMO DE MELO (1976)
Município
Devoção
Angicos (Vila de Fernando
Pedroza)
Capela de São Joaquim
Areia Branca
Capela de São Francisco das Chagas
Arês
Santa Coluna
Campo Redondo
Cruzeiro dos Freires
Canguaretama
Capela de Cunhaú
Carnaúba dos Dantas
Monte do Galo
Carnaubais
Cruzeiro em Porto do Mangue
Coronel Ezequiel
Cruzeiro no Sítio Papagaio
Cruzeta
Cruzeiro das Almas
Florânia
Capela da Cruz de José Lo
Japi
Cruzeiro
Lages
Capela da Santa Cruz
Lages Pintadas
Cruzeiro milagroso
Natal
Pe. João Maria
Natal
Santa Cruz da Bica
Passagem
Capela na comunidade Seixo
Patu
Serra do Lima
Santo Antônio
Pe. José Luiz da Cerveira
São Bento do Trairi
Cruzeiro no sitio Serrote
São João do Sabugi
Cruzeiro na Serra do Sabugi
São José do Campestre
Cruzeiro do outeiro da cruz de pedra
São José de Mipibú
Santa Cruz de Gervásio
São José de Mipibú
Cruzeiro na propriedade Morgado
São Pedro
Santa Cruz do Monte
Tenente Ananias
Mártir Francisca
240
REFERÊNCIAS RELATIVAS AOS APÊNDICES A E B
ALVES, A. (1997). Angicos. Natal: Fundação Jo Augusto.
CASCUDO, L. d. (1982). Flôr de Romances trágicos. Rio de Janeiro: Catédra.
CASCUDO, L. d. (1974). O livro das velhas figuras: pesquisas e lembranças na História do Rio Grande
do Norte (Vol. 1). Natal: Instituto Histórico e Geográfico do RN.
DANTAS, M. I. (2002). Do monte à rua: cenas da festa de Nossa Senhora das Vitórias (Dissestação de
Mestrado). Natal: UFRN/CCHLA/PGCS.
DINI, M. (30 de julho de 2000). Um novo santo em Canguaretama. Diário de Natal , p. 17.
FERNANDES, J. B. (2008). Mártir Francisca: a virgem de nossos tempos. Mossoró: GL Gráfica e
Editora.
FREITAS, E. T. (2006). Memória, cultos funerários e canonizações populares em dois cemitérios no Rio
Grande do Norte (Tese de doutorado). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS.
Lagoa de Velhos. (2005). Preá .
MEDEIROS FILHO, J. (2002). O Monte de Florânia e o santuário de Nossa Senhora das Graças . Natal:
Fundação José Augusto.
MEDEIROS FILHO, J. (2002). O monte de Florânia e o santuário de Nossa Senhora das Graças. Natal:
Fundação José Augusto.
PIMENTEL, E. (20 de maio de 2001). "Alminhas" homenageiam mortos nas estradas, tradição
portuguesa. Tribuna do Norte , p. 6.
SILVA JUNIOR, O. F. (2005). (Re)construção imaginária do território: uma análise da formação
identitária da Serra de Santana. Natal: UFRN-CCHLA-PPGE.
SILVA, A. C., & AZEVEDO, I. N. (2004). A menina da cruz: culturas populares e práticas do crer no
município de Jardim do Seridó. Cai: UFRN-CERES-História.
VAN DEN BERG, I. d. (2009). Relatório de pesquisa. Natal.
241
ANEXO A REPRODUÇÃO DO PANFLETO COMERCIALIZADO
NAS COVINHAS COMO O LIVRO DA HISTÓRIA DO SANTUÁRIO
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