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PONTICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
VLADIMIR FERREIRA DE ÁVILA
“SABERES HISTÓRICOS E PRÁTICAS COTIDIANAS SOBRE O SANEAMENTO:
DESDOBRAMENTOS NA PORTO ALEGRE DO SÉCULO XIX (1850-1900)”
Porto Alegre
2010
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VLADIMIR FERREIRA DE ÁVILA
“SABERES HISTÓRICOS E PRÁTICAS COTIDIANAS SOBRE O SANEAMENTO:
DESDOBRAMENTOS NA PORTO ALEGRE DO SÉCULO XIX (1850-1900)”
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientação: Profª. Drª Margaret Marchiori Bakos
Porto Alegre
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )
A958s Ávila, Vladimir Ferreira de
“Saberes históricos e práticas cotidianas sobre o saneamento:
desdobramentos na Porto Alegre do século XIX (1850-1900)”/
Vladimir Ferreira de Ávila. Porto Alegre, 2010.
201 f. : il.
Diss. (Mestrado em História) - PUCRS, Fac. de Filosofia e
Ciências Humanas.
Orientação: Profª. Drª. Margaret Marchiori Bakos.
1. História. 2. Porto Alegre História Século XIX.
3. Saneamento Porto Alegre. 4. Hipócrates Crítica e
Interpretação. I. Bakos, Margaret Marchiori. II. Título.
CDD 981.651
Ficha Catalográfica elaborada por
Vanessa Pinent
CRB 10/1297
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VLADIMIR FERREIRA DE ÁVILA
“SABERES HISTÓRICOS E PRÁTICAS COTIDIANAS SOBRE O SANEAMENTO:
DESDOBRAMENTOS NA PORTO ALEGRE DO SÉCULO XIX (1850-1900)”
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em 13 de agosto de 2010.
BANCA EXAMINADORA:
Profª. Drª. Margaret Marchiori Bakos PUCRS
Profª. Drª. Nikelen Acosta Witter UNIFRA
Profª. Drª. Ruth M. Chittó Gauer PUCRS
5
À Gabrielle Werenicz.
Esposa e companheira em todos os momentos.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em
especial ao Programa de Pós-Graduação em História desta Instituição, que me acolheu com
muito carinho durante todo o período do curso.
Aos professores participantes da Banca de Avaliação para obtenção de Bolsas de
Pesquisa: Helder Godim, René Gertz e Klauss Hilbert; agradeço tanto por terem percebido a
importância do desenvolvimento deste trabalho para a historiografia da cidade de Porto
Alegre, quanto por terem confiado em mim, e na possibilidade de conclusão deste trabalho
durante o período de Mestrado.
Agradeço também ao CNPq, Instituição que me proporcionou, através da concessão de
Bolsa de Pesquisa, dedicação exclusiva a este trabalho.
A minha orientadora Profª. Drª. Margaret Marchiori Bakos, pelas orientações que
muito contribuíram para enriquecer a qualidade deste trabalho. Sem a sua participação,
certamente esta dissertação perderia em qualidade.
As professoras participantes da Banca de Defesa, Profª. Drª. Ruth M. Chittó Gauer e
Profª. Drª. Nikelen Acosta Witter, pela disposição, dedicação e paciência na leitura deste
trabalho, bem como pelas recomendações e sugestões dadas ao longo do desenvolvimento
desta pesquisa.
Aos professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Dr.
Charles Monteiro, Drª. Núncia Santoro Constantino, Dr. Arno Alvarez Kern, Drª. Ruth Chittó
Gauer e Dr. Jurandir Malerba, com os quais mantive um maior contato durante o cursar das
disciplinas e que quando não me tiraram dúvidas, me auxiliaram a diminuí-las.
A professora Drª. Lizete Oliveira Kummer, que desde o período de graduação me
incentivou a trabalhar no desenvolvimento de pesquisas.
7
Ao professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Dr. Enrique Serra
Padrós, e a professora da Universidade Luterana do Brasil, Drª. Kátia Maria Paim Pozzer,
pelas cartas de recomendação dadas ao PPGH da PUCRS, que demonstraram confiança em
minha capacidade.
Ao professor da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto
Alegre, Dr. Carlos Henrique Armani, por mostrar-se sempre prestativo no que diz respeito a
trocas de idéias e informações.
Aos professores da Universidade Federal do Espírito Santo, Dr. Gilvan Ventura da
Silva e Dr. Jadir Peçanha Rostoldo, por terem contribuído com esta pesquisa com materiais e
sugestões.
Ao professor Dr. Francisco Carlos Jacinto Barbosa da Universidade Estadual do
Ceará, pelas informações prestadas acerca deste assunto no que se refere aos trabalhos que
tem desenvolvido no estado do Ceará.
Aos GTs História e Saúde, Teoria e Historiografia, História das Idéias e em especial
ao grupo de trabalho e pesquisa AIC (Africanidades, Ideologias e Cotidiano) coordenado pela
professora Margaret Marchiori Bakos, cujos encontros contribuíram profundamente para o
desenvolvimento desta dissertação.
Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação da PUCRS, Carla
Helena Carvalho Pereira e Adilson Mueller pelo excelente atendimento a que me prestaram
durante todo este período do curso.
A todos os funcionários de atendimento à pesquisa das Instituições: Arquivo
Municipal de Porto Alegre Moysés Vellinho, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul,
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Museu de Comunicação Social Hipólito
José da Costa e Centro de Documentação e Pesquisa da Santa Casa de Misericórdia de Porto
Alegre, locais por onde passei, e onde fui muito bem atendido durante os longos períodos de
pesquisa documental.
8
A todos os meus colegas e amigos: Márcio Sonego, Patrícia Luz, Daniela Kern, Hugo
Hruby, Fabiano Branchelli, Ana Paula Korndorfer, Aline Cadaviz, Claudia Tomaschewski,
Sandro Rogerio dos Santos, Laura Dornelles, Maite Peixoto, Rogerio Oliveira, Suzana
Rezende, Vanessa Oliveira, pela amizade, companheirismo e trocas constantes de
experiências e informações durante estes dois anos de curso. Em especial, a colega Carolina
Martins Etchevery, por ter realizado as excelentes traduções das obras em italiano que
compõem este trabalho.
A todos os meus amigos, que apesar de não terem sido meus colegas, são na grande
maioria historiadores: Drª. Juliane C. Primon Serres, Me. Rodrigo Capiotti da Silva, Me.
Éverton Quevedo, Me. Jovani Scherer, Me. Arilson dos Santos Gomes, esp. Márcia Medeiros
da Rocha.
E, finalmente, agradeço a uma das pessoas mais importantes de minha vida, que é a
minha esposa Gabrielle Werenicz, pois sem sua compreensão, incentivo e ajuda nos
momentos mais difíceis, este trabalho com certeza não teria se concretizado.
9
A matéria, para nós, é um conjunto de “imagens”. E por
“imagem” entendemos uma certa existência que é mais do
que aquilo que o idealista chama uma representação,
porém menos do que aquilo que o realista chama uma
coisa uma existência situada a meio caminho entre a
“coisa” e a “representação”.
Henri Bergson
10
RESUMO
O trabalho aborda do ponto de vista histórico a forma como teria se processado os serviços de
saneamento da cidade de Porto Alegre no século XIX. Para isso, desenvolvemos um estudo
que se divide em três partes. Na primeira, discorremos sobre a história do saneamento desde a
antiguidade até o século XIX, destacando a importância da obra de Hipócrates Ares, águas e
lugares como elemento a dar base ao desenvolvimento de ações empreendidas sobre o
saneamento das cidades ao longo do tempo. Na segunda parte, destacamos a influência do
pensamento hipocrático nas ações públicas direcionadas ao saneamento da Porto Alegre
oitocentista, ressaltando a participação dos diferentes agentes históricos, os quais
denominamos de “agentes do saneamento”, como componentes essenciais no
desenvolvimento desta história. Para encerrar, tratamos na terceira parte sobre a contínua
relação existente na cotidianidade da cidade entre os agentes do saneamento (indivíduos), os
saberes (hipocráticos) e as epidemias (doenças), como elementos que davam suporte às
políticas públicas empreendidas sobre o espaço social da cidade. É visualizando esta constante
interação, que procuramos descrever o processo de passagem ou de deslocamento entre um
dado ideal de limpeza e conseqüentemente de saúde para um dado momento em que a saúde
(coletiva) passa a ser percebida como o ideal de higiene.
Palavras-chave: História. Saneamento. Hipócrates. Porto Alegre. Século XIX.
11
ABSTRACT
The work includes the way how the sanitation services from Porto Alegre city would have
been processed in the nineteenth century, in accordance with the historical point of view. In
order to do that, a study has been developed and divided in three parts. The first part we
discussed about the history of the sanitation, from antique age to the nineteenth century,
highlighting the importance of Hippocrates work: Air, waters and places”, as an element to
base the development of the undertaken actions about the cities sanitation services at length.
The second part talked about the influence of the Hippocratic thoughts in the public actions
directed to Porto Alegre in the nineteenth century, emphasizing the participation of different
historical agents which were named “sanitation agents” as essential components in this
history development. Finally, the third part is about the continuos relationship existent into
the city quotidian between the sanitation agents (individuals), the knowledges (Hippocratics)
and the epidemics (diseases) as elements which supported the undertaken public policies on
the social city space. And aiming that frequent interaction in which was described the process
of passage or displacement between an ideal cleasing datum and consequently health, to a
specific moment in which collective health becomes the ideal of hygiene.
Keywords: History. Sanitation. Hippocrates. Porto Alegre. Nineteenth Century.
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 1 Os “tigres” .......................................................................................................... 90
Imagem 2 Ilustração de Cândido Faria ................................................................................. 93
Imagem 3 Chiqueirinho Nº 1 ............................................................................................... 95
Imagem 4 Cubo proposto para condução dos materiais fecais ........................................... 148
Imagem 5 Modelo de carros para condução de águas servidas, condução de materiais fecais
e cubo para condução de materiais fecais .............................................................................. 149
Imagem 6 Modelo nº 2 de transporte que prevê melhorias na condução dos dejetos ....... 150
Imagem 7 A entrada do cólera na cidade de Porto Alegre ................................................ 156
13
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Tabela de referência dos elementos hipocráticos presentes nas Atas da Câmara na primeira
metade do século XIX ............................................................................................................... 74
Tabela 2 Tabela de referências mensais de 1829 a 1850 ............................................................ 76
Tabela 3 Tabela de referência dos elementos hipocráticos presentes nas Atas da Câmara na segunda
metade do século XIX ............................................................................................................... 78
Tabela 4 Tabela de referências mensais de 1851 a 1900 ............................................................ 79
Tabela 5 Feria dos trabalhadores escravos e livres nas obras da Companhia Hydraulica Porto
Alegrense ................................................................................................................................. 97
Tabela 6 Agentes do saneamento ............................................................................................. 98
Tabela 7 Proponentes do serviço de limpeza em Porto Alegre e valores lançados em 1878 ....... 152
14
LISTA DE SIGLAS
ADAI Programa de Apoyo al Desarrollo de Archivos Iberoamericanos
AHPAMV Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho
AHRS Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
APERS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
IHGRS Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
MCSHJC Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
SCMPA/CEDOP Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre / Centro de Documentação e
Pesquisa
15
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 17
PARTE I UMA HISTÓRIA DO SANEAMENTO
2 Uma breve história que envolve saneamento, saúde e doença ................................ 39
2.1 A saúde do corpo e da alma: da antiguidade ao medievo ............................................. 40
2.2 O lixo e a limpeza pública no medievo europeu ........................................................... 47
2.3 O saneamento e a saúde sanitária na modernidade ....................................................... 52
2.4 Um novo tempo para a iluminação na história do saneamento ..................................... 57
2.5 A cientificidade que bate a porta da saúde e do saneamento no século XIX ................ 64
PARTE II A ESTRUTURA DO SANEAMENTO EM PORTO ALEGRE
3 Saberes e agentes do saneamento na Porto Alegre oitocentista ............................ 73
3.1 A presença do saber hipocrático no saneamento da cidade ........................................ 74
3.2 Agentes do saneamento .............................................................................................. 82
3.3 Os primeiros movimentos do saneamento na Porto Alegre oitocentista .................... 99
3.4 Do saneamento de limpeza para o saneamento de higiene ....................................... 107
PARTE III A HISTÓRIA COTIDIANA DO SANEAMENTO EM PORTO ALEGRE
4 As políticas públicas para o saneamento de Porto Alegre: o discurso epidêmico e as
ações práticas na segunda metade do século XIX .................................................. 112
4.1 O saneamento, as epidemias e as ações práticas na década de 1850 ........................ 112
4.2 O saneamento, as epidemias e as ações práticas na década de 1860 ........................ 127
4.3 O saneamento, as epidemias e as ações práticas na década de 1870 ........................ 141
4.4 O saneamento, as epidemias e as ações práticas na década de 1880 ........................ 153
4.5 O saneamento, as epidemias e as ações práticas na década de 1890 ........................ 164
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 173
16
FONTES CONSULTADAS ..................................................................................... 178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 183
ANEXOS
ANEXO A Latrina pública romana .......................................................................... 192
ANEXO B Mapa da área física de Porto Alegre em 1840, com destaque para a
localização das fontes de água potável ........................................................................ 193
ANEXO C População de Porto Alegre no século XIX ............................................ 194
ANEXO D Mapa do número de pessoas que foram acometidas pela epidemia do
cólera no ano de 1867 na cidade de Porta Alegre ..................................................... 195
ANEXO E Edital para contrato do serviço de limpeza pública do ano de 1867 ...... 196
ANEXO F O roto e o remendado ............................................................................. 198
ANEXO G Planta de projeto para construção de forno de incineração .................. 199
ANEXO H Despejos pela janela ............................................................................. 201
17
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda sob o ponto de vista histórico a forma como teria se processado o
conhecimento e as ações empregadas pelo poder público sobre o saneamento na cidade de
Porto Alegre no século XIX, com destaque especial para a segunda metade deste mesmo
século. Nosso objetivo central consiste em demonstrar como teria se desenvolvido as políticas
públicas para o saneamento da cidade, bem como localizar a origem dos conhecimentos sobre
o saneamento frente às práticas empregadas no espaço social.
Como um trabalho de dissertação não é fruto somente de meros acasos, pois o mesmo
necessita de pesquisa, tempo e dedicação, achamos ser importante demonstrar como se
desenvolveu esta pesquisa desde os seus primórdios, mais precisamente quando ainda era um
elemento em gestação. Acreditamos que desta maneira, o leitor poderá ter uma melhor
visualização de como foi se estruturando ao longo do tempo todo o processo de formação e
construção desta dissertação, de modo a dar vista ao seu desenvolvimento, como um
componente que é fruto de análises e pesquisas desenvolvidas em diferentes instituições.
Este trabalho na verdade faz parte de um projeto que começou a ser esboçado ainda no
período de graduação, quando então fomos solicitados a desenvolver uma pesquisa que visava
a elaboração de um projeto, que futuramente poderia servir de base para construção de um
novo conhecimento. Neste sentido, podemos localizar precisamente o ano de 2005
1
, como um
ponto de partida aos primeiros contatos envolvendo (ainda que de forma bastante superficial),
um dos elementos que consideramos base nesse trabalho; a saber, o serviço de limpeza da
cidade de Porto Alegre.
Nosso objetivo inicial, com relação aos serviços de limpeza da cidade, concentrava-se
na busca por tentar entender como teria se processado a institucionalização dos serviços de
limpeza e coleta de lixo da cidade de Porto Alegre, no ano de 1898, visto este acontecimento
ser apontado pela historiografia da cidade, porém praticamente não desenvolvido pela mesma.
Entretanto, não demoraria muito para verificamos que tal problemática, a ser resolvida,
mostrava-se muito difícil. Esta dificuldade em parte decorria em conseqüência de uma série
de fatores: primeiro, o assunto mostrava-se bastante disperso perante a bibliografia específica
1
Na verdade o ano 2005 marca o início das atividades do trabalho, que teve como mote de origem os diálogos
informais estabelecidos entre o ano de 2002 e 2004, em uma instituição destinada ao trabalho com cultura na
cidade de Porto Alegre. Tal instituição, denominada de Santander Cultural, na presente data, ainda é mantida
através de apoio financeiro por um Banco Espanhol, que tem por nome institucional Banco Santander.
18
da cidade, sendo que na maioria das vezes (para não dizer praticamente sempre) era solicitado
como um elemento a dar base e legitimação a uma visão do que poderíamos denominar de
“demonização” do saneamento da cidade de Porto Alegre no século XIX. Segundo, fora este
problema anterior, a temática que envolvia o assunto lixo perante a historiografia
especializada da cidade, quase sempre se encontrava diretamente relacionada à área da
Arqueologia. Este detalhe, a princípio sem muita importância para nós, acabou por nos
colocar um problema de cunho novo, problema este que dizia respeito a um ponto específico
na área de atuação de duas ciências, ou seja, da Arqueologia e da História. Este ponto de
diferenciação concentrava-se justamente sobre o objeto de estudo em questão, isto é, o “lixo”.
O lixo, como objeto material e elemento presente na cidade tende a ser pensado pela
Ciência da Arqueologia, como um componente que propicia possibilidades de entendimento
sobre as próprias sociedades do passado, quanto a isso acreditamos não haver dúvida. No
entanto, encarado sob este prisma de “artefato material”, o objeto de estudo acabava por
mostrar-se limitado. Tal visão, concentrada somente sob esta perspectiva de “artefato
material” e/ou “resquício material” de uma determinada sociedade do passado, nos
impossibilitava imaginar assim, como os agentes históricos do século XIX, em especial para a
cidade Porto Alegre, pensavam o lixo como sendo lixo e não como objetos materiais que
poderiam ser deixados como prova de uma possível característica social, cultural ou até
mesmo histórica de sua existência.
Neste sentido, teríamos que trabalhar o objeto “lixo” em uma dimensão que não
somente levasse em conta sua materialidade perceptível do passado, mas sim sua composição
como um elemento possível de ser percebido, como algo que se concentraria também no
campo do pensamento. Neste caso, o objeto de estudo era um problema que perpassava o
cunho material, tornando-se um componente a ser pensado, racionalizado e até mesmo
criticado dentro do universo oitocentista da cidade de Porto Alegre.
Como objeto de estudo da História, o “lixo” abria possibilidades de análises que o
permitiam pensar como derivado de um problema social, no que tange a questão da saúde
pública; econômico, no que diz respeito aos gastos da administração pública e político ao
envolver as diferentes estruturas existentes do poder público da época. Assim, ao fazermos o
deslocamento do eixo de estudo do objeto e verificarmos sua importância como elemento
também de estudo da história, partimos para o próximo problema.
O terceiro ponto destes problemas dizia respeito à pesquisa documental, visto tal
campo de estudo ainda não ter sido contemplado diretamente pela historiografia da cidade. Na
19
verdade os problemas encontrados neste momento foram vários, mas basicamente podemos
dividi-los em três partes. Na primeira, o obstáculo ou o desafio era entender o que estava
escrito na documentação, visto a caligrafia de época nem sempre ajudar nesta tarefa.
2
Fora
este problema, necessitávamos também localizar o tipo de documentação que poderia nos dar
suporte para o desenvolvimento da pesquisa. O segundo obstáculo consistia em entender a
estrutura dos documentos, bem como a estrutura gramatical utilizada no período. o terceiro
era saber como se apresentava arquivada esta documentação nos mais diferentes arquivos da
capital, para somente então atacar os pontos específicos dentro do universo das estruturas dos
arquivos.
Diante estes problemas, a pesquisa documental demonstrava caminhar a passos curtos.
Como curta também se mostrava a verba particular para dar andamento à pesquisa. Tudo
indicava que o destino deste estudo (como acontece em alguns casos), iria ser mesmo um
longo repouso no fundo de uma gaveta qualquer, no meio de outros papéis. O que na verdade
acabou por acontecer, quando a verba pessoal finalmente chegou ao fim, e a labuta tornou-se
praticamente uma direção obrigatória. Assim, por um período de aproximadamente dois anos,
a pesquisa se encontrou parada. E por mais incrível que possa parecer, tal parada viria a
contribuir futuramente com o desenvolvimento da pesquisa, principalmente no que tange a
questão do trabalho com as fontes documentais do período.
Ser escolhido como um dos pesquisadores do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (APERS), a fazer parte do chamado Programa ADAI
3
, possibilitou na verdade
abrir muitos caminhos e solucionar muitos problemas, principalmente no que diz respeito à
possibilidade de um desenvolvimento mais qualitativo deste trabalho.
Durante os dois anos dedicados a pesquisa no Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul, com apoio financeiro do Ministério da Cultura da Espanha (cujo resultado
pode hoje ser verificado através de uma obra que contém dois volumes, publicada
originalmente sob o título denominado: Documentos da Escravidão
4
), pudemos em grande
medida superar os problemas com relação à questão paleográfica. O trabalho desenvolvido no
APERS possibilitou também entender tanto a estrutura de seu Acervo, quanto o universo de
2
Tais problemas foram encontrados ainda quando da realização de um estágio voluntário na Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre, no ano de 2004.
3
Programa de Apoyo al Desarrollo de Archivos Iberoamericanos, Ministério da Cultura da Espanha, 2004-
2006.
4
RIO GRANDE DO SUL. Secretária da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo
Público. Documentos da Escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos do
interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006.
20
funcionamento dos Arquivos no Rio Grande do Sul, em especial os da Capital. Além do mais,
tal pesquisa para o Programa ADAI, possibilitou-nos um profundo conhecimento sobre a
estrutura dos documentos oficiais de época, bem como entender o sistema paleográfico de
escrita.
Passado este período que consideramos de aprendizagem (que como vimos resultou
em uma publicação) outra surpresa acabaria por aparecer. Convidado a organizar a chamada V
Mostra de Pesquisa (evento realizado anualmente pelo APERS, destinado a todos os
pesquisadores de arquivo), conseguimos produzir e publicar mais uma obra
5
, com o objetivo
de demonstrar as diferentes pesquisas que podem e que são desenvolvidas com as fontes
primárias encontradas nos mais diferentes acervos dos arquivos.
Realizado todos estes passos voltamos a dar continuidade à pesquisa. Neste momento,
mapeamentos mais precisos indicavam a grande quantidade de documentos a serem
manuseados durante todo o ano de 2007
6
. Não bastasse o mapeamento da documentação, era
preciso também fazer um grande banco de dados informatizado, com imagens que nos
possibilitassem uma futura leitura minuciosa de tais documentações; e adiante, a realização da
transcrição destes mesmos documentos de forma a viabilizar um estudo mais complexo e
homogêneo sobre o respectivo assunto. Havia muito trabalho a ser feito durante um curto
período de dois anos.
Para além de problemas derivados do tempo de trabalho, havia outro que se tornava
mais sério. Uma leitura atenta sobre as fontes documentais, cada vez mais nos conscientizava
da abrangência deste objeto de estudo. O “lixo” encarado sob sua perspectiva imaterial, como
um objeto a ser pensado, racionalizado pelo poder público e pelos mais diferentes agentes
históricos de então, mostrava-se como um objeto que permeava pelos mais diferentes campos,
assim como os significados atribuídos à limpeza não estavam atrelados somente aos
problemas do lixo. Neste sentido, o próprio lixo e a limpeza da cidade no século XIX,
poderiam passar por um profundo entendimento, quando colocados dentro de um horizonte
ligado primeiramente a história do saneamento e conseqüentemente diante à própria história
da saúde pública. Neste caso, tornava-se necessário ampliar as fronteiras de atuação. Nosso
objetivo então passava a ser o estudo da história do saneamento público da cidade de Porto
Alegre no século XIX.
5
ÁVILA, Vladimir Ferreira de (Org.). V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul. Anais: Produzindo História a partir de Fontes Primárias. Porto Alegre: CORAG, 2007.
6
O que na verdade veio a se concretizar somente no ano de 2009, quando o projeto para a entrada no Mestrado
já tinha sido aprovado pela Banca examinadora do Curso de Pós-Graduação da PUCRS.
21
O Saneamento romântico
Para entender a história do saneamento público da cidade de Porto Alegre no século
XIX, daremos aqui os primeiros passos para aquilo que denominamos de revisita aos estudos
da cidade de Porto Alegre, como um ponto imprescindível, onde se assenta no nosso entender,
a própria base da historicidade do assunto aqui tratado. Neste caso, o ato de estudar Porto
Alegre foi feito em três sentidos: primeiramente, fazemos uma análise historiográfica e
documental sobre o assunto. Segundo, tratamos de fazer um estudo no sentido de contribuir
com a complexidade que abarca este objeto de estudo. Terceiro, trata-se este estudo também
de uma revisita realizada por fora e ao mesmo tempo por dentro, pois envolve a cidade como
objeto de análise e o nós (sujeito) que faz parte da historicidade dessa própria cidade. Para
este último caso, falamos de um objeto ao qual vivemos, vimos, ouvimos dizer e convivemos
historicamente. Além disso, trata-se também da execução de um prazeroso projeto, cuja
originalidade logo nos afigurou muito instigante de ser investigada.
Tratar da história do saneamento de Porto Alegre, seguindo os pontos anteriores dessa
revisita é portanto, começar dissertando sobre aqueles que se preocuparam em relatar os
diferentes aspectos de sua história. Para este caso, começamos chamando a atenção para as
observações de Sergio da Costa Franco, no que tange a bibliografia histórica da cidade:
A bibliografia histórica de Porto Alegre não é copiosa. Se excluídas as meras
crônicas de curiosidades e reminiscências, sem preocupação de rigor histórico, os
estudos específicos sobre o passado porto-alegrense não alcançam talvez duas dúzias
de títulos, entre ensaios de Augusto de Porto Alegre, Walter Spalding, Athos
Damasceno, professor Francisco Riopardense de Macedo, Tupy Caldas, De
Paranhos Antunes, Paulo Xavier, Ruben Neis e Leandro Teles. Mais historiador do
que cronista, dada a fidelidade e precisão de quase todas as suas informações,
Antonio Pereira Coruja foi, com suas Antigualhas, o pioneiro da informação
sistematizada sobre a cidade. Depois dele, Felicíssimo de Azevedo, Aquiles de Porto
Alegre, Gaston Hasslocher Mazeron, Olyntho Sanmartin, Ary Veiga Sanhudo,
Arquimedes Fortini, Nilo Ruschel, Roberyto Pellin e muitos outros deixaram-nos
valiosas informações sobre o ambiente urbano, as tradições locais e a herança oral
coletiva, de que foram intérpretes e mensageiros. Todavia, examinada no seu
conjunto, essa bibliografia não é opulenta, e, não raro, se apresenta interativa, com
os autores repetindo-se uns aos outros, sem preocupação crítica.
7
Na verdade estas observações de Franco, como uma autoridade no assunto, são
pertinentes ao compararmos o seu apurado e longo estudo sobre os diferentes aspectos que
cobrem a história da cidade de Porto Alegre. Talvez por força deste elemento, o historiador
tenha sido o primeiro a se preocupar em escrever um guia histórico sobre a cidade, onde ruas
7
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 3.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998.
p.7.
22
não ganham nomes, mas sentido com relação a sua existência. Não por acaso podemos
encontrar em uma de suas obras (1998), curiosidades no que tange aos aspectos do
saneamento da cidade, como a breve descrição que faz da história do abastecimento de água.
A qualidade da água para consumo começou a preocupar mais vivamente a cidade,
quando esta se viu sitiada pelos farroupilhas, impedido o acesso às vertentes das
chácaras suburbanas. Em 1839, a mara cuidou de construir uma “ponte” sobre o
rio, “na qual se possa tomar água com asseio para o abastecimento”. Por muito
tempo, as providências para assegurar água limpa à população se limitavam a
garantir que a captação se fizesse longe da imundície das margens do Guaíba,
repletas do lixo que aí era habitualmente depositado.
8
Franco mostra-se sensível também a outros aspectos que dizem respeito à história do
saneamento na cidade, pois mesmo de forma breve não deixa de tratar sobre os serviços de
limpeza executados sobre parte do século XIX, do sistema de esgoto que começa a
intensificar-se a partir da segunda metade deste mesmo século e da estrada de ferro do
Riacho, que tinha por finalidade primeira a condução dos despejos para a chamada Ponta do
Dionísio. Entretanto, talvez por tratar-se de um guia, o estudo de Franco mostra-se
fragmentado, o que acaba por dificultar a compreensão da história do saneamento na cidade
como uma unidade complexa e interligada, tanto no pensar o saneamento quanto nas práticas
de sua execução na cotidianidade. Assim, o autor acaba separando histórias que ao nosso
entender se inter-relacionavam diretamente, como exemplo: a finalidade primeira da
construção da estrada de ferro do Riacho - que era levar dejetos para a zona sul da cidade - do
tópico limpeza pública, que trata também do lixo e dos despejos públicos na mesma cidade.
Mesmo assim, sua obra traz importantes contribuições ao assunto, demonstrando rigor
empírico no seu estudo.
Nem todos os autores citados anteriormente por Franco como possíveis marcos da
bibliografia da cidade, colocam os aspectos do saneamento em Porto Alegre no século XIX,
como foco principal de seus estudos. Alguns fazem apontamentos de elementos específicos,
como o fez Antônio Álvares Pereira Coruja (1806-1889) através de uma rápida passagem, que
procurava descrever as características de uma fonte localizada no chamado Beco do Poço,
como: “Uma fonte com coberta de madeira em forma de abóboda”.
9
8
Idem, p.18.
9
CORUJA, Antonio A. P. Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: UE Porto Alegre, 1996.
23
Outra obra (crônica) que faz referência a questão da água em Porto Alegre foi escrita
por Achylles Porto Alegre (1848-1926).
10
Tal crônica, intitulada de “velhos chafarizes”,
entretanto, concentra-se muito mais na busca de uma descrição romântica sobre as águas e os
chafarizes do que procura analisá-los dentro de uma perspectiva relacionada a uma história
problema do saneamento diante da cidade. Novamente podemos observar aqui uma
perspectiva que não procura levar em conta a sistematização do conjunto que compõem a
história do saneamento público de Porto Alegre. Neste sentido, a água ou os chafarizes são
eixos específicos de uma história que abarca um dos aspectos da cotidianidade da cidade,
aspecto este quase sempre relatado de forma a ressaltar a beleza de suas características
arquitetônicas, como um elemento integrador da história da cidade ao pensamento romântico.
Walter Spalding (1901-1976) em sua obra Pequena História de Porto Alegre,
11
dedica um capítulo exclusivo para tratar sobre a iluminação, a água, o esgoto e a higiene na
cidade. Spalding preocupa-se em relacionar os assuntos acima de forma a dar coesão a sua
narrativa. Em um primeiro momento, o autor liga a questão da pouca iluminação da cidade
com a ocorrência dos despejos de lixo que eram, segundo o autor, muitas vezes jogados no
Guaíba. De acordo com o historiador:
Porto Alegre somente teve iluminação pública depois de ser elevada a categoria de
cidade, assim mesmo, um candieiro em cada esquina e unicamente no centro urbano.
[...] O resto era escuridão completa quando não havia lua. E dizem até que em noites
de lua os candieiros públicos não eram acendidos. Nem havia grande necessidade,
pois de acordo com as posturas policiais, ao toque do sino da Catedral nove horas
da noite, depois ampliado para dez horas ninguém podia estar fora de casa, a não
ser que tivesse licença especial da polícia ou tivesse precisão de procurar um
médico. Mas em certos dias da semana, depois do toque, manifestava-se a limpeza
pública. Viam-se então, filas de escravos, guardados pela polícia, de “potes” na
cabeça rumo as margens do Guaíba onde os despejavam.
12
Em seguida, Spalding trata sobre a questão da água em Porto Alegre. Para o
historiador, o problema da água nesta cidade “foi, sempre debatido pelas autoridades, desde a
instalação da capital do Rio Grande do Sul no então Porto de São Francisco dos Casais”.
Entretanto, o problema principal não teria de início se concentrado na falta de água, “pois que,
além de ficar a capital, nas margens do Guaíba, havia em toda a encosta da colina de granito,
boas fontes de águas cristalinas que deixavam o precioso líquido dentro das casas construídas
na encosta.” O problema com relação ao abastecimento de água, para o autor, teria começado
10
PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre (coletânea de crônicas organizada por
Delsino Varela). Porto Alegre, 1940.
11
SPALDING, Walter. Pequena História de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Livraria Sulina, 1967.
12
Idem, p.139.
24
após a construção dos aterros, principalmente os que deram origem a Rua Sete de Setembro.
13
Depois deste acontecimento:
[...] toda a população, pode-se dizer, foi obrigada a buscar sua água para todos os
fins no Guaíba. Houve, então, sério trabalho na Câmara municipal para estabelecer
pontos da margem de nosso lago tectônico onde a água não estaria contaminada.
E chegaram à conclusão de que o Guaíba fornecia água excelente depois de 20
metros de sua margem. Foi, então, aquele lufa-lufa para a construção de “trapiches”
onde seria coletada água pura. Porém, as dificuldades eram grandes, foi criada, em
1857, a “Fonte dos Pobres”, inaugurada a de janeiro de 1857, substituindo a
primitiva, de 1772, na Rua do Arvoredo.
14
Dando continuidade ao assunto em sua narrativa, Spalding informa que em 30 de
outubro de 1866, teria sido “terminantemente proibida a venda de água tirada do Guaíba, ao
público, e a 2 de dezembro do mesmo ano foram inaugurados os serviços de fornecimento de
água encanada”
15
através da Companhia Hidráulica Porto-Alegrense. Ademais às
informações do autor, encontramos também algumas curiosidades no que tange as condições
da água. Segundo Spalding, “não havia, entretanto, água filtrada. A água, apenas decantada
em diversas comportas, no alto do Moinhos de Vento, era distribuída, da última, diretamente
ao público. Em épocas de grandes chuvas, em vez de água saía barro das torneiras!”
16
Diante a esta situação apontada por Spalding, no que diz respeito às questões que
envolviam o problema da água e o despejo de lixo, surgiria um terceiro problema para a
cidade, ou seja, aquele que se refere às condições de higiene da mesma. Para resolver tais
problemas, teria se criado segundo o historiador, em 14 de setembro de 1850 a Comissão de
Higiene que era “composta de médicos e vereadores”. Tal comissão teria se tornado, mais
tarde, a Seção de Higiene ligada ao Departamento de Obras Públicas e posteriormente sido
transformada em Diretoria de Higiene.
Apesar das criações vistas acima, o autor aponta também que “poucos foram por mais
de cinqüenta anos, os progressos no terreno higiênico em Porto Alegre.” Mesmo assim, a
situação no que tange à higiene teria melhorado, com o estabelecimento da Diretoria de
Higiene, esta última por sua vez no período republicano. A esta melhoria o historiador
ressalta alguns elementos: primeiramente a construção da linha férrea de Porto Alegre, que
levava os despejos do material fecal à chamada Ponta do Dionísio, localizada na Zona Sul da
cidade. Deste primeiro elemento se ligaria o segundo, ou seja, a proibição de “fossas e
13
Idem, p.142.
14
Idem, p.143.
15
Idem.
16
Idem, p.144.
25
buracos encimados por casinhas, nos fundos dos quintais”. Tais medidas teriam
proporcionado uma melhora significativa no campo da higiene, através do início da instalação
de um sistema de esgoto em 1913. Este terceiro elemento apontado pelo autor, apesar de ser
debatido desde 1880 pela Câmara Municipal, teria se expandido somente a partir do século
XX. Assim, na opinião de Spalding, “graças a Deus, nos dias que correm, a higiene em Porto
Alegre, principalmente neste setor, está sanada.”
17
Entretanto, como podemos observar sobre a obra do autor, um setor ainda necessitaria
(na época em que o mesmo escreveu seu trabalho) ser sanado, „coisa‟ que existe
universalmente e ninguém, ainda, conseguiu extirpar: as malocas [...] falsamente denominadas
„vilas populares‟, são o maior foco não de falta de higiene, como da malandragem em
geral.”
18
Por fim, o que nos chama a atenção para este capítulo de Spalding é sua finalização,
quando o mesmo indica para este assunto a leitura de algumas obras, que considerava
importantes:
Para este capítulo muito recomendamos a leitura da obra de Athos Damasceno
Ferreira “Imagens Sentimentais da Cidade” – que é um belo livro, ricamente
ilustrado, leve e sorridente, que Porto Alegre deve a seu grande cronista. Do mesmo
autor recomendamos mais: “Poemas da Minha Cidade”, e a “novelinha de
arrebalde” “Moleque”, que nos conta e descreve parte da vida social da velha
Porto Alegre, e mais a Menininha, que é um flagrante muito bem apanhado da vida
íntima, da vida familiar de outrora, em nossa bonita cidade que o “murmuro Guaíba
beija e afaga”.
19
Vimos, portanto, que Walter Spalding preocupava-se primeiramente em construir uma
narrativa que buscava a sistematização de elementos, que podemos considerar congruentes.
Assim, o autor procura dar sentido à narrativa histórica ligando a limpeza da cidade e a forma
como esta era realizada, com os problemas derivados da água. Somente após a descrição
destes elementos, o mesmo aponta para as condições de higiene da cidade.
Para além da precisão das datas dos decretos, podemos perceber que o autor utiliza
bibliografias de apoio para a construção de sua narrativa. Além dos textos da nota final,
podemos localizar também a utilização da obra de Sebastião Leão, Datas Rio-Grandenses”.
No entanto, observamos também uma lacuna com relação à utilização de fontes de arquivo,
que pudessem dar um suporte mais consistente a seu estudo. Adiante, como vimos, sua nota
17
Idem, p.146.
18
Idem, p.147.
19
Idem, p.147-148.
26
de encerramento de capítulo pode demonstrar o quanto o autor liga a história do saneamento
da cidade de Porto Alegre a uma visão de base romântica.
A esta perspectiva de construção histórica baseada em uma visão romântica sobre os
diferentes aspectos da cidade, podemos perceber uma paulatina mudança a partir da segunda
metade do século XX. Neste momento, torna-se verificável sobre a produção historiográfica
da cidade de Porto Alegre, uma preocupação mais evidente dos autores com o trabalho e
manuseio das chamadas fontes primárias ou de arquivo. Fazendo parte presente nestas
mudanças, podemos observar também uma maior concentração sobre os aspectos
quantitativos, que ao que tudo indica procuravam basicamente se diferenciar do modelo de
escrita das obras anteriores.
20
O Saneamento técnico (1960-1980)
Na esteira destes acontecimentos, Paul Singer elabora na cada de 70 uma obra
denominada: Desenvolvimento econômico e evolução urbana
21
. Torna-se nítida, através
desta obra, a preocupação do autor com relação à construção de uma narrativa histórica, que
possibilite agregar uma grande quantidade de dados estatísticos derivados quase sempre de
fontes de arquivo, relacionando-as com as bibliografias existentes até então sobre o assunto.
Da junção destes dois elementos, Singer estabelece um novo tipo de narrativa, que procura
ressaltar a história da cidade diante os aspectos de desenvolvimento econômico. Neste
sentido, quando o autor aponta as questões ligadas ao saneamento urbano da cidade, o mesmo
o trata como um importante elemento derivado do desenvolvimento econômico e industrial.
Para Singer:
É neste período que a urbanização da cidade faz progressos marcantes, com a
criação ou o aperfeiçoamento de serviços municipais: 1904 municipalização e
melhora do serviço de água; 1907 introdução de serviços de bondes elétricos; 1908
início do funcionamento de usina hidrelétrica para iluminação pública.
22
20
A esta mudança na forma de escrita da história podemos creditar os problemas políticos ocorridos no Brasil na
década de 60, quando da ocorrência do golpe que instituiu uma Ditadura Civil-Militar no país. A tomada do
poder pelos militares acabou ocasionando inclusive a interferência direta sobre as faculdades de Ciências
Humanas e Sociais, fato este que gerou, por exemplo, os chamados “expurgos” na UFRGS. Para maiores
detalhes torna-se importante ver: MANSAN, Jaime V. Os expurgos na UFGRS: afastamentos sumários de
professores no contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969). 2009. Dissertação (Mestrado em História)
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2009.
21
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução urbana de São Paulo,
Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
22
Idem, p.180.
27
Assim, Singer buscava ligar a “evolução urbana” da cidade a um possível
desenvolvimento econômico da mesma, cujas bases desta “evolução” estariam condicionadas
basicamente a um passado atrelado a questão agrícola. Além do mais para o historiador, que
não se atém somente sobre possíveis visões do passado, o presente cobraria novas medidas.
Concluímos, pois que a evolução econômica de Porto Alegre está hoje tão
condicionada como no passado ao desenvolvimento da agricultura do Estado e a
solução dos problemas que o afetam. No passado, soluções de ousadia inegável e
que alteraram por completo a estrutura cio-econômica do estado tais como a
grande empresa de colonização de mais da metade do território arrancaram a
economia do Rio-Grande do marasmo e abriram caminho ao surgimento da
metrópole porto-alegrense. No presente, a luta por novos padrões de
desenvolvimento sócio-econômico está exigindo soluções de igual envergadura.
23
Continuando nesta mesma linha bibliográfica que trata de aspectos do saneamento
público na cidade, chamamos a atenção também para outra obra deste mesmo período, agora
do professor Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007). Em sua obra denominada
Porto Alegre: aspectos culturais
24
, o professor e a época diretor do Arquivo Histórico do
município de Porto Alegre, ressalta alguns dos elementos ligados a história do saneamento
público da cidade. Seu trabalho diferencia-se basicamente dos escritos “românticos”, no que
tange a preocupação com o uso de fontes documentais.
A obra de Macedo, mais empírica do que “romântica”, possui como característica o
embasamento sobre fontes documentais que tratam de diferentes aspectos culturais da cidade
ao longo de sua história. Podemos notar que o autor utiliza um grande número de leis,
decretos e outros tipos de documentação de cunho oficial para dar suporte a sua escrita
durante todo o desenvolvimento de seu trabalho. Observar-se também que Macedo através de
sua obra trata brevemente de assuntos, como: as epidemias do século XIX na cidade, os
serviços sanitários, as comissões e inspetorias e do saneamento público da mesma. No
entanto, como nas obras anteriores, Macedo deixa de mostrar como se inter-relacionavam
todos estes elementos como parte de um desenrolar histórico dentro da perspectiva cotidiana
de seus habitantes na cidade.
Macedo também não demonstra uma preocupação com relação à recepção das leis e
decretos administrativos pelos diferentes grupos, instituições e agentes históricos que faziam
parte da cotidianidade histórica da cidade no século XIX. Além do mais, no andar de nossa
23
Idem, p.196.
24
MACEDO, Francisco Riopardense. Porto Alegre: aspectos culturais. Porto Alegre: SMEC, Div. de Cult.,
1982.
28
pesquisa encontramos documentações que aparentemente não foram localizadas pelo
historiador (como o mesmo afirma), com relação aos desenhos dos recipientes utilizados e da
forma dos transportes que seriam adotadas através do contrato de limpeza pública,
estabelecido no ano de 1878:
Para transportá-los (cubos) os contratantes apresentaram dois tipos de carros cujos
desenhos, infelizmente, não foram conservados, como também não o foi o próprio
contrato. Mas pela reunião da Câmara de 12 de novembro de 1878 se percebe que
havia o compromisso de fazer o lançamento bem longe da praia e para isto,
inicialmente, seriam aproveitados alguns trapiches existentes no litoral norte, porque
o vereador Martins de Lima, chamando-os de “pontes”, diz que seriam aproveitados
até se deteriorarem.
25
Na verdade para nossa felicidade e para o bem da história da cidade de Porto Alegre,
tal contrato e seus respectivos desenhos foram conservados e encontrados por nós em perfeito
estado de conservação no próprio Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho, como
se pode ver através de um trecho retirado do mesmo:
João Alfredo Pitrez e Candido José Ferreira Alvim, tendo feito os necessarios
estudos, conceberão o plano de estabelecer uma empresa nesta Cidade, destinada a
conducção de materiais fecais e aguas servidas [...] A empreza perceberá como
retribuição a quantia de trez mil reis mensaez, por cada habitação doz proprietarios
ou inquilinos e a de cinco mil reiz para conducção das aguaz servidas e materias
fecaes conjunctamente, que tiver usual cada casa ficando o direito a cobrar dez mil
reis pelos dous serviços nos hoteis e naquelas casas em que houver
reconhecidamente excesso.
26
Anexado a esta documentação encontramos também as imagens dos desenhos que
foram elaborados para servirem de modelo as futuras melhorias que deveriam ser empregadas
nos serviços de limpeza da cidade, como pode ser verificado no terceiro capítulo desta
dissertação.
Os principais trabalhos direcionados ao assunto do saneamento público em Porto
Alegre se encontram em duas obras de um mesmo autor, intituladas: Histórico dos Sistemas
de Água e Esgotos da Cidade de Porto Alegre (1981)
27
e Pequena História da Limpeza
Pública na Cidade de Porto Alegre (1983)
28
. Estes dois trabalhos foram produzidos por
Telmo Cardoso Costa, por iniciativa à época do Departamento Municipal de Água e Esgotos
25
Idem, p.71.
26
AHPAMV. Construção e Melhoramentos do Município, caixa 12, 1877-1879.
27
COSTA, Telmo Cardoso. Histórico dos Sistemas de Água e Esgotos da Cidade de Porto Alegre 1779 a
1981. Porto Alegre: Oficinas Litográficas do DMAE, 1981.
28
COSTA, Telmo Cardoso. Pequena História da Limpeza Pública na Cidade de Porto Alegre. Porto Alegre:
Editora DMLU Assessoria de Comunicação Social, 1983.
29
(DMAE) de Porto Alegre e do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU)
também de Porto Alegre. Estas duas obras possuem características semelhantes quanto ao
processo de suas construções. Podemos constatar primeiramente a preocupação do autor com
relação ao uso de fontes documentais que buscam quase sempre dar suporte ao enredo de sua
narrativa. Segundo, a construção dessas narrativas indica também o cuidado do autor com
relação às questões técnicas no que tange a história do saneamento. Este último elemento
permite-nos vislumbrar detalhes retirados sobre a documentação por Costa, que nos
possibilita ter uma idéia de caráter técnico sobre o desenvolvimento do saneamento da cidade.
Assim, entre uma lei e outra sua história sobre o saneamento vai se delineando como uma
história político-técnica do saneamento da cidade.
O problema central das duas obras de Costa, ao que nos parece, reside menos no fato
de tratar-se de uma narrativa história de cunho político (afinal, elas foram encomendadas para
este fim, como deixam bem claro suas apresentações) e mais na ausência de uma possível
articulação entre estas políticas públicas do saneamento, verificadas pelo autor, com as
práticas ligadas às ações empreendidas pelos agentes históricos na cotidianidade da cidade.
Além do mais, como veremos adiante, tais medidas assentavam-se muitas vezes sobre um
saber hipocrático, baseado quase sempre sobre o controle da ambiência. Elemento este que
acaba por passar despercebido pelo autor.
Podemos encontrar também neste período uma pequena referência sobre os problemas
derivados do saneamento na cidade de Porto Alegre na obra de Clóvis Silveira de Oliveira
(1985), intitulada Porto Alegre: a cidade e sua formação
29
. Oliveira argumenta que foi a
partir de 1878, que “as autoridades começaram a se preocupar em atender as necessidades de
saneamento” na cidade. No entanto, o autor faz uma ressalva, sem especificar uma data rígida
para o início destas práticas:
Pela legislação que o Império fez obedecer, percebe-se que foi no início da segunda
metade do século passado que adquiriram maior freqüência as preocupações com a
higiene pública e pelos termos dos principais documentos parece que grande parte
dos problemas eram esperados de fora, através de navios: doenças epidêmicas,
febres trazidas de longe e que a falta de limpeza agravava.
30
O que podemos observar na obra de Oliveira, é que mesmo o autor não tendo como
objetivo principal tratar em sua obra sobre as questões relativas à história do saneamento da
29
OLIVEIRA, Clóvis Silveira de. Porto Alegre: a cidade e sua formação. Porto Alegre: Ed. Norma, 1985.
30
Idem, p.220.
30
cidade, este elemento acaba não passando despercebido em seu estudo. Oliveira, ao indicar o
ano de 1878 como um possível ano de intensificação das questões ligadas ao saneamento na
cidade, demonstra sua interação sobre as fontes documentais no que se refere ao saneamento
da cidade neste período.
Em 1986 a historiadora Margaret Marchiori Bakos defendeu sua tese de doutorado,
intitulada: Continuísmo e continuidade na administração pública municipal de Porto Alegre
1897-1937”.
31
Este estudo acabou sendo publicado dez anos depois, sob a denominação:
Porto Alegre e seus eternos intendentes.
32
Bakos, através destes estudos, analisou o que
chamou de continuísmo e continuidade na administração pública da cidade entre 1897 e 1937.
Dentre os inúmeros problemas que aponta (como o do crescente endividamento da cidade no
período), a historiadora não esquece de salientar alguns dos problemas derivados do
saneamento público na capital, bem como as medidas adotadas na tentativa de solucionar
estes mesmos problemas. Assim, Bakos trata sobre o sistema de esgoto, dos problemas
derivados da água e do serviço de coleta de lixo na cidade.
33
Demonstra também, que apesar
de terem sido criadas uma série de medidas, no que tange às soluções destes problemas pelo
poder público municipal a partir de 1897, Porto Alegre não contava ainda com planejamento
de longo prazo que pudesse prever as necessidades futuras da cidade.
34
A obra de Bakos acabou por contribuir com nosso estudo ao apresentar em detalhes as
políticas público-administrativas na esfera do saneamento a partir de 1897, possibilitando-nos
uma melhor compreensão com relação à continuidade destes serviços na cidade ao longo do
período republicano. Mesmo assim, cabe ressaltar que a questão do saneamento não se
restringe somente às questões político-administrativas. Existem outras esferas que também
podem ser analisadas, como por exemplo, a presença da constituição do saber ou de saberes
mediante o exercício das práticas político-administrativas. Assim, veremos ao longo deste
trabalho como se estruturava o saber hipocrático sobre o saneamento público na cidade, como
uma unidade presente na constituição destas práticas políticas.
Antes de findar o próprio século XX, os anos 90 no Brasil marcariam um novo rumo
(que acabaria por influenciar também a história do saneamento da cidade de Porto Alegre),
acerca da forma de como se processava a produção e o conhecimento intelectual no âmbito da
31
BAKOS, Margaret Marchiori. Continuísmo e continuidade na administração pública municipal de Porto
Alegre 1897-1937. 1986. Tese (Doutorado em História Econômica) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986.
32
BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
33
Idem, p.85.
34
Idem, p.86.
31
história.
35
Se anteriormente era nítido que uma geração dava mais ênfase à produção
intelectual na história baseada sobre o uso de fontes documentais, criticando inclusive os
chamados folcloristas ou romancistas, a geração do pós-1990 no Brasil abrirá espaço também
para críticas com relação a esta segunda geração, que abarca principalmente as décadas de 60
a 80.
O Saneamento como problema (1990...)
A partir da década de 1990, os documentos ganhavam uma nova dimensão, deixavam
de ser vistos como regimes fechados de verdade, para então se tornarem objetos cujo
constructo foge a margem de uma única via de interpretação. Na verdade, como afirmava o
historiador francês Jacques Le Goff, todo documento passava a partir daquele momento a ser
visto também como um monumento. Os documentos através deste entendimento, para além
de fontes do passado passariam também a ser vistos como objetos construídos de acordo com
intencionalidades específicas. Eles seriam “dados a ver” de determinada forma, caberia assim
ao historiador ultrapassar o limite do “dado” para ver a “intencionalidade do construído”. Nas
palavras de Le Goff:
[...] do mesmo modo que se fez no século XX a crítica da noção de fato histórico,
que não é um objeto dado e acabado, pois resulta da construção do historiador,
também se faz hoje a crítica da noção de documento, que não é um material bruto,
objetivo e inocente, mas que exprime o poder da sociedade do passado sobre a
memória e o futuro: o documento é monumento.
36
Assim, os dados estatísticos com relação, por exemplo, à mortalidade infantil, pouco
poderiam dizer sobre os diferentes aspectos que cobririam a morte de crianças, ou o número
de infectados e mortos por uma epidemia pouco poderiam dizer sobre a força do impacto
causado sobre a mentalidade individual e/ou coletiva na cotidianidade de uma cidade, bem
como sobre a situação do saneamento nestes momentos.
Na esteira desta tendência, encontramos alguns trabalhos que se tornaram referências
no que diz respeito a uma nova visão sobre os assuntos ligados à história da saúde pública
35
Na verdade este debate teve seu início na Europa em meados dos anos 1960, quando dos acontecimentos que
ficaram conhecidos como a “crise da modernidade”. Após esta dita “crise”, surge uma obra organizada pelo
historiador francês Jacques Le Goff , intitulada: Faire de l´histoire. Tal obra, composta de três volumes, marcará
profundamente os estudos da história ao abrir espaço para novas reflexões. Para maiores detalhes ver: LE GOFF,
Jacques (Org.) História: Novos problemas, Novas abordagens, Novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
36
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. p.9.
32
(incluindo-se dentro deste campo o assunto saneamento), principalmente para os estudos
desenvolvidos no Rio Grande do Sul.
A primeira obra na entrada dos anos 90 que nos chamou a atenção para o assunto
saneamento em Porto Alegre foi a dissertação de Mestrado da professora Beatriz Teixeira
Weber (1992), intitulada Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em
Porto Alegre no século XIX.
37
Tal obra mostra a importância do Código de Posturas como
elemento regulador da sociedade porto-alegrense do século XIX:
No processo de urbanização, destaca-se a minuciosidade do código de posturas de
Porto Alegre quanto a higienização, demarcando os limites do convívio no espaço
urbano que permitissem a concentração da população no mesmo. Construía-se, com
isso, a definição de uma sociedade sã, sem doenças, sem crimes, sem revoltas, que
formasse indivíduos fortes e saudáveis para o trabalho.
38
Com este apontamento, a historiadora destaca portanto, que o Código de Posturas em
Porto Alegre teria servido não só para a regulamentação do espaço urbano, mas também como
objeto de preparação social ao novo modelo de trabalho que se estava a estruturar na cidade, a
partir da segunda metade do século XIX. Weber descreve também o Código de Posturas como
uma fonte que aponta para além de um documento/monumento, um objeto político de
preparo, proibição, enquadramento, controle e fiscalização social, ou seja, um objeto que:
“parece demonstrar como se configurou o comportamento desejado para a vida nas cidades de
acordo com os interesses de uma classe dominante que buscava manter hegemonia.”
