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MIGUEL TASSINARI DE OLIVEIRA
BEM JURÍDICO-PENAL E CONSTITUIÇÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito das Relações Sociais sub-área
Processo Penal, sob a orientação do
Professor Doutor Marco Antonio Marques
da Silva.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
____________________________________
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Mesmo consciente de que mereciam muito mais,
dedico este humilde trabalho:
À Deus, Nosso Senhor, por tudo que sou e que
tenho, principalmente, por me fazer nascer em “berço de ouro”.
À memória de Maria José Salomon Tassinari, a
querida “Vovó Zezé”, de quem não esqueço jamais e a quem devo os
melhores momentos de minha infância e início de juventude,
principalmente aqueles vividos em Itajubá-MG.
À memória de Carlos Irahy de Oliveira, o
inesquecível “Tio Carlinhos”, Promotor de Justiça incomparável, que
incutiu em mim o amor incondicional pelo Ministério Público do Estado de
São Paulo.
À Sidney Celso de Oliveira e Maria de Lourdes
Tassinari de Oliveira, pais inigualáveis, exemplos de abnegação em favor
dos filhos, por me ensinarem o caminho do bem.
À Luiz Carlos Tassinari de Oliveira, verdadeiro
irmão, que, sem hesitar, se pôs ao meu lado sempre que precisei.
À Heloisa Helena Barros Soares de Oliveira, a
minha “Lena”, eterna detentora do monopólio do meu amor, com quem
constitui a família que tanto prezo e da qual adveio o que de mais
importante para mim, meus filhos.
A Maria Júlia e Miguelzinho, filhos que amo com
intensidade imensurável e que constituem a fonte inesgotável da energia
que me habilita para a luta do dia-a-dia.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Marco Antonio Marques da
Silva, que conhece em profundidade as Ciências Criminais, pela precisa
orientação e constante incentivo.
À Carlos Renato Ferreira Zanini e Célio Silva
Castro Sobrinho, amigos no verdadeiro sentido da palavra, que não
mediram esforços para suprir minha ausência na Promotoria de Justiça de
Itapetininga durante a frequência às aulas e demais atividades do Mestrado.
RESUMO
A presente pesquisa visa delinear os limites
impostos à atividade legiferante no que toca a elaboração de normas penais
incriminadoras.
O fim almejado é alcançado mediante a
formatação de um conceito material de crime, que tem por essência a noção
bem jurídico penal, enquanto bem, valor ou interesse indispensável à
manutenção da vida em sociedade.
O crime se mostra, sob o aludido aspecto material,
como a violação ou a exposição a perigo de um bem jurídico penalmente
tutelado.
A Constituição do Estado é apresentada como
único instrumento apto a revelar os bens jurídicos dignos de tutela penal,
porque é nela que, explícita ou implicitamente, se consagram os bens,
valores ou interesses imprescindíveis à preservação do corpo social e ao
adequado desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. Também
porque se a pena implica a restrição de bem constitucionalmente
consagrado (liberdade ou patrimônio) é razoável, até por uma questão de
proporcionalidade, que seja utilizada como instrumento de tutela de um
bem que igualmente ostente relevância constitucional.
Mas a mera dignidade penal do bem jurídico,
revelada por sua consagração constitucional, não se apresenta como
suficiente para autorizar o legislador ordinário à promover a sua tutela
através do Direito Penal, exigindo-se, ainda, a verificação da carência da
intervenção do Estado por meio da proibição ou imposição de uma conduta
mediante a cominação de pena, o que, em regra, é feito caso a caso pelo
legislador. Em regra porque hipóteses de imposições constitucionais de
criminalização de condutas que afrontem determinados bens jurídicos, nas
quais o constituinte chama para si a incumbência não de proclamar a
dignidade penal do bem como de atestar a carência de sua tutela pelo
Direito Penal.
Analisam-se tais hipóteses de imposições
constitucionais de criminalização, bem como as conseqüências e os meios
de coibir o desrespeito do legislador ordinário a elas.
ABSTRACT
To present research it seeks to delineate the limits
imposed to the make law activity in what plays the elaboration of criminal
laws.
It is reached the end longed for by the formatting
of a material concept of crime, that has well for essence the notion juridical
penal, while well, value or indispensable interest to the maintenance of the
life in society.
