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AURICLÉA OLIVEIRA DAS NEVES
Imagens de Maria, a Mãe do Redentor:
pintura, teatro, literatura
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor em Letras, em Literatura Comparada.
ORIENTADORA: Prof
a
. Dr
a
. Lygia Rodrigues Vianna Peres
Niterói-RJ
2009
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N499 Neves, Auricléa Oliveira das.
Imagens de Maria, a Mãe do Redentor, na pintura, no
teatro e na literatura / Auricléa Oliveira das Neves. 2009.
326 f.
Orientador: Lygia Rodrigues Vianna Peres.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2009.
Bibliografia: f.276-286.
1. Maria, Mãe de Jesus. 2. Imagem. 3. Barroco. 4.
Literatura brasileira - Amazônia - História e crítica. I. Peres,
Lygia Rodrigues Vianna. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 809
1. 371.010981
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AURICLÉA OLIVEIRA DAS NEVES
Imagens de Maria, a Mãe do Redentor: pintura, teatro, literatura
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor em Letras, em Literatura Comparada.
Aprovada em 11 de dezembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Lygia R. Vianna Peres Orientadora/Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
.
Ana Beatriz Rodrigues Gonçalves - Universidade Federal de Juiz de Fora
___________________________________________________________________
Prof. Dr.
Marcos Frederico Kruger Aleixo - Universidade Federal do Amazonas
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
.
Ana Isabel Borges - Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
.
Dalva Calvão - Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
.
Silvina Liliana Carrizo - Universidade Federal de Juiz de Fora
___________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Magnólia Brasil B. do Nascimento - Universidade Federal Fluminense
Niterói-RJ
2009
Nossa Senhora Aparecida,
Padroeira do Brasil
Nossa Senhora de Guadalupe,
Padroeira da América Latina
“Maria tem representado um papel muito importante na evangelização
das mulheres latino-americanas e tem feito delas evangelizadoras
eficazes, como esposas, mães, religiosas, trabalhadoras, camponesas
e profissionais. Continuamente lhes inspira a fortaleza para dar a vida,
debruçar-se sobre a dor, resistir e dar esperança quando a vida está
ameaçada, encontrar alternativas quando os caminhos se fecham,
como companheiras ativa, livre e animadora da sociedade”.
(IV CELAM, Santo Domingo, n
o
104)
A Maria - a “bendita entre as mulheres” - e a todas as
mulheres, dedico este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Um trabalho, desta natureza, não se chega ao fim sem a ajuda de muitas
pessoas, por isso quero externar a minha gratidão:
A Deus, como princípio e fim de todas as criaturas, por ter-me concedido a
graça de conseguir concluir esta etapa de minha vida profissional e a Maria
Auxiliadora, a mãe espiritual, sempre presente nas minhas orações, ajudando-me a
superar os obstáculos encontrados ao longo de quatro anos.
À FAPEAM, em especial ao Programa RH-POSGRAD, pelo benefício
financeiro, através da Bolsa-Pesquisa, que muito me ajudou a realizar investigações
em bibliotecas especializadas, a comprar livros de alto custo e a participar de
importantes eventos no Brasil e no exterior.
À minha família de origem, meu Pai, Hélio, minha mãe, Benedita, meus
irmãos Hélder, Heider, Hilder, Heidemar e minhas irmãs Alicicléa, Auxiliadora,
Auriléa, Auricélia e Aurimar (in memoriam) que são alicerce e modelo do meu
caráter. À família que construí - ideal e objetivo de minha vida - meu marido, César
Augusto, minhas filhas Aline Cristina, Thalita Renata, Agres Roberta, Tássia Maria e
minhas netas Letícia Victoria e Júlia, sem palavras e muita emoção.
Aos meus amigos, que partilharam comigo as alegrias e as angústias da
elaboração desta tese, pelas palavras de ânimo e pelas orações, são tantos,
impossível citá-los.
À minha orientadora, Profa. Dra. Lygia Peres que, pela sua capacidade
intelectual, soube conduzir este trabalho com competência e, por seu espírito
generoso, soube tornar mais leve as dificuldades; a você, as palavras são
insuficientes para agradecer.
Aos professores da Banca que aceitaram participar comigo desde momento
singular e importante: Prof
a
.Dr
a
. Ana Isabel Borges (UFF), Prof
a
.Dr
a
. Dalva Calvão
(UFF), Prof
a
.Dr
a
. Magnólia do Nascimento (UFF) e Prof
a
.Dr
a
. Silvina Liliana Carrizo
(UFJF). Em especial, a Prof
a
. Dr
a
.
Ana Beatriz Gonçalves (UFJF) e Prof.Dr. Marcos
Frederico Aleixo (UFAM), que deixaram seus estados - Minas Gerais e Amazonas -
e aceitaram o convite, saudações acadêmicas.
RESUMO
Com o título de Imagens de Maria, a Mãe do Redentor: pintura,
teatro, literatura, esta tese analisa obras com temática mariana dos
autores: Pedro Calderón de la Barca, teatro; José de Anchieta, Gregório
de Matos e Max Carphentier, literatura; Francisco de Zurbarán, Estebán
Murillo, Diego Velázquez, Manuel Ataíde, pintura, que dialogam entre si,
buscando encontrar convergências e divergências nas representações
de Maria, em uma perspectiva histórica, religiosa, artística e literária.
Palavras-chave: Imagens de Maria Teatro barroco Literatura
brasileira
RESUMEN
Con el título de Imágenes de María, Madre del Redentor: pintura,
teatro, literatura, esta tesis analiza obras con temática mariana de los
autores: Pedro Calderón de la Barca, teatro, José de Anchieta, Gregório
de Matos y Max Carphentier, literatura; Francisco de Zurbarán, Esteban
Murillo, Diego Velázquez, pintura que dialogan entre ellos, tratando de
encontrar similitudes y diferencias en las representaciones de María en
una perspectiva historica, religiosa, artistica y literaria.
Palabras-claves: Imágenes de María Teatro barroco - Literatura
brasileña
ABSTRACT
With the heading of Images of Mary, Mother of the Redeemer, in
painting, in theater, in literature, this thesis examines some works with
marian thematics of these authors: Pedro Calderón de la Barca, theater;
José de Anchieta, Gregório de Matos and Max Carphentier, literature;
Francisco de Zurbarán, Esteban Murillo, Diego Velázquez and Manuel
Ataíde, painting, that talk to each other, trying to find similarities and
differences in the representations of Mary, in a historical, religious,
artistic and literary perspective.
Keywords: Images of Mary - Baroque theater- Brazilian literature
RÉSUMÉ
En ayant comme titre Images de Marie, Mère du Rédempteur :
peinture, théâtre, littérature, cette thèse examine œuvres sur la
thèmatique Marianne des auteurs: Pedro Calderón de la Barca, théâtre,
José de Anchieta, Gregório de Matos et Max Carphentier, littérature;
Francisco de Zurbaran, Esteban Murillo, Diego Velázquez et Manuel
Ataíde, peinture, qui dialoguent, en ayant pour objectif des similitudes et
des différences dans les représentations de Marie, dans une perspective
historique, religieuse, artistique et littéraire.
Mots-clés: Images de Marie Théâtre baroque Littérature brésilienne
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1. A IMAGEM NA ESCRITURA SAGRADA 22
1.1. Adão e Eva, um clássico do Antigo Testamento 26
1.2. A cristalização de imagens no Novo Testamento 29
1. 3. A representação de Maria no barroco hispano-brasileiro 35
2. MARIA, UM TEMA INESGOTÁVEL 49
2.1. Maria nos documentos eclesiais 50
2.2. A literatura com inspiração mariana 55
2.2.1. Los Milagros de Nuestra Señora e as
Cantigas de Santa Maria no louvor medieval 59
2.2.2. Divina Comédia: intercessão e glorificação da Virgem 64
2.2.3. O Poema da Virgem e a Lira Sacra na América brasileira 69
3. MARIA NA IGREJA CATÓLICA, NA IGREJA REFORMADA E NA
ICONOGRAFIA, A PARTIR DOS DOGMAS MARIANOS 72
3.1. Maria, mãe de Deus 78
3.2. A crença na virgindade perpétua de Maria 86
3.3. O dogma da Imaculada Conceição 93
3. 4. A Assunção de Nossa Senhora 100
4. MARIA NO TEATRO DO “SÉCULO DE OURO” 111
4.1. Calderón de La Barca: a catequese no espaço do teatro 116
4.2. A prefiguração de Maria em La primer flor del Carmelo 127
4.3. Fé e amor em A Maria el corazón 138
4.4. La Hidalga del Valle:a defesa de Maria concebida sem
pecado 155
5. O LOUVOR A MARIA NA LITERATURA BRASILEIRA 170
5.1. Anchieta e a pedagogia do amor 173
5.1.1. Os autos catequéticos 175
5.1.2. A lírica a serviço do sagrado 183
5.2. A poesia mariana de Gregório de Matos Guerra 205
5.2.1. Poesia para a Mãe de Deus 210
5.2.2. Nossa Senhora do Rosário 216
5.2.3. Nossa Senhora das Neves 223
5.2.4. Salve Rainha, Mãe da Misericórdia 228
5.3. A Amazônia é de Maria 236
5.3.1. De Belém a Manaus, Maria sempre louvada 241
5.3.2. A eco-religiosidade na poética de Max Carphentier 244
5.3.2.1. Oração pela vida amazônica 251
5.3.2.2. Fruto das aparições 256
5.3.2.3. A selva em salmos 264
CONCLUSÃO 272
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 276
APÊNDICE 287
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1. Adão e Eva, de Tiziano 27
2. Pedro arrependido, de Goya 30
3. Adoração dos Magos, de Velásquez 33
4. Virgem com religiosos, de Zurbarán 41
5. N.Sra.do Montserrat e Sant’Ana com a Virgem, de A. da Piedade 44
6. Glorificação da Virgem, de Manuel Ataíde 46
7. Logotipo do V CELAM 53
8. Representação do poeta Afonso X, com sua platéia e seus
músicos, em iluminura 62
9. Theotókos como Hodigítria e como Eleúsa 83
10. Anunciação, de Francisco de Zurbarán 91
11. Imaculada Conceição, de Estebán Murillo 98
12. Coroação da Virgem, de Velázquez 108
13. Representação de N.Sra. de Loreto 126
14. Poema da Virgem, de Benedito Calixto 187
15. Imagem de Madre de Deus BA 210
16. Nossa Senhora das Neves, a Noivinha, de João Pessoa (PB) 223
17. Nossa Senhora de Belém, Igreja da Sé (PA) 236
18. Imagens de N.Sra.da Conceição, Catedral de Manaus (AM) 241
19. Cartaz da Campanha da Fraternidade/2007 248
20. Nossa Senhora de Manaus, de Moacir de Andrade 253
APRESENTAÇÃO
Com o tulo de Imagens de Maria, a Mãe do Redentor: pintura, teatro,
literatura, apresentamos o resultado final da pesquisa que investigou as diferentes
representações da Virgem de Nazaré, na tradição hispano-brasileira, defendendo a
tese: “o culto a Maria remonta o início da era cristã, sofre adaptações no tempo e no
espaço em diferentes expressões artísticas”.
Na abordagem do tema, nos propusemos a discorrer sobre o percurso
histórico do louvor a Nossa Senhora, a partir de algumas obras representativas; a
analisar o culto mariano, preferencialmente, durante a vigência do Barroco; a
confrontar, entre si, a poesia, a iconografia e o teatro e a demonstrar como essas
artes assumem especificidades ao representar a figura de Maria nas obras
estudadas, que compõem os cinco capítulos do trabalho.
Com vistas a sustentar a proposição, registramos algumas indagações que
nos moveram a empreender a pesquisa: Quem é Maria e por que estudá-la? Qual
foi o seu papel na história do mundo ocidental? Como os artistas se posicionam em
relação a sua representação literária e iconográfica? Que fascínio exerce essa figura
emblemática para que tantas pessoas se dediquem a estudá-la e a homenageá-la?
Por outro lado, buscamos dirimir algumas dúvidas que nos inquietavam: Se
o “pai espiritual da Reforma” Lutero dedicava atenção especial à Maria, por que
as Igrejas Reformadas a olvidaram em suas práticas? Se a expansão do
Cristianismo na América, em especial no Brasil, foi realizada por homens, como se
justifica ter o maior número de igrejas dedicado a Virgem Maria? Quem elegeu e que
15
motivos tiveram os primeiros habitantes para a escolha de Nossa Senhora, como
padroeira da maioria dos países da América Latina e do Caribe?
Além dos aspectos apontados, algumas hipóteses nortearam também a
investigação: alguns perfis femininos do Antigo Testamento são prefigurações de
Maria; na Bíblia, vários símbolos e cognomes que representam a Maria, enaltecem
sua figura; a partir da Reforma, Maria é ponto de divergência entre católicos e
protestantes; no Barroco, se intensifica o louvor a Maria; o culto a Maria, trazido
pelos colonizadores, adquire expressões próprias nas artes brasileiras.
Assim, encontramos na literatura comparada um dos caminhos para
obtermos respostas às indagações, tendo como suporte a história da cultura. Mas,
algumas considerações se fazem necessárias, preliminarmente.
No limiar do século XXI, cada vez mais os estudos culturais se direcionam a
multiplicidades de textos, os vários elementos que se entrecruzam na cultura da
modernidade afetam a palavra escrita que passa a conviver com um manancial de
formas expressivas de comunicação. Partindo desses pressupostos, a Academia
tem proposto a Literatura Comparada nos cursos de Doutoramento, como forma de
melhor articular o pensamento da contemporaneidade. Neste sentido, se ampliam
estudos literários, propiciando a investigação comparativa com a música, a pintura, o
cinema, a história, a filosofia, a religião, a psicologia, a sociologia, a antropologia,
dentre outros. Desta forma, não um número maior de pesquisas se realiza como
também abre possibilidades para que vertentes variadas de investigação se
efetivem, dada à natureza multidisciplinar do curso.
Dentro deste contexto, nossa pretensão prioritária é a interlocução entre
obras de teatro, textos literários, pintura, literatura bíblica e religiosa, ancorados na
linha de pesquisa que esta tese se insere: Literatura, outras artes e indústria cultural.
Sustentamos, ainda, que optamos por abordagem metodológica interpretativa, de
âmbito histórico, religioso, artístico e literário, conscientes de que essa atividade
intelectual não é algo recente e “as dificuldades e discussão sobre a caracterização
dessa atividade têm uma longa história no pensamento ocidental, derivada,
sobretudo da tarefa importantíssima de instituir o significado da palavra de Deus. A
fase moderna dessa história remonta essencialmente à percepção mais aguda do
problema do significado textual introduzido pela hermenêutica bíblica [...]” (COLLINI:
16
2005, p.4), contudo, as ferramentas disponíveis na academia são suficientes e
adequadas para a correta exegese do que nos dispomos a realizar.
Ressaltamos que não temos por objetivo elaborar uma tese de cunho
teológico, nem tão pouco de feição artística, mas buscamos realizar uma reflexão
teórica acerca da figura de Maria, em cujos fundamentos estão a Teologia Bíblica, a
Eclesial e a Crítica de Artes. Desta maneira, por se tratar de um tema central as
imagens de Maria visto sob óticas diversas e a necessidade de tornar mais
didática a análise dos assuntos, optamos por demonstrar, nesta apresentação, a
fundamentação teórica específica para cada aspecto temático, seguindo alguns
critérios:
Sob a ótica teológica, usamos como pontos de sustentação a Bíblia, por
reconhecermos, que é necessário para compreensão do corpus, principalmente o
literário, delimitado nesta tese e os documentos da Igreja, com sua base doutrinal,
por entendermos que representam o pensamento oficial, acerca de determinados
temas. Assim, para a fundamentação teórica sobre Maria, dentro da perspectiva
religiosa, usamos como textos básicos A Bíblia de Jerusalém, da Editora Paulus,
Dicionário de Mariologia, dirigido por Stefano De Fiores e Salvatore Meo; A
católica: documentos do Magistério da Igreja: das origens aos nossos dias,
organização, introdução e notas de Justus Collanttes; Catecismo da Igreja Católica,
Edição Típica Vaticana; Documentos do Conselho Episcopal Latino-americano -
CELAM; o Curso de Mariologia, da Escola “Mater Ecclesiae”, elaborado por Pe.
Estevão Tavares Bettencourt O.S.B, além dos Evangélicos Apócrifos de teor
mariano e obras de escritores que têm como temática a Virgem Maria.
Com relação aos aspectos gerais do Barroco e, quanto à pintura, são
basilares as obras: Renascença e Barroco, de Heinrich Wolfflin; Estudos sobre o
Barroco, de Helmut Hatzfeld; Introduccion al Barroco e Manierismo y Barroco, de
Emilio Orozco Dias; O barroco mineiro, de Lourival Gomes Machado; Tropicalidade
do Barroco, de Ricardo Averini; A arte sacra colonial Barroco memória viva, de
Perciaval Tirapeli (organizador); O lúdico e as projeções do mundo barroco, de
Affonso Ávila; A pintura de perspectiva em Minas colonial, de Myriam Andrade
Ribeiro; Ataíde, de Lélia Coelho Frota; A história da Arte, de E.H.Gombrich; História
social da arte e da literatura, de Arnold Hauser; Iconologia religiosa barroca na
17
Europa Central, de Germain Bazin; Iconografia del arte cristiano, de Louis Réau;
Iconografia cristiana, de Juan Carmona Muela; A arte de la pintura, de Francisco
Pacheco; Tratado de la Pintura, de Leonardo da Vinci; Idea e Significado nas artes
visuais, de Erwin Panofky; Contrareforma e barroco lecturas iconográficas e
iconológicas, de Santiago Sebastian; Murillo, de Alicia Câmara; Zurbarán, de
Santiago Alcolea.
Para a análise do corpus referente ao teatro, à pintura e à literatura, temos a
abordagem de teóricos especializados, sejam eles religiosos, sejam eles laicos, por
serem pessoas abalizadas para tratarem as especificidades do que fora delimitado
na tese. Desta maneira, sobre o teatro do Século de Ouro”, da dramaturgia
espanhola, são textos norteadores as edições críticas dos autos sacramentais La
primer flor del Carmelo e A María el Corazon, além do auto exclusivamente mariano
La Hidalga del Valle, todos de Pedro Calderón de la Barca, ancorados com os
fundamentos das obras: História de la literatura española e hispanoamericana, de
Diez-Echarbi e Roca Franquesa História de la literatura española e
hispanoamericana, Estructuras dramáticas y alegóricas en los autos de Calderón, de
Ignácio Arellano, Estúdios sobre Calderón, vol I e II, vários autores, Formas da
literatura dramática, de Ronald Peacock; La revolución teatral del Barroco, de Juan
Maria Marín.
Os aspectos direcionados para a literatura brasileira estão fundamentados,
teoricamente, com estudos críticos acerca de cada autor, assim temos: José de
Anchieta: O poema de Anchieta sobre a Virgem Maria, edição comemorativa, com a
analise crítica de seu tradutor Pe. Armando Cardoso; Anchieta ou as flechas opostas
do sagrado, de Alfredo Bosi; A poesia de José de Anchieta, de Edith Pimentel Pinto,
Literatura Brasileira, de José Aderaldo Castello. Gregório de Matos: As artes de
enganar um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos, de
Adriano Espínola; Gregório de Matos, de Segismundo Spina; Gregório de Matos:
poesia e controvérsia, de Antônio Dimas.
Como a fortuna crítica de Max Carphentier é, ainda, incipiente, fizemos um
levantamento do que havia sido divulgado na imprensa e procuramos apresentar o
pensamento de alguns intelectuais sobre a obra do autor, cremos, contudo, que esta
tese contribuirá para a formação da fortuna crítica sobre a obra do poeta.
18
Enfatizamos que, embora tenhamos apontado teóricos específicos para
cada autor, todas as análises realizadas, foram ancoradas nos estudos de Nilza
Megale sobre As Invocações da Virgem Maria no Brasil, o Dicionário de Figuras e
Símbolos Bíblicos, de Manfred Luker, além da Bíblia e documentos da Igreja.
Acerca do tema, é importante apresentar alguns dados a partir da etimologia
do vocábulo Maria a ser exaustivamente reiterado nesta tese. O nome, Maria, foi
imposto a Virgem de Nazaré, em referência a Myriam, Maryam, Maria, irmã de
Moisés, que conduziu as mulheres de Israel, no deserto, louvando a Deus, após o
milagre do Mar Vermelho e o Salmo da Vitória, entoado por Moisés. Maria, à frente,
repetia o refrão do cântico de Moisés: “Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomou na
mão um tamborim e todas as mulheres a seguiam com tamborins, formando coros
de dança. E Maria lhes entoava: „Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu/ ele jogou
ao mar cavalo e cavaleiro‟!” (Ex 15, 20-21) Contudo, outras interpretações, que
foram difundidas, a partir de estudos etimológicos, algumas delas se cristalizaram
em textos literários: Maria/mar, Domina Maris, Stella Maris; Maria/myrrha, perfume
do Oriente.
Outros grupos, na sua maioria poetas, usaram o alfabeto para encontrar, na
composição do nome, o significado, como o fez Calderón de la Barca,
posteriormente, na réplica de uma das suas personagens, no auto El primer refugio
del hombre: M, Madre de los Pobres;/ A, Amparo; R, Remedio;/ I, Intercesora, y
outra/ A, Abogada, conociendo/ que la Madre de Dios y Madre/ de Pecadores a um
tiempo,/ Abogada, Intercesora/ Remedio y Amparo es nuestro. (Calderón de la
Barca: 1952, p.975.) Além da etimologia do nome, é importante firmar os títulos mais
difundidos, sob os quais invocamos a Virgem de Nazaré: Maria, Mãe de Deus,
Virgem Santa/Santíssima Virgem, Nossa Senhora.
Mãe de Deus, em espanhol, Madre de Dios, invocação mais antiga, a partir
do século IV; Theotókos, na Igreja Oriental. Virgem Santa/ Santíssima Virgem
referenda os dois atributos de Maria, Santa e Virgem que aparece nos documentos
eclesiais mais antigos; La Santíssima Virgen, em espanhol e Sanctissima Virgo, em
latim. Durante a Idade Média, incorporando o espírito da vassalagem amorosa,
Maria foi cunhada como Nossa Senhora, em espanhol Nuestra Señora. A esta
invocação se agregaram os títulos de Auxiliadora, do Montserrat, do Rosário, do
19
Perpétuo Socorro, dentre tantos. Os italianos, contudo, particularizaram a invocação
- Nossa Senhora para Maddona Mia.
Em relação à escolha do título - Imagens de Maria, a mãe do Redentor:
pintura, teatro, literatura há, como motivação, duas referências. A primeira faz
homenagem à encíclica Redemptoris Mater, de João Paulo II, texto eclesial de maior
destaque sobre Maria, no século XX, visto que seu pontificado (19782005) foi
dedicado a ela, comprovado pelo lema “Totvs Tvvs”. A segunda tem causa subjetiva
e se refere à concepção pessoal de que nós, brasileiros, não cultuamos o Cristo,
sofredor, exangue, crucificado, o Cristo da Paixão, nem tão pouco, o Cristo vitorioso,
no esplendor de sua glória, o Cristo da Ressurreição e da Ascensão, mas temos
maior afinidade com o Cristo sereno, acolhedor, o Cristo da Redenção, que tem
como monumento, o Cristo Redentor, ícone do Rio de Janeiro e do Brasil, eleito em
julho de 2007, como uma das sete maravilhas do mundo moderno. Por tudo isto, nós
escolhemos o atributo de Maria, a mãe do Redentor, para compor o título da tese.
Apresentadas as devidas considerações, passamos ao resumo de cada
capítulo:
O capítulo 1 - “A imagem na Escritura Bíblica” - demonstrará que a
literatura bíblica é rica em imagens, a partir do Gênesis, conforme descrição no
primeiro versículo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra, porém,
estava vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície
das águas. Deus disse: „Haja luz‟, e houve luz”. (Gn 1,1-3) Neste capítulo,
trabalharemos, basicamente, com a imagem física, realizada através da pintura.
Essas imagens, normalmente seguem dois caminhos: no primeiro, o artista
interpreta o texto bíblico e a imagem corresponde ao descrito. No segundo, o artista
cria a imagem a partir de um tema, que está presente no texto bíblico. Inicialmente,
serão analisadas três pinturas, para comprovar as duas formas, acima
apresentadas, e demonstrar como os artistas cristalizam algumas imagens, mesmo
sem relação o texto religioso.
Discutiremos, neste capítulo, ainda, “A representação de Maria no Barroco
hispano-brasileiro”, que terá maior atenção, por corresponder o tema central do
trabalho. As imagens de Maria como Virgem Tutelar, de Francisco de Zurbarán, do
20
Barroco espanhol e a Virgem da Glorificação, de Manuel Ataíde, do Barroco
brasileiro, serão confrontadas.
O capítulo 2 “Maria, um tema inesgotável”- irá “discorrer sobre o percurso
histórico do louvor a Nossa Senhora, a partir de algumas obras representativas”, um
dos objetivos propostos. Para tanto, apresentaremos um brevíssimo panorama da
presença de Maria nos documentos eclesiais a partir da segunda metade do século
XX. São eles: Lumen Gentium, capítulo VIII, do Concílio Vaticano II; Marialis Cultus,
de Paulo VI; Redemptoris Mater, de João Paulo II, Documento de Aparecida, do V
CELAM. Entre o Lumen Gentium (1964) e o Documento de Aparecida (2007),
ocorreram três conferências episcopais na América Latina - Medellín
(Colômbia),1968; Puebla (México),1979; Santo Domingo (República Dominicana),
1992, à luz dessas conferências, também ,analisaremos a figura de Maria.
Em relação à literatura, trataremos sinteticamente de algumas obras
importantes - o hino Akátistos, da igreja oriental, Los Milagros de Nuestra Señora, de
Gonzalo de Berceo, as Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, a Divina Comédia,
de Dante Alighieri, o Poema da Virgem, de José de Anchieta e a Lira Sacra, de
Manuel Botelho de Oliveira como forma de demonstrar que o louvor a Maria
ultrapassa tempo e espaço, comungando com pensamento eclesial de que a Igreja
deve manter o diálogo com as artes, com forma de celebração ao sagrado.
O capítulo 3 “Maria na Igreja Católica e na Igreja Reformada, a partir dos
dogmas marianos” explanará sobre a posição das igrejas, em questão, com base
em: Documentos de Católica; O louvor de Maria, de Martinho Lutero e o
Documento de Seattle de 2000, Maria: graça e esperança em Cristo, observando os
dogmas marianos, numa perspectiva histórica e artística. Esses “quatro „privilégios‟
de Maria” (Boff: 2004, p.19) serão analisados e representados iconograficamente:
“Mãe de Deus”, ícones da Hodigítria e Eleúsa; “Mãe virginal”, quadro da Anunciação,
de Zurbarán; “Imaculada Conceição”; pintura da Virgen de los Venerables, de Murillo
e a “Assunção de Maria”, com o quadro a Coroação da Virgem, de Velázquez.
O capítulo 4 “Maria no teatro do „Século de Ouro‟ versará sobre gênero
dramático com a análise de três autos do dramaturgo espanhol Calderón de la
21
Barca, lembrando que o teatro, como confluência de todas as artes, se torna um
espaço privilegiado de discutir temas, desenvolver argumentos, expor ideias e que
Calderón de la Barca congregou em seu teatro, espectadores de diferentes classes
sociais, desde o mais humilde Lavrador, ao mais poderoso Rei.
O primeiro auto, La primer flor del Carmelo, discorrerá sobre episódios do
Antigo Testamento, narrados no I Livro de Samuel, e a atuação da personagem
bíblica Abigail, como símbolo da prudência e prefiguração de Maria. Neste auto,
personagens alegóricas - Avareza, Castidade, Luxúria atuarão com
personalidades reais da história de Israel - Abigail, Saul, Davi, Golias.
O segundo auto, A María el corazón, dramatizará a história da trasladação
da casa de Maria, de Nazaré, na Palestina, a Loreto, na Itália, uma das lendas mais
antigas, que sustentam o misticismo acerca de Nossa Senhora. Para discutir esse
tema, Calderón elege um sacerdote da Dalmácia, que peregrinará em busca da casa
de Maria para fazer-lhe a entrega simbólica do seu coração.
O último auto, La Hidalga del vale, sustentará a argumentação de que Maria
foi isenta do pecado original, como todos os outros humanos. Para isso, Calderón,
na voz de personagens alegóricas como a Graça, a Culpa, a Natureza humana, a
Fidalguia, dentre outras, discutirão acerca desse privilégio de Maria, em uma época,
em que se polemizava esse atributo da mãe de Jesus.
O capítulo 5 “O louvor a Maria na literatura brasileira” – analisará algumas
obras de temáticas marianas, interagindo a história cultural e a literatura religiosa:
Beata Virgine Matre Dei Maria, de José de Anchieta; quatro poemas dedicados à
Mãe de Deus, à Virgem do Rosário, a Nossa Senhora das Neves, à Maria, Rainha,
de Gregório de Matos e Nossa Senhora de Manaus, de Max Carphentier.
Em um percurso cronológico que se estende de 1563, quando José de
Anchieta escreve seu Poema à Virgem a 1999, quando Max Carphentier publica
Nossa Senhora de Manaus, vislumbraremos muitas imagens poéticas de Maria.
Entre os dois, teremos quatro poemas, com títulos marianos, de Gregório de Matos,
no século XVII. Na análise comparativa entre os três poetas, encontraremos pontos
em comum: a intertextualidade com a literatura bíblica e a manifestação honrosa
para com a Mãe do Redentor.
22
1. A IMAGEM NA ESCRITURA BÍBLICA
Deus fala ao homem por intermédio da criação
visível. O cosmos material apresenta-se à
inteligência do homem para que este leia nele os
vestígios de seu criador. A luz e a noite, o vento
e o fogo, a água e a terra, a árvore e os frutos
falam de Deus, simbolizam ao mesmo tempo a
grandeza e a proximidade dele.
1
“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra, porém, estava vazia e
vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das
águas. Deus disse: „Haja luz‟, e houve luz”
2
. A primeira imagem que se tem na Bíblia
reproduz a ação de Deus no processo de criação e pode ser desdobrada em três
partes: a descrição de que a terra estava vazia e vaga (caos), coberta por trevas; a
constatação de que o sopro (ruah) de Deus agitava as águas e a transformação do
caos em cosmos.
Segundo o Dicionário de símbolos
3
, na Antiguidade greco-romana, “o caos
é a personificação do vazio primordial, anterior à criação, ao tempo em que a ordem
não havia sido imposta aos elementos do mundo”. Essa noção corresponde à
expressão hebraica tohu wa bohu”, significando a “desordem”, o “vazio”. A segunda
e a terceira partes do trecho informam que o sopro
4
ruah, campo semântico de ar,
brisa, vento, espírito paira sobre as águas e, através da palavra de Deus, “fiat lux do
Gênesis” o caos é ordenado
5
.
No início da construção da Igreja Católica, aparece a descrição:
1
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Edições Loyola, 1999,
Art. 1147, p.323.
2
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 4ª. ed., São Paulo: Paulus, 2006, Gn 1, 1-2. Todas as citações bíblicas
contidas na tese são oriundas desta edição.
3
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 17ª. ed., Rio de Janeiro: José
Olympio, 2002, p. 182, 183.
4
CHEVALIER e GHEERBRANT: 2002, p.935.
5
CHEVALIER e GHEERBRANT: 2002, p.568.
23
Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos
no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se
de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se
encontravam. Apareceu-lhes, então, nguas como de fogo, que se
repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram
repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras nguas,
conforme o Espírito lhes concedia se exprimirem
6
.
O vendaval impetuoso de que trata a narração, é o sopro divino pairando
sobre os apóstolos, com a imagem de línguas de fogo. A presença desse vento
impetuoso divino transforma os ignorantes e amedrontados seguidores de Jesus em
eloquentes missionários da ação salvífica do filho de Deus. A imagem visível das
línguas de fogo está relacionada ao sopro de Deus e ao dom dos apóstolos a
falarem em diferentes línguas.
A partir da primogenia da luz, como imagem da ordenação do universo,
Deus realiza uma série de ações em que são criados todos os seres do universo:
Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas
das águas”
7
; Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem
semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo sua
espécie, frutos contendo sua semente”
8
; Que haja luzeiros no
firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de
sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejam
luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra”
9
.
Como último ato, Deus disse:
Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança e que
ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a
terra
10
.
Para a criação de todos os seres, Deus usa apenas a palavra, mas para a
criação do homem, Deus age como um escultor ceramista conforme o texto bíblico:
6
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, At 2, 1-4.
7
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 1,6.
8
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 1,11.
9
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 1,20.
10
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 1,26.
24
“Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou suas narinas
um hálito de vida, e o homem se tornou ser vivente”
11
.
Deus criou todas as criaturas: o firmamento com seus astros; a terra com
suas águas e florestas; os animais que se movem em terra firme; vivem nas águas,
ou se empoleiram nas árvores e voam no espaço, cortando os céus. Tudo era bom!
Fez também o homem a sua imagem, mas este estava , isto não era bom! Deus
fez então desfilar para o homem, todos os animais, mas não achou dentre eles uma
companheira que lhe conviesse:
Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu.
Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar.
Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma
mulher e a trouxe ao homem.
12
Como percebemos, a Bíblia é rica em imagens, sejam elas mentais,
descritas através de palavras, ou físicas como a escultura do homem de barro a
quem Deus dá vida, ou a criação da mulher, a partir da costela de seu companheiro.
Em muitos casos, a imagem mental descrita no texto bíblico se transforma na mente
do artista em um texto pictórico ou escultórico, como a cena da criação do homem e
da mulher, ou posteriormente sua expulsão do paraíso, após comerem a maçã, fruto
proibido por Deus.
Na Carta aos artistas, o papa João Paulo II
13
afirma:
A Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma espécie de „dicionário
imenso‟ (P.Claudel) e de „atlas iconográfico‟ (M.ChagaIl), onde foram
beber a cultura e a arte cristã. O próprio Antigo Testamento,
interpretado à luz do Novo, revelou mananciais inexauríveis de
inspiração. Desde as narrações da criação, do pecado, do dilúvio, do
ciclo dos Patriarcas, dos acontecimentos do êxodo, passando por
tantos outros episódios e personagens da História da Salvação, o texto
11
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 2,7.
12
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 2,21-22.
13
Papa João Paulo II, nascido Karol Józef Wojtyła (1920-2005), foi declado Sumo Pontífice da Igreja
Católica Apostólica Romana, em 1978, tornando-se o primeiro, não-italiano, em 455 anos, (desde o
holandês Adriano VI, no século XVI). Foi o primeiro Papa do terceiro milênio.
25
bíblico atiçou a imaginação de pintores, poetas, músicos, autores de
teatro e de cinema.
14
A reflexão de João Paulo II é retomada por Northrop Frye
15
na obra The
Great Code: The Bible in Literature, traduzida em português por Código dos códigos:
a Bíblia e a literatura
16
, em 2004. Frye, através do estudo acurado de textos bíblicos
do Antigo e do Novo Testamento, revela a raiz teológico-cultural-judaico-cristã nos
escritos de arte, em geral, e analisa discursivamente a retórica da religião. Contudo,
ele considera a história e as imagens como os dois pilares da escritura bíblica:
Aqueles que conseguirem ler a Bíblia do começo ao fim descobrirão
pelo menos que ela tem um começo do tempo, na criação do mundo; e
termina como o término do tempo, no Apocalipse. No meio do caminho
ela resenha a história humana, ou aspecto da história que lhe
interessa, sob os nomes simbólicos de Adão e Israel. também um
corpo de imagens concretas: cidade, montanha, rio, jardim, árvore,
óleo, fonte, pão, vinho, noiva, carneiro e muitas outras. Elas são tão
recorrentes que indicam um princípio unificador.
17
Na introdução da obra, referindo-se à literatura inglesa, ele é enfático
quanto à importância do Livro Sagrado: “Logo compreendi que um estudioso da
literatura inglesa que não conheça a Bíblia, não conseguirá entender o que se
passa”.
18
Assim, a Bíblia não é somente uma importante biblioteca, mas é também a
base para as grandes obras artísticas.
14
JOÃO PAULO II. Cartas aos artistas. 6ª. Ed. São Paulo: Paulinas, 2006, p.11,12.
15
Northrop Frye (1912-1991), professor e teórico da literatura canadense, alcançou destaque entre
os especialistas da Teoria Literária com a obra Anatomy of Criticism, de 1957, em que defende a tese
de que certos arquétipos e símbolos estão presentes em toda e qualquer literatura.
16
FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004.
17
FRYE: 2004, p.11.
18
FRYE: 2004, p.10.
26
1.1. Adão e Eva, um clássico do Antigo Testamento
A iconografia cristã transcreve pela
imagem a mensagem evangélica que a
Sagrada Escritura transmite pela palavra.
Imagem e palavra iluminam-se
mutuamente.
19
No Antigo Testamento, o livro do Deuteronômio relata o discurso de
despedida de Moisés, depois de atravessar o deserto e antes de tomar posse da
Terra Prometida. Em sua mensagem, Moisés exorta o povo de Israel à fidelidade a
Deus, acentuando a necessidade do cumprimento de seus deveres religiosos,
morais e sociais e a observância da sua lei “A lei de Iahweh é perfeita, faz a vida
voltar; o testemunho de Iahwweh é firme, torna sábio o simples”
20
- diria o salmista
Davi, mais tarde.
O discurso conclusivo do profeta - Inscrição da Lei e cerimônias cultuais
21
-
apresenta a admoestação de que: “Maldito seja o homem que faz ídolo esculpido ou
fundido, abominação para Iahweh, obra de artesão, e põe em lugar secreto ! e todo
o povo dirá: Amém”.
22
Essa proibição diz respeito exclusivamente ao culto à imagem - “todo povo
dirá: Amém” - e nunca à representação de homens e mulheres que fizeram a
história, a não ser Deus “que não tem corpo, nem aparência, não podia em absoluto
ser representado por uma imagem”.
23
Excetuando Adão e Eva, na história daquele período, são destaques
masculinos os patriarcas, os reis, os profetas e os heróis cuja representação
figurativa foi elaborada por artistas em todas as épocas, realçando algum episódio
que esses homens protagonizaram. As figuras mais representadas, artisticamente,
19
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Edições Loyola, 1999, n
o
1160.
20
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Sl 19, 8.
21
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Dt, 27.
22
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Dt, 27, 15.
23
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
o
1.159.
27
dentre eles, são Caim e Abel, Noé, Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Josué,
Sansão, Davi, Salomão.
Entre as figuras femininas receberam atenção artística Judite e Ester, as
quais são consideradas prefigurações de Maria, e ambas têm suas histórias em
livros específicos do Antigo Testamento. Na Bíblia, prefiguração é um acontecimento
ou uma figura do Antigo Testamento, que encerra certos atributos possíveis de
serem encontrados em eventos ou personagens do Novo Testamento, por exemplo,
Adão e Eva prefiguram Jesus e Maria respectivamente.
Pecado Original (1550), de Tiziano
24
24
Tiziano Vecellio (1490-1576), artista italiano que desde cedo estudou pintura com mestres
importantes de Veneza. Trabalhou com a arte paisagística e de retratos com temáticas religiosas,
mitológicas com traços marcantes de luminosidade. Em 1530, assistiu à coração de Carlos V o qual
28
Na transposição do texto literário para o pictórico, as representações mais
frequentes das passagens bíblicas, contidas no Livro do Gênesis
25
, são aquelas que
representam o momento da criação do homem por Deus; o homem e a mulher
comendo a maçã; ou ambos despidos, conscientes desse fato, sendo expulsos do
paraíso, ou seja, a imagem de Adão e Eva.
O quadro Pecado Original, de Tiziano, demonstra uma visão particular do
artista italiano diferente dos demais pintores da época, no diálogo entre literatura e
pintura. A serpente, símbolo da maldade e do pecado, é representada por uma
criança. Também chama a atenção do observador, a cauda do animal, mesclada
com os galhos da árvore do “bem e do mal”, a macieira.
Na análise interpretativa do quadro, podemos aventar a hipótese do pintor
ter usado a imagem da criança pelo fato de a serpente ser a representação do
Satanás, um dos mais belos anjos da corte celestial que se transformou no anjo
caído. Esse disfarce é demonstrado pelo artista através da camuflagem de sua
cauda. Por sua natureza, o Diabo é ardiloso, tentador e mentiroso, segundo o
magistério da Igreja:
Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais uma
voz sedutora que se opõe a Deus e que, por inveja, os faz cair na
morte. A escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo
destronado, chamado Satanás ou Diabo. A Igreja ensina que ele tinha
sido anteriormente um anjo bom, criado por Deus.
[...]
A Escritura atesta a influência nefasta daquele que Jesus chama de “o
homicida desde o princípio”(Jo 8, 44) e que chegou a tentar desviar
Jesus da missão recebida do Pai. „Para isto é que o Filho de Deus se
manifestou: para destruir as obras do Diabo‟(I Jo 3,9). A mais grave
dessas obras, devido às suas conseqüências, foi a sedução mentirosa
que induziu o homem a desobedecer a Deus.
26
se converteu no patrono principal de sua obra e o tornou pintor da corte espanhola. Em 1551, fixou
residência em Veneza, e, entre 1554 e 1562 pintou para Filipe II de Espanha.
25
A descrição dos fatos mencionados está contida nos capítulos 1 a 2 do Livro do Gênesis.
26
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
os
391, 394.
29
Outro aspecto particular de Tiziano é o uso de folhas de parreira para cobrir
a genitália apenas de Adão, que seus contemporâneos usavam-nas tanto no
primeiro homem, como na primeira mulher. No quadro, a nudez de Eva é coberta
com folhas da própria macieira, que compõe a pintura.
A folha da parreira, deslocada da árvore, servindo apenas para cobrir a
nudez de Adão, faz alusão ao vinho que se transformará no sangue de Jesus, na
Eucaristia, em memória à paixão de Cristo Novo Adão pela redenção da
humanidade. Por outro lado, o fato da árvore da desobediência camuflar a cauda da
serpente e cobrir a nudez de Eva, evidencia a culpabilidade maior da mulher, na
questão do Pecado Original, título da obra do italiano.
Assim como a cena do pecado de Adão e Eva, pintada por Tiziano, muitas
outras do Antigo Testamento são descritas na Bíblia e, posteriormente reelaboradas,
através das artes plásticas.
1.2. A cristalização de imagens no Novo Testamento
A beleza e a cor das imagens estimulam minha
oração. É uma festa para os meus olhos, tanto
quanto o espetáculo do campo estimula meu
coração a dar glória a Deus.
27
No Novo Testamento, um grupo de pessoas que serviram de inspiração
para os artistas, por isso foram representadas com maior frequência, especialmente
na pintura, dentre elas destacamos a Sagrada Família, João Batista, os quatro
evangelistas - Mateus, Marcos, Lucas e João - e de alguns apóstolos, especialmente
Pedro. Contudo a figura principal dessa parte da Bíblia é Jesus, cuja iconografia é
feita desde a infância até sua morte.
27
DAMASCENO, João (São), apud CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
o
1162.
30
Jesus é protagonista das quinze estações da via dolorosa, conjunto
figurativo obrigatório em todas as Igrejas, como também é simbolizado nas imagens
de cordeiro, de peixe e de pastor.
A Escritura não tem a preocupação de descrever fisicamente um
personagem ou detalhar uma cena, apenas registra um fato, ou caracteriza a pessoa
por uma ação; contudo, o artista plástico cria certas imagens, imprimem-nas na
consciência coletiva e termina por perpetuá-las e sacralizá-las. Alguns exemplos,
como as iconografias de “Pedro” e dos “Reis Magos”, ratificam a afirmação.
São Pedro arrependido (1825), de Goya
28
28
Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1829), espanhol de Saragoza, ainda jovem foi
bolsista da Real Academia de San Fernando em Madri, uma das escolas de artes mais influentes na
época. Goya iniciou sua trajetória artística com afrescos na capela de N. Sra. do Pilar em Saragoza;
em 1786 foi nomeado pintor da corte de Carlos III e posteriormente de Carlos IV, deixando o cargo
em 1808, durante a ocupação do trono por José Bonaparte. Sua obra foi importante tanto na pintura
31
Pedro foi um dos primeiros apóstolos a tomar parte do grupo seguidor de
Jesus. Ele foi chamado quando o Messias caminhava à beira do mar da Galiléia,
conforme o evangelista Mateus:
Estando ele (Jesus) a caminhar junto ao mar da Galiléia, viu dois
irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam a
rede ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: „segui-me e eu farei
de vós pescadores de homens‟. Eles, deixando imediatamente as
redes, o seguiram
29
.
A Bíblia não informa a idade de Pedro, apenas a profissão de pescador. Sua
representação, entretanto, é sempre de um ancião com barbas brancas, com uma
chave na mão e nunca com rede de pesca.
O quadro de Goya mostra uma das imagens cristalizadas pela tradição
artística, a figura de Pedro como um homem idoso, identificado pelas chaves que
representam a Igreja de Cristo. O fundo escuro contrasta com a luminosidade
empregada no rosto e no manto à esquerda. O olhar, voltado para o alto, e a boca
semiaberta emprestam uma atitude de piedade, mansidão, e arrependimento. A
barba e os cabelos brancos impõem-lhe respeito e credibilidade, como o irmão mais
velho de todos os filhos do Cristianismo nascente.
Outro texto bíblico tem sua representação fixada a partir da iconografia
religiosa, ele está presente no evangelho de Mateus:
Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes,
eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntando: „Onde
está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos sua estrela no
céu surgir e viemos homenageá-lo‟.
30
Em seguida, a Bíblia informa que os reis deixaram o local, seguiram a
estrela e chegaram até onde se encontrava o Menino-Deus:
Ao entrar em casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e,
prostrando-se, o homenagearam. Em seguida, abriram seus cofres e
como na gravura onde produziu algumas séries de teor crítico-social dentre as quais se destacam “Os
desastres da guerra”(1810-1814) em que retratam as atrocidades que as tropas napoleônicas
realizaram na Espanha.
29
A BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, MT 4, 18-20.
30
A BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mt 2, 1-2.
32
ofereceram-lhes presentes; ouro, incenso e mirra. Avisados em sonho
que não voltassem a Herodes, regressaram por outro caminho para
sua região.
31
Observamos, nos versículos de Mateus, que não qualquer referência ao
número e ao tipo físico dos Reis Magos, mas a tradição artística atribui que são três.
Mateus, aliás, é o único que relata o episódio referente aos Reis Magos.
De acordo com a obra Iconografia del arte cristiano
32
os primeiros textos
pictóricos dão conta de que Jesus recebeu a visita de dois, três e até quatros sábios,
vindos do Oriente. A partir do século XII, os registros constroem a idéia de três por
alguns fatos. Inicialmente a igreja medieval pretendia dar a eles o status de santos.
Para isso, reza a piedade popular que os Reis foram ao Oriente por mar, morreram
durante a viagem e foram enterrados na cidade de Sabá. Os ossos de três
cadáveres, a eles atribuídos, foram encontrados pela imperatriz Helena
33
e
trasladados para Constantinopla. Os clérigos de Milão, para obter prestígio, colocam
essa relíquia em um sarcófago de mármore e entronizam-na na igreja dedicada aos
Reis Magos, em Milão.
De acordo com Louis Réau:
acabó por prevalecer el número tres, por razones bíblicas, litúrgicas y
simbólicas. Aunque Mateo no especifica el número de Magos, al
menos menciona que ellos habían aportado al Niño Jesus tres clases
de regalos: oro, incienso y mirra. Del número de regalos debía
deducirse com toda naturalidade el numero de donantes.
34
Afora esses episódios, entre os artistas perdurou a idéia de que os reis
representariam a Europa, Ásia e África e as três idades da vida, a juventude, a
maturidade e a velhice.
31
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mt 2, 11.
32
RÉAU, Louis de. Iconografia del Arte Cristiano. Traducción Daniel Alcoba. Tomo I, vol. 2.
Barcelona: Edciones del Serbal, 1996.
33
Flávia Iulia Helena (250-330), também conhecida como Santa Helena, Helena de Constantinopla e
Helena Augusta. Segundo a tradição, ela foi responsável pela descoberta do lugar da crucificação de
Jesus, onde foi erguida a Basílica do Santo Sepulcro. Como mãe do imperador Constantino, o
Grande, induziu-o a converter-se ao Cristianismo, a ponto do imperador publicar o Édito de Milão, que
acatava diferentes credos e proibia a perseguição aos cristãos.
34
RÉAU:1996, p.249.
33
Adoração dos Magos (1619), de Velasquez
35
Clodovis Boff comenta sobre a visita dos Reis e aponta que o episódio é um
midrash, isto é, uma história construída para fins de edificação”.
36
Ao analisar os
versículos do evangelho de Mateus, em uma perspectiva mariológica, apresenta
algumas imagens que evocam o Antigo Testamento e o Novo Testamento, também
presentes na pintura do espanhol:
35
Diego Rodriguez de Silva e Velázquez (1599-1660), pintor espanhol que muito jovem estudou
com os mestres da pintura mundial. Ele fez parte da confraria de São Lucas em Sevilha dirigida pelo
pintor e teórico de artes Francisco Pacheco de quem se tornou genro. Velázquez foi o principal pintor
da corte do Rei Filipe IV de Espanha.
36
BOFF, Clodovis. Introdução à mariologia. 3ª. Ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004, p.44.
34
„Eis que magos, vindos do Oriente, chegaram a Jerusalém‟.
Maria aqui aparece como a nova Jerusalém e o novo Templo. O relato
dos magos evoca Is 60, que descreve Jerusalém toda iluminada, feita
centro do mundo e para a qual se dirigem os Povos da terra com seus
reis, trazendo suas riquezas. [...] À essa luz, a Virgem-mãe emerge
como a nova Capital sagrada. É para Ela que se dirigem os Povos
para encontrar o Rei salvador [...]. Onde encontrar Jesus ? Em Maria.
„Entrando em casa, viram o Menino com Maria, sua mãe‟.
Maria aqui emerge como a rainha-mãe. Essa é uma „cena da corte‟,
como viram os grandes artistas que a retrataram „com pompa e
circunstância‟. Jesus-menino aparece como o „rei dos judeus‟ e
também as rei das nações.e é a esse título que recebe também as
homenagens reais: a prostração e a entrega de dons, caracterizados
pela excelência.
37
O quadro de Velásquez trabalha com a idéia de que os Magos são três,
representando as idades do homem e os continentes europeu, asiático e africano. A
última acepção referenda o papel de destaque da Espanha, no mundo conhecido,
visto que Velazquez era pintor da corte de Filipe IV. Por outro lado, demonstra a
presença de Maria em diferentes lugares, sob os auspícios do reino espanhol. De
qualquer forma, essas figuras emblemáticas respondem ao papel devocional e
cultual ao ser representado, no caso Jesus e Maria.
A análise do quadro reforça as palavras de Boff, sobre o papel de Maria,
como Rainha-mãe, que apresenta a realeza do Menino-Deus aos três Reis orientais,
concentrados à esquerda do espectador, em atitude de adoração.
Em primeiro plano, se encontra um jovem imberbe, significando a juventude
e a Ásia, por trás dele há um homem de pele negra, simbolizando a maturidade e a
África. Finalmente, à esquerda e atrás, a imagem de uma pessoa madura, de
semblante endurecido, representado a velhice e a Europa.
As imagens na Bíblia fazem parte de um discurso que, ao longo do tempo,
se tornou a maneira mais efetiva de assimilação do conjunto de crença, valores e
fundamentos teológicos. As representações artísticas garantiram essa forma de
fixação, desde as imagens mais primitivas, aaquelas que se fizeram necessárias
37
BOFF: 2004, p. 44.
35
na implantação do Cristianismo. Os quadros de Tiziano, Goya e Velásquez
demonstram como o texto bíblico se transforma na fonte para o registro e para a
divulgação da mensagem religiosa, quando transmudada no discurso plástico.
Apresentadas essas reflexões sobre algumas imagens significativas na
tradição bíblica Adão e Eva, Adoração dos Reis Magos e Pedro abordaremos, a
seguir, Maria na estética barroca.
1.3. A representação de Maria no barroco hispano-brasileiro
Virgen, pura azucena, lirio en valle,
cándida y limpiamente concebida;
Virgen, donde se mide el sin medida,
preciosa cinta a su divino talle.
Jardín donde no hay flor que no se halle
de las virtudes de que estáis vestida;
árbol en cuya planta esclarecida,
la sierpe antigua para siempre calle.
38
Dentre as três grandes religiões monoteístas, islamismo, judaísmo e
cristianismo, somente a religião implantada por Cristo admite representação
antropomórfica do divino e o culto das imagens sagradas, como honra, devoção e
exemplo cristão, aos seus representados.
Durante os primeiros séculos da era cristã, as imagens representaram
importante instrumento didático, capaz de tornar físico e visível, o mundo espiritual,
invisível. Ao longo do tempo, a mística sagrada vai se construindo através da
imaginária e da pintura que se molda a princípios teológico-morais e artístico-sociais,
haja vista que a Igreja propõe algumas normas para a iconologia, adaptadas ao
estilo de época e do artista que a elabora. Historicamente, aponta Cristina Ávila:
38
LOPE DE VEGA, Félix. Pintada por San Lucas. In: PUCHE, José A. Martínez. María en la literatura
y en el arte. Biblioteca mariana. Vol. 6. Madrid: Edibesa, 2002, p.357
36
O uso da ilustração simbólica dentro dos templos católicos é uma
tradição advinda ainda do período paleocristão. Desde os primórdios
da arte cristã, a presença de decoração nos lugares santos ou templos
a estes relacionados é uma constante. O costume de se decorar com
pinturas as catacumbas, mesmo sendo estas subterrâneas e escuras,
é antiqüíssimo. Assim, os temas cristãos foram aparecendo ao lado de
outros de teor pagão.
A tradição de se mesclarem lendas, signos, e histórias mitológicas
continuará presente ao longo de toda a arte cristã. [...] As imagens
figurativas usadas nos primeiros períodos da arte cristã vão se
amoldando, se reorientando e se adaptando aos sucessivos estilos
artísticos.
39
A arte cristã vai-se ajustando a diferentes momentos da história da Igreja,
tendo a supremacia de uma ou outra vertente em determinado momento. A
estatuária, por exemplo, foi bastante difundida na Idade Média, favorecendo o culto
às imagens, como permitido e útil. Contra essa prática, houve severa crítica da igreja
reformada, rebatida pela igreja católica com a declaração do Concílio de Trento:
Devemos pôr e conservar, sobretudo nas igrejas, as imagens de
Cristo, da Virgem Mãe de Deus e dos outros santos e dar-lhes aquela
honra e veneração que lhes é devida. Não que se creia haver nelas
algo divino, ou uma força em virtude da qual se devem honrar, ou que
se lhes deve pedir alguma coisa ou que se deva pôr a própria
confiança nas imagens, como faziam os pagãos, os quais punham sua
esperança nos ídolos, mas a honra que prestamos a elas refere-se
aos protótipos que eles representam.
40
Outro momento de grande profusão da arte iconográfica na Igreja foi
durante a vigência do Barroco. Na Espanha, houve receptividade desse estilo entre
os artistas e sua estatuária é inteiramente consagrada à produção de imagens
religiosas, em geral esculpidas em madeira, pintadas com cores naturais, algumas
articuladas e vestidas com trajes suntuosos e ornamentadas com joias.
A expressiva arte decorativa com suas volutas, grinaldas, frutos, flores e
medalhões, ornamentando profusamente as fachadas das suntuosas construções, é
outra vertente barroca. A exuberância da arquitetura e da decoração do barroco
39
ÁVILA, Cristina. A ilustração de textos nas Igrejas Barrocas Mineiras: os milagres de Santo Antônio
na Igreja Matriz de Itaverava. In: ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: Teoria e Análise. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997, p.491,492.
40
BARTAMANN, Bernard. A Redenção. A Graça. A Igreja. In: Teologia Dogmática, Vol. II. São Paulo:
Paulinas, 1961, p.528.
37
hispânico se implanta em vários pontos do novo mundo, onde muitos templos da
América espanhola o construídos a partir desses modelos, sendo vários deles,
dedicados a Maria.
Como estilo artístico, o Barroco exterioriza conceitos diversificados de arte,
seja ela desenvolvida nas cortes com diferentes mentalidades, seja ela expressada
nos mosteiros e templos de feição católica, ou ainda demonstrada nas comunidades
protestantes, em sua maioria burguesa.
A representação de Jesus crucificado, evento histórico e real, aceito por
todas as religiões cristãs, recebeu a mesma atenção dispensada à da Virgem
imaculada, que ainda não era verdade de fé do cristianismo católico. Na sua História
social, Hauser caracteriza essa estética:
Todo el arte del Barroco está lleno de este estremecimiento, del eco
de los espacios infinitos y de la correlación de todo el ser. La obra de
arte pasa a ser en su totalidad, como organismo unitario y vivificado en
todas sus partes, símbolo del Universo. Cada una de estas partes
apunta, como los cuerpos celestes, a una relación infinita e
ininterrumpida; cada una contiene la ley del todo; en cada una opera la
misma fuerza, el mismo espíritu. Las bruscas diagonales, los escorzos
de momentánea perspectiva, los efectos de luz forzados: todo expresa
un impulso potentísimo e incontenible hacia lo ilimitado. Cada línea
conduce la mirada a la lejanía; cada forma movida parece quererse
superar a sí misma; cada motivo se encuentra en un estado de tensión
y de esfuerzo, como si el artista nunca estuviera completamente
seguro de que consigue también expresar efectivamente lo absoluto.
41
O Classicismo, estética anterior ao Barroco, se fundamenta na concepção
pagã da existência; no discurso filosófico racional; na revalorização do homem como
construtor de grandes inventos e realizador de importantes descobertas. É o estilo
que retorna à estética clássica com o predomínio do equilíbrio, da harmonia, da
lógica, da simetria, da objetividade, do refinamento, da estabilidade, do repouso, do
equilíbrio, da linha reta. Diferentemente, na opinião de Wolflin:
O barroco se propõe outro efeito. Quer dominar-nos com o poder da
emoção de modo imediato e avassalador. O que traz não é uma
animação regular, mas excitação, êxtase, ebriedade. Visa produzir a
impressão do momento [...].
41
HAUSER, Arnold. Historia Social de la literatura y el Arte desde la Prehistoria hasta el Barroco. Vol.
I. Argentina: Debate, 2002, p. 506, 507.
38
O barroco exerce momentaneamente um efeito poderoso, mas em
breve nos abandona, deixando-nos uma espécie de náusea.
Ele não evoca a plenitude do ser, mas o devir, o acontecer; não a
satisfação, mas a insatisfação e a instabilidade. Não nos sentimos
remidos, mas arrastados para a tensão de um estado apaixonado.
Esse efeito, como o procuramos descrever em sua generalidade,
funda-se num modo de tratar a forma que vamos caracterizar segundo
dois pontos de vista principais: efeito de massa e movimento.
42
As imagens de Maria produzidas, no século XVII, na Espanha e XVIII, no
Brasil, também seguiram essas caracterizações. De significativo valor estético,
diferentes representações marianas são produzidas no conjunto de obras do
período, tanto na escultura como na pintura. Sua iconografia é bastante
diversificada, tanto nos materiais empregados como nas formas de expressão.
Segundo a tradição popular, Maria teve sua representação pictórica, quando ainda
estava viva, sob a responsabilidade de São Lucas evangelista que era também
médico e pintor.
43
.
George Tavard, na obra As múltiplas faces de Maria, nos informa que
uma infinidade de variações, mas é na piedade popular onde encontramos a maior
diversificação:
A mãe de Deus foi designada com referência a metáforas e símbolos
bíblicos [...]; em referência a todas as virtudes; em referência a uma
infinidade de lugares onde foram erigidos santuários e estátuas em
sua honra, onde se afirma que foi vista ou onde é simplesmente
venerada e amada; [...] em referências a princípios e funções
espirituais. A Virgem Maria tem mais nomes do que Jesus. [...] Maria
tem sido tratada na piedade popular como um espelho dos atributos de
Deus e especialmente dos atributos divinos de imensidade e de
ubiqüidade e do poder de cura.
44
Excetuado o período do iconoclasmo - “doutrina bizantina dos séculos VIII e
IX que repudiava, sob a acusação de idolatria, a representação e veneração de
imagens santas
45
- tanto Cristo, quanto Maria são representados em quadros,
42
WOLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 48.
43
RÉAU, Louis. Iconografia del arte cristiano. Traducción Daniel Alcoba. Tomo I, Vol 2, Barcelona
(Espanha): Ediciones del Selbal, 1996, p. 76.
44
TAVARD, George H. As múltiplas faces da Virgem Maria. Tradução de Attílio Brunetta. São Paulo:
Paulus, 1999, p.323.
45
Cf. Dicionário de Houaiss de Língua Portuguesa. É importante ressaltar que os iconoclastas
estavam limitados a uma área do Oriente, assim o restante continuava a elaborar imagens em
pinturas e esculturas.
39
medalhas, mosaicos, selos, brasões, estandartes e assumem o primeiro plano das
ilustrações. Ressaltamos que mesmo na crise iconoclasta houve um esforço do
cristianismo bizantino em “formular uma síntese insuperável de doutrina, devoção,
poesia, arte”.
46
Os ícones do Cristo Pantokrátor e da Theotókos são a grande referência da
imagem na cultura religiosa oriental. Angel Aparício Rodríguez, Diretor de
Publicações Claretianas, no prefácio da edição espanhola de “O ícone da Mãe de
Deus” adverte:
Herança espiritual do Oriente são também os ícones, que plasmam em
cores um rico conteúdo teológico e que são tão venerados pelas
Igrejas irmãs do Oriente. No Ocidente, encontramo-los cada vez em
maior profusão. Seria verdadeira lástima, e indício de nossa
superficialidade ocidental, que adornem nossas casas por questões de
moda. O ícone para um oriental é muito mais que enfeite: é imagem
visível dos bens invisíveis, projeção no tempo do que será nossa
felicidade eterna. O oriental, por isso, ora diante do ícone, contempla,
agora com os olhos da fé, o que um dia veremos face a face.
47
Dos ícones da igreja oriental, à imaginária diversificada, na ocidental, as
imagens têm sua melhor expressão, no Barroco. Na pintura da Espanha, por
exemplo, a representação de Maria nas obras de Estebán Murillo, Sanchez Cotán,
Valdez Leal e Francisco Zurbarán é recorrente e bastante expressiva, seja ela
representada sozinha, com seus atributos de Virgem da Conceição Imaculada, da
Anunciação, Assunção, ou como Mãe de Deus, acompanhada do Menino Jesus.
Mesmo desconhecendo suas características físicas, Francisco Pacheco determinou,
na Arte de la Pintura,
48
como deveria ser a imagem da Virgem, condicionando os
artistas barrocos, em sua maioria, a segui-lo:
Hase de pintar, pues, en este aseadísimo misterio esta Señora en la
flor de su edad, de doce a trece años, hermosísima niña, lindos e
46
TH. KOEHLER. História da Mariologia. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore (dir.). Dicionário
de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p.565.
47
APARÍCIO RODRÍGUEZ, Angel. Introdução. In: PASSARELLI, Gaetano. El ícono de la Madre de
Dios. Madri: Publicações Claretianas, 1993. Tradução Mario Gonçalves. Projeto Iconostásio. São
Paulo: Ave Maria, 1996, p. 8.
48
Arte de la Pintura, tratado sobre a pintura, elaborado por Francisco Pacheco (séc. XVII) e
publicado em 1649; é considerado um dos melhores tratados de pintura do Barroco espanhol.
40
graves ojos, nariz y oca perfectísima y rosada mexillas, los bellísimos
cabellos tendidos, de color de oro, en fin cuanto fuere posible al
humano pincel.
Dos hermosuras hay en el hombre, conviene a saber, de cuerpo y
alma, y ambas las tuvo la Virgen, incomparablemente; porque la
corporal fue un milagro, como juzgó San Dionisio, y no hubo criatura
más parecida a su Hijo, que fue el modelo de toda la perfeción. Los
demás hijos diviértense en la asimilación del padre y de la madre,
como de diferentes principios, pero, Cristo, Señor nuestro, como no
tuvo padre en la tierra, en todo salió a su Madre que, después del Hijo,
fue la criatura más bella que Dios crió. Y, así, la alaba el Espírito
Santo, cuya letra se aplica siempre esta pintura: Tota pulchra es Amica
mea.
49
A análise do especialista Louis Réau aponta três momentos da iconografia
mariana: a representação na arte paleocristã das catacumbas; os ícones da arte
bizantina e as imagens de Maria na arte ocidental. Segundo seus estudos, a
variedade de representações da Virgem Maria no Ocidente é maior que no Oriente,
e “para poner un poco de orden y claridad en esta pofusión de motivos, los
repartiremos en cuatro apartados:
A) La Virgen antes del nacimiento del Niño: Inmaculada Concepción y
Maternidad virginal.
B) Virgen com el Niño: Tipos de Majestad y de Ternura.
C) La Virgen Dolorosa: Virgen de Piedad, de los sietes Dolores.
D) La Virgen Tutelar: Virgen de Misericódia, del Rosário.
50
De fato, grande parte das imagens conhecidas segue as tendências
iconográficas apontadas por Réau. Não pretendemos analisar cada tipo, mas
exemplificar alguns. Nossa Senhora de Fátima, de Lourdes e Aparecida
representam o primeiro grupo, pois são imagens da Imaculada Conceição, cujos
atributos serão vistos ao longo da tese.
A iconografia da Virgem Majestade no segundo grupo - apresenta
algumas variações, contudo a mais comum é Maria assentada, em atitude grave e
solene, com o Menino-Jesus frontal, como mostrou a pintura Adoração dos Magos,
49
PACHECO, Francisco. El Arte de la Pintura. Madrid: Cátedra, 1990, p.576.
50
RÉAU: 1996, p. 81.
41
de Velazquez. As Virgens Negras, veneradas principalmente na França e na
Espanha, é uma variação da Virgem Majestade de pé, como a imagem de Nossa
Senhora de Loreto, presente no auto sacramental A María el corazón, de Calderón
de la Barca, no capítulo 4.
O terceiro grupo da Virgem Dolorosa - tem duas variações muito
difundidas entre os católicos. Na primeira, Maria se apresenta com o coração
traspassado por setas, em alusão à profecia de Simeão “[...]uma espada traspassará
tua alma![...]”
51
; na segunda variação, Maria recebe em seu colo o Filho morto, como
a escultura Pietá, de Miguel Ângelo.
La Virgen con los cartujos, de Francisco Zurbarán
52
51
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, (Lc 2, 34-35)
34
Simeão abençoou-os e disse a Maria, a mãe: “Eis
que este menino foi colocado para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um
sinal de contradição
35
e a ti, uma espada traspassará tua alma! para que se revelem os
pensamentos íntimos de muitos corações”.
52
Francisco de Zurbarán (1598-1664) pintor do “Siglo de oro español”. Destacou-se na pintura
religiosa, com apelo visual e místico. Foi um artista representativo da Contrarreforma.
42
Réau analisa as imagens de Nossa Senhora da Misericórdia e de Nossa
Senhora do Rosário, cuja devoção foi muito propagada na Idade Média, como
representações da Virgem Tutelar, no quarto grupo. Ela pode vir ou não
acompanhada do Menino-Jesus, tendo como um dos atributos principais seu manto
protetor.
Muitas iconografias da Virgem Tutelar trazem o(s) suplicante(s) embaixo do
manto e são proporcionalmente menores que sua imagem, ou estão em uma
posição que denote uma hierarquia espiritual inferior pela caracterização física do
tamanho, e/ou da altura.
La Virgen con los cartujos, de Francisco de Zurbarán é um exemplo de
Virgem Tutelar. Ele representa uma das variações da Virgem da Misericórdia que
estende seu manto à coletividade religiosa de los cartujos, abençoando-lhes com
seu amparo, bem como dando a sua Ordem tutela e proteção.
Inicialmente, analisaremos a imagem sob o ponto de vista do Barroco, cujo
princípio dual está explícito na composição da tela dividida em duas partes,
correspondendo ao plano celestial e ao terreno. A primeira parte mostra o Espírito
de Deus, na figura da pomba com sua luz e circundado por uma legião de anjos. Um
número expressivo de figuras aladas, a ordenação dos anjos em forma de círculo,
símbolo do infinito, são também aspectos pertinentes à estética. A luz celestial, na
parte superior da tela, contrasta com a sombra do manto e produz o efeito claro-
escuro que, nesta pintura, o escuro simboliza a parte terrena, onde se encontram os
religiosos agraciados pelas bênçãos da Mãe da Misericórdia.
Maria, de pé, frontal, com atributos de Rainha coroa, manto, vestes
vermelhas representa a realeza divina, enquanto los cartujos - de joelhos, olhar
voltado para o alto, em busca do amparo de sua Patrona - representam a
humanidade. Assim, direcionamos o discurso de Francisco Pacheco ao Barroco e a
Maria, através de suas palavras sobre o significado da arte cristã:
[…] hablando de las imágenes cristianas, digo que, el fin principal será
persuadir los hombres a la piedad y llevarlos a Dios; porque siendo las
imágenes cosa tocante a la religión, y conveniendo a esta virtud que
se rinda a Dios el debido culto, se sigue que el oficio de ellas sea
mover los hombres a sua obediencia y sujeción. Si bien pueden con
esto concurrir otros fines particulares; como son inducir los hombre a
penitencia, a padecer con alegría, a la caridad, o al desprecio del
43
mundo o a otras virtudes, que son todos medios para unir los hombres
con Dios, que es el fin altísimo que se pretende con la pintura de las
sagradas imágenes […]
53
Analisada a pintura de Zurbarán, como representação do Barroco espanhol,
passamos a discorrer sobre a iconografia barroca brasileira.
Com o início da colonização portuguesa em 1500, o Brasil teve a confecção
de imagens principiada ainda no final do século XVI, com a chegada dos primeiros
artistas e artesãos, vindos da Europa que se colocam como colaboradores da
catequese, a partir de suas obras. Ressaltamos como característica desse período o
anonimato dos imigrantes que, se utilizando da madeira ou do barro cozido,
produziram obras de feitio e gosto locais, embora seguindo os modelos clássicos
que circulavam na Colônia.
As primeiras imagens de Maria, de que temos conhecimento da data e da
autoria, se encontram na cidade de Salvador, na Bahia. Trata-se da escultura de
Nossa Senhora de Montserrat, de frei Agostinho da Piedade
54
, datada de 1636 e da
escultura de Sant‟Ana ensinando a Virgem, assinada pelo mesmo religioso, com
data de 1646.
A representação de Maria, na pintura brasileira até o século XIX, ocorreu
principalmente na decoração de igrejas em forma de painéis retangulares como
revestimento de paredes ou cobrindo a madeira do seu teto, diferentemente da
Europa, onde muitos quadros assumem o primeiro plano dos altares, como na
Igreja de Nossa Senhora da Saúde, em Veneza.
O tema mais frequente é Maria rodeada de anjos, retratada sozinha, com os
títulos de Imaculada Conceição, Virgem da Anunciação, Senhora da Assunção, ou
pintada acompanhada do Menino-Jesus, sob a evocação de Nossa Senhora:
Auxiliadora, de Nazaré, do Perpétuo Socorro e de Montserrat.
Referindo-se à pintura barroca brasileira, Cristina Ávila assinala que a
imagem é “o discurso plástico” e:
53
PACHECO: 1990, p.253.
54
Agostinho da Piedade nasceu em Portugal e morreu em Salvador em 2.4.1661. Foi um monge
muito piedoso da ordem de São Bento, em cujo mosteiro, na Bahia, vivia imerso em orações diante
da imagem da Virgem Maria.
44
O olho é o nosso guia de visão, escorregadio, passa de ponto em
ponto, viaja pelos retábulos, forros e imagens. As cenas sacras
contam mais do que de si próprias, mais do que da arte, mais do que
das perspectivas de Trento; falam do homem de uma época,
transtornado entre múltiplas imagens, que relatam historias e historias
que passam a fazer parte de um cotidiano comum. Tudo é imagem;
porém, mais que imagem, é um modo de vida, uma forma de
compreensão do mundo isolada e repleta, distante e perto, antagônica
e paradoxal como a riqueza e a pobreza, o luxo ou o lixo, o orgulho e
a humilhação.
55
Nossa Senhora do Montserrat (1636),
de frei Agostinho da Piedade
Sant‟Ana ensinando a Virgem (1646), de
frei Agostinho da Piedade
Defendemos a tese de que “o culto à Virgem Maria remonta ao início da era
cristã e sofre adaptações no tempo e no espaço, em diferentes expressões
55
ÁVILA: 2001, p.190.
45
artísticas”. Muitas vezes as adaptações são tão radicais que não qualquer
resquício do modelo original; em outros casos, apresenta mescla de elementos
diferentes, sem desaparecer a origem de cada um. Ao segundo caso, podemos
chamá-lo de “mestiçagem”; quanto a esse aspecto, registramos que o termo
mestiçagem foi datado no final do século XIX e era empregado para designar a
“miscigenação entre pessoas de raças diferentes, ou o cruzamento de animais de
raças ou variedades diferentes
56
.
Houve o acrescentamento semântico e, atualmente, o termo “mestiçagem”
se estende para outros tipos de mistura, dentre eles a mestiçagem cultural”, que
tem preocupado a Igreja Católica e, sobre a qual, ela refletiu na Conferência de
Puebla: A AL tem sua origem no encontro de raça hispano-lusitana como as
culturas pré-colombianas e africanas. A mestiçagem racial e cultural marcou
profundamente este processo, e sua dinâmica indica que no futuro continuará
marcando”
57
.
Na Conferência de Santo Domingo, o tema retorna à discussão, e a Igreja
se propõe a: Desenvolver a consciência da mestiçagem, não em nível racial,
mas também cultural, que caracteriza as grandes maiorias em muitos dos nossos
povos, pois está vinculada à inculturação do Evangelho
58
Feitas as devidas
explicações, observemos um interessante exemplo de mestiçagem, na cidade de
Ouro Preto, em Minas Gerais.
O teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, representa a
mestiçagem artística. Elaborado pelo entalhador, encarnador, dourador e pintor
Manuel da Costa Ataíde
59
(1710-1760), que decorou cerca de quinze igrejas, em
Minas Gerais, sintetiza o chamado Barroco tropical. A obra denominada Glorificação
da Virgem ou Coroação de Nossa Senhora da Porciúncula é uma pintura em
madeira, localizada no teto da nave principal da igreja.
56
Cf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa
57
CELAM. Conclusões da Conferência de PUEBLA Evangelização no presente e no futuro da
América Latina e do Caribe. 13ª. ed. São Paulo: Paulinas, 2004, n
o
409.
58
CELAM. Conclusões da Conferência de SANTO DOMINGO Nova evangelização, promoção
humana, cultura cristã. 5ª. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, n
o
250.
59
Manuel da Costa Ataíde (1762-1830) era mineiro de nascimento e, juntamente com Antonio da
Silva Lisboa (Aleijadinho), foi responsável pela maioria das obras barrocas em Minas Gerais. Na
estatuária, Aleijadinho era o escultor e Ataíde o encarnador.
46
Glorificação da Virgem (sec. XVIII), de Manuel Ataíde
Segundo Lélia Coelho Frota, a mestiçagem não foi um trabalho de
Ataíde, mas está refletido em diferentes setores da sociedade e em diversos
estratos sociais:
A presença das culturas africanas é aferível no envolver da vida
setecentista das cidades da mineração. Dá-se no âmbito dos rituais ou
do lazer de grupos das camadas pobres (congadas, reisados,
47
batuques) e, a nível do erudito, de saída a localizamos, devido à
miscigenação, nas próprias manifestações visuais e musicais da
sociedade da época.
60
Mestre Ataíde, como era conhecido, não teve escola. Sua obra é inspirada
em azulejos portugueses e na gente simples de sua pequena vila. Embora sem
estudo iconológico, influenciou muitos pintores de sua época. Em seu trabalho na
pintura, destacam-se o uso de cores fortes, com a preferência do azul, e os traços
africanos nos anjos, nos santos e nas madonas
Os desenhos da Glorificação da Virgem são compostos por uma madona
morena, com anjinhos também morenos que Manuel Ataíde teve como modelo
muitos “mulatos”, filhos de escravos que chegaram da África para trabalharem nas
plantações de cana de açúcar. Supõe-se que o rosto da Virgem seja o de sua
mulher e os dos anjinhos, o rosto de seus filhos.
O popular com o erudito, a luz e a sombra, o sagrado com o divino,
características gerais do Barroco, Ataíde aplica em suas obras, porém com tônus
tropical e até com a mistura de elementos dicotômicos como os exemplos a seguir:
A figura espiritual dos anjos apresenta feições de pessoas do povo; a
Virgem da Porciúncula, que foi o primeiro convento dos franciscanos em Assis, na
Itália, une-se com a simbologia da Virgem do Apocalipse, de São João. A essa
última referência, vale registrar a passagem bíblica, pois muitos artistas usaram-na
como inspiração para suas obras:
Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol,
tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas;
estava grávida, entre as dores do parto, atormentada para dar a luz.
Apareceu então outro sinal no céu: um grande Dragão cor de fogo,
com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas;
sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a
terra. O Dragão postou-se diante da Mulher que estava para dar a luz
um filho varão, que regerá todas as nações com cetro de ferro. Seu
filho, porém foi arrebatado para junto de Deus e seu trono, e a Mulher
fugiu para o deserto, onde Deus lhe havia preparado um lugar em que
fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias.
61
60
FROTA: 1982, p. 22.
61
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Ap 12, 1-6.
48
A representação da temática da glorificação de Nossa Senhora, retratada
por pintores espanhóis, por exemplo, mosta Maria de pé, diferentemente da Virgem
de Ataíde, que está reclinada em um assento de nuvens brancas. Estas contrastam
com a pele morena da madona, outra mescla.
Para refletir sobre imagem de Maria no Barroco hispano-brasileiro,
apresentamos o pensamento do especialista francês, German Bazin, que confronta
a convergência e a divergência do mesmo discurso plástico, em espaço diverso,
interlocução que ratifica as análises demonstradas:
O sentido de enfado por um excesso de arte respeitante à natureza,
que a crítica neoclássica dos países europeus de clima frio ou
temperado reprova ao barroco, não se verifica de fato no mundo
espanhol e português do ultramar: onde pelo contrário é
completamente incompreensível ao modo de sentir e de pensar dos
artistas e dos seus próprios comitentes indígenas. Ali a relação entre o
ambiente natural e artístico foi sempre entendida como uma simples
transposição da realidade para uma ficção que se lhe adere.
