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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
EDUARDO FERNANDO BAUNILHA
A LÓGICA DO ABSURDO
Loucura, Reificação e Cinismo em Quincas Borba
VITÓRIA
2009
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EDUARDO FERNANDO BAUNILHA
A LÓGICA DO ABSURDO
Loucura, Reificação e Cinismo em Quincas Borba
Dissertação de Mestrado
Vitória – ES
2009
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EDUARDO FERNANDO BAUNILHA
A LÓGICA DO ABSURDO
Loucura, Reificação e Cinismo em Quincas Borba
Dissertação apresentada como requisi-
to à obtenção do grau de Mestre em
Letras ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do
Espírito Santo. Orientador: Professor
Doutor Luis Eustáquio Soares.
Vitória – ES
2009
4
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
(Centro de Documentação do Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Baunilha, Eduardo Fernando, 1972-
B349l
A gica do absurdo : loucura, reificação e cinismo em Quincas Borba / Eduardo Fernando
Baunilha, 2009.
128 f.
Orientador: Luis Eustáquio Soares.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências
Humanas e Naturais.
1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Crítica e interpretação. 2. Assis, Machado de, 1839-
1908. Quincas Borba. 3. Loucura. 4. Relações sociais. 5. Literatura – Aspectos sociais. 6.
Estudos literários. I. Soares, Luis Eustáquio. II. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro
de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.
CDU: 82.0
5
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
DEFESA DE DISSERTAÇÃO
BAUNILHA, Eduardo Fernando.
A LÓGICA DO ABSURDO
Loucura, Reificação e Cinismo em Quincas Borba. Dissertação (Mestrado em
Letras: Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Espírito Santo.
Dissertação aprovada em: 03 de setembro de 2009
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Professor Doutor Luis Eustáquio Soares / UFES
Membro Orientador
____________________________________________________
Professora Doutor Wander Melo Miranda / UFMG
Membro Titular
____________________________________________________
Professora Doutora Ester Abreu Vieira de Oliveira / UFES
Membro Titular
____________________________________________________
Professor Doutor Jorge do Nascimento / UFES
Membro Suplente
6
Para a metade da parte mais feliz da minha vida:
minhas filhas, Fernanda e Júlia; e para a outra parte: Márcia;
e para um fragmento de todas as partes: Luis Eustáquio Soares.
7
“As coisas que a literatura pode buscar e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a
maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos
gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios
limites e vícios e os dos ouros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor
nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não
pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o
humor e muitas outras coisas assim necessárias e difíceis. O resto, que se vá
aprender em algum outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos
temos de ir aprender continuamente”.
Ítalo Calvino
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, pois sem Ele nenhuma das caminhadas que empreendi
seria próspera.
A minha mãe, que me ensinou a amar os livros, e em extensão, as minhas irmãs,
Karla e Carolina.
A meu irmão, Luiz Lellis Júnior e a um amigo distante e por isso não menos
presente, Luiz Celso Gomes Júnior, pela amizade e carinho que ultrapassam o
tempo e o espaço; e a Hiram Romanelo, pela força sempre presente.
Não poderia deixar de agradecer a Rutiléia e ao Saulo, pessoas que são grandes
por dentro e por fora.
Alguns amigos foram importantes nesta caminhada: Jéferson Diório do Rosário, Vitor
Cei, Wolmir Alcântara, Nanine Batista, Sandileuza Mendes, Camila Scalfoni, Maria
Rita Vieira Coelho e Luciano Andrade, pelo carinho, força e palavras.
Aos professores que seguraram na minha mão antes e depois desta caminhada:
Vera Márcia Soares Toledo, Rivaldo Capistrano, Rosimere Meireles, Francisco
Aurelio Ribeiro, Rita Maia, Luciana Ferrari, Fabíola Padilha, Andrea Brotto e Sérgio
da Fonseca Amaral.
9
RESUMO
Discorreremos sobre dispositivo da herança, como recorrente na literatura de
Machado de Assis, ampliando-o e deslocando-o para a hipótese interpretativa de
que, tal dispositivo, em enredos da literatura machadiana, constitui uma forma
irônica do escritor carioca ficcionalizar o legado metafísico, da presença a si de
valores, técnicas e instituições ocidentais. Para tanto, adotar-se-á, como exemplar
referência de análise, as vicissitudes comportamentais do personagem principal,
Rubião, do romance Quincas Borba, herdeiro universal de uma loucura – as relações
de poder incorporadas e reificadas que, envolvendo ricos e pobres, institui-se
como legado da miséria humana, a de um mundo cindido em senhores e escravos.
E é essa loucura ampliada, porque não simplesmente individual, porque não
simplesmente do século XIX, que será o tema desta dissertação de Mestrado.
Palavras-Chave: herança universal. Loucura. Rubião. Machado de Assis.
10
ABSTRACT
We will talk about the mechanism of inheritance, as searching in Machado de Assis
literature, amplifying It and transferring It to the interpreting hypothesis of that, such
mechanism, in plot of the machadiana literature, constitutes an ironic way for the
carioca author to fiction the metaphysical legacy, as well as the presence of self
values, techniques and western institutions. Hereafter, it will be adopted as an
exemplary reference of analysis, the leading character’s behavioral vicissitude,
Rubião, from Quincas Borba novel, universal heir of a madness the relations of
power incorporated and reified – which, involving rich and poor, establish themselves
as legacy of the human misery, of a world formed of possessors and slaves. And it is
this amplified madness, not simply individual, not simply of the nineteenth century,
that will be the theme of this master’s dissertation.
Keywords: universal inheritance. Madness. Rubião. Machado de Assis.
11
SUMÁRIO
PRIMEIROS PASSOS.......................................................................................12
1. A SEGREGAÇÃO DA LOUCURA: RUBIÃO E O DISCURSO
LITERÁRIO........................................................................................................19
2. MACHADO DE ASSIS: LITERATURA, REIFICAÇÃO E CINISMO..............35
2.1 RUBIÃO E A TRAGÉDIA DO EXISTIR.........................................................50
2.2 O CONCEITO DE TRAGÉDIA EM RAYMOND WILLIAMS..........................55
3. MACHADO DE ASSIS: UM AUTOR PÓS-SOCIEDADE DISCIPLINAR.......60
3.1 RUBIÃO, O RECONHECIMENTO COMO METAFÍSICA HERANÇA DO
NADA..................................................................................................................60
3.2 PARA ALÉM DOS PORTAIS DO TEMPO: SOCIEDADE DE CONTROLE.76
4. SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS: A LOUCURA DA
RAZÃO METONÍMICA DE RUBIÃO.................................................................91
4.1 A TRAMA DO MUNDO: RUBIÃO E A ARMADILHA DO IDEAL DE EGO...91
4.2 PARA UMA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E UMA SOCIOLOGIA DAS
EMERGÊNCIAS: AS ESCOLHAS MESMAS DE RUBIÃO..............................101
ÚLTIMOS PASSOS.........................................................................................121
REFERÊNCIAS...............................................................................................125
12
PRIMEIROS PASSOS
“Nós nos persuadimos às vezes de nossas próprias mentiras para não ter que desmenti-las,
e nos enganamos a nós mesmos para enganar os outros.” Vauvenargues
Luiz Antonio Aguiar (2008), em seu Almanaque Machado de Assis, revela que a
literatura machadiana tem sempre meandros e curvas. Coisas que somente vemos
ao sairmos da curva anterior. E diz ainda que sua literatura tem cavernas dentro de
cavernas e salões que possuem passagens secretas e que em todos estes lugares o
que encontramos somos nós mesmos.
E é que reside a genialidade do mestre. Respostas prontas ou fáceis de serem
descobertas simplesmente não nos levam à reflexão e posteriormente à mudanças,
pois esterilizam e paralisam. Aquilo que nos parece difícil e que nos incita a um
pensar mais arguto é que mantém um movimento que jamais terá fim, por não ter
um porto para ancorar.
E este movimento é feito de palavras e pensamentos. De falares e silêncios de
homens e mulheres que viveram na sociedade fluminense do século XIX, durante o
Segundo Império, ou seja, de situações concretas, que mantêm firmes até a
contemporaneidade os contextos construídos pelo citado escritor.
Amalgamando todos estes ditos, concordamos com Alfredo Bosi (2007), que deixou
escrito que é o comportamento humano o objeto de desejo do escritor Machado de
Assis.
13
Assim, Machado de Assis não se conformava com o sistema social que vivenciava.
Usando a pena, tinta e papel, delineou a vida e a tradição, o pensamento e a
experiência de uma sociedade cujos valores residiam sobre areia movediça.
Acresce que, na política não havia mais estadistas, apenas políticos. Criaturas
flutuantes que, embaladas pelos títulos, não tinham raízes no compromisso para
com o povo, substituindo o espírito público pela opinião alheia.
Interessa notar que, olhando pelas retinas de nosso autor, vemos uma sociedade
perecível. Vendo mais nitidamente encontramos uma sociedade que, travestida de
um novo século, se parece com a nossa. Isso porque o olhar machadiano transpôs o
seu tempo e não se esgotando no beco sem saída espaço-temporal, conformista e
convencional, como salientou Alfredo Bosi na seguinte fragmento: “Esse é um dos
traços mais fugidios e inquietantes da fisionomia machadiana: o seu olhar passa de
aparentemente conformista, ou convencional, a crítico, sem que o tom concessivo
deixe transparecer nenhum impulso de indignação”. (BOSI, 2008, pp. 54/55).
Sentimento que talvez fosse burlado pela sua fina ironia, de olhos de ressaca; e seu
humor, um tanto niilista. Somado a isto existia uma realidade ampla e cheia de
contradições, que fazia parte dos ingredientes que somavam para a desenvoltura de
seus romances.
A esse respeito, acreditamos que a pena observadora de Machado de Assis
funcionava como um receptor, tornando-o crítico de sua sociedade. Esta crítica não
era mero aparato artístico-literário, pois funcionava como um meio de restabelecer o
humanismo, sem o qual a desagregação social e a alienação reinariam absolutas.
14
Fábio Lucas (1976) predisse que o “crítico fixa um padrão de gosto, ao ligar a
opinião pública à arte.” p. 4. E acrescentamos: liga também as próprias atitudes dos
circunstantes de sua geração, apresentando-se como mediador do refinamento
estético. Também,
torna-se criador ao liberar determinada estrutura da obra, mostra-se
como artífice da metalinguagem. Está em condições de refundir os
elos quebrados entre a criação e o conhecimento, a arte e a ciência,
o mito e o conceito. Desde Aristóteles tem sido notado que os
maiores críticos têm seu trabalho como parte de uma articulada
visão do mundo. (LUCAS, 1976, p. 4).
O que na verdade, dito em outras palavras, Lucas quer nos dizer é que um olhar
para os atos sociais não é imperativo para rechear uma obra literária, mas, no caso
de Machado de Assis esse deter-se acontecia para que ele pudesse enunciar uma
verdade que, em sua obra, era simplesmente ficcional, mas que é vista como
verdade real por muitos, por coadunar perfeitamente com as condições sociais de
sua época e, por que não, da nossa.
Ainda dialogando com Lucas (1976) “a arte nos ensina a ter uma visão do mundo,
dá-nos, portanto, um retrato de máximo alcance de nossa condição, desempenha
uma função total, é capaz de nos levar, em oposição às ideologias, à máxima
consciência possível da totalidade.”
E o crítico continua dizendo que a arte
constitui um código de valores simbólicos e, deste modo, cria e
organiza determinado tipo de realidade, sujeita a uma organização
arbitrária, a certa aprazível gratuidade, que atende a uma neces-
sidade específica do gênero humano. O artista, mesmo singular na
sua originalidade, se prende a necessidades coletivas. E em
segundo lugar, é freqüente na obra de arte, especialmente a literária
15
(que lida com um código convencional de nossa comunicação diária),
haver, além do valor artístico, desígnios voluntários de exprimir as
contingências históricas do autor, por intermédio de artifícios
explícitos ou implícitos (LUCAS, 1976, p. 16).
Tal inferência foi notadamente percebida por Sidney Chalhoub e Roberto Schwarz,
em seus muitos escritos. Ambos colocam em voga a questão da escravidão, da
dominação do senhorio, da incapacidade do servo alcançar um lugar de visibilidade
e a desfaçatez de uma classe que é educada para acumular bens, condição sem a
qual não poderá ser reificada e tampouco deterá legitimidade para subjugar,
escravizar e dominar.
E por falar em reificação, vem-nos à memória a figura de Pedro Rubião de
Alvarenga, personagem que será o principal expoente desta pesquisa, cujo objeto
de investigação será a análise do enredo do romance Quincas Borba, narrativa
machadiana publicada, em forma de capítulos, entre 1886 e 1891.
Rubião constitui o que poderíamos chamar de herdeiro às avessas, passivo, do
romance Quincas Borba, por encarnar o ponto de vista daquele que reifica, logo
daquele que acredita, ingênuo que é, na legitimidade da herança, seja na herança
do saber, por fazer-se como herdeiro idólatra do pensamento seu mestre, Quincas
Borba, ignorando que saber e poder se confundem; seja porque acredita,
ingenuamente, nos benefícios – e amores – advindos, em consequência, da herança
patrimonial, por se iludir que esta, por si só, poderia transformá-lo em ideal de ego,
centro de reificação.
Por sua vez, Quincas Borba, personagem que dá título ao romance, pode ser
interpretado como o herdeiro ativo da trama, porque: 1) É o herdeiro da ficção, se
considerarmos o romance Quincas Borba uma continuação de Memórias Póstumas
16
de Brás Cubas (1881); 2) Mais que herdeiro, é o autor, como personagem, da
filosofia Humanitas, em que saber e poder estão estrategicamente articulados, nessa
sutil ironia machadiana do darwinismo social, para não dizer civilizatório; 3) Por ser,
ele mesmo, Quincas Borba, um herdeiro esperto, porque, ao contrário de Rubião,
não perdeu a fortuna herdada, sendo o que poderíamos chamar de Diógenes
Laércio - ou o cínico - de seu tempo, século XIX, uma vez que, diferentemente do
filósofo grego, que era mendigo e desprezava a opinião pública, Quincas Borba,
tendo sido mendigo, enriqueceu-se com a herança recebida, sendo a própria opinião
pública de seu contexto histórico, a da do deturpado cinismo da classe senhorial
brasileira.
A verdade é que Machado de Assis sabia muito bem o que estava construindo, ao
confeccionar o personagem Rubião. O autor fez história trabalhando no Ministério da
Agricultura na cidade, onde sempre residiu e conhecia muito bem as mudanças que
o dinheiro pode produzir nas pessoas. Segundo Bosi (2007, p. 29) “todo e qualquer
sistema social ou regime político lhe parecia uma combinação de paixões e
interesses, um exercício de força e astúcia”.
Sendo herdeiro universal” do personagem que título ao romance, Quincas
Borba, Rubião, além de receber com o dinheiro um cão (Quincas Borba) para cuidar,
recebeu também o germe da loucura, herança não almejada e muito menos
esperada, motivo pelo qual, é necessário insistir, tornou-se o herdeiro “universal”, e,
antes de tudo, herdeiro da loucura do mundo, a loucura de uma sociedade
escravocrata, de uma cultura da reificação, que submete, subjuga e assujeita, para,
paradoxalmente, prender-se, loucamente, em intrigas, em fofocas, em narcísicos
interesses afetivos e econômicos.
17
De qualquer forma, como herdeiro “universal”, Rubião, não sem ironia, é o herdeiro
do fracasso e da desilusão. Assim, ao invés de fazer jus à principal sentença da
filosofia Humanitas, de Quincas Borba, “Ao vendedor, as batatas”, Rubião é aquele
que perde as “batatas” herdadas. E perde porque reifica, porque acredita na
ideologia do vencedor, cínica por excelência, embora seja um cinismo bastante
diferente daquele da Grécia antiga, por ser o cinismo que despreza a opinião
pública, porque é o seu próprio centro, o centro de uma opinião pública ela mesma
cínica, em sua indiferença em relação ao sofrimento do “perdedor”.
Seguindo esse raciocínio, a do cinismo da classe senhorial, ou o da perspectiva da
filosofia Humanitas, Rubião não poderia mesmo obter sucesso como herdeiro
“universal”. E o poderia porque é o perdedor de antemão, por não deter o cinismo
que a classe proprietária diariamente confecciona para justificar seus privilégios.
Rubião é o provinciano que acredita na opinião pública, tanto que quer,
ingenuamente, ocupar o seu centro, motivo pelo qual sai do interior do Brasil, após
ter se enriquecido com a herança recebida, para viver no Rio de Janeiro, centro não
menos provinciano, de irradiação da opinião pública “universal”, se considerarmos
que, como capital, Rio de Janeiro era a capital de um país periférico, provincial.
Ainda assim, ainda que não seja o verdadeiro pretendente da herança senhorial, isto
é, do oportunismo onipresente da classe proprietária, por ocupar o outro pólo da
trama, o daquele que é o enganado, o ingênuo, o provinciano, numa palavra, por ser
aquele que reifica, Rubião se torna, por excelência, o herdeiro universal – agora sem
aspas -, porque nos envolve a todos, ricos e pobres, a saber, a herança universal da
loucura de um mundo cindido; de senhores e escravos, colonizadores e colonizados.
18
É essa loucura ampliada, porque não simplesmente individual, porque não
simplesmente do século XIX, que será o tema desta dissertação de mestrado. É ela
que será investigada em Quincas Borda, sendo igualmente a partir dela que
proporemos a extrema contemporaneidade de Machado de Assis, como o mestre
nem periférico e nem metropolitano que, escrevendo a partir da periferia, soube,
de modo extemporâneo, narrar esta louca farsa: a de um mundo dividido em senhor
e escravo, vencedor e perdedor; em que, para não morrer na guerra, ao perdedor,
reificado, só resta a loucura da paz do cemitério.
19
1. A SEGREGAÇÃO DA LOUCURA: RUBIÃO E O DISCURSO
LITERÁRIO
“Ao artista interessa o que o cientista tem por inefável: o indivíduo.” Bosi
A loucura, no romance Quincas Borba, pode ser vista de maneira ulterior a que se
apresenta para um leitor desatento. Não que Machado tenha criado um ser
predestinado a esse tipo de parafilia para demonstrar o quanto de fraqueza pode
existir nele, mas para ilustrar e provocar o leitor a empreender infinitas
conjecturações.
Rubião, quando no segundo estágio da vida gozava de tranquilidade e decência,
executou uma ação que ficou no imaginário de algumas pessoas: salvou um garoto
de ser morto por uma carroça que passava na rua no momento em que o menino
brincava despreocupadamente. Evidentemente que os circunstantes sentiram-se
gratos, sobretudo os pais da criança, mas no futuro, ao carregar no corpo a herança
da loucura, os mesmos progenitores sentiam-se envergonhados, sendo incapazes
de ajudá-lo. E estas são as palavras do pai do menino:
“- Eu ainda quis dar o braço ao homem, e trazê-lo para aqui, mas tive
vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o
rosto, porque ele podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia
ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria... Que triste coisa
que é perder o juízo! (MACHADO, 1978, p. 218).
20
Ora, para o pai da criança, o estado presente do personagem era uma justificativa
plausível para uma atitude de indiferença que, consequentemente, não seria vista
como ingrata por aqueles que participavam do contexto social da história.
Para Foucault (1996) a sociedade tomou como subsídio a questão da loucura,
tornando-a princípio de exclusão e rejeição. Uma vez vista desta forma, nada que o
mentecapto venha a fazer será de mais valia e, nem mesmo, reconhecido. Assim
sendo, entra no bojo de inexistências a própria palavra do louco.
No entanto, na narrativa Machadiana, a loucura, estampada nas páginas do
romance e transfigurada pelas ações de Rubião, tem muito a nos dizer, posto que
passa a ser objeto de um controle jurídico-médico cuja vontade de verdade é antes
de tudo a de produzir um discurso dito científico sobre a loucura, logo um discurso
de poder epistemológico, legitimado pelo Estado para classificar o perfil do louco vis-
à-vis ao do normal.
Foucault (1996) ainda, explica que esta vontade de verdade, como os “outros
sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo
reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas” (p. 17). Assim,
esta vontade de verdade se relaciona ao modo como o saber é aplicado em uma
sociedade. E uma vez impregnado de intenções, coerções e estratégias, este saber
construído e dissiminado socialmente tem apenas uma tática como alicerce para o
poder: manter-se no lugar onde está, ou seja, o discurso, enquanto propagador de
ideias, verdades e poder, torna-se inoperante na boca do louco, fazendo-nos
concluir que, uma vez sem juízo, não existe credibilidade. É claro que este tipo de
pensar foi e é construído socialmente por quem deseja prolongar o silêncio do
discurso deste. Foucault (1996) comenta que na Europa, durante séculos, a palavra
21
do louco não era ouvida. Ele continua dizendo que não era ouvida ou era ouvida
como uma razão mais razoável do que a das pessoas razoáveis. Mas de uma forma
ou de outra, não era validada. “Era através de suas palavras que se reconhecia a
loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram
nunca recolhidas nem escutadas” (p.11).
Essa constituição histórica-social do discurso discutida por Foucault (1996) nos
mostra que desde o século VI o discurso que é valorizado e que faz sentido; aquele
discurso que seria ouvido, temido e respeitado era o falado por alguém de direito e
não importava o que era esse discurso ou o que ele fazia, mas o que dizia.
Já no século XIX, no contexto construído por Machado de Assis, vemos a eficácia do
discurso preconizada por Foucault, sendo novamente reportada por Palha, Sofia e
Camacho. Os três tinham dinheiro e influência e, consequentemente, visibilidade, ou
seja, os atributos que chamaram a atenção de Rubião, objetos de seu desejo. E
esse desejo fez com que as palavras que proferiam se tornassem pedras de toque
para o ex-professor.
Um exemplo dessa interferência ocorreu quando, logo depois que assistiu a sessão
do ministério Itaboraí, disse para Camacho e Palha que queria ir a Minas.
Temerosos do que poderia acontecer a Rubião, a dupla resolveu armar uma
estratégia para que o intento do novo milionário fosse burlado. Para tanto, colocaram
em voga as eleições, assunto muito pertinente, visto que o herói de Quincas Borba
almejava o cargo de deputado e se preparava para isso. “Aqui é que se deve
esmagar a cabeça da cobra”, disse Camacho ludibriando o herdeiro” (MACHADO,
1978, p. 80).
22
A verdade é que os pretensos “amigos” de Rubião o acudiam com discursos que o
induziam a fazer o que eles intentavam, enganando o interlocutor que pensava que
agia movido pela própria racionalidade.