39
São
estes Códigos de Postura que “regularão o dia a dia da população [...] demonstrando a
preocupação com a preservação da ordem e a segurança pública, incluindo as relativas à
saúde pública.”
40
Entretanto, o impacto causado pelo processo de urbanização, através de medidas
efetivas de controle sanitário sob o espaço urbano, mediadas por uma possível compreensão
dos indivíduos diante as questões voltadas ao saneamento urbano na cidade foi inexplorado
pela autora. Além disso, Weber destaca que o primeiro código de posturas de Porto Alegre
data do ano de 1829, porém, no desenvolvimento desta pesquisa, encontramos um código de
posturas um pouco mais antigo, que data do ano de 1810 e que atualmente se encontra no
37
WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre no
século XIX. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
38
Idem, p.157.
39
Idem, p.7.
40
Idem, p.8.
33
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
41
Neste código de posturas encontramos dois parágrafos
que tratam especificamente sobre as questões ligadas ao saneamento na cidade. Em exemplo,
citamos o artigo 14º: Acordarão mais, que nenhuma pessoa deitaria animaes mortos na rua,
nem lance siscos, imundicias, e aguas sujas nas mesmas ruas, encorrendo o que contravier em
mil réis para as despezas do Conselho”.
42
Neste sentido, o código de Posturas Municipais de Porto Alegre, como verificado por
Weber, demonstra ser uma fonte importantíssima para a história da cidade, pois para além dos
aspectos ligados a regulamentação da vida cotidiana da população, pode também nos revelar
alguns aspectos que dizem respeito à própria história do saneamento sob a cotidianidade da
população oitocentista da cidade.
No ano de 1992, a história de Porto Alegre passou a contar também com um trabalho
desenvolvido pela historiadora Cláudia Mauch. Tal trabalho, intitulado Ordem pública e
moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890”
43
,
acabaria por ser publicado dois anos depois em uma coletânea que trata sobre a história de
Porto Alegre na virada do século XIX
44
. Nestes estudos de Mauch, a autora analisa
basicamente o discurso de dois jornais de época (Gazeta da Tarde e Gazetinha), cujo foco
centrava-se em discutir os principais problemas que afetavam a cidade de Porto Alegre no fim
do século XIX. A historiadora ressalta que em muito destes discursos, dizia-se que para
resolver os problemas da cidade era necessário realizar um “saneamento moral” na capital.
Segundo Mauch:
A larga utilização de expressões como “saneamento moral” e “doença social” e a
designação de becos e espeluncas como focos de desordem e imoralidade,
demonstram que os jornalistas faziam uma associação constante entre a sociedade e
um organismo vivo, um corpo. Bastante em moda na época, essa metáfora médica
ou biológica interpretava o vício e o crime como doenças contagiosas que
ameaçavam a saúde da sociedade, tal como a peste bubônica ou a varíola.
45
41
ANRJ Código de Posturas de 1810, Mesa, cx. 187. Ver também a obra de RHODEN, Luiz Fernando. A
fronteira sulina do Brasil na primeira metade do século XIX: traçados urbanos e arquitetura. 2004. Tese
(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
42
ANRJ digo de Posturas de 1810, Mesa, cx. 187.
43
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. 1992. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
44
MAUCH, Cláudia. Saneamento moral em Porto Alegre na década de 1890. In: MAUCH, Cláudia et al. Porto
Alegre na virada do século 19. Porto Alegre / Canoas / São Leopoldo: Ed. Universidade/UFRGS / Ed. ULBRA
/ Ed. Unisinos, 1994.
45
Idem, p.11.
34
Neste sentido, a historiadora nos alerta para a possibilidade de novas perspectivas de
entendimento do social, que não necessariamente poderiam explicar as ações políticas dos
indivíduos na cotidianidade da cidade, como derivadas exclusivamente de uma visão
concentrada sobre o próprio universo político. Ao mostrar a metáfora do uso do discurso
médico e/ou biológico nos jornais como argumentação para os problemas sociais ao final do
século XIX pelos seus agentes históricos, a historiadora contribui para a história da cidade ao
apontar para este “novo” aspecto a ser estudado sobre esta sociedade do passado. A cidade
assim descortina-se como um objeto de estudo e de análise intrigante, que perpassa a
compreensão mediada por explicações cujo universo de atuação torna-se fechado em seu
horizonte. Mauch abre espaço para a compreensão de uma possível junção de saberes (bem
como suas manipulações) para a construção de um discurso de controle e ordenamento na
cidade. Restava assim saber como se apresentava (caso tenha ocorrido) esta junção de saberes
no que se refere à história do saneamento. Trataremos sobre isso ao longo do trabalho.
Na esteira destas obras chamamos a atenção também para uma Tese defendida pela
Arqueóloga Fernanda Tocchetto no ano de 2004.
46
A autora nos mostra sob a luz da
Arqueologia, um estudo detalhado de como era processado o descarte de lixo em quatro
unidades domésticas da Porto Alegre oitocentista (Chácara da Figueira, situado no Morro
Santana, Solar Lopo Gonçalves, localizado nos arrabaldes de Porto Alegre, A Casa da
Riachuelo, localizado na região central de Porto Alegre, e por fim, o Solar da Travessa
Paraíso, localizado no Menino Deus, Morro Santa Teresa). Nesta obra, Tocchetto faz uma
articulação entre o discurso higienista de época, com as práticas cotidianas ligadas ao descarte
doméstico. A autora mostra a influência propiciada pelas transformações de ordem do Sistema
Capitalista na vida cotidiana doméstica, articula estas transformações com o discurso
higienista europeu e analisa este processo mediante os discursos, as representações e as
práticas de descarte doméstico na Porto Alegre oitocentista. A obra da autora é rica em
detalhes e nos mostra a força do discurso, os componentes de representatividade que estes
carregavam e a resistência nas unidades domésticas mediante o comprimento de novas leis
que eram estabelecidas pelo poder público.
Entretanto, a arqueóloga procura se concentrar nas unidades domésticas (campo onde
a Arqueologia é determinante) e acaba pouco explorando o potencial do espaço público,
principalmente no que diz respeito à limpeza urbana. Nossa dúvida principal quanto a isso
46
TOCCHETTO, Fernanda Bordin. Fica dentro ou joga fora? Sobre práticas cotidianas em unidades
domésticas na Porto Alegre oitocentista. 2004. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
35
era: o comportamento social com relação à sujeira e a limpeza no âmbito público (externo e
visível) seriam o mesmo do âmbito privado (interno e limitado visivelmente)? Procuramos
responder a esta pergunta ao longo do trabalho, mesmo assim, antecipamos aqui um
indicativo de que tais comportamentos aparentemente não se apresentariam de forma tão
diferente, como aponta o trecho que retiramos do jornal A Reforma do dia 04 de fevereiro do
ano de 1870, onde um jornalista comenta uma carta enviada por um leitor ao jornal:
É pena realmente que a mara não tenha tomado algumas providências para a
melhor conservação do belo edifício do Mercado.
Além do calçamento [...] necessidade da construção de mijadouros, pois que a
cada canto do edifício se vêem poços de urina, que ao fim de alguns dias exalam
um cheiro repugnante.
47
Além do mais, cabe ressaltar outro ponto relevante, aquele que diz respeito à própria
base de diferenciação entre as duas ciências; assunto o qual tratamos anteriormente. Neste
sentido, encaminhamos a proposta de construção de um trabalho de cunho histórico e não
arqueológico.
Uma obra mais atual é a tese de Nikelen Acosta Witter, defendida no ano de 2007 e
intitulada Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio
Grande do Sul, século XIX)”
48
. A historiadora, através de seu trabalho, identifica o papel de
“três sujeitos plurais”, os quais denominou de sofredores, governantes e curadores. A autora
ao utilizar estas três categorias, acabou por ampliar o nosso entendimento sobre como se
processava as práticas e as experiências sobre a doença e a cura no século XIX.
Logo, entre os curadores incluímos os médicos formados e formais (licenciados,
cirurgiões examinados, e outros), boticários, práticos e curandeiros em todos os seus
matizes e diferenças. por sofredores compreende-se o doente, seus parentes e
amigos próximos, enfim todos os que se envolviam e se preocupavam com a dor e o
destino do enfermo.
49
Paralelamente a este universo da doença e da cura, a autora também ressalta a
importância dos governantes como elementos plurais. Neste sentido, a historiadora abre
espaço em seu trabalho para tratar da Comissão de Higiene Pública, da Santa Casa de
Misericórdia e do poder público como agentes na história da saúde.
47
MCSHJC - A Reforma, Porto Alegre, 04 fev. 1870, p. 2.
48
WITTER, Nikelen Acosta. Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio
Grande do Sul, século XIX). 2007. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.
49
Idem, p.99.
36
Witter, ao demonstrar a pluralidade de agentes neste universo da doença e da cura
possibilitou-nos ampliar nosso entendimento sobre as questões ligadas à compreensão da
história da saúde no Rio Grande do Sul, com destaque em especial para a cidade de Porto
Alegre. Entretanto, apesar de sua pesquisa acabar se aproximando em vários momentos de
aspectos ligados ao saneamento público, seu enfoque termina por se direcionar muito mais às
questões das doenças, com ênfase para os problemas ocasionados pela epidemia do cólera na
cidade.
A epidemia do cólera, como sabemos hoje, está em grande medida atrelada aos
problemas na ordem do saneamento. Entretanto, a história do saneamento na cidade não pode
ser assentada somente pelos problemas derivados da doença. Existem outras esferas que se
relacionam a este assunto, que devem ser levadas em conta no processo de constituição desta
história. O que chamamos de saber hipocrático é também um importante elemento a ser
analisado, como constituidor das práticas públicas voltada ao saneamento.
Visto a historiografia sobre o assunto na cidade, podemos observar que alguns dos
aspectos do saneamento público, fazem parte destas narrativas históricas. Entretanto, resta-nos
saber como se apresentava a história deste assunto específico, como um elemento singular. A
partir daí surgem alguns questionamentos que pretendemos responder ao longo desta
dissertação: Afinal, se existe como parece existir, uma história do saneamento público na
cidade, como ela ocorreu? Como se processou? E qual foi a importância do pensamento
hipocrático na constituição das práticas cotidianas, no que tange aos serviços de saneamento
da cidade?
Para responder a estas questões este trabalho foi dividido em três partes. No primeiro
capítulo denominado Uma breve história que envolve saneamento, saúde e doença”,
buscamos demonstrar como se apresentou historicamente a relação destes três elementos
(saneamento, saúde e doença), que consideramos o tripé essencial para a compreensão da
estrutura da percepção humana frente às práticas e experiências políticas adotas sobre a
própria conformação das unidades urbanas das cidades. Nosso objetivo aqui é mostrar que o
desenvolvimento da história da saúde pública relaciona-se também com o que chamamos de
história do saneamento público das cidades; e que entendendo um pouco mais (ainda que de
forma breve) sobre este desenvolvimento na história, poderíamos compreender melhor o
desdobramento desta história na própria cidade de Porto Alegre no século XIX.
Na segunda parte, cujo capítulo é intitulado Saberes e agentes do saneamento na
Porto Alegre oitocentista”, tratamos de analisar a estrutura do saneamento na cidade de Porto
37
Alegre no século XIX. Abordamos a presença do pensamento hipocrático sobre as ações
empreendidas no saneamento da cidade, dos agentes que estavam envolvidos direta e
indiretamente com os problemas derivados do saneamento, dos primeiros movimentos do
saneamento na cidade e por último da passagem do saneamento baseado na limpeza para o
saneamento percebido como um elemento de higiene.
Na terceira e última parte, cujo capítulo tem por título As políticas públicas para o
saneamento de Porto Alegre: o discurso epidêmico e as ações práticas na segunda metade do
século XIX”, abordamos de forma mais detalhada a presença do saber hipocrático na
cotidianidade da cidade, levando em consideração o papel dos agentes e das epidemias como
elementos impulsionadores de diferentes ações sobre o espaço social da cidade. Assim,
dividimos este capítulo por década para melhor compreensão tanto da presença do saber
hipocrático na cidade, quanto das possíveis transformações empreendidas no saneamento da
mesma.
Ao final da Dissertação temos as Considerações Finais”, onde fazemos uma reflexão
sobre o assunto, demonstrando os caminhos percorridos por esta pesquisa, os principais
problemas encontrados para o desenvolvimento desta temática, e por fim, a possibilidade de
desenvolvimento deste assunto mediante futuras pesquisas.
38
PARTE I UMA HISTÓRIA DO SANEAMENTO
39
2 UMA BREVE HISTÓRIA QUE ENVOLVE SANEAMENTO, SAÚDE E DOENÇA
Este capítulo reflete sobre a historiografia a respeito da preocupação humana com o
saneamento público. Ele parte da análise da obra de Hipócrates Ares, águas e lugares”, que
embora clássica e emblemática no tema, raramente é lembrada com relação à atualidade,
apesar de ser uma referência no que tange à vida urbana no mundo antigo e medieval. Trata-se
na verdade de uma obra de importância fundamental tanto para a compreensão da idéia de
saúde e doença até o final do século XIX, quando na atribuição das práticas de saneamento,
baseadas sobre este mesmo pensamento.
50
Primeiramente, nosso objetivo se concentra em demonstrar a importância da
compreensão dos antecedentes históricos do saneamento público, como base para um possível
entendimento acerca das políticas públicas adotadas sobre o saneamento na Porto Alegre
oitocentista. Para isso, tratamos de abordar o saneamento como um elemento histórico que se
desdobra em um processo longo de característica singular e ao mesmo tempo plural. Singular
no sentido que envolve um eixo preciso; neste caso o saneamento público na história. Plural
porque permeia pelos mais diferentes campos da História, principalmente sobre aqueles que
dizem respeito à idéia de saúde e de doença na mesma. Neste sentido, tratamos de fazer uma
análise que busca saber como o assunto saneamento se desenvolveu através das relações
humanas que foram estabelecidas de acordo com as condições sociais e os conhecimentos
próprios de cada período na história.
51
Tais conhecimentos e condições sociais, através deste estudo, acabaram por se
apresentar como parte de um único processo dentro do universo de ações, neste caso, as
formas de combate aos problemas derivados da falta de limpeza e de serviços de higiene. Será
através deste universo de ações especificas, mediadas por componentes da cultura local, que
tais relações acabaram por adquirir certa especificidade quase, mas não unicamente como
50
Por prática entendemos uma ação ou um ato/maneira de agir, um exercício que é composto pela coexistência
de pensamento, que pode se apresentar consciente ou inconsciente. A prática pressupõe a existência do habitus,
que na visão de Bourdieu: “são princípios geradores de práticas distintas e distintivas, o que o operário come, e
sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua
maneira de expressá-las [...] são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de
visão e de divisão e gostos diferentes.” BORDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas,
SP: Papirus, 1996. p.22.
51
Sobre o conceito de saneamento e saneamento público, estes são termos que definimos ao final desta
dissertação, por acharmos que estes dois elementos devem ser analisados diante o desdobramento histórico, antes
de serem conceitualizados, visto serem termos centrais para esta dissertação. Neste sentido, procuramos evitar o
chamado “nominalismo”, que é um ato de reduzir o significado de noções gerais a uma enumeração particular.
Cf. LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser: um estudo da história de uma idéia. São Paulo:
Palíndromo, 2005. p.19-20.
40
em um jogo de poder ao longo do tempo.
52
Assim, analisar a força do componente destas
ações, através de medidas efetivas de controle sobre o saneamento no espaço das cidades
53
,
torna-se uma tarefa que nos propomos realizar, através do desenvolvimento do presente
capítulo.
Portanto, neste capítulo partiremos para uma longa jornada antes de chegarmos à
temática especifica circundante a história da cidade de Porto Alegre. Iniciamos nosso estudo
tratando daquilo que chamamos de “origens” do pensamento sanitário na história, que ao
nosso entender se remete à antiguidade.
2.1 A SAÚDE DO CORPO E DA ALMA: DA ANTIGUIDADE AO MEDIEVO
No que diz respeito às origens do pensamento sanitário sobre a limpeza e a higiene ao
longo da história, trabalhamos centrados basicamente em uma obra, cuja importância
mostrou-se fundamental para os estudos da história da Saúde Pública no mundo ocidental.
Esta obra de autoria do historiador norte-americano George Rosen (1910-1977), denominada
pelo autor de “Uma História da Saúde Publica”
54
, pode ser considerada uma obra inovadora,
52
Como a noção de tempo ou tempos é tão discutida quanto a noção de história, pois tal conceito abrange as
mais diferentes áreas do conhecimento, que não se confinam somente as Ciências Humanas, preferimos adotar a
idéia de tempo no sentido de acreditarmos haver movimento, mesmo que tais movimentos sejam encarados
como exclusivamente fruto de eventos e acontecimentos diários, e não pela ação do próprio tempo, uma vez que
tais unidades se constituem e se imbricam, não como assim estabelecer, até o momento, se um estaria em
movimento e o outro em contínuo repouso. Mesmo assim, para tal discussão, torna-se fundamental a leitura de
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins
Fontes, 1990. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. México: D. F. Fondo de Cultura Económica, 1997.
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas: Verus Editora, 2007. GAUER, Ruth M. Chittó.
Tempo/História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa:
Edições 70, 1999. VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993. Ver também: BRAUDEL.
Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1990. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Pasado. Para
uma semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993.
53
Sobre a questão do espaço nas cidades, tomamos de empréstimo a concepção de Braudel: “Grande ou
pequena, a cidade é bem mais do que a soma de suas casas, de seus monumentos e de suas ruas, bem mais
também do que um centro econômico, comercial ou industrial. Projeção espacial das relações sociais, ela é, ao
mesmo tempo, atravessada e estruturada pelo feixe de linhas limítrofes que separam o profano do sagrado, o
trabalho do lazer, o público do privado, os homens das mulheres, a família de tudo o que lhe é estranho. E
oferece um admirável quadro de leitura.” BRAUDEL, Fernand. O espaço e a história no Mediterrâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 1988. p.132. Este é o conceito de espaço que trabalhamos ao longo desta dissertação,
levando em conta que o espaço diante as expansões do domínio histórico podem ser também, segundo Barros,
“um „espaço imaginário‟ (o espaço da imaginação, da iconografia, da literatura), e adivinha-se que em um
momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o „espaço virtual‟,
produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial.” BARROS, José D‟ Assunção. História,
Espaço e Tempo: interações necessárias. Varia História, Belo Horizonte, vol.22, n.36, Jul-Dez 2006. p.462.
54
ROSEN, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: HUCITEC / Editora da Universidade Estadual
Paulista; Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 1994.
41
visto que foi escrita no ano de 1958 (antes mesmo da autodenominada Nova História
55
na
França “abrir caminhos” para novos campos de estudo na História), tratando sobre um assunto
que ainda era original nos estudos históricos.
Esta obra do historiador norte-americano nos desperta a atenção logo de início, quando
aponta as primeiras evidências de atividades ligadas à saúde comunitária nas mais antigas
civilizações. Rosen começa seu trabalho destacando sítios arqueológicos de cidades que
foram descobertas ao norte da Índia (região de Mhenjo-Daro), que datam aproximadamente
de quatro mil anos a.C, onde se evidenciam construções que, segundo o próprio historiador:
[...] indicam serem essas antigas cidades indianas planejadas em blocos retangulares,
segundo, aparentemente, leis de construção. Banheiros e esgotos são comuns nas
construções escavadas. As ruas eram largas pavimentadas e drenadas por esgotos
cobertos. Esses canais de escoamento ficavam cerca de dois pés ou menos, abaixo
do nível da rua, e consistiam, em sua maior parte, de tijolos cimentados com uma
argamassa de barro. Usaram-se materiais superiores no interior das casas e, ao
menos em uma ocasião, se mencionam canos de drenagem, embutidos, para evitar-
se vazamento, em emplastro de gesso.
56
Esta verificação de Rosen não é isolada no conjunto de sua obra, pois o mesmo
observa também a presença desta preocupação em outros tipos de construções em cidades
antigas da região Mesopotâmica, do Egito e de Creta. Nossa primeira dúvida com relação a
esta constatação do historiador resume-se a seguinte pergunta. A que se deve esta verificação
nestas construções? De início o próprio historiador aponta para uma relação entre a limpeza e
a religiosidade:
No decorrer de longos períodos da história, crenças e práticas religiosas avizinharam
limpeza e religiosidade. As pessoas se mantinham limpas para se apresentarem puras
aos olhos dos deuses, e não por razões higiênicas. Egípcios, mesopotâmios e
hebreus, e outros povos, davam valor a esses hábitos.
Um exemplo interessante da conexão entre limpeza e religião é uma festa quéchua, a
citua. A cada ano, em setembro, início da estação chuvosa, o povo, liderado pelo
inca, realizava a cerimônia da saúde; além da oração, de oferendas propiciatórias aos
deuses, e de outras práticas religiosas, limpavam-se todos os lares.
57
Podemos ver que Rosen aponta para dois elementos, como constituidores das práticas
de limpeza. O primeiro ligado a questão da purificação religiosa, ao que podemos perceber
55
Termo utilizado por Ciro Flamarion Cardoso para denominar aqueles que se diziam seguidores de uma nova
história, cujos expoentes maiores seriam alguns historiadores franceses ligados a chamada Terceira Geração dos
Analles. CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS,
Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.1-23.
56
ROSEN, op. cit., p.31.
57
Idem, p. 32.
42
como a purificação da alma ou do espírito. O segundo, ligado sobre o ritual quéchua, que era
uma cerimônia “destinada” a saúde. No que tange a este segundo ponto, outra pergunta se faz
necessária: a que saúde referia-se o historiador, a saúde do corpo ou a saúde da alma? O
próprio Rosen não se atém a este problema preferindo dedicar-se as doenças, localizando-as
como um elemento que aflige o homem durante toda sua história, algo como “inerente à
vida”. Tais doenças de caráter endêmico ou epidêmico teriam sido enfrentadas pelos
indivíduos deste período de acordo com o conhecimento que “se sustentava, quase sempre,
em termos sobrenaturais”. O que, portanto, viria a distinguir-se do período da Medicina
Moderna, devido ao fato desta última tentar entender as doenças através do estudo no próprio
corpo.
Esta constatação também não passa despercebida por Michel Foucault (1926-1984),
outro importante pesquisador que se dedicava à história da saúde. O filósofo francês constatou
através de seus estudos, que antes mesmo do homem se preocupar com a saúde do corpo era a
busca pela saúde da alma (e conseqüentemente uma derivação para o corpo), que estava em
jogo. Foucault inclusive chama-nos a atenção para um período específico da história, quando
o então Estado romano da antiguidade assume a tarefa de responsável por cuidar das almas
dos indivíduos. Segundo o autor:
Quando el Imperio Romano cristalizó en la época de Constantino, el Estado por
primera vez en la historia del mundo mediterráneo se atribuyó la tarea de cuidar las
almas. El Estado cristiano no sólo debía cumplir las funciones tradicionales del
Imperio, sino también permitir que las almas lograsen su salvación e incluso forza-
las a ello. Así el alma se convirtió en uno de los objetivos de la intervención de
Estado. Todas las grandes teocracias, desde Constantino hasta las teocracias
mitigadas del siglo XVIII en Europa, fueron regímenes políticos en los que la
salvación del alma constituía uno de los objetivos principales.
58
Entretanto, tal preocupação com a alma ou o espírito não significava que esta
preocupação estaria atrelada somente ao mundo sobrenatural. Para este caso, citamos os
gregos da antiguidade, que apontavam a natureza das doenças também como elementos
derivados de causas naturais. O próprio Rosen chama-nos a atenção em uma parte de seu
trabalho, para esta constatação, através da obra de Hipócrates (460-377 a.C.), Ares, Águas e
Lugares, como:
[...] o primeiro esforço sistemático para apresentar as relações causais entre fatores
de meio físico e doença e, por mais de dois mil anos, o texto epidemiológico
58
FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. La Plata; Santa Madalena; Argentina:
Altamira/Acmé, 1996. p.45.
43
essencial, o sustentáculo teórico para a compreensão das doenças endêmicas e
epidêmicas. A esse respeito, não se deu nenhuma mudança fundamental até o final
do século XIX, quando as novas ciências da Bacteriologia e da Imunologia se
instituíram.
59
Para além de um tratado teórico, a obra Ares, Águas e Lugares, também possuía como
podemos perceber uma função prática, quase como um guia que orientava a salubridade dos
lugares. Através deste guia, Hipócrates aconselhava:
A arte médica: quem procura conhecê-la com uma investigação minuciosa, deve
fazer o seguinte: primeiro de tudo levar em consideração as estações do ano e as
influências causadas por cada uma delas; de fato, não se assemelham em nada, mas
diferenciam-se bastante umas das outras e cada uma nas suas variações.
Deve em seguida considerar os ventos, quentes e frios; primeiro aqueles comuns a
todos os homens, depois aqueles que são peculiares a cada região. É preciso, depois,
examinar também os efeitos da água: como de fato diferem no gosto e no peso,
assim como também é bem diversa a ação exercida por cada uma dessas diferenças.
Assim, se um médico chega a uma cidade que não conhece, deve estudar sua
posição, como é orientada a respeito dos ventos e do nascer do sol: não tem, de fato,
a mesma influência (sobre a saúde dos habitantes) aquela [cidade] que é voltada ao
norte e aquela que é voltada ao sul, assim como o mesmo ocorre com uma cidade
situada em direção ao oriente ou em direção ao ocidente.
[...]
Também o solo deve ser examinado: se pobre e árido ou arborizado e rico em água,
além disso, se situado em uma depressão e sufocante por causa do calor ou se
elevado e frio.
Por fim, a atenção deve voltar-se ao nível de vida que é mais agradável aos seus
habitantes: se preferem o vinho, as comidas e são dedicados ao ócio, ou se amam o
trabalho duro, os exercícios físicos e comem à vontade mas bebem pouco.
60
Hipócrates neste sentido daria os primeiros passos em direção ao que poderíamos
denominar de racionalização da medicina. Uma medicina que buscava a compreensão dos
fenômenos da doença através da análise” dos meios naturais.
61
O que possibilitaria melhor
entender a importância dos meios (lugares), do clima (ares) e das águas, como componentes
essenciais para a compreensão do papel da limpeza no espaço (saneamento) e
conseqüentemente da saúde do corpo.
Entender o impacto deste sistema de pensamento hipocrático para enfim compreender
os desdobramentos históricos no campo da saúde pública e conseqüentemente de saneamento
torna-se assim, de fundamental importância para a história das cidades, principalmente como
um fator que irá anteceder as próprias transformações que serão empreendidas nos processos
59
ROSEN, op. cit., p.37.
60
HIPÓCRATES. Dell'aria, delle acque, dei luoghi; Il giuramento; La legge. Firenze: Sansoni, 1957. p.62-
65. O trecho citado acima foi traduzido por Carolina Etcheverry.
61
MOSSÉ, Claude. As lições de Hipócrates. In: LE GOFF, Jacques (Org.). As doenças m história. Lisboa:
Terramar, 1985. p.39-55.
44
de urbanização das mesmas, atrelados a idéia de modernidade e modernização do espaço,
ligado ao ideal de otimização do mesmo a partir da segunda metade do século XIX. Porém,
antes de adentrarmos a esta problemática específica, daremos continuidade ao que
consideramos uma breve história que envolve o saneamento público, saúde e doença.
Continuando nesta linha de atuação, cabe destacar o sistema de limpeza e
saneamento das cidades romanas, que também deixaram marcas visíveis de suas construções,
que perduram inclusive funcionalmente até os dias atuais.
62
Tais construções romanas, como
o complexo sistema de aquedutos, tinham como característica principal a preocupação tanto
com o abastecimento de água para consumo da população, quanto seu uso perante a limpeza
individual e pública. Segundo o estudo de Rosen:
Agripa, ministro de Augusto, foi edil em 330 a.C. Tinha como deveres a supervisão
dos banhos públicos, incluindo o teste dos aparelhos de aquecimento, e a limpeza e o
policiamento. No tempo de Nero, os aediles supervisionavam a limpeza das ruas,
pelas quais se responsabilizavam os proprietários das casas [...] Entre as glórias de
Roma, esteve a criação de serviços públicos de saúde em um sistema administrativo
eficiente. Esse sistema continuou a funcionar mesmo quando o Império decaiu e se
desintegrou.
63
O historiador Giordani também aponta, em uma de suas obras
64
, para os banhos na
Roma da antiguidade como um importante elemento na vida cotidiana dos habitantes da
cidade, ligados possivelmente a uma concepção de higiene, seja individual ou coletiva. Tais
atos de banhar-se para Giordani, seguindo as observações de Sêneca, não se negariam nem
aos escravos e miseráveis:
Segundo Sêneca, os antigos romanos lavavam os braços e as pernas todos os dias e
tomavam banho completo a cada nove dias. No terceiro século A.C. introduziu-se o
costume do banho quente. “O banho quente diário era um alívio físico que não se
negava nem aos mais miseráveis, nem aos escravos”. Os primeiros tinham a
possibilidade de, mediante modesta retribuição, banhar-se nas termas construídas
especialmente para o povo, os segundos banhavam-se em casa.
65
Os banhos públicos também eram espaços de sociabilidade onde os romanos se
encontravam para “conversar, fazer ginástica, jogar dados e até ler”. Além disso, o banho
romano compreendia três etapas: a primeira consistia num banho com água quente em uma
62
Como aponta RUSHFORTH, Gordon McNeil. Arquitetura e Arte. In: BAILEY, Cyril (Org.). O legado de
Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p.421-479.
63
ROSEN, op. cit., p.48.
64
GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.
65
Idem, p. 214-215.
45
piscina denominada caldarium; a segunda consistia em um repouso numa piscina com água
morna, que era denominada de tepidarium; a terceira e última etapa do banho realizava-se
numa piscina com água fria, a qual se chamava frigidarium.
66
O ritual do banho romano
consistia, como é verificado por Oliveira, também em outras etapas onde:
O indivíduo era esfregado com ungüentos, óleo e areia e a seguir raspado com uma
esponja de metal, até ficar limpo terminando com a indispensável massagem com
essências e âmbares. Não faziam questão, ao inverso dos gregos, de separar banhos
masculinos e femininos, embora as entradas fossem diferentes e os vestuários
distintos. Era mais pudico aos romanos o ato de despir-se ou vestir-se, do que
mostrar a própria nudez.
67
Além dos banhos, destaca-se também em Roma o sistema de esgotos que começou a
ser empreendido ainda no período etrusco, quando então foi construída a chamada cloaca
maxima” pelo rei Tarquínio o Velho.
68
Segundo os estudos de Macaulay sobre as construções
romanas, o mesmo indica que:
Os esgotos construídos primitivamente sobre as calçadas, para o escoamento da água
da chuva, foram aumentados e ligados aos edifícios públicos e particulares por
canalizações de terracota. Alguns esgotos tinham 1,80m de profundidade. Eram
todos construídos em pedra e argamassa e recobertos por lajotas de pedra removíveis
para permitir eventuais reparos. As lajotas eram recobertas de terra batida por onde
passavam as tubulações de chumbo que vinham das caixas d‟água.
69
Com o fim do Império Romano do Ocidente, podemos observar também uma
bifurcação sobre o conhecimento ligado a saúde pública. O primeiro segmento desta
bifurcação diz respeito à continuação do Império no Oriente. Nesta direção, ocorreram fusões
entre os conhecimentos romanos do Ocidente, ligados ao saneamento das cidades, com os
conhecimentos árabes em parte ligados a Medicina e a saúde. Estes acontecimentos teriam
assim, proporcionado um conhecimento diferenciado nesta região em relação à própria cidade
de Roma.
70
66
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.86.
67
OLIVEIRA, Neide Gomes de. História dos hábitos de higiene no Brasil dos séculos XIX ao XX. Revista de
Historia - UFES, Vitória, vol.2, n.2, 1991. p.43.
68
COARELLI, Filippo. Roma. In: BRAUDEL, Fernand. O espaço e a história no Mediterrâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 1988. p. 92.
69
MACAULAY, op. cit., p.74. É importante ver também a ilustração de uma latrina pública romana no ANEXO
A, ao final desta dissertação.
70
Sobre estas influências, trocas de idéias e divergências nos mais diferentes campos do conhecimento entre o
mundo ocidental e oriental, torna-se importante ver a obra de HOURANI, Albert. Uma história dos povos
árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Ver também a obra de KAPLAN, Alain D. M; MARTIN,
Bernadette; MICHEAU, Françoise. A Idade Média no Oriente Bizâncio e o Islão: dos bárbaros aos
46
o segundo seguimento desta bifurcação diz respeito ao desenvolvimento histórico
dos serviços de higiene e saúde no mundo ocidental. Segundo Rosen, os primeiros quinhentos
anos da Idade Média teriam sido marcados por uma superposição de elementos ligados a
crenças e ritos, cada vez mais sobre os aspectos ligados ao corpo e a doença. Entretanto,
“sendo o corpo o vaso da alma, ganhava importância fortalecê-lo fisicamente, para que
pudesse suportar melhor os ataques do demônio. Entre esses limites se moviam a Higiene e a
Saúde Pública na Idade Média”.
71
Assim, tal conhecimento não teria sido totalmente abolido
ou ignorado pela Igreja Católica, mas ao contrário:
O conhecimento de saúde e higiene sobrevivente se preservou em claustros e igrejas
e foi usado na organização e nas regras das comunidades monásticas. Instalações
higiênicas importantes, como água encanada, latrinas apropriadas, aquecimento e
ventilação própria nos cômodos, já existiam no início da Idade dia, sobretudo
onde se erigiam grandes prédios de moradia, segundo um plano uniforme; ou seja,
principalmente nos mosteiros.
72
As bases das construções destes mosteiros teriam servido também como modelo, mais
tarde (por volta do século X), para o desenvolvimento e crescimento de algumas cidades na
Europa. Entretanto, este detalhe não teria impedido um dos maiores problemas enfrentado
pelas pessoas que passavam a habitar estas cidades, a saber: o acesso a água, ou melhor, o
acesso a água limpa e de boa qualidade para o consumo. Este problema, de acordo com
Rosen, teria sido uma constante preocupação das autoridades municipais deste período:
Quando se colhia água de rios, pedia-se aos cidadãos para não lançar animais
mortos, ou refugos, na corrente. Não se permitia aos curtidores lavar suas peles no
rio, proibia-se aos tintureiros de vazar nessa água os resíduos de corantes, como
também a lavagem de linho ou roupas (Donai, 1271; Augsburg, 1543; Roma,
1468).
73
A este aspecto de diferenciação cronológica quanto às primeiras medidas adotadas, no
que se refere à preocupação no “bom usopúblico e coletivo da água, pesariam também a
condição social, a densidade demográfica de determinados espaços e o manejo de suas forças
produtivas sobre o ambiente natural. Além destes aspectos, soma-se também o elemento
Otomanos. LISBOA: Publicações Dom Quixote, 1994. p.209-227. VERGER, Jacques. Cultura, ensino e
sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Bauru, SP: EDUSC, 2001. p.140-146.
71
ROSEN, op. cit., p.53.
72
Idem.
73
Idem, p. 55. Torna-se importante esta observação, pois nos próximos capítulos trataremos de abordar este
mesmo problema na cidade de Porto Alegre, quase 600 anos após as primeiras medidas adotadas na cidade de
Donai, 400 anos após as intervenções em Roma e 300 anos após as preocupações da cidade de Augsburg.
47
cultural, como um modo de ser, ver e agir dos indivíduos diante de suas sociedades. É este
“modo de ser”, que possibilitaria a verificação de que tal sociedade difere uma da outra, e
conseqüentemente permite visualizá-la de forma específica.
74
A seguir, abordaremos como se
desenvolveu a noção de saneamento na Idade Média, destacando as ações empreendidas sobre
o lixo e a limpeza pública nas cidades.
2.2 O LIXO E A LIMPEZA PÚBLICA NO MEDIEVO EUROPEU
Os problemas ligados ao destino do lixo e aos serviços de limpeza das cidades
tornaram-se, ao que tudo indica um desafio crescente às cidades européias medievais desde o
final do século IX. Este fator se deve basicamente ao modo de vida dos habitantes das cidades
deste período, que praticamente não diferenciavam os costumes da vida rural com os do meio
urbano.
75
Esta pequena diferenciação da vida no campo com a da cidade, teria agravado a
situação da segunda em relação à primeira, em parte isto se deve a um fator como a alta
densidade demográfica das cidades em relação ao campo e conseqüentemente uma maior
concentração populacional sobre o espaço ocupado. Segundo Arruda:
De modo geral, a população começou a crescer por volta do século XI, alcançando
seu máximo no século XIV, quando sobreveio a Peste Negra, que atingiu
principalmente a população urbana. As maiores cidades do Ocidente foram: Paris,
Milão, Veneza, Florença e Nápoles; o número de habitantes de cada uma nunca deve
ter ultrapassado os 100.000. Várias cidades possuíam entre 30.000 e 50.000
habitantes, como é o caso de Londres, Gand, Bruges, Ypres, Lübeck, Colônia,
Praga, Ruão, Toulouse, Barcelona, Gênova, Bolonha, Roma e Palermo. Na Espanha
muçulmana, Córdova atingiu 900.000 habitantes no século XI.
76
O lixo, assim, começaria a entrar em cena na história das cidades como um importante
problema a ser solucionado, agravado tanto pelos problemas do aumento populacional, quanto
pela pouca diferenciação dos costumes das populações da vida no campo em relação às
cidades. Tais problemas acabaram afetando diretamente o saneamento urbano, como podemos
ver:
Remover o lixo revelou-se desafio importante de higiene, de difícil solução técnica
no período medieval. Não se deve esquecer que nas casas medievais se juntava
74
Referimo-nos aqui àquilo que Ricoeur interpretou como “modo de ser que somos a cada vez” do estudo de
Heidegger sobre o Dasein. Tal interpretação encontra-se no segundo capítulo denominado História e Tempo, da
obra de RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
75
A este aspecto torna-se essencial ver a obra de THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
76
ARRUDA, José J. de A. História Antiga e Medieval. São Paulo: Editora Ática, 1976. p.394.
48
muito mais refugos do que em uma casa moderna. O modo de vida na cidade ainda
não se afastava muito da vida no campo e, no começo, as casas urbanas se
assemelhavam às da aldeia. Além da abundância de refugos, o fato de muitos
habitantes criarem quantidade de animais como porcos, gansos e patos
representava outra causa relevante do aumento da sujeira das ruas [...] Por vezes, a
imundice assumia proporções tamanhas que padres não conseguiam oficiar
cerimônias e funcionários municipais não podiam comparecer a reuniões.
77
Será a partir do século XII, na Europa, que medidas efetivas de controle das sujeiras
iriam ganhar forma. As primeiras medidas concentraram-se na pavimentação das ruas de
maneira a torná-las limpas e de cil controle de sua manutenção. Paris teria sido a primeira
em 1185, seguida de Praga em 1331, Nurembergue 1368, Basiléia 1387 e Augsburgue 1416.
78
A estas medidas que visavam à pavimentação, surge também a obrigatoriedade da
construção de um sistema de esgotos e cloacas, pois “não havia rede de esgotos, os detritos
eram atirados às ruas, numa vala, por onde escorriam em direção aos limites da cidade; se
acumulavam à beira dos muros, formando os focos de epidemia que com freqüência
assolavam as populações medievais”.
79
Ao que tudo indica estas novas construções tinham por objetivo também acabar com
os refugos que eram lançados diretamente aos rios. O que não teria se concretizado ao menos
na Inglaterra, como bem observa Rosen: “mesmo quando se contrataram limpadores de rua
para retirar da cidade entulhos e imundícies, usando-se carroças, os habitantes continuaram a
jogar refugos no rio Tamisa.”
80
A esta prática de descarte em rios, que normalmente eram
utilizados como único meio de abastecimento e consumo de água potável, seguiam-se também
as doenças relacionadas direta ou indiretamente a este problema. Uma das principais doenças
de caráter infecto-contagioso que afetará grande parte das populações de então, será a
chamada cólera-morbo.
81
Para combater tais enfermidades epidêmicas que se alastravam na Europa durante este
período, vários foram os dispositivos adotados para se tentar compreender e evitar tais
doenças, dentre estes Czeresnia destaca as práticas de combate à peste negra em 1348:
As práticas que se instituíram para fazer face à peste buscaram, assim, evitar a
proximidade e o toque, e, ao mesmo tempo, neutralizar com perfumes e máscaras os
77
ROSEN, op. cit., p.55.
78
Idem, p.56.
79
ARRUDA, op. cit., p.394.
80
ROSEN, op. cit., p.56.
81
Para maiores detalhes quanto à história do cólera, torna-se importante ver a obra de WITTER, Nikelen Acosta.
Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX).
2007. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2007.
49
odores viciados que corrompiam o ar. A corrupção do ar era percebida como
fenômeno originário do lixo, das profundezas do solo, de conjunções astrológicas
malignas e também dos próprios doentes e cadáveres. A doença se alastrava de um
para outro; a participação do ar era fundamental.
82
Além desta percepção sobre a doença que se ligava ao meio externo, também foram
adotadas medidas públicas para o calçamento de ruas e a construção de sistemas de esgoto,
bem como a fiscalização, o controle e a supervisão dos serviços ligados ao sanitarismo das
cidades. Além disso, de acordo com a região ou o lugar, eram também nomeados indivíduos
públicos para assumir tal compromisso em meio às comunidades, tais indivíduos provinham
normalmente de algum tipo de conselho. Segundo Rosen, apesar da variação da nominação no
que tange aos cargos públicos neste período - consul (na região da Itália e no sul da França),
échevins (norte da França e Países Baixos) e vereadores (na Inglaterra) - tais nomenclaturas
consistiam basicamente nas mesmas funções, ou seja, o controle do serviço público.
83
Outras formas de se combater tais doenças assentavam-se também na assistência
médica através da criação de instituições beneficentes (de início de caráter clerical), que
datam do século VIII nos mosteiros medievais, bem como da criação dos primeiros hospitais
que datam do século IX, tanto no Ocidente como no Oriente.
84
Além dos hospitais havia também as casas de banho, que apesar de possuírem uma
função mais atrelada a “teatralização”
85
, como um espaço de convívio e prazer do que de
higiene, podem também ser consideradas como importantes centros de “higiene”, pois
chamamos a atenção aqui para o ato em si, e não para sua finalidade ou objetivo. Assim, se as
casas de banho não tinham por finalidade principal a limpeza do corpo, indiretamente o ato de
entrar em contato com água pode ser revelador de algum tipo de limpeza, mesmo que para os
moldes atuais sejam as mais superficiais. Além disso, tais casas de banho eram licenciadas
pelas municipalidades como importantes centros de higiene nas cidades e acabariam por ser
obrigatoriamente fechadas por volta do século XV, quando do aumento de infecções causadas
pela sífilis. A este “cuidado” da limpeza do corpo, chamamos a atenção para uma idéia da
possibilidade de extensão da vida matério-corporal sobre o componente terreno, pois na visão
82
CZERESNIA, Dina. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da
epidemia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. IV, n. 1, mar.-jun. 1997. p.77. Grifo nosso.
83
ROSEN, op. cit., p.65.
84
Os dados aqui são impressionantes, de acordo com Rosen, entre os séculos XII e XV na Inglaterra, instalaram-
se mais de 750 hospitais, sendo que deste total, 216 eram destinados a portadores da lepra. Idem, p.69.
85
Teatralização é a palavra utilizada por Vigarello para descrever a finalidade e os objetivos do banho durante a
Idade Média: “A finalidade principal é o jogo, ou mesmo a transgressão, a água é essencialmente festiva. O que
significa que a lavagem não é a verdadeira razão do banho”. VIGARELLO, Georges. O Limpo e o Sujo: a
Higiene do Corpo desde a Idade Média. LISBOA: Editorial Fragmentos, 1985.
50
do historiador George Rosen isso pode indicar que:
O homem medieval cuidava de seu corpo muito mais do que se imagina. Embora em
geral se considerasse a existência terrena, e existisse a crença na punição, ou na
salvação, no outro mundo; havia também a convicção de que, seguindo-se um
regime correto, poder-se-ia estender a vida até três vintenas e mais dez anos.
86
A esse “regime correto” que se refere o historiador, originou-se toda uma literatura
fundamentada sobre fontes clássicas (principalmente sobre a Hipocrática). Tais fontes eram
utilizadas praticamente como guia obrigatório nas ordens monásticas, regulando sobre a
conduta de higiene pessoal no interior dos mosteiros. Do século XII ao XV escreveu-se um
grande número destes livros, em latim ou em várias línguas vernaculares.
87
Destacamos entre
estas obras um pequeno trecho de um dos mais antigos regulamentos encontrados sobre saúde
sanitária, escrito provavelmente pela chamada Escola de Salerno.
88
Este regulamento data do
século XII e aborda em forma de verso os chamados quatuor humoribus corporis em latim,
ou em italiano quattro temperamenti:
Somente de quatro humores superiores
São compostos os corpos humanos:
O hipocondríaco, o bilioso,
O sanguíneo e o fleumático;
Os quais se quer que correspondam
Terra, fogo, ar e água.
89
Por força de todos estes empreendimentos no que tange aos problemas de origem
sanitária, bem como um elemento ligado a saúde pública, os homens do medievo não podem,
ou pelo menos não deveriam ser vistos como meras marionetes de um teatro cuja manipulação
caberia única e exclusivamente a uma força teo-divina, onde tal poder delimitaria tanto o
86
ROSEN, op. cit., p. 69.
87
Idem.
88
VERGER, op. cit., p.146-151.
89
REGIMEN Sanitatis Salarni. Milano: [s.n.], s/d. Capo LXXXV, p.67. O trecho foi traduzido do italiano para o
português por Carolina Etcheverry. Em Língua Italiana temos: Sol di quattro umor soprani / Son composti i
corpi umani: / L’ipocondrico, il bilioso, / Il sanguigno ed il flemmatoso; / Cui si vuol, che corrisponda / Terra,
fuoco, aere ed onda. Segundo Etcheverry, “Na teoria dos humores, os quatro são geralmente traduzidos para o
português como sanguíneo, colérico (que chamam de bilioso no poema), melancólico (que chamam de
hipocondríaco) e fleumático.” Além disso, o termo sopranipode ser entendido também como superiores “no
sentido de serem importantes, quase divinos”. De acordo com a observação de Sant‟Anna, Hipócrates
considerava que: “o corpo constituído por humores tendia a permanecer em equilíbrio. A doença era traduzida
em termos exceção natural, como se ela fosse um desequilíbrio que pudesse ser curado pela própria natureza. Em
suma, a natureza afirmava-se como sendo capaz de encontrar, por ela mesma, as vias e os meios.”
SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi de. É possível realizar uma história do corpo? In: SOARES, Carmen Lúcia
(Org.). Corpo e História. 3.ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. p.7.
51
pensamento, como o meio prático da ação na vida cotidiana.
90
Além disso, Jacques Le Goff
alerta-nos para algumas construções que eram realizadas sob a intervenção das coletividades
urbanas:
Aqueduto, poços, canais, chafarizes, todos os trabalhos e obras destinados a garantir
o abastecimento de água das cidades e o escoamento das águas cabem também em
grande parte aos senhores, aos estabelecimentos eclesiásticos e, eventualmente, a
particulares. Mas ainda aqui se assiste às intervenções da coletividade urbana. Em
Provins, por exemplo, em 1273, o prefeito René Acorre introduz intra muros canos
de água nas casas e ruas. Em 1283, a cidade solicita ao rei o direito de instalar por
conta própria quatro novas fontes e em 1292 negocia o direito de fazer passar por
vinhas canalizações destinadas à alimentação dessas fontes.
91
Além disso, tais conhecimentos eram derivados também em alguns casos, de tradições
que perpassavam o tempo, podendo ser encontrados inclusive em cidades cuja história
remete-nos ao período da antiguidade. Assim, a obra de Hipócrates sem dúvida será um
componente de distensão da aplicação de um conhecimento, mesmo sendo um conhecimento
em constante readequação no que tange aos aspectos do saneamento.
92
A ação empreendida no trabalho de pavimentação das ruas, construções de sistemas de
esgotos, criações de hospitais, casas de higiene corporal, regimentos de saúde sanitária,
assistência médica e criações de cargos administrativos específicos para o trato com os
assuntos que dizem respeito ao sanitarismo e ao saneamento das cidades, podem demonstrar o
quanto estes indivíduos eram ativos no que tange a preocupação direta sobre um aspecto da
vida urbana, ou seja, a saúde coletiva.
93
De acordo com Rosen:
Ao examinarmos os numerosos empreendimentos da Saúde Pública medieval os
esforços para lidar com os problemas sanitários da vida urbana, para criar medidas
administrativas (como a quarentena), para criar o hospital e oferecer cuidados
médicos e assistência social impossível não reconhecer a magnitude dessa façanha.
Essas tentativas de criar um sistema racional de higiene pública se distinguem ainda
mais se lembrarmos que tiveram lugar em um mundo de superstições abundantes e
90
Chamamos a atenção aqui para critica que Lovejoy fez as terminologias em “ismos”, como elementos que
podem simplificar e delimitar a possibilidade de um possível conhecimento, que foge a dadas verificações. Para
maiores detalhes, ver: LOVEJOY, op. cit., p.13-31.
91
LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.112. Grifo do autor.
92
Por ser este desdobramento do pensamento hipocrático muito importante para o saneamento na história das
cidades, ele é um elemento central que pode ser observado ao longo de toda esta dissertação.
93
No que diz respeito a esta preocupação, ela é mais nítida quando trata-se em falar do surgimento da
quarentena, entre os séculos XIII e XIV. Tal prática ocorreu basicamente na tentativa de controlar o alastramento
da chamada peste negra sobre a Europa. Esta prática, entretanto, possui uma história anterior, ligada ao ato de
isolar indivíduos com lepra do restante dos habitantes das cidades. Assim, este ato de isolar pode ser visto tanto
como um ato de exclusão dos indivíduos do seio comum em sociedade, como um ato de preocupação de
indivíduos (individual ou coletivamente) diante uma possibilidade de completa exposição frente a uma doença
ainda pouco conhecida.
52
em que muito de conhecimento científico necessário para enfrentar os problemas de
saúde estava ausente. Revela-se mais significativo ainda, do ângulo histórico, o
desenvolvimento de padrões de pensamento e de prática em cujo interior a Saúde
Pública mover-se-ia nos dois séculos e meio seguintes.
94
Os dois séculos e meio seguintes a que se refere o historiador, cobrem o período que
vai de 1500 a 1750, terceira etapa de um recorte do modelo quadripartite francês, denominado
de Idade Moderna. Momento este onde talvez as influências do Renascimento, das
descobertas marítimas e do nascimento do Sistema Capitalista, seja o pano de fundo mais
importante, principalmente para a história da Europa. Articular este momento específico da
história com o desenvolvimento das idéias e das práticas perante a limpeza e o saneamento
público nas cidades, torna-se uma tarefa a que nos propomos realizar a seguir.
2.3 O SANEAMENTO E A SAÚDE SANITÁRIA NA MODERNIDADE
Durante um longo período na história, tornou-se comum, pelo menos entre os
historiadores mais antigos, o trato da chamada Era Moderna, justamente como os homens do
“moderno” se referiam, ou melhor, se distinguiam do que denominavam “o homem do
período das trevas”. Na verdade, esta diferenciação se assentou durante muito tempo sobre
aspectos que procuravam ressaltar muito mais a diferença do que as semelhanças. O próprio
Renascimento, ou renascer, acabou por possuir um significado atrelado muito mais ao
denominado “homem da antiguidade” do que ao “homem do medievo”. Esta observação pode
ser melhor compreendida se levarmos em conta que neste período ocorreram uma série de
transformações, derivadas do nascimento da chamada ciência moderna, do crescimento das
cidades, dos novos estabelecimentos de atividades econômicas, da Reforma religiosa, do
desenvolvimento do chamado Estado-Nação e da invenção da imprensa. Estes são alguns dos
aspectos que marcam profundamente o que podemos denominar de diferenciações com
relação ao período anterior. Entretanto, tais diferenciações, nem sempre se assentavam sobre
elementos desvinculados totalmente de procedências anteriores, pois mesmo havendo tais
transformações, estas possuíam bases que se remetiam a permanências no medievo. Assim,
como o próprio medievo europeu possuía como vimos anteriormente, bases profundas de
permanências ligadas à antiguidade.
95
94
ROSEN, op. cit, p.71.
95
A este aspecto de permanências, adotamos uma perspectiva de análise que leva em conta também a mudança,
baseada no que Braudel denominou de Longa Duração na história. Para maiores detalhes, torna-se interessante
ver sua obra: BRAUDEL, 1990, op. cit., p.7-39.
53
Nem mesmo quando tratamos dos desenvolvimentos “científicos”
96
deste período,
podemos considerá-los somente como frutos de meros acasos. Para Rosen, por exemplo:
O avanço científico não é nunca uniforme ou simultâneo, ao longo de uma frente
inteira, mas ocorre, segundo tempos diferentes, de várias maneiras, em áreas de
conhecimento específicas. Em algumas ocasiões são necessárias a descoberta e a
definição de dados elementares; em outras, quando um conhecimento existe, pode
ocorrer um avanço frutífero através da criação e da aplicação de um conceito
integrador, ou atacando-se um problema mais complexo e contribuindo-se para sua
resolução. Relativamente à Saúde Pública, no Renascimento, todos esses aspectos
estiveram presentes.
97
É neste sentido que insistimos sobre a atualidade do pensamento de Hipócrates, pois
ressaltamos novamente o papel exercido por sua obra, que continuou como referência aos
conhecimentos derivados de problemas sanitários. Assim, tanto as águas, os ares e os lugares
eram percebidos e difundidos como fontes diretas causadoras dos principais problemas
ligados principalmente à saúde coletiva.
98
Na verificação de Thomas, os elementos
hipocráticos também aparecem diante seus estudos na Inglaterra dos séculos XVI e XVII:
No século XVI e início do século XVII, os médicos formados nas universidades
recebiam um ensino puramente acadêmico sobre os princípios de fisiologia dos
humores, tais como apresentados nas obras de Hipócrates, Aristóteles e Galeno.