A exuberância da decoração barroca não excede o verdor impetuoso e
desordenado da vegetação tropical, pelo contrário adapta-se-lhe
perfeitamente, e, nos seus esquemas compositivos, oferece um
critério de seleção e um registro de ordem: como intensidade e
variedade é um menos, não um mais. Em exata conformidade com
os critérios normativos das estéticas contemporâneas, a passagem do
ambiente natural ao artístico é uma transcrição de dados, emoções,
destinada a obter com o mais o menos, e não vice-versa, como julga
a crítica adversa.
62
Desta forma, seja entre os artistas barrocos espanhóis, ou entre os artistas
brasileiros, Maria foi retratada com a dignidade da mulher por excelência,
persuadindo o observador à piedade, à e à devoção a Mãe do Redentor, como
nos apontou Francisco Pacheco.
62
BAZIN, Germain. O Barroco Um estado de Consciência. In: ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: Teoria
e Análise. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração,
1997, p. 27, 28.
49
2. MARIA, UM TEMA INESGOTÁVEL
Mais que Sara, feliz nasce Maria,
que Rebeca, nasce mais prudente;
mais bela que Raquel a chama a gente,
e por virgem, fecunda mais que Lia.
Mais que Débora sábia se avalia,
e que Judite se ostenta mais valente,
mais que Ester satisfaz graciosamente,
mais que Suzana casta se confia.
63
Sara, Rebeca, Raquel, Lia, Débora, Judite, Ester, Suzana
64
são algumas
das inúmeras mulheres da Bíblia, que, no Antigo Testamento realizaram algum fato
fora do comum, exerceram alguma atividade que a tornaram célebres, ou se
conduziram com retidão e amor a Deus. De qualquer forma, elas prefiguram Maria e
representam a categoria de gênero, sem muito destaque na sociedade israelita da
época.
O interesse pela figura de Maria, sobretudo no século XXI, reflete um
avanço dos valores femininos na espiritualidade e a procura de uma experiência
com o divino mais próxima com a realidade do homem, já que Maria era uma mulher
comum pertencente à camada popular judaica.
Na antropologia cultural, Maria se destaca como uma mulher que participa
da ação revolucionária de seu Filho e assume a condição de quem ouve, vive e
anuncia a palavra do Pai. A atitude de Maria diante do mistério da encarnação é de
humildade e de serviço. De humildade como serva do Senhore de serviço quando
se propõe a ajudar a prima Isabel. No encontro das duas mulheres, sendo uma
63
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. Ao Nascimento de Nossa Senhora. In: Lira sacra. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p.254.
64
Ester (rainha) e Judite (viúva) ambas têm livros próprios na blia, a primeira era a esposa do rei
Assuero, que reinou sobre 127 províncias, da Índia à Etiópia; a segunda matou o general Holofernes,
do exército assírio, que tentava destruir as tropas israelitas. Sara, mãe de Isaac e esposa de Abraão,
a quem Deus prometeu a descendência do povo eleito (Gn 12...); Rebeca, esposa de Isaac, mãe de
Esaú e Jacó (Gn 25...); Lia e Raquel, esposas de Jacó e filhas de Labão, irmão de Rebeca (Gn
29...); Débora, profetisa que se tornou juíza, ajudou Barac a defender seu povo (Jz 4...) e Susana,
mulher reta, confiante em Deus, foi salva da morte por intercessão divina (Dn 13)
50
delas a guardiã do Filho de Deus, temos a grande expressão do feminino que faz a
história, numa sociedade onde as mulheres se encontravam à margem.
Na era cristã, Maria vem sendo abordada sob variadas representações por
teólogos, artistas laicos, religiosos e gente simples do povo, guardando cada um
deles as idiossincrasias do grupo a que pertence sem, no entanto, esquecer o fato
que a glorifica, ser a mãe de Deus, título mais antigo.
Em cada época, Maria sofre a interferência dos modelos culturais e a
conotação que seus autores querem-lhe imprimir: ora sua imagem apresenta tônus
de sacralidade ou de humanidade; ora seus traços têm similitudes com deusas
pagãs ou se mesclam com as cores locais do povo que a cultua. Neste capítulo,
apresentamos um panorama de sua presença nos documentos mais recentes da
Igreja e em algumas obras literárias importantes até o século XVIII, como forma de
demonstrar que o tema é recorrente na religião e na arte.
2.1. Maria nos documentos eclesiais
A Virgem Maria, que na anunciação do anjo
recebeu o Verbo de Deus no seu coração e no
seu corpo, e deu a Vida ao mundo, é
reconhecida e honrada como verdadeira Mãe de
Deus e do Redentor. Remida de modo mais
sublime em atenção aos méritos de seu Filho, e
unida a ele por vínculo estreito e indissolúvel, foi
enriquecida com a sublime prerrogativa e
dignidade de ser Mãe de Deus Filho, e, portanto,
filha predileta do Pai e sacrário do Espírito
Santo; com este dom de graça sem igual,
ultrapassa de longe todas as outras criaturas
celestes e terrestres.
65
Do ponto de vista religioso, Maria sempre esteve presente na história da
salvação, com o Mistério da Encarnação e na construção da Igreja, a partir do
65
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Lumen Gentium “De Ecclesia”. São Paulo: Paulinas, 2003, n
o
51.
51
Pentecostes. Porém dois aspectos são significativos tanto para Igreja do passado e
como para a do presente: ser a Mãe de Deus, por extensão mãe dos homens, e ser a
Medianeira de graças entre os homens e Deus, conforme atestam vários
documentos eclesiais, dentre os quais destacamos os mais recentes, a partir do
Concílio Vaticano II.
A Lumen Gentium „De Ecclesia‟
66
, de 1964, analisa a situação da Igreja na
segunda metade do século XX, retoma ensinamentos dos concílios anteriores e
estabelece normas para o futuro da vida religiosa com fins de “iluminar todos os
homens com a claridade de Cristo que resplandece na face da Igreja”.
67
Dentre os
vários temas abordados, o capítulo VIII é dedicado A Bem-aventurada Virgem Maria,
Mãe de Deus, no ministério da Igreja, de onde extraímos o Art. 66, que estabelece o
culto a Nossa Senhora:
Maria foi exaltada pela graça de Deus acima de todos os anjos e de
todos os homens, logo abaixo de seu Filho, por ser a Mãe
Santíssima de Deus e, como tal haver interferido nos mistérios de
Cristo: por isso, a Igreja a honra como culto especial. Na verdade, já
desde os mais antigos tempos, a Santíssima Virgem é venerada
com o título de „Mãe de Deus‟, recorrendo os fiéis com súplicas à
sua proteção em todos os perigos e necessidades. [...] Este culto, tal
como existiu sempre na Igreja, é de todo singular, mas difere
essencialmente do culto de adoração que é prestado ao Verbo
encarnado e do mesmo modo ao Pai e ao Espírito Santo, e muito
contribui para ele.
68
Em 02 de fevereiro de 1974, na festa de Nossa Senhora da Candelária, o
Papa Paulo VI publica a Encíclica Marialis Cultus na qual analisa a figura de Maria
na Igreja, nos documentos, nas festas, na liturgia e conclui sobre a presença
confortadora e auxiliadora de Maria na vida humana:
66
LUMEM GENTIUM “De ecclesia” é a constituição dogmática do Concílio Ecumênico Vaticano II
sobre a Igreja, de 1964. O texto consta de oito capítulos com os seguintes títulos: O mistério da
Igreja; O povo de Deus; Constituição Hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado; Os leigos;
Vocação Universal à Santidade na Igreja; Os Religiosos; Índole escatológica da Igreja peregrina e
sua união com Igreja celeste. O capítulo VIII e último é dedicado à Virgem Maria sob o título de A
bem-aventurada Virgem Maria, mãe de Deus, no ministério de Cristo e da Igreja.
67
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Lumen Gentium “De Ecclesia”. São Paulo: Paulinas, 2003,
n
o
1 .
68
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Lumen Gentium “De Ecclesia”. São Paulo: Paulinas, 2003,
n
o
66.
52
Para o homem contemporâneo, - não raro atormentado entre a
angústia e a esperança, prostrado mesmo pela sensação das próprias
limitações e assaltado por aspirações sem limites, perturbado na
mente e dividido em seu coração, com o espírito suspenso perante o
enigma da morte, oprimido pela solidão e, simultaneamente, a tender
para a comunhão, presa da náusea e do tédio, - a bem-aventurada
Virgem Maria contemplada no enquadramento das vicissitudes
evangélicas em que interveio e na realidade que alcançou na
Cidade de Deus, proporciona-lhe uma visão serenadora e uma palavra
tranqüilizante: a da vitória da esperança sobre a angústia, da
comunhão sobre a solidão, da paz sobre a perturbação da alegria e da
beleza sobre o tédio e a náusea, das perspectivas eternas sobre as
temporais e, enfim, da vida sobre a morte.
69
Em 25 de março de 1987, na Festa da Anunciação, João Paulo II publica a
Carta Encíclica Redemptoris Mater, na qual também destaca a importância de Maria,
no cotidiano do homem. Em sua carta pastoral, o Papa retoma alguns aspectos da
Lumen Gentium e reforça a presença irrestrita de Nossa Senhora na história da
salvação, a partir de seu “fiat”: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo
a tua palavra!”
70
João Paulo II apresenta outros pontos importantes, sobre a Virgem: a
antecipação da vida pública de Jesus com o milagre do vinho, em que o Messias,
apesar da aparente recusa por não ter chegado a sua hora, faz a vontade da Mãe;
durante a Paixão, aos s da cruz, quando Maria assume a condição de Mãe da
humanidade e após a Ressurreição, no dia de Pentecostes, marco de fundação da
Igreja, em que a presença de Nossa Senhora, junto aos apóstolos, demonstra a
continuação da obra salvífica de Jesus. Na conclusão, o Papa faz referência a uma
invocação da Igreja a Maria, na Liturgia das Horas, com o ponto de vista que
demonstra a clara referência à queda de Eva e o resgate da Mãe de Jesus:
[...] „Santa Mãe do Redentor‟; é a invocação dirigida a Cristo, que por
meio de Maria entrou na história da humanidade. De ano para ano, a
antífona é elevada ao céu, em louvor de Maria, evocando o momento
em que se realizou essa essencial reviravolta histórica, que perdura
irreversivelmente: a mudança do entre „o cair‟ e „o erguer-se‟.
71
69
PAULO VI (Papa). Culto à Virgem Maria. In Documentos Pontifícios,186. ed., Petrópolis (RJ):
Vozes, 1974, n
o
56.
70
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1,38.
71
JOÃO PAULO II (Papa). Redemptoris Mater. São Paulo: Paulinas, 2003, n
o
52.
53
Recentemente, o episcopado latino-americano e caribenho, sob a
presidência do Papa Bento XVI, publicou o resultado do V CELAM
72
, denominado
Documento de Aparecida, no qual discute e apresenta reflexões sobre vários temas
comuns à complexa realidade de suas jurisdições: a ecologia, a ética, a violência, o
diálogo inter-religioso.
Embora a Assembléia pareça essencialmente cristológica, com o tema
“Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham
vida”, e com o lema, “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), referindo-se
às palavras de Jesus, a presença de Maria é marcante, como ilustra o logotipo do
evento em cuja representação Jesus está ao lado de sua Mãe.
Logotipo do V CELAM
72
CELAM (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano), que em 2007, se reuniu no Brasil.
Além dos representantes eclesiais dos países latino-americanos, o V CELAM teve a participação de
bispos da região do Caribe. Com mais de meio século de existência, o evento ocorre,em terras
brasileiras, pela segunda vez. As cinco Conferências realizaram-se em: Brasil - Rio de Janeiro
(1955); Colômbia Medellín (1968); México Puebla de los Angeles (1979); República Dominicana
Santo Domingo (1992); Brasil Aparecida (2007).
54
A exegese da imagem apresenta uma cruz vermelha, em destaque,
significando Jesus e seu sangue derramado pela redenção da humanidade; no
espaço contíguo, um círculo azul, simbolizando a presença de Maria, junto ao
ministério de amor de seu Filho. A cruz e a esfera estão circundadas por duas
curvas, uma à esquerda, em azul e outra à direita em verde, representando as
águas e a terra com suas florestas, respectivamente.
Para os religiosos, Maria, como Igreja, passa pela dimensão antropológica
que cuida da diversidade de seus filhos, a partir da concepção indígena da Virgem
de Guadalupe (1531), ou da imagem negra, de Nossa Senhora Aparecida (1716).
Maria é Mãe da unidade, na pluralidade, não é sem razão que uma única mulher,
tenha inúmeros títulos, ora ela a Mãe Dolorosa, ora ela a Virgem Gloriosa, sem
deixar de acolher para junto de si, aqueles que a ela buscam o Perpétuo Socorro.
Dizem os bispos, em Aparecida:
Sua figura de mulher, livre e forte, emerge do Evangelho,
conscientemente, orientada para o verdadeiro seguimento de Cristo.
Ela viveu completamente toda a peregrinação da como mãe de
Cristo e depois dos discípulos, sem que fosse livrada da
incompreensão e da busca constante do projeto do Pai. [...]
73
Com ela, providencialmente unida à plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4)
chega o cumprimento da esperança dos pobres e do desejo de
salvação. A Virgem de Nazaré teve uma missão única na história da
salvação, concebendo, educando e acompanhando seu filho até seu
sacrifício definitivo. [...] Perseverando junto aos apóstolos à espera do
Espírito (cf. At 1,13-14), ela cooperou com o nascimento da Igreja
missionária, imprimindo-lhe um selo mariano que a identifica
profundamente. [...] Em Maria, encontramo-nos com Cristo, com o Pai
e com o Espírito Santo, assim como com os irmãos.
74
Como na família humana, a Igreja-família é gerada ao redor de uma
mãe, que confere “alma” e ternura à convivência familiar. Maria, Mãe
da Igreja, além de modelo e paradigma da humanidade, é artífice de
comunhão. Um dos eventos fundamentais da Igreja é quando o “sim”
brotou de Maria. Ela atrai multidões à comunhão com Jesus e sua
Igreja como experimentamos, muitas vezes, nos santuários
marianos.
75
73
V CELAM. Documento de Aparecida. 8ª. ed. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus; São Paulo, Paulinas,
2008, n
o
266.
74
V CELAM: 2008, n
o
267.
75
V CELAM: 2008, n
o
268.
55
Afora o magistério da Igreja, a literatura sobre Maria é uma das fecundas do
mundo e são inúmeras as obras elaboradas em diferentes línguas, tempo e espaço.
livros sobre orações, consagrações, promessas, aparições, terços, medalhas,
novenas. Há outros que destacam a presença de Maria nas congregações religiosas
e na vida da Igreja. também um terceiro grupo o dos artistas - que ressalta o
culto prestado pelos fiéis, em função dos diferentes títulos que Nossa Senhora
recebera ao longo de dois milênios, através da arte.
2.2. A literatura com inspiração mariana
Elogiamos-te com cânticos,
Virgem glorificada por todos.
Salve, ó fértil monte regado pelo Espírito;
salve, lâmpada e vaso,
portador do Maná
que adoça os sentimentos de todos os devotos.
76
A Virgem Maria é um tema inesgotável que ultrapassa a esfera religiosa e
tem servido de inspiração para escritores, com finalidade artística e teólogos, com
objetivo catequético, percebido pelo crescente número de obras literárias.
Entre os livros do primeiro século temos o Evangelho de o Lucas
escrito por volta do ano 80 - que a tradição cristã diz ter o autor contado com
testemunhas oculares sobre os feitos de Jesus e de sua Mãe. Ao lado do texto
canônico de Lucas, os evangelhos apócrifos, “obras religiosas destituídas de
autoridade canônica”
77
, de teor mariano, elaborados provavelmente entre os séculos
III e VI como o Proto-evangelho de Tiago, com a História do Nascimento de Maria; o
Trânsito de Maria, do Pseudo-Melitão de Sardes; o Livro do Descanso, considerado
76
HINO AKÁSTHITOS. Ode Quarta. In: PASSARELLI, Gaetano. El ícono de la Madre de Dios. Madri:
Publicações Claretianas, 1993. Tradução Mario Gonçalves. São Paulo: Editora Ave Maria, Projeto
Iconostásio, 1996.
77
Cf. DICIONÁRIO HOUAISS de Língua Portuguesa.
56
como o texto mais antigo até agora encontrado; a História de José - o carpinteiro,
dentre outros.
Depois de Cristo, é Maria quem possui a maior bibliografia. Há livros,
jornais, revistas, boletins, além de documentos eclesiais, escritos pelos Papas, ou
elaborados nos Concílios, ocasiões em que a Igreja proclamou alguns Dogmas
Marianos. O registro bibliográfico e iconográfico de Maria se perde na história do
tempo, podendo ser demonstrado em alguns exemplos da literatura e de outras
artes, temática que desejamos abordar, nesta tese.
As imagens da Virgem são, preferencialmente, da estética barroca,
produzidas artisticamente na pintura, no teatro e na poesia. Como preâmbulo,
apresentamos as reflexões de Santiago Sebastián:
El arte cristiano tiene repertorios de imágenes, historias y alegorías,
que están consagradas por una larga tradición tanto gráfica como
literaria; es decir, está codificado y es realmente facil de leer; no hay
más problema que el de adiestrarse en el conocimiento de estas
imágenes. Se hace preciso, sin embargo, proceder con la mayor
objetividad, ya que estas imágenes y alegorías presentan en cada
época ligeros cambios de acuerdo con la evolución de la espiritualidad;
no olvidemos que lo que se analiza son fundamentalmente obras
religiosas, que cumplían la misión de estimular la piedad de los
cristianos en orden a conducirlos a su último fin.
No se puede „leer‟ con seriedad y objetividad la narración de la obra de
una época determinada, si no es contrastándola con textos literarios
de contenido religioso o de otro tipo.
78
Como inicio da interlocução, nos valemos das palavras do papa João Paulo
II, na Carta aos artistas, publicada na Solenidade da Páscoa da Ressurreição, em
04.04.1999, na qual os exorta, como imagem de Deus e artífices de sua criação:
Ninguém melhor do que vós, artistas, construtores geniais da beleza,
pode intuir algo daquele pathos com que Deus, na aurora da criação,
contemplou a obra das suas mãos. Infinitas vezes se espelhou um
relance daquele sentimento no olhar com que vós como, aliás, os
artistas de todos os tempos - , maravilhados com o arcano poder dos
sons e das palavras, das cores e das formas, vós pusestes a admirar a
obra nascida do vosso gênio artístico, quase sentindo o eco daquele
78
SEBASTIÁN, Santiago. Contrarreforma y barroco. Argentina: Alianza forma, 1981, p. 13.
57
mistério da criação a que Deus, único criador de todas as coisas, de
algum modo vos quis associar.
[...]
Ao escrever-vos, desejo dar continuidade àquele fecundo diálogo da
Igreja com os artistas que, em dois mil anos de história, nunca se
interrompeu e se prevê ainda rico de futuro no limiar do terceiro
milênio.
79
A Igreja sempre esteve em diálogo permanente com a arte, seja na
arquitetura do espaço sagrado para seus ritos; na pintura e na escultura, como
transmissão da mensagem evangélica, através da imagem; no canto e na música,
como expressão de louvor à divindade; ou ainda na literatura, como manifestação do
pensamento e/ou sentimento do artista.
Na interlocução entre o religioso e o artístico, Maria desponta como o
modelo de muitas obras. O tema mariano é tão profícuo que acervos literários,
musicais, iconográficos, numismáticos, heráldicos vastos e variados se fazem
presentes na História da humanidade de todas as épocas, confirmando as palavras
proféticas de Nossa Senhora: “Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de
bem-aventurada”
80
.
No Ocidente um vasto repertório poético dedicado a ela, seja através da
palavra cantada, ou através de poemas longos e breves. Na igreja Oriental o é
diferente, é dessa igreja que temos uma das primeiras composições poéticas e
melódicas, o hino Akáthistos,
81
elaborado, provavelmente no século V, para celebrar
o mistério da mãe de Deus:
O hino à Mãe de Deus, verdadeira obra-prima de literatura e de
teologia, nem sequer tem nome. O nome “Akáthistos” que recebe é
duplamente indicativo: refere-se à postura corporal e espiritual dos
fiéis que o cantam ou escutam. Canta-se ou se escuta „de pé‟
79
JOÃO PAULO (II Papa). Carta aos Artistas. 6ª. ed., São Paulo: Paulinas, 2006, p. 5.
80
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc.1, 48.
81
Akáthistos: hino litúrgico, mais famoso do Oriente cristão, que era entoado de pé. É um cântico
todo centrado em Cristo, contemplado à luz da sua Virgem Mãe. Por 144 vezes ele nos convida a
renovar a Maria a saudação do Arcanjo Gabriel: Ave Maria! Repercorremos as etapas da sua
existência e louvamos os prodígios realizados nela pelo Omnipotente: desde a concepção virginal,
início e princípio da nova criação, até à sua maternidade divina, à partilha da missão do seu Filho,
sobretudo nos momentos da sua paixão, morte e ressurreição”, palavras de João Paulo II, em homilia
proferida na Basílica de Santa Maria Maior, em 08.12.2000.
58
(„akdthistos‟), em sinal externo de atenção reverente; „como sinal de
alegria e louvor à Virgem por sua vitória a favor do povo‟.
A estrutura, a métrica, o acróstico, as imagens, todos os recursos que
a linguagem oferece põem-se ao serviço da Mãe de Deus, cantada e
admirada por ser „a Imaculada Virgem Mãe de Deus, e Aurora de
salvação‟. A Virgem, com efeito, é encruzilhada de caminhos: Deus e
homem encontram-se nela. A história e a trans-história citam-se em
Maria. O imanente e o transcendente, o mistério realizado e em vias
de realização, convergem para Maria.
82
A poemática do hino apresenta manifestações honrosas à Virgem Maria,
através de símbolos e imagens, usados reiteradamente por teólogos e escritores,
como atributos de sua santidade. No conjunto, Maria se mostra como uma mulher
operante e presente na vida de seus filhos terrenos como “defesa de todos”,
“proteção, fortaleza e sagrado refúgio”, “divino umbral de quem se salva”, “escada
que, da terra, elevas todos à graça”, expressões se repetem ao longo do poema
musicado.
Apresentamos alguns versos da primeira ode, em que o sujeito lírico inicia
seu canto com palavras enaltecedoras à Santa: “Abrirei a boca que será abundante
em palavras e ficarei cheio do Espírito: entoarei uma canção em honra da Mãe
rainha; apresentar-me-ei gozosamente para celebrá-la e, jubilosamente, cantarei
tuas maravilhas.”
83
A ode inicia:
Ao ver-te, livro vivo de Cristo,
selado pelo Espírito,
o grande Arcanjo, ó Puríssima, digo-te:
Alegra-te, ó receptáculo da felicidade,
porque cessará a maldição da Primeira Mãe.
[...]
Alegra-te,
tesouro da pureza,
por quem nos levantamos de nossa queda;
alegra-te, Soberana,
lírio perfumado que perfumas os fiéis,
incenso de suave fragrância,
aroma preciosíssimo.
84
82
PASSARELLI, Gaetano. Hino “Akáthistos” à Mãe de Deus. In: El ícono de la Madre de Dios. Madri:
Publicações Claretianas, 1993. Tradução Mario Gonçalves. Projeto Iconostásio. São Paulo: Ave
Maria, 1996, p. 45, 46.
83
PASSARELLI: 1993, p.48.
84
PASSARELLI: 1993, p.48,49.
59
Observamos, no fragmento, que Maria é “Puríssima”, “Soberana”,
“receptáculo da felicidade”, “tesouro de pureza”. Ao longo do conjunto de poemas,
outras figuras, repletas de delicadezas para com a Virgem, reforçam a atitude de
amor e a veneração da Igreja Oriental: “rosa que não murcha”, “esposa inviolada”,
“tesouro da pureza”, lírio perfumado”, “aroma preciosíssimo”, “gleba incultivada”,
“manancial inesgotável de água viva”, “aurora resplandecente”, “vaso portador do
Maná”. Essas e muitas outras metáforas estão presentes nas nove odes que
compõe o hino.
2.2.1. Los Milagros de Nuestra Señora e as Cantigas de
Santa Maria no louvor medieval
Deus te salve, groriosa
Rea Maria,
Lume dos Santos fremosa
e dos Ceos Via
Salve-te, que concebiste
mui contra natura,
e pois teu padre pariste
e ficaste pura
Virgen, e poren sobiste
sobela altura
dos ceos, porque quesiste
o que el queria. .
85
Na literatura medieval, duas obras se destacam como as mais notáveis
expressões de apreço a Maria, Los Milagros de Nuestra Señora, do poeta espanhol
Gonzalo de Berceo (1195-1264), e Las cantigas de Santa María, do rei Afonso X
(1252-1284).
Um conjunto de vinte cinco poemas compõe Los Milagros de Nuestra
Señora, escritos por volta 1260, por Gonzalo de Berceo
86
. Os milagres mostram a
85
ALFONSO X, O Sabio. Deus te salve Groriosa. In: Cantigas de Santa Maria. Vol. I. Coimbra:
Universitatis Conimbrigensis, 1959, p.117.
60
atuação de Maria como a grande Auxiliadora das pessoas, em circunstâncias muito
variadas. Ao primeiro grupo, ela é segurança, diante de situações adversas que o
homem comum enfrenta no seu dia-a-dia como doença, miséria e sofrimento de
diferentes ordens; ao segundo, é consolo e proteção, ao aflito pecador arrependido
que, por seu estado de impureza espiritual, não ousa pedir ajuda ao Criador.
Medianeira de todas as graças ela se apresenta ao terceiro grupo, que
diferentemente dos demais, é formado por cristãos devotos, constantes na oração,
na penitência e na comunhão.
A maioria dos milagres aponta a intervenção de Nossa Senhora diante de
um problema que a ação humana não é capaz de solucioná-lo. É neste sentido que
a religiosidade medieval se apega ao amor maternal, absoluto, onipotente e
incondicional da divina mãe, para com o filho perdido, miserável, desvirtuado,
algumas vezes desgraçado como é a narrativa de O Milagro de Teófilo que busca o
perdão, por ter renegado Cristo e pactuado com Satanás, para alcançar o poder no
bispado onde vivia.
Ao longo do poema, desfilam os pecados capitais - a vaidade, o rancor, a
inveja demonstrando o quanto são prejudiciais ao homem. Depois de ardorosas
súplicas, jejuns e penitência, Teófilo alcança o perdão e a salvação. Os fragmentos
que exemplicamos demonstram a do homem medieval, sofredor e penitente, que
mesmo conhecedor de sua inglória é capaz de depositar sua confiança na Santa
Maria, a Virgem da Misericórdia. Na voz de Teófilo, apresentamos as imagens
poéticas da Intercessora:
Del pleito de Teófilo vos querria fablar,
Tan precioso miraclo non es de oblidar,
Ca en esso podremos entender e asmar,
Que vale la Gloriosa qui la sabe rogar.
87
[...]
Bien sé que desta fiebre non podré terminar,
Non a menge nin fisico que me pueda prestar,
Si non Sancta Maria, estrella de la mar;
Mas, ¿qui será osado que la baia rogar?
86
Gonzalo de Berceo (1197-1264), poeta e clérico espanhol, trabalhou em mosteiros e produziu
obras de temática religiosa, grande parte voltada para a hagiografia. Los milagros de Nuestra Señora
não é original, mas efetiva a compilação de textos que circulavam, cuja divulgação Berceo teve o
mérito de realizar.
87
BERCEO, Gonzalo. Milagros de Nuestra Señora. 4ª. Ed. Edición y notas de A.G. Solalinde. Madrid:
Espasa-Calpe, 1952, p.162.
61
[...]
Non quiero por piedes la cabeza desar,
A la Madre gloriosa me quiero acostar,
Cadré a los os piedes delante so altar,
Atendiendo su gracia alli quiero finar.
88
[...]
Echóseli a piedes a la Sancta Reina
Que es de peccadores conseio e madrina:
“Sennora, - disso valas a la alma mesquina,
A la tu mercet vengo buscarli medicina.
[...]
Sennora vennedicta, reina coronada,
Que siempre fazes preces por la gent errada,
Non vaya repoyado io de la tu posada;
Si non, dizrán algunos que ia non puedes nada.
[...]
Sennora, tú que eres puerta de parisso
En qui el Rei de gloria tantas bondades miso,
Torna en mi Sennora, el to precioso viso,
Ca so sobeia quisa del mercado repiso.”
89
[...]
Amigos, si quisiesedes vuestras almas salvar,
Si vos el mi conseio quisieredes tomar,
Fech confession vera, non querades tardar.
E predet penitência, pensatla de guardar,
[...]
Quieralo Jesu Cristo e la Virgo gloriosa,
Sin la qual non se faze ninguna buena cosa,
Que assi mantegamos esta lazrosa,
Que ganemos la otra durable e lumnosa.
Amén.
90
Pela observação dos poucos fragmentos de O Milagre de Teófilo, é possível
perceber Maria como “a Gloriosa”, “Santa Maria”, “Estrela do Mar”, “Mãe gloriosa”,
“Santa Rainha”, “Porta do Paraíso”. Foi com a mediação de Maria e a complacência
de Jesus que Teófilo alcançou o perdão dos pecados e a salvação da alma.
As Cantigas de Santa Maria é outra produção medieval, digna da reverência
humana ao divino. Escritas em galaico-português pelo rei poeta Alfonso X,
91
elas
encerram a mais acabada integração da literatura com outras artes daquele período.
88
BERCEO: 1952, p.173.
89
BERCEO: 1952, p.175.
90
BERCEO: 1952, p.191.
91
Afonso X (1221-1284), rei e poeta castelhano, governou Leão e Castela de 1252-1284. Assim
como seu neto o rei e trovador D. Dinis de Portugal, Afonso X foi um grande dinamizador da cultura
medieval e um mecenas generoso para o trovadorismo ibérico. Como escritor, ficou célebre como
cancioneiro sacro, nas Cantigas de Santa Maria.
62
Nas mais de quatrocentas composições, se entrelaçam poesia, canto e iluminura,
num diálogo constante que ultrapassa a esfera artística e convergem para elas o
popular, o erudito e o religioso.
Representação do poeta Afonso X, com sua platéia e seus músicos, em iluminura
Alfonso, el Sabio usa os três segmentos popular, erudito, religioso e
organiza um programa catequético, incorporando, no início de cada cantiga, uma
didascália
92
que orientará o leitor ou o ouvinte para o conteúdo de agradecimento,
louvação e pedido à Virgem Maria, algumas vezes com apresentação de algum
milagre. Por isso, as Cantigas de Santa Maria são consideradas uma das grandes
obras universais dedicadas a Nossa Senhora.
Apresentamos alguns fragmentos de duas cantigas: a Cantiga 10 e a
Cantiga 100, do códice existente na biblioteca do Escorial
93
, seguindo a mesma
estrutura que está presente nas publicações.
92
Didascália é a denominação dada às anotações de obra de teatro, corresponde também às
instruções feitas pelo autor ou diretor aos intérpretes.
93
Monasterio del Escorial é complexo arquitetônico edificado, próximo a Madri, na segunda metade
do século XVI, por Felipe II, de Espanha. El Escorial abriga uma vasta biblioteca com cerca de 40.000
volumes, entre os quais figuram importantes códices de poesias. Pelo conjunto de pinturas,
esculturas, ornatos sacros e áulicos, El Escorial pode ser considerado um museu, de valor simbólico
incalculável para a História da Espanha.
63
Esta é de loor de Santa Maria, com‟é fremosa e boa e á gran poder.
Rosas das rosas
Rosas das rosas e Fror das frores,
Dona das donas, Sennor das sennores.
Rosa de beldad' e de parecer
e Fror d'alegria e de prazer,
Dona en mui piadosa seer,
Sennor en toller coitas e doores.
Rosas das rosas e Fror das frores...
[...]
Devemo-la muit' amar e servir,
ca punna de nos guardar de falir;
des i dos erros nos faz repentir,
que nos fazemos come pecadores.
Rosas das rosas e Fror das frores...
Esta dona que tenno por Sennor
e de que quero seer trobador,
se eu per ren poss' aver seu amor,
dou ao demo os outros amores.
Rosas das rosas e Fror das frores...
94
Esta C. é de loor de Santa Maria.
Santa Maria
Santa Maria,
Strela do dia,
mostra-nos via
pera Deus e nos guia.
Ca veer faze-los errados
que perder foran per pecados
entender de que mui culpados
son; mais per ti son perdõados
da ousadia
que lles fazia
fazer folia
mais que non deveria.
Santa Maria...
95
Guiar ben nos pod' o teu siso
94
ALFONSO X, O Sabio. Rosa das Rosas. In: Cantigas de Santa Maria. Vol. I. Coimbra: Universitatis
Conimbrigensis, 1959, p.33.
95
ALFONSO X, O Sabio. Sancta Maria, Strela do dia. In: Cantigas de Santa Maria. Vol. I. Coimbra:
Universitatis Conimbrigensis, 1959, p. 285.
64
mais ca ren pera Parayso
u Deus ten senpre goy' e riso
pora quen en el creer quiso;
e prazer-m-ia
se te prazia
que foss' a mia
alm' en tal compannia.
Santa Maria...
96
Alfonso X sintetiza o caráter cristão e cavalheiresco do medieval,
enaltecendo a figura de Maria em três substantivos - “Virgem”, “Rainha” e “Mãe” - e
quatro adjetivos - “Santa”, “Bendita”, “Piedosa” e “Gloriosa”.
2.2.2. Divina Comédia: intercessão e glorificação da Virgem
Assim a giratória melodia
se formulara, e as almas, num clamor,
fizeram soar o nome de Maria.
[...]
Pôs-se a cantar, então o grupo eleito
Regina coeli e tanta suavidade,
que inda a sinto vibrar dentro em meu peito
97
Na alta Idade Média, um clássico faz parte do acervo laudatório da Virgem
Maria; trata-se da Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri,
98
escrita
provavelmente entre 1304-1321. Dividida em Inferno, Purgatório e Paraíso, Nossa
Senhora está presente em todos eles. No Inferno e no Purgatório, Maria exerce o
papel de Amparo dos sofredores, Consoladora dos aflitos, Socorro dos
necessitados; no Paraíso, ela é a Virgem Gloriosa, como demonstração da vida
eterna que terá o justo, depois da morte.
96
ALFONSO X: 1959, p.286.
97
ALIGHIERI, Dante. PARAÍSO, Canto XXIII, vv.109-111; 127-129. In: A Divina Comédia. Tradução e
comentários de Cristiano Martins. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p.740, 741.
98
Dante Alighieri (1265-1321), escritor e político italiano é considerado o primeiro entre os maiores
poetas de língua italiana.Sua obra máxima, a Divina Comédia, contém fundo político, teológico e
psicológico.
65
A primeira intervenção de Maria está no Canto II, do Inferno. Dante se
encontra indeciso e amedrontado com a proposta de Virgílio
99
em retirá-lo da selva
escura (alegoria do pecado), através do inferno. No momento de muita preocupação,
aparece-lhe a amada Beatriz, confortando-o para não temer, pois Maria veio em seu
amparo, buscando a mediação de Santa Lúcia
100
de quem o poeta era devoto,
que a Virgem não poderia descer ao Inferno:
88 Perto de Deus estou, em graça, e tal
que não me atinge esta miséria imensa,
nem deste incêndio o seu calor fatal.
101
94 - A senhora do Céu viu-se propensa
a mitigar o transe a que te envio,
suspendendo gravíssima sentença.
97 - Lúcia chamou, dizendo quando a viu:
- Em risco está teu devoto fiel;
ele anseia por ti, e eu to confio.
102
100 - Lúcia, doce inimiga do cruel,
moveu-se e veio ter onde eu jazia
em repouso, co‟a mística Raquel.
No Canto V, do Purgatório, Nossa Senhora socorre os necessitados. Dante
e Virgílio se deparam com as almas daqueles que sofreram morte violenta, mas no
instante final, se arrependem e perdoam seus algozes, ou se mostram pesarosos de
seus pecados. Um dos espíritos narra como foi subtraído das mãos do demônio pela
intervenção de Maria, interpelada pelo morto (Bonconte de Montefelto) na hora de
sua morte, com um balbucio e uma lágrima. Bonconte participou com Dante, da
batalha de Campaldino, em 1289, e seu corpo nunca foi encontrado.
99
Públio Virgílio Marão ( 70 a.C.- 19 a.C.), foi considerado ainda em vida como o grande poeta
romano e expoente da literatura latina, sua obra mais conhecida é a Eneida.
100
Lúcia de Siracusa 283 - 304), Santa Lúcia, Santa Luzia. Lúcia, desejando seguir a vida
religiosa, foi acusada de falsa cristã, por um rico pretendente a casamento; submetida a várias
torturas, dentre elas a extração dos olhos, que foram colocados em uma bandeja e entregues ao seu
ex-pretendente. Ela é cultuada como “padroeira da visão”, cuja festa é comemorada em 13 de
dezembro.
101
ALIGHIERI:1976. INFERNO, Canto II, p.94.
102
ALIGHIERI: 1976. INFERNO, Canto II, p.98.
66
O diálogo dos companheiros de guerra confirma o texto da Ave-Maria,
“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte. Amém”, como podemos constatar:
91 Que força, perguntei-lhe, porventura
teus restos extraviou em Campaldino,
que ninguém te encontrou a sepultura?
103
94 „Ah!respondeu-me, lá no Casentino
deflui um ribeirão chamado Arquiano,
que nasce junto à Ermida, no Apenino.
97 Onde o nome lhe acaba foi meu dano:
Ali cheguei, em fuga, trespassado
bem à garganta, ensanguentando o plano;
100 e já sem vista, apenas pronunciado
o nome de Maria à voz dolente,
caí, e fui da carne despojado‟.
103 Digo-o para que o narres lá à gente:
Ergueu-me um Anjo bom, mas o do inferno
Gritava: - Por que vieste à minha frente?
106 Uma lágrima, só, te faz tão terno,
que o levas, e por ela se me tolhe,
se sempre mereceu o fogo eterno? -
104
No Paraíso, Maria desponta em sua glória, e é vista por Dante em três
momentos importantes. No Canto XXIII, o poeta italiano, depois de assistir à
coroação de Maria, descreve o ambiente espiritual que o envolve, com visões e
cantos místicos:
97 Mesmo a harmonia que mais pura soa
aqui na terra, e nos inspira e encanta,
mero trovão seria, que reboa,
100 se comparada ao som da lira santa
que ali coroava a doce flor jucunda
a difundir no céu beleza tanta.
105
[...]
103
ALIGHIERI: 1976. PURGATÓRIO, Canto V, p.357.
104
ALIGHIERI: 1976. PURGATÓRIO, Canto V, p.358.
105
ALIGHIERI: 1976. PARAÍSO, Canto XXIII, p. 740.
67
109 Assim a giratória melodia
se formulara, e as almas, num clamor,
fizeram soar o nome de Maria.
[...]
127 Pôs-se a cantar, então o grupo eleito
Regina coeli e tanta suavidade,
que inda a sinto vibrar dentro em meu peito.
106
No Canto XXXI, Dante depara-se com uma grande rosa, em cujas pétalas
se encontram as almas dos bem-aventurados e dos Anjos. Ele procura por Beatriz,
mas não a , então empreende uma prece de súplica e, em lugar da amada,
aparece Bernardo de Claraval
107
que o conduzirá aa saída. Este convida Dante a
vislumbrar a figura gloriosa da Virgem que está em evidência sobre a rosa:
97 Fita os teus olhos na aura iluminada,
e poderás assim, sem mor retardo,
o foco divisar da luz sagrada.
108
100 A Rainha, por quem de amor eu ardo,
-de nos acolher, bondosa e pia,
posto que sou o seu fiel Bernardo.
[...]
118 Assim fiz; e como à hora matutina
fulgura o oriente mais, sobre o horizonte,
do que o lugar no qual o sol declina,
[...]
121 e como se dá um vale olhasse
a um monte, vi expandir-se súbito clarão,
que obumbrava, ao redor, toda outra fonte.
109
[p.801]
[...]
130 Na aura difusa, as asas transparentes,
anjos felizes voavam, tanto, tantos,
mas no brilho e aparência diferentes.
133 Por entre seus remígios e seus cantos,
vi fulgir a beleza imaculada,
que ali prendia o doce olhar dos santos.
106
ALIGHIERI: 1976. PARAÍSO, Canto XXIII, p. 741.
107
Bernardo de Fontaine (1090-1153) foi um abade de Claraval, santo e Doutor da Igreja. Foi
monge cisterciense, grande propagador da Ordem e defensor da Igreja. Uma das personalidades
mais influentes do século XII.
108
ALIGHIERI: 1976. PARAÍSO, Canto XXXI, p. 799.
109
ALIGHIERI: 1976. PARAÍSO, Canto XXXI, p. 801.
68
136 E se de mor poder fosse dotada
a minha voz, inda não ousaria
tentar pintar-lhe a face aureolada.
110
No Canto XXXI, estão os versos 134 e 135, referidos por João Paulo II, na
conclusão da Carta aos artistas. Na voz do Papa:
Que as vossas múltiplas sendas, artistas do mundo, possam conduzir
todo àquele Oceano infinito de beleza, onde o assombro se converte
em admiração, inebriamento, alegria inexprimível.
Sirva-vos de guia e inspiração o mistério de Cristo ressuscitado, em
cuja contemplação se alegra a Igreja nestes dias.
Acompanhe-vos a Virgem Santa, a „toda bela‟, cuja efígie inumeráveis
artistas delinearam e o grande Dante contempla nos esplendores do
Paraíso como „beleza, que alegria era dos olhos de todos os outros
santos‟.
111
A partir do Canto XXXII o poema focaliza a figura de Maria, em circunstâncias
diferentes às apresentadas. A seus pés está a humanidade, ferida por Eva com o
pecado original e curada por Maria com a encarnação do Verbo. Desfilam nesses versos
mulheres fortes do Bíblia como Sara, Raquel, Rebeca, Judite, prefigurações da Virgem.
Por fim, no Canto XXXIII, Bernardo implora a Nossa Senhora que possibilite a Dante ver
a contemplação de Deus, que o poeta descreve no final. Como percebemos, Dante não
deixou de homenagear Maria, em sua obra maior, A Divina Comédia.
110
ALIGHIERI: 1976. PARAÍSO, Canto XXXI, p. 802.
111
JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. 6ª. Ed. São Paulo: Paulinas: 2006, p.29.
69
2.2.3. O Poema da Virgem e a Lira Sacra, na América
brasileira
Na Graça é grande nome o de Maria,
Melhor Eva Maria, Ave de Graça
Maria alumiou co‟a luz da Graça,
Senhora da Graça por Maria.
Pela Graça exaltada foi Maria
Maria como mar, é mar de Graça
Maria deu ao Mundo toda a Graça
nem se amaria a Graça sem Maria. .
112
No Brasil colonial, duas obras se destacam como louvor mariano na poesia
brasileira - o Poema da Virgem, de Pe. José de Anchieta e a Lira Sacra, de Manuel
Botelho de Oliveira.
O poema Beata Virgine Matre Dei Maria, ou o Poema da Virgem como é
mais conhecido, é considerada a mais importante obra dedicada a Maria no Brasil
do século XVI, quiçá de toda a Literatura brasileira até momento. Composta pelo
missionário jesuíta, Pe. José de Anchieta
113
, ela reflete a e amor do religioso para
com a Virgem que se enche de júbilo e canta poeticamente a vida de Nossa
Senhora, em mais de cinco mil versos.
Pe. Armando Cardoso, tradutor da obra, referindo-se aos trechos, onde o
missionário jesuíta versifica a trajetória de Maria, antes da Anunciação, atesta o
louvor anchietano no poema em destaque, no trecho a seguir:
O Poema de Anchieta é um repertório dos mais sublimes afetos que
podem agitar um coração de moço que quer ser o apóstolo da pureza.
A Conceição Imaculada de Maria arranca-lhe um hino de triunfo que a
lembrança da miséria terrestre não consegue abafar. O nascimento da
formosa Estrela da manhã inunda-o de alegria, como se estivesse
para assistir, das praias de Iperoíg, uma alvorada no mar: é uma
enchente de luz que apenas pode caber num pobre alfabeto humano.
Quando a Virgem, como uma nuvem de incenso branco, pequenina e
leve, sobe os degraus do Templo, Anchieta, que assiste a este
espetáculo, volve os olhos ao sacrário de sua própria alma, que é
112
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. À Nossa Senhora das Graças repetindo em todos os versos
“Maria” e “Graça”. In: Lira sacra. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 263,264.
113
Pe. José de Anchieta (1533-1597), missionário jesuíta, chega ao Brasil em 1553 com Duarte da
Costa, 2º. Governador Geral do Brasil. Como escritor, Anchieta redigiu poemas, textos para teatro e
uma gramática de tupi-guarani.
70
antes a nossa alma, a alma do pecador, corre-lhe a cortina e solta a
lamentação comovente da virgindade perdida: coroa-a o
arrependimento do pródigo e a confiança do filho. A vida de Maria no
Templo inspirava-lhe os afetos calmos da humildade, da piedade e da
esperança.
114
Escrito em latim, o Poema da Virgem, desponta como a primeira obra de
caráter encomiástico dedicado à Mãe de Deus, àquela que, em 1930, seria a
padroeira das terras brasileiras, sob o título de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida.
Outra obra que merece registro é a Lira Sacra (1703), de Manuel Botelho de
Oliveira
115
, na qual se encontram vinte sonetos dedicados a Nossa Senhora.
A necessidade de elaborar um canto novo, dedicado ao divino, Botelho de
Oliveira o apresenta no conteúdo dos poemas, mas o faz antes de seu “parto
poético” - como ele o denomina - no Prólogo ao Leitor de sua Lira, por ele acreditar
na existência de uma conexão entre a poesia e o Céu, conforme ratifica:
[...] porque os antigos a chamaram Divina, como também porque nas
escrituras sagradas se valeram os Profetas, e principalmente o Rei
Davi, de vários cânticos para celebrar os Divinos encômios; e imitando
a Igreja católica o mesmo exemplo, se compuseram devotos Hinos
para as mais solenes festividades.
116
Contudo, ele adverte o leitor para um fato: “Porém para te parecerem bem
estas rimas, deves ter conhecimento da escritura sagrada, e da história da vida dos
Santos, porque sem estas notícias não poderás entender o conceito”
117
Após essas observações, Botelho de Oliveira inicia seu louvor a Maria e a
outros santos, que ora nós exemplificamos com o poema de abertura intitulado A
Nossa Senhora aludindo ao Cântico da Magnificat, no qual trata Maria como a Musa
114
CARDOSO, Armando (Pe.) . Introdução. In: ANCHIETA, José de. O poema de Anchieta sobre a
Virgem Maria Mãe de Deus. 5ª edição.São Paulo: Paulinas, 1996, p. 32.
115
Manuel Botelho de Oliveira (1636 1711), poeta baiano da estética barroca e o primeiro escritor
brasileiro a ter uma obra impressa publicada (1663). Seu trabalho mais conhecido é Música do
Parnaso (1705), onde está contido À ilha da Maré, poema que destaca a flora brasileira.
116
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. Poesia completa Música do parnasso. Lira sacra. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p.251.
117
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p. 251, 252.
71
do Céu e suplica que ela o inspire a fazer um canto agradável, como foi o
Magnificat :
Celeste Musa, virgem sublimada
Ensinai melhor metro à minha veia;
E se Febo entre as Nove se nomeia,
Vós sois de nove coros venerada.
A Deus magnificais toda enlevada
no Mistério do Céu que em vós se estréia;
e se humildes louvais de graça cheia,
meu verso por humilde vos agrada.
118
Nas duas primeiras quadras, observamos a mesclagem do profano com o
divino, ou do mitológico com religioso, presentes nos versos 3 e 4 da primeira
estrofe, onde o sujeito lírico faz referência a Febo (ou Apolo, deus mitológico), às
nove musas do Olimpo e à Maria, venerada pelos nove coros celestiais da tradição
católica. São eles: Serafim, Querubim, Trono, Dominação, Virtude, Potestade,
Principado, Arcanjo e Anjo.
Nos tercetos a condição para tornar a lira satisfatória e prazerosa como o foi
o Canto de Maria:
Se em rimas sacras meu discurso afino,
concedei vosso auspício sacrossanto,
para que seja o plectro doce e fino:
Com vosso exemplo, com desejo tanto,
se entoastes o Cântico Divino,
inspirai que ao Divino entoe o canto.
119
Deve ser registrado o fato de Botelho de Oliveira desejar um canto similar ao
de Maria, ao mesmo tempo rogar ajuda da Santa para haver inspiração: “concedei
vosso auspício sacrossanto [...] inspirai que ao Divino entoe o canto”.
120
A exemplo de Gonzalo de Berceo, Aflonso X, Dante Alighieri, José de
Anchieta e Botelho de Oliveira muitos outros artistas emprestaram sua voz para
louvar “a escolhida” e “a serva preferida” de Deus.
118
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p.253.
119
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p. 253.
120
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p. 253.
72
3. MARIA NA IGREJA CATÓLICA, NA IGREJA REFORMADA
E NA ICONOGRAFIA, A PARTIR DOS DOGMAS MARIANOS
Mais que qualquer outra mulher, a Virgem Maria foi
fonte de inspiração para um imenso número de
pessoas. E ela continua a sê-lo no século XX, apesar de
muitas vezes ser considerada profana, em contrastes
com épocas anteriores, as chamadas eras da fé.
Alexandra, última imperatriz da Rússia, que ao se casar
com o czar se converteu do protestantismo germânico à
ortodoxia russa, escreveu algumas semana depois da
Revolução de Outubro: „Gente selvagem e sem cultura,
mas o Senhor não os abandonará e a Santa Mãe de
Deus protegerá nosso pobre povo russo‟.
121
Para discorremos sobre a figura de Maria na Igreja Reformada é necessário
analisar, de maneira sucinta, os fatos que antecederam a Reforma e as
consequências desse acontecimento histórico. A Igreja Católica Romana, na Idade
Média, foi objeto de diversos movimentos de vários grupos religiosos, ou não, que
objetivavam reformar suas bases, corrigindo os excessos do clero, tentando
recuperar as estruturas originais e os fundamentos primordiais instituídos por Jesus
Cristo. Contudo, os grupos ligados a ela não conseguem retomar as diretrizes
iniciais, as mudanças realizadas são pouco convincentes, gerando insatisfações
maiores entre aqueles que discordam de sua conduta.
Em alguns casos rupturas capazes de gerar dissidências como os dois
cismas ocorridos durante a alta e baixa Idade Média, como o grande Cisma do
Oriente, ocasião em que a Igreja Católica Romana se separa da Igreja Católica
Ortodoxa, em 1054, e o grande Cisma do Ocidente, registrado entre 1378 e 1417,
favorecido pela transferência da sede papal para a cidade de Avignon, na França,
com a eleição de dois e até três pontífices. John Bossy, comentando o segundo
cisma assim se pronuncia:
Existiam dois papas: um que passava o ano fechado no seu palácio
em Avignon, e outro, no castelo de Sant‟Angelo, em Roma. O Cisma
era a desordem dominante naquela época, e também a mais
121
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos seu papel na história da cultura. Tradução de
Vera Camargo Guarniere. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.16.
73
enervante. Significava divisão, ódio e conflito no que deveria ser o
centro da unidade e da paz. As pessoas estavam alarmadas com o
sucedido, e os mais sensíveis temiam que toda a gente se habituasse
a ele. Punha em perigo o bem-estar terreno e as perspectiva de
salvação eterna. Provocava a ira de Deus e, uma vez que haviam
sofrido durante cinqüenta anos o estigma da peste bubônica, tinham
razão para recear que a ira de Deus lhes reservasse mais alguma
coisa.
122
Os vinte e um Concílios Ecumênicos a partir do primado de São Pedro, por
exemplo, foram convocados para deliberar matérias referentes a interpretações da
doutrina, a definições de dogmas, à condenação de heresias, ou seja, os concílios
se realizaram para tentar resolver os problemas que emergiam no seio da igreja
católica. Para efeito de exemplificação, citamos três que são relevantes para a tese:
o Concílio de Éfeso, em 431, sob a presidência do papa Celestino I, que teve como
matéria o nestorianismo-pelagianismo cuja definição foi de que “Cristo, Deus-
Homem, é uma Pessoa: a união hipostática é substancial e não acidental; física,
não moral. Maria é Mãe de Deus: theotókos”
123
; o IIº Concílio de Nicéia, em 787,
presidido por Adriano I, cuja matéria sobre a Iconoclastia apresentou a “definição da
legitimidade do uso e do culto das sagradas imagens”
124
e o Concílio de Trento, de
1545-1563, presidido pelos papas Paulo III, Júlio III, Pio IV, com a matéria sobre o
luteranismo e que legislou dentre outros “o culto das imagens” e a “condenação dos
erros de Lutero”
125
No final da Idade Média, a situação está o crítica a ponto de os dirigentes
católicos não poderem mais resolver suas querelas internamente. vários
movimentos de diferentes setores e o acúmulo de problemas, não resolvidos ou mal
resolvidos, culminam com o rompimento definitivo dos insatisfeitos com a igreja
católica, provocando a quebra da unidade do pensamento ocidental, no século XVI.
122
BOSSY, John. A Cristandade no Ocidente 1400 1700. Tradução de Maria Amélia Silva Melo.
Lisboa (Portugal): Edições 70, 1985, p.17.
123
COLLANTES: 2003, p.1247.
124
COLLANTES: 2003, p.1248.
125
COLLANTES: 2003, p.1251.
74
Esse grupo, articulado por Martinho Lutero
126
, promove a Reforma
127
com a
pretensão de devolver ao cristianismo a filosofia da igreja primitiva.
Inicialmente, Lutero pretendia se posicionar contrário ao comércio das
indulgências, amplamente praticado pela igreja católica romana, com a aquiescência
do papado. Para tanto, Martinho elaborou 95 teses, abominando essa prática e
afirmando que o “verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo evangelho da glória e
da graça de Deus” (tese 62ª). Por esse gesto, inicia-se uma crise dentro da igreja
romana que sofre um processo de ruptura com alguns de seus membros. Assim,
algumas práticas não mais serão aceitas e posteriormente farão a diferença entre a
igreja fundada primitivamente por Cristo e a igreja reformada por Lutero.
As teses de Lutero, intituladas de Debate para Esclarecimento do Valor das
Indulgências, foram afixadas na entrada da Scholosskirche (castelo-igreja), em
Wittenberg (Alemanha), na noite de 31 de outubro de 1517 e tiveram como principal
foco o combate à venda de indulgências. Inicialmente o autor faz a seguinte
proposição:
Por amor à verdade e no empenho em elucidá-la, discutir-se-á o
seguinte em Wittenberg, sob a presidência de R.P.Martinho Lutero,
Mestre de Artes e de Santa Teologia e Professor Catedrático desta
última, naquela localidade. Por esta razão ele solicita que os que não
possam estar presentes e debater com ele oralmente, o façam por
escrito, mesmo que ausentes. Em nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Amém.
128
Na primeira parte das teses, Lutero discute o ensinamento de Jesus, sobre
„fazer penitência‟ que não é o sentido empregado pela igreja como sacramento da
penitência, ou confissão, pois, para ele, penitência é arrependimento e mortificação
da carne (t.1-4), por conseguinte, o Papa não tem poder de isentar alguém da culpa
126
Martinho Lutero nasceu em 10.11.1483, em Eislebenn , na Turíngia, território da Alemanha. A
partir de 1497 foi aluno dos Irmãos da Vida Comum, em Magdeburg, que era um movimento de
piedade que buscava o temor de Deus e a santificação da vida do leigo no dia-a-dia. Ingressou em
1501 na Universidade de Erfurt, onde se tornou Bacharel e Mestre em Artes, tornando-se professor
em 1505. A partir de uma promessa, ingressa no convento dos agostinianos e professa votos solenes
em 1506. Dois anos depois é enviado para Wittemberg, onde se tornou Bacharel em Teologia e em
1512, Doutor em Teologia como exegeta bíblico. A partir desse ano passa a assumir uma cátedra na
Universidade de Wittemberg, onde permanece como professor até a sua morte em 1546.
127
Reforma foi um movimento religioso, que teve implicações políticas, deflagrado pelo monge
agostiniano alemão Martinho Lutero em 31 de outubro de 1517.
128
LUTERO: 2006, p. 123.
75
e sim declarar e confirmar que a pessoa foi perdoada por Deus (t.7,8). Ele questiona
as regras de confissão e expiação cânones penitenciais - as penas impostas
especialmente aos moribundos, que se transformam em pena de purgatório, além de
fazer referência à condenação (inferno) e à salvação (paraíso) (t 9-20).
A partir da tese 21, Lutero ataca diretamente as indulgências como forma de
alcançar a salvação e afirma que o cristão arrependido tem direito à remissão dos
pecados. Segundo ele, as indulgências valem menos que as obras de misericórdia,
pois estas ajudam o cristão a se tornar melhor, enquanto aquelas o livram do
castigo, mas o levam a provocar a ira de Deus (t.44, 45).
Entre as teses 40 e 51, por nove vezes Lutero exorta a ação dos fiéis contra
as indulgências, iniciando com “Deve-se ensinar aos cristãos que...” e, a partir desse
ponto, a crítica é direcionada ao Papa sobre o comércio das indulgências, a riqueza
da igreja de Roma, chegando a afirmar que quem se empenha por ela é “bendito”,
mas quem se opõe é ex-comungado e maldito”. Como resultado de sua corajosa
crítica contra a cúria romana, Lutero é ex-comungado, em 25 de maio de 1521, e
seus escritos queimados publicamente, além de a Reforma ser condenada como
uma forma de heresia.
O episódio com Lutero foi apenas a mola propulsora do grande Cisma na
unidade do pensamento cristão do mundo ocidental da época, pois a situação de
descontentamento vinha ocorrendo por fatores de diferentes ordens: sócio-
econômico, com a substituição do regime feudal para uma economia baseada no
comércio, com isso o lucro excessivo era condenado pela igreja católica e os ricos
comerciantes eram ameaçados de condenação ao inferno por incorrerem no pecado
da usura; a corrupção do clero com o comércio fraudulento de relíquias sagradas e
até a venda do perdão do pecado, que eram as indulgências; a presença do baixo
clero, com sacerdotes despreparados para o ofício, ou ainda o mau comportamento
do clero em geral que sinalizava uma Igreja corrompida e imoral. Há também, dentre
outros, fatores políticos a pretensão de cada Estado de ser reconhecido por suas
particularidades, por suas tradições e por sua língua.
Sem atentar para os anseios da época, a igreja católica pregava a ideia de
universalidade, nos seus ritos e na leitura da sagrada escritura, com o uso da língua
oficial, o latim. Diferentemente, uma das primeiras medidas de Reforma foi a
76
tradução da Bíblia para o alemão por Lutero, como forma de particularizar o credo e
motivar o espírito nacional.
Sobre a figura de Maria, a Igreja Reformada
129
apresenta uma atitude crítica
em relação ao louvor exagerado que a Igreja Católica demonstra ter para com ela.
Apesar dessa opinião, pontos convergentes entre si, embora com pequenas ou
grandes diferenciações. Os aspectos de maior questionamento são os quatro
dogmas marianos, matéria doutrinal do catolicismo: Mãe de Deus, Virgem,
Imaculada Conceição, Assunta ao céu, sendo os dois últimos reconhecidos como
verdades da católica, muitos séculos após a Reforma - 1854 e 1950,
respectivamente - além de Maria, como santa e intercessora.
A concepção imaculada, a assunção e a mediação de Maria são, talvez, os
pontos de maior divergência entre católicos e protestantes, sendo a mediação o
aspecto mais polêmico. Partindo do pressuposto de que somente Jesus salva, a
igreja reformada rechaça qualquer possibilidade de Maria ser a medianeira entre os
homens e Deus. Para ela, Maria é apenas uma mulher que se tornou Mãe de Deus
para se cumprir as escrituras e não por mérito próprio. Como Jesus morreu pela
salvação de todos, ninguém pode ter privilégio. A imaculada concepção de Maria e
sua assunção ao céu, portanto, não têm sentido se observados sob esse prisma.
O culto prestado a Maria pela Igreja, antes da Reforma, é tema que recebeu
a crítica de Lutero. Para o reformista só a Deus se deve louvar e honrar, somente
Ele merece a confiança do homem e nenhuma criatura deve ser exaltada acima do
Criador. Em certo trecho da obra, Conversas com Lutero: história e pensamento,
temos a opinião do reformador:
[...] é preferível anular méritos de Maria a diminuir a graça de Deus.
Na verdade, não se pode anular méritos em demasia, que ela foi
criada do nada, como todas as criaturas. Mas a graça de Deus é
desmerecida com grande facilidade. Isto é perigoso e com isso não
se prova amor a Maria. De fato é necessário moderação, para não
exagerar com os nomes, chamando Maria de rainha do céu. Isso
está certo. Mas nem por isso ela é um ídolo que possa conceder
129
Nesta tese, utilizamos a expressão “Igreja Reformada” no seu sentido mais genérico, ou seja, as
igrejas que se posicionaram contra a igreja romana a partir do rompimento de Lutero. Sabemos,
contudo, que dois grandes grupos religiosos emergiram da Reforma proposta por Lutero: a Igreja
Luterana, fundada por ele próprio e quem a ele se associou, e as Igrejas Reformadas, fundadas por
Zwinglio (Suíça) e Calvino (França), dentre outras.
77
algo ou ajudar alguém. Alguns clamam mais a ela do que a Deus e
nela buscam refúgio. Maria nada dá, mas somente Deus. Maria não
quer ser ídolo.
130
De um modo geral, a ausência de qualquer alusão, evidenciando a figura de
Maria nas noventa e cinco teses
131
de Lutero, e o receio dos excessos, atribuídos
aos católicos acerca do culto mariano, fizeram os reformistas não só negligenciarem
em seus rituais a figura de Maria como alguém especial, como também a excluíram
das manifestações de amor filial para com ela. Há, contudo, considerações que
serão trabalhadas detidamente ao longo do texto, mas ressaltamos que, nas
análises, serão levados em consideração o pensamento de Lutero, por ser o “pai
espiritual” da Igreja Reformada, e as decisões tomadas pela ARCIC
132
, por
entendermos que ela representa a postura atual de uma das igrejas fundadoras da
Reforma.
ARCIC, sigla da Comissão Internacional Anglicano-Católica é uma
organização composta por membros da igreja anglicana e por membros da igreja
católica romana, cátedra que busca identidades nas igrejas co-irmãs cristãs. No
prefácio do documento, a comissão assim se expressa: “Nossa Declaração de
Acordo sobre a bem-aventurada Virgem Maria como modelo de graça e esperança é
um reflexo poderoso dos esforços para encontrar o que temos em conjunto e
celebrar aspectos importantes da nossa herança comum”.
133
130
CÉSAR, Elben M. Lenz. Conversas com Lutero: história e pensamento. Viçosa (MG): Ultimato, 2006,
p.190,191.
131
LUTERO, Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja. Tradução do original em latim De Captivitate
Babylonica Ecclesiae por Martin N. Dreher. Coleção “A Obra-prima de cada autor”. São Paulo: Martin
Claret, 2006.
132
ARCIC - Comissão Internacional Anglicano-Católica Romana. Maria: graça e esperança em Cristo.
Tradução Débora Balancin. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 5.
133
ARCIC: 2005, p.5
78
3.1. Maria, mãe de Deus
Ó Maria, quem és tu, destinada a ser Mãe do Filho
de Deus? Como o mereceste? Como se há de
formar em ti aquele que te fez a ti? De onde, repito,
te vem tão grande bem? Tu és virgem, és santa,
fizeste um voto. Mas é mais magnífico ainda o que
mereceste. E muito mais o que recebeste de graça.
Como foi isto? Forma-se em ti quem te fez a ti.
Faz-se em ti aquele por meio de quem tu mesmo
foste feita (fit in te qui fecit te; tif in te per quem
facta es).
134
Sobre a maternidade divina de Maria não qualquer controvérsia, tanto
entre os reformadores, quanto entre os fiéis da igreja ortodoxa que a louvam como
theotókos (mãe de Deus). A expressão Theotókos, teologicamente, significa, [...]
não genitora da divindade, mas genitora do Verbo encarnado”.
135
O titulo de Maria como mãe de Deus, é muito antigo e reporta aos primeiros
séculos da era cristã. A História da Mariologia da Escola “Mater Ecclesiae” referindo-
se ao século III, assim se pronuncia:
Muito importante nessa época é o surto do título Theotókos, Mãe de
Deus, na literatura cristã que possuímos. Origines († 250) é a primeira
testemunha dessa designação; te-la explanado no texto grego do
seu comentário sobre a epístola aos Romanos, como refere o
historiador cristão Sócrates (†450). Também num papiro do Egito
datado do século III foi encontrada uma oração dirigida à Theotókos,
oração até nossos dias existente na piedade cristã: „A vossa proteção
recorremos, Santa Mãe de Deus (Theotókos)
136
Lutero, em 1521, escreve um ensaio sobre o Magnificat, onde o título de O
louvor de Maria, onde ele afirma o dogma mais antigo. Na análise do versículo
134
AGOSTINHO (Santo, Bispo de Hipona). Toda Glória em Maria é pura Graça. In: A Virgem Maria,
cem textos marianos com comentários. Tradução Nair de Assis Oliveira. o Paulo: Paulus, 1996,
p.124.
135
AIELLO, A.G. Dogmas. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore. Dicionário de Mariologia. o
Paulo: Paulus, 1995, p.412.
136
BETTENCOURT, Estevão Tavares (Pe.). Curso de Mariologia. Escola “Mater Ecclesiae”
(RJ):1997, p. 37.
79
„Minha alma engrandece o senhor‟ (Lc 1,46), o reformista alemão usa a expressão,
“Mãe de Deus”, em várias partes do estudo:
Engrandecer a Deus significa: pensar somente nele e não pedir nada
para nós mesmos. Disso se pode concluir que Maria teve muitos
motivos para cair e pecar. Assim, ter escapado da arrogância e da
vaidade não é um milagre menor do que ter recebido esses bens.
Você não percebe o quanto é maravilhoso esse coração? Como mãe
de Deus, Maria se vê elevada acima de todas as pessoas.
137
Em outro trecho, na análise de Lc.1,50 „E sua misericórdia dura de uma
geração a outra, para os que o temem‟ , Lutero apresenta Maria não na condição
de mãe de Jesus, mas também como a grande discípula da obra redentora de seu
filho:
Após haver cantado sobre si mesma e seus bens divinos e honrado
Deus, Maria passa a fazer um passeio por todas as obras de Deus
realizadas em todas as pessoas. Ela canta sobre eles. Ensina-nos a
reconhecer devidamente as obras, o caráter, a natureza e a vontade
de Deus. Muitas pessoas e filósofos extraordinariamente inteligentes
também se ocuparam com isso. Queriam saber quem é Deus.
Escreveram muitos livros a respeito, com opiniões diferentes. Mas
todos ficaram cegos nesta experiência e não descobriram a verdadeira
visão. Na verdade, a maior coisa no céu e na terra é conhecer Deus
realmente, se é que isso pode ser permitido a alguém. A mãe de
Deus ensina isso muito bem, se alguém estiver disposto a entendê-
la.
138
Modernamente, a ARCIC, no documento de Seattle de 2000, Maria: graça e
esperança em Cristo, explica que foi um impulso natural da igreja reformada rejeitar
a figura de Maria ao lado de Jesus como medianeira do processo salvífico. Tal fato
era uma prática devocional comum no século XVI e foi considerada “exagerada”,
pelos reformadores, que levou à “perda de alguns aspectos positivos da devoção e
à diminuição de seu lugar na vida da igreja.”
139
No artigo sequencial do referido texto, é explicitada a condição de Maria
como a mãe do Salvador. Assim, a ARCIC não deixa dúvida de que tanto a igreja
137
LUTERO, Martim. O louvor de Maria. São Leopoldo (RS): Sinodal,1999, p.28.
138
LUTERO:1999, p. 68.
139
ARCIC: 2005, Art. 44, p. 16. O artigo referente à nota está inserido no capítulo “Da Reforma até os
dias de hoje”.
80
católica romana, quanto a igreja reformada anglicana são unânimes com relação ao
primeiro dogma proclamado:
Nesse contexto, os reformadores ingleses continuaram a acolher a
doutrina da Igreja primitiva no que dizia a respeito de Maria. O
ensinamento positivo a respeito de Maria concentrou-se no papel que
teve na Encarnação: isto está resumido, na aceitação por eles, de
Maria como Theotókos, pois tanto era bíblico quanto de acordo com
antiga tradição comum.
140
Até a definição do dogma da Maternidade Divina, a igreja cristã convivia
com dificuldade sobre a maternidade divina e, um dos mais fortes posicionamentos
vinha da igreja do Oriente. Nestório, patriarca de Constantinopla, defendia a tese de
que Maria era mãe apenas da natureza humana de Jesus. A esse pensamento deu-
se o nome de nestorianismo e, aqueles que defendiam tal ideia eram chamados de
nestorianos. O presidente do Concílio, São Cirilo, bispo de Alexandria, rejeitava o
posicionamento dos nestorianos e proclamava que “Maria era mãe de Jesus, Deus e
homem”.
E, embora desde o início do cristianismo Maria tenha sido reconhecida
como “Mãe de Deus”, o dogma foi proclamado na igreja católica romana no
Concílio ecumênico de Éfeso, conforme sessão I, de 22 de junho de 431:
Por isso, não tiveram dúvida [os Santos Padres] em chamar „Mãe de
Deus‟ à Santa Virgem, não porque a natureza do Verbo ou Sua
divindade tivesse tomado da Santa Virgem a origem de Seu ser, mas
porque dela se formou aquele sagrado Corpo, animado de uma alma
racional, do qual unido o Verbo segundo a hipóstase, dizemos [ter Ele]
nascido segundo a carne.
141
No encerramento do Concílio, com a presença do Papa Celestino I, após a
proclamação do dogma da Maternidade Divina da Maria Santíssima, o Sumo
Pontífice, visivelmente emocionado, ajoelhou-se e saudou Maria com os dizeres:
140
ARCIC: 2005, Art. 45, p. 36,37.
141
Carta de São Cirilo dirigida a Nestório, apud COLLANTES, Justo. A fé Católica: documentos do
Magistério da Igreja: das origens até aos nossos dias. Rio de Janeiro: Lumen Christi; Anápolis (GO):
Diocese de Anápolis, 2003, p. 294.
81
“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte. Amém”.
142
Essas palavras foram acrescentadas à oração mariana “Ave-
Maria”, não somente pelo fato de terem sido proclamadas pelo Papa, mas pelo fato
de o povo recitá-las reiteradamente após a proclamação do dogma.
O dogma da Maria, Mãe de Deus foi ratificado vinte anos depois, na cidade
de Calcedônia, estabelecido na sessão VI, em 22 de outubro de 451, em que se
definiam as duas naturezas de Cristo. Para que não houvesse o equívoco de
proclamarem Maria como Mãe da Trindade,conforme o texto conciliar:
Seguindo, pois, os Santos Padres, unanimemente ensinamos que se
deve confessar um e mesmo Filho, [...] verdadeiro Deus e
verdadeiro homem [...] gerado do Pai, antes de todos os séculos,
segundo a divindade; e, nos últimos tempos, por nós e para a nossa
salvação, [gerado] de Maria Virgem, Mãe de Deus, segundo a
humanidade; que se deve reconhecer um e mesmo Cristo Senhor,
Filho Unigênito, em duas naturezas, sem con-fusão, imutáveis,
indivisíveis, inseparáveis, de nenhum modo suprimida a diferença das
naturezas por causa de sua união, mas salvaguardada a propriedade
de cada natureza e confluindo numa só Pessoa [...]
143
Com a proclamação do dogma de Maria, Mãe de Deus, naturalmente,
multiplicam-se as festas em sua homenagem e as representações iconográficas
referentes a esse título. Na igreja oriental, surgem os ícones “do grego eikón,
imagem, designa uma pintura sagrada feita em painel de madeira com uma técnica
particular e segundo uma tradição transmitida séculos”
144
. vários tipos de
ícone-retrato de Maria, interessa-nos, sobretudo, os mais representativos da Mãe de
Deus: a Hodigítria e a Eleúsa.
A Hodigítria, significa a Condutora, ela representa Maria que aponta para
Jesus como “o Caminho, a verdade e a vida”
145
, numa interpretação cristológica.
Mas, primitivamente, a Hodigítria era aquela que indicava o caminho, a condutora
142
ABIB, Jonas. Maria, a mulher do nesis ao Apocalipse. edição. Cachoeira Paulista: Canção
Nova; São Paulo: Loyola, 2004, p. 98.
143
COLLANTES: 2003, FC n. 4017, p. 303, 304.
144
GHARIB, G. Ícone. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore. Dicionário de Mariologia. São
Paulo: Paulus, 1995, p.583.
145
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Jo 14, 6.
82
das almas, em alusão à figura pagã de Hermes ou Mercúrio, protetor dos viajantes e
dos comerciantes, na mitologia grega. Acerca desse retrato discorre Gharib:
O ícone gozava de grande fama e era considerado um dos
estandartes de Constantinopla: protegia a cidade e levava à vitória os
exércitos do império. Foi muitas vezes levado em procissão sobre as
muralhas sitiadas [...] Em 1261, no dia seguinte ao da libertação de
Constantinopla do jugo dos cruzados, esse ícone foi conduzido em
triunfo, enquanto o imperador participava do séquito, de pés descalços
e despojado de ornamentos.
Muitas cópias do retrato foram feitas ao longo dos séculos; elas foram
conservadas em moedas, peças de marfim, selos, miniaturas,
mosaicos e ícones.
146
Enquanto a Hodigítria exalta a figura de Jesus como Deus, a Eleúsa
demonstra o afeto que entre mãe e filho, pondo em destaque a humanidade de
Cristo. Maria segura o Menino-Deus em seus braços e este encosta seu rosto na
face materna, por isso ela é conhecida como a Virgem da Ternura. Na Rússia, a
Eleúsa é chamada a Virgem de Vladimir, pelo fato desse ícone, no século V, ter sido
levado de Jerusalém e permanecido em Vladimir, uma das capitais medievais da
Rússia. No século XX, durante a perseguição religiosa naquele país, o ícone foi
levado como símbolo da Igreja Russa fora da Rússia. Como afirma o conteúdo
dogmático dos ícones:
Os ícones da Virgem têm o seu lugar no chamado ciclo dogmático da
iconografia e propõem aos fiéis de diversos modos, e em linguagem
simbólica, a doutrina mariana da igreja do oriente. O ícone da Virgem
que nutre o menino ilustra o dogma da maternidade divina de Maria e
propõe Maria como a grande testemunha da encarnação. A Hodigítria
realça a divindade de Cristo, ao passo que a Eleúsa e suas derivações
insistem na humanidade Cristo.
147
Os ícones, como valor teológico e espiritual, trazem em seu conjunto
simbolismos capazes de tornar físico, sentimentos que estão reservados no íntimo
do artista ou do crente, daí seu valor litúrgico. Nas representações iconográficas de
Maria, ela pode vir de , sentada, sozinha ou acompanhada do Menino-Jesus.
146
GHARIB: 1995, p.579.
147
GHARIB: 1995, p.583.
83
Contudo, o tipo mais comum é o ícone-retrato de meio-busto, enfatizando o rosto e
os gestos de Mãe e Filho.
A Hodigítria e a Eleúsa retratam a figura de Maria com o rosto voltado para
o observador. Proporcionalmente, maiores que a boca, os olhos demonstram o velar
da Mãe sobre todos os rebentos e lembram o silêncio de Nossa Senhora que ouvia
as palavras de seu Filho e “as meditava em seu coração”.
148
Theotókos como Hodigítria
Theotókos como Eleúsa
Os gestos das mãos de cada imagem significam o agir, o dar, o louvar, o
curar, o abençoar, o amar. A mão da Condutora aponta para o Filho de Deus que,
carinhosamente, toca os dedos de sua Santa Mãe. É a própria imagem da
Encarnação em que Deus se torna humano e traz a salvação para a humanidade,
148
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 2, 19.
84
com a frase lapidar proferida por Maria ao anjo Gabriel: “Eu sou a serva do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra!”
149
A Virgem da Ternura tem o braço esquerdo envolvendo seu filho Jesus. O
Filho entrelaça o colo da Mãe com os dois braços são braços que se abraçam
num gesto de extrema afeição, em que a Mãe aponta o Menino, com a mão direita,
para dizer a cada olhar do observador - “Este é meu Filho amado; ouvi-o”.
150
-
parafraseando Deus-Pai.
A cor da pele é marrom, cor da terra, do húmus, lembrando ao cristão que
és e ao tornarás”,
151
mesmo que Jesus e Maria não tivessem o destino final
de seus corpos, o da terra, mas para usar a imagem com propósito pedagógico
como ratifica Gharib: “o ícone é primeiramente objeto de culto proposto pela igreja à
veneração dos fiéis como instrumento didático, como meio que torna presente o
mundo invisível e como sacramental da presença de Deus”.
152
Os elementos externos às figuras humanas desses ícones são: a auréola
dourada ao redor da cabeça, simbolizando a santidade da Mãe e do Filho; o manto
cobrindo os cabelos de Maria, como sinal de decoro, imagem das virtudes que a
Santa aglutina. Na arte romana, por exemplo, o manto era peça do vestuário que
“caracterizava de modo especial as virgens”.
153
Nesses quadros, outros elementos
são pertinentes na composição, como a aplicação das cores e o uso de alguns
adereços.
Os mantos da Hodigítria e da Eleúsa têm a cor púrpura, tonalidade
reservada ao poder temporal. Cristo, o Filho de Deus, tem o poder divino, por
extensão, sua Mãe, adquire a realeza, corroborada pelas cabeças coroadas de
ambos, no primeiro quadro. Internamente, o manto da condutora está colorido de
azul, cor do céu e da transcendência; enquanto a coloração vermelha, símbolo do
amor, tinge igualmente a túnica da madona amorosa.
149
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1, 38.
150
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mc 9, 7.