The crime comes, under mentioned it material
aspect, as the violation or the exhibition to danger of a juridical good
protected by the criminal law.
It comes the Constitution of the State as only
instrument to be able for revealing the juridical goods worthy of penal
protection, because it is in itself, explicit or implicitly, the goods, values or
indispensable interests are estabilished to the preservation of the social
body and the appropriate development of the personality of their members.
Also because if the feather implicates the restriction constitutionally of well
estabilished (freedom or property) it is reasonable, even for a
proportionality subject, that is only used as instrument of protection of a
good that even shows constitutional relevance.
But the simple penal dignity of the juridical good,
revealed by its constitutional estabilishment, it doesn't come as enough to
authorize the lawmaker to promote his protection through the criminal law,
being demanded, still, the verification of the lack of the intervention of the
State through the prohibition or imposition of a conduct by the threat of
punishment, which, in rule, it is made case to case by the lawmaker. In rule
because there are hypotheses of constitutional impositions of
criminalization of conducts to confront certain juridical goods, in which the
constitucional lawmaker calls for himself the incumbency not only of
proclaiming the penal dignity of the as well as of attesting the lack of her
protection by the criminal law.
Such hypotheses of criminalization constitutional
impositions are analyzed, as well as the consequences and the gears for
cohibiting the disrespect of the lawmaker to them.
BEM JURÍDICO-PENAL E CONSTITUIÇÃO
INTRODUÇÃO 01
1. O bem jurídico como essência do conceito material de
crime
1.1. – Considerações preliminares 05
1.2. – Evolução histórica do conceito de bem jurídico
1.2.1. O iluminismo penal e o conceito material
de crime
12
1.2.2. – O bem jurídico na concepção de Johan
Michael Franz Birnbaum
19
1.2.3. – O bem jurídico no pensamento de Karl
Binding e Franz Von Liszt
26
1.2.4. – O conceito metodológico na visão de Honig 34
1.2.5. – Teorias sociológicas sobre o bem jurídico 37
1.2.6. – O Estudo do Bem jurídico no Brasil 45
1.3. – Conceito e funções do bem jurídico 50
2. – Bem jurídico-penal e Constituição
2.1 – Considerações Preliminares 57
2.2 Concepção Constitucional de Estado, função do
Direito Penal e determinação dos bens jurídicos penais
63
2.3. Princípios constitucionais fundamentais
relacionados à teoria do bem jurídico-penal
66
2.31. Princípio da intervenção mínima:
fragmentariedade e subsidiariedade
69
2.3.2. – Princípio da ofensividade 74
2.4. – Teorias constitucionais do bem jurídico-penal 79
2.5. A constituição como limite negativo do Direito
Penal
81
2.6. – A constituição como limite positivo do Direito
Penal
88
3.– Imposições constitucionais de criminalização
3.1.– Considerações Preliminares 101
3.2.–Determinações constitucionais expressas de
criminalização
109
3.3.–Determinações constitucionais implícitas de
criminalização
121
4. – A questão do controle de constitucionalidade nos casos de
descumprimento dos mandados de criminalização
4.1 Considerações preliminares sobre as formas de
inconstitucionalidade, os sistemas e critérios de
controle, e os efeitos da declaração da afronta à
Constituição
129
4.2. As inconstitucionalidades por ofensas aos
mandados de criminalização e as consequências de sua
declaração
139
CONCLUSÕES 148
1
INTRODUÇÃO
se foi o tempo em que o legislador gozava de
total liberdade para definir as condutas humanas, positivas ou negativas,
que constituiriam o complexo das normas penais incriminadoras.
Os ventos do liberalismo que impregnaram o
movimento da ilustração revelaram a exigência de se estabelecer, a par da
garantia delineada pelo aspecto formal do princípio da legalidade, o
conteúdo das normas penais incriminadoras, de modo a delimitar as
fronteiras do Direito Penal.
Um Estado de Direito Material, que vele
intransigentemente pelos direitos fundamentais, não pode admitir a
utilização do Direito Penal, arma mais forte de que se vale o Estado para o
controle social, de forma indiscriminada.
Estado que adote tal modelo não se satisfaz mais
com a conceituação de crime como sendo tudo aquilo que, através de lei, o
Poder Legislativo descreve como tal. Portanto, não se discute mais a
insuficiência de um conceito puramente formal de crime.