Assim, entendemos que os discursos têm condições de funcionamento que muitas
vezes não permitem que haja abertura ou penetração. Foucault, a esse respeito
ponderou muito bem, pois deixou escrito que
a forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é
constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual
define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e
que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem
ocupar determinada posição e formular determinado tipo de
enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circuns-
tâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o
discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu
efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de
coerção.(FOUCAULT, 1996, pp.38/39).
O discurso ganha status de um jogo, onde o ganhador foi pré-determinado por
estratégias que não podem ser discutidas, pois já foram convencionadas.
E o discurso que manifesta o segredo da própria alma, nos faz meditar na dialética
do mundo por meio do discurso literário. Não que a literatura exista
preferencialmente para isso, mas entendendo que o próprio transfigurar do discurso
sinaliza o que de exterior a ele, não nos permitindo deixar de creditá-lo também
essa capacidade.
Lukács, citado por Lucas (1976), deixou claro que quaisquer que possam ser os
pontos de partida de uma obra literária, seu tema concreto, o fim a que visa
23
diretamente, etc., sua essência mais profunda se exprime sempre através da
pergunta: que é o homem?
Abordando então a literatura sob esse prisma, é possível buscar na filosofia
proposições concernentes à concepção do mundo e da teoria do ser. Todavia, a arte
não respostas, lança novos questionamentos, ampliando o campo de
investigação. De pergunta em pergunta aguça a curiosidade do leitor, ao mesmo
tempo que amplia sua sensibilidade no que se refere a temas relativos à razão, que
são de interesse constante do homem.
E é muito pertinente incorporar o dizer de Barthes (2003) que nos informa que a
linguagem nunca pode dizer do mundo, pois ao tentar fazê-lo estará criando um
novo mundo. Neste sentido, concordamos com Sidney Chalhoub (2007) que
tergiversa que a literatura não é o espelho do mundo, mas apenas o enuncia. Por
isso não devemos nos preocupar com o que a obra significa, mas como a obra
chega a significar.
“O próprio da linguagem literária, continua Barthes, é ser uma linguagem da
conotação e não da denotação. Portanto, o que interessa à literatura não é o
referente (aquilo que é denotado), mas o próprio poder conotativo do signo
linguístico, sua polissemia” (BARTHES, 2003, p. 10). Sentido muito bem abarcado
por Jacques Rancière que em seu livro, Políticas da Escrita (1995), nos faz concluir
que a literatura tem seu lugar flutuante no universo do discurso que faz dela uma
expansão sem fim.
Voltando a Barthes (2003), o pensador diz que a literatura faz com que
questionemos o sentido do mundo sem nos dá respostas. Portanto, o discurso
24
literário é em si mesmo uma pergunta. Um questionamento sem uma resposta. Tal
pensar nos leva a entender as palavras de Kafka que rezam que o ato de ler nos
leva apenas a empreender perguntas.
É interessante notar como a sensibilidade de Kafka casa com a crítica Barthesiana.
O crítico continua dizendo que “a literatura hoje está reduzida a fazer perguntas ao
mundo, enquanto o mundo, alienado, tem necessidade de respostas”.
E é nessa impotência para responder às perguntas do mundo e ao mesmo tempo a
potência de lançar, sem perguntar, perguntas totais, que é possível encontrar na
literatura de Machado de Assis, que ironicamente ficcionaliza ficções, especialmente,
o que é objeto desde capítulo, a máquina de ficção da verdade instituída e
instituindo-se, como a verdade ou a vontade de verdade sobre o louco e, muito
especialmente, sobre o discurso louco, que bem pode ser o próprio discurso literário.
Também, Alfredo Bosi observa, em um dos seus trabalhos, que “mais do que mero
reflexo do quadro empírico que os jornais presumem espelhar, a prosa machadiana
é consciência reflexiva, trabalho da mente alerta que converte impressões do
cotidiano em juízos de valor”. (BOSI, 2007, p. 63).
A proposição do professor Bosi nos faz pensar no humanitismo criado por Quincas
Borba e apresentado a Rubião. Para Quincas, Humanitas era o princípio da vida.
Uma substância universal e indestrutível que ele resumia como o universo e,
consequentemente, como o próprio homem. Para o novo rico, a filosofia que o
embasava era a que fazia concatenar os prazeres da vida ou aquela que o levava a
ver os fatos da vida de forma objetiva e realista.
25
Em um encontro com o filósofo já doente, Rubião, respondendo ao pedido de
explanar sua filosofia disse: “- Mas não é por desdém... Pois eu tenho capacidade
para desdenhar de filosofias? Digo que você pode crer que a morte não vale
nada, porque terá razões, princípios... “ (Machado, 1978, p. 19).
Movido pelo ceticismo, o personagem chave da trama de Machado de Assis ilustra o
que a pena de Bosi (2006, p.66) deixou escrito sobre “a história, feita de paixões e
interesses, que não persegue valores éticos. A modernização, raras vezes,
humaniza as relações humanas; quase sempre degenera, em competição entre
nações pelo poder e pela riqueza, e, todavia aguça o pessimismo do cronista.
Nesse bojo, Rubião, agora com as facilidades empreendidas pelo dinheiro, após
receber um herança, faz que suas ações sejam sustentadas por um nexo que
Alfredo Bosi chama de força. O pesquisador diz que essa força, “a verdadeira rainha
do mundo, na palavra grave de Pascal; a força, que tem por sinônimos, natureza e
vida. (BOSI, 2007,p. 75/76).
O que Machado sinaliza é o fato de que o destino dos homens e, nesse caso, o de
Rubião, está atrelado a juízos de valores presos a instintos de conservação, ou seja,
o que na verdade os homens desejam é a vida e o poder, esquecendo que o corpo
possui marcas de precariedade.
A esse propósito, em um encontro com Freitas, Rubião felicitou-se ao ouvir do amigo
que ele vivia como um fidalgo (...)
26
Rubião sorriu; fidalgo, ainda por comparação, é palavra que se ouve
bem. Veio o criado espanhol com a bandeja de prata, vários licores,
e cálices, e foi um bom momento para o Rubião. Ofereceu ele
mesmo, este ou aquele licor; recomendou afinal um que lhe deram
como superior a tudo que, em tal ramo, poderia existir no mercado.
Freitas sorriu incrédulo. (MACHADO, 1978, p. 41).
Através desta experiência, Machado esclarece que o que interessava a Rubião era a
vida presente que ora ostentava, não se importando com o que o futuro poderia
trazer.
O que o personagem machadiano não compreendia era que sua ambição o cegava
para simples fatos que, posteriormente, colaborariam para sua derrocada. Mas
Rubião não percebia isso. Perdido em sutis ideologias, não reconhecia que o
choque de sua pessoa com a sociedade estava constituindo uma nova
personalidade que o enganava. Não que queiramos creditar ao determinismo sua
nova forma de ser, nem ainda concordar com Jacques Rosseau de que a sociedade
é que é e que o homem bom e, uma vez imerso nela torna-se mau. A verdade é
que o antigo professor escolheu vivenciar uma nova forma de ser.
Compreende-se, portanto, que o que denominaríamos de destino do personagem
diante da sociedade é apenas uma forma de Machado condicionar seus
personagens diante do corpo social a que estava associado. Ora, para um escritor
inexoravelmente ligado às veias abertas de seu tempo como Machado de Assis, não
poderia ser diferente.
A propósito, Lúcia Miguel-Pereira diz que Machado é um “escritor profundamente
preso ao meio”, Pereira (apud CHAVES, 1975, p. 28). E continua: “Apreciar o
indivíduo, concomitantemente, em face do universo e da pequena sociedade a que
pertencia – foi um dos seus maiores dons”.
27
A habilidade para contextualizar e simultaneamente para tornar sincrônico vozes e
perspectivas, seja do passado em relação ao presente, seja do saber em relação à
ficção, seja da metrópole em relação à periferia, conduz Machado de Assis ao que
Massaud Moisés (1999, p. 28) chamou de exercício da faculdade que arremete o
sujeito criador (aqui no caso o autor) contra o objeto de sua observação: “em vez de
o afastar do seu alvo, a imaginação reenvia-o para a realidade, de modo a
estabelecer-se um circuito entre o real assimilado pelos sentidos e o real
transmutado pela fantasia” (MOISÉS, 1999, p. 28).
Realidade que, em Machado de Assis, não é exercida para criar ou fazer uma
comprovação documental, mas para levar o leitor a níveis mais profundos de
conjectura sobre o texto que está sendo lido.
Para endossar nossas reminiscências a respeito desta habilidade, Antoine
Compagnon diz que
quando alguém escreve um texto, tem certamente a intenção de
exprimir alguma coisa, quer dizer alguma coisa através das palavras
que escreve. Mas a relação entre uma seqüência de palavras
escritas e aquilo que o autor queria dizer através dessa seqüência de
palavras nada assegura em relação ao sentido de uma obra e “aquilo
que o autor queria exprimir através dela. Embora a coincidência seja
possível (enfim não é proibido que o autor realize, algumas vezes,
estritamente o que ele queria), não existe uma equação lógica
necessária entre o sentido de uma obra e a intenção do autor”, diz
Antoine (COMPAGNON, 2003, p. 80).
O que nos vem à mente ao ler as palavras do crítico é que a arte é intencional, uma
vez que o texto possui uma autonomia e que sempre sobrevive independente da
intenção do autor.
28
Neste caso, a arte machadiana ganha um relevo especial, pois sua escrituração nos
embala e nos seduz a ponto de não considerarmos a presença do autor, pois o texto
importa mais. Isso acontece mesmo em uma narrativa escrita em terceira pessoa e
marcada por sua presença.
Evidentemente, se recorrermos a leituras, como as de John Gledson (1986, 1991 e
2006), ou Roberto Schwarz (1977 e 1990), depararemos com um estilo de crítica
que dialoga com os traços historiográficos empreendidos pelo trabalho literário do
autor; mas nem mesmo este tipo de olhar desacredita o valor da literatura
machadiana.
E, a propósito, é o próprio Gledson quem comprova nossa assertiva: “Rubião era
portador de significados não sociais, como também históricos e políticos, dos
quais não poderia estar consciente, assim como não era possível a Machado
explicá-los” (GLEDSON, 1986, p. 79).
Se, concordando com Gledson, não era possível para Machado de Assis explicar os
significados históricos, sociais e políticos de sua ficção, era porque o discurso
literário se produz a si mesmo, como ficção ou inconsciente de outros discursos,
questão que nos remete de imediato às reflexões de Foucault em A ordem do
discurso:
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade
nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,
tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito a propósito de
tudo e que acontece porque todas as coisas, tendo manifestado e
intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da
consciência de si. (FOUCAULT, 1996, p. 49).
29
Para Foucault (2006, p. 57) “o discurso não é o ato nem a propriedade de um corpo:
produz-se”. E o faz sem existir uma generosidade ininterrupta de sentido e, muito
menos, um imperialismo do significante.
Rubião, como um símbolo literário, era um ser que corporificava uma sociedade
inteira, assim como o seu distanciamento da realidade. O que nos faz pensar assim
é o fato de que alguns textos, ao serem interpretados, devem ser analisados tendo
em vista um fundo cultural e linguístico no qual estão imersos.
Lucas (1976, p. 16) concorda conosco quando tece um comentário dizendo que a
arte além de nos dar uma visão do mundo, retrata nossa condição; e que ulterior a
isso, nos leva a nos opor às ideologias, por nos possibilitar uma consciência possível
da totalidade. E continua ainda dizendo que a arte
constitui um código de valores simbólicos e, deste modo, cria e
organiza determinado tipo de realidade, sujeita a uma organização
arbitrária, a certa aprazível gratuidade, que atende a uma neces-
sidade específica do gênero humano. O artista, mesmo singular na
sua originalidade, se prende a necessidades coletivas. (LUCAS,
1976, p. 16).
Em outra obra, Razão e Emoção Literária (1982), Fábio Lucas comenta que a
literatura faz o homem conhecer o mundo. Sintetiza que a obra literária empreende
perguntas que faz com que o homem conheça a si e aos outros; e tudo isso sem tirar
dele o prazer do texto e a alegria da leitura.
Quer dizer, a leitura de uma obra faz com que imaginemos o mundo inteiro ao olhar
para dentro de nós. Faz com que evoquemos o destino do homem e recuperemos o
sentido de totalidade.
Não é circunstancial, a esse propósito, que a totalidade do destino de Rubião,
trágico que seja, diz respeito à totalidade do destino de seu tempo. Logo, artimanhas
30
de Palha, Sofia e Camacho não são estratégias individuais isoladas, mas dizem
respeito às próprias instituições que, com estratégias finamente arquitetadas, faziam
com que Rubião não apercebesse do mal que estava construindo para si.
Nosso personagem possui características que faz com que o leitor se veja nele.
Essa é uma peculiaridade da ficção moderna que Machado abarcava: porque o
herói não mais pertencia a uma ordem divina ou semidivina, no pensar de Lucas
(1982), mas que o integra a uma sociedade constituída “com sua ordem, sua
hierarquia, seus valores, seus ideais (p. 133).
Diante de tais explicações é quase impossível não traçarmos uma linha de
similaridades entre Rubião e o próprio fazer literário. A loucura de Rubião é a própria
loucura da literatura. Pelo menos tem a mesma finalidade. Uma vez sem as
faculdades mentais não haveria como ser ouvido e respeitado. É necessário que
estivesse louco, ou pelo menos visto como tal, para que sua palavra e sua influência
não tivesse força.
Nesse sentido evoco a opinião dissonante de Foucault que relata:
Dir-se-á que, hoje, tudo isso acabou ou está em vias de desaparecer;
que a palavra do louco não está mais do outro lado da separação;
que ela não é mais nula e não-aceita; que, ao contrário, ela nos leva
à espreita; que nós buscamos um sentido, ou o esboço ou as
ruínas de uma obra; e que chegamos a surpreendê-la, essa palavra
do louco, naquilo que nós mesmos articulamos, no distúrbio
minúsculo por onde aquilo que dizemos nos escapa. Mas tanta
atenção não prova que a velha separação não voga mais; basta
pensar em toda a rede de instituições que permite a alguém -
médico, psicanalista – escutar essa palavra e que permite ao mesmo
tempo ao paciente vir trazer, ou desesperadamente reter, suas
pobres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a
separação, longe de estar apagada, se exerce de outro modo,
segundo linhas distintas, por meio de novas instituições e com efeitos
que não são de modo algum os mesmos. (...) Se é necessário o
31
silêncio da razão para curar os monstros, basta que o silêncio esteja
alerta, e eis que a separação permanece. (FOUCAULT, 1996, pp. 13/
14).
Destacamos, então, que o louco que anteriormente não tinha voz e portanto nem
ouvido, hoje tem voz, apesar de continuar sem ser ouvido. As estratégias das
instituições para que as coisas caminhem desta forma se metamorfoseiam enquanto
transcorre o tempo. Portanto, Rubião se insere neste pensar como alguém que,
sendo enganado se enganou,deixando-se seduzir pelas falsas juras de Sofia, pelas
falácias de Camacho e pelo espírito empreendedor de Cristiano Palha.
Aqui, importa atentar para o fato de que a literatura, distintamente a de Rubião, não
tem a pretensão de enganar a ninguém, mas sendo mal interpretada pode-se a ela
conferir este fim, o que deve ser visto como uma falha do leitor e não do texto.
Todavia, a participação do leitor é de suma importância, pois é ele quem confere ao
texto seu caráter literário ou não. O que importa pode não ser a origem do texto, mas
o modo pelo qual as pessoas o consideram, diz Terry Eagleton (2003, p. 12). E
continua: “Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto
será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado”.
Esta análise tem uma correlação com o pensar de Barthes (1996) que tergiversa que
o texto e o leitor tem uma fusão orgástica cujo sentido é realizado. Guimarães
(2004), falando dos leitores de Machado, conclui que a figura deste é onipresente
em suas obras.
Sendo assim, a literatura pode ou não ser um construtor de caminhos, dependendo
de quem a tem em mãos. E se quem a possui tem uma influência enormemente
abarcante (jornalistas, críticos literários, roteiristas (...)) pode torná-la um discurso de
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louco ou não. Pois, entendendo que a teoria se relaciona com o sistema político, ela
pode ou não reforçar seus propósitos.
Aqui fica patente a participação de Rubião em todo esse bojo. Sendo portador do
mal da loucura, tinha suas ações analisadas por quem quer que fosse e da maneira
como a queriam enxergar. Obviamente que um procedimento como esse é
totalmente inconsistente, visto que a literatura ao ser escrita se escreve, e é em suas
próprias páginas que se encontram subsídios e pistas para uma leitura pertinente e
edificante.
Assim, sem sombra de dúvida, é imperativo dizer que o discurso é um jogo. O ex-
professor, Pedro Rubião, participou de um jogo social cujas cartas foram
embaralhadas de forma a fazê-lo envolver sem ganhar, dependendo de sua atuação
enquanto jogador.
Não que no discurso exista uma estratégia voltada para o abismo, mas se esta troca
não for devidamente entendida, o discurso, elemento e momento de interação e
entendimento, torna-se-á contraproducente.
Neste sentido, sinaliza Foucault:
Quer seja portanto, em uma filosofia do sujeito fundante, que em
uma filosofia da experiência originária ou em uma filosofia da
mediação universal, o discurso nada mais é do que um jogo, de
escritura, no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no
terceiro, e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em
jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade,
inscrevendo-se na ordem do significante. (FOUCAULT, 1996, p. 49).
33
Nota-se, portanto, que Rubião embebecido por um discurso fútil, vazio e pretensioso,
tornou-se tanto quanto ele, oco de valores e consistência.
E isso é tão real, que na narrativa escrita por Machado de Assis, vê-se que ele
gastava dissolutamente com livro e jornais, que lhe conferiam até diplomas de
sociedades literárias, sem ao menos ler qualquer um deles. Um dia, sendo
interpelado por um cobrador que foi a casa dele para receber um semestre,
percebeu que o jornal que havia assinado era do partido do governo e mandou o
cobrador ao diabo. Voltado de mais um trabalho o cobrador resmungou:
“- Ora aqui está um homem que detesta a folha e paga. Quantos a adoram e não
pagam! (MACHADO, 1978, p. 167).
O lance da fortuna, inteligentemente bradado por Cristiano Palha, Sofia e Camacho
fazia com que toda ideia que Rubião poderia ter se diluísse. Sem ideia e apenas
com um resquício de imaginação, o espírito do herdeiro de Quincas Borba não
sobreviveria à sanidade, pois não teria cabedal para lidar com a loucura do mundo.
Sobre isso, recorremos à Foucault (1996) que tergiversa que o mundo não nos
uma face legível para decifrarmos e que nem mesmo tem a pretensão de caminhar
conosco, sendo nosso cúmplice, ou seja, não dispõe nada em nosso favor. Mas,
ainda assim, devemos atentar para o discurso usado nesse mundo como “uma
violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o
caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio da
regularidade”. p. 53.
Por meio dessas reflexões, percebemos que o contexto é um colaborador muito
efetivo para a construção do discurso. Se Rubião houvesse analisado toda a
34
trajetória dos acontecimentos que pululavam ao seu redor, se tivesse tido a noção
de acontecimentos e, a partir desta criado noções de possibilidades, talvez seu
destino tivesse sido um pouco menos trágico, principalmente porque o discurso não
é o ato nem a propriedade de um corpo, pois produz-se.
E se produz tendo como sustentação outros elementos que o circundam: a cultura e
o indivíduo que o materializam. Então, o que se pode denominar de loucura é algo
que foi construído por um grupo social a partir de uma cultura que a convencionou.
João A. Fraize-Pereira (2008), relata em seu O que é loucura que esta tem
identidades. O que o sociólogo quer dizer é que não apenas uma única definição
de loucura em qualquer sociedade, mas conceitos que se encaixam em diversos
tipos de situação.
Em relação a Rubião, concordamos com Pereira (2008, p. 9) que diz que a loucura é
um “estado de perda da consciência de-si-no-mundo que condena a pessoa a existir
à maneira de uma coisa”.
E diante disso, contrariando o brado do próprio Machado de Assis (1878, O
Cruzeiro) escrevemos: “Nem basta viver; é preciso comparar, deduzir, aferir a
verdade do mundo”. É este tipo de pessoa que Machado reconhecia como um ser
de busca. É para esses que ele escrevia. Se porventura um indivíduo mais
desavisado o lia, era com o intuito de o conduzir a uma leitura mais arguta por meio
da forma que escrevia, para que, como resultado dessa leitura, o leitor pudesse ter
uma vida um pouco menos louca.
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2. MACHADO DE ASSIS: LITERATURA, REIFICAÇÃO E CINISMO
“Falsa humildade, orgulho. Levantai a cortina. O que quer que fizerdes é preciso ou crer, ou
negar, ou duvidar. Não teremos acaso regra alguma? Nós julgamos dos animais que fazem
bem o que fazem. Mas não haverá regra para julgar dos homens? Negar, crer e duvidar
bastante estão para o homem o mesmo que o correr está para o cavalo.” Pascal
Com necessária cautela, podemos sintetizar que a linguagem literária permite
perpassar em si elementos que conduzem e dizem das relações sociais, pois
segundo Rancière (1995, p. 7) “escrever é o ato que não pode ser realizado sem
significar”.
Sendo assim, pensando em Machado enquanto autor, e em Rubião enquanto
personagem, arriscamos comentar que ambos; um, ao escrever, e o outro, ao ser
escritura, buscavam levar o leitor a entender a vida e suas artimanhas.
Assim, parece que o autor ao escrever tem uma intenção pré-determinada que será
a condutora da leitura da obra. Mas, essa intenção pode ser facilmente burlada pelo
sentido que o leitor emprestará ao texto, dependendo do local, da idade, do sexo,
das condições culturais deste, só para citar alguns elementos.
Neste ínterim lembramos de Bento Santiago, do romance Dom Casmurro. Escrever
para Bentinho era uma forma de resgatar o sentido da vida, procurando entendê-la.
É claro que não é tão simples assim, pois como disse o próprio Machado de Assis,
no romance acima citado: “nem tudo é claro na vida ou nos livros” (Cap. LXXVII).
Melisso de Santos, discípulo de Parmênides disse certa vez que “é necessário
afirmar que não vemos com verdade, que todas as coisas nos surgem falsamente
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porque, se fossem verdadeiras, o mudariam, conservar-se-iam como puramente
são”. (LUCAS, 1982, p. 23).