151
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 3, 19.
152
GHARIB: 1995, p.577.
153
LURKER: 1993, p.291.
85
Ao lado de cada imagem, existem as letras MP e OY, abreviaturas de Mãe
de Deus, gráficos obrigatórios nos ícones marianos, assim como a presença de
estrelas, representando a virgindade de Maria. Por fim, percebemos a abundância
da cor dourada, para simbolizar que as figuras estão imersas em luz, lembrando o
sol, como metáfora de Deus.
João Paulo II, na encíclica Redemptoris Mater, dedica atenção especial aos
ícones como forma de devoção da igreja oriental, que se propaga em diferentes
lugares, conforme atesta:
Os ícones são venerados ainda hoje na Ucrânia, na Bielo-Rússia (ou
Rússia Branca) e na Rússia, sob diversos títulos: são imagens que
atestam a fé e o espírito de oração daquele povo bondoso, que
adverte a presença e a proteção da Mãe de Deus. Nessas Ícones a
Virgem Maria resplandece como reflexo da beleza divina, morada da
eterna Sabedoria, figura da orante, protótipo da contemplação e
imagem da glória: tenta-se representar aquela que, desde o início da
sua vida terrena, possuindo a ciência espiritual inacessível aos
raciocínios humanos, com fé alcançou o conhecimento sublime.
154
Assim, o dogma da maternidade divina vem encontrar ressonância
antropológica, pois se Maria é mãe da natureza humana de Cristo, todos somos
irmãos. Do ponto de vista teológico, o simbolismo de Maria-Igreja expressa a ideia
de acolhida e inclusão de todos os seus filhos-membros. Quer seja Hodigítria, quer
seja, Eleúsa, a imagem de Maria revela a manifestação de Mãe e Filho como
protagonistas de um tempo histórico, dividido em dois momentos: antes e depois de
Cristo.
154
JOÃO PAULO II. Redemptoris Mater. São Paulo: Paulinas, 2003, Art. 33, p.62, 63.
86
3.2. A crença na virgindade perpétua de Maria
Sendo mãe e donzela
foste intacta sempre, e sempre bela
na vossa fermosura
vos inteirastes pura
que o Sol divino
entrando com presteza
fez Cristal transparente da pureza.
155
Em relação à virgindade de Maria, a igreja dos primeiros reformadores
aceita como ponto pacífico, visto que a cultura da época exigia a virgindade como
pré-requisito para o casamento e Maria é clara sobre isso ao receber o anúncio,
“como isto ocorrerá se não conheço homem”.
156
Outro aspecto a ser levado em
consideração é a fundamentação bíblica acerca do tema, que está presente tanto no
antigo testamento: Eis que uma virgem dará à luz um filho que se chamará
Emanuel”
157
, quanto no novo testamento: “Deu-se assim a concepção de Jesus
Cristo: Maria, sua Mãe, estava desposada com José. Antes, porém, de habitarem
juntos, achou-se grávida pelo poder do Espírito Santo”.
158
Lutero, em seu “O louvor de Maria”, analisando o versículo Lc 1, 48 “Pois
contemplou a humildade de sua serva. Por isso me considerarão bem-aventurada
todas as gerações”, assim se pronuncia:
Maria não diz que vão falar muito bem dela, exaltar sua virgindade ou
humildade ou, talvez, cantar um hino para engrandecer seu feito. Pelo
contrário, falarão somente do fato de Deus ter posto os olhos nela.
159
O fato de Lutero expressar “exaltar sua virgindade e humildade” demonstra
que ele acreditava na condição de Maria com o atributo de virgem:
155
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. À Anunciação da Senhora canção. In: Lira sacra. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
156
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1,34.
157
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Is 7,14.
158
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mt 1,18.
159
LUTERO: 1999, p.51.
87
O reformador mantém a tese da perpétua virgindade de Maria. „uma vez que
sentiu que era a mãe do Filho de Deus, não optou por se tornar a mãe de um
filho do homem, mas permaneceu naquele dom‟; e o faz até o fim da vida.
Em contexto de confrontação antijudaica, Lutero repele com vigor a hipótese
de que Maria tivera outros filhos. Assim o faz em 1523, em sua obra Jesus foi
judeu de nascimento em que qualifica este suposto de „perverso e miserável
embuste‟.
160
A Comissão Internacional Anglicano-Católica Romana propõe, no artigo 78,
os seguintes termos: “o ensinamento de que Deus acolheu em sua glória a bem-
aventurada Virgem Maria na completude da sua pessoa, de acordo com a Escritura,
e somente à luz desta”
161
. Se a ARCIC chama-a “bem-aventurada Virgem Maria” é
prova de que reconhece o segundo dogma conferido à Maria Santíssima.
Quanto a Maria manter-se virgem, no parto e após o nascimento de Jesus,
muitos estudos. Para os protestantes não nenhum desmerecimento a
ausência dessa condição em Maria, uma vez que o celibato para seus pastores não
é fundamental, embora não haja documentos sobre o fato como matéria principal.
Para os católicos, é um dogma que deve ser aceito pela e confirmado
pelo magistério da Igreja. Contudo, ao longo da história da igreja romana, a
virgindade de Maria é questionada e o assunto se desdobra em três aspectos: Jesus
é encarnado no seio da Virgem Maria; Maria é virgem no parto, que ocorre de
maneira extraordinária; Maria é sempre virgem.
A primeira proposição de que “Jesus Cristo foi encarnado no seio da Virgem
Maria” encontra respaldo bíblico, no Antigo Testamento
162
, no Livro do profeta
Isaías e, no Novo Testamento
163
, nos evangelhos de Lucas e Mateus. Também está
registrada nas primeiras profissões de fé desde o Símbolo dos Apóstolos, de Hipólito
de Roma, por volta de 215.
160
GESTEIRA, M. Reforma. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore. Dicionário de Mariologia. São
Paulo: Paulus, 1995, p.1123.
161
ARCIC: 2005, Art. 78, p.51.
162
Antigo Testamento: Is 7,14, Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal. Eis que uma
virgem concebeu e dará à luz a um filho e pôr-lhe-á o nome Emanuel”
163
Novo Testamento: Lc 1, 26-27: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade
da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de
Davi; e o nome da virgem era Maria”; MT 1, 18: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe,
comprometida em casamento com José, antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito
Santo.”
88
O Símbolo dos Apóstolos, ou Credo foi originalmente elaborado por Hipólito
de Roma (215?) de forma interrogativa. „Crês em Deus Pai Todo-Poderoso? [...]
Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu de Maria Virgem [...]?. A versão
latina, oriunda da tradução grega, foi introduzida na liturgia romana no final do
século IX: „Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do u e da terra, e em
Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor que foi concebido por obra do Espírito
Santo, nasceu de Maria Virgem [...]
164
.
Além do Credo, de Hipólito, vários outros documentos ratificam a ideia da
virgindade de Maria, como o Símbolo de Santo Epifânio (374); Profissão de Fé
Batismal da Igreja Copta (380 ?); I Concílio de Toledo (400); II Concílio de
Constantinopla (553).
Em referência ao parto de Maria, os evangelhos canônicos não se
manifestam, porém o Proto-evangelho de Tiago, com história do Nascimento de
Maria insere um texto do Papiro Bodmer 5, de XVIII, 1 até XXI, 3, em que José
busca uma parteira hebreia e esta testemunha o nascimento de Jesus:
Pararam no lugar da gruta. Uma nuvem escura cobria a gruta.
Disse a parteira:
- Minha alma foi hoje engrandecida, porque hoje meus olhos
viram coisas maravilhosas; pois nasceu a salvação de Israel.
Naquele instante a nuvem começou a afastar-se da gruta; e na
gruta apareceu uma luz forte que os olhos não podiam suportá-la.
Pouco depois a luz começou a afastar-se e apareceu um recém-
nascido, que foi sugar o peito de Maria sua mãe.
A parteira soltou um grito, dizendo:
- Como é grande para mim este dia, porque vi esta nova
maravilha.
165
Em relação à perpétua Virgindade de Maria, a história da igreja romana
aponta dois momentos, ocorridos em diferentes épocas. O primeiro aconteceu em
164
COLLANTES: 2003, FC nº 5.003, p.396, 397.
165
BIBLIA APÓCRIFA. Proto-evangelho de Tiago - A história do nascimento de Maria.
Tradução, organização e notas de Lincoln Ramos. edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004,
p.55,56.
89
31 de outubro de 649, no Concílio de Latrão, sob a liderança de Martinho I com a
declaração de que:
[...] segundo os Santos Padres, que a Santa sempre Virgem e
Imaculada Maria é Mãe de Deus [Dei genitricem], porque, nos últimos
tempos, ela concebeu, sem sêmen masculino [absque semine], por
obra do Espírito Santo [ex Spiritu Danctu], verdadeiramente e de modo
singular, o próprio Deus-Verbo, nascido do Pai antes de todo os
séculos, e [O] gerou sem perder virgindade [incorruptibiliter],
permanecendo ela, mesmo depois do parto, inviolável em sua
virgindade [...]
166
Para que houvesse a proposição do dogma de que Maria é aeiparthénos”,
sempre virgem (no sentido físico), pelos membros conciliares, foi levado em
consideração o patrimônio de fé que a tradição da igreja já professava desde tempos
imemoriais, oficializado a partir do Símbolo dos Apóstolos
167
, por volta do século III.
O segundo momento ocorreu após a deflagração da Reforma protestante,
com a ameaça aos fundamentos da católica, dentre eles a concepção trinitária de
Deus e, por extensão a maternidade divina de Maria. “Diante da situação, fez Paulo
IV solene convocação por meio da Bula „Cum quaorumdam‟, em que procura
recuperar os extraviados e advertir os incautos.[...] Meio século mais tarde (1603), a
bula foi confirmada por Clemente VIII com o Breve „Dominici gregis‟
168
. Entre os
vários temas abordados a Bula alerta de que não se deve negar:
[...] que a mesma Bem-Aventurada Virgem Maria não é verdadeira
Mãe de Deus, nem permaneceu sempre na íntegra virgindade, isto é,
antes do parto, e perpetuamente depois do parto Nós, com a
autoridade Apostólica que vem de Deus Onipotente, Pai, Filho e
Espírito Santo, pedimos e admoestamos [...].
169
Iconograficamente, Nossa Senhora não tem uma imagem representativa da
“virgindade”, mas existem mbolos, índices e alegorias que compõem
166
COLLANTES: 2003, FC nº 4.047, p.327 e FC nº 5.013, p.408..
167
COLLANTES: 2003, FC n. 5003, p. 396 e FC n. 5004, p. 397.
168
COLLANTES: 2003, FC n. 5002, p.393.
169
COLLANTES: 2003, FC nº 5002, p.393.
90
ilustrativamente esse atributo de Maria, dentre os mais usados, há aqueles, cuja
significação foi cristalizada pelos artistas, levando em conta o patrimônio cultural de
diversas épocas.
Destacamos alguns, com seus conteúdos semânticos, que aparecem com
muita frequência nos quadros barrocos: açucena, pureza e inocência; pomba,
candura e simplicidade; harpa e coroa, recompensa celestial; abelha e cordeiro,
mansidão e doçura; arco-íris, união entre céu e terra; esmeralda, pedra
consagrada à virgindade; além das cores branca, significando pureza, e azul”, a
graça divina.
170
A iconografia mais representativa para demonstrar a virgindade de Nossa
Senhora é o quadro da Anunciação em que Maria dialoga com o arcanjo Gabriel,
visto que o texto evangélico aponta essa característica:
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da
Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão
chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria.
Entrando onde ela estava, disse-lhe: Alegra-te, cheia de graça, o
Senhor está contigo! Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a
pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém,
acrescentou: „Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis
que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e o chamarás com
o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e
o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa
de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim‟. Maria, porém,
disse ao anjo: „Como isso acontecerá se não conheço homem?‟ O
Anjo respondeu: „O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo
vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será
chamado Filho de Deus‟.
171
Para ilustrar o episódio, escolhemos o quadro de 1638, pintado por
Francisco de Zurbarán, do barroco espanhol, em que narra pictoricamente a
encarnação de Deus-Filho, no seio da Virgem Maria, através do Espírito Santo de
Deus.
170
Os elementos relacionados com seus respectivos significados foram extraídos de diferentes
manuais de arte, bem como de dicionários de símbolos e comparados entre si, além de observarmos
a recorrência deles em gravuras e pinturas.
171
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1- 26-35.
91
Anunciação, de Francisco de Zurbarán
A exegese da pintura nos possibilita analisar a imagem, utilizando o
princípio barroco da dualidade: o plano primeiro e o segundo; a parte interna e
externa; o claro e o escuro; o humano e o divino; a terra e o céu; o trabalho e a
oração; a ação e a contemplação. Tais características demonstram como os artistas
barrocos estavam enredados no espírito católico da Contrarreforma, conforme
expressa Carlo Argan:
La defensa y revalorización de las imágenes, y por lo mismo del arte
que las produce, es la gran empresa del barroco; comienza cuando la
Iglesia, ya segura de haber contenido el ataque protestante, pasa a la
92
contraofensiva. Contra el anti-imaginismo y la iconoclastia de la
Reforma, la Iglesia romana reafirma el valor ideal y ejemplo, de los
hechos de su historia… Estimula los modos más espectaculares del
arte, así como acentúa el carácter espetacular del rito y del culto.
172
Em primeiro plano, estão as figura humana, de Maria e as divinas, dos
anjos, no interior de um recinto. No segundo plano, se encontram as edificações da
cidade de Nazaré, mostrando a parte externa do ambiente.
Para representar o interior e o exterior, o artista utilizou a técnica do claro e
escuro. A parte interna está pintada com tonalidade mais escura, denotando a
circunspecção que o episódio requer; enquanto os tons mais claros, da parte
externa, evidenciam a alegria da boa notícia ao povo de Israel. Nos edifícios que
compõem o exterior, aparecem três portas, representando as virtudes teologais - fé,
esperança e caridade virtudes que devem sustentar a vida cristã.
O humano e o divino se materializam nas imagens de Maria e do arcanjo
Gabriel. Essas figuras estão distribuídas no espaço da tela de forma a demonstrar o
terreno e o celestial, o primeiro se projeta na parte inferior do quadro, onde vemos a
jovem e o emissário do Criador; o segundo se encontra na parte superior, onde
nuvens espessas sustentam os arcanjos Miguel e Rafael, com uma legião de
querubins, que observam a cena.
Diante da Virgem, um cestinho com trabalhos manuais e dois livros de
orações, estando um deles, aberto compõem o ambiente e reforçam o sentido do
orar e do laborar, atitudes sempre presentes na vida de Maria. Ajoelhada, com o
rosto voltado para Gabriel, mão esquerda sobre o peito, a direita entreaberta e
estendida, Nossa Senhora sinaliza sua aceitação ao convite do Criador.
A túnica rosa com manto azul e finíssimo véu emprestam delicadeza e
candura à representação da Virgem. A indumentária do Arcanjo, pintada com tons
quentes - amarelo e laranja - e se mostra esvoaçante, indicando, portanto, que ele
acaba de chegar. Gabriel, com as mãos sobrepostas, se coloca num gestual de
reverência e de disponibilidade para cumprir a missão a ele confiada.
172
ARGAN, Carlo apud SEBASTIÁN, Santiago. Contrarreforma y barroco. Madrid: Alianza Editorial, 1985,
p.14.
93
Por fim, o gênio criativo de Zurbarán põe ao centro da tela o foco de luz,
simbologia do Criador, que se projeta do campo celestial até a Virgem e faz
aparecer uma pomba branca, representação de seu espírito. A claridade, advinda do
céu, ilumina um ramalhete de açucenas que, na pintura, é símbolo recorrente da
virgindade de Maria, segundo dogma mariano.
3.3. O dogma da Imaculada Conceição
Tendo a Virgem da Graça a preminência
foi o primeiro instante preservada;
que duvidar ser nele imaculada
é limitar de Deus a onipotência.
De nada criou Deus toda a existência
da máquina do mundo dilatada,
e se Deus tudo faz quanto lhe agrada,
quis a Maria dar essa excelência.
173
Diferentemente do dogma da perpétua Virgindade de Maria, o dogma da
Imaculada Conceição da Mãe de Deus não tem fundamentação bíblica consistente,
mesmo que a saudação do anjo Gabriel “ Alegra-te, cheia de graça,”
174
e as palavras
de Isabel “Bendita és tu entre as mulheres”
175
presentes na Sagrada Escritura,
sejam tomadas como pilares de sustentação e testemunho teológico da igreja
católica.
Desde os primórdios do Cristianismo, a ideia de que Maria foi preservada do
pecado original era senso comum entre os católicos. Essa proposição, contudo não
era acatada nem pelos cristãos ortodoxos, nem posteriormente pelos cristãos
protestantes. Um dos problemas para a não aceitação dessa prerrogativa de Maria
é o fato de sua origem biológica, pois era filha de Joaquim e Ana. O outro obstáculo
diz respeito ao dogma que foi definido por decreto do Papa e não por um Concílio.
173
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. À Conceição da Senhora. In: Lira sacra. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p.254.
174
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1,28.
175
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1,46.
94
Das primeiras referências até a definição do dogma sobre a Imaculada Conceição
de Maria, a Igreja percorreu um longo caminho.
A primeira incursão sobre o assunto está presente no evangelho apócrifo do
século II, o Protoevangelho de Tiago, que relata a forma extraordinária da
concepção de Maria. Segundo o texto, Joaquim se achava jejuando no deserto e
Ana, em casa, estava em oração. Ambos com o mesmo propósito de rogar a Deus
por uma descendência, com a promessa de consagrarem ao serviço divino o
rebento que deles nascesse. Enquanto Ana rezava, recebe a visita de um anjo que a
informa: Ana, Ana, o Senhor Deus ouviu a tua oração. Conceberás e darás à luz e,
em toda a terra, se falará de tua descendência”.
176
Joaquim também é avisado do
fato por um anjo e retorna a sua casa.
Quando Maria completa três anos, seus pais, cumprindo a promessa,
levam-na ao templo. Ali ela permaneceu até os doze anos “vivendo como uma
pomba e recebia seu alimento das mãos de um anjo.”
177
No período patrístico, não uma uniformidade de pensamento sobre a
concepção imaculada de Maria e a maior dificuldade está na universalidade da
Redenção, pois se Maria nasceu sem o pecado original, estaria fora do plano de
salvação de Deus e consequentemente, da obra redentora de Jesus Cristo.
No século VII, a igreja do Oriente começa a celebrar a festa da Imaculada
Conceição e a do Ocidente a comemorá-la em 8 de dezembro, nove meses antes da
festa da Natividade de Maria, 8 de setembro.
Durante a Idade Média, cresce a devoção mariana em torno da Imaculada
Conceição de Maria, entre o povo; mas, entre os teólogos não há consenso:
A questão suscita muitas discussões teológicas, que se polarizam em
duas escolas de pensamento, maculistas e imaculistas,
protagonizados, respectivamente, por dominicanos e franciscanos.
Segundo os maculistas, Maria teria sido purificada da mancha do
pecado original durante a gestação. Para os imaculistas, no momento
da concepção.
178
176
BÍBLIA APÓCRIFA: 2004, p. 32.
177
BÍBLIA APÓCRIFA: 2004, p. 40.
178
MURAD, Afonso. Maria, toda de Deus e tão humana. São Paulo: Paulinas; Valência (Espanha):
Siquem, 2004, p. 121.
95
Segundo Frei Clarêncio Neotti, a Ordem Franciscana celebrava desde 1263
a Festa da Imaculada Conceição, em 8 de dezembro “e costumava cantar a Missa
em sua honra aos sábados”. No século XV, uma das primeiras congregações
religiosas marianas se estabelecem: “Em 1484, Santa Beatriz da Silva, filha de pais
portugueses, fundou a Ordem contemplativa de mulheres, conhecidas como Irmãs
Concepcionistas, para venerar especialmente e difundir o privilégio mariano da
Imaculada Conceição de Maria, Mãe de Deus”.
179
Embora a concepção imaculada de Maria, fosse assunto amplamente
debatido e aceito entre o povo desde o século II, somente em 1435 surge o primeiro
documento oficial da igreja romana no Concílio de Basileia “o cônego João de
Romiroy recorre à devoção popular para apresentá-la como primeiro motivo que
deve induzir os padres conciliares a porem fim na controvérsia sobre a imaculada
conceição”
180
.
Em 27 de fevereiro de 1477, o Papa Sisto IV insere a solenidade da
Imaculada Conceição no calendário litúrgico da igreja com a Constituição Cum
praeexcelsa:
Quando, com devota contemplação perscrutamos as excelsas
prerrogativas dos méritos com que a Rainha do céu, a gloriosa Virgem
Mãe de Deus, elevada aos tronos celestes, brilha entre os astros
como Estrela da manhã (...) julgamos coisa digna, ou melhor, devida,
convidar todos os fiéis cristãos, com indulgências e perdão dos
pecados, a dar graças a Deus Todo Poderoso [...] a dar graças a
Deus [dizemos] e louvores pela admirável Conceição da Virgem
Imaculada e a celebrar, portanto, as missas e o outros ofícios divinos
instituídos para este fim na Igreja de Deus e a eles assistir, para que,
pelos méritos e a intercessão da Virgem, estejam mais dispostos a
[receber] a graça de Deus.
181
No culo XVII, em plena Contrarreforma, confrarias marianas dedicadas a
esse título são organizadas e inúmeras expressões artísticas são criadas. É
importante lembrar o movimento do volum sanguinis”, oriundo das universidades,
179
NEOTTI, Frei Clarêncio. Imaculada Conceição 150 anos da Proclamação do dogma. São Paulo:
Marques Saraiva, 2004, p.17.
180
A proposta de João Romiroy foi aceita pelos padres conciliares, mas a decisão do Concílio o
teve validade por não estar em comunhão com a Santa Sé. Op. cit. p.600.
181
COLLANTES: 2004, FC n
o
5.017, p.414.
96
que propõe, sob juramento, defender a imaculada conceição de Maria até a efuo
de sangue. A primeira manifestação ocorreu em 1617 na universidade de Granada,
seguindo-se de outras universidades espanholas e italianas.
182
Diante de tantas manifestações favoráveis à imaculada concepção de
Maria, em 8 de dezembro de 1854, por meio da Bula Ineffabilis Deus, o Papa Pio IX
proclamou o dogma:
[...] declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que
sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, foi preservada imune de toda
mancha do pecado original, por singular graça e privilégio de Deus
Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano, é uma doutrina revelada por Deus e que, por este motivo,
deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis.
183
Quanto ao pensamento das igrejas protestantes, durante a Reforma ou
imediatamente posterior, é patente: a “concepção de Maria e a assunção o
aparecem nunca nos escritos confessionais das igrejas da Reforma”
184
E, embora a
Igreja Reformada tenha silenciado em seus registros, modernamente a ARCIC
apresentou o seguinte parecer no documento Maria: graça e esperança em Cristo:
Em vista da sua vocação para ser mãe do „Santo‟ (Lc 1,35), podemos
afirmar juntos que a obra redentora de Cristo „resgatou‟ em Maria a
profundidade de seu ser, e desde seu início. Isto não é contrário ao
ensinamento da Escritura, e somente pode ser entendido à luz desta.
Católicos romanos podem reconhecer nisso o que é afirmado pelo
dogma isto é, „imune de toda mancha do pecado original‟ e „desde o
primeiro instante de sua concepção
185
.
Com relação à iconografia da Imaculada Conceição, Réau
186
afirma que ela
sofreu modificações entre os séculos XVI e XIX e a versão atual mais divulgada é
uma manifestação artística do Barroco, especialmente do espanhol:
182
FIORES, Stefano de. Imaculada. In: ________Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995,
p.601.
183
COLLANTES: 2003, FC n
o
5029, p.422, 423.
184
FIORES: 1995, p.1131.
185
ARCIC: 2005, Art. 59, p. 47.
186
RÉAU, Louis. Iconografia del arte cristiano. Traducción Daniel Alcoba. Tomo I, Volume 2,
Barcelona (Espanha): Ediciones del Selbal, 1996, p.81-89.
97
En la pintura italiana del Renascimiento, la Inmaculada Concepción se
presenta como la contrapartida y la redención del pecado original. La
idea que quiere poner en evidencia es que la gracia de María redime la
falta de Eva. […]
Por ello Signorelli
187
, en su cuadro de la catedral de Cortone, evoca a
la Virgen descendiendo del cielo en una lluvia de flores y posándose
sobre el Árbol de la Ciencia del Bien y del Mal, a cuyo pie Adán y Eva
cometen el pecado.[…]
Pero es el arte barroco del siglo XVII el que tiene el mérito de haber
creado el tipo definitivo de Inmaculada Concepción. Libre de todos
símbolos de las Letanías con que la habían sobrecargado los teólogos,
rodeada sólo por los ángeles, ella planea en una mandorla sobre un
creciente de luna. A veces, para recordar su victoria sobre el pecado
original, sus pies, que se apoyam sobre elo globo, aplastan la cabeza
de la serpiente tentadora.
188
De acordo com Réau, a figura de Maria com o atributo de Imaculada
Conceição é a mais representada iconograficamente e originou muitas outras
imagens e títulos como a Virgem de Lourdes, a Virgem de Fátima e Nossa Senhora
Aparecida, por exemplo. O pintor Esteban Murillo,
189
do Barroco espanhol, é
conhecido como o pintor da Imaculada por ter executado vinte e cinco telas com o
mesmo tema. A mais famosa delas é a imagem de 1678, pintada para a igreja do
hospital-asilo destinado a sacerdotes anciãos de Sevilha, por isso ela recebeu o
título de Inmaculada Concepción de los Venerables.
Durante a invasão francesa, na Espanha (1807-1810), o quadro foi levado
por Soult,
190
que o vendeu ao museu do Louvre, permanecendo ali até 1947.
Atualmente, ele se encontra em Madri, no museu do Prado e é uma das imagens
187
Luca Signorelli (1445? - 1523) é o nome usado por Luca d'Egidio di Ventura de Signorelli, pintor
renascentista italiano. Por volta de 1482, trabalhou nos afrescos da Capela Sistina, referentes ao
Testamento e Morte de Moisés, tendo como principais características de sua obra: a plasticidade das
figuras por ele desenhadas e a elaboração cromática da pintura. Signorelli pode ser considerado um
dos grandes mestres do Renascimento.
188
RÉAU: 1996, p.88.
189
Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), pintor sevilhano que melhor define o barroco espanhol.
Sua obra, na maioria religiosa, demonstra sua articulação com o pensamento católico da Espanha
contrarreformista.
190
Soult (1769 1871), nome de guerra de Nicolas Jean de Dieu Soult, Marechal da França, no
governo de Napoleão Bonaparte e Ministro de Luis XVIII e Luis Felipe de Orleans. Na Espanha,
destacou-se nas guerras napoleônicas que, entre 1897 e 1810, tomou Burgos e La Corunha, invadiu
a Extremadura e ocupou Badajoz. Soult chegou a se tornar general e chefe do exército da Andaluzia,
mas alcançou negativa celebridade, naquela região, por ter levado para a França, como espólio de
guerra, quadros valiosos principalmente de Zurbarán e de Murillo.
98
mais visitadas e mais reproduzidas da Virgem Maria. Os historiadores de arte
atestam que foi a partir desses fatos que Murillo ficou conhecido internacionalmente,
transformando essa imagem na mais popular do sevilhano, cuja representação
serviu de modelos para muitas outras.
Imaculada Conceição, de Esteban Murillo
A Virgem dos Veneráveis se encontra envolta em luz como a grande
soberana do empíreo. Sem imponência, mas com elegância, sem indumentária
luxuosa, mas com delicadeza e grande riqueza cromática. Na cabeça, não coroa
de rainha, mas o brilho da realeza divina. Os cabelos caem sobre os ombros como
um manto, sem a caracterização do poder, mas com o simbolismo da pureza e da
castidade.
99
O jogo da luz e sombra, característico dos artistas barrocos se destaca de
tal maneira no quadro de Murillo que a imagem de Maria parece imergir do fundo
dourado, como uma estrela brilhante, em um céu enluarado, dando a ilusão da
perspectiva. Além disso, o lado esquerdo da face, pintado em tom mais claro, evoca
a sensação de que recebeu maior luminosidade, realçando a ternura do rosto e a
candura do olhar.
Outro aspecto que deve ser observado em relação à luz e à cor é o conjunto
de anjos: alguns são pintados com nitidez e com corpo inteiro, em outros são
visíveis somente as cabecinhas, os demais desaparecem na penumbra e se diluem
num ambiente surreal, permitindo visualizar os vários planos de profundidade.
Réau aponta que as fontes para a representação iconográfica da Imaculada
Conceição procedem do Cântico dos Cânticos, no Antigo Testamento, e do Livro do
Apocalipse, no Novo Testamento com as metáforas que envolvem a Noiva do
Cântico e a Mulher, vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés, do Apocalipse. O
teórico também explicita:
Otros emblemas son tomados de los árboles y las flores. La
Inmaculada es un Jardin cerrado o cercado, una Fuente de los
jardines, un Pozo de agua viva. Se la compara con el cedro del
Líbano, el olivo, con el lirio que florece entre espinas, y con rosal. La
luna que nunca se representa llena, […] sino recortada en forma de
creciente, evocaba la castidad de Diana.
Después de la victoria de Lepanto, la cristandad gustó intrepretar la
luna bajo los pies de la Virgen Inmaculada, como un símbolo de la
victoria de la Cruz sobre la Media luna turca.
191
Murillo usa parte dos atributos da mulher apocalíptica (Ap.12,1-6), para
compor sua Imaculada: ela está envolta em sol, com a lua debaixo dos pés, mas
acrescenta outros dados como a nica branca, símbolo da pureza e o manto azul,
indicando a transcendência. Explorando vários aspectos da técnica barroca, ele a
elaborou no dinamismo das linhas curvas e diagonais, sem precisão nos contornos,
transparecendo delicadeza, fluidez, leveza como se todo o conjunto estivesse no
etéreo. Com isso, o observador se eleva espiritualmente e se deixa cair em
contemplação diante do quadro, situação que Orozco-Díaz observara: “La tendência
191
RÉAU: 1996, p.86, 87.
100
a lo visual que, dentro de la sobrevaloración de los médios sensoriales, preside a
nuestro juicio la concepción y desarrollo del estilo Barroco”.
192
A túnica branca lunar e o manto azul celeste cobrem a Virgem que surge no
centro da tela, rodeada de querubins, com as mãos sobrepostas, suavemente
depositadas sobre o peito, a face levemente voltada para a direita e o olhar elevado
para o céu. Esta é a imagem da Imaculada Conceição que Murillo cristalizou na
memória contrarreformista da Espanha e que outorgou para a posteridade a herança
da nova Eva, plena de luz e cheia de graça.
A análise do dogma da Imaculada Conceição de Maria reforça a ideia de
que Maria o ficou de fora da obra redentora de Jesus, mas por ser a Mãe de
Deus, foi previamente isenta da culpa dos primeiros pais, pelo fato de a misericórdia
divina preponderar sobre o pecado. Na literatura ou nas artes plásticas, a Virgem
sem mácula foi tema de muitas obras.
3.4. A Assunção de Nossa Senhora
Coroada Maria qual portento
do Sacro Empíreo, todos se suspendem:
os Santos como súditos se rendem
que é Maria da Gloria o complemento.
A seu amor, a seu devoto alento
os Serafins atônitos atendem,
os Querubins de seu saber aprendem,
os Tronos lhe ministram sacro assento.
193
A Assunção corporal de Maria é uma verdade de decorrente de outros
dogmas: a maternidade divina de Maria e a preservação do pecado original.
Segundo vários registros, ao século IV, não notícia do fim da vida de Nossa
Senhora o que gerou especulação acerca de sua morte. Entre os questionamentos
mais comuns estão: Teria ela sofrido morte cruenta? Fora ela arrebatada aos céus,
192
OROZCO-DÍAZ, Emilio. Introducción al Barroco I. Granada: Universidade de Granada, 1988,
p.313.
193
BOTELHO DE OLIVEIRA, Manuel. À Coroação. In: Lira sacra. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p.262.
101
antes de morrer? ou Morrera naturalmente e os anjos teriam carregado seu corpo
até a glória de Deus? A fé popular, contudo, nunca acreditou que seu corpo tenha se
transformado em pó como o de outros viventes.
Até a promulgação do dogma, em 1950, realizaram-se muitos estudos
históricos e teológicos acerca do fim da vida terrena de Maria, uma vez que os
evangelhos canônicos registram, como última referência direta, o seguinte trecho,
extraído dos Atos dos Apóstolos, após a Ascensão de Jesus:
Então, do monte chamado das Oliveiras, voltaram a Jerusalém. A
distância é pequena: a de uma caminhada de sábado. Tendo entrado
na cidade, subiram à sala de cima da casa, onde costumavam ficar.
Eram Pedro e João, Tiago e André; Filipe e Tomé; Bartolomeu e
Mateus; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, o Zelota; e Judas, filho de
Tiago. Todos estes, unânimes, perseveravam na oração com algumas
mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com seus
irmãos.
194
A referência sobre a Assunção de Maria é proveniente de evangelhos
apócrifos, cuja redação ocorrera provavelmente entre os séculos III e VI e sua
circulação entre o povo a partir do século IV. Dentre eles os códices de maior
destaque estão: o Livro do Descanso, texto mais antigo conhecido; Trânsito de
Maria, do Pseudo-Melitão de Sardes; o Livro de João, apóstolo de Tessalônica e o
Livro de São João, o teólogo.
Segundo Lincoln Ramos
195
, inúmeros textos apócrifos sobre o tema, em
diferentes idiomas, especialmente em árabe, armênio, copta, eslavo, georgiano,
grego e latim:
O título mais comum dado aos escritos sobre a morte e glorificação da
Virgem Maria é a expressão latina Transitus Marie‟, que pode ser
traduzido por Trânsito de Maria‟ ou Passagem de Maria‟. É a
passagem de Maria desta vida para a glória do céu.
Encontra-se também o título „Dormitio Marie‟ (Dormição de Maria),
correspondente ao título grego Dormição Da Santa Mãe‟. O termo
„dormição‟. Inexistente nos dicionários portugueses, é calcado no latim
„domitio‟. Designa a passagem do estado de vigília ao sono. Uma das
194
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, At 1, 12-14.
195
BÍBLIA APÓCRIFA. Morte e Assunção de Maria. RAMOS, Lincoln - tradução, organização e notas.
3ª ed. Petrópolis (RJ):Vozes, 2002, p.21.
102
redações mais antigas é intitulada Liber Requiei‟- Livro do Descanso
ou Livro do Repouso.
Provavelmente as narrativas conservadas em diversas línguas não
decorrem de um texto original único. Desenvolvem um núcleo central
idêntico, mas apresentam sensíveis divergências.
196
De acordo com a tradução do Livro do Descanso, a pedido de Jesus, Maria
fica aos cuidados de João, contudo, enquanto os apóstolos se põem em missão pelo
mundo, ela volta à casa dos pais, no monte das Oliveiras. Dois anos depois da
Ascensão do Salvador, Maria chora solitariamente em seu quarto, quando recebe a
visita de um anjo que lhe traz um ramo de palmeira do paraíso, o qual deveria ser
levado à frente do féretro, que ocorreria a três dias, momento em que ela seria
elevada do corpo e recebida por Jesus com um coro de anjos.
Maria pede ao anjo que reúna todos os apóstolos e de modo sobrenatural
cada um deles chega até sua casa. Permanecem em oração durante os três dias,
findos os quais, na terceira hora, todos adormecem exceto os apóstolos e três
virgens que ali estão presentes. Repentinamente chega Jesus, acompanhado de um
grande número de anjos que entoavam hinos maviosos. Maria prostra-se diante do
filho, depois se levanta, se deita na cama e entrega seu espírito. Os apóstolos veem
que sua alma irradiava tal claridade, que superava a brancura da neve da prata e
de todos os metais”.
197
Jesus ordena que o corpo de Maria seja preparado para o sepultamento e
entrega sua alma para Miguel, acompanhado de Gabriel. Depois da preparação do
corpo de Maria, conforme o costume judeu, ele é levado ao sepulcro. Durante o
cortejo, curas, castigos entre a multidão que o acompanhava. Chegando ao lugar
determinado, os apóstolos depositam a urna em um sepulcro novo, fecham o túmulo
e se sentam à porta.
Após o sepultamento, rodeado de anjos, chega Jesus até os apóstolos. Em
seguida, ordena a Miguel que traga a alma de Maria. Com o sepulcro aberto por
Miguel, Cristo chama sua mãe: Sai, minha amiga! Tu que não aceitaste a corrupção
196
BÍBLIA APÓCRIFA: 2002, p.21.
197
BÍBLIA APÓCRIFA: 2002, p.35.
103
do relacionamento carnal não sofrerás a dissolução do corpo no sepulcro. [...] E
naquele momento ressuscitou Maria do sepulcro.”
198
Depois da ressurreição de Maria, Jesus retorna ao paraíso, acompanhado
de anjos e de Nossa Senhora. Os apóstolos são reconduzidos ao trabalho de
pregação, em nuvens, da mesma forma como chegaram à casa de Maria.
Em geral, os textos apócrifos conhecidos apresentam passagens
fantasiosas e se utilizam de simbologias para indicar fundamentos doutrinários e
pedagógicos, como ocorre com a palma entregue pelo Anjo a Maria, que “é metáfora
para dizer o que é excelso e elevado”.
199
Nos textos sagrados, a palma é atributo
dos justos e dos rtires, é também símbolo da vitória. Há, contudo, entre eles, a
convergência de discursos nos seguintes pontos:
a) Maria recebe o anúncio de sua morte e amparo para vencer o
temor naquele momento.
b) Todos os apóstolos se reúnem milagrosamente em torno de seu
leito.
c) Maria morre à semelhança de todos os seres humanos.
d) Durante o enterro de Maria, os judeus promovem manifestação
hostil.
e) Depois do sepultamento, segue-se a ressurreição e Maria é levada
ao paraíso.
200
O dogma da Assunção não entra no mérito se Maria morreu ou não, mas
afirma que seu corpo não sofreu a decomposição da matéria, como é natural após a
morte. Sustenta-se que, após seu falecimento, houve a ressurreição da carne,
preservando assim o lugar que um dia abrigou o Salvador da humanidade. Para a
fundamentação teológica católica, Maria antecipa o que um dia ocorrerá com a
humanidade, ou seja, a ressurreição.
Além dos apócrifos, as referências mais consistentes sobre os momentos
finais da vida terra de Maria são apresentadas na igreja do Oriente, no século VI,
198
BÍBLIA APÓCRIFA: 2002, p.41,42.
199
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. Tradução COSTA, João Rezende.
São Paulo: Paulus, 1993, p.171.
200
BÍBLIA APÓCRIFA: 2002, p.22.
104
com o decreto do imperador Maurício sobre o Trânsito ou Dormição de Maria,
fixando a data para 15 de agosto. Outras igrejas do Oriente também celebravam o
fato com diferentes conotações: a igreja copta, por exemplo, comemorava a morte
dia 6 de janeiro e a ressurreição dia 9 de agosto; a igreja armênia, apenas a
ressurreição dia 15 agosto; a igreja siríaco-jacobita festejava a morte gloriosa de
Maria dia 15 de agosto e acreditava que seu corpo incorrupto fora transladado para
um local desconhecido. Contudo:
Deve-se reconhecer que esse desenvolvimento da festa litúrgica do
Trânsito ou Dormição no oriente representa um marco e um ponto
histórico fundamental para o posterior aprofundamento do discurso
teológico e da fé do povo na assunção de Maria, que o objeto da
celebração, identificável seja no próprio título da festa seja nas
fórmulas das orações das diversas liturgias, nem sempre expresse
uma mesma fé.
201
Nas igrejas do Ocidente a situação era similar e registro da celebração
conjunta das festas marianas da Natividade, Purificação e Anunciação, em Roma,
pelo Papa Sérgio I, no século VII, com a festa da Dormição. A ideia de que Maria,
após a morte, foi elevada aos us em corpo e alma se solidifica, e essa crença
passa a ter consequências nas artes, especialmente, naquelas ligadas à iconografia,
visto que esse tema foi objeto de muitas pinturas.
A partir do século X, consolida-se entre teólogos das igrejas bizantina, grega
e russa como também entre teólogos da igreja latina a idéia da “glorificação de
Maria” após sua morte. “Uma convicção que encontra sua expressão solene na
liturgia do mês de agosto, que, em virtude de decreto do imperador Andrônico II
(1282-1328), é consagrado ao mistério da assunção, a maior das festas
marianas”
202
. Essa convicção é também compartilhada por grandes doutores da
filosofia cristã, como Santo Alberto Magno (1193 ou 1206 - 1280), São Boaventura (
1221-1274), mas:
No século XVI, muitos protestantes, inclusive Lutero, por seus óbvios
motivos metodológicos, retomaram a negação dessa pia crença da
igreja católica, mas encontraram pronta reação dos apologistas
201
MEO, SALVATORE. Assunção. In: ____ Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p.174.
202
MEO, SALVATORE: 1995, p.175.
105
católicos, o que fez com que essa pia crença se tornasse doutrina
certa entre os teólogos e entre o povo.
203
A ARCIC, fazendo um retrospecto da doutrina e da devoção marianas da
Reforma até hoje, explicita que o calendário da Igreja da Inglaterra, em 1561, excluiu
a festa da Assunção, em 15 de agosto, do conjunto de festas associada a Maria
como a da Concepção, da Natividade, da Anunciação, da Visitação e da Purificação
ou Apresentão, por entenderem que “havia falta de respaldo bíblico, mas também
que Maria estava sendo exaltada às custas de Cristo”.
204
A subtração da festa teve
implicações doutrinárias, pelo fato de o calendário ter sido reproduzido no Livro de
Oração Comum, de 1662 e suas sucessiva re-edições.
Apesar desses entraves, a aceitação da Assunção de Maria era tão patente
entre o povo, que o Papa Pio XII resolveu consultar o bispado de um modo geral
para saber se era pertinente defini-lo como dogma de Fé. Assim, das 1.181
consultas, o pontífice romano recebeu 1.169 respostas afirmativas, 6 vidas e 22
recusaram a adesão por “julgarem inoportuna uma proclamação ex cathedra” .
205
Após o resultado, em de novembro de 1950 o Papa Pio XII, através da
constituição apostólica Munificentissimus Deus, proclamou o dogma da Assunção de
Maria ao céu nos seguintes termos:
[...] depois de insistentemente termos elevado a Deus nossas preces
de súplica e de termos invocado a luz do Espírito Santo da Verdade,
para glória de Deus Onipotente, que, de modo particular, pôs Sua
complacência na Virgem Maria, para honra de seu Filho, rei imortal
dos séculos e vencedor do pecado e da morte, para maior glória da
mesma augusta Mãe, e para alegria e exultação de toda a Igreja
com a Autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-
aventurados Apóstolos Pedro e Paulo e a Nossa, proclamamos,
declaramos e definimos como dogma divinamente revelado: que a
Imaculada Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, ao término de sua
vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória do céu.
206
203
MEO, SALVATORE: 1995, p.175.
204
ARCIC: 2005, Art.46, p.37.
205
COLLANTES, Justo. Maria na obra da salvação. In: ______ A Fé Católica, documentos do
magistério da Igreja, p.424,425.
206
COLLANTES: 2003, FC 3903, p.426.
106
Mesmo com a definição do Papa, a Igrejas Reformada não aceita essa
verdade de fé católica, contudo a ARCIC, considerando “avanços” na Declaração de
Acordo, expressa seu parecer acerca do dogma da Assunção, em conjunto com
outros temas da fé católica:
- que o ensinamento sobre Maria em duas definições da Assunção e
da Imaculada Conceição, entendido dentro do modelo bíblico da
economia da esperança e graça, pode ser considerado consoante o
ensinamento das Escrituras e das antigas tradições comuns (n
o
60);
- que este acordo, quando aceito pelas nossas duas Comunhões,
colocaria as questões sobre autoridade surgida das duas definições de
1854 e 1950, em novo contexto ecumênico (n
o
61-62);
- que Maria tem um ministério contínuo que serve o ministério de
Cristo, nosso único mediador; que Maria e os santos oram por toda a
Igreja e que a prática de pedir a Maria e aos santos para que orem por
nós não impede a Comunhão (n
o
64-75)”
207
.
A partir de tudo que foi explicitado, é visível o papel de Maria tanto na Igreja
Católica, quanto na Reformada, de serva e discípula de Deus, que buscou, na
escuta da palavra e na ação de vida dar plenitude à obra salvífica de Jesus para a
humanidade.
Com relação à morte e à glorificação da Virgem Maria entre os artistas
plásticos, Réau tece algumas considerações:
Este ciclo iconográfico, que tiene gran importancia en del arte
cristiano, está ausente en las Escrituras. Se buscaría en vano en los
Evangelios o en los Hechos de los Apóstoles una sola palabra acerca
de la Muerte de la Virgen, su Asunción o su Coronación.
Todos estos temas tan populares, y que han inspirado tantas obras
maestras, fueron difundidos por los Evangelios apócrifos y
popularizados por la Leyenda Dorada en el siglo XII, que se
adelantaron a la fe de los fieles, irresignados a no saber nada acerca
de la Madre del Redentor después de la Crucifixión.
[...]
El ciclo de la leyenda así creada, enriquecida después a medida que
creció la devoción a la Virgen, reúne ocho temas, cuatro relativos a la
Muerte y cuatro a la Glorificación.
207
ARCIC: 2005, Art.61, p. 61,62.
107
I. Ciclo de la Dormición
1. Son los últimmos momentos de la vida de la Virgen. Un
ángel le anuncia su muerte próxima; ella se despide de los
apóstoles.
2. La Dormición o Muerte de la Virgen.
3. Los Funerales.
4. El Enterramiento.
II. Ciclo de la Glorificación
5. La Resurrección de la Virgen.
6. La Asunción.
7. La Coronación.
8. Los Milagros de Nuestra Señora.
208
Para todos esses subtemas iconografias, alguns deles tiveram maior
popularidade em determinada época como é encontrado no culto à morte de Nossa
Senhora, nos ícones bizantinos; a dormição de Maria, na Idade Média, ou a Mãe de
Deus, recebendo o sacramento da comunhão, antes de morrer em imagens no início
do século XVI.
Alguns artistas conseguiram juntar, no ciclo da glorificação, a assunção com
a coroação da Virgem que são momentos diferenciados para a Igreja Católica,
inclusive eles representam o quarto e o quinto mistérios do terço, assunto a ser
discutido quando analisarmos a Virgem do Rosário.
Inicialmente, verificamos o significado de assunção que é “a subida do
corpo de Maria ao céu, onde de novo se reuniu à sua alma”,
209
estabelecendo um
paralelo com ascensão, “a subida ao céu de Jesus Cristo ressuscitado”,
210
isto
porque, na iconografia do evento, o corpo da Virgem geralmente vem sustentado por
anjos, como aparece no quadro de Velázquez, diferentemente da imagem de Jesus
que é representado de pé, suspenso no ar, resplandecente em sua glória.
O art. 59 da Lumen Gentium complementa o texto do dogma da Assunção
“[...] foi levada à glória celeste em corpo e alma,
211
e exaltada pelo Senhor como
Rainha do universo, para que se parecesse mais com o seu Filho, Senhor dos
208
RÉAU: 1996, p. 620-622.
209
Cf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
210
Cf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
211
Texto do Dogma da Assunção.
108
senhores (cf. Ap 19, 16) e vencedor do pecado e da morte”.
212
Esse texto estava
na concepção de grande parte dos artistas como Diego Velázquez, na obra de 1644,
a ser analisada, manifestando fisicamente os sentimentos da tradição dos crentes.
O quadro foi pintado por Velázquez para compor o oratório do quarto da
rainha Isabel de Bourbón
213
, em Alcázar de Madrid. Sua composição apresenta
Maria, assunta ao céu, recebendo a coroa das mãos de Deus-Pai à direita e Deus-
Filho à esquerda iluminada pela terceira pessoa da Santíssima Trindade.
Coroação da Virgem, de Diego Velázquez
212
LUMEN GENTIUM: 2006, n
o
59.
213
Isabel de Bourbon, Rainha de Portugal e Espanha, filha mais velha de Henrique IV de França e
Maria de Médicis. Casou-se com Filipe IV, selando a amizade entre França e Espanha.
109
A representação do Mistério da Trindade também se faz presente na
disposição das figuras: Maria com os anjos formam um triângulo; Maria com as três
pessoas de Deus formam outro triângulo invertido e, observando com acuidade,
verificamos a formação de um terceiro triângulo, no espaço luminoso entre o Pai e o
Filho envolvendo o Espírito Santo, que direciona sua luz para a Virgem.
Simbolicamente, o triângulo é a figura geométrica que possui maior
equilíbrio e foi uma das caractesticas do barroco italiano. Sua repetição, em três
vezes, lembra a unidade familiar - pai, mãe, filho - presentes no quadro. Recorda
também as três virtudes teologais fé, esperança e caridade - que alcançou a
excelência em Maria como “membro supraeminente e absolutamente singular da
Igreja, e também modelo acabado na fé e na caridade”.
214
Velázquez pintou as túnicas do Pai, do Filho e da Mãe de púrpura, “cor da
riqueza e da dignidade do governante”,
215
e de vermelho, símbolo do “amor
absoluto de Deus com que criou o mundo e o redimiu”,
216
demonstrando a igual
importância dos três para a Igreja e sua íntima relação no mistério da Encarnação:
Deus - criador, Filho redentor e a Mãe que tornou possível a encarnação.
Na arte cristã, “para Cristo e Maria predominam as cores azul e vermelha,
que são cores do céu e da alvorada, indicando a última referência ao amor
misericordioso e à paixão”. Velázquez ratifica esses dados na Coroação da Virgem,
aplicando a cor azul no manto, símbolo da realeza e da dignidade de Maria e, no
véu, o branco como sinal de sua pureza e castidade.
A pintura retrata o momento da coroação de Nossa Senhora pela ação da
Trindade. Ela poderia receber uma coroa de ouro, engastada de pedras preciosas,
como era comum entre as rainhas do Oriente ou ser coroada de estrelas como a
Mulher do Apocalipse, mas, contrariamente a essas possibilidades, Maria é
aclamada como Rainha dos Anjos e dos Santos e recebe uma grinalda com flores
214
LUMEN GENTIUM: 2003, n
o
53.
215
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. Tradução João Resende Costa. São
Paulo: Paulinas, 1993, p.69.
216
LURKER: 1993, p. 258.
110
de diferentes matizes, referindo-se que “toda a flora é colocada por poetas e
pintores em conexão com a história da salvação”.
217
Dante Alighiere, em A Divina Comédia, assiste à coroação da Virgem Maria
e, na voz poética de Beatriz e na sua própria voz, canta louvores a Maria,
empregando flores em suas metáforas:
70 “Por que no rosto meu fixas o olhar,
e não te volves ao jardim florido,
sob o fulgor de Cristo a cintilar ? (p.738)
73 Eis a rosa, em que o Verbo convertido
em carne foi, e os lírios ao seu lado,
cujo olor demarcava o rumo fido.”
218
[...]
88 E ao nome, assim, daquela flor sem par
que dia e noite invoco, se fixou
no lume mais vivaz o meu olhar;
91 e mal à vista se me demonstrou
a irradiação da fulgurante estrela
que ali rebrilha,como aqui brilhou,
94 - precipitou-se do alto, clara e bela,
outra luzerna, à guisa de coroa,
cingindo-a e rodopiando em torno dela.
219
Velázquez retoma a idéia recorrente entre teólogos e artistas de que Maria,
por sua natureza humana, se situa em um plano abaixo do Pai e do Filho, detentores
da divindade, por isso ela está representada na parte inferior da tela. Contudo ele
reforça o papel de Theotókos e corredentora no processo de salvação, retratando-a
com seu olhar voltado para a terra, na direção de seus filhos em quem Deus colocou
todo o seu amor.
217
LURKER: 1993, p. 105.
218
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e comentários de Cristiano Martins. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, PARAÍSO, Canto XXIII, p. 738/739.
219
ALIGHIERI: 1976, PARAÍSO, Canto XXIII, p. 740.
111
4. MARIA NO TEATRO DO “SÉCULO DE OURO
El Teatro el arte que, con muy superior riqueza
de medios, en su esencial valoración de lo
visual, […] utilizando el elemento vivo de los
actores y los demás elementos que le
proporcionan otras artes y tramoyas, y los
poderosos recursos literarios de desbordamiento
expresivo, lleva a su plena realización comunicar
el sentido real de continuidad espacial, y con ello
el sentimiento de transitoriedad temporal. El
teatro se convierte así, en el más perfecto y vivo
símbolo de lo que es la vida humana.
220
Na linha de pesquisa de Literatura e outras Artes, em que este trabalho se
insere, o teatro é considerado a confluência de todas as artes, haja vista que, para a
realização do texto dramático, a interlocução da música, do cenário, da
caracterização das personagens com maquiagem, indumentária e outros acessórios
que possibilitem melhor expressar a idéia do autor da obra teatral. Além desses
aspectos, outros que fazem do teatro, uma arte síntese de outras artes, como
explica Ronald Peacock, na obra Formas da literatura dramática:
É uma arte; é uma imagística dirigida aos olhos e aos ouvidos; e
evidencia uma intertessitura característica. Existem nele elementos de
representação e de expressão. Incorpora as imagens visuais de cenas
e pessoas, usa palavras nos diálogos, que podem entretanto incluir
muitas utilizações da fala emotiva, analítica, declamatória,
exclamatória, retórica, descritiva, lírica, musical e assim por diante. Ele
pode expressar estados de alma, emoções, e intensamente uma
revivência. E, finalmente, assemelha-se a todas as outras formas
porque explora muitas espécies de imagística e de tons expressivos
mantendo sempre seu caráter típico. Como um ramo da arte, ele é
uma interpretação da experiência por meio de imagens e palavras nas
quais o figurativo e o expressivo se entrelaçam e na qual, em verdade,
a lei de assimilação funcional é respeitada em relação a todas as
espécies de imagens utilizadas.
221
220
OROSCO-DÍAZ, Emilio. Introducción al Barroco I. Universidad de Granada, 1988, p. 176.
221
PEACOCK, Ronald. Formas da literatura dramática. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de
Janeiro; Zahar, 1968, p. 199.
112
A arte dramática é tão antiga quanto a história do homem e se confunde
com a própria experiência de viver. Os rituais religiosos, os ritos de passagem, as
danças encenadas são formas primitivas do gênero dramático que se inscreve nos
primórdios da história do teatro.
No Ocidente, uma das primeiras manifestações desse gênero como arte
tem a Grécia do século V a.C. como palco e a tragédia, como forma dramática.
Daquele período ahoje, outras formas de expressão do gênero foram criadas,
dentre elas os autos que nasceram sob os auspícios da religião cristã.
Realizando um retrospecto panorâmico do teatro no Ocidente, percebemos
o desenvolvimento acentuado dos centros urbanos da Europa, em todos os setores
durante o Renascimento e o acúmulo de pessoas desejosas de usufruir do
manancial artístico-cultural que lhes é apresentado, dentre eles o teatro. No final do
século XVI, a Itália, a França, a Inglaterra e a Espanha começam a instalar os
primeiros locais destinados à representação teatral e à profissionalização das
companhias de atores.
Nesse período, um profícuo desenvolvimento da arte teatral e um
número expressivo de dramaturgos foi responsável pela criação de um teatro
nacional como Lope de Vega, na Espanha; William Shakespeare, na Inglaterra;
Corneille e Racine, na França.
Segundo Marín, na Espanha, havia uma motivação especial, que era a
manutenção do poder absolutista da monarquia, numa sociedade estratificada:
El interés primordial de la sociedad barroca no fue otro que el intento
de restaurar en España, a finales del siglo XVI, el orden monárquico-
señorial de privilegios vigente en la Edad Media. Se trataba de
responder y mantener una sociedad feudal rígidamente estratificada
desde su base, constituida por menestrales y labradores, hasta el
vértice, formado por la nobleza de ricos hombres, caballeros e
hidalgos, sin olvidar a la incipiente burguesía comercial y financiera.
El teatro difundió la imagen de una sociedad armónica, cuya
estratificación reflejaba el orden celestial. Se pensaba que a cada
persona le correspondía una función social. La permanencia en el
propio estado reportaba, según se argumentaba, la felicidad personal y
la armonía colectiva. Por eso el cambio de clase estaba
113
contraindicado, aunque se compraban ejecutorias de hidalguía, a
impulsos del deseo de acrecentar el honor.
222
As características apontadas por Marín, por exemplo, estão contidas em El
gran teatro del mundo (1633?-1635?), de Calderón de la Barca que tematiza a vida
humana como uma grande comédia. Essa comédia é representada no teatro do
mundo, cujo autor é Deus. Outro aspecto importante naquele momento é a
reprodução do pensamento oficial nos espetáculos a serviço da monarquia e da
religião católica:
La sociedad barroca era ideológicamente homogénea y todos los
ciudadanos sustentaban las mismas ideas sobre los principales temas:
aceptaban la monarquía como forma superior de Estado, defendían
ideales nacionalistas, profesaban la religión católica y admitían sin
reservas la estratificación e inmovilidad social. Era lógico, por
consiguiente, que en el teatro se exaltaran estas formas de pensar.
223
Embora houvesse críticas quanto ao desempenho do teatro como difusor da
ideologia monárquica, não podemos esquecer os aspectos positivos que o
espetáculo desempenhava junto ao povo analfabeto, como a leitura de alegorias; o
conhecimento das leis que regem a sociedade; a veiculação de costumes e tradição;
além da propagação da fé católica que era a religião oficial da monarquia espanhola.
A concepção absolutista era visível nas peças encenadas e:
Las firmes convicciones monárquicas de los escritores del siglo XVII
los impulsaron a hacer propaganda del sistema en sus creaciones.
Estaban convencidos de que sin la monarquía, la sociedad habría
carecido de fundamentos y la vida social habría sido inviable. El rey
era garante de la justicia, el orden y la armonía entre clases; la
procedencia divina de su autoridad lo exoneraba de responsabilidades
en el ejercicio del poder.
224
222
MARÍN, Juan María. La revolución teatral del Barroco. Biblioteca Básica de Literatura. Peñalara:
Madrid, 1990, p. 33.
223
MARÍN: 1990, p.21.
224
MARÍN: 1990, p. 35.
114
Por outro lado, havia uma importância substancial do teatro, no setecentos,
como veículo da cultura de massa, sobretudo pela possibilidade de alcancar um
público maior que outras artes, uma vez que, ainda hoje, o espetáculo se realiza
pela caracterização e pelo desempenho dos atores, pelos signos sonoros, pelo uso
de um cenário que facilita a compreensão da trama. Na Espanha, a recepção do
teatro naquele período era extraordinária, a ponto de irmanar a aristocracia letrada e
o povo simples analfabeto, embora a hierarquização social se fizesse pela utilização
dos espaços, no interior dos locais de espetáculo:
Arriba, en los aposentos y desvanes se sentaban los privilegiados, que
abonaban anualmente altos precios por sus alquileres y accedían al
lugar por puertas especiales. En la sala, de pie o sentado en las
galerías, se situaba el pueblo. Las mujeres entraban por otra puerta a
la cazuela. Los espectadores, por tanto se distribuían según el sexo o
la condición social; compartían el espectáculo todos juntos, aunque
cada uno se mantenía en su sitio.
225
Segundo Marín, a comédia, por exemplo, não era um mero passatempo, mas
“proponía pautas de conducta y desarrollaba teorías políticas, sociales y morales, o
planteaba cuestiones delicadas a las que se daban soluciones coincidentes o disidentes
con los principios establecidos”.
226
Se na Antiguidade Clássica a comédia era considerada um teatro menor,
“imitação de maus costumes, não contudo de toda sorte de vícios, mas daquela
parte do ignominioso que é ridículo”
227
, durante o Barroco a comédia consolidou-se
como arte teatral na Espanha.
Coube a Lope de Vega
228
e a outros dramaturgos formalizarem a comédia
nova, que atendia à exigência do novo tempo, conectada com o público
225
MARÍN: 1990, p.20.
226
MARÍN: 1990, p. 32.
227
ARISTÓTELES, Arte retórica e arte poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. 17ª edição.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 246.
228
Lope de Vega (1562-1635), poeta, ensaísta e dramaturgo espanhol, foi responsável pela
modernização da comédia na Espanha do século XVII. Procedente de uma família humilde, obteve a
proteção de vultos importantes da corte espanhola como duque de Alba, marquês de Sarria, duque
de Sessa. Sua vida pessoal foi bastante conturbada com grandes amores até optar pela vida
religiosa. Como dramaturgo, criou o novo teatro com mais de trezentas obras em diferentes gêneros,
conservadas em bibliotecas, como autos, dramas e comédias, sendo estas com variados temas,
115
contemporâneo e urbano. Com isso se modificam algumas normas do teatro
clássico, pois a comédia nova desejava a aproximação com a realidade e a imitação
da vida.
Em 1609, Lope de Vega publica Arte nuevo de hacer comedia en este
tiempo” em que defende as modificações necessárias para aquele momento
histórico. Su formula se consolidó y los españoles acabaron envanecidos con la
idea de que gozaban de un teatro tan valioso o más que el que había existido en la
Grecia y Roma clásica.”
229
De acordo com as novas diretrizes, a maior parte da trama era a resolução
de situações dificultosas que acompanhavam a vida dos protagonistas, geralmente
um galã e uma dama que desejavam a realização amorosa com um final feliz
através do casamento. No desenvolvimento da intriga, prevalecia o sentimento de
amor, honra e justiça o que garantia o ensinamento moral, instrumento de controle
para a cultura da época, como podemos constatar em El perro del hortelano, de
Calderón, por exemplo.
Como os autores da comédia nova pretendiam refletir a vida, as
personagens mais comuns eram aquelas com quem o público se identificava e fazia
parte do cotidiano como o galã, a dama, os criados, o pai, o idoso, o conselheiro, o
gracioso e o poderoso. Este último poderia ser também o rei, cuja intervenção
premiaria ou castigaria algum integrante da trama, dependendo da solução do
conflito. Segundo Marín, “el personaje del labrador enriquecido” por exemplo, “acabó
gozando de la misma reputación que los nobles en la comedia barroca”.
230
Os protagonistas, geralmente extraídos da nobreza, se caracterizavam por
ações idealizadas, eram adornados de virtudes; os criados, diferentemente, eram
oriundos da plebe, tinham o papel de servir com lealdade a seu amo, o galã, e
contribuir para um desfecho feliz. O poderoso era a figura mais importante da
comédia ao lado do pai; aquele tinha a autoridade material e este, o poder moral. O
religiosos, histórico, lendários, mitológicos, hagiográficos dentre outras. Ele é considerado o escritor
nacional por excelência, centrado em três pilares, a tradição, a monarquia e a fé. A comédia La
hermosa Ester exemplifica uma comédia religiosa, baseada no Antigo Testamento, cuja protagonista
prefigura Maria, como Rainha.
229
MARÍN: 1990, p.40.
230
MARÍN: 1999, p.40.
116
pai, assim como o conselheiro, representava a vigilância e a solidez da moralalide
vigente. Além desses, havia o gracioso que, ao imitar o amo, servia para a
contraposição dos valores humanos e reais, aos valores idealizados do patrão.
Maravall, na obra Teatro y Literatura en la sociedad barroca aponta o teatro
como la fiesta publica del Barroco
231
em que muitos elementos se mesclam e:
por el fuerte impacto que la representación escénica puede producir y
de hecho produce sobre la imaginación y los sentimientos de cuantos
a aquélla asisten, da lugar a que la expresión del pensamiento cobre
en su versión teatral una eficacia mayor, por lo menos
momentáneamente, que otras formas de expresión, por ejemplo el
impreso.
232
Ratificando as idéias de Peacock, Marín e Maravall, Orozco-Diaz denomina
o teatro de protoarte del Barroco”
233
, capaz de influenciar as demais artes, “ideal de
un coletivismo estético”
234
, sua interferência é contundente e pôde inspirar o
individual e o coletivo, o público e o privado.
4.1. Calderón de la Barca: a catequese no espaço do teatro
En toda la dramática calderoniana se dan cita los
elementos más favorables para el triunfo de una
obra teatral. Pero lo maravilloso es que en temas
específicos, aun dentro de la Teologia general,
consiguiera el triunfo más completo, como es el
caso del tema mariológico. En estas piezas de
231
MARAVALL, José Antonio. Teatro, fiesta e ideología en el barroco. In: Teatro y Literatura en la
sociedad barroca. Barcelona: Editorial Critica, 1990, p.177.
232
MARAVALL: 1990, p.159.
233
OROZCO-DÍAZ, Emilio. Introducción al Barroco. Granada: Universidad de Granada, 1988, p.26.
234
OROZCO-DÍAZ: 1988, p.27.
117
más densidad conceptual trata de que el pueblo
llegue a captala.
235
Um dos espetáculos teatrais que se consolidaram na Espanha foram os
autos sacramentais. Surgidos timidamente no final do século XV, se apresentavam
dentro das igrejas ou nos seus arredores, se consolidaram no século XVI e
alcançaram o apogeu no século XVII:
En el siglo XVII los autos sacramentales se representaban el día de la
fiesta del Corpus Christi, el primer jueves después del domingo de la
Santísima Trinidad. En Madrid, la organización de esta fiesta estaba
en manos del Ayuntamiento, y así, al transcurrir los años, se reunió
una notable colección de cartas, órdenes, cuentas y memorias sobre
sus diversos aspectos. Estos documentos, conservados hoy día en el
Archivo de la Villa, forman un repertorio de sumo valor para conocer y
comprender la historia del teatro religioso del siglo XVII, y sobre el
fondo de los datos que proporcionan se ha ver el desarrollo del auto
sacramental, tal como lo cultivó don Pedro Calderón de la Barca.
236
A festa de Corpus Christi ganhou grande repercussão no século XVII, mas
sua origem ocorreu seis séculos antes, quando era costume devocional a elevação
da hóstia consagrada para adoração dos fiéis. Segundo a tradição, em 1209, na
França, Juliana de Liège, religiosa agostiniana, tem uma visão da lua com a parte
interna escura. Na interpretação da vidente, isto significava a ausência de uma festa
litúrgica em homenagem à Eucaristia. Por sua insistência, seu diretor espiritual, o
bispo da arquidiocese, insere a festividade na sua jurisdição.
Em 11 de agosto de 1264, o Papa Urbano IV, que era arquidiácono em
Liège, na época de Juliana, através da Bula Transiturus, oficializa a Festum
Sanctissimi Corporis Christi:
Declara [...] o santo concílio que, piedosa e religiosamente, foi
introduzido na Igreja de Deus o costume de celebrar todo o ano, com
singular veneração e solenidade, em dia festivo particular, este
235
RUBIO LATORRE, Rafael. Mariología en los autos sacramentales de Caderón. Segismundo
Revista Hispánica de Teatro. III. Madrid: 1967, p.90.
236
SHERGOLD, N. D. e VAREY, J. E. Los autos sacramentales en Madrid en la época de Calderón
1637 1681. Estudio y documentos. Pandoja: Madrid, 1961, p. 9.
118
nobilíssimo e venerável Sacramento, e de ser levado com reverência e
honra, em procissões, pelas ruas e lugares públicos
237
.
O dia designado para a celebração da solenidade em toda a Igreja foi a
quinta-feira após a festa da Santíssima Trindade, em clara referência à ultima Ceia
de Jesus, com a instituição da Eucaristia, que está registrada nos evangelhos
sinópticos.
238
“O Papa incumbe Tomás de Aquino para compor os textos da missa e
do breviário”
239
. Quanto à procissão que se segue após a missa, outros
apontamentos, sobre o evento.
A primeira referência relata que a procissão realizada na cidade de Colônia,
na Alemanha, em 1274, costume que se consolidou no século XIV, com o tempo,
outros elementos foram acrescentados à solenidade como, encenações, carros com
andores, apresentando quadros vivos sobre temáticas religiosas e outras
manifestações de apreço ao sacramento da Eucaristia, como na descrição:
El pontífice Urbano IV estableció la festividad del Corpus Christi, que
desde el primer revestió extraordinaria solemnidad; Santo Tomás de
Aquino ordenó para ella un magnifico oficio litúrgico y compuso los
himnos que se cantaban y se siguen cantando en las procesiones,
mientras se paseaba la custodia entre nubes de incienso y lluvias de
flores. Se autorizó al pueblo para que levantara altares en las calles,
adornara los edificios con colgaduras y sacara figuras representativas,
para dar mayor realce a la fiesta
240
.
Por fim, no século XVII a grande manifestação da fé católica era a
encenação dos autos sacramentais, na celebração de Corpus Christi.
237
COLLANTES: 2003, n
o
9.
238
Evangelhos sinópticos são os três primeiros evangelhos do Novo Testamento Mateus, Marcos
e Lucas - que apresentam grande semelhança entre si, em relação aos fatos narrados sobre a vida
de Jesus. A instituição da Eucaristia está descrita em Mt 26, 20-29; Mc 14, 17-25; Lc 22, 14-20.
239
SOUZA, Antonio Carlos de Oliveira. Tempos e festas da liturgia. Aparecida (SP):Santuário;
Brasília: Centro de Pastoral Popular, 1999, p. 89,90.
240
DIEZ-ECHARRI, Emiliano e ROCA-FRANQUESA, Jose Maria. Historia de la literatura española e
hispanoamericano. Madrid: Aguilar, 1982.
119
Os autos, de um modo geral, têm como abordagem primordial a temática
religiosa como a vida dos patriarcas e como figuras importantes do Antigo
Testamento; os santos com seus milagres; o fim do mundo e o juízo final. Entre os
assuntos mais recorrentes, destaca-se a supremacia das virtudes cristãs, sobre os
sete pecados capitais, que se apresentavam de forma alegórica.
Para que el dramaturgo pueda comunicar al público los contenidos
teológicos del auto sacramental y, aún más, para que pueda convertir
en categoría dramática, en drama, la teología sacramental, núcleo y
síntesis de toda la teología católica, no dispone de otro procedimiento
de transposición que el propio de la técnica alegórica.
241
Na Espanha, os autos sacramentais objetivavam também a veiculação da
catequese que, buscando consolidar a tradição católica da monarquia, expunha
temas doutrinais, reiterava a proclamação de dogmas, reforçava a fé nos
fundamentos da Igreja de Cristo e, principalmente, exaltava o mistério do amor, a
eucaristia. Posteriormente se fue intensificando la finalidad didáctica de hacer vivir o
sentir al espectador, aunque no las comprendiese, cuestiones teológicas discutidas
por la Reforma protestante.”
242
Conforme o Dicionário de Autoridades, de 1732, os autos sacramentais são
definidos por:
Cierto género de obras cómicas en verso, con figuras alegóricas, que
hacen en los theatros por la festividad del Corpus en obséquio y
alabanzas del Augusto Sacramento de la Eucharistia, por cuya razón
se llaman Sacramentales. No tienen la división de actos o jornadas
como las Comedias, sino representación continuada sin intermedio, y
lo mismo son los del nacimiento, Viene del latino Actus, que significa lo
mismo.
243
241
RUIZ-RAMÓN, Francisco. Historia del Teatro Español (desde sus origens hasta 1900). ed.,
Madrid: Catedra, 1996, p. 273.
242
MARÍN: 1999, p.64.
243
Cf. Diccionario de Autoridades. Biblioteca Románica Hispánica. 1ª edición en 1716, Madrid:
Gredos, 1990.
120
A definição mais interessante de auto sacramental, para este trabalho, vem
do próprio Calderón, na loa para La segunda esposa y triunfar muriendo, com a
réplica de uma lavradora, em diálogo com um pastor, quando discutem sobre a
comemoração do Corpus Cristi:
PASTOR Ganado me hábeis, pardiez;
mas decidme, aquellas torres,
o triunfales carros, que
el aire ocupan disformes,
¿para qué fin aquí están?
LABRADORA A fin de hacer las mejores
fiestas que pude la idea
inventar.
PASTOR ¿ Qué son?
LABRADORA Sermones
puestos en verso, en idea representable,
cuestones de la Sacra Teologia
que no alcanzan mis razones a explicar ni comprender,
y el regocijo dispone en aplauso deste día.
244
Diez-Echarri e Roca-Franqueza, na Historia de la literatura española e
hispanoamericano, informam que os autos sacramentais estão presentes no
séculos XVI, no seu Códice de Autos Viejos, mas é no setecentos que alcançam
sua maior expressão, conforme argumenta:
El „auto sacramental‟ es una modalidad del teatro religioso; y si no con
el carácter que tendrá en Calderón de la Barca en cuanto fusión intima
de poesía y simbolismo, sólo lograda en él plenamente, como
alegoría, se le pueden señalar antecedentes medievales.
245
De acordo com os historiadores, os autos sacramentais podem ser
agrupados em duas modalidades, os que possuem teor histórico lendas devotas,
milagres e assuntos extraídos da sagrada escritura e os que têm cunho alegórico,
com peças cujas personagens são as alegorias dos vícios e das virtudes. No teatro
244
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. Loa para La segunda esposa y triunfar muriendo. In: Obras
completas, autos sacramentales. Tomo III. Madrid: Aguilar, 1967.
245
DIEZ-ECHARRI, Emiliano e ROCA-FRANQUESA, Jose Maria. Historia de la literatura española e
hispanoamericano. Madrid: Aguilar, 1982, p. 439.
121
da França, essas duas modalidades cênicas receberam o nome de „misterios‟ e
„moralidades‟
246
.
Nicolas Ruiz aponta os seguintes dados históricos acerca dos autos
sacramentais:
Delimitado así el campo en cuanto a las condiciones que caracterizan
el auto sacramental, importa establecer la delimitación, que es la del
período histórico en que el auto aparece y se desarrolla. No podemos
hablar propiamente de autos sacramentales antes del siglo XVI, ni
merece la pena de hablar después del siglo XVII. Estos son los
períodos que señalan la evolución del auto sacramental desde los
primeros tanteos hasta la decadencia irremediable, casi necesaria,
después de la plenitud esplendorosa, imposible de superar, alcanzada
con Calderón. No hay inconveniente en aceptar la fecha de 1504, por
esa necesidad de límites precisos que tienen las demarcaciones
históricas, como la del nacimiento del auto sacramental, aunque harto
se entiende que estas cosas no nacen de pronto ni existen un día sin
haber existido en absoluto el día anterior.
247
Dada a importância do gênero dramático na fixação dos valores cristãos, os
autos sacramentais produzidos no século XVII, muito contribuíram para difundir a
espiritualidade católica da época. Esse teatro religioso se apropria de textos
sagrados e, com eles, ou a partir deles, produz um material artístico-literário. Neste
sentido, pode-se afirmar que o dramaturgo estabelece uma interlocução com a
Sagrada Escritura e elabora um novo texto sem, contudo, modificar a temática
inicial:
La simbiosis entre religión y teatro en la España barroca fortaleció la
escena y dotó al teatro de planteamientos y temas que abarcaron una
problemática nada extraña al siglo y que está ausente del teatro inglés
y, aunque presente en el francés, frenado por cánones estéticos y
morales. En España muchos eclesiásticos acudían a los corrales a
pesar de las prohibiciones acomodándose en los aposentillos o
tertulias.
248
246
DIEZ-ECHARRI e ROCA-FRANQUESA: 1982, p. 439.
247
GONZALEZ-RUIZ, Nicolas. Piezas Maestras del Teatro Teológico Español. Vol. I, Autos
sacramentales. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid: 1943, p.19.
248
REGALADO, Antonio. Sobre Calderón, los actores y la representación in MAYDEU, Javier
Aparício. Estudios sobre Calderón, vol. I. Madrid: Istmos, 2000, p. 213.
122
Na Espanha, a produção dos autos sacramentais mais importantes recebeu
a lavra de Lope de Vega, Tirso de Molina
249
e Calderón de la Barca
250
, sendo este
último o dramaturgo por excelência dos autos sacramentais.
Para Gonzáles Ruiz, na Europa, o Renascimento eclipsou o teatro religioso
difundido na Idade Média, contudo, na Espanha, houve a permanência desse
gênero, naquele período, quando alcança sua maior projeção com os autos
sacramentais, os quais se configuram como uma das armas de combate à Reforma
Protestante:
En Europa se ha registrado una ruptura triste violenta con el pasado
tradicional. La época isabelina expulsa el teatro religioso de Inglaterra.
Las luchas religiosas en las que se debate Francia lo obligan a
languidecer y a suprimirse. España, que ha rechazado al luteranismo
lo combate, que capitanea San Ignacio de Loyola, la defienden Lope y
Calderón. El auge del auto sacramental es una faceta brillantísima de
la lucha española contra la herejía protestante. Es una forma literaria
artística de la más rotunda afirmación católica.
251
Calderón de la Barca teve uma vida longa para os padrões da época (1600-
1681), vivenciou a Europa desenvolvida e decadente, pacífica e com as agruras da
249
Tirso de Molina é o pseudônimo de Gabriel Téllez (1579-1648), religioso e escritor espanhol. De
origem humilde, ainda jovem ingressou no convento de Madri, da Congregação dos Mercedários,
onde professou votos. Atuou na vida monástica em diferentes lugares como Guadalajara, Toledo,
Segóvia, Sevilha, Cuenca, dentre outros e entregou-se com desvelo à vida sacerdotal, à leitura, à
catequese e à produção teatral. Participou de uma missão pastoral (1616-1618) na cidade caribenha
de Santo Domingo, tornando-se um dos poucos escritores do Barroco espanhol a conhecer a
realidade do Novo Mundo. Essa experiência inspirou algumas obras, especialmente a Trilogía de los
Pizarros (1626-1629). Também sob a condição de cronista de sua Ordem, publicou em 1639 a
Historia general de la Orden de la Merced.
250
Pedro Calderón de la Barca (1600-1680) religioso e dramaturgo espanhol. Proveniente de uma
família da baixa nobreza propiciou o segundo passo importante para a revolução do teatro espanhol.
Enquanto Lope de Vega, produziu a excelência da comédia, Calderón se notabilizou pelo auto. Em
sua vida pessoal, pode-se encontrar atuação como combatente nas tropas reais para sufocar uma
rebelião cataem 1640 e como capelão de Nuevos Reyes em 1641. Escreveu comédias profanas e
religiosas, mas os autos sacramentais representam seu melhor conjunto de obra. La vida es un sueño
e La cena del Rey Baltasar são obras de referência para a Literatura universal. Juntamente com
Lope de Vega e Tirso de Molina, Calderón fez parte da tríade mais importante da dramaturgia
espanhola do Siglo del Oro
251
GONZALEZ-RUIZ, Nicolas. Piezas Maestras del Teatro Teológico Español. Vol. I, Autos
sacramentales. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid: 1943, p. 23.