Aprendiam que a doença surgia de um desequilíbrio entre os quatro humores (o
sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra). O diagnóstico consistia em
estabelecer qual o humor estava desequilibrado, e a terapia, em medidas para
recompor o equilíbrio, fosse por sangrias (com cortes na veia, escarificação ou
aplicação de sanguessugas) ou submetendo o paciente a uma série de purgantes e
vomitórios. Assim, o médico seguia uma monótona rotina de sangrias e purgas,
prescrevendo ainda emplastros, ungüentos e poções.
99
Esta percepção pouco teria mudado com a descoberta das bactérias por Antony Von
Leeuwenhoek (1632-1723), devido ao fato de tais bactérias apresentarem-se tanto em
condições consideradas saudáveis, como em ambientes prejudiciais. Nesta “lógica” de
96
Colocamos o termo entre aspas precavendo o sentido que pode exercer tal termo, mediante um uso
inadequado, como aponta Henry: “O uso que hoje fazemos da palavra ciência foi cunhado no século XIX e,
estritamente falando, ciência no nosso sentido era algo que não existia no período moderno inicial”. O que
existiria segundo o historiador era algo a que denominavam de “filosofia natural”. HENRY, John. A revolução
cientifica. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.15-16.
97
ROSEN, op. cit., p.77.
98
Inclusive com aprofundamentos em diferentes literaturas, como na obra de Giovanni Maria Lancisi (1654-
1720), denominada “Sobre as emanações nocivas dos pântanos”; a obra de Guillaume de Baillou (1538-1616),
denominada “Sobre epidemias e efemérides”, que aborda a importância climática e atmosférica perante o estado
de saúde dos indivíduos; a obra de Thomas Sydenham (1624-1689), que atribui às doenças, tanto aos problemas
atmosféricos, quanto aos miasmas que possivelmente circulavam pelo ar. Idem, p.89-91.
99
THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra dos séculos XVI e XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.21.
54
pensamento, as bactérias eram percebidas como produtos do meio ambiente, não
necessariamente como causas diretas ou indiretas responsáveis pelas doenças.
100
Portanto, as
bactérias mediante o entendimento de leituras hipocráticas não seriam algo a par do meio.
Neste sentido, não poderiam ser vistas nem como boas nem como más, mas como frutos de
algo pertencente ao espaço (lugar). Possuiriam uma “razão” de existir frente ao universo que
passava então a ser ampliado com relação ao seu conhecimento.
as transformações no que tange aos aspectos políticos da saúde pública, ocorrem
neste período por força de uma junção de fatores característicos desta época. O primeiro
destes aspectos corresponde à ascensão cada vez maior do grande Leviatã, o Estado Moderno,
que “caminhou em direção a um governo nacional centralizado, com um conjunto de
doutrinas políticas e econômicas que influenciaram a administração da Saúde Pública”.
101
A
este fator se ligaria o mercantilismo, que para além de um sistema econômico, “era também
uma concepção de sociedade”, sendo que para este caso “olhava-se o bem-estar da sociedade
como idêntico ao bem-estar do Estado”.
102
Neste aspecto o Estado era visto como forte
mediante a composição em seu núcleo de uma população numerosa e preparada para as
atividades do trabalho. Neste sentido:
Desde o século XVI, as classes dirigentes influenciadas pelos ideais mercantilistas e
preocupadas em aumentar o poder nacional, tiveram que eleger o trabalho como
elemento essencial de geração de riqueza. Tornou-se necessário formular políticas
de saúde que evitassem qualquer perda de produtividade no trabalho devida à
doença ou à morte e que assegurassem o crescimento populacional. Dessas
preocupações nascem as primeiras digreções entorno da noção de política nacional
de saúde.
103
Daí a necessidade do desenvolvimento da matemática como um elemento que
proporcionaria a obtenção de resultados exatos, seja no campo das atividades econômicas,
seja no que se refere a pensar as sociedades e os indivíduos que a compõem. A este fenômeno
Rosen denominou de “aritmética política”, cujos objetivos na área da Saúde Pública, centrar-
se-iam na busca de entendimentos e soluções para os problemas relacionados à saúde coletiva.
Nasceriam neste momento às primeiras estatísticas sobre mortes, nascimentos, doenças,
100
ROSEN, op. cit., p.93.
101
Mesmo assim, de acordo com Rosen, tal administração quanto aos serviços de saúde pública, permaneceriam
centralizadas em unidades locais, principalmente em torno das cidades, o que teria preservado assim, as
características do período medieval. Idem, p.94.
102
Idem, p.95.
103
COSTA, Nilson Rosário. Lutas urbanas e controle sanitário: origens das políticas de saúde no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1985. p.19.
55
número de indivíduos em sociedade, bem como de idade, gênero e atividade profissional.
104
Entretanto, da chamada “aritmética política” sobre as atividades cotidianas das
cidades, pouco ou praticamente nada foi feito para mudar a situação sanitária baseada nos
serviços de limpeza das cidades. Sendo que para muitas destas atividades ligadas à limpeza,
as mesmas eram ainda tratadas como de responsabilidade dos habitantes locais, como no caso
da manutenção das ruas limpas em frente às residências. A esta obrigatoriedade pela
manutenção da limpeza das ruas, por parte dos habitantes das cidades seguia-se, ao que tudo
indica outro problema, referente ao destino das chamadas águas servidas. Para este problema
das cidades, as autoridades teriam se concentrado muito mais em sistemas de fiscalização e
punição, do que em combate direto e eficaz sobre o problema.
Proibiam-se açougueiros e peixeiros de jogar sobras nas sarjetas, ou em quaisquer
cursos d‟água nos quais a cidade pudesse abastecer-se. Previam-se punições para
quem poluísse as ruas com excreções humanas ou animais. Em meados do século
XVII, a cidade de Gloucester tentou resolver esse problema instalando latrinas
municipais. Sob pena de multas para os proprietários, não se permitia aos animais,
em especial aos porcos, perambular pelas ruas.
105
Das práticas cotidianas de descarte nas cidades neste período, destaca-se também um
sistema diversificado e irregular sobre o destino do lixo e das águas servidas. Em algumas
residências haviam jardins destinados especificamente ao despejo das águas servidas, em
cidades cuja densidade populacional era maior, o destino desse material quase sempre ocorria
em espaços fluviais destinados a este fim. No que diz respeito ao lixo e outros refugos, quase
sempre se destinava um local fora do espaço das cidades para se realizarem tais descartes.
Mesmo assim, não era incomum encontrarem-se pessoas descartando lixos diretamente nos
rios, pois a distância destes era provavelmente menor devido à necessidade de abastecimentos
diários da população do que em relação aos locais específicos destinados aos descartes.
106
No século XVI, os limpadores de ruas começaram a ser empregados no serviço de
limpeza das cidades. No entanto, foi somente a partir do século XVII que a maioria das
cidades da Europa adotaria este sistema como um modelo definitivo de limpeza regular. Cabe
salientar, entretanto, que tais sistemas demonstraram-se, em alguns casos, ainda ineficientes,
pois estariam em grande parte atrelados a um modelo de arrendamento particular, como bem
observa Rosen:
104
ROSEN, op. cit., p.98.
105
Idem, p.103.
106
A esta prática de descarte diretamente em rio, a cidade de Porto Alegre merecerá um destaque especial,
desenvolvemos esta problemática nos próximos capítulos.
56
Dublim possuía, no século XVII, um sistema regular de limpeza, cuja fraqueza
residia em seu arrendamento a um particular, raramente disposto a fazer mais do que
o obrigava o contrato. Aliás, o método de enfrentar os problemas comunitários
mediante contratação de um pessoa, ou grupo, particular, se tornou cada vez mais
comum. E veio a se revelar uma das maiores dificuldades administrativa do
moderno movimento da Saúde Pública.
107
A esta observação do historiador, acrescentamos o fato de que tais serviços de limpeza
não eram vistos ou percebidos como de responsabilidade governamental, seja para o âmbito
do Estado-Nação, seja para os poderes administrativos municipais. Aos governos caberia
apenas o controle, a fiscalização e a punição dos indivíduos, vistos como responsáveis diretos
por estes serviços. Assim, “apesar das intenções das autoridades citadinas, e de suas tentativas
de fazer cumprir as várias ordenações referentes ao destino dos esgotos e dos refugos, o
sistema administrativo se revelava inadequado. E assim continuou até grande parte do século
XIX”.
108
Dos 250 anos que cobrem a chamada Época Moderna, como a historiografia nos
aponta, apesar de ser um período marcado pelas “grandes descobertas”, pelo desenvolvimento
do conhecimento científico e pelo surgimento dos Estados-Nação, tal período indica também
ser marcado pela ineficiência, no que tange aos aspectos ligados diretamente aos problemas
de saúde pública, principalmente no que se refere às políticas efetivas sobre os serviços de
saneamento das cidades. Talvez por força de tudo isso, se possa explicar também o grande
número de doenças endêmicas e epidêmicas que se alastravam por todas as regiões da Europa
neste período. Algumas destas, como o suor inglês, o tifo exantemático, o escorbuto, a
escarlatina, a varicela, a sífilis, a varíola, a malária e a peste bubônica, se tornariam um fator
de constante desestruturação na vida cotidiana, principalmente nas cidades. Segundo Thomas:
A mais temida dentre todas era a peste bubônica, que foi endêmica até o último
quartel do século XVII. Era uma doença das cidades e atingia especialmente os
pobres, que viviam em condições de sujeira e amontoamento, atraindo assim os ratos
negros, atualmente considerados como os portadores das pulgas transmissoras das
doenças [...] A peste despertava terror pelo seu caráter súbito, sua virulência e
efeitos sociais. As classes superiores emigravam temporariamente da área atingida,
deixando os pobres morrerem. Em geral, a conseqüência era desemprego, escassez
de alimentos, saques e violências. Os próprios refugiados estavam sujeitos a receber
um tratamento rude por parte das pessoas do campo, pelo temor de que trouxessem a
doença consigo. A violência aumentava com a resistência popular às
regulamentações de quarentena e restrições à liberdade de movimento, impostas
pelas autoridades, especialmente à prática de trancar os contaminados e suas
famílias em suas casas.
109
107
ROSEN, op. cit., p.104. Como veremos no capítulo 3, os contratos tornaram-se também na Porto Alegre do
século XIX, um grande problema para a administração pública.
108
Idem.
109
THOMAS, op. cit., p.20-21.
57
Neste caso, para os aspectos ligados as doenças, os “homens do moderno” pareciam
estar mais nas “trevas”, do que os próprios “homens do medievo”. Já para o caso do
saneamento público, o mesmo parece também acontecer. Entretanto, não demoraria muito
para a conhecida “razão” bater à porta daquilo que denominamos de um novo tempo para a
iluminação na história do saneamento”, onde novas medidas passariam a ser adotadas.
2.4 UM NOVO TEMPO PARA A ILUMINAÇÃO NA HISTÓRIA DO SANEAMENTO
Os oitenta anos que cobrem parte do século XVIII e do século XIX (1750-1830) são
fundamentais para a história do saneamento público na Europa. Contribuíram para isto as
profundas reivindicações sociais que foram impulsionadas pela Revolução Industrial Inglesa,
pelo Iluminismo
110
e pela Revolução Francesa. Estes acontecimentos acabariam por gerar
“novas idéias e tendências revolucionárias da Saúde Pública no século XIX”.
111
Novamente
então uma pergunta deve ser feita: que idéias seriam estas apontadas por Rosen? Para melhor
responder a esta questão, seguiremos os passos do próprio autor.
Primeiramente o historiador norte-americano liga de forma magnífica o Iluminismo à
chamada Razão
112
; esta última, por sua vez, não fora da capacidade do humano de entender e
colocar os problemas como sendo frutos dele mesmo.
113
Este seria um dos primeiros
elementos que ligariam o pensar a saúde pública, como derivada de um problema
exclusivamente humano, sem as chamadas superstições do inumano.
114
Em seguida, girando da razão humana ao bem estar do humano, Rosen chama nossa
atenção para este período pelo fato de ressaltar a saída do pensamento teórico da iluminação
para o campo prático de ação, ou seja, a busca inicial de melhores condições sociais:
110
No que diz respeito ao Iluminismo, cabe aqui a observação de Gauer: “O mundo perfeito, utopia dos
iluministas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações. A racionalidade
expressa pelas convenções e pelas leis tinha como fim imunizar a sociedade contra a violência, a corrupção, a
sedução das crenças e demais impurezas. Os modernos esqueceram, no entanto que não haveria imunidade para
o egoísmo, o niilismo e para a exploração de um número enorme de seres humanos.” GAUER, Ruth M. Chittó.
Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Civitas, Porto Alegre,
vol.5, n.2, jul.-dez. 2005. p.401.
111
ROSEN, op. cit., p.113.
112
Para os aspectos que tratam diretamente sobre a interação do Iluminismo com a Razão, torna-se importante
ver também: NASCIMENTO, M. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1998.
113
No que tange a este elemento o autor trata inicialmente sobre a obra de John Look, Ensaio acerca do
entendimento humano. ROSEN, op. cit., p.114.
114
Daí o grande número de enciclopédias elaboradas neste período, que teriam por função suprir toda e qualquer
lacuna do conhecimento. Entretanto, segundo as observações de Lyotard: a busca pela racionalização do humano
acabou por criar também o inumano, quase como uma segunda natureza que busca se diferenciar da primeira.
Neste sentido, para Lyotard, a educação pode ser considerada como um elemento de desvio do humano ao
inumano. LYOTARD, Jean-François. O inumano. Lisboa: Estampa, 1989. p.11.
58
A avaliação dos aspectos sociais das doenças levou mercadores, médicos, clérigos e
outros cidadãos de espírito público a lutar por melhoramentos. Ao término do século
XVIII, estava enraizada na atenção pública a convicção de serem os problemas de
saúde e doença fenômenos sociais de muita importância para o indivíduo, e para a
comunidade. Reconheciam-se os efeitos da doença sobre o corpo político e se
envidavam esforços na solução do problema.
115
Da teoria à prática as características e o emprego destas medidas efetivas se
diferenciariam em alguns casos, conforme o lugar e a situação social em que se encontravam
as sociedades. Por exemplo, no caso da Alemanha a interferência teria ocorrido mediante a
intervenção governamental, no que foi denominado por Rosen de “política médica” ou
“polícia médica” no controle social. A este mesmo fenômeno Foucault denominou (duas
décadas depois das observações de Rosen) de medicina de Estado, cuja característica seria a
regulação da administração médica em torno do poder estatal:
Com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão médica,
a subordinação dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração
de vários médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série de
fenômenos inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina
de Estado.
116
Na Inglaterra, tais medidas estariam atreladas muito mais a sua dinâmica econômica e
social. Neste caso, o desenvolvimento se caracterizaria mais pela ação privada do que um
controle efetivo e governamental, como no caso alemão. Esta característica inglesa para
Rosen, “refletia o interesse acentuado pelos problemas de saúde e bem estar dos pobres, não
apenas por sentimento de caridade, mas na intenção de controlá-los de modo racional e
inteligente”.
117
Para Foucault, esta prática teria se iniciado com a Lei dos pobres
118
, que
propunha o controle dico das classes populares. Mais tarde (1870), esta legislação teria
sido complementada com a organização dos chamados health service e health officers. Tais
serviços teriam por função o controle da vacinação, a organização do registro das epidemias e
doenças capazes de se tornarem epidêmicas, bem como a localização de lugares insalubres e a
115
ROSEN, op. cit., p.116.
116
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Grall, 2003. p.84.
117
ROSEN, op. cit., p.117.
118
A Lei dos Pobres foi um sistema de assistência elaborado no final do século XVI e posto em prática a partir
de 1601. Foi criado para tentar amenizar o problema da pobreza e do desemprego que se disseminavam na
época. A partir dessa legislação, o Estado assumiu para si tal incumbência, até então tarefa da Igreja, instruindo
as freguesias a arrecadar impostos para assistir aos pobres, conseguir emprego para os fisicamente capazes, punir
os “indolentes” e prestar caridade aos idosos, doentes e incapacitados. No século XVIII, aqueles trabalhadores
que recebiam salários abaixo do nível de subsistência passaram a receber pensões.
59
eventual destruição desses focos considerados de insalubridade.
119
De acordo com Foucault, o
objetivo maior destes serviços era o controle das classes mais pobres para torná-las mais aptas
ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas, ou seja:
A partir do momento em que o pobre se beneficia do sistema de assistência, deve,
por isso mesmo, se submeter a vários controles médicos. Com a Lei dos pobres
aparece, de maneira ambígua, algo importante na história da medicina social: a idéia
de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que é tanto uma maneira
de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde [...] quanto um
controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a
saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas. Um cordão
sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os
pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande
despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos
originários da classe pobre.
120
Por sua vez, George Rosen destaca outros apontamentos de peso relativo, que teriam
contribuído para esta transformação no que tange aos aspectos ligados à saúde pública na
Europa. Entram em sua lista de elementos as campanhas contra o uso do álcool na Inglaterra
(gim), um “novo olhar” para as crianças (surgimento de uma visão nova em relação à
infância) em parte devido à alta taxa de mortalidade infantil
121
, construção de novos hospitais
e aplicação de novos conhecimentos que visavam diminuir o número de mortes nos partos
(com destaque aqui para a limpeza dos materiais que eram utilizados nos partos). Nesta linha,
ressalta-se também o aumento dos estudos que relacionavam os problemas de saúde dos
trabalhadores com áreas específicas de trabalho: marinheiros, mineiros, sapateiros, lavadeiras
entre outros. Assim como estudos sobre os espaços ocupados: prisões, hospícios, hospitais,
dispensários e minas.
122
Para além de todas estas transformações, existe uma cuja importância mostra-se
fundamental para este trabalho, ou seja, aquela que diz respeito às condições de salubridade
na vida urbana das cidades. Para melhor traduzir um dos aspectos do saneamento como a
limpeza ou a falta da mesma no século XVIII, tomamos de empréstimo aqui as observações
de um contemporâneo deste período:
119
FOUCAULT, 2003, op. cit., 96.
120
Idem, p.95.
121
Que segundo Thomas, utilizando-se de análise sobre os dados do primeiro demógrafo inglês, John Graunt,
sobre a Inglaterra do ano de 1662, “calculou que, de cada cem crianças nascidas com vida na metrópole, 36
morriam nos primeiros seis anos, e 24 nos dez anos seguintes. Segundo esse cálculo, a expectativa de vida ao
nascimento naquela época era menor do que viria a ser para a Índia durante a gripe pandêmica de 1911-1921”.
THOMAS, op. cit., p.19.
122
ROSEN, op. cit., p.118-126.
60
De todas as partes as sarjetas inchadas afluem,
E enquanto avançam, ostentam seus troféus.
Imundices de todas as cores e odores parecem contar,
Pelo aspecto e pelo cheiro, de que rua velejaram.
Refugos das tendas dos açougueiros, bosta, tripas e sangue,
Cãezinhos afogados, arenques fedidos, todos encharcados na sujeira,
Gatos mortos e folhas de nabo, rolam corrente abaixo.
123
A passagem anterior descreve a percepção de um contemporâneo da primeira metade
do século XVIII sobre um alojamento que se encontrava na cidade de Londres neste período.
Entretanto, tal condição comum aos olhos dos cidadãos da época, começaria a mudar a
partir da segunda metade do século XVIII. Londres teria sido a primeira cidade a empregar
profundas transformações no seu meio urbano por volta de 1760.
Derrubaram-se prédios deteriorados ou que impediam a circulação, drenaram-se,
pavimentaram-se e iluminaram-se ruas. Vias estreitas e tortuosas foram alargadas e
tornadas planas. Prédios de tijolo substituíram casas de madeira, desaparecendo,
assim, alguns cortiços horríveis. À proporção que surgiam os novos quarteirões, com
ruas largas e quadras abertas, a classe mais rica gravitava para esses bairros,
deixando para os pobres as regiões mais antigas e insalubres.
124
Seguindo estas transformações empregadas na cidade de Londres, tivemos
Westminster (1762), Manchester (1776) e Liverpool (1785-1800), todas estas cidades
implementando certo grau de transformação, no que tange aos serviços de saneamento no
espaço público. Destas transformações destacamos também a substituição dos antigos
sistemas de água de madeira por novos sistemas de ferro, juntamente com surgimento das
primeiras latrinas, que tornaram-se comuns somente ao final do século XVIII. Tais mudanças
em seu conjunto teriam proporcionado também um aumento populacional considerável.
Londres entre 1801 e 1841 passou de 958.000 habitantes para 1.948.000; já a cidade de Leeds
de 53.000 para 123.000 habitantes entre 1801 e 1831.
125
Este aumento populacional chegou a causar certo receio sobre a relação entre a
capacidade de produção humana em produzir alimentos e o nível de consumo alimentar. Nas
observações de De Decca:
A população aumentou muito com a queda da taxa de mortalidade, e as cidades
cresceram em proporções jamais vistas. O aumento da população chegou a causar
apreensão: uma teoria muito difundida na época, criada pelo economista Thomas R.
Malthus em 1798, afirmava que a população mundial crescia muito mais
123
SWIFT apud ROSEN, p.127. Jonatan Swift foi escritor e autor da obra As viagens de Gulliver.
124
Idem.
125
COSTA, N., op. cit., p.22-23.
61
rapidamente que a capacidade dos países de produzir alimentos. Assim, ele concluía
que não se deveria fazer nada para melhorar o padrão de vida da população, pois, se
todos sobrevivessem, muitos morreriam de fome mais cedo ou mais tarde.
126
Como podemos ver através da citação acima, o problema parece residir para Malthus
(1766-1834), mais na assistência médica dada aos pobres, que ao pensar-se resolver um
problema acabaria por gerar outro, ou seja: “a falta de alimentos no mundo”. Neste sentido, as
condições de vida, principalmente da classe operária (através deste pensamento de Malthus),
deveriam se manter nos limites da precariedade. Situação esta que foi bem observada por De
Decca, ao descrever as condições sanitárias de bairros operários ingleses deste período:
nos bairros operários não havia saneamento, os esgotos corriam a u aberto, a
água não era tratada doenças como a cólera se espalhavam e matavam grandes
contingentes da população. Apesar disso, a cidade significava para os operários a
única possibilidade de melhorar um pouco seu padrão de vida, de não passar fome,
de tentar proporcionar a seus filhos alguma instrução ou oportunidade de um futuro
melhor.
127
Por sua vez, a França no que tange a resolução destes problemas, acabou por adotar
um modelo singular. Paris, através deste modelo, viria a tornar-se referência a muitas outras
cidades, a partir do desenvolvimento do que podemos chamar de medicina urbana.
128
Este
modelo consistiria basicamente em três objetivos. Primeiramente, a preocupação com os
lugares
129
, principalmente aqueles em que havia acúmulo de tudo que se poderia ou pelo
menos se achava poder provocar doenças, com destaque para os cemitérios que começaram a
ser transferidos do centro para a periferia de Paris na década de 80 do século XVIII, como
aponta Vigarello:
Na noite de 7 de abril de 1786, pesadas carroças começaram a transferir as ossadas
do cemitério dos Santos Inocentes para as pedreiras subterrâneas de Paris. Estranha
fila de túmulos conduzidos à luz das tochas e ao ritmo de operações murmuradas em
surdina. Algumas testemunhas surpreendem-se com o espetáculo: os ossos vão
caindo de quando em vez dos pesados carregamentos, os restos humanos formam
um amontoado disforme, o cheiro é insuportável. Mas esta mudança dos mortos
parisienses é a primeira de uma longa série. E é também o primeiro acto de uma
higiene que virá a abalar o espaço público.
130
126
DE DECCA, Edgar. Fábricas e Homens. São Paulo: Atual, 1999. p.27.
127
Idem, p.50.
128
Termo cunhado por Foucault para diferenciar o modelo francês de medicina social do caso inglês (medicina
da força de trabalho) e do alemão (medicina de Estado). FOUCAULT, 2003, op. cit., p.82-98.
129
Verificamos aqui novamente a presença dos “lugares” hipocráticos, como objeto de preocupação com a saúde
pública e conseqüentemente com o saneamento das cidades.
130
VIGARELLO, op. cit., p.118. Grifo nosso. Seguindo-se este pensamento, igualmente os matadouros, até
então localizados no centro de Paris, foram transferidos para os arredores da cidade. FOUCAULT, 2003, op. cit.,
p.90.
62
O segundo objetivo da medicina urbana era o controle da circulação da água e do ar.
De acordo com Foucault:
Era uma velha crença do século XVIII que o ar tinha uma influência direta sobre o
organismo, por veicular miasmas ou porque as qualidades do ar frio, quente, seco ou
úmido em demasia se comunicavam ao organismo ou, finalmente, porque se
pensava que o ar agia diretamente por ação mecânica, pressão direta sobre o corpo.
O ar, então, era considerado um dos grandes fatores patógenos.
131
Como vimos acima, para o filósofo tal pensamento sobre a água e o ar remeter-se-ia a
uma “crença” do século XVIII, quando na verdade as bases deste pensamento (em nada
mítico) se assentavam em uma tradição que ao nosso entender buscava justamente ultrapassar
as barreiras da explicação mítica. Não por acaso, Hipócrates é considerado até os dias atuais,
como sendo o pai da Medicina, pois sua busca em explicar as doenças como derivadas de
fenômenos naturais e o simplesmente ticos, marca uma das primeiras tentativas de se
pensar as doenças a partir de um modelo racional.
Assim, a partir desta concepção um problema teria surgido na época: “como manter as
qualidades do ar em uma cidade, fazer com que o ar seja sadio, se ele existe como que
bloqueado, impedido de circular, entre os muros, as casas, os recintos”.
132
Para solucionar tal
problema na cidade de Paris, viu-se a partir desse momento a necessidade de se abrir longas
avenidas, destruir as casas construídas em cima das pontes, organizar corredores de ar e de
água. Era dado assim, início as reformulações e transformações urbanas ocorridas na cidade
ao longo do século XIX. Entretanto, como podemos observar, tais transformações tinham por
base idéias que foram elaboradas e previstas a mais de dois mil anos, cuja importância residia
em grande parte na obra de Hipócrates, Ares, Águas e Lugares, como um guia que continuaria
sendo posto em prática, mesmo diante o desconhecimento total deste pensamento que
provinha da Antiguidade.
Continuando nesta linha do pensamento hipocrático, o terceiro objetivo da medicina
urbana francesa dizia respeito à água das fontes e esgotos. Neste caso, segundo Foucault, o
problema encontrado era o seguinte: “Como evitar que se aspire água de esgoto nas fontes
onde se vai buscar água de beber; como evitar que o barco-bombeador, que traz água de beber
para a população, não aspire água suja pelas lavanderias vizinhas?
133
Para resolver tal
impasse, teria sido elaborado em 1742 o primeiro plano hidrográfico de Paris, intitulado
131
Idem.
132
Idem. Grifo nosso.
133
Idem, p.91.
63
Exposé d´un plan hidrographique de la ville de Paris (Exposição de um plano hidrográfico da
cidade de Paris), resultado da pesquisa sobre os lugares em que se poderia dragar água que
não tinha sido ainda suja pelos esgotos.
134
Diante estes apontamentos de Foucault, a medicina urbana francesa deste período pode
ser definida como sendo a medicina não dos homens, corpos e organismos, mas das coisas:
ar, água, decomposições, fermentos, uma medicina das condições de vida e do meio (lugares)
de existência. No entanto para o filósofo, grande parte da medicina científica do século XIX
teria sua origem na experiência desta medicina urbana, que se desenvolveu no final do século
XVIII.
135
O que ao nosso entender pode ser visto e percebido como sendo fruto de um
desdobramento muito anterior, pois princípios médicos do século XVIII se apoiavam em
tradições muito mais antigas, que se remetiam diretamente a Antiguidade, cujo expoente
máximo deste pensamento sobre as questões ligadas a saúde, provinham de um modelo de
explicação de Hipócrates. Não por acaso, como já vimos, as águas, os ares e os lugares serem
entendidos como pontos vitais para a intervenção médica, vistos como elementos essenciais
para uma boa saúde, seja ela individual ou coletiva.
É a partir desta forma de pensamento, que se desenvolve um conceito importante para
a medicina social a época: o conceito de salubridade, que de acordo com Foucault:
Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e
seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a
base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E
é correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle
e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer
ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das
coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública no séc. XIX, a noção
essencial da medicina social francesa é o controle político-científico deste
meio.
136
Neste sentido, o controle deste meio cuja finalidade última seria a saúde, mover-se-ia
sobre uma superfície determinada pela ambiência e suas condições. Por esse motivo, a água, o
ar e os lugares, serem vistos e percebidos a época, como componentes essências para a
compreensão e o entendimento do que era percebido como sendo um ideal de uma boa saúde
ou como a falta da mesma.
134
Segundo Jean-Pierre Goubert, para tentar se solucionar este problema, no ano de 1778 foi fundado em Paris
“por imitação ao modelo britânico” a primeira companhia de água francesa denominada, La Compagnie des
Eaux de Paris (Companhia de Água de Paris). GOUBERT, Jean-Pierre. Iniciation à une nouvelle histoire de la
médecine. Paris: Ellipses, 1998. p.17.
135
FOUCAULT, 1996, op. cit., p.61-67.
136
FOUCAULT, 2003, op. cit., p.93. Grifo nosso.
64
Entretanto, perceber estes fatores não implicava um conhecimento mais apurado sobre
a saúde. Necessitava-se de um entendimento que passava pela noção de equilíbrio entre o
meio externo e o meio interno. Assim, o meio externo pode ser percebido, como vimos acima,
na ambiência: clima, temperatura (ares), as localidades (lugares) que podem se apresentarem
altas, baixas, alagadiças e etc., e por fim as águas, se boas ou não para o consumo, se perto de
rio ou de mar, se de fácil ou difícil acesso. A esta noção o meio interno (corpo) também faria
parte como unidade frente a outras unidades, que por fim, melhor poderia ser entendido diante
as condições seja da saúde ou da doença ao conjugar-se um quarto elemento, a forma de
alimentação, se preferem o vinho, as comidas e são dedicados ao ócio, ou se amam o
trabalho duro, os exercícios físicos e comem à vontade mas bebem pouco
137
. Assim, tentar
entender as doenças do corpo pela verificação e intervenção no espaço (ambiente), bem como
pela sua forma de consumo alimentar era um componente provido de um sentido hipocrático a
época. Tal sentido ao que tudo indica continuaria a fazer parte do pensar a saúde ao longo de
todo o século XIX, mesmo diante das novas descobertas realizadas pela microbiologia.
Veremos a seguir como se processou este pensamento, especialmente a partir de 1830.
2.5 A CIENTIFICIDADE QUE BATE A PORTA DA SAÚDE E DO SANEAMENTO NO
SÉCULO XIX
O século XIX foi caracterizado como sendo um longo século pelo historiador britânico
Eric Hobsbawm, em detrimento do que o mesmo denominou de breve século XX.
138
Todavia,
independentemente de ser longo ou curto no que tange a sua noção temporal ou cronológica,
pode ser trabalhado de forma histórica, como sendo um século de profundas mudanças,
transformações e percepções diferenciadas em relação ao campo das idéias e do
conhecimento. Este período histórico pode ser visto também como um momento de
sistematizações do conhecimento, onde as terminologias em ismos tornam-se princípio e meio
de explicação para se determinar exatamente o que se está a conhecer ou o que ainda não era
totalmente verificável perante o conhecimento. Entram nesta esfera de explicação o
socialismo, o capitalismo, o liberalismo, o colonialismo, o nacionalismo, o imperialismo, o
romantismo e o cientificismo.
o cientificismo como unidade sistemática para compreensão das transformações
137
HIPÓCRATES, op. cit., p.65.
138
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra. 2003.
65
propiciadas pelas novas descobertas, se deve em parte ao fenômeno da industrialização, que
segundo De Decca:
Num período de tantas mudanças e descobertas, seria difícil avaliar como ocorreram
tais transformações. Contudo, uma coisa parece mais do que certa. Muitas destas
descobertas foram possíveis pelo desenvolvimento tecnológico propiciado pela
industrialização.
139
O fenômeno da industrialização teria marcado assim profundamente as bases
econômicas e políticas da Europa, bem como o seu campo social. No tocante a este último,
uma de suas principais características no plano interno, talvez seja aquela que ficou marcada
por regimes de exploração e de desigualdades frente às camadas populares, principalmente
dos trabalhadores operários.
No plano externo, o chamado “processo civilizador”,
140
pode ser visto também como
uma das marcas principais do que poderíamos classificar de regimes de exploração, de
desigualdades e de preconceitos, onde a cultura do homem branco europeu passou a ser vista
por estes, como a fôrma perfeita para se moldar todo e qualquer tipo de cultura, via aplicação
de manobras de aculturação.
141
Neste sentido para De Decca:
Não seria difícil concluir que os estudos de bacteriologia desenvolveram-se com a
expansão imperialista, na medida em que os homens brancos precisavam estar
imunizados contra as bactérias perniciosas do mundo colonial. O mesmo
acontecendo com as políticas de saneamento voltadas à higienização dos bairros
operários das grandes cidades européias, tendo elas servido para o avanço das
pesquisas em bacteriologia.
142
Rosen aponta também para a relação, neste período, entre a ocorrência do
desenvolvimento científico como conseqüência de preocupações de cunho econômico. No que
tange a esta relação entre desenvolvimento cientifico e problemas econômicos, o químico
francês Louis Pasteur (1822-1895) foi um dos expoentes mais significativos deste período. De
acordo com Rosen:
A carreira científica de Pasteur contém exemplos seguidos da interação de
necessidade técnica e descoberta científica. Ele lidava com problemas de
importância econômica imediata, mas o interesse de Pasteur ultrapassava o
139
DE DECCA, Edgar. O colonialismo como a glória do império. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al. (Org.). O
século XX. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2003. p. 177.
140
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
141
Para maiores detalhes com relação a este pensamento, torna-se importante ver a obra de BHABHA, Homi. O
local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005, que trata sobre as formas de imposição cultural do modelo
colonizador.
142
DE DECCA, 2003, op. cit., p.177.
66
problema específico e ia até suas ramificações mais amplas. Assim, ao estudar a
fermentação, ele havia pensado em uma possível relação causal entre germes e
doença. Se a fermentação se deve a criaturas vivas diminutas, porque não seriam
esses organismos capazes de produzir as alterações presentes nas doenças pútridas e
supurativas?
143
Pasteur teria começado a estudar a fermentação, estimulado principalmente pelo pai de
um de seus alunos, que possuía uma manufatura de álcool de beterraba, que passava por sérios
problemas com relação à deterioração dos elementos durante o processo de fermentação.
Rosen aponta que Pasteur, através de seus estudos teria descoberto não apenas a origem do
problema com relação ao processo de fermentação, mas também teria ido além, ao demonstrar
como prevenir e evitar tais problemas:
Em seus estudos sobre a cerveja e o vinho, ele demonstrou que a fermentação
desandava em virtude da contaminação por organismos estranhos, que produziam
substâncias diferentes do álcool desejado. Pasteur foi além, revelando não só por que
o processo de fermentação se tornava anormal mas também como prevenir essa
situação. Ele mostrou como suprimir as atividades de todos os organismos, menos as
dos especificamente desejados, apenas aquecendo o vinho, por um curto período, a
uma certa temperatura. Assim, eliminar-se-iam os fermentos indesejáveis. Esse é o
método familiar da pasteurização, hoje aplicado para o leite e outros produtos
alimentícios.
144
Para Bertolli Filho, o químico Louis Pasteur teve um papel pioneiro para a medicina
moderna, pois o mesmo teria “revolucionado” o conceito e os métodos de combate às doenças
infecciosas, provando que um grande número de doenças era causado por micróbios
específicos.
145
Pasteur teria sido um dos principais divulgadores da Bacteriologia
146
,
posicionando-se contrário as teorias miasmáticas que atribuíam as doenças aos ares
corrompidos.
Em 1865 o médico do exército francês Joseph Lister (1827-1912), teria colocado em
prática as pesquisas de Pasteur ao controle da doença em seres humanos. Anos mais tarde,
concluiria que a tuberculose era originada de um germe microscópico capaz de se multiplicar
no organismo e de se transmitir por contato direto ou através do ar.
147
Mesmo assim, o
143
ROSEN, op. cit., p.240.
144
Idem, p.239. Grifo do autor.
145
BERTOLLI FILHO, Claudio. História da saúde pública no Brasil. 4.ed. São Paulo: Ática, 2004. p.12.
146
A Bacteriologia, atualmente, é a área da ciência que estuda as bactérias. No entanto, quando surgiu o termo,
referia-se ao estudo de todos os tipos de micróbios. Idem.
147
Neste sentido, o ar como um dos componentes hipocráticos continuaria a exercer sua influência sobre o
entendimento das doenças. Porém, cada vez menos o ar em si como causador das doenças, mas os micro-
organismos que o mesmo poderia carregar.
67
médico não conseguiu isolar o germe e seu trabalho não teve muita repercussão.
148
Por volta de 1870, houve sólidos avanços nas técnicas e no conhecimento da
microbiologia, e foi neste período que a Bacteriologia se estabeleceu como ciência. Um dos
principais expoentes nesta área de estudo foi o médico alemão Robert Koch (1843-1910), que
descobriu o bacillus causador do antraz e desenvolveu técnicas para o cultivo e estudo das
bactérias. Em viagens que realizou pela África e Ásia com o objetivo de estudar a transmissão
de doenças, acabou descobrindo a técnica de isolamento do vibrião do cólera.
149
Nas décadas finais do século XIX, os avanços na área da Bacteriologia se
desenvolveram em duas direções: num primeiro viés, o trabalho de Koch levou ao
desenvolvimento de técnicas para o cultivo e estudo de bactérias; em outra direção seguiram-
se os estudos de Pasteur e seus colaboradores, que dirigiram sua atenção para os mecanismos
da infecção e para a prevenção e tratamento das doenças contagiosas.
150
Diante de todo este processo de um suposto desenvolvimento científico, mais uma
pergunta se faz necessária: como se apresentava esta relação entre o desenvolvimento do
pensamento científico (voltado ao entendimento dos micro-organismos como componentes de
explicação das causas das doenças) com o modelo hipocrático que era aplicado até então
(através de medidas efetivas sob o espaço social), no que tange aos aspectos do saneamento
das cidades? Como poderemos ver, cada vez mais ocorrerá uma junção destes saberes, que
darão uma forma específica as práticas voltadas ao combate das doenças. Desta junção de
saberes entre este “novo” pensamento científico e o enraizado pensamento hipocrático,
surgirá aos poucos uma nova visão, ligada agora à idéia de higienização. Será esta nova forma
de pensamento que acabará prevalecendo sobre as práticas relacionadas ao saneamento das
cidades, que em nome de um discurso higienizador aplicará a intervenção sobre o espaço
social, seja ele individual ou coletivo.
Para melhor entender como se processou este desdobramento que teve início na
Europa e nos Estados Unidos
151
neste momento, começamos delineando os sistemas de
148
Cf. ROSEN, op. cit., p.241.
149
COSTA, N., op. cit., p.30.
150
Idem, p.28.
151
Desdobramento este que propiciou inúmeras transformações nos sistemas de administração da saúde pública
derivado praticamente dos problemas relacionados às ondas epidêmicas do cólera do século XIX, como aponta
Gilberto Hochman: “A experiência das epidemias de cólera do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, que
atingiram a todos, ricos e pobres, em quase todos os lugares - cidades, regiões, países explicitou para as elites
os problemas de interdependência social e a necessidade da criação de organizações e políticas permanentes,
amplas, coletivas, compulsórias e supralocais para prevenir e combater os riscos da infecção e do contágio em
massa.” HOCHMAN, Gilberto. Regulando os efeitos da interdependência: sobre as relações entre saúde pública
e construção do Estado (Brasil, 1910-1930). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.6, n.11, 1993. p.5. Com
68
administração com relação aos problemas derivados à saúde pública, bem como as práticas
adotadas quanto aos problemas derivados do saneamento em alguns dos principais países
europeus, como Inglaterra, França e Alemanha, assim como na América norte-americana.
George Rosen destaca que ao longo do século XIX houve diferentes esforços no
sentido de se centralizar as administrações para a saúde pública. Na Inglaterra, por exemplo,
os “esforços anteriores das autoridades locais para melhorar as condições sanitárias tinham
sido impedidos pela ausência de uma repartição central, a qual se pudessem dirigir em busca
de orientação e auxílio.”
152
Criou-se então, neste país, o Conselho Geral de Saúde (1848),
instituição que tinha poderes para estabelecer e gerenciar conselhos locais de saúde. Estes
conselhos locais, por sua vez, possuíam autoridade para cuidar do abastecimento de água, do
sistema de esgotos, do controle dos comércios ofensivos, da provisão e da regulamentação de
cemitérios. Para o historiador norte-americano, “a criação do Conselho Geral de Saúde é um
grande marco na história da Saúde Pública. A despeito de sua breve existência e de suas
insuficiências, o Conselho realizou muito.”
153
A este “muito” a que se refere o historiador
estavam: a instalação, em numerosas comunidades, de sistemas de esgotos e de abastecimento
de água, além da criação da função de médico de Saúde Pública. Londres teria nomeado seu
primeiro médico de Saúde Pública em 1848, sendo esta ação seguida por Leeds (1866),
Manchester (1868), Birmingham (1872) e Newcastle (1873). Na opinião de Rosen, até este
momento, o papel da medicina para as melhorias da Saúde Pública (seja através de legislação
ou administração) foi secundário, pois “não veio da profissão médica o impulso para a
reforma sanitária, embora alguns médicos tivessem chamado a atenção para os problemas
comunitários de insalubridade.”
154
A estes problemas de insalubridade, Francisco Martinho
ressalta:
Para começar, a idéia que temos hoje de centro urbano é completamente diferente da
que se tinha a cem anos. É possível que a grande diferença entre as cidades do
século XIX e as do século XX esteja na definição das políticas de saneamento e
higiene. As cidades cresciam muito aceleradamente e, no mesmo ritmo, cresciam
também seus problemas. A começar pelo problema crônico da falta d‟água. Não só a
falta d´água, mas também a ausência de lugares onde jogar a água após o seu uso. O
lixo, os esgotos domésticos e mesmo os dos urinóis eram jogados na rua. Os esgotos
públicos, raros, desaguavam no rio local.
155
relação a esta questão, ver também: FINKELMAN, Jacobo. (Org.) Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.
152
ROSEN, op. cit., p.176-177.
153
Idem.
154
Idem, p.179.
155
MARTINHO, Francisco. Resistências ao capitalismo. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). O século XX.
vol. 1. Rio de Janeiro, 2000. p.193.
69
Nos Estados Unidos, segundo os apontamentos de George Rosen, “havia confusão
quanto às causas e o modo de transmissão das doenças, mas o controle se sustentava quase
sempre sobre a quarentena e o saneamento ambiental”. No que diz respeito ao saneamento
ambiental, o historiador ressalta os assuntos recorrentes à época no que tange a idéia de saúde
ligada as questões de saneamento, como: “a acumulação de imundícies nas ruas, obstrução de
valas de drenagem da água, drenagem diárias de baixada, melhoria das encostas dos cais e dos
rios, para evitar-se o acúmulo de refugos, e poluição do ar por estabelecimentos como
matadouros e fábricas de sabão.”
156
A partir de 1840 o saneamento público passou a ser percebido nos Estados Unidos
como um problema de grande envergadura, devido em parte ao crescimento das comunidades
urbanas que sofreram um rápido aumento populacional, proporcionado pela elevação do
número de imigrantes. Este aumento, por sua vez, teria ocasionado sérios problemas de ordem
sanitária, que levaram à criação de inúmeras associações de saúde. Como observa Rosen:
Assim, criaram-se, depois de 1845, uma série de associações de saúde voluntárias
[...] Unindo médicos, funcionários públicos e leigos com espírito público, essas
organizações se mostraram capazes de criar um terreno amplo para a mobilização
das forças da comunidade. Imbuídos de um propósito moral alto, os membros dessas
associações se consideravam “alistados em uma cruzada contra um mal gigantesco,
e crescente”. Esses grupos se incumbiram de educar o povo quanto as vantagens da
higiene, pública e privada, de pressionar pela reforma administrativa, e de agir para
eliminar os apartamentos apinhados, mal ventilados, imundos, os suprimentos de
água impura, o escoamento inadequado e o alimento insalubre.
157
O primeiro Departamento Nacional de Saúde dos Estados Unidos foi criado em 1879.
Este Departamento tinha como funções reunir informações sobre assuntos de saúde pública,
aconselhar o governo federal e os governos estaduais, além de apresentar ao Congresso um
plano de organização nacional de saúde. Este Departamento teria funcionado até 1883,
quando parou de receber verbas. O motivo de seu fim, segundo Rosen, se deve ao fato de sua
estrutura administrativa ter sido pouco ágil e por ter despertado o antagonismo dos estados,
que sentiam seus direitos usurpados frente a um poder central.
158
Com relação à França, seus problemas no que diz respeito à saúde pública e ao
saneamento parecem pouco diferir dos problemas ingleses e americanos. Maria Stella
Bresciani nos informa que a cidade de Paris era considerada no século XIX, “uma imensa
156
ROSEN, op. cit., p.185.
157
Idem, p.190.
158
Idem, p.197.
70
fábrica de putrefação, onde nem as plantas sobrevivem”.
159
A autora, utilizando-se da
observação de um contemporâneo da época (Chevalier 1796-1840), procura demonstrar
como se apresentava as condições sanitárias da cidade de Paris, da primeira metade do século
XIX:
[...] um amontoado de casas desalinhadas encimado por um céu sempre nebuloso,
mesmo nos dias mais belos. [...] dédalo onde já se acotovelam mais de um milhão de
homens, onde o ar viciado de exalações insalubres eleva-se, formando uma nuvem
infecta que basta para obscurecer o sol quase por completo. A maioria das ruas desta
maravilhosa Paris são na verdade tão-somente condutos sujos e sempre úmidos de
água pestilenta. Fechadas entre duas fileiras de casas, o sol jamais desce até elas.
Uma multidão pálida e doentia transita continuamente por elas, os pés nas águas que
escorrem, o nariz no ar infecto e os olhos atingidos a cada esquina pela mais
repulsiva sujeira.
160
Diante desta situação em 1848 teria sido criado o Comitê Consultivo em Saúde
Pública Francês, que era ligado ao Ministério de Agricultura e Comércio. Este Comitê tinha
por função aconselhar o ministro em assuntos relativos à saúde. Neste mesmo ano foram
também criados os Conselhos Locais de Saúde Pública, com o objetivo de prestar consultoria
aos prefeitos das cidades francesas. Assim, estas mudanças, no que diz respeito aos aspectos
administrativos da saúde e do saneamento começariam a ser mais visíveis a partir da segunda
metade do século XIX, cujo papel principal destas ações, mediante a intervenção no meio
urbano, ocorreria via processo de higienização. Este processo de higienização, entretanto,
continuaria a se assentar sobre as bases de um pensamento hipocrático, cujas intervenções
centravam-se basicamente sobre o espaço urbano. Para este caso é nítida a relação entre saúde
individual ou coletiva e o meio em que ela se apresenta. Por este motivo as ações
empreendidas mediante a abertura de ruas para melhor circulação dos ares, aterramento de
áreas pantanosas (lugares) e um maior cuidado sobre a utilização e o consumo das águas
existentes.
161
Na Alemanha, nesta mesma época, o higienista Max Von Pettenkofer (1818-1901)
faria da Higiene uma ciência experimental adotando a análise laboratorial da mesma em
campos da nutrição, do vestuário, da ventilação, da água
162
e dos esgotos. Seus primeiros
159
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. 7.ed. São
Paulo: Brasiliense, 1992. p.77.
160
CHEVALIER apud BRESCIANI, Idem, p.75. Grifo nosso.
161
No que tange a estes aspectos, podemos observar estas mesmas transformações ocorrendo simultaneamente
tanto na Europa quanto no território brasileiro. Nos próximos capítulos, abordamos estas mesmas transformações
especificamente na cidade de Porto Alegre.
162
No que se refere à análise “moderna” da água, a mesma tem origem nas reflexões feitas no século XVIII pelo
químico francês Lavoisier. GOUBERT, Jean-Pierre. A conquista da água na era industrial. In: SERRES, Juliane;
71
passos foram dados ainda em 1865, quando o mesmo passou a ministrar a primeira cadeira de
Higiene Experimental em Munique. Com este higienista, segundo Rosen, “a ciência penetrou
no campo da Higiene e da Saúde Pública”.
163
Entretanto, cabe ressaltar que este método
laboratorial de análise científica, ao ser empregado por Pettenkofer, acabaria por se assentar
inicialmente sobre os mesmos elementos derivados do âmbito de compreensão hipocrática.
Daí o sentido dos primeiros elementos analisados pelo higienista serem as águas, os ares
(ventilação) e os alimentos.
164
Como podemos ver, o século XIX se apresentava também sob os prismas do
pensamento hipocrático no que tange aos aspectos de saúde e saneamento das cidades, seja
para atribuir as causas das doenças aos prováveis desequilíbrios do meio, seja para analisar
estes meios para tentar-se “comprovar” as causas das doenças. É deste universo histórico de
pensamento singular que se desenvolvem as práticas com relação ao saneamento das cidades,
principalmente sobre os grandes centros urbanos do século XIX. A cidade de Porto Alegre
como capital de uma importante Província do Império brasileiro não fugirá a esta regra.
Vejamos a seguir como se desdobrava este saber hipocrático, bem como se estruturava este
sistema de pensamento no que se refere ao saneamento desta cidade.
SCHWARTSMANN, Leonor. (Orgs.) História da Medicina: instituições e práticas de saúde no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p.26.
163
ROSEN, op. cit., p.203.
164
Cabe ressaltar neste momento, que este método de análise laboratorial chegará com mais força na cidade de
Porto Alegre somente na última década do século XIX, quando o Dr. Protásio Antonio Alves ocupava o cargo de
Inspetor de Higiene.
72
PARTE II A ESTRUTURA DO SANEAMENTO EM PORTO ALEGRE
73
3 SABERES E AGENTES DO SANEAMENTO NA PORTO ALEGRE
OITOCENTISTA
Neste capítulo damos continuidade à história do saneamento, partindo agora para uma
análise voltada para um lugar e momento específico da história. Tratamos aqui sobre a cidade
de Porto Alegre no século XIX, ressaltando alguns pontos que dizem respeito à história de seu
saneamento. Inicialmente, falamos sobre a importância do pensamento hipocrático como
elemento constituidor das políticas públicas voltadas para o saneamento da cidade já na
primeira metade do século XIX. Nosso objetivo aqui é demonstrar como, onde e em que
momento se processava esse saber presente na atuação do poder público municipal de
então.
165
Para isso, realizamos um estudo comparativo entre a primeira metade do século XIX
e a segunda metade deste mesmo século, buscando demonstrar a intensificação do saber
hipocrático voltado ao saneamento perante as políticas públicas adotadas sobre o espaço
social da mesma.
No segundo momento, falamos sobre os agentes do saneamento como componentes de
um conjunto complexo e articulado que compõem este universo que é a história do
saneamento na cidade. Utilizamos aqui a expressão “agentes” por entendermos através deste
trabalho todos aqueles que estavam envolvidos direta ou indiretamente com este assunto,
sejam eles indivíduos ou grupos. Neste caso, tratamos de falar sobre a participação dos
agentes do poder público (presidentes da Província, vereadores, fiscais, policiais e inspetores
de saúde pública) e de agentes particulares e/ou civis (contratadores, contratados, prisioneiros
e escravos, bem como os demais moradores da cidade).
No tópico seguinte tratamos de fazer algumas considerações sobre a história do
saneamento da cidade de Porto Alegre na primeira metade do século XIX, partindo das
primeiras referências realizadas sobre os problemas derivados do saneamento na cidade até
desembocarmos nos possíveis problemas gerados pela Revolução Farroupilha na então capital
da Província.
Por último, abordamos o período de passagem da primeira metade do século XIX para
a segunda metade deste mesmo século. Neste momento, ressaltamos a continuidade e a
transformação, no que tange a atuação do pensamento hipocrático sobre o saneamento da
165
Saber este (hipocrático) que se apresenta também como saberes, visto ser este uma forma de pensamento que
agrega outros conhecimentos ao longo do tempo, porém sem deixar de ter como cerne os seus três elementos,
(águas, ares e lugares) que são princípios orientadores e geradores das ações voltadas para o saneamento.
74
cidade. Nosso objetivo concentra-se aqui em analisar a ocorrência da passagem do que
denominamos de fase “limpezista” para a fase higienista no sistema de saneamento.
3.1 A PRESENÇA DO SABER HIPOCRÁTICO NO SANEAMENTO DA CIDADE
A presença do saber hipocrático nas ações sobre o saneamento na cidade de Porto
Alegre no século XIX, pode ser melhor verificada quando se toma como ponto de partida o
próprio poder público do município. Para demonstrar como ocorre esta presença, elaboramos
duas tabelas contendo os mesmos campos, denominados: águas, ares e lugares, elementos
estes que fazem parte do saber hipocrático. Assim, na tabela 1, colocamos os números obtidos
sobre a disposição destes três componentes na primeira metade do século XIX; na tabela 2
colocamos os números referentes a estes mesmos três elementos para a segunda metade deste
século. Quantificamos assim, através das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, a
recorrência ao uso destes três termos. Vejamos como se apresenta esta disposição:
Ano
Ares
Lugares
1829
0
8
1830
0
7
1831
1
0
1832
2
3
1833
1
1
1834
3
9
1835
0
1
1836
0
1
1837
0
3
1838
0
5
1839
0
1
1840
0
1
1841
0
1
1842
0
3
1843
0
3
1844
1
5
1845
0
1
1846
0
1
1847
0
0
1848
0
0
1849
0
2
1850
0
7
Total Geral
8
63
Tabela 1 - Tabela de referência dos elementos hipocráticos presentes nas Atas da Câmara na primeira
metade do século XIX. Fonte: O autor.