Obviamente que a proposição de Melisso não nos soa tão eloquente, pois, uma vez
que vivemos em um mundo em constante mudança, não podemos ser ingênuos ou
incautos quanto a essas variações, pois são elas que fazem da literatura e da vida
uma fonte inesgotável de segredos. Assim,
a literatura é então verdade, mas a verdade da literatura é ao mesmo
tempo a própria impotência de responder às perguntas que o mundo
se faz sobre suas infelicidades, e o poder de fazer perguntas reais,
perguntas totais, cuja resposta não esteja pressuposta, de um modo
ou de outro, na própria forma da pergunta: empresa que nenhuma
filosofia, talvez, tenha conseguido levar a bom termo, e que
pertenceria pois, verdadeiramente, à literatura.
(BARTHES, 2003,
p. 75).
Poderíamos completar a citação de Roland Barthes acrescentando que como
portadores de uma imensa interrogação, a literatura e a vida oferecem-nos apenas
novas perguntas, cujas respostas o outros questionamentos. Então nos resta
perceber que a literatura é tão irreal quanto a própria vida.
Ora, esta irrealidade cuja presença se faz na literatura existe não como um elemento
depreciativo, pois está ligado à vida, à força e a intensidade das experiências de que
ela própria é testemunha.
Por isso, Schwarz diz que a literatura também é alvo das artimanhas do capital.
Segundo ele, “o capital chamou a si as alternativas e os destinos que eram o
assunto da literatura e, transformou em mentira barata a literatura que insistia em
37
desconhecer esse esvaziamento dos pobres-diabos que somos” (SCHWARZ, 1999.
p. 148).
Também, Antoine Campagnon (2003) diz que a partir dos anos 60 a literatura, ou
melhor, o estudo literário, foi marginalizado, como se seu valor no mundo
contemporâneo fosse de menos-valia, pois - e me refiro à literatura com alta-
voltagem polifônica - não pode compartilhar com a coisificação da vida e a reificação
das coisas, como se vivêssemos de cabeça para baixo.
Por sua vez, na periferia do sistema-mundo e a partir do século XIX, Machado de
Assis, ficcionalmente, tramou a reificação do e no mundo, seja a reificação da
ciência, como panaceia para resolver todos os problemas humanos, seja a reificação
do saber, como luz capaz de iluminar caminhos de redenção, seja a o amor
romântico, da religião e tantas outras.
O autor de Quincas Borba (1991), com a força de seu niilismo, mostrou-nos como a
reificação, entendida como uma forma de endeusar valores, posses e saberes
apropriados por elites, submete a vida e a torna escrava de ideologias cínicas,
porque são produzidas para manter privilégios econômicos, sociais e culturais.
Se vivemos numa civilização da reificação, quanto mais endeusamos as coisas,
mais assujeitados nos tornamos. E nesse contexto, eis que chegamos a Pedro
Rubião de Alvarenga, protagonista de Quincas Borba. Ao ser encontrado pelo casal
Palha, dentro do trem que o conduzia a uma futura existência, não se conteve diante
das investidas da dupla e confessou que estava indo para a o Rio de Janeiro porque
havia recebido de um amigo uma herança. “Um grande amigo, que se lembrou de
fazer-me seu herdeiro universal” (MACHADO, 1978, p. 36).
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E continuou a contar com tal entusiasmo que não burlou em relatar todos os
detalhes que por ora poderia ocultar, levando em conta que estava diante de
pessoas estranhas. Eis o fragmento:
“Herdeiro universal! Olhe que não há uma deixa no testamento para
outra pessoa. Também não tinha parente. O único parente que
teria, seria eu, se ele chegasse a casar com uma irmã minha, que
morreu, coitada! Fiquei só amigo... (MACHADO, 1978, p. 36).
Se considerarmos a expressão “herdeiro universal”, bem poderíamos incorporá-la
como uma espécie de metanarrativa capaz de por em destaque a singularidade da
ficção de Machado de Assis. A nosso juízo, Machado de Assis ficcionaliza
ironicamente a reificação universal, esta da qual todos s, e não apenas o
personagem Rubião, pretendemos ser herdeiros.
Por outro lado, porque pretendentes a herdeiros, os personagens Cristiano Palha e
Sofia transformaram a informação de Rubião em uma oportunidade de ascensão
econômica. E, continuando a conversa sobre a herança, Palha não hesitou em
demonstrar sua astúcia, ao, sorrateiramente, aconselhar Rubião:
“- Outra coisa. Não repita o seu caso a pessoas estranhas... Discrição e caras se ao
serviçais nem sempre andam juntas”. (MACHADO, 1978, p. 36).
Após o encontro no trem, no dia seguinte se viram. Palha se ofereceu, para fazer o
inventário, produzindo um motivo para convidar Rubião para um jantar. Na verdade,
esse foi o primeiro de uma rie de encontros. Sempre nesse horário, regados por
jantares feitos por Sofia. Esta, por sua vez, parecia cada vez mais atraente para o
convidado.
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Enquanto a mulher de Palha alimentava os sonhos de Pedro Rubião, Cristiano nutria
a vaidade deste. Logo após a mudança de Rubião para uma das casas herdadas, a
de Botafogo, Palha “prestou grandes serviços, guiando-o com o gosto, com a notícia,
acompanhando-o às lojas e leilões”. (MACHADO, 1978, p. 38). Ele compreendia
que, angariando a amizade do protagonista, certamente conseguiria concatenar
seus intentos.
Evidentemente que esse tipo de relação, alimentada a partir de tal realidade,
subleva o valor da mercadoria em detrimento da importância do ser humano.
Roswitha Scholz (2000), em um texto denominado O sexo do capitalismo”, explica
que o valor, conceito do campo da economia, na civilização patriarcal em que
vivemos, é masculino, para não dizer androcêntrico. O valor, portanto, é o homem.
Assim, se o dinheiro é o valor universal é porque constitui-se, poderíamos deduzir,
como o herdeiro universal da civilização androcêntrica em que vivemos.
Dialogando com Roswitha Scholz podemos concluir que a reificação detém um devir
masculino. Nesse sentido, mesmo que abstratamente, tudo que é reificado o é
porque se inscreve como uma forma de falocentrismo. É nesse sentido que seria
possível igualmente deduzir que o reino das mercadorias é também o reino
metonímico do culto ao falo. Eis aí nossa herança universal.
Desse modo, se o fetiche é uma forma de endeusar um objeto, uma coisa ou um
bicho, atribuindo-lhe atributos transcendentais, fetichizar é uma forma de cultuar
artefatos, coisas, bens, saberes, objetos, mercadorias como se fossem
metonimicamente representações transcendentais, porque, paradoxalmente, são
imanentemente falocêntricas.
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Fetichizar, nesse sentido, é uma forma de deixar o mundo de cabeça para baixo,
porque o mundo que criamos, por ser humanamente criado, é transformado em
herança universal de cultivos falocêntricos.
É assim que a parte é vivida como se fosse o todo, ao mesmo tempo em que
submetemos o todo à parte. Logo a herança universal é também a produção de um
mundo de metonímias universais, sendo essas metonímias dinheiro, propriedades,
bens simbólicos, falos cultiváveis, portanto fetichizados.
A análise contundente de Scholz (2000, p. 13) é imperativa ao rememorar que esse
tipo de relação entre o todo e a parte faz com que os participantes da sociedade
sejam pessoas associais, sendo, portanto, apenas “produtores privados e indivíduos
sem relações”, uma vez que não nos relacionamos com o todo humano, de humano
para humano, mas de humano para humano, a partir da mediação transcendental
das coisas reificadas.
E SCHOLZ (2000, p. 13) continua:
As pessoas são objetivadas e as coisas quase que personificadas.
Cria-se uma alienação recíproca dos membros da sociedade, que
não utilizam os seus recursos de acordo com decisões comuns
conscientes, mas submetem-se a uma relação cega entre coisas
mortas os seus próprios produtos comandada pela forma do
dinheiro. É assim que ocorrem sucessivas utilizações errada de
recursos, crises e catástrofes sociais.
Também Roberto Schwarz (1999) comenta que esta relação cega que
empreendemos com o mundo nos torna “vítimas perplexas, atuais ou potenciais” (p.
148). É claro que ele está falando do fetichismo da mercadoria que, segundo seu
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próprio relato, faz com que os seres humanos ganhem atributos de mercadorias e,
as mercadorias, atributos humanos.
Karl Marx (1984, p. 43) a esse propósito deixou escrito que “o valor de uma coisa é
exatamente o que ela dá em troca”, assim, se estabelecermos uma relação entre
esse conceito e a alma do nosso tempo, poderíamos sintetizar que o ser humano é
medido pelo valor que transfigura as coisas que possui.
Na época de Machado não era diferente. Como um observador atento e sutil de tudo
o que se passava a seu redor, entreteve com seus personagens uma relação de
afinidade para com a trama social que vivenciava. Não que esta prática fosse uma
condição sine qua non para seu fazer literário, mas porque escrever romance, na
segunda metade do século XIX, era reatar os laços existentes entre literatura e
sociedade.
E neste bojo encontra-se o personagem Rubião. Ele era ciente de que mantendo
relações sociais fetichizadas seu reconhecimento social seria possível. Convivendo
com Cristiano Palha e Sofia conheceu outras pessoas e dentre elas estava
Camacho, advogado que, apresentando o herdeiro para muitas pessoas, logo o
transformaria Rubião em uma lenda.
Para tanto, Camacho
pusera-o em contato com muitos homens políticos, a comissão das
Alagoas com várias senhoras, os bancos e companhias com pessoas
do comércio e da praça, os teatros com alguns freqüentadores e a
rua do Ouvidor com toda a gente. então era um nome repetido.
Conhecia-se o homem. Quando apareciam as barbas e o par de
bigodes longos, uma sobrecasaca bem justa, um peito largo, bengala
de unicórnio, e um andar firme e senhor, dizia-se Rubião um ricaço
de Minas
.
(MACHADO, 1978, p.165).
42
Rubião havia alcançado o que almejava. Ter em troca do que oferecia a seus
amigos o status que o fazia sentir-se uma pessoa de bem, um homem de valor. Tal
sentimento o lembrava das diversas vezes que havia tentado enriquecer
organizando empresas que não prosperavam, e de quando supunha que era um
“desgraçado, um caipora...” (MACHADO, 1978, p.30).
“Mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga” dizia Rubião.
(MACHADO, 1978, p. 30). Escravos, joias, dinheiro em forma de moedas, casas na
corte, uma casa em Barbacena e algumas apólices no Banco do Brasil e em outras
instituições foram o suficiente para fazer emergir um Rubião como herdeiro
universal, porque fetichizante e fetichizável.
Eis a fórmula para fazer-se como o verdadeiro pretendente da herança universal
do valor falocêntrico: ser agente e paciente, desejante, desejado e desejável como
valor, logo como falo.
Com tudo isso, o antigo professor de Barbacena, agora reificado “olha para si, para
as chinelas de Túnis (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os
morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma
sensação de propriedade” (MACHADO, 1978, p. 15). Porque tudo, seria possível
deduzir, entra na mesma família universal do antropocentrismo, cujo valor se
fundamenta na propriedade privada de bens metonimicamente fetichizados.
Daí porque a família da herança falocêntrica se pretende panteísta, dona de tudo, do
céu e da terra, tendo o olhar de Rubião, para o mundo.
Diante disso, é interessante notar como a figura de Rubião se acopla perfeitamente
e metaforicamente ao conceito de herança universal preconizado por Machado.
43
Como um ser suscetível a mudanças, uma vez que se viu tentado a ser possuidor de
uma herança, que o faria um homem rico, não hesitou em continuar a promover tal
ideologia.
A partir desta ação de Pedro Rubião percebemos que a narrativa, ao traçar a
caminhada deste personagem até a sua redenção por meio da loucura, busca
mostrar-nos, ironicamente, que existe toda uma trama que, inteligentemente
pensada, leva-nos a ser possuidores da herança universal, fazendo-nos crer que
assim estamos nos posicionando valorativamente diante do mundo.
É evidente que um pensar como este tenha a ingenuidade como mote. E é porque
esta existe que a corrupção difundida no cenário político e social da história humana
não chega ao fim.
Juntamente com Cristiano Palha e Camacho, poderíamos dizer que Sofia foi um dos
elementos mais ousados para a efetivação do ideal falocêntrico. Sendo egoísta,
ambiciosa e cruel, representou perfeitamente o papel que representa o significado
do seu nome: sabedoria, por representar para Rubião uma possível cura para sua
loucura.
Um pouco menos maliciosa, mas muito mais ambígua foi Capitu, personagem do
romance Dom Casmurro. Seu nome, segundo Gledson (1991), tem a ver com uma
colina em Roma que se chama Capitólio, local onde se encontrava a sede do poder,
imperial e republicano.
Outra criação que nos vem à mente por meio do nome da personagem, e que tem
relação direta com o modo com que Machado escrevia sua literatura, é capitulação.
Relacionando esse fazer com o nome Capitu, concluímos que Machado é um autor
44
que capitula, ou seja, que fabrica capítulos e que Capitu é a personificação dessa
capitulação.
Este estilo fragmentário de Machado de Assis, se visto sob a ótica política, se
coaduna com a própria forma de vida que vivenciamos no mundo hodierno. Um
mundo onde as relações são fetichizantes e fetichizadas, capituladas e mediadas
por metonímias de falos, das quais somos herdeiros universais.
Em relação a heranças recebidas, assim como foi a de Rubião, Raimundo Faoro
(2001) diz que como a maioria dos herdeiros eram parentes (filhos, sobrinhos...) eles
cultivavam um horror ao trabalho e cita alguns personagens que entram nesse bojo:
“Brás Cubas (Memórias Póstumas), Bentinho (Dom Casmurro), Félix (Ressurreição),
Estácio (Helena), Jorge (A Mão e a Luva) e outro Jorge (Iaiá Garcia)”. (p. 231).
Faoro (2001) observa que os capitalistas não ponderam o conteúdo do estamento
por se acharem no exterior deste, vivendo de aparências. Este tipo de vivência é
mais um elemento que se pode depreender da herança universal. O autor citado
explica que estamento é um conjunto de convenções que determinam um estilo de
vida. Diz também que esse está ligado ao poder político para que, a partir dele, haja
condições de sobrevivência para qualquer pessoa independente de classe social.
Mas de fato, a ideologia que imperava o era a de ajuda mútua, nem mesmo de
ética diante da responsabilidade social que estes capitalistas deveriam bandeirar.
Embebecidos pela ambição o único caminho que divisavam era o do desejo de
acúmulo de bens.
45
E o que é fácil depreender desse pensar é que se as relações de trabalho revelam
ou fazem uma fotografia das relações sociais, a sociedade apenas sobrevive
abstratamente, como já mencionamos, em um comentário de Roswitha Scholz.
Convém reportarmos ao contexto machadiano em que nosso Rubião, vivendo sob
um manto de falsidade e abstração construído por Camacho e o casal Palha, ia
levando sua vida sem percepção de onde iria chegar. Após um dia tenso, em que
Rubião demonstrava desassossego e reclamava de dor de cabeça (cap. 95) e logo
depois de uma investida frustrada e sem sucesso (cap. 97), nosso herói recebe um
bilhete de Sofia que Machado o criou assim: Ficamos ontem muito inquietos, depois
que o senhor saiu. Cristiano não vai agora, porque acordou tarde, e tem de ir ao
inspector da alfândega. Mande-nos dizer se passou melhor... (...) Sofia. (MACHADO,
1978, p. 121).
O que poderíamos chamar de simplesmente abstrato, deveríamos denominar de
trágico. Doravante, o que tendemos conjecturar é que o cinismo trans-figurado pela
figura do casal é o que se vê no próprio seio da sociedade hodierna, quando perde a
razão com o outro, por travar o tempo todo relações fetichizantes.
Como observou Roberto Schwarz, em Seqüências Brasileiras, “a lógica da
mercadoria expandiu-se violentamente, tanto na esfera popular como na cultural, em
detrimento das conexões não mercantis, inaugurando um clima espiritual novo”
(SCHWARZ, 1999, p. 175).
Esse clima novo tem consonância com a relação seca e cínica do Casal Palha e de
Camacho com o herdeiro de Quincas Borba. Uma confraria composta de pessoas
cuja finalidade, apenas, parecia ser a mesma.
46
A questão do valor, aqui traduzido como os bens herdados por Rubião, é que
desenhava o caminho em que as personagens deveriam trilhar. Uma relação onde a
luz que brilhava no fim do túnel era feita de moedas. E eram estas que reluziam,
iluminando a estrada.
Tendo em vista tal explanação, é interessante trazer a baila uma contribuição de
Scholz (1991), em que a pensadora diz que
o conjunto do relacionamento social no capitalismo, portanto, não se
determina somente pelo auto-movimento fetichista do dinheiro e elo
carácter de fim em si do trabalho abstracto. Pelo contrário, verifica-se
uma “dissociação[abspaltung] especificada sexual-mente, mediada
dialectivamente com o valor. O dissociado não é nenhum simples
“sub-sistema” desta forma (como por exemplo o comércio externo, o
sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da
relação social total. Quer dizer que não há nenhuma “relação de
derivação” lógica imanente entre o valor e a dissociação. A
dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido
no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos
centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e
quebrada, que devem ser compreendidos ao mesmo alto nível de
abstracção.
Contradição e crueldade também podem ser vistas no contoPai contra mãe”.
Cândido Neves, protagonista da história, é um homem que não segue nenhuma
carreira específica por “não agüentar emprego e nem ofício”, tornando-se assim,
pegador de escravos fugitivos. Ao longo do conto, Cândido se apaixona por Clara e
mesmo sem condição financeira estável para unirem-se, se casam. Para agravar
ainda mais a situação Clara ficou grávida, trazendo preocupação para sua Tia
Mônica e para Cândido, que algumas vezes ficava semanas sem conseguir um
vintém.
47
Sob o impulso de um anúncio, saiu pelos becos e vielas da cidade para procurar
uma escrava fugida. Por um golpe de esperteza alcança a coitada que, grávida, o
suplica que não a entregue. Cândido não pensa no filho de Arminda e sim no próprio
filho e decide entregar a escrava que diante da situação acaba perdendo o bebê.
Temos um relato da reificação suplantada pela lógica da vantagem sendo vista
por uma ótica unilateral. É a mesma ideologia que impregnava o ser de Cristiano
Palha e Sofia e que os faziam agir naturalmente, burlados da razão; o que nos faz
refletir que a força cega do egoísmo faz com que o homem haja movido por vilanias
impensáveis.
Alfredo Bosi (2006) tem um lugar neste contexto quando reitera que a contradição
existe em todos os homens e que o egoísmo que também se enlaça como parceiro
dela existe distribuído em todos, indiferente de classe social. O que sinaliza Bosi é
que a herança falocêntrica é universal e sua extensão atinge a todos em todos os
lugares.
Diante disso nos vem a mente novamente a figura de Cândido, que sendo pobre
agiu injustamente com outra pessoa que enfrentava as mesmas dificuldades. Mas
Bosi (2006) continua dizendo “que existe um fato inegável: nas situações de
assimetria social, o egoísmo vencedor costuma ser do lado do rico e do poderoso”.
(BOSI, 1999, p. 15).
Seguindo então, a linha analítica de Bosi sobre a assimetria que reina na sociedade,
não é difícil lembrar que esta tem uma estreita relação com o poder, que por sua vez
apresenta como vetor a construção de identidades que se distinguem. “Onde existe
diferenciação (...) aí está presente o poder”, diz Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 81).
48
Olhando por este prisma, nos salta aos olhos dezenas de personagens
machadianos que foram afetados pelos efeitos desta relação. Para citar apenas um,
lembramos de Nhã Loló, de Memórias Póstumas. Moça bonita, prendada, mas que
por ser coxa perdeu de reinar no coração de Brás Cubas.
E por falar em Brás Cubas, lembramo-nos de Quincas Borba, seu amigo filósofo que
criou e defendeu o “Humanitismo”. É interessante notar, como John Gledson captou,
como que esta ideia na verdade é um princípio ontológico de raciocínios muito mais
abrangentes do que se possa imaginar.
O intelectual, em seu livro “Machado de Assis: Impostura e Realismo” (1984), analisa
o “humanitismo” de Quincas Borba como um princípio onde o fulcro é a adoração de
nós mesmos. É claro que toda esta história de criação de um ramo de conhecimento
é um modo risível de Machado ironizar as filosofias que imperavam em seu tempo,
mas que serve de subsídio para o nosso pensar.
Para o pensador, o “Humanitismo” é a justificação perfeita do egoísmo. Como
exemplo podemos citar Brás Cubas, Bento Santiago e, claro, Rubião. Gledson
(1984) pondera que “pode ser fácil aceitar os grandes crimes da humanidade, uma
vez encontrado um sistema apropriado para englobá-lo” (p. 145). É por isso que o
“Humanitismo” é um sistema filosófico criado para invisibilizar os demais, quando
estes, assentados sob a égide de que o homem poderia caminhar rumo à perfeição
de uma entidade que abrangesse suas qualidades, pareciam apenas elementos de
justificação.
Pensando assim, conjecturamos que convivendo em um mundo de herança
universal falocêntrica, o conhecimento, logo, a filosofia, também não escapa. O que
49
poderia ser utilizada como mola propulsora de um tipo de vida mais equilibrado é
manipulado para servir como cabedal para uma sociedade que objetiva inviabilizar o
discurso do louco para continuar jogando as próprias cartas na mesa da forma como
tenciona.
Gledson relembra que o “Humanitismo” “não é apenas um pretexto conveniente para
ações egoístas; também proporciona ao adepto uma visão confortadora da
sociedade e da história” (GLEDSON, 1984, p. 145).
Para levar-nos a entender tal conjectura, Gledson (1984) cita o exemplo dado pelo
próprio filósofo quando justifica a existência do trabalho escravo. Para tal, ele cita o
osso da galinha que estava chupando, visto que o frango “foi alimentado com milho
plantado por um africano” (p. 145).
Parece ridículo, mas a sátira nos encaminha a uma análise semelhante a de
Gledson (1984, p. 145): “a postulação de uma vontade geral, supra-individual, leva a
uma moralidade distorcida e impiedosa, ou, antes, a ausência de todo princípio
moral além do egoísmo e da justificação do status quo”.
Temos um clássico modelo que ilustra a linha condutora das narrativas
machadianas. Dito de outra forma, percebemos que o elemento axial de sua
literatura era a hierarquia social e o indivíduo; fato que conferia a este modos de
cogitação e, consequentemente, de ações como as preconizadas por John Gledson.