123
Guerra dos Trinta Anos
252
, foi testemunha da história da Espanha, em três reinados
Felipe III, Felipe IV e Carlos II. Pela sua esmerada formação intelectual, ele pode
ser considerado um pré-ilustrado e, por sua obra, é possível percebê-lo como
testemunha e interprete de uma época.
Revendo alguns dados de sua biografia, é fato que aos dez anos, perde sua
mãe. Dos nove aos quatorze anos integra o quadro de alunos do Colégio Imperial,
dos jesuítas em Madri. Ali, estuda gramática latina, lê os clássicos, sobretudo cultiva
a poesia de Ovídio, formação clássica que transparece na maioria de sua obra.
Aos quinze perde seu pai, motivo pelo qual abandona os estudos na
Universidade de Alcala, para continuá-los na Universidade de Salamanca, onde
permanece por quatro anos.
Aos vinte dois anos participa de um concurso literário com a obra Penitencia
de San Ignácio, obtendo o terceiro lugar. Um ano depois, há registro de suas
primeiras comédias, Amor, honor y poder e La selva confusa, ainda aos moldes de
Lope de Vega. Aos trinta e sete anos recebe o hábito de Santiago e aos cinquenta e
um, é ordenado sacerdote e “es nombrado, capelán de Nuevos Reyes, cargo
adscrito a la catedral de Toledo, y contribuye con sus obras a las aparatosas fiestas
reales”.
253
Pelo conteúdo de sua obra e sua formação acadêmico-religiosa, supõe-se
que Calderón era profundo conhecedor da Teologia moral e dogmática; do Direito
Romano; da História nacional e universal e de ciências como a Metafísica.
Quanto ao teatro espanhol, Gonzalez-Ramon
254
aponta Calderón como o
herdeiro de um patrimônio teatral estabelecido, com companhias estruturadas e um
252
A Guerra dos Trinta Anos foi um períodolico ocorrido na Europa do século XVII, (16181648)
tendo motivações religiosas, políticas, econômicas, dentre outras. Com exceção da Inglaterra e da
Rússia, todas as monarquias da Europa da época disputavam o destino do Sacro Império Romano-
Germânico, atual Alemanha, vasto território formado por cidades comerciais importantes, condados
autônomos e subsolo rico em aço e carvão. Esse território, de maioria luterana, era cobiçado,
principalmente, pelo império austro-húngaro, governado pelos Habsburgos, família real católica que
detinha muitas possessões naquele território. A conseqüência dessa guerra se fez sentir
principalmente no Império espanhol que perde sua hegemonia político-econômica, desfalcado de
Portugal, em 1640 e dos Países Baixos, em 1648. Com isso, abre espaço para a França e a
Inglaterra controlarem o comércio do Atlântico e do Pacífico, propiciando a consolidação do mercado
capitalista internacional.
253
DIEZ-ECHARRI e FRANQUEZA: 1982, p. 534.
254
RUIZ-RAMON: 1996, p. 216.
124
público entusiasta. Esses espectadores eram habituados a assistir a espetáculos
com diferentes temas, conflitos e com personagens diversificados, por isso era um
público interessado e exigente:
El teatro de Calderón es no sólo una prolongación y una
profundización de temas y de técnicas ni una depuración de las
estructuras dramáticas básicas, sino la etapa final de un proceso en la
que el fenómeno teatral al que llamamos teatro nacional llega a tomar
conciencia de su propia esencia. En manos de Calderón los distintos
procedimientos de expresión teatral, puestos en circulación por Lope y
sus seguidores, se convierten en un mecanismo de extraordinaria
precisión. Si se nos permite la expresión, el „arte‟ teatral de Lope se
hace ciencia teatral en Calderón. Lo que podríamos denominar instinto
e inspiración en la dramaturgia de Lope, es lógica y consciencia en la
dramaturgia de Calderón
255
.
O teatro profano de Calderón transita por dramas trágicos como El médico
de su honra; dramas históricos, tanto nacionais, El alcaide de Zalamea, quanto
estrangeiro, El cisma de Inglaterra; comédias variadas, com teor costumbrista, La
dama duente; filosófico, La vida es sueño; cavalheresco, La puente de Mantible;
mitológico, Eco e Narciso. Escreveu zarzuelas, El laurel de Apolo; entremeses, La
casa de los linajes; afora as inúmeras loas que introduzem parte dos autos
sacramentais. Quanto ao teatro religioso:
Calderón, teólogo, hasta la médula, utiliza el drama religioso no sólo
como un recurso apologético, sino también como un medio polémico.
Desde las tablas sus personajes, más que dialogar, razonan y
demuestran. El mundo para él se divide, bajo el aspecto religioso, en
paganos, judíos, católicos y herejes. En el paganismo ve casi siempre
una tentativa de acercarse a la verdadera religión; el judaísmo se
interpreta en su más pura ortodoxia, como Ley antigua, precedente de
la nueva instaurada por Jesucristo; frente a los herejes se mantiene sin
vacilación la verdad católica. El puede transigir con los gentiles, con
los mismos mahometanos, que pecan por ignorancia; nunca con los
reformistas, que profesan el error a sabiendas.
256
255
RUIZ-RAMÓN: 1996, p. 216.
256
DIEZ-ECHARRI e FRANQUEZA: 1982, p. 546.
125
Com a leitura, tanto do teatro profano, como do teatro religioso, percebemos
com muita clareza o ecletismo de Calderón. No teatro religioso, por exemplo, é
patente que ele se enreda por temas que interessam a seu público, como verdade
da fé católica. O dramaturgo não toma partido de correntes filosóficas em vigor na
época que apresentam algumas divergências entre si como o agostinismo
257
, o
escotismo
258
e o tomismo
259
. Ele elege temas, que contribuam com a formação
moral e teológica dos crentes, ou que ensinem história, doutrina e dogmas da Igreja,
dentre outros.
Los autos de Calderón constituyen un extraordinario ejemplo de
síntesis de numerosas formas, géneros, tradiciones, corrientes
ideológicas y expresivas, registros poéticos, modalidades escénicas…
en una riqueza enorme que hace de este género, en su formulación
calderoniana sobre todo, un campo fascinante para el investigador
260
.
Uma das questões muito discutidas, sobretudo nos autos marianos é a
Natureza humana pecadora, escrava da Culpa, que é a alegoria do pecado de Adão
e Eva, como lemos na réplica da Culpa:
CULPA Villanos, hijos de Adán,
los que sois, los que habéis sido
y habéis de ser para siempre
en pecado concebidos.
Yo soy la Culpa, yo soy
la serpiente, de quien dijo
en el Génesis Moisés
que andaba disimulada.
261
257
Agostinismo - doutrina filosófica e teológica formulada por santo Agostinho (354-430), o mais
influente pensador cristão da patrística; apologista da Igreja e do vínculo entre a religião e a tradição
filosófica grega.
258
Escotismo - conjunto das idéias filosóficas e teológicas de John Duns Scotus (1270-1308),
pensador escolástico escocês que propugnava a incompatibilidade entre o pensamento racionalista e
a fé cristã.
259
Tomismo - conjunto das doutrinas teológicas e filosóficas do pensador italiano santo Tomás de
Aquino (1225-1274), consideradas o ponto culminante do pensamento escolástico, e nas quais se
destaca a busca de uma harmonia entre o racionalismo aristotélico e a tradição revelada do
cristianismo.
260
ARELLANO, Ignácio. Estructuras dramáticas y alegóricas en los autos de Calderón. Pamplona
(Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha): Reichenberger, 2001, p. 21.
261
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. La Hidalga del Valle in Obras completas, autos
sacramentales, tomo III. Madrid: Aguilar, 1967, vv. 1-4, p.111; vv.17-21, p.130.
126
Esse fato é, reiteradamente, apresentado, quando se questiona sobre a
concepção imaculada de Maria. Todavia, Calderón em momento algum se ausenta
da discussão ou põe em dúvida a afirmação teológica da imaculabilidade de Maria,
como na obra La hidalga del valle. Em geral, os autos tratam de muitos assuntos,
que envolvem a fé, sem perder o foco do protagonismo de Jesus Eucarístico,
contudo o recorte que ora nos propomos a estudar se fundamenta no culto a Maria.
Nos autos La Hidalga del Valle, A María el corazón , El cubo de Almudena,
Las espigas de Rute, La primer flor del Carmelo o artista faz alusão direta e
indiretamente a Virgem Maria, dentre estes somente La Hidalga del Valle é
exclusivamente mariano e, portanto, não foi elaborado para as festividades de
Corpus Christi.
A importância de Maria, nesses textos, não reside em ser apresentada
como personagem-protagonista, mas ser a imagem da mediadora, da intercessora,
da mãe amorosa, ou simplesmente aquela a quem se deve louvar e honrar.
127
Representação das Virgens Negras
Nossa Senhora de Loreto
128
4.3. A prefiguração de Maria em La primer flor del Carmelo
¡ Cielos! ¿Qué misterio es éste,
que tanto me atemoriza?
Una mujer a salvar
basta a los que en ella fían
su tribulación?
262
O auto sacramental La primer flor del Carmelo, de Pedro Calderón de la
Barca, representado antes de 1654 pela companhia de Antonio Prado de Madrid, se
apoia em fatos narrados no I Livro de Samuel e tem a judia Abigail, como sua
personagem central e prefiguração de Maria. Segundo a edição crítica de 1998
263
,
ele é considerado auto historial, enquanto se baseia em histórias do Antigo
Testamento; auto sacramental, pois celebra o Sacramento da Eucaristia e auto
alegórico, por tratar de Abigail, como representação de Maria.
Ao longo da peça, dividem o mesmo espaço cênico personagens que
existiram na Sagrada Escritura como David, Nabal e Abigail com personagens
abstratas, as alegorias da Castidade, da Liberalidade, da Avareza e da Luxúria.
Estas se confrontam, debatem entre si e fazem reflexões acerca dos (des) caminhos
da humanidade e da intervenção de Deus na vida das criaturas.
Inicialmente, temos a voz do dramaturgo, “Salen LUZBEL, trayendo asidas
de Ias manos a Ia AVARICIA y Ia LASCIVIA, como por fuerza”,
264
e se estabelece o
seguinte diálogo:
AVARICIA - ¿Dónde me llevas, Luzbel?
LASCIVIA - ¿Dónde, bárbaro, me llevas?
LUZBEL - Venid conmigo las dos.
LAS DOS - ¿Dónde vamos?
265
262
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. Réplica de Luzbel. In: La primer flor del Carmelo. Edición
crítica de Fernando Plata Parga. Pamplona (Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha):
Edition Reichenberger, 1998, vv.
263
PLATA PARGA, Fernando. Introducción. In: CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, p.17-19.
264
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, p. 97.
129
Luzbel, que é alegoria do Demônio, declara que levará a Avareza e a
Luxúria a diferentes lugares, como selvas, vilas, cidades, cortes, com o objetivo de
demonstrar às personagens [povo] que a história da humanidade sempre se
desenvolveu com a queda do homem no pecado e sua eterna redenção pela ação
amorosa de Deus, a partir de algumas personagens históricas da Bíblia.
A primeira intervenção chega com Golias, o gigante filisteu, lamentando-se
por ter sido derrotado por um franzino pastor; este combate está descrito em todo o
capítulo 17 de I Samuel. O canto de tristeza de Golias intertextualiza com as
lamentações de Jó, personagem histórico do Antigo Testamento. Por outro lado,
Golias queixa-se de não ter recebido ajuda de seus deuses, representados por Baal
e Belial, deidades cananéias e fenícias, consideradas falsos deuses na Bíblia, o que
demonstra a crítica de Calderón à idolatria, como porta-voz dos profetas de Israel:
¡Oh pese a los cielos,
pese a las deidades supremas
que adoré, pues contra mí
más se irritan que se alientan!
[]
¡Caigan sobre mí los montes,
abra sus senos la tierra,
sepúltenme los abismos,
pues tan poco me aprovecha,
con ser de Luzbel el grande
espíritu de soberbia!
266
Ressaltamos que esse canto não está presente na Bíblia, pois Davi mata
Golias, conforme está descrito no Primeiro Livro de Samuel:
Logo que o filisteu avançou e marchou em direção a Davi, este saiu
rapidamente das linhas e correu ao encontro do filisteu. Davi pôs a
mão em seu bornal, apanhou uma pedra que lançou com a funda e
atingiu o filisteu na fronte; a pedra se cravou na sua testa e ele caiu
com o rosto no chão. Desse modo, Davi venceu o filisteu com a funda
e a pedra: feriu o filisteu e o matou; apanhou-lhe a espada, tirou-a da
bainha e a cravou no filisteu e, com ela, decepou-lhe a cabeça.
Quando os filisteus viram que estava morto o seu herói, fugiram.
267
265
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1-4.
266
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 61-64; 83-88.
267
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2006, I Sam 17, 40-51.
130
Para alguns teólogos, Golias, vencido por Davi, é uma alusão ao Demônio,
derrotado por Cristo. Calderón se acerca dessas informações e demonstra, em seu
teatro religioso, que a história da salvação é algo construído no Antigo Testamento e
que se plenifica no Novo Testamento com a redenção da humanidade, através de
Cristo. Esse Cristo-Redentor institui o Sacramento da Eucaristia, que é a grande
síntese do amor em sua mais ampla atuação, tema central dos autos calderonianos,
conforme aponta Valbuena Prat:
Calderón ha hecho del auto el drama de la Redención y de la
Eucaristía. En su sólida formación teológica y en su fe ferviente,
revelada al dedicar los autos que publicó en vida a Jesús
Sacramentado, con las palabras inflamadas de un místico, el
dramaturgo comprendió el sentido profundo que unía los dos grandes
misterios: la muerte del Señor y su „amor hazte el fin‟, permanente en
la Comunión. Todo esto lo vio el dramaturgo, comprendiendo que la
entraña teatral, en el mejor sentido del vocablo, del auto estaba en
vincular el misterio de la Eucaristía a la tragedia de la muerte en el
Calvario.
268
Na sequência da encenação, Luzbel apresenta à Avareza e à Luxúria, o rei
Saul atormentado, empunhando uma lança, em atitude de perseguição a Davi. No
texto bíblico, isto ocorre porque Saul encarna o espírito da inveja dada à
popularidade de Davi, após a vitória sobre Golias. Ouvimos, na situação, a réplica de
Saul:
SAÚL aunque venza a Goliat
David, a mí no me venza
la ira que contra él
mi pecho encendido engendra.
¡La gala le dan las hijas
de Sión, cantando en ella
que él venció a diez mil, y yo
a mil! ¡Lo menos se cuenta
para mí de la vitoria!
Allí está, a mis manos muera.
269
268
VALBUENA PRAT, Angel. Los autos sacramentales de Calderón de La Barca. In: CALDERON DE
LA BARCA, Pedro.Obras completas, autos sacramentales, tomo III. Madrid: Aguilar, 1967, p.10.
269
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 101-110.
131
Mesmo Saul afirmando que “la ira que contra él/ mi pecho encendido
engendra, Davi não ousa revidar as ofensas, nem matá-lo, embora haja várias
oportunidades, visto que ele tinha conhecimento de que Saul era ungido de Deus.
Na didascália explícita, há a seguinte orientação: “Tocan, mira adentro del carro, y al
ir a arrojar la lanza, suena un arpa y queda suspenso”.
270
Tocar a harpa para Saul é uma forma que Davi encontra para acalmá-lo e
Saul percebe isso, conforme declara:
Mas, ¡ay de mí!, que esta dulce
música, que a mi oído suena,
de mi cólera y mi ira
los espíritus ahuyenta…
271
De acordo com Fernando Parga: “El arpa con la que calma a Saúl se
considera como figura de la cruz de Cristo. La persecución que sufre a manos de
Saúl, como la persecución de Cristo por los judíos.
272
Luzbel, Avareza e Luxúria continuam em sua caminhada e veem Davi e sua
tropa fugirem de Saul. No texto de Calderón, Davi queixa-se para Deus, em alusão
ao Salmo 50 (51), Miserere, cantado pelo próprio Davi, em outra circunstância. O
lamento de Davi inicia com as palavras:
Inmenso Dios de Israel,
pues tú quieres que padezca
desterrado y perseguido,
cansancio, hambre, sed, miseria,
cúmplase tu voluntad;
y para que yo hable en ella,
tú, Señor, mis labios abre
y purifica mi lengua;
ensalzará tu justicia
mi voz, porque sólo atenta
a tu alabanza ha de estar
y pues quieres que padezca
fugitivo y desterrado,
mi vida haciendo defensa.
273
270
CALDERÓN DE LA BARCA:1998, p. 107.
271
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 111-114.
272
PLATA PARGA: 1998, p. 21.
132
É nessas circunstâncias que Davi e seus comandados chegam ao campo
do Carmelo, onde Nabal, outro personagem do auto, possuía grandes rebanhos.
Casado com a bondosa Abigail, Nabal era também um rico proprietário de terras.
Em sua fuga, Davi busca a ajuda de Nabal que, mesmo tendo grandes posses, era
intratável e mesquinho de coração, por isso lhe nega ajuda.
Essas dicotomias, Calderón aponta na réplica de Luzbel: Oye y nota de los
dos/ las condiciones opostas”
274
. Nabal também canta as virtudes físicas e
espirituais de Abigail, contrapondo-as com os seus defeitos:
Bellísima Abigail,
aunque junto a tu belleza
lo rústico y mal pulido
de mi persona parezca
lo mismo que junto a aquel
espino la rosa bella,
junto aquel césped el lirio,
a aquel tronco la azucena,
la abundancia de mis bienes
bien puede hacer que merezca
tu beldad, que la fortuna
suple la naturaleza.
275
Davi passava por grande dificuldade, contudo sua condição era a de um rei,
e logo isto se manifestaria. No momento em que Nabal deixa de ajudá-lo, perde a
oportunidade de fazer uma aliança duradoura com o grande rei da história política de
Israel. A pretensão de Davi é a de devastar os campos de Nabal. Este, por causa de
sua ganância e avareza, começa a decair, perdendo tudo aquilo que pensava ter.
Abigail, diferentemente, percebendo a ausência de sensibilidade de Nabal,
negocia com Davi. Suas bias palavras impedem que Nabal seja morto e que
houvesse derramamento de sangue em suas propriedades. A intermediação de
Abigail evita mortes e desperta a admiração daquele protegido de Deus.
273
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 141-155.
274
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 181-182.
275
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 183-194.
133
Posteriormente, com o falecimento de Nabal, ela é tomada como esposa de Davi, “la
madre de la alegria/ la primer flor del Carmelo”
276
De acordo com Fernando Parga:
Calderón dramatiza esta historia, pero se centra en la mediación de
Abigail entre la ira de David y la estulticia de Nabal y dota a la escena
de valor alegórico como prefiguración de la intercesión de María ante
Cristo por los pecados del mundo. Además, Calderón inserta el relato
en un marco ficticio; Luzbel invita a la Avaricia y a la Lascivia a
observar la acción del Carmelo como un eslabón en la gran cadena de
la historia universal de la redención, al mismo tiempo que les propone
intervenir en esa historia para hacerla fracasar, mediante la tentación
de los protagonistas, pero con poco éxito, como cabe suponer.
277
Para louvar Davi e Abigail, prefigurações de Jesus e Maria, Calderón leva à
cena alguns episódios do Antigo Testamento. Nesse conjunto, os fatos bíblicos são
narrados, dramaticamente, por Luzbel, a Avareza e a Luxúria. É importante lembrar
que os personagens abstratos coexistem na mesma estrutura que o conjunto
referencial dos modelos concretos, cuja existência está centrada no universo
humano daquele momento histórico.
O primeiro episódio é a queda do demônio, proclamada por Luzbel : “Que
me estéis atentas:/ ya sabéis que de los cielos, /mi hermosa patria primera, /
desterrado salí, siendo/ aquella arrancada estrella.”
278
. Outros se sucedem ao longo
da trama como o logro da serpente, a perda da graça pelo homem e sua redenção
através de Cristo, além de discorrer sobre várias figuras do Antigo Testamento que
representam o Messias, no Novo Testamento. O teatro de Calderón cumpre o papel
proposto pelo próprio dramaturgo de “sermões postos em versos”, que elabora um
texto religioso, a partir de textos sagrados e que utiliza uma produção estético-
artística para transformá-la em pedagogia teológica, na voz de Luzbel:
Y así, dado a conjeturas
cuanto negado a evidencias,
ando discurriendo siempre
cómo vendrá, cuando venga,
el prometido Mesías,
276
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1242-1243.
277
PARGA: 1998, p.20
278
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 248-252.
134
que ahora sólo se deja
ver en figuras y sombras,
como son la escala de bella
de Jacob, la zarza viva
de Moisés, el haz de leña
de Isaac, el rocío cuajado
de Gedeón y la niebla
de Elías, sin otras muchas,
de quien hablan los profetas,
que en el seno de Abraham
depositados esperan,
en fee de Cristo venturo,
a que abra el cielo sus puertas.
279
Um dos momentos repletos de simbolismo ocorre a partir dos versos 845 do
auto em que o personagem Simplício propõe o jogo de cores com as Alegorias.
Estas se dividem em dois grupos: o grupo da direita mostra personagens de bom
testemunho, enquanto o grupo da esquerda apresenta personagens negativas,
conforme a didascália explícita: “Siéntanse SIMPLICIO en medio; ABIGAIL, a mano
derecha; luego da CASTIDAD, luego la LIBERALIDAD; al otro lado, la AVARICIA,
luego la LASCIVIA, luego LUZBEL y los Músicos”:
280
SIMPLICIO - !Ea, en rueda nos sentemos!
El juego es de las colores,
que aunque dicen que es de ingeño,
si yo no le tengo, basta
el pensar yo que lo tengo.
¿Qué color quiere muesama?
ABIGAIL Blanco.
SIMPLICIO Qué inifica quiero
saber.
ABIGAIL Castidad, que es
la color de que me precio.
CASTIDAD ¿Tomaste de mi color
lo puro?
ABIGAIL , y aun por eso.
SIMPLICIO Pues toma tú otra.
279
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 317-334.
280
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, p.20
135
CASTIDAD Yo azul.
SIMPLICIO Y aquesa ¿qué inifica?
CASTIDAD No de ti, de alguien los tengo.
Mirando a la Lascivia
SIMPLICIO Liberalidad, elige.
LIBERALIDAD Verde.
SIMPLICIO - ¿Y qué inifica?
LIBERALIDAD Necio;
la esperanza de la tierra,
por lo liberal del cielo.
SIMPLICIO - ¿Vos, zagala?
LASCIVIA Yo morado.
SIMPLICIO - ¿Y vos, parlera?
AVARICIA Mis deseos,
que son firmeza en guardar
el oro, que es color de ellos.
SIMPLICIO - ¿Vos pastor rocín venido?
LUZBEL Siempre mi color es negro.
Simplicio - ¿Y qué inifica?
LUZBEL Tristeza,
que es la que yo siempre tengo.
281
Além do simbolismo do espaço cênico, ocorre também a aplicação das
cores destinadas às personagens, conforme sua condição: a Castidade o azul, a
Liberalidade o verde, a Luxúria o roxo, a Avareza o dourado. O cromatismo proposto
segue o conceito que as personagens têm de si e da cor que as representa.
As cores também demonstram o contraste entre Abigail e Luzbel. Esta, com
a onomástica inversa, já que Luzbel significa luz e beleza, usa a cor negra, em clara
referência à ausência de luz. Aquela, entretanto, utiliza a branca que sintetiza a
presença de todas as cores.
Na voz de cada personagem, transparecem ressonâncias de textos bíblicos
que se reportam à Maria ou à Abigail, ambas amadas e louvadas como “la rosa
bella” (v.188), “la azucena” (v.190), “de pobres intercesora” (v.667).
281
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 846-874.
136
Observamos outros exemplos de intertextualidade bíblica, como a réplica de
Simplício acerca da imaculada concepção de Maria:
Digo, pues, que serenada
la luz y Dios satisfecho,
para haber de venir, va
desde el Arca previniendo
una hermosa Virgen Madre,
que ha de ser su claustro y centro,
tal que nunca ha de caer
ni aun en el menor defecto;
pues su limpieza y pureza
en su feliz nacimiento,
como en su virginidad…
282
O poema declamado por Davi, em resposta aos apelos de Abigail, que
implora de joelhos o perdão para seu marido, também faz alusão à Bíblia:
¿Quién eres ¡oh mujer!, que aunque rendida
al parecer, al parecer postrada,
no estás sino en los cielos ensalzada,
no estás sino en la tierra preferida?
Pero ¿qué mucho, si del sol vestida,
qué mucho, si de estrellas coronada,
vienes de tantas luces ilustrada,
vienes de tantos rayos guarnecida?
Cielo y tierra parece que a primores
se compitieron con igual desvelo,
mezcladas sus estrellas y sus flores,
para que en ti tuviesen tierra y cielo,
con no sé qué lejanos resplandores,
la flor de el sol plantada en el Carmelo!
283
A penúltima didascália explícita - “Ábrese la peña, vese la fuente y Abigail,
con corona y cetro, en medio de la LIBERALIDAD y la CASTIDAD
284
- intensifica a
ideia de Abigail como prefiguração de Maria, com os atributos de “Regina Coeli,
título conferido a Nossa Senhora pelo Papa Pio XII, na Carta Encíclica Ad Coeli
282
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1.045-1.055.
283
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1.281-1.295.
284
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, p. 159.
137
Reginun, sobre a realeza de Maria e a instituição de sua festa”, publicada em 11 de
outubro de 1954.
A cena que se segue nos remete a reiterar não a realeza de Maria, mas
também, a prefiguração de Maria, na pessoa de Abigail, como demonstra Davi que,
apresentando sua real descendência, celebra Abigail/Maria, conforme suas palavras:
DAVID Si hará, pues a un tiempo es
árbol de muerte y de vida
este árbol, cuyas ramas
constan de reales familias.
Esta es la gran descendencia
de David, de cuya línea
aquella flor del Carmelo,
segunda Abigail divina,
vendrá, que arco de la paz
corone su verde cima.
285
A didascália explícita, que introduz a última cena, demonstra o conjunto de
elementos simbólico-teológicos que o dramaturgo põe em evidência para catequese
de seus espectadores:
Ábrese la tienda, vese SAÚL y un sacrificio de leña, da la vuelta y
sale una cruz y en el brazo de ella una arpa; a la otra parte,
GOLIAT, y una mesa con una tramoya en que parezca el
Sacramento; al otro lado, DAVID, echado al pie del árbol.
286
Calderón apresenta em sua anotação os elementos sínteses da história do
Judaísmo e do Cristianismo: o sacrifício de lenha é uma alusão a Isaac, filho de
Abraão, com quem Deus fez aliança e de quem descende o povo eleito, o judeu. A
simbologia da harpa, junto à cruz, faz referência ao Antigo Testamento, Judaísmo,
representado pela harpa-Davi e a nova aliança com o Cristianismo, cruz-Jesus, no
Novo Testamento. A tramoia com o Sacramento da Eucaristia é a expressão
máxima do amor de Deus para com os homens, uma vez que a Eucaristia é o
285
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1.548-1.557.
286
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, p. 204-205.
138
próprio Cristo imolado em expiação aos pecados da humanidade. No final, Davi e
outras personagens, declamam em coro:
GOLIAT - Este pan...
DAVID - esta real línea...
LOS DOS - celebren cielos y tierra,
TODOS - Diciendo a sus jerarquías:
¡La segunda Abigail
y el segundo David vivan!
287
Assim, o auto La primer flor del Carmelo se transforma em um canto de
louvor que celebra Maria, a mãe do Redentor, na prefiguração de Abigail e o Pão da
Vida, a Eucaristia, em cuja trama confrontam sentimentos de vultos importantes do
Antigo Testamento como a soberba de Golias e a humildade de Davi; a ira e a inveja
de Saul frente à lealdade e à gratidão de Davi; a avareza e a ignorância de Nabal,
contrapostos à generosidade e à sabedoria de Abigail, em que o real e simbólico, o
sagrado e o profano, o histórico e o ficcional estão presentes na mesma proporção
nessa obra de teatro, numa interlocução entre a literatura e a teologia.
287
CALDERÓN DE LA BARCA: 1998, vv. 1.561-1.565.
139
4.3. Fé e amor em A Maria el corazón
A vuestras plantas ofrezco,
Virgen pura y sin pecado,
desde el instante primero,
de vuestro primero ser,
privilegiado ab eterno,
este humilde corazón;
nada os doy, pues ya era vuestro,
sólo en premio de mi fe
(pues Vos sois de mi fe el premio)
288
A obra dramática A Maria el corazón, de Pedro Calderón de la Barca, é um
auto sacramental composto por 1583 versos polimétricos que foi representado na
celebração de Corpus Christi de 1664, juntamente com La inmunidad del sagrado.
O dramaturgo utiliza a alegoria dos sete pecados capitais para contar a
história da trasladação da casa da Virgem Maria, de Nazaré, na Palestina, a Loreto,
na Itália e a devoção sem reservas de um sacerdote dálmata a Nossa Senhora. No
auto, o sacerdote é representado por um Peregrino, que entrega, metaforicamente, à
Virgem Santíssima o coração estirpado de suas entranhas como prova de especial
veneração.
Para representar os dois principais argumentos, Calderón usa quatro carros
e treze personagens, além dos músicos que são próprios desse gênero literário. A
cenografia dos carros sintetiza cada parte do auto e concorre para melhor expressar
a temática a ser desenvolvida em cada bloco cênico que também está dividido em
quatro, seguindo-se “El argumento y su estructura dramática
289
, propostos pela
edição crítica, publicada em 1999, de forma resumida:
288
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. A María el Corazón. Edición crítica de ARELLANO, Ignacio,
ADEVA, Ildefonso, CROSAS, Francisco y ZUGASTI, Miguel. Pamplona (Espanha): Universidade de
Navarra; Kassel (Alemanha): Edition Reichenberger, 1999, vv.1.541-1.549.
289
ARELLANO, et all. In: CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. A María el Corazón. Pamplona
(Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha): Edition Reichenberger, 1999.
140
Disposición de los bloques escénicos
A) Versos 1-90. Introducción.
B) Versos 91-433. Los planes del Furor y las mansiones de la Santa
Casa.
C) Versos 434-1088. Las mansiones y su sentido alegórico. La
aventura del Peregrino.
D) Versos 1080-1583. El milagro del corazón devoto de María.
290
Ressaltamos que a edição crítica apresenta apenas um argumento: “El auto
de A Maria el corazón se centra en la leyenda piadosa de las traslaciones de la
Santa Casa de la Virgen desde Nazaret a las cercanías de Roma, y algunos
episodios relacionados con la Santa Casa, como el que da título al auto”
291
. A
análise a que nos propomos realizar é baseada nos dois argumentos,
mencionados a trasladação da Casa de Nazaré a Roma e a oblação do sacerdote
dálmata a Nossa Senhora - uma vez que o segundo, tem relação direta com o título
da obra.
Inicialmente, é anunciada, em cena, a notícia de que o sultão Saladino
conquistou a Terra Santa e é necessário que a casa da Anunciação saia da Ásia
infiel e à Europa, para que não seja profanada e se torne cativa da seita
muçulmana. Na voz do coro de Músicos e de um Anjo é conclamada tal ação:
MÚSICA - Salga del Asia infiel.
ÁNGEL - Esta sagrada fábrica divina...
MÚSICA - Y vaya a Europa, donde...
ÁNGEL - Más venerada triunfe, reine y viva...
MÚSICA Que no ha de estar cautiva…
En tirano poder la casa de María.
292
290
ARELLANO et all: 1999, p.13,14.
291
ARELLANO et all: 1999, p.13.
292
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. A María el Corazón. Edición crítica de ARELLANO, Ignacio,
ADEVA, Ildefonso, CROSAS, Francisco y ZUGASTI, Miguel. Pamplona (Espanha): Universidade de
Navarra; Kassel (Alemanha): Edition Reichenberger, 1999, vv.1-12.
141
O Furor, outra expressão da Ira, satisfeito com o sucesso das tropas
muçulmanas, sob o comando de Saladino, fato histórico ocorrido em 2 de outubro de
1.187, de forma irônica, declama um poema elogioso a Maria. Nele, a
intertextualidade bíblica com versículos do Cântico dos Cânticos como a metáfora da
“aurora” - “Quem é esta que desponta como a aurora, bela como a lua, fulgurante
como sol, terrível como esquadrão com bandeiras desfraldadas”
293
- e o emprego da
“estrela matutina” que se encontra na ladainha mariana. Conforme réplica do Furor:
¿Que no ha de estar cautiva
en tirano poder La casa de Maria?
¿Cuándo, Señor, la luminar tarea
del sol madrugará para mí un día
sin que una alba esplendor de otra alba sea
en nuevas excelencias de María?
¿Cuándo elegido empleo de tu idea,
en honra y gloria suya, en pena mía,
una aurora veré que el orbe dora
sin nuevos privilegios de otra aurora?
¿No bastaba que, estrella matutina
del mar, en el instante amaneciera
primero de su ser tan peregrina,
que a fuera de estrella ni una sombra viera,
sino que hoy Nazareth de Palestina
la casa que su oriente fue, a otra esfera
la vea sulcar en alas de querubes,
golfos de vientos, piélagos de nubes,
diciendo, para qué más
atormentadas mis iras,
a vista de tanto asombro
suspiren, lloren y giman...
294
Esse fato histórico é narrado na História Lauretana que é o registro de onde
se extraiu a lenda da trasladação:
Saladino, bárbaro soldán de Egipto, venció y prendió al rey
Balduino, quinto de este nombre. Y poniendo luego cerco a la
ciudad de Hierusalén y a las demás de aquel distrito, las entró y
sujetó a su imperio, poco menos de noventa años después que
las había rescatado el glorioso rey Godofredo de la tiranía de
los bárbaros.
295
293
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Ct 6, 10.
294
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.13-34.
295
HISTÓRIA LAURETANA. Apêndice. In: CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro, A María el Corazón.
Edición crítica de ARELLANO et all.Pamplona (Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha):
Edition Reichenberger, 1999, p. 234.
142
A Música reitera a necessidade de sair da Ásia infiel, pois segundo Furor:
“vitorioso Saladino/ el servil yugo vuelve a la garganta/ hoy de Jerusalén, y a su
destino/ obediente otra vez la Tierra Santa/ la cerviz dobla”
296
e questiona o porquê
do santo lugar não ter sido tratado com a honraria que lhe convém nem pelos
naturais da terra, nem pelos estrangeiros.
Na sequência, Calderón usa a referência bíblica: “Disse Deus a Moisés: Eu
sou aquele que sou”
297
e reverencia Maria na sua condição de imaculada, pelo
mistério da encarnação:
Mas ¡ay!, que como a ti no te ha tocado
ni ha podido tocar, que eres quien eres
el más lejano viso del pecado
mostrar, no en ti, sino en tu madre quieres
que casa que vio Verbo Encarnado
Es la que privilegias y prefieres.
298
Esses versos demonstram que Deus preservou Maria do pecado, mas não
poupou a casa do Verbo Encarnado da profanação.
O coro, agora, canta conjuntamente com a Música, um Anjo e o Furor, e
acrescentam mais dados para justificar a saída da casa de Maria, de Jerusalém:
Salga del Asia infiel
esta sagrada fabrica divina
y vaya a Europa, dónde
más venerada triunfe, reine y viva;
que no ha de estar cautiva
en tirano poder la casa de María.
299
A cenografia do carro que compõe essa primeira parte apresenta a casa de
Nazaré sobre nuvens, carregada por quatro anjos guardiões. Ele representa a
primeira trasladação da casa da Virgem Maria de Nazaré à Dalmácia, atual Croácia.
296
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.37-41.
297
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Ex 3, 14.
298
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.45-50.
299
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.85-90.
143
Na cena seguinte, um Anjo demonstra a importância da casa de Maria e a
compara à Arca da Aliança que teve muitos domicílios:
En esta de Dalmacia
católica provincia
que al concepto de hoy
no en vano se llamó la Esclavonía,
es donde Dios nos manda
(¡oh aladas jerarquías),
en cuyos hombros vuela
elevada esta fábrica en sí misma)
que la primer mansión
haga, bien como iba
del Testamento el Arca
desde un tránsito en otro peregrina,
y puyes para que aquí
hoy quede, determina…
300
O nome Esclavonía, corruptela de Eslavonia, empregado por Calderón, faz
alusão aos adjetivos “esclavon/na, usados na Espanha para designar escravos
nórdicos, comercializados na Europa em meados do século IX. Também
“Esclavonía” pode estar relacionado ao termo “esclavitud” , “alusión transparente a la
„esclavitud‟ del hombre antes de la Redención”.
301
A casa é transportada pelos ares e o mesmo Anjo ressalta a missão
cumprida:
Abata, pues, el vuelo
de tan dulce fatiga,
que lo que pesa halaga,
que lo que carga dulcemente alivia,
mostrando en nuevos rumbros,
pues de infieles la libra…
302
Inicia-se a segunda parte do auto com a introdução de um carro com uma
Hidra de sete cabeças, alegoria da Culpa, cujos tentáculos representam os sete
pecados capitais. Na voz do dramaturgo há a informação:
300
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.91-104.
301
ARELLANO et all: 1999, p. 26.
302
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.115-120.
144
Ábre-se el segundo carro, que será una montaña bruta, y sale de ella
una hidra de siete cabezas coronadas, de cuyas bocas penderá unas
cintas que traerán, como que vienen tirando de ella la SOBERBIA, la
AVARICIA, la GULA\, la LASCIVIA, la IRA, la ENVIDIA y la PEREZA.
Y sobre su espalda la CULPA con una copa de oro en la mano
303
.
Inquieto pela presença da casa de Maria, na Eslovênia, Furor pede ajuda à
Hidra diabólica para atuar sobre aqueles que são devotos da Virgem, sua grande
inimiga, a partir da veneração que eles têm para com a sagrada casa: “¿Cómo si tu
Furor soy, /¡oh sañuda hydra!/ [...] viéndome padecer /de tanto asombro a vista, /no
em mi socorro vienes?”
304
.
Cada um dos Pecados capitais se apresenta em cena e demonstra que
foram convocados para agir sobre os peregrinos, disvirtuando-os de sua fé, com a
corrupção de valores cristãos, em festas lascivas, roubos, assassinatos e toda sorte
de ações maléficas, como se pode inferir nos versos proferidos pelo Furor,
insatisfeito com a veneração dos romeiros a Maria, a partir da devoção a sua
Sagrada Casa:
Culpa, en común del hombre,
ya sé que no militan
contra Maria jamás
tus armas ni las mías;
contra su devoción,
puesto que la ejercitan,
afectos que tal vez
estraga la milicia,
es contra quien te invoco,
por pensar que sería
no pequeño trofeo
que de un milagro a vista
tus vícios coronases.
305
303
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, p. 83.
304
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.133, 134; 143-145.
305
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.231-243.
145
Mesmo assim, os pecados reconhecem a realeza de Maria e sua ação
intercessora para com os peregrinos. A Culpa reitera que Maria nunca foi manchada
pelo pecado: “planta nunca mordida” (v.150); “María ... en gracia concebida” (v.166).
Utilizando-se de discursos diferentes, mas com idéias similares, cada Pecado-
personagem expressa as virtudes de Nossa Senhora:
SOBERBIA toda angélica milicia,
ella se nombra esclava,
cuya piedad sencilla
de sus triunfos me ahuyenta
306
LASCIVIA ante una Virgen Madre,
tan pura y sin mancilla
que concibe doncella
y después de parida
doncella permanece
307
IRA también de ella postrada,
cuando madre propicia
de la misericordia
el hombre la apellida
sin que su amparo falte
a nadie que lo pida
308
Na Eslovênia, os Vícios agem de fato e a Casa do Verbo Encarnado sofre
profanações de toda ordem pelos dálmatas que também pecam por soberba, ao se
proclamarem superiores, em função do privilégio de abrigarem a casa da Mãe de
Deus. O Furor incita os Pecados Capitais:
Que todos los concursos
de varias romerías
tal vez en celo empiezan
y acaban en delicia;
el verse unos a otros
conmueve a la alegría,
la alegría al banquete,
306
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.180-183.
307
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.193-197.
308
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.200-204.
146
el banquete a la risa,
la risa al baile, al juego,
a la vaya, a la grita,
escollos en que siempre
la devoción peligra;
y así quiero que cortes,
desates y dividas
de esas siete gargantas
la Gula y la Lascivia,
que el concurso perviertan,
la devoción impidan
y la estación profanen.
309
Através dos versos do Furor, observamos que uma gradação na
intensidade dos pecados, protagonizados pelos cios que chegam à euforia como
demonstra a voz do dramaturgo: “Salen los VICIOS com instrumentos, cantando y
bailando”
310
,
Com os Vícios cantanto e bailando encerra-se a segunda parte do auto com os
Pecados capitais contentes pela ação maléfica realizada na Dalmácia. O dramaturgo
utiliza a figura de deuses pagãos Baco, Ceres, Vênus - para demonstrar tal fato:
TODOS Vaya, vaya de fiesta, vaya de jira,
y hagan sus efectos Gula y Lascivia.
LASCIVIA Mientras yo abraso a todos, tú a todos brinda,
que sin Baco y Ceres, Venus se entibia.
311
[]
GULA Si mañana a la muerte todos caminan,
bébase hoy, que mañana será otro día.
TODOS hagan sus efectos Gula y Lascivia.
312
Enquanto isso, entra em cena “el PEREGRINO, viejo venerable, y el
PENSAMIENTO, también vestido de peregrino, luchando con él”.
313
A didascália que
início ao terceiro bloco demonstra que o Peregrino está em luta com seu
309
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.391-409.
310
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, p. 102.
311
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.426-429.
312
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.431-433
313
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, p. 103.
147
Pensamento porque este se apresenta de forma pervertida, por interferência dos
Vícios, que agem sempre em pares: Gula e Luxúria, Ira e Soberba, Avareza e Inveja.
O uso de duplas para perverter os peregrinos e desvirtuá-los de sua é
mais um dos ensinamentos de Calderón que usa a metáfora inversa. Nos textos
bíblicos, os pares são enviados por Jesus para pregar, ensinar, converter, curar e
exorcizar conforme o evangelista Marcos:
Chamou (Jesus) a si os Doze e começou a enviá-los dois a dois. E
deu-lhes autoridade sobre os espíritos impuros. [...] Partindo, eles
pregavam que todos se arrependessem. E expulsavam muitos
demônios, e curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo.
314
Embora o Peregrino, protagonista do auto, seja um sacerdote dálmata, ele
também é alegoria do Homem em sua passagem na terra. Essa figura é muito
presente na Bíblia: “Ouve a minha prece, Iahweh, /dá ouvido aos meus gritos, / não
fiques surdo ao meu pranto! /Pois sou forasteiro junto de ti, inquilino como todos os
meus pais”,
315
ou “Na fé, todos morreram, sem ter obtido a realização da promessa,
depois de tê-la visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem estrangeiros
e peregrinos nesta terra.”
316
Conforme propõe Arellano:
El viaje es otro paradigma que se ofrece en los autos con cierta
reiteración y obedece casi siempre a la imagen de la vida humana
como peregrinación.
Esta imagen del peregrinar es frecuentemente aplicada al hombre en
su paso por este mundo, en el que peregrino, []. La elaboración de
esta imagen es muy abundante en los Padres de la Iglesia y escritores
de toda época y categoría.
En los de Calderón es muy frecuente, pero conforma sobre todo los
dos autos de años santos (AR y AM)
317
en que el Hombre aparece
como peregrino que transita por caminos del mundo, asediado por las
tentaciones y ayudado por la razón y la gracia.
318
314
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mc 6, 7; 12; 13.
315
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Sl 38,13.
316
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Hb 11, 13.
317
AR (Ano Santo de Roma) e AM (Ano Santo de Madrid), autos sacramentais.
318
ARELLANO, Ignácio. Estructuras dramáticas y alegóricas en los autos de Calderón. Pamplona
(Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha): Reichenberger, 2001, p.56-57).
148
O embate entre o Peregrino e o Pensamento é intenso e, para controlar o
Pensamento, é necessário algumas vezes ajuda dos céus, conforme lamento do
sacerdote: “!Ay de mi!, que a detenerte/Humanas fuerzas no bastan.”
319
Esse
embate é um problema filosófico, a questão do livre-arbítrio. De um lado a
possibilidade do homem decidir, de escolher em função da própria vontade, isenta
de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante e, de outro, as leis, que
cerceiam sua vontade, ou a liberdade de que dispõe para realizar o que melhor lhe
aprouver. Esse conflito interior do homem é analisado por Ignácio Arellano,
buscando embasamento teológico e:
ejemplifica la lucha en que el libre albedrío rectamente ordenado por la
voluntad y la devoción a la Virgen acabará por triunfar en el personaje
del sacerdote dálmata, el Peregrino que representa en el nivel
alegórico al Hombre, cuya salvación se produce en virtud del sacrificio
de Cristo y con la mediación de la Virgen.
320
Além da interferência dos Vícios, o Homem também recebe a Culpa como
herança do pecado original, com isso se ausenta a Graça santificante. Uma das
formas de controlar o Pensamento é a oração. A réplica do Pensamento intensifica
essa ideia: “Una cosa es que no hagas/ que deje de irme, y otra /que la voluntad
me traiga /y hasta entonces...”
321
El Pensamiento se caracteriza parcialmente como personaje de
gracioso, atraído por la fiesta, el comer y el beber, y girando a una y
otra parte (movimiento, símbolo de la inestabilidad del pensamiento
humano, que se repite en otros autos), hasta que la contemplación
devota del Peregrino lo fija en la oración.
322
Dada à profanação da casa de Maria na Dalmácia, ela é trasladada para a
propriedade de uma senhora chamada Laureta, na Itália. Novamente, o local é palco
de ações nefastas. Na voz da Culpa:
319
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.470-471.
320
ARELLANO et all: 1999, p. 32.
321
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.481-484.
322
ARELLANO et all: 1999, p. 31-32.
149
Que tú, Ira, pues te tocan
los robos y muertes, vayas
a los montes de Laureta,
y en las fragosas montañas
que los cercan introduzcas
todo el furor de tu armas
en bandidos que despojen
de haciendas, vidas y almas
a todos los peregrinos
que penetraren la estancia
desde hoy del Laureto.
323
Com os bandoleiros assaltando e assassinando os romeiros, a casa é
transportada para um campo de dois irmãos que, tentados pela Avareza e pela
Inveja, se destem em disputa pelos benefícios que ela rende a cada um. O
discurso de cada uma dessas alegorias demonstra o fato:
ENVIDIA A mi me toca en herencia
este terreno, pues soy
mayor hermano.
324
AVARICIA Considera
que pues está no diviso
este sitio, antes que pierda
la acción dél, he de perder
la vida, que no es bien tengas
(ya que esta ventura quiso
entrársenos por las puertas)
tú los aprovechamientos
de las limosnas y ofrendas
que pueden hacerme rico
a mí, ya que tú lo seas
por mayor.
325
Por fim, a Casa de Maria se assenta no caminho real que vai a Roma, centro
terreno da Igreja, fundada por Cristo. Conforme observa Ignacio Arellano:
323
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.645-655.
324
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.033-1.035.
325
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.038-1.048.
150
Las sucesivas trasladaciones simbolizan por tanto el paso de la Ley
Natural a la de la Gracia y la aceptación última por Gentilidad, una vez
que el pueblo elegido de los judíos ha rechazado al Mesías,
desconociendo su acto salvador.
326
À proporção que a casa vai-se trasladando, também o Peregrino, em luta
com seu Pensamento, se e à procura do lugar que abrigou Maria. Ao chegar à
região de Laureta, ouve o lamento da dama que dedica quase cem versos narrando
histórias de violência ocorridas, durante o tempo de permanência da casa. Ela fala
como uma profetiza e sua queixa inicial é dirigida ao Peregrino:
Felice
y infelice peregrino;
felice, pues aquél
que de Sión descendió,
la rosa de Jeri
vas buscando; y como él
infelice, pues que vas
a dar también en las manos
de bandoleros tiranos;
ten el paso y vuelve atrás.
327
Através do jogo de contrastes, a dama de Loreto mostra como poderia ser
diferente: “tan a pesar de las aves/ que sin su compás gorjean/ que la más llena de
gracia/ los trinos el eco trueca,/ pues en vez de cantos de ave/ se escuchan gemidos de
Eva”.
328
O diálogo entre o Peregrino e o Pensamento é áspero e demonstra um dos
frequentes ensinamentos dos autos calderonianos: o livre arbítrio do homem não pode
deixar que a razão seja preterida pela vontade, conforme o diálogo:
PEREGRINO Suelta,
que aunque puedes, Pensamiento,
moverme, no hacerme fuerza.
PENSAMIENTO - Si ya otra vez me detuve
yo por ti, ¿por qué tu esta
por mi no te detendrás?
326
ARELLANO et all: 1999, p.14-15.
327
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv. 773-782.
328
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.817-882.
151
PEREGRINO Porque no está en manos nuestra
que el Pensamiento nos lidie, y ésta
PENSAMIENTO - ¿ Qué?
PEREGRINO - Que no nos venza;
y así a pesar tuyo tengo de pasar.
329
Mesmo sem a concordância do Pensamento, o Peregrino parte em busca
da Sagrada Casa e, o último bloco cênico aponta um novo obstáculo para o devoto,
conforme a didascália: “Arroja de si al PENSAMIENTO y al entrarse salen IRA y
CULPA vestidos de bandoleros, y pónenle al pecho las pistolas”.
330
As alegorias da Ira e da Culpa capturam o Peregrino e exigem que ele
renegue sua a Maria. Mas, o dálmata assistido por um Anjo e carregando dentro
de si o grande amor a Mãe de Deus, não se deixa intimidar pelos Pecados e afirma
que irá aa Casa de Maria, para quem devotou seu coração, cujo amor é irrestrito.
A réplica dos Pecados é contundente e o diálogo entre os quatro apresenta
ressonâncias bíblicas:
CULPA Antes perderás la vida.
PEREGRINO - ¿Qué más vida que perderla
en busca suya?
CULPA Veamos
si lo es o no. Ira, ¿qué esperas?
IRA - ¡Muera en este peregrino
de Maria la fee!
IRA - ¡Muera!
ÁNGEL no hará, que para mayor
fin Dios su vida reserva.
331
A Soberba fica encolerizada diante da firmeza de daquele homem que não
teme morrer por Maria, além de perceber que embora ele seja seu escravo, somente o
corpo lhe pertence, uma referência ao evangelho de Mateus: “Não temais os que matam
329
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.900-911.
330
CALDERÓN DE LA BARCA:1999, p.135.
331
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.915-925.
152
o corpo, mas não podem matar a alma, temei antes aquele que pode destruir a alma
e o corpo na geena”
332
. No texto dramático, declara o Peregrino:
Sagrado precepto
nos manda que no temamos
a poder que a sólo el cuerpo
puede extenderse y no al alma.
333
A partir do diálogo entre o Peregrino e a Soberba, o auto apresenta o ponto
de maior tensão dramática:
PEREGRINO Perder una y mil vidas
antes que cometa yerro
de tan vil estelionato
que obligue lo que no tengo.
SOBERBIA ¿Por qué?
PEREGRINO - Porque tan grabado
de María el nombre tengo
en el corazón, tan fijo
en vida y alma, tan dentro
de las entrañas, que…
334
Sem acreditar nas palavras do Peregrino, a Soberba extrai-lhe do peito o
coração devoto. Milagrosamente, o piedoso sacerdote se levanta e pede proteção
da Virgem:
Ella sabe que no siento
la muerte, sino no ser
yo quien le lleve a su templo,
en cuyas aras pensé
lograr el dichoso trueco
de, dándola el corazón
recibir el Sacramento.
335
332
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, MT 10,28.
333
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv. 1.261-1264.
334
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.272-1.281.
335
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv. 1.285-1.291.
153
Com o coração ensanguentado em suas mãos, o Peregrino parte em busca
da casa de Loreto, conforme havia prometido. Depois de algumas peripécias com os
Pecados tentando dissuadi-lo de seu intento, o Peregrino chega ao local sagrado da
casa e dedica versos de amor e fé, para depois morrer definitivamente,
resguardadas as devidas observações de que se trata um texto artístico. Na voz do
Peregrino, seu louvor a Maria:
A vuestras plantas ofrezco,
Virgen pura y sin pecado,
desde el instante primero,
de vuestro primero ser,
privilegiado ab eterno,
este humilde corazón;
nada os doy, pues ya era vuestro,
sólo en premio de mi fe
(pues Vos sois de mi fe el premio)
[]
en vuestras aras reciba
este santo Sacramento,
mostrando que para hallarle
sois el camino más cierto.
336
O auto se encerra com todos declarando o amor e a fé a Nossa Senhora, pois
“para atropellar vícios...y recibir el inmenso milagro de los milagros...es Maria el mejor
médio”
337
. Conforme os versos do Peregrino e dos demais personagens alegóricos:
PEREGRINO - Pues confesaldo vosotros
para mayor dolor vuestro,
mientras para mayor honra
suya decimos a un tiempo:
TODOS - Que para dale a María,
puesto en ella el pensamiento,
todos nuestros corazones
en nuestras manos tenemos
338
De acordo com a classificação dos autos de Calderón de la Barca, a obra A
Maria el corazón está inserida entre os autos sacramentais marianos, em que a fé e
o amor do protagonista, o sacerdote dálmata, deixa patente a importância da Virgem
336
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.541-1.561.
337
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.572-1.575.
338
CALDERÓN DE LA BARCA: 1999, vv.1.576-1.583.
154
Maria em relação ao mistério eucarístico. Contudo, não se deve esquecer seu mérito
documental, uma vez que a obra trata de dois aspectos muito significativos para fixação
dos valores cristãos:
- a trasladação da casa de Maria, uma das lendas mais recorrentes da cultura
popular européia, conforme ilustra Ignacio Arellano, que resumimos aqui:
Historia Lauretana.
En que se cuentan las traslaciones, milagros y sucesos de la
Santa Casa de Nuestra Señora de Loreto, compuesta en lengua latina
por Padre Horacio Turselino de la Compañía de Jesús, traducida al
castellano por el Padre Juan de Rojas de la misma Compañía.
Libro primero
De cuán reverenciada fue en Palestina la casa donde nación
y vivió la Virgen María. Cap. I
Cómo esta santa casa pasó milagrosamente en manos de los
ángeles desde Galilea a Dalmacia, por haberse acabado en Palestina
la fe y religión católica. Cap.II
De una revelación en que la Madre de Dios manifestó ser
esta casa que se apareció en Dalmacia la misma de su nacimiento y
morada, que estuvo en Nazaret. Y de un gran milagro con que se
confirmó la revelación. Cap.III
Cómo fueron enviados personas gravísimas de Dalmacia a
Galilea para examinar la verdad desta translación. Y cómo la trujeron
averiguada y confirmada. Cap.IV
Cómo se pasó de esclavonia a Italia esta Santa Casa y del
gran sentimiento que esto causó en toda Dalmacia. Cap. V
Cómo , traída la Santa Casa en manos de los ángeles de
Dalmacia a Italia, tomó asiento en la provincia de la Marca de Ancona,
en la selva de Recante. Cap.VI
Cómo, por las muertes y robos que en los caminos desta
selva padecían los peregrinos que iban a visitar esta Santa Casa, dejó
Nuestra Señora este asiento y le tomó en un collado que era posesión
de dos hermanos. Cap. VII
De la discordia que se levanto entre estos dos hermanos
sobre partir los dones y ofrendas que se traían a esta Santa Casa y
cómo se pasó últimamente al camino real. Cap. VIII
Libro segundo
155
Del caso prodigioso que sucedió a un sacerdote dálmata, que
vino con sus entrañas en las manos a visitar esta casa de Nuestra
Señora y morir en ella. Cap. XVIII.
339
- e o registro da tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino, em 1.187:
No dia em que as tropas de Saladino entraram em Ascalon registrou-
se um eclipse do sol, e na escuridão, o mouro recebeu uma delegação
dos cidadãos de Jerusalém, que convocara para discutir os termos da
capitulação da Cidade Santa, mas não houve discussão. Os
delegados recusavam-se a entregar a cidade onde o seu Deus
morrera por eles. Regressaram altivamente a Jerusalém e Saladino
jurou tomar a cidade pela força da espada. [...]
A 20 de setembro, Saladino acampou diante da cidade e deu início ao
ataque às muralhas norte e noroeste (...) na manhã do dia 26 de
setembro, o seu exército estava instalado no Monte das Oliveiras [...]
A 30 de setembro, (Balian, chefe das tropas judaicas) dirigiu-se em
pessoa ao campo inimigo para pedir a Saladino que determinasse os
termos. []
Por ordem de Balian, a guarnição depôs as suas armas, e na sexta-
feira, 2 de outubro, Saladino entrou em Jerusalém. Era o vigésimo
sétimo dia do Rajab, o aniversário do dia em que o Profeta, em
sonhos, visitara Jerusalém e daí fora levado para o céu.
340
Assim, reiteramos que A Maria el corazón cumpre o papel do auto no
conceito de Calderón, “Sermones puestos en versos, en idea representable
cuestiones de la Sacra Teologia”, em que o amor à Eucaristia e a Nossa Senhora
são pilares da ao cristianismo e, em especial, à religião católica, além de
contribuir com ação evangelizadora em terras de Espanha, cuja prática das idéias da
Reforma Protestante, se difundia em diferentes recantos da Europa e do Novo
Mundo.
339
História Lauretana. Apêndice. In: CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. A María el Corazón. Edición
crítica de Ignacio Arellano et all. Pamplona (Espanha): Universidade de Navarra; Kassel (Alemanha):
Edition Reichenberger, 1999, p. 233-247.
340
RUCIMAN, Steven. História das Cruzadas O reino de Jerusalém e o Oriente Franco 1100-1187.
Tradução Maria Isabel Canhoto. Vol. II. Lisboa (Portugal): Livros Horizonte, p.367-368.
156
4.4. La Hidalga del Valle: a defesa de Maria concebida sem
pecado
Dios quiso hacer cuanto pudo
y pudo hacer cuanto quiso
luego que sea es preciso
esta Virgen escogida,
para Madre, preferida
en todo, siendo su estado
concebida sin pecado.
341
La Hidalga del Valle é um auto sacramental do Siglo de Oro” que foi escrito
por Calderón de la Barca como forma de desagravo a um fato ocorrido na Quinta-
feira Santa de 1640, ocasião em que apareceu um libelo ofensivo à Virgem Maria na
porta da catedral, da cidade de Granada. Seu texto é exclusivamente mariano e não
faz alusão ao Sacramento da Eucaristia como é comum ocorrer em outros autos.
A loa
342
que introduz o texto dramático tem como personagens os Músicos
acompanhados do Furor, da Alegria e do Contentamento. Furor, alegoria do
Demônio, reconhece a realeza de Deus e de Maria, conforme didascália explicita e
sua atuação:
Sale el FUROR, como atopellando al CONTENTO a la ALEGRIA.
343
FUROR - Que esto escuche, y de sus ejes
la Esfera no descuaderno,
destruyendo de Granada
la Alegría y el Contento
con que (a mi pesar) celebran,
y aplauden (a mi despecho)
hoy los Desagravios de
Cristo y María, a quien temo,
y a quien Virgen Madre, antes
del Parto, y en él confieso,
y después de él, oprimido
del más Soberano Imperio,
estas Verdades publico,
estos Prodigios venero.
344
341
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. Obras completas. Tomo III, Autos sacramentales. Madrid:
Aguilar,1952, vv.
342
Loa, como rubrica do teatro, refere-se ao prólogo de composições teatrais, especialmente dos
séculos XVI e XVII, com vistas a atrair o público espectador para a peça a ser apresentada.
343
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, p.113.
157
Depois de dialogar com o Contentamento sobre a pureza de Maria, Furor
defende a cidade de Granada, que foi uma das primeiras urbes da Espanha a
advogar a concepção imaculada de Maria. Na parte final, a loa é encerrada com um
tributo a Granada na voz do Contentamento e da Alegria:
CONTENTO - Para que Granada siempre...
ALEGRÍA - En los anales del tiempo
tenga el laurel merecido.
CONTENTO - Heroico.
ALEGRÍA - Glorioso.
CONTENTO - Eterno.
345
Um aspecto interessante desta loa é Calderón fazer referência ao episódio de
Granada, fato que não será aludido no auto. Em La Hidalga del Valle o dramaturgo
se dedica à defesa de Maria, isenta do pecado original, prerrogativa da Mãe de
Deus, reiterada por Calderón em todos os autos marianos.
No auto, além das personagens presentes na loa, se apresentam a Culpa, a
Graça, o Amor Divino, a Fidalguia, a Natureza, Davi e que dramatizam a história
da salvação, demonstrando que Maria foi a escolhida para ser a mãe do Salvador e
por isso imune do pecado original. Esse tema possuía uma larga tradição teológica,
entre os estudiosos da história sagrada; devocional, entre os crentes da religião
católica e artístico-literária, entre os artistas plásticos e escritores da época, como
assinalamos em capítulos anteriores.
A Culpa abre a primeira cena empunhando um “bastón”, símbolo de
autoridade e afirma que todos os homens estão sob seu domínio em razão do
pecado original. Ela chama a todos os homens de “villanos hijos de Adán” (v.1) e se
autodescreve:
344
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 55-68.
345
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.173-181.
158
Yo soy la Culpa, yo soy
la serpiente, de quien dijo
en el Génesis Moisés
que andaba en el Paraiso
disimulada. Yo soy
aquel hermoso prodígio
que coronada en um monstruo
de siete cuellos distintos
Juan vio en el Apocalipsis,
con un vaso de oro rico,
brindar mortales venenos
de inficionados hechizos.
346
Um aspecto que deve ser destacado é a percepção de Calderón em colocar
em cena a alegoria da Culpa (Pecado, Demônio) e ela própria demonstrar que está
presente nos dois extremos da literatura bíblica, no Gênesis e no Apocalipse, ou
seja, a Culpa acompanha a história da humanidade, contada sob a perspectiva
religiosa, do início ao fim. A passagem do nesis a que ela se refere, é muito
conhecida e foi mostrada pictoricamente no quadro de Tiziano. Contudo, vale citar a
referência do Apocalipse, onde João relata:
Ele [o Anjo] me transportou então, em espírito, ao deserto, onde vi
uma mulher sentada sobre uma Besta escarlate cheia de títulos
blasfemos, com sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida
com púrpura e escarlate, adornada de ouro, pedras preciosas e
pérolas; e tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações; são
as impurezas de sua prostituição.
347
Para demonstrar a superioridade da Culpa, Calderón utiliza cerca de
duzentos versos e narra a derrocada do homem no Paraíso, cuja maior vitória é
trazer a Humanidade como escrava, que houve a perda da Graça, com o pecado
de Adão e Eva. Com essa condição, a Culpa se diz parte da natureza humana,
inclusive dos não nascidos, por isso todos são seus vassalos e ela cobra esse
tributo. Em relação à Natureza (humana), a Culpa se coloca condição de
superioridade, com espírito da soberba e, numa perspectiva própria do Barroco,
esse contraste é demonstrado:
346
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.17-28.
347
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Ap 17, 3-4.
159
CULPA tú, (Natureza) esclava; yo victoriosa;
tú con temor; yo, con bríos;
tú, rendida; yo triunfante;
tú con hierros; yo, con ricos
despojos; tú humilde; yo,
altiva; tú con suspiros;
yo con voces; tú con llantos;
y yo, en fin con regocijos;
porque vean los mortales,
postrados hoy y rendidos,
que Culpa y Naturaleza,
con dos afectos distintos,
en cualquiera concepción
igualmente concurríamos.
348
Conforme percebemos a Natureza humana vive rendida, escrava, chorosa,
amedrontada e humilhada em relação à Culpa que, briosa, altiva e ricamente vestida
está presente em qualquer pessoa. Apesar de sua autoconfiança, a Culpa, se
esquece de que, na Bíblia, é descrita sua derrota, com redenção do homem pelo
sangue de Jesus Cristo. Isto ocorre, porque Eva, enganada pela Serpente, come,
juntamente com Adão, o “fruto proibido” e Deus amaldiçoa a Filha do Mal, conforme
relatado no Gênesis:
Iahweh Deus disse a serpente:
„Porque fizeste isso
és maldita entre todos os animais domésticos
e todas as feras selvagens.
Caminharás sobre teu ventre
e comerás poeira todos os dias de tua vida.
Porei hostilidade entre ti e a mulher,
entre tua linhagem e a linhagem dela.
Ela te esmagará a cabeça
e tu lhe ferirás o calcanhar‟.
349
No auto de Calderón, a introdução desse fato se faz presente na voz da
própria Culpa que afirma: Ya a vista del mundo estamos,/ su fábrica descubrimos,/
una emulación hermosa/ de este Alcázer cristalino./ Tres puertas tiene, las dos/
todas abiertas las miro,/ y la tercera cerrada” (vv.155-161). É a alegoria do Mundo
com suas leis: a Lei Natural, a Lei Escrita e a Lei da Graça.
348
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.175-188.
349
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Gn 3, 14-15.
160
As duas primeiras Leis têm como representantes e Davi - são as portas
abertas - enquanto a última - a Lei da Graça - é representada por uma porta
fechada, em alusão à Virgem Maria. Após colocar o espectador ambientado com a
cena, as personagens passam a discutir os assuntos a que se propõe o dramaturgo,
que pode ser dividido em quatro eixos temáticos: a) a questão do pecado original; b)
Maria concebida por intervenção divina; c) o embate se Maria tem não a culpa
original; d) os sacramentos como fontes de graça, sendo Maria, isenta de culpa e
plena de graça.
O primeiro tema está relacionado à Culpa como protagonista da mancha que
existe no homem e à discussão dela com Jó, Lei Natural, e com Davi, Lei Escrita. A
cada um, a Culpa cobra tributos, mas a cada argumento, vislumbra-se a
representação simbólica da Virgem Maria, como contra-argumento:
CULPA Cobrar
el pecho a que reducidos
estáis todos los humanos,
es el intento que sigo;
emprezando en la primera
Ley Natural, pues ha sido
Ley Natural el pagarle;
yo no quiero otro testigo
en abandono de que soy
yo el origen y el principio
de todas las aflicciones;
probando de los vicios
yo soy el original,
y ellos son retratos míos,
que el Universal Diluvio,
que empezando en un rocío
de la aurora, se hizo lluvia;
la lluvia (cobrando bríos),
fuentes; las fuentes arroyos;
los arroyos, anchos ríos;
los ríos, inmensos mares;
que entre piélagos y abismos
al gran cadáver del mundo
dieron en su centro frío,
en monumentos de plata,
salobres tumbas de vidrio.
350
350
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.220-224.
161
Observamos que para refletir sobre a culpa original, o dramaturgo usa
gradação ascendente e imagens da natureza, facilitando a compreensão do
espectador. O pecado de Adão e Eva, “un rocio de la aurora”, se transforma, no
Dilúvio Universal, “inmensos mares”.Ou seja, a falta individual, pequena, se amplia
para um pecado universal e grandioso. Contudo, Calderón aponta uma solução,
demonstrada na réplica de Jó:
JOB Es la verdad: pero una Arca,
a los desdenes esquivos
del mar, exenta se vio
sobre los crespos y rizos
de las espumas, saliendo
intacta de su peligro.
351
Nos escritos, de um modo geral, a Arca de Noé está associada à figura da
Virgem, pois assim como as espécies se abrigaram na embarcação e se salvaram,
Maria foi predestinada a ser o consolo espiritual das criaturas e corredentora da
humanidade. Sem o “sim” de Maria, não haveria Jesus Cristo, não haveria, portanto,
salvação.
assume a condição de vassalo da Culpa: “Digo/ que te le debo y que en
nombre/ de toda mi Ley le rindo”
352
e a Culpa, em diálogo com a Natureza, busca a
Lei escrita para ser sua escrava. A Natureza sabe que na caminhada para a
salvação, Deus se serviu de Moisés, a quem entregou a sua Lei:
CULPA Ya de la Ley Naturaleza
cobrado el tributo miro,
y confesado por Job
el vasallaje a que aspiro.
A las puertas de la Ley
Escrita llama.
NATURALEZA Es preciso
obedecerte forzada,
¡Ah del Gran Pueblo escogido
351
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 245-250.
352
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 274-276.
162
de Jehová, Israel, a quien
en un terso mármol liso,
buril el dedo de Dios,
dejó el Decálogo escrito!
353
A Natureza bate à porta que representa a Lei Escrita e sai Davi, símbolo do
povo escolhido, os judeus, conforme a réplica da Natureza, “David responde/ por
todos, como su Invicto/ Rey”
354
A Culpa recorda todas as agruras sofridas pelos hebreus, como a escravidão
no Egito, a fome e a sede no deserto, os perigos sempre iminentes, tudo “que causó
la primer Culpa”
355
. Na réplica, Davi não se furta em contradizê-la, antes lembra a
intervenção divina em todos os momentos, como o maná, que alimentou seu povo
por muitos anos.
A Culpa insiste que o maná se tornou impuro e como contra-argumento, Davi
apresenta algo incorrupto, a pele de Gedeão, outro símbolo da Virgem Maria.
Ressaltamos que o dramaturgo também elaborou uma peça com o título homônimo,
La Piel de Gedeon, baseado no episódio bíblico, extraído do Livro dos Juízes. Davi e
a Culpa dialogam:
DAVID Otro rocío por eso
también, sin corrupción, vimos
en piel de Gedeón
cuajarse cándido, limpio.
CULPA No más, no más, que esa piel,
que concibió en sus armiños
el rocío intacto, y puro,
me ha causado un parasismo
mortal, un mortal letargo:
¡Fuerte horror! ¡fiero delirio!
Reconóceme la deuda
y no argumentes conmigo.
356
353
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 287-298.
354
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 299-301.
355
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, v. 322.
356
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.332-343.
163
A partir desse diálogo, a Natureza parte em busca da terceira porta, que é
aberta pela Graça. Esta, embora aguardando um hóspede novo, o pode conviver
com a Natureza, portadora do pecado original, portanto impura e escrava da Culpa.
A partir desse ponto, se estabelece uma interlocução entre a Culpa e a Graça, esta
declara que haverá alguém que “no quiera pagar pecho,/ por hidalgo y ser limpio”
357
para desafeto da Culpa que chama Furor para testemunhar.
Requerido pela Culpa, Furor usará cento e oito versos para contar a história
de Maria, a partir da genealogia de seus pais, Joaquim e Ana. As bases para
elaborar esse relato, provavelmente Calderón foi buscá-las em fontes apócrifas,
como Proto-evangelho de Tiago - A história do nascimento de Maria
358
, uma vez
que os textos canônicos não fazem alusão à infância da Virgem, muito menos sobre
sua milagrosa concepção, dada à esterilidade de sua mãe.
Para celebrar esse evento, o dramaturgo não poupa palavras para transmitir a
efusão da natureza e todo seu regozijo como extensão da alegria de Joaquim e Ana,
servindo-se do discurso do Furor:
Ella (Ana) alegre, El (Joaquim) ufano, Ella piadosa,
El felice; y allí me informé de ello,
que en llegándole a hablar, pude sabello,
de aquesta cuenta, que los dos se han dado,
un común regocijo se ha seguido;
el Sol un manto azul, todo estrellado,
con recamados visos se ha vestido;
la Luna de topacios se ha calzado,
el Cielo de diamantes se ha lucido
[]
La tierra de sus galas envidiosa,
se ha vestido también de mil colores,
y siendo por diciembre, tan hermosa
está, que brota anticipadas flores:
la azucena, jazmín, clavel y rosa
al mayo le han robado los primores
dando (no sé porqué) la enhorabuena
clavel, rosa y jazmín a la azucena.
Las fuentes, con tal risa, sus cristales
ofrecen hoy, que cuando fugitivas
corren tan lindas, pues, tan liberales
que selladas son pozo de Aguas vivas.
359
357
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.449-450.
358
BIBLIA APÓCRIFA. Proto-evangelho de Tiago - A história do nascimento de Maria. Tradução,
organização e notas de Lincoln Ramos. 9ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004.
359
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.556-578.
164
Apesar desse hino de louvor, a Culpa insiste “que esa Anunciada Luz tan
prevenida,/ ha de ser en pecado concebida”
360
e se encerra o primeiro núcleo
temático com o Furor e a Culpa deixando a cena.
A segunda parte do auto se inicia com a voz do dramaturgo: Vanse, y suena
música y sale el PLACER, escuchándola”
361
. Em cena, a Música entoa versos
extraídos do livro Cânticos dos Cânticos,
362
“Tota pulcra amica mea,/ macula non est
in te”
363
, que se repetirão ao longo do auto. Em ato contínuo, surge o Prazer, que
enfatiza a incorruptibilidade de Maria e dedica-lhe mais de cem versos em seu
louvor:
Tota eres hermosa, dice,
y en ti no hay mancha ninguna,
a fe de buena fortuna,
bien dichosa, y bien felice
la canción misterio tanto,
aquella a quien este canto
se dedica, y bien perfecta,
pues el Músico y Poeta
es el Espirito Santo;
¿qué trae consigo este día,
que todo el orbe es contento;
es música todo el viento;
es todo el valle alegría;
toda la tierra, armonía;
todas las nubes, colores;
belleza, toda las flores;
risa, todos los cristales;
paz, todos los animales;
todos los cielos, favores?
364
Além do louvor a Maria, o Prazer narra fatos extraordinários sobre a infância
da Virgem e, ao final de seu discurso, entram em cena os pares, a Graça,
acompanhada do Divino Amor; a Culpa com seu Furor e a Natureza entre a Graça e
360
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.629-630.
361
CALDERÓN LA BARCA: 1952, p.121.
362
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Ct 4,7.
363
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.634-635.
364
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.655-674.
165
a Culpa “admirada, confusa, absorta y suspensa”
365
. Novamente Calderón usa
duplas de personagens para dar andamento à cena.
Após a palavra do Prazer, “Sale la GRACIA, y el DIVINO AMOR por una
porta; y por la otra la CULPA y el FUROR y la NATURALEZA un poco más adelante,
y van andando como hacia la casa de Joaquín”
366
, as cinco personagens
estabelecem um diálogo com argumentos diferentes; enquanto o Prazer e o Divino
Amor tentam reafirmar a incorruptibilidade de Maria, a Culpa e o Furor instam o
contrário, “entre la Culpa y la Gracia/ absorta estoy y suspensa”
367
, declara a
Natureza.
Vemos na cena seguinte, a Natureza entrar com a Graça na terceira porta
“dejando a la Culpa fuera,/ porque la Culpa y la Gracia entrar juntas no pudieran”.
368
A Culpa e o Furor tentam entrar à força, mas são impedidos pelo Amor Divino
munido de espada. A Culpa, inconformada afirma: “!y con mi rabia sangrienta/
morderé, serpiente altiva,/ la planta a esa niña bella”
369
, que é retrucada pelo Prazer
“pareceme que te pone/ la tal planta en la cabeza”
370
e mostra o Livro do Gênesis
como fundamento teológico: “cuando a la mujer castiga/ el Señor su inobediencia,/
que pondrá la mujer, dijo,/ las plantas en la cabeza/ de la serpiente, que entonces la
engañó.”
371
Inicia-se a terceira parte, com um embate entre a Culpa e o Prazer, este
defendendo a realeza e a divindade de Maria e aquela a considerando uma simples
criatura envolvida com as mazelas próprias da Humanidade. Aos moldes de um
torneio tipicamente barroco, o jogo teológico tem como base as palavras “divina
es...”, proferidas pelo Prazer e “humana es...” , expressadas pela Culpa, conforme
demonstramos:
365
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.771-772.
366
CALDERÓN LA BARCA: 1952, p.123.
367
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.822-823.
368
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.843-845.
369
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.871-873.
370
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.874-875.
371
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.973-975.
166
CULPA Humana es, pues se concibe
de Humana Naturaleza.
PLACER Divina es, pues que por Gracia
Dios de Culpa la reserva.
CULPA Humana es, pues que naciendo
dolor a su Madre cuesta.
PLACER Divina es, pues que
nazca, nace su belleza
bendita entre las mujeres.
CULPA Humana es, pues que la llevan
a presentar en el Templo
como a victima y ofrenda.
PLACER divina es, pues es su Vida
Integridad y Pureza.
372
Calderón expõe, nesse embate, todo o fundamento que ele possui do
Magistério da Igreja para afirmar que Maria, por ser escolhida para ser a Mãe do
Redentor, fora preservada do pecado antecipadamente, por mérito de seu Filho,
Jesus. A Culpa não aceita esse argumento, visto que o Filho de Deus veio à terra
com a missão de salvar a humanidade, cujo ponto de partida é o Batismo, que a
isenta do pecado original.
“Salen la GRACIA, la NATURALEZA, el AMOR DIVINO y los MÚSICOS
373
e
se inicia o terceiro núcleo temático, com a metáfora da cova, que é um argumento
irrefutável, do ponto de vista prático, encontrado por Calderón para convencer a
Culpa, de que Maria foi concebida sem pecado original, conforme a cena a seguir.
A alegoria do Prazer toma uma enxada e cava um buraco na terra, vem o
Furor, tropeça, cai e não pode ser retirado da cova sem ajuda. Em seguida, chega a
Culpa e o Prazer a impede de cair na vala aberta. Ambos discutem:
PLACER Ya esta puesto el silogismo.
CULPA Pues me has redimido ahora
de tan extraña caída,
he de estar toda mi vida.
372
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.206-1.218.
373
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, p.126.
167
FUROR Pues aun su piedad ignora
tu pecho, por a mí ahora
de ese hoyo me sacó;
si por él no fuera, no
pienso que me levantara
en mi vida.
CULPA - Cosa es clara,
que le he debido más yo,
pues antes de haber caído
me ha excusado de caer.
374
Com a cena apresentada, o dramaturgo evidencia que Jesus redime e
restaura a humanidade da herança de pecado, deixada por Adão e Eva. Maria,
diferentemente é preservada da mancha original, como a metáfora da cova, idéia
que será reforçada nos próximos diálogos na voz de outros personagens.