166
75
Podemos ver acima que a primeira coluna coloca em ordem anual a recorrência aos
três componentes presentes na obra de Hipócrates. Temos dispostas assim, tais referências na
seguinte ordem. Na segunda coluna apresentamos a recorrência que diz respeito ao elemento
águas”, discriminadas aqui tanto como potáveis quanto estagnadas, fluviais ou servidas.
na terceira coluna colocamos em referência os ares”, como derivados de elementos ligados
basicamente às doenças.
167
Na quarta coluna, apontamos os lugares como o terceiro
elemento hipocrático presente no que tange aos espaços específicos de preocupação e atuação
do poder público em relação à saúde e ao saneamento na cidade. Incluem-se nesta quarta
coluna a referência as ruas, praças, edificações, terrenos baldios e praias do litoral. Por fim, na
última coluna, apresentamos a soma geral das referências feitas por ano. Na última linha da
tabela, podemos verificar também o total de referências feitas por assunto de 1829 a 1850,
bem como o total geral de todas as referências realizadas neste mesmo período.
Analisando o conjunto de dados numéricos da tabela obtidos do mapeamento das
informações contidas nas Atas da Câmara, podemos verificar primeiramente o universo
quantitativo da presença dos três elementos hipocráticos, como fazendo parte de componentes
dos discursos e das ações empreendidas pelo poder público municipal de então. Podemos
notar que dos 21 anos que cobrem o período que vai de 1829 a 1850
168
existe um total de 107
referências realizadas sobre os componentes presentes no pensamento hipocrático. Um
número que pode ser considerado baixo, dado sua média possuir uma proporção inferior a seis
referências anuais. Entretanto, são elementos presentes que possuem uma dimensão
importante, principalmente quando podemos observar a maneira como se apresentam
166
Tabela baseada sobre informações retiradas dos Catálogos das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre
de 1829 a 1850. Catálogo das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre: 1825-1855. Vol. 7 ao 9. Porto
Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1994-1998.
167
Como referência a esta ligação utilizamos o estudo de Dina Czeresnia que verifica a importância do ar como
elemento constituidor de percepções sobre a saúde e a doença até o século XIX. Nesta perspectiva os sentidos
como o olfato e o tato eram essenciais para o entendimento dos agentes históricos até então perante as epidemias.
Para maiores detalhes ver: CZERESNIA, Dina. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva
de apreensão da epidemia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. IV, n.l, p.75-94, mar.-
jun. 1997. Reforçando este pensamento, cabe aqui também o adágio popular sobre medicina caseira no Rio
Grande do Sul, apontado por Mariante: Livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males”. MARIANTE, Hélio M.
Medicina campeira e povoeira. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1984. p.115.
168
Realizamos este recorte para análise, pois o ano de 1829 é o primeiro ano pós Lei de 30 de Agosto de 1828
que extinguia “os lugares de Provedor-mór, Physido-mór e Cirurgião-mór do Imperio, passando para as
Camaras Municipaes e Justiças ordinarias as attribuições que lhes competiam”; assim como a Lei de 1° de
outubro de 1828, que: nova rma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições e o processo para a
sua eleição, e dos Juizes de Paz.” Collecção das Leis do Imperio do Brazil. Parte Primeira. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1878. p.27-28 e p.74-88. o ano de 1850, por marcar o final da primeira metade do
século XIX.
76
mediante comparação com a segunda metade do século XIX, bem como os meses em que tais
referências eram realizadas.
Dos números obtidos da tabela anterior, podemos desdobrar tais dados mediante
análise da quantidade de referências realizadas mês a mês durante todo o período que cobre os
anos de 1829 a 1850. Os resultados obtidos com estes desdobramentos foram os seguintes:
Mês
Ares
Lugares
Janeiro
1
4
Fevereiro
-
4
Março
-
-
Abril
1
1
Maio
-
2
Junho
-
9
Julho
-
20
Agosto
1
6
Setembro
1
7
Outubro
-
6
Novembro
2
1
Dezembro
2
3
Total
8
63
Tabela 2 - Tabela de referências mensais de 1829 a 1850
Fonte: O autor
169
Como podemos ver, tais referências apresentam-se bastante diversificadas. No que
tange ao assunto água, por exemplo, este elemento é mais referenciado durante os meses que
cobrem parte do período de inverno e da primavera, mais do que no período de verão. O
problema neste caso parece não ser a falta de água, mas sim o seu excesso ocasionado pelo
aumento das chuvas, que são muito freqüentes neste período. Já com relação aos inúmeros
problemas apontados pelo poder público municipal com relação à água, destacamos alguns
termos que são recorrentes para este período: estagnação das águas, lavagem de roupas no rio
(problemas estes geralmente atribuídos aos hospitais, devido à relação que se fazia entre a
169
Tabela baseada sobre informações retiradas dos Catálogos das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre
de 1829 a 1850. Catálogo das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre: 1825-1855. Vol. 7 ao 9. Porto
Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1994-1998.
77
lavagem de roupas dos doentes com a possibilidade de se pegar alguma doença), esgotos e
despejos lançados à água, valos mal conservados e problemas ocasionados pela acumulação
de águas que poderiam formar sangas.
170
Quanto aos lugares, estes igualmente são mais referenciados no período que cobre o
inverno e a primavera, com seu ápice centrando-se no mês de julho. Dentre os problemas mais
referenciados com relação aos lugares, encontramos aqui os seguintes termos: limpeza, lixo e
despejos. Dentre estes problemas, os locais mais citados são: os terrenos baldios
(normalmente os não cercados, que acabavam por servir de depósito de lixo), as ruas, as
praças, as prisões (seu estado interno e externo), os quartéis (geralmente criticados pelos
despejos feitos em locais não recomendados pelo poder público municipal) e o entorno dos
prédios públicos (inclusive do prédio da própria Câmara).
171
Já os ares, assunto aqui relacionado aos problemas derivados das doenças, mostram-se
muito mais dispersos e em um número bem menor, porém concentrados no período que cobre
os meses de novembro e dezembro, ou seja, o período que vai do final da estação da
primavera ao início do verão. Dentre os termos mais encontrados destacamos os cuidados
para se evitar o cólera, a questão alimentar (com relação à sazonalidade das frutas e o cuidado
com o consumo das carnes, principalmente as de origem suína) e por último, os possíveis
problemas derivados do cemitério com relação ao seu estado de conservação e localização.
Outro ponto relevante que pode ser observado nas duas tabelas acima são os números
gerais que perfazem o total de referências realizadas sobre cada um dos três elementos (águas,
ares e lugares). Podemos observar que estes elementos presentes como componentes
constituidores do saneamento público são referenciados em um total de 107 vezes, num
período entre 1829 e 1850. Deste total podemos ver que 36 referências foram feitas sobre o
elemento água, 8 sobre o elemento ares e 63 sobre os lugares. Um número aparentemente
baixo se comparado com os dados obtidos da segunda metade do século XIX. Vejamos a
seguir como se apresentavam estes mesmos elementos entre 1851 e 1900.
170
Com relação à sistematização de todos estes termos que são também componentes presentes no discurso
hipocrático, os mesmos aparecem de forma mais acentuada no penúltimo tópico deste capítulo, denominado “Os
primeiros movimentos do saneamento na Porto Alegre oitocentista”.
171
No que tange a estes três elementos, o assunto lugar assume importância fundamental, pois ele se apresenta
tanto na questão do espaço, quanto no que diz respeito aos lugares das doenças e de problemas relacionados à
água. Neste sentido, nem sempre a referência realizada nos campos águas e ares aparece desacompanhada de um
lugar. Entretanto, tornou-se necessário separá-los como elementos de análise dado o fato desta relação não se
aplicar a todos os casos, como podemos ver no exemplo a seguir: “Elegem uma Comissão para examinar pontos
de água potável e obras necessárias para conduzi-la até a Cidade.” Atas da Câmara de Vereadores de Porto
Alegre. 25 jun. 1831. Como podemos ver neste caso, o elemento água aparece desacompanhado de qualquer
informação que possa indicar um lugar específico dentro do próprio espaço da cidade, por isso foi contabilizado
na tabela somente uma vez, no elemento água.
78
Ano
Águas
Ares
Lugares
Total
1852
1
0
2
3
1853
2
2
6
10
1854
4
5
15
24
1855
0
1
10
11
1856
3
2
5
10
1857
0
1
2
3
1858
1
1
8
10
1859
1
0
4
5
1860
2
1
1
4
1861
1
0
1
2
1862
2
2
3
7
1863
4
2
7
13
1864
1
0
3
4
1865
2
3
8
13
1866
5
4
11
20
1867
4
3
10
17
1868
2
4
17
23
1869
4
1
13
18
1870
1
0
7
8
1871
4
1
6
11
1872
1
0
3
4
1873
10
2
26
38
1874
7
6
17
30
1875
3
1
8
12
1876
9
1
12
22
1877
4
1
10
15
1878
10
0
7
17
1879
8
0
6
14
1880
0
0
2
2
1881
6
0
10
16
1882
12
0
15
27
1883
8
0
12
20
1884
11
1
15
27
1885
10
0
11
21
1886
13
1
17
31
1887
18
0
32
50
1888
4
0
8
12
1889
7
2
14
23
1890
2
1
10
13
1891
1
0
1
2
1892
2
0
2
4
1893
1
0
2
3
1895
0
0
3
3
1896
2
0
2
4
1899
0
2
1
3
1900
1
0
1
2
Total Geral
194
51
386
631
Tabela 3 - Tabela de referência dos elementos hipocráticos presentes nas Atas da Câmara na segunda
metade do século XIX. Fonte: O autor.
172
79
Como podemos ver na tabela anterior, a soma geral de referências para a segunda
metade do século XIX é muito maior do que na primeira metade deste mesmo século. Isso
ocorre não apenas por analisarmos um período maior de tempo, mas porque os três elementos
hipocráticos passam a ser referenciados com mais freqüência. A partir da década de 1850 a
referência a estes três elementos passam por um aumento progressivo, como podemos ver na
tabela anterior, voltando novamente a decair por volta da década de 1890.
173
Desdobrando os
números obtidos acima, podemos verificar como se apresentam referenciados os três
elementos hipocráticos mês a mês durante todo o período que cobre a segunda metade do
século XIX. Deste desdobramento obtivemos os seguintes resultados:
Mês
Águas
Ares
Lugares
Janeiro
30
5
51
Fevereiro
23
3
41
Março
19
2
33
Abril
15
4
22
Maio
18
6
31
Junho
10
3
24
Julho
16
3
21
Agosto
8
2
18
Setembro
9
4
24
Outubro
22
5
37
Novembro
14
4
45
Dezembro
10
10
39
Total
194
51
386
Tabela 4 - Tabela de referências mensais de 1851 a 1900.
Fonte: O autor.
174
172
Tabela baseada sobre informações retiradas dos Catálogos das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre
de 1851 a 1900. Catálogo das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre: 1846-1900. Vol. 9 ao 13.
Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1998-2001. Foram suprimidos da tabela os anos em que não
ocorreram referências, ou seja: 1851, 1894, 1897 e 1898.
173
Analisamos os motivos desta variação de forma mais detida no terceiro capítulo, denominado: “As políticas
públicas para o saneamento de Porto Alegre: o discurso epidêmico e as ações práticas na segunda metade do
século XIX”.
174
Tabela baseada sobre informações retiradas dos Catálogos das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre
de 1851 a 1900. Catálogo das Atas da mara de Vereadores de Porto Alegre: 1846-1900. Vol. 9 ao 13.
Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 1998-2001.
80
Dos números obtidos acima, podemos notar que o elemento água passa a ser agora
muito mais referenciado durante o período dos meses de verão e do outono (diferentemente
como podemos ver com relação à tabela da primeira metade do século XIX, cuja referência
concentrava-se mais nas estações do inverno e da primavera), com ápice no mês de janeiro.
Dentre os elementos mais citados para esta segunda metade do culo XIX, os assuntos de
maior freqüência são os que dizem respeito aos problemas derivados de esgoto, dos valos,
sangas e águas estagnadas. Os despejos no rio, a limpeza de arroios, riachos e o estado de
asseio do litoral são assuntos ainda constantemente abordados. Todavia, existe um acréscimo
de assuntos novos, como: as irrigações de ruas nos meses de verão, a criação de duas
hidráulicas para abastecimento de água potável na cidade, a falta de água no mercado, o mal
estado de conservação das fontes e chafarizes. Pela primeira vez, observa-se também a
utilização do termo água não para designar o estado de saneamento da cidade, mas como
um elemento presente e importante também para a saúde individual, conforme apontava o
médico Americo Alvarez Guimarães em correspondência para o Presidente da Província:
“Não deve haver prohibição absoluta d‟ agoa aos doentes: eles a devem beber
moderadamente. As suas vestes, coberturas e dormitórios devem estar limpos.”
175
No que diz respeito aos lugares, ocorre também um deslocamento com relação à sua
referenciação. Se na primeira metade do século XIX o seu ápice acontece no período de
inverno, na segunda metade deste mesmo século ele passa a ser muito mais referenciado no
período de verão, como ocorre com o elemento água. Mesmo assim, podemos observar que
tais referências continuam também sendo realizadas em grande quantidade na estação da
primavera. Dentre os problemas mais citados quanto aos lugares, temos os que dizem respeito
ao lixo, a limpeza, aos despejos, as estagnações, a criação de animais dentro do circuito
urbano da cidade (bem como a matança de cães), a caiação de paredes, aterramentos,
construções de muros, calhas, vigilância, sepultamentos e fiscalização. No universo destes
problemas, os lugares mais citados são: o rio, as ruas, as praças, as pontes (de despejo ou de
coleta de água potável), as praias do litoral, os hospitais (Militar e Santa Casa de
Misericórdia), os açougues, matadouros, armazéns, tabernas, as fontes, chafarizes, os quartéis,
as casas domiciliares, os terrenos, pátios (quintais), prédios (e seus porões), os navios de
transporte e barcas de condução (principalmente de lixo), as chácaras, o cemitério, a Doca e o
175
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 28, 17 mai. 1862, Circular n.23.
Cópia anexa, 26 mar. 1862.
81
Mercado. Entre estes assuntos, ao final do século XIX encontramos também as questões que
dizem respeito à construção de um forno de incineração de lixo na cidade.
Ganha destaque sobre os lugares neste momento os cortiços, que se tornam objeto de
interferência das comissões domiciliares, que eram destinadas a fiscalização dos locais de
habitação suspeitos de pouco asseio, como pode ser visto em documento remetido pelo
Presidente da Província à Câmara de Vereadores:
[...] chamo particularmente a attenção de Vmces. para os seguintes pontos, que
merecem promptas providências.
Não se deve consentir que em cortiços e pequenas casas se conservem aglomerados
muitos indivíduos.
Convém revistar-se todas as que forem suspeitas de pouco asseio, obrigando-se os
moradores e inquilinos à limpeza conveniente.
[...]
A Presidencia confia que essa Câmara, com zelo e inteligência com que costuma
promover o interesse dos seus municipes, cobrará quanto antes na conformidade de
que se lhe recomenda, e tomará quaisquer outras providências, que julgar
necessárias em favor da saúde dos habitantes desta Capital.
176
Além da fiscalização dos cortiços da cidade deveriam na visão do Inspetor de Saúde
Pública à época, manterem-se também sob vigilância as meretrizes, dos quais o mesmo
propunha serem feitos os exames sanitários necessários”.
177
Portanto, estes são os lugares
que podemos definir como sendo o campo de atuação do saneamento público na cidade na
segunda metade do século XIX.
Tratando sobre os ares, podemos perceber que estes continuam concentrados sobre as
estações da primavera e verão, porém agora, passam também a ser referenciados com maior
freqüência no período do outono. Dentre as doenças mais citadas deste período temos: o
cólera, a bexiga (varíola), a escarlatina e a peste bubônica. Como principal causador destas
doenças, aparece o termo miasma, que à época era identificado com os ares corrompidos.
178
Dos locais em que o poder público municipal buscava atuar para prevenir e combater tais
176
AHPAMV - Correspondência Recebida pela Câmara Municipal, Livro 26/27, 23 jan. 1860.
177
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 15, 04 nov. 1859. No que diz respeito
às meretrizes, não fica claro se tais “exames sanitários” deveriam ser destinados às pessoas ou ao ambiente em
que estas habitavam. Mesmo assim, achamos importante colocar em evidência esta passagem, visto a
ambigüidade de suas possíveis interpretações.
178
Para Marques: “Segundo a teoria então corrente, a inalação e o contato com o ar proveniente da
decomposição de cadáveres e da matéria pútrida, ou mesmo de seres vivos, poderia causar um desequilíbrio de
gazes, levando à doença e à morte. A estes gases se deu o nome de miasmas, e a partir de então o acontecimento
de doenças passou a ser relacionado a certas características do meio. O calor e a água, dois poderosos indutores
da decomposição, bem como os miasmas oriundos dos pântanos, dos rios, dos esgotos, do solo e, posteriormente,
dos pobres e suas habitações passaram a ser considerados perigosos causadores de doenças.” MARQUES,
Eduardo Cesar. Da higiene à construção da cidade: o Estado e o saneamento no Rio de Janeiro. História,
Ciências, saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, Vol. II, n. 2, Jul.-Out, 1995. p.56. Grifo nosso.
82
doenças, estes se concentravam basicamente sobre lugares citados anteriormente, com
destaque muito maior agora para as ruas, pátios (quintais), prédios e casas públicas. Destes,
destacamos a atuação sobre o lixo, os despejos e as águas estagnadas.
Como podemos ver, os três elementos constantes do saber hipocrático são presentes
diante as políticas públicas adotadas pelo poder público municipal. É nítido também que estes
três elementos fazem parte de um universo que se inter-relaciona constantemente. Entretanto,
tais elementos não se apresentam isolados. Eles necessitam de agentes para dar base e
sustentação a este saber hipocrático. Assim, conhecer quem eram os agentes que estavam
envolvidos direta e indiretamente com este tema torna-se ponto importante para melhor
compreendermos como se processava este conhecimento sobre o saneamento público na
cotidianidade da cidade. Vejamos a seguir quem eram estes agentes, quais as suas funções
(atribuições), o que falavam, o que faziam e o que pensavam fazer perante o saneamento ao
longo do século XIX em Porto Alegre.
3.2 AGENTES DO SANEAMENTO
Aqueles que se atêm ao estudo do saneamento na cidade de Porto Alegre no século
XIX, mediante análise da documentação existente do poder público municipal, principalmente
das Atas da Câmara de Vereadores da cidade, logo percebem as recorrentes reclamações e
denúncias de moradores da cidade com relação à colocação de lixo ou de sujeiras em terrenos
baldios, ruas e praças da cidade. Presentes são, portanto, os próprios moradores de Porto
Alegre como agentes do saneamento a reclamarem e a denunciarem tais problemas com
relação ao estado de asseio da cidade, como podemos observar abaixo:
Recebem ofício de um cidadão, reclamando da sujeira da travessa que vai da Rua de
Bragança até o Portão.
179
Recebem dos moradores das praças Paraíso e Ferreiros, reclamações sobre a limpeza
das mesmas.
180
Recebem requerimento de moradores em frente à Praça dos Ferreiros, esquina do
Beco da Casa da Ópera, pedindo o fechamento de um terreno que serve de depósito
de lixo.
181
179
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 04 jul. 1829.
180
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 10 jul.1833.
181
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 19 set. 1836.
83
Encaminham ao Presidente da Província requerimento de morador da travessa que
fica nos fundos do Quartel reclamando dos despejos que são lançados em frente a
sua casa.
182
Por sua vez, podemos notar que a Câmara de Vereadores de Porto Alegre buscava
solucionar tais problemas mandando os fiscais que eram encarregados da limpeza da cidade
controlar: o asseio dos espaços, o aterro dos despejos, o cercamento dos terrenos baldios, a
remoção do lixo e a eliminação dos cães que vagavam pelas ruas.
183
Estas tarefas se tornaram
funções do poder público municipal a partir da criação do Primeiro Regulamento Brasileiro
para o Funcionamento das Câmaras Municipais em 1828, que estabelecia as seguintes
atribuições a este poder público:
Alinhamento, limpeza, iluminação, desembaraço das ruas, estradas e praças,
conservação e reparo das muralhas, edifícios, escavações e precipícios, prisões
públicas, calçadas, pontes, fontes, aquedutos, chafarizes, poços, tanques e quaisquer
outras construções em benefício comum dos habitantes ou para decoração ou
ornamento das povoações, cemitérios fora dos recintos dos templos, esgotamento de
pântanos e de qualquer estagnação de águas, infectas; sob a economia e asseio de
currais, matadouros públicos, curtumes, depósitos de lixo, tudo quanto pudesse
alterar e corromper a salubridade da atmosfera.
184
Para o cumprimento destas deliberações o fiscal era ao que tudo indica um agente
chave, que situava-se entre os mandos e desmandos do poder público municipal e o restante
da população que compunha o espaço social da cidade.
Autorizam o Fiscal da Cidade a fazer o aterramento dos despejos e imundícies da
mesma.
185
Determinam ao Fiscal que mande limpar e remover o lixo de vários pontos da
cidade, principalmente da Praça Paraíso.
186
Recebem a Prestação de Contas do Fiscal da Cidade e ordenam ao mesmo que
providencie a remoção de lixo que infesta a Cidade.
187
182
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 21 jul. 1843. Para maiores detalhes
com relação à área física de Porto Alegre neste período, bem como a localização das respectivas ruas, ver:
ANEXO B.
183
O ato de eliminar os cães que perambulavam pelas ruas da cidade de Porto Alegre foi muito comum durante
todo o século XIX. Segundo Franco até 1904, “praticava-se periodicamente a matança dos cães gaudérios,
primeiro „a laço e a pau‟, e mais adiante pela disseminação de „bolas de estricnina‟”. FRANCO, Sérgio da Costa.
Porto Alegre: guia histórico. 3.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998. p.249.
184
AHRS - Primeiro Regulamento Brasileiro para Funcionamento das Câmaras Municipais. Leis e Decretos do
Império, 1828, L042. p.192-195.
185
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 18 abr. 1837.
186
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 31 mai. 1835.
187
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 09 jun. 1838.
84
Remetem ao Fiscal da Cidade, para serem tomadas as medidas necessárias, o pedido
feito por um cidadão para cercar um terreno que está servindo de depósito de lixo.
188
Determinam ao Fiscal que faça a limpeza na cidade e mande matar os cães inúteis.
189
Um dos principais problemas no que tange ao saneamento da cidade no decorrer do
século XIX, diz respeito à questão do lixo. Como podemos observar, a ação da Câmara
consistia além de mandar limpar os lugares, também em tentar conservá-los. Para isso, os
vereadores chegaram a cogitar a possibilidade da colocação de lixeiras em determinados
pontos da cidade, como podemos ver: “Estudam pontos para colocação de lixeiras nas praças
Paraíso e dos Ferreiros, que se acham limpas, e resolvem estabelecer uma multa para quem
não cumprir as determinações.”
190
Em relação às multas, estas já eram previstas no Código de
Posturas Policiais do ano de 1829, no valor de cinco mil réis para os infratores e de dez mil
réis para os reincidentes:
Capitulo - 12
Ninguem podera embaraçar as Praças da Cidade, ruas, largos, estradas, e caminhos
com pipas, caixoens, e entulhos, e quaesquer outros objectos que embarassem o
transito, e fazer fojos, escavaçoens, e accumulaçoens nas mesmas estradas, e
caminhos, que prejudiquem o seo commodo, e livre transito; assim como os que não
compuserem as suas testadas nos lugares onde não houverem calçadas, e não derem
conveniente direcção, e esgoto as agoas, que as possão damnificar: quem contravier
incorrerá na multa de sinco mil réis; na de dez mil reis no cazo de insistencia,
acrescendo neste cazo a pena de oito dias de prizão aos que fizerem os fojos, e
escavaçoens além do damno, que causarem.
191
Além da fiscalização e das multas, podemos observar também que o poder público
municipal buscava orientar a população, através de publicações em editorais quanto aos locais
“adequados” para a colocação dos despejos, bem como as medidas adotadas com relação ao
aterramento dos mesmos e a matança de cães:
Mandam publicar Editoriais contendo os lugares possíveis de colocação de despejos,
estabelecendo multas a quem não contribuir, e enviando às medidas tomadas ao
Conselho Geral da Província para que sejam anexadas as Posturas Policiais.
192
Mandam publicar pela Imprensa os ofícios relativos à iluminação da Cidade e o
abastecimento dos gêneros de primeira necessidade, assim como as providências
tomadas sobre o aterramento dos despejos, matanças de cães e calçadas de ruas.
193
188
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 03 ago. 1840.
189
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 10 mai.1841.
190
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 09 set. 1830.
191
AHPAMV - Código de Posturas Policiais. 15 dez. 1829. Grifo nosso.
192
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 10 set. 1830.
193
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro12, 10 mai. 1837.
85
Além da própria Câmara Municipal e de seus fiscais, também os presidentes de
Província aparecem constantemente envolvidos no assunto saneamento da cidade. Esta
presença indica muitas vezes a interferência de tais presidentes no assunto, como atesta a Ata
da Câmara de Vereadores de Porto Alegre do dia 21 de julho de 1845: “Recebem ofício do
Presidente da Província comunicando haver dado ordens proibindo os despejos na Rua da
Olaria, mandando aterrar o fosso do Portão do Caminho Novo”
194
. Outros exemplos desta
interferência podem ser também encontrados nas Correspondências Recebidas pela Câmara
Municipal, vejamos:
Vmces. as necessárias ordens para que de hoje em diante as carroças
pertencentes à Municipalidade sejão empregadas incessantemente, e exclusivamente
na conducção do lixo das ruas desta Cidade, com especialidade as da Praia, Nova da
Praia, Nova, e do Poço; podendo a mara mandar alugar outras para continuarem
nos misteres, em que aquellas estejão actualmente servindo.
Barão de Muritiba.
195
Em outras ocasiões, podemos ver na documentação que era o próprio poder público
municipal que solicitava algum tipo de ajuda ao presidente, seja no que diz respeito à
execução de serviços de saneamento, seja nas questões orçamentárias que envolviam o
mesmo:
Solicitam ao Presidente da Província que tome providências junto ao Quartel do
Batalhão, exigindo que suspenda os despejos feitos na rua próxima ao mesmo.
196
Ilmo. Exmo. Sr. A Camara Municipal desta cidade vem solicitar de V.Exª. a
adoptação de uma medida importante [...] a conservação da saúde publica.
As agoas do Riachinho extraordinariamente baixas por effeito da secca, que se vae
fazendo sentir, acha-se estagnadas em partes do mesmo arroio, e por isso em estado
de decomposição a grande quantidade de plantas aquáticas que ali vegetam, e não
sendo ignorada a factal influencia que este facto exerce a saúde publica, a Camara
Municipal, cujas finanças não comportam qualquer despendio extraordinário pede a
V. Exª. que haja de expedir suas ordens no sentido de proceder-se a limpeza e
desobstrução da barra do citado arroio, correndo a respectiva despesa pelo cofre
provincial.
Ilmo. Sr. Dr. Carlos Thompson Flores, Presidente da Provincia. (assignados) Miguel
Teixeira de Carvalho, João B., João Pitta Pinheiro, João N. da S. Canabarro, Antonio
José Gonçalves Mostardeiro.
197
Decidem solicitar ao Presidente da Província a cedência de doze presos para serem
aproveitados na limpeza das ruas.
198
194
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 21 jul. 1845.
195
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 26 set. 1855.
196
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 31 ago. 1838.
197
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 11, 18 dez. 1879. Grifo nosso.
198
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12,14 dez. 1836.
86
Apesar dos vereadores da Câmara e dos presidentes da Província serem os agentes
públicos envolvidos diretamente na elaboração das políticas públicas para o saneamento da
cidade, estes deveriam enquadrar suas decisões de acordo com as ordens vigentes do Império.
Neste sentido, a figura do Imperador como agente político ganha também importância, pois
em vários momentos podemos ver a sua manifestação com relação aos aspectos da saúde,
principalmente no que tange as epidemias, como a do cólera, que afetavam diretamente as
questões relacionadas ao saneamento:
Graças á Divina Providencia, o estado da saude publica é satisfactorio, na maior
parte do Imperio. O flagello da cholera-morbus que, sinto dizer-vos, appareceu na
Côrte e em alguns pontos do Rio de Janeiro, de S. Pedro do Rio Grande do Sul e de
Santa Catharina, declinou rapidamente e não foi tão mortífero como em sua primeira
invasão.
199
Torna-se interessante salientar que a maior parte das referências ou termos conceituais
sobre a saúde pública utilizados nos discursos anuais, proferidos na Assembléia Geral
Legislativa pelo imperador D. Pedro II, aparecem da seguinte forma de acordo com uma
estrutura bem específica: na primeira parte encontramos a abertura oficial da fala; em seguida
o imperador começa abordando a questão da saúde pública, das doenças e das epidemias no
Império. Posteriormente, trata sobre as questões internas do país (mão de obra, terra, produção
agrícola, rendas públicas, orçamentos, despesas, preços e receitas); logo, fala sobre a questão
do tráfico de escravos e por fim aborda questões que dizem respeito às relações
internacionais, ao Exército, a Armada e a Justiça.
O Imperador, quando se refere à questão da saúde pública, normalmente utiliza duas
expressões: “o estado de saúde pública” e o “estado sanitário” da nação. Dentre as doenças,
ganha destaque em sua fala os termos: epidemias, colera-morbus, febre epidêmica e moléstias.
Normalmente, a estrutura da fala sobre as doenças segue uma disposição que é ordenada da
seguinte maneira: primeiramente, o Imperador destaca a questão da proporção tomada pela
doença pelos mais diferentes territórios; em seguida utiliza os seguintes termos para
caracterizar as doenças, como: medo, terror, mal, flagelo, invasão, mortífera, estragos,
sofrimento e aflição; logo em seguida utiliza os termos e Deus para indicar uma possível
salvação ou melhora do estado epidêmico da nação; posteriormente, trata sobre a ação do
governo por meio de medidas e meios que estavam ao seu alcance; por último, destaca as
199
AHPAMV - Falla do Imperador à Assembléa Geral Legislativa. Correspondências Recebidas pela Câmara
Municipal, Livro 31, 22 mai. 1867.
87
ações individuais de caridade, misericórdia, dos socorros do Estado e dos particulares,
fechando com os termos preces e divina providência.
200
Para além do Imperador, presidentes de Província e dos vereadores da Câmara
Municipal, havia também a Comissão de Higiene Pública, mais tarde substituída pela figura
do Inspetor de Saúde Pública. Tanto a Comissão de Higiene Pública como os inspetores eram
agentes pensantes e atuantes sobre o estado de saneamento da cidade. A Comissão de Higiene
Pública no Rio Grande do Sul foi criada em 1851
201
, diante de um contexto em que a
epidemia de cólera-morbus se espalhava por grande parte do mundo.
Dentre as inúmeras atividades que cabiam à Comissão de Higiene Pública, estava a
regulamentação e controle nas artes de curar (ou seja, a partir de então, médicos, boticários e
cirurgiões teriam seu registro realizado na Câmara Municipal, mas sob o aval desta
Comissão); fiscalização de boticas, enfermarias, mercados e prisões; coibição dos atos
considerados perniciosos à saúde da população (como o descarte de lixo e matérias fecais em
locais inadequados); por fim, cabia à Comissão propor melhorias para os aspectos sanitários
da cidade,
202
como aponta o ofício enviado pela Comissão de Higiene Pública através de seu
presidente, Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba ao Presidente da Província, que por sua vez
o remeteu à Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Neste documento, Ubatuba recomenda
providências para se evitar que a escarlatina chegasse à capital da Província:
Convém que se melhore o estado sanitário da cidade tão descuidado para que não
seja tão temível sua invasão que por prudência ao menos se tomem aquelas cautelas,
que não sendo vexatórias, são indispensáveis para a salubridade pública, mesmo em
circunstâncias normais, por isso submeto a consideração de Vossa Excelência
algumas providências, que mais urgente se tornão. Que cumpre quanto antes se
cuide com o maior empenho do asseio das ruas, e não consista somente o asseio em
tirar-se dellas o lixo seco, que nem hum mal faz a saúde, deixando o limo que há em
algumas, e as agoas estagnadas, e lama podre, que existe em fossas feitas pelo
descalçamento em outras. Que não se consinta despejos no interior da cidade
como atualmente de prática nas praias e ruas, principalmente na da Bragancia e do
200
Do poder público imperial, destaca-se também a presença como agente do saneamento os Ministros do
Império e os Presidentes da Junta Central de Higiene blica, que apontavam através de seus relatórios, os
problemas derivados do saneamento público no território brasileiro. Veremos a participação efetiva destes
agentes no terceiro capítulo.
201
Através do Decreto 828, de 29 de setembro de 1851, que mandava executar o regulamento da Junta de
Higiene Pública em seu artigo , “nas Províncias do Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul
haverá Comissões de Higiene Pública compostas de três membros, nomeados pelo governo que, dentre os
mesmos, nomeará o Presidente; nas outras províncias haverá somente Provedores de Saúde Pública”. Leis do
Brasil, 1851, p.259. A Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro, por sua vez, vinha a substituir a Comissão
Central de Saúde Pública, criada no dia 12 de fevereiro de 1850 em função da epidemia de febre amarela
ocorrida naquela cidade. WITTER, Nikelen Acosta. Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no
sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). 2007. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. p.59.
202
Idem, p.68.
88
Poço devendo-se marcar lugar próprio onde devão ser feitos, e se tiverem sido
marcados, que se faça cumprir as ordens. Que se deve estender a vigilância ao
asseio dos pátios e quintais, casas públicas, e as de substâncias alimentares expostas
a venda principalmente as frutas verdes. Nestas circunstâncias toda preocupação não
é demasiada, e a negligência poder dar causa de inúmeros danos que tarde custarão
mais, e serão sem proveito as cautelas que se tomassem. o estas as considerações,
que julguei de mais dever levar a presença de Vossa Excelência Deus guarde a
Vossa Excelência por muitos anos. Porto Alegre, 14 de dezembro de 1853.
Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba. Presidente da Comissão de Higiene Pública.
203
Em 12 de dezembro de 1857 através do Decreto 2052, o Império fez registrar um
regulamento, cujo artigo tratava da substituição das Comissões de Higiene Pública nas
Províncias, pela figura do Inspetor de Saúde Pública.
204
De início, tais inspetores no Rio
Grande do Sul acabaram provindo da própria presidência da antiga Comissão. Entretanto, ao
que tudo indica através de análise da documentação existente, tal uso do termo “comissão” ou
“comissões” não deixam de existir, bem como não fica totalmente compreensível se tais
medidas com relação ao saneamento da cidade eram de uma possível comissão ou do Inspetor
de Higiene. Como podemos observar, o uso de diferentes termos era uma constante: Inspetor
da Comissão de Higiene, Inspetor da Saúde, Inspetor de Higiene, Diretor Geral da Saúde,
Delegado da Higiene Pública, Comissão de Higiene, Comissão de Saúde e/ou Comissão
Sanitária.
Além da variação de nomenclaturas para designar o possível ou os possíveis
responsáveis por pensarem tais políticas para o serviço de saneamento da cidade, havia
também um diversificado número de agentes que trabalhavam diretamente com esta atividade.
Destacam-se entre agentes os presidiários, que eram constantemente utilizados pelo poder
público municipal nos serviços de limpeza da cidade.
O uso de presidiários em tais atividades consistia ao que tudo indica, na idéia que a
comissão de avaliação das prisões possuía com relação ao estabelecimento prisional. Na
concepção desta comissão os presídios deveriam “dar nova educação aos infelizes, que ali são
lançados, expurgando-os dos maus extintos, para, depois de melhor educados na prática do
trabalho, voltarem de novo à sociedade.”
205
Entretanto, os presidiários não eram os únicos a exercerem tais atividades, pois
observamos outras nomenclaturas que designavam “cargos” de execução em tais serviços,
como podemos ver:
203
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 14 dez. 1853. Grifo nosso.
204
MACEDO, Francisco Riopardense. Porto Alegre: aspectos culturais. Porto Alegre: SMEC, Div. de Cult.,
1982. p.69.
205
AHRS - Correspondência das Câmaras Municipais. Lata 137. Maço 149. Câmara Municipal de Porto
Alegre. Correspondência Expedida. 14 jul. 1885.
89
Recebem ofício do Fiscal da Cidade apresentando a despesa feito com serventes e
encarregados dos trabalhos de limpeza da Cidade.
206
Concedem licença para que o Fiscal contrate dez serventes para a limpeza da
Cidade e matança de cães.
207
Mandam colocar à disposição do Fiscal da mara dois serventes para
acompanharem a carroça que se usa na limpeza dos entulhos.
208
Como podemos observar a nomenclatura “servente” também aparece para designar
“cargos” ou “funções” dos trabalhos que envolviam os serviços de limpeza da cidade. No
entanto, parece haver algumas derivações no que tange ao exercício destas “funções”. No
primeiro exemplo a palavra servente juntamente com a de encarregado é designada para o
trabalho de limpeza; já no segundo caso, além da limpeza observa-se que os serventes
também deveriam atuar na matança de cães; e por último, a palavra servente designa também
aquele indivíduo que deveria acompanhar a carroça nos serviços de limpeza e não na tarefa de
conduzi-la como cocheiros.
Além da nomenclatura servente” envolvendo os serviços de saneamento da cidade,
podemos observar também a presença de outras categorias e/ou funções no que diz respeito a
estes serviços. Em ofício que foi remetido pelo Procurador da Câmara ao poder público
municipal, o mesmo informa a “contratação de um vigia para os despejos e limpeza da
Cidade.”
209
Esta tarefa de vigilância no que tange ao asseio da cidade era muitas vezes
executada também por policiais, que eram solicitados ao chefe de Polícia pela Câmara para
auxiliarem o fiscal na vigilância da limpeza na cidade.
210
Outro ponto relevante apontado por este estudo foi a ausência da nomenclatura
“escravo” na documentação do poder público, indicando que os mesmos fossem os executores
de tais serviços de saneamento ligado à limpeza na cidade. Supostamente os escravos
exerciam tais atividades de limpeza, remoção e descarte dos materiais fecais e do lixo, bem
como das águas servidas. Entretanto, só encontramos um documento que indica esta presença,
o próprio Código de Posturas de Porto Alegre, que estabelecia punições para aqueles
escravos que desobedecessem as normas estabelecidas pelo poder público quanto aos despejos
na cidade:
206
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 26 nov. 1839. Grifo nosso.
207
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 13 jul. 1840. Grifo nosso.
208
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 17 out. 1844. Grifo nosso.
209
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 22 ago. 1839.
210
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 11 jan. 1844.
90
Toda a pessoa que de dia, ou de noite for encontrada pelos encarregados da
execução das Posturas á lançar ciscos, e a fazer quaesquer outros despejos de
immundicias fora dos indicados lugares, sendo livre soffrerá a prizão por tres dias na
Cadea, e pagará dentro della a multa tres mil reis, e sendo escrava será condusida, á
Cadea e ahi castigada com cincoenta açoutes, e immediatamente solta.
211
Na verdade o uso de escravos nas tarefas de limpeza na Porto Alegre oitocentista
parece ser muito mais ligado aos serviços de particulares do que aos serviços públicos. No
entanto, era no espaço público que estes indivíduos eram vistos com mais freqüência e
retratados realizando tais atividades. Os escravos que normalmente realizavam as tarefas de
condução de materiais fecais e águas servidas das residências (através de recipientes
denominados a época de cubos ou cabungos) eram também chamados de “tigres”.
Como ilustra algumas imagens do século XIX, a presença da figura escrava como um
dos componentes a fazer parte do espaço social não é incomum. Em algumas destas imagens,
inclusive torna-se possível verificar como se processava os serviços de condução dos
materiais fecais e das águas servidas realizados por estes agentes. Na imagem a seguir
podemos ver como foi retratado o serviço de despejo em trapiche (ponte), muito comum
durante o século XIX:
Imagem 1 Os “tigres”. Fonte: A Semana Ilustrada, 1861.
212
211
AHPAMV - Código de Posturas Policiais, reformado e aprovado pela Lei Provincial de 23 de Novembro de
1837 e publicado por Edital em 19 de Fevereiro de 1838. Grifo nosso.
91
Entretanto, temos que tomar alguns cuidados com as imagens, pois as mesmas são
objetos “dados” a ver de determinada forma, o que nos cabe aqui substituir este “dado” pelo
horizonte do “construído”.
213
Assim, no que diz respeito aos serviços de despejo (retratado
acima), fazemos algumas considerações, que acreditamos ser de fundamental importância
para a compreensão histórica do processo dos serviços de saneamento no século XIX.
Como podemos perceber uma das funções da imagem anterior pode estar diretamente
relacionada a uma crítica ao serviço público municipal, que neste caso era direcionada ao
próprio poder público da cidade do Rio de Janeiro no século XIX.
214
Por sua vez, as críticas
aos serviços de saneamento das cidades eram comuns neste período. Todavia, mais
importante que a própria crítica, como elemento “dado” a ver, torna-se fundamental saber a
forma como se processou sua “construção”, como objeto constituidor de sentido ou de
sentidos.
Analisando a imagem anterior podemos perceber primeiramente que se trata de uma
ilustração, comum a época nos periódicos do século XIX. A imagem desta ilustração compõe-
se basicamente de dois planos. No primeiro plano podemos ver o rio e a ponte de despejos,
onde os escravos executam uma ação. no segundo plano temos a indicação do espaço e do
lugar onde ocorre esta ação, neste caso, a imagem procura nos passar duas informações: a
primeira de que se trata de uma ação realizada no espaço da urbe, visto a presença de
construções ao fundo; já a segunda, do local exato destes acontecimentos, neste caso na altura
ou ponto da “praia de D Manoel”.
Identificada a imagem, seus planos, elementos em disposição e o provável local de seu
acontecimento, partimos para análise dos indivíduos presentes nesta imagem. Como vimos, os
escravos são os únicos agentes a compor o cenário. Neste cenário suas ações consistem em
uma prática: a do despejo de materiais fecais e/ou águas servidas, cuja identificação dessa
212
NOVAIS, Fernando A.; ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil 2.
Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.70.
213
Sobre as imagens como objetos que são elementos “dados” a ver de uma determinada forma destaca-se aqui
as obras de: PEIXOTO, Nelson Brissac. Quadros Mecânicos: fisionomias urbanas. In: Paisagens Urbanas. 3.ed.
São Paulo: SENAC/SP, 2004. p.94-135. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma história visual. In:
Martins, J. S.; ECKERT, C.; NOVAIS, S. C. (Orgs). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP:
EDUSC, 2005. p.33-56.
214
Utilizamos esta ilustração referente à cidade do Rio de Janeiro, por não encontrarmos imagem sobre as pontes
de despejos da cidade de Porto Alegre.
92
atividade nos é possível de interpretação dado a leitura de outros documentos do período,
que não estão relacionados diretamente a esta própria imagem.
215
A crítica neste caso, mesmo assentando-se sobre os aspectos que dizem respeito à
sujidade, procura construir uma imagem onde se funde a ação (prática), indivíduos (escravos)
e objeto (neste caso, podendo ser entendidos como: excrementos, lixos e águas servidas). É a
junção destes três componentes no mesmo universo, que permite a construção e manutenção
de uma “ordem” dada a ver pela manutenção de uma “fixidez”. Como verifica Bhabha no que
tange ao discurso colonial:
Um aspecto importante do discurso colonial é sua dependência do conceito de
“fixidez” na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da diferença
cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação
paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e
repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia
discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está
sempre “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido.
216
Assim, a imagem que vimos anteriormente, antes de ser uma imagem crítica ou de
denúncia é uma imagem possivelmente construtora de significados. Sua função perpassa o
visto para se concentrar na “fixidez” do não dito. Função esta que se assenta sobre uma
mesma base, que procura antes tudo criar, juntar e manipular elementos díspares em um
mesmo conjunto, formando então a imagem estereotipada e demoníaca do que Burke chama
do “Outro”:
Os estereótipos mais grosseiros estão baseados na simples pressuposição de que
“nós” somos humanos ou civilizados, ao passo que “eles” são pouco diferentes de
animais como cães e porcos, aos quais eles são freqüentemente comparados, não
apenas em línguas européias, mas também em árabe ou chinês. Dessa forma, os
outros são transformados no “Outro”. Eles são reduzidos à qualidade de exóticos e
distantes do eu. Eles podem até ser transformados em monstros.
217
Para o caso da cidade de Porto Alegre uma imagem de escravo como agente do
saneamento da cidade no século XIX, pode refletir melhor esta construção estereotipada que
ao mesmo tempo é de manutenção e perpetuação de uma “fixidez” dada a ver constantemente
pelo “lugar” de sua presença. Como podemos observar a seguir:
215
As documentações que nos referimos aqui, dizem respeito a toda e qualquer tipo de documentação que trata
sobre os aspectos do saneamento da cidade no século XIX. No que tange a este trabalho torna-se importante ver
as fontes que estão relacionadas ao final desta Dissertação.
216
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005. p.105.
217
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. p.157.
93
Imagem 2 Ilustração de Cândido Faria
Fonte: MCSHJC - O Fígaro, Porto Alegre, 1879.
Na imagem acima podemos verificar novamente a figura do agente escravo sendo
retratada a conduzir os chamados cubos à cabeça. Seu plano único chapado sobre a
horizontalidade não nos informa e nem nos possibilita saber o local da ação. Na verdade é o
próprio desdobramento da ação, que procura sobrepor-se como uma mensagem direta “dada”
a ver do acontecimento. Assim, a violência da ação dirige diretamente nosso olhar para o
acontecido e não para as nuances da expressão. Um olhar mais atento sobre a imagem
novamente torna-se revelador da construção demoníaca
218
da figura escrava. Tal imagem
mostra a figura escrava totalmente estereotipada, onde a fisionomia ou fisionomias do rosto
são retratadas totalmente disformes (queixo longo, lábios grandes e ressaltados e nariz
achatado), onde o olhar mostra-se ameaçador, quase como um animal.
A imagem cuja figura escrava é retratada em corpo totalmente disforme, onde cabeça e
tronco possuem praticamente a mesma proporção, na verdade planifica na horizontalidade
várias outras figuras escravas que pouco se diferem uma das outras. Poderíamos caracterizar
esta imagem como uma caricatura não fosse a presença do homem branco a esquerda ser
retratada dentro dos parâmetros esperados de dimensão para um corpo humano. Se existe aqui
uma caricatura, esta parece ser totalmente direcionada e proposital. A “fixação” de dizer o
“dito pelo não dito” trata-se de um objetivo bem claro, a manutenção da ordem vigente, onde
a imagem pode funcionar melhor do que a escrita. Tal imagem tem por função tanto reforçar o
entendimento sobre a hierarquia social, como apontar o lugar do espaço social em que tais
indivíduos deveriam ocupar.
218
Expressão utilizada por Bhabha para denominar o efeito de estereotipação. BHABHA, op. cit., p.105.
94
Destaca-se então para a figura escrava o lugar do lixo, da sujeira e do serviço braçal,
cujo universo de atuação se assentaria diretamente sobre o trabalho com o serviço de limpeza,
da condução de materiais fecais, águas servidas e de lixo. Um trabalho considerado sujo e
impuro, que na visão do preconceito deveria ser feito por aqueles que estavam a ocupar o
mais baixo nível de hierarquia social. Neste sentido, Porto Alegre parece não se diferenciar,
neste período, das demais cidades do país.
Ligada a produção destas imagens estereotipadas, temos outro agente do saneamento
na Porto Alegre oitocentista, ou seja: a imprensa. O papel da imprensa com relação aos
serviços de saneamento dependia do seu posicionamento frente à administração pública da
cidade ou de algum outro tipo de interesse específico frente a esta.
219
Assim, havia jornais que
criticavam a execução (ou a falta) destes serviços na cidade, e havia aqueles que eram pagos
para informarem aos cidadãos sobre as políticas adotadas ou que deveriam ser cumpridas com
relação ao serviço de limpeza, despejo e abastecimento de água da cidade.
Dentre estes jornais destacamos o Jornal do Commercio,
220
que normalmente possuía
um espaço para os informativos da Câmara Municipal, como podemos ver em exemplo
abaixo:
O fiscal da camara municipal abaixo assignado, previne os moradores do districto
d‟esta cidade, que o lugar destinado para os despejos de materias fecaes e outras
immundices, é na ponte que a camara mandou fazer para esse fim na desembocadura
da rua de Santa Catharina; os que forem encontrados fazendo taes despejos fóra
d‟este lugar serão multados em 10.000 rs, ou 10 dias de cadêa, e sendo escravo
5.000 rs, de multa paga pelo senhor, tudo de conformidade com as disposições do
art. 49 do código de posturas.
Antonio Francisco de Paula.
221
entre os jornais que se mostram contrários aos andamentos do serviço de
saneamento da cidade, podemos encontrar O Fígaro,
222
cujas críticas escritas eram muitas
vezes acompanhadas de uma ou mais ilustrações, como podemos ver:
219
Sobre a imprensa em Porto Alegre no século XIX, ver: DILLENBURG, Sergio Roberto. A imprensa em
Porto Alegre de 1845 a 1870. Porto Alegre: Sulina/ARI, 1987.
220
Jornal ligado ao Partido Liberal que foi fundado por Luiz Cavalcanti em 1865, tendo por chefe de redação
Aquiles Porto Alegre. Tinha como característica ser um jornal “noticioso, comercial e literário e político”. Idem,
p.52.
221
AHPAMV - Jornal do Commercio, Porto Alegre, 4 nov. 1867. p.4.
222
Com relação ao jornal O Fígaro, não foi localizado nenhuma bibliografia que tratasse sobre este periódico.
Provavelmente isto se deva ao pequeno número de material preservado deste jornal. Entretanto, cabe ressaltar
que uma das características principais deste jornal era conter ilustrações críticas ao poder público municipal.
95
Imagem 3 Chiqueirinho Nº 1
Fonte: MCSHJC - O Fígaro, Porto Alegre, s/d. (Ilustrações)
Acompanhada a esta ilustração, onde a figura do porco é identificada como sendo a da
Câmara Municipal, podemos encontrar o seguinte comentário:
Chiqueiro Nº 1
Srª. Câmara, esta limpeza da Praça da Alfândega é indecente. Deixe-se de fazer
contratos com afilhados e compadres e cumpra com as suas obrigações. Espero que
mande limpar esta praça, primeiro lugar que pisam os estrangeiros que aqui
chegam.
223
Para além dos que pensavam, executavam e criticavam tais serviços na cidade havia
também os contratados (e/ou contratado-contratantes), como denúncia a matéria do jornal
acima. Tais contratos muito comuns a época eram realizados via edital, contratação direta
com o fiscal ou simplesmente com pessoas que se ofereciam para prestar tais serviços em
troca de uma remuneração.
223
MCSHJC - O Fígaro, Porto Alegre, s/d. (Ilustrações)
96
Aceitam a proposta apresentada por um vereador, de colocar em empreitada pública,
através de Editais, o serviço de limpeza da Cidade.
224
Recebem proposta de um cidadão para fazer a limpeza da cidade e conserto da Ponte
da Azenha.
225
Encarregam os Fiscais de procurarem pessoas que tenham interesse em contratar
com a mara o serviço de limpeza da cidade e ver os consertos que necessita a
Ponte da Azenha.
226
Contratado o serviço, se o responsável não cumprisse as exigências do contrato (que
poderia ser de organização e coordenação dos serviços com pessoal e equipamentos próprios
ou simplesmente de prestação de mão de obra direta na execução de tais tarefas) este poderia
ser multado e até mesmo demitido, como podemos ver nos exemplos abaixo:
Solicitam a um cidadão encarregado da limpeza da cidade que cumpra um contrato
feito com a Câmara.
227
Determinam ao Procurador e ao Fiscal que mandem multar o encarregado da
limpeza por não estar cumprindo o contrato.
228
Despedem o contratante da limpeza da Cidade.
229
Tais contratos eram estabelecidos normalmente de forma provisória. Alguns destes
eram fechados para a realização de serviços, cuja utilização de mão de obra deveria constituir-
se especializada, seja ela livre ou escrava. Nos livros de lançamento de despesas feitas pela
Câmara Municipal, podemos encontrar os gastos com a Companhia Hidráulica Porto
Alegrense,
230
no que se refere ao pagamento da mão de obra especializada que foi utilizada
nos serviços de abastecimento de água da cidade. Destaca-se no pagamento desta mão de obra
os serviços que eram executados por pedreiros, carpinteiros e serventes, como podemos ver na
tabela a seguir.
224
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 05 set. 1834.
225
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 09 out. 1834.
226
Idem.
227
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 1° fev.1843.
228
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 22 mai. 1843.
229
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro13, 13 jan. 1844.
230
A Companhia Hidráulica Porto Alegrense foi autorizada a funcionar por Carta Imperial de D. Pedro II, no ano
de 1862. COSTA, Telmo Cardoso. Histórico dos Sistemas de Água e Esgotos da Cidade de Porto Alegre
1779 a 1981. Porto Alegre: Oficinas Litográficas do DMAE, 1981. p.11. Maiores detalhes sobre esta companhia
poderão ser vistos no próximo capítulo.
97
Feria dos trabalhadores escravos e livres nas obras da Companhia Hydraulica Porto
Alegrense, justos à jornal do dia 16 a 31 de Julho de 1864.
FERIA DOS TRABALHADORES ESCRAVOS
Nomes e proprietários
Officios
Percentual
Preços
diários
Importância
José. de Domingos José Lopes
Carpinteiro
11%
1600.
18$400.
João. de Idem
Pedreiro
11%
2000.
23$000.
Antonio. de Idem
11%
1900.
21$850.
Hipolito. de Idem
11%
1600.
18$400.
Ignacio. de Antonio Marques da Cunha
11%
1500.
17$250.
Francisco. de D. Maria Thereza
11%
1600.
18$400.
Bento. de João Luiz Cordeiro
Servente
11%
1000.
11$500.
Manoel. de D. Felicidade Froes
8%
8$500.
FERIA DOS TRABALHADORES LIVRES
Nomes
Officios
Percentual
Preços
diários
Importância
Luiz Francisco de Andrade
Pedreiro
11%
4000.
46$000.
Theodolindo Peixoto de Faria
10%
2500.
26$250.
Manoel Ignacio de Oliveira
11%
28$750.
Francisco José Pinto
10%
2000.
21$000.
Manoel Rodrigues Chitta
11%
1600.
18$400.
Augusto José Pinto
9%
15$200.