50
2.1 Rubião e a Tragédia do Existir
É possível perceber que no cerne de qualquer interpretação do romance Quincas
Borbaestá na figura de Rubião. Ele é o ponto principal porque, além de conduzir
toda a narrativa, suas atitudes representam a postura de uma classe social que
mesmo herdando bens de outrem, é ingênua no que concerne as estratégias
promulgadas pela classe dominante.
Essa ação da classe dominante, segundo Foucault (2008) não tem em si somente
uma força repressiva, porque se assim fosse nem todos a obedeceriam, mas um
poder articulador que seduz porque produz coisas, conduz ao prazer e o que é mais
perigoso, cria saberes e discursos.
“Ora, diz o próprio FOUCAULT (2008, p. 7),
creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num
discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de
outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de
verdade no interior
de discursos que não são em si nem verdadeiros
nem falsos.
O problema é que o que se pode chamar de “verdade” está intimamente ligado ao
sistema de poder, e é dissiminado com tanta competência que se é visto como
pretende ser.
51
É claro que misturadas a esta verdade estão a alienação e a ilusão. São estes
elementos que camuflam as investidas e as estratégias do poder, que são diluídas
na cultura, na economia e nas próprias relações sociais.
Parece-nos que Palha, Sofia e Camacho sabiam de toda a cartilha do sistema de
poder, pois aproveitaram-se da ingenuidade, da falta de experiência e do desejo de
acúmulos de bens de Rubião para benefício próprio.
Evidentemente que ao longo do romance não era somente Rubião que havia caído
nas teias da ilusão. Movidos pela necessidade de aceitação e de valorização alguns
casais se destacaram: Carlos Maria e Maria Benedita, Teófilo e Dona Fernanda.
John Gledson (1984, p. 104) relata que “a diferença deles em relação à Rubião é
apenas de grau”. O que Gledson quer dizer é que de todos esses, Rubião era o mais
ingênuo e de o fraco não havia outro rumo a seguir senão o que o levaria à
loucura.
Outro personagem machadiano que se deixou iludir pela “verdade do poder foi
Procópio Dias, do romance Iaiá Garcia”. Assim como o herdeiro de Quincas Borba,
Procópio tornou-se vaidoso: “um dos dedos da o esquerda ornava-se com uma
soberba granada. A bengala tinha o castão de ouro lavrado, com as iniciais dele por
cima, - de forma gótica” (I.G., VII), citado por Faoro (2001, p. 256).
Quem não se lembra da organização de um casamento (Cap. 81) em que Rubião
usaria para guiá-lo um coupé que seria forrado não com um pano conhecido, mas
com parelha rara e com cocheiro fardado de ouro? Para completar, no lugar da
festa, a ceia seria esplêndida. Usariam “cristais da Boêmia, louça da Hungria, vasos
52
de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com as iniciais do Rubião na gola”.
(MACHADO, 1978, p. 106).
Temos aí um verdadeiro discípulo da vaidade, pecado que facilitou o trabalho do
ativo e jeitoso Cristiano Palha. Faoro (2001) prega que o “homem é o que é pelo seu
faro, pelo amor ao ouro, e, sobretudo, pela total ausência das qualidades superiores”
(p. 257).
Procópio Dias, assim como Palha se encaixam perfeitamente nas reminiscências de
Faoro. Tanto as amizades que Procópio angariou na época de sua campanha
quanto a que Cristiano teatralizou com Rubião duraram apenas o tempo em que
perdurou o interesse mercantil. Para eles o lucro era o principal credo.
Uma regra tão bem internalizada que faria dos dois, principalmente de Cristiano
Palha, um canalha sem um vestígio de valor. Perspectiva tão real que o fez
abandonar um dos valores sagrados do Segundo Reinado que era o recato do
casamento, pois para ele seu grande capital era sua esposa Sofia. Faoro (2001).
“Sofia era o atrativo de que se servia o Palha, a isca atirada às suas vítimas”.
(FAORO, 2001, p. 260).
E tinha ainda uma “vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e a
onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares”.
(MACHADO, 1978, p. 48). Mas esta não era inocente.
À princípio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais
foram as admirações colhidas e a tal ponto o uso acomoda a gente
às circunstâncias, que ela acabou gostando de ser vista, muito vista,
para recreio e estímulo dos outros. (MACHADO, 1978, p. 48).
53
Interessa notar, que mesmo com toda perspicácia e inteligência, Palha precisava
das atitudes de Sofia para seu equilíbrio. Faziam um par perfeito, como “a mão e a
luva” quando se encaixam. Mas na verdade, tinham uma relação pautada por um
valor específico, assim como a maior parte das relações que pululam no romance
“Quincas Borba”.
Este universo devastador que organiza as relações sociais por meio do consumo
também cooptou Rubião que, embebecido pelo desejo recalcado de possuir Sofia
aceita, mesmo diante de pós e contras, travar uma sociedade com o futuro
companheiro de negócios.
A participação de Sofia na decisão de Rubião é mencionada pelo próprio Machado
(1978, p. 93), por ocasião da conversa entre o herdeiro de Quincas Borba e
Cristiano:
(...) Sofia apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o
princípio, ideia latente, inconsciente, uma das causa últimas de ato, e
a única dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expeli-la e
levantou-se. Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do
homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si
mesmo que entraria de sócio como marido, mediante certas
cláusulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade comercial;
assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas.
Em O Mundo Social do Quincas Borba”, Chaves (1974), citando um pensamento de
Lucien Goldmann, tergiversa que as verdadeiras relações desaparecerão, uma vez
que tendem a perder a essência tornando-se mensuráveis por estarem em
consonância com uma abstração que se reduz em um valor. Para iluminar nosso
exame basta olhar para o relacionamento Palha e Rubião. Cristiano Palha não via
Rubião em sua dimensão de humanidade, mas por meio do capital que possuía.
54
Uma análise como esta nos faz pensar que, enquanto seres humanos temos um
preço, assim como as coisas. Chaves (1974) continua dizendo que “no mundo
machadiano não há nada que não possa ser comprado e, portanto, também nada há
que não se possa vender”. (p. 42).
O pensar de Chaves torna-se uma verdade tão retumbante que pode ser percebida
nas ações mais simples realizadas por Pedro Rubião. Quando por ocasião do
salvamento do garoto (cap. 60), o protagonista do romance advertira ao pai do
menino que perdera seu chapéu. Na verdade, o objeto estava nas mãos de um
garoto esfarrapado à porta da colchoaria. O menino esperava pelo herói para
restituí-lo. O garoto não tinha a intenção de receber nada por isso, mesmo assim
Rubião sentiu necessidade de dar-lhe uma recompensa, colocando em sua mão
alguns cobres. É evidente que o menino aceitou. Ele queria apenas servir, ou pelo
menos ter parte da glória do momento, mas não poderia deixar de demonstrar prazer
ao aceitar o dinheiro. E MACHADO (1978, p. 81) fecha este esquete, dizendo: “Foi
talvez a primeira ideia que lhe deram da venalidade das ações”, angariando assim,
mais um herdeiro, para a herança universal falocêntrica, agora, dissiminada por
Rubião.
Uma leitura mais arguta deste momento nos leva a entender o processo de diluição
de valores porque passa tanto à sociedade de quanto a de cá. O comportamento
reificado, sendo regido por posturas abstratas imperava nas vidas dos demais
personagens da narrativa e, agora, estava virulentamente sendo introjetado num
menino esfarrapado.
E foi este vírus que fez com que Rubião tivesse sua vida transformada em uma
imensa tragédia: a do existir.
55
2.2 O Conceito de Tragédia em Raymond Williams
Raymond Williams, considerado um dos mais conceituados pensadores e críticos da
Nova Esquerda Inglesa amplia o conceito conhecido e esteriotipado que temos de
tragédia.
O autor de Tragédia Moderna nos explica que a ideia que temos de tragédia
“chega a nós a partir da longa tradição da civilização européia” (p. 33), ou seja, a
interpretação é concatenada, dissiminada e estabelecida como “verdade” a partir de
pensamentos de povos de além-mar.
Porém, deve-se atentar para o fato de que ideias relacionam-se com a história e,
portanto, é necessário observar o lugar em que foram produzidas, e especialmente a
função que exercem em relação à diversidade e multiplicidade da experiência atual.
“Na obra de Hebbel, diz Williams (2002, p. 58) “a tragédia é o conflito entre o
indivíduo, na sua capacidade humana mais geral, e a “Ideia”, que, por meio de
instituições sociais e religiosas, tanto lhe dá forma quanto o limita”.
Nessa formulação, Williams (2002) relaciona o conceito de tragédia ao
esfacelamento da moral humana devido as crises decorrentes no seu
desenvolvimento enquanto pessoa. E é a isso que ele chama de nova visão da
tragédia: o relacioná-la à história, ao desenvolvimento humano e à crise ética.
Diante disso, podemos pensar na tragédia de Rubião ligando-a a todos os
elementos citados acima. O personagem chave do romance criado por Machado de
Assis carrega um sentido universal e, sobretudo, atemporal. Suas novas
56
experiências enquanto rico, seu relacionamento com Camacho e com o casal Palha
e sua vida ociosa e esbanjadora fê-lo desgastar todo e qualquer vestígio de
moralidade que ainda possuía.
Nesse sentido, tragédia pode ser vista como uma série de experiências, convenções
e instituições, e não como um tipo de acontecimento que é único. Williams (2002).
Raymond Williams (2002) é novamente reconvocado a colocar em pauta a
denominação simplista que temos da tragédia. Segundo ele, pensamos tragédia
relacionando-a a mortes, assaltos, catástrofes, guerra, fome, trabalho, tráfego e
política. Para ele, tragédia “é, de fato, uma ideologia”. (p. 72).
E é tão veraz esta definição que na época de Machado a morte de um escravo ou de
um servidor não era considerada como um evento trágico. Isso era pensado por ser
o sentido trágico sempre relacionado à cultura e a história.
O autor de “Tabu do Corpo”, José Carlos Rodrigues (1979, p. 11), deixou impresso
que “viver em sociedade é viver sob a dominação dessa lógica e as pessoas se
comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham
consciência”.
E foi esta a tragédia de Rubião. Deixar-se levar ingenuinamente pelas elucubrações
do casal Palha e de seus colaboradores. O que parecia ser um mundo novo, real e
cheio de luzes, era apenas uma construção, ou melhor dizendo, uma armadilha.
O que
as pessoas normalmente chamam de “mundo real” é incons-
cientemente construído a partir dos códigos da sociedade. O cérebro
humano seleciona e processa as informações que lhe oferecem os
57
órgãos dos sentidos segundo um “programa” que lhe é introjetado
pela socialização. A consciência individual tem a impressão de estar
lidando com um mundo intrinsicamente ordenado. Entretanto, essa
ordem postulada pela Cultura não se confunde com a ordem da
Natureza, nem é apenas uma substituição de uma ordem natural por
outra que não o seja; também não é um ordenar específico de coisas
existentes no mundo; ela institui no mundo novos elementos,
imprevisíveis, inconhecíveis e mesmo inexistíveis sem a lógica que
lhes é imposta. (RODRIGUES, 1979, pp. 12/13)
Neste sentido, sentir-se culturalmente e socialmente aceito significava, para Rubião,
ser e fazer a maneira de seus circunstantes. Para alcançar os objetivos que ora
propunha, não poderia deixar de integrar-se a qualquer custo à ideologia dominante.
Entretanto, ele não imaginava que seus caminhos eram erráticos.
Por sua vez, Schwarz (2006) argumenta que entre indivíduo e sociedade uma
ligação inexorável, que “não deixa lugar para o transcendente: nada tão divino ou
“celeste” como imaginar-se por cima na concorrência com o próximo” (p. 159).
Em suma, o que Schwarz pretende nos dizer é que na luta entre indivíduos e
sociedade, o poder, munido com seu arsenal competitivo e sua força destruidora,
sempre terá a primazia.
Para Machado todos os sistemas sociais têm como combustível a manipulação e o
interesse, que utilizando-se de força, como dito anteriormente, e de astúcia,
dificilmente perdem uma investida.
Enlaçado pela ilusão e pela vontade de vencer na vida, Rubião não conseguia
divisar que seus pés estavam sob areia movediça. Ele sabia que para conseguir tal
fim deveria estreitar uma ligação com o poder, revestindo-se de sua aparência; mas
58
sua falta de perspicácia, inteligência e maturidade potencializou o desejo de seus
algozes vê-lo como uma marionete, ou melhor, um objeto facilmente destrutível.
“De forma oblíqua e confusa, reconhece-se que a luta por dinheiro substituiu a luta
por poder como um motivo humano e um motivo trágico”. (WILLIAMS, 2002, p. 128).
A verdade é que os desejos dos homens o tão intensos, tão impensáveis que não
os deixa raciocinar que a “sociedade é identificada como convenção, e a convenção,
como inimiga do desejo” (WILLIAMS, 2002, p. 129).
A impossibilidade de Rubião em alcançar com sucesso os objetivos que havia
proposto consiste em ter fugido de si mesmo, travestindo-se de máscaras que não
eram as suas, acreditando assim em ações sem fundamento. Em busca de uma
autoafirmação ele encontrou a negação da vida devido a sua associação com uma
sociedade mentirosa.
O que poderia minimizar tais situações é o entendimento de que
a sociedade é que se constitui, inevitavelmente, da soma dos seus
relacionamentos, e quando estes estão perversamente errados, ou
quando as pessoas não mais os compreendem, uma complicada
estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da
experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência.
(WILLIAMS, 2002, p. 192).
As palavras de Williams casam com a própria existência de Rubião, estendendo-se
ao homem contemporâneo. Para o estudioso, travar relações balizadas pela
honestidade e sinceridade é impossível, e a única fonte de candura ou inocência é a
fantasia.
59
E foi na ilusão, a partir da figura de Napoleão III, que o amigo de Quincas se
refugiou. (Cap. 146). Quando por ocasião em que um barbeiro foi realizar o seu
ofício em sua casa, Rubião pediu-lhe que fizesse sua barba à semelhança de
Napoleão III. Tendo um busto do oficial em sua casa, não foi difícil para o barbeiro
fazer o que o cliente desejava.
Este delírio de Rubião soa como resposta a uma sociedade hostil que nubla, burla e,
muitas vezes, destrói o próprio modo de ser das pessoas. E neste contexto
encontra-se nosso personagem que, não tendo consciência de sua própria condição,
desenha seu destino rumo a um lugar onde todos que vão encontram a tragédia do
existir como parceira.
60
3. MACHADO DE ASSIS: UM AUTOR PÓS-SOCIEDADE DISCIPLINAR
“Uma verdade que nas coisas anda, que mora no visíbil e invisíbil.” Camões
3.1. Rubião, o reconhecimento como metafísica herança do nada
Muitos autores e críticos (Chalhoub, Bosi, Faoro, Gledson, Aguiar...) já registraram a
respeito do comprometimento de Machado de Assis em relação aos fatos que
ocorriam na sociedade em que fazia parte, e do homem que, consequentemente,
vivenciava esses fatos. Em qualquer livro do autor é possível encontrar a
confirmação dessa proposição que, na pele de algumas personagens, experienciam
esse legado.
Em Quincas Borba, a estrutura do romance, o desenrolar dos fatos e as atitudes das
personagens constroem um olhar em relação à sociedade fluminense que ultrapassa
a própria noção de época.
Por exemplo: o desejo de grandeza, de visibilidade e reconhecimento social, a
facilidade do esbanjamento, a oportunidade de vivenciar o ócio fizeram com que
Rubião se enlaçasse em situações que seriam inimagináveis para ele antes do
conhecimento de que herdaria uma quantia que o faria um novo rico. Evidentemente
que esses mesmos desejos são obviamente vistos em Sofia, Cristiano Palha,
Camacho, Carlos Maria, enfim, em praticamente todos os personagens que com-
põem a narrativa.
61
Diante disso, a parte que nos toca é o fato de Rubião viver a tragédia da insanidade
ao buscar o que muitos também lutam para conseguir, e ao possuir, viver equi-
libradamente.
A loucura aí é parte de um processo iniciado e potencializado pelo próprio
personagem que, achando-se apto para adentrar em um novo status e modus
vivent, percebeu-se apenas enganado e usado. Porém, essa percepção não foi
imediata, tendo em si uma longa estrada a ser percorrida.
Tal caminhada se iniciou no momento em que o personagem título do romance
“fitava a enseadae se via, não como um professor, mas como um capitalista. Ou
seja, alguém de posses, poderoso e dono de propriedades.
O fato é que tudo isso conferia a Pedro Rubião uma identidade que possuía olhos
que fitavam apenas em uma direção. Passou a amar o desejo de posses: “vejam
como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana Piedade tem
casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou;
ambos morreram, e aqui está tudo comigo”. (MACHADO, 1978, p. 15); a valorizar a
sorte e desvalorizar o trabalho: “Rubião não esquecia que muitas vezes tentara
enriquecer com empresas que morreram em flor. Supôs-se naquele tempo um
desgraçado, um caipora, quando a verdade era que “mais vale quem Deus ajuda, do
que quem cedo madruga”. (MACHADO, 1978, p. 30); a deslumbrar-se com a vida na
corte: “(...) Palha prestou grandes serviços ao Rubião, guiando-o com o gosto, com a
notícia, acompanhando-o às lojas e leilões”. (MACHADO, 1978, p. 38); a colocar
antigos valores em xeque: “Mas que pecado é este que me persegue? Ela é casada,
dá-se bem com o marido, o marido é meu amigo (...) Parava e as tentações paravam
também”. (MACHADO, 1978, p. 38) e ainda passou a deliciar-se com a vaidade dos
62
títulos: “O nosso Palha me tinha falado em Vossa Excelência disse o major
Siqueira depois de apresentado ao Rubião”. (MACHADO, 1978, p. 46) e “Rubião
agitou-se no canapé. A recompensa era, com certeza, o diploma de deputado. Visão
magnífica, ambição que nunca teve quando era um pobre diabo; Ei-la que o toma,
que lhe aguça todos os apetites de grandeza e de glória” (MACHADO, 1978, p. 79).
Zygmunt Bauman (2004) coloca em voga a sociedade como criadora de ideologias.
Neste patamar, a ideia de identidade, segundo o autor, advém da crise do
pertencimento que mobiliza o homem à ação, um dever tão obrigatório e o
importante quanto o ato de comer.
E, a propósito, o personagem Rubião rapidamente entendeu isso. Percebeu que “no
admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as
identidades formadas ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não
funcionam”. (BAUMAN, 2004, p. 33). Assim, reviver identidades inexoráveis não são
possíveis na contemporaneidade, simplesmente porque o mundo é instável e suas
artimanhas e ideias são flutuantes, tornando o desejo de manter uma identidade
estável, algo ruim.
Para Rubião, agora possuidor de uma grande fortuna, ostentar o estigma de um
professor de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais não seria nada simpático,
mas constrangedor.
Bauman (2004, p. 35) ilumina nosso olhar ao dizer que
o anseio de identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um
sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto
prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência
ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido,
num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”,
63
torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de
ansiedade”.
Foi fácil para o herdeiro de Quincas Borba entender como os mecanismos sociais
trabalham em prol da inserção de um indivíduo em suas propostas de vida. O difícil
foi para ele descobrir quais os parâmetros que eram utilizados para chegar a tal fim,
e como eles se coadunavam com as ideias e com a vida para que o participante não
se tornasse uma vítima desta condição “enervante e produtora de ansiedade
discutida pelo sociólogo Bauman.
A sociedade de Rubião, gestada pelo gênio irônico de Machado de Assis, possuía
uma cultura específica, levantada e vivenciada por ela própria. E é nesse contorno
que o carro sai do caminho. É lógico que as crenças e as tensões construídas por tal
sociedade têm um poder de coerção muito forte, mas a conformação passiva diante
de tais ideologias quase sempre faz emergir a experiência trágica.
Assim, sem questionar, Pedro Rubião de Alvarenga se conformou por não desejar
fazer parte de uma classe que vivia nos limites da sociedade, “fora daquele conjunto
no interior do qual as identidades podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas,
supostamente respeitadas”. (BAUMAN, 2004, p. 45).
Note que o crítico polonês usou o advérbio “supostamente” para mudar o sentido do
vocábulo “respeitadas”. Isso denota que a sociedade ficcional e real de Machado e,
porque não, dos nossos tempos, possuem estratagemas sutis de falsificações e
engodos recheando suas artimanhas.
64
E esses estratagemas são tão negociáveis que no momento presente, movido pela
ótica do capitalismo, a sociedade tem-se valido da exclusão e não mais da
exploração.
Seguindo, aqui, a linha analítica de Bauman (2004), percebemos que a exclusão
está tão validada ideologicamente que se tornou um elemento social. Ver a
prostituta, o viciado, o velho, o analfabeto, o sem-teto e o desempregado como seres
marginais não se torna ofensivo, mesmo que qualquer uma dessas identidades
sejam abarcadas por mútuo consentimento de quem as possui.
Bauman (2004) fala de uma identidade denominada “sub-classe”, ou seja, é a
ausência de uma identidade. Consequentemente todos os que são considerados
pertencentes à “sub-classe” são aqueles cujo espaço social torna-se exíguo, sendo,
portanto, um excluído.
Em Quincas Borba vemos Palha esforçando-se continuamente para não pertencer a
este lugar. Na verdade ele era um inconformado com seu meio e tornar-se um
excluído seria um doloroso golpe fatal. Diante disso, muniu-se de cautelosas ideias
para que esse mal não o acossasse.
Rubião não era tão inteligente assim. Feliz com a herança e a possibilidade de
uma mudança de vida rápida, não tirou tempo para ponderar a respeito do que fazer
com o que tinha em mãos, sendo uma presa perfeita e fácil para o ambicioso
Cristiano.
Com isso, achando-se incapaz de seguir a trilha do mundo com os próprios pés,
Rubião aceitou fazer parte de um jogo, cujos jogadores o desprotegeria para que ele
continuasse entendendo que fazia parte de uma classe que habitava no solo da
65
pirâmide. E no próprio romance, Machado (1978, p. 83) ilustra o que estamos
discutindo: “Mas o caso particular é que ele, Rubião, sem saber por que, e apesar do
seu próprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professor de Barbacena...”.
Em suma, é imperativo lembrar que o que fez o antigo professor de uma pequena
cidade se coadunar com os ideais de Palha, Sofia e Camacho foi sua despreo-
cupação em refletir sobre tudo o que se harmonizava com sua nova condição.