A Natureza é a primeira a entrar em cena e afirma que Maria, recebendo
Jesus em suas entranhas, “Que así le da anticipado/ este Mérito de Gracia”
375
, mas
a Culpa se ressente de que não “haya un texto solo, haya/ un evangelio, que diga/
que [ella] ha nacido preservada”
376
Quem toma a palavra é Amor Divino para afirmar a fidalguia de Maria e fazer
calar o embate:
Las asentadas Noblezas,
las ilustrísimas Casas
no tienen Ejecutorias,
la Notoriedad les basta;
y porque esta estimación
no pierda, ni esta Alabanza,
antes que le den Sentencia
en su favor publicada,
te pondrás silencio,
a que no hables en acuesta Causa.
El Amor Divino soy,
el Espíritu e inflama,
y pues es él quién asiste
a los Pontífices, calla,
no hables en esto,
en su nombre
es mi la que lo manda.
377
374
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.206-1.218.
375
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.319-1.320.
376
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.339-1.332.
377
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv. 1.401-1.407.
168
Percebemos, com a réplica do Amor Divino, que a questão não é teológica,
mas dogmática, isto é, não está nos escritos na Bíblia e sim no magistério da Igreja.
A Culpa e o Furor ficam mudos e encerra-se a terceira parte do auto.
O último bloco cênico do auto tem a anotação inicial do dramaturgo: Va a
subir por una escalera y ábrese la aparencia y baja en una tramoya la HIDALGA,
que la hará una niña, hasta ponerse encima de la Culpa, como se pinta”
378
. A Culpa,
inflamada pelo Furor, faz sua replica de forma desesperadora:
Esto no toca al Silencio,
entraré en su misma Casa,
y a sus Puertas clavaré
el Privilegio en venganza
de este rigor, mas ¿qué es esto?
Sobre mi se cae la Casa;
y aun el Cielo sobre mi
cae, que estas Esferas altas
todas sobre mi parece
que se trastornan y bajan
desasidas de sus polos,
de sus ojos desquiciadas,
deshacen, se desploman,
se quiebran se desencajan
para que ponga esta Niña
sobre mi cerviz las plantas.
379
A Menina e a Culpa discutem sobre a natureza humana e a herança do
pecado, recebida dos primeiros pais. A Criança conclui afirmando que: “Presto la
Naturaleza/ será libre y rescatada/ de tu esclavitud, que ya/ la Gracia ha vuelto a la
casa/ que fabrica para el Huésped/ que ya tan benigno aguarda”.
380
. Enquanto isso,
en un bofetón del otro carro se descubre la GRACIA”
381
que dialoga com Furor:
378
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, p. 128.
379
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.359.
380
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.401-1.07
381
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, p.129.
169
GRACIA Ya tiene hecho el aposento
prevenido antes en tantas
sombras y figuras vivas
de las dos leyes que pasan.
FUROR Pues cuando venga ese Huésped
que tú tan divino aguardas,
¿cómo la podré quitar
estos hierros de la cara?
GRACIA Lavándola en el Bautismo.
FUROR - ¿Con qué?
GRACIA Con el agua clara
de estos siete caños que
son fuentes de la Gracia.
382
Saem da Graça sete canos de água, representando os sete sacramentos. De
acordo com o Catecismo da Igreja Católica Romana:
Os sacramentos da nova lei foram instituídos por Cristo e são sete, a
saber: o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, a Penitência, a Unção
dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio. Os sete sacramentos atingem
todas as etapas e todos os momentos importantes da vida do cristão:
dão à vida de fé do cristão, origem e crescimento, cura e missão. Nisto
existe certa semelhança entre as etapas da vida natural e as da vida
espiritual.
383
A apoteose final tem como personagens Maria-menina, a Graça, a Culpa, o
Furor, a Natureza, o Prazer e a Música que discutem sobre os sete sacramentos da
Igreja Católica, como “fuente de la Gracia”
384
e, de acordo com a Culpa, “sólo el
primero/ a atemorizarme basta,/ porque es el que misterioso/ mi original culpa lava”
385
As duas últimas glosas são proferidas pela Música e pelo Prazer que rendem
homenagem a Maria e a Calderón:
382
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.408-1.419.
383
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Loyola, 1999, n
o
1210.
384
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, v. 1.419.
385
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.422-1.425.
170
MÚSICA Há dicho bien
¿Quién sabrá decirme, quién,
Por qué una sacra canción
a esta Niña, nuestro bien,
la llaman de Aarón
y no vara de Moisés?
PLACER Y sólo perdón merezca,
pus no merece alabanza
Don Pedro Calderón, pues
le pide humilde a esas plantas.
386
O que assinalamos neste auto é o fato de Calderón demonstrar que Maria é
predestinada a não ser herdeira do pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, mas, por
ser a Mãe do Filho de Deus, não foi por nenhum momento a escrava do demônio.
Seu texto, afirma categoricamente que, como consequência da redenção, logrou
preventivamente os méritos do sacrifício do lgota, antes de ser contaminada pelo
pecado, por isso foi concebida em plenitude da graça santificante. Sua imaculada
conceição foi cantada por Calderón em La Hidalga del Valle, mais de duzentos antes
da declaração do dogma em 8 de dezembro de 1854.
386
CALDERÓN DE LA BARCA: 1952, vv.1.013-1.026.
171
5. O LOUVOR A MARIA NA LITERATURA BRASILEIRA
Em virtude do papel que desempenhou na
história dos últimos vinte séculos, a Virgem
Maria, mais eu qualquer outra mulher da história
ocidental, foi tema de reflexões e discussões a
respeito do que significa ser mulher. Em
desenvolvimento desse tema, tão amplo que
muitos preferiram ignorar, as explicações sobre
Maria ou o modo como foi representada na
literatura e na pintura nos revelam muito de
como a figura feminina tem sido encarada.
387
Alfredo Bosi, na obra Dialética da Colonização, tem seu primeiro capítulo
dedicado a três palavras: “Colônia, culto, cultura”. Ao trabalhar a exegese de cada
uma, ele apresenta o culto como uma forma de devoção à memória dos
antepassados, de seus deuses que se “alheia às instâncias do poder [..] “repropõe o
nexo do indivíduo com a totalidade espiritual ou cômica”
388
O dicionário Houaiss registra culto, como “reverência respeitosa a uma
divindade (Deus, deuses, santos, ou qualquer ente, ou qualquer elemento da
natureza divinizado)”
389
. Qualquer uma das acepções apresentadas reflete a
veneração que os brasileiros têm para com a Virgem Maria. O Catecismo da Igreja
Católica aponta:
A piedade da Igreja para com a Santíssima Virgem é intrínseca ao
culto cristão. A Santíssima Virgem „legitimamente honrada com um
culto especial pela Igreja. Com efeito, desde remotíssimos tempos, a
bem-aventurada Virgem é venerada sob o título de Mãe de Deus, sob
cuja proteção os fiéis se refugiam suplicantes em todos os seus
perigos e necessidades. [...] Este culto, [...] embora inteiramente
singular, difere essencialmente do culto de adoração que se presta ao
Verbo encarnado e igualmente ao Pai e ao Espírito Santo, mas o
favorece poderosamente; este culto encontra sua expressão nas
festas litúrgicas dedicadas à Mãe de Deus e na oração mariana, tal
como o Santo Rosário, „resumo de todo o Evangelho‟.
390
387
PELIKAN: 2000, p. 296
388
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.19.
389
Cf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
390
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
o
971.
172
O culto a Maria nasce juntamente com a evangelização brasileira. Na
bagagem dos primeiros colonizadores, chegam também a reverência respeitosa, o
amor e a fé para com a Mãe de Deus. Nilza Megale
391
, se reportando às imagens de
Maria no Renascimento, faz referência sobre as primeiras devoções marianas no
Brasil:
No Renascimento as imagens da Mãe Santíssima alcançaram o seu
maior esplendor, devido às magníficas esculturas e pinturas de gênios,
como Miguelangelo, Leonardo da Vinci, Rafael, Ticiano e outros
grandes artistas que retrataram diversos episódios da vida de Maria. A
arte renascentista atingira o seu apogeu na Europa, quando os
portugueses descobriram o Brasil. Várias efígies da Mãe de Deus
inspiradas ou copiadas das obras de seus mestres chegaram ao
nosso país trazidas por marinheiros ou colonizadores lusitanos, que
espalharam o culto das invocações em moda ou das padroeiras de
suas províncias ou cidades natais. Além da Senhora da Esperança
que veio na nau de Pedro Álvares Cabral e da Senhora da Glória, que
consta ter chegado à Terra de Santa Cruz em 1503, muitas outras
como as do Ó, do Monte, da Luz, da Graça, da Escada, ornamentaram
os altares dos mais antigos templos coloniais
392
.
Um estudo, patrocinado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e
Artístico de Minas Gerais, demonstra a variedade de imagens e a profusão de
oragos dedicados à Maria como forma de “gratidão dos colonizadores pelo sucesso
da viagem e admiração pela descoberta da nova terra”
393
. Aponta também:
O grande culto à Virgem Maria no Brasil, talvez se explique pela nossa
condição de colônia, onde os portugueses que aqui viviam se sentiam
saudosos da pátria-mãe, e os aqui nascidos também dependiam de
decisões tomadas em Portugal que regiam diretamente a sua vida.
Esta situação tutelar pode ter contribuído de forma significativa para o
excessivo culto brasileiro à Virgem, enquanto que na Europa o Cristo
era bem mais cultuado.
394
391
Nilza Botelho Megale é historiadora, museóloga, folclorista e professora de História da Arte,
Estética e Folclore. Doutorou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Poços
de Caldas.
392
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. edição. Petrópolis (RJ): Vozes,
2001, p. 17,18.
393
IEPHA [Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais]. Iconografia da
Virgem Maria. Belo Horizonte: IEPHA, 1982, p.39.
394
IEPHA:1982, p.49.
173
A devoção à Virgem Imaculada, por exemplo, foi uma das mais difundidas
entre os imigrantes portugueses que a implantaram na nova terra, especialmente
após D. João IV, primeiro rei da dinastia dos Bragança, declará-la, em 1646, a
padroeira de seus reinos, ou seja, “Padroeira de Portugal e das Colônias Além
Mar”
395
. Essa homenagem foi-lhe imputada pela restauração da coroa portuguesa
que estivera sob o jugo espanhol (1580-1640). Desta forma, o Brasil iniciou sua
colonização também sob a proteção da Virgem concebida sem pecado:
[...] a primeira imagem da Virgem da Conceição chegou com a
expedição de Pedro Álvares de Cabral. Mais tarde, os frades
franciscanos foram também responsáveis pela expansão desta
devoção que se fixou do norte ao sul do país. Considerada protetora
do Brasil durante o período colonial, Nossa Senhora da Conceição foi
proclamada por D.Pedro I, padroeira do Imrio, sendo substituída no
início dos tempos republicanos por Nossa Senhora Aparecida, cuja
imagem representa a Virgem da Conceição, e que havia sido
encontrada nas águas do Rio Paraíba do Sul, recebendo aí o nome de
Aparecida.
396
Segundo vários estudos, dentre eles o de Júlio João Brustoloni
397
, a imagem
da padroeira do Império, encontrada em outubro de 1717, tem autoria de um
discípulo de frei Agostinho da Piedade, Agostinho de Jesus, também monge
beneditino que a teria esculpido, por volta de 1650, nos mosteiros de São Paulo, ou
de Santana do Parnaíba. Essa representação, contudo, pelas circunstâncias de seu
aparecimento e o culto a ela dedicado, recebeu a denominação de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida.
Na Colônia, incialmente, e, posteriormente, no Estado brasileiro, a
veneração a Maria não se restringe ao campo religioso, mas se estende a outras
artes brasileiras, dentre elas estão a literatura e as artes plásticas. Como
verificaremos nas obras literárias de José de Anchieta, Gregório de Matos e Max
Carphentier.
395
IEPHA:1982, p.49, p.18.
396
IEPHA:1982, p.49, p.15.
397
BRUSTOLONI, Júlio João. Aparecida. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore. Dicionário de
Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 105-113.
174
5.1. Anchieta e a pedagogia do amor
Mãe piedosa, mansa clementíssima,
este nome condiz mais dignamente
à tua glória...
Mãe da paz, por seu meio,
de inimigos dos céus pelo pecado,
o homem se tornou Deus amigo.
Mãe da pureza, Mãe do belo amor,
Mãe da justiça inteira!
És Mãe e Virgem, Mãe da dulcíssima vida,
digamos tudo: tu és a Mãe de Deus!
398
José de Anchieta distingue-se, na literatura brasileira, como um escritor que
teve sua obra voltada para a catequese dos nativos. Ele escreveu poesias
edificantes, peças de teatro sempre com zelo apostólico com vistas à expansão da
fé e conversão dos gentios. Nascido em Tenerife, ilha das Canárias em 1534,
participa, aos dezenove anos, da armada do segundo governador-geral do Brasil,
Duarte da Costa (1553), e chega a este território na condição de noviço da
Companhia de Jesus.
José de Anchieta integrou-se à vida brasileira de tal modo que foi partícipe
da História do Brasil, no primeiro século de colonização, quando mediou a conflitos,
ajudou a fundar cidades e buscou acomodar, da melhor forma, o indígena e o
colonizador para uma convivência amistosa. Ele procurou ser um missionário muito
próximo de sua gente, a partir do conhecimento da língua do grupo. “Pode-se, pois,
afirmar, com certo entusiasmo, que Anchieta foi o primeiro professor, o primeiro
historiador, o primeiro diplomata e o primeiro literato que o Brasil conheceu”.
399
A obra, em prosa do religioso, compreende cartas, relatórios e textos
informativos de diferentes matizes dando conta de seu trabalho de evangelização.
Estes constituem uma importante documentação religiosa, histórica e antropológica
do início da colonização do Brasil. Somado a esses aspectos, em 1595, publica a
398
ANCHIETA: 1996, p. 195.
399
PINTO, Edith Pimentel. A poesia de José de Anchieta. In: CASTRO, Silvio (dir.) História da
Literatura Brasileira. Vol. I. Lisboa (Portugal), Alfa, 1999, p. 143.
175
Arte de grammatica da língua mais usada na costa do Brasil na qual normatiza a
língua tupi-guarani para fins pedagógicos.
Do ponto de vista literário, o conjunto da obra de José molda-se na tradição
medieval ibérica, embora o tempo histórico estivesse localizado no Renascimento.
São autos e poemas cunhados em diferentes idiomas e concebidos em uma linha de
doutrinação cristã católica. A cada público receptor, o jesuíta escolhia a melhor
modalidade de expressão, como aponta Edith Pinto :
A lírica em língua tupi visava, sobretudo, os meninos indígenas, pelos
quais os textos eram dançados e cantados com acompanhamento
musical. Seu conteúdo procurava incutir valores cristãos, assim como
combater aspectos da cultura local, considerados reprováveis pelos
jesuítas. Exaltava, por exemplo, as figuras do Menino Jesus e da
Virgem Maria, santificando a criança e dignificando a mulher, figuras
ambas valorizadas pelos indígenas.
400
A historiografia literária brasileira dedica parte de seu estudo à obra de José
de Anchieta. Cada uma, a seu modo, apresenta características importantes do
religioso; algumas buscam centrar os estudos nos aspectos informativos e históricos,
outras analisam a estrutura literária de seus textos.
Na Literatura Brasileira: origens e unidade, José Aderaldo Castello
demonstra a importância da obra de José de Anchieta como o ponto de partida para
a literatura do Brasil. Ele afirma que o jesusíta, além de missionário, era um
humanista preocupado com a condição do homem e respeitoso quanto à alteridade
do nativo. Sua obra reflete esse procedimento, pois cultivou formas literárias
simples, numa linguagem acessível à comunidade na qual ele se encontrava.
Provavelmente ele pressupunha a dificuldade de compreensão tanto dos
catecúmenos indígenas, quanto do colonizador recém-chegado. Em um dos trechos
de sua análise, Aderaldo Castello aglutina os valores pertinentes à obra e à vida de
José de Anchieta:
Figura síntese do nosso século XVI [...] escreveu bastante: teatro em
verso e formas livres e dialogadas de declamação instrumento
pedagógico da catequese; poesia épica; poesia religiosa. Jesuíta e
400
PINTO: 1999, p.153.
176
apóstolo, humanista, cronista, poeta e lingüista, a obra em prosa e
verso de Anchieta é paralelamente instrumento e reflexo dos objetivos
da cristianização do gentio, propostos pelo expansionismo decorrente
da descoberta e conquistas portuguesas que culminaram no século
XVI.
401
Em qualquer ensaio sobre José de Anchieta, não se pode negligenciar sua
ação missionária aàs últimas consequências, pois soube como ninguém, dedicar
sua vida em favor dos nativos. Além de aprender-lhes a língua, ele conheceu-lhes o
universo mental, buscou-lhes o sabor das comidas e bebidas e a terapêutica de
suas plantas. José de Anchieta, acima de tudo, dedicou-lhes um amor fraternal sem
medidas, recebendo, merecidamente, o título de “Apóstolo do Brasil”, antonomásia
antiga que desconhecemos quem a cunhou.
5.1.1. Os autos catequéticos
Alegrai-vos, filhos meus,
na santa graça de Deus,
pois que dos céus eu desci,
para junto a vós estar
e sempre vos amparar
dos males que há por aqui.
Iluminando esta aldeia
junto de vós estarei,
por nada me afastarei
pois a isto me nomeia
Deus, Nosso Senhor e Rei!
402
Na implantação do processo missionário, José de Anchieta utilizou os autos
como instrumento de evangelização. Ambientados no cotidiano das aldeias, essas
modalidades cênicas tematizam, de um modo geral, a dicotomia do Bem e do Mal,
que fora assunto difundido durante a Idade Média e que será retomado durante o
Barroco, com as obras Auto da pregação universal (1570), Auto de São Sebastião
401
CASTELLO, José Aderaldo. Literatura Brasileira: Origens e Unidade. (1500-1960) Vol. I, São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2004, p.63/64.
402
ANCHIETA, José (Pe.). Réplica do Anjo. In: Auto representado na Festa de São Lourenço.
Adaptação de Walmir Ayala. Col. Dramaturgia Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço Nacional do Teatro,
1973, p.19.
177
(1584) e Auto representado na festa de São Lourenço (1590), Jode Anchieta
“valia-se muitíssimo das figuras medianeiras entre o fiel e a divindade, como anjos
bons e santos, os quais afinal são almas de mortos que intercedem pelos vivos”
403
.
As figuras de Deus, de Jesus, da Virgem Maria e as alegorias das Virtudes
se destacam como representação do Bem, enquanto o Mal é alegorizado pelo
Demônio e pelos Maus Espíritos. Nesses autos, o Bem deve ser buscado
incessantemente como forma de salvação da alma que é a sua libertação. O Mal,
diferentemente, deve ser abominado, pois leva à condenação eterna, no inferno.
Edith Pimentel Pinto sintetiza a questão maniqueísta no teatro religioso de Anchieta:
Caracterizando-se (no teatro) claramente como um intelectual
participante, Anchieta procura incutir, no público receptor, certas
noções fundamentais em sua linha de doutrinação, a saber: o governo
está baseando numa “lei natural” e lhe cabe, portanto, discernir o bem
e o mal; o poder temporal representa o poder divino, constituindo,
assim, qualquer rebeldia política uma ofensa a Deus; a ingratidão, uma
das formas dessa rebeldia, nada mais é que a encarnação do Diabo,
cujo assédio aos homens, apesar de constante, acaba sempre
sucumbindo ao poder espiritual, incansável em sua força combativa.
404
José de Anchieta utiliza o latim, castelhano, português e língua geral (tupi-
guarani), para melhor expressar o tema e conformar a peça segundo o público
espectador. A utilização do castelhano nos autos do missionário parece descabida
para uma platéia essencialmente portuguesa e indígena, contudo esse idioma era
considerado língua de prestígio, na época. Por outro lado, no período compreendido
entre 1580 e 1640, o uso do espanhol em Portugal e nas suas Colônias era uma
forma de demonstrar a fidelidade ao governo de Filipe II. Parte da vida de José de
Anchieta está inserida neste processo histórico, visto que chega ao Brasil em 1555 e
falece em 1597.
A despeito da dificuldade em transpor linguisticamente conceitos abstratos
de , virtude, lei, bem como de outros que, embora concretos, exigiam certo grau
de abstração do nativo, como missa e eucaristia, percebemos nos textos levados à
403
BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: ________Dialética da Colonização.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.72.
404
PINTO, Edith Pimentel. A poesia de José de Anchieta. In: CASTRO, Silvio (dir.). História da
Literatura Brasileira Vol. I. Lisboa (Portugal), Alfa, 1999, p.140.
178
cena um grande esforço de José de Anchieta para encontrar a forma prática e
coerente de minimizar os obstáculos, dentre elas “enxertar o vocábulo português no
tronco do idioma nativo”
405
, conforme explicita Bosi:
O mais comum é a busca de alguma homologia entre as duas línguas
com resultados de valor desigual: Bispo é Pai-Guaçu, quer dizer, pajé
maior. Nossa Senhora às vezes aparece sob o nome de Tupansy, mãe
de Tupã. O reino de Deus é Tupãretama, terra de Tupã. Igreja,
coerentemente é tupãóka, casa de Tupã. Alma é anga, que vale tanto
para toda sombra quanto para o espírito dos antepassados. Demônio
é anhangá, espírito errante e perigoso. Para a figura bíblico-cristã do
anjo Anchieta cunha o vocábulo karaibebê, profeta voador... A nova
representação do sagrado assim produzida não era nem a teologia
cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma
espécie de mitologia paralela que a situação colonial tornara
possível.
406
Vejamos parte de uma cena do Auto de São Lourenço, cujos ensinamentos
se referem à catequese católica, às leis morais e a notícias históricas. Inicialmente, a
voz do dramaturgo põe, em cena, algumas personagens do auto:
Entram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados
aos quais, resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da
Guarda, livrando a aldeia e pretendendo os tentadores cujos
nomes são: Guaixará, que é rei; Aimbirê e Saraivada, seus
criados.
407
Guaixará, chefe dos demônios, entra em cena, faz suas observações acerca
do que lhe aflige. De um lado, seguir as suas escolhas com liberdade, mesmo que
sejam ações nefastas, por outro, a vivência das virtudes pregadas pelos jesuítas:
405
BOSI: 1992, p.65.
406
BOSI: 1992, p.65.
407
ANCHIETA, José (Pe.). Auto representado na Festa de São Lourenço. Adaptação de Walmir
Ayala. Col. Dramaturgia Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço Nacional do Teatro, 1973, p.2.
179
GUAIXARÁ
Esta virtude estrangeira
me irrita sobremaneira.
Quem a teria trazido,
com seus hábitos polidos
estragando a terra inteira?
Só eu
permaneço nesta aldeira
como chefe guardião.
Minha lei é a inspiração
que lhe dou, daqui vou longe
visitar outro torrão.
[...]
Meu sistema é o bem viver.
Que não seja constrangido
o prazer, nem abolido.
Quero as tabas acender
com meu fogo preferido.
408
Guaixará discorre sobre várias práticas, consideradas amorais, pelos
jesuítas, dentre elas, ele afirma: “Andar matando de fúria,/ amancebar-se, comer/ um
ao outro, e ainda ser/ espião, prender Tapuia,/ desonesto a honra perder”
409
e
conclui sua apresentação:
Para isso com os índios convivi.
Vêm os tais padres agora
com regras foram de hora
prá que duvidem de mim.
Lei de Deus que não vigora.
Pois aqui
tem meu ajudante-mor,
diabo bem requeimado,
meu bom colaborador:
grande Aimberê, perversor
dos homens, regimentado.
410
408
ANCHIETA: 1973, p.2
409
ANCHIETA: 1973, p.3
410
ANCHIETA: 1973, p.3
180
Neste auto, as lições morais, os ensinamentos das virtudes, a experiência
catequética são apresentados nas alegorias do TEMOR A DEUS, do AMOR A
DEUS; na conduta virtuosa de SÃO SEBASTIÃO, como padroeiro do Rio de Janeiro;
no martírio de SÃO LOURENÇO, como padroeiro da aldeia de São Lourenço, em
Niterói (RJ) e na figura do ANJO, como emissário de Deus.
Em uma das cenas, na réplica do Anjo, é possível perceber as observações
apontadas. Um aspecto que deve ser ressaltado é José de Anchieta demonstrar a
universalidade da salvação, para santos e índios, desde que o homem busque este
ideal abandonando os velhos vícios e praticando as virtudes a partir do amor a
Deus:
ANJO
Alegrai-vos, filhos meus,
na santa graça de Deus,
pois que dos céus eu desci,
para junto a vós estar
e sempre vos amparar
dos males que há por aqui.
Iluminando esta aldeia
junto de vós estarei,
por nada me afastarei
pois a isto me nomeia
Deus, Nosso Senhor e Rei!
Ele que a cada um de vós
um anjo seu destinou.
Que não vos deixe mais sós,
e ao mando de sua voz
os demônios expulsou.
Também
São Lourenço o virtuoso,
Servo de Nosso Senhor,
vos livra com muito amor
terras e almas, extremoso,
do demônio enganador.
Também São Sebastião
valente santo soldado,
que aos tamoios rebelados
deu outrora uma lição
hoje está do vosso lado
E mais Paranapucu,
Jacutinga, Morói,
181
Sarigueia, Guiriri,
Pindoba, Pariguaçu,
Curuçá, Miapeí.
[...]
Os franceses seus amigos,
inultimente trouxeram
armas. Por nós combateram
Lourenço, jamais vencido,
e São Sebastião flecheiro.
[...]
Quando o demônio ameaçar
vossas almas, vós vereis
com que força hão de zelar,
Santos e índios sereis
pessoas de um mesmo lar.
Tentai velhos vícios extirpar,
e as maldades cá da terra
evitai, bebida e guerra,
adultério, repudiai
tudo o que o instinto encerra.
Amai vosso Criador
cuja lei pura e isenta
São Lourenço representa,
Engrandecei ao Senhor
que de bens vos acrescenta.
411
Os autos não foram tão somente a forma de catequização mais agradável e
mais interessante para um grupo social que desconhecia valores, regras, tradições,
dogmas católicos e a língua portuguesa. Eles se constituíram na maneira mais
eficaz de tratar assuntos com implicações na fé e na ideologia autóctone. Ao usar as
várias linguagens que compõem o teatro (corpo, voz, indumentária, coreografia,
cenário...) os autos demonstraram ser importante exemplo de pedagogia para a
“expansão da fé”, meta amplamente perseguida no século XVI, que Pe. Anchieta
soube muito bem alcançar entre nossa gente.
5.1.2. A lírica a serviço do sagrado
Ergue-te, Mãe de Deus
Volta a carinhosa face,
que meu cansado olhar se encontre com o teu!
Mas que digo ? Eis que me ouves... mas aí!
411
ANCHIETA: 1973, p.19, 20.
182
A língua cola-se à garganta, a mente pasma,
o peito gela, os lábios emudecem.
Não sei o que pedir, mas tudo peço, ó Mãe,
sim ó Mãe, minha esperança,
vida, amor e glória!
412
A obra lírica de José de Anchieta permaneceu dispersa e inédita durante
muitos séculos, tendo um ou outro poema se tornado conhecido. Seus textos
poéticos foram organizados em uma edição uniforme e completa, somente em 1954,
recebendo o título de Poesias. Ressaltamos que essa iniciativa fez parte dos
eventos comemorativos do IV Centenário de São Paulo, cidade que o religioso
ajudou a fundar em 25 de janeiro de 1555, a partir do colégio de Piratininga.
Poemas como Do Santíssimo Sacramento e A Santa Inês demonstram como
José de Anchieta ainda utilizava as medidas velhas do período medieval -
redondilha maior e redondilha menor. Naquele período, o metro frequentado na
Europa era o decassílabo, mais racional e mais distante do gosto popular.
Do Santíssimo Sacramento é um poema constituído por quarenta e sete
quadras de sete sílabas poéticas, com visível intenção pedagógica. Na composição
dos versos, percebemos o cuidado apostólico, a fé e a fundamentação teológica do
autor. Nas três primeiras estrofes do poema, é possível encontrar a utilização de
recursos poéticos para ensinar valores dogmáticos do catolicismo, como
observemos na estrofe de abertura, a seguir:
Ó que pão, ó que comida,
ó divino manjar
se nos dá no santo altar
cada dia!
413
Nessa primeira estrofe, o eu-poemático afirma que “o pão” se transforma em
“divino manjar”, assim não é mais pão e sim alimento espiritual. Em seguida, ele usa
a metonímia “santo altar” para demonstrar que o pão se torna divino durante o
processo de transubstanciação, na missa. Esse processo foi legitimado no Concílio
de Trento, cujo texto é retomado pelo Catecismo Católico:
412
ANCHIETA: 1996, p. 195.
413
ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de M. de L. Martins. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989, p.391.
183
[...] pela consagração do pão e do vinho opera-se mudança de toda a
substância do pão na substância do Corpo de Cristo Nosso Senhor e
de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue; esta
mudança, a Igreja católica denominou-a com acerto e exatidão
transubstanciação.
414
A segunda estrofe apresenta outros pontos importantes da religião católica:
Jesus (Deus-filho), nascido da Virgem Maria, foi enviado por Deus-Pai para a
salvação da humanidade, através da morte de cruz:
Filho da Virgem Maria,
que Deus-Padre cá mandou
e por nós na cruz passou
crua morte,
415
Cada verso contém uma afirmação do Credo, profissão da fé católica: “Creio
em Deus-Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra e em Jesus Cristo, seu único
Filho, Nosso Senhor [...] Nasceu da Virgem Maria [...] foi crucificado, morto e
sepultado [...]
416
A terceira estrofe resume o memorial da Paixão de Cristo - antes de morrer,
o Filho de Deus deixa um alimento espiritual, seu corpo e sangue transmudado no
sacramento da Eucaristia:
e para que nos conforte
se deixou no sacramento
para dar-nos, com aumento,
sua graça, [...]
417
Esse memorial está registrado nos quatro evangélhos canônicos:
Quando chegou a hora, ele se pôs à mesa com seus apóstolos e
disse-lhes: „Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes
de sofrer; pois eu vos digo que a comerei até que ela se cumpra no
Reino de Deus‟
414
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
o
1377.
415
ANCHIETA: 1989, p. 391.
416
FC: 2003, n
o
0.502.
417
ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de M. de L. Martins. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989, p.391.
184
E tomou um pão, deu graças, partiu e deu-o a eles, dizendo. „Isto é
meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória‟. E,
depois de comer, fez o mesmo com a taça, dizendo: „Essa taça é a
Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós‟.
418
A cada celebração litúrgica da missa esse mistério de fé se atualiza e se
renova. Assim o poema Do Santíssimo Sacramento se transforma em um canto
religioso, de objetivo catequético-teológico, cujo testemunho de fé e sentimento
cristão católico de seu autor se afloram em cada verso.
José de Anchieta também escreveu o poema A Santa Inês, que figura entre
suas obras lírico-sacras mais conhecidas, além do importante poema épico, escrito
em latim De Gesti Mendi de Saa, publicado em 1563. A obra, Os Feitos de Mem de
Sá, narra epicamente os trabalhos realizados pelo Terceiro Governador Geral do
Brasil, no período de 1558/1572, dentre os quais se destacam a fundação da cidade
do Rio de Janeiro, em 01.03.1565 e a expulsão dos franceses da baía da
Guanabara em 1567. Publicada em 1992, a edição crítica do poema, registra na
folha de rosto:
En el V Centenario de la Evangelización de America, los Jesuítas del
Sur de España quieren, con la edición de este libro honrar la Santa
Memoria del Misionero Tinerfeño Beato Jose de Anchieta, Apostol del
Brasil.
419
Ressaltamos que, além de dramaturgo e poeta, José de Anchieta foi
beatificado por João Paulo II, durante sua estada no Brasil, no domingo, dia 22 de
junho de 1980. O cognome Apóstolo do Brasil fortalece o papel desempenhado, por
José de Anchieta, na colonização brasileira. Vale, ainda, registrar o início do
Prefácio da referida edição, que apresenta uma descoberta importante para a
literatura ibero-americana:
Este libro contiene el Primer Poema Epico de America.
El primer poema epico de America no es la La Araucana de Alonso de
Ercilla, como dicen los libros de texto. La primera parte de La
Araucana se publicó en Madrid el año de 1569. La obra terminó de
418
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Lc. 22, 14-20.
419
FORNELL LOMBARDO, José Maria. El primer poema Épico de America. Granada, 1992.
185
imprimirse 20 año después en 1589. El poema épico latino De Gesti
Mendi de Saa fue publicado en Coimbra en 1563, seis años que la
primera parte de La Araucana.
420
No conjunto de poemas religiosos de José de Anchieta, um se destaca pelas
circunstâncias de sua elaboração, pelo conteúdo expresso e pela conexão histórica
referente ao culto à Virgem Maria, nos primeiros séculos de colonização: trata-se do
poema De Beata Virgine Dei Matre Maria , sobre cujo teor assim se pronuncia
Alfredo Bosi:
Anchieta, homem culto, educado em colégios da Companhia na
Coimbra humanística dos meados do século XVI, é também destro
versejador latino no poema De Beata Virgine Dei Matre Maria,
composto em 1563, na praia de Iperoig, onde se encontrava refém dos
Tamoios. A obra, que narra a vida e as glórias de Nossa Senhora,
apesar de vazada em corretos dísticos ovidianos, está impregnada da
linguagem bíblica e litúrgica, e de glosas de Santo Ambrósio e São
Bernardo. Trata-se de um livro de devoção marial a que o verso latino
deu apenas uma pátina renascentista.
421
Tamoio é uma denominação dada pelos portugueses a Tamuya, na língua
dos tupinambás, que significa o mais velho, o avô, o mais antigo. Na História do
Brasil, a Confederação dos Tamoios ou Guerra dos Tamoios
422
foi uma revolta
ocorrida entre 1554 e 1567, liderada pela nação indígena tupinambá, que envolveu
várias etnias do litoral norte paulista e sul fluminense: guaianases, goitacases,
aimorés, temiminós, além de portugueses e franceses.
Ela tem início com a escravização de indígenas pelo governador da
capitania de São Vicente, Brás Cubas, para fins de colonização. João Ramalho,
companheiro do governador, casa-se com Bartira, filha do cacique Tibiriçá, chefe
dos guaianases que, pela prática indígena, passa a ser membro da tribo.
Os guaianases, com a colaboração dos portugueses, se lançam contra os
tupinambás, aprisionam o cacique Cairuçu com um grande número de indígenas que
420
FORNELL LOMBARDO, José Maria. Folha de rosto. In: El primer poema Épico de America.
Granada, 1992.
421
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 36ª edição. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 36.
422
QUINTILIANO, Aylton. A Guerra dos Tamoios. Rio de Janeiro: Reper, 1970.
186
são levados como escravos para São Vicente. O chefe tupinambá morre em
cativeiro por maus tratos, assume o comando seu filho Aimberé que invade as terras
dos portugueses e realiza uma fuga em massa. Após esse episódio, contínua luta
envolve nativos e portugueses.
Além desses fatos, para garantir sua permanência no Rio de Janeiro, os
franceses fornecem armas aos tupinambás, tornando a luta mais renhida. Pe.
Anchieta relata alguns episódios em carta de 08.01.1565, enviada ao Diretor Geral,
Pe. Diogo Laínes, em Roma:
Em cartas passadas, toquei algo das grandes opressões que dão a
esta terra uns nossos inimigos chamados tamuya [tamoios], do Rio de
Janeiro, levando continuamente os escravos, mulheres e filhos dos
cristãos, matando-os e comendo-os. E isto sem cessar, uns idos,
outros vindos por mar e por terra. Nem bastam serras, nem montanhas
mui ásperas, nem tormentas mui graves, para lhes impedir seu cruel
ofício, sem se poder, ou por melhor dizer, sem que se queira resistir-
lhes.
De maneira que parece que a Divina Justiça tem atadas as mãos aos
portugueses, para que não se defendam, e permite que lhes venham
estes castigos, assim por outros seus pecados, como máxime pelas
muitas sem-razões que têm feito a esta nação, que dantes eram
nossos amigos, salteando-os, cativando-os muitas vezes com muitas
mentiras e enganos.
423
Preocupados com as acirradas guerras entre as tribos e, na tentativa de
realizar uma trégua entre elas, Pe. Manuel de Nóbrega propõe ser levado como
refém em troca de alguns cativos até a negociação de paz. Assim, ele e Pe. José de
Anchieta partem de São Vicente, em 19 de abril de 1563, para a árdua missão que
poderia ser a última.
Várias ocorrências surgem durante o período em que os religiosos se
encontram reféns dos nativos e, em 21 de junho, Nóbrega retorna a São Vicente
para auxiliar os portugueses nas negociações:
Estavam havia dois meses em Iperoig, quando o governo provincial de
S. Vicente os mandou chamar para conferir com eles antes de se
ajustares pazes finais com os Tamoios: mas estes não julgaram
prudente deixar ir ambos os reféns, e concordando-se que ficaria
Anchieta. A continência destes padres, quando segundo o costume se
423
ANCHIETA, Pe. José de. Cartas Correspondência ativa e passiva. ed. Pesquisa, introdução e
notas de Pe. Helio Abranches Viotti, S.J. São Paulo: Loyola em convênio com Vice-Postulação da
Causa de Canonização do Beato José de Anchieta: 1984, p. 210.
187
lhes ofereciam mulheres, muito maravilhara os seus hóspedes, que
perguntaram a Nóbrega como era que parecia aborrecê-lo o que todos
os homens ardentemente desejavam. Tirou ele de sob o hábito umas
disciplinas, e mostrando-as, disse que, atormentando a carne, a
mantinha em sujeição.
424
Anchieta permanece entre os tamoios até 14 de setembro de 1563. Nos
quase cinco meses de cativeiro, entre a oração e o sobressalto de morte, o religioso
elabora o poema Beata Virgine Matre Dei Maria, como voto de permanecer na
castidade, diante dos constantes perigos de perdê-la, conforme o relato de Southey:
Nóbrega já velho e alquebrado de contínuo trabalho; mas Anchieta, na
flor da virilidade, vendo-se assim deixado e sem um bordão a que
arrimar-se, se lhe escorregasse o pé, fez voto à Virgem de compor-lhe
um poema sobre a vida dela na esperança de manter a própria pureza,
tendo o pensamento sempre fixo na mais pura das mulheres. Não era
ligeiro cometimento cantar os cânticos de Sião em terra estranha;
papel não o tinha, faltavam-lhe penas, tinta não a havia; assim
passeando pela praia ia fazendo os seus versos, e escrevendo-os na
areia, e dia, por dia os entregava à memória.
425
A dedicatória do poema é realizada quando o missionário está fora de perigo
e demonstra sua fé a quem lhe valeu nas horas de martírio:
Eis os versos que, outrora, ó Mãe Santíssima,
te prometi em voto,
vendo-me cercado de feros inimigos.
Enquanto, entre os Tamoios conjurados,
pobre refém, tratava as suspiradas pazes,
tua graça me acolheu em teu materno manto
e teu véu me velou intactos corpo e alma.
426
424
SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Tradução Luís Joaquim de Oliveira e Castro. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1981, p.213.
425
SOUTHEY: 1981, p.213.
426
ANCHIETA: 1996, p. 340.
188
Poema da Virgem, de Benedito Calixto
427
Entre outros aspectos, o Beata Virgine destoa do conjunto de seus textos
líricos, pela singularidade da estrutura formal, bem como pela métrica dos poemas.
Ele é composto 5.732 versos em latim, distribuídos em cinco cantos referentes à:
Infância de Maria, Encarnação do Verbo, Natividade de Jesus, Paixão e Glória do
Filho e da Mãe.
Neste poema, José de Anchieta abandona os versos pentassílabos e
heptassílabos de outras composições Do Santíssimo Sacramento e A Santa Inês-
e assume os dísticos empregados por Ovídio, união do hexâmetro e pentâmetro
clássico
428
. É certo que a tradução empobrece as corretas cesuras originais e a
melopeia fica alterada.
427
Benedito Calixto de Jesus (1853-1927), pintor brasileiro, considerado um dos mais importantes
do final do século XIX e início do século XX; produziu cerca de 700 obras de temática religiosa,
paisagens urbanas e rurais, se destacando do conjunto as dedicadas à cidade de Santos e seus
arredores. A pintura o Poema da Virgem, de 1900?, é uma reprodução extraída do CD-Rom Benedito
Calixto 150 anos, editado em 2003, pela Fundação Pinacoteca Benedito Calixto; a original se
encontra no Pátio do Colégio, na cidade de São Paulo.
428
Na poética clássica o hexâmetro corresponde ao verso de seis pés, enquanto os pentâmetros
cinco. Os versos hexâmetros têm os quatro primeiros pés formados por uma sílaba longa e duas
breves (tilo) ou por duas longas (espondeu); no quinto pé, o hexâmetro é dátilo e no sexto, é
espondeu ou troqueu.
189
Pe. Armando Cardoso S.J. tradutor da obra, aponta dois casos em que o
pentâmetro termina em vocábulos trissílabos. Utilizamos os mesmos exemplos para
demonstrar a alteração do ritmo na transposição do latim para o português: Laudibus
immodicis magnificer modica ? foi traduzido por “Glória tão imensa a mim tão
pequenina?”
429
e Plus tibi fis vilis, plus tibi fis humilis ! recebeu a tradução de “Tua
virtude cresce, dia a dia, haurindo novas forças,/ quanto mais te abates e aniquilas a
teus olhos”
430
. Assim, o recurso melódico empregado por Pe. Anchieta, que enfatiza
a musicalidade do canto, fica obscurecido pela tradução.
O Canto I narra a Infância de Maria e os episódios referentes a esse
período. Ressaltamos que os textos canônicos não apresentam os fatos com os
quais o religioso elabora seus versos. O exórdio introdutório composto por vinte e
quatro versos apresenta uma série de indagações sobre a impossibilidade do autor
louvar a Virgem Maria. A primeira delas diz respeito a ele próprio, às suas limitações,
às suas dúvidas, mas, ao mesmo tempo, o jesuíta demonstra que a razão e a
emoção se juntam para instigá-lo:
Cantar ou calar ?
Mãe Santíssima de Jesus, os teus louvores
hei de os cantar ou hei de os calar?
A mente alvoroçada
sente-se impelida pelo aguilhão do amor
a oferecer a sua rainha uns versos...
431
O segundo impedimento para o poeta é a sua condição de pecador: “Como
ousará mundana língua enaltecer/ a que encerrou no seio o Onipontente?”
432
.
Contudo, a singeleza dos sentimentos e a piedade cristã impulsionam o religioso a
concluir o exórdio com os versos: “Sê tu, com o teu Menino, /o único prazer, anseio,
amor do coração”.
433
Essa expressão de amor a Maria e a Jesus põe o leitor, em
429
ANCHIETA: 1996, p. 27.
430
ANCHIETA: 1996, p. 27.
431
ANCHIETA: 1996, p.57.
432
ANCHIETA: 1996, p.57.
433
ANCHIETA: 1996, p, 57.
190
consonância, com uma gama de manifestações filial e fraternal do poeta e seu texto
lírico.
O poema de abertura do Canto I é dedicado à Maria como Mãe e Virgem,
cujos versos iniciais são paráfrases de versículos extraídos do Livro dos Provérbios
e se referem à Sabedoria Criadora: “Iaweh me criou, primícias de sua obra,/ de seus
feitos mais antigos./ Desde a eternidade fui estabelecida,/ desde o princípio, antes
da origem da terra”
434
. José de Anchieta direciona estes versículos à figura de Maria
e afirma que antes de seu nascimento ela era concebida na mente de Deus.
Conforme explica a Bíblia de Jerusalém:
A doutrina sobre a Sabedoria, assim esboçada no AT, será retomada
pelo NT, que realizará progresso novo e decisivo ao aplicá-lo à pessoa
de Cristo. Jesus é designado como Sabedoria e sabedoria de Deus;
como Sabedoria, Cristo participa da criação e conservação do mundo
e da proteção de Israel. Finalmente, o prólogo de João atribui ao
Verbo traços da Sabedoria criadora, e todo o Evangelho de João
apresenta Cristo como a Sabedoria de Deus. Isto explica porque a
tradição cristã, desde São Justino, reconheceu em Cristo a sabedoria
do AT. Por acomodação, a liturgia aplicou Pr 8, 22s à Virgem Maria,
colaboradora do Redentor como a Sabedoria o é do Criador.
435
No poema, o religioso usa a mesma ideia do livro sapiencial: “Antes de
lançar com a sua palavra [...] Deus te concebera em sua mente eterna/ e te
destinara para sua Mãe,/ na glória da virgindade”
436
e complementa como a ideia de
que Maria foi “a escolhida”
437
para purificar o mundo inteiro das hediondas
máculas”
438
e “a prometida”
439
para a salvação da humanidade “no casto fruto de
tuas entranhas”
440
ou seja, ela seria a corredentora do mundo, aquela que
restabeleceria a comunhão entre Deus e os homens, rompido pelo pecado dos
primeiros pais:
434
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Prov. 8, 22-23.
435
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002. Nota, p. 1032.
436
ANCHIETA: 1996, p. 58.
437
ANCHIETA: 1996, p. 58, cf. Lc 1, 28 : [O anjo Gabriel] Entrando onde ela [Maria] estava disse-lhe:
Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!
438
ANCHIETA: 1996, p.58.
439
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Is 7, 14: Pois sabeis que o Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis
que uma jovem está grávida e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome Emanuel.
440
ANCHIETA: 1996, p. 58.
191
Futura salvação, prometida ao primeiro pai,
tu lhe havias de restituir a vida
no casto fruto de tuas entranhas.
Com letal veneno Eva os havia de corromper:
concebida sem mácula,
apresentar-nos-ias tu o antídoto.
Tremeu, ao nome da segunda mulher,
a astuta serpente,
que enredara em seus laços a primeira.
441
Ainda no Canto I, além do Exórdio e os poemas dedicadas à Conceição da
Virgem Maria, mais de vinte poemas se distribuem em cinco subconjuntos. Contudo,
chama a atenção Pelas letras do Alfabeto contido no Nascimento da Bem-
aventurada Virgem Maria, nele há imagens criadas pelo poeta, ou hauridas da
Bíblia, ou ainda, imagens que foram utilizadas pelos Santos Padres no início da
Igreja. O alfabético é um tipo de “poema em que cada estrofe começa com a letra
sucessiva do alfabeto (hebraico) (Sl 119; Pr 31, 10-31)”
442
. Para efeito deste
trabalho, serão analisados alguns versos do alfabético de Pe. Anchieta, onde as
letras têm simbologia:
A Se bem considero, tu, ó santa virgenzinha,
és Árvore da Vida,
fértil de frutos eternos,
cujas raízes se escondem nas entranhas da terra,
cujas franças sublimes chegam às estrelas do céu.
443
A primeira imagem de Nossa Senhora como Árvore da Vida apresenta a
contraposição entre Eva e Maria. Eva, ao comer o fruto proibido da Árvore do Bem e
do Mal, produziu a condenação da humanidade com o pecado original. Maria,
diferentemente “é fértil de frutos eternos”
444
, ao responder “sim” a Deus, participou
do mistério da Encarnação que gerou a salvação. A Árvore da Vida tem sustentação
plantada no judaísmo, na vida simples e obscura do cotidiano de Nazaré, são as
441
ANCHIETA: 1996, p. 58.
442
BIBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB, com introduções e notas. ed. Brasília: CNBB; o
Paulo: Canção Nova, 2007, p.1535.
443
ANCHIETA: 1996, p. 74
444
ANCHIETA: 1996, p. 75
192
“raízes que se escondem nas entranhas da terra”
445
, por outro lado, sua copa atinge
“as estrelas do céu”
446
, isto significa o caráter santificado da Virgem, sua obediência
à ação de Deus-Pai e sua capacidade de acompanhar o obra redentora de Deus-
Filho. Anchieta continua sua pregação lírica:
B Tu és Báculo,
que susténs as débeis forças
e não deixa cair, no laço, os pés vacilantes.
447
O missionário afirma que a Virgem é “Báculo que susténs as beis
forças”
448
. Ideia extraída do Salmo 23, um dos mais conhecidos entre o mundo judeu
e cristão. “Iahweh é meu pastor, nada me falta [...] Ainda que eu caminhe por vale
tenebroso nenhum mal temerei, pois estás junto a mim; teu bastão e teu cajado me
deixam tranqüilo”
449
. Os vocábulos bastão e cajado simbolizam a sustentação e o
direcionamento daquele que desconhece o caminho. Anchieta aplica outro atributo
para o mesmo instrumento, o báculo. Este é o cajado usado pelos bispos, símbolo
de seu pastoreio e insígnia de sua missão. Nos textos religiosos, o cajado recebe as
denominações de bastão, bordão, vara, cetro.
Segundo Manfred Lurker: “O significado do bastão liga-se com a sua
origem, a árvore portadora da vida. Por outro lado, o bastão serve para a
fecundidade e a vida, e, por outro, serve para repelir o mal”
450
. Na sua análise, o
estudioso aponta os vários usos desse objeto: os brâmanes, na Índia, servem-se do
bastão para afugentar os demônios; os reis egípcios utilizam-no com sinal gráfico
“reger”; entre os feiticeiros, a vara mágica efetiva os prodígios.
No Antigo Testamento, o maior exemplo no uso do cajado ocorre durante a
caminhada do povo hebreu do Egito à Palestina. Ali, em meio a tantas adversidades,
445
ANCHIETA: 1996, p. 75.
446
ANCHIETA: 1996, p. 75.
447
ANCHIETA: 1996, p. 75.
448
ANCHIETA: 1996, p. 75.
449
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 23, 1; 2; 4.
450
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. Tradução João Resende Costa. o
Paulo: Paulinas, 1993, p.23.
193
Moisés opera alguns prodígios com seu bastão, este se tornou símbolo da
peregrinação, cujos milagres estão contidos no livro do Êxodo, onde descreve,
dentre outros acontecimentos, a separação das águas do mar, conforme o texto
bíblico: “Iahweh disse a Moisés: „Por que clamas a mim? Dize aos israelitas que
marchem. E tu, levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que
os israelitas caminhem em seco pelo meio do mar‟”.
451
Na continuação do
abecedário:
C Tu és a Colina
onde a selva destila o perfume em torrentes,
onde o cheiroso incenso, do tronco, lacrimeja.
452
O salmista declama: Como és bela minha amada,/ como és bela!.. [...]
Antes que sopre a brisa/ e as sombras se debandem,/ vou ao monte da mirra,/ à
colina do incenso”
453
. A amada do Cântico dos Cânticos é Maria, na concepção de
José de Anchieta, pois esses versículos o parafraseados pelo religioso, que os
aplica nos versos: Tu és a Colina/ onde a selva destila o perfume em torrentes/ onde
o cheiroso incenso, do tronco, lacrimeja.
454
A colina do Cântico dos Cânticos é
apenas um lugar sagrado, mas “a amada” de Pe. Anchieta é a própria Colina
sagrada. Na colina, se erguem postos de vigilância para observar o inimigo, por isso
continuamente a colina é simbolizada como a atalaia, a sentinela. Assim é Maria, a
eterna defensora da Igreja, a vigilante auxiliadora do cristão. Em seguida:
D És o Depósito de água viva,
donde decorrem, para todo o mundo
os canais da divina fonte.
455
Depósito de água viva é outra imagem elaborada por José de Anchieta para
dignificar Maria. Em muitos textos, essa representação é demonstrada como
manancial de dons, dádivas, virtudes, pertinentes àqueles que se santificam. Maria,
451
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ex 14, 15-16.
452
ANCHIETA: 1996, p. 75.
453
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ct. 4, 1; 6.
454
ANCHIETA: 1996, p. 75.
455
ANCHIETA: 1996, p. 76.
194
como receptáculo dessa fonte inesgotável, não permite que as forças do mal
prevaleçam sobre a humanidade. Na letra “E”, Anchieta expõe:
E És a verdadeira Efígie,
és retrato da divina formosura,
cujo esplendor eterno refulge em teu semblante.
456
José de Anchieta retoma o Cântico dos Cânticos e louva a beleza física de
Maria: “Como és bela minha amada /como és bela!... [...] És toda bela, minha
amada,/ e não tens um defeito!”
457
. A excelsa beleza de Maria tem atributos
próprios e, na sua maioria, reflete sua alma interior. O próprio Anchieta declara em
outro poema, que não houve nenhuma mancha, nódoa, sombra que pudesse
empanar essa beleza angelical e conclui: “A tua imagem bela/ grava ó Virgem
Imaculada, em nosso peito,/ e que essa formosura o meu olhar atraia!/ Foi esta
imagem o enlevo dos profetas/ que te decantaram nos seus versos!
458
Na próxima
estrofe do alfabético temos:
F És o Fogo celeste,
que carbonizas, com chama veloz, os nossos crimes
e abrasas, no inferno, a Lúcifer vencido.
459
O fogo é uma imagem recorrente na Bíblia.
460
No Antigo Testamento ele se
manifesta como ação de Deus, ou o próprio ser de Deus. Foi assim com Moisés na
sarça ardente - “O Anjo de Iahweh lhe apareceu numa chama de fogo, do meio de
uma sarça. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se
consumia”.
461
- e na coluna de fogo que acompanhou o povo hebreu durante as
noites no deserto: “E Iahweh ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para
lhes mostrar o caminho, e de noite numa coluna de fogo, para alumiar...”
462
. No
456
ANCHIETA: 1996, p. 76.
457
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ct 4, 1; 7.
458
ANCHIETA: 1996, p. 59.
459
ANCHIETA: 1996, p. 76.
460
LURKER: 1993, p.105,106.
461
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ex 3, 2.
462
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ex 13, 21.
195
Novo Testamento o Espírito Santo se materializa em línguas de fogo, sobre os
apóstolos, no Cenáculo: “Apareceu-lhes, então, línguas como de fogo, que se
repartiam e que pousaram sobre cada um deles”.
463
“[...] O nosso Deus é um fogo
abrasador!”
464
diz o apóstolo São Paulo, na Carta aos Hebreus. Para Jo de
Anchieta, Maria é o Fogo celeste que ilumina, purifica e destrói o mal. Anchieta
aponta, na letra “G”:
G És a Gema da pérola,
que vences, em fulgor, os afogueados rubis
e faz relampejar o áureo palácio de Deus.
465
Maria é a parte mais verdadeira e mais preciosa da rola. Ela é a sua
gema, capaz de adornar com muita beleza a morada de Deus e de ser tão refulgente
que empanará o brilho dos rubis. Na Bíblia, a pérola é metáfora de algo valioso,
como é demonstrado em dois capítulos do evangelho de São Mateus. No capítulo
13: “O Reino dos Céus é ainda semelhante ao negociante que anda em busca de
pérolas finas. Ao achar uma pérola de grande valor, vai, vende tudo o que possui e a
compra”
466
; e no capítulo 7: “Não deis aos cães o que é sagrado, nem atireis
pérolas aos porcos...”
467
. No primeiro caso, o Reino de Deus é uma pérola rara que
deve ser buscada e adquirida; no segundo caso, a pérola simboliza o que é
espiritual e sagrado, não deve, portanto, ser profanado. Para Pe. Anchieta, Maria é
tudo isto! Nos próximos versos:
I Tu és Infusa,
que derramas torrentes de óleo benéfico
e enches de substancioso licor todos vasos.
468
A imagem de Maria como receptáculo não é inovadora. Na ladainha
mariana, três invocações com a mesma idéia: “Vaso espiritual, Vaso honorífico,
463
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, At 2,3.
464
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Hb 12, 29.
465
ANCHIETA: 1996, p. 76.
466
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Mt 13,45-46.
467
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Mt 7,6.
468
ANCHIETA: 1996, p. 77.
196
Vaso insigne de devoção”. No poema, José de Anchieta desdobra a imagem da
infusa, que derrama óleo e enche de licor os vasos. Ele explora a presença do
sagrado com o óleo e da alegria cristã com o licor. A primeira imagem lembra o
episódio bíblico da viúva de Sarepta, que saciou a fome do profeta Elias: “A vasilha
de farinha o se esvaziou e a jarra de azeite não acabou, conforme a predição de
Iahweh fizera por intermédio de Elias.”
469
A segunda, faz analogia ao vinho, como
símbolo da alegria, um dos atributos do cristão: “Fazes brotar relva para o rebanho
/e plantas úteis ao homem, /para que da terra ele tire o pão /e o vinho, que alegra o
coração do homem”.
470
Para a letra “J”, Anchieta propõe:
J Tu és o Jáculo,
que cravas amorosamente o peito
e nos rasgas o coração para o sarar.
471
A imagem do jaculo faz alusão ao episódio da apresentação do Menino-
Jesus ao templo e à purificação de Maria, descrito no capítulo 2 de Lucas: “Eis que
este menino [Jesus] foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em
Israel, e como sinal de contradição e a ti [Maria], uma espada traspassará tua
alma! para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”
472
. Com
essas palavras Simeão profetiza sobre aquilo que Jesus e sua Mãe iriam passar e,
para Maria, as palavras são mais duras, “uma espada traspassará tua alma!”. O
jaculo, como instrumento de dor profunda, na visão de Anchieta, será usado por
Maria como uma forma amorosa de cravá-lo no peito, agora como uma nova
acepção. Ele não mais produzirá sofrimento, mas será mezinha para sarar todos os
males dos corações de seus filhos. Na sequência:
L Tu és a Lua,
cujo resplendor desconhece fases,
enchendo perpetuamente o disco fulgurante.
473
469
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, 1 Rs 17, 16.
470
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 104, 14,15.
471
ANCHIETA: 1996, p. 77.
472
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Lc 2, 33-35 .
473
ANCHIETA: 1996, p. 77.
197
O Cântico dos Cânticos é um dos textos bíblicos, mais usados pelos
escritores, por suas belas imagens que ele oferece. José de Anchieta mais uma vez
intertextualiza com este salmo bíblico e extrai do versículo - “Quem é essa que
desponta como a aurora, bela como a lua, fulgurante como o sol, terrível como
esquadrão com bandeiras desfraldadas?”
474
a matéria para seu lavor poético.
Segundo Lurker,
475
o sol e a lua na teologia primitiva são „portadores e imagens de
grande mistério. O sol é a imagem de Deus, e a lua é a imagem do homem‟, ideia
abstraída de Teófilo de Antioquia. Posteriormente, Orígenes interpretou a lua como
imagem da Igreja. Como Maria é uma figura eclesiológica, a lua passou a ser
também aplicada à simbologia da Mãe de Deus. Lurker afirma, ainda: “As fases da
lua mostram o astro da noite submetido à lei da morte e devir cíclico”.
476
Mas, para
José de Anchieta, Maria é Lua que desconhece fases, demonstrando seu eterno
fulgor para iluminar todos aqueles que andam nas trevas do pecado. A seguir, a
proposta de Anchieta para a letra “M”:
M Tu és um Mar imenso,
maior que o imenso abismo, escondes em teu seio
exércitos inumeráveis.
477
Nos textos literários, o mar é representação do que é grande, profundo,
desconhecido e tenebroso. Para José de Anchieta o Mar como imagem de Maria,
simboliza a amplitude de domínio, capaz de acolher os bons e os maus, que buscam
sua misericórdia, por isso ela é cognominada “a mãe da misericórdia”. Em relação à
letra “N”, o religioso assinala:
N Tu és a Nau
que nenhuma vaga do oceano arrasta,
que nenhum turbilhão dos ares despedaça.
478
474
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ct 6, 10.
475
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. Tradução João Resende Costa. o
Paulo: Paulinas, 1993, p.141.
476
LURKER: 1993, p.141.
477
ANCHIETA: 1996, p. 77.
478
ANCHIETA: 1996, p. 78.
198
No Antigo Testamento, a nau foi chamada de arca onde abrigou a família de
Noé e um casal de cada animal existente na terra durante os quarenta dias do
dilúvio universal.
479
. Nos escritos do cristianismo primitivo, os vocábulos nau, barco,
arca..., aparecem como representação da Igreja, onde os fiéis poderiam atravessar
com segurança o mar sempre agitado da vida. Nos escritos posteriores, Maria é a
Arca da Aliança e a Nau segura, onde o cristão encontra proteção e abrigo; essa foi
a imagem abstraída por Pe. Anchieta. Os versos seguintes demonstram:
O Tu és o Obstáculo.
Tu cerras as portas do santuário,
para que os touros indômitos não profanem
os sagrados altares.
480
Maria é o Obstáculo para que as forças do mal não profanem o corpo do
cristão, templo do Espírito Santo. Muitas passagens na vida de Nossa Senhora
foram obstáculos para o cumprimento da vontade de Deus, como a fuga para o
Egito, com o Menino-Jesus escondendo-se da perseguição de Herodes, conforme
Mt 2, 1-18. Maria, contudo se manteve firme em sua promessa, que reiteramos
aqui: “Eu sou a serva do Senhor; faça-me em mim segundo a tua palavra!
481
. Assim,
os obstáculos dirigidos a si, Maria transforma em chaves para a entrada do que é
bom e agradável a Deus, no sacrário de seu coração e de seus filhos. Pe. Anchieta
louva com mais atributos:
P Tu és o Porto tranquilo,
a enseada segura dos navios,
batidos pela fúria do mar enlouquecido.
482
A imagem de porto, enseada, ancoradouro na linguagem marítimo-fluvial e
literária é sinônimo de segurança e de proteção. Nos textos bíblicos, ela representa
refúgio, segurança e confiança para os crentes em sua peregrinação pela terra. José
de Anchieta com a imagem - “Tu és Porto tranquilo,/ enseada segura”- expressa dois
479
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Gn 6, 13-22.
480
ANCHIETA: 1996, p. 78.
481
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Lc. 1, 38.
482
ANCHIETA: 1996, p. 78.
199
atributos de Maria, “refúgio dos pecadores” e “esperança dos aflitos”. Nos versos
que seguem mais louvor:
Q És a Quadriga de Deus,
que incitada do justo furor divino,
esmagas entre as rodas as falanges inimigas.
483
A imagem inusitada para representar Maria, expressa por Anchieta, indica o
poder mariano nas causas favoráveis ao Filho. É uma paráfrase do livro do profeta
Isaías dirigindo-se ao povo judeu sobre o julgamento futuro. “Com efeito, Iahweh virá
no fogo,/ com seus carros de guerra, como um furacão,/ para acalmar com ardor sua
ira/ e sua ameaça com chama de fogo”
484
.
Nos textos bíblicos o carro é um instrumento de poderio bélico, um dos
exemplos está contido no livro do Êxodo: “Faraó mandou aprontar o seu carro e
tomou consigo o seu povo; tomou seiscentos carros escolhidos e todos os carros do
Egito, com oficiais sobre todos eles”
485
. A quadriga é um carro especial, movido por
quatro cavalos. Maria é a quadriga divina que extingue os inimigos de Jesus. Pe.
Anchieta engendra atributos honrosos:
R Tu és a Rosa,
que entre espinhos, nascestes sem um risco,
no esplendor eterno da eterna primavera.
486
A rosa é uma das flores mais significativas do reino vegetal, dela se extraem
o simbolismo do perfume, da forma, da cor e da beleza. Entre as artes, a rosa é tão
utilizada, no Ocidente, como é a flor de lótus, no Oriente. A flor de lótus, entre
diferentes significados, é aquela “que desabrocha sobre águas geralmente
estagnadas e turvas com uma perfeição [...] sensual e soberana”
487
. Anchieta usa a
483
ANCHIETA: 1996, p. 79.
484
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Is 66, 15.
485
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ex 14, 6-7.
486
ANCHIETA: 1996, p.79.
487
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 17ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2002, p. 558,559.
200
imagem da flor de tus para associá-la à rosa que nasce entre espinhos sem
nenhum risco, se referindo também à concepção imaculada de Maria.
“Cresci como palmeira em Engadi,/ como roseira em Jericó”
488
, esse
versículo demonstra que a Sabedoria de Deus se revela em todos os lugares,
inclusive nos elementos da natureza. Em referência ao texto bíblico, a afirmação
de que Maria é a flor dessa roseira, Rosa de Jericó. A rosa é também símbolo da
regeneração, por estar associada ao verde e ao orvalho. Esse significado também
está no texto de Anchieta, pois ele afirma na continuação do poema: “Tua floração
perpétua,/ que de consolar nossos primeiros pais,/ ornará, sempre nova, seus
últimos descendentes.”
489
A sequência da letra “S” tem motivação especial:
S Tu és o Selo, Sinal, Sol, Seta, Salvação
da justiça, da fé, da luz, do amor, da Terra!
490
A aliteração expressa por Anchieta funciona como um caudal de palavras
amorosas, que poderiam ser muito mais, que as letras do alfabeto se encontram
no fim. Na leitura vertical dos versos as imagens se tornam mais significativas, Maria
é: Selo da justiça, Sinal da , Sol da luz, Seta do amor e Salvação da terra. Vale a
pena verificar a continuação do poema, com variação dos vocábulos iniciais, cujos
rogos de Anchieta traduzem a situação de guerra entre os confederados e a
necessidade da intervenção divina. Ele pede. E pede com confiança inabalável:
“Imprime, ó Mãe, tua justiça;/ como sinal da comanda os arraiais que pelejam;/
derrama as riquezas da eterna luz;/ asseteia-me o peito do divino amor/ e mostra ao
mundo, no Templo do Senhor,/ o caminho da salvação!”
491
José de Anchieta duplica
o uso do “T” em seus versos:
T És o Teto protetor
contra o calor do Sol causticante,
contra o gelo do inverno e o frio da neve;
o Tecido de folhas, que Adão esconderá sua ignomínia
e nossa mãe Eva cobrirá a vergonha do seu pecado.
488
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Ecl, 24, 14.
489
ANCHIETA: 1996, p. 79.
490
ANCHIETA: 1996, p. 79
491
ANCHIETA: 1996, p.79.
201
Em ti, minha alma e corpo esfarrapados
acharão abrigo
e se tornarão agradáveis ao Criador
492
A imagem do teto, tenda e da cabana, como sinônimo de proteção contra as
intempéries, é comum nos textos bíblicos e “tornou-se entre inúmeros povos,
imagem do céu que se estende sobre a terra”
493
. No poema de Anchieta, o teto é
metáfora da misericórdia, de amor e da proteção de Maria. Ela será a mulher que
atará os laços da amizade entre o homem e Deus, por isso Maria é o Tecido de
folhas que cobrirá o pecado de Adão e de Eva. Para concluir, Anchieta propõe uma
imagem bíblica:
V Tu és a Vara
que germinou da raiz de Jessé,
vara isenta de nós, vara isenta de aspereza.
494
O início do evangelho de Mateus apresenta a genealogia de Jesus.
Conforme o texto: “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó [...] Jessé gerou o rei Davi
[...] Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado o
Cristo”
495
. José é o pai legal de Jesus, portanto a genealogia se refere à origem real
de José e não a de Maria.
Em algumas traduções o versículo final diz: “José, com o qual se desposou a
Virgem Maria, que gerou Jesus”
496
. Possivelmente Pe. Anchieta usa essa versão
para defender a genealogia real de Maria. Por outro lado, ao usar a metáfora da
vara, sem e sem aspereza, ele reitera mais uma vez a virgindade e santidade de
Maria, além de isenta da culpa original.
Anchieta conclui seu abecedário na letra “V”, omite a letra “U”,
provavelmente porque, em latim o U” é usado como “V” . A letra “Z” apareceem
492
ANCHIETA: 1996, p. 79, 80
493
LURKER: 1993, p.235.
494
ANCHIETA: 1996, p.81.
495
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Mt 2, 2; 6; 16.
496
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, p.1704.
202
um poema não mais no início, mas no meio de duas palavras: “Ó Senhora, ó
Virgem, faixa de luzente pureza,/ os que tu amarras, ninguém pode desatar”
497
.
Mais adiante José de Anchieta apresenta o arremate final: “Recebe, ó
belíssima Virgem, os versos /que em teu berço depõe /este pobre mendigo, este
enjeitado”
498
.
No Canto III, referente à Natividade de Jesus, o poeta faz também seus
Louvores da Virgem pelo alfabeto, em cada letra novas imagens de Maria: Arca
Sagrada, Brial de linho, Celeiro abastado do Senhor, Devesa verdejante, Exemplo
de Viver, Fonte orlada de ramagens verdes, Gleba fertilíssima, Horto formoso,
Irradiação imensa, Leito florido, Mãe piedosa, Ninho que a própria mão de Deus
formou, Ovelha simples, humilde e mansa, Porta da aurora, Quietude imperturbável,
Robustez do povo, Sebe, em que se cerrou a divindade, Torre e teto do verdadeiro
rei Davi, Vinha ubertosa.
A análise de Pe. Armando Cardoso sintetiza o valor do poema de José de.
Anchieta. Nas circunstâncias em que se encontrava, poderia ser um cantor épico,
pois havia matéria para tanto, contudo preferiu conceber na sua mente afagos e
delicadezas para a Virgem Mãe:
Resumindo [...] podemos reduzir aos seguintes os dotes principais do
poema: grande valor humanístico e ascético, apreciável por quem
tenha algum conhecimento dos poetas latinos e da mística cristã;
lirismo, o mais subjetivo e sincero, não destituído de verdadeiras
belezas literárias; poder de amplificação extraordinário que raia no
excesso dos seiscentistas; colorido bíblico em freqüentes alusões e
paráfrases de trechos sagrados que ele encastoa com felicidade em
sua obra.
499
Anchieta cantou o jubilo dos pais de Maria com seu nascimento; a infância
alegre, mas solitária no templo; a esperança de Israel, traduzida no seu fiat, durante
a anunciação; o esplendor e a glória do nascimento de Jesus; o pesar e os
sobressaltos na caminhada de Belém ao Egito e de Nazaré ao Gólgota.
497
ANCHIETA: 1996, p.82.
498
ANCHIETA: 1996, p.83.
499
CARDOSO, Pe Armando. Introdução. In: ANCHIETA, José de. O poema de Anchieta sobre a
Virgem Maria Mãe de Deus (de Beata Virgine Matre Dei Maria). 5ª. ed. São Paulo: Paulinas, 1996,
p.33,34.
203
No canto de Exaltação da Gloriosa Virgem Maria, ela é rainha dos anjos,
dos santos, do universo; ela é advogada nossa; vencedora do inferno e alegria da
terra. Anchieta também roga: “Ergue-te, Mãe de Deus! Volta a carinhosa face, que
meu cansado olhar se encontre com o teu!
500
. Suas últimas súplicas ele as faz pelas
Piedosas Petições à Virgem Maria pelas Letras do Alfabeto, neles o poeta expressa
todo o seu amor filial e a sua devoção sacerdotal. São vinte e uma imagens usadas
por José de Anchieta que traduzem a esperança de que seu martírio é chegado ao
fim.
Seus rogos são atendidos e eles vêm acompanhados do acordo de paz nas
aldeias de Itanhaém, Piratininga, São Vicente, Iperoig. As orações de Anchieta
prevalecem e a diplomacia de Nóbrega triunfa. Anchieta sai do cativeiro como um
ressuscitado e propõe à Mãe do Céu: “Rainha, que governas /a Terra e as estrelas,
/seja regra de minha vida a tua vida!”
501
500
ANCHIETA: 1996, p. 333.
501
ANCHIETA: 1996, p.339.
204
5.2. A poesia mariana de Gregório de Matos
Para Mãe, para Esposa, Templo e Filha
Decretou a Santíssima Trindade,
Lá de sua profunda eternidade
A Maria, a quem fez com maravilha.
E como esta na graça tanto brilha,
No cristal de tão pura claridade
A Segunda Pessoa humanidade
Pela culpa de Adão tomar se humilha.
502
No século XVI, vigorava na Europa o Classicismo, estética baseada nos
valores clássicos greco-latinos. No Brasil, este período corresponde ao início de sua
colonização. Para tanto, os colonizadores lusitanos têm a preocupação voltada para
dois segmentos: a apropriação do espaço real brasileiro e a conquista mental do
nativo.
A tomada de posse do espaço brasileiro pode ser traduzida em construção
de fortes, estabelecimento de feitorias e organização de povoados e vilas. Quanto à
conquista mental do nativo, ela é feita paulatinamente e alicerçada em alguns
fatores como a catequização na católica e a imposição da língua, dos usos e dos
costumes portugueses.
A cultura portuguesa começa a interferir no modo de viver e de agir do
nativo a partir da fundação dos primeiros núcleos populacionais com o conjunto de
atividades necessárias para isso em 1530, com Martim Afonso de Souza. Contudo,
ela é mais efetiva com a chegada dos primeiros missionários jesuítas em 1549
503
,
dirigida por Pe. Manoel de Nóbrega, integrando o governo geral de Tomé de Souza.
Com os missionários inacianos, se iniciam a catequese jesuítica e as
atividades educacionais que contribuirão na mudança do sistema de organização
social das tribos, bem como na forma educacional de sua gente. No parecer de
502
MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1973, p.314.
503
Manoel de Nóbrega chega ao Brasil (Bahia) em 29.03.1549, juntamente com outros missionários:
Leonardo Nunes, João Aspilcuenta Navarro, António Dias, Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. Cf.
CASTRO, Silvio. Território e expansão cultural no Brasil quinhentista in História da Literatura
Brasileira, direção de Silvio Castro.Lisboa: Alfa, 1999, p.159.
205
Wilson Martins, “A história da inteligência brasileira começa em 1550, quando o
padre Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de latim no Colégio dos
Meninos de Jesus em São Vicente”.
504
Por todos os fatores apontados, o Classicismo não foi patente entre as artes
brasileiras. A primeira estética literária a florescer nesta terra foi o Barroco, conforme
explicita Merquior:
A nossa primeira literatura profana pertence à grande órbita do estilo
barroco, que se estende, entre nós, até os arredores de 1750. O Brasil
foi descoberto na Renascença, mas os fundamentos da nossa cultura
e, em particular, nossas primeiras realizações artísticas e intelectuais
derivam principalmente do universo barroco do “barroco” como
período civilizacional próprio, colocado entre a crise da cultura
renascentista e a Ilustração do séc. XVIII. Daí a necessidade de ter em
conta o perfil cultural dessa época, onde se encontram nossas raízes
espirituais.
505
O Barroco brasileiro tem início em 1601, com a publicação do poema
laudatório Prosopopeia, de Bento Teixeira. Segundo Alfredo Bosi, “a intenção é
encomiástica e o objeto do louvor Jorge de Albuquerque Coelho, donatário da
capitania de Pernambuco, que encetava a sua carreira de prosperidade graças à
cana-de-açúcar”.
506
Localizado, inicialmente, na Bahia, esse novo olhar estilístico desenvolveu
entre seus cultores o fusionismo entre valores europeus, transplantados para a nova
terra, e a ideologia nativa. Essa amálgama tão díspar entre seus elementos deu ao
Barroco brasileiro um matiz tropical, como os poemas satíricos de Gregório de
Matos, que elege temas específicos do Brasil e sua gente, ou como a pintura de
Manuel Ataíde que mistura elementos africanos em representações sagradas.
Apesar de haver outros expoentes, na literatura, Gregório de Matos (1636-
1695) é o maior representante da poesia barroca no Brasil, cuja obra está eivada de
postulados contrarreformistas. Alguns dados biográficos apontam:
504
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira, (1550-1794). Vol. I. Cultrix: São Paulo, 1977,
p.13.
505
MERQUIOR, José Guilherme. O barroco, primeiro estilo da cultura ocidental moderna in De
Anchieta a Euclides Breve história da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1977, p. 10.
506
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 36ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 36.
206
Gregório de Matos e Guerra, filho de portugueses, nasceu na Bahia
em 1636, de prestigiosa família originária de Guimarães. Entre 1642 e
1650 estudou Gramática, Retórica, Humanidades, História e Geografia
no Colégio dos Jesuítas de sua cidade natal. Neste mesmo período
também se familiariza com a leitura dos clássicos. Ingressa na
Universidade de Coimbra em 1652, nela concluindo, no ano de 1661, o
curso de Direito Canônico. Neste período coimbrense desenvolve a
sua personalidade de poeta em contato com a poesia peninsular e
com a tradição trovadoresca. Em 1663 é nomeando juiz de fora de
Alcácer do Sal, no Alentejo; em 1671, juiz do cível; de 1672 a 1674,
procurador da cidade de Salvador, cargo do qual foi exonerado por
mau desempenho. Retorna à Bahia, em 1682, aceitando os cargos de
vigário-geral e tesoureiro-mor, que exercia sem as vestimentas
eclesiásticas. Destituído dessas funções, vive uma vida errante pelo
Recôncavo baiano como cantador, cronista de costumes, exercendo
sua função de grande crítico satírico da sociedade colonial. Deportado
para Angola em 1694, de regressa, constrangido por limitações à
própria criação poética, para Recife, onde morre em 1695.
507
A obra de Gregório é vasta e se organiza em diferentes vertentes da poesia
dentre elas a lírico-amorosa, a erótico-sensual, a satírico-cotidiana, a místico-
religiosa. Em todas, está presente o dualismo barroco: céu x inferno, vida x morte,
espírito x matéria, sagrado x profano, graça x pecado, salvação x condenação,
dentre outros. Há a presença de recursos linguísticos próprios desta estética como a
presença de vocativos, repetições, inversões; uso de frases interrogativas;
recorrência exaustiva de hipérboles, metáforas, metonímias. Ele traz de Coimbra
onde estudara as formas modelares de Gôngora e de Quevedo e mescla, na
Colônia, com as questões locais. Podemos afirmar que Gregório de Matos:
[...] incorpora definitivamente o espaço literário brasileiro no
internacional como produto específico do lirismo seiscentista, ao
mostrar-se como modelo de rara eficácia expressiva no referente às
relações entre modernidade e tradição. Nele as mais expressivas
manifestações da poética barroca associam-se à tradição da lírica
medieval portuguesa principalmente para dar expressão à nascente
realidade brasileira. Deste modo, a mais clara especificidade da
linguagem matosiana traduz-se através de uma complexa combinação
de fatores culturais e elementos poéticos finalizados a exaltar, ainda
que com atitudes de aparentes paradoxos, o próprio espaço natal.
508
507
CAMPOS, Maria do Carmo Alves dos. Barroco e sentimento nativista na poesia de Gregório de
Matos. In: CASTRO, Silvio (dir.). Literatura Brasileira. Vol. I. Lisboa (Portugal): Alfa, 1999, p. 193/194.
508
CAMPOS: 1999, p. 181.