Daí o inevitável estabelecimento de um conteúdo
material para o conceito de crime, consubstanciado na violação ou
exposição a perigo concreto dos bens, valores ou interesses indispensáveis
para a convivência social, sob pena de se admitir uma ofensa injustificada a
direitos fundamentais da pessoa a quem se atribui a prática da infração
penal, eis que a imposição de pena, invariavelmente, acarreta restrição à
liberdade ou ao patrimônio do sujeito ativo do crime, quando não de
ambos.
2
Estes bens, valores ou interesses indispensáveis
para a manutenção da coexistência, chamados de bens jurídicos,
constituirão a essência do conceito material de crime, que, como elementos
antecedentes à formação do Direito e extraídos pelo legislador do meio
social, terão a função de limitar e fundamentar a atuação legiferante no
âmbito penal.
No entanto, considerando que a mera colocação
de tais idéias no campo abstrato seria insuficiente para alcançar o objetivo
pretendido, ou seja, evitar a criminalização de comportamentos que não
constituam, ao menos, um perigo a tais pressupostos de convivência em
comunidade ou a descriminalização daqueles que ostentem tal potencial
lesivo, a proposta do presente trabalho é encontrar, cientificamente, o
caminho para a precisa definição destes bens, interesses ou valores dignos
de tutela penal.
Com a presente pesquisa buscou-se tratar o bem
jurídico penal, enquanto essência do conceito material de crime, em estreita
correlação com a Constituição Federal, apresentada aqui como sua única
fonte.
Foi nosso intento analisar em que medida a
Constituição Federal limita e impõe ao legislador ordinário a atuação no
âmbito penal, bem como ressaltar os métodos que devem ser seguidos por
ele para a individualização dos bens jurídicos que mereçam tutela penal.
E tal limite ou imposição estão estreitamente
ligados aos pressupostos da dignidade penal do bem jurídico, de definição
exclusiva da Constituição, e da necessidade de sua proteção pelo Direito
Penal, cuja verificação, em regra, ficará a cargo do legislador ordinário.
Pretendemos demonstrar no curso da exposição que
a regra da verificação da carência de tutela penal pelo legislador será
excepcionada nos casos das imposições constitucionais de criminalização,
em que o próprio constituinte atesta a dignidade penal do bem jurídico e a
carência de sua tutela pelo Direito Penal, antecipando-se, no que toca a este
último pressuposto, ao Poder Legislativo.
O estudo das teorias constitucionalistas do bem
jurídico se desenvolveu no presente trabalho em subordinação aos
princípios constitucionais ligados à matéria, mais precisamente os da
fragmentariedade, subsidiariedade e ofensividade, derivados da concepção
3
de um Direito Penal de intervenção mínima, tentando demonstrar que
mesmo o enfoque da Constituição como fundamento da atuação
criminalizadora não risca os aludidos postulados.
No entanto, para que se chegasse a tal conclusão,
longo percurso teve de ser vencido, partindo da imprescindibilidade de se
cunhar um conceito material de crime, transistemático e com função crítica,
e que apresentasse o bem jurídico como sua essência, até alcançar as teorias
constitucionalistas do Direito Penal.
E esse itinerário foi percorrido em três capítulos.
No primeiro capítulo, depois de ressaltarmos a
exigência de um conceito material de crime, como limite e fundamento da
atuação legislativa no campo penal, sustentamos a tese de que a essência do
aludido conceito repousa na noção de bem jurídico.
Ainda no primeiro capítulo desenvolvemos detida
análise da evolução histórica do conceito de bem jurídico, desde o
iluminismo penal até as modernas teorias sociológicas do Direito Penal,
trazendo sinteticamente as posições adotadas por Paul Johann Anselm
Ritter von Feuerbach, Johan Michael Franz Birnbaum, Karl Binding, Franz
von Liszt, R. Honig, Knut Amelung, Jürgen Habermas, Günther Jakobs e
Winfried Hassemer.
Em seguida, discorremos sobre o
desenvolvimento dos estudos a respeito do tema encetados por juristas
brasileiros e encerramos o capítulo inicial esboçando o conceito e as
funções do bem jurídico.