Ralph Waldo Emerson, citado por Bauman (2004, p. 77) “já advertia muito tempo
atrás, se você está esquiando sobre o gelo fino, a salvação está na velocidade”. Dito
de outra forma, para ser participante das fulgurantes alegrias da sociedade é
necessário entender que é mais que preponderante seguir o seu ritmo, que é um
movimento rápido e incessante.
E não foi preciso muito tempo para Pedro Rubião notar a importância da participação
neste ritmo. Sob a orientação de Camacho, um dos grandes jogadores, rapidamente
se viu dentro de um círculo de vida que achava essencial para uma vida decente.
Assim, Camacho, no afã de transformá-lo em rico, “pusera-o em contato com muitos
homens políticos, a comissão das Alagoas, os bancos e companhias com pessoas
do comércio e da praça, os teatros e a rua do Ouvidor”. Machado (1978, p. 165).
É claro que diante disso saiu do anonimato, ficando bem conhecido. O próprio autor
da narrativa salienta que “quando apareciam as barbas e o par de bigodes longos,
uma sobrecassaca bem justa, um peito largo, bengala de unicórnio, e um andar
firme e senhor, dizia-se que era Rubião um ricaço de Minas”. Machado (1978, p.
165).
66
No panorama da obra machadiana, a opinião muito oportuna de Bauman (2004)
alinha com nossas reminiscências. O autor de Identidade diz que a preocupação
com o agora não permite que reflitamos sobre o futuro e o que ele nos aguarda. O
sentido de eternidade, de valor permanente é quase inconsistente na experiência do
homem contemporâneo. Assim,
dado o seu caráter evidentemente frágil e transitório, tudo que não
seja a sobrevivência do indivíduo parece um mau investimento. Sua
única utilidade sensata é servir à sobrevivência do indivíduo. Seu
gozo e satisfação potenciais são mais bem saboreados e
consumidos imediatamente, na hora, antes de começarem a
esmaecer, como decerto ocorrerá. (BAUMAN, 2004, p. 80).
Embebecidos por essa ideologia o curvar-se diante da velocidade transforma-se em
um golpe fatal, por alijar da condição humana uma racionalidade sustentada pelo
equilíbrio e sensatez.
Raymundo Faoro (2001) falando do papel do sociólogo delega a este não um dever
de revelar a sociedade, mas de desmascarar a presença de uma trama que é de
difícil acesso à vontade humana.
Continuando suas conjecturas, também coloca em pauta a impotência de alguns
atores sociais para reagir diante do “monstro inexorável” que comanda coisas e
homens, mostrando que seus poderes são superiores, portanto, capazes de
esmagar os que a eles se opõem, inflexivelmente.
67
Filho dessa ótica foi nosso herói Rubião. Antes mesmo que ele adentrasse na zona
proibida, batizou-se no delírio e na loucura. A sorte de ser possuidor de grande
fortuna trouxe a ele uma ilusória liberdade.
Uma condição que mascarava sublimamente uma identidade que jamais sublevaria
por não se ajustar aos comandos de um grupo que somente abriria espaço para o
que conferiria a esse, prestígio e acúmulo de bens.
Machado de Assis deixa claro que existe na sociedade uma estrutura que pesa
sobre o destino de seus participantes. E Rubião vivenciou isso: “estava outro,
quando chegou à rua; daí o andar sossegado e satisfeito, o espraiar da alma
devolvida a si própria” Machado (1978) escreveu no romance. E continua: “e a
indiferença com que recebeu o embate do Rubião. se ia a memória dos seus
rapapés; agora o que ele rumina saborosamente são os rapapés de Cristiano
Palha”. (MACHADO, 1978, p. 120).
Como se pode notar, Rubião havia se deixado envolver de tal forma que renegava a
si próprio, vivenciando uma existência ancorada em outra pessoa. O sistema o havia
cooptado e agora vivia sobre a égide dele. Como diz Paul Ricoeur, ele havia se
tornado um receptor vivo do outro. Citado por Maldonado (2001).
E esta perda de identidade torna o homem tão artificial quanto o próprio momento
em que vive. “O espaço, aquele habitado pelos outros, além da própria pessoa é (...)
um espaço artificial”. (MALDONADO, 2001, p. 181).
E esse espaço enunciado por Maldonado, segundo o pensar de Jurg Zutt constitui a
própria consciência. Maldonado (2001). Lugar onde o homem se constitui; em que
pode olhar para dentro de si mesmo e para os outros e adentrar em uma região que
68
o capacita a ultrapassar perspectivas convencionadas e ganhar qualquer outra
dimensão que desejar.
Consideremos, porém, o seguinte:
Além do limite entre espaço interior e exterior, entre nível de
superfície e nível de profundidade, até onde eu chegar ainda sou eu:
porque me estiro, alargo-me, lanço as bases para me reconhecer.
Contrariamente, até onde posso receber (dentro de mim) o mundo,
deformando-o ou reconstituindo-o em minha experiência, torno-me,
descontinuamente, eu mesmo. Assim, diga-se também para o outro,
do momento em que o outro e seu rosto (sua experiência vivida)
configuram-se como mundo-à-parte do meu. (MALDONADO, 2001,
p. 182).
Coincidentemente Maldonado (2001) nos apresenta a figura de um louco. Para ele,
todo espaço que se pode depreender é extremamente dilatado por este. A falta de
consciência o permite romper com todo e qualquer limite dado e assim consegue de
forma bem natural ultrapassar fronteiras.
Na vertente do pensador e crítico não é difícil reconhecermos a presença do homem
contemporâneo. Com esforços sobre-humanos tenciona aventurar-se a participar do
mesmo caminho trilhado pelo louco de Maldonado.
Rubião comprou passes para estar neste bonde. O seu erro, que também é o erro
do homem do nosso tempo, foi andar sem visionar um futuro planejável.
Espacialidade sem direção, incontível é diluitiva, de pouca duração. E uma
experiência semelhante atinge certeiramente o próprio indivíduo.
Com isso, não é difícil reconhecermos que Pedro Rubião foi alvo desta experiência.
Dominado por uma força obsessiva que o incitava a subir mais que depressa na
69
escala social, não se conteve em obter poucas fichas para efetivar o que desejava.
Inconsciente da forma como deveria fazer, uma vez que agora, possuidor de bens,
prestígio e nome deixou-se embalar por ideais que somente fazem sentido quando
entendidos racionalmente e abarcados de maneira equilibrada.
Como se pode notar, esta urgência pela ascensão social foi motivada pelo horror do
juízo social. Uma vez endinheirado, o herdeiro de Quincas não poderia ostentar uma
fachada simples, como a de um professor do interior. Como o dito do próprio
Machado de Assis, usado por nós alguns parágrafos acima, agora Rubião se via
como proprietário e, como tal, necessitava transfigurar sua condição para seus
circunstantes.
Analisando mais cuidadosamente estes fatos, é possível notar como a mudança de
nível social, na maioria das vezes, colabora para cegar o ser humano e o leva a ver
tudo ao seu redor como uma mercadoria a ser consumida, tornando-o, também, em
um objeto de consumo. Mas, vendo por outra ótica, parece óbvio salientar que nossa
sociedade é uma sociedade de consumo, visto que todos precisam consumir para
sobreviver.
Bauman, em seu livro Globalização as conseqüências humanas (1998), traça um
paralelo entre a sociedade atual e a sociedade moderna nas suas camadas
fundadoras. Para ele, a moderna idealizava, por meio de suas convenções, um
homem capaz de consumir, mas também capaz de produzir.
Distintamente da sociedade moderna, a sociedade contemporânea, segundo o
sociólogo, dita, acima de tudo, uma ideologia que faz com que o homem atual seja
apenas um ser consumista. Lógico que tendo como prioridade o consumo, o ser de
70
nosso tempo cria diferenças na forma de ver a cultura e o que é mais preocupante, a
própria vida individual.
Nesse panorama o que impera é a soberania do interesse. Para Cristiano Palha,
Rubião era apenas um objeto com muitos pertences que lhe interessava. E é esse
fato que condiciona toda a linha episódica da narrativa. Flávio Chaves (1974, p. 44)
nos adverte que “a enganosa amizade entre os dois é inteiramente condicionada
pelo sentido do lucro imediato, adquirindo mesmo a característica de “pilhagem
monetária”.
Bauman (1998) risivelmente diz que o que impera hoje é uma segunda ordem que
desbanca o que “até que a morte nos separe”. Dito de outra maneira, ele quis
reiterar que qualquer tipo de compromisso hoje é medido pela temporalidade que,
diante dos fatos e realizações sociais é volátil. Ou seja, não existem parcerias que
não estejam subsidiadas pelo interesse. E o interesse que se pode sublevar aqui, a
priori, é o de ter visibilidade e aplausos sociais.
Para isso, Rubião desfazia do que deveria investir para multiplicar: seu dinheiro.
Merece leitura, por ser um bom exemplo para nossas reminiscências, as próprias
palavras de Machado impostas no capítulo 135 de Quincas Borba:
Rubião protegia largamente as letras. Livros que lhe eram dedicados,
entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos
exemplares. Tinha diplomas e diplomas de sociedades literárias,
coreográficas, pias, e era juntamente sócio de uma Congregação
Católica e de um Grêmio Protestante, não se tendo lembrado de um
quando lhe falaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as
mensalidades de ambos. Assinava jornais sem os ler.(...).
71
No que diz respeito à lógica empreendida pela sociedade hodierna, é imperativo
citar que o desejo de consumir está intimamente ligado aos interesses
supracitados em consonância com uma pretensa satisfação. Sentimento tão
instantâneo quanto o próprio ato de consumir.
Bauman (1998, p. 90) participa dizendo que “a cultura da sociedade de consumo
envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado”. Assim, como professor, não
concebemos Rubião como um ser ignorante. A nosso ver, não tem como um ser que
lecionava ser totalmente cético para as malhas sociais. E diante disso entendemos a
participação de Bauman.
E é o próprio pensador que na mesma página coloca em pauta novamente a
questão temporal. Para ele, o consumo dos membros da sociedade de consumo
pode ser alargado para além dos limites estabelecidos quando “a espera é retirada
do querer e o querer da espera”.
Outro ponto que também não pode deixar de ser citado é a questão da durabilidade
física dos objetos de nosso desejo. Algo hodiernamente sem importância. Vimos que
Rubião assinava jornais (objetos que tem um tempo determinado de um dia) sem os
ler. Os jornais citados por Machado poderiam naturalmente ser uma metáfora desta
instantaneidade que ora discutimos.
Em realidade, a relação entre necessidade e satisfação é modificada: a satisfação
virá a frente da necessidade e será por conta disso, cada vez mais intensa e
sedutora que qualquer necessidade efetiva.
Bauman (1998, p. 90) volta ao assunto dizendo que “para os bons consumidores
não é a satisfação das necessidades que atormenta a pessoa, mas os tormentos
72
dos desejos ainda não percebidos nem suspeitados que faz a promessa ser tão
tentadora”.
Notável também é conjecturar que só se seduz quem quer ser seduzido. Rubião não
era inocente aqui. Ele queria alcançar seus objetivos e para isso permitiu deixar-se
enlaçar pelas malhas de um código que inteligentemente foi manipulado por Palha,
Sofia e Camacho.
Bauman (1998) dialoga conosco dizendo que todos nós temos a oportunidade de
fazer opções, mas nem todos temos os meios necessários para sermos optantes,
pois
como todas as outras sociedades, a sociedade pós-moderna de
consumo é uma sociedade estratificada. Mas é possível distinguir um
tipo de sociedade de outro pela extensão ao longo da qual os de
“classe alta” e os de “classe baixa” se situam numa sociedade de
consumo é o seu grau de mobilidade sua liberdade de escolher
onde estar. (BAUMAN,1998, p. 94).
Essa liberdade de escolha é capaz de fazer distinção entre os da “alta” e os da
“baixa” sociedade e faz com que aqueles deixem sempre estes para trás e jamais o
contrário.
Quer dizer: a palavra de ordem é mobilidade, ou seja, estar sempre em movimento
e, porque não reiterar em uma movimentação cada vez mais acelerada para nunca
ter a sensação de que está atrás de outros. “Estar proibido de mover-se”, diz
Bauman (1998, p. 130) “é um símbolo poderosíssimo de impotência, de inca-
pacidade e dor.
73
O autor do livro The Race of Riches, Jeremy Seabrook, citado por Bauman (1998),
diz que o combustível que fortalece a mobilização da sociedade atual é o “senso de
insuficiência artificialmente criado e subjetivo”. p. 103. Neste pensar, a ideia de
saciedade ou satisfação pode ser um entrave, algo ruim, inaceitável. Ser rico se
torna um objetivo a ser alcançado, visto que a estes é conferido uma respeitosa
visibilidade. E neste ínterim, Seabrook brada: “os ricos se tornam objetos de
adoração universal”.
Esta análise de Seabrook coaduna perfeitamente com a posição de Rubião após
herdeiro de Borba. Logo após o enterro de Freitas (cap. 101), Rubião, que por
ocasião dos atos fúnebres foi o primeiro a arremessar uma pá de terra, a pedido de
todos, foi pegar o coupé. “Ao entrar no coupé, ainda ouviu estas palavras, a meia
voz: - parece que é senador ou desembargador, ou coisa assim...” (MACHADO,
1978, p. 127).
Lançando um olhar no trecho citado acima, percebemos que os consumidores, ou
simplesmente o homem atual é um colecionador de emoções e que sua relação com
o mundo é primordialmente estética.
No conto, O Segredo do Bonzo, selecionado por Gledson (2007), em uma coletânia
intitulada 50 Contos de Machado de Assis”, Machado coloca na boca do
personagem principal as seguintes palavras: “os frutos de uma laranjeira, se
ninguém os gostar, valem tanto como as urzes, e, se, ninguém os vir, não valem
nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não espetáculo sem espectador.”
p. 121. Não tem mais importância o que foi feito, ou o que será feito, mas o que se
pode fazer. A ênfase não recai mais no ser, enquanto possuidor de valores, ideais e
moralismos, mas no dinheiro e em tudo o que este pode realizar.
74
E o primeiro ato que os bens monetários realizam é mudar o que os possuem. Faoro
(2001) diz que o homem é produto do costume construído por uma ordem social,
que de tão efetiva solapa deste sua própria identidade.
Em outras palavras, entendemos que os atos sociais coercitivos condicionam o
homem a agir segundo sua lógica, pois viver fora dela é estar à mercê de
julgamentos depreciativos que revelam fraqueza.
Diante disso, vale a pena ler a própria fala do Bonzo, no conto citado acima:
considerei o caso, entendi que, se uma coisa pode existir na opinião,
a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária
é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão
depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do
favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências.
(GLEDSON, 2007, p. 122).
No profundo mar social a sabedoria do Bonzo torna-se insípida, ou pior, entendida
de forma a beneficiar aqueles que valorizam a opinião em detrimento da realidade.
Em Quincas Borba, Machado delineou o caráter de Cristiano a alinhar-se
perfeitamente de maneira a agir conforme a opinião alheia. No capítulo 35, o autor
revela que Palha frequentava teatros e bailes sem gostar e, portanto, divertia-se
pouco. Na verdade, o que o motivava a participar destas oferendas sociais era o
estar com a corte, ação importante para seus intentos e, também, para mostrar aos
outros sua ventura particular: Sofia. Esta, a princípio, não cedia com muito gosto,
mas tais eram as admirações colhidas que ela acabava gostando de ser vista para
recreio e estímulo de muitos. E Machado reitera: “o uso acomoda a gente às
circunstâncias”. p. 48.
75
Como nos informa o comentário de Machado, diante das atitudes de Cristiano Palha
e Sofia, fica comprovado que as vertentes sociais são tão incisivas que substituem o
prestígio pelo respeito. O que passa a imperar é o homem visto sob a ótica social na
esteira de sua ideologia.
Jacobina, personagem do conto “O Espelho”, também é um exemplo da condição do
homem hodierno, que tem internalizado em seu ser o desejo de pompar uma
aparência que o coloque sobre os pódios sociais, independente de como fazer para
concatenar tal intenção.
Nomeado como alferes da Guarda Nacional, Jacobina sentiu-se vaidoso e superior a
outros que anelavam pelo posto e haviam sido desclassificados. A sociedade (aqui
representada pelos amigos, tia e mãe) chamavam-no de “alferes, alferes, alferes”, o
que o fazia ainda mais vaidoso.
Diante disso, “o alferes eliminou o homem. Foi o falar de Jacobina. “Durante alguns
dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à
outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade”. (GLEDSON, 2007, pp. 157 e
158). E a personagem continua: “a única parte do cidadão que ficou comigo foi
aquela que entendia o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no
passado”. p. 158.
Assim foi com a alma de Rubião, sua ausência de cultura e seu desejo pelas letras
mostra a condição negativa que o impulsionava a ceder aos desmandos sociais sem
buscar qualquer equilíbrio racional.
76
Nos romances machadianos, diz Bosi (2007, p. 21), “desejo e interesse não se
dissociam. A natural candura e a perfeita dissimulação aparecem juntas, quando
necessário e mais de uma vez, no laboratório do analista”.
Helvétius, fonte sempre presente nos escritos do nosso autor, deixou relatado que
“se o universo físico está submetido às leis do movimento, o universo moral está
submetido às leis do interesse; o interesse é, na terra, o mago poderoso que muda
aos olhos de todas as criaturas, a forma de todos os objetos”. Citado por Bosi (2007,
pp. 29/30).
Tendo como parâmetro o pensamento do filósofo, instantaneamente reconhecemos
a participação de Rubião, Palha, Sofia e Camacho na ordem da narrativa, sendo
impulsionados pelo que o pensador diz ser um mago poderoso, mostrando-nos que
a volubilidade é o substrato machadiano para descrever o caráter do homem de
todas as épocas.
3.2 Para Além dos Portais do Tempo: Sociedade de Controle
O cineasta M. Night Shyamalan nos transporta, por meio de seu filme A Vila”, para
um universo criado a partir de um lógica, cuja direção era pensada apenas por seus
dirigentes e obedecida por todos os moradores.
Na história, também escrita por Shyamalan, os membros da Vila vivem em um
século anterior e sobrevivem sem sair dos muros que os circundam, sendo
77
orientados dos perigos que há além do lugar. Como medida de segurança, “os
cabeças” da casta criaram um monstro, que na verdade eram eles mesmos vestidos
com uma roupa especial, para atormentar os moradores.
À primeira vista parece tudo normal e encantador, como se todos vivessem, apesar
dos sustos constantes produzidos pelo “monstro”, em perfeita harmonia e felicidade,
até que dentro da Vila aconteceu o que eles temiam e tentavam evitar: um
assassinato.
Então a história ganha um novo relevo. O que parecia um plano perfeito ganhou
uma película de névoa e dúvidas. Depois disso, é criado por Shyamalan uma
reviravolta que leva o dirigente a autorizar uma jovem, que também é sua filha, a sair
da Vila. E esta, apesar de cega, descobre que o outro lado o é tão assustador
como se idealizava.
O que nos interessa notar na produção do diretor citado é a capacidade de
manipulação de alguns que, estando em uma posição favorável ou porque não,
confortável, se vêem possuidores de um poder que os confere dirimir a vida de
outrem, sem doar a estes qualquer possibilidade de posicionamento.
Numa primeira atenção, o que nos salta aos olhos é o efeito do discurso para a
efetivação de qualquer pretensa manipulação.
No romance machadiano, este foi o primeiro passo de o personagem Palha para a
efetivação da sociedade com Rubião. Percebendo a simplicidade e ingenuidade do
alvo, Cristiano usou de “algarismos, cálculos de lucros, tabelas de preço, direitos da
alfândega” (cap. 69) para atordoá-lo. Para alcançar suas intenções de investimento,
Palha estava disposto a tudo.
78
Flávio Chaves (1974), em linhas gerais, apresenta a linguagem, que é um meio de
comunicação natural, como uma arma de manipulação, capaz de fazer com que o
receptor se torne tão impotente diante de suas cifras que ceda aos mínimos detalhes
que lhes são apresentados.
Com todos esses ditos, é imperativo entender que a estratégia de Palha deu
certo por estar vinculada ao desejo de Rubião de sonhar em vivenciar uma vida de
prazer e de glórias.
Foucalt (2008) no Microfísica do Poder”, argumenta que o poder não pode parecer
repressivo. Se se apresentar assim, quem o abarcará? Para que este seja aceito é
necessário que esteja permeado pelo sentimento do prazer. assim sua extensão
será produtiva. Algo concebido também por meio do discurso. Estratégia infalível
usada por Palha para enlaçar Rubião e levá-lo a aceitar participar do seu jogo.
Em uma visita feita a Sofia, em Santa Teresa, Rubião fora apresentado a quatro
senhoras que estavam sentadas em um banco de ferro. Uma apenas era solteira e
filha de um major chamado Siqueira, que não demorou a aparecer entre elas. Logo
que viu Rubião exclamou: “O nosso Palha me tinha falado em Vossa Excelência.
Juro que é seu amigo às direitas. Contou-me o acaso que os ligou. Geralmente as
melhores amizades são essas”. (MACHADO, 1978, p. 46).
Embora à primeira vista pareça ser uma simples manifestação de simpatia por parte
do Major, vê-se uma orquestração estratégica para levar o nosso expoente a
pensar que ele era alguém especialmente querido. E admirado de tal forma que
participava das rodas de conversa dos amigos de Palha.
79
Note também o uso do superlativo “Vossa excelência”. Possivelmente para o major
ele nada significava, mas para um ser ávido em encontrar seu lugar entre os que ele
achava que tinham uma vida digna, denotava uma consideração e um respeito que
não poderia ser visto como mero acaso.
Em Sequências Brasileiras, Roberto Schwarz (1999, p. 147) nos faz lembrar que
todo esse esforço para realizar os intentos da vontade está assentado no “interesse
capitalista desvelado, que corre às cegas. Também um outro fator que o crítico
não deixa passar impune: “o cinismo com que são adaptadas às circunstâncias (...)”.
não é mais novidade que o interesse era o fator primeiro que move a conduta de
Palha e Rubião e, muito menos que, acoplado a este está o cinismo, em sua mais
sórdida manifestação. Não para negar que Palha era mais inteligente, esperto e
maquiavélico, enquanto Rubião simplesmente agia a sombra daquele achando-se
tão esperto quanto.
O que nos remete à novas análises é o sentido que as operações ideológicas de
Palha faziam Rubião acreditar. Esse achava que Palha, como amigo que se
apresentava sempre, era um ser que construía junto a ele sua nova forma de ser. Na
verdade, Rubião oscila entre a realidade na sua essência e as formas de
representação do real, tornando-se assim, um completo alienado.