João José Moreira
11%
2000.
12$000.
Joaquim Ignacio d‟Oliveira
Carpinteiro
2$000.
Tabela 5 - Feria dos trabalhadores escravos e livres nas obras da Companhia Hydraulica Porto
Alegrense.
Fonte: Livro Lançamento de Despesas, 1864 1865.
231
Como podemos ver na tabela acima, existiam diferentes profissionais especializados,
sejam eles escravos ou livres trabalhando diretamente no serviço de saneamento da cidade.
Mesmo assim, não é difícil de perceber-se que tais valores pagos pelo mesmo tipo de
atividade se diferenciavam, como no caso do trabalhador livre Luiz Francisco de Andrade (de
231
AHPAMV - Livro Lançamento de Despesas, 1864 1865.
98
profissão pedreiro), cujo rendimento diário chegava à soma total de 4000 réis contra a metade
desse valor pago ao dono do escravo João, que recebia pela atividade de seu escravo a
importância de 2000 réis diários, ou seja, a metade do valor.
Podemos observar, portanto, que haviam diferentes agentes envolvidos no sistema de
saneamento da cidade de Porto Alegre (governo imperial, presidentes da província,
vereadores, fiscais, vigilantes, policiais, presidiários, inspetores, Comissão e comissões,
contratados e contratos/contratantes, imprensa, serventes, trabalhadores livres e escravos, bem
como os próprios habitantes da cidade). Cada um destes agentes exercendo algum tipo de
participação sobre os problemas derivados do saneamento da capital. Alguns atuavam
diretamente como trabalhadores neste serviço, como vimos acima, outros pensavam as
políticas públicas para este mesmo serviço, outros criticavam os serviços existentes de
saneamento da capital, e por fim havia aqueles que se aproveitavam dos problemas derivados
do saneamento para poder ganhar algum dinheiro através de prestações de serviço. Como
podemos ver na tabela abaixo, estariam ligados ao saneamento da cidade basicamente os
seguintes agentes:
Imperador
Imperial
Ministro do Império
Junta Central de Higiene Pública
Presidente
GOVERNO
Provincial
Comissão de Higiene Pública
Inspetor/Diretor de Higiene
Demais Comissões
Câmara Municipal (vereadores)
Fiscais
Municipal
Polícia Municipal
Vigias
Serventes
Imprensa
Contratados/Contratantes
POPULAÇÃO
Particulares
Moradores
Trabalhadores livres e escravos
Presidiários
Tabela 6 Agentes do saneamento
Fonte: O autor.
Perante este universo que era o saneamento na cidade atuava um saber hipocrático
(como vimos no primeiro tópico deste capítulo) que se movia como um elemento magnético a
atrair e dar forma às políticas empregadas por estes agentes diretamente no campo de atuação
99
do saneamento. É a inter-relação entre estes agentes com este saber (que se desdobra desde a
Antiguidade), que possibilita-nos pensar de forma mais complexa a própria história do
saneamento em Porto Alegre no século XIX. Vejamos assim, como se processou esta inter-
relação, cujos primeiros movimentos podem ser verificados na cidade de Porto Alegre na
primeira metade do século XIX.
3.3 OS PRIMEIROS MOVIMENTOS DO SANEAMENTO NA PORTO ALEGRE
OITOCENTISTA
Um dos primeiros a relatar aspectos do saneamento da cidade de Porto Alegre foi o
viajante francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) no ano de 1822.
232
Das inúmeras
anotações realizadas pelo viajante sobre Porto Alegre, durante os 36 dias em que esteve na
cidade, o que mais nos chamou a atenção foi a presença do assunto saneamento (ou a falta do
mesmo) sobre a capital da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
No primeiro dia de sua chegada a Porto Alegre (21 de junho de 1822), Saint-Hilaire
assim descrevia a condição de limpeza da cidade:
Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova;
todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas depois do Rio de
Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não
seja tanto.
233
Esta observação de Saint-Hilaire, a princípio seria uma descrição como outra qualquer,
entretanto, se compararmos a situação da capital do Império com a cidade de Porto Alegre
neste mesmo período, esta visão pode se tornar aterradora. Em estudo realizado pela
historiadora Mary Karasch, sobre a cidade do Rio de Janeiro no mesmo período, a autora
aponta:
O Rio do século XIX não tinha nenhum sistema de esgotos e as casas não tinham
latrinas ou banheiros. Excrementos animais e humanos, lixo, carcaças de animais
grandes como cavalos, escravos agonizantes e mortos e a sujeira de uma cidade
232
Muitos viajantes europeus estiveram no Brasil no século XIX, deixando suas observações do país através de
relatos escritos. Para além de fontes que são relatos escritos de algo (país), são também documentos históricos
que retratam o “si” destes viajantes. No que tange ao trabalho com este tipo de fonte documental torna-se
importante ver: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si. Escrita da história. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004. Em relação à escrita de si envolvendo o assunto a saúde, torna-se importante ver também a obra de
VIGARELLO, George. História das Práticas de Saúde. Lisboa: Editorial Notícias, 2001, que trabalha cartas e
outros documentos pessoais para analisar o universo da saúde e da doença na Idade Moderna.
233
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002. p.50.
100
grande atravancavam as ruas. Como sempre, a cidade dependia de seus escravos
para limpar e remover a imundície, embora os galés e africanos livres também
trabalhassem na limpeza pública. No início do século, as praças públicas tinham
servido de locais de despejo e os escravos levavam o lixo e os excrementos do dia
para depositar nelas. A polícia acabou com essa prática anti-higiênica, mas os
escravos, conhecidos como “tigres”, ainda tinham de carregar os barris fedorentos de
lixo e excremento sobre suas cabeças. Todas as noites, depois das dez horas, longas
filas de escravos caminhavam pelas ruas da cidade para despejar os dejetos do dia
nas praias poluídas, inclusive na do Valongo.
234
Esta prática de se jogar o lixo na praia parece se confirmar também para o caso porto-
alegrense, cuja regulamentação dos locais de despejo era estabelecida pela Câmara Municipal
através do Código de Posturas Policiais. Este Código previa além de multas, a punição
corporal para os escravos que não cumprissem as regras estabelecidas pelo poder público
municipal de então. Assim, no ano de 1837 a Câmara buscava regular, através do Código de
Posturas, os locais exatos destinados aos despejos em praias da cidade, apontando as punições
para aqueles que não cumprissem tais medidas:
Capitulo 5 - Os lugares designados nesta Cidade para os despejos de ciscos, e
immundicies são de hora em diante a beira do rio no espaço, que mediar entre dois
marcos de páus, que a Camara mandará fincar, sendo o primeiro lugar entre a Rua
da Mizericordia, e a do Rozario, o entre esta e a esquina da Praça do Paraizo do
lado de Leste, o entre a Praça do Paraizo, e o porto dos Ferreiros; o 4º entre esta e
a Rua do Ouvidor; o 5º entre o lugar da quitanda e a Rua Clara; o 6º entre esta e a do
Arroio; o entre esta e a Principal; o entre esta e o lugar chamado da passagem;
entre a ponta da pedra deste lugar até a desembocadura da Rua do Cotovello, e o
decimo entre esta rua e a Formoza, seguindo-se os mais, que forem necessarios ate a
ponte do Riacho, e que serão designados pela mesma forma. Toda a pessoa que de
dia, ou de noite for encontrada pelos encarregados da execução das Posturas á lançar
ciscos, e a fazer quaesquer outros despejos de immundicias fora dos indicados
lugares, sendo livre soffrerá a prizão por tres dias na Cadea, e pagará dentro della a
multa tres mil reis, e sendo escrava será condusida, á Cadea e ahi castigada com
cincoenta açoutes, e immediatamente solta.
235
Como podemos ver a principal preocupação da Câmara não residia no descarte
realizado nas praias, ao contrário, tais descartes eram previstos e inclusive organizados pelo
poder público municipal. Aparentemente a preocupação da Câmara se concentrava muito
mais em uma possível transgressão na ordem do lugar que não fosse aquele previsto pelo
Código de Posturas. Tudo indica que não havia uma preocupação quanto à sujidade
236
que
234
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo. Companhia das Letras,
2000. p.190.
235
AHPAMV - Código de Posturas Policiais, reformado e aprovado pela Lei Provincial de 23 de Novembro de
1837 e publicado por Edital de 19 de Fevereiro de 1838.
236
No que diz respeito ao termo sujidade, torna-se importante observar que a mesma pode ser referida de
diferentes formas. Neste caso, a sujidade refere-se ao estado de asseio dos espaços. Mas existem casos, como
aponta Jean-Pierre Goubert, que o termo sujidade pode ser utilizado como elemento ligado, neste período, à
101
esta prática poderia causar ao rio, e sim a desobediência com relação ao descarte em locais
que não fossem pré-determinados pela Câmara, que como verificamos na citação anterior,
apontava o rio como reduto final a receber todos os despejos da cidade.
Para este momento, as principais preocupações dos componentes da Câmara
Municipal, mostram-se muito mais direcionadas aos descartes de lixo e despejos que eram
realizados sobre as ruas, praças e edificações do que as próprias praias, como se pode
observar através da documentação:
Determinam ao Fiscal da mara que mande limpar a praça ao lado da Alfândega e
o beco da Casa da Ópera, no local destinado à banca do peixe.
237
Determinam ao Fiscal da mara que, com urgência, faça enterrar o lixo da praça
Paraíso e de outros lugares públicos.
238
Determinam que o Fiscal providencie imediatamente a limpeza em torno do prédio
da Alfândega.
239
Tomam providências para impedir que o Batalhão continue jogando seus
despejos no Beco que fica nos fundos do Quartel.
240
No que diz respeito ao estado do saneamento da cidade de Porto Alegre, no período da
Revolução Farroupilha, não temos um conjunto de informações precisas, que possa mostrar
ao certo o quanto tal Revolução teria contribuído para agravar os problemas derivados do
saneamento na cidade.
241
Como vimos anteriormente, foram criadas uma série de medidas que
procuravam regulamentar os locais de despejo sobre um espaço delimitado e limitado ao
próprio cerco que acontecia à cidade na época.
242
Entretanto, o que podemos observar é que independentemente do cerco a Porto Alegre,
proteção do corpo contra as doenças. GOUBERT, Jean-Pierre. Iniciation à une nouvelle histoire de la
médecine. Paris: Ellipses, 1998. p.16. Em outra visão, a sujidade pode ser representada como um elemento que
pressupõe distinção entre o “Eu” colonizador e o “outro” colonizado, como aponta Bhabha, no que denomina de
exercício da autoridade colonialista, onde: “a produção de diferenciações, individuações, efeitos de identidade
através dos quais as práticas discriminatórias podem mapear populações sujeitas que são pichadas com a marca
visível e transparente do poder.” BHABHA, op. cit., p.161.
237
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 11 jun. 1830.
238
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 21 jun. 1830.
239
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 18 fev. 1839.
240
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 03 dez. 1844.
241
Ao que tudo indica, os problemas derivados das más condições de salubridade foram acentuados com o cerco
à cidade, como aponta o requerimento feito por um cidadão à mara em 1839: [...] um chiqueiro, como bem
propriamente chamam os rebeldes a esta cidade”, referindo-se ao estado da rua denominada beco da Casa da
Ópera. AHPAMV - Construções e Melhoramentos do Município. 31 out. 1839.
242
Cerco este que provocou, segundo Escosteguy: “uma cessação da atividade construtiva e conseqüentemente
da expansão da área urbanizada”. ESCOSTEGUY, Luiz F. A. Produção e uso dos espaços centrais a beira rio
em Porto Alegre (1809-1860). 1993. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993. p.87.
102
realizado pelos farrapos a partir de 1836, os habitantes da cidade praticavam o ato de
descarte e despejo pelos mais diferentes pontos da capital. Saint-Hilaire interpretava este
problema na década de 20 do século XIX, como derivado de um rápido aumento da população
neste período, que:
[...] fez com que os terrenos se tornassem mais valorizados aqui do que nas cidades
do interior; poucas casas possuem jardins e muitas o tem sequer quintal; daí um
grave inconveniente de atirarem à rua todo o lixo, tornando-as imundas. As
encruzilhadas, os terrenos baldios e, principalmente, as margens da lagoa são
entulhadas de sujeira; os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, vêem-
se negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as
mais emporcalhadas vasilhas.
243
O que podemos observar também é que Saint-Hilaire não compara, pelo menos no que
tange a este aspecto do saneamento, a cidade de Porto Alegre com Paris, mas sim com o Rio
de Janeiro. Notamos que a França, presente no discurso do viajante, parece fornecer um
modelo apenas quando lhe convém. Quase sempre ela (França) é solicitada para indicar
padrões ou ideais de referência e não de problemas de mesma ordem, como no caso do
saneamento ou da falta deste. Mesmo assim, cabe ressaltar que a não comparação de Saint-
Hilaire possa ser também em decorrência das transformações de ordem sanitária que já
haviam se iniciado na França no século XVIII. Falamos aqui do processo de urbanização
francês
244
, que foi verificado por Michel Foucault como responsável pelo desenvolvimento da
medicina social:
A segunda direção no desenvolvimento da medicina social é representada pelo
exemplo da França, onde, em fins do século XVIII, aparece uma medicina social que
não parece ter por suporte a estrutura do Estado, como na Alemanha, mas um
fenômeno inteiramente diferente: a urbanização. É com o desenvolvimento das
estruturas urbanas que se desenvolve, na França, a medicina social.
245
Adentrando as questões ligadas à saúde e a doença, Saint-Hilaire também faz duas
observações. A primeira registrada no dia 27 de junho de 1822, em que associa os problemas
estomacais em que tropas paulistas enfrentavam na região, com as questões alimentares. Para
243
SAINT-HILAIRE, op. cit., p.71-72. No que tange a densidade populacional da cidade de Porto Alegre ao
longo do século XIX, ver tabela contida no ANEXO C, no final desta dissertação.
244
Assunto abordado no capítulo anterior, no tópico “Um novo tempo para a Iluminação na história do
saneamento”.
245
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p.87. Medicina social cujo
objetivo final, segundo Roberto Machado, era: “de maneiras diversas, formar ou reformar física e moralmente o
cidadão.” MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: Medicina social e constituição da psiquiatria no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p.280-1.
103
o viajante, as disenterias constantes eram frutos da alimentação carnívora em que tais
paulistas não estavam acostumados, pois eram “mais habituados ao feijão e farinha do que à
carne”
246
.
A segunda passagem ocorre no relato do dia 04 de julho de 1822. Nesta o viajante faz
a seguinte observação:
O clima de Porto Alegre é muito saudável; não se conhecem aqui as febres
intermitentes, mas no tempo do frio, os resfriados e as doenças de garganta são
muito comuns. Nessa mesma estação, o tétano se manifesta freqüentemente,
sobretudo em seguida a um ferimento.
247
São poucos os momentos em que Saint-Hilaire comenta sobre as doenças, como
podemos verificar. Quando o mesmo comenta, como vimos acima, acaba associando estas a
problemas derivados do clima e da alimentação. Fora estas breves passagens, o viajante
somente discorre sobre uma construção que estava sendo realizada fora dos limites da cidade,
que daria origem anos depois a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, destinada a
abrigar os doentes da região. Em relação a este assunto, o viajante faz a seguinte observação:
Fora da cidade, sobre um dos pontos mais elevados da colina, onde ela se acha
construída, iniciou-se a construção de um hospital, cujas proporções são tão grandes,
que provavelmente não seja terminado tão cedo; mas a sua posição foi escolhida
com rara felicidade, porque é bem arejado, bastante afastado da cidade, para
evitar contágios; ao mesmo tempo muito próximo para que os doentes fiquem ao
alcance de socorro de qualquer espécie.
248
Esta visão de Auguste de Saint-Hilaire de ligação entre a ambiência e a saúde também
pode ser encontrada em pontos específicos dos discursos do poder público municipal. Os
assuntos relativos ao cemitério da cidade neste período são um exemplo do que podemos
encontrar desta ligação.
Respondem as exigências do Conselho Geral da Província, dando explicações sobre
a saúde pública e cemitério.
249
Analisam, juntamente com o Pároco da Matriz, a transferência do Cemitério e a
melhor maneira de fazê-lo, nomeando para isto uma Comissão de Facultativos de
Medicina.
250
246
SAINT-HILAIRE, op. cit., p.56.
247
Idem, p.61.
248
Idem, p.71. Grifo nosso.
249
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 20 dez. 1832.
250
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 27 jan. 1834.
104
Solicitam aos membros da comissão encarregada de estudar o local mais apropriado
para a mudança do cemitério que envie com urgência um parecer.
251
A ligação entre a alimentação com a saúde apontada pelo viajante anteriormente,
também pode ser verificada através do Código de Posturas elaborado no ano de 1810:
24° - Acordão que os taverneiros ou vendeiros não deitem confeiçoens no vinho,
vinagre, aguardente ou outros quaisquer effeitos, de que possa resultar damno a
saúde publica, com pena de seis mil reis, para o Conselho, trinta dias de cadeia e se
lhe lançar fora o genero.
252
Para além do Código de Posturas, constatamos esta recorrência também nas Atas da
Câmara deste período, em exemplo: “Convidam vários médicos para que exponham à
Câmara os riscos que corre a população ingerir carne de gado doente e qual a melhor forma de
evitar enfermidades.”
253
Na verdade, como podemos observar a preocupação com a
alimentação, como sendo um dos componentes ligados a saúde não se mostra contrária ao
pensamento hipocrático, pois Hipócrates através de sua obra Ares, águas e lugares”,
destacava também a alimentação como um dos pontos importantes para a saúde:
Por fim, a atenção deve voltar-se ao nível de vida que é mais agradável aos seus
habitantes: se preferem o vinho, as comidas e são dedicados ao ócio, ou se amam o
trabalho duro, os exercícios físicos e comem à vontade mas bebem pouco.
254
Para além da alimentação como um importante elemento ligado a saúde é visível
também na documentação do poder publico municipal, a preocupação dos habitantes da
cidade, no que se refere aos aspectos do saneamento da mesma. Entretanto, esta preocupação
não se ateve as reclamações e críticas ao poder público, pois é verificável também a
tomada de certas iniciativas por parte dos moradores, no que tange a sugestões de construções
de obras, cujos custos deveriam ser arcados pelos mesmos, como podemos ver abaixo:
Solicitam aos moradores das praças Paraíso e dos Ferreiros que apresentam a
sugestão de construir uma ponte sobre o rio para jogar os despejos, que informem
com que quantia pretendem concorrer para tal projeto.
255
251
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 06 ago. 1834.
252
ANRJ - Código de Posturas de 1810. Mesa, cx. 187.
253
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 26 abr. 1844.
254
HIPÓCRATES. Dell'aria, delle acque, dei luoghi; Il giuramento; La legge. Firenze: Sansoni, 1957. p.65.
Tradução de Carolina Etcheverry.
255
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 22 jun. 1830.
105
Concedem licença aos moradores da praça Paraíso e dos Ferreiros para, às suas
custas, construírem pontes e cloacas sobre o rio para jogar despejos.
256
Além das pontes de despejos, podemos verificar neste período a construção de pontes
que eram destinadas à retirada de água diretamente do rio para consumo.
257
Para este caso,
inclusive foi formada uma comissão destinada a “obter recursos para a construção de uma
ponte para tirar água potável”.
258
Dois anos após a formação desta comissão, seria lavrado o
termo de arrematação para a construção de tal ponte.
259
Mesmo assim, tudo indica não ser
incomum a colocação de despejos em locais que a princípio eram destinados somente à
retirada de água para abastecimento. Para solucionar tal problema, a Câmara de Vereadores
no ano de 1842, mandou: “proibir a colocação dos despejos em lugares de onde se retira
água.”
260
Podemos verificar na documentação da Câmara, que o assunto água neste período é
também tratado sobre outros aspectos, que não se confinam somente às questões relativas à
água potável ou aos diferentes usos do rio.
261
É recorrente também o assunto água no que
tange à estagnação e aos problemas derivados do esgoto. Algumas vezes chegamos a
encontrar a relação direta entre um problema como derivado do outro, por exemplo:
Autorizam o Procurador a mandar fazer o esgoto das águas que se acham
estagnadas.
262
Determinam a limpeza dos valos que escoam as águas dos becos do Mota e do
Carneiro.
263
Em outros casos o assunto esgoto aparece também como um elemento derivado de
problemas das próprias instituições públicas: “Recebem um ofício pedindo à Câmara que
tome providências sobre o esgoto da prisão militar, que é expelido nas casas da redondeza.”
264
O que por fim, parece levar alguns moradores da cidade a reclamarem de tais problemas,
256
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 9, 06 jul. 1830.
257
Além da água do rio a população servia-se neste período de fontes localizadas em pontos específicos da
cidade como: Praça do Portão, Rua do Pântano ou São Jerônimo, Rua do Arvoredo e Alto da Praia (Praça D.
Pedro II, atual Praça da Matriz). Ver: Mapa contido no ANEXO B.
258
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 08 mai. 1843.
259
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 29 nov. 1845.
260
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 29 out. 1842.
261
Mesmo assim, este é um problema que se remete pelo menos desde 1780, quando o então governador José
Marcelino de Figueiredo mandou prender por duas semanas o então procurador Manoel José Pereira Cardinal,
por discordar dos termos de ajuste para a construção da primeira fonte da cidade, cujo custo de construção foi
autorizado no valor de 25$600. COSTA, T., op. cit., p.9.
262
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 20 jul. 1843.
263
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 12, 22 fev. 1838.
264
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 15 out. 1841.
106
principalmente no que tange à estagnação das águas paradas, como o pedido feito pelos
moradores da Rua do Arroio: “Determinam ao Procurador que examine o problema de
estagnação das águas na Rua do Arroio, a pedido dos moradores.”
265
Tais pedidos muitas
vezes acabavam, ao que tudo indica, em realizações de orçamentos feitos pelo próprio
procurador, como o que foi realizado no ano de 1844: “Recebem do Procurador o orçamento
pedido para fazer o esgoto das águas no Beco de José Inácio Lourenço.”
266
Dos problemas relacionados às águas da cidade,
267
não encontramos no discurso da
Câmara Municipal, neste período, uma ligação direta entre o elemento águas associado à
doença do cólera. O que podemos verificar é a ligação do assunto doença (cólera) com o saber
médico oficializado pelo poder público de então, neste caso a Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro.
268
Recebem ofício do Presidente da Província encaminhando parecer da Sociedade de
Medicina da Corte sobre os cuidados com o cólera.
269
Recebem e mandam publicar em Edital o estudo da Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro sobre o cólera.
270
Afirmar que os vereadores de Porto Alegre a época não faziam a ligação direta entre
as águas com a doença do cólera não significa dizer que a Sociedade de Medicina do Rio de
Janeiro não fizesse esta relação, mas sim que esta relação não fora incorporada ao discurso
dos vereadores como componente presente nas ações sobre o saneamento da cidade. Esta
situação muda como poderemos observar a partir da segunda metade do século XIX,
quando as práticas de limpeza do espaço passam a ser percebidas a partir da ótica da higiene.
Chamamos este momento de passagem do saneamento de limpeza para o saneamento de
higiene.
265
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 21 jul. 1841.
266
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 13, 07 jun. 1844.
267
Os problemas relacionados à água em Porto Alegre, ao que tudo indica, diferiam da cidade de São Paulo neste
mesmo período, visto o problema desta última ser de escassez de água, como aponta SANT‟ANNA, Denise
Bernuzzi de. Cidade das águas: usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo:
SENAC São Paulo, 2007. p.89-118. no caso de Porto Alegre, os problemas maiores parecem se concentrar
mais nas questões dos despejos, que muitas vezes ocorriam em águas, sejam elas do rio, córregos ou valos.
268
A sociedade de Medicina do Rio de Janeiro foi fundada no ano de 1829 por médicos radicados na Corte
Imperial, seu objetivo principal era: “fornecer pareceres às autoridades governamentais em matérias relativas à
higiene e saúde pública. Esse vínculo existente entre a Sociedade de Medicina e o Estado revela o caráter
eminentemente político dessa entidade que pretendia organizar o espaço urbano exclusivamente à luz da
ciência.” SOARES, Márcio de Sousa. Médicos e mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.VIII, n.2, jul./ago 2001. p.415.
269
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 10, 10 nov. 1831.
270
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 11, 05 nov. 1833.
107
3.4 DO SANEAMENTO DE LIMPEZA PARA O SANEAMENTO DE HIGIENE
Como vimos até o momento, os três elementos constantes do saber hipocrático são
presentes diante as políticas adotadas pelo poder público municipal sobre o saneamento da
cidade no século XIX. É verificável também que estes três elementos se fazem presentes
mediante uma constante interação entre os aspectos ligados a saúde e/ou problemas derivados
de determinadas doenças. Tal interação por sua vez, torna-se mais nítida quando podemos
contemplar o diversificado número de agentes que estavam envolvidos direta ou
indiretamente com este assunto na cidade.
É deste universo marcado pela interação entre os diferentes agentes do saneamento
(indivíduos), saberes e/ou saber (hipocrático) ligados em grande parte as concepções de saúde
e de doenças, que se movem as políticas públicas direcionadas ao saneamento da Porto Alegre
oitocentista. Políticas estas, que no decorrer da segunda metade do culo XIX, seriam
marcadas profundamente por aquilo que denominamos de “momento de passagem” entre uma
dada concepção de limpeza, vista por seus agentes como o ideal para a saúde para uma
determinada concepção de higiene, percebida a partir daquele momento como essencial a
saúde. Segundo o historiador Jean-Pierre Goubert, este é um período onde: “o mundo
contemporâneo prepara-se para renegar o antigo código social da limpeza, para substituí-lo
pelo da higiene”.
271
Neste sentido, a história do saneamento público da cidade de Porto Alegre no século
XIX é marcada por dois momentos distintos. O primeiro, ao qual denominamos de “fase
limpezista”, cobre basicamente a primeira metade do século XIX, tendo por característica
principal as ações do saneamento pautadas por discursos que visavam à saúde, mediante
interferências diretas sobre o espaço. Esta ocorrência da ligação entre a saúde e a ambiência
torna-se melhor observável quando se trata, por exemplo, dos assuntos respectivos ao espaço
cemiterial.
272
Em um segundo momento, temos então a chamada “fase higienista”, que pode ser
verificada sobre toda a segunda metade do século XIX. Esta fase é marcada pela inversão das
ações, ou seja, das práticas direcionadas prioritariamente ao espaço, que visavam
conseqüentemente à saúde dos corpos em um primeiro momento, passa-se agora para uma
271
GOUBERT, Jean-Pierre. A conquista da água na era industrial. In: SERRES, Juliane; SCHWARTSMANN,
Leonor. (Orgs.) História da Medicina: instituições e práticas de saúde no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2009. p.24.
272
Como citamos na página 103 desta dissertação.
108
ação cuja prática, apesar de continuar se concentrando sobre o espaço, começa a identificar
este espaço relacionando-o como um problema ligado aos indivíduos.
273
Nesta visão, não era
a ambiência que era corrompida, ela se encontrava nesta situação em função da ação
“perniciosa” de “certos” indivíduos sobre o espaço. Neste sentido, como verifica Tocchetto:
Visando acabar com as epidemias, focos de infecção, a contaminação de ares e
águas, o discurso médico passou a exercer um controle fiscalizador contra a
insalubridade generalizada. Foram difundidas regras de higiene pessoal e coletiva,
de manutenção das moradias, de descarte e remoção do lixo para locais periféricos,
de inspeção de feiras e abatedouros, criação de novos bairros, etc.
274
Um exemplo mais direcionado sobre este momento de “passagem” pode ser verificado
sobre a documentação do saneamento referente a este período. Destacamos aqui um Parecer
enviado pela Comissão Médica ao então Presidente da Província, José Antonio de Azevedo
Castro:
A fim de indagarmos as causas próximas ou remotas do empeoramento do estado
sanitário desta capital pelo aparecimento simultâneo de enfermidades diversas e
algumas das quaes tem tomado o caráter endêmico, terminando muitas delas pela
morte, fazendo assim desapparecer repentinamente cidadãos pouco antes válidos e
sãos; e outro sim encarregados de darmos parecer sobre este assumpto, indicando os
meios convenientes para conjurar este estado, que tanto sobressalta o espírito
público, temos a honra de declarar a V. Exª. que depois de havermos feito os
necessários exames e estudos, discutindo entre s esta matéria d‟accordo com os
preceitos de nossa profissão, somos de parecer [...] Que concorrem poderosamente
para o apparecimento quase constante de certas enfermidades, havendo por isto
aviso de serem denominadas endêmicas, causas diversas, a saber: o pouco asseio da
cidade, havendo [...] falta de condições hyggienicas em grande numero de casas,
- essas habitações denominadas cortiços, onde se acumula muita gente, quase
sempre pouco escrupulosa quer a respeito d’asseio, quer de alimentações e dos
demais cuidados hyggienicos indispensáveis a vida do homem [...] Que para
afastar de nós o mais possível, estas causas de enfermidades convém que se
estabeleça na Capital encanamento para o esgoto dos materiaes e das águas servidas,
a fim de que desapareçam com promptidão esses agentes de infecção que se
realize o asseio das casas, principalmente dos cortiços, os quaes devem ser
subordinados as regras hygienicas prescriptas por pessoa autorisada, que as
inspecione frequentemente [...] entretanto, parece-nos que realizando-se os meios
que temos a honra de indicar, obteremos consideráveis vantagens em favor do
estado sanitário d‟esta Capital, cujos habitantes não devem continuar nesse
sobressalto d‟espirito e porque é de esperar, que o acrisolado cuidado de V. Exª. pelo
273
Cabe lembrar que esta “passagem” era reforçada também por incertezas com relação às causas das doenças.
Neste sentido, segundo Finkelman: “Tanto na versão contagionista quanto na anticontagionista, uma das
características mais marcantes da higiene no período que antecedeu a consagração da bacteriologia consistia na
indeterminação da doença. O ar, a água, as habitações, a sujeira, a pobreza, tudo poderia causá-la. A fluidez do
diagnóstico era acompanhada pela imprecisão terapêutica. Essa característica também permitia que os higienistas
atuassem como tradutores dos mais diversos interesses.” FINKELMAN, Jacobo (Org.). Caminhos da Saúde
Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. p.32.
274
TOCCHETTO, Fernanda Bordin. O descarte de lixo doméstico na Porto Alegre oitocentista: uma construção
possível sobre práticas e representações. Histórica PUCRS, Porto Alegre, n.7, 2003. p.201. Grifo nosso.
109
bem público faça com que em pouco tempo esta cidade veja realisada todas as
medidas hygienicas por nós lembradas.
275
Neste caso, o corpo social era percebido como um dos objetos diretamente responsável
pelo meio a sua volta. Entretanto, como o meio externo era um dos elementos centrais, visto e
percebido muitas vezes como ponto fundamental para a compreensão de assuntos que diziam
respeito à saúde e a doença, ganhava importância nesta concepção fiscalizar diretamente os
indivíduos, vistos agora como os principais responsáveis pela degradação ou boa conservação
do próprio espaço. Mesmo assim, como podemos observar na citação acima, não eram
quaisquer indivíduos, mas sim grupos específicos cujos lugares denunciavam sua
periculosidade.
276
Esta nova fase marca uma visão diferenciada para a segunda metade do século XIX,
no que diz respeito às questões relativas ao saneamento público da cidade de Porto Alegre.
Fase esta que segundo Pesavento, “gerou as condições para que a questão social se coloque
como problema e indagação: o que fazer com os desafortunados e, principalmente, o que fazer
para impedir que a questão social degenere em conflito e este em ameaça efetiva?”. Estaria
aberto assim um espaço para, “a elaboração de discursos científicos que a descrevem,
analisam e despertam estratégias de abordagem para atingir resultados satisfatórios. É assim
que se articula o discurso médico higienista, o discurso jurídico e criminológico, o discurso
técnico e estético.”
277
Discurso este que segundo Chalhoub, “permitiu aos governantes ocultar,
ou ao menos dissimular, desde então, o sentido classista de suas decisões políticas.”
278
Ganhava destaque neste momento os chamados higienistas e suas intervenções, que pareciam
obedecer:
[...] ao mal confessado objetivo de tornar o ambiente urbano salubre para um
determinado setor da população branca, e esperar que a miscigenação promovida
num quadro demográfico modificado pela imigração européia e as moléstias
275
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela mara Municipal, Livro 26/27, 23 jan. 1860. Grifo
nosso.
276
Para controlar esta periculosidade, foi criada a polícia administrativa do município que tinha por objetivo,
segundo Mauch: “velar pela ordem pública, como em qualquer outro lugar, mas pode-se dizer que a noção de
ordem e desordem variou ao longo da última década do século XIX.” MAUCH, Cláudia. Policiamento em Porto
Alegre nos primórdios da República. In: HAGEN, Acássia M. Maduro; MOREIRA, Paulo R. Staudt. Sobre a
rua e outros lugares: reiventando Porto Alegre. Porto Alegre: Caixa Econômica Federal, 1995. p.100.
277
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade. 2.ed. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS,
1998. p.8-9.
278
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p.8.
110
reconhecidamente graves entre os negros lograssem o embranquecimento da
população, eliminando gradualmente a herança africana da sociedade brasileira.
279
Todavia, como este momento de passagem não é um acontecimento que pode ser
datado como um fato preciso, que tem dia e hora para acontecer e/ou para acabar,
necessitamos para melhor compreendê-lo saber a forma como se processou o seu desenrolar
ao longo da segunda metade do século XIX. Para entendermos melhor estes desdobramentos,
vejamos a seguir como se apresentavam as políticas públicas para o saneamento da cidade,
demonstrando a relação do discurso epidêmico com estas ações práticas, que se
caracterizavam a partir daquele momento pelos preceitos higienistas.
279
Idem, p.9.
111
PARTE III A HISTÓRIA COTIDIANA DO SANEAMENTO EM PORTO ALEGRE
112
4 AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O SANEAMENTO DE PORTO ALEGRE: O
DISCURSO EPIMICO E AS AÇÕES PRÁTICAS NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX
O presente capítulo trata sobre o saneamento na cidade de Porto Alegre entre 1850 e
1900. Nosso objetivo consiste em demonstrar aqui como teria se processado na cotidianidade
da cidade, as políticas públicas para o saneamento da mesma neste período.
280
Para isso,
destacamos a presença do discurso epidêmico e das ações práticas, como elementos
constituidores que davam suporte a estas políticas públicas, empregadas pelos diferentes
agentes sobre o espaço social da cidade. Deste discurso epidêmico, procuramos chamar a
atenção também para a presença constante do pensamento hipocrático (através dos elementos:
ares, águas e lugares), como componentes a fazer parte na cotidianidade das concepções
sobre o saneamento em Porto Alegre no século XIX.
4.1 O SANEAMENTO, AS EPIDEMIAS E AS AÇÕES PRÁTICAS NA DÉCADA DE 1850
Dificilmente um historiador da cidade de Porto Alegre conseguiria tratar da década de
1850, sem falar do impacto causado pela epidemia do cólera, que acabou por afetar os mais
diferentes setores da sociedade no ano de 1855 na cidade. A epidemia do cólera deste período
em Porto Alegre, além de deixar um grande número de mortos na cidade deixou visível
também a fragilidade do sistema de ação política para a saúde da população. Saúde esta, que
segundo Witter parecia se apresentar precária um ano antes da chegada do cólera na então
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul:
No ano em que antecedeu à chegada do cólera, as informações prestadas acerca da
salubridade da província no relatório da Comissão dão conta de que a saúde geral da
população estava em baixa. Uma epidemia de febre escarlatina havia assolado a
capital entre dezembro de 1854 e março de 1855, ocasionando, inclusive, mortes.
281
280
Por cotidianidade entendemos: “A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma
exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se
com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário,
não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o
absorva preponderantemente.” HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p.17.
281
WITTER, Nikelen Acosta. Males e Epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio
Grande do Sul, século XIX). 2007. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. p.68.
113
No que se refere aos assuntos políticos envolvendo o saneamento e saúde pública
neste período, destacamos de início as atribuições da Câmara de Vereadores da cidade de
Porto Alegre.
282
Suas atribuições no que tange a estes assuntos baseavam-se, como vimos, no
controle, registro profissional e na fiscalização de tudo que pudesse alterar e/ou corromper a
salubridade pública da cidade.
283
Entretanto, estas atribuições ao poder público municipal
acabaram gerando inclusive uma autocrítica, como a fez o Ministro do Império José Ignácio
Borges, quando da apresentação do relatório anual a Assembléia Geral Legislativa:
A abolição da Provedoria Mor de Saude alias necessária pelo desleixo em que havia
cahido, e abusos praticados pelos seus Agentes, que so se occupavão de seus
interesses individuais, deveria ser substituida por huma outra Instituição que
exclusivamente se empregasse em vigiar sobre este importante ramo da publica
administração; mas em lugar de assim o fazermos, entregamos as Municipalidades
hum semelhante encargo [...] deixando quase em abandono a cura dos males que se
fomentão no Solo que habitamos, e que de certo não são de menor risco, do que
aquelles que hão de chegar as nossas praias.
284
Nesta fala do Ministro do Império brasileiro, calcada por um discurso autocrítico se
esconde uma situação de insegurança e medo, gerado em grande parte pela ocorrência da
pandemia do cólera que tinha se espalhado a partir de 1829, vindo a atingir a Europa e as
Guianas na América do Sul. Segundo as palavras de Witter, esta: “Foi a primeira grande
pandemia verdadeiramente mundial, onde nenhum continente foi poupado”.
285
Ligado aos
problemas gerados por esta pandemia do cólera, que cada vez mais apontava no horizonte do
território brasileiro é verificável também no discurso do ministro do Império sua preocupação
com o sistema de controle sobre as doenças. Neste sentido, entregar as Municipalidades
este encargo, na visão do Ministro era deixar “quase em abandono a cura dos males”. No
entanto, esta crítica que provinha de dentro da própria administração do Império, pouco
contribuiu para mudar tal situação.
Passado mais de uma década da ocorrência deste discurso do então Ministro do
Império José Ignácio Borges, foi criada a Comissão Central de Saúde Pública na Corte do
Império (1850). A origem desta Comissão decorre diretamente da ocorrência da epidemia de
282
Por saúde pública na cidade de Porto Alegre no século XIX, entendemos toda ação que é voltada a saúde
coletiva, através de prevenção e/ou combate às doenças, sejam ações estas emitidas pelo poder público ou por
instituições, organismos e particulares.
283
AHRS - Primeiro Regulamento Brasileiro para Funcionamento das Câmaras Municipais. Leis e Decretos do
Império, 1828, L042. p.192-195.
284
RELATÓRIO do ano de 1835, apresentado pelo Ministro e Secretário de Estado José Ignácio Borges a
Assembléia Geral Legislativa na Sessão Ordinária de 1836. p.14. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1706/000002.html>. Acessado em: 30 mai. 2010.
285
WITTER, op. cit., p.37.
114
febre amarela acontecida no Rio de Janeiro em 1849. Segundo Marques:
Faziam parte das atribuições desta comissão o esquadrinhamento urbano através da
criação de comissões paroquiais e distritais de saúde pública; a inspeção sanitária em
navios, mercados, prisões, conventos e outros; a fiscalização do exercício da
medicina, cirurgia e farmácia; e principalmente, a centralização dos registros de
casos, óbitos e tratamentos.
286
Adiante (no ano 1851) esta Comissão foi substituída por uma Junta denominada de
Junta Central de Higiene. A Junta Central de Higiene era um órgão do Governo Imperial,
cujas atribuições concentravam-se na regulamentação de políticas direcionadas a saúde
pública, bem como no controle do sistema de saúde da população das províncias pertencentes
ao território do Império brasileiro. Para fazer este controle, o Regulamento da Junta de
Higiene estabelecia em seu artigo segundo, a criação das chamadas Comissões de Higiene
Pública. Dentre estas, destacamos a de São Pedro do Rio Grande do Sul.
287
No Rio Grande do Sul a Comissão de Higiene Pública começou a atuar somente a
partir de 1853, quando os Relatórios da Comissão passam a ser assinados pelo Dr. Manoel
Pereira da Silva Ubatuba, então presidente da mesma.
288
Segundo Witter, um dos elementos
que marcam o discurso de Ubatuba e ao mesmo tempo o diferem dos anteriores é o
rompimento do “discurso sobre a natural salubridade da província”. Este discurso como bem
observa a historiadora era quase sempre baseado sobre as condições ambientais da região.
289
Neste sentido, como vimos no capítulo anterior, as associações entre a ambiência e a saúde
eram muito comuns a época, pois no horizonte de compreensão destes agentes tornava-se
importante os cuidados sobre a ambiência dos lugares, das águas e dos ares, pois assim se
evitariam através desta concepção os problemas relacionados às doenças.
Com o Dr. Ubatuba a frente da presidência da Comissão de Higiene Pública, tais ações
passaram a ser delineadas em diferentes planos de atuação, que não se confinavam somente a
fiscalização e o controle da ambiência, mas também no controle da venda imprópria de
medicamentos e na fiscalização do exercício ilegal da atividade médica. Entretanto, estes
assuntos como vimos anteriormente, eram tarefas atribuídas desde 1828 as Câmaras
Municipais do Império, o que fez com que a Comissão de Higiene encontrasse grandes
286
MARQUES, Eduardo Cesar. Da higiene à construção da cidade: o Estado e o saneamento no Rio de Janeiro.
História, Ciências, saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, Vol. II, n. 2, Jul.-Out, 1995. p.57.
287
AHRS - Decreto nº 828 de 29 de setembro de 1851. Collecção das Leis do Imperio do Brazil, 1851, p.259.
288
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 14 dez. 1853.
289
Para maiores detalhes sobre o Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba, ver: WITTER, op. cit., p.61.
115
problemas com relação aos limites de sua atuação, frente ao poder público municipal e
provincial. Nas palavras de Witter:
[...] a demonstração de que a Comissão estava ciente de qual deveria ser o seu plano
de atuação não significa que ela tenha conseguido cumpri-lo. Muito rápido, é
possível perceber nas comunicações trocadas com a Presidência da província que a
Comissão tinha o poder de sugerir, mas não de aplicar. Além disso, embora ela
devesse seguir as normativas da Junta Central, de fato, ela estava era sujeita ao
Governo da província e, não raras vezes, teve a Câmara de Vereadores como um dos
maiores obstáculos à implementação de seu “plano de ação”.
290
Esta relação muitas vezes conflituosa entre a Câmara Municipal, a Comissão de
Higiene Pública e o Governo provincial, dependia como bem observou Weber da situação em
que se encontrava o sistema político partidário no momento, ou seja:
Quando os Presidentes da Província eram da mesma orientação partidária que os
membros ou pelo menos parte da mara Municipal, não havia maiores discussões.
Quando representavam interesses partidários diferentes, o Presidente da Província
não poupava críticas à administração da Câmara ou a Câmara Municipal não atendia
as solicitações feitas pelo presidente.
291
No que tange o saneamento público da cidade de Porto Alegre, esta situação torna-se
mais evidente, pois ao analisarmos a documentação respectiva ao assunto, contemplamos de
forma mais detalhada o intercruzamento destes problemas. Esta era uma relação conflituosa,
como veremos ao longo deste capítulo, que inclusive viria a afetar o sistema de serviços de
saneamento da cidade. Serviço este considerado à época um dos problemas mais graves para
os habitantes, devido ao fato de estar relacionado aos problemas de ordem da saúde e da
doença, como foi apontado pelo presidente da Comissão de Higiene Pública em 1853:
Convém que se melhore o estado sanitário da cidade tão descuidado para que não
seja tão temível sua invasão que por prudência ao menos se tomem aquelas cautelas,
que não sendo vexatórias, são indispensáveis para a salubridade pública, mesmo em
circunstâncias normais [...].
292
290
Idem. p.63.
291
WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre
no século XIX. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992. p.72. Sobre a relação político-partidária entre
conservadores, liberais e mais tarde republicanos no século XIX, torna-se importante ver também: PICCOLO,
Helga I. Landgraf. Vida política no século 19: da descolonização ao movimento republicano. 2.ed. Porto
Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1992. p.44-76.
292
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 14 dez. 1853.
116
Os dois primeiros anos da década de 1850 na cidade de Porto Alegre praticamente não
se diferenciam, pelo menos no que tange às políticas públicas sobre o saneamento da cidade
dos anos que precederam a este período. No campo internacional, sabia-se que o cólera
ocasionava muitas baixas por onde passava. Entretanto, não havia indícios da doença no
território brasileiro.
293
Os assuntos correntes em relação ao saneamento da cidade de Porto Alegre neste
período concentram-se ainda muito esparsos e quase sempre direcionados à manutenção da
limpeza da cidade. Discutia-se sobre a contratação de pessoas através de editais, para realizar
a limpeza pública. A Câmara continuava a receber abaixo-assinados de moradores
reclamando sobre os despejos que eram muitas vezes realizados em locais considerados
impróprios por estes moradores. O poder público municipal, por sua vez, parecia se preocupar
mais com a fiscalização e com a aplicação de multas do que com a realização de medidas
efetivas sobre estes serviços. Além do mais, a falta de verbas para o custeio com serviços
deste ramo parecem ser evidentes, como indica a proposta do Presidente da Província João
Lins Vieira Cansansão de Sinimbú, que acabou sendo vetada pela Câmara Municipal, tendo
como argumento a falta de dinheiro:
Em resposta a portaria de Vossa Excelência de n.81 tem a Câmara de significar a
Vossa Excelência que entendendo não poder servir para a limpeza da cidade a barca
de que trata aquela portaria por não ser construída apropriadamente para esse fim, e
consequentemente não ter as recomendações precisas, salvo o caso de querer dar-se
lhe a aplicação somente de conduzir o lixo, que não é sem vida o que mais dano
causa a saúde pública, resolvem não empregar a dita barca no serviço, para que
Vossa Excelência se dignou indicar, não só pelas razões expressadas, como porque a
prestar-se a mesma barca para condução de imundícias, muito pouco aproveitada
ella só, pois para esse mister pensa a mara que menos de três barcas não
bastarião. Orçada pelo delegado da capitania do porto a despesa com o custeio em
237$000 mensais, e sendo além disso por caso despender mais 217$000 com vários
itens de que carece, a Câmara não se anima a empreender tal serviço com
semelhante despêndio, sem que delle colha o público os benefícios que deveria
esperar, e neste caso continua a Câmara a fazer conduzir o lixo em suas carroças,
cujo número aumentará na proporção de que a necessidade deste aumento se for
fazendo sentir.
Paço M. 20 de novembro de 1853.
294
293
A não ser o de uma “febre epidêmica” (provavelmente febre amarela), que atingiu partes do litoral brasileiro
chegando a ser relatada pelo próprio Imperador: “Algumas cidades do nosso litoral e especialmente as da Bahia,
Rio de Janeiro e Pernambuco, tem sido assaltadas nestes últimos mezes de huma febre epidêmica. Os estragos da
enfermidade, que aliás não estão em proporção com o terror que tem causado, affligem profundamente Meu
Coração. Graças a Deos vai diminuindo o mal, e Espero de Sua Divina Misericordia que ouvindo nossas preces,
arrede para sempre do Brasil semelhante flagello. AHPAMV - Falla do Imperador à Assembléa Geral
Legislativa. Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 21, 3 mai. 1850.
294
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 4, 20 nov.1853.
117
Como podemos ver, além da falta de dinheiro alegada pela Câmara, os vereadores
argumentam que a embarcação proposta não seria apropriada para o serviço pretendido, como
também seria em número insuficiente. Além disso, os vereadores afirmam que o lixo não é
sem dúvida o que mais dano causa a saúde pública”. Neste sentido, nada indica pela
documentação do poder público municipal até fins de abril de 1853, que o saneamento se
tornaria um dos elementos mais importantes a fazer parte constantemente nos discursos e nas
práticas realizadas sobre o espaço social da cidade. Esta situação parece mudar em Porto
Alegre quando as cidades de Rio Grande e Pelotas passam a ser tomadas pela epidemia de
escarlatina.
Para evitar que a escarlatina que graça nas cidades do Rio Grande e Pelotas venha
flagelar este município, cumpre que os senhores fiscais passem a providenciar
imediatamente para que as ruas se conservem no maior asseio possível, não se
contendo lixos, limo, águas estagnadas e lamas podre nas mesmas ruas, praças e etc.
para o que se deverá estender a vigilância até aos próprios pátios, quintais, casas
públicas e etc.; e porque também concorram para desenvolvimento desta e outras
enfermidades os gêneros corrompidos e frutas verdes ordena-se aos mesmos
senhores fiscais que em cumprimento as posturas procedam com toda a pontualidade
como a respeito dispõe as ditas posturas; e outrossim recomenda-se que aos guardas
municipais incumbam também destas diligências, e requisitem da polícia e patrulhas
as providências para que julgarem convenientes para levar-se a efeito as medidas
digo as pretendidas medidas de salubridade pública. Finalmente ordena-se aos
senhores fiscais que por meio de anúncios fação de novo constar quais são os
lugares destinados aos despejos.
295
A partir deste momento, podemos observar que ocorre uma intensificação sobre os
serviços ligados ao saneamento da cidade. É observável também através da documentação
uma mudança paulatina e ao mesmo tempo gradual no que diz respeito a interferência direta e
cada vez mais acentuada do poder público sobre os espaços privados, como aponta claramente
o trecho da citação anterior: para o que se deverá estender a vigilância até aos próprios
pátios, quintais, casas públicas e etc.
Além da extensão da vigilância, a Câmara neste período procura efetivar uma
construção destinada aos despejos diretamente dentro do rio. Como informa as Atas da
Câmara: “Decidem mandar construir estacas de madeiras e aterrar para dentro do rio, os
quatro primeiros locais destinados aos despejos, de modo que os mesmos ocorram sempre
dentro da água.”
296
Alguns dias depois a Câmara receberia o orçamento para a execução
destas obras, bem como pediria a Presidência autorização para a devida construção.
297
Em
295
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 4, 21 abr. 1853. Grifo nosso.
296
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 29 dez. 1853.
297
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 10 jan. 1854.
118
portaria do dia 2 de março de 1854, o Presidente da Província Cansansão de Sinimbú,
aprovaria o orçamento do projeto para a construção desta obra dentro do rio e a Câmara
mandaria publicar editais para a arrematação dos referidos serviços.
298
Entretanto, vinte e
cinco dias após a aprovação deste projeto, a arrematação dos serviços acabou sendo adiada. O
motivo deste adiamento, como aponta a Ata da Câmara do dia 27 de março de 1854, teria
sido o recebimento de um ofício emitido pelo presidente da Comissão de Higiene Pública
“expondo os resultados inconvenientes de construir pontes para os despejos da cidade e,
conseqüentemente, decidem adiar a arrematação da referida obra”.
299
Com a entrada da Comissão de Higiene Pública neste cenário, estava aberto um campo
para novas contradições no que dizia respeito a problemas derivados do saneamento na
cidade, pois não ficava claro o limite das competências em relação a este assunto. Neste
sentido, se o regulamento da Junta de Higiene previa a criação das Comissões de Higiene com
suas devidas atribuições, nada dizia também que estas funções não eram competências das
Câmaras Municipais, ou seja, atribuía-se uma função a um órgão cuja atribuição era de
responsabilidade de outro. Isto acabou gerando muitas discórdias entre a Câmara de
Vereadores, a Comissão de Higiene e os presidentes da Província, como podemos ver no
desfecho ocorrido no caso da construção de pontes de madeira no rio:
Porque o Dr. Presidente da Commissão de Hygiene Publica declara [...] que não
resulta conveniência alguma ao publico; dá providência que Vmces. pretendião
tomar mandando construir quatro pontes de madeira no rio, para se fazerem só nelas
os despejos; cumpre que Vmces. informem a semelhante respeito, ouvindo pessoas
entendidas, acerca da obra que para os despejos deverá merecer a preferência.
300
Observa-se na citação acima a discórdia da Comissão de Higiene perante as ações
pretendidas pela Câmara Municipal, o que na verdade vai se tornar uma constância. É
verificável também outro ponto importante nesta comunicação, que diz respeito à autoridade
competente no assunto. Nota-se que o Presidente da Província pede para o poder público
municipal ouvir pessoas entendidas”, antes de se levar a cabo a construção da respectiva
obra.
Adiante, é nítida a presença constante da Comissão de Higiene Pública no que tange
ao saneamento da cidade. De início, a mesma concentra-se sobre os serviços de limpeza,
despejo e remoção de lixo. Para isso, a Comissão enviará continuamente à Câmara Municipal
298
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 2 mar. 1854.
299
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 27 mar. 1854.
300
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 10 mai. 1854.
119
ofícios “pedindo” que sejam executados os serviços relativos à remoção de lixo, controle dos
despejos e a limpeza de ruas, bem como a fiscalização dos demais estabelecimentos
alimentícios.
No dia 12 de junho de 1854, a Comissão de Higiene Pública pede a Câmara a “estrita
execução de alguns artigos de postura, solicitando a liberação de um fiscal para acompanhá-
la, assim como carroças para serem usadas na limpeza das ruas”.
301
A Câmara por fim
determina que tal fiscal acompanhe a Comissão, ficando este “encarregado da limpeza da
cidade, tendo um guarda ao seu dispor”.
302
Ao que tudo indica este acompanhamento pouco
ou nenhum resultado teria gerado nos serviços de limpeza da cidade, visto a Comissão
reclamar constantemente sobre tal assunto. Em 11 de novembro de 1854, o Presidente da
Província remetia a seguinte comunicação à Câmara Municipal:
Remeto a Vmces. o incluso ofício da Comissão de Higiene Pública na província,
pedindo providências afim de que não possa ser acusada por negligente, visto ter-se
recusado essa Câmara a mandar fazer a limpeza da cidade pelo modo que a dita
comissão indicou, para que Vmces informem a respeito.
303
A necessidade de um serviço freqüente de limpeza da cidade gerou inclusive uma
proposta que foi apresentada na Assembléia Provincial por um cidadão de nome Bernardo
Dionísio da Silva, que se comprometia a fazer o serviço de limpeza da capital por um prazo
de três anos. Segundo a Portaria enviada pela Presidência a Câmara Municipal em 6 de
novembro de 1854, Bernardino se propunha:
[...] estabelecer oito carros hermeticamente fechados e quatro grandes carroças para
fazer limpeza da capital por tempo de três anos e mediante o despendio de oito
contos de réis anualmente, e para que Vmces satisfaçam a exigência da mencionada
Assembléia.