207
Na sátira, Gregório documenta o modo de ser baiano e, por extensão, da
vida brasileira do século XVII, no que tange aos vícios e aos desenganos de seu
povo. Sua língua ferina põe à baila problemas étnicos, religiosos, culturais e
econômicos. É o guardião da memória coletiva e o arauto dos insatisfeitos. Para
Adriano Espínola, Gregório usa máscaras no sentido mais primitivo da palavra,
uma persona para cada fala poética que pode ser resumida:
[...] 1) religiosa: persona de crença católica, inspirada nas escrituras e
na vida dos santos e das entidades celestiais, ideologicamente contra-
reformista, institucional, e, no limite, de índole stica; 2) erótica:
sedutora, insatisfeita e volúvel, dotada, como dom Juan, do “hábito
antigo” de burlar e gozar as mulheres; 3) satírica: zombeteira,
combativa, crítica, a distribuir ataques e risos corretivos por todos os
lados; uma mistura de pícaro, boêmio, e cantador errante; 4)
encomiástica: áulica, a enaltecer os poderoso e amigos; 5) lírica:
enamorada, existencialmente atormentada, celebradora da dama
esquiva e/ou inacessível; 6) graciosa: [...] na figura aproximada do
magano, o malandro da época, na Bahia, tipo folgazão e divertido.
509
Além do universo da crítica social, outros temas são recorrentes no conjunto
de sua obra a fugacidade da vida, a fragilidade do homem, o arrependimento do
pecador e a misericórdia divina, dentre outros. Aponta-nos Alfredo Bosi:
A experiência catártica do amor a um deus feito carne, que areja
e liberdade à grande lírica religiosa, inibe-se e estiola quando
todo o peso da consciência recai sobre o negror da ação já
cumprida. A saída que se apresenta é a prática manifesta da
absolvição confessional, que o Concílio de Trento encarecera e
ritualizara.
510
Como homem de seu tempo, sua poesia se associa à tradição portuguesa e
à realidade brasileira configurando-a como exemplo de um Barroco nacional.
Segismundo Spina, ao tematizar a obra de Gregório de Matos, em relação aos
aspectos religiosos, assim se pronuncia:
509
ESPÍNOLA, Adriano. As artes de enganar Um estudo das máscaras poéticas e biográficas de
Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 106.
510
BOSI, Alfredo. Do antigo Estado à Máquina Mercante. In: ____Dialética da Colonização. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
208
[...] a marginalidade em que viveu nos últimos lustros da existência,
que alternaram entre as solicitações terrenas e a procura de Deus
para solução de seus problemas interiores; uma consciência nítida do
pecado, o conseqüente arrependimento, noção da penitência, e a
esperança na redenção das culpas; a associação do burlesco ao
sagrado; a humanização do sobrenatural; a lição tridentina de que o
homem é e, sobretudo, o sentido dilemático da vida, decorrente
desse duelo entre a existência que delira na truanice, na obscenidade,
no sensualismo declarado, no gozo dos valores mundanos criados
pela Renascença, e o reverso da medalha que busca Deus nas
horas solitárias de reflexão da vida interior.
511
Aos aspectos apontados por Spina é possível acrescentar mais um: a
poesia de culto à Virgem Maria. Numa perspectiva muito particular, Gregório de
Matos louva, como cristão católico, àquela que foi “entre todas as mulheres a
escolhida” por Deus para ser a mãe do Salvador, recebendo por isso mais privilégios
e méritos divinos que qualquer outra criatura. Gregório de Matos o foi o único,
como demonstramos, ao longo desta tese, mas sua poesia mariana transita por
temas que foram objeto de culto desde o início da era cristã e trabalhou com
aspectos que expressam o gosto e a alma do povo.
Do conjunto lírico de temática sacra, alguns poemas são dedicados a Maria,
os quais estão organizados, no capítulo intitulado Pessoas muito principais, no
códice James Amado. Gregório de Matos cultua a Maria em diversos poemas, sob
os tulos de: Mãe de Deus; Rainha; Nossa Senhora das Neves; Imaculada
Conceição; Nossa Senhora do Rosário.
Nesta tese, destacamos quatro poemas, a fim de demonstrarmos o amor
incondicional do vate baiano a Virgem Maria. São eles: A Nossa Senhora da Madre
de Deos indo o Poeta; A uma fonte que nasceu milagrosamente em Capela de
Nossa Senhora das Neves na Freguesia de Avelã; A Nossa Senhora do Rosário em
uma Academia que fez o Poeta; Salve Rainha, a Virgem Santíssima.
511
SPINA, Segismundo. O Recôncavo no século XVII [...] Caracteres barrocos. In: COUTINHO,
Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p.123/ 124.
209
5.2.1. Poesia para a Mãe de Deus.
Nasceis bela Maria imaculada
mas de quem filha sois, cala a Escritura
que como vosso ser e fermosura
todo é do céu, não tem co‟a terra nada.
Nasceis e logo mãe sois publicada
do Salvador do mundo, que o procura,
com tal pasmo, que a um tempo em vós se apura
Virgem menina, e Mãe antecipada.
512
Cultuar Maria como Mãe de Deus parece óbvio, porém, diante de tantos
títulos que Maria recebe, este é o primeiro e o que expressa o Mistério da
Encarnação e sua importância na história da salvação. Na Encíclica Lumem
Gentium”, o Concílio Ecumênico Vaticano II recomenda que:
[...] os teólogos e os pregadores da palavra divina a que, ao
considerarem a singular dignidade da Mãe de Deus, se abstenham
com cuidado tanto de qualquer falso exagero como também duma
demasiada pequenez de espírito. Com o estudo da Sagrada Escritura,
dos santos padres dos doutores e das liturgias da Igreja, esclareçam
com precisão, sob a orientação do magistério, as funções e privilégios
da Santíssima Virgem, que sempre se referem Cristo, origem de toda
a verdadeira santidade e devoção [...]
513
O dogma da maternidade divina de Maria, analisado no capítulo III, foi
definido pelo Concílio de Éfeso, no ano de 431. Naquele momento, a Igreja discutia
a humanidade e a divindade de Jesus e concluiu que Maria não era mãe somente de
Jesus humano, mas de toda a sua pessoa. Ela era mãe do Filho de Deus
encarnado, tanto assim, que em dois momentos importantes da vida pública de
Jesus ela esteve presente: nas Bodas de Caná, com o primeiro milagre
514
e ao
da cruz,
515
quando Cristo entrega Maria aos cuidados de João, o qual simboliza
toda a humanidade.
512
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p.261.
513
LUMEN GENTIUM: 2006, n
o
67.
514
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Jo 2,1-11.
515
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Jo 19, 25-27.
210
Como forma de recordarmos, reiteramos que as duas representações mais
conhecidas de Maria são aquelas em que a ela se apresenta sozinha, em seu
esplendor, e a outra, em que divide a atenção, com a figura do Menino Jesus.
Contudo, a imagem de Santa Maria, Mãe de Deus, além do Menino Jesus deitado
em um berço, há também a figura de São José.
Quanto à história da devoção à e de Deus, três fatos que podem ter
servido de mote para o poema de Gregório de Matos A Nossa Senhora da Madre de
Deos indo lá o Poeta. A devoção em Portugal a partir do reinado de D.João II (1481-
1495); o orago da cidade de Recife, cuja catedral tem seu patronato; a capela
histórica da ilha de Madre de Deus, no Recôncavo Baiano, sendo esta última a mais
convincente.
A devoção de Maria, Mãe de Deus, em Portugal, é antiga e remonta ao
reinado de D. João II:
516
Desejando a rainha D. Leonor
517
construir um convento em honra da
SS Virgem, estava preocupada com o título que deveria dar a esta
casa religiosa, quando apareceram dois jovens [...], trazendo à rainha
uma estátua de Nossa Senhora para ver se lhe agradava. Todavia,
pediram à soberana um preço tão elevado, que a compra não se
realizou. Disseram [...] que voltariam para buscar a imagem, porém
nunca mais apareceram. Reconhecendo D. Leonor neste fato
extraordinário um favor do céu, tomou a imagem e a colocou no
convento, dando-lhe o título de Madre de Deus, porque ela
representava Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus
recém-nascido, deitado num berço de prata.
518
Sobre o culto a Maria como Mãe de Deus, no Brasil, Nilza Botelho explica
que existem muitas igrejas dedicadas a esse título em Minas Gerais e no Nordeste,
516
João II de Portugal (1455 1495), cognominado O Príncipe Perfeito pela forma como exerceu o
Poder. Era filho do rei Afonso V de Portugal e de Isabel de Coimbra, princesa de Portugal. João II
sucedeu ao seu pai, após a sua abdicação, em 1477; no entanto, Afonso V retornou e logo D. João
lhe devolveu o poder, voltando a exercê-lo após a morte do pai, em 1481. No seu governo, João II
defendou a política de exploração atlântica iniciada pelo seu tio-avô Henrique, elegendo como
prioridades os descobrimentos portugueses e a busca do caminho marítimo para a Índia.
517
Dona Leonor de Portugal (1458-1525) ou D. Leonor de Lancaster , princesa portuguesa da
Casa de Avis e rainha de Portugal, a partir de 1481, pelo casamento com seu primo D. João II de
Portugal, o Príncipe Perfeito. Pela sua vida exemplar, pela prática constante das virtudes cristãs, ficou
conhecida como a Princesa Perfeitíssima, inspirada no cognome do rei seu marido.
518
MEGALE: 2001, p. 282, 283.
211
contudo merecem destaque: “o belo templo de Recife, construído pela extinta
Congregação do Oratório de São Filipe Néri, [...]. Iniciada em 1700 graças ao auxílio
de cinco mil cruzados concedidos pelo rei D.João V, [...] esta igreja é hoje a
catedral”
519
e:
[...] o santuário da Mãe de Deus da antiga ilha de Cururupeba (hoje
Madre de Deus), no Recôncavo Baiano [...]. A igreja essituada no
cume de um morro e foi fundada por volta de 1679 pelo padre Manuel
Rodrigues, o qual desejava dedicar à Rainha do Céu um santuário
semelhante ao que serve de morada à milagrosa imagem de Lisboa.
No retábulo da Capela-Mor, vê-se dentro de uma lapa a perfeitíssima
imagem de madeira representando Maria Santíssima e São José de
joelhos, adorando o Menino Jesus.
520
Imagem de Madre de Deus BA (1679 ?)
Para muitos observadores, a imagem de Madre de Deus é a representação
da Sagrada Família, contudo, em duas iconografias, Nossa Senhora aparece ao
519
MEGALE: 2001, p.283.
520
MEGALE: 2001, p.283.
212
lado de Jesus e de José. A primeira é como Madre de Deus e a segunda é como
imagem de Nossa Senhora do Desterro, que remete à fuga da Família de Nazaré
para o Egito.
A representação de Maria na capela do Recôncavo Baiano foi certamente a
que mais influenciou o poeta. Na publicação de 1929, da Academia Brasileira de
Letras, um ofertório para o soneto XI, do volume I, dedicado à poesia sacra, com
os dizeres: “À Nossa Senhora da Madre de Deus do Boqueirão, cuja igreja se
achava enriquecida pelo vigário, que então era della, o Padre Manoel Rodrigues,
sacerdote de virtude”.
521
No soneto dedicado ao primeiro título de Maria, Gregório de Matos, em tom
de oração, invoca a Mãe de Deus e a reverencia no seu espaço sagrado. “Indo o
Poeta” verá a imagem de Nossa Senhora acompanhada de seu filho Jesus Cristo,
em um ambiente místico e devocional:
Venho, madre de Deus, ao Vosso monte
E reverente em vosso altar sagrado,
Vendo o Menino em berço argenteado
O sol vejo nascer desse Horizonte.
522
Na primeira estrofe, é possível realizar uma interpretação denotativa em que
o eu-poemático se dirige ao monte Madre de Deus, na Bahia onde se localiza o
Santuário dedicado ao título homônimo. No altar, está a imagem que representa São
José, Maria e o Menino-Jesus deitado em um berço de prata.
Metaforicamente, o sujeito poético chega a um monte dedicado a Maria
onde vislumbra o nascimento do sol no horizonte e a presença do Menino-Deus em
um berço banhado de luz. Esses versos reportam a aspectos da história da
Mariologia e do simbolismo bíblico com as imagens do sol e do horizonte, pois no
quarto dia da criação o verbo de Deus fez surgir o sol: “Deus fez os dois luzeiros
521
MATTOS, Gregório de. Obras de Gregório de Mattos, I Sacra. Publicações da Academia
Brasileira. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1929, p.101.
522
MATOS, Gregório de. Obra Poética Completa/ Edição James Amado. Vol. I, 4ª ed., Rio de Janeiro:
Record, 1999.
213
maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro com o poder da
noite, e as estrelas.”
523
No sentido bíblico, sol é imagem de Deus-Pai e de Deus-Filho, assim como
sua luz tem o mesmo sentido. Isaías profetiza para Jerusalém:
Não terás mais o sol como luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará,
porque Iahweh será tua luz para sempre, e teu Deus será teu
esplendor. Teu sol não voltará a pôr-se, e tua lua não minguará,
porque Iahweh te servirá de luz eterna e os dias do teu luto
cessarão.
524
No cântico de Zacarias, Deus-Filho é o “astro das alturas” que vem trazer a
salvação: “Graças ao misericordioso coração de nosso Deus, /pelo qual nos visita o
Astro das alturas, /para iluminar os que jazem /nas trevas e na sombra da morte,
/para guiar nossos passos no caminho da paz”
525
. Em um dos livros bíblicos
sapienciais, o Eclesiástico, o sol reflete, como espelho, as obras de Deus: “O sol que
brilha contempla todas as coisas e a obra do Senhor está cheia de sua glória”
526
.
A segunda estrofe reflete o traço dual do poeta e do estilo barroco com a
interferência da escola anterior, o Classicismo, onde figuras pagãs se misturam com
as sacras:
Oh quanto o verdadeiro Faetonte
Lusbel, e seu exército danado
Se irrita, de que um braço limitado
Exceda na soltura a Alcidemonte.
527
A mistura de elementos demonstra o quanto os estudos clássicos de
Gregório estão presentes na sua poesia. Observamos a comparação que ele faz
entre a figura do Cristo e Faetone, entre o Cristianismo e Mitologia grega: Cristo é o
Filho de Deus e sua mãe uma moça simples do povo, Maria; Faetone é filho de
Hélio, o Sol divinizado, com a mortal ninfa Clímenes. Cristo é “o verdadeiro
Faetone” que irrita Lusbel, ou Lúcifer e seu exército. Ressaltamos que, no Barroco, o
523
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Gn 1,16.
524
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Is 60, 19-20.
525
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Lc 1, 78-79.
526
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Eclo 42, 16.
527
MATOS: 1999, p. 66.
214
demônio aparece nominado por Lusbel/Luzbel, se reportando ao anjo caído, que era
belo e cheio de luz antes de fazer das trevas, sua morada. Vejamos o primeiro
terceto:
Quem vossa devoção não enriquece ?
A virtude, Senhora, é muito rica,
E a virtude sem vós tudo empobrece.
528
Neste terceto, observamos a técnica barroca de conter uma afirmação em
uma interrogação: “Quem vossa devoção não enriquece?”
529
, isto é, a devoção à
Maria enriquece qualquer pessoa. E, a continuação da estrofe reforça um traço
próprio do Barroco que é a aplicação de antíteses produzindo uma idéia de louvor a
Nossa Senhora: “A virtude, Senhora, é muito rica, e a virtude sem vós tudo
empobrece.”
530
.
O último terceto retoma a idéia inicial de Maria, Mãe de Deus que ofertou
seu filho em sacrifício para a salvação da humanidade:
Não me espanto, que quem vos sacrifica
Essa hóstia do altar, que vos ofrece,
Que vós o enriqueçais, se a vós a aplica.
531
Essa maternidade tão bem referida no artigo 61, da Lumen Gentium aponta
o que vê, “indo lá o poeta”: Maria e seu Filho Jesus Cristo, porque desde sempre ela
esteve eleita para ser “Madre de Deos”:
Santíssima Virgem, predestinada - desde toda a eternidade, no
desígnio da encarnação do Verbo divino para ser Mãe de Deus, foi
na terra, por disposição da divina Providência, a mãe do Redentor
divino, mais que ninguém sua companheira generosa e a humilde
escrava do Senhor. Concebendo a Cristo, gerando-o, alimentando-o,
apresentando-o no templo ao Pai, sofrendo com seu Filho que morria
na cruz, ela cooperou de modo absolutamente singular pela
obediência, pela fé, pela esperança e a caridade ardente na obra do
528
MATOS: 1999, p.66.
529
MATOS: 1999, v. 9, p.66.
530
MATOS: 1999, vv. 11/12, p.66.
531
MATOS: 1999, p.66.
215
Salvador para restaurar a vida sobrenatural das almas; por tudo isto,
ela é nossa mãe na ordem da graça.
532
Conforme constatamos, a imagem da Mãe de Deus, traçada por Gregório é
de esperança e de sacrifício: ele o sol “nascer desse Horizonte”
533
, no início do
poema e, no final, ele observa Maria ofertar seu Filho imolado, como “hóstia do
altar”
534
.
5.2.2. Nossa Senhora do Rosário
Vencido o turco foi, só auspício
da Virgem Soberana aquele dia
quando a Deus humanado oferecia
do Rosário o suave sacrifício.
Este triunfo tendo a Deus propício
não se deve ao poder, nem valentia:
ao Rosário se deve de Maria
tais extremos faz no benefício.
535
O culto à Virgem do Rosário tem início no século XIII, quando centenas de
pessoas que professavam uma seita herética, albigensianismo
536
, povoavam o sul
da França. Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, ou dos
Dominicanos, preocupado com a expansão da heresia pediu ajuda aos céus. Numa
revelação particular ao religioso, Maria aparece-lhe no ano de 1206 e apresenta-lhe
o Rosário, como poderosa arma de conversão e de combate às heresias. Segundo
os contemporâneos de Domingos, após a aparição, o servo de Maria, de forma
532
ENCÍCLICA. Lumen Gentium De Ecclesia”. São Paulo: Paulinas, 2003, Art.61, p.126.
533
MATOS: 1999, p.66.
534
MATOS: 1999, p.66.
535
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p.265.
536
Albigensianismo, seita cristã surgida no Sul da França nos sXII e XIII que professava um
dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império
Romano (sIII e IV), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito
cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne no
reino das sombras.
216
milagrosa, converteu mais de cem mil pessoas, incluindo alguns hereges, que
voltaram ao seio da Igreja. O Papa Leão III comenta sobre o fato e a intervenção de
Maria:
Nos momentos de apreensão e de incerteza, foi sempre o primeiro e
sagrado pensamento dos católicos o de recorrerem a Maria, e de se
refugiarem na sua maternal bondade. E isto demonstra a firmíssima
esperança, ante a plena confiança, que a Igreja Católica com toda
razão sempre depositou na Mãe de Deus. [...] Daí tiveram origem
esses títulos insignes com que os povos católicos a saudaram:
Auxiliadora dos cristãos, Socorredora e Consoladora, Dominadora das
guerras, Senhora das vitórias, Pacificadora. Entre os quais é
principalmente digno de menção o título, tão solene, do Rosário [...].
Nenhum de vós [...] ignora quantas dores e quantas lágrimas, no fim
do século XII, proporcionaram à santa Igreja de Deus os hereges
Albigenses, que nascidos da seita dos últimos Maniqueus, haviam
infectado de perniciosos erros a França meridional [...]. Contra esses
péssimos inimigos, Deus misericordioso suscitou [...] o ínclito padre
fundador da Ordem dominicana [...]; ele se preparou com intrépida
coragem para travar as batalhas da Igreja Católica apoiado não nas
força das armas, mas sobretudo na poderosa oração que ele, por
primeiro, introduziu sob o nome do Santo Rosário.
537
Outro episódio reforça o poder da recitação do rosário, ocorrido no século
XVI. Naquele período, a região do Mediterrâneo corre o risco de ser tomada
definitivamente pelo domínio turco. Organiza-se um grupo denominado Liga
Santa
538
, em que se incluíam os Estados Pontifícios, com o objetivo de cercear o
avanço dos turcos otomanos e diluir seu poderio sobre o Mediterrâneo oriental.
Embora menos aparelhada belicamente, em uma ação considerada milagrosa
e atribuída à oração do rosário, os cristãos vencem, em 7 de outubro de 1571, a
importante batalha naval de Lepanto,
539
em um combate, onde foram capturadas
quase duas centenas de embarcações turcas, contra uma dúzia cristã, num evento
que durou três horas. Diz a tradição que, enquanto as contendas ocorriam no mar, o
Papa Pio V (1566-1572), em Roma, dedicava-se a rezar o saltério de Maria.
537
PAPA LEÃO XIII. Supremi Apostolatus. Petrópolis (RJ): Vozes, 1961, p. 4,5.
538
A Liga Santa foi uma organização formada em 1571, com os Estados católicos do Mediterrâneo,
entre os quais fizeram parte: Veneza, estados dos Habsburgos da Espanha, Nápoles, Sicília, os
estados Pontifícios, Itália, Gênova, Savóia, os Cavaleiros de Malta.
539
Na batalha de Lepanto, a Liga Santa participou com 214 galés, contra 300 otomanas. No final do
combate, houve a baixa de 12 galés e 9.000 cristãos contra 240 galés e 30.000 turcos. Além do
resgate de 12.000 cristãos que se encontravam cativos dos otomanos.
217
Pelo triunfo da Liga Santa, Pio V homenageou a Virgem Maria com o título de
Nossa Senhora da Vitória e instituiu a festa litúrgica em comemoração ao
acontecimento. Essa mesma festa foi mudada para a Festa do Rosário por Gregório
XIII, através da Bula Monet Apostolus de 01.04.1573, com o seguinte texto:
[…] diariamente recibimos de Dios Óptimo Máximo no menores
beneficios entre los cuales se nos concedió el año pasado por su
inefable clemencia, uno singularísimo, conviene a saber que la armada
turca, en numero muy superior, y ufana por sus pasadas victórias,
fuese totalmente vencida y hecha polvo, el 7 de octubre, no lejos del
golfo de Corinto, por la armada cristiana, que luchava en virtud del
Señor Dios de los ejércitos; con la cual victoria, y por la gracia de Dios,
nadie puede negar que todo el pueblo cristiano fue arrebatado de las
fauces del impiísimo tirano, queriendo obedecer al mandato del
apóstol (in omnibus gratias agentes, 1 Ts 5,18), y seguir los ejemplos
de los Santos Padres, hemos decretado que conserve recuerdo anual
de este grandísimo beneficio.
[…]
Cayendo en la cuenta también que él mismo día 7, que entonces fue
primer domingo de dicho mes de octubre, todas las confradías,
establecidas por todo el mundo bajo la invocación, del dicho rosario,
saliendo procesionalmente, según sus laudables normas y
costumbres, elevaron a Dios piadosas oraciones, las cuales hay que
creer que fueron muy provechosos para conseguir dicha victoria por la
intercesión de la Santísima Virgen, hemos juzgado que habiamos una
buena obra si, para conservar el recuerdo de tan gran victoria,
evidentemente concedida pro el cielo, y para dar gracias a Dios y a la
Santísima Virgen, instituyésemos una fiesta solemne denominada del
rosario, que habría de celebrase el primer domingo del mes de
octubre.
540
O nome “rosário” deriva do latim rosarium que significa “um ramalhete de
rosas”, comparativamente, o rosário é uma corrente de ave-marias, como “uma
coroa de rosas” dedicada a Maria. O Papa Pio V, na Bula Consueverunt Romani
Pontifices de 17.09.1569, assim definiu:
O rosário ou saltério da beatíssima virgem Maria é o modo
piedosíssimo de oração e súplica a Deus, modo fácil ao alcance de
todos, em louvar a própria santíssima Virgem repetindo a saudação
angélica, cento e cinqüenta vezes, tantos quantos são os salmos do
saltério de Davi, intercalando a cada dezena a oração do Senhor, com
540
GREGÓRIO XIII (Papa). Bula Monet Apostolus (01.04.1573). In: MARTÍNEZ PUCHE, José e
AGUILAR, Juan Gil. Documentos Pontifícios Marianos. Edibesa: Madri, 2002. p. 25/26.
218
determinadas meditações que ilustram toda a vida de nosso Senhor
Jesus Cristo.
541
Portanto, na época de Gregório de Matos, o rosário era composto pela
repetição de cento e cinquenta ave-marias, dividido em três partes, os terços, com
cinquenta ave-marias cada uma. Os terços relembram os mistérios gozosos, sobre
acontecimentos antes do nascimento de Jesus, aa infância; os dolorosos sobre o
sofrimento e a morte de Cristo e os gloriosos que rememoram a ressurreição do
Salvador e sua ascensão para junto de Deus-Pai; a presença de Maria, no início da
Igreja, no dia de Pentecostes; sua assunção ao céu e sua coroação como Rainha
dos Anjos e dos Santos.
O Papa João Paulo II, na Carta Apostólica Rosarium Virginis Marie, de
16.10.2002, destinada ao episcopado, ao clero e aos fiéis, acrescentou ao rosário
mais um terço introduzido pelos mistérios da luz que se reportam à vida pública de
Jesus. O motivo destas modificações, João Paulo II explicita na sua da Carta
Pastoral:
De tantos mistérios da vida de Cristo, o Rosário, tal como se
consolidou na prática mais comum confirmada pela autoridade
eclesial, aponta alguns. Tal seleção foi ditada pela estruturação
originária desta oração, que adotou o número 150 como o dos salmos.
Considero, no entanto, que, para reforçar o espessor cristológico do
Rosário, seja oportuna uma inserção que, embora deixada à livre
valorização de cada pessoa e das comunidades, lhes permita abraçar
também os mistérios da vida pública de Cristo entre o batismo e a
Paixão. Com efeito, é no âmbito desses mistérios que contemplamos
aspectos importantes da pessoa de Cristo, como revelador definitivo
de Deus. É ele que, declarado Filho dileto do Pai no Batismo do
Jordão, anuncia a vinda do Reino, testemunha-a com as obras e
proclama as suas exigências. É nos anos da vida pública que o
mistério de Cristo se mostra de forma especial como mistério de luz:
„Enquanto estou no mundo, sou Luz do mundo.‟ (Jo 9,5)
542
No conjunto de poemas dedicados a Nossa Senhora, Gregório homenageia a
Virgem do Rosário em dois escritos. No primeiro, A Nossa Senhora do Rosário o
541
PIO V (Papa). Bula Consueverunt Romani Pontifices (17.09.1569). In: FIORES, Stefano de e
MEO, Salvatore (dir.). Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 1.137.
542
JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Rosarium Virginis Marie. edição. São Paulo: Paulinas, 2002,
n
o
19.
219
poeta faz analogia entre a coroa de rosas e arco triunfal do Antigo Testamento, o
arco-íris, símbolo da aliança entre Deus e os homens após o Dilúvio:
A Rainha celestial,
que venceu o seu contrário
nosso pobre cabedal
hoje do Santo Rosário
lhe faz um arco triunfal
543
Na continuação do poema, o sujeito líricc demonstra a importância do rosário
para salvação do homem afogado pelo pecado, bem como apresenta o saltério
como arma de combate e vitória sobre o demônio com seu séqüito e suas obras
malignas. Para ele, cada conta do rosário representa um degrau para alcançar a
graça, conforme as estrofes seguintes:
Porque o rosário rezado
quando a alma em graça está,
é sinal, que Deus tem dado,
de que não me afogará
no dilúvio do pecado
Tem o homem seu contrário
dentro em sua mesma terra,
que lhe vence de Ordinário,
e a Virgem por esta guerra
-lhes as contas do Rosário.
Toda alma, que fizer conta
de si, e sua salvação,
ouça o que a Virgem lhe aponta:
suba, que em sua oração
será degrau cada conta.
544
No segundo poema, Gregório de Matos expressa seu amor a Maria através
do soneto A Nossa Senhora do Rosário em uma Academia que fez o Poeta, cuja
análise segue:
A primeira estrofe atualiza uma imagem de Nossa Senhora, extraída do
Antigo Testamento “rosa em Jericó plantada:
543
MATOS: 1999, p. 83.
544
MATOS: 1999, p. 84.
220
Fragrante rosa em Jericó plantada,
Como a lua formosa e esclarecida,
Como o sol, entre todas escolhida,
E como puro espelho imaculada,
545
A metáfora “rosa de Jericó” é usada nos livros sapienciais Eclesiastes,
Salmos, Cântico dos Cânticos - como representação da Sabedoria Divina, como
reiteramos o versículo bíblico: “Cresci como a palmeira em Engadi/ como roseira em
Jericó/ como formosa oliveira na planície, cresci como plátano.
546
Muitos poetas,
dentre eles José de Anchieta, como assinalamos, e Gregório de Matos, usam
essa figura poética como imagem de Maria, em razão de uma lenda.
Conta-se que, na fuga para o Egito, a família de Nazaré encontrou uma
roseira plantada em Jericó durante a caminhada. Ela foi abençoada por Maria e
esteve sempre florida, enfeitando a vida de Jesus, durante toda a época que ele
esteve na terra. Quando Cristo morreu, as rosas murcharam e depois da
ressurreição a roseira floresceu novamente, assim como Maria que, ocultamente
acompanhou a vida pública de Jesus e, após sua ressurreição, esteve junto aos
apóstolos, no início da Igreja. No Oriente, a rosa de Jericó é conhecida como planta
da ressurreição, pois suas flores se renovam continuamene.
Ainda na primeira estrofe, recorrência de elementos da natureza, a lua e
o sol, comparando-os com Maria. Também o eu-poemático se dirige a ela com o
atributo de “puro espelho imaculada” (v.4), de uso corrente nos séculos XV e XVI,
por ser Maria, sem mácula, a imagem refletida de Deus. “O significado do espelho
na história das religiões funda-se na crença da identidade da imagem refletida no
espelho com a sua imagem original”
547
.
Na segunda estrofe, o eu-poemático explora a temática expressa em outros
poemas e nos documentos da Igreja, de que a Virgem Maria foi projetada pelo
Criador para ser a Mãe de Deus-Filho encarnado, por isso preservada de qualquer
pecado e plena de graça:
545
MATOS, Gregório. Poemas Escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1973, p.312.
546
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Eclo 24, 14.
547
LURKER: 1993, p.92.
221
Virgem antes dos séculos criada
Para mãe do supremo Autor da vida,
Para fonte de graça dirigida,
E de toda a desgraça reservada.
548
Os tercetos concluem a ideia proposta, no título do poema, de consagrar a
Academia a Nossa Senhora do Rosário e de apresentar o seu louvor à “mãe do
supremo Autor da vida”:
Pois a vosso rosário se dedica
Esta academia, em que tanto acerta,
Consagrando-se a vós, divina rosa:
549
Claro, patente, e manifesto fica,
E sem falência conclusão é certa,
Que do mundo há de ser a mais gloriosa.
550
O sujeito lírico demonstra, nos tercetos, a sua convicção nos méritos da
Virgem do Rosário e ele encerra o poema com grande eloquência “claro, patente e
manifesto fica [...] que do mundo há de ser a mais gloriosa”.
551
. Ressaltamos que, no
último verso, ele alvitra aquilo que está escrito na meditação do Rosário acerca do
mistério glorioso, em relação a Nossa Senhora:
„A contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do
crucificado. Ele é o Ressuscitado!‟ O Rosário sempre expressou essa
certeza da fé, convidando o crente a ultrapassar as trevas da Paixão,
para fixar o olhar na glória de Cristo com a Ressurreição e a
Ascensão. [...] A essa glória, em que com a Ascensão de Cristo se
senta à direita do Pai, ela mesma será elevada com a Assunção,
chegando, por especialíssimo privilégio, a antecipar o destino
reservado a todos os justos com a ressurreição da carne. Enfim,
coroada de glória como aparece no último mistério glorioso esta
resplandece como Rainha dos Anjos e dos Santos, antecipação e
ponto culminante da condição escatológica da Igreja.
552
548
MATOS: 1973, p. 312.
549
MATOS: 1973, p. 312.
550
MATOS: 1929, p. 312.
551
MATTOS: 1929, p. 102.
552
JOÃO PAULO II (Papa). Carta Apostólica Rosarium Virginis Marie.edição. São Paulo: Paulinas,
2002, p. 34,35.
222
No Brasil colonial, foi intensa a devoção a Nossa Senhora do Rosário e à
recitação do Rosário, principalmente entre os escravos e os cidadãos livres
iletrados. Naquele período, a reza do terço se transformou na liturgia mais
frequentada entre as classes menos favorecidas. “O terço era toda a liturgia dos
pobres, dos que não sabiam ler nem escrever, mas que elevavam sua alma na
contemplação dos mistérios da vida de Maria e de seu Divino Filho”
553
Entre os vários títulos dedicados a Mãe de Deus, Nossa Senhora do
Rosário foi o preferido dos escravos que erigiram muitas capelas dedicadas a esse
orago, principalmente nas Minas Gerais.
5.2.3 Nossa Senhora das Neves
Entre sonhos, Maria imaculada
revelou a Patrício duvidoso
o Mistério do templo suntuoso,
porque espera ser nele venerada.
Mostra o lugar do templo que lhe agrada
entre a insólita Neve, milagroso,
com que merece o monte venturoso
do Carmelo e grandeza celebrada.
554
O culto a Nossa Senhora das Neves remonta ao século IV, na Itália e foi a
própria Virgem quem pediu para erguer um santuário em sua honra. Conta a
tradição que havia em Roma um casal abastado e sem filhos. Imbuídos de profundo
espírito religioso, marido e mulher resolvem empregar sua fortuna para a glória de
Deus:
Estando ambos preocupados com este projeto, a Santíssima Virgem
lhes deu a entender que desejava ser a herdeira. „Edificar-me-eis uma
basílica na colina de Roma que amanhã estiver coberta de neve‟. Era
4 para 5 de agosto (do ano 352), época em que são excessivos os
calores na Itália. No dia seguinte, o Esquelino estava coberto de neve!
A cidade inteira acode ao lugar do milagre. O papa Libério,
553
MEGALE: 2001, p.431.
554
BOTELHO DE OLIVEIRA: p, 264.
223
acompanhado de todo o clero, para se dirige também. Conta-se ao
povo a causa do prodígio, e a igreja é edificada à custa dos piedosos
cônjuges, recebendo o nome de Nossa Senhora das Neves, nome
venerável que ainda hoje conserva
555
.
A igreja erguida no local indicado pela Santa recebeu várias denominações:
Basílica Liberiana, em homenagem ao Papa da época, Santa Maria do Presépio,
pela veneração de um histórico presépio ali existente, e Basílica de Santa Maria
Maior, por ser a mais importante igreja dedicada à Virgem Santa, em Roma.
No Brasil,
556
um dos registros mais antigos de Nossa Senhora das Neves é
a pequena ermida, fundada em 1584, na Ilha da Maré, no Recôncavo Baiano.
Contudo, o orago de maior destaque está na cidade de João Pessoa, na Paraíba, e
está ligada à colonização daquele espaço territorial.
Durante o período de ocupação portuguesa no Nordeste, muitas lutas entre
os primitivos habitantes e os colonizadores ficaram patentes na História do Brasil. A
conquista do estado da Paraíba foi longa e difícil, face aos muitos ataques dos
índios potiguares, com o apoio dos franceses. A expulsão definitiva de ambos,
ocorreu na última década do culo XVI, quando o capitão João Tavares, aliou-se à
tribo tabajara, na pessoa de seu cacique Piragibe. O pacto entre portugueses e
tabajaras ocorreu no dia 5 de agosto, por isso o arraial ora instalado, recebeu o
nome de Nossa Senhora das Neves, o santo do dia, que era uma forma comum de
nomear topônimos e antropônimos, na época.
Durante a união das coroas luso-espanhola, o pequeno povoado foi
chamado de Filipéia, em apreço a Filipe II, rei de Espanha. Em 1634, com a
ocupação holandesa, Frederica, em honra a Frederico de Orange, governador da
Holanda. Com a expulsão dos holandeses em 1645, a próspera cidade foi nomeada
de Paraíba até 1930, quando, em memória ao presidente assassinado, passou a
chamar-se João Pessoa.
Embora o diminuto arraial, fundado em fins do século XVI, tenha recebido
tantas nominações ao longo dos séculos, seu orago nunca deixou de ser o mesmo.
555
ADUCCI, Edésia. Maria e seus títulos gloriosos. 2ª ed, São Paulo: Loyola, 1998, p.45.
556
MEGALE: 2001, p.348, 349.
224
A cidade sempre teve a proteção de Nossa Senhora das Neves, padroeira da
cidade.
A imagem de Nossa Senhora das Neves exposta no retábulo da catedral
segue a iconografia tradicional de Maria, acompanhada do Menino-Jesus, porém os
católicos paraibanos têm maior apreço por uma pequena escultura de madeira
articulada muito antiga, com cerca de cinqüenta centímetros de altura, sem registro
de sua chegada ao local que os devotos de Maria, carinhosamente, a chamam de
Noivinha, por sua indumentária branca, lembrando, também, a alvura da neve.
Nossa Senhora das Neves, a Noivinha, de João Pessoa (PB)
O poema A uma fonte que nasceu milagrosamente em capela de Nossa
Senhora das Neves na Freguesia de Avelã, de Gregório de Matos, cultua Nossa
Senhora das Neves utilizando vários atributos, como representações de Maria:
225
Desse cristal, que desce transparente,
Nesse aljôfar, que corre sucessivo,
Desce a nós o remédio compassivo,
corre a nós a mezinha diligente.
557
Na estrofe inicial, o discurso barroco empregado por Gregório de Matos
revela a utilização do cultismo
558
como forma de expressar suas idéias. A água que
brota da fonte apresenta o estado da pureza do cristal, o qual, embora tendo a
materialidade da pedra, é translúcido. Essa imagem representa “o plano
intermediário entre o visível e o invisível”.
559
O cristal é belo e forte, mas ao mesmo tempo é semiprecioso, diamante
embrionário, assim como Maria é “cheia de graça” e ”serva do Senhor”, conforme a
simbologia:
Na cristandade, a luz que penetra o cristal é uma imagem tradicional
da Imaculada Conceição: Maria é um cristal; seu filho, a luz celeste.
Assim ele a atravessa toda sem, no entanto, quebrá-la (Ângelus
Silesius
560
). Também, antes de serem instrumentos divinitórios, as
bolas de cristal foram objeto de veneração: os escoceses chamavam-
nas pedras de vitória.
561
Do cristal, cai delicadamente a água em forma de aljôfar, isto é, em
gotículas como remédio, “mezinha diligente” (v.4), são todas as graças que emanam
das mãos de Nossa Senhora. O próprio Cristo é uma dádiva de Deus que, através
do “sim” de Maria, veio a cada criatura sarar sua alma, trazer a redenção do pecado
original. Essa idéia é confirmada na segunda estrofe:
De vosso ser lhe nasce o ser corrente,
Manancial de graças sempre vivo,
557
MATOS, Gregório. Poesias escolhidas. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 313.
558
Cultismo - estilo de origem espanhola, iniciado com o poeta Luís Gôngora (1561-1627),
caracterizado pelo uso exagerado da imagística, especialmente metáforas e hipérboles e pelo
preciosismo lexical, ocorrendo principalmente em textos de escritores do barroco.
559
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 17ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2002, p.303.
560
Ângelus Silesius é o pseudônimo de Johannes Scheffler (1624-1667): filósofo, místico cristão e
poeta do barroco germânico. Publicou Diário de um Anjo: Trovas de Louvor e Amor a Deus e O
Peregrino Querubínico.
561
CHEVALIER e GHEERBRANT: 2002, p. 303.
226
Que geralmente assim distributivo
Tanta prata nos dá liberalmente.
562
De Maria, advém o “manancial de graças sempre vivo” (v.6),
simbolicamente o Cristo ressuscitado, vivo e verdadeiro. A partir do verso seis,
mescla entre as graças operadas por Jesus e aquelas advindas de sua Mãe, com a
imagem “Tanta prata nos liberalmente”(v.8). A prata evoca a figura de Maria, por
sua relação ao elemento feminino, à lua e à água. A prata é também símbolo da
pureza e purificação por sua cor e luminosidade.
563
A pureza é um atributo de Maria,
mas a purificação só pode ser obtida pelos méritos de Jesus.
Os tercetos encerram as ideias sobre a fonte que nasceu na capela de
Nossa Senhora das Neves:
Porém, Virgem das Neves, se sois Fonte,
como enfim nos cantares se descreva,
e se sois sol, suposto o sol se afronte,
564
Essa fonte, Senhora, a vós se deve.
Mas que muito, que estando o sol no monte,
nos dê no vale derretida a neve ?
565
Para concluir a exposição, as estrofes apresentam a típica estrutura
sintática barroca, eivada de questionamentos, em que se associam frases
introduzidas por condicionais, além da oposição entre aspectos espirituais e
materiais, conforme os versos “se sois Fonte [...] se sois sol, [...] estando o sol no
monte,/ nos dês no vale derretida a neve ?” (vv.13/14).
No sentido espiritual, Maria é a Fonte, pois de suas entranhas procede o
Filho de Deus, a água da vida. Maria é a Fonte que deu ao mundo o Salvador. No
sentido material, a fonte nasce porque o sol derrete a neve do monte.
562
MATOS: 1973, p.313.
563
LURKER:1993, p.193.
564
MATOS: 1973, p.313.
565
MATOS: 1973, p.313.
227
5.2.4. Salve Rainha, Mãe da Misericórdia
Com júbilo geral todos alerta
veem no Empíreo a Maria coroada,
que sendo do pecado preservada,
da serpente venceu a morte certa.
Do céu a casa nobre se concerta,
para os homens, que estava então fechada,
e Maria que a vê já preparada
como é porta do Céu, é porta aberta.
566
O título Nossa Senhora advém da realeza de Maria que é uma verdade
teológica, fundamentada ao longo do tempo e consta não nos documentos mais
antigos da Igreja, como também nos livros da Liturgia católica. Afonso de Ligório
567
,
introduz suas Glórias de Maria com o seguinte parecer:
1. Maria é Rainha
Tendo sido a Santíssima Virgem elevada à dignidade de Mãe de Deus,
com justa razão a Santa Igreja a honra, e quer que de todos seja
honrada com o título glorioso de Rainha. Se o Filho é Rei, [...] a Mãe
deve considera-se Rainha. Desde o momento em que Maria aceitou
ser Mãe do Verbo Eterno, [...] mereceu tornar-se Rainha do mundo e
de todas as criaturas.
568
A Rainha, nas cortes orientais mais antigas, é vista sob duas formas: a
Rainha Mãe e a Rainha Esposa. Em relação ao Rei, a Rainha Mãe tem maior
destaque que a Rainha Esposa e isto pode ser observado em duas passagens do
Antigo Testamento, quando Betsabeia, uma das mulheres de Davi e mãe de
Salomão se prostra diante de Davi e, posteriormente, recebe as honras de Rainha
por Salomão:
566
BOTELHO DE OLIVEIRA: 2005, p. 262.
567
Santo Afonso de Ligório (16 96-1787), doutor da Igreja e fundador da Congregação do
Santíssimo Redentor, escreveu Glorias de Maria, publicada na Itália em 1758 e, até 1952, houve 761
edições: 111 italianas, 82 alemãs, 36 inglesas, 60 espanholas, 328 francesas, 64 holandesas e 80 em
outras línguas. No Brasil, a 1ª edição ocorreu em 1907.
568
LIGÓRIO, Afonso Maria de (Santo). Glórias de Maria: com indicação de leitura e orações para dois
meses marianos. Tradução Pe. Geraldo Pires de Sousa, ed. Aparecida (SP): Editora Santuário,
1989, p.35.
228
Betsabeia foi ter com o rei [Davi] em seu aposento. Ora, o rei estava
muito velho e Abisag de Sunam o servia. Betsabeia se inclinou e se
prostrou diante do rei, e o rei lhe perguntou: „Que desejas?‟ Ela
respondeu-lhe: „Meu senhor, juraste à tua serva por Iaweh teu Deus;
Teu filho Salomão reinará depois de mim e é ele que se sentará no
meu trono‟.
569
Betsabeia foi, pois, à presença do rei Salomão para lhe falar de
Adonias e o rei se ergueu para ao seu encontro e se prostrou diante
dela; depois sentou-se no trono e mandou colocar um assento para a
mãe do rei e ela sentou-se à sua direita. Disse ela: „Tenho um pedido
para te fazer, não mo negues‟. O rei respondeu: „Pede, minha mãe,
que não to negarei‟.
570
No Novo Testamento, o texto mais contundente sobre a magnificência de
Nossa Senhora, se encontra na saudação de Isabel que chama “mãe do meu
Senhor”
571
a Maria, sugerindo que esta também participava da realeza divina de seu
Filho.
A instituição oficial de Maria, Rainha da Igreja ocorreu em 11 de outubro de
1954, com o Papa Pio XII, por ocasião das festividades do centenário da
proclamação do dogma da Imaculada Conceição. Naquele momento histórico, o
Papa publicou a encíclica Ad Coeli Reginum - sobre a realeza de Maria - que era
uma complementação do dogma da Assunção corpórea de Maria ao céu, de de
novembro de 1950, conforme explicita o artigo 45 da encíclica sobre o título dado à
Maria e dispõe sobre a sua festa:
Depois de atentas e ponderadas reflexões, tendo chegado à convicção
de que seriam grandes as vantagens para a Igreja, se essa verdade
solidamente demonstrada resplandecesse com maior evidência diante
de todos como luz que brilha mais, quando posta no candelabro, - com
a nossa autoridade apostólica decretamos e instituímos a festa de
Maria rainha, para ser celebrada cada ano em todo o mundo no dia 31
de maio. Ordenamos igualmente que no mesmo dia se renove a
consagração do gênero humano ao seu coração imaculado. Tudo isso
569
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, 1Rs 1, 15-17.
570
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, 1Rs 2, 19-20.
571
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Lc 1,43.
229
nos incute grande esperança de que de surgir nova era, iluminada
pela paz cristã e pelo triunfo da religião
572
.
Gregório, no poema Salve Rainha a Virgem Santíssima, congrega vários
elementos no campo da construção poética que o diferencia dos demais, a começar
pela não opção da forma fixa do soneto. O texto poético é construído por vinte e seis
quadras com versos heptassílabos, diferentemente dos sonetos, compostos em
versos decassílabos. A linguagem é simples e a sintaxe dos versos é direta.
A melopeia com a acentuação tônica na 1ª, e e o posicionamento de
rimas interpoladas em todas as estrofes, excetuando a primeira, emprestam
cadência rítmica e rímica, produzindo um texto de grande harmonia sonora, ficando,
quanto a esse aspecto, muito próximo das cantigas medievais e do cancioneiro
popular da atualidade.
O conteúdo do texto é uma recriação, em versos, de uma das orações
marianas mais populares, a Salve Rainha, segundo notícia histórica:
Esta bela oração da Salve. Rainha, por alguns atribuída ao Bispo
Ademar Puy ( 1098), tem por autor a Hermano Contracto († 1054),
monge beneditino do convento de Reichenau, no lago de Constança.
Dele temos também certamente a admirável melodia. os primeiros
Cruzados contaram-na em 1099, o que mostra que o povo também a
conhecia. Durante os séculos XII e XIII, mais e mais se espalhou o
costume de cantá-la logo após as Completas. Assim faziam os
Cistercienses desde 1218 e os Dominicanos desde 1226. em 1239 o
Papa Gregório IX introduziu esse cântico nas igrejas de Roma.
Encaminhavam-se os monges, de velas acesas, para um altar lateral e
aí o entoavam. No começo o hino dizia: Salve, Rainha de Misericórdia.
No século XVI introduziu-se-lhe a palavra mãe. Desde então lê-se no
Breviário Romano: salve, Rainha, Mãe de Misericórdia.
573
Parte dos autores marianos chega a afirmar que, depois do Pai-nosso e da
Ave-Maria, a Salve-Rainha é a prece mais simples, mais tradicional e mais recitada
572
PIO XII (Papa). Carta Encíclica Ad Caeli Reginam - Sobre a realeza de Maria e a instituição da sua
Festa, n
o
. 45. In: Documentos de Pio XII (1939-1958). Tradução Poliglota Vaticana. São Paulo: Paulus,
1998, p. 712/713.
573
SOUZA, Geraldo Pires. Nota introdutória. In: LIGÓRIO, Afonso Maria de (Santo). Glórias de Maria:
com indicação de leitura e orações para dois meses marianos. 3ª ed. Aparecida (SP): Editora
Santuário, 1989, p.34.
230
entre os católicos. Quanto ao poema de Gregório de Matos, a originalidade reside em
compô-lo a partir da utilização do último verso de cada estrofe, como lemos:
Salve, Celeste Pombinha,
Salve, divina Beleza,
Salve, dos Anjos Princesa,
e dos céus, Salve Rainha.
574
Sois graça, luz e concórdia
entre os maiores horrores,
sois guia de pecadores
Madre de Misericórdia
575
Sois divina Formosura,
sois entre a sombras da morte
o mais favorável Norte,
e sois da vida Doçura
576
Sois a mais peregrina Ave,
pois minha fé vos alcança
sois por ditosa esperança
Esperança nossa Salve
577
Na introdução do poema, o sujeito poético saúda a Maria por quatro vezes,
utilizando a interjeição salve. Essa saudação enfática tem a sua correspondência
ave, que foi proclamada pelo Anjo Gabriel no episódio da Anunciação. Embora o
objetivo do poeta seja recriar a oração, as imagens que se formam em torno de
Nossa Senhora são similares às usadas em outros poemas, na maioria, extraídas de
textos bíblicos.
Na última saudação, ele exclama Salve Rainha, tal como na ladainha
mariana onde Maria é “Rainha dos anjos, dos patriarcas, dos profetas, dos
apóstolos, dos mártires, dos confessores, das virgens, de todos os santos, do
santíssimo Rosário, da paz; é rainha concebida sem pecado e assunta ao céu”
578
.
574
MATOS: 1999, p.63.
575
MATOS: 1999, p.63.
576
MATOS: 1999, p.63.
577
MATOS: 1999, p.63.
578
MISSIONÁRIOS REDENTORISTAS. Manual do Devoto de Nossa Senhora Aparecida. 1ª ed.
1904, 76ª ed. Aparecida (SP): Santuário, 2007, p. 95.
231
No conjunto de versos, Maria é pombinha, princesa, rainha, luz, vento, guia,
ave; ela é a personificação da Beleza, da Misericórdia, da Formosura, da Doçura, da
Esperança, é também Graça e Concórdia. Esses atributos positivos conferidos a ela
compõem um texto imagético, pleno de excelsas virtudes.
“Sois a mais peregrina ave”, “ave” é anagrama de Eva. Maria é a nova Eva,
por isso a “Esperança nossa Salve”. “Salve” o é tão somente uma saudação, mas
também o verbo salvar. Maria é a expectativa da redenção do pecado de Eva.
Como afirma Santo Afonso de Ligório: “Quanta não deve ser, pois, a nossa
confiança nesta Rainha, sabendo nós quanto é ela poderosa perante Deus e cheia
de misericórdia para com os homens!”
579
Vosso favor invocamos
como remédio mais raro,
não nos falte vosso amparo,
e vede, que a vós bradamos
580
Os da pátria desterrados
viver na pátria desejam;
quereis vós, que dela sejam
deste mundo os degradados ?
581
O texto original apresenta Maria como a Mãe da Misericórdia, que vem para
socorrer os “degredados filhos de Eva”, isto é, aqueles que perderam o paraíso para
padecer neste vale de lágrimas (terra), assim o pecador brada por seu amparo. O
texto poético, de Gregório de Matos, reelabora o original e apresenta a idéia de que
a humanidade deseja viver aqui na terra, embora esteja desterrada do paraíso, pelo
pecado dos primeiros pais. o trocadilho de degredado para degradado, nova
condição do homem em seu desterro.
Nossa Senhora desejaria ver seus filhos degradados? É o questionamento
expresso nos três últimos versos. Os vocábulos desterrados (texto poético) e
degredados (texto original) m o sentido de deixar a terra, sair de sua terra;
579
LIGÓRIO: 1989, p.41.
580
MATOS: 1999, p.63.
581
MATOS: 1999, p.63.
232
etimologicamente, o desterrado/degredado deixa sua terra por uma punição. Assim,
o desterrado/degredado é um degradado socialmente e Maria volve seus olhos a
essas pessoas. Maria não quer ver seus filhos corrompidos, degenerados, apartados
do amor de Deus com o pecado original.
No sentido teológico, Maria possibilitará o homem a ter de volta o paraíso,
por sua condição de genitora do Verbo Encarnado que expiou os pecados da
humanidade. A continuação do poema reforça as idéias contidas no texto original:
Humilde vos invocamos
com rogos enternecidos,
e desse amparo rendidos,
Senhora, a vós suspiramos.
582
Se Deus nos perdoa, quando
a nossa culpa é chorada,
estamos por ser perdoada,
aqui gemendo, e chorando.
583
Mas vós, por quem mais se vale,
Lírio do Vale, chorais,
e o vosso pranto val mais
neste de Lágrimas vale
584
A gradação ascendente demonstra o sentimento deste homem desterrado
que suspira, geme, implora, chora, brada pela intercessão da Rainha. Ele tem a
certeza de que “Não existe ninguém, por mau e culpado que seja, que não deva
esperar com segurança seu perdão, desde que seu arrependimento seja sincero”
585
,
proposto na sequência de versos “Se Deus nos perdoa, quando/ a nossa culpa é
chorada/, estamos por ser perdoada”
586
Maria é o “Lírio do Vale”, imagem símbolo “da graça e da eleição”
587
.
Recorrer a essa eleita de Deus é reencontrar a graça perdida por sua intercessão:
582
MATOS: 1999, p.64.
583
MATOS: 1999, p.64.
584
MATOS: 1999, p.64.
585
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: 1999, n
o
. 982.
586
MATOS: 1999, p. 64.
587
LUKER: 1993 , p. 136.
233
“Todos os fiéis dirijam súplicas instantes à Mãe de Deus e Mãe dos homens, para
que ela, que assistiu, com suas orações, os alvores da Igreja, também agora,
exaltada, no céu acima de todos os anjos e bem-aventurados, interceda junto de seu
Filho
588
, nos diz o Magistério da Igreja, através da Lumen Gentium. O poema
apresenta em sua conclusão:
Pois quem mais pode, sois vós,
chegando a Deus a pedir
para melhor vos ouvir,
pedi, e rogai por nós.
589
Que então os favores seus
muito melhor seguramos,
pois que neles empenhamos
a Santa Maria de Deus.
590
Fazei-nos sempre benignos
entre deste mundo os sustos
para que sejamos justos
para que sejamos dignos
591
E se nos concedeis isto,
que vos pede o nosso rogo
mui dignos nos fareis logo
ser das promessas de Cristo
O texto poético acrescenta a ideia de condição, “E se nos concedeis isto,/
que vos pede o nosso rogo/ mui dignos nos fareis logo/ ser das promessas de
Cristo”
592
, isto é, humanidade será digna do Mistério da Encarnação, se as preces
do suplicante forem atendidas. Para isto Maria é a “divina luz”, a “melhor Estrela”, o
“amparo” que guiará o homem para a salvação, através do sacrifico de Cristo.
O texto original não propõe a condição, mas apenas expõe a jaculatória
cheia de confiança na Mãe da Misericórdia: “Rogais por s Santa Mãe de Deus,
588
LUMEN GENTIUM: 2003, n
o
69.
589
MATOS: 1999, p. 64.
590
MATOS: 1999, p. 64.
591
MATOS: 1999, p. 64.
592
MATOS: 1999, p. 64.
234
para que sejamos dignos das promessas de Cristo”
593
. Nesta parte final, tanto na
oração mariana, quanto no texto poético, é explícita a ideia da mediação de Maria
para que a humanidade receba as benesses das promessas de Cristo:
A maternidade de Maria, na economia da graça, perdura sem cessar,
desde o consentimento que ela prestou fielmente na anunciação e
manteve sem vacilar ao da cruz, até a consumação final de todos
os eleitos. De fato, depois de elevada ao céu, não abandonou esta
missão salutar, mas, pela múltipla intercessão, continua a obter-nos os
dons da salvação eterna. Com seu amor de Mãe, cuida dos irmãos de
seu Filho, que ainda peregrinam e se debatem entre perigos e
angústia, até que sejam conduzidos à Pátria feliz. Por isso, a
Santíssima Virgem é invocada, na Igreja, com os títulos de Advogada,
Auxiliadora, Amparo e Medianeira.
594
Gregório de Matos, como expressão do barroco impõe condição, expressa
dúvida, propõe questionamentos e constrói seus poemas fundados na linguagem
imagética, como analisa Bazin:
Os homens da época barroca eram visuais. Não existe nenhum
dogma, nenhuma idéia, nenhum conceito, nenhum sentimento que
eles não tenham revestido, com uma imagem, aos quais eles não
deram uma figura
595
.
Abstraindo as palavras de Bazin, percebemos o quanto Gregório de Matos
transitou por essa característica. Nos poemas marianos, em grande parte das
imagens, ele faz analogia de Nossa Senhora com o cosmos e com os elementos da
natureza. Os símbolos e alegorias acerca da figura de Maria são tratados de forma
positiva, com demonstração de seu apreço a ela e de pleno amor filial.
593
MISSIONÁRIOS REDENTORISTAS. Manual do Devoto de Nossa Senhora Aparecida. 1ª ed.
1904, 76ª ed. Aparecida (SP): Santuário, 2007, p. 92/93.
594
LUMEN GENTIUM: 2003, 126/127.
595
BAZIN, Germain. Iconologia Religiosa Barroca na Europa Central in Barroco: teoria e análise.
Affonso Ávila (org). São Paulo: Perspectiva, 1997, p.89.
235
5.3. A Amazônia é de Maria
Meu povo índio sofrera como a seringueira:
abrindo as veias para amar o espaço
do sagrado futuro.
Agora ficam meninos
os homens, só de cantar
com o rio e a mata e a cidade.
Cantamos diante da Virgem
um canto de dolência tão cabocla,
que uma só lágrima dela, imensa,
começa a nos salvar.
596
O culto à Maria na Amazônia está intimamente ligado à história dessa terra.
Em muitos casos, tem relação direta com as ordens religiosas que aportaram no
território e efetivaram a conquista espiritual de seu povo. O trabalho missionário
dessas ordens não objetivou tão somente a atividade catequética do nativo, mas
atuou em diferentes campos de atividades, dentre os quais se destacam o ensino,
com o trabalho prático nas oficinas destinadas à profissionalização e com a
fundação de escolas, além da construção de igrejas e conventos.
A primeira referência à Virgem está registrada na descoberta do rio
Amazonas, pelo capitão espanhol Francisco de Orellana, relatada através da pena
do dominicano Frei Gaspar de Carvajal, cronista da expedição:“Terminada a obra, e
visto que a comida se esgotava, tendo morrido sete de nossos companheiros da
fome passada, partimos no dia de Nossa Senhora da Candelária”,
597
era dia 2 de
fevereiro de 1542.
O rio descoberto por Orellana recebeu o nome de rio das Amazonas cujas
terras, por ele atravessadas, foram presenteadas ao capitão, pelo Rei de Espanha,
sob o título de Nova Andaluzia.
596
CARPHENTIER, Max. Livro dos Salmos. In: Nossa Senhora de Manaus. Manaus: Grafima, 1999,
p.120.
597
CARVAJAL, Gaspar. Descobrimento do rio de Orellana. Tradução de C. de Mello-Leitão. São
Paulo: Editora Nacional, 1941, p. 53.
236
Quase um século depois, em 12 de janeiro de 1616, a expedição
portuguesa, comandada pelo capitão Francisco Caldeira de Castelo Branco, vem da
Província de o Luis do Maranhão para colonizar as terras do rio navegado por
Orellana e para cercear a ocupação do território que vinha sendo continuamente
explorado por franceses, ingleses e holandeses.
Os homens do capitão escolhem um local seguro na foz do rio Guamá e
aportam, onde erguem uma fortificação militar. Deram, aos locais, nomes evocativos
à carga emocional dos conquistadores e à sua espiritualidade cristã. As terras da
Nova Andaluzia são agora nomeadas de Feliz Lusitânia, a fortaleza militar recebe o
nome de Forte do Presépio, o arraial que se forma no local ganha a nomeação de
Santa Maria de Belém. “A igrejinha, erguida na fortaleza, ficou sob a invocação de
Nossa Senhora da Graça”. Leandro Tocantins, discorrendo sobre a Igreja da Sé,
rememora esses fatos:
[...] basta ver para jamais esquecer a de Belém. A catedral de
invocação de Santa Maria da Graça da Cidade de Belém do Grão
Pará. É um dos mais belos templos do Brasil. Como imponência
de arquitetura, como arte religiosa, como riqueza sóbria de
interior.
Sua origem remota foi a pequenina ermida coberta de palha que
Francisco Caldeira de Castelo Branco fez erguer no Forte do
Presépio, em 1616, sob o orago de Nossa Senhora da Graça,
alguns anos depois transferida para o local onde hoje se
encontra.
598
Em 4 de março 1719, a igreja é transformada na sede do poder episcopal
que fora desmembrada do Bispado do Maranhão, através da Bula Copiosus in
Misericordia, do Papa Clemente XI, sob a mediação de D. João V. Era necessário,
portanto, um templo mais apropriado à nova situação eclesial. O monarca lusitano
ordena, em 1723, a construção da catedral.
Em 3 de maio do ano de 1748 é lançada a pedra fundamental da igreja, em
23 de dezembro de 1755 é benta pelo bispo D. Frei Miguel de Bulhões, em “8 de
598
TOCANTINS, Leandro. Santa Maria do Belém do Grão Pará. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1963, p. 150.
237
setembro de 1771, surgia a Catedral imponente. Os mestres d‟obra deram-na por
terminada.”
599
Outras igrejas, dedicadas a Maria, são erigidas em Belém, conforme ordem
cronoógica: Nossa Senhora do Monte do Carmo (1626); Nossa Senhora das Mercês
(1639); Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1682) que, no século XVII,
dividiu a devoção dos fiéis com outros patronatos na igreja de Santo Alexandre
(1653); na capela de São João Batista (1648?); na capela de Santo Antônio (1626) e
na capela da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (1694).
Nossa Senhora de Belém, Igreja da Sé
599
TOCANTINS: 1963, p.152.
238
A edificação da igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo ocorre junto ao
convento dos carmelitas calçados que chegam a Belém em janeiro de 1626, quando
iniciam o trabalho de catequese. Em 1696, a igreja está em ruínas e em seu lugar
ergue-se outra, mais adequada às condições de desenvolvimento da ordem:
Quando as obras estavam quase findas surgiu uma desinteligência
entre o Bispo e os Carmelitas. A autoridade eclesiástica decretou a
interdição da Igreja. Os Carmelitas apelaram para a Justiça Real. De
Lisboa veio a decisão favorável à Ordem e eles abriram o seu templo,
com muitas festas, no dia 21 de abril de 1700.
A atual Igreja do Carmo resulta de nova transformação operada em
1766. Estava em Belém o arquiteto Antônio José Landi e os padres
Carmelitas encomendaram-lhe os desenhos.
600
Assim como os carmelitas, os mercedários aportam em Santa Maria de
Belém em 12 de dezembro de 1639. Frei Afonso de Armijo, Frei Pedro de La Rua
Cime e mais dois irmãos leigos são os primeiros a chegarem com a expedição de
Pedro Teixeira em retorno do Peru, onde os religiosos desenvolviam trabalho
catequético.
Logo, eles iniciam o serviço de construção do convento e da igreja nas terras
doadas por Mateus Cabral que endossou o presente com sete vacas para o começo
do trabalho missionário da Ordem. No ano seguinte, 1640, ocorre a restauração da
coroa portuguesa que estava sob o jugo da realeza espanhola, o novo monarca não
tem confiança nos mercedários espanhóis e deseja a sua saída, mas o povo da
região, através de documentos, solicita a permanência dos religiosos.
Em “9 de dezembro de 1645 um Alvará Real legalizou a presença
mercedária na região.[...] Mais de um século durou a primitiva Igreja de Nossa
Senhora das Mercês, apesar de seu arcabouço de taipa de pilão e da cobertura de
palha.”
601
Em 1748, tem início a construção de um novo templo mais adequado às
condições de prosperidade da Ordem.
600
TOCANTINS: 1963, p.177; 178.
601
TOCANTINS: 1963, p.186.
239
A igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é outra
edificação que tem como orago Maria e é uma das mais antigas de Belém.
As origens da ermida são remotas e se ligam à existência da
Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, fundada em 1682.
Possivelmente, nessa época, os Irmãos iniciaram a Casa de sua Santa
Padroeira. Uma construção singela, demolida em 1725 por não
oferecer segurança.
No mesmo ano a Irmandade fez levantar outro templo, o qual, é
provável, tenha sido uma reconstrução, aproveitando o arcabouço
antigo, posto que, notícias de 1761, fala da estreiteza da mesma
Ermida até isso igual à primeira que demoliram em 1765.
602
Como em outras cidades brasileiras, a igreja de Nossa Senhora do Rosário
abriga as confrarias de Nossa Senhora da Conceição e de São Benedito com quem
Maria divide o patronato dos negros.
O culto ao orago inicial de Nossa Senhora das Graças e de Nossa Senhora
de Belém do Grão Pará se solidificam no Pará, porta de entrada da Amazônia, e
segue até o Amazonas onde tem como padroeira Nossa Senhora da Imaculada
Conceição.
602
TOCANTINS: 1963, p.193.
240
5.3.1. De Belém a Manaus, Maria sempre louvada
De olhos abertos fico rezando,
Fora do mundo, junto ao altar,
Vendo chegar
O doce bando
Das Esperanças,
- Anjos formosos, meigas creanças,
Cachos de lyrios, rosas vermelhas,
Rubras scentelhas
Dos ceos descidas para o Perdão!
E como a Virgem tudo adivinha
Ri-se bondosa!... Salve, Rainha!
Cheia de Graça! Minha Madrinha!
Nossa Senhora da Conceição!
603
A exploração e a ocupação da bacia amazônica seguem de leste a oeste e
são realizadas, genericamente, por três grupos: sertanistas aventureiros em busca
de fama e riqueza; alguns homens ligados ao poder para marcar território e
missionários com fins catequéticos. Este último grupo tem maior relevância para este
trabalho.
Mesmo depois de dois séculos de descoberta do Brasil, na Amazônia,
muitas tribos ainda eram nômades e uma das tarefas das congregações religiosas
era fixá-las em aldeia e ali fundar a sede da missão, muitas das quais,
posteriormente, se transformam em cidades. Naquele período, as ordens religiosas
que mais se empenharam no trabalho catequético na região foram os carmelitas, os
jesuítas, os mercedários, sendo os missionários carmelitas os responsáveis pela
fundação de “quase todos os povoados do Rio Negro.”
604
Os carmelitas chegam ao Rio Negro em 1695 e “nas cercanias do fortim de
São José, aproveitando-lhe a sombra protetora, levantaram toscamente, de madeira
e palha, a capela de Nossa Senhora da Conceição, que tomaram como padroeira
do núcleo em formação”.
605
Era o primitivo ajuntamento populacional que se
constituiria na cidade de Manaus, erigido a partir da fortaleza de São José da Barra,
603
VAZ, Thaumaturgo Sotero. Minha Madrinha Nossa Senhora da Conceição. In: Lembranças.
Manaus: [s.ed.], 1993, p. 85,86.
604
REIS, Arthur César Ferreira. História do Amazonas. ed. Belo Horizonte (MG): Itatiaia; Manaus
(AM): Superintendência Cultural do Amazonas, 1989, p. 74.
605
REIS: 1989, p.74.
241
“fundada que fora sob a invocação de Jesus, Maria e José. Não obstante era
conhecida por fortaleza de São José da Barra. São José do Rio Negro, São José,
Casa Forte.”
606
A presença mariana no Amazonas vai sendo pouco a pouco ampliada,
demonstrando que o antigo orago, trazido pelos carmelitas, nunca desaparecera.
Em 1848, três vilas recebem a denominação de cidade pela Lei 145, de 24 de
outubro de 1848, dentre elas a atual capital do Amazonas que na ocasião recebeu o
nome de Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro em
homenagem à Maria Imaculada, padroeira da vila, agora transformada em cidade.
Naquela ocasião só havia duas igrejas católicas e ambas dedicadas à Mãe de Deus.
Posteriormente, o registro do historiador Antônio Loureiro referindo-se à
Criação da Província do Amazonas corrobora a afirmação:
Pela Lei 582, de 5 de setembro de 1850, proposta pelo deputado
João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha e levada ao Imperador,
para sansão, pelo ministro José da Costa Carvalho, marquês de Monte
Alegre, a Comarca do Alto Amazonas foi elevada à categoria de
Província, tendo por limites e extensão os mesmos da antiga Comarca
do Rio Negro. A capital seria a cidade Nossa Senhora da Conceição
da Barra do Rio Negro, erroneamente denominada de Vila da Barra do
Rio Negro, naquele documento, pois recebera a graduação, desde
1848.
607
A instalação da Província ocorre em de janeiro do ano seguinte, mas os
atos religiosos habituais se realizam na Igreja Nossa Senhora dos Remédios, que
funciona temporariamente como catedral, pelo fato de a igreja de Nossa Senhora da
Conceição ter sido destruída por um incêndio na noite do dia 2 de julho de 1850.
Um fato peculiar e curioso, que rodeia o incêndio da catedral e a imagem de
Nossa Senhora da Conceição, está registrado por Mario Ypiranga Monteiro:
606
MONTEIRO, Mário Ypiranga. A Fundação de Manaus. ed. Manaus: Editora Conquista, 1971,
p.26.
607
LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na época imperial. ed. Manaus (AM): Valer,
2007, p.25.
242
Existe um oratório fechado e muito pouco lembrado, por trás da
capela-mor da Sé Catedral, guardando curiosa imagem de Nossa
Senhora da Conceição em gesso e massa de papelão, que se diz ser
uma das relíquias mais antigas do Amazonas, pois viera com os
padres carmelitas fundadores da primitiva igreja em 1695. Essa
imagem, consoante a tradição foi uma das que se salvaram do
incêndio. Contudo, parece não existir nenhum documento que abone o
fato.
608
Nossa Senhora da Conceição
609
(Matriz- Manaus)
Nossa Senhora da Conceição (1695)
Caso a imagem seja, realmente, a primitiva, cabe refletir sobre a mediação
de Maria para que sua representação histórica não tenha sofrido avarias, mesmo
fabricada com material inflamável.
608
MONTEIRO, Mário Ypiranga. A catedral metropolitana de Manaus (sua longa história). Manaus
(AM): Sérgio Cardoso, 1958, p.19.
609
Escultura em madeira policromada, que se encontra no retábulo principal da Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Conceição, em Manaus (AM). Originária de Barcelona (Espanha), a composição
da imagem é inspirada na Virgen de los Venerables (sec. XVII), de Esteban Murillo.
243
Ressaltamos que os dois primeiros oragos em Manaus foram dedicados a
Nossa Senhora e, até a primeira metade do século XX, das nove igrejas existentes
em Manaus, cinco têm Maria como patronas: Nossa Senhora da Conceição (1659);
Nossa Senhora dos Remédios (1873); Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (1941);
Nossa Senhora Aparecida (1943); Nossa Senhora de Nazaré (1948). Esses registros
demonstram a importância do culto mariano para a Igreja do Amazonas. Esse culto
faz parte da história cultural amazonense e se estende aos artistas, como o faz Max
Carphentier, no seu canto de louvor a Nossa Senhora de Manaus.
5.3.2. A eco-religiosidade na poética de Max Carphentier
Bem aventurados os que em lei, verso, vontade,
na retorta, na prece e na palavra
a selva defenderem e seus mistérios lerem
e fundarem a sua paz da selva.
Porque o Reino será desses, daqueles que cumprirem
o destino de Deus neste transido
mundo que nos suporta enquanto o temos.
610
O escritor amazonense Max Carphentier nasce em Manaus em 29.4.1945,
sua fortuna crítica ainda é incipiente, embora tenha publicado várias obras, quer em
forma de poema, quer em forma de prosa. Alguns críticos o consideram simbolista
pelo teor do conteúdo expresso, outros, pós-modernista pelo tempo histórico de sua
produção; ou ainda, um caudatário da geração de 30, da Poesia em Deus da qual
foram representantes Murilo Mendes e Jorge de Lima. Também, podemos
considerá-lo um poeta neobarroco, pela temática explorada em seus poemas, pela
maneira pedagógica de fazer teologia, bem como pela profusão de imagens
presentes em seu texto, embora o processo enunciativo esteja distante daquilo que
se costuma encontrar na estilística de Gôngora. A explosão de signos é um dos
610
CARPHENTIER, Max. Sermão da Selva. 1ª. edição. Manaus: UBE/AM, 1982, p.53.
244
aspectos apontados por Severo Sarduy
611
, nas obras latino-americanas,
carcterizando-as como neobarrocas.
Max Carphentier inicia sua carreira literária, em 1975, com a obra Quarta
esfera com forte tendência à abstração e ao mistério, incluindo o discurso religioso e
ecológico. Em 1978, publica o livro de contos Vitrais da Busca e em 1979, Sermão
da Selva, obra poética que obteve grande repercussão.
Publicou ainda: Orfeu de Nazareno (1987), Fragmentos de luz (1987), Tiara
do Verde Amor - tríplice coroa de sonetos(1988), Nosso Senhor das Águas (1993);
Nossa Senhora de Manaus (1995); Teresa de Ávila, o Êxtase da Muralha (2001),
Celebração da vida: Missa planetaria (2003) e A musa de Jerusalém romance
histórico da vida de Jesus (2009). Em 1985, toma posse da cadeira número 31, na
Academia Amazonense de Letras.
Pelo sucesso obtido com o Sermão da Selva (1979), Max Carphentier
recebeu o reconhecimento da crítica especializada. Assim, apresentamos alguns
comentários sobre a obra e sobre o poeta. Vejamos o que nos diz Carlos Drummond
de Andrade:
O „Sermão da Selva‟ tem a dignidade da poesia a serviço da vida.
Assim, essa voz poética seja ouvida em coro com a dos cientistas e
dos brasileiros de boa vontade, para que não se arruíne a floresta
amazônica, esse bem da humanidade, que nos cumpre defender.
612
Fábio de Lucena observa que “Max Carphentier deu à Nação um livro
monumental”
613
, mas é preciso que seja conhecido nas escolas e nas universides e
seja traduzido em diversos idiomas. Além disso, ele aponta que:
É preciso ler e reler esse poema indefinível, que se reveste de
mensagens sagradas, em que o poeta se transforma num grande
profeta que ataca o depredador e chora a depredação, e que
conseguiu o impossível: reunir numa obra de arte todos os argumentos
que justificam a preservação da natureza em função dos seres vivos
611
SARDUY, Severo. Barroco y neobarroco. In: FERNÁNDEZ, C. Moreno. (coord.). America Latina en
su literatura. México: Siglo Veintiuno, 1972.
612
ANDRADE, Carlos Drummond. Jornal A Crítica: Manaus (AM): 20.06.79.
613
LUCENA, Fábio. Jornal A Crítica. Manaus (AM): 30.12.1979.
245
não apenas do homem, portanto, - que nela vive e que dela
depende.
614
Na vizinha Belém (PA), Pereira Neto sugere que o “Livro de poesia [...]
deveria ser adotado em todas as escolas do Brasil”
615
e, na comemoração ao Dia
Mundial do Meio Ambiente, de 1980, apresenta algumas considerações sobre a
obra:
Quero pois, no ensejo do 5 de maio, Dia Mundial do Meio Ambiente,
falar do Poeta da Selva e do seu Sermão. A poesia, em sua voz e por
seu talento, não é mero florilégio de torneio intelectual, tão a gosto de
certa gente. É compromisso com a vida e com o destino humano. A
sua arte é meio e fim de liberdade e esperança.
616
Pela leitura dos poucos depoimentos, sobre uma das obras de Carphentier,
é possível reconhecer o engajamento do poeta em questões ecológicas, como forma
de celebrar a vida. O livro de orações e salmos Nossa Senhora de Manaus - parte
do corpus desta tese - tem profundo sentimento telúrico e apelo teológico. Impresso
em setembro de 1995, faz homenagem ao tricentenário da fundação de Nossa
Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, em 1695, aos moldes de uma tosca
capelinha de madeira e palha, como registrou o historiador Arthur Reis,
demonstrado.
O prefácio foi elaborado pelo arcebispo de Manaus, Dom Luís Soares
Vieira, também pertencente à Academia Amazonense de Letras que o intitulou de
“A poesia mariana da vida amazônica” em cuja introdução assim se expressa:
Três coisas me deixam admirado: o ser humano, a natureza e a
música; uma quarta, entretanto, me extasia: as três transformadas em
poema. Ao terminar a leitura do livro de Max Carphentier intitulado
„Nossa Senhora de Manaus‟, percebi, como num passe de mágica,
que mergulhara num êxtase: nas palavras harmoniosas da poesia
tinha-me encontrado com o amazônida, a hiléia e a melodia. Quedei-
me em silêncio a degustar a beleza dos acordes que ainda vibram em
614
LUCENA, Fábio. Jornal A Crítica. Manaus (AM): 30.12.1979.
615
NETO, Pereira. Jornal O Liberal. Belém (PA): 11.05.1980.
616
NETO, Pereira. Jornal O Liberal. Belém (PA): 11.05.1980
246
minha alma. „O Livro das Orações‟ e „O Livro das Aparições‟ têm a
beleza que logo cativa e brota da sensibilidade criativa do artista.
617
Dividida em três partes - O livro das orações, O livro das aparições e Livro
dos Salmos - a obra é apresentada por uma Introdução-ofertório:
Considerai, Senhora, que, nas agressões à Selva, as árvores gemem,
as águas se queixam, os pássaros lamentam, o homem reza, mas as
flores e os frutos não têm voz, são vítimas caladas, sem a mínima
queixa. São humildes: tendo a palavra mais eloqüente da beleza e da
verdade de Deus, não reclamam, nem multiplicam as sementes da
dor, e cumprem sua missão no silêncio. Deixai então que os homens
percebam que a flor é a beleza e o fruto é a verdade. E que a Beleza e
a Verdade, além de serem as faces de Deus, são o ofício da Selva.