Em um estudo publicado por Teresa Pires Vara (1976), intitulado A Mascarada
Sublime”, a autora delineia, por meio de uma visão analítica, a determinação de uma
estrutura-código existente no romance, que a possibilitou investigar vários veis da
obra. Em uma de suas páginas, um de seus saberes combina com o que discutimos
acima. E ela diz o seguinte:
80
Enquanto o ponto de vista de Rubião se volta inteiramente para o
legado, a visão ampliada da grandeza torna relativo o sentido
degradante de sua condição de explorado, vencido, dominado pelas
exigências do amigo; e no momento em que o sentido da exploração
é tragado pela visão da grandeza, o ponto de vista de Rubião,
alienado na riqueza, projeta uma visão limitada do mundo, reduzindo
à sua própria realidade, a realidade que o cerca. p. 39.
impresso no texto de Vara uma ideia da condição controlada, vivida por Rubião,
diante dos mecanismos controladores utilizados por Cristiano Palha. Para facilitar a
compreensão é significativo reportarmos a um diálogo entre Quincas Borba e seu
herdeiro (cap. 6).
Explicando a Rubião sobre o Humanitas, Quincas inseriu na conversa uma metáfora
para explicar a seu amigo como funcionam as ideologias que pululam na sociedade.
Para tanto falou-lhe a respeito da morte e da vida, denominando-as de “expansão de
duas formas” e reitera: “não morte, vida, porque a supressão de uma é a
condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e
comum”. (MACHADO, 1978, p. 21).
Para facilitar a compreensão de tal metáfora, Borba introduziu outra figuração
quando inseriu no diálogo a história de uma guerra, mostrando o seu benefício. O
que em primeira instância parece estranho, ao ser explicitado pelo filósofo, ganhou
um relevo diferente.
Ele coloca em questão duas tribos em guerra. Em meio a este combate existe um
campo de batatas que, invadido, apenas alimenta uma dessas tribos para adquirir
forças suficientes para transpor as montanhas e chegar a um campo onde há
batatas em abundância. Se as batatas forem divididas pelas duas tribos, ambos os
membros morrerão de inanição antes de chegar ao outro campo. A destruição por
81
meio da guerra neste contexto significa sobrevivência. “A paz, nesse caso, é a
destruição; a guerra é a conservação”. (MACHADO 1978, p. 21). O extermínio de
uma tribo por outra significa vitória e alegria. Por isso ele termina esta fala dizendo
que o perdedor merece ódio ou compaixão, mas “ao vencedor, as batatas”.
Para Teresa Vara (1976) a desconstrução da alegoria conferiria a Rubião uma nova
visão da realidade que ora se desdobraria diante dele, mostrando-o que a visão
capitalista é em sua essência superficial e mutável, desnudando a ideia reificada dos
que tendem a dobrar-se sob ela.
Mas Rubião, ouvindo, não entendeu. Uma vez tragado socialmente, permite ser
conduzido, deixando sua alma ser devorada, tornando-se assim uma metáfora do
vencido preconizado por Quincas Borba.
E esta não foi a primeira vez que Pedro Rubião colocou em pauta a vacuidade e a
pobreza de raciocínio que então portava. Em uma conversa anterior a que relatamos
acima, Quincas Borba quis explicar a ele o que era a morte e a vida. Para tanto
contou a respeito da morte de sua avó, como ilustração. Rubião ouviu-o com
interesse e escutava “com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender;
mas não dava pela necessidade a que o amigo atribuía a morte da avó”.
(MACHADO, 1978, p. 20).
Do ângulo complementar, o que existe entre sociedade e indivíduo é, segundo
Schwarz (2000), um elemento inseparável que não deixa espaço para a
transcendência: nada é tão divinal que achar-se superior na concorrência com o
outro. Em suma, o que a sociedade fluminense e consequentemente a nossa
transfigura é seu caráter competitivo, e que todos, sem exceção, estão neste bojo.
82
O pensar de Schwarz explicita que uma vez abocanhado pelas malhas sociais a
capacidade de raciocínio é peremptoriamente alterada, solapando a decência, a
dignidade e até mesmo a moral, e sublevando o egoísmo, embora de forma tão sutil
que não permita ao participante perceber tal capacidade, conferindo ao indivíduo
doutrinas que funcionam como álibi, fazendo que este imagine que suas ações são
naturais, quando são mais que reprováveis.
Para ilustrar esta ilusão, Schwarz (2000, p. 164), explicando o termo Humanitas diz
que esse “é o princípio único de todas as coisas, residindo igualmente nas partes
vencida e vencedora, no condenado e no algoz, de sorte que não perda alguma
onde parecia haver uma desgraça”. Visto desta forma, o Humanitas desdobra para
definir a condição do mundo ao mesmo tempo que defini o próprio lugar do homem.
Como observamos em vários dos nossos desditos, a narrativa se desenrola em
torno da situação típica construída pelo sistema capitalista, que é de dominação, que
controla e deforma, transformando Rubião em um fiel servo de suas colocações.
Aqui cabe o pensar de José Carlos Rodrigues (1975, p. 135), quando explica o
processo controlador que a sociedade incide sobre os indivíduos. E é dele a palavra:
São portanto, essas práticas, ritos que traduzem, para a linguagem
do corpo, toda uma linguagem do comportamento social; ritos que
imprimem no homem uma espécie de consciência visceral do mundo,
altamente codificada, estruturada, rigorosa e socializada, em que as
possibilidades de escolha são limitadas a mínimos parâmetros
porque qualquer liberdade é altamente significativa e põe em risco a
totalidade do sistema de ordenação do mundo
.
A ideia que Rodrigues insere em seu estudo advém de convenções que
naturalmente introjetamos por serem vivenciadas por todos o tempo todo. Ele
83
exemplifica falando de hábitos simples, como lavar as mãos, escovar os dentes ou
espirrar, mas aqui ampliamos este olhar colocando em nossas reminiscências atos
mais voltados ao nosso estudo, uma vez que como os citados por Rodrigues, são
abarcados com a mesma naturalidade.
Reatando com argumentos anteriores, digamos então que, Machado de Assis,
percebendo a falta de solidez da alma humana para com a própria existência, pois
com muita facilidade troca de amores, cria substituições, fusões, montagens,
empréstimos reveste Rubião desta natureza para analisar o que quer ver: os
relacionamentos humanos e o funcionamento das normas perpetradas por estes.
A investigação machadiana leva-nos a entender que a ilusória união fraternal entre
Rubião e Palha causou a loucura do primeiro. A nosso ver, isso aconteceu porque
suas intenções não se coadunavam em todos os aspectos. Rubião, agora um novo
proprietário, queria viver e esbanjar. Desejava por meio do dinheiro, esquecer de seu
passado pobre e desinteressante. Palha era mais astuto. Queria também viver as
regalias que o dinheiro podia proporcionar, mas não esquecia que este poderia
acabar e, portanto buscava incessantemente multiplicar seus haveres.
Nesse contexto, pensar Palha como um exemplo de uma sociedade que controla
para alcançar seus fins é algo mais que provável. De outra forma, ele também pode
ser visto como um sistema de representação que busca, no dizer de (RODRIGUES,
1979), classificar, codificar e transformar suas “dimensões sensíveis em dimensões
inteligíveis” p. 12.
84
Assim, as práticas simples, que citamos alguns parágrafos acima, por serem criadas
e sustentadas pela sociedade, são vistas como naturais e necessárias, tanto quanto
os códigos criados pela própria lógica capitalista.
E envolvidos com estas práticas não percebemos que, uma vez enlaçados por elas,
estamos reforçando “uma estrutura de pensamento a que o comporta-mento
cotidiano está submetido” (RODRIGUES, 1979, p. 135). Isso acontece porque estas
atitudes portam, em si, disfarçadamente, teorias que tem por objetivo alcançar
nossos pensamentos, reificando-nos. Temos aí a confirmação do cinismo e da
inteligência burguesa.
Foucault (2008) relata que “na verdade, nada é mais material, nada é mais físico,
mais corporal que o exercício do poder”. Assim como José Carlos Rodrigues, o
pensador desenvolve sua pesquisa ao funcionamento do corpo em relação as
manobras construídas pelo capitalismo.
Machado de Assis, no romance ora estudado, nos um episódio simples, mas
eficaz para iluminar o que estamos comentando. No capítulo 68, Maria Benedita
consente Sofia a ensinar-lhe francês e a tocar piano. A mãe da moça, preocupada
com os novos ensinamentos resolveu fazer com que o regresso desta à roça fosse
antecipado. Porém, em uma noite, estando Carlos Maria ali, pediu a Maria Benedita
que tocasse algo. Ela ficou vermelha, sendo aliviada por uma fala de Sofia. Depois
disso, mudaram de assunto.
No outro dia, a prima foi ao encontro de Sofia oferecendo-se para aprender “piano,
francês, rabeca e até russo, se quisesse” p. 89. A mãe da menina bradou que não,
mas Palha a persuadiu a aceitar a decisão da filha, uma vez que “por mais
85
supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de
uma educação de sala” p. 89.
Mas o foi cil assim. Maria Benedita acabou ficando com a prima com o
compromisso de ir visitar a mãe em dias pré-determinados e da mãe vir também
visitá-la.
Neste ínterim, Sofia buscava doutriná-la, mas a moça não perdia o gosto pela vida
na roça. A prima a levava em bailes, teatros, saraus e continuou fazendo até que
sentiu que a acompanhante estava se curvando aos engodos da vida na corte.
Logo, Maria Benedita, ao andar pela rua com a prima, via-se lendo tabuletas
francesas e perguntando a Sofia o significado de alguns adjetivos. “A pessoa
ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da
roça” p. 91.
Com este dito final, Machado assinala que o poder é forte. Ele coopta e transforma
porque “produz efeitos positivos a nível do desejo” (Maria Benedita quis aprender
todas as coisas que Sofia se esmerava em ensinar por interesse em Carlos Maria.
Para apresentar-se a ele como alguém desejável). E também a nível do saber, diz
Foucault (2008, p. 148). É claro que é necessário fazer com que o indivíduo sinta
que ele precisa do que es sendo oferecido para que a aceitação possa ser
imediata. Sofia fez isso com Maria Benedita. Palha fez isso com a mãe da moça e
com Rubião.
Na verdade, “somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar
tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos
86
verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos do poder”. Foucault (2008, p.
180).
Desta forma, vemos o indivíduo como sendo o efeito do poder e seu centro de
transmissão. Diante disso, Foucault (2008, p. 183) nos fornece informações
preciosas quando diz que
o poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma
riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas
malhas os indivíduos não circulam mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte
ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em
outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo
elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder
golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou
estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo,
gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos
enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder.
Retomando a questão dos corpos para efetivarmos nosso saber a respeito dos
efeitos de poder dito por Foucault, relembramos novamente do caso Maria Benedita.
Esta, como uma moça pobre, uma vez que era e se denominava roceira, ou como a
própria mãe denominou como alguém que fora educada para viver na roça, tinha
uma utilidade para Sofia.
Uma vez estando Maria Benedita com Sofia na casa de Camacho, encontrava-se
Rubião. (capítulo 69). Sofia trajada de azul escuro e muito decotada começou a
dançar e foi então que Maria Benedita chamou a atenção de Rubião para a beleza
da prima:
87
“- Senhor Rubião disse Maria Benedita depois de alguns segundos de silêncio -
não lhe parece que minha prima é bem bonita?”
“- Não desfazendo da senhora, acho.”
“- Bonita e bem feita.”
“Rubião aceitou o complemento”. (MACHADO, 1978, p. 93).
Neste caso, o corpo de Sofia, sendo sublevado por Maria Benedita funcionava como
um dispositivo de aprisionamento. Mas Rubião não percebia isso. O que para ele era
liberdade, na verdade não se podia ver como tal.
O que se pode notar e que também foi um olhar de Flávio Chaves (1974) é que
Rubião se rendeu a proposta imposta a ele sem questionar ou se opor ao mundo
oferecido. Para nós, o herdeiro de Quincas Borba é uma figura das pessoas que
povoam nossa sociedade, que, amoldando-se à realidade imposta,deixa
transparecer sua marca de ingenuidade.
À primeira vista parece que esta condição é um elemento de fraqueza, mas num
mundo degradado como foi o da sociedade fluminense do século XIX e como tal é o
nosso, estes valores que ora denominamos de degradados se veem como
autênticos.
Um legado que o é dado por alguém individualmente, como diz Foucault (2008),
mas que circunscreve a todos, “tanto aqueles que exercem o poder quanto aqueles
sobre os quais o poder se exerce” (p. 219).
88
Esse parece ser o pensamento subliminar de Machado de Assis, ao construir o
romance. A oportunidade de galgar degraus mais altos na hierarquia social fascina e
faz criar o desejo de alcançá-la, não importando sobre qual vontade. Para Maria
Benedita, seu querer assentava-se sobre a relação que poderia ter com Carlos
Maria. Com Sofia e Palha, esta vontade relacionava-se ao acúmulo de capitais, ao
ostentarem-se ricos e poderosos diante de todos; e, para Rubião tirar a máscara de
antigo professor de uma pequena cidade e ver-se como um poderoso capitalista era
o suficiente para render-se aos desmandos sociais.
Este mundo idealizado por todas estas personagens solapa a alteridade que
possuem. O processo de reificação, regido pelo cinismo dos que o fazem acontecer,
deixa a imagem natural se tornar recalcada “num processo inconsciente de
autodestruição, em benefício de outra imagem copiada que falsifica e nega a
primeira, porque as convenções exteriores foram sublimadas”, Chaves (1974, p. 64),
a tal ponto que faz com que se torne um alvo a ser atingido.
Mas, como diz Teresa Vara (1976), o homem, projetando-se como forma vazia em
busca de si próprio, encontra neste caminho, como prêmio pelo trajeto, a imagem do
vazio e da mudez, abrindo-se novamente para uma outra caminhada que se abre
para outra em um desdobrar-se sem fim.
De fato, é importante frisar que este era o drama de Rubião. Seu caminho foi
palmilhado com ilusões, mentiras e falsas amizades no afã de fazer-lhe confundir o
verdadeiro do falso, o que fez com que sua personalidade se fragmentasse, por
abarcar de maneira eficazmente competente as convenções que o levariam à
confusão, sob a forma de ambições pessoais.
89
Para explicar-nos como tudo isso acontece, nada mais justo que citar um
pensamento de Matias Aires, uma das fidedignas fontes utilizadas por Machado. O
texto foi retirado do livro de Bosi (2007, p. 218) e diz o seguinte:
O homem não vem ao mundo mostrar o que é, mas o que parece;
não vem feito, vem fazer-se; finalmente não vem ser homem, vem
ser um homem graduado, ilustrado, inspirado; de sorte que os
atributos com que a vaidade veste ao homem são substituídos no
lugar do mesmo homem; e este fica sendo como um acidente
superficial, e estranho: a máscara que encobre, fica identificada, e
consubstancial à coisa encoberta; o véu que esconde, fica unido
intimamente à coisa escondida; e assim não olhamos para o homem;
olhamos para aquilo que o cobre, e que o cinge; a guarnição é a que
faz o homem, e a este homem de fora é a quem se dirigem os
respeitos e atenções; ao de dentro não; este despreza-se como uma
coisa comum, vulgar e uniforme em todos. A vaidade e a fortuna são
as que governam a farsa desta vida; cada um se põe no teatro com a
pompa com que a fortuna e a vaidade o põem; ninguém escolhe o
papel; cada um recebe o que lhe dão.
Com efeito, o que Matias Aires nos adverte pode ser visto como um sumário de tudo
que estamos discutindo, pois a sociedade, com suas malhas não poupa a ninguém;
antes trabalha com a consciência de todos, para que suas proposições sejam
assimiladas de tal forma a se tornar uma verdade.
Chaves (1974), comentando sobre esta verdade que ora citamos, diz que ela causa
uma situação de alienação mental. Tal situação causa uma frustração em relação ao
mundo idealizado e degradado, simplesmente porque nos degrada também. Neste
processo, cria-se no indivíduo uma falha na adaptação do indivíduo em relação a
sociedade, passando este a viver uma experiência de estranhamento que o faz
duvidar de si mesmo, não podendo mais atribuir “significações ao conjunto da
existência” p. 68.
90
Então o que resta é a perda da identidade, que em relação a Rubião, se escondeu
nas sombras da loucura e finalmente em morte. Assim, toda sua busca terminou em
vazio, pois não “pegou em nada, levantou nada e cingiu nada”.
Sua condição problemática nos faz pensar em um território que não é somente do
romance, mas que se relaciona à própria condição humana.
91
4. SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS:
A LOUCURA DA RAZÃO METONÍMICA DE RUBIÃO
“(...) provarei que em todo tempo, em todo lugar, em matéria de moral como em matéria de
espírito, é o interesse pessoal que dita o juízo dos indivíduos, e o interesse geral que dita o
das nações, que desta maneira é sempre, tanto da parte do público quanto da dos
indivíduos, o amor ou o reconhecimento que louva, o ódio ou a vingança que despreza.”
Helvétius
4.1 A trama do mundo: Rubião e a armadilha do ideal de ego
Umberto Eco apresenta em Intentio lectores muitos exemplos de desconstrução
apresentados por Derrida. Esses são inseridos no escrito Equiano, não para mostrar
como se interpreta um texto, uma vez que são leituras pré-textuais, mas para deixar
claro o quanto a linguagem produz um número infinito de semióticas. (ECO, 2005).
Esta proposição nos faz pensar em uma infinidade de interpretações que se pode
exarar de um texto, entendendo, obviamente, que esse olhar necessita ser
confirmado por pistas dadas pelo próprio texto.
O mais incrível que se pode constatar, e que foi muito bem delineado por Umberto
Eco (2005), é a condição do texto como algo que em cada linha esconde um
significado oculto, que jamais será descoberto por qualquer leitor, uma vez que esta
habilidade suprimiria do texto sua capacidade infinita de incompreensão, o que nos
leva a levantar diversos tipos de interpretação.
92
Para a percepção de tal tipo de olhar, Eco inclui então a questão do vazio existente
no texto. E é este vazio que nos permite uma participação direta no fazer do autor,
sendo leitores ou pesquisadores. Uma união que cria cumplicidade, uma relação de
amor e dor que constrói formativamente.
Então, todo e qualquer esforço para preencher o vazio do texto se transforma em
uma tentativa vã, pois ao interpretá-lo, sentindo assim que o vácuo foi preenchido,
apenas teremos criado um novo vazio, ou seja, mais uma forma de interpretá-lo.
A opinião dissonante de Eco coaduna com o teor da nossa pesquisa, pois o texto
machadiano é estendido em um caminho onde se pode apreender muitas e muitas
bifurcações.
Com isso, o relacionamento de Rubião com Sofia, Palha, Camacho e os demais
personagens da trama faz-nos adentrar em mais uma dessas bifurcações, pois a
sensibilidade do romance não deixa vidas de que Machado, estando totalmente
sensível à crise social que ora vivenciava, nos permite pensar em nossa própria
crise, simbolizando-a em suas personagens, na cidade do Rio de Janeiro e nos
modos da época.
Luciano Trigo (2001) que escreveu sobre os escritos de Machado de Assis levando
em conta, principalmente, a geografia do Rio de Janeiro como o único cenário para
as histórias do autor, disse que ele era muito mais retratista que paisagista, e
observou que este aspecto da obra do escritor de Quincas Borba não o impediu de
criar um cenário que tivesse uma forte participação em toda a discussão que se
poderia emergir dali.
93
Concentrando-se nesses aspectos, retomamos ao capítulo inicial do romance, onde
o narrador dilata a vida de Rubião dizendo que agora, como capitalista, fitava a
enseada, com “os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande
casa de Botafogo”. (MACHADO, 1978).
Mais à frente, no capítulo 82, ao sonhar com toda a preparação que um casamento
normalmente cria, imaginou, por meio do personagem central, toda uma situação
pomposa e cheia de glória, e para assinalar, com “uma ceia esplêndida. Cristais da
Boêmia, louça da Hungria, vãos de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com as
iniciais do Rubião na gola”. (MACHADO, 1978, p. 106).
Tais referências nos faz constatar que há uma relação muito estreita entre os
elementos que compõem a geografia existente no romance e a divisão de classes
que também existe no texto. Trigo (2001) diz que Machado fazia isso
conscientemente, “transformando o minimalismo paisagístico em princípio estético”
p. 81.
Para justificar tal referência, Luciano Trigo (2001, p. 81) cita algumas linhas do conto
Primas de Sapucaia”, onde Machado diz: “Não me peça minúcias nem preliminares
do encontro. Os sonhos desdenham as linhas finas e o acabado das paisagens”.
Como se pode notar, tudo nas obras de Machado de Assis exala uma atmosfera
social, política e humana. Harold Bloom, (citado por TRIGO, 2001), lançou
recentemente um ensaio que atribuiu a Shakespeare a “invenção do humano”.
Luciano Trigo por sua vez diz que identifica Machado de Assis como nosso
Shakespeare, pois ele teve e cumpriu uma missão similar em relação aos brasileiros.
Machado desenhou nossa maneira de ser com a família, com o outro, de fazer
94
política, de trabalhar e de olhar a vida. E fez com tanta maestria que esta capacida-
de ultrapassou os limites de sua época.
Pensar em tudo que Machado de Assis construiu no século XIX é constatar que
mesmo com toda mudança ideológica e consequentemente com a diversidade
geográfica que emerge a partir desta obra e muitas outras que o acompanham, a
essência do homem continua a mesma, inalterável.
Sendo assim, Rubião poderia sair dos caminhos trilhados por ele, no Rio de meados
do século XIX, para passear nas estradas e avenidas de nosso século, sem causar
estranhamento, mas criando em seus circunstantes uma identificação direta.
Quem, em nosso tempo, não gostaria de ser ovacionado por uma grande
autoridade, após realizar algum feito, como foi Rubião, em seu delírio: “Caro amigo,
aqui estamos”, dir-lhe-ia o conde, no alto; e, mais tarde, a condessa: “Senhor
Rubião, a festa é esplêndida”. (MACHADO, 1978, p. 106).
Experiências como esta idealizada por Machado de Assis mostram que a tragédia de
Rubião foi participar de uma postura coletiva que se enraíza na experiência
individual. Uma estratégia ideológica tão bem definida que faz com que a essência
da tragédia seja vista como um sentido de ordem, como diz Raymond Williams
(2002) pelo qual se entende uma organização da vida que não apenas é mais
poderosa que o homem, mas que também, específica e conscientemente, age sobre
ele.