No segundo capítulo defendemos a referência
obrigatória à Constituição, que se apresenta como fonte exclusiva dos bens
jurídicos penalmente tuteláveis.
Analisam-se os princípios da intervenção mínima,
do qual decorrem os da fragmentariedade e subsidiariedade, e da
ofensividade, fundamentos de uma teoria do bem jurídico que se assente na
Constituição.
Antes de encerrarmos o Capitulo 2 destrinchamos
as teorias constitucionalistas do bem jurídico, ponto central da pesquisa, em
suas vertentes mais amplas, que conferem à Constituição apenas o atributo
4
de limite negativo do Direito Penal, bem como naquelas mais restritas, que
apresentam a Lei Maior como limite positivo daquele ramo do Direito.
Ato contínuo, no Capítulo 3, desenvolvemos o
estudo relacionado às imposições constitucionais de criminalização, tanto
no que concerne àquelas previstas expressamente na Lei Fundamental
quanto às que decorrem do próprio modelo de Estado adotado
constitucionalmente e de uma ordem de valores estabelecida
hierarquicamente na Constituição, cuja inobservância, que também se
revela na eleição de meios de proteção excessivos ou deficientes, se
apresenta como hipótese de afronta ao princípio da proporcionalidade.
Também aqui, discorremos sobre a questão da
vinculação do legislador às normas constitucionais que veiculam os
mandados de penalização.
Ao final, acrescenta-se ao trabalho um capítulo
destinado à análise de tema instrumentalmente conexo ao objeto do estudo.
No Capítulo 4 se encerra a pesquisa com o
debate relacionado ao controle de constitucionalidade da atuação legislativa
que descumpre as determinações de criminalização, quer mediante a
revogação de leis editadas em obediência aos aludidos mandamentos
constitucionais, quer através do desatendimento de tais mandados, por mera
inércia legislativa. Analisa-se neste capítulo a eficácia prática das decisões
tomadas pelo Poder Judiciário nas ações constitucionais intentadas para
coibir tais comportamentos do legislador maculados pela
inconstitucionalidade.
Embora não se trate de tema inédito, no Brasil ou
no estrangeiro, pois constitui objeto de primorosas monografias, que
encararam o tema sob os mais diversos enfoques, é indiscutível a
importância do estudo, ainda mais no momento em que vivemos, de
proliferação desordenada da legislação penal, decorrente, inclusive, dos
novos riscos nascidos com a modernização da sociedade.
Mais do que nunca, se exige a atenção dos
estudiosos, dos criadores e dos aplicadores do ordenamento jurídico-penal
para evitar tanto uma excessiva e arbitrária atuação legislativa no âmbito
penal, como também uma atuação deficiente que deixa ao desamparo de
proteção idônea bens jurídicos que se revistam de inegável importância
para a manutenção da vida em sociedade.
5
1. - O bem jurídico como essência do conceito material de crime
1.1. Considerações preliminares
Quid est crimen?
É tudo e aquilo que o legislador considera
como tal?
O simples fato do legislador cominar uma pena à
prática de determinada conduta indesejada é suficiente para transformá-la
em criminosa?
Ainda que se reconheça que tais indagações foram
respondidas afirmativamente durante um longo lapso temporal no curso da
história, mais precisamente durante todo o período em que vigoraram as
concepções do positivismo legalista
1
, é inevitável a conclusão de que, no
atual estágio do desenvolvimento do Direito Penal, não se admite mais um
conceito puramente formal de crime.
Se é certo que a aludida concepção estritamente
formal de crime, que concebia como tal todo e qualquer comportamento
proibido pelo legislador mediante descrição típica e cominação de pena, era
perfeitamente compatível com as características políticas e metodológicas
próprias de um Estado de Direito, meramente formal e individualista, não é
menos verdadeiro que um Estado Democrático de Direito, como aquele em
que se constitui a República Federativa do Brasil
2
, que, acima da mera
legalidade formal, busca a realização de justiça material, não pode
compactuar com visão tão simplista da questão.
1
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 106.
2
Artigo 1°, “caput”, da Constituição Federal.
6
É evidente que tal assertiva não busca menoscabar
da relevância fundamental ostentada pelas garantias formais derivadas do
conceito de Estado de Direito, principalmente no que concerne ao princípio
da legalidade
3
, pilar de sustentação da segurança jurídica e da liberdade
individual.