304
Não consta na documentação da Câmara se tal proposta teria sido contemplada ou não.
Acreditamos que não, pois a Câmara continuou exercendo estes serviços, como pode ser
verificado através de correspondência recebida pelo poder público municipal:
Vmces. as necessárias ordens para que de hoje em diante as carroças
pertencentes à Municipalidade sejão empregadas incessantemente, e exclusivamente
na conducção do lixo das ruas desta Cidade, com especialidade as da Praia, Nova da
301
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 12 jun. 1854.
302
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 26 jun. 1854.
303
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 11 nov. 1854.
304
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 23, 6 nov. 1854.
120
Praia, Nova, e do Poço; podendo a mara mandar alugar outras para continuarem
nos misteres, em que aquellas estejão actualmente servindo. Barão de Muritiba.
305
Antecedendo a chegada do cólera, o local de despejo da cidade se concentrava, ou pelo
menos deveria ser realizado segundo a designação da própria Câmara, diretamente no rio.
os lugares indicados para se fazerem a realização destes serviços dentro do rio foram,
segundo as orientações da Câmara Municipal: “nas saídas do Beco do Barbosa, rua do Senhor
dos Passos, rua do Rosário, Beco da Ópera, Beco do Fanha, rua do Arroio, Ponta das Pedras,
no Arsenal e em todo o litoral da cadeia Nova para o lado do Riacho”.
306
Entretanto, tais
lugares de despejo, segundo o Presidente da Província à época, Barão de Muritiba, em
concordância com a Comissão de Higiene Pública, eram impróprios pois acabariam afetando
as águas pelo motivo de serem lançados os despejos sob os ventos (ares) inadequados, o que
provocaria nesta visão o surgimento de miasmas prejudiciais à saúde da população. Nas
palavras de Muritiba, todo o despejo deveria ser feito ao sul da cidade, pois:
Os lugares até hoje marcados para despejos são impróprios não porque vão eles
corromper as águas de que a população faz uso como são lançados pelos ventos
sobre a cidade os miasmas que se desenvolvem das matérias lançadas as praias ou
trazidas pelas marés e que nellas ficam em depósito. A cidade correndo o rumo LO e
sendo ventos que reinam no verão/estação que favorece o maior desenvolvimento de
miasmas N.E. L. NE claro fica que todos os despejos feitos ao N. são mais
prejudiciais que os que são feitos ao Sul; por isso a comissão ainda insiste para que
sejam lugares marcados para esses despejos ao Sul, numa distância conveniente.
307
Além disso, segundo o Presidente, a Comissão de Higiene Pública estaria
reclamando sobre este problema há mais de oito meses, não obtendo nenhum resultado
positivo por parte da Câmara Municipal quanto a estas decisões. Além do mais, a única coisa
em que a Câmara fez, segundo Muritiba, foi a execução do projeto das pontes, que teria
resultado em uma despesa desnecessária e até mesmo vista como inútil. De acordo com o
Presidente da Província:
A muito tempo que a Comissão reclamou esta providência e submetteo ao
conhecimento da Presidência em 18 de janeiro do corrente a decisão que a Câmara
municipal deu, e até hoje não teve conhecimento do resultado. Felizmente Ella
obteve que tivesse execução o projeto das pontes que importara em sua despesa
inútil ficando as couzas no mesmo estado em que se achavão.
308
305
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 26 set. 1855.
306
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 14, 13 nov. 1854.
307
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 31 ago. 1855. Grifo nosso.
308
Idem.
121
Neste sentido, era visto como necessário, na visão do Presidente, a tomada de algumas
providências essenciais antes que se aproximasse a estação do verão, pois o calor era
percebido também como um dos elementos responsáveis pela produção de miasmas. Além
disso, segundo Muritiba, deveria a Câmara tomar uma série de iniciativas no que tange à
questão das águas e dos esgotos da cidade:
Neste respeito não basta isso, e é necessário quanto antes estabelecer um sistema
de serem desinfectados, conduzidos para longe da cidade os despejos [...]
Providência que deve ser quanto antes tomada pois que se aproxima o calor um dos
elementos necessários para produzir os miasmas, devendo-se também dar esgoto as
águas que neles se acharem estagnadas. Novamente a Comissão cobra a necessidade
de fontes públicas, é uma outra necessidade que deve ser quanto antes. A influência
que tem sobre a saúde esse elemento indispensável a vida é demasiadamente
evidente.
309
O Presidente da Província em concordância com a Comissão de Higiene Pública,
recomendava também à Câmara Municipal uma série de medidas práticas relacionadas ao
controle da epidemia do cólera. Normalmente tais medidas acabavam interferindo, ao que
podemos observar, na vida privada de certos habitantes da cidade, principalmente sobre a vida
daqueles que habitavam determinados “lugares” considerados insalubres.
Muito convém que sejam obrigados os estabelecimentos em que se achão
acumulados muitos indivíduos a serem ventilados, e mesmo desinfectados pelo
chloreto de sódio de zinco, ácido sulfuroso, proto sulfato de ferro e carvão, e
frequentemente caiadas: e que também os navios sejam obrigados a desinfectar os
lugares onde dormira tripulação havendo a maior cautela no esgoto das agoas que
ficam em depósito no cavername.
310
O ofício emitido pelo Presidente da Província, ao que podemos perceber, pouco efeito
parece ter tido, no que diz respeito ao saneamento público da cidade de Porto Alegre, visto
um mês depois da emissão deste, existir contínuas reclamações do próprio Presidente com
relação ao estado de asseio da cidade. Não surtindo efeito as comunicações realizadas com a
Câmara Municipal, o Presidente da Província mostra-se mais incisivo no tocante às políticas
públicas sobre o saneamento da cidade. Sua primeira medida consiste assim, em destacar a
polícia como elemento responsável pela limpeza do Distrito, deslocando os poderes da
Câmara para o 2º Distrito. Segundo as palavras do próprio Barão de Muritiba:
309
Idem. Grifo nosso.
310
Idem. Grifo nosso.
122
Para que haja maior brevidade no asseio desta Capital resolve a Presidencia que o
trabalho da limpeza do Distrito fique por ora à cargo da Polícia, devendo essa
Camara mandar continuar no Distrito o mencionado trabalho: o que comunico a
Vmces. para sua intelligencia e governo. Barão de Muritiba.
311
Para além de nomear a polícia como responsável direta pela limpeza do Distrito, o
Barão de Muritiba ordenou também que fosse publicado na edição nº 238 do Jornal Mercantil
um manual contendo o método de tratamento dos preceitos higiênicos que foram prescritos
pela Comissão de Higiene Pública.
312
Ordenou também a passagem diária de carroças, para
que fossem cumpridos regularmente os serviços de limpeza e coleta do lixo encontrado pelas
ruas
313
, bem como ordenou a mudança do lugar da lavagem de roupas do hospital Santa Casa
e Militar, realizados até então na praia do Caminho Novo, pois na opinião do Presidente “não
convém consentir que continue na referida praia por ser isso nocivo a salubridade pública”.
314
Estas medidas adotadas pelo então Presidente da Província Barão de Muritiba, e
executadas pela Câmara, acabaram por não agradar, como podemos ver abaixo, ao Provedor
da Santa Casa de Misericórdia, que em relatório da instituição comunicava:
A roupa do Hospital e de todo o Estabelecimento era lavada em um tanque do
quintal, com agua de um poço que alli existe, porém sendo essa agua salobra, a
roupa para as Enfermarias, mais encardida do que tinha sahido das camas, e para
remover esse mal, com accordo da Mesa, mandei construir uma pequena casa, em
um terreno que tem este Estabelecimento no Caminho Novo, e para alli fiz mudar a
lavagem de toda a roupa; mas a pedido do Sr. Presidente da Camara, não pôde
continuar a lavar-se naquella praia essas roupas, pelo escrupulo de que sendo roupas
de um Hospital, impregnassem as aguas do rio, de que o Publico nesta Cidade se
utilisa para beber, e para todos os misteres, e então arrendei em uma chacara
proxima ao Cemiterio, onde ha um excellente arroio corrente, um quarto e o terreno
necessario para esta lavagem, e para recolher e guardar a roupa, e dormirem as
lavadeiras, a razão de 4$000 réis por mez, por espaço de tres annos como consta do
contracto que fiz lavrar, e me parece estar o Estabelecimento por este modo bem
servido.
315
Destas medidas ordenadas pelo Presidente da Província, destaca-se também
novamente uma tentativa de se usar uma barca para o serviço de condução do lixo da cidade.
311
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 3 out. 1855.
312
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 23 out. 1855. Infelizmente,
como este exemplar não foi encontrado nos arquivos consultados, não foi possível obter as informações contidas
neste manual. Entretanto, vale lembrar que neste período os manuais de medicina popular não eram objetos
totalmente desconhecidos pela população, pois foram contabilizados pelo menos cinco manuais deste tipo no
século XIX, com destaque para o Manual Chernovicz de 1862. GUIMARÃES, Maria R. Cotrim. Civilizando as
artes de curar: Chernovicz e os Manuais de Medicina Popular no Império. 2003. Dissertação (Mestrado em
História das Ciências da Saúde) Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2003.
313
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 30 out. 1855.
314
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 12 nov. 1855.
315
SCMPA/CEDOP - Relatório da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Livro 1,
1855. p.8.
123
Assim, o delegado da Capitania do Porto, em cumprimento à ordem de Muritiba, enviava à
Câmara Municipal a seguinte comunicação:
Em cumprimento da ordem do Excelentíssimo Senhor Presidente desta Província de
10 do corrente sob n.73, recebida no dia 12, levo à presença de VSª. o orçamento da
despesa diária, que se terá de fazer com o costeio da Barca de passagem, e com o
pessoal necessário para tripulá-la; deixando ao dito orçamento hum conto da
importância de vários objetos indispensáveis para poder ser empregado no serviço a
que se pretende destinar. Manoel de Oliveira Paes, Delegado da Capitania do
Porto.
316
A barca provavelmente não chegou a ser utilizada no serviço de condução do lixo da
cidade, visto a documentação indicar que “a barca que seria destinada a condução do lixo”
poderia ser entregue ao chefe da Contadoria Provincial.
317
Este assunto, como veremos ao
longo deste capítulo, será uma constante, não sendo nem a primeira e nem a última vez que se
fará referência a possibilidade de execução deste serviço através do uso de uma embarcação.
No dia 3 de maio de 1856, o Imperador D. Pedro II ainda lamentava os efeitos da
epidemia do cólera, salientando que tal mal continuava a afligir parte do território
brasileiro.
318
Seu discurso, ao que tudo indica, foi levado em consideração pelo novo
Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Jerônimo Francisco Coelho, que
no dia 8 de agosto de 1856 nomeou uma comissão (em que um dos membros era o próprio
presidente da Comissão de Higiene Pública) para dar pareceres sobre o estado sanitário da
cidade. Segundo as palavras de Jerônimo Coelho:
Representando-me a Comissão de Higiene Pública nesta Província, sobre a
necessidade urgente de adoptar-se medidas preventivas a bem do estado sanitário
desta Capital, o mode de regularizar o serviço da polícia municipal, cujo estado é
pouco satisfatório no que diz respeito a entulhos e despejos de lixo e outros
materiais imundícias, que se lanção e accumulam em alguns pontos do interior da
cidade, com risco de se constituírem em focos de infecção, e ainda mais quando
chegar a quadra do verão, que se aproxima; comunico a Vmces. que nesta ocasião
nomeei huma Comissão composta do Dr. Presidente da referida Comissão de
Higiene, do Chrirugião Mor do Exército reformado Christovão José Vieira, Dr.
Chefe de Polícia, Presidente dessa Câmara Antonio José Pedroso, e do Major de
Engenheiros Luis Manoel Martins da Silva, para darem seu parecer sobre as
medidas preventivas, que mais convém desde adoptar-se, propondo ao mesmo
tempo um plano de serviço regular para asseio e limpeza da Cidade, que deverá
correr por conta da administração municipal; em quanto pois não se realiza, fação
Vmces. as mais terminantes recomendações a seus fiscais para que tenhão maior
316
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 25, 15 nov. 1855.
317
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 15, 14 jan. 1856.
318
AHPAMV - Falla do Imperador à Assembléa Geral Legislativa. Correspondências Recebidas pela Câmara
Municipal, Livro 24, 3 mai. 1856.
124
cuidado na limpeza e asseio das ruas da Capital, principalmente na denominada do
Poço.
319
Esta comissão, após a execução dos trabalhos, deu parecer apontando a necessidade de
se fazer cumprir os artigos do Código de Posturas referentes ao asseio da cidade. Em função
disto, o Presidente da Província mandou publicar através de Edital, alguns artigos deste
Código (alterados pelo mesmo, de forma ainda provisória), reforçando para a população as
normas que deveriam ser cumpridas em relação à limpeza da cidade.
Edital
A Câmara Municipal desta cidade faz publico que foram aprovados provisoriamente
em portaria n.54 deste ano, e começarão a vigorar da data deste a oito dias os
seguintes artigos de posturas.
Artigo 25
São obrigados os moradores da cidade e povoações do município a conservar limpas
as testadas de suas casas, até o meio da rua. Pena de 5$000 de multa ao infractor.
Artigo 26
É proibido lançar na rua água e qualquer despejos que possam enxovalhar os que
passam, sob pena de 3$ de multa e reparação do dano causado.
Artigo 50
As roupas dos hospitais e tinturarias poderão ser lavadas nas praias além dos
limites da cidade, ou em poços, sendo esta água espanida de modo que não dar
em água corrente. O contraventor pagará 10$ de multa.
Art.52
Os que tiverem canos em casas, ou valas em chácaras para esgoto das águas da
chuva, os conservarão sempre limpos e desembaraçados de modo que sirvão
somente para aquelle fim. O contraventor pagará 10$ de multa.
Art.53
Fica proibido lançar no rio vidros, os, ferros e vasilhas de folhas. Pena de 20$ de
multa ou 10 dias de prisão, e sendo escravo 25 açoutes.
Art.54
O dono de estrebaria de cavalos ou bestas, mandará limpar e tirar dela o estrume que
se juntar diariamente, não podendo fazer depósito dele dentro da cidade. Pena 20$
de multa.
A Câmara marcará os lugares:
1° Para lavagem de roupa dos hospitais.
2° Para lançar os entulhos e ciscos.
Art.55
é permitido fazer despejos de materiais fecais e outras imundícias, em vasilias
cobertas, no inverno das 7 as 9 horas da noite, e no verão das 8 as 10. Pena de 8$ de
multa, respondendo o senhor pelo escravo e o amo pelo criado. A Câmara designará
os lugares em que estes despejos se deverão fazer, publicando-o por Editais. Os que
forem encontrados fazendo estes despejos fora dos lugares designados sofrerão a
multa de 5$ a 10 dias de cadeia, e sendo escravo 25 açoites.
Artigo 56
Proibem-se dentro da cidade os curtumes, fábricas de ratilar aguardente, de sabão, de
gás, de cola, de torrar tabaco e qualquer outra que possa o futuro a Câmara julgar
nociva a salubridade pública, sob pena de 20$ de multa. Nestas disposições fica
também compreendido secar gomas de couro envenenadas.
319
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 24, 8 ago. 1856.
125
Art.57
Tendo aquelle que tiver terreno, onde estaguinem águas, será obrigado a aterrá-lo no
prazo que lhe for marcado pelo fiscal, assim como o que possuir terreno próprio ou
aforado, será obrigado a tapá-lo de muro ou cerca, para que nelle se não depositem
imundícias. A Câmara designará em Edital as ruas por onde devem começar os
tapumes, se de muro ou cerca, e o prazo em que deve ser feito. O contraventor
pagará 20$ de multa.
Artigo 58
O dono de quintal, pátio ou casa, por onde correrem as águas dos vizinhos para irem
para a rua, não poderá tapar, ou embaraçar, quando elles diretamente não possam
encaminhá-las para a rua. Pena de 10$ de multa.
Art.144
Quando a infração de Postura for cometida dentro de casa, o Fiscal pedirá a
faculdade para inspecionar, precedendo licença do dono della, e quando este lhe
negar, requererá à autoridade policial competente.
Artigo 147
Todo aquelle que insultar ao Fiscal com palavras ou maneiras pouco respeitosas no
livre exercício de sua jurisdição, sem haver provocação, será imediatamente preso
pelo mesmo Fiscal a ordem de qualquer autoridade, e multado em 30$. O Fiscal
remeterá em 24 horas a autoridade a cuja ordem prender, um auto com as provas que
façam constar.
320
Dentre os assuntos mais citados pelos documentos do poder público neste período,
como podemos ver, destaca-se os problemas relacionados às águas e aos esgotos. No que
tange aos esgotos, um dos maiores entraves ao que tudo indica, eram as cercas levantadas por
moradores, que acabavam impedindo a passagem das águas dos esgotos por dentro de seus
próprios terrenos. Um destes problemas foi o ocorrido na Rua do Poço, que chegou a virar
assunto nas comunicações do Presidente da Província com a Câmara Municipal.
Sendo inconveniente, que as cercas dos terrenos adjacentes à rua do Poço sejam
feitas de modo, que se encostem aos paredões, que na mesma rua se construíram,
porque assim devem embaraçar o curso das águas para o cano de esgoto, cumpre que
Vmces. mandem por um dos seus fiscais, intimar aos moradores, que tem terrenos
para um e outro lado da dita rua, que deixem livre para a passagem das agoas, um
espaço de cinco palmos entre os paredões e as cercas. Jeronimo Francisco Coelho.
321
Destaca-se para este período também o contrato realizado com Manoel Esteves de
Rezende para a construção de um cano de esgoto para dar saída às águas existentes “entre o
beco do Barbosa e a rua da Brigadeira [...] pela quantia de 3:150$250 reis que receberá em
duas prestações sendo a primeira depois de concluída metade da obra; e a segunda depois de a
obra entregue e pela Câmara julgada boa.”
322
320
AHPAMV Edital. Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 5, 21 nov. 1856. Grifo
nosso.
321
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 25, 29 jan. 1857. Grifo nosso.
322
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 25, 14 out. 1857.
126
Em relação às águas, os assuntos mais constantes referem-se às fontes de água
potável, cuja vigilância deveria ser uma constante pelo poder público municipal, o que acabou
por designar inclusive um soldado da Companhia de Inválidos chamado Antônio Francisco
Bernardo para tomar conta da fonte localizada na Rua do Arvoredo (atual Rua Fernando
Machado).
323
A água também é citada neste período como destino final aos despejos a serem
realizados pelos habitantes da cidade. Apesar das muitas críticas feitas pela Comissão de
Higiene Pública com relação a esta prática em frente ao centro urbano, pouco tempo depois a
Câmara Municipal voltava a designar os mesmos locais para despejos, que foram tanto
criticados pela Comissão. Assim, a Câmara mandava publicar através de Edital os lugares
indicados para os despejos:
A mara Municipal desta cidade faz público para os fins convenientes que para
despejos de imundícies estão designados os seguintes lugares a beira rio: o 1° entre a
Rua da Misericórdia e do Rosário; o entre a esquina da Praça do Paraíso do lado
de leste; o entre a Praça do Paraíso e a parte dos Ferreiros; o 4 entre este e a Rua
do Ouvidor; o entre o lugar da Quitanda e a Rua Clara; o entre esta indo
Arroio; o entre estas e a da principal; o entre esta e o lugar chamado da;
Passagem; o nono entre a ponta de pedra e deste lugar até a desembocadura do
Cotovelo, e o 1entre esta e a Formosa, seguindo-se os mais que forem necessário
até a ponte do Riacho.
324
Passado três anos após o acontecimento da epidemia do cólera e de todo o problema
gerado pela discussão de qual seriam os lugares mais adequados para os despejos, podemos
ver que estes acabaram sendo realizados nos mesmos pontos antes criticados pela Comissão
de Higiene Pública, que apontava o sul da cidade como o local mais adequado. Todavia, nem
mesmo estes lugares que eram apontados pela Câmara como pontos apropriados para tal a
execução do serviço eram respeitados, como nos mostra a Ata da Câmara do dia 24 de
novembro de 1858, informando o recebimento de um requerimento enviado por um cidadão
“queixando-se dos despejos de materiais fecais em frente às suas propriedades, pelo quartel
do Batalhão e Prisão Militar”.
325
Em outro exemplo semelhante, podemos ver também a
reclamação feita à Câmara pelo Provedor da Santa Casa de Misericórdia, para que “não sejam
permitidos os despejos de materiais fecais na Praça da Misericórdia”.
326
Dentre todos estes acontecimentos no campo do saneamento público da cidade na
década de 1850, destaca-se antes da ocorrência de seu término, o chamado Regulamento para
323
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 25, 4 abr. 1857.
324
AHPAMV Edital. Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 5, 28 nov. 1856.
325
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 15, 24 nov. 1858.
326
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 15, 11 out. 1858.
127
Médicos de Partido das Câmaras, organizado pelo presidente da Província Ângelo Muniz da
Silva Ferraz, em 1858. Neste Regulamento constam dois artigos, que se tornaram muito
importantes para o campo do saneamento público da cidade, principalmente no transcorrer da
década de 1860, vejamos:
Artigo 2° - Ao Médico de Partido incumbe:
[...]
§ 3° O exame e inspeção de todos os lugares insalubres;
§ 4° Propor a Camara Municipal o que julgar conveniente a bem da saúde publica;
§ 5° Fazer os exames e vistorias que a Câmara Municipal lhe indicar, ou pela
autoridade policial lhe forem requisitadas.
Artigo - O Médico de partido será obrigado a apresentar à Câmara nas suas
reuniões ordinárias, hum relatório de todas os trabalhos à seu cargo, acompanhado
dos competentes mappas, e documentos estatísticos.
327
É possível, através deste Regulamento, detectar aquilo que denominamos de passagem
entre uma dada concepção de limpeza como sendo um dos componentes ideais para a
manutenção da saúde e aquilo que se denomina de higiene, onde a limpeza como preceito de
saúde é ligada tanto ao espaço quanto aos indivíduos que compõem o mesmo. Vejamos a
seguir como se processou esta passagem.
4.2 O SANEAMENTO, AS EPIDEMIAS E AS AÇÕES PRÁTICAS NA DÉCADA DE 1860
A primeira metade da década de 1860 é marcada nos relatórios do Governo imperial
como sendo um período de bom momento para o campo da saúde pública em nível nacional.
Nas palavras do Ministro do Império em relatório apresentado à Assembléia Geral, podemos
observar que as epidemias já haviam diminuído com relação à sua intensidade:
Póde considerar-se extincta a epidemia da cholera-morbo que reinou em algumas
Provincias do Norte até o anno findo.
Quanto á febre amarella, apenas se tem observado casos esporádicos em certas
provincias do littoral.
A epidemia da bexiga, que nas províncias de S. Paulo e do Paraná causou grandes
estragos, está quasi inteiramente extincta.
Em geral o estado sanitario das provincias não apresentou alteração notavel.
328
No caso do Rio Grande do Sul, outros problemas com relação ao estado sanitário da
Província parecem preocupar mais as autoridades políticas. Destacam-se entre estes
327
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 26/27, 25 set. 1858. Grifo nosso.
328
RELATÓRIO do ano de 1864, apresentado pelo Ministro Jose Bonifacio de Andrada e Silva a Assembléia
Geral Legislativa na Sessão da 12ª Legislatura. p.23. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1466/000003.html>. Acessado em: 08 jun. 2010.
128
problemas a falta de delegados de inspeção sanitária e os precários serviços de sepultamentos,
que impediriam o conhecimento do número exato da mortalidade ocorrida na Província, como
também as causas desta.
329
Em relação a Porto Alegre, apesar dos esforços que teriam resultado em importantes
melhoramentos para a cidade, no que tange a questão do saneamento público, havia nas
palavras do Ministro do Império, através de informações obtidas do Inspetor de Saúde da
Província, muito ainda o que se fazer para melhorar o estado da higiene pública.
Tratando depois do estado em que se acha a hygiene publica informa que em Porto
Alegre alguns melhoramentos importantes se tem feito nesse sentido, como sejão os
cercamentos dos terrenos que servião de deposito dos despejos, o aterro de lagoas, o
caes da Cidade, e a importante obra da canalisação das aguas potaveis; mas que
ainda ha muito que fazer [...] que não fiscalisação alguma nos generos
alimentícios, que não existe systema commodo e apropriado para ser fazerem os
despejos publicos, etc., medidas sobre as quaes cumpre á Assembléa Provincial
providenciar, e que por conseguinte deixarei de com ellas aqui me occupar.
330
Sobre a canalização das águas potáveis da cidade de Porto Alegre, como aponta o
Ministro acima, o mesmo se refere aos trabalhos que começaram a ser executados pela
Companhia Hidráulica Porto-Alegrense, quando da liberação dos serviços que foram
autorizados pela Carta Imperial de 1862:
D. Pedro, por graça de Deos, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador
Constitucional e Defensor Perpetuo do Brasil, Faço saber aos que esta Minha Carta
virem, que, Attendendo ao que Me requererão alguns cidadãos por parte da
Companhia Hydráulica “Porto Alegrense” que se propõem abastecer de agua potavel
a capital da Provincia de S. Pedro do Sul, nos termos do Contracto que em virtude
da Lei Provincial nº. 466 de 2 de abril do anno passado foi celebrado em a respectiva
Presidencia ao 7 de Setembro do mesmo anno, e de conformidade com a Minha
immediata Resolução de 14 de Junho proximamente findo, exarada em Consulta da
Secção dos Negocios do Imperio do Conselho d‟Estado de 25 de Abril ultimo Hei
por bem Conceder à dita Companhia autorização para funcionar, Approvar os
Estatutos que baixarão com o Decreto nº. 2947 de 7 do mez passado; ficando porem
dependente de aprovação da Assemblea Geral Legislativa a clausula 19ª do referido
contracto, relativa a isenção dos direitos de importação; e declarando-se outrossim
nos artigos 15 dos Estatutos que nenhuma alteração, reforma ou innovação delles
será executada sem que se proceda aprovação do Governo Imperial. E por firmeza
de tudo lhe mandei passar esta carta, por Mim assignada e Sellada com o Sello
pendente das Armas Imperiaes. Pagou de direitos dez mil reis, e de emolumentos
trinta e sete mil reis, como mostrou com o respectivo Conhecimento em fórma, que
apresentou. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos seis de Agosto de mil oitocentos
e sessenta e dois, quadragezimo primeiro da Independencia e do Imperio.
Imperador Dom Pedro
329
RELATÓRIO do ano de 1864, apresentado pelo Ministro Jose Liberato Barroso a Assembléia Geral
Legislativa na 3ª Sessão da 12ª Legislatura. Anexo G, Relatorio do Presidente da Junta Central de Hygiene
Publica, p.11. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1739/000208.html>. Acessado em: 08 jun. 2010.
330
Idem, p.12.
129
João Leão Vieira C. de Sinimbu
Vossa Magestade Imperial por bem conceder a Companhia Hydráulica “Porto
Alegrense” autorização para funcionar e aprovar os seus Estatutos, como acima se
declara.
331
No tocante aos serviços de saneamento da cidade neste período, é importante salientar
que aos poucos, o termo higiene começa a ser empregado com maior freqüência pelos
diferentes agentes do saneamento, tanto para designar as condições de limpeza da cidade
quanto as condições de saúde almejadas. Entretanto, havia um pequeno espaço onde a limpeza
como sistema de prevenção contra as doenças se diferia da higiene como componente de ação.
A limpeza por muito tempo foi um termo relacionado diretamente a uma prática de
organização e reordenamento do espaço, com o fim de se obter a preservação da saúde do
corpo coletivo. Neste sentido, a limpeza relacionava-se diretamente ao espaço da cidade e
quem não cumprisse as normas estabelecidas pelo poder público estaria sujeito ao pagamento
de multas se livre e à detenção se fosse escravo.
A entrada da higiene nesta história acaba por modificar este cenário. A limpeza que
até então era vista como uma prática no espaço, que visava à saúde do corpo coletivo,
passaria cada vez mais a ceder lugar para a higiene, que por sua vez inverteria o horizonte
destas práticas, ou seja, primeiramente a higiene identificava o corpo coletivo para então
colocar em ação a interferência no espaço. Vejamos a seguir um exemplo deste momento,
que consideramos de passagem entre uma dada concepção sobre os serviços de saneamento
para outra:
Pela Junta Militar de Saúde me foi nesta data declarado, que não sendo as condições
atmosphéricas desta Capital muito favoráveis à saúde pública; e actuando sobre
esta elementos que a podem fazer perigosa pelo apparecimento de alguma
enfermidade de caracter epidêmico; convenha que fossem melhoradas suas
condições higgiências. Nesta conformidade convém que Vmces., procedendo com
toda a actividade e energia, fação cumprir as disposições das posturas municipais
[...] na parte que interessam à saúde pública; e chamo particularmente a attenção
de Vmces. para os seguintes pontos, que merecem promptas providências.
Não se deve consentir que em cortiços e pequenas casas se conservem aglomerados
muitos indivíduos.
Convém revistar-se todas as que forem suspeitas de pouco asseio, obrigando-se os
moradores e inquilinos à limpeza conveniente.
Proceder-se ao escoamento das águas estagnadas que existão nesta Cidade, e suas
proximidades.
[...]
A Presidencia confia que essa Câmara, com zelo e inteligência com que costuma
promover o interesse dos seus municipes, cobrará quanto antes na conformidade de
331
Carta Imperial, apud COSTA, Telmo Cardoso. Histórico dos Sistemas de Água e Esgotos da Cidade de
Porto Alegre 1779 a 1981. Porto Alegre: Oficinas Litográficas do DMAE, 1981. p.11.
130
que se lhe recomenda, e tomará quaisquer outras providências, que julgar
necessárias em favor da saúde dos habitantes desta Capital.
332
Analisando mais detalhadamente a citação acima, podemos verificar que esta fala do
Presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão, traz profundas informações que
podem nos revelar detalhes importantes quanto a um aspecto do imaginário social da cidade.
Este aspecto diz respeito justamente aos problemas relacionados ao saneamento público de
Porto Alegre no século XIX. Primeiramente, logo na entrada de sua fala, o Presidente
(utilizando-se do discurso da Junta Militar de Saúde) localiza a atmosfera (ares) ainda como
um elemento central para a explicação do aparecimento das doenças de caráter epidêmico.
Neste sentido, se as condições atmosféricas não eram favoráveis à saúde pública, deveriam ser
estas melhoradas através da higiene. A higiene, por sua vez, deveria se concentrar em alguns
pontos da cidade que mereceriam nas palavras do Presidente, promptas providências”. Estes
pontos, entretanto, não eram quaisquer lugares, e sim aqueles onde se concentravam as
chamadas “classes perigosas”, ou seja, os cortiços e as pequenas casas.
Identificado os lugares de atuação da higiene, partia-se então para a limpeza, que era
percebida como um elemento essencial na prevenção contra as epidemias. Neste sentido, para
melhorar as condições da saúde pública, se deveria inicialmente melhorar as condições de
saneamento da cidade; e, para melhorar as condições de saneamento da cidade, era necessário,
nesta visão, interferir sobre os espaços sociais da mesma. Ou seja, não bastaria interferir
apenas no espaço, era importante também adentrar na vida social que preenchia aquele
espaço. Todavia, esta interferência como vimos acima não era sobre todos os espaços sociais,
e sim sobre espaços específicos.
No caso do aquartelamento de tropas na cidade de Porto Alegre em 1865 (tropas estas
que seriam encaminhadas em direção ao Paraguai) parece não haver consenso entre os
poderes públicos sobre a periculosidade ou não que deveria ter as tropas para a salubridade da
cidade. Como podemos ver a seguir, a Câmara Municipal se posicionava contra o
aquartelamento das tropas, por entender que esta medida poderia causar o aparecimento de
alguma epidemia na capital. Já o Presidente da Província Visconde de Boa Vista parece não
ficar tão preocupado quanto a este acontecimento, pois não identifica as tropas com o mesmo
afinco que havia identificado os cortiços e as pequenas casas, como possíveis focos de
moléstias. O Presidente até mesmo faz uma crítica à Câmara Municipal por ter esta
determinada visão.
332
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 26/27, 23 jan. 1860. Grifo nosso.
131
Em resposta ao officio desta Câmara Municipal de 13 do corrente, em que reclama
contra o aquartelamento de tropas no centro da cidade, que pode determinar o
apparecimento de uma epidemia, que o grande número de moléstias está
indicando, tenho a significar a mesma Câmara, que quanto cabe em minhas
atribuições e valendo-me dos recursos do Governo tenho procurado conciliar as
necessidades desta bela Capital com a desses hospedes que circunstâncias
imperiosas nos trouxeram, e não a sua intenção própria; nem para attender ao que
convem à Cidade erão precisos incentivos estranhos, por que os tenho nos meus
princípios.
Por infelicidade, forem, onde o egoísmo particular pode pôr estorvo a acção benéfica
e humanitária do Governo, elle se apresenta infallivelmente com todo o seu poder,
sem que ao menos se dê a consoladora compensação de um auxílio em favor do
empenho em que o Governo se acha. A Câmara Municipal poderia talvez no seu
zelo pela salubridade desta Capital influir para que o Governo não encontrasse tantas
dificuldades, na aquisição de edifícios para servirem de aquartelamento nas
condições exigidas aos nossos pobres soldados, que não podem ser desterrados para
longe da Cidade como se praticaria com uma horda de bárbaros [...] Desempenhe
pois a Câmara Municipal as suas incumbências, faça ainda mais, procure aplainar os
embaraços em que se acha a Administração, e assim terá direito ao agradecimento
dos seus Municipes, e aos louvores desta Presidencia.
333
Podemos observar que os espaços sociais das epidemias são também motivos de
controvérsia entre os diferentes poderes públicos. Assim, estabelecer os lugares em que se
deveria agir com medidas sanitárias eficientes nem sempre foi motivo de concordância por
parte dos poderes responsáveis por zelar pelo saneamento e pela saúde da população. O
mesmo parece ocorrer no que diz respeito às ações empreendidas. No dia 06 de novembro de
1867, a Câmara Municipal informava ter recebido conforme consta na Ata da Câmara de
Vereadores, uma Portaria da Presidência contendo uma cópia anexa enviada pelo Inspetor de
Geral de Saúde Pública, reclamando sobre o estado de asseio da cidade.
334
Nas palavras do
Inspetor ao Presidente da Província: “Não pode Excelentíssimo Senhor continuar essa falta de
cuidado do asseio da cidade denotasse de que até na frente da Casa da Municipalidade
animais mortos”.
335
Segundo consta, a Câmara Municipal considerava por sua vez,
“inverídicas as informações contidas no mesmo [documento] com relação à limpeza da
cidade”.
336
Entretanto, nada comentou sobre os supostos animais mortos em frente à Casa
Municipal.
Discórdias a parte, os serviços de saneamento público continuavam a ser executados
mediante ações empreendidas tanto pelo poder público quanto por medidas particulares. Por
parte das iniciativas privadas poucas parecem ter sido as ações empreendidas sobre o espaço
público, no que diz respeito ao saneamento da cidade neste período. O que podemos localizar
333
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 30, 18 set. 1865.
334
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 6 nov. 1867.
335
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 31, 5 nov. 1867.
336
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 6 nov. 1867.
132
são mais reclamações por parte dos moradores do que iniciativas próprias. A maioria destas
reclamações se concentraram sobre as construções de pontes de despejo, consideradas
construções em lugares impróprios para a salubridade, como aponta o abaixo-assinado dos
moradores da Rua dos Andradas e da Sete de Setembro, que eram “contrários à construção de
uma ponte de despejos no Beco do Araújo.
337
Assim como os moradores das ruas do Ouvidor
e da Alfândega, que eram contrários a transferência da ponte de despejo localizada no Beco
da Ópera para próximo de suas moradias. A justificativa dada para isso, entretanto, foi
baseada em um parecer do delegado da Capitania do Porto (membro da Comissão). Segundo
as palavras do delegado:
Entende-se mais a Comissão que lançados ali os despejos, pode obstruir-se o canal,
e por isso, e pela sua collocação n‟aquelle logar próximo ao ancoradouro, é contra as
disposições recomendadas no Regulamento mandado observar pelo Decreto n.447,
de 19 de maio de 1846, artigo 6° § 1° e artigo 9°, 10°, 13, 52 e 53.
[...]
A vista desse luminoso parecer, tenho deliberado determinar-lhes que escolhão outro
local para collocação da ponte de despejos, que não offereça os inconvenientes
ponderados pela comissão, sendo talvez mais conveniente que nenhuma outra ponte
se construa, além das duas que existem, as quais satisfazem essa necessidade
pública de despejos, até que pelos poderes competentes seja deliberado a melhor
forma de provê-la.
338
No que tange as ações empreendidas pelo poder público, estas continuaram se
processando sobre medidas que visavam o controle e fiscalização das águas, fossem elas
potáveis ou servidas. A Câmara Municipal incumbia-se também do controle e fiscalização dos
serviços de despejos em determinados lugares da cidade, bem como na execução dos serviços
de limpeza pública das ruas, praças e prédios públicos. Para a realização de muitas destas
atividades, o poder público municipal utilizou-se constantemente de editais, para publicar
tanto regulamentos, quanto comunicações sobre a abertura de contratos para os serviços de
limpeza pública:
EDITAL
A Camara Municipal desta Cidade, resolveo fazer publicar por editaes, que além das
duas docas, e das rampas de embarque e desembarque da rua Clara e Becco do
Fanha, pontos designados no edital de dez do corrente, ficão também vedados aos
despejos de lixo e materiais fecais a desembocadura da rua do Ouvidor e as duas
praças d‟Alfandega desta Cidade. O Vereador Presidente Felisberto Antonio de
Barcellos. O Secretario Ignacio de Vasconcellos Ferreira.
339
337
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 4 nov. 1867.
338
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 29, 20 dez. 1864.
339
AHPAMV Edital. Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 18 jan. 1865.
133
EDITAL
A Camara Municipal desta Cidade faz publico que no dia 21 de setembro próximo
futuro, na sala das suas sessões as 10 horas da manhã hade arrematar o serviço
correspondente à limpeza da Cidade, e por isso convida as pessoas que se queirão
encarregar, a aprezentarem suas propostas, para ser preferida a que melhores
vantagens offerecer.
340
Na documentação sobre o saneamento da capital é possível verificar também a
presença do Chefe de Polícia, reclamando dos deficientes serviços de limpeza que eram
realizados nas ruas da cidade:
Na estação calmosa que corre, acha-se a cidade em péssimo estado quanto ao asseio,
encontrando-se por quase todas as esquinas das ruas transversais comoros de lixo:
torna-se notáveis a rua da Igreja do encontro da rua bela para Oeste; todas as
descidas da mesma rua da Igreja para o sul, as ruas do Arvoredo e Varzinha, o becco
do 8°, as praias da frente do Norte. Aos cuidados assíduos dos médicos, que tem
empregado para cuidar dos enfermos de bexigas, deve-se o declínio sensível d‟ essa
epidemia: entretanto a salubridade publica acha-se ameaçada de enfermidades mais
prejudiciais: as moléstias gástricas apresentão-se com caráter grave e assustador.
Levo ao conhecimento de Vossa Excelência estas considerações a fim de que se
digne ordenar, que se promova efficazmente a polícia municipal, e quanto antes se
proceda a uma limpeza geral das ruas da cidade, sem o que parece infalível a
invasão de enfermidades epidêmicas.
341
A Câmara Municipal em resposta ao Chefe de Polícia da Província demonstra ter uma
relação mais amistosa com este, do que com a Comissão de Higiene. Em ofício de resposta o
presidente da Câmara informava que, logo que tinha recebido esta reclamação, havia tomado
as medidas que estavam ao alcance da corporação. Neste sentido, o mesmo teria
encarregado os fiscais e guardas, mais alguns praças do corpo policial, com suas “duas únicas
carroças que possui a Câmara”, para que percorressem todos os pontos da cidade e
procedessem nestes pontos uma limpeza geral, recomendando aos mesmos “todo o cuidado e
a maior actividade possível”.
342
No que diz respeito à relação entre o poder público municipal e a Comissão de
Higiene, o próprio Ministro do Império chegou a apontar como sendo um problema a ser
resolvido, visto as dificuldades encontradas pelo organismo responsável pelos serviços
concernentes a saúde pública. Nas palavras do Ministro José Liberato Barroso:
A experiencia tem mostrado que a organisação dos serviços concernentes á Hygiene
Publica é muito defectiva. O Regulamento de 29 de Setembro de 1851, instituindo a
Junta Central, e os Provedores de Saude Publica provinciaes, attribuiu-lhes extensas
340
AHPAMV Edital. Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 22 ago. 1861.
341
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 29, 4 dez. 1863.
342
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 6, 10 dez. 1863.
134
e importantes funcções, mas, não lhes dando os auxiliares indispensáveis, e pondo-
os sempre, quanto á acção, na dependencia de outras autoridades, em vez de lhes
facultar meios próprios, impossibilita-os por um lado de conseguirem o
conhecimento exacto e completo dos factos que lhes importa registrar e estudar, e
por outro de reprimirem convenientemente os abusos e infracções das leis sanitárias,
e de levarem a effeito as providencias que se comprehendem nos limites de sua
competencia.
Trato de estudar este assumpto, e além das medidas que ao Governo cabe tomar [...]
no intuito de se reorganisarem aquelle serviços de modo que sejão satisfeitas as
indicadas necessidades.
343
Apesar das inúmeras medidas adotadas pela Câmara, quanto aos serviços que diziam
respeito ao saneamento público da cidade, pouco estas parecem ter surtido efeito para se
evitar o reaparecimento da epidemia do cólera em Porto Alegre, que veio assolar a cidade
novamente nesta década. A primeira notícia sobre esta nova epidemia de cólera chegou à
Câmara Municipal no dia 5 de novembro de 1866,
344
através de uma Portaria da Presidência
informando a respeito e pedindo que se tomassem as devidas precauções. Nas palavras do
então Presidente da Província Antonio Augusto Pereira da Cunha:
Tendo sido assolado alguns pontos da Europa pelo cholera e convindo tomar-se
todas as cautelas a evitar o desenvolvimento d‟ aquelle flagello se por infelicidade
apparecer nas cidades marítimas do Brasil, e por que se aproxima a estação calmoza,
chamo a attenção de Vmces. sobre a conveniência de conservar a Cidade no maior
gráo de asseio e limpeza que faz possível não excluindo os páteos ou quintais das
casas particulares, onde não se conservarem com o devido asseio.
Desde ficão Vmces. autorizados a despenderem dos saldos de suas rendas as
quantias que forem precisas, solicitando aquellas providências que julgarem
necessárias.
345
Tais procedimentos, entretanto, não evitaram a entrada novamente da epidemia do
cólera na cidade, que acabou por chegar a Porto Alegre nos primeiros dias de março de
1867.
346
Segundo o relato do Inspetor Geral da Saúde Pública à época, Dr. Manoel Pereira da
Silva Ubatuba, o mesmo esperava por este acontecimento, que na sua opinião era fruto de
uma possível ineficácia do poder público municipal com relação aos serviços de salubridade
pública.
343
RELATÓRIO do ano de 1864, apresentado pelo Ministro Jose Liberato Barroso a Assembléia Geral
Legislativa na Sessão da 12ª Legislatura. p.25. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1739/000002.html>. Acessado em: 11 jun. 2010.
344
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 16, 5 nov. 1866.
345
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 30, 27 out. 1866. Grifo nosso.
346
FALLA dirigida a Assembléa Legislativa da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo Presidente, Dr.
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, na Sessão da 12ª Legislatura. Porto Alegre: Typ. do Rio-
Grandense, 1867. p. 29. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/900/000002.html>. Acessado em: 11 jun.
2010.
135
Venho dar conta á V. Ex. da alteração que soffreu a saude publica no periodo
decorrido de Março em diante. A muito tempo que eu esperava essa alteração, como
por diversas vezes declarei nos meus relatórios, e fóra d‟elles quando reclamava as
providencias que a sciencia aconselha e julga indispensaveis para prevenil-as, e
indispensaveis sempre. [...]
Extinguir, desviar ou minorar a acção do que póde ser importado e aniquilar as
condições próprias e indispensáveis para o seu desenvolvimento é dever essencial
dos governos, se bem que até certo ponto pertença tambem aos povos. Se, porém, o
governo e povo não attende aos males que lentamente vão sacrificando tantas vidas,
ignorão ou parecem ignorar os mais comesinhos preceitos da sciencia que trata da
conservação da vida, o que de esperar? O que se tem observado sempre o
despreso de tudo quanto póde concorrer para o estabelecimento de uma policia
sanitária.
As municipalidades a quem é incumbida tão importante missão, as unicas que tem
os meios de acção, gastão a maior parte de suas rendas com os ordenados de seus
numerosos empregados!
347
Na verdade, esta observação de Ubatuba procede em parte, pois realmente como
aponta o Livro de Lançamento de Despesas da Câmara à época, o gasto com os ordenados e
gratificações chegou a ocupar o lugar de terceira maior despesa realizada pelo poder público
municipal entre o ano de 1865 e 1869 (7:761$617). Esta soma só perdia para o calçamento de
ruas (10:910$551) e para o gasto com a dívida pública (10:197$397). Entretanto, dentre os
treze itens constantes no livro de despensas da Câmara, a limpeza pública da cidade ocupava
o quinto lugar, chegando a perfazer um total de 3:038$399. Neste sentido, somente separava o
gasto da limpeza, das despesas com os ordenados e gratificações, o gasto com os concertos de
estradas, que no montante ocupavam o quarto lugar a época de maior dívida pública
municipal (4:002$090).
348
Dentre estas despesas do saneamento destaca-se o pagamento dos encarregados da
limpeza pública, dos encarregados pelas carroças, tratadores de bestas utilizadas neste serviço,
aluguel de cavalos, trabalhadores semanais empregados na limpeza pública, serventes,
carroceiros e ferreiros. Destacam-se também os gastos com editais para a convocação dos
serviços de limpeza pública em diferentes jornais, como: Correio Mercantil do Rio de
Janeiro, Jornal do Commércio, Jornal Rio-Grandense e Jornal Alemão.
349
Das despesas com pagamento de pessoal no serviço de limpeza da cidade, podemos
contemplar também os nomes de alguns prestadores de serviço, que constantemente se
repetem ao longo desta década. Destacam-se entre estes nomes o de José Marcelino Pires e de
347
RELATORIO da Inspetoria Geral da Saúde Publica da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul
apresentado ao Ilmo. E Exmo. Sr. Dr. Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, digníssimo presidente da
mesma Província, pelo Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba, Inspetor Geral da Saúde Pública. Porto Alegre:
Typographia do Jornal “Deutsche Zeitung”, 1867. p.3. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/900/000149.html>. Acessado em: 11 jun. 2010.
348
AHPAMV - Livro Lançamento de Despesas da Câmara Municipal. 1865-1869.
349
Idem.
136
Manoel Guerino da Silveira, ambos encarregados do serviço de limpeza pública. Com relação
ao encarregado das carroças, encontra-se o nome de Francisco Henrique Moierhefer e do
tratador de bestas, Angelo Ignácio de Barcelos, que também alugava cavalos para este
serviço, assim como Antonio Francisco de Paula. Joaquim da Rocha Ramos, ao que tudo
indica, era o indivíduo responsável pelos serviços de ferragem dos cavalos. Além destes,
aparece também o nome de Antonio dos Santos Rocha, como um indivíduo que recebe pelo
aluguel de suas carroças designadas para o serviço de limpeza. Existem também outras
nomenclaturas que não permitem identificar os responsáveis pela realização de tais serviços.
Dentre estas nomenclaturas temos os trabalhadores de limpeza, carroceiros, serviços de
limpeza, galés e limpeza semanal.
350
Além da descrição dos nomes de trabalhadores envolvidos com o serviço de limpeza
da cidade, podemos encontrar no Jornal do Commércio a relação de alguns dos moradores,
que acabaram sendo multados por infringirem as normas que tratavam sobre a salubridade da
cidade:
EDITAES
Os fiscaes abaixo assignados, de conformidade com o artigo 20 do regimento
interno da camara municipal d‟esta cidade, fazem publico que forão multados por
infracção de posturas os seguintes:
Do 1º Districto.
José Joaquim de Campos Leão Corpo Santo na quantia de 10$rs, por despejar
agua na rua pelo telhado de sua casa á rua do Ouvidor. [...]
Pedro Stumph em 10$rs, por infracção do art. 23 do código de posturas, por ter sua
testada suja.
Camillo, criado do hotel do Commercio, por fazer despejos fora dos lugares
designados. [...]
Nicolau Raineri em 10$rs, por fazer despejos na praça de D. Pedro 2º.
Quaresma & Leitão em 20$rs, por infracção do art. 43 do código de posturas, por
ter porcos em sua casa. [...]
Gertrudes Maria da Conceição em 10$ réis, por ter a sua frente suja. [...]
Manoel Gomes Junior em 5$rs, por ter sua escrava feito despejos na praça da
Alfandega; art. 49 do código de posturas.
Jacob Bier Netto em 10$rs, por ter arrancado o cano de esgoto de sua casa; art. 46
do código de posturas.
2º Distrito.
[...]
Bonifacia, escrava de Maria Amélia da Conceição em 5$rs, por fazer despejos na
praça do Portão: art. 49 § 3º do código de posturas.
Jacintha, preta forra em 10$rs, por fazer despejos na rua. art. 49 do codigo de
posturas.
Manoel Antonio Ferreira em 20$rs., por ter um chiqueiro de porcos em sua casa,
art. 43 do codigo de posturas.
José de Sousa Ferraz em 20$ rs., por ter chiqueiro de porcos em sua casa: art. 43
do codigo de posturas.
350
Idem.
137
Constantino Cacique em 20$ rs., por ter chiqueiros de porcos em sua casa: art. 43
do codigo de posturas.
Porto Alegre 13 de Fevereiro de 1868.
Thomaz Firmiano da Silva.
Antonio Francisco de Paula.
351
Sobre a designação dos nomes é importante salientar que o fiscal chamado Antonio
Francisco de Paula, que aparece na citação do jornal acima, também é citado no Livro de
Despesas da Câmara recebendo pelo aluguel de cavalos para o serviço de limpeza. Neste
sentido, ao que tudo indica, aquele que era responsável por fiscalizar também poderia lucrar
alugando algum tipo de objeto para a realização de tais serviços.
Apesar das ações empreendidas pela Câmara, como podemos observar, isto não
impediu a entrada novamente do cólera na cidade. Entretanto (e apesar das críticas
contundentes por parte do Inspetor de Saúde Pública), podemos ver que a própria epidemia
neste período não se mostrou tão avassaladora quanto a que aconteceu no ano de 1855.
352
Segundo aponta o próprio Inspetor de Saúde Pública, este sucesso teria se dado em grande
parte por conta das iniciativas tomadas pelo então Presidente da Província, Francisco Ignacio
Marcondes Homem de Mello, cujas inúmeras ações teriam contribuído para amenizar o
flagelo da situação na cidade.
Estas ações segundo os apontamentos do Presidente da Província, concentraram-se
em dividir a cidade em distritos, nomear comissões de socorros para estes, abrir requisições
de medicamentos para facilitar o acesso aos remédios por parte dos doentes (mediante
declaração médica), franqueamento de enfermarias em hospitais e em sociedades de
beneficência para atender especialmente os vitimados pelo cólera, estabelecimento de uma
enfermaria na cadeia para tratamento dos presos, estabelecimento de uma enfermaria na Praça
Paraíso e franqueamento pela Companhia Hidraúlica Porto Alegrense para um acesso
gratuito a água potável pela população.
353
Todas estas medidas, segundo o Presidente da
Província, teriam sido reforçadas levando-se em consideração as orientações dos preceitos
higiênicos, como aconselharia a sciencia”. Neste sentido, o Inspetor Geral da Saúde Pública
teve um importante papel na visão de Homem de Mello:
351
Jornal do Commércio, Porto Alegre, 15 fev. 1868. p.2-3. Grifo nosso.
352
Torna-se importante ver o quadro de mortes, proporcionado pela epidemia do cólera na cidade Porto Alegre
no ano de 1867, em comparação com o número de mortes ocorridas com a epidemia do ano de 1855. Ver
ANEXO D.
353
FALLA dirigida á Assembléa Legislativa da provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente, Dr.
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, na segunda sessão da 12ª legislatura. Porto Alegre, Typ. do Rio-
Grandense, 1867. p. 29-30. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/900/000002.html>. Acessado em: 12
jun. 2010.
138
O Dr. Inspetor-geral da saúde publica desenvolveo toda dedicação no desempenho
das importantes funcções que lhe estão confiadas, visitando constantemente as
enfermarias, providenciando sobre a boa ordem do serviço medico, inspeccionando
e regulando o tratamento dos enfermos e indicando cuidadosamente á presidencia as
medidas hygienicas que se fazia necessário tomar, e que lhe sugeria a observação
attenta da marcha da epidemia.
354
Ubataba em relatório enviado ao Presidente da Província passava a descrever os
passos da epidemia do cólera, argumentando que a mesma teria invadido a cidade de Rio
Grande em janeiro de 1867, e teria se demorado a chegar a cidade de Porto Alegre, devido a
contribuição dos fatores climáticos. Na visão do Inspetor foi somente quando as brisas (ares),
que corriam na direção S.E.L.SE.L.N.E cessaram, que o cólera (assim como outras doenças)
teria começado a aparecer em Porto Alegre. Nas observações de Ubatuba a epidemia possuía
algumas características, pois:
Notou-se sempre o que tem sido observado durante essas crises que [...] Ella
accommette de preferência de madrugada, que Ella se aninha nos lugares mais
humidos, baixos, próximos aos rios, ribeiros, etc. e menos asseiados [...] e para
previnir este grande perigo é que se aconselhão as visitas sanitárias ou
domiciliares como providencia urgente e indispensavel.
355
Apesar das críticas do Inspetor de Saúde à Câmara Municipal e os problemas políticos
entre esta e a Inspetoria de Higiene, a década de 1860 mostrou-se frutífera na cidade, na
questão que diz respeito à experiência sobre a epidemia do cólera. As ações empreendidas no
campo do saneamento, de forma antecipada, podem demonstrar que os agentes do saneamento
tinham de certa forma aprendido uma lição.