Neste contexto, Tomaz Tadeu da Silva (2000) faz-nos pensar em sistemas de
significação que são os responsáveis pela busca de formas relevantes de tornar o
“real” presente e de apreendê-lo.
95
O pensador nos leva a entender que a representação se aloja em tudo o que, de
certa forma, participa de nossa existência, pois expressa-se por meio de figuras,
pinturas, filmes, de um texto ou mesmo de uma expressão oral, mostrando que não
tem um caráter mental ou interior, mas exterior e visível.
Como tal, concluímos que ele se denomina como um signo linguístico e cultural e,
como diz Silva, “arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder”
(SILVA, 2000, p.91), ou seja, representar é dizer: identidade é isso, porque quem
tem o poder determina e define a identidade.
Na verdade, o poder se propõe a criar elementos que parecem tão pertinentes para
a vida que se torna uma escolha inteligente fazer parte de suas intenções.
No capítulo 97 de Quincas Borba vemos Rubião construindo sua rede de relações,
tendo como referência ou ideal de ego, o poder simbólico que um Cristiano Palha
procura aparentar ter.
Andando pela rua, sossegado e satisfeito, “lá se ia a memória dos seus rapapés;
agora o que ele rumina saborosamente são os rapapés de Cristiano Palha”.
(MACHADO, 1978, p. 120).
Ou seja, a identidade de Rubião estava atrelada ao sistema de representação que
ora o cooptava, fazendo-o pensar como os outros, também porque não estar ligado
a este tipo de vida significava não se encaixar em um sistema que tinha a primazia,
e ser deixado de lado.
Na extensão desse raciocínio, pensamos como Flávio Chaves (1974) que relata que
o interesse que o poder instaura na própria racionalidade humana reflete, na
96
intimidade, toda a degradação por que passa a sociedade, agora elemento axioló-
gico, internalizado pelo homem.
E isso é tão verdadeiro que Teresa Vara (1976) diz que esta exploração do humano
é mascarada pelo processo de sedução que permite que as ações de Palha, Sofia e
Camacho tenham um caráter velado em meio às transações que empreendem. A
autora diz que a “exploração deste, implica num duplo processo de degradação,
envolvendo não a amizade interessada de Palha e Camacho por Rubião, como
também o sentimento de Sofia” (p. 45).
Sendo assim, Machado de Assis constrói seu romance utilizando uma linguagem
que nos faz ver não apenas um apontamento para a ambiguidade e multiplicidade
do real, mas nos faz atentar para a sua própria contradição.
Na verdade, diz Teresa que
o processo de recodificação da realidade reconstitui a mesma tensão
em que se debate a matriz (Humanitas), oscilando entre a mobilidade
e a imobilidade, entre a limitação do sentido numa forma acabada,
que termina no objeto, e a libertação do sentido no espaço poético,
aberto a uma multiplicidade de configurações possíveis. (VARA,
1976, p. 90)
E assim Humanitas novamente se revelam, ganhando um status de amplitude e
infinitude, revelando os ditos e ações dos homens.
O que se é possível notar também nas linhas machadianas é que o narrador trata
seu interlocutor da mesma forma como a sociedade capitalista trata o indivíduo. O
narrador conduz o leitor como lhe apraz, a semelhança da sociedade supracitada
97
que conduz as pessoas a agirem em conformidade com os seus reclamos.
“Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos
joelhos, e cuidando da bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo meses antes, à
cabeceira do Quincas Borba.” (MACHADO, 1978, p. 17).
O que se pode depreender de tal assertiva é o fato de que a intenção inserida faz
emergir em nós um desejo de reflexão, que nos leva a pensar na sociedade a que
pertencemos e sobre sua condição e, consequentemente, sobre a nossa própria
maneira de estar neste mundo.
Tal assertiva nos assegura a pensar como Karl Marx que se preocupava o em
representar ou explicar o mundo, mas transformá-lo.
À primeira vista parece assustador agir pertinentemente sobre o mundo, ou mesmo
uma ação utópica tendo em vista o caráter dissoluto do capitalismo que se impõe
sem ser solicitado. As palavras de Marx nos leva a sentir que o adianta sair desta
ordem e implantar outra para superá-lo e como diz Roberto Schwarz “a passagem
da crítica à superação mostrou não ser automática, nem óbvia” (SCHWARZ, 1999,
p. 126).
Interessa notar que, à priori, é necessário ter uma visão mais ampla dos estra-
tagemas do poder que pululam na sociedade. Talvez essa capacidade nãocrítica por
parte de Rubião tenha feito que ele se tornasse uma marionete nas mãos de seus
pretensos e ambiciosos “amigos”, transformando-se assim, naquilo que esses
gostariam que ele tivesse se tornado: mais um fio da estopa podre da sociedade.
Em outro escrito (As crônicas de Lélio), Machado de Assis também utiliza a técnica
de conduzir o leitor por meio do narrador enquanto o alerta a respeito de como deve
98
ser e se portar na sociedade. Em um dos trechos do conto ele diz o seguinte: “vejam
os leitores a diferença que entre um homem de olho aberto, profundo, sagaz,
própria para remexer o mais íntimo das consciências e o resto da população”.
(FAORO, 2001, p. 360).
O que nos salta aos olhos ao ler palavras como esta é a sensação do mal que causa
a riqueza, a quem não possui um caráter capaz de mensurar sua influência na vida.
Rubião quanto mais se tornava rico mais reificado ficava. A visão de grandeza fê-lo
limitar sua visão de mundo, alienando-o, fazendo que a realidade que o cercava se
tornasse a sua própria realidade.
Raymundo Faoro (2001) coloca em pauta o poder devastador das relações sociais,
das instituições e da ordem social. Para ele, tudo isso funciona como um gigante
diante do homem, pois é superior a este e então pode agir esmagando-o
inflexivelmente. Parece assustador, mas o que é pior é olhar de soslaio a toda esta
situação, negando-a. O que fazer, então?
Tomaz Tadeu da Silva (org.), em seu livro Identidade e Diferença (2000), traça uma
reflexão que parece iluminar este caminho obscuro. Ele coloca sobre a mesa uma
das muitas estratégias sociais de cooptação do ser: a repetitividade que faz
concatenar as ideologias institucionais na mente de todos. Para que a eficácia de tal
estratégia seja burlada, Tomaz diz que é necessário contestar esse processo.
O indivíduo precisa perceber que ele não é outro do poder, mas o efeito deste poder
e agente de transmissão. Então, o ser necessita entender que o poder é algo que
circula e está em toda a parte e jamais é localizado, tornando seus efeitos ilimitados.
99
Mas somente será relevante contestar as artimanhas do poder quando tal ação fizer
sentido. Quando, por meio de uma visão mais arguta, tivermos ciência dos efeitos
degradantes e devastadores desse poder. É mais que real pensar que “o poder, na
verdade, não se exerce sem que custe alguma coisa” (FOUCAULT, 2008, p. 217).
E nosso herói pagou caro por fazer parte das ideias e das ações deste poder.
Rubião, imerso na malhas que o dinheiro poderia oferecer, mergulhou nas águas do
poder e quando veio à superfície era outro ser: um homem louco.
Esta foi a punição de Rubião por deixar ser guiado por um grupo de pessoas (Palha,
Sofia e Camacho) que funcionava como controladores de suas ações. A respeito
disso citamos Bauman:
Com mais discernimento que muitos dos seus contemporâneos,
Bentham viu diretamente através dos variegados invólucros dos
poderes controladores a sua tarefa principal e comum, que era
disciplinar mantendo uma ameaça constante, real e palpável de
punição; e, através dos muitos nomes dados às maneiras pelas quais
se exercia o poder, a sua estratégia básica e central, que era fazer
os súditos acreditarem que em nenhum desvio de comportamento,
por mais secreto, poderia ficar sem punição. (BAUMAN, 1998, p. 56).
Temos aí uma ação que parece cruel, principalmente por ser perseguido pelo próprio
indivíduo. Sabedor de que é titular de algum poder, o ser social se une ao outro
poder que o embala, tornando-se propagador desse a que seus préstimos não
tenham mais valor.
100
Nesse panorama, Rubião se encerra como alguém que foi servil desse poder que o
sufocou, criou sonhos espúrios e limitados e que -lo pensar que era independente
em meio à dependência.
Para não nos tornarmos vítimas à semelhança de Rubião, Michel Foucault (2008)
ensina como estudar o poder, dizendo que, a princípio, o que devemos atentar é
para a questão de que ele tem intenções que o facilmente assimiláveis, reais e
efetivas. Por isso, esse estudo precisa estar atrelado a uma visão direcionada a seu
objeto, ou seja, precisamos olhar para as estratégias do poder observando seu
objeto de aplicação.
O mais real que se pode depreender de todos esses desditos é que tal desafio deve
ser enfrentado por uma casta que é fragmentada, dividida e desprovida de todo e
qualquer armamento, exceto os elencados, por se intitularem de direito, a ética e os
princípios políticos. (BAUMAN, 2004).
Diante disso acho mais que pertinente inserir em nosso estudo um olhar de Mauro
Maldonato que incrementa o que estamos conjecturando. O pesquisador tergiversa
que
pensar a identidade humana torna-se diferente de pensar na
identidade. Significa antes pensá-la a partir das margens extremas
entre eu e mundo. Dessa posição, em nada neutra, os jogos e as
habituais perspectivas lógicas, como também a compreensão de nós
mesmos em relação às coisas, voltam a erguer-se. Toda uma visão
de mundo volta a ser questionada, toda uma cultura que quis os
seres humanos transfigurados em essências ideais e que em virtude
disso manipulasse, humilhasse, destruísse a si mesmos
.
(MALDONATO, 2001, p.58)
Maldonato nos mostra, à semelhança de Boaventura de Sousa Santos (1987), que o
mundo é complicado e para o ser humano compreendê-lo plenamente é algo ainda
101
mais difícil. Mas não podemos esquecer que não existe consenso nas ciências
sociais, distintamente das ciências naturais, e isso pode dificultar um pouco.
Tal proposição, por mais pessimista que se apresente, não torna o trabalho de
observação e mensuração dos fatos sociais algo impossível. Para tanto, faz-se
necessário reduzir os fatos sociais às suas dimensões externas. Ou seja, estudar o
poder, como diz Foucault (2008), onde ele se implanta e produz efeitos reais.
Algo fácil? Não, visto que todo e qualquer conhecimento que produzirmos será
apenas mais um para ser analisado, testado e mais adiante superado ou, porque
não, eliminado.
4.2. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das
Emergências: as escolhas mesmas de Rubião
Boaventura de Sousa Santos (1987) reza que todo o tipo de conhecimento que
emerge socialmente não é disciplinar, mas temático. Analogicamente explica que os
temas são galerias onde os conhecimentos, ao encontro uns dos outros, progridem.
Tal encontro nos faz pensar em um saber que o se fecha, mas busca outras
interfaces, tendo em vista que seu objeto sempre se dilata. E é o próprio sociólogo
que completa: “o conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico,
sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de
possibilidade” (SANTOS, 1987, p. 77).
102
Então podemos conjecturar que o mundo hodierno produz uma ciência que se
propõe a abarcar uma gama de estilos, dando à ciência um caráter mais
personalizado.
Neste ínterim, concordamos com Boaventura quando diz que a ciência moderna
legou um conhecimento funcional ao mundo. Esse, por sua vez, ampliou nossas
perspectivas de sobrevivência. Diante disso, o caminho que nos é sugerido não é o
que nos conduz a uma mensuração do que é sobreviver ou saber viver, mas o de
buscar outros conhecimentos mais, que não crie uma barreira entre eles e o
pesquisador.
Assim, a pesquisa terá um novo sentido e será bem mais ativa que contemplativa. A
busca de outras formas de pensar precisa trazer satisfação pessoal àquele que a
faz.
Santos risivelmente, assinala que “a ciência moderna produz conhecimentos e
desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado faz do cidadão
comum um ignorante generalizado” (SANTOS, 1987, p.88). O sociólogo chama a
atenção para um fazer científico que ensina pouco a respeito de nosso estar no
mundo. Talvez porque o estar no mundo está atrelado a outros tipos de saberes que
não têm, no olhar de muitos, cunho científico e que, de certa forma, pede para que
este olhar seja valorizado para se alcançar tal entendimento.
A respeito disso, Walter D. Mignolo, em um ensaio publicado no livro Conhecimento
Prudente Para uma Vida Decente (2006), reconhece que, a contemporaneidade
precisa ser pensada a partir da participação conjunta de todas as racionalidades
existentes. Significa que não existe forma de pensar que não tem o direito de entrar
103
no bojo. Por mais assentada no senso comum que este conhecimento possa estar,
ele pode contribuir.
Interessa notar que neste processo pode haver falhas. Não podemos vê-las como
problema, uma vez que a procura de uma direção pode fazer nascer o
totalitarismo. Mignolo diz que “O problema é que não pode haver um caminho, uni-
versal; têm de haver muitos caminhos, pluri-versais”. (SANTOS, 2006, p. 678).
E para endossar o dizer de Mignolo, Maria Paula Meneses, no mesmo livro, salienta
que “todos os conhecimentos são contextuais e são-no tanto mais quanto se
arrogam não sê-lo. Não nem conhecimentos puros, nem conhecimentos
completos; há constelação de conhecimentos. (SANTOS, 2006, p. 735).
E é esse tipo de racionalidade que o conhecimento atrelado ao poder, e que se diz
global, não consegue compreender. Obviamente porque se rendendo a tal pensar,
suas estratégias de dominação tornar-se-ão sem força.
Isso porque, como Maria Paula vaticina, as tendências dominantes tornam-se
dogmas por estarem atreladas a ideologias que, perpassadas pela política e pela
economia, fazem com que o poder continue em seu trono real.
E o desafio, como continua Meneses (2006, p. 752) “é, pois, lutar contra uma
monocultura do saber, não apenas na teoria, mas como uma prática de nosso
estudo, da nossa ação”.
Estando em Barbacena, o personagem Rubião recebera uma carta de Quincas
Borba. Pelo teor desta, o professor percebeu que o filósofo não gozava de uma
saúde mental equilibrada, pois ele dizia ser “Santo Agostinho” e também que ignora
104
a tudo que não fosse sua doutrina “Humanitas”. Nas últimas linhas ainda confiou a
Rubião o legado de cuidar de seu cão que também se chamava Quincas Borba. Na
verdade, o amigo de Quincas não havia entendido o que o pensador estava
comunicando, tanto que perguntou ao médico que cuidara de Borba se havia uma
comunicação reservada na carta que ele ainda não percebera.
O que de curioso se pode notar neste momento vivido por Rubião é que o narrador
do romance diz que pela falta de sanidade mental, Quincas “morria antes de morrer”.
Tal proposição denota que a loucura, por alijar o indivíduo de ganhar voz e de ter
toda ou qualquer visibilidade, pode ser considerada como um falecimento.
De fato, o direito de se posicionar diante das situações sociais, de participar da
dinâmica da vida é e deve ser uma condição de todo o cidadão, seja ele quem for,
independente da situação física ou mental que se encontre.
A verdade é que o louco inserido no romance pode ser um porta-voz de todos
aqueles que são colocados à margem, após serem enlaçados por estratégias de
colonização e manipulação que mostram o caminho em que devem estar. O que nos
leva a pensar que as experiências que não se encaixam na razão do moderno são
deixadas de lado.
Tais preceitos fazem com que as diferenças sejam vistas como participantes do
palco social, com a premissa de que é necessário pensar como todos. Esta
participação não é nada mais nada menos do que a própria colonização.
E é interessante relembrar que esta situação foi vivenciada por Rubião. Achando-se
participante de uma casta em que o prazer, o ócio e a vida regalada, patrocinada
pelo dinheiro, eram o must da época, nosso expoente, ingenuamente, não
105
conseguiu traduzir as artimanhas dos que o envolviam (Palha, Sofia e Camacho),
deixando-se manipular, colonizar, enlouquecer.
Com isso, para que situações de dominação sejam minimizadas, é preciso, no
pensar de Boaventura de Sousa Santos (2006), expandir um olhar às diferenças,
que em seus ensaios ele chama de ausências, considerando o lugar por elas
ocupadas e valorizá-las.
A opinião dissonante de Santos nos faz entender que o que é revelado para a
sociedade como algo que deve ser abarcado por todos é apenas uma entre muitas
experiências. Ele sinaliza que “a experiência social em todo o mundo é muito mais
ampla e variada do que aquilo que a tradição científica ou filosófica ocidental
conhece e considera importante. (SANTOS, 2006, p. 778).
Diante disso, o sociólogo sumariza uma reflexão teórica e epistemológica que é
denominada de sociologia das ausências e sociologia das emergências. A
sociologia das ausências tem a finalidade de valorizar o que é visto como marginal,
levando em conta que tudo faz parte de um todo; e na sociologia das emergências,
ele nos leva a pensar que as experiências que são consideradas marginalizadas
precisam ganhar voz. Desperdiçar a participação de qualquer ente social é lançar
fora uma experiência que possivelmente pode contribuir para a confecção de um
mundo melhor, pois, como diz Hugo Zemelman, “a realidade sócio-histórica tem
significados múltiplos”. (SANTOS, 2006, p. 459).
Depreende-se da análise de Zemelman a colocação de que é preciso posicionar-se
momento histórico por meio de um ato pensante, e não simplesmente como
derivação de uma concepção valorativa ou ideológica.
106
Seguindo aqui, a linha analítica de Boaventura de Sousa Santos (2006), em A
Gramática do Tempo, tendemos a pensar que o paradigma social e político precisa
ser visto para além do capitalismo e para além das teorias e das práticas
arregimentadas pela modernidade ocidental.
O sujeito necessita aprender a lidar com os diversos saberes que pululam na
sociedade, sem que qualquer um destes fique encerrado num conjunto de atributos.
Assim, segundo Hugo Zemelman, é imperativo determinar que
colocar-se perante as circunstâncias consiste em abrir-se ao inédito,
saber pensar a partir do desconhecido, isto é, a partir do que excede
os limites conceptuais, algo parecido com a idéia do acolhimento ou
da hospitalidade de Lévinas no seu desenhar da relação com o outro,
do outro em nós mesmos, mas numa acepção estritamente
epistémica. (SANTOS, 2006, p. 459).
Temos então uma quadro mais amplo de participação social em relação à realidade
que existe. Participar, nesta acepção, significa fazer parte da construção de um
sentido sublevado a partir da capacidade que os sujeitos têm de partilhar e
transformar a realidade social. Trata-se de doar ao sujeito a oportunidade de poder,
no pensar de Zemelman, historicizar suas utopias.
“O momento histórico é uma teia de articulações possíveis”, diz Zemelman in
(SANTOS, 2006, p. 461). Se construirmos o nosso pensar sobre o conhecimento
que colocamos a nossa frente, certamente estaremos auxiliando determinados
sujeitos cujo trabalho é nos colonizar.
107
Nesse sentido, “o mais importante é organizar o conhecimento a partir de certos
desafios do sujeito, como o reconhecimento dos seus espaços de possibilidade”,
Santos (2006, p. 460), ou seja, pensar além do que está convencionado como e,
mais que isso, precisamos romper com os limites de certo tipo de condição cognitiva.
Esta perspectiva endossa a proposição de que é possível o indivíduo construir um
posicionamento a partir de suas próprias ideias, diante daquilo que pretende
conhecer. Não se refere a fazer emergir conceitos fechados, mas preceitos cheios
de questionamentos, capazes constantemente de serem revistos. É como a relação
de um texto com o seu leitor. A riqueza não está nas perguntas que este texto
responderá, mas nos questionamentos que ele fará emergir. Nesse sentido, ser
criativo é ter a capacidade de pensar de forma que nos tornemos agentes de
transformação, pois como diz Hermínio Martins in (SANTOS, 2006) “o mundo social,
o mundo sócio-cultural, é ontologicamente dependente de nós, constituído pelas
nossas ações, crenças e conceitos, embora o encontremos sempre pré-
construído. (p. 407).
O que acontece, porém, é que o paradigma moderno nos torna incapazes de lidar
com aspectos centrais do nosso ser. E assim, minimiza nossa participação diante do
mundo. E mais que isso, este mesmo paradigma, no falar de Carlos Alberto Plastino
in (SANTOS, 2006), se “sustenta no pressuposto da organização racional do real,
definindo o sujeito como racional, lhe atribui a capacidade de se apossar do objeto
através do conhecimento operado pela razão”. (p. 450). Tal ideologia faz com que o
papel das experiências seja desvalorizado, pois coloca em pauta apenas um tipo
exclusivo de conhecimento. E como diz Santos (2006) “nenhuma forma de
conhecimento é em si mesma, racional”. (p. 454).
108
É por isso que Luis Eduardo Mora-Osejo e Orlando Fals Borda, em um ensaio no
livro de Santos (2006) deixam impresso que “todos os conhecimentos são
contextuais e são-no tanto mais quanto se arrogam não sê-lo. Não há nem
conhecimentos puros, nem conhecimentos completos; há constelações de
conhecimentos”. (p. 735). Em linhas gerais, podemos constatar que não para ler
nada isoladamente, pois tudo tem o mundo inteiro dentro.
Reportando-nos ao cenário do romance Quincas Borba, recordamos algumas ações
de Rubião. Logo que recebeu a herança, mudou-se para uma das casas herdadas.
Uma que estava no Botafogo. Para mobiliá-la, Palha acompanhou-o em lojas e
leilões.
Logo após esse fato, num domingo, veio almoçar com ele o personagem Carlos
Maria e Freitas (cap. 29). O empregado de Rubião ofereceu licores e cálices em uma
bandeja de prata.
Situações como as descritas acima mostram que tipo de relacionamento Rubião
empreendia com a nova forma de pensar que havia lhe sido pregada. Endinheirado,
com visibilidade e partícipe das veleidades da corte, via nesse tipo de existência a
única necessária para ser dignamente feliz. Cegado pela vaidade, não enxergava
que estava sendo enganado, ao imaginar que seu futuro dependia de um presente
que precisava ser dilatado para que as coisas pudessem continuar tão boas quanto
estavam.
A respeito disso, Boaventura de Souza Santos (2006) perfilha criando racionalidades
que marcham à contramão do que é convencionado pela modernidade presente.
109
Para tanto ele pensa em uma racionalidade que ele mesmo denominou de
cosmopolita. Esta fase se subsidia em um pensar que tem uma trajetória nova, ou
seja, expandir o presente e contrair o futuro. Para Santos (2006), somente assim
será possível dar voz e valorizar todos os tipos de experiências que existem.