Pelo contrário, o que se busca é a
complementação de tais garantias mediante a vinculação do Estado a
obrigação de realização de justiça material.
Jorge de Figueiredo Dias nos lembra de que o
princípio nullum crimen sine lege está político-criminalmente fundado e
integra a específica teleologia do sistema
4
.
No mesmo sentido sustenta Claus Roxin a
necessidade de “partir da tese de que um moderno sistema jurídico-penal
deve estar estruturado teleologicamente, ou seja, construído atendendo a
finalidades valorativas”
5
.
Nestes termos, é necessário concluir que a decisão
do legislador penal de criminalizar determinada conduta deve estar
orientada pela finalidade legítima que o Direito Penal deve desempenhar na
sociedade.
É indiscutível que a pena é a sanção mais severa
contida no ordenamento jurídico, pois restringe direitos fundamentais do
sujeito ativo do crime, dentre os quais a liberdade e o patrimônio.
3
Ademais, Alberto Silva Franco salienta que dentre as garantias derivadas do princípio da legalidade,
encontra-se a criminal, consistente na exigência “de prévia descrição, sem cláusulas gerais ou conceitos
porosos ou, mesmo indefinidos, de uma conduta humana lesiva (ou que ponha em perigo) a bens de vital
importância para a vida societária ou para o pleno desenvolvimento da pessoa humana”. Prossegue o
aludido mestre asseverando que “o princípio da legalidade (...) não se exaure, contudo, na sua dimensão
formal. O conceito material de crime não está superposto à área de significado do princípio da legalidade,
como se fosse verso e reverso da mesma moeda”. Agora com base no pensamento de Jorge de Figueiredo
Dias (Questões fundamentais do direito penal revisitadas, São Paulo: RT, 1999, p. 55.) continuidade à
sua linha de raciocínio mencionando que “o crime, na sua angulação material, não pode, portanto, ser
confundido com o fato punível, não permite identificar ‘quais as qualidades que o comportamento deve
assumir para que o legislador se encontre legitimado a submeter a sua realização a sanções criminais’. O
conceito material do crime traz, portanto, à colocação do problema da função e dos limites do Direito
Penal, conduzindo à formulação de um questionamento que se situa exteriormente ao próprio
ordenamento penal legalmente constituído e que permite determinar as características materiais da
conduta criminosa e das conseqüências jurídicas dela decorrentes, além de estabelecer os limites do
Direito Penal diante de outros controles sociais formais”. Franco, Alberto Silva. Crimes Hedionodos, p.
53/54.
4
Dias, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais, p. 36.
5
Roxin, Claus. Derecho Penal, § 7 nm. 51, p. 217.
7
Janaína Conceição Paschoal ainda nos lembra de
que, fora a liberdade, o Direito Penal ainda priva o sujeito ativo da infração
penal de outros interesses que lhe são caros, como o convívio familiar e os
direitos políticos, além de submeter seus parentes mais próximos a
restrições financeiras derivadas do encarceramento daquele a quem cabe a
manutenção do lar
6
.
Em razão de tais circunstâncias, a pena deve ser
reservada àqueles fatos que ofendem de forma mais intensa as condições de
sobrevivência em sociedade.
Afinal, Francesco Carrara
7
apontava a tutela
jurídica como a principal razão de ser da pena.
O jurista italiano apresentava o delito como ente
jurídico e advertia que não se confundiam objeto do delito e objeto da ação,
eis que o mesmo não é punido como fato material, mas como fato jurídico.
Afirmava Carrara que “a ação material terá por objeto a coisa ou o homem;
o ente jurídico não pode ter por objeto senão uma idéia, o direito violado,
que a lei protege com sua proibição”
8
.
Assim, apenas estes fatos que transgridem de
modo mais grave aqueles pressupostos mínimos para a manutenção do
corpo social e das condições indispensáveis para o regular desenvolvimento
da personalidade de cada um de seus componentes poderão ser adjetivados
de criminosos.
Nesta linha de raciocínio, Hans-Heinrich Jescheck
afirma que “todas as normas jurídico-penais estão embasadas em um juízo
de valor positivo sobre bens vitais que são imprescindíveis para a
convivência das pessoas na comunidade e que, por isso, devem ser
protegidos através da coação estatal mediante o recurso da pena pública”
9
.