Antes que findasse esta década, outro assunto envolvendo o saneamento público da
cidade se tornaria freqüente. Este assunto dizia respeito aos serviços de limpeza pública da
cidade. Observamos que a partir de fevereiro de 1868 é montada uma comissão para
“regulamentar as bases do serviço de limpeza pública”.
356
Esta comissão acabou sendo
composta pelo advogado da Câmara Municipal de nome João Rodrigues Fagundes e pelos
vereadores de nome Felizberto Antonio de Barcellos, João Pereira Machado, Francisco José
Barreto e pelo vereador presidente José Luiz da Costa Junior, tendo iniciado seus trabalhos no
354
Idem. p. 30-31.
355
RELATÓRIO da Inspetoria Geral da Saúde Publica da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul
apresentado ao Ilmo. E Exmo. Sr. Dr. Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, digníssimo presidente da
mesma Província, pelo Dr. Manoel Pereira da Silva Ubatuba, Inspetor Geral da Saúde Pública. Porto Alegre:
Typographia do Jornal “Deutsche Zeitung”, 1867. p.4. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/900/000149.html>. Acessado em: 12 jun. 2010. Grifo nosso.
356
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 6 fev. 1868.
139
dia 10 de fevereiro de 1868.
357
Durante o período de estudos realizado por esta comissão,
podemos observar que os serviços de limpeza da cidade acabaram sendo executados sob
controle e vigilância da polícia, como demonstra os inúmeros ofícios remetidos pelo Chefe de
Polícia à Câmara Municipal:
Recebem ofício do Chefe de Polícia comunicando ter expedido ordens para que as
autoridades policiais auxiliem os Agentes Municipais nas inspeções aos quintais,
pátios e porões das casas.
Recebem ofício do Chefe de Polícia comunicando ter mandado colocar sentinelas na
Ponte do Menino Deus.
Recebem ofício do Chefe de Polícia comunicando ter dado ordens ao Comandante
do Corpo Policial para que as Patrulhas proíbam os despejos depois do toque de
silêncio, conforme o Código de Posturas.
Recebem ofício do Delegado de Polícia comunicando ter expedido ordens para que
os Agentes Municipais sejam auxiliados pela Polícia nas medidas adotadas em
benefício da salubridade pública.
358
A respeito da regulamentação das bases do serviço de limpeza, o Inspetor Geral da
Saúde Pública mostrava-se contrário ao fato do serviço ser feito sob administração pública
municipal. Para o Inspetor, “a fiscalização oficial não pode ser tão ativa como a fiscalização
interessada de arrematante causa conhecida pela fiscalização que sobre ele exerce.”
359
Neste
sentido, a Câmara Municipal deveria, na opinião do Inspetor da Saúde, agilizar a contratação
de arrematante para o serviço de limpeza pública.
No dia 28 de abril de 1868, foram definidas as bases do regulamento da limpeza
pública da cidade de Porto Alegre, sendo publicado este regulamento através de edital no dia
5 de maio de 1868 no Jornal do Commercio. Dentre os pontos importantes deste regulamento,
destacamos os dois primeiros itens, que dizem respeito ao tipo de serviço que deveria ser
executado, bem como os meios para esta execução:
1ª. A limpeza publica desta capital para o caso de que se trata em conformidade com
a licitada, comprehende não o das materias fecaes como a das aguas servidas,
lixos e quaisquer outras imundícias tanto de casas particulares, como de repartições
e estabelecimentos públicos.
2ª. A camara municipal aceita propostas para contratar a limpeza publica desta
capital por meio de encanamento geral ou por meio de condução em carroças de
todas as materias que fazem objecto da limpeza publica.
360
357
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 9, 10 fev. 1868.
358
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 11 fev. 1868.
359
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 31, 4 fev. 1868.
360
AHPAMV - Jornal do Commercio, Porto Alegre, 5 mai. 1868, p.3. Griffo nosso. Para consultar este
regulamento na íntegra, ver: ANEXO E.
140
No dia 11 de maio de 1869, após ter publicado por diversas vezes editais chamando os
interessados para a arrematação dos serviços de limpeza pública (inclusive na Corte), a
Câmara acabou recebendo somente duas propostas. Uma destas propostas foi de Eduardo
Gatto, que se propunha a fazer este serviço pelo “sistema de encanamento subterrâneo”, e a
outra de Francisco José da Costa, “por meio de carroças e cubos hermeticamente fechados”.
Segundo consta, a Câmara Municipal acabou aceitando a proposta de Francisco José da Costa,
por entender que a primeira proposta, apesar de ser “fértil em resultados benéficos [...] é por
hora irrealizável em nossa cidade, cujos recursos ficão aquém de que demanda esta obra”.
361
Como podemos observar pelo andar dos acontecimentos, a proposta acima acabou não
se concretizando, provavelmente por ter sido vetada pelo Presidente da Província, como nos
mostra a Ata da Câmara do dia 25 de setembro de 1869, que decidia “novamente, chamar
concorrentes para o serviço de limpeza pública, marcando um prazo para o recebimento das
propostas”.
362
Nesta nova arrematação, uma única proposta foi recebida, a de Estácio da
Cunha Bitencourt, que:
se propõe fazer este serviço por meio de cubos hermeticamente feixados, e de
conformidade com as condições inclusas. A Camara reconhecendo quanto será
melhorado este ramo de serviço publico resolveu acceitar a referida proposta,
pedindo a V. Exª. que se digne authoriza-la a lavrar com o proponente o competente
termo de contracto. A Camara por differentes vezes tem chamado licitantes a
limpeza publica, fazendo publicar editaes, em todos os jornais da Côrte, e da Cidade
do Rio Grande; e até agora permanecem as cousas no mesmo estado, com grave
prejuízo para a salubridade publica desta Cidade, que por mais de uma vez tem sido
visitada na estação calmosa pela cholera. Considerando portanto, não o
expendido convem que a proposta em questão não embaraça que se adopte mais
tarde outro systema, desde que appareça quem se proponha realiza-lo, como terá
occasião de ver V. Exª., a Camara resolvêo acceital-a, fazendo nella no caso de ser
authorizada por V. Exª. a contractar com o proponente este ramo de serviço aquellas
indicações, que entende convenientes, e sujeitando depois o contracto a definitiva
approvação de V. Exª.
363
Respondendo à Câmara Municipal, o então Presidente da Província João Sertório, deu
parecer positivo ao contrato que deveria ser efetuado pela Câmara com Estácio da Cunha
Bitencourt.
364
Assim, a próxima década reservava uma novidade para os serviços de
saneamento da cidade, ou seja, pela primeira vez era firmado um contrato com uma única
pessoa, que deveria ser cumprido conforme um regulamento que estabelecia a forma exata de
361
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 6, 11 mai. 1869.
362
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 25 set. 1869.
363
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 6, 30 out. 1869.
364
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 32, 15 nov. 1869.
141
como deveria se processar a execução dos serviços de saneamento público de Porto Alegre.
Vejamos como se desenvolveu esta história na década de 1870.
4.3 O SANEAMENTO, AS EPIDEMIAS E AS AÇÕES PRÁTICAS NA DÉCADA DE 1870
A década de 1870, no que tange aos serviços de saneamento público da cidade, pode
ser considerada a década dos contratos e dos problemas derivados com as verbas públicas
destinadas a este tipo de serviço. No que diz respeito aos contratos, estes em sua maioria,
como veremos, foram mal sucedidos. as verbas destinadas aos serviços de saneamento,
apesar de se apresentarem como um assunto constante entre a Câmara e a Presidência da
Província, mostraram-se insuficientes ao longo de todo este período.
O contrato de início estabelecido com Estácio da Cunha Bitencourt, indicava que teria
sucesso, pois seus serviços começaram a ser organizados (mas não efetivados) a partir do dia
15 de fevereiro de 1870, quando a Câmara Municipal de Porto Alegre comunicou ao
contratado os lugares onde se deveriam realizar os despejos dos materiais fecais, de lixo e de
águas servidas. De acordo com a Câmara Municipal, tais despejos deveriam ocorrer no
“terreno situado com frente a estrada da Azenha, fundos ao arroio do mesmo nome,
dividindo-se por um lado com a chácara do cidadão Porfírio Joaquim de Macedo e por outro
com o terreno do preto Manoel Calunga”.
365
Entretanto, esta decisão do poder público
municipal acabou gerando problemas que culminaram em um abaixo-assinado por parte dos
moradores da Azenha “reclamando contra a atitude da Câmara de designar um local da
margem do arroio do mesmo nome como depósito da empresa pública da cidade”.
366
Oito meses após esta reclamação dos moradores da Azenha, o Presidente da Província
viria, em nome destes moradores, exigir algumas modificações nos serviços referentes aos
despejos de materiais fecais na região. Nas palavras do então Presidente da Província João
Capistrano de Miranda e Castro:
Representando, no requerimento junto, os moradores da rua da Azenha contra a
designação que fes do lugar próximo aquella rua, onde devem ser despejados os
materiais fecais, e tendo esta Presidencia verificado bem como a Comissão de
Medicos que para isso nomeou, com effeito ha inconveniente para a salubridade
pública na escolha do lugar, determino a Vmces. que ouvindo o empresário desse
serviço, com ele combinem na indicação de algumas das seguintes localidades
apresentadas pela mencionada comissão Ilha denominada da Passagem [...]
Caminho de Bellas, além dos limites da Cidade, no caso do empresário querer
365
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 9, 15 fev. 1870. Grifo nosso.
366
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 22 fev. 1870.
142
preparar o adubo para a agricultura, chamado poudrette -; empregando o processo
usado na culta Europa.
367
No dia 13 de dezembro de 1870, ou seja, mais de um ano após a assinatura do contrato
com Estácio da Cunha Bitencourt, a Câmara Municipal receberia uma Portaria do Presidente
da Província “mandando que seja submetido a aprovação da Assemblea Provincial o contrato
efetivo para o serviço de limpeza pública da cidade”,
368
visto o contrato estabelecido com
Bitencourt não poder ser efetivado sem o aval da Assembléia Provincial, cujo imposto para
execução de tal serviço deveria ser estabelecido.
369
Em resposta à Presidência, a Câmara
Municipal dizia não entender o porquê desta decisão, dado que “o antecessor de V. Exª em
Portaria n.71 de 9 de novembro último authorizou a fazer semelhante contrato com várias
modificações e [...] aprovou definitivamente”.
370
Ao que tudo indica Estácio da Cunha Bitencourt seguia organizando o serviço de
saneamento, porém sem iniciá-lo na prática. Em maio de 1871 ele solicitou para organizar
este serviço, “um local, nas proximidades da cadeia civil, para um trapiche e mais obras
necessárias à sua empresa”.
371
Mesmo assim tal contrato ainda não estava efetivado, pois a
Assembléia Provincial não havia decretado na Lei do Orçamento do ano de 1871, “verba para
a limpeza pública da cidade”, o que impediu de acordo com a Câmara Municipal, que “o
respectivo arrematante começo ao contrato aprovado pela mesma Assembléia em sua
última reunião”. Assim, a Câmara solicitava à Presidência fornecer pelo cofre provincial as
quantias precisas destinadas aos serviços de salubridade pública.
372
Com este problema de demora da efetivação do contrato com Bitencourt, torna-se
verificável as recorrências constantes da Câmara Municipal à Presidência e à Assembléia
Provincial, solicitando verbas para a execução dos serviços de saneamento, a ser realizado
pelo próprio poder público do Município. Desde a aprovação do contrato de Bitencourt pelo
Presidente da Província, em 15 de novembro de 1869 até o dia de julho de 1872, data do
início dos trabalhos da empresa de limpeza da cidade, foram solicitadas aproximadamente
quinze vezes verbas para estes poderes públicos, perfazendo um total de 16:000$000.
No dia de junho de 1872 foi mandado publicar pela Câmara Municipal um edital
informando que o contrato com Estácio da Cunha Bitencourt deveria começar a ser executado
367
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 32, 10 out. 1870.
368
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 13 dez. 1870.
369
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 32, 10 dez. 1870.
370
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 6, 15 dez. 1870.
371
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 17, 17 mai. 1871.
372
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 6, 30 jun. 1871.
143
a partir do dia de julho daquele ano. Além disso, este edital trazia algumas informações
respectivas às normas que deveriam ser cumpridas tanto pelo contratado quanto pelos demais
habitantes da cidade, durante a execução destes serviços:
EDITAL
Devendo começar em do mês de Julho próximo futuro a ter execução o contracto
estabelecido com Estacio da Cunha Bitencourt, para o serviço da limpeza publica da
Cidade; a Camara Municipal d‟esta Capital manda publicar por editaes, para
conhecimento de todos, o art. do respectivo contracto, e 49 das posturas
municipais, e os de 1 e 2 das posturas approvadas pela Presidencia da Provincia
em 5 de Fevereiro de 1868; e bem assim os §§ 2 e 3 dos artigo das disposições
gerais da Lei n°770 de 4 de Maio de 1871.
Artigo 6°. do contracto. Com quanto os chefes de família e repartição ou quaisquer
estabelecimentos não sejão obrigados a convencionar com o empresário a limpeza
de suas casas e estabelecimentos, pois que o podem mandar fazer por suas formulas,
todavia são restrictamente obrigados a mandal-a fazer precisamente no lugar que ao
presente for designado neste contracto, ou para o futuro for indicado pela Camara de
accôrdo com o empresário, para os despejos gerais.
Artigo 49 das posturas municipais.
depois do toque de recolher até o toque de silencio é permittido se fazer despejo
de materiais fecaes, e outras immundicias em vasilhas hermeticamente fechadas, e
bem seguras, conforme o modelo que a Camara designar. Pena de 8$000 de multa,
respondendo o senhor pelo escravo e o amo pelo criado.
Artigo 1 e 2 de posturas approvadas pela Presidencia da Provincia em 5 de
Fevereiro de 1868.
1°. Os moradores da Capital e mais Freguesias do município são obrigados a
conservar os quintaes, pateos e porões das casas em que residirem no maior estado
de aceio.
2°. Os infractores pagarão dez mil reis de multa que poderá ser elevada ao dobro nas
reincidências.
§§ 2 e 3 do art. 9° das disposições gerais da Lei n° 770 de 4 de Maio de 1871.
§ 2°. A Camara marcará nas praias da Capital, nas immediações da Cadêa civil, um
lugar com que o empresario possa construir um trapiche e outras obras para
embarcar as materias provenientes da limpeza publica.
§ 3°. O empresario fará o despejo das materias fecaes e aguas servidas ao sul da
Cidade e a meia légua de distancia no canal do rio Guahyba. Paço da Camara
Municipal em Porto Alegre, de Junho de 1872. O Vereador Presente Antonio
Ribeiro da Silva Filho, pelo Secretario, O Contador Manoel Pires da Silva.
373
A primeira reclamação com relação aos serviços de saneamento executados sob o
comando de Bitencourt, ocorre seis meses depois da definitiva efetivação de seu contrato. Foi
quando a Câmara determinou que: “o Empresário do serviço de limpeza pública da Cidade
conserve limpas as praças e o litoral da Capital, trecho compreendido entre as ruas Senhor dos
Passos e do Arroio”.
374
Quatro meses após esta primeira reclamação um vereador proporia
aos membros da Câmara Municipal “a nomeação de uma comissão especial para estudar as
bases do trabalho da limpeza das ruas e praças da Cidade, por arrematação, confrontando para
373
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 1º jun. 1872. Grifo nosso.
374
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 18 jan. 1873.
144
isso, o contrato existente na Câmara com a Empresa Salubridade Pública”.
375
Esta comissão
foi composta pelos vereadores João Carlos Augusto Bordini, José Martins de Lima e por Luiz
da Silva Flores Filho, como designou o vereador Presidente Antonio Manoel Fernandes.
376
Insatisfeitos os poderes públicos com os serviços prestados pela denominada Empresa
Salubridade Pública, pertencente a Estácio da Cunha Bitencourt, a Câmara Municipal
acabaria abrindo novamente edital para arrematação dos serviços de limpeza da cidade no dia
16 de setembro de 1873.
377
Porém, passado cinco meses e não obtendo sucesso nas propostas
a Câmara Municipal decidiu consultar o advogado Antonio Corrêa de Oliveira, para saber
“acerca das providências que se devam tomar com o fim a obrigar o referido empresário a
melhor fazer o serviço à que está obrigado”.
378
Diante este contexto de insatisfação por parte do poder público municipal, com
relação aos serviços de saneamento executados pela Empresa Salubridade Pública e pela
situação de incerteza gerada por estes descontentamentos, outro acontecimento de caráter
relevante iria aprofundar este momento de crise com relação ao saneamento público na
cidade. A chegada de uma nova epidemia de varíola na Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul acabaria por atingir também a capital em 1874, provocando inúmeras mortes em Porto
Alegre. Segundo o relatório da Junta Central de Higiene Pública deste período:
Não foi nada favoravel o estado sanitário da capital, segundo se collige do relatorio
do digno Inspetor de saude.
A cifra da sua mortalidade subiu a 1.462, de cuja somma pertencem 361 á variola,
que grassou epidemicamente de Fevereiro ao fim do anno, chegando a seu apogêo
em Maio, em que maior foi o numero de perdas a ella devido.
Esta affecção foi dotada de tal malignidade que, de 93 doentes recolhidos á uma
enfermaria mandada abrir pela presidencia, falleceram 50, mais portanto de 50%, a
despeito dos cuidados do distincto medico encarregado do tratamento dos enfermos
nella recebidos.
379
Chegada a epidemia, uma das primeiras providências da Câmara Municipal foi mandar
“queimar alcatrão, durante a noite, no litoral da Cidade, pelo arsenal e ruas da Varzinha e
Olaria para desinfectar o ar, assim como caiar o prédio do Mercado e da Rua Riachuelo,
375
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 24 mai. 1873.
376
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 10, 26 mai. 1873.
377
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 16 set. 1873.
378
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 8, 5 fev. 1874.
379
RELATORIO do presidente da Junta Central de Hygiene Publica apresentado ao ministro e secretario de
Estado dos Negocios do Imperio Dr. João Alfredo Corrêa de Oliveira. Rio de Janeiro: Typograhia Nacional,
1875. Anexo F. p.32. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1702/000582.html>. Acessado em: 14 jun.
2010.
145
pertencente a municipalidade”.
380
Com o ato de se queimar ervas buscava-se espantar os maus
ares, que muitas vezes eram associados aos problemas das doenças. Assim como o cal era
considerado um eficaz “enérgico desinfectante” dos lugares.
381
Durante o surto epidêmico, a cotidianidade da cidade passou a sofrer várias alterações.
Os serviços de limpeza que estavam sendo realizados na Doca acabaram sendo interrompidos
pelo fato dos materiais removidos por este serviço, serem colocados ao ar livre, em pleno
centro da cidade.
382
O que na visão do Presidente da Província acabaria por “agravar o estado
sanitário da cidade tão seriamente alterado pela contaminação da epidemia da varíola”.
383
No dia 9 de junho de 1874 o Presidente enviou uma Portaria à Câmara informando não
poder assumir todas as despesas exigidas para a extinção da varíola e aconselhava à Câmara
que recorresse à caridade particular.
384
O que foi feito pelo poder público municipal, quando
decidiu nomear “comissões para obterem recursos financeiros de combate a varíola nos
distritos da capital”.
385
Além disso, a Câmara Municipal apertou o cerco aos empresários dos
matadouros obrigando-os a dar escoamento do sangue e águas utilizadas nos referidos lugares
e a lançá-los para dentro do rio.
386
Solicitou também a colocação de duas torneiras no prédio
do Mercado Público, para melhorar o “estado de asseio dos passeios interiores”.
387
Para tentar melhorar a situação do saneamento público neste período, foi criada
também uma Comissão de Melhoramentos na cidade. Esta comissão, por fim, deu parecer
propondo que fossem chamados novos concorrentes à limpeza da cidade.
388
Diante esta situação, o empresário da limpeza pública pediu rescisão do respectivo
contrato efetuado com a Câmara Municipal. A Câmara por sua vez, mandou “o empresário do
serviço de limpeza da cidade pedir rescisão do seu contrato ao poder competente, de
conformidade com o parecer da Comissão do Contencioso”.
389
No dia 20 de outubro de 1875,
a Empresa Salubridade Pública seria definitivamente desligada dos serviços de saneamento
da cidade, que segundo as palavras do procurador teria “deixado de existir”.
390
380
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 26 mai. 1874. Grifo nosso.
381
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 8 nov. 1873.
382
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 8 jun. 1874.
383
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 34, 30 mai. 1874.
384
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 34, 1º jul. 1874.
385
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 16 jun. 1874.
386
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 27 ago. 1874.
387
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 10, 7 jan. 1875.
388
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 13 nov. 1874.
389
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 4 mar. 1875.
390
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 20 out. 1875.
146
O Inspetor Geral da Saúde Pública, por sua vez, não poupava críticas e reclamações
sobre o serviço de salubridade pública. No dia 11 de janeiro de 1876, o então Presidente da
Província encaminhou um oficio a Câmara, expondo as “diversas reclamações feitas pelo
Inspetor Geral da Saúde Pública”. Segundo o Presidente José Antonio de Azevedo Castro:
O Inspetor Geral da saúde Pública, no officio que hontem me dirigiu, tratando das
providencias que convem tomar em favor da salubridade, muitas das quaes se achão
prevenidas nas posturas municipaes, particularisou a limpeza das praias, praças e
ruas, desobstrução das calhas, remoção do lixo e resíduos de animaes e vegetaes das
margens do Riacho e arroios; limpeza e aceio dos quintaes, pateos, dos canos de
esgotos das aguas pluviaes e de lavagens de roupas, accumuladas nos referidos
quintaes; visitas domiciliarias para se verificar o estado de aceio das habitações,
prohibindo-se ahi depósitos de immundicies e despejos, a criação de animaes, como
porcos etc.; visitas sanitárias em todas as casas de negocio de gêneros comestíveis
ou bebidas, para conhecer-se se são da melhor qualidade, não deteriorados ou
falsificados, e prohibição da venda no caso contrario, assim como da carne verde de
má qualidade e de fructas verdes e mal sazonadas.
Convém, pois, que Vmces., pelos meios a seu alcance, promova a execução dessas
medidas, que podem trazer profícuos resultados no empenho que todos devem
empregar para trazer ao estado normal as alteradas condições da saúde publica.
391
No dia 7 de outubro a Câmara aprovou a redação de um artigo de posturas, obrigando
os moradores da cidade a depositarem o lixo de suas casas em vasilhas e as colocarem em
suas portas para serem levadas pelas carroças da limpeza:
Acto de 7 de Outubro de 1876 approvando dous Artigos de posturas additivo ao
codigo da Camara municipal desta Capital.
O Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, Presidente da Provincia de São Pedro do
Rio Grande do Sul.
Faço saber a todos os seus habitantes que tendo em consideração o que lhe
representou a Camara Municipal desta Capital em officio nº 32 de 11 do corrente, e
no uso da faculdade que me confere o Artº 12 do decreto de 3 de Outubro de 1834,
mando que em additamento ao codigo de Posturas da referida Camara se observe
provisoriamente o seguinte:
Artigo Todos os moradores desta Cidade residentes na area designada no
contracto de limpesa publica, em todas as ruas, praças, becos, travessas e littoral,
comprehendidos desde as ruas da Conceição, Voluntarios da Patria, 7 de Setembro,
Praia do Arsenal, Varzinha, Olaria até o Beco do Firmo, Praça da Independencia, e
rua da Mizericordia até a da Conceição, ficão obrigados a depozitar em frente de
suas portas todos os dias até as oito horas da manhã, inclusive os domingos e dias
santificados, dentro de pequenos caixões ou qualquer outra vazilha, todo o cisco e
cascas de fructas, proveniente da limpesa interna de suas respectivas moradas, para
ser lançado nas carroças occupadas da limpesa publica, aquelles que infringirem
esta postura, qualquer que seja sua classe e condição na sociedade, pagarão a multa
de 2.000 réis, que será tantas vezes repetidas quantas forem as faltas em que
incorrerem.
Artº Na mesma multa de 2.000 réis incorrerão aquelles que lançarem nas horas
designadas, ciscos, cascas de fructas e quaesquer lixos e immundices nos passeios
ou mesmo na rua em frente de suas portas ou das dos vizinhos, sem ser em pequenos
caixões ou qualquer outra vazilha, e se essa infracção for commettida fóra das horas
391
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 35, 11 jan. 1876.
147
de limpesa publica, pagarão o dobro da multa estabelecida
Palacio do Governo em Porto Alegre 7 de Outubro de 1876.
Tristão de Alencar Araripe
392
No dia 14 de agosto de 1876 a Câmara contratou o Sr. José de Figueiredo Moreira
para realizar os serviços de saneamento da cidade. Seu contrato vigorou por um ano, porém
não foi renovado em vista dos vereadores não concordarem com esta prorrogação.
393
Passado
exatamente o prazo do contrato feito com Moreira, a Câmara abriu novo edital chamando
licitantes para o serviço de limpeza da cidade. Conforme as bases deste edital ficavam
estipulados os deveres para o contratado:
1ª. A área cuja limpeza é posta em arrematação, é a comprehendida pelas ruas da
Conceição, Voluntários da Patria, 7 de Setembro, Praia do Arsenal, Varzinha, Lima
e Silva até o Becco do Fime, Praça da Independência e rua da Misericórdia até
encontrar a da Conceição, inclusivamente estas ruas.
2ª. A limpeza consiste na remoção e condução diária de todo o cisco, lixo, animaes e
aves mortas em todas as ruas, praças, beccos, travessas e litoral, ficando
comprehendida neste serviço a varredura da praça do mercado, a limpeza,
desobstrução e capina das calhas, a limpeza das rampas do mercado e de todo o
litoral e bem assim a capina das praças.
O empresário é obrigado:
A fazer este serviço todos os dias, sem excepção dos domingos e dias santificados,
nunca menos do que com dez carroças, devendo fazer concluído no verão as 10
horas da manhã e no inverno as 11 horas, e a limpeza do mercado até o meio dia;
A conservar durante o resto do dia em cada districto uma carroça para manter o
estado de acceio das ruas e durante as épocas da matança de cães uma carroça à
disposição do Sr. Fiscal geral;
A depositar o lixo no local que for designado pela municipalidade.
394
Dado a falha na documentação existente da Câmara, que pudesse indicar quem teria
sido aprovado nesta nova licitação, não podemos saber ao certo quem foi o responsável por
estes serviços neste ano, mas ao que tudo indica, este teria sido Bento Baptista Orsi, pois o
mesmo foi dispensado destes serviços um ano mais tarde, quando ocorreu a contratação de um
novo arrematante.
395
Antes que findasse o ano de 1878 o Presidente da Província despachou um parecer à
Câmara Municipal, aprovando a contratação de uma empresa para a condução de materiais
fecais e águas servidas.
396
Esta empresa, de nome Alvim & Pitrez, era comandada por Cândido
392
AHPAMV Código de Posturas Municipais. Acto de 7 de Outubro de 1876 approvando dous Artigos de
posturas additivo ao codigo da Camara municipal desta Capital.
393
AHPAMV - Atas da mara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 18, 2 abr. 1877. A mara não
informa os motivos porque tal contrato não foi renovado, mas ao que tudo indica os serviços não supriram as
expectativas do poder público, visto as inúmeras reclamações que continuaram a existir.
394
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 7, 14 ago. 1877.
395
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 10, 17 out. 1878.
396
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 36, 2 mai. 1878.
148
José Ferreira Alvim e João Alfredo Pitrez, que se comprometiam a empregar todo o material
necessário para a execução dos serviços de saneamento da cidade. Dentre estes materiais
destacamos primeiramente os cubos, que deveriam ser utilizados para a condução dos
materiais fecais, conforme mostra a ilustração abaixo:
Imagem 4 - Cubo proposto para condução dos materiais fecais
Fonte: AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, caixa 12, Propostas
Materiais Fecais e Limpeza da Cidade, 1878.
Além dos cubos que deveriam ser empregados no serviço de remoção dos materiais
fecais, destaca-se também os veículos que deveriam ser utilizados para se fazer o transporte
destes materiais, bem como das águas servidas, vejamos a imagem a seguir:
149
Imagem 5 - Modelo de carros para condução de águas servidas, condução de materiais fecais e cubo
para condução de materiais fecais
Fonte: AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, caixa 12, Propostas Materiais
Fecais e Limpeza da Cidade, 1878.
Na proposta da Empresa Alvim & Pitrez é possível contemplar também um modelo de
carro tecnicamente mais sofisticado, contando inclusive com sistema de freio, molas, assento
e articulação no aparelhamento dos cavalos, como podemos ver na imagem a seguir:
150
Imagem 6 - Modelo nº 2 de transporte que prevê melhorias na condução dos dejetos.
Fonte: AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, caixa 12, Propostas Materiais
Fecais e Limpeza da Cidade, 1878.
Na imagem acima, além do desenho do veículo que deveria ser utilizado para a
condução dos dejetos, encontra-se também a seguinte explicação:
Destes carros a empresa apresentará dous, para principiar e trez de duas rodas iguais
ao modelo n° 1 sendo mais tarde substituidoz por outros iguais a este modelo n° 2.
Porto Alegre 23 de Outubro de 1878.
Alvim & Pitrez
397
Podemos observar sobre a imagem acima uma maior complexidade no que tange a
preocupação na condução do veículo, principalmente com relação à segurança do transporte
de tais materiais. Pode ser observado também que tal veículo, diferentemente da primeira
imagem, era dotada de um sistema de frenagem independente da tração animal, que neste
caso deveria ser controlado pelo próprio condutor do transporte. A este detalhe no carro,
397
AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, Caixa 12, Propostas Materiais Fecais e Limpeza
da Cidade, 1878.
151
soma-se também a suspensão prevista, diferentemente das imagens anteriores, com molas
ligadas ao eixo, cuja função principal era diminuir o impacto direto do carro com o solo,
proporcionando assim uma maior estabilidade e durabilidade do mesmo.
Como podemos ver o segundo modelo de transporte previa também uma condução do
veículo de forma sentada e elevada em relação aos animais, o que não ocorre com relação aos
modelos anteriores, onde o condutor poderia ir em sobre o veículo ou caminhando ao
lado do mesmo. Por fim, outro detalhe não passa despercebido, verifica-se no modelo acima
uma diferenciação fundamental com relação ao primeiro, ou seja, a barra que liga a tração
animal ao carro é articulada por um pino e removível através do mesmo. Isto pode indicar
uma maior cobertura dos serviços de limpeza (nas mais diferentes ruas e becos da cidade de
Porto Alegre) devido ao fato do carro ser mais maleável através do uso de sua articulação.
Antes de findar a década de 1870 a Câmara Municipal abriria novamente licitações
para os serviços de limpeza da cidade, mas o contrato com Alvim & Pitrez (que mais tarde
mudou de nomenclatura para Alvim e Cia, devido à saída de Pitrez da sociedade) continuou a
vigorar sobre os serviços de transporte de águas servidas e materiais fecais. A esta
permanência da empresa na prestação de serviços à Câmara Municipal até o fim da década de
1870, se deve provavelmente a forma como foi estabelecido este contrato, cujas clausulas
indicam que os serviços deveriam ser pagos pelos respectivos habitantes da cidade:
A empresa perceberá como retribuição a quantia de três mil reis mensais, por cada
habitação dos proprietários ou inquilinos e a de cinco mil reis para conducção da
aguas servidas e materiais fecaes, conjunctamente, que tiver usual cada caza, ficando
o direito a cobrar dez mil reis pelos dous serviços nos hoteis e na quellas cazas em
que houver reconhecidamente excesso.
Nas habitações onde o serviço de materiais fecaes for a limpeza feita oito vezes por
mez, pagarão dous mil reis, e sendo quatro vezes, mil e quinhentos reis.
A empresa cobrará a todo assignante as mensalidades por trimestre adiantado tendo
o direito de não continuar com o serviço nas habitações que houver falta de
pagamento.
A empresa obriga-se a ter seu escriptório, onde a escripturação será feita
diariamente, fazendo doação a Camara Municipal de quatro por centto ao anno de
seu rendimento liquido, sendo essa percentagem paga semestralmente a mesma
Camara Municipal a ser applicada a qualquer das obras a seu cargo.
398
No dia 17 de outubro de 1878 a Câmara Municipal aprovou paralelamente aos
serviços executados por Alvim & Pitrez, também uma proposta para a limpeza da cidade feita
por Marcos Pradel de Azambuja, que deveria iniciar seus serviços no dia 18 deste mesmo
398
Idem.
152
mês.
399
O contrato de Azambuja, bem menos detalhado do que de Alvim & Pitrez, se
comprometia a executar os serviços de limpeza pública por espaço de um ano pela quantia de
10:500$000, que deveriam ser pago em prestações anuais.
400
Sua proposta apesar de ser bem
sucinta (apenas uma página), acabou sendo contemplada dentre os dez concorrentes que
haviam participado da licitação. Vejamos a seguir como se apresentou os lances desta
concorrência:
Proponente
Valor/Anual
Bento Baptista Orsi
7:200$000
José Gomes dos Santos Amorim
8:500$000
Joaquim Gomes de Mendonça
9:000$000
Marcos Pradel de Azambuja
10:500$000
Teodolindo Antonio Rosa
10:000$000
Francisco Hermenildo de Figueiredo Neves
11:000$000
Cândido José Ferreira Alvim Júnior
11:200$000
Jacob Ben Neto
11:500$000
Antonio Manoel de Freitas
12:000$000
Aleixo Pereira Lapa
12:792$000
Tabela 7 Proponentes do serviço de limpeza em Porto Alegre e valores lançados em 1878
Fonte: O autor
401
A proposta de Azambuja, como podemos verificar acima, não era a de menor valor.
Entretanto, a mesma se apresentava diferente das demais, dando como garantia dos seus
serviços a assinatura de um fiador, cujo nome era Cypriano Gonçalves da Silva. Estes
serviços executados por Marcos Pradel de Azambuja, ao que tudo indica, tiveram um sucesso
maior, pois seu contrato acabou sendo renovado até o início da década seguinte.
Terminada a década de 1870 a cidade de Porto Alegre contava com um sistema, se
não eficiente para os moldes atuais, pelo menos ordenado. O sistema de despejo passava a ser
executado por uma empresa de transporte responsável somente por este serviço, enquanto o
serviço de limpeza era executado sob a organização de contratos anuais, que previam a partir
399
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 8, 17 out. 1878.
400
AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, Caixa 12, Propostas para a Limpeza da Cidade,
1878.
401
Tabela baseada sobre informações retiradas das Propostas para a Limpeza da Cidade do ano de 1878.
AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, Caixa 12, Propostas para a Limpeza da Cidade,
1878.
153
daquele momento multas mais rigorosas caso os contratados não cumprissem com suas
obrigações. Mesmo assim, a situação pouco parece ter mudado no que diz respeito ao estado
sanitário da cidade, visto ainda existir reclamações, como podemos ver abaixo:
Medidas Sanitarias. Entre nós da-se um facto digno de severa censura.
[...]
A imprenssa chama a attenção para alguns desses assumptos; as respectivas
autoridades comprehendem e aprecião a justesa das observações relativas; baixão
editaes e durante alguns dias nota-se um certo gráo de actividade.
Depois passa a primeira impressão, o negocio cahe no esquecimento e tudo fica no
antigo pé.
[...]
Ora, é claro que a publicação do edital não é sufficiente para melhorar o estado da
cidade; é necessário que haja rigor na observancia dessas disposições legais, e
sobretudo deve a camara municipal limpar as praias, praças e ruas da cidade.
É verdadeiramente nojento o estado de muitas dellas; há ruas e sobretudo beccos que
não se póde atravessar sem tapar o nariz, e as exhallações mephiticas das praias
collocão o transeunte na mesma contingencia.
Quando há uma epidemia, fazendo estragos [...] não há falta de recursos a allegar.
Se a camara não tem meios para mandar proceder a uma limpesa extraordinária da
cidade, peça-os ao governo. É caso de saúde pública e o governo não póde negar-se
a auxiliar a camara, se Ella realmente não tiver recursos.
Mas seja como for, dêm-se os passos necessários, para que depois o funesto não
cuidei - não venha a pezar na consciência de todos.
402
Como podemos observar acima, os problemas relacionados à limpeza eram também
percebidos como um caso de saúde pública. Vejamos a seguir como se desenrolou esta
história durante a década de 1880.
4.4 O SANEAMENTO, AS EPIDEMIAS E AS AÇÕES PRÁTICAS NA DÉCADA DE 1880
Se as duas primeiras décadas foram marcadas por fracassos e conquistas em relação
aos momentos de epidemia, no que diz respeito ao saneamento público da cidade; e a década
de 1870 pelos problemas relacionados aos contratos para a execução dos serviços de limpeza
e transporte de dejetos, qual teria sido a característica da década de 1880 no tocante aos
problemas derivados do saneamento da cidade? Podemos dizer após analisarmos a
documentação referente a este período, que o assunto saneamento público em Porto Alegre é
marcado neste momento por problemas relacionados ao lixo.
É neste período que o lixo passa a ser um elemento de constante preocupação dos
poderes públicos. Neste sentido, buscamos aqui responder a uma pergunta: por que o lixo
402
MCSHJC Gazeta de Porto Alegre, Porto Alegre, 7 fev. 1879, p.2. Grifo nosso. Sobre a crítica da imprensa
em relação aos serviços de saneamento, ver também charge que foi capa do jornal O Guarany, denominada “O
roto e o remendado”. ANEXO F.
154
entraria em cena como um importante elemento do saneamento neste momento? Para
respondermos a esta pergunta, tratamos de descrever e analisar o andar dos acontecimentos na
cotidianidade público-política da cidade.
Os contratos que foram objeto de ampla discussão na década anterior, acabaram se
solidificando como um elemento político administrativo da cidade. A empresa de Alvim &
Cia, agora sob a denominação de Empresa de Asseio Público, viria a permanecer como
prestadora de transporte de dejetos da cidade durante todo este período. os contratos dos
serviços de limpeza, apesar de regulares (no sentido de ser realizada todo ano abertura de
licitações), acabaram não tendo a mesma sorte no que tange a permanência de seus
prestadores de serviço, pois as propostas feitas nem sempre eram aceitas pela Câmara
Municipal.
Em março de 1881 a Câmara resolveu não mais aceitar propostas para a limpeza da
cidade, decidindo fazer este serviço pela própria administração.
403
O primeiro problema
encontrado pelo poder público municipal ao tomar esta decisão, consistia na falta de carroças
e outros materiais para a execução deste serviço. Neste caso, a Câmara Municipal teve que
abrir novamente chamada para conseguir os meios materiais de que necessitava para
realização destes trabalhos.
EDITAL
Tendo resolvido a Camara municipal desta cidade mandar fazer administrativamente
a limpeza publica, a comissão encarregada de montar o respectivo material, recebe
no dia 12 do corrente às 11 horas da manhã na Secretaria da mesma Camara,
propostas para a locação de carroças para o referido serviço.
As carroças serão tomadas, completamente equipadas para este serviço, inclusive
ferramentas, pás, vassouras, e por todo o dia.
404
Na verdade pouco durou esta iniciativa da Câmara, pois a mesma teve que contar com
a prestação de serviços de presos, designados para a execução destes trabalhos pela
Presidência da Província. Como aponta a Ata do dia 12 agosto de 1881, comunicando a
permissão dada pelo Presidente Joaquim Pedro Soares à Câmara, para serem os presos
utilizados no “serviço de capina e limpeza” da cidade.
405
O uso de presidiários pelo poder público municipal nos serviços de limpeza não era
incomum no século XIX. Todavia, estes serviços se mantinham mais como auxiliares do que
efetivos, e assim continuou sendo, pois a Câmara Municipal decidiu novamente prorrogar o
403
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 19, 4 mar. 1881.
404
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 9, 9 mar. 1881.
405
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 19, 12 ago. 1881.
155
contrato de serviço de limpeza da cidade, que ainda era vigente, até que se decidisse em
reunião da Assembléia Provincial o que se fazer.
406
Este caso ficou se arrastando pela decisão
dos poderes públicos durante toda a década 1880. Inúmeras propostas acabaram sendo
realizadas, como a feita por Marcos Pradel de Azambuja, de renovação do seu contrato por
um prazo de vinte anos,
407
bem como a de Alcides Gomes dos Santos, que se propunha
mediante o “contrato de dez annos, a fazer a limpeza pública e particular nesta cidade pela
quantia de quinze contos de réis anuais e segundo as mais condições estabelecidas em sua
proposta”.
408
Para agravar a situação das condições do saneamento de Porto Alegre, a antiga
empresa denominada de Salubridade Pública(pertencente a Estácio da Cunha Bitencourt),
que prestara serviços de limpeza à cidade, passava a reclamar “uma indenização referente aos
prejuízos pela violação do respectivo contrato”, que tinha sido estabelecido no ano de 1872.
409
Concomitante as reclamações de Bitencourt, havia o permanente problema com os despejos
em locais inapropriados, alguns destes realizados pelos Quartéis do 12º e 13º Batalhão de
Infantaria. Além do mais, havia também a reclamação contínua dos moradores que habitavam
próximo às pontes de despejo, principalmente os da Rua Voluntários da Pátria. Estes
moradores chegaram inclusive a fazer abaixo-assinado pedindo a remoção da ponte de
despejos existente na saída da Rua Dr. Flores.
410
Neste período, contínuas também foram as reclamações existentes sobre as águas
estagnadas e esgotos. No que diz respeito a este assunto, todos parecem reclamar. O
Presidente da Província reclama para a Câmara Municipal sobre este problema; esta por sua
vez reclama para os fiscais; estes últimos culpam os moradores; e os moradores por fim
atribuem estes problemas aos Quartéis existentes na capital. Paralelamente a todos estes
problemas, em 1884 surgiu a notícia do reaparecimento do cólera na Europa. Esta informação
acabou colocando novamente a administração pública sobre alerta, como pode ser observado
na fala do Presidente da Província:
Tendo o cholera-morbus apparecido na Europa, onde começou desde logo a
devastar, tomaram-se medidas energicas para evitar a sua invasão na Província.
Por ordem do Governo foram fechados os nossos portos aos navios procedentes dos
portos affectados, e o Dr. Inspetor da saude publica, de accordo com a Camara
Municipal, envidou todos os esforços para melhorar as condições hygienicas
406
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 19, 14 fev. 1882.
407
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 38, 24 abr. 1882.
408
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 38, 6 mai. 1882.
409
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 19, 28 abr. 1880.
410
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 19, 20 fev. 1883.
156
desta cidade. Neste intuito foram estabelecidas visitas domiciliarias, sendo
necessario para tal fim nomear commissões compostas de um medico, um vereador
e mais dous cidadãos.
Por essa occasião, e em cumprimento de ordens que recebera da Junta Central de
Hygiene, fez publicar o mesmo Dr. Inspetor conselhos hygienicos e indicou as
medidas preventivas contra a invasão da epidemia cujo apparecimento receavamos.
Isso concorreu poderosamente para que o estado sanitario da capital esteja
presentemente em melhores condições do que antes.
411
O medo da entrada do cólera novamente na cidade, chegou a ser representado através
de ilustração na capa do jornal O Século em novembro de 1884. Como podemos ver abaixo,
havia uma associação entre o cólera como sendo uma doença derivada do continente asiático.
Imagem 7 - A entrada do cólera na cidade de Porto Alegre.
Fonte: MCSHJC O Século, Porto Alegre, 2 nov. 1884.
411
RELATORIO apresentado a S. Ex. o Sr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos, Vice-Presidente da Província do
Rio Grande do Sul, pelo Exmo. Sr. Conselheiro José Julio de Albuquerque Barros ao passar-lhes a Presidencia
da mesma Província no dia 19 de Setembro de 1885. Porto Alegre: Officinas Typographicas do “Conservador”,
1886. p.117. Disponível em: < http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u762/000002.html>. Acessado em: 15 jun. 2010.
Grifo nosso.
157
Abaixo da ilustração do jornal existe o seguinte comentário: Segundo o Sr.
Barcellinhos, deve ser hoje a entrada triumphal de Sua Magestade o Cholera, n‟esta cidade.
Achamos a occasião, porque complica-se com a festa de finados. Em todo caso...”. O
Barcellinhos o qual se refere a passagem acima diz respeito ao então presidente da Província,
a época Miguel Rodrigues Barcellos.
Analisando a imagem acima podemos observar que a figura do asiático é conduzida de
forma triunfal pela morte diante a cidade. Acima da cabeça do indivíduo com as
características de um asiático, podemos ver um chapéu com a inscrição “cholera” e acima
deste chapéu, envolto pela lâmina da foice que representa a morte, está uma coruja com as
asas abertas trazendo de forma escrita a palavra micróbio”. Esta inscrição nas asas da coruja
pode indicar o início da mudança de perspectiva com relação à percepção sobre as doenças. O
miasma, que até então fazia parte do universo de entendimento sobre as epidemias irá a partir
deste momento ganhar um sentido diferenciado. Este sentido como podemos ver, está atrelado
ao princípio da teoria bacteriana, cujo um dos representantes principais foi Pasteur, como
vimos no primeiro capítulo desta dissertação.
Ao fundo da imagem podemos ver um aglomerado de personagens contemplando a
entrada da epidemia, alguns trazem inclusive estandartes com os possíveis meios de cura, que
poderiam ser encontrados pela cidade. Assim, temos a homeopatia e a alopatia, mas também a
“dosimetria”, a “hydropathia”, a “charlopathia” e a “cannalopathia”, representações que
podem ser consideradas como uma crítica contundente as diferentes formas de tratamento
existentes na Porto Alegre oitocentista.
em volta da biga encontram-se habitantes da cidade que aparentam ter um poder
aquisitivo expressivo, pois trazem à cabeça cartolas que permitem identificar sua posição
social. A direita da imagem, dois indivíduos seguram às mãos sacos, possivelmente de
dinheiro, aguardando com a entrada da epidemia um provável lucro. Já outros aparecem
simplesmente com os braços cruzados demonstrando certa apatia com relação à entrada da
doença.
É diante deste cenário que se move o saneamento público da cidade neste período.
Tais problemas agravados pelo medo da epidemia provocaram novamente na cidade uma
corrida pela salubridade. Uma corrida que passava pela limpeza e higienização, cujo papel da
água tornava-se fundamental. Neste horizonte de acontecimentos chegou-se a lavrar um
contrato para o estabelecimento de uma nova companhia de água, denominada Companhia
158
Hidráulica Guaibense, cuja organização coube ao engenheiro José Estácio de Lima
Brandão.
412
Segundo Franco, os serviços da Companhia Hidráulica Porto Alegrense foram
percebidos à época como insuficientes, e “essa insuficiência gerou condições para o
nascimento de outra empresa concessionária, a Companhia Hidráulica Guaibense, organizada
com vistas a captar o líquido precioso numa fonte inesgotável: o próprio lago do Guaíba.”
413
Além disso, havia indícios também de que a Companhia Hidráulica Porto Alegrense não
prestava um serviço de qualidade, visto as impurezas que se encontravam na água, como
aponta o ofício das Obras Públicas:
Continuando a apparecer carregada de insetos a agua que a Companhia Hydráulica
faz distribuir nesta Capital, e como dessa impureza das aguas possa resultar graves
prejuízos á salubridade publica, mormente na presente estação em que tem lugar
com freqüência os casos de molestias gastricas; assim o communico a V. Exª. para
que se digne mandar por peritos examinar o estado das mesmas aguas e as causas
que determinão as impurezas que infelizmente as tornão impotáveis.
414
Na direção destes problemas, como aponta a documentação sobre o saneamento da
cidade de Porto Alegre, não bastava somente limpar, era necessário também dar destino aos
materiais que eram recolhidos. O lixo, seja ele público ou privado, tornou-se assim um grande
entrave para o poder público, pois à medida que se ia limpando, acabava-se também
recolhendo. A pergunta central dos poderes públicos concentrou-se assim, basicamente na
seguinte expressão: onde colocar estes dejetos e refugos? As respostas foram diversas e nem
sempre houve concordância.
Ao que podemos observar o Presidente da Província à época Henrique Pereira de
Lucena, achava que o lixo deveria ser “transportado e depositado em qualquer ponto da Ilha
da Pintada”.
415
a Câmara Municipal alegava não ter meios para levar a efeito este serviço,
pois não haveria verbas suficientes para cobrir esta despesa. Além do mais, a Câmara
salientava que havia um contrato estabelecido com uma empresa desde 1885 (Empresa Asseio
Público) para fazer este serviço, e que a possível quebra deste contrato resultaria numa
indenização à referida empresa.
416
Neste sentido, a Câmara Municipal mandou colocar
“provisoriamente, todo o lixo da cidade na chácara de Francisco Mariante”.
417
Mais tarde, este
412
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 7 jan. 1886.
413
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 3.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS,
1998. p.20.
414
AHRS Obras Públicas Provinciais, Ofício n. 209, 7 dez. 1876. Grifo nosso.
415
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 10 jul. 1886.
416
AHPAMV - Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal, Livro 14, nov. 1886.
417
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 20 nov. 1886.
159
lixo acabaria sendo destinado para um “depósito de lixo da cidade numa chácara situada no
Campo da Redenção após a Rua Silveira Martins”.
418
Na verdade, estes eram os lugares oficiais destinados pelo poder público a ter fim o
lixo da cidade, porém como observamos, nem sempre o descarte ocorria nestes locais. Vários
outros lugares (irregulares) eram também utilizados pela população como pontos de despejo.
A Câmara Municipal para resolver estes problemas, adotava constantemente duas formas de
ação. A primeira concentrava-se na fiscalização, que resultava em multas para aqueles que
descumprissem estas normas. A segunda consistia no trabalho de limpeza destes locais. Neste
último caso, não se tratava simplesmente de uma retirada do material, mas sim no seu
enterramento no próprio lugar, como aponta a Ata da Câmara do dia 13 de janeiro de 1887:
“mandam cobrir, com urgência, uma porção de lixo existente na saída da Rua da Aurora junto
a Estação da Estrada de Ferro”.
419
Adiante, em ofício remetido à Câmara Municipal pelo Presidente da Província, o
mesmo comunica a posição contrária do Inspetor de Higiene Pública e da Sociedade Médico-
Cirúrgica Rio-Grandense,
420
com relação à decisão da comissão encarregada pela Câmara de
estudar o serviço de limpeza da cidade de se aterrar o lixo da capital nos campos denominados
de Redenção:
A esta Presidencia foi presente o recurso interposto pelo Dr. Inspetor da Hygiene
Publica reclamando contra a delibração d‟essa Camara que mandou depositar o lixo
da cidade no logradouro publico da várzea, em vallas de dois metros de
profundidade sobre dois de largura, cobertas logo em seguida.
Por officio de 13 do corrente a sociedade medico-cirugica rio-grandense, composta
de quasi totalidade dos médicos clínicos d‟esta Capital, por seu turno reclamou
também no sentido de ser removido do centro da população, o deposito de lixo,
como um perigo e uma ameaça ao bem estar publico.
Esta Presidencia, para bem resolver assumpto de tanta ponderação por isso que
entende como salubridade publica, julgue conveniente pedir conselho dos
profissionais para o que convençam os Drs. Barão de Guayba, Amadeo Prudencio
Masson, Joaquim de Almeida Couto e os engenheiros Coronéis Julio Anacleto
Falcão da Frota Catão, Augusto dos Santos Roco e o Tenente Coronel Diogo Alves
Ferraz, que, depois de bem inteirados das razões que justificarão o acto dessa
Câmara e das que lhes apresentou em contradicta o Inspetor da Hygiene, forão de
voto unanime [...] condenando o processo empregado para o consumo de lixo,
divergindo apenas o Dr. Masson que acompanhando os demais na reprovação do
alvitre tomado por essa Camara, entendia, contudo, em attenção a falta de recursos
do município e a possibilidade da incineração do lixo à noite por meio do piche, que,
418
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 24 dez. 1886.
419
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 13 jan. 1887.
420
A fundação da Sociedade Médico-Cirúrgica Rio-Grandense data do ano de 1886. Sua criação se em um
contexto, segundo Silveira, de “busca mais efetiva da profissionalização da prática médica no estado, mediante a
institucionalização dos enunciadores do discurso médico”. SILVEIRA, Éder. A cura da raça: eugenia e
higienismo no discurso médico sul-rio-grandense nas primeiras décadas do século XX. Passo Fundo: Editora
Universidade de Passo Fundo, 2005. p.136-137.
160
como medida provisória se podia continuar a fazer o serviço por essa Camara
iniciado. [...]
Considerando que o enterramento do lixo na Varzea tornará aquelle local um foco de
elaboração de epidemia, tanto mais para temer, quanto, segundo a respeitavel
opinião de um membro dessa Camara, em torno do aterro resultante se fará
necessariamente um deposito de aguas servidas [...] atuarão funestamente sobre as
condições athmosphericas;
Tenho resolvido dar provimento ao recurso pelo o Dr. Inspector da Hygiene
interposto para mandar que não continue essa Camara a fazer depositar o lixo em
valas abertas na Varzea.
Assim decidindo, porém, deixo ao presidente arbítrio dessa Camara a escolha de
outro local para o deposito do lixo, se não for adoptado o alvitre pelo Exmo. Sr.
Barão do Guayba proposto e pelos demais aceito, de ser o lixo depositado e
espalhado e depois encinerado nos terrenos da chácara do Camargo; de propriedade
dos herdeiros do finado Comendador José Francisco Bastos, para onde será
transportado em carroças ou com bonde, prestando-se a gerencia destes, como estou
informando, a levar um ramal da respectiva linha até aquella localidade; ou então de
leval-o para as proximidades da Ponte de Pedra no littoral, como também propõe o
Dr. Inspetor da Hygiene, sendo como é, certo e testemunha o vereador a cuja
opinião já me referi que o despejo do lixo no littoral nunca deo lugar ao
apparecimento de epidemia nesta cidade, o que sem duvida não acontecerá com seu
sepultamento.
Rodrigo Azambuja Villanova.
421
No dia 17 de dezembro de 1887 o Presidente da Província informava à Câmara que
um cidadão de nome Frederico Bier Sobrinho tinha dirigido uma proposta à Assembléia
Legislativa Provincial, tratando sobre o serviço de limpeza da cidade. Segundo Villanova, o
mesmo cidadão se propunha “a transportar o lixo e os materiais fecais desta capital para o
Sacco denominado „D. Ritta‟ no Guahyba”.