618
Pela análise da Introdução-ofertório, constatamos que Max Carphentier nos
apresenta uma nova dimensão de Maria, ela é Mãe dos viventes. Ela é a água,
geradora da vida; a seiva, alimentadora das plantas, é própria a Gaia mitológica,
mantenedora do homem, da fauna, da flora e de quem somos todos filhos, conforme
reflete Leonardo Boff:
Por sertirmo-nos filhos e filhas da Terra, por sermos a própria Terra
pensante e amante, vivemo-la como Mãe. Ela é o princípio generativo.
Representa o feminino que concebe, gesta, e luz. Emerge assim o
arquétipo da Terra como Grande Mãe, Pachamama e Nana. Da
mesma forma que tudo gera e entrega à vida, ela também tudo acolhe
e tudo recolhe em seu seio. Ao morrermos, voltamos à Mãe-Terra.
Regressamos ao seu útero generoso e fecundo.
619
A preocupação da Igreja brasileira com temas que devem ser discutidos
com a comunidade católica motiva a CNBB
620
a promover a Campanha da
Fraternidade, a cada ano. Dentre eles, estão inclusas a ecologia e a Amazonia,
também objetos temáticos da obra carphentiana.
Para melhor compreensão, traçamos breve resenha sobre o que
representam, para a Eclésia do Brasil, as Campanhas da Fraternidade, que têm
617
CARPHENTIER, Max. Nossa Senhora de Manaus. Manaus (AM): Grafima, 1995, p. 9.
618
CARPHENTIER: 1995, p.19.
619
BOFF, Leonardo. Ética e eco-espiritualidade. Campinas (SP): Verus Editora, 2003, p. 57.
620
CNBB, sigla da Conferência Nacional dos Bispos no Brasil.
247
início em 1963, motivadas pelo espírito renovador do Concilio Vaticano II e que é
possivel dividi-las em três momentos, pelas questões abordadas.
No momento inicial, havia intranquilidade quanto aos problemas da própria
Igreja, por isso as campanhas desse período buscam a sua renovação interna.
Assim, temas como participação, igualdade, serviço, reconciliação, fraternidade,
fizeram parte daquele momento primeiro, entre 1964, com o tema Igreja em
Renovação” e o lema “Lembre-se você também é Igreja”, e 1972, cujo tema foi
Serviço e Vocação” e o lema Descubra a felicidade de servir.”
Na segunda fase de 1973 a 1982, a Igreja se volta para temáticas sociais
movida não pelo Vaticano II, como também por reflexos de inúmeras questões
surgidas e debatidas durante duas Conferências Episcopais Colômbia/Medellín
(1968) e México/Puebla (1978). Como denúncia do pecado social e, como forma de
promoção da justiça, foram discutidos alguns temas, cujos lemas apontamos: a
fome, Repartir o Pão(1975); a família, Comece em sua Casa ( 1977); as migrações,
Para onde vais? (1980). Ressaltamos que, em 1982, o tema Educação e
Fraternidade e o lema A verdade vos libertará, evidenciou o analfabetismo
acentuado de grupos sociais existentes, na periferia das grandes cidades,
principalmente.
Nos últimos quinze anos do século passado e no limiar do novo milênio
(1985-2009), a Igreja propõe como discussão algumas situações emergencias, ou
mesmo existenciais, que afligem a sociedade brasileira hodierna. Citamos alguns
lemas, para melhor compreensão dos temas: o menor Quem acolhe o menor, a Mim
acolhe (1987); midia e comunicação, Comunicação para a verdade e a paz (1989);
moradia, Onde moras? (1993); uso de droga Vida sim, drogas não! (2001); povos
indígenas, Por uma terra sem males! (2002).
No conjunto temático, surge a Amazônia como discussão da Campanha da
Fraternidade de 2007. A mensagem do papa Bento XVI, na abertura desse evento,
sintetiza o significado de refletir sobre a Amazônia e a relação estreita com a obra
Nossa Senhora de Manaus. Na voz do Papa:
Ao iniciar o itinerário espiritual da Quaresma, a caminho da Páscoa da
ressurreição do Senhor, desejo mais uma vez aderir à Campanha da
248
Fraternidade que, neste ano de 2007, está subordinada ao tema
Fraternidade e Amazônia e ao lema “Vida e Missão neste chão”.
É um tempo em que cada cristão é convidado a refletir de modo
particular sobre as várias situações sociais do povo brasileiro que
requerem maior fraternidade.
A proposta para este ano destina-se a promover a fraternidade efetiva
com as populações amazônicas, defendendo e promovendo a vida
que se manifesta com tanta exuberância na Amazônia. Por sua vez,
esta mesma preocupação se insere no amplo tema da defesa do meio
ambiente, para o qual este vasto território constitui um patrimônio
comum que, por sua realidade humana, sócio-política, econômica e
ambiental, requer especial atenção da Igreja e da sociedade brasileira.
621
Conforme mensagem pontifícia, o tema traz à luz desafios urgentes para os
quais deve haver soluções satisfatórias. Essas preocupações não são apenas da
Igreja, mas da comunidade civil e de organismos internacionais. Contudo o nosso
enfoque, é o eclesial, em face da obra Nossa Senhora de Manaus conjugar
Amazônia, religião e ecologia, como temática primordial.
Como esta tese é comparatista e focaliza tamm imagens, não podemos
deixar de ilustrar o conteúdo da Campanha com o cartaz do evento, por conter
índices identificadores da Amazônia, seus dons e seus desafios, tendo em vista que:
“As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique;
elas respondem a uma necessidade e preenche uma função: revelar as mais
secretas modalidades do ser”.
622
A leitura incial do cartaz pode ser feita pela dualidade opositiva: a
abundância de água, na parte inferior, contrasta com a terra árida e rachada, na
parte superior, isto nos lembra que essa região possui o maior manancial de água
doce do planeta, mas adverte que a poluição dos rios, o desmatamento, a
contaminação do ar pode levar este patrimônio natural à destruição.
Sobre as águas, flutua a vitória-régia, planta aquática nativa, considerada
um dos símbolos da região. Sua concha verde abriga a imagem de uma criança
sorrindo, com traços indígenas. A cor verde, o sorriso aberto, a imagem da criança
nos dizem que o futuro pode ser melhor construído, a partir do cuidado com homem,
621
BENTO XVI (Papa). Vaticano 16.01.2007, mensagem lida na Abertura da Campanha da
Fraternidade de 2007, em todas as paróquias do Brasil, na Quarta-feira de Cinzas.
622
ELIADE, Micea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico religioso. Tradução Sônia
Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.8/9.
249
com a preservação das espécies, sempre ancorados nas três verdades teologais: fé,
esperança e caridade, representadas pelas flores sobre a água. Estas, coloridas de
amarelo e branco, cores do Vaticano, nos recordam as três pessoas da Santíssima
Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo e a Igreja temporal, representada pelo Papa.
Cartaz da Campanha da Fraternidade 2007
A água, a terra, as flores e sua gente nos apontam que a Amazônia é obra
do Deus Criador. Ele a entregou aos cuidados do homem, como registra o capítulo
inicial do Gênesis, visto no capítulo I.
Para melhor compreender o novo desafio proposto pela Campanha da
Fraternidade de 2007 e estabelecer uma conexão com o louvor mariano na
Amazônia, nos valemos da obra de Max Carphentier nas orações, nas aparições e
nos salmos, que serão analisados.
250
5.3.2.1. Oração pela vida amazônica
Não vos esqueçais também daquela flor que não
pertence aos ares, nem à terra. É a noiva dos
lagos, de celeste origem, a estrela das águas, a
vitória-régia. É nela que se transubstancia a
prostração do lado em deslumbramento do sol,
e, pelo amor do sol, ela com ele se acende e por
ele se apaga, ante os círios do crepúsculo. Ó
Vós que, sendo Mãe do Redentor Crucificado,
tendes a alegria velada de tristeza a nostálgica
majestada da vitória-régia pode ser a
encarnação do vosso sorriso nas águas.
623
A primeira parte de Nossa Senhora de Manaus é formada por dezoito
textos, compondo O Livro das Orações. Nessas preces o poeta roga pelos vários
elementos do universo amazônico: o ribeirinho, o missionário, o peixe, a floresta,
dentre outros. Sobre a oração o Catecismo da Igreja Católica expressa que:
Jesus ensina seus discipulos a orar com um coração purificado, uma
fé viva e perseverante, audácia filial. Incita-os à vigilância e convida-os
a apresentar a Deus sues pedidos em seu Nome. Jesus Cristo atende
pessoalmente às orações que lhe são dirigidas.
624
A oração da Virgem Maria, em seu „Fiat‟ e em seu „Magnificat‟,
caracteriza-se pela oferta generosa de todo seu ser na fé.
625
O artigo do Catecismo informa que as orações são normas cristãs
reveladas pelas Escrituras traduzidas sob três formas: a oração de bênção e de
adoração; a oração de súplica; a oração de intercessão. Carphentier mescla as
orações de súplica e de intercessão e pede a Maria por aqueles que necessitam de
sua ajuda. Todas elas se iniciam por “rogai por nós”, como é o refrão da Ladainha de
Nossa Senhora.
A segunda oração do conjunto faz referência à cor predominante do
Amazonas, o verde:
623
CARPHENTIER, Max. Livro das Orações. In: Nossa Senhora de Manaus. Manaus (AM): Grafima,
1995, p. 31.
624
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 2621.
625
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 2622.
251
Rogai pelo nosso verde - que é o nosso primeiro corpo e a nossa cor
na Terra. Lembrai-vos de como brilhavam as palmas que receberam
vosso Filho na entrada triunfal de Jerusalém e da vestimenta da colina
que ouviu o Sermão da Montanha. Esse verde bíblico é o da
promissão, e o nosso é o da realização máxima da vida, o suporte
material do Reino. Assim como as palmeiras do Esdrelon e seu asilo
de pássaros vos alegravam, sirva de júbilo para os vossos olhos o
apogeu vegetal da Planície Amazônica, que de entrar para a
história da evolução com o nome de Planície de Deus.
626
O texto se reporta às formas de verde no sentido bíblico. Canaã, a terra
prometida aos hebreus, no Antigo Testamento, é a Amazônia, a qual não é mais um
espaço territorial para assentamento do povo escolhido, mas é a terra da “realização
máxima da vida”
627
. De fato, isto vem ocorrendo, visto que a biodiversidade da
Amazônia, possibilita pesquisas que garantirão a vida no planeta, além desse rincão
deter o maior manancial de água doce do mundo, fato que potencializará a
existência dos seres vivos no futuro.
O poeta faz alusão a três momentos bíblicos que têm o verde como referência
real ou imagística: as palmeiras de Esdrelon, como um santuário de pássaros; a
pradaria da colina, onde o Mestre proferiu as Bem-aventuranças e as palmas que
revestiram as vias de Jerusalém por onde Jesus passou antes de sua Paixão. Na
continuação da prece, outras formas de verdes amazônicos:
Considerai que o nosso verde tem nomes locais e perfumados, amplos
e frutuosos, que haveis de amar em vossa meticulosidade doméstica.
Temos o verde das canaranas, caravelas dos polens, transportes dos
passarinhos. Temos o alto verde, que batiza os ventos, oficiando nos
buritis, nos marajás, nas bacabas, nos açaizeiros. São os elevados
licores com que celebramos as sombras do difícil caminho. Temos o
verde que se chama roça plena, colheita farta, ervas da salvação.
Verde também é então, Senhora, o nome da várzea repleta, dos frutos
pendurados nos confins do nosso mistério, do pão tão doce em nossa
boca quanto a prece.
628
626
CARPHENTIER: 1995, p.19.
627
CARPHENTIER: 1995, p.19.
628
CARPHENTIER: 1995, p.19.
252
O verde amazônico se materizaliza em algumas vegetações típicas da região,
como a canarana, planta aquática que nasce abundantemente nas áreas dos igapós
e dos igarapés e, como ilhas flutuantes, descem os rios. As canaranas são
“caravelas de polens”, metáfora acertadamente empregada pelo poeta, que
muitas árvores nativas são fecundadas pela polinização realizada por pássaros que
se abrigam nelas e se transportam ao longo dos rios, levados por esses vegetais.
referência do verde das árvores do buriti, da bacaba, do açaí, frutos da
terra de onde são extraídos sucos. Essa alusão não é gratuita, visto que o nativo da
região chama de vinho de buriti, vinho de açaí, etc., em perfeita consonância com o
sumo da uva que se transforma no sangue de Jesus. O vinho bíblico alimenta o
espírito, o vinho caboclo sacia a fome do homem amazônico na sua labuta diária
com os afazeres da terra.
Maria deve considerar tudo isto e não permitir que falte esse alimento na
mesa de cada um, causado pela devastação da floresta. Na continuação da oração
vejamos:
Maternalmente compreendeis, Virgem das searas, que o verde é a
súmula das trocas entre o céu e a terra. Para que haja a folha, o sol se
entrega diariamente na pontualidade da aurora. Por isso a folha tem a
forma de mão: para receber a energia celeste, a respiração de Deus, e
distribuí-la sobre a terra.
629
O fragmento apresenta um dos aspectos cruciais para a vida no Universo, a
presença da vegetação no processo de fotossíntese, que o eu-poemático chama de
“súmula de trocas entre o céu e a terra”.
630
Já foi visto em outros trechos que o Sol é
a alegoria de Deus. Nesse trecho, há uma simbiose entre o Sol e Deus, como
princípio e manutenção da vida. O poeta implora à Virgem Maria:
Inscrevei nosso verde em vosso manto, constelando-o de perenidade,
a salvo das lâminas da usura. Submetei ao rigor da vossa piedade o
genocídio dos caules, e esmagai de novo a cabeça da serpente, que
ressurgiu com o nome de devastação.
631
629
CARPHENTIER: 1995, p.19.
630
CARPHENTIER: 1995, p.19
631
CARPHENTIER: 1995, p.19
253
É patente o pedido de intercessão de Nossa Senhora de Manaus para com a
salvação da natureza, o sujeito poético usa o manto como proteção para que haja a
perenidade das matas, tão destruídas pelo pecado da ganância. A serpente do
Apocalipse tem outro nome, “devastação”, e ela deve ser esmagada pela poder que
foi dado a Maria. Por fim, o oração se conclui com o pedido de que o verde seja a
cor do Reino:
Nossa Senhora de Manaus, se azul é o firmamento dos vossos pés,
deixai que a cor do Reino seja verde, o verde que é o nosso corpo, e
que sangra por nós e antes de nós para remir o pecado do homem
contra os mínimos da natureza. E permiti-nos habitar no futuro
revestidos da humildade, cuja cor descobrimos que é verde, eis que
esta é a cor da oração horizontal da humílima relva que nos une.
632
Cada uma das dezoito orações se revestem da necessidade de orar e
laborar, vejamos outras preces:
Rogai pelo nosso clima que, com o sol inteiro e a chuva
inumerável, nos torna fortes e contemplativos como os heróis e santos.
Aqui vossos fiéis se amorenam com faziam os apóstolos ao sol da
Galiléia, nas pescarias de homens [...]
Rogai pois, Senhora, por esse “clima caluniado”, como rogáveis pelo
céu claro e pelas colheitas de Nazaré, porque esse é o clima que
prepara a estirpe duradoura do homem do Reino. .
633
Rogai pelos nossos barcos peregrinos da Selva. Eles enfrentam a
hora das tormentas, vencem os ventos noturnos, e entregam, num
suspiro de ondas dominadas, as provisões da terra, o ouro das
colheitas, abraços dos confins, cartas da solidão.[...]
Considerai, Senhora, que são sagrados para nós os nossos barcos,
como se todos eles fossem descendentes diretos daquele de Pedro,
em que vosso Filho fazia as sestas, dominava as tempestades e
pregava a doutrina. São portanto os barcos o nosso repouso, nosso
domínio afortunado da terra e o trânsito da prece dos nossos olhos.
634
Observamos, nos fragmentos das duas orações, que temas universais como
clima e meio de transporte, Max Carphentier particulariza e direciona o leitor para
632
CARPHENTIER: 1995, p.19.
633
CARPHENTIER, Max. Livro das Orações. In: Nossa Senhora de Manaus. Manaus (AM): Grafima,
1995, p. 23,24.
634
CARPHENTIER: 1995, p. 25,26.
254
três vertentes:a amazônica, a religiosa e a ecológica com as quais dialoga. Assim,
percebemos a catequese carphentiana que põe o leitor a refletir sobre os problemas
e as vicissitudes de cada um segmento. A seguir continuaremos a observar essa
catequese na segunda parte da obra Nossa Senhora de Manaus.
Nossa Senhora de Manaus, de Moacir de Andrade
635
635
Moacir de Andrade (Manaus 1927), pintor e escritor amazonense, que apresenta, com sua arte, a
cultura amazônica. No colorido intenso de sua pintura, podemos encontrar a fauna, a flora, os mitos,
as lendas e os tipos humanos da região como o índio, o caboclo e o pescador. Moacir de Andrade
ilustrou a obra Nossa Senhora de Manaus, cuja “capa reproduz o quadro doado pelo pintor ao poeta”,
conforme registra a ficha catalográfica.
255
5.3.2.2. Fruto das aparições
Na nona aparição, contemplamos Nossa
Senhora no seio da floresta.[...] “Amo-te, Selva
das felizes promissões, Selva do Reino! Meu
coração, afeita aos desertos da Palestina,
encontra agora em ti novas primícias da Criação.
Aqui a Mãe de Deus sonha mais fácil.
Emocionada pelos teus encantos, derramo
minhas bênçãos sobre teu povo, tuas águas e
teu verde, teus animais e teu solo.”
Fruto dessa aparição é a preservação da
Selva.
636
A segunda parte da obra - O livro das aparições - contém quinze pequenos
textos, contrapondo-se com as quinze estações da via-sacra de Jesus. É pertinente
analisar o significado das aparições e da via-sacra na prática devocional cristã,
como forma de melhor articular o pensamento carphentiano.
Na Bíblia, tanto no Antigo Testamento, como no Novo Testamento,
vários episódios envolvendo fatos sobrenaturias, vistos como intervenção de Deus,
na vida do homem. Vejamos o que nos mostra um estudo sobre as aparições na
literatura bíblica:
As aparições ocupam espaço considerável na Bíblia, de Abraão e
Moisés aos profetas: teofanias, aparições de anjos e manifestações de
além sobrenatural. No NT, as aparições são relativamente raras: os
anjos dos evangelhos da infância (Mt 1-2; Lc 1-2), da tentação no
deserto e da agonia de Cristo. E são muito numerosas nos Atos dos
apóstolos: línguas de fogo no Pentecostes, mais as visões de Estêvão
(At 7,56), de Saulo (At 9,5), de Ananias (At 9,10) de Cornélio (At 10, 3-
6), de Pedro em Jope (At 10, 11-12) ou na prisão (At 12, 7-11), etc.
637
Com respeito às aparições marianas a Igreja acata oficialmente e
tacitamente as seguintes: Nossa Senhora de Guadalupe, no México, em 1531;
Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, na França, em 1830; Nossa Senhora de La
636
CARPHENTIER, Max. Livro das Aparições. In: Nossa Senhora de Manaus. Manaus (AM): Grafima,
1995, p. 72.
637
LAURENTIN, R. Aparições. In: FIORES, Stefano de e MEO, Salvatore (dir.). Dicionário de
Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 116, 117.
256
Salete, na França, em 1846; Nossa Senhora de Lourdes, na França, em 1858;
Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, no ano de 1916.
Os Subsídios doutrinais da CNBB
638
registram que no Brasil, a maior
recorrência das aparições tem início a partir de 1960; em outros locais, a partir de
1940 e, entre os séculos XIX e XX, cerca de 310 aparições de Maria foram
apontadas em diferentes lugares. O texto ressalta que “entre esses casos, ocorridos
em várias partes o mundo, e que estão chamando certa atenção, numerosos o
patológicos”
639
Independentemente de ser um fato sobrenatural, a maior relevância se
na mensagem deixada às pessoas, durante o evento, geralmente seguindo uma
estrutura composta por quatro elementos: “visão apocalíptica da sociedade, do
mundo e da Igreja; ameaça de castigos iminentes; apelo à conversão; indicação dos
meios e caminhos para a restauração universal”
640
. Após esses quatro pontos,
surgem as consequências dos fatos, como forma de acatar os pedidos feitos aos
videntes, são os chamados frutos das aparições.
René Laurentin demonstra alguns desses aspectos. Vejamos as aparições
marianas oficiais:
[...] a aparição de Maria de Guadalupe, no México, reveste-se de
grande importância, enquanto se trata de lugar de fundação da igreja
latino-americana. O fato de Maria ter escolhido um vidente e um lugar
índios, ter desse modo transferido o sagrado por meio dos autóctones
colonizados, ter utilizado um deles como seu mandatário para
transmitir suas ordens ao bispo, tudo isso provocou uma osmose, uma
superação do conflito entre opressores e oprimidos, como o
nascimento de um novo povo e uma nova cultura sobre o novo
continente.
641
Sobre a aparição de 1830, o teórico aponta que Maria pede um sinal físico
para a clarividente de Nossa Senhora das Graças que, após o evento, Maria recebe
o título de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa. Sobre o episódio ele nos informa:
638
CNBB - COMISSÃO EPISCOPAL DE DOUTRINA. Aparições e revelações particulares. 4ª edição.
Subsídios pastorais nº 1, São Paulo: Paulinas, 2005.
639
CNBB: 2005, p. 22.
640
CNBB: 2005, p. 43, 44.
641
LAURENTIN: 1995, p.117.
257
As três aparições da rue du Bac, em Paris, a Catarina de Lebouré, de
23 anos de idade, nativa da Borgonha, ocorrida em 1830, durante seu
noviciado junto às Filhas da Caridade, na capital francesa [...] dão
origem à medalha milagrosa, a mais difundida medalha de todos os
tempos, diversos bilhões em todo o mundo.
642
Nossa Senhora de La Salette pede frutos espirituais: “uma única aparição,
em 19/9/1846, aos pastores Melânia Calvat, de 14 anos, e Maximino Giraud, de 11
anos, de Maria chorando e conclamando à conversão.”
643
As aparições de Nossa Senhora de Lourdes, a Bernadete Soubirous,
ocorrem dezoito vezes, de 11 de fevereiro a 16 de julho de 1858, e culminam com a
construção de um grande Santuário mariano, cujo carisma é a cura física e
espiritual dos peregrinos, que para ali se destinam:
[...] o serviço gratuito a eles prestado é garantido por médicos,
enfermeiros, carregadores de macas e padiolas, os quais cuidam dos
doentes e os transportam em cadeiras ou camas [...] para o doente
essa peregrinação é de grande benefício espiritual e psicológico: tira-o
do isolamento forçado muitas vezes fatal e oferece-lhe a possibilidade
de pôr-se em comunhão com os outros enfermos e com todos os
outros que gozam boa saúde, reciclando-o para uma vida normal.
644
Em Portugal, no pequeno vilarejo de Fátima, no local denominado Cova da
Iria, a Virgem aparece aos humildes pastores: Jacinta Marto, de sete anos;
Francisco Marto, de nove anos, irmão de Jacinta e Lúcia de Jesus, de dez anos,
prima de ambos. Nas cinco aparições, Maria pede-lhes mais oração e conversão do
povo:
Fátima: depois de algumas aparições de um anjo, 1916 (reveladas em
segundo momento), houve seis aparições da Virgem no dia 13 de
cada mês, de maio a outubro, a exceção de 13 de agosto. A última
aparição foi caracterizada pelo milagre do sol, que impressionou uma
multidão de setenta mil pessoas.
645
642
LAURENTIN: 1995, p.117.
643
LAURENTIN: 1995, p. 117.
644
LAURENTIN: 1995, p.768.
645
LAURENTIN: 1995, p.117.
258
A mensagem de Fátima é de apelo urgente à oração, sobretudo à
recitação do rosário e à prática da comunhão reparadora.
646
O poeta, utiliza-se das aparições marianas oficiais, para demonstrar uma
nova forma de Maria cuidar de seu povo. Contrapondo com as orações que se
iniciam por “Rogai...”, as quinze aparições se concluem por “Fruto dessa aparição...”,
demonstrando que o poeta busca, insistentemente, na oração, o auxílio de Nossa
Senhora.
A Via-sacra é uma forma de oração contemplativa e “sua finalidade é
configurar o fiel ao espírito de Cristo, o Filho de Deus, servo de Javé, morto por nós
e ressuscitado para nós, vivicador e Senhor da história”
647
.
Estabelecendo um breve recorrido histórico, encontramos os primeiros
rudimentos da via-sacra registrados no capítulo 36, do Itinerário, da peregrina
Egéria
648
, que partiu da Galícia (Espanha), no ano de 384, em visita aos lugares
santos. No seu livro, Egéria relata que, em Jerusalém, na noite de Quinta-feira
Santa, os cristãos, acompanhados de um bispo, saiam em procissão e visitavam os
lugares onde ocorrera a Paixão de Cristo.
Do século IV ao culo XII, durante a Semana Santa, várias práticas
ocorrem, principalmente em Roma e em Jerusalém que poderiam configurar com a
via-sacra. Os cristãos visitam igrejas, peregrinam a lugares da via-crucis e buscam
relíquias do Salvador, referentes à Paixão. A partir do século XIII, Mateo Bautista,
aponta a congregação franciscana como a responsável pela expansão da via-sacra,
na pessoa de seus religiosos, como custódios da Terra Santa.
No século XVIII, Leonardo de Puerto Mauricio
649
(1676-1751), estabelece as
catorze estações da via dolorosa. No Ano Santo de 1750, ele realiza a via-sacra no
646
LAURENTIN: 1995, p.537.
647
BAUTISTA, Mateo. A caminho do Calvário. Via-sacra. Tradução Joana da Cruz. São Paulo:
Paulinas, 2008, p. 3.
648
Egéria, também conhecida como Aetheria, Monja Heteria, Virgem Egéria, monja espanhola que,
entre 381 e 384, percorreu Lugares Santos no Egito, Palestina, Síria, Mesopotâmia, Ásia Menor e
Constantinopla. As impressões e descrições dessa viagem, foram registradas na obra Itinerarium ad
Loca Sancta, que foi publicada pela Editorial Biblioteca de Autores Cristianos com o título de Itinerário
de la Virgen Egeria.
649
Leonardo de Puerto Mauricio (1676-1751) foi um dos pregadores mais importantes da Ordem de
São Francisco. Propagou a devoção ao Santíssimo Sacramento, ao Sagrado Coração de Jesus e de
Maria, além de organizar a Via-sacra, em catorze estações, exercício espiritual que ele fazia
259
Coliseu romano, com a presença do papa Bento XIV. “Em 1964, o papa Paulo VI
presidiu ali a Via-Sacra, lembrando o sacrifício dos mártires e, a partir de então,
todos os anos os pontífices que o sucederam fizeram o mesmo”
650
. Atualmente, foi
acrescentada a décima quinta estação, referente à Ressurreição de Cristo.
A décima aparição corresponde à cima estação, quando Jesus é
crucificado e despojado de suas vestes. No texto bíblico temos:
E chegaram a um lugar chamado Gólgota, que quer dizer Calvário.
Deram-lhe de beber vinho misturado com fel. Ele provou, mas não
quis beber. Depois de o crucificarem, repartiram suas vestes tirando a
sorte. E ficaram ali sentados, montando guarda.
651
Vejamos o que diz o texto carphentiano:
Na décima aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus num
paraná enluarado do médio Amazonas, conversando com a Iara.
Estão ambas sentadas em antigo tronco que desliza, coberto de
musgo e flor prateados.
652
A aparição de Maria se dá à noite em uma paisagem típica da região
percebida na expressão “paraná enluarado”. a interlocução entre o sagrado e o
profano; o religioso e o mítico, através da presença de Nossa Senhora e da Iara,
imersas na trivialidade de um diálogo entre duas mulheres. Ambas se encontram em
um ambiente surreal, realizado através do processo metonímico, que faz brotar a cor
prateada no tronco, no musgo e na flor, emprestando beleza à paisagem. Na
continuação do trecho, a voz poética expressa:
A Virgem se encanta com os cabelos da mitológica beleza enquanto
fala: „Ó nume tutelar das águas, que guardas os cardumes e o sono
das vitórias-régias, teu povo te chama Iara e eu Anjo te chamo, porque
tens domínio de bondade sobre o espaço que a evocação da alma
humana, sedenta de proteção, reservou para ti. Sonhando no teu mito,
o homem acertou com a célica verdade: de espaço a espaço, um
diariamente.Seu grande desejo de realizar a Via-sacra no Coliseu, em Roma, ele que conseguiu um
ano antes de sua morte, no Ano Santo de 1750.
650
RATZINGER, Joseph. Via-Sacra no Coliseu: meditações e orações de Joseph Ratzinger, hoje
Bento XVI. Tradução Joana Cruz. São Paulo: Paulinas, 2007, p.5.
651
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Mt 27, 33-36
652
CARPHENTIER, 1995, p. 75.
260
anjo rogando pela natureza, um santo sendo interposto entre Deus e o
sofrimento da vida.‟ Contente, a Iara engasta uma orquídea de luz no
diadema da Virgem.
Fruto dessa aparição é a preservação do lendário amazônico.
653
A permanência do sagrado e do profano é mais evidente na continuação do
texto e, embora não haja uma deliberada descrição de quem é a Iara, alguns
índices identificadores. De acordo com o relato carpenthiano, ela é um ser
mitológico, divinizado, guardiã dos seres aquáticos. Segundo a lenda, Iara é a Mãe
D‟água que vive em um palácio no fundo do rio e encanta os pescadores. Ela é a
responsável pela preservação da água e de tudo que ali se encontra; sua
configuração física é metade peixe, metade mulher, semelhante às Sereias que
habitam os mares.
No texto carphentiano, Nossa Senhora não a Iara como um ente do
lendário amazônico, mas como um anjo ou um santo, sempre atento, intercedendo
para a preservação do espaço. As ações da ninfa refletem mais uma vez um
ambiente de suprarrealidade, como mostra o trecho: “Contente, a Iara engasta uma
orquídea de luz no diadema da Virgem”
654
Aparentemente, não relação entre o texto bíblico e o texto carphentiano,
contudo, verificamos que as vestes de Jesus das quais ele é despojado, na décima
estação, lembram a carga mítica que reveste a vida amazônica.
João Paulo II, no último ano de seu pontificado, alquebrado pela doença,
pela primeira vez em vinte e seis anos, não pôde conduzir a Via-sacra no Coliseu.
De sua capela particular, através da televisão, foi-lhe dada a oportunidade de se unir
ao grupo, conduzido por seu secretário, o cardeal Joseph Ratzinger, que dirigiu o
rito. Na oração da décima estação, o cadeal se expressa: Senhor Jesus, fostes
despojados de vossas vestes, [...]. Vós assumistes a desonra de Adão, curando-a.
[...] É precisamente assim que dais significado àquilo que parece sem sentido.”
655
.
O texto cardinalício, em diálogo com o texto carpentiano, reitera o fruto da
décima aparição que “é a preservação do lendário amazônico”
656
, pois como seria a
653
CARPHENTIER, 1995, p. 75.
654
CARPHENTIER, 1995, p. 75.
655
RATZINGER, Joseph: 2007, p.75, 56.
656
CARPHENTIER, 1995, p. 75.
261
vida do caboclo amazônico, o imbricado na natureza, sem as lendas, sem os
mitos, sem as crendices, sem a cura pelas ervas? Que sentido teria o universo
indígena, sem os ritos de passagens, sem a pajelança, sem os rituais iniciativos para
a pesca, para a caça, para a colheita? Desta forma, encontramos a conexão entre o
texto bíblico e o texto literário.
A última aparição corresponde à décima quinta estação, da via-sacra, que
representa a ressureição de Jesus. O texto bíblico diz:
No primeiro dia da semana, muito cedo ainda, elas
657
foram à tumba,
levando os aromas que tinham preparado. Encontraram a pedra do
túmulo removida, mas, ao entrar, não encontraram o corpo do Senhor
Jesus. E aconteceu que, estando perplexas com isso, dois homens se
postaram diante delas, com veste fulgurante. Cheias de medo,
inclinaram o rosto para o chão; eles, porém, disseram: „Por que
procurais Aquele que vive entre os mortos‟? Ele não está aqui; É
preciso que o Filho do Homem seja entregue às mãos dos pecadores,
seja crucificado, e ressuscite ao terceiro dia‟. E elas se lembraram de
suas palavras.
658
O texto do poeta amazonense registra:
Na décima quinta aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus
rogando ao seu Filho no Encontro das Águas. Ela está suspensa
numa coluna líquida, de três metros de altura, em que se reuniram as
duas vertentes para sustentá-la em vivo pedestal: „Filho do meu
coração, peço-te pelos teus filhos desta região, como com minhas
lágrimas te pedi, diante da cruz, por todos os homens.‟
A aparição de Maria se faz em um dos cartões postais do estado do
Amazonas, o Encontro das Águas, que é o encontro entre as águas barrentas do rio
Amazonas, com as águas escuras do rio Negro.
Maria pede a Jesus graças infindas para os amazônidas, seus rogos são
repletos de dor, como as lágrimas que derramou aos pés da cruz. Ao mesmo tempo,
ela põe em evidência a água, que é “matéria original, matéria-mãe, da qual pela
657
Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM: elas” em Mt 28,1 “Maria Madalena e outra Maria”; em Mc 16, 1
“Maria Madalena e Maria, Mãe de Tiago e Salomé”. Lucas aponta as mulheres no capítulo anterior,
em Lc 23, 55 “As mulheres, [...] que tinham vindo da Galileia com Jesus”.
658
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 24, 1-8.
262
palavra espiritual do Deus-pai, o cosmo foi criado”
659
, princípio da vida e elemento
sacramental do batismo e de outros sacramentos.
Maria age como um amazônida, que tem a água como o maior presente recebido
da natureza, e pede ao Filho as bênçãos através das águas para povo amazonense:
„Estou sobre duas feições da água, sacramental e infinita, água que eles
amam. Concede, meu Filho, que, assim como de água constituíste todos
os teus sacramentos, assim também por estas águas vivificadoras corram
tuas bênçãos, para que se fortaleçam as raízes visíveis e invisíveis que
sustentam esse povo na terra e o aprofundam nas dimensões do teu
Reino‟.
Fruto dessa aparição são as bênçãos de Jesus sobre o povo
amazonense.
660
As bênçãos que ela pede o fruto da aparição - estabelecem interlocução
com o versículo bíblico da décima estação da via dolorosa, que está explícita no
evangelho de João: “É chegada a hora em que será glorificado o Filho do Homem.
Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai da terra não morrer,
permanecerá só; mas se morrer produzirá muito fruto”
661
A aparição é um sinal visível que expressa o invisível, ou seja, Maria se
torna visível para demonstrar a glória de Deus, através do milagres operados. Muitas
vezes essas graças são intermediadas por seu amor maternal. O texto de Max
Carphentier mostra a intercessão da Virgem, que roga a seu Filho, pelo
desenvolvimento de Manaus; pela proteção das aves; pelo desenvolvimento integral
do ribeirinho; pela defesa da vida dos rios, pela segurança da navegação, pela
preservação da cultura indígena, da selva, do lendário amazônico, pelo incentivo aos
artistas, pelo zelo às praças e monumentos, pela sabedoria dos governantes, pela
excelência nas vocações sacerdotais, enfim, pelo povo amazonense, nas quinze
aparições
Alguns temas reportados nessas aparições, se repetirão nos salmos que se
constituem a terceira parte de Nossa Senhora de Manaus, como veremos.
659
LURKER: 1993, p.2.
660
CARPHENTIER, 1995, p. 82.
661
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Jo 12, 23,24.
263
5.2.2.3. A selva em salmos
Meu povo canto à minha harpa
os salmos que recolhi da Selva
para a Virgem de Manaus.
E todos sabem que foi o amor
que ressuscitou a minha harpa,
para que minha alegria participasse
da esperança dos homens e da terra.
Cantamos diante da Virgem
um canto de dolência tão cabocla,
que uma só lágrima dela, imensa,
começa a nos salvar.
662
O Livro dos Salmos compõe a última parte da obra Nossa Senhora de
Manaus. Nele, Max Carphentier louva o universo amazônico com vinte e um salmos,
de estrutura isostrófica, composto por nove estrofes cada um.
Na Bíblia, o Livro dos Salmos é constituído de cento e cinquenta poesias
compostas por diferentes autores, em diversas épocas da história de Israel. Os
temas são apresentados de acordo com o gênero de cada um, com classificações
que variam segundo a edição bíblica.
A Bíblia de Jerusalém, que referencia esta tese, classifica em hinos,
súplicas e ações de graça o conjunto estilístico e temático dos salmos. É uma
taxonomia geral e abrange outras classificações como a proposta na Bíblia Sagrada,
traduzida pela CNBB que, além dos três grupos, ela acrescenta os salmos
sapienciais, litúrgicos, históricos messiânicos e imprecatórios.
Os hinos seguem uma estrutura uniforme, iniciada com uma exortação a
Deus, louvando-o através de suas obras. Os versos finais também exaltam a
majestade do Criador, como no Sl 29:
Tributai a Iahweh, ó filhos de Deus,
tributai a Iahweh glória e poder,
tributai a Iahweh a glória ao seu nome,
adorai a Iahweh no seu átrio sagrado.
662
CARPHENTIER: 1995, p. 120, 121.
264
E no seu Templo tudo grita: Glória!
Iahweh está sentado sobre o dilúvio,
Iahweh sentou-se como rei para sempre,
Iahweh dá força ao seu povo,
Iahweh abençoa seu povo com paz.
663
As súplicas podem ser individuais e coletivas dirigidas a Deus, com pedido
de socorro, ou com preces de confiança no seu amor. Algumas vezes o suplicante
lamenta-se, descrevendo os males pelos quais está passando, buscando a comoção
do Criador. Na parte final, geralmente os versos são de confiança, ou de
agradecimento, conforme o Sl 12:
Socorro, Iahweh! Não há mais homem fiel!
A lealdade desapareceu dentre os filhos de Adão!
Cada qual mente ao seu próximo, falando
com lábios fluentes e duplo coração.
Sim, Iahweh, tu nos guardarás.
Tu nos protegerás de tal geração para sempre.
Por toda parte se agitam os ímpios,
a corrupção aumenta entre os filhos de Adão.
664
Os salmos de ação de graça têm estrutura similar à dos hinos e com muita
frequência têm caráter individual, uma vez que a pessoa agradece a Deus pelas
graças alcançadas, após tribulações físicas ou espirituais. O Sl 30 exemplifica essa
forma de louvor:
Eu te exalto, Iahweh, porque me livraste,
não deixaste meus inimigos rirem de mim,
Iahweh, meu Deus, gritei a ti e me curaste,
Iahweh, tiraste minha vida do Xeol,
tu me reaviste dentre os que descem à cova.
Por isso meu coração te cantará sem mais se calar.
Iahweh, meu Deus, eu te louvarei para sempre.
665
A importância dos salmos na Igreja é percebida, principalmente, após a
reforma litúrgica do Concilio Vaticano II, que introduziu, na Missa, o Salmo de
Resposta, entre a leitura do Antigo Testamento e a do Novo Testamento.
663
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 29, 1-4; 9-12.
664
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 12, 2-5; 8-10.
665
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 30, 2-4; 13-14.
265
Elaborados no Antigo Testamento, os salmos são citados mais de cem
vezes no Novo Testamento.
666
Durante a Paixão, na cruz, Jesus rezou o início do
Sl 22 - “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”
667
- e morreu exclamando
o Sl 31,6 - “em tuas mãos entrego meu espírito”.
668
Para o Catecismo da Igreja
Católica, essa forma de prece tem valor especial:
Os Salmos constituem a obra-prima da oração no Antigo Testamento.
Apresentam dois componentes inseparáveis: o pessoal e o
comunitário. Estendem-se a todas as dimensões da história,
comemorando as promessas de Deus realizadas e esperando a
vinda do Messias.
669
Rezados e realizados em Cristo, os Salmos são um elemento
essencial e permanente da oração de sua igreja e são adequados aos
homens de qualquer condição e tempo.
670
Os vinte e um salmos, de Max Carphentier, são cantos de fé, ternura e amor
extremado ao Criador e à Virgem Maria, como também são elegias que denotam
sofrimento diante da degradação da natureza amazônica. As três primeiras estrofes
do Livro dos Salmos demonstram a proposta da obra:
Retirarei a harpa que
pendurara na palmeira
e cantarei, com as águas e com as terras,
salmos para Virgem-Mãe Cabocla,
Nossa Senhora de Manaus.
671
O salmista conclama elementos vitais da natureza água e terra - para
louvar a Virgem Maria no seu canto em ação de graças. Ele faz alusão ao Sl 137
(136): “À beira dos canais da Babilônia/ nos sentamos, e choramos/ com saudades
666
Cf. Livro dos Salmos. In Bíblia Sagrada. Tradução, introdução e notas da CNBB. 5ª. ed. Brasília:
CNBB; São Paulo: Canção Nova, 2007, p. 680.
667
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002. Sl 22, 2. Este versículo é citado em Mt 27,46 “Lá pela hora nona,
Jesus deu um grito: „Eli, Eli, lemá sabachtáni‟, isto é, Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste
e, em Mc 15, 34, “E, à hora nona, Jesus deu um grande grito, dizendo: Eloi, Eloi, lemá sabachtáni‟
que traduzido,significa „Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste‟?
668
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2002, Sl 31, 6.
669
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 2596.
670
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 2597.
671
CARPHENTIER: 1995, p. 85
266
de Sião;/ nos salgueiros que ali estavam/ penduramos nossas harpas”.
672
Este é um
dos salmos mais conhecidos da literatura bíblica e evoca o exílio do povo judeu na
Babilônia, após a queda de Jerusalém em 587.
As oposições - pendurar/retirar; chorar/cantar; salgueiro/palmeira; verbos no
plural/singular - demonstram não as características neobarrocas de Max
Carphentier, como também o ânimo das vozes poéticas dos dois poemas.
No salmo bíblico, as harpas são penduradas pelos exilados que não têm
motivo para se alegrar; no salmo carphentiano, a harpa que estava suspensa na
palmeira é retirada para louvar a Virgem Cabocla. O salgueiro, conhecido como
chorão, pelas suas folhas caídas, representa a tristeza, em contraste com a
palmeira, que simboliza a alegria, por suas folhas, que se elevam ao céu, quando
agitadas pelo vento. Por outro lado, o salmo bíblico é porta-voz de uma coletividade,
percebido pelos verbos no plural, enquanto o salmo carphentiano, com os verbos no
singular, denota a voz particularizada de um “eu” individual, como as palavras de um
profeta. Na continuação do salmo lemos:
Dez rios tenho nos dedos,
de cada qual um louvor
a escorrer entre as pedras
como um suspiro de flor.
Mas terei louvor somente ?
673
Para fazer seu louvor, é necessário tocar a harpa que se realiza com os
dedos, no sentido literal. Esse , gesto transformado, na metáfora, presente no
primeiro verso: “Dez rios tenho nos dedos” (v.5), referência que sujeito lírico faz aos
dez principais afluentes do rio Amazonas - na margem direita, os rios: Javari, Jutaí,
Juruá, Purus, Madeira e na margem esquerda: Iça, Japurá, Negro, Uatumã,
Nhamundá.
Assim, os dedos-afluentes se ligam ao braço-rio principal, o Amazonas, que
dará vida ao espaço amazônico. Na continuação da estrofe, outro traço neobarroco
se presentifica, através do questionamento: “Mas terei louvor somente?” o as
672
BIBLIA DE JERUSALÉM: 2003, Sl 137 (136)
673
CARPHENTIER:1995, p. 85.
267
incertezas de um presente em transformação e de um futuro que se encaminha para
a devastação do meio-ambiente. A terceira estrofe complementa a idéia:
A Selva, Virgem Senhora, sofre
com a invasão da areia sobre o verde,
sofre
com o coração exposto das raízes.
E o homem está triste de rio sujo,
de safra frustrada, de pássaro banido.
674
A personificação da Selva reflete a consciência do salmista em face à
degradação ecossistema e mostra seu lamento, demonstrado pela reiteração da
palavra “sofre” sofre com a desertificação, sofre com ausência de terra fértil - e
pelos versos “o homem está triste de rio sujo,/ de safra frustrada, de pássaro
banido”.
675
, ou seja, ele evidencia alguns problemas que assolam a Amazônia, o
Brasil e o mundo quais sejam a poluição das águas, o prejuízo na agricultura pela
chuva ácida ou a falta de chuva, e a extinção das espécies.
Na quarta e na quinta estrofes há mais queixas:
Os pés de quem banharei
com as lágrimas e o fel
das nascentes envenenadas?
A terra chora nos meus olhos, sobre
os alvos pés de súditas estrelas.
Mas antes que o manto da Mediadora
fique turvo da sombra dos venenos,
Ela esmagará a cabeça do predador
como fez com a serpente.
676
O salmista reflete: “Os pés de quem banharei/ com lágrimas e fel/ das
nascentes envenenadas?”
677
Os versos fazem alusão inversa ao episódio da
pecadora perdoada que lava, perfuma, unge e beija os pés de Jesus, conforme
relato bíblico:
674
CARPHENTIER:1995, p. 85.
675
CARPHENTIER:1995, p. 85.
676
CARPHENTIER:1995, p. 85.
677
CARPHENTIER:1995, p. 85.
268
Um fariseu convidou-o [Jesus] a comer com ele. Jesus entrou, pois, na
casa do fariseu e reclinou-se à mesa. Apareceu então uma mulher da
cidade, uma pecadora. Sabendo que ele estava à mesa na casa do
fariseu, trouxe um frasco de alabrastro com perfume.
E, ficando por detrás, aos pés, chorava; e com as lágrimas começou a
banhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobri-los de beijos
e a ungi-los com o perfume.
678
Observamos vários semas que remetem à tristeza e à desolação do
salmista sofredor - “lágrimas”, “fel”, “envenenadas”, “chora”, “turvo”, “sombra”,
“venenos”, “predador”, “serpente” que encaminham ao lamento do povo judeu, no
exilio da Babilônia, presente no Salmo 37 com o qual dialoga. Contudo, o cantor
religioso, que toma conhecimento dos problemas ecológicos, também sente-se
esperançoso de dias melhores com a mediação e o consolo da Virgem Maria:
Nosso sofrimento, embora muito,
a Virgem consolará.
E ela dará nova sabedoria às folhas,
para cicatrizarmos as feridas.
Cantai, águas, primeiro,
e primeiro exultemos
com a chegada da Virgem.
Já as árvores tombadas ressuscitam,
já a tristeza do homem acende frutos:
Esse Vaso, em que Deus deu carne ao Verbo,
verbo será para nós.”
679
A esperança vem com Maria, por isso a natureza, através das águas, deve
louvar sua chegada assim como fez Isabel “Bendita és tu entre as mulheres e
bendito o fruto de teu ventre. Donde me vem que a mãe do meu Senhor me
visite?”
680
.
678
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 7, 36-38.
679
CARPHENTIER: 1995, p.86.
680
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Lc 1, 42-43.
269
A Virgem Consoladora chega até nós e, assim, as “árvores tombadas
ressuscitam”
681
, a “tristeza do homem acende frutos”
682
. É o homem novo trazido
pela encarnação de Jesus, no seio de Maria.
Ela é “Vaso espiritual, Vaso honorífico”, “Vaso insigne de perfeição” tão bem
cantado na Ladainha de Nossa Senhora
683
, mais uma vez ratificados aqui, que o
salmista aponta como o “Vaso, em que Deus deu carne ao Verbo”
684
, verdade de
cristã, diante do mistério do Amor do Criador, que revelou sua glória a todas as
suas Criaturas, por meio do Verbo encarnado, conforme proclama o evangelista
João: “E a palavra se fez carne e habitou entre nós”
685
; “Ninguém jamais viu a Deus:
o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer”
686
.
A voz poética conclui o salmo - “verbo será por nós”
687
este verbo
comum, com inicial minúscula, expressa o desejo do salmista de chamar a atenção
da humanidade para os estragos feitos pelo homem na natureza. É necessário,
portanto, usar o verbo” como ação, para realizar políticas públicas e particulares,
com vistas a preservar o que, ainda, não foi devastado e, por fim, lançar mão do
“verbo”, como discurso, de maneira a anunciar e a denunciar, como o faz a poesia
carphentiana.
que o Verbo é a palavra de Deus, ou o próprio Deus, esse Vaso, [...]
verbo será por nós,
688
ou seja, Maria não é uma deusa, mas o caminho para se
chegar a Deus, o instrumento para a construção de seu Reino, como afirma o Salmo
II carphentiano, nos versos que seguem:
Nós construiremos na Amazônia
o Reino que em Nazaré
sonhava o Senhor da Virgem.
681
CARPHENTIER:1995, v. 37, p.86.
682
CARPHENTIER:1995, v. 38, p.86.
683
MISSIONÁRIOS REDENTORISTAS. Manual dos devotos de Nossa Senhora Aparecida. 76ª.
Edição. Aparecida (SP): Santuário, 2007, p. 94.
684
CARPHENTIER:1995, v. 39, p.86.
685
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Jo 1,14.
686
BÍBLIA DE JERUSALÉM: 2006, Jo 1, 18.
687
CARPHENTIER:1995, v. 40, p.86.
688
CARPHENTIER:1995, v. 40, p.86.
270
Vinde, Senhora. Os guizos do vosso manto
serão cascatas verdinhas.
E haverá suspiros nas moitas
como notas de oração.
689
Os exemplos ratificam a preocupação de Carphentier com as questões
teológicas e ecológicas, seus escritos demonstram que a natureza é uma dádiva de
Deus aos homens e que desrespeitar esse presente é romper os laços que unem a
humanidade ao seu Criador.
689
CARPHENTIER: 1995, p.87.
271
CONCLUSÃO
Após a análise de algumas obras de Calderón de La Barca, José de
Anchieta, Gregório de Matos e Max Carphentier, como autores principais e, Gonzalo
de Berceo, Alfonso X, Dante Alighieri e Botelho de Oliveira, como autores que
ilustram nossas reflexões, na literatura, e a apresentação da pintura de Diego
Velázquez, de Estebán Murillo, de Francisco de Goya y Lucientes, de Francisco de
Zurbarán e de Manuel Ataíde podemos encontrar a pertinência de alguns dados:
A tese proposta de que “a figura de Maria sofre modificações no tempo e no
espaço” é perceptível nas artes plásticas, possivelmente pelo condicionamento de
alguns fatores tais como o ideário estético a que está submetido o artista; a
sociedade onde ele está inserido; as condições de produção; a destinação da obra,
dentre outros.
Na literatura, diferentemente, as imagens poéticas apresentadas por esses
autores demonstram permanência quanto à variação e perene reiteração das
figuras de linguagem, principalmente, as metáforas. Os textos literários,
continuamente, representam Maria como mãe, como rainha e como intercessora, ou
seja, como alguém muito especial, que conduz o leitor a devotar nela sua confiança.
Não importa a realidade histórica dos escritores, nem o destinatário da obra, nem
tão pouco o propósito do trabalho.
Concluímos, também, que todos os artistas estudados, sejam eles pintores,
poetas, prosadores ou dramaturgos transitam pela literatura bíblica, “encontramos
nos textos literários, algo que é comum e se torna evidente na leitura, é uma livre
apropriação das narrativas bíblicas na construção de muitas obras-primas da
literatura”. (MAGALHÃES: 2000, p.28), ou seja, na literatura, principalmente a
272
barroca, o texto bíblico está presente de forma direta, por alusão, ou por figuração
indireta.
A mudança da Igreja a partir do Concilio de Trento que buscou legislar
sobre assuntos mais significativos para a sustentação da base eclesial, pouco
cuidou de fazê-lo sobre a figura de Maria. Calderón de la Barca, José de Anchieta e
Gregório de Matos, conhecedores das mudanças, atualizam o conteúdo de suas
obras sacras, em geral. Contudo, ao tratar do tema mariano, perpetua as idéias
ditas por poetas anteriores, como Gonzalo de Berceo, Alfonso X e Dante Alighieri,
na Idade Média, por exemplo. Temas controversos como a concepção imaculada e
assunção de Maria, que a tradição estabelecia como verdades de fé, são abordados
por eles, levando em conta o patrimônio cultural e não a base doutrinal.
Constatamos que os dogmas marianos Mãe de Deus, Mãe Virginal,
Virgem Imaculada e Assunção de Nossa Senhora - foram privilégios de Maria,
discutidos e questionados por outros credos, incluindo a igreja cristã reformada, que
acata alguns deles. Em determinada época, esses atributos tiveram maior difusão,
mas, a partir da idade Moderna, as características marcantes para igreja de Lutero é
de Maria como “Mulher de fé e Serva do Senhor” (BOFF: 2004, p.18), enquanto para
a igreja de José de Anchieta, Maria é “Patrona e Rainha dos Povos” (BOFF, 2004, p.
18).
A dramaturgia de Calderón de la Barca tem a preocupação de exaltar a
Eucaristia como excelso alimento espiritual do cristão, que, para recebê-la, é
necessário o estado de graça do crente, condição quase impossível ao homem
comum, sem a purificação dos pecados, através do sacramento da confissão.Assim,
a temática da culpa e da graça é recorrente nos seus autos e Maria se configura
com a isenta de culpa e a plena de graça.
Maria não aparece como tema principal no conjunto da obra calderoniana,
contudo, sua representação nos autos, se faz como prefigura, nas mulheres do
Antigo Testamento - La primer flor del Carmelo, - ou como Nossa Senhora - La
Hidalga del Valle e A Maria el corazón . Nas duas formas de representação, Maria é
referendada por imagens poéticas, na sua maioria, extraídas de versículos bíblicos,
de forma textual ou ressignificada como a noiva do Cântico dos Cânticos.
273
No início da colonização brasileira, muitos oragos foram dedicados a Maria,
especialmente sob o título de “Imaculada Conceição”, que monarcas e povo
celebravam, mesmo sem o dogma ter sido proclamado pela Igreja. No século XVI e
no XVII, José de Anchieta e Gregório de Matos, também, se fizeram porta-vozes
dessa honra. “Na história do dogma da Imaculada Conceição, no capítulo referente
à América, o nome de Anchieta deveria fulgurar como um dos primeiros e grandes
devotos e defensores desse augusto mistério, no período da Renascença.”
(CARDOSO: 1996, p.30)
José de Anchieta, no poema, Beata Virgine Matre Dei Maria, conta a história
de Maria, na infância, na Anunciação, no Nascimento de Jesus, durante a Paixão e a
Ressurreição de Cristo. Contudo, não é um poema épico, que narra os feitos de
alguém, mas é o canto amoroso de um filho que se entrega à proteção e ao amparo
de sua e. É, ao mesmo tempo, um hino de exaltação à pureza, à humildade, à
generosidade, ao sacrifício que José de Anchieta encontra, no alfabético, uma
maneira de expressar a fé, o carinho e o amor à Mãe de Jesus.
Gregório de Matos era conhecido como o Boca do Inferno, por sua sátira
contundente. Essa característica se estende na poesia sacra, em forma de ironia,
perceptível na sua postura de pecador arrependido, que exige o perdão de Deus,
como expressão da glória do Criador e não como manifestação da misericórdia
divina. “Se uma orelha perdida e cobrada,/glória tal e prazer tão repentino/ vos
deu, como afirmais na sacra história,/ eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,/ cobrai-
a; e não queirais, pastor divino,/ perder na vossa ovelha a vossa glória”.(GUERRA:
1999, p. 29) Contudo, nos poemas dedicados a Nossa Senhora, o poeta baiano
deixa-se envolver por um misterioso ardor cultual e apresenta as imagens de Maria
como a “Escolhida”, a “Imaculada”, a “Fonte da Graça”, a “Rainha celestial”, a
“Mezinha diligente”, o “Lírio do Vale”, que são alguns do inúmeros atributos
elogiosos a Maria que ele faz.
Max Carphentier, distante três séculos e vivendo em um espaço singular,
em relação aos demais, escreve Nossa Senhora de Manaus, livro de orações e
salmos. Sua escrita se conecta com uma das preocupações do homem moderno, a
questão ecológica e põe a lume a necessidade de que o bem-estar da humanidade
depende do meio-ambiente saudável. Portanto, cuidar do nosso ecossistema é
274
dever sagrado que Max Carphentier o faz, através de suas obras, cantando as
maravilhas da natureza e rogando aos seus leitores contínua ação para preservá-la.
Neste sentido, a imagem de Maria na obra Nossa Senhora de Manaus é de
Medianeira de todas as graças, que pede ao Filho Jesus, proteção às matas, aos
rios, à fauna e à flora. Pede paz e segurança aos ribeirinhos e aos habitantes da
cidade. O poeta também apresenta a imagem de “Mãe peregrina de beiradão em
beiradão,/ amparando as vigílias que se queima/ sob o óleo das
lamparinas”(CARPHENTIER: 1995, p.121). É com a imagem da Virgem Peregrina
que traçamos o percurso desta tese, que ora se encerra.
Partimos do Oriente e oramos de pé o Akáthistos; seguimos até a Europa e
ali conhecemos Os milagres de Nossa Senhora, de Gonzalo de Berceu, ouvimos as
Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X e assistimos aos autos de Calderón de La
Barca. Da Europa ao Brasil, viajamos na caravela Nossa Senhora da Esperança, na
expedição de Cabral.
No Brasil, seguindo o roteiro histórico-geográfico: saímos de São Paulo,
Espírito Santo e Rio de Janeiro com José de Anchieta e encontramos Gregório de
Matos, na Bahia. Da Bahia, viajando, no sentido leste-oeste, chegamos ao
Amazonas e vimos Max Carphentier e com ele agradecemos a Nossa Senhora da
Conceição. Neste percurso, nos deparamos com louvor dos poetas às imagens de
Maria, sob a invocação de alguns títulos: Virgem da Pureza e Misericórdia,
Imaculada Conceição, Mãe de Deus, Nossa Senhora das Neves, Nossa Senhora do
Rosário, Nossa Senhora Rainha e Nossa Senhora de Manaus.
Concluímos a tese com a voz da Virgem Maria no seu canto louvor a Deus,
o Magnificat, que, em alguma parte do trabalho, foi ecoado: “Minha alma
engrandece o Senhor,/ e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,/ pois olhou
para a humildade de sua serva./ Sim! Doravante as gerações todas me chamarão
de bem-aventurada.” (Lc 1,47-48)
275
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APÊNDICE
CARPHENTIER, Max. Nossa Senhora de Manaus. Manaus (AM): Grafima, 1995.
PREFÁCIO
A POESIA MARIANA DA VIDA AMAZÔNICA
D. Luiz Soares Vieira Arcebispo de Manaus
Três coisas me deixam admirado: o ser humano, a natureza e a música; uma quarta,
entretanto, me extasia: as três transformadas em poema. Ao terminar a leitura do livro de
Max Carphentier intitulado “Nossa Senhora de Manaus”, percebi, como num passe de
mágica, que mergulhara num êxtase: nas palavras harmoniosas da poesia tinha-me
encontrado com o amazônida, a hiléia e a melodia. Quedei-me em silêncio a degustar a
beleza dos acordes que ainda vibram em minha alma. “O Livro das Orações” e “O Livro das
Aparições” têm a beleza que logo cativa e brota da sensibilidade criativa do artista.
Dois grandes amores gera no leitor esta poesia: a Virgem Cabocla - a Nossa Senhora de
Manaus, e a Amazônia - a nossa verde Amazônia. “Conservai, Senhora, as nossas chuvas,
mães brancas dos igarapés, sempre coroadas de canções perdidas”. De tal maneira esses
dois amores se entrelaçam que, ao final, é quase impossível distinguir qual seja qual.
“Inscrevei nosso verde em vosso manto, constelando-o de perenidade, a salvo da lâmina da
usura. Nossa Senhora de Manaus, se azul é o firmamento dos vossos pés, deixai que a cor
do Reino seja verde.” “No Amazonas, uma legião de passarinhos estende vosso manto
sobre as copas mais altas.”
Confesso que os salmos me deixaram emocionado, profundamente enternecido. Como não
lembrar o salmo bíblico 137 ao recitar o salmo I do poeta!... Canta-se a beleza de nossa
gente, a maravilha de nossa gente, a de nossa natureza ao lado do aviltamento de nosso
povo, da destruição de nosso mundo. Cantam-se tristeza e esperança.
Max Carphentier é um poeta que entre nós deixa traços de gênio. “Nossa Senhora de
Manaus” veio para permanecer porque nasceu imortal; é um livro para ler e orar.
“Tamanha é nestes céus tua pujança,
Que quem o bem, sem ti, busca, hesitante,
como que a voar sem asas se abalança.”
Dante (Paraíso 33, 13-15)
“Maria, entrando intimamente na história da salvação, une em si e reflete, de certo modo, as
supremas normas da fé. Quando proclamada e cultuada, leva os fiéis ao Filho, ao sacrifício
do Filho e ao amor do Pai.”
(Da Constituição Dogmática “Lumen Gentium” sobre a Igreja, do Concilio Vaticano II.)
“E agora, na verdade, habitamos no auxílio da Mãe do Altíssimo, demoramo-nos em sua
proteção como à sombra de suas asas e depois unidos a sua glória seremos por assim
dizer acalentados em seu seio.”
(Dos Sermões do beato Guerrico, abade.)
287
INTRODUÇÃO-OFERTÓRIO
As comunidades da Selva, reunidas nesta hora grave, neste tempo de martírio da natureza
amazônica, pedem a s, Santa Mãe de Deus, que atendais aos nossos rogos e intercedais
por nós junto ao Senhor.
Ampliam-se os círculos do mal, e as descendências do verde se aniquilam. É tempo de
preces ininterruptas à Mediadora.
Não mais vos chamaremos Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora de Lourdes, de
Fátima, de Aparecida, mas vos chamaremos NOSSA SENHORA DE MANAUS, para que -
única e insubstituível - estejais mais perto do nosso clamor, convivendo e sofrendo conosco
no coração da Selva, que palpita em Manaus.
Assim, Senhora, é que vos rogamos, no fim do segundo milênio do nascimento do vosso
Filho: Levantamos a Vós as nossas águas, a nossa terra e a nossa oração. E vos
oferecemos a petição e o amor destas páginas.
O LIVRO DAS ORAÇÕES
Rogai por nós - que vivemos na água e no verde, e suportamos as expedições de foices e
venenos que investem contra a Selva. Sabeis que do alto nos vem a inspiração para a
resistência, porque daqui nascerá a civilização precursora do Reino. Dai-nos entender,
Senhora de Manaus, que é agora que se fortalecem as vontades e se elevam os espíritos,
para triunfarmos do mal.
Longe das regiões de mar azul, que a ingratidão da história cumulou de avanços
construídos sobre nós, temos de sozinhos fazer frutificar da água uma espécie de futuro
dificultado e definitivo, santo e tantas vezes renegado. Com a vossa ajuda, no entanto,
temos protegido o essencial, o ritmo biológico e a promissão do verde.
Assim esperamos que vós, Virgem Cabocla, que debulhastes o trigo para a fome dos
apóstolos, colaborando na Redenção a partir da subsistência, haveis de - amparando o
homem da Selva e a prontidão das palafitas - conduzir-nos ao ideal de civilização que
faremos florescer dos seios alagados.
E sabemos que, se muito ainda temos de chorar, Senhora, é porque enorme e incontrolável
é a vocação cristã do verde, e ela se nutre, em cima, do desígnio das estrelas do Senhor, e,
embaixo, das nossas lágrimas antigas, que operam fontes e segredam frutos. Rogai para
que entendamos que o nosso sacrifício de homens e de árvores repete no verde o milagre
do Sopro na argila, na criação do homem novo.
O homem novo não sofrerá nem de cálice nem de rocha, mas sua pedra será o muiraquitã,
feito de esmeralda e lua cheia.
E no fundo de sua taça haverá uma cintilação de mel. O homem novo, nascido na Selva, é o
homem integral, e sobre ele a lembrança do pecado será tão leve como um vestígio de
saudade. O homem novo será virtuosamente universal e localizadamente heróico e
satisfeito, porque então terá realizado sua integralidade na compreensão das trocas de
infinito que se realizam entre o grande e o diminuto, entre o bem e o mal, entre o presente
que constrói e o passado que alimenta. Esse homem, Senhora, terá o rosto suficientemente
totalizado e puro, para conhecer os mundos que se descortinam a partir do merecimento
dos vossos olhos sobre nós. E vossos olhos se regozijarão conosco como diante da notícia
de que o Verbo se realizaria.
II
Rogai pelo nosso verde - que é o nosso primeiro corpo e a nossa cor na Terra. Lembrai-
vos de como brilhavam as palmas que receberam vosso Filho na entrada triunfal de
Jerusalém e da vestimenta da colina que ouviu o Sermão da Montanha. Esse verde bíblico é
288
o da promissão, e o nosso é o da realização máxima da vida, o suporte material do Reino.
Assim como as palmeiras do Esdrelon e seu asilo de pássaros vos alegravam, sirva de
júbilo para os vossos olhos o apogeu vegetal da Planície Amazônica, que de entrar para
a história da evolução com o nome de Planície de Deus.
Considerai que o nosso verde tem nomes locais e perfumados, amplos e frutuosos, que
haveis de amar em vossa meticulosidade doméstica. Temos o verde das canaranas,
caravelas dos polens, transportes dos passarinhos. Temos o alto verde, que batiza os
ventos, oficiando nos buritis, nos marajás, nas bacabas, nos açaizeiros. São os elevados
licores com que celebramos as sombras do difícil caminho. Temos o verde que se chama
roça plena, colheita farta, ervas da salvação. Verde também é então, Senhora, o nome da
várzea repleta, dos frutos pendurados nos confins do nosso mistério, do pão tão doce em
nossa boca quanto a prece.
Maternalmente compreendeis, Virgem das searas, que o verde é a súmula das trocas entre
o céu e a terra. Para que haja a folha, o sol se entrega diariamente na pontualidade da
aurora. Por isso a folha tem a forma de mão: para receber a energia celeste, a respiração de
Deus, e distribuí-la sobre a terra. Dá-se na folha, na mão aberta do verde, as primeiras
transmutações da piedade cósmica chegada ao planeta dos homens. E se palmas juntas
tendem à prece, as folhas da Selva são a comunidade oracional da natureza que unifica
toda a terra num rosário imenso desfiado aos vossos pés. Por causa do verde, a Terra é
toda uma oração de graças. Como não haveis de atender as súplicas de um rosário dotado
de translação e de influência nas outras esferas?
Inscrevei nosso verde em vosso manto, constelando-o de perenidade, a salvo das lâminas
da usura. Submetei ao rigor da vossa piedade o genocídio dos caules, e esmagai de novo a
cabeça da serpente, que ressurgiu com o nome de devastação.
Nossa Senhora de Manaus, se azul é o firmamento dos vossos pés, deixai que a cor do
Reino seja verde, o verde que é o nosso corpo, e que sangra por nós e antes de nós para
remir o pecado do homem contra os mínimos da natureza. E permiti-nos habitar no futuro
revestidos da humildade, cuja cor descobrimos que é verde, eis que esta é a cor da oração
horizontal da humílima relva que nos une.
III
Rogai pelo Rio Negro - que é a nossa água primordial. Outrora, vosso Filho fizera do
Jordão a fonte dos batismos e nele mandou jogar as redes da Nova Aliança. Cristão
também é o Rio Negro e suas fincadas cruzes de conquista, e suas ermidas de ribanceira,
os altares enfeitados de folhas de buriti. Tinha o Jordão, para o vosso Filho, o púlpito dos
barcos, e tem o Rio Negro, para a vossa alegria maternal, as quermesses dos sítios, os
arraiais dos santos.
Senhora, fora necessário o tormento da Selva e das águas para que pudéssemos
compreender toda a grandeza da nossa identidade. E piedosamente veio a sofrer o Rio
Negro, como um pai que, por amor da terra, despede seus filhos para serem sacrificados.
São seus filhos os igarapés inúmeros que cercam a cidade e a refrigeram com a
temperatura das fontes peregrinas. Ele esses filhos serem vitimados pelos resíduos da
nossa voracidade, mas como sabe que, apesar das nossas culpas, deve proliferar para a
eternidade, faz o ventre da terra conceber novos filhos, e então, aqui e ali, surge uma nova
corrente, um novo caminho de água, e até, milagrosamente, filhos mortos, águas oprimidas
se levantam para ajudar os irmãos. Entre sua prole disseminada, um fio invade ali, outro
reconsidera seu leito, aquele desaparece uns tempos para se fortalecer. O amor do Rio
Negro pela felicidade da terra consegue de Deus, a olhos vistos, a ressurreição dos
igarapés.
Batizai-nos de novo, Senhora, com a alvura dessas águas negras, e fortalecei nossa voz
contra os desertos, enquanto recolhemos as redes fartas desse rio clemente. o nosso é
esse Rio Negro, e tão irmão, que vela pelos despojos das nossas vidas, suspensos na
correnteza, eis que, não se misturando, não os entrega nem ao Solimões nem ao mar.
289
Se a água é a substância de todos os sacramentos, toda uma vocação sacra desse rio
apostólico que, desde Anavilhanas, é pastor de ilhas, e de perto acode as igrejas de Manaus
com sua flauta de mururés e de marulhos.
Um dia, entre seus braços de garças e de orquídeas, a fé uniu-se à luta - e desde então a
nossa luta é a - quando Ajuricaba, a rogar ao seu Jesus Tupã, sofrendo no rosário das
correntes, chegou à eternidade para entregar os nossos últimos grilhões. O sangue do
mártir guerreiro nutriu de liberdade, para sempre, a fonte que nos tira a sede. E a fonte sabe
que carrega para nós, definitivamente, o penhor de uma vigilância que assegura a
identidade, defende o solo e constrói o destino. A luta da fé, ao nível das sociedades, é a
preservação das vocações mais essenciais do povo. O Rio Negro é um rio de liberdade, e
Manaus a sua companheira de atalaia. Nós somos a civilização indestrutível da água e da
terra que se amam.
Protegei, Senhora, essas águas enormes, irmãs das do Jordão, e suas ameaçadas festas
de gorjeios. Ao Negro pertencem as praias do futuro, a ele que, antes de nós, já celebrava o
Reino na Baía de Boiaçu, a partir de sua índole missioneira, com seu enluarado séquito de
virgens cobras-grandes. Protegei nosso Rio Negro, círculo de paraíso vindo do Gênesis
para fazer de Manaus a conservadora das primícias da Criação. E descansai também,
Senhora, sob a vigília lustral das suas águas vivas, na pontualidade devocional do seu
regime.
IV
Rogai pelo nosso clima - que, com o sol inteiro e a chuva inumerável, nos torna fortes e
contemplativos como os heróis e os santos. Aqui vossos fiéis se amorenam como faziam os
apóstolos ao sol da Galiléia, nas pescarias, de homens. Antes como agora, nascem os
corações predestinados, pelo sinal da estrela, ao encontro definitivo com a luz. E as águas
descidas e palmilhadas são o espaço onde se dá a glória dessa busca.
Conservai, Senhora, as nossas chuvas, mães brancas dos igarapés, sempre coroadas de
canções perdidas. Chuvas de dezembro, fevereiro, abril, chuvas de todo dia, em que a luz
bebe, pelos arco-íris, os perfumes e as lendas. Chuva sempre doce para nós, e nunca
ácida. Essas bilhas de índias samaritanas que os céus quebram sobre nossas matas, essas
chuvas de grãos escolhidos, nós as recebemos na pele e na língua das raízes como o maná
distinto da Planície. E essas chuvas de Deus nos cercam de abundância, e sobem para Vós,
no ciclo da Providência, em nuvens satisfeitas, comovidas.
Imagino nossos ventos perfumados, artífices do clima, como pajens da vossas vestes,
pressurosos em vos entregar os bordados e as luzes da Amazônia. Os ventos da manhã
sopram de leste, trazendo os fios translúcidos da aurora. Chegam, os do meio-dia, com as
cores dos frutos e o cetins transpirados pelas rosas. Aqueles que, correndo a oeste,
conhecem as rocas do crepúsculo, trazem os florões de uma estrela que cai para as bandas
da eternidade. Recolhei as dádivas dos nossos ventos, Senhora, e usai-as como agasalho
que vos sirva em vossa peregrinação pelos mundos. Assim vos lembrareis de como são
belos, caridosos e mansos os ventos que dão alma à nossa atmosfera.
Também, Advogada nossa, conservai nosso sol e seu poder de dissipar as sombras, este
sol cujos raios ainda não recuam ante nuvens nimbadas de fuligem, mas que já teme, como
uma estrela de pouso ameaçado, enregelar seus dedos na palidez dos rios martirizados.
Senhora, nosso sol estala nos ouriços, alveja os varais de juta, ceifa na superfície o brilho
dos cardumes. Conservai-o assim, o mais íntegro, o mais digno, pelo seu alto brilho, de
prefigurar sobre o planeta o rosto do vosso Filho. Esse é o sol de Manaus, o mais belo e o
de missão mais forte.
Sabeis, Nossa Senhora de Manaus, que nós somos a civilização da água e das forças do
sol do terceiro milênio. Que permaneça entre nós esse inverno limpo e seus ventos sadios,
inverno dos frutos e das reflexões. Que permaneça sobre nós, com a vossa graça, esse
estrela forte do verão caboclo, suspensa como signo de Davi sobre a nossa união.
290
Rogai pois, Senhora, por esse “clima caluniado”, como rogáveis pelo céu claro e pelas
colheitas de Nazaré, porque esse é o clima que prepara a estirpe duradoura do homem do
Reino.
V
Rogai pelos nossos barcos - peregrinos da Selva. Eles enfrentam a hora das tormentas,
vencem os ventos noturnos, e entregam, num suspiro de ondas dominadas, as provisões da
terra, o ouro das colheitas, abraços dos confins, cartas da solidão. Nós somos aqueles que
vigiam nas pontas de praia e no alto dos barrancos a chegada das nossas esperanças e a
partida dos nossos filhos. É o nosso peito um ancoradouro repleto das emoções vividas
pelas proas.
Nossa unidade depende dos lemes, Senhora, da aventura das quilhas. Nos barcos
vivenciamos os perigos e os anseios do nosso território líquido. Nós somos nômades da
água e o nosso deserto é a corrente sem fim, tantas vezes sem paz, quando a ela se juntam
a lágrima ribeirinha, o adeus de palha das lamparinas perdidas. Em muitos lugares, é tão
intenso o desamparo das margens, que se humanizam os barcos para solidariamente
sofrerem com a gente do interior: não se pode deixar de ver um rosto humano na fisionomia
do barco que volta para o seu casebre.
É apostólica a índole dos barcos, pela disposição de unir, de aproximar, de tomar para si os
fardos dos homens. E os homens aprendem dos barcos a lição de fraternidade e através
deles estendem os braços aos seus irmãos. O homem amazônico, além de corpo e de alma,
é dotado de barco. Por isso, a partir da sua estrutura, é amplo e fraterno e dominador
pacífico do império das águas. A história da nossa conquista da terra é uma procissão de
canoas.
Quem, junto convosco, conhece a aflição das barrancas, a febre dos meninos das choças?
São esses que aportam aqui e ali, mitigando infortúnios, pontuais em sua misericórdia de
conveses carregados. Quem conhece a fome das grandes cidades, o clamor do suor das
construções? São esses que trazem da Selva o abraço das roças, a solidariedade das
tarrafas. Entre a cidade e a Selva, Senhora, o rito dos barcos professa e distribui as
benesses das vossas mãos.
Protegei, Nossa Senhora de Manaus, os nossos barcos, os grandes, os pequenos.
Principalmente os pequeninos, que têm o nome de canoas, cascos, igarités queridas.
Quanto precisam de Vós as batidas dos remos! Quanto precisam de Vós as sagas dos
motores! A Providência Divina, nos estirões amazônicos, requer um concílio de barcos, a
novena diária das canoas.
Considerai, Senhora, que são sagrados para nós os nossos barcos, como se todos eles
fossem descendentes diretos daquele de Pedro, em que o vosso Filho fazia as sestas,
dominava as tempestades e pregava a doutrina. São portanto os barcos o nosso repouso,
nosso domínio afortunado da terra e o trânsito da prece dos nossos olhos.
VI
Rogai pelos nossos peixes - nosso rebanho, que conduzis conosco nas vertentes líquidas.
São eles que compõem a alma dos rios, que dão felicidade às águas, que dão sangue aos
homens.
Outrora, um peixe gentil pôs nas mãos do Senhor a moeda para o tributo de Cafarnaum.
Nossos peixes, sob a vossa graça, pagam por nós, no alarido das feiras, o nosso tributo à
vida.
Vós, Senhora, que conhecestes as carpas de Genesaré, sabeis que esses nossos peixes,
da ínclita pescada ao jaraqui festivo, sobem dos limos fecundados, comem na nossa mão à
luz dos lagos, e entram em festa nas redes, tensas de alegria. E cumprem sua antiga
missão entre as ervas da mesa.
Um dia, vosso Filho, se compadecendo das multidões, multiplicou os peixes. Parece que
fomos, desde antes daquela hora, cumulados da felicidade desse milagre nessas águas
291
repletas. Não permitais, pois, Senhora, que o envenenamento das fontes suste a
multiplicação da vida e nossas águas se transformem numa dura saudade das escamas.
Tendes visto, Senhora, no silêncio dos igapós, a alma cristã dos buritizeiros inclinar-se
sobre a água e depositar na sombra a oferenda do seu fruto, como se a superfície líquida
fosse o altar movediço das palmeiras. A esse ritual, em que a árvore socorre os seus irmãos
da água, comparece o tambaqui, com fome, cansado dos estirões percorridos, e sua
espera coroar-se do fruto que se oferece à sua boca. O buritizeiro alimenta o tambaqui, que
alimenta o homem, que deve preservar o peixe e a árvore. temos o peixe como graça
intermediária, como elo vivo da cadeia de misericórdia entre a Selva e o homem. Assim,
Senhora, se o peixe está inscrito entre os símbolos da vossa Igreja, deixai também que ele
seja o nosso símbolo e permaneça entre nós como sinal da imorredoura abundância.