E para se conseguir tal fim, Santos (2006) propõe, para expandir o presente, uma
sociologia das ausências; e para contrair o futuro, uma sociologia das emergências.
Explicita também que para chegar ao lugar determinado por suas reminiscências,
não é possível a partir da criação de uma teoria geral. Seria um retrocesso e uma
contradição de tudo o que imagina, além do entrosamento com a ideologia que rege
e comanda o mundo. Ao invés de uma teoria mãe, Santos promulga uma
racionalização que chama de trabalho de tradução, e explica: “um procedimento
capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis
sem destruir a sua identidade”. (p. 95).
A estratégia de Sousa Santos é mais um caminho a se pensar se não fosse a
indolência de uma razão que ele mesmo critica. O sociólogo português elenca
quatro motivos que geram essa indolência: “a razão impotente”, que não se exerce,
pois pensa que nada pode fazer; “a razão arrogante”, que se achando abastada e
livre não sente necessidade de demonstrar sua liberdade; “a razão metonímica”, que
se atém a apenas um tipo de racionalidade, desprezando as demais, e “a razão
proléptica”, que não se preocupa em pensar no futuro porque se acha sabedora
deste e “o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente”.
(p. 96).
110
Ao estudarmos a razão indolente, que é a que Santos coloca em pauta, concluímos
que ela possui uma verdade o contundente que não como reestruturar
conhecimentos, assim, os interesses hegemônicos são tidos como verdadeiros.
A proposta de Santos para desbancar a razão indolente é desafiá-la. Para isso é
preciso racionalizar. Michel Foucault (2006) tergiversa que precisamos renunciar a
toda uma tradição que prega que o saber somente pode ser desenvolvido fora das
relações de poder. O epistemólogo francês nos adverte que temos que admitir que
saber e poder estão intimamente imbricados. “Que o relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua ao mesmo tempo relações de poder”. (p. 27). E continua
Essas relações de “poder-saber” não devem então ser analisadas a
partir de um sujeito do conhecimento que seria ou ao livre em relação
ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o
sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de
conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações
fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas.
Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que
produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os
processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que
determinam as forma e os campos possíveis do conhecimento.
(FOUCAULT, 2006 p. 27).
A forma de pensar de Foucault se relaciona com a maneira de pensar de Santos. A
partir do pensamento dos dois, entendemos que não podemos ser ingênuos quanto
ao poder que nos circunda e que para desafiá-lo, conforme propõe Boaventura, é
necessário lançar mão de saberes que sejam capazes de competir com estes outros
conhecimentos.
111
Partindo daí, interessa notar que conhecer um pouco mais da razão metonímica e da
razão proléptica pode ser um bom passo para alcançar esse fim.
Pois bem, “não compreensão nem acção que não sejam referidas a um todo e o
todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõem. (SANTOS,
2006, p. 782).
Este tipo de olhar sobre a realidade faz com que ideias de que existe apenas uma
lógica que dita como deve ser o comportamento de todos sejam conscientemente
aceitas. As outras lógicas, neste ínterim, passam a não ter vida própria fora da
relação da que se diz que é a mais pertinente.
Boaventura de Sousa Santos (2006) nos faz levantar um tipo de racionalidade que
subleva não apenas um tipo de pensar, mas a todos os outros em conjunto, uma vez
que todos são formas de racionalização.
Para ele, a lógica que se denomina a mãe é apenas uma dentre muitas outras e é
desta forma que deve ser vista. De outra forma, ela apenas ajudaria a manter um
arsenal de diferenças, que de tão concatenadas já se mostram e todos a vêem como
naturais. (homem/mulher, branco/negro, pobre/rico (...)).
Por isso, “a compreensão do mundo que a razão metonímica promove não é apenas
parcial, é internamente muito selectiva. A modernidade ocidental, dominada pela
razão metonímica, não só tem uma compreensão limitada do mundo, como tem uma
compreensão limitada de si própria”. (SANTOS, 2006, p. 783).
Como nota Boaventura Santos (2006) esta limitação advém da pobreza da
experiência que se constitui pelo fato da razão não abrir espaços para outros tipos
112
de olhares e, também, por não se constituir por meio de uma argumentação
convincente, mas pela imposição.
Tendo como vislumbre a obra machadiana rememoramos toda a trajetória de Rubião
como uma caminhada cujo motivo foi apenas empreendido pela vaidade. Não houve
um pensar a respeito, a não ser o imposto pelo trio que o levou à loucura (Palha,
Sofia e Camacho).
Os três pretensos amigos do herdeiro de Quincas Borba trabalhavam em conjunto
para imprimir nele a lógica de uma vida que se pautava pelos valores que eles
acreditavam. Para tanto, o personagem Camacho, no capítulo 133 do romance, pôs
Rubião em contato com muitos políticos, com várias senhoras, bancos e
companhias, com comerciantes, enfim com toda a sociedade fluminense. Estratégia
de dominação e impostura de uma ideologia que levaria o antigo professor de
Barbacena a ser como eles, até conseguirem expropriar todos os bens herdados
que ele ganhou.
Pode-se notar que em nenhum momento o trio deu espaço para que o personagem
Rubião pudesse pensar de forma diferente, embalando-o em suas ideias sempre
que ele transfigurasse um vislumbre de racionalidade.
E é esta falta de senso de leitura de mundo que Boaventura preconiza como sendo
o principal motivo que leva a razão metonímica a continuar existindo. Assim, Santos
(2006) diz que a dilatação do presente faz com que esta razão seja questionada,
simplesmente porque não se trata de ampliá-la, mas de fazer com que ela se interaja
com as outras.
113
E para entender a proposta de Santos (2006) serão suas próprias palavras que nos
darão um panorama do que propõe.
O que proponho é um procedimento renegado pela razão metoní-
mica: pensar os termos das dicotomias fora das articulações e
relações de poder que os unem, como primeiro passo para os libertar
dessas relações, e para revelar outras relações alternativas que têm
estado ofuscadas pelas dicotomias hegemônicas. Pensar o Sul como
se não houvesse Norte, pensar a mulher como se não houvesse o
homem, pensar o escravo como se não houvesse senhor. O
pressuposto deste procedimento é que a razão metonímica, ao
arrastar estas entidades para dentro das dicotomias, não o fez com
pleno êxito, que fora destas ficaram componentes ou fragmentos
não socializados pela ordem da totalidade como meteoritos perdidos
nos espaço da ordem e insusceptíveis de serem percebidos e
controlados por ela.
(SANTOS, 2006, p. 786)
Tal pensar torna-se bastante relevante por lidar com um tipo de ação exequível. É
imperativo pensar em uma maneira de burlar a estratégia de dominação da razão
metonímica porque, por mais incrível que pareça, apesar desta lógica estar um tanto
desacreditada, ela ainda continua sendo a dominante.
Outra proposta que Boaventura coloca na esteira de nossas reminiscências é o que
ele designa como sociologia das ausências, previamente discutida por nós. Aqui,
Santos (2006) explicita que a ausência que a sociedade comandada pela razão
metonímica reza pode se tornar uma presença, desbancando a lógica que o
produziu.
E a respeito desta produção, podemos, a partir de todos os desditos e ditos
exarados, entender que se deu a partir de uma seleção do que é ou o é
descartável, visível e inteligente. E é óbvio que esta seleção foi empreendida pela
lógica que se diz mãe de todas.
114
Para mostrar-nos como se produz estas ausências, o sociólogo coloca à baila cinco
lógicas que explicam como se formam estas nãoexistências.
A primeira delas é o que ele chama de monocultura do saber e do rigor do saber”.
Então essa “consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em
critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente.” (SANTOS,
2006, p. 787). Assim, todas as coisas que não são aprovadas pela alta cultura o
descartáveis.
A segunda lógica é a que se assenta na monocultura do tempo linear”, ou seja,
pressupõe que a história tem sentido e direção únicos e conhecidos e que esse
sentido e essa direção se relacionam com o progresso e, consequentemente, com o
crescimento, e, portanto, tudo o que não se coaduna com isso é anacrônico.
A próxima lógica é a que Santos chama de lógica da classificação social”. Nesta
lógica a hierarquia social é subleva, criando diferenças. Está pressuposto uma
escala social de valores que fora promulgada pela razão dominante. Segundo
(SANTOS, 2006, p. 103) “a classificação racial e a classificação sexual são as mais
salientes manifestações desta lógica”. Em consonância com esta lógica os
nãoexistentes são vistos naturalmente como inferiores, não tendo crédito em relação
a quem é superior.
Soma-se a essa uma que determina a irrelevância de todas as outras por se achar à
primazia: a lógica da escala dominante. Pelo que vimos por todas as discussões
que empreendemos, não existe nada particular ou local, sendo tudo
interdependente. Mas para a lógica da escola dominante existe o universal e o
global. “O universalismo é a escala das entidades ou realidades que vigoram
115
independentemente de contextos específicos”. (SANTOS, 2006, 788). Desta forma,
tem um lugar mais especial que as outras que necessitam de contextos. Então, a
criação de inexistências acontece no fato de se ver o que não encaixa nesta lógica
como particular, obtendo assim, uma falta de credibilidade ao que existe de modo
universal ou global.
Para terminar, Boaventura nos apresenta a quinta lógica. É a lógica produtivista.
Como o nome sinaliza, ela se assenta na ordem capitalista onde a produção
profícua é o principal fim. Quem não produz torna-se uma nãoexistência para esta
lógica.
São, assim, cinco as lógicas que, subsidiadas pela ideologia da razão metonímica,
criam inexistências. Elas são o resultado do empreendimento de um poder que se
diz maior, que impõe sua forma de pensar e de agir, segregando, classificando e
massificando.
Com necessária cautela, é imperativo analisar que existem valores que precisam ser
considerados em todas essas ausências. É que entra a sociologia das ausências.
Ela visa, “criar uma carência e transformar a falta da experiência social em
desperdício da experiência social”. (SANTOS, 2006, p. 105).
O que o pensador nos faz vaticinar é o motivo que faz com que a gica que rege
tudo tenha um reinado de mais de duzentos anos e poderíamos acrescentar,
pensando no porquê das coisas não estarem melhores e mais ainda no que fazer
para confrontar com tal poder.
Para tal fim, Boaventura de Sousa Santos (2006) acenou alguns olhares pelos quais
chamou de ecologias. Ecologia “é a prática de agregação da diversidade pela
116
promoção de interacções sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas”. (p.
105).
A primeira ecologia é a de saberes. A lógica capitalista prega que o saber científico
tem um lugar mais privilegiado que os outros, valorizando as práticas pensadas por
ele, sendo as outras lógicas vistas como ignorantes.
A ecologia de saberes nos faz ver que todos os saberes têm uma incompletude. Isso
pressupõe possíveis diálogos com outras formas de conhecimento. “O que cada
saber contribui para este diálogo é o modo como orienta uma dada prática na
superação de uma dada ignorância”. (SANTOS, 2006, p. 107). É preciso dar
visibilidade a todo tipo de existência que pulula no espaço social e é por isso que a
ecologia de saberes tem uma lógica que esbarra com a da monocultura do rigor
científico.
A história como tendo sentido único tem sua concepção combatida pela ecologia das
temporalidades. A monocultura do tempo linear deve ser visto como mais uma ideia,
não como a ideia. Pensando assim, passamos a valorizar outras práticas a partir do
conhecimento desta temporalidade, simplesmente pela razão de que suas ações
tornam-se inteligíveis e objetos de disputa política.
Em realidade, o sistema mundial mantém a ideia de hierarquia e pelo que já
pensamos, se continuar havendo uma relação hierárquica na sociedade será
impossível um caminho para uma transformação social.
Depois desta, vem a ecologia dos reconhecimentos que se apresenta contra-
balançando a lógica da classificação social. O que esta ecologia reconhece é que as
diferenças que existem nos espaços sociais o estratégias de dominação de um
117
poder que as criou para não desaparecer. Assim sendo, concatena a ideia de que
diferença é desigualdade, ao mesmo tempo que tem a pretensão e a arrogância de
classificar quem é quem neste processo.
E longe de se ver classificado como um proscrito estava Rubião. Abarcou a lógica da
razão metonímica de forma global. O capitalismo como crença passou a ser seu
dogma e esse como tal ditou as suas ações.
No capítulo 134 do romance analisado, vemos o quanto gastava nosso expoente
para mostrar para os outros que fazia parte de uma classe cuja visibilidade é bem
aparente.
Um dos convivas mais antigos foi ao gabinete dele uma noite. “Ali se guardavam as
caixas de charutos, não quatro nem cinco, mas vinte e trinta de várias fábricas e
tamanhos, muito abertas (...)” outros convidados admiraram seus móveis bem feitos
e bem dispostos”. (MACHADO, 1978, p. 167).
Tendo em vista tais ações, é perceptível o fato de que o personagem Rubião
gastava sem limites. Na verdade, o protagonista de Quincas Borba oscilava entre a
realidade na sua essência e as formas de representação do real.
Notável também é perceber que as ações de Rubião se caracterizavam por uma
situação típica do sistema de dominação capitalista, reduzindo sua visão para com a
real situação que vivia e de que futuro poderia desfrutar a partir daí.
Neste contexto, Marilena Chaui (1994) em seu livro O que é ideologia, nos apresenta
que o real não é um dado intelectual, mas um processo que depende da forma como
os homens se relacionam entre si e com a natureza.
118
Esse relacionar é motivado por ideias. Pensar que, na maioria das vezes, é um
elemento institucional que rege o existir de quase todos nós. Mas algo nestas
ideias que “tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações
sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e
de dominação política”. (CHAUI, 1994, p. 21). A isso, a pesquisadora chama de
ideologia. E é esse elemento que aliena o homem, escravizando-o, fazendo com que
ele haja da forma como eles querem, enquanto acham que está empreendendo
ações autônomas.
Para Rubião, agir da forma como fazia era algo natural devido sua inserção na nova
classe da qual, agora, fazia parte. A respeito disso, Marilena Chauí nos dá um mote:
Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua
classe é uma relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a
Sociedade e o Estado aparecem para a consciência imediata dos
indivíduos com os poderes separados e estranhos que os dominam e
governam, assim também a relação dos indivíduos com a classe lhes
aparece imediatamente como uma relação com algo dado e que
os determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada.
(CHAUI, 1994, p. 77).
Tal explicação nos faz conjecturar que o trabalho ideológico jamais pode ser
considerado como um processo subjetivo consciente. São as relações produzidas
pelas condições objetivas da existência que criam este fenômeno objetivo e
subjetivo involuntário. (CHAUI, 1994).
Em realidade, Rubião se submeteu aos reclamos de sua classe e essa submissão
não o fez reconhecer fazedor de sua própria classe. Assim sendo, é imperativo
tergiversar que os indivíduos não percebem que as atividades realizadas pela classe
são produzidas tendo em vista as atitudes de seus membros.
119
Com isso, entendemos que o capitalista tem uma visão limitada do real e todas as
coisas que toca se tornam relativas ou desumanas. O ex-professor de Barbacena foi
tragado socialmente, tornando-se uma metáfora do vencido, por imergir, invés de
emergir, na razão metonímica de uma casta social, a proprietária, voltada ao
narcisismo de sua improdutiva indolência.
Eis porque a loucura de Rubião não é a loucura enquanto tal, a loucura
diagnosticada por uma medicina ávida em demarcar as fronteiras do normal e do
anormal, mas aquela inscrita em sua bélica filosofia Humanitas, a que tem como
premissa o argumento de que o vencedor deve, por direito divino, apossar-se das
“batatas”. É a loucura, nesse sentido, da monocultura do saber e do rigor de um
saber, em cuja escala dominante, a do vencedor, não espaço para a ecologia de
outros saberes, a do professor que outrora fora, antes da herança. É a loucura da
monocultura do tempo linear, como temporalidade de e para poucos, os herdeiros. É
a loucura da classificação social, que institui, através dos rigores de uma razão
metonímica, o lugar do normal e do anormal. É, enfim, a loucura de uma lógica
produtivista, de fato tão louca por, cinicamente, impor o ócio de uma casta, a
proprietária casta carioca do final do século XIX, como se fora a intriga improdutiva
advinda dos personagens desse cenário de ócio, o lugar da produtividade, da
produção de riquezas materiais e simbólicas.
Aqui a tese de Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do capitalismo (2000),
emerge como inquestionável porque a ideologia ambivalente das elites brasileiras
eis a tese de Schwarz é a loucura da razão metonímica de um mundo em que um
personagem como Palha (por ser tão sem consistência, por se deixar soprar pelos
ventos das escalas dominantes) produza a intriga de uma narrativa, a própria obra
120
machadiana, como a irônica ficção do sequestro do delírio desse antigo professor de
Barbacena, metonicamente voltado ao amor da personagem Sofia, vale dizer, ao
amor de um saber, o feminino, como costela pós-adâmica de um Palha, logo, como
isca das artimanhas de uma cultura patriarcal que é a própria monocultura da
ideologia dominante.
121
ÚLTIMOS PASSOS
“O nariz de Cleópatra: se fosse mais curto, toda a face da terra teria mudado.” Pascal
A extensão da análise que se pode depreender da personagem Rubião não pode
ser medida, levando em conta que no romance Machadiano, este tem um peso
preponderante, pois a narrativa é construída a partir dos atos do herdeiro de
Quincas Borba.
Machado de Assis tem um jeito único de escrever. Ele escreve de forma moderna
em relação à escrita literária de sua época, pois consegue invadir o campo
inconsciente devido ao crescimento cientificista do momento e das influências
transcendentais profetizadas por alguns filósofos. A literatura então ganha uma
análise da realidade semelhante a dos homens da ciência.
Na abordagem da ficção machadiana não se pode esquecer a função ocupada pelas
personagens na estrutura narrativa, diz Chaves (1973, p. 61). Os fatos sociais
pululam em torno desta abordagem e são importantes, pois condicionam a atitude
das personagens. Então, qualquer mudança que se no contexto do romance
pode-se perceber também nas atitudes dos que participam dele.
A constatação de tal pensar se torna patente ao intentarmos para a mudança de
vida e de atitudes experienciadas por Rubião. De um professor simples, de uma
cidadezinha de Minas Gerais, tornou-se um capitalista ocioso e gastão. De um ser
de hábitos ingênuos e simplórios, transformou-se em um cidadão orgulhoso e cheio
de vícios.
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Essas mudanças vivenciadas por Rubião coloca em xeque a vida de todas as
personagens que o acompanham. Flávio Chaves (1973) diz que o romance possui
uma história degradada, e ampliamos dizendo que isso é possível visto que ela é
formada por personagens degradados com ações degradantes.
O crítico volta a esse assunto perfilhando os passos da personagem, nos levando a
pensar que o protagonista do romance Quincas Borba deixou-se envolver pela
ideologia que regia aquela sociedade, de tal maneira que a incorporou à sua
maneira de agir e ao seu modo de ser; “hábitos e costumes, vícios e ostentações,
recalques e ambições”. (CHAVES, 1973, p. 63).
Diante de tais ditos o é muito difícil percebermos que em meio a tantas
vicissitudes, Rubião foi perdendo a capacidade de questionar ou de olhar com uma
visão mais arguta o fim que o poderia surpreender. O que lhe interessava era
adequar-se às demandas sociais, às suas convenções e leis, que não são postas
em nenhum momento em voga.
De fato, esta adequação o impelia à coisificação, pois as leis que regiam a sua
sociedade foram sublimadas de forma tão inexorável que tornaram-se metas,
fazendo com que Rubião seguisse por uma trilha que possuía uma tendência
irrefreável para fazer com que o verdadeiro e o falso sejam sempre confundidos,
assim, fragmentando e diluindo a personalidade do herói.
De fato foi este processo que o levou à loucura. Sua incapacidade de ponderar
denota uma impossibilidade de elaboração da própria dinâmica social. Sua
consciência não era capaz de pensar objetivamente as realidades que o
circundavam.
123
Sendo assim, tornar-se pertinente o comentário de Chaves (1973) que diz que
a situação do alienado mental, abandonado e miserável, deve ser
interpretada como o último termo da investigação frustrada sobre o
mundo que se degradou: a degradação da individualidade. Na me-
dida em que falha o processo de adaptação do “eu” à sociedade
sublimada, a personagem vive a experiência do estranhamento;
passa a duvidar de si, da sua capacidade de ação e realização e,
consequentemente, não pode atribuir significações ao conjunto da
existência. (CHAVES, 1973, p. 68).
Experiências como essa preconizada por Chaves (1973) já havia sido construída por
Machado em outro escrito (O Alienista). Tentar se adequar a uma estrutura reificada
sem mobilizar sua consciência para tal pode fazer com que essa se desmantele.
Raymond Williams (2002) reza que o herói trágico não deve ser isolado, pois suas
ações são e devem ser vista como o coro. O que Williams nos faz conjecturar é que
a degradação e a ruína de Rubião o elementos que fazem parte de toda uma
sociedade. Fatos que não pararam no tempo, existindo sempre, chegando até nós.
Assim, não dá para adequar a assertiva de Camões ao nosso pensar: “Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades”.
Temos a constatação de que o herói trágico, na pesquisa de Williams (2002), é
um indivíduo histórico universal porque carrega junto de si um espírito que é o do
mundo.
E o espírito do mundo é conduzido, não por um acontecimento único, mas por uma
série de fatos, convenções e instituições. Isso nos faz pensar que o sentido de
tragédia está vinculado à ideologia que pulula na sociedade. E Williams (2002)
reitera: “tragédia é, de fato, uma ideologia”. E continua: “o que está em jogo não é o
124
processo que vincula um evento a um sentido geral, mas a característica e a
qualidade intrínseca desse sentido geral”.
No caso de Rubião, a loucura como um evento foi o resultado de uma somatória de
condicionamentos e aceitações. Tudo poderia ter sido diferente, mas as crenças que
abarcou, por meio dos discursos de Sofia, Palha e Camacho não foram contestadas
ou muito menos ponderadas. Muitas vezes, associamos tragédia ao mal, mas a bem
da verdade ela tem muito a nos ensinar sobre muitos tipos de ações.
E o herdeiro de Quincas usou todas as suas forças na busca de um autorealização
que teve como consequência a negação da própria vida, tornando-se um sofredor
por meio daquilo que desejou.
Mas isso não é o que de mais pertinente possui o romance. O que se pode, por fim
salientar, é o fato de que o aparecimento da loucura somente agravou uma tensão
que desdobrando-se numa procura aberta não descobre seu fim, fazendo com que a
narrativa não encontre seu trajeto, pondo em voga sua própria limitação, e esta
limitação associada à narrativa, pode se tornar uma metáfora da própria condição
humana.
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