422
A Câmara, por sua vez, receosa em tomar
qualquer decisão, solicitou à Presidência que primeiramente decidisse o lugar para o depósito
do lixo, para só então se abrir licitação para a realização deste serviço.
423
Todo este processo de definição do lugar ou dos lugares onde o lixo deveria ser
depositado acabou se arrastando. No dia 10 de fevereiro de 1888, a Câmara recebeu um ofício
do Inspetor de Higiene, indicando alguns lugares para o depósito de lixo. Nas palavras do
Inspetor:
Julgo que para deposição do lixo da cidade deve ser escolhido um terreno na estrada
do Meio, a dez kilometros de distancia do Campo da Redempção, e que deverá ser
ahi construídos fornos apropriados para a incineração de todo o lixo da cidade.
Lembro ainda que pode ser escolhida uma chácara situada na estrada do Mato
Grosso, de propriedade do Governo e denominada da policia, sendo, porem
necessário também ahi a construção dos fornos. Pode também escolher-se um
terreno nas margens da estrada de ferro de Porto Alegre a Novo Hamburgo que não
seja alagado no inverno. Finalmente indico a VSª um ponto que por mais de uma vez
foi indigitado por esta Inspetoria, o qual é o saco denominado da D. Ritta, ponto
421
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 25 jun. 1887. Grifo nosso.
422
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 17 dez. 1887.
423
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 31 jan. 1888.
161
este escolhido por esta Junta e por outros profissionais depois de estudos práticos.
Ao meu ver este último ponto tem a vantagem de poder ahi receber também os
materiais facaes, logo que haja qualquer combinação ou contracto sobre as partes
que se encarregarem do dous serviços. É o que posso informar a V.Exª. que
resolverá conforme melhor entender.
424
Na passagem de governo do Presidente Rodrigo de Azambuja Villanova para o Barão
de Santa Thecla (agosto de 1888), o mesmo informa que por falta de verba não teria sido
possível ainda resolver os problemas relacionados ao destino do lixo da capital. Chegou-se a
cogitar em seu governo, segundo as informações do Presidente, a hipótese inclusive da
construção de um forno de incineração, mas que infelizmente a falta de verba teria impedido
que tal idéia fosse colocada em prática. Nas palavras de Villanova:
Não está ainda infelizmente resolvida a importante questão sobre a remoção do lixo
desta cidade.
Apezar dos louvaveis esforços empregados pela inspectoria de hygiene e camara
municipal para melhorar este serviço, ao qual se prende intimamente a saude publica
da capital, nada se tem podido fazer por falta de verba.
A melhor medida a tomar-se sobre tão importante assumpto é, sem duvida nenhuma,
a lembrada pelo Dr. Inspector de hygiene, isto é, a incineração do lixo em local bem
remoto da cidade, em fornos apropriados.
A camara, de accordo com esta medida, submetteu á minha consideração com
officio de 2 de Junho ultimo, a proposta que lhe apresentára o engenheiro Luiz
Augusto Pereira de Campos para a construcção de um forno para a incineração do
lixo, nas mesmas condições do que existe na ilha do Governador em New-York,
com a capacidade máxima de 15m
3
, pela quantia de 10:000$000 réis, segundo a
conta que apresentou.
São conhecidos os enormes sacrificios feitos pela camara, despendendo sommas
excedentes das quantias votadas para procurar effectuar a remoção do lixo de modo
a deixar fóra de toda possibilidade qualquer alteração na saude pubica da cidade.
No entretanto é imperfeito o systema que adoptou de deposital-o na Ponta das
Pedras, um ponto urbano muito populoso.
Não dispondo a camara, nem a província de verba nos seus orçamentos para levar-se
a effeito a construção do forno de incineração, segundo a proposta referida, e por
affectar tambem esse serviço á saude publica em geral, solicitei do Ministerio do
Imperio a concessão do preciso credito para a execução daquella obra.
Foi-me declarado em resposta, por avizo de 20 de Junho findo, que no orçamento do
mesmo ministério não havia verba por onde se possa ocorrer á despeza com esse
serviço, que pertence á camara municipal.
Continuo a pensar que a Assembléa Provincial deve estabelecer o imposto
obrigatorio de 1 e 2 mil réis e 500 réis para as casas de aluguer inferior, para a
remoção do lixo da cidade. O producto deste imposto modico é sufficiente para
attender com toda a regularidade a este serviço.
Tornar facultativo aos moradores, como fez a Assembléa no additivo n.4 do art.
da lei municipal vigente, o pagamento do imposto é o querer serviço algum
porque não há empreza que se organise sob condições tão pouco rasoaveis.
425
424
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 10 fev. 1888.
425
RELATORIO com que o Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova passou a administração da Província
de S. Pedro do Rio Grande do Sul a S. Ex. o Sr. Barão de Santa Thecla, vice-presidente, no dia 9 de agosto de
1888. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador. p.32-33. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u767/000043.html>. Acessado em: 16 jun. 2010.
162
Três meses após este relatório, o Barão de Santa Thecla comunicava à Câmara
Municipal que teria aberto crédito no valor de 10:400$000 para a construção de um forno de
incineração de lixo, destinando deste valor 400$000 para ser aplicado na desinfecção do lixo
que era depositado após a Ponte de Pedra do Riachinho. Para dar andamento a este serviço, o
Presidente aconselhava aos vereadores da respectiva Câmara Municipal a “se entender a
respeito com o Dr. Ramiro Fortes de Barcelos, que se propõe a dirigir este serviço”.
426
Ao que tudo indica, o próprio Barão de Santa Thecla concordava com o pensamento
de seu antecessor, no que diz respeito às políticas para o saneamento da cidade, pois além das
medidas adotadas para a construção de um forno de incineração, o novo Presidente não se
esqueceu de levar a cabo a proposta de Villanova para que ocorresse a cobrança de um
imposto destinado aos serviços de remoção de lixo. No dia 28 de janeiro a Câmara recebeu de
Santa Thecla um ofício que solicitava “a rápida execução da lei municipal que estabelece um
imposto adicional sobre o valor locativo dos prédios urbanos para ser aplicado no serviço de
remoção do lixo”.
427
Cumprindo que tenha prompta execução a parte da lei municipal vigente que
estabelece um imposto addicional sobre o valor locativo dos prédios urbanos para
ser aplicado às despesas do serviço da remoção do lixo, é de toda conveniência, e
esta presidência espera e recommenda, que Vmces. se reúnam com urgência para
orçar a importância provável a que attingirá o imposto à vista do número conhecido
de prédios da cidade, deliberar a respeito do modo mais expedito de fazer sua
arrecadação a bocca do cofre e assentar nos meios práticos de realizar o serviço a
que elle se destina, com a máxima vantagem de asseio, embelezamento e
saneamento desta capital.
428
Segundo o Presidente da Província, não investir nestes serviços era abrir espaço para
os problemas relacionados às doenças, principalmente as de caráter epidêmico, que em anos
anteriores tinham afetado bruscamente a cidade de Porto Alegre. Neste sentido, a criação
deste imposto justificava-se na concepção de Santa Thecla, pois:
Não desconhecem Vmces. os perigos imminentes a que está exposta a crescente
população desta cidade, de cerca de 55:000 almas, com a previsão do apparecimento
brusco e infallivel de alguma epidemia de caracter desconhecido e effeitos
desastrosos, como não muitos annos acconteceu, provavelmente por causa
idêntica, na mais importante capital de um dos Estados limitrophes, se com
indifferença criminosa permittimos por mais tempo que o lixo, detritos e resíduos
animaes e vegetaes, continue a ser depositado em toda a extensão das margens
fluviaes que limitam a cidade, para com grande incommodo e risco de vida dos
426
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 29 out. 1888.
427
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 28 jan. 1889.
428
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 25 jan. 1889.
163
moradores da circunvizinhança e repulsivo testemunho de nossa ciência ao
estrangeiro que nos visita ou aqui vem estabelecer-se, formar terrenos acrescidos de
natureza insalubre e pestilenta nos lugares mais apresiveis para construções urbanas
de vivenda e recreio e que em futuro próximo devem ser embellezados de cães e
viçosa arborização.
Urge que essa Camara de accôrdo com a Presidencia da Provincia, desprevenidas
ambas de espitiro partidário e favoreio a interesse privado por legitimo que seja,
consultando somente os seus deveres e civismo se esforce em realizar, em prazo
mais breve a contar da presente estação calmosa, um melhoramento imprescindível,
instantemente reclamada pelas boas condições hygienicas de seus munícipes,
aconselhado pelo distincto funccionario o Dr. Inspector da Hygiene, e para o qual a
Assembleia Provincial em sua ultima reunião consignou o alludido imposto.
429
No dia 31 de janeiro de 1889, ou seja, seis dias após esta comunicação do Presidente
da Província, a Contadoria da Câmara Municipal enviava um relatório informando a forma
como deveria se processar este pagamento, bem como os valores respectivos deste serviço por
distrito:
Cumprindo a resolução de V.S. tomado em sessão do corrente, dirigiu-me a Mesa de
Rendas a fim de melhor conhecer da sifra a que poderá atingir o imposto
ultimamente criado para a remoção do lixo das casas particulares. [...]
1° Districto
Cazas ou lances de 25 a 40 469 2:814,000
Idem idem de 41 a 81 331 2:648,000
Idem idem de 81 em diante 242 2:420,000
1:042
2° Districto
Cazas ou lances de 25 a 40 719 4:317,000
Idem idem de 41 a 81 486 3:888,000
Idem idem de 81 em diante 141 1:410,000
1:346
3° Districto
Cazas ou lances de 25 a 40 233 1:398,000
Idem idem de 41 a 81 39 312,000
Idem idem de 81 em diante 5 50,000
277
19:254,000
430
Segundo o contador da Província, este imposto destinado aos serviços de remoção do
lixo deveria ser cobrado junto à “décima urbana”, que era recolhida entre os meses de abril e
junho de todos os anos, pois “se a cobrança não for feita em ocasião das décimas e pela Mesa
429
Idem. Grifo nosso.
430
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 31 jan. 1889.
164
de Rendas, difficil se tornará Ella, porque impostos novos são sempre acolhidos em relutância
ainda que sejam por demais justos e equitativos”.
431
Terminada a década de 1880, todavia, Porto Alegre ainda não contava com um lugar
exato para o destino do lixo da cidade, pois estando a findar o atual contrato do arrematante
do serviço de limpeza pública da capital, a Câmara ainda solicitava à Presidência em março
de 1889, para que fosse “resolvido a magna questão da remoção e enterramento do lixo e seus
detritos para o Sacco da D. Ritta ou para outro qualquer ponto distante da capital”.
432
Em
resposta à Câmara, o Presidente da Província à época Joaquim Galdino Pimental, informou
que teria deliberado este assunto à Assembléia Legislativa Provincial, “visto nada se ter
resolvido até ao presente sobre a remoção do lixo para o Sacco de D. Rita ou para outro
qualquer ponto distante da capital”.
433
Assim, a década de 1890 era iniciada sobre as
incertezas dos lugares do lixo, das definições dos contratos de limpeza, dos problemas
gerados pelo medo das epidemias e por problemas derivados dos despejos. Não bastasse esta
situação no plano do saneamento, a situação política também se mostrava incerta com relação
ao seu destino. Vejamos a seguir o desfecho desta história do saneamento ao findar do século
XIX.
4.5 O SANEAMENTO, AS EPIDEMIAS E AS AÇÕES PRÁTICAS NA DÉCADA DE 1890
Com a Proclamação da República em novembro de 1889 e a destituição do Império do
poder político no Brasil, as Câmaras Municipais acabaram sendo dissolvidas, vindo a ser
substituídas em Porto Alegre pela chamada Junta Municipal. A Junta Municipal durou até
1892, quando foi instituída a Intendência Municipal (Poder Executivo) e o Conselho
Municipal (Poder Legislativo).
434
Porto Alegre nos oito primeiros anos da República, como
bem observou Bakos, teve sete chefes executivos, sendo “três na qualidade de presidente da
Junta Municipal, um administrador municipal, dois intendentes nomeados pelo governador e
um eleito de forma indireta”.
435
Em 1897 assumiu o executivo municipal o primeiro
431
Idem.
432
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 23 mar. 1889. Ofício n.8.
Este documento, apesar de ter sido referenciado como Correspondência Recebida , trata-se de um documento
expedido pela Câmara Municipal, que foi encontrado à época da pesquisa no local referenciado acima.
433
AHPAMV - Correspondências Recebidas pela Câmara Municipal, Livro 41, 29 mar. 1889.
434
ARQUIVO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE MOYSÉS VELLINHO. Guia do Arquivo Histórico de
Porto Alegre Moysés Vellinho. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1997. p.23.
435
BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
p.43.
165
Intendente eleito em Porto Alegre, José Montaury de Aguiar Leitão, que ficaria por vinte e
sete anos no poder, dando início ao que Bakos denominou de continuísmo e continuidade na
administração pública municipal.
436
Diante deste momento de transição política a situação do saneamento da cidade de
Porto Alegre pouco parece ter mudado, visto os problemas de contrato com a limpeza pública
ainda não estarem resolvidos e os problemas com relação ao destino do lixo ainda não estarem
solucionados. No dia 31 de janeiro de 1890 a Junta Municipal resolveu que o lixo deveria ser
novamente enterrado no Campo da Redenção, dado ainda não se ter decidido o lugar exato
para a colocação dos dejetos.
437
Esta decisão do poder público municipal acabou gerando
muitos problemas e reclamações. No que tange aos problemas, ressaltamos o do descarte de
lixo que ocorria pelos mais diferentes pontos da cidade. Este problema acabou ocasionando
seguidas solicitações do Inspetor de Higiene à Junta Municipal com relação a estas questões:
Recebem ofício do Inspetor interino da Higiene pedindo para mandar murar os
terrenos da Cidade Baixa, nos e Distritos, porque estão sendo transformados
em depósito de lixo.
438
Recebem ofício do Inspetor da Higiene mandando acelerar a limpeza desta
Capital.
439
Recebem ofício do Inspetor da Higiene pedindo providências para o asseio e
saneamento desta Capital com o objetivo de prevenir epidemias.
440
Com relação às reclamações, estas foram extremamente contundentes, principalmente
por parte da imprensa da época. Tais reclamações chegaram a ser notícias de capa, como
podemos ver na passagem abaixo:
Agora que os animos estão calmos, que a revolução triumphante fez entrar em seus
eixos o serviço publico, tratemos nós de ajudar a pratriotica intendencia nos misteres
que lhes dizem respeito. Voltemos ao assumpto limpeza e conservação das ruas.
Vamos representar o papel de fiscal honorário, apresentando á mesma intendencia
as ruas que, ao nosso ver, necessitam constantemente da visita dos respectivos
fiscaes, visto que o serviço de limpeza é pessimamente executado.
As ruas Clara, Arroio, Bella, Vasco Alves, Ponte, beccos do Fanha, Poço, rua da
Ladeira, quadra entre banco e armazem Januario, têm sempre um fetido que provoca
vomitos, e Andradas, entre praça d‟Alfandega e Harmonia, não parece ser a
principal rua.
Ora, se o serviço de limpeza fosse feito conforme expendemos já, isto é, a varredura
das 3 ás 4 horas e o recolhimento do lixo das 5 em diante, estou bastante convencido
436
Idem, p.48.
437
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 31 jan. 1890.
438
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 6 fev. 1890.
439
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 5 jul. 1890.
440
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 8 dez. 1890.
166
que ás 8 da manhã achar-se-ia a cidade asseiada, as calhas conduzindo agua limpa e,
portanto, deixando de existir os miasmas.
441
Tanto no discurso do inspetor quanto da imprensa à época ocorre uma relação, como
podemos ver acima, entre os problemas derivados do saneamento com as causas das doenças.
Esta relação irá passar por um processo de transformação ao longo de toda esta década. Tal
processo será marcado por uma presença cada vez mais constante do método científico-
laboratorial, baseado nos preceitos da bacteriologia pasteuriana. Esta mudança de direção
pode ser bem verificada na fala de Protásio Alves, que nesta época era o Inspetor de Higiene
do Estado:
O estudo da potabilidade da agua pode ser feito em um laboratorio d‟esta
natureza [de estudo bacteriológico] e a despeza quase inproficua que o Sr.
Intendente Municipal desta Capital fez para mandar o Dr. Olinto verificar a
potabilidade da agua consumida aqui, era suficiente para cobrir a importancia do
custo dos apparelhos e reactivos para restabelecer aqui senão um laboratorio
completo, pelo menos um que se preste para os usos communs. Devo observar que,
se os resultados do exame feito pelo Dr. Olinto no laboratorio do Rio de Janeiro não
foram completos, isto proveio do tempo que gastou-se em fazer o transporte das
amostras e não da falta de pericia d‟aquelle illustre profissional na analyse a que
procedeu.
442
Com relação aos serviços de despejo do lixo na cidade, este de início foi relegado pelo
pensamento bacteriológico, visto os acontecimentos que se sucederam ao longo de toda esta
década. No dia 15 de fevereiro de 1890, começou a ser realizado o serviço de despejo no
Campo da Redenção, quando o fiscal geral do município comunicou ter “início a abertura das
valas para o aterro do lixo no Campo da Redenção e a capinação das ruas”.
443
Um ano após
esta decisão do poder público municipal, o então Presidente do Estado Candido José da Costa,
participava à prefeitura “ter concedido um crédito para a construção de um forno de
incineração do lixo da capital conforme planta e orçamento organizados pela Diretoria de
Obras Públicas”.
444
Para a concretização desta obra, o Presidente Costa convidava os
integrantes do poder público municipal para “em comissão com o Engenheiro Director
daquella Repartição e o Dr. Inspector da Hygiene Publica, escolher o local apropriado para a
441
AHPAMV Gazetinha, Porto Alegre, 20 dez. 1891, Capa.
442
AHRS - Relatorio apresentado pelo Dr. Inspetor de Hygiene ao Dr. Possidonio Mancio da Cunha Junior. In:
RELATORIO apresentado ao Presidente do Rio Grande do Sul em 15 de setembro de 1983 pelo Secretario de
Estado Interino dos Negocios do Interior e Exterior Possidonio M. da Cunha Junior. Porto Alegre: Officinas
Typograhicas d‟A Federação, 1893. p.100.
443
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 15 fev. 1890.
444
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 20, 17 fev. 1891.
167
execução do dito trabalho”.
445
Para levar a efeito esta obra foi elaborado um contrato, cujas
cláusulas haviam sido estabelecidas em 1888, com o Engenheiro Luiz Augusto Pereira de
Campos, que viria a receber por este serviço a quantia de 10:000$000.
446
A construção do forno de incineração acabou ocorrendo no lugar denominado Beco ou
Rua de Sans Soucy, que era situado “numa elevação de terreno a margem de uma avenida
importante, a Azenha, passagem obrigatória entre arrabaldes bastante povoados e o centro
da cidade”.
447
Segundo os apontamentos de Costa, este forno de incineração na década de
1920, não daria mais conta da incineração de todo o lixo produzido na cidade, o que teria
levado a administração municipal a pensar a construção de um novo forno:
Em 1926 a produção média diária do lixo na cidade era de 185 m
3
, e o forno da Rua
Sans Sousi já não podia, como a muito tempo, comportar todo o seu volume, o que
fez com que a maior parte do lixo produzido nos 1º, 2º e 3º Distritos passassem a ser
depositados em área da Rua São Manoel, junto à Taquari, e que fora adquirida tendo
em vista a construção de um outro forno.
448
Este novo forno a que se refere Costa foi planejado, ao que tudo indica, para ser
construído na própria Rua São Manoel, pois analisando a documentação que diz respeito as
construções do município, encontramos a proposta da Senhora Vicentina Rhodes,
comunicando a intenção de vender seu terreno (localizado na Rua São Manoel), que era
contiguo a uma área pertencente a municipalidade, para ali então se construir o novo forno de
incineração da capital.
449
Entretanto, antes da possibilidade da construção deste forno que
seria localizado na Rua São Manoel, o antigo forno de incineração da Rua Sans Soucy já
causava reclamações por parte dos moradores da Azenha:
Os moradores da rua da Azenha fizeram um abaixo assignado ao cidadão intendente
e a junta de hygiene publica, pedindo a remoção do forno de incineração do lixo e de
materiais putrefactos que existe naquella localidade.
Nos tempos cálidos que atravessamos devido á permanencia daquelle forno ali e as
continuas exhalações pútridas de que são victimas aquelles moradores, tem se
desenvolvido molestias ephidemicas que se continuarem assim vão fazer o terror
daquelle arrabalde.
445
AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, Caixa 15, Ofício 1653, 1891.
446
AHPAMV Construção e Melhoramentos do Município, Caixa 15, Termo de Contrato, 1891.
447
COSTA, Telmo Cardoso. Pequena História da Limpeza Pública na Cidade de Porto Alegre. Porto
Alegre: Editora DMLU Assessoria de Comunicação Social, 1983. p.32.
448
Idem, p.30.
449
AHPAMV Mapas e Plantas do Município. Mapoteca V-13. Documentos Avulsos: Propostas. 18 jan.
1927. Ver também plantas projetadas para a construção de fornos de incineração na cidade, em ANEXO G ao
final desta dissertação.
168
É justo portanto que seja attendida a petição referida, sendo pelo cidadão intendente
e junta de saude publica, um acto de verdadeira justiça prestada aquelles
reclamantes.
450
Constantemente o jornal Gazetinha, neste período, abria espaço no seu periódico para
fazer críticas ao sistema de saneamento da cidade. Tais críticas eram direcionadas
basicamente aos poderes públicos municipal e estadual. Na verdade, momentos em que o
referido jornal deixa transparecer claramente sua insatisfação com o Partido Republicano ou
mais precisamente com o governo de cunho positivista.
451
Porto Alegre não é uma cidade em que a extrema escassez de casas imponha á
municipalidade ou á junta de hygiene, a tolerancia quanto a residencia permanente
de grande numero de pessoas em uma pequena sala ou em um quarto; no entanto
d‟isto por aqui.
Porque motivo não é prohibida tal cousa, desde que prohibem uma outra muito
semelhante, que é a moradia em porões de pouca altura?
Ainda ha pouco, recebemos a noticia de que o inconveniente acima notado por nós
está se dando em um dos quartos do mercado, o de numero 29.
N‟elle, que é de resumidas dimensões, reside actualmente uma familia composta de
NOVE PESSOAS, incluida uma recem-nascida!
Accresce a isto uma circumstancia importante: parte do quarto é occupada por um
botequim.
Imagine-se agora, que condição de salubridade pode ter esta moradia...
E ha zelo official em Porto Alegre, pela saude publica?
Se houvesse, essa agglomeração de pessoas em um pequeno compartimento não
seria permittida, porque ella se torna perigoso foco de infecção.
Somos bem capazes de jurar que hade apparecer por ahi algum republicano de
chapa, a affimar que se a intendencia ou a junta de hygiene nos attendesse
commetteria um attentado á liberdade de moradia...
452
No dia 24 de novembro de 1893 o poder público municipal começou a debater a
possibilidade de se construir uma estrada de ferro que viabilizasse a remoção dos materiais
fecais para a chamada Ponta do Dionísio, localizada na zona sul da cidade (atual Vila
Assunção).
453
A estrada de ferro começou a ser construída no governo do Intendente Alfredo
Azevedo, no dia 20 de setembro de 1894, sendo concluída no ano de 1896. Entretanto, o seu
tempo de uso para este serviço foi curto, pois dois anos após sua inauguração a mesma acabou
sendo destruída por uma enchente, que ocorreu na cidade no ano de 1898. Nas obras de
450
AHPAMV Gazetinha, Porto Alegre, 28 fev. 1897. p.2.
451
Para maiores detalhes entre a relação deste periódico com o poder público municipal à época, torna-se
importante ver a dissertação de Mestrado de: MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: imprensa e
policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. 1992. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992.
452
AHPAMV Gazetinha, Porto Alegre, 10 dez. 1896, p.3. Grifo do original. Sobre estas condições de
salubridade pública no espaço da cidade, ver também charge do mesmo jornal do dia 19 de janeiro de 1896.
ANEXO H.
453
AHPAMV - Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Livro 21/22, 24 nov. 1893.
169
reconstrução da ferrovia, por problemas de indenização de terras da área por onde passava a
estrada, seu curso acabou sendo alterado indo até a “Ponta do Melo onde se construiu um
trapiche para o despejo das fezes no rio, sendo retirado o segmento final que ia até a Ponta do
Dionísio”.
454
Em 1897, seguindo os ideais positivistas da época, o Presidente do Estado do Rio
Grande do Sul, Júlio de Castilhos, ressaltou a importância de prover a capital com serviços
básicos, cujo controle deveria estar a cargo do poder público. Como aponta Abrão, Castilhos
ressaltava:
[...] a importância de prover a capital com serviços de água, luz, sistema de esgotos,
policiamento e outros melhoramentos que a transformariam em uma cidade moderna
e progressista. Tais serviços, segundo Castilhos, deveriam ser municipalizados e não
estar a cargo da iniciativa particular. A justificativa apregoada pelo governante era
de que os custos dos serviços diminuiriam por estarem sob responsabilidade
governamental, que não visaria o lucro, ao contrário da iniciativa privada. Com isto,
seria beneficiada a população da cidade.
455
Indo de encontro a este pensamento castilhista, em 1898 o serviço de limpeza pública
da cidade acabou sendo municipalizado pelo intendente José Montaury. Segundo Costa, isto
ocorreu porque:
O compromisso dos poderes públicos com os serviços de limpeza da cidade
cresceram, mais ainda, antes que findasse o século XIX. Os serviços de coleta e
remoção do lixo domiciliar, bem como a varredura das calhas das principais ruas da
cidade, que eram feitos por meio de contratos de empreitadas, e nos quais era
utilizados, para o transporte, carroças rasas e descobertas, foram encampados pela
municipalidade em 1898. Com cerca de 65 mil habitantes na área urbana da cidade,
Porto Alegre despendia, mensalmente, mais de 7 contos de réis na vigência do
último contrato assinado; e a própria encampação, aliada ao significativo aumento
dos serviços prestados, fez com que o projeto de orçamento para o ano seguinte
previsse uma despesa de 110 contos.
456
454
FRANCO, op. cit., p.156.
455
ABRÃO, Janete Silveira. A "espanhola" em Porto Alegre, 1918. 1995. Dissertação (Mestrado em História)
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 1995. p.50. Para maiores detalhes no que diz respeito a relação do positivismo com as questões voltadas
para a saúde no Rio Grande do Sul, torna-se importante ver também: WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de
curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense - 1889/1928. Santa Maria: Ed. da
UFSM; Bauru: EDUSC - Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, em especial o capítulo “A
peculiaridade dos gaúchos”. p.31-81.
456
COSTA, 1993, op.cit., p.15.
170
Na verdade, antes de crescer o compromisso dos poderes públicos, o que aumentou foi
a quantidade de material recolhido, em conseqüência do aumento populacional
457
e do
crescimento industrial. Segundo os dados de Singer, Porto Alegre contava na década de 1890
com:
[...] 9 fábricas de cerveja, 7 de sabão e velas, 18 de charutos e cigarros, 6 de
chapéus, 6 de banha, 51 de calçados, 62 de olarias, 6 armadores, 6 refinarias, 5
curtumes[...] em 1892 ainda, estalou-se a “Cia de Fiação e Tecidos Porto Alegre”,
com quase dois mil contos de capital e 263 operários. No ano seguinte foi fundada a
fábrica de calçados “Cia Progresso Industrial” [...] ocupando então 133 operários na
fábrica e 73 trabalhadores domésticos. Em 1892 funda-se também a grande fábrica
de móveis, que em 1896 conta com 120 operários. Em 1893 criou-se a “Cia Fabril
Porto-Alegrense”, de tecidos, e a “Fábrica de Pregos Pontas de Paris”. Em 1894
surge a “Cia Fábrica de Vidros Sul Brasil”, que produz, em 1895, 700.000 garrafas.
Em 1895 funda-se a Fábrica de Roupas Brancas e Gravatas. Assinala-se ainda a
presença em 1896 da “Cia Manufatora” (gravatas, espartilhos, luvas, cartonagem,
objetos de chifre e osso).
458
Em 1898, seguindo também os preceitos políticos orientados por Júlio de Castilhos,
Borges de Medeiros, agora como Presidente do Estado, comunicava à Assembléia que havia
sido dado início aos projetos de melhoramento de dois importantes ramos do saneamento na
capital do Rio Grande do Sul, destacava então os serviços de canalização de água e o sistema
de rede de esgoto:
Prendem vivamente a minha attenção os serviços que entendem directamente com o
saneamento urgente d‟esta capital.
Comquanto pertença á esphera do governo municipal a iniciativa do abastecimento
de aguas e do estabelecimento de esgottos subterrâneos, taes assumptos affectam por
tal fórma a hygiene publica, que não é licito ao Estado permanecer indifferente.
Foi n‟essa intelligencia certamente que, em vossa reunião do anno findo,
deliberastes investir o governo da necessaria auctorisação para auxiliar a instituição
dos magnos serviços alludidos.
Com o maior regosijo cabe-me annunciar-vos que a patriótica intendencia d‟esta
capital já confiou á competência profissional de uma commissão o estudo e a
elaboração do projecto de canalização de aguas e de uma rêde de esgottos.
Está, pois, em via de realisação tão assignalado melhoramento, que virá satisfazer
uma justa e tradicional aspiração de nossa importante capital.
459
457
Para maiores detalhes sobre o crescimento populacional da cidade de Porto Alegre ao longo do século XIX,
ver tabela em ANEXO C.
458
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução urbana de São Paulo,
Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2.ed. São Paulo Companhia Editora Nacional, 1977. p.171-
173. Sobre esta relação entre o desenvolvimento econômico e a questão urbana da cidade de Porto Alegre no
século XIX, é importante ver também: SOUSA, Célia Ferraz; MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua
evolução urbana. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1997. p.57-97.
459
MENSAGEM enviada a Assembléa dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo presidente
Antonio Augusto Borges de Medeiros, na Sessão Ordinario da Legislatura, em 20 de Setembro de 1898.
Porto Alegre: Officinas Typographicas d‟ A Federação, 1898. p.17-18. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u778/000002.html>. Acessado em 17 jun. 2010.
171
As obras que deram início ao sistema de canalização de esgoto começaram a funcionar
somente em 1907, tendo sido inaugurada somente em 1912. A área beneficiada por esta rede
foi limitada as ruas “Ramiro Barcelos, Protásio Alves, João Alfredo, Pantaleão Teles e o
litoral, e compreendia 7 mil prédios”.
460
Antes porém de funcionar este serviço, o intendente
José Montaury assinou o Regulamento dos Serviços de Exgottos, no dia 21 de agosto de 1909.
Este regulamento tratava das instalações domiciliares, das canalizações e dos aparelhos que
deveriam ser utilizados na rede de esgoto. De acordo com seus artigos iniciais:
Art. 1º - É obrigatório o serviço de água e exgottos em todo edifício habitável,
dentro da zona servida pelas rêdes de canalização.
Art. - A rêde de exgottos é destinada a receber as contribuições das latrinas, dos
mictórios, das pias de cozinha, dos tanques, dos banheiros, dos lavatórios e, em
geral, todas as águas de serventia doméstica.
§ Único. Em todos os apparelhos de descarga serão adoptados os dispositivos
necessários para impedir a passagem para as canalizações dos corpos que as possam
obstruir.
461
Com relação ao serviço de abastecimento de água da cidade, este acabou indo na
mesma direção dos serviços de limpeza e de canalização de redes de esgoto, ou seja, ele
acabou aos poucos sendo municipalizado. Aos poucos, no sentido que a primeira
municipalização ocorreu em 1904, quando foi realizada a compra da Companhia Hidráulica
Guaibense, cujos serviços mostravam-se insuficientes e de qualidade. O estopim para esta
compra foi gerado por reclamações dos moradores da Rua Hoffmann:
Em officio de 15 de Agosto recommendou-se á Intendência Municipal que intimasse
a companhia a prolongar seus encanamentos até a rua Hoffmann, cujos moradores
reclamavam a collocação de pennas d‟agua, bem assim a construir philtros de
accôrdo com o contracto feito.
De novo officiou-se á Intendencia em 16 de Dezembro para compellier a empresa a
executar essas obras, que afinal a mesma empresa declarou não poder fazer,
desistindo do privilegio que lhe fora concedido em relação ás aguas do Guahyba e
de outros rios e obrigando-se á montagem de philtros Pasteur na residência de
cada um de seus concessionários de pennas.
Acha-se ainda o assumpto pendente de solução.
462
Como podemos ver, a solução encontrada pelo poder público municipal foi a compra
da referida Companhia, que ocorreu da seguinte forma: compra do material avaliado em
460
COSTA, Telmo Cardoso. Histórico dos Sistemas de Água e Esgotos da Cidade de Porto Alegre 1779 a
1981. Porto Alegre: Oficinas Litográficas do DMAE, 1981. p.16.
461
Idem, p.18.
462
AHRS - RELATÓRIO dos Negócios das Obras Públicas, 1896. p.24.
172
408:042$500 e comprometimento da Intendência em “conservar todo o pessoal existente e
incorporá-lo ao serviço geral de abastecimento”.
463
a Companhia Hidráulica Porto Alegrense teve uma vida mais prolongada, pois
mesmo a Intendência querendo comprá-la não se chegava a um acordo quanto aos valores da
indenização. Em 1926, sob a administração de Otávio Rocha o primeiro passo seria dado, ou
seja, a compra do reservatório localizado na Praça da Matriz (na altura onde atualmente se
encontra a Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul) e do resto da rede urbana
da Companhia. Porém, foi somente em 1944 que o poder público municipal conseguiu
adquirir a adutora da referida Companhia, que se localizava no Arroio Sabão (divisa entre o
município de Porto Alegre com a cidade de Viamão).
464
Encerrava-se assim o longo percurso do saneamento das águas, dos ares e dos lugares
da cidade de Porto Alegre no século XIX. Uma história que começa para a cidade na primeira
metade do século XIX, mas que remete-se para além do tempo e do espaço que envolve esta
própria cidade. Esta é uma história, portanto, que não tem dia e não tem hora para começar,
nem para acabar, pois ela é um fenômeno que se desdobra ao longo de todo o tempo e de
todos os espaços. Uma história que integra as sociedades, os espaços e suas diferentes
concepções culturais. Neste sentido, procuramos analisar através deste trabalho a apropriação
do sentido dado aos elementos que foram e são atualmente considerados essenciais para o
saneamento dos lugares. Ganhou importância aqui as águas em suas diferentes formas e usos
e os ares com suas diferentes concepções e percepções. Por isso, ao falarmos nestes
elementos seja no presente ou no passado, estaremos também a falar um pouco de um
conhecimento que surgiu há mais de dois mil anos. Hipócrates, neste sentido, pode ser
considerado tanto o pai da medicina quanto o mentor do saneamento.
463
COSTA, 1981, op. cit., p.33.
464
FRANCO, op. cit., p.20.
173
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando começamos a trabalhar com este objeto de estudo não podíamos avaliar a
dimensão de sua importância para nosso entendimento de história, principalmente em relação
ao processo de saneamento em Porto Alegre. Na verdade, nosso objetivo central concentrava-
se de início em analisar e compreender como tinha se processado a história da limpeza e da
coleta de lixo na cidade de Porto Alegre no século XIX. E, após a leitura atenta sobre a
historiografia da cidade, sabíamos que este objeto de estudo não tinha sido ainda contemplado
pela mesma. Todavia, existia uma semelhança nesta historiografia, pois quase sempre estes
trabalhos apontavam para um horizonte em que se colocava o desenvolvimento dos serviços
de limpeza partindo-se de uma negativa simplista de seu próprio passado. Nesta visão, o
sistema de limpeza da cidade era retratado basicamente sobre um universo progressista, que
se iniciava de um “caos” identificado com o governo Imperial para adentrar as “luzes” de uma
República que ainda dava os seus primeiros passos. Assim, os poucos estudos existentes sobre
o tema simplesmente indicavam que os serviços de limpeza da cidade no século XIX, eram
tarefas de uma mão de obra escrava. Desta conclusão, o máximo que se tentava arriscar era
descrever os escravos na cotidianidade da cidade com seus cubos à cabeça. Na verdade, esta
imagem como vimos, não era de toda incorreta; ela era simplesmente lacunar em quase todos
os seus sentidos.
Logo de início, o que buscávamos era então responder a algumas perguntas simples,
como: o que foi o serviço de limpeza da cidade no século XIX? Como foi realizado este
serviço? Quem estava envolvido nestas tarefas? Quais teriam sido as características principais
deste serviço? Para tentarmos responder a todas estas perguntas, acabamos caindo em outro
problema, que possibilitou-nos por fim direcionar este assunto para a temática do saneamento,
ou seja: Afinal, qual era o sentido atribuído à limpeza da cidade pelos seus agentes históricos?
Ao analisarmos a documentação sobre o assunto, a limpeza se apresentava sob
diferentes aspectos, que não se confinavam somente aos serviços de rua ou a coleta de lixo. A
limpeza era referenciada como um elemento ligado à salubridade pública, e esta última por
sua vez, quase sempre indicada como um componente de prevenção às doenças,
principalmente as de caráter epidêmico. Assim, a limpeza ganhava uma dimensão mais
complexa tanto na relação de sua atuação, quanto na sua forma de entendimento. A limpeza
era sinônimo de saúde, o que a tornava muito maior do que a simples caracterização de
174
escravos fazendo este tipo de serviço. No fundo, chegamos à conclusão de que não era a
limpeza que estava em evidência, mas sim a própria concepção do saneamento público na
cidade no século XIX. Pensando nisso, buscamos compreender este saneamento, mediante um
horizonte que levasse em conta a própria historicidade deste objeto de estudo.
Como vimos durante o primeiro capítulo, a historicidade do objeto apontava para as
sociedades da Antiguidade, cujos indícios como observamos, remontam para uma história
bem mais antiga, que data aproximadamente quatro mil anos a.C. Certamente o que
buscávamos aqui era a ponta de um fio de “Ariane”, que pudesse nos conduzir de forma mais
precisa perante o labirinto de incertezas, para cercar de forma mais atualizada o nosso objeto
de estudo.
Cruzando as leituras das fontes primárias da cidade, com a bibliografia que traça
pontos do saneamento desde a Antiguidade, conseguimos então achar a ponta do que
consideramos o fio de “Ariane”. Hipócrates (mais especificamente sua obra denominada:
Ares, Águas e Lugares) mostrava-se ser a chave para a compreensão do universo que é o
saneamento das cidades até o final do século XIX. Entretanto, restava saber ainda como teria
se processado esta influência, mediante apontamentos da historicidade das próprias cidades,
principalmente as européias. Necessitávamos assim, entender este processo que acabaria no
nosso entendimento, por influenciar os próprios serviços de saneamento público na Porto
Alegre oitocentista.
Como podemos compreender através da historiografia, houve ao longo de
praticamente toda a história das cidades européias, a permanência e a influência de elementos
do saber hipocrático. Mesmo esta historiografia não fazendo uma ligação direta entre o
saneamento e este saber, tornou-se verificável nos discursos e nas práticas a presença destes
três elementos descritos por Hipócrates (ares, águas e lugares), como pontos fundamentais
para se compreender o universo do saneamento da cidade. Neste sentido, estes três elementos
eram pontos chaves de um objeto que possuía historicidade, que nos levava aos labirintos das
sujeiras da capital gaúcha.
A conclusão a que chegamos nesta primeira etapa da investigação, pois pretendemos ir
adiante com o tema no doutorado, foi que a presença do pensamento hipocrático se mostrava
como um elemento singular e ao mesmo tempo plural. Singular no sentido de se apresentar
como uma estrutura que permitiu visualizar o processo de atividade do saneamento nas
cidades. Neste sentido, as águas, os ares e os lugares eram pontos em comum deste objeto de
estudo. No entanto, estes elementos se apresentavam a todo o momento, como vimos, de uma
175
forma plural, no sentido de existirem especificidades de acordo com a época, o contexto e o
local onde eram entendidos e aplicados. Contribuía para esta pluralidade a forma como se
apresentava os pontos que eram comuns nas estruturas. Assim, cada cidade (local) possuía
uma característica precisa do saneamento conforme as suas condições sociais, políticas,
econômicas, religiosas e culturais.
Pesavam nesta situação de forma contundente as condições de saúde, onde os
momentos epidêmicos acabavam por alterar as situações cotidianas destas cidades que, em
muitos casos, inclusive chegavam a transformar as ões empreendidas sobre o saneamento.
Como vimos ao longo desta dissertação, estas alterações também poderiam mudar de
intensidade de acordo com as condições que se apresentavam a estrutura do pensamento
hipocrático.
Foi todo este processo histórico do saneamento que permitiu-nos visualizar o objeto de
estudo, como um componente que se desdobrava ao longo do tempo e do espaço, de acordo
com características precisas. Restava saber ainda como teria se processado esta história de
forma mais detalhada na cidade de Porto Alegre no século XIX. Para isso, buscávamos então
esclarecer algumas dúvidas, que se tornaram ao mesmo tempo problemas: O que era
saneamento público na cidade de Porto Alegre do século XIX? Qual o seu significado e seu
sentido para os agentes históricos deste período? E quais seriam suas características
específicas no horizonte da história do saneamento?
Para respondermos estas questões, formulamos então dois capítulos que procuraram
demonstrar a complexidade do objeto de estudo em questão. Assim, descortinamos para além
da simples caracterização de escravos levando cubos à cabeça, um diversificado e intrincado
jogo de agentes, os quais denominamos de “agentes do saneamento”. Foi possível também ver
que o saneamento público, para além da presença do saber hipocrático (através dos elementos
águas, ares e lugares) foi também um objeto que proporcionou profundas discórdias entre os
poderes públicos, visto a existência de diferentes percepções com relação a este próprio
objeto. Vimos se apresentar também, e de forma mais precisa, a presença do saneamento
dentre os horizontes da saúde e da doença, da economia, das relações políticas e da estrutura
de divisão social do trabalho.
Ao analisarmos a cidade de Porto Alegre neste período, no que tange a questão do
saneamento, percebemos também a ocorrência de um momento a que destacamos como sendo
de “passagem” entre uma “simples” concepção de limpeza sobre os espaços da cidade - a que
denominamos de “limpezista” - para uma fase higienista, cuja característica principal indicava
176
o início de uma interferência sobre o corpo coletivo que ocupava o próprio espaço. A higiene
como padrão de limpeza era antes de qualquer coisa, como podemos perceber, aquela que
adentrava aos espaços privados da vida cotidiana dos habitantes da cidade. Neste sentido,
procuramos mostrar que o termo higiene não se assemelhava à limpeza, pois apesar de toda
higiene possuir uma limpeza, nem toda a limpeza presumia uma interferência higiênica. Neste
caso, antes da higiene ser um elemento entendido como o limpar o invisível, ela era um
elemento que interferia sobre o visível, onde a interferência se dava sobre aqueles lugares
identificados geralmente como sendo de indivíduos ou grupos, considerados pertencentes às
chamadas “classes perigosas”.
Nesta teia social do vivido da Porto Alegre oitocentista, ganhava destaque no
saneamento, para além das ações práticas também as críticas, as reclamações, as denúncias e
as divergências de opinião. Assim, o saneamento da Porto Alegre do século XIX não era algo
imóvel, cuja inércia o poderia rotular simplesmente como ineficaz. Pensando neste sentido foi
que optamos por não conceitualizar o saneamento, antes de verificarmos a apresentação de
sua historicidade, pois tínhamos que ter certeza do que estávamos falando. E qualquer
tentativa de conceitualizá-lo de forma antecipada, poderia acarretar em algum risco de limitá-
lo em sua compreensão. Mesmo assim, não poderíamos deixar de conceitualizá-lo ao término
deste trabalho, visto a necessidade que temos de responder as freqüentes dúvidas que cercam
este objeto.
Por saneamento entendemos então: toda a ação voltada à saúde seja ela individual ou
coletiva no espaço, dentro dos limites de concepção que se tem no momento, no contexto e no
local. por saneamento público, entendemos toda a ação empregada pelos poderes
governamentais sobre o espaço social, que visem à saúde do meio coletivo. O saneamento
nestes dois sentidos é sempre sinônimo de prevenção contra as doenças e não de
medicalização (o que o difere das práticas de cura).
No caso do saneamento da Porto Alegre oitocentista, este é um fenômeno que engloba
três componentes, que se movem em constante interação. O primeiro é o saber/saberes
hipocrático baseado sobre os três elementos - as águas, os ares e os lugares - que permeiam
por todas as ações empreendidas voltadas para o saneamento. O segundo é o papel exercido
pelas epidemias, como componentes que em dados momentos históricos são apontados para
justificar os porquês e os comos destas ações. E o terceiro componente é o papel dos agentes
como executores destas diferentes ações. É a interação deste conjunto, que nos permitiu
visualizar o horizonte das práticas, dos significados, das percepções, bem como das ações
177
empreendidas por todo o sistema social da cidade. Assim, podemos definir o saneamento da
Porto Alegre oitocentista, como sendo o saneamento de Hipócrates (das águas, dos ares e dos
lugares), de prevenção às doenças de caráter epidêmico e das ações práticas exercidas em
diferentes campos de atuação pelos seus também diferentes agentes. Neste sentido, Saberes
históricos e práticas cotidianas, formam a base para o entendimento dos próprios
desdobramentos do saneamento público na cidade de Porto Alegre no século XIX. Foi
analisando esta inter-relação, que conseguimos desatar alguns dos “nós” do fio de Ariane, que
se formaram sobre saneamento público da cidade ao longo dos anos. Entretanto, ainda nos
falta sair desta caverna, visto ainda existir corda neste novelo a ser desenrolada.
178
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Servidores - 1879-1890), 14 (Minutas de Ofícios a Presidência 1883-1886), 15 (1883-
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Correspondências Expedidas pela Câmara Municipal Correspondência Geral
Livros: nº 1 (1893-1896), nº 2 (1896-1898), nº 3 (1899-1902),
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191
ANEXOS
192
ANEXO A Latrina pública romana
Fonte: MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p.76.
193
ANEXO B Mapa da área física de Porto Alegre em 1840, com destaque para a localização
das fontes de água potável
Fonte: AHPAMV - Mapas e Plantas do Município. Mapoteca V-13. Documentos Avulsos.
194
ANEXO C População de Porto Alegre no século XIX
Ano
População (número de habitantes)
1803
3.927
1807
6.035
1820
12.000 (ou 10.000)
1833
14.200 (ou 12.200)
1846
16.300 (ou 14.057)
1858
18.465
1872
42.478 (ou 34.183)
1875
43.998
1888
42.115
1890
52.186
1900
73.672
Fonte: WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio
Social em Porto Alegre no século XIX. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1992. p.54.
195
ANEXO D Mapa do número de pessoas que foram acometidas pela epidemia do cólera no
ano de 1867 na cidade de Porta Alegre
Dia
Mês
Março
Abril
Maio
1
3
2
4
3
3
4
3
5
3
6
3
7
8
3
9
3
3
10
3
1
1
11
11
12
5
2
1
13
14
1
1
14
19
1
15
18
1
16
13
3
17
28
2
18
14
1
19
10
2
1
20
18
21
13
22
5
23
9
1
24
9
25
12
1
26
3
27
3
1
1
28
3
29
2
30
2
31
3
Total
220
42
5
Total Geral
267
Fonte: Mappa. RELATORIO da Inspetoria Geral da Saúde Publica da Província de S. Pedro
do Rio Grande do Sul apresentado ao Ilmo. E Exmo. Sr. Dr. Francisco Ignacio Marcondes
Homem de Mello, digníssimo presidente da mesma Província, pelo Dr. Manoel Pereira da
Silva Ubatuba, Inspetor Geral da Saúde Pública. Porto Alegre: Typographia do Jornal
“Deutsche Zeitung”, 1867. S/n. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/900/000160.html>. Acessado em: 11/06/2010.
196
ANEXO E Edital para contrato do serviço de limpeza pública do ano de 1867
EDITAL
Condições com que deve ser contratado o serviço da limpeza publica d’esta cidade, pela
camara municipal, conforme a autorização á mesma concedida pelo artigo 15 da lei
provincial n.655 de 9 de Dezembro de 1867.
1ª. A limpeza publica desta capital para o caso de que se trata em conformidade com a
licitada, comprehende não só o das materias fecaes como a das aguas servidas, lixos e
quaisquer outras imundícias tanto de casas particulares, como de repartições e
estabelecimentos públicos.
2ª. A camara municipal aceita propostas para contratar a limpeza publica desta capital por
meio de encanamento geral ou por meio de condição em carroças de todas as materias que
fazem objecto da limpeza publica.
3ª. As propostas para o contracto da limpeza publica por meio de encanamento geral, devem
ser organizadas debaixo das seguintes bases:
I. Que o encanamento geral deve ser subterrâneo, e feito pelo mesmo systema de
encanamento da corte do Rio de Janeiro para idêntico fim; compreendendo toda a cidade e os
respectivos limites urbanos, sem excepção de ruas, becos e praças.
II. Que os canos gerais devem fazer o despejo em [...] nos lugares que forem mais
convenientes, designados pela camara municipal, onde os materiais fecais são imediatamente
decompostos pelo mesmo processo usado no Rio de Janeiro, conservando-se sempre todo
encanamento em perfeito estado de desobstrução, desembaraço e limpeza.
III. Que o encanamento deve ter as necessárias ramificações para receber as aguas fluviaes de
telhados de todas as casas por cujas frentes possuem encanamento, e as dos quintaes ou pateos
que tiverem esgoto para a rua.
IV. Que todas as obras para este encanamento e suas dependências serão feitas à custa do
empresário ou companhia que contractar a limpeza publica, com direito a perceber para
indenização d‟esses despezas e interesses que deve tirar uma taxa que não excedera da quantia
de 6$000 reis mensaes de cada casa habitada, repartição ou estabelecimento publico ou
particular, existentes em toda a área comprehendida pelo encanamento, devendo ser essa taxa
regulada em proporção de numero de pessoas que effectivamente occuparem a casa ou
estabelecimento, e pago pelo morador ou chefe de família, repartição ou estabelecimento,
sendo exceptuadas desse pagamento somente as pessoas de reconhecida pobreza, à juízo do
empresário ou gerente da companhia.
V. O empresario ou companhia em sua proposta deve apresentar a planta de toda a obra,
levantada para encanamento geral e materiais contendo todas as condições com que se propõe
a fazer a mesma obra, o tempo em que deve ser começada e concluida, o numero de annos
que deve gozar de privilegio da percepção da taxa que for estipulada para as casas habitadas,
repartições e estabelecimentos, não excedendo do prazo de quarenta annos, maximo
estabelecido pela lei; e
VI. Finalmente que findo o prazo de privilegio, ficão pertencendo a camara municipal todas
as obras de encanamento obrigado o empresario ou companhia a deixal-as em bom estado.
D‟este contracto, se for levado a effeito, se estipularão multas para a falta de cumprimento de
suas condições, conforme o accordo das partes contratantes, e o modo por que a obra e o
cumprimento de todas as condições devem ser fiscalizadas por parte da camara.
4ª. As propostas para o contracto da limpeza publica por meio da conducção em carroças,
serão organizadas sob as seguintes fases:
I. A conducção das materias fecais e aguas servidas à excepção dos lixos e outras quaesquer
197
especias de immundicias, quer das casas particulares, quer das repartições e estabelecimentos
públicos, será feita em vasilhas hermeticamente fechadas por meio de carroças também
fechadas, que diariamente percorrerão a cidade para receberem das casas, repartições e
estabelecimentos as vasilhas cheias e deixarem outras limpas, devendo previamente o
empresario contractar com os respectivos moradores e chefes o fazer-lhes esse serviço da
limpeza;
II. Estas vasilhas serão conduzidas ao logar do litoral que fique entre a ponta das pedras e o
canal da Passagem, e ali embarcadas, e d‟ali conduzidas para ser feito o despejo, limpeza,
devendo ser o lixo e outras especias de immundicias lançado em terra de uma das ilhas
fronteiras a esta cidade (enterradas aquellas immundicias que forem sujeitas a putrefacção)
convém outro logar que a camara designe de accordo com o empresário, e as materias fecais e
aguas servidas dentro do rio a uma légua de distancia do logar da partida, na direcção das
Pedras Brancas;
III. O empresario não tem direito a exigir a inscripção geral de todas as casas e
estabelecimentos da cidade, para contribuírem com qualquer quantia para o serviço da
limpeza publica, e somente contratar esse serviço com aquelle que voluntaria e
espontaneamente se quiserem a isto prestar, para se eximirem da obrigação que a todos cabe
de fazerem a limpeza de suas casas de conformidade com as posturas municipais, e de
accordo com a clausula segunda da 4ª condição aqui estabelecidas;
IV. O empresario gozara neste contrato do provilegio por tempo que não exceda a trinta annos
devendo as pessoas que o pretenderem estipular em suas propostas o tempo desse privilegio e
todas as condições para levar a effeito o serviço da limpeza publica, conciliando seus
interesses com a commodidade publica para serem preferidas aquellas que mais vantagens
offerecer.
V. Finalmente, neste contracto se estipularão multas para a falta de cumprimento de suas
condições, e o modo por que deve ser fiscalizado a limpeza publica por parte da camara.
Porto Alegre, 28 de abril de 1868
João Rodrigues Fagundes
José Luiz da Costa Junior
Francisco José Barreto
João Pereira Machado
Fonte: AHPAMV - Jornal do Commercio, Porto Alegre, 5 mai. 1868, p.3.
198
ANEXO F O roto e o remendado
Fonte: IHGRS - O Guarany, Porto Alegre, 6 dez. 1874, Capa.
199
ANEXO G Planta de projeto para construção de forno de incineração
Fonte: AHPAMV - Mapas e Plantas do Município. Mapoteca V-13. Documentos Avulsos.
200
Fonte: AHPAMV - Mapas e Plantas do Município. Mapoteca V-13. Documentos Avulsos.
201
ANEXO H Despejos pela janela
Fonte: AHPAMV Gazetinha, Porto Alegre, 19 jan. 1896. p.4.
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