Lembrai-vos, Nossa Senhora de Manaus, em vossas mediações, do ritual de amor das
piracemas, dos cardumes que sobem as cascatas para descerem depois, multiplicados,
favorecendo os sítios, iluminando o rosto dos casebres. Há na ritualística nômade das
escamas a missa indispensável à ascensão material e à devoção dos ribeirinhos. O homem
dos rios reza pelos peixes: para que continuem a existir como frutos nos campos de água, e
para que aconteçam nas redes. Em toda oração ribeirinha, Senhora, passa a sombra
constelada de um peixe. Quer dizer, não só o homem reza pelo peixe, mas também o peixe,
íntimo dele, reza pelo homem. Eis a integração mais funda dos habitantes da Selva,
realizada em vosso colo, na prece, ao nível dos lábios do coração, quando todos os seres
se unem na mesma necessidade de assistência de Deus.
VII
Rogai pelas nossas aves - que compõem o cocar das matas nos últimos poleiros do
Gênesis. Vosso Filho, Senhora, falou das aves do céu para ilustrar a pedagogia da
demência, desde o refrigério do canto à liberdade da asa. Se dores distribuídas na terra,
o bálsamo dessas gargantas as cicatriza. Se corações como pássaros cativos, a espiral
desses vôos indica que a santa liberdade é um entregar-se ao céu. Por isso que a aurora,
que renova as forças da natureza, é uma liturgia dos pássaros. Não nascer de sol sem
pássaro investido em sacerdócio. Eia, pois, Nossa Senhora nossa, conservai mais vital a
nossa aurora pelo poder multiplicador de tantas vozes nas litanias dos ramos. Preservai o
uirapuru e seu turíbulo de lendas; os salmos do sabiá, o cantochão das corujas, a devoção
das garças. E nos transeptos, nas absides, nos vitrais da grande catedral da Selva,
conservai os circunspectos tucanos, a cardinalícia arara, o azúleo coral dos rouxinóis.
Desde que sabemos que um pombo trocaz dos desfiladeiros de Canaã foi escolhido para
ser a forma do Espírito no batismo do vosso Filho, devemos respeitar esse poder vivo que
m as asas de, sendo do céu, baixarem à terra com a lembrança das nuvens da redenção.
E vede, Senhora, como são inúmeras as asas que descem do céu sobre nós. uma
lembrança do primeiro instante do sacrifício de Cristo, trazida para nós, quando uma ave
pousa. Repete-se incansavelmente, na Selva, a descida simbólica da luz, sobre cada
pássaro que, em seu galho, guarda a memória dos confins do céu. Pelo parentesco com o
Pombo do Espírito, todas as aves distribuem na terra modulações antecipadas do perdão.
Olhai, Virgem Cabocla, as aves da Selva, que não lutam nem protestam, porque preferem
cantar. Elas sentem antes de nós o drama da floresta ameaçada. A relação das aves com a
cobertura vegetal é tão íntima quanto a convivência de suas asas com o céu. Vem daí que o
tenso coração que faz o canto é o primeiro a receber a angústia da árvore e a nódoa da
nuvem. A quem pode entendê-las nos seus hábitos, a linguagem das suas arribações revela
os males ecológicos em seu primeiro instante, os golpes menos perceptíveis que são dados
sobre os elos da vida.
Não vos esqueçais também, Virgem de Manaus, das almas pequeninas das espécies
desaparecidas, das que choraram seus ninhos derrubados pela invasão das lâminas. Sabeis
que a morte ou a mínima lágrima de um pássaro é um depauperamento da aurora, um recuo
292
da vida. Assim como a aflição mais pura da natureza é a de um coração de ave perseguido,
a imagem de um pássaro ferido na palma da vossa mão protesta por vossa misericórdia até
o final dos tempos.
No Amazonas, uma legião de passarinhos estende vosso manto sobre as copas mais altas.
Como é doce vosso pedido ao Pai pela vida das aves!
VIII
Rogai pelas nossas flores, pelos nossos frutos - Pelas nossas flores, Senhora, “que não
fiam nem tecem”, mas o Senhor aqui veste-as, magníficas, como noivas do sol. E o
poderoso sol amazônico recebe essas noivas emprestadas de Deus. Umas, com o nome e a
gaze das orquídeas, esperam as núpcias nas sombras, na felicidade dos musgos elevados.
E o sol as distingue com a aliança de minúsculos arco-íris nos dedos perfumados. Outras,
como as vestidas de flor de maracujá, flor-da-paixão, penitenciam-se nos ramos, rezam às
brisas, e o sol as faz luzir nos ares, deitar no chão, cantar na relva. E todas essas noivas,
Senhora, qualificadas nas ramagens, dão à nossa Selva essa perene feição de festa divina,
essa permanente pulsação de vida emocionada.
Não vos esqueçais também daquela flor que não pertence aos ares, nem à terra. E a noiva
dos lagos, de celeste origem, a estrela das águas, a vitória-gia. E nela que se
transubstancia a prostração do lado em deslumbramento do sol, e, pelo amor do sol, ela
com ele se acende e por ele se apaga, ante os círios do crepúsculo. Ó Vós que, sendo Mãe
do Redentor Crucificado, tendes a alegria velada de tristeza - a nostálgica majestade da
vitória-régia pode ser a encarnação do vosso sorriso nas águas.
Rogai insistentemente, Senhora de Manaus, pela carnação das flores, os frutos, os nossos
misericordiosos frutos. Principalmente por aqueles que têm toda uma história vegetal de re-
sistência a favor da vida, como a castanha e a fruta-pão, a pupunha e o guaraná. Os dons
do Espírito Santo são tidos como frutos, e os frutos, de si mesmos, promovem os dons da
vida. E como tudo no universo é movimento de doação, formas da Providência para a
comunhão dos mundos, na Selva um dos nomes de Deus pode ser Fruto, como fruto
bendito foi chamado o Verbo consentido em vosso ventre.
Vede, ó Virgem, como as germinações da várzea alegram o rosto do rio. A água que as
suas margens frutificarem tem a alegria íntima dos talvegues realizados. E que os frutos
sustentam, na claridade, a conversão dos abismos inundados feita pelo trabalho humano. E
toda a Selva se anima pela prosperidade que não a dilacera. Eis por que as searas
ribeirinhas, que seguem o ciclo das estações e não se desesperam, dão júbilo à Selva e per-
manência ao homem. E agrária a perfeição do relacionamento do homem amazônico com o
seu meio. Um império das potências vegetais, uma determinação de flores, uma iluminação
de espigas.
Considerai, Senhora, que, nas agressões à Selva, as árvores gemem, as águas se queixam,
os pássaros lamentam, o homem reza, mas as flores e os frutos não têm voz, são vítimas
caladas, sem a mínima queixa. São humildes: tendo a palavra mais eloqüente da beleza e
da verdade de Deus, não reclamam, nem multiplicam as sementes da dor, e cumprem sua
missão no silêncio. Deixai então que os homens percebam que a flor é a beleza e o fruto é a
verdade. E que a Beleza e a Verdade, além de serem as faces de Deus, são o ofício da
Selva.
IX
Rogai pelas nossas praças - que são nossas reservas de malva nos redutos do asfalto.
Passeai conosco nesses súbitos oásis do vento refugiado e sombra mansa, onde mais
vegetalmente se manifesta a relação viva, humana, do homem com sua cidade. Sabeis,
Senhora, que a relação orgânica e espiritual do homem com seu contexto urbano é mais
nítida nas praças, em que palpita a história de ambos nos bustos dos ancestrais, e a
presença sacramental das fontes, a infância e o amor partilhando o sol e a árvore. Se
inspirardes, pois, nossa conservação desses verdadeiros sítios de trégua da luta cotidiana,
293
nossa têmpera cordial não se aniquila e não perderemos a noção de que a cidade é a nossa
extensão e de que o verde nos completa.
Conhecestes, de visitardes o Templo, o pátio dos gentios, onde todos se misturavam, o
levita e o ateu, o mendigo e o publicano, moldando a feição geral da comunidade. Também
assim temos as nossas praças, retratos algo desfigurados de Manaus. Nelas podeis
conhecer nossos tipos humanos e assim atuardes em todos os níveis sociais, em todo
estágio de alma. Na verdadeira igreja ecumênica das praças, podeis constatar os mais
variados estados de oração, desde o olhar que se perde no passo amado que se afasta
para nunca mais ao olhar que flagra a presença de Deus num beijo de passarinho sobre a
flor.
A Praça dos Remédios, onde assistis olhando para o rio, tem uma estátua de vosso Filho
abraçando a chegada dos barcos que vêm da Selva, os carregadores, os fruteiros, os
bêbados e as mulheres perdidas. Na Praça da Polícia, os poetas e os trabalhadores de
todos os gêneros sonham sob a égide de uma árvore, entre a estátua de Diana maravilhosa
e a fadiga das ruas. Nessa praça, Senhora, podeis encontrar o ombro geral de todos os can-
saços, os despojos e as esperanças do dia. Essa hora de praça, em que a Selva lembra que
continua sendo por nós, é o melhor momento para abençoardes a fronte dos cansados, a
alegria dos felizes, o sonho dos esperançados. nessas árvores, que insistem em
reproduzir as matas, o eterno retorno do verde.
Considerai agora as folhas dos oitis. São como mãos que descem e recolhem para o céu as
indagações dos olhares que rolam nos canteiros. Como sabeis, Senhora, as árvores das
praças adquirem fisionomia e trabalho distintos dos que m na mata: estão investidas do
múnus sacerdotal de recolher o que sobrou nos corações ao final do dia e amá-los com sua
carícia de vento e seus olhos de sombra. Então a Selva, no estado de árvores das praças, é
um refúgio de caules apostólicos, de remissões perfiladas, de graças balouçantes. Os
pássaros gerais, desde o pardal à andorinha, são testemunhas dessa transfiguração de
árvores em sacerdotes no adro das praças, e cantam esses pássaros em agradecimento da
esperança e da absolvição.
X
Rogai pelas nossas cachoeiras, pelos nossos lagos - Pelas cachoeiras, Senhora, que
dão voz ao rios e estradas aos igarapés. Elas são simples, meros saltos rápidos, onde não
habitam os trovões nem os condores de espuma. Mas são as madrinhas dos banhos”, a
instituição índia do refrigério das forças e do diário domingo. Uma leve neblina, vez ou outra,
cobre-lhes o rosto: são lágrimas causadas pelo ofício das pedreiras, que lhes explodem as
margens e diminuem a vida.
As cachoeiras, Senhora, são intérpretes dos abismos, e os dominam com a récita
translúcida dos arco-íris, com o vôo da água. E cedem os abismos, e se pacificam sob as
asas da água. Precisamos, Virgem, da integridade do corpo das cachoeiras, porque são o
movimento alegre do rio e a mensagem da sua força. Particularmente pedimos a Vós pelo
Tarumã e pelo Tarumãzinho, que deram à infância de Manaus o mergulho batismal nos
óleos do coração da Selva, nas alegrias repousadas das fontes mais longínquas.
“Por que um rio sofre quando perde a sua cachoeira?”, podeis indagar com os olhos belos já
quase em estado de lago. Porque as cachoeiras são o cenário da infância e da adolescência
da água. O rio que deixa de brincar nos saltos começa a envelhecer, e, quando é destruído
esse lugar das suas efusões, o golpe que recebem é o de um adeus aos seus próprios
cantares. E assim se recolhem os rios na nostalgia queixosa dos leitos desviados, para
lamentarem a perda em seu corpo dos altares da luz partida em cores. Mas o clamor dos
arco-íris que perderam seu lugar de sonho no peito das cachoeiras se eleva até Vós com a
força de todos os crepúsculos.
Nossa Senhora de Manaus, outra compleição da água que precisamos ver íntegra e salva é
o corpo múltiplo e espalhado dos nossos lagos. Voltados para o céu, eles vivem, tentam
viver serenos, no recolhimento dos peixes; e transbordam sem pecado, na adoração da lua,
294
que neles tem o escabelo dos seus pés. Protegei-os, Senhora, para conservar-nos. São eles
que equilibram o regime das águas, que recolhem e distribuem o húmus das cheias. As
suas margens, as comunidades de pescadores se reúnem, consertam redes, calafetam
barcos, evocando os homens do Tiberíades que passaram a lançar redes para as almas.
Quem os lagos de Anori, de Codajás, de Coari, na plenitude das enchentes, nota-lhes a
feição de represa da abundância, de celeiro de escamas. E o alvorecer que nasce por trás
de suas águas tem a cintilação típica dos lugares amados pelo Senhor.
Tanta vida lateja em nossos lagos, e tanta misericórdia nos leitos fecundados, que se
diria que cada lago tem o seu anjo, milagroso e pontual como aquele que agitava as águas
da piscina de Siloé, que bem conhecestes. Mas se nossos lagos não têm anjos protetores,
intercedei para que as iaras, que neles vivem e cantam com o fervor de prece, sejam
investidas na condição de tutelares, com a vossa proteção.
E a língua das usinas não prevalecerá contra os redutos da abundância da Selva.
XI
Rogai pelas nossas lendas - que são a palavra das nossas raízes. Essas histórias que
passam de geração a geração de fogueira, segundo a descendência das barrancas, vêm
recolhendo os anseios e os encantos das almas mais antigas, almas de homem, de árvore,
de rio, de passarinho, para moldar o espírito da terra, e após fazem perpassar esse espírito
de folha em folha, de remanso em remanso, de coração em coração, para que veja a Selva
a sua própria face mais interior e verdadeira. As lendas são o espírito da terra.
Sabeis Vós, Senhora, de tantas vezes que contastes a Jesus as histórias dos Juízes e de
Rute, de Jonas e de Daniel, que, entre a fantasia e o símbolo, corre pelas histórias das
gerações uma inteligência preservadora do essencial, uma doutrinação do imorredouro,
tanto da matéria do homem quanto da substância de Deus.
Contáveis as histórias a Jesus, decifrando-lhes as suas mensagens, descortinando as faces
do simbólico, identificando e assinalando a busca do homem e a vontade do Senhor. Assim
também fazemos nós, menos iluminados, entre o cigarro da noite e o remo da madrugada,
para ouvir de nossa própria boca as confissões da nossa alma.
Quereis saber, Senhora? O gesto que faz o Curupira dar voz de tambor às sapopemas é a
linguagem primitiva de alerta contra as agressões à natureza. Pelas mãos do mito, esse
palpitar das raízes em atalaia repercute de moita em moita, de asa em asa, de salto em
salto, e cruzam-se os espinhos, para que sejam protegidos os íntimos arcanos. E que são
os movimentos da Boiúna,que barrancos sepultam, tomam nômades as ilhas, os lagos
fecham e descobrem rios? São a força de expansão da natureza embrionária buscando
revelações, dando noção de rumos, arrastando e projetando os ritmos mais essenciais à
vida, como se o nosso mundo fosse o ponto onde se criassem e se harmonizassem todas
as disposições do espírito da Terra. Guardados milenarmente sob cujas e entre
malhadeiras, nas lendas traços inegáveis, feições resolutas de um dinamismo universal
que ampara, qualifica e inspira a preeminência do homem amazônico, decidida e ansiada
pela inteligência das eras.
Assim é que, à noite, Senhora, nossas lendas pousam como corujas ancestrais nos esteios
das palafitas. E é aberta ali mesmo, no chão batido de inverno, a palavra do mistério, o nexo
maravilhoso entre os elementos vitais e o sonho, toda a conjugação das forças naturais e da
esperança humana. E assim essa simbiose de matéria e sentimento resulta na
compreensão integral da terra e do homem. Na Selva, se mais facilmente que a
disposição de sonhar é lei que integra o sistema de permanência e de equilíbrio cosmlco.
Rogai, pois, Nossa Senhora de Manaus, para que as nossas lendas, passadas e futuras,
não se percam, e que sua distinta e protetora mensagem essencial seja ouvida.
XII
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Rogai pelos ribeirinhos - filhos da felicidade das águas, apaixonados dos
transbordamentos. A pedagogia de Deus em suas vidas é o deslizar da corrente tranqüila e
a prédica dos cardumes. Por isso são fortes na contemplação e ricos na esperança. Se é a
Amazônia a “ultima página do Gênesis”, é exatamente também pela condição paradisíaca, e
mais ainda pelo notável tipo humano que aqui se desenvolveu, que ela será o primeiro ter-
ritório reconhecido como de predominância do Reino do Senhor, que, não sendo Reino
deste mundo, deve, no entanto, começar a ser vivenciado aqui. O perfil psicológico e
espiritual do caboclo coincide com o do definitivo homem de Deus, pela resistência, pela fé e
pela esperança. A natureza da Selva e os caracteres humanos convergentes aqui
prepararam a raça gloriosamente predestinada dos milênios vindouros. Convosco, Mãe de
Deus, se instalará o nosso apogeu sonhado pelas eras.
Revisitai, Senhora, um pouco da vida que há em nossas margens. O amanhecer nos
quintais ribeirinhos, alpendres debruçados sobre os rios, é urna algazarra de palmeiras, um
despertar de anzóis, um espreguiçamento de tarrafas. Vem depois o meio-dia calmo, como
o dos pastores da Samaria, os homens voltando com os frutos da Selva. E dá-se no rosto
das mulheres a festa das escamas, dos paneiros das roças. Na floresta, Senhora, a noite
chega cedo, ante pé, nos primeiros vaga-lumes. Os meninos, se faltam luzes no céu,
acendem estrelas no chão, para ouvirem as histórias de fogueira, que evocam seres da
água e da terra, as almas encantadas da noite, as tabocas sopradas pelos ventos. E
adormecem todos no medo feliz, para continuarem sonhando. No sossego das praias,
dormem também os rios: está suspenso o caminhar da água.
Nossa Senhora de Manaus, o que rezei acima é o rosto amável da comunhão com o verde,
os benefícios do ritmo biológico preservado, longe da agitação cardíaca das grandes
cidades. Mas sabeis que, das lamparinas dessas palafitas, pendem lágrimas antigas que as
cidades desconhecem. Os frutos bons dos centros mais avançados dificilmente chegam aos
beiradões. E aqueles que resistem por nós na preservação, nas lições da vida natural, são
afastados muito tempo dos bens sociais que ajudam a conquistar com o apoio das safras e
das legiões das piracemas. E como se as conquistas do império que se estende
desconhecesse e deserdasse a vigília das sentinelas. Os ribeirinhos vivem em vigília pela
natureza. Facilitai toda solidariedade para com eles, Virgem Mãe Ribeirinha. Sabeis que
depende do tempo curto dos homens a propagação do Reino, porque, embora sendo
predestinação do Altíssimo, o Reino tem sua história visível, que se realiza de conquista em
conquista da fraternidade. Convosco, então, Maria de Manaus, ficam nossos rogos pela
completa e equilibrada humanização das barrancas.
XIII
Rogai por Balbina - o colosso fratricida da Selva, desde que foi fundada na revolta
impossível da água contra a árvore. É novo esse ódio na natureza, criado pela mão do
homem: de repente, um calmo rio, explodido, violentado, foi agredido na sua natureza mais
funda, e ficou desnaturado. A dor desmedida enlouquece até os elementos, e até os
elementos m seu ponto máximo de sofrimento. Foi assim no Calvário, diante de vossos
olhos, quando o ponto mais alto da dor na natureza fraturou o céu com relâmpagos infelizes,
fez o dia recuar ante o horror da treva antecipada. Mas quando a piedade deitou aquele
Corpo em vossos braços, foi mitigada a dor dos elementos, e os elementos se pacificaram.
Não houve destruição de terras, nem de árvores, mas a abertura das covas dos novos
ressurrectos.
Tal não foi assim com a dor inominável dos membros do Uatumã: levantaram-se da
pacificidade as águas doloridas e conglomeraram-se num Leviatã líquido e espantoso.
O rio, enlouquecido pelo tormento das águas brutalizadas, privado dos seus dons, derrubou
barrancas, invadiu cacaias, baniu gerações de peixes, sacrificou espécies, e sobretudo
afogou árvores, inumeravelmente afogou árvores, uma a uma, como um irmão afoga a sua
irmã. E não há notícia de tão feroz, súbito e numeroso morticínio imposto por um rio às suas
296
árvores, às suas companheiras de missão e de vida. Aliás, á Virgem, segundo as árvores, a
biografia das águas, na parte tempestuosa e mortal, registra o Dilúvio e assinala Balbina.
Mas, no Dilúvio, as árvores morreram para a remissão dos pecados; em Balbina, para a
exposição deles.
Agora, todos sabem que a hidrelétrica abraça um grande cemitério de inocentes, e ninguém
pode afirmar que, no fundo desse crime, a natureza não se rebelará com a legião de mil
demônios das febres, da escassez de todos os nomes, das nuvens negras, das chuvas
venenosas, dos cardumes perdidos para sempre.
Assim, Nossa Senhora da Paz dos Ribeirinhos, concedei que o grande sacrifício das árvores
e dos animais e a demência imposta ao rio não sirvam de culpa para os homens que, se
pecaam, pecaram sonhando, pecaram pela fragilidade dos seus cálculos, pela
transitoriedade dos seus desejos, pela incerteza que atravessa os grandes movimentos da
história como a corrente dos rios jovens. Lembrai-vos de que os homens construíram
Balbina ansiando por mais luz, e isso há de ser considerado na extensão da culpa de quem,
trabalhando contra a treva, possa te errado.
Nós não queremos somente a luz vinda das águas; queremos principalmente a vida das
águas, porque a vida é superior à luz. Que Balbina, isenta do pecado coletivo, não nos
surpreenda na estrada para o Reino, e nos seus braços se reconciliem a água e o verde, a
terra, a vida e a luz buscada.
XIV
Rogai pelos nossos índios - que conheceram nosso espaço antes de nós, e o ocupam
com fraternidade. Fundadores da compreensão amazônica, da percepção do espírito da
Selva, em suas comunidades primados esquecidos da evolução segura, aquela que
contempla a Terra como obra de Deus para a transcendência do homem. Os vínculos de
amor que queremos no Reino há de se inspirar no poder de abraço da primitiva vocação dos
que tratam a terra como irmã, e são meninos como os rios, e me alegram com o rosto da
mãe Lua. Esses homens cordiais, íntimos do verde, conhecem o ânimo das folhas e a busca
das raízes, elevam as mãos e recebem graças, firmam os pés e ganham forças, porque
vivem em comunhão com a vida.
Sua relação com a natureza é uma leitura de códigos recíprocos. Eles não a dominam,
amam-na. E ela lhes revela toda a prodigalidade de seio da complacência divina, e não
conhece vingança contra eles. Muito a aprender dessa dependência umbilical e sábia
que antes não padecera nem a devastação nem a fome. Os caminhos da História
passaram mais de uma vez por encruzilhadas de erros no fenômeno das absorções
culturais. E esses erros não foram de páginas de catequese nem de lutas de resistência.
Foram usurpações da falta de respeito à cadência da harmonia evolutiva.
Os índios, Virgem Senhora, procedem como se a expulsão do Paraíso não tivesse se
verificado para eles, prediletos de Deus. Por isso, passeiam entre as àrvores e ouvem os
seus arcanos; encostam seu coração na terra e ouvem o prenúncio das novas eras;
mergulham na pia peregrina das águas e se isentam do pecado social. E caem sobre essas
vidas índias, que colaboram na harmonização dos ciclos vitais, a coroa das plumas, as
chuvas alvas de maná e nuvem, a revelação dos ritos ancestrais. E não seremos nós os
responsáveis pela condenação que Deus não estendeu até eles.
na humanidade indígena uma tal identificação com os fundamentos do Reino, que a
palavra apostólica que lhes é levada eles a conhecem na essência, e a incorporam
naturalmente como a esperada ascensão de sua própria liturgia. As divindades das aldeias
encontram como que a realização do seu mistério nas cenas e nos desdobramentos do.
Evangelho. Existe uma afinidade eletiva entre a adoração da Lua, de luar, e a devoção a
Vós, Virgem de luz. Como entre a adoração do Sol, que nasce para morrer, e o amor
a Jesus, que morre para renascermos.
297
Se protegermos as fronteiras índias e seus tesouros de compreensão da natureza, e
deixarmos que as trocas entre a cidade e a Selva sigam um processo natural, as reservas
nativas hão de se constituir em fonte de aperfeiçoamento das condições existenciais do
Reino, porque não se terá perdido a herança verde e os vínculos com o ritmo biológico. Isso
é um embalo de esperança e prudência em vosso colo materno.
Assim, Virgem de Manaus, erguemos nossas preces para que intercedais junto ao Senhor
pelas comunidades indígenas, perpetuadoras da natureza, que é a dimensão visível da
eternidade.
XV
Rogai pelos seringueiros - que dilataram as povoações da Selva. Esses que sonham no
périplo das tigelas plenas, domando o inóspito e o desconhecido, plantaram a civilização
das seringueiras, escreveram a história da conquista do espaço, da fundação mais interior
das nossas vilas. Um momento de heroísmo e de afirmação da raça, cercado de
incompreensões, perigos e vícios. Mas triunfaram, antes como agora.
Antes, o seringal fora a célula fundamental da produção econômica, com a eficiência
provisória que a nódoa da exploração coronelícia não conseguiu, no entanto, inutilizar
historicamente. Agora, tanta experiência do verde acumularam os seringueiros, tanto sentido
de convivência com a natureza ensinam, que a sua vida passa a ser sinônimo de
preservação, O seringal elevou-se de meio de produção à categoria de reduto de resistência
pela valorização da Selva.
Nossa Senhora de Manaus, os seringueiros foram os nossos bandeirantes. Encontraram
pepitas desformes no coágulo do sangue da árvore sagrada. E foram inspiradas as suas
incursões, como se o Anjo do futuro dissesse, a cada saída de expedição: Ide, homens
fortes, conhecer o âmago da Selva, a amplitude primitiva e dinâmica da vida. Ide e conhecei.
Ide, e plantai no verde os primeiros núcleos da fé que tendes, para que o verde se
espiritualize na medida dos vossos anseios e vos receba. Ide, e conhecei a beleza em
estado de fruto e de mistério, para saberdes que todo um continente de misericordiosa
natureza está à vossa espera, para a expansão das conquistas do Reino do Senhor. Como
cruzados vos despeço para conhecerdes e conquistardes a Selva, e cada cruz que
marcardes nas seringueiras - vossas irmãs na missão - será o sinal da convivência fraterna
e frutuosa do homem, que dilata o espaço e a fé, com as matas, que o recebem e o
distinguem com suas dádivas.
Nossa Senhora dos Cedros e das Seringueiras, na Palestina vós rezáveis nas despedidas
dos apóstolos, quando partiam para alargar as primeiras fronteiras do Reino. Rezai também
pelos seringueiros, por esses apóstolos anônimos, rudes e simples como os pescadores do
Genesaré. A história desses homens é a conquista de um sacrifício desestudado, a
confluência de destinos valiosos promovendo a Selva enquanto natureza apta e fecunda.
Aplainai-lhes as veredas, eis que eles caminham entre mistérios ainda não tocados, entre as
contingências daquilo que ainda é insuficientemente amado e multiplicadamente agredido.
Esses trabalhadores da paz, que sabem viver da natureza sem degradá-la, têm sido
vitimados pela cobiça dos predadores da terra, mas seu exemplo de coragem e de
fraternidade na convivência com o verde de inspirar a forma de apogeu do homem e da
Selva, conforme queira vossa graça. E que as suas irmãs as seringueiras - tantas e tantas
vezes abatidas antes de se cumprirem - sirvam-lhes como círios antecipados das grandes
luzes que os receberão na eternidade.
XVI
Rogai pelos nossos governantes - para que interpretem a voz e a alma da terra, e oficiem
e dilatem a vocação da Selva. E não se sabe a vocação da Selva sem ouvir-lhe os rios, sem
observar-lhe os caules erectos, sem aprender-lhe a confissão dos frutos. Esse
conhecimento é um debruçar-se na peregrinação das fontes, é um interpretar as piracemas
298
santas, é solidarizar-se com a busca das raízes. Essa sabedoria não despreza a lenda, nem
violenta o mito, mas entende a ânsia das canoas, a harmonia do regime das águas, e
controla amorosamente o estado de paraíso das matas e promove a amplitude humana do
homem da Selva. E lento esse aprender a vocação da selva, porque se trata de auscultar o
ritmo da natureza, o destino do verde, a ação de graças das folhas e das águas.
Descoberta e amada a vocação da terra, o governo tomará o rito de um sacerdócio, que
descerá os vales, subirá os rios, protegerá cidades, e rezará diante de estuários e palafitas.
Conduzir os destinos da Selva, no espaço e por entre as vicissitudes da história, é missão
de apóstolo, de sábio e de guerreiro. Governar a Amazônia passará a ser a paixão dos
iluminados. Será o sumo sacerdócio político do terceiro milênio. Isso nos convém dizer,
Senhora, diante de Vós, para que nossa palavra, embora falha e com certeza sujeita aos
ventos, tome a força testemunhal da esperança.
Senhora, quando orientardes nossos governantes, lembrai-lhes que Salomão, governando
um grande povo, foi o mais sábio dos reis. E sua sabedoria vinha de que fazia constantes
petições ao Senhor, tendo-o como conselho, inspiração e resposta. Ele sabia que o destino
de um povo é a realização coletiva e ascendente dos anseios das almas na direção de
Deus, e que os bens da natureza e os da oração são suporte dessa busca. E como procedia
Salomão para com a natureza? Ele cuidava da cobertura vegetal, do cedro ao hissopo, e
cuidava dos animais, dos répteis aos peixes, e era justo porque sua justiça se voltava para
Deus e começava pelo amor à terra. Sem a compreensão da terra e sem consulta a Deus
sobre o homem da terra, não há povo bem conduzido.
Nossa Senhora de Manaus, as nascentes comunidades cristãs se reuniam, como nós, sob o
signo do peixe, e desde sempre vossa intercessão favoreceu-as. Vós, que ficastes na praia
olhando o Corpo Ressurrecto que ascendia, tomastes sobre Vós o abandono do mundo
naquela hora. Extraordinário abandono: ficaria sendo assistido, do alto, segundo a fé na
vossa mediação. Contemplai-nos, pois, com a iluminação dos nossos governantes. Lembrai-
vos de que vivemos da promissão do peixe e de que pertencemos à nossa fé desde o sinal
cristão que nos povoa as águas.
Somos uma parte deste mundo, Senhora, e queremos edificar o Reino. Mandai-nos
condutores do povo provados na ciência e na fé, valorosos como os líderes da Antiga
Aliança, e esclarecidos no amor como os iniciados no Sermão da Nova Aliança.
XVII
Rogai pelos nossos artistas - Fazei com que esses elos da cadeira lírica que une o céu à
terra se multipliquem no território da Selva, cujo coração, de inumerável mistério, necessita
dc intérpretes, dos veículos das mensagens celestes, dos que não temem a face dos
arcanos. Necessitamos desses homens atentos aos reclamos dos homens e dos rios.
Sabeis, Senhora, que o Espírito Santo solta por nós gemidos inexprimíveis”, tal a dor da
matéria em seu estado de busca. Se isso acontece ao nível da Santíssima Trindade, ao
nível inferior da história humana esses gemidos estão circunscritos ao coração dos artistas,
que sofrem primeiro e primeiro amam, e têm seus olhos escolhidos para vazarem as dores
da terra.
Não há correto acesso aos mistérios sem a informação do oráculo das artes. Certas
manifestações da vida universal se verificam num vel somente aberto aos santos e aos
artistas. As revelações da Encarnação, da Paixão e da Ressurreição do vosso Filho, tão
intensamente vividas por Vós e em Vós, foram proclamadas pelos santos dos primeiros dias
e após incansavelmente divulgadas pelos artistas de todos os séculos. E o rosto da nossa
fé, de um lado, misericórdia de Deus, e, de outro, sacrifício de santo e inspiração de artista.
Se multiplicadas estão as dores da terra, multiplicai os vasos das dores no coração dos
artistas, para que elas se neutralizem e, purificadas, voltem ao céu. A potência das dores da
natureza, caldeadas no peito dos artistas, sobe em espirais que depois vosso Filho faz
descer para aumentar o amor do mundo. Fazei sobretudo, Senhora, que nossos artistas
299
acreditem que são o ponto da matéria onde se opera essa transmutação da dor em substân-
cia que Deus utiliza para plasmar as bênçãos. Sabeis que, antigamente, quando Deus vivia
mais próximo dos homens, e lhes falava da montanha, e escrevia-lhes nas tábuas sagradas,
e abria-lhes o mar, era no coração e na palavra dos profetas que se dava a
transubstanciação do sofrimento em conquista divina. Hoje, que temos idade suficiente para
meditarmos o Evangelho, cresceu essa família através dos artistas, desenvolveu-se essa
verdadeira ordem dos que, professando a Beleza como a primeira das virtudes, não
permitem que as dores do planeta desfigurem o rosto de Deus. O sofrimento, para apontar a
salvação, acende antes os círios da Beleza.
Nossa Senhora de Manaus, a Selva tem sido conhecida como oficina biológica, onde alguns
dos movimentos mais diletos da vida ainda estamos por conhecer. Tão importante quanto
esses mistérios, reservados para nós como um tesouro, é essa permanente transformação
das dores do verde em suplemento de beleza para o mundo, sem o qual as dores do verde
teriam sido inúteis. Os artistas têm esse sacerdócio de que a provação da vida amazônica
não se perca, e cheguem atenuadas nossas culpas até vosso Filho.
XVIII
Rogai pelos nossos padres - operários da interminável messe. Eles são poucos, têm
ânsias de infinito e conhecem nossa desolação. Sabem principalmente que, na Selva
aturdida por amplas tentações, o pecado é muitas vezes o preço da sobrevivência ou a face
da resistência, humana e necessária. É difícil a virtude no verde agredido, nas cidades
invadidas pela horda das necessidades. Por isso, Senhora, a palavra de um padre, na
Selva, há de ser como duas mãos abertas: uma estendendo o perdão infinito como a
planura e pontual como as enchentes; a outra, esperançosa e cicatrizadora como o
linimento e a cor das ervas. Nossa Senhora de Manaus! o rebanho da Selva é o mais frágil e
o de mais difícil condução da terra. O pecado político da discriminação e da devastação vem
favorecendo, com bula herética, o pecado pessoal e o pecado coletivo. Em nosso mundo
amazônico, tanto a graça que se nas riquezas do verde quanto a que se pede nas ruas
desesperançadas são desmedidas. Aqui, temos de ser homens duas vezes mais amplos
para compreender toda a virtude da Selva expandida como exemplo; e duas vezes mais
fortes, para resistirmos às tentações da revolta e do crime.
Difícil é a leitura dos ramos e fácil a leitura das ruas. Entre esses extremos corre um rio, e os
que chegaram a navegar no seu curso, domesticando as margens, pregando a doutrina,
serão chamados fundadores do Reino. Ó Senhora, dai-nos sacerdotes capazes de
compreender a distinção e as dificuldades desse rebanho! Ajudai-os. Como em nenhum
outro lugar do mundo, eles sofrem por nós e pela natureza. A sabedoria e a força de que ne-
cessitam os nossos padres requerem, se fosse possível, um pentecostes diário.
Ó Virgem, o inexcedível São Paulo, que é modelo de apóstolo, desenvolveu sua missão em
terras longínquas, sobre os perigos do mar, domando as tempestades e as noites
tenebrosas. Por ele a fé triunfou das contingências, das prisões e dos naufrágios. O mar foi
sua ponte de catequese. por isso, em mais de um ponto, semelhança entre a atividade
de Paulo e a dos padres da Amazônia que se embrenham pelas águas e tocam terras da
solidão para difundirem a fé e valorizarem o homem. Concedei aos nossos padres, Senhora,
que se inspirem no apostolado de Paulo, e tenham inabalável ânimo para o “bom combate”.
Aqueles que, navegando pelos rios da Planície, notam pelos barrancos o sinal da cruz nas
torres da ermidas, sentem a ação civilizadoras da ensinada, a promoção do humano feito
através da pregação da palavra salvadora. A Igreja, no território da Selva, repete
diariamente, por entre as águas, o gesto de Pedro, pescador de almas.
Coragem, sacerdotes da Amazônia! A Rainha dos Apóstolos pontifica entre vós, dando-vos
a benção dos altares, dos santos e dos barcos missionários.
300
O LIVRO DAS APARIÇÕES
I
Na primeira aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus suspensa no céu, sobre
vitórias-régias, vindo do Rio Negro na direção da Matriz. As flores, numerosas e juntas, são
como nuvens verdes abraçadas. As copas das árvores mais antigas se movimentam para
compor a música do instante. “O meu povo querido, que por séculos clamais por mim
sobre essa colina da minha Conceição! Habitarei entre vós como vivi entre os apóstolos,
auxiliando-vos na subsistência da vossa carne, no sonho do vosso coração, na do vosso
espírito. Vossa esperança mereceu-me, assim como mereceis a Providência do meu Filho
para conservar-vos juntos e venturosos, sábios e diligentes no usufruto da Selva, criada
para vós.
Estou à frente dos vossos anseios, e as hordas de devastação que ora investem recuarão
dia a dia, como as falanges inferiores fogem diante da luz. Instalo-me com todas as minhas
graças nesta amada cidade de meu novo nome.
Fruto dessa aparição é o desenvolvimento feliz de Manaus, cheio das graças de Deus.
II
Na segunda aparição, contemplamos a Virgem levitando sobre as águas, acompanhando
extensos cardumes em piracema. Os peixes, à sua volta, cobrem seus pés com pétalas de
escamas e salpicam água colorida no seu manto, numa ciranda desconhecida de
abundância e alegria. Como se colhendo um lírio de água, abaixa-se, agasalha entre as
mãos um jaraqui, e o devolve ao rio, dizendo: “Amai, peixes, amai, para serdes para sempre
numerosos. Vós sois o símbolo da minha Igreja e o sinal perpétuo da vida amazônica. A
poluição dos séculos não prevalecerá contra vós.”
Fruto dessa aparição é o repúdio à pesca predatória.
III
Na terceira aparição, contemplamos a Virgem, pela hora da tarde que se esvai, diante de
um ipê de flores amarelas, observando as garças que chegam para repouso. A árvore de
ouro veste-se das penas brancas das asas recolhidas. O hálito róseo da sombra crepuscular
movimenta o enlevo acolhedor dos ramos. E diz Nossa Senhora: “Bela é a árvore cheia de
pássaros, como felizes são os pássaros plenos de céu limpo. E bem-aventurado é o homem
que ama a árvore e o pássaro.” Nesse instante, duas juritis arrulham aos seus pés e ao
longe o uirapuru dá a nota da tarde finda.
Fruto dessa aparição é o amor e a proteção às aves.
IV
Na quarta aparição, contemplamos a Virgem visitando a palafita de um ribeirinho do Rio
Negro. Sob a luz da lamparina que pende do esteio, um menino agoniza no colo de sua
mãe. Nossa Senhora de Manaus impõe-lhe sobre a fronte uma cintilação direta de sua mão
direita, e fala: “Salvo-te, filho do homem do Reino, para que tua descendência conheça os
dias felizes da Selva, em que não se pecara mais contra o verde, nem se afogará o rio, nem
se abandonará o campônio das margens. Nesses dias, o meu rosário será lembrado apenas
para dar graças, e o homem usufruirá em paz os bens das matas.”
Fruto dessa aparição é o desenvolvimento integral do povo ribeirinho.
V
Na quinta aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus colhendo nas mãos
estendidas a água da cachoeira do Tarumã. Fica rosada a branca água que a torrente
301
espalha como névoa sobre seu rosto. Ela fala ao pequenino lago que suas mãos, postas em
concha, erguem contra a luz: “A água que se abisma e a que repousa nos lagos é a mesma
que nutre o sonho das raízes, que cria os lírios de espuma, ergue as flores dos campos e
transporta o espírito dos sacramentos. Tenho-te junto a mim, água que canta nas pedras,
com a doçura com que chegaste aos lábios do meu Filho no poço de Jacó, na placidez com
que sustentaste os passos dele sobre ti. Eu sou aquela que se regozija com as cachoeiras e
os lagos.”
Fruto dessa aparição é o cuidado para com as nossas belezas naturais.
VI
Na sexta aparição, contemplamos a Virgem numa praia noturna do Rio Negro. A luz, que se
levantara das águas, derrama agora sobre a areia seu pálido cântaro de samaritana. Nossa
Senhora nota que o rio, no som do seu marulho, articula uma palavra de saudação e de
prece. Ela se aproxima e molha o direito na fímbria de espuma, e isso parece um alvo
pombo que, ao beber, dessedentasse também a própria água. “Ouço tuas petições, heróico
rio de Ajuricaba, e compreendo tuas queixas na luta pela civilização da Selva. Te digo que
antes que o teu leito tome feição definitiva, a tua Manaus conhecerá a plenitude das minhas
bênçãos, e desaparecerão do teu peito as cicatrizes da história, e não guardarás
lembranças de poluição.
Fruto dessa aparição é a defesa da vida dos nossos rios.
VII
Na sétima aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus olhando, da margem, um
barco que desce o rio, com os conveses carregados de carga e de passageiros. Com o
olhar ela apascenta para longe uma nuvem negra que se formara no horizonte da
embarcação, e diz ao vento: “Sossegai, brisas azuis, respiração do céu! Não podeis agora
vos reunir na compleição da tempestade. Deixai que siga em paz o barco do meu povo, por-
que no barco excessos da usura comprometendo a segurança de inocentes. Serenai,
ventos, como calados ficastes diante da voz do meu Filho.” E a Virgem abençoou, com o
sinal da cruz na direção de um mastro, o barco que dobrava lento a ponta de uma ilha.
Fruto dessa aparição é a segurança e a eficiência da nossa navegação fluvial.
VIII
Na oitava aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus numa reserva indígena,
conversando com um pajé, antes de um ritual de cura. “Eu sou o disco do céu cujo luar
invocas para a cicatrização das mágoas. Eu sou a Mãe da ervas que impões sobre as
feridas e as febres. Se acreditares em mim como Mãe e filha do teu Deus, e me invocares,
teu amor por tua gente operará prodígios. Continua a ensinar o que aprendeste dos antigos,
mas abre espaço e sabedoria no teu coração para abrigar o que de novo e bom a
proximidade de outros homens trouxerem para a tua gente. Eu estou convosco, vós que sois
os primeiros senhores da Selva, e também pertenço à resistência pela preservação da
terra.”. Falou assim nossa Senhora, e, com o olhar, esculpiu seu próprio rosto na pedra de
muiraquitã que o índio lhe estendeu.
Fruto dessa aparição é a preservação da cultura indígena.
IX
Na nona aparição, contemplamos Nossa Senhora no seio da floresta. Afastam-se as
ramagens, aplainam-se os caminhos, e é doce o seu passo, um caminhar de brisa sobre a
relva. O coro dos ninhos suspenso e a respiração das fontes enchem o ar com júbilo de
asas e raízes satisfeitas. Ela acaricia as flores, deseja os frutos, ouve o movimento dos
mínimos animais. Toda a vida da Selva entra em plenitude. “Amo-te, Selva das felizes
promissões, Selva do Reino! Meu coração, afeito aos desertos da Palestina, encontra agora
302
em ti novas primícias da Criação. Aqui a Mãe de Deus sonha mais fácil. Emocionada pelos
teus encantos, derramo minhas bênçãos sobre teu povo, tuas águas e teu verde, teus
animais e teu solo.”
Fruto dessa aparição é a preservação da Selva.
X
Na décima aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus num paraná enluarado do
médio Amazonas, conversando com a Iara. Estão ambas sentadas em antigo tronco que
desliza, coberto de musgo e flor prateados. A Virgem se encanta com os cabelos da
mitológica beleza enquanto fala: “Ó nume tutelar das águas, que guardas os cardumes e o
sono das vitórias-régias, teu povo te chama Iara e eu Anjo te chamo, porque tens domínio
de bondade sobre o espaço que a evocação da alma humana, sedenta de proteção,
reservou para ti. Sonhando no teu mito, o homem acertou com a célica verdade: de espaço
a espaço, um anjo rogando pela natureza, um santo sendo interposto entre Deus e o
sofrimento da vida.” Contente, a Iara engasta uma orquídea de luz no diadema da Virgem.
Fruto dessa aparição é a preservação do lendário amazônico.
XI
Na décima primeira aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus embevecida diante
de uma tela que reproduz em toda a sua beleza uma cena do interior amazônico. A canoa, o
sítio e a palafita esplendem ao sol miraculoso. A Madona de Rafael, observando detalhes da
pintura, fala em tom de prece: Como esses artistas são fascinados por sua terra, como
sofrem por ela! Somente o olhar de uma alma transpassada pela beleza sofrida poderia
apreender esses instantes de solene plenitude. A complacência do meu Filho, que soube no
instante da cruz revelar a dor máxima da Paixão e a alegria única das promessas da
Ressurreição, caia em bênçãos sobre a arte amazônica, para que continue sendo fiel
intérprete dos extremos do fascínio do mundo verde.” Disse assim, e permitiu que, de
repente, as figuras do quadro adquirissem movimento.
Fruto dessa aparição é o respeito e o incentivo aos nossos artistas.
XII
Na décima segunda aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus admirando o
conjunto arquitetônico composto pela Praça e Igreja de São Sebastião e Teatro Amazonas.
Os pombos a festejam voando da torre do relógio até os seus pés, e daí até a cúpula do
Teatro que reluz contra o céu imaculado. Aqui temos a devoção do santo, a liberdade do
político e o triunfo do artista, simbolizando as três vertentes da alma que forjam a têmpora
deste povo. Não por coincidência se reúnem essas obras em poucos metros: é uma clareira
que ostenta as marcas mais visíveis que o homem da Selva tem em seu destino cercado de
rios abertos, criações do espírito, vozes dos campanários.” Balbuciou isso e se afastou
olhando a estátua do mártir. Depois, aconteceu a música dos sinos.
Fruto dessa aparição é o zelo pelas nossas praças e monumentos.
XIII
Na décima terceira aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus visitando um
governador do Amazonas, na noite em que ele tem de tomar grave decisão pelo seu povo,
O político está em estado de oração sem o saber, tal a tensão de sua alma. Sendo que
intensa calma precedeu-a no ambiente, a Virgem agora tremeluz vestida de vermelho e
azul, cores da Samaria e da nossa bandeira. “Olha com amor para a tua terra, consulta a
vocação da Selva, o testemunho dos antepassados, e submete o resquício da dúvida ao
Senhor, que detém o controle da repercussão dos gestos e levanta resistência ou abre
portas conforme sua vontade. Decide para sempre, não para agora.” E Nossa Senhora se
afastou, olhando na direção do crucifixo da sala, enternecida pelo passo dela.
303
Fruto dessa aparição é a sabedoria dos nossos governantes.
XIV
Na décima quarta aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus aparecendo no
banco da canoa que um missionário conduz, a profundas remadas na direção de longínquo
povoado amazônico. Círios, água e vinho, hóstias para o Corpo Santo vão transportadas
atrás, sob o toldo de palha. “Eis que encontro o remo que mergulha para que se cumpra a
promessa de evangelização entre as águas perdidas. Reflexos dourados da glória de Paulo
te consagram através deste sol que caminha contra o teu rosto, padre. Bendito seja o teu
sacerdócio! São mãos que recebem as graças do futuro as missas que rezas entre as
últimas palmeiras do Éden. A semeadura do Evangelho, no Amazonas, frutificará cento por
um, porque o coração do homem que a recebe é propício à ascensão. Alegra-te, pois,
sacerdote do Reino do meu Filho.”
Fruto dessa aparição é a excelência das vocações sacerdotais no Amazonas.
XV
Na décima quinta aparição, contemplamos Nossa Senhora de Manaus rogando ao seu Filho
no Encontro das Águas. Ela está suspensa numa coluna líquida, de três metros de altura,
em que se reuniram as duas vertentes para sustentá-la em vivo pedestal: “Filho do meu
coração, peço-te pelos teus filhos desta região, como com minhas grimas te pedi, diante
da cruz, por todos os homens. Estou sobre duas feições da água, sacramental e infinita,
água que eles amam. Concede, meu Filho, que, assim como de água constituíste todos os
teus sacramentos, assim também por estas águas vivificadoras corram tuas bênçãos, para
que se fortaleçam as raízes visíveis e invisíveis que sustentam esse povo na terra e o
aprofundam nas dimensões do teu Reino.
Fruto dessa aparição são as bênçãos de Jesus sobre o povo amazonense.
304
O LIVRO DOS SALMOS
I
1 Retirarei a harpa que pendurara na palmeira
e cantarei, com as águas e com as terras,
salmos para a Virgem-Mãe Cabocla,
Nossa Senhora de Manaus.
2 Dez rios tenho nos dedos,
de cada qual um louvor
a escorrer entre as pedras
como um suspiro de flor.
Mas terei louvor somente?
3 A Selva, Virgem Senhora, sofre
com a invasão da areia sobre o verde,
sofre
com o coração exposto das raízes.
E o homem está triste de no sujo,
de safra frustrada, de pássaro banido.
4 Os pés de quem banharei
com as lágrimas e o fel
das nascentes envenenadas?
A terra chora nos meus olhos, sobre
os alvos pés de súditas estrelas.
5 Mas antes que o manto da Mediadora
fique turvo da sombra dos venenos,
Ela esmagará a cabeça do predador
como fez com a serpente.
6 Cantai, águas, primeiro destilemos
o mel das margens salvadas,
inda festivas, ainda resolutas.
E o que nos disserem os pássaros alegres,
s publicaremos, nós cantaremos.
7 Nosso sofrimento, embora muito,
a Virgem consolará.
E ela dará nova sabedoria às folhas,
para cicatrizarmos as feridas.
8 Cantai, águas, primeiro,
e primeiro exultemos
com a chegada da Virgem.
9 Já as árvores tombadas ressuscitam,
já a tristeza do homem acende frutos:
Esse Vaso, em que Deus deu carne ao Verbo,
305
verbo será por nós.
II
1 Rogo à Virgem Cabocla
por todos os que são verdes
na esperança do Reino.
Não há folha, peixe, nuvem,
rio e tarrafa e homem
e luta e sonho de justos
fora da minha oração.
2 Nós construiremos na Amazônia
o Reino que em Nazaré
sonhava o Senhor da Virgem.
3 Vinde, Senhora. Os guizos do vosso manto
serão cascatas verdinhas.
E haverá suspiros nas moitas
como notas de oração.
4 O caboclo atira longe o seu pecado
como a rede que não presta,
e recolhe da Virgem-Mãe
um presente de misericórdia
como a rede que sobe cheia.
5 O pecado primeiro não foi nosso:
vivia a Selva conosco
como vivem irmã e irmão.
6 Mas o assalto, vestido de humildade,
chegava pé ante
como a serra que esconde o seu canino.
7 Senhora, pecaram contra o verde,
e a culpa escorre no lodo dos rios,
nos frutos que se acabam em plena flor.
8 Tanto ninho morreu, que até no céu
houve carência de plumas
e fraqueza de aurora.
Mas persistiremos na esperança,
porque todo o cálice do Gólgota foi sorvido,
e agora é esperar que ele transborde, novo,
com o maná de alegria prometido
aos que prosperam na fé.
9 Agora não só de Fátima, de Lourdes,
Aparecida,
306
mas de Manaus e seu povo,
a Senhora do Senhor
é invocada e louvada
no terço belo dos rios,
rosário de tucumãs.
III
1 Vinde, acólitos do verde, vinde
ver a tarde descendo o rio
na direção da noite,
como a casca colada ao tronco
desce na direção da praia.
2 Nossa Mãe decerto baixou às águas
para um mergulho de estrela,
ou para cuidar dos peixes separados
para a festa da próxima manhã.
3 Quem leva e traz esses cardumes,
da aurora à boca da noite?
Quem faz essa tarde sossegada
como a barranca abandonada pelo vento?
4 A Mãe sabe o que faz o Filho
e adestra a mão dele em nossa ajuda.
A pedido dela, as talhas da Providência
não param de ser multiplicadas.
5 O Filho nos ajuda, porque a Mãe
vive conosco e tem o nosso nome.
Rezemos agora, povo,
como se tivéssemos na língua
a palavra do rio,
como se todos fôssemos
um concilio de árvores e homens.
6 E o rio marulha louvores
à tarde que ao colo dela
de canoa e de céu arfa e estremece.
7 Está na tarde a Senhora
para um mergulho de estrela
até os limos calados
que novas safras preparam.
Ela é fiel - sabei -
ao grau de maternidade
que aos pés da cruz recebeu.
8 Rezemos como rio reza, agradecidos
307
pelo cardume em flor que vem nascendo,
pelo dia que raia para os homens.
9 Rezemos como sobre o precipício
a garça tremeluz e não desaba.
IV
1 O sol dourado torna limpo o vento
que entra em nossas veias.
Se é nobre a aragem, o salmo é leve
para a Virgem deitada à sombra fresca.
2 Antes de cantar, peço lanças velozes
sobre o peito inimigo
que sujar a nuvem e corromper o vento.
3 Porque a Virgem respira
o mesmo ar que movimenta nossa vida,
e as nuvens que nos cobrem com sua paz
são as mesmas que cantam aos olhos dela.
4 Está menos peregrina a Senhora
nesse sono entre orquídeas:
como a humilde cabocla
plena de peixe leve,
Ela descansa na soleira da tarde.
5 Vigio do barranco
e sopro para longe a poeira
que o dragão da usina sem culpa
lança contra o céu.
6 Se Ela despertar, a grande Mãe
do quintal verde de Nazaré,
há de encontrar à sua volta
o vento e a nuvem limpos, prontos
pra semear no mormaço
uns grãos de chuvinha branca.
7 Aquele que anula a fumaça da usina
é digno de ser chamado irmão dos ventos,
mas o que faz da usina um dragão
morre sob as cinzas que ele instila.
8 O homem que suja o vento e a nuvem
peca coletivamente,
e essa culpa, como mancha no tempo,
chega ao futuro até, fazendo morte.
308
9 Não pecaremos diante da Virgem,
ainda que Ela esteja dormindo
como ribeirinha, inocente
da nuvem negra que ronda
a lã votiva da tarde.
V
1 Os barcos são abraços flutuantes
da Selva para a cidade,
e é bela a cidade visitada
pela procissão dos mastros.
2 Juntai, Virgem, vossos braços aos meus,
como o caboclo e a cabocla,
e carreguemos os porões de juta,
e os conveses, sob as redes,
carreguemos de fruta.
3 São fachos de verão as espigas
que a Selva manda douradas,
e assim, postas em vossas mãos,
debulham novas manhãs.
4 Nossa Senhora de Manaus
atendeu nossa prece e está conosco.
Cantai, quilhas, felizes
das cargas que levantais;
dai rumo aos selos livres
das águas que visitais.
5 A abundância veio por Ela,
que pede junto ao Senhor
desde o tempo em que cozia
o peixe dos sermões, e preparava
a ceia farta dos ermos,
o sumo das ramagens retirando.
6 É doméstica a Senhora, e sempre ágil
para fazer florir da natureza
a semente do pão e o fruto intenso
nascido para as almas.
Que mais desejaremos?
7 As roças vêm de navio,
com as verduras espiando a corrente,
e, entre as frutas, Nossa Senhora,
campônia agora dos rios.
8 Quem se levantará contra os barcos,
309
que mitigam a fome das cidades,
senão os ventos pacíficos?
A mão da Providência anda nas matas
e recolhe as benesses
para a caravana dos barcos.
9 Hoje a Senhora, rogando por nós,
funda a definitiva aliança
entre as espécies das safras
e os barcos predestinados.
VI
1 Enchei, Senhora,
as redes que atiramos às almas,
para que no futuro ainda brilhem
os peixes nas nossas redes.
Todo homem, ciente da sua fé,
contente deixará a vida livre,
multiplicada para o bem do mundo.
2 Ah, como os peixes indefesos,
searas brancas dos rios,
dependem das almas limpas
do pecado contra o verde.
3 Outrora, no Jordão vivo,
as carpas felizes assomavam
às palavras do Senhor, e suspiravam
na madrugada de Pedro.
4 A Virgem, desde aí, vira que as águas
- se claras são - falam por Deus
de como as almas se elevam
e os peixes se multiplicam.
5 São mercúrios, são óleos, são Balbinas,
e o grande velório das guelras sem ar
negando à face das águas
a face limpa da vida.
6 Senhora, tendes nas matas
um círculo de inferno se ampliando
contra as dádivas da Selva,
e a fé minguando, à passagem
das flores de espuma negra.
7 Defraudam o chão amado,
e o homem do rio, que é senhor de tudo,
se frustra como um pássaro banido.
310
8 Primeiramente, Mãe, limpai as almas,
que as almas puras operam
na pura natureza, sem destruí-la.
9 Vinde, Senhora, com vossas legiões.
Somos todos gentios. Tomai em vossas mãos
a cidadela verde
que se entristece conosco.
E dai-nos o perdão dos peixes.
VII
1 Os pássaros vivos não precisam de salmos
para rezar à Virgem. Nem de preces aladas
precisam os ninhos das sombras.
2 Eles tiram de sua própria garganta
o louvor pelas asas livres
e pela frágil casa duradoura, a Terra,
que devem ao Senhor da Virgem.
3 Vivas estão, suspensas na aurora,
as almas pequenas das matas,
e tecem como sabem uma coroa
de notas verdes para a Mãe da Selva.
4 O uirapuru, de alta doutrina,
celebra a persignação das copas
pela passagem do manto virginal
engastado nos galhos qual uma nuvem.
5 Os nossos não são os pássaros do Gólgota,
que cantaram os túmulos abertos da ressurreição
mas nossos cantos tremem pelas covas
abertas cedo aos ninhos derrubados.
6 O pior pecado contra a Selva não tem nome:
quem poderá traduzir o homem e o pássaro
crucificados
nos braços de sua própria árvore abatida?
7 Maior clamor que este só o do homem,
vivo, carregado de culpas,
que não tenha ao menos uma árvore
para lhe servir de cruz.
8 Para salvar pássaros,
cumpre haver homens superiores
311
que cantem, como pássaros,
a vida.
9 Peçamos diante da Virgem
pelos pássaros vivos
e por aqueles que, morrendo no canto,
fecharam as asas do dia.
VIII
1 Os frutos, anteriores ao suor de Adão,
povoaram a Terra
com seus cachos de fainas sumarentas,
para que a primeira dor de Deus
(pelo homem)
não fosse nem a sede nem a fome.
2 Atentai:
a orquídea amazônica foi a flor
da primeira Musa.
E os quatro rios da Criação
se encruzilhavam em Manaus.
3 Esta Selva, tão nossa e desamada,
é a perfeita lembrança
de um instante de Éden em nossa culpa.
4 O grande chão da Selva
mantém o primeiro instante da Criação,
e qualquer uma dessas flores
e o olhar denso de todos esses frutos
teve parte no deslumbramento do Verbo.
5 Quem tem a misericórdia mais antiga
pode cobrir-se de cólera santa
pela frustração do fruto.
Porque o fruto é a inspiração do homem
e o homem é a destinação
de todos os frutos de Deus.
6 Não ainda, ó Virgem, não ainda
temos as mãos vazias. Mas um cerco
de deserto vem vindo, vem
soterrando o chão mártir da árvore.
7 Vós, que prodigalizastes o sangue da uva
e guardastes a Vida
na Rosa alta de vosso corpo,
8 defendereis entre nós,
312
que vivemos da árvore e da água,
a flor simples e seu instante de aroma.
E com redobrado amor defendereis
a flor da misericórdia,
antiga como a Providência,
que se cumpre quando tudo se renova
na semente realizada.
9 Quem poderá ser contra nós,
se estais conosco,
Flor do máximo Fruto?
IX
1 Falai, lendas, falai
de Nossa Senhora de Manaus, aparecida
no encontro das nossas águas.
2 Ela era como uma coluna de aurora,
e vinha, na vitória-régia suspensa,
com as luzes prontas do Reino.
3 Como aos céus subiu a serva do Senhor,
assim desceu sobre a Selva,
na glória reservada ao Ventre do Verbo.
4 Como a mão de Deus estendida sobre a terra,
Ela doou-se em sementes de misericórdia,
e consagrou o rio e a mata, demorando
entre os peixes e os frutos.
5 Quem a viu na praia branca
caminhar leve como a humildade da areia,
e molhar os pés nas águas
como dois pombos bebendo?
6 Ela tirou de entre os selos a palavra
(secreta)
para consolar a Selva
e tudo que nela habita,
e consta que sua face não se voltará
sobre os profanadores da vida.
7 Todos os vivos, na sua hora reservada
de vegetal ou de homem, ou pássaro,
seja boto ou seja flor,
mulher lavando no rio,
caboclo rezando ao remo,
todos encontrarão resposta para os mistérios
na palavra de revelação
313
tecida pela Virgem.
8 Todos ouvirão sua voz intercedendo
junto ao Filho, como quando Ele cedeu
a sua glória à água
e fez-se o vinho.
9 Porque tudo de bom das lendas
ansiava por Ela,
a que cumprirá o sonho da Selva,
não estando sujeita à História
e ao frio certeiro das foices.
X
1 Nossa Senhora de Manaus,
as asas dos jaçanãs, cercando os lagos,
indicam vossa presença.
2 A imbaúba vencida pelo raio
guardou as luzes da queda
e agora vos serve de trono
de musgo iluminado.
3 Como o barco dos apóstolos,
que frequentáveis na manhã da fé,
o tronco flutua, carregado
pelos inquilinos das águas como andor:
feliz é o séquito dos tucunarés prestativos!
4 A que vindes, Pastora
do vale líquido e de devotados peixes,
reconhecendo como também vosso
o espaço das iaras?
5 A que vindes, Pastora
com todos os bálsamos do verde
vazando das vossas mãos
como as contas de um rosário?
6 Chegais, Senhora, sobre as cicatrizes
dos lagos sangrados, das águas feridas
no coração mais íntimo dos peixes.
7 Como consolar um lago,
se, no verde súplice e indefeso,
o lago é a maior lágrima do mundo?
8 (Sabei, povos, sabei:
foi este o mandamento do Calvário:
314
“Eis aí a vossa Mãe”).
9 Só o vosso coração,
que abriga as dores do mundo
desde a missão-mandamento,
pode levantar aos olhos de Deus
a desmedida e pacífica lágrima das águas.
E um lago extenuado
brilhará livre
na face do Senhor.
XI
1 Irmãos, nossas árvores tombaram
como guerreiros traídos,
e a dor dos seus ossos na fogueira
entristeceu a alma dos tambores.
2 Na noite cercada de coruja órfãs,
ficamos de olhos acesos pelas lágrimas,
e as grandes aves vieram em nosso nome
lamentar o silêncio das flautas.
3 Os mais velhos sonharam com o deserto
e despertaram sem voz,
e se abraçaram às moitas
como se elas fossem suas últimas irmãs.
4 O rio que passava perto,
que Tupã reservou aos cardumes mais fartos
teve tão esticados o corpo e os braços,
que morreu no penar de sete luas,
coberto de escamas mortas
como um pajé coberto de suas folhas.
5 Irmãos, queimaram as nossas roças,
diminuíram o chão de nossos passos,
levaram para longe as heranças sagradas,
afugentaram a caça e feriram os lagos.
6 Diante do que restou,
sobreveio o inverno sem fogueira:
nossos curumins não crêem mais em nossas histórias:
sem passado, perdemos nosso rumo.
7 Antes de cairmos na goela das cidades,
resistimos,
com as árvores que nos restam,
até o vôo da última zagaia.
315
8 Uma lua do céu porém foi vista
na praia, e as estrelas a seguiam
como um bando de vaga-lumes.
9 Os antigos disseram:
É Jaci, Mãe do Céu, a Descida por nós,
pela água, pelo chão, pela colheitas.
E virá de novo o luar
sonhar nas nossas flautas.
XII
1 O Reino de Deus
- disse o pescador ao seu filho
acontece como este tambaqui
que levantamos agora:
2 ele estava aqui na água, dado por Deus,
mas não chegaria para a nossa festa,
se não tivéssemos preparados nossas mãos
e recebido a madrugada em nossos remos.
3 Ouviram isso os ventos, e partiram,
e proclamaram do alto das castanheiras:
o homem ribeirinho entende e faz o Reino
no ritmo agradável ao Senhor.
4 E Nossa Senhora de Manaus,
que assistia no beiradão como ao pé da cruz,
falou aos homens:
Cuidai dos rios, para que trabalhem por vós
e não sejam causa de infelicidade.
Lembrai-vos: os ritmos de Deus não se encapelam,
mas reagem.
5 E Ela rogou ao Senhor
(oh homens, Ela rogou ao Senhor
com a voz das fontes desaparecidas,
com a esperança das sementes fortes!):
6 Meu Filho, as casas dos ribeirinhos
são simples como a em que te criei
orando entre os cedros.
7 Essas casas têm alma,
e com olhar humano
pedem a misericórdia dos rios,
como a nossa pedia as bênçãos do Pai
quando olhavas de frente o âmago da montanha.
316
8 Protege o rio, meu Filho,
que o rio, para eles, é a tua Face,
um incessante fluir de doação.
9 E fortalece-lhes a sabedoria,
para conviverem com o teu Rosto que anda,
que ilumina o caminho dos peixes
e faz o sonhar dos homens.
XIII
1 Nossa Senhora das oliveiras,
dos campos louros de Nazaré,
sede a Senhora das bacabeiras,
dai-nos espigas à nossa fé.
Vinde saber das nossas várzeas tristes,
que minguaram na fuga das sementes
e murcharam sem Deus,
ao sol dos abandonos.
2 A várzea florida é o júbilo da Selva,
mas o desprezo à fertilidade das águas
faz a tristeza dos homens,
e a terra geme nas raízes mortas.
3 Vós vivestes as safras luminosas,
entre os apóstolos cansados
e a promessa dos espinhos,
e misturastes ao trigo vossa ternura
para fortalecer as almas.
4 E carregastes a colheita,
e impusestes vossa mão sobre as feridas,
e estendestes a redenção guardada pela rosa,
e a vida nova que nasceu da cruz.
5 Vinde semear, ó vinde, mãos do céu,
semear com vossos próprios dedos
esse colo da água deitada na praia,
essas roças cercadas de andorinhas.
6 Ajudai o ribeirinho e o seu império
de fertilidade tecida pelos rios
sobre o sonho da terra: a terra sonha
a cada semente que aproxima o Reino.
7 Cantem todos os trabalhadores das várzeas,
os que moldam com argila e grãos de sol,
os servos suados das ervas principais.
317
8 Cantem, que junto à Virgem
a servidão do campo é como a servidão
da água junto à terra,
da terra junto à raiz:
produz cento por um as provisões de Deus.
9 Chegou para nós a Imaculada que semeia.
Ela levantará das várzeas
a eucaristia verde dos frutos produzidos,
e os homens cantarão a páscoa das sementes.
XIV
1 Cantai comigo,
árvores de caule fraterno e missão alta,
matriarcas da gleba.
Uma canção de árvore intercede
junto à Virgem de Deus,
como um pássaro que roga.
2 Cantai comigo, seringueiras belas,
a glória que tendes na Selva
junto a Nossa Senhora.
3 A Virgem de benditos seios
compreende vosso colo aberto às gerações:
a árvore tem a disposição da Mulher,
de decompor a luz no leite dos deserdados.
4 Eis, Senhora, a árvore que amamentou
as cidades da Selva
e o domínio pacífico
do homem sobre o verde.
5 Escutai, Senhora,
porque mais doce é este salmo
e mais silvestre:
6 as seringas estalam sob o sol,
e os frutos na queda vêm cantando:
é o anúncio do sacrifício feliz
do corpo mil vezes cortado
para a conquista da terra.
7 conhecestes, Virgem Cabocla,
o quanto realizaram os mognos obedientes,
o pinho alto e a cerejeira rósea
nas mãos carpinteiras de Jesus:
sabeis pois da excelência
da árvore regada pelo suor.
318
8 Oh, permiti-nos, nesta harpa breve,
falar da seringueira como sagrada,
digna de compor as tábuas da Arca,
eis que ela tutelou com o próprio sangue
a evolução planiciária.
9 Palmilhai conosco, sob a madrugada,
o caminho entre as seringueiras santas,
e vede como a Selva professa
a doação dos caules.
XV
1 Sabei, irmãos:
Betsaida pecava como nunca
junto à foz do Jordão,
e o Filho da Senhora renegou-a
entre as cidades, ela e Corozaim.
2 Também Manaus, humana e provocada,
peca como nunca, e sem querer,
junto à foz do Rio Negro.
3 Ó Virgem, misericórdia
para esse corpo de transgressões
que perdura em seus andrajos
entre os semáforos e as feiras!
4 São ruas desumanizadas pelas dores
dos desvalidos, dos lázaros de esquina,
pelos cadáveres das raízes sem terra,
pela terra coberta de salário indigno.
5 (Um suor desassistido, Senhora,
banha as chagas expostas dos humildes.)
6 Ferida embora, e carregada
das culpas dos homens sem árvore e sem lei,
a cidade insiste em ser bela,
como uma virgem marcada para o sacrifício,
junto ao rio que a conheceu antes das dores.
7 Um coro de mendigos canta
como os anjos carcomidos das igrejas:
mandai, Senhora, as brisas do vosso
manto varrer o crime e o desamparo,
a presença da fome, a ausência das folhas;
varrei, brisas, varrei
o sal que pesa sobre as nossas chagas!
319
8 Restabelecerei - diz a Virgem
com meu Filho, que edifica no deserto,
as vestes originais e verdes
da cidade prometida ao rio.
9 E ela terá o rosto múltiplo e eterno
das virgens da parábola:
cada feição da cidade terá sua lâmpada
e seu veio de água imorredoura.
os anjos tutelares lhe serão restituídos.
XVI
1 Ó Virgem, nossosderes adoraram
o totem da usura e sua dança de foices,
e deram nossas árvores em sacrifício,
e tingiram de delito nossas águas.
2 Como filhos desnaturados,
defraudaram nossa herança;
como o vento das dunas,
cercaram de deserto as cidades verdes.
3 A Selva é todo um clamor.
Nossa desolação é um rio que sangra,
tal a vazante das lágrimas;
e o chão magoado da relva
(ah o chão magoado da relva e das ruas!)
arqueja sob nossos pés.
4 Os fariseus que oficiam no litoral
(acobertados como aqueles que deixaram
os átrios infestados de cambistas)
e locupletam do nosso isolamento.
5 Eles são como aquelas raposas,
com fogo na cauda,
que incendiaram as plantações dos filisteus:
são loucos e rápidos na destruição.
6 As assembléias dançam em torno do bezerro
e inutilizam a fé dos esperançados;
quantos pagarão, quando a natureza,
sob a mão do vosso Filho,
levantar-se soberana?
7 Na Selva, porque aqui vivem
os mais amados tesouros do Senhor,
os crimes contra a vida
320
são como blasfêmias ao Santo Espírito.
Orai, Virgem, pelos embriagados
da taça imperdoável.
8 Nem a ignorância, invocada por alguns,
poderá salvá-los ou proteger seus filhos.
9 Acautelai-vos, senhores das queimadas,
e buscai socorro junto à Virgem,
enquanto vossa própria malignidade
ainda vos poupa.
XVII
1 Nossa Senhora de Manaus vive junto ao rio
(eu louvo a Virgem das igrejas
consentidas pela água, e moro onde
Ela se chama da Conceição ou dos Remédios.)
2 Na Matriz da Conceição,
a Senhora sai à hora do crepúsculo,
para a bênção das andorinhas,
que retornam à torre,
e para as vozes dos sinos,
que da torre partem.
3 É de vê-la com um pássaro no olhar
e um ângelus no peito,
ao Filho rogando pela noite dos homens.
4 A Virgem se recolhe na primeira hora da noite
e entra em vigília (sabeis vós, homens,
que Nossa Senhora de Manaus,
enquanto dormis,
repete a Deus, com os próprios lábios,
as orações que fizestes?)
Nossa Senhora deve também ser conhecida
como aquela que repete as nossas orações.
5 Na hora tensa do crepúsculo
é quando o coração da Virgem
abriga de uma só vez, nitidamente,
todos os lamentos.
6 Na igreja dos Remédios,
Ela oficia na hora da alvorada,
recebendo os barcos que chegam
com as queixas da Selva.
7 Aí é quando a aurora, a cicatrizadora,
321
desfia as contas do rosário dela
sobre as chagas distantes, ribeirinhas.
E a Madona das quilhas favorece
o trânsito das safras,
serve a água da vida
às crianças do rio, com o mesmo cuidado
com que amava a Criança do seu peito.
8 Os homens da cidade, se a procuram,
terão dessa Virgem, numa cuia índia,
as poções contra os males e os quebrantos.
9 Rogai, homens, àquela que foi imaculada
desde a sua própria concepção,
a que é fonte limpa e alta
de todos os remédios.
XVIII
1 Meu povo canta junto à minha harpa
os salmos que recolhi da Selva
para a Virgem de Manaus.
2 Coberto de folhas, escondo o meu pecado,
dedilho verdemente o som benigno
para a Rainha ouvir nossa cidade.
3(Aquele que fala pelo povo
carrega as culpas do povo
e não se demora na tristeza,
mas entrega seu amor
como matéria de alegria.)
4 Diante da Senhora que chega,
os bens da criação
retomam a palavra simples
e denunciam o mal,
mas dançando nos ramos,
mas rezando nos rios.
5 E todos sabem que foi o amor
que ressuscitou a minha harpa,
para que minha alegria participasse
da esperança dos homens e da terra.
6 Cessem todas as queixas.
Bela é a nossa cruz toda de água,
desde que a tomamos para a felicidade da terra,
do verde marcado para o chão do Reino.
322
7 Mais bela é a Virgem que consola a relva,
que eleva o homem,
que susta a chaga do rio,
que mantém a rua e a sua dor
como caminho de vida.
8 Meu povo índio sofrera como a seringueira:
abrindo as veias para amar o espaço
do sagrado futuro.
Agora ficam meninos
os homens, só de cantar
com o rio e a mata e a cidade.
9 Cantamos diante da Virgem
um canto de dolência tão cabocla,
que uma só lágrima dela, imensa,
começa a nos salvar.
XIX
1 Passos da Virgem no chão da mata
despertam as flores da relva.
Esses pés, que sangraram como rosas
no deserto da Palestina,
dão hoje lenitivo às raízes
expostas como veias sobre a terra.
2 A Virgem colhe a erva curandeira
com o cuidado da índia iniciada,
e se lembra das febres ribeirinhas.
3 Vede, homens:
com um ramo de arruda leve,
Ela traça o sinal-da-cruz
sobre a dor dos meninos esquecidos.
4 Seu inumerável coração de Mãe
peregrina de beiradão em beiradão,
amparando as vigílias que se queimam
sob o óleo das lamparinas.
5 Uma alegria nova há nos terreiros,
na voz da rede dos esteios pobres:
os filhos salvos tornam as mães felizes;
e os ventos dançam e as águas dançam
e rezam.
6 Aquela que cuidou das febres do Senhor
adota os dons verdes da Selva
como veículos de distribuir suas graças.
323
7 As ervas caritativas se reúnem
em torno da Virgem e pedem
mais força de vida contra as dores,
mais luz de canção contra a infelicidade.
8 E quem tiver as chagas principais
da vida demorada no pecado
entregue a alma agora
aos bálsamos da Virgem.
9 E aqueles que na renúncia
ultrapassaram os limites de sua própria dor,
calados como a várzea esquecida,
recebam agora de suas mãos piedosas
o grão da alegria duradoura, e cresçam
como a árvore que sobe para o céu,
presa na terra.
XX
1 Quando as garças chegaram em vôo branco
não mais encontraram à sua espera
a copa amarelíssima do ipê.
2 Quem já ouviu raízes tombadas
falar de galhos abatidos,
de androceus violados no verão
pela lâmina dos homens?
3 Pois as garças ouviram, e lagrimaram
pelo abrigo perdido em maio pleno.
E, forçosamente pousadas no chão,
para o céu levantaram as asas tristes:
4 Senhor, que movimentais as nuvens que povoamos;
que suspendeis o rio ao nível do horizonte,
e dais a nós, garças de olhar profundo,
a única semelhança que há, entre os simples,
do olhar do Filho na direção do Pai,
5 nós perdemos a árvore das dores,
a copa que acolhia nosso cansaço,
as flores que entendiam nossa saudade
das terras que nos dais só uma vez
pra constelarmos com a missão de asa.
6 Ressuscitai, se tendes a palavra
de suficiente autoridade diante da morte,
esse ipê que nos amava e socorria.
324
7 Foi quando a Virgem, límpida de verde,
interceptando no espaço a súplica das garças,
concebeu no peito a ressurreição da árvore.
8 Estou entre vós, garças,
e sou a mão aproximada
do meu Filho.
Digo-vos que ressuscitarei vossa casa,
porque o pouso das aves
também é patrimônio e alegria do homem.
9 Vós, que fazeis o regozijo da nuvem
e a paz dos igapós contritos,
sois o suspiro mais elevado da Selva,
e o mais humilde.
Por causa da beleza, necessária ao homem,
tereis a minha graça.
E o ipê levantou-se da terra
- árvore ressuscitada -
para cantar feliz
dentro do olhar das garças.
XXI
1 As chuvas de janeiro chegam tarde,
porque perderam as nuvens prometidas,
porque as nuvens pejadas não tiveram repouso
sobre a colina em fogo das queimadas.
2 Das chagas dos caules diariamente
subiu a fumaça que cegou o inverno
e fez os rios suados se queixarem
como os índios em volta das fogueiras.
3 Rodou a rosa-dos-ventos, alterada,
com suas brisas suspensas no horizonte;
e a palmeira, como um beijo incendiado,
caiu no colo da terra.
(As lâminas também se queimam ao sol,
mas persistem contra a vida
e não recuam.)
4 Os ciclos alterados se embrutecem,
sabeis, Senhora, e podem levantar-se
com os espinhos ferindo a própria rosa,
com a ave maldizendo o próprio ninho.
Embainhadas na aparente resignação,
a natureza esconde as suas armas
como a terçã no sono dos mosquitos.
325
5 É tempo de deixar o tempo
ele mesmo cuidar dos seus mistérios,
sua hora de semente, e lua, e folha,
pontualmente, como fora dantes.
6 A partir da lição da paisagem,
o homem se equilibra e vê melhor,
firma-se no âmago de si mesmo
como a castanheira na terra firme.
7 Vós, que recebíeis os primeiros pássaros
das estações, as águas prometidas
às areias sedentas, intercedei
por nós diante dos ritmos
naturais que na selva profanamos.
8 E cheguem as chuvas na hora preparada
pela mata de folhas suarentas,
pelas águas de boca ressequida,
pelos ventos nascidos pra semear.
9 E cheguem as chuvas no momento certo
preparados por Deus, quando pensou
na alegria da terra
e da terra levantou o homem infinito,
de sonho inviolado e amor aberto.
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