Essas condições indispensáveis à convivência em
sociedade e ao desenvolvimento adequado da personalidade de cada
cidadão são chamadas de bens jurídicos, que, na precisa visão de Claus
Roxin, constituem “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias
6
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 25.
7
Carrara, Francesco. Programa de Direito Criminal, p. 36.
8
Idem, §§ 35 e 36, p. 56/57.
9
Jescheck, Hans-heinrich e Weigend, Thomas. Tratado de Derecho Penal – Parte General, p. 7/8. “Todas
las normas jurídico-penales están basadas em um juicio de valor positivo sobre bienes vitales que son
imprescindibles para la convivencia de las personas em la comunidad y que, por ello, deben ser
protegidos a través de la coacción estatal mediante el recurso a la pena pública”.
8
para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis
de cada um na sociedade ou para o funcionamento do sistema estatal que se
baseia nestes objetivos”
10
.
Eugênio Raul Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli, percorrendo um caminho bem mais longo para chegar à mesma
conclusão, explicam que “o direito é um instrumento de viabilização da
existência humana, entendendo por existência, em poucas palavras, a
relação de cada homem com o seu ser, isto é, a escolha que cada qual faz
do que quer ser e chegar a ser, assim como a realização desta escolha. A
existência humana o pode ser senão na forma de coexistência, de existir
com outros que também existem. O asseguramento das existências
simultâneas (coexistência) se cumpre com a introdução de uma ordem
coativa que impeça a guerra de todos contra todos, fazendo mais ou menos
previsível a conduta alheia, no sentido de que se absterá de condutas que
afetem entes que se consideram necessários para que o homem se realize
em coexistência, que é a única forma em que pode auto-realizar-se. Estes
entes são os bens jurídicos ou direitos. A função de segurança jurídica não
pode ser entendida, pois, em outro sentido que não da proteção de bens
jurídicos (direitos) como forma de assegurar a coexistência”
11
.
O bem jurídico, portanto, apresenta-se como a
essência do conceito de crime, permitindo a sua definição material, que
servirá de limite e fundamentação da intervenção punitiva do Estado.
Jorge de Figueiredo Dias salienta que quando se
pergunta por um conceito material de crime procura-se uma resposta, antes
de tudo, à legitimação material do direito penal, isto é, à questão de saber
qual a fonte de onde promana a legitimidade para considerar certos
comportamentos humanos como crimes e aplicar aos infratores sanções de
espécie particular”
12
.
Portanto, sob o enfoque material, o crime pode
ser visto como a violação ou a exposição a perigo de um bem jurídico
penalmente tutelado.
Por isso, Alberto Silva Franco deixa claro que
“embora o conteúdo do conceito de crime tenha sido analisado sob diversas
perspectivas, prevalece, na atualidade, a perspectiva teleológica-funcional
10
Roxin, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. p. 18/19.
11
Zaffaroni, Eugênio Raúl e Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal, p. 86.
12
Dias. Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 106.
9
pela qual ‘o conceito material de crime é essencialmente constituído pela
noção de bem jurídico dotado de dignidade penal’(...)”
13
.
Fatos que não ostentem ao menos esta
potencialidade lesiva de um bem jurídico jamais poderão ser
criminalizados.
Ademais, Luiz Regis Prado observa que “na
atualidade, o postulado de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a
um bem jurídico não encontra praticamente oposição, sendo quase um
verdadeiro axioma – princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos”
14
.
De outro lado, é importante lembrar que a aludida
definição material de crime deve revelar um conceito transistemático, ou
seja, que se encontre fora do direito positivo, mesmo porque, enquanto
responsável pelo desenho das fronteiras que circunscrevem o Direito Penal,
constitui padrão crítico do direito legislado e daquele a se constituir.
Destinado a legitimar e limitar a intervenção
penal do Estado, o conceito material de crime deve apontar ao legislador as
matérias passíveis de criminalização e aquelas que devem permanecer
distantes da repressão penal.
Nesta linha de raciocínio, em que se concebe o
bem jurídico-penal como essência do conceito material de crime, Maurício
Antonio Ribeiro Lopes o aponta como identificador de objetos concretos de
tutela penal
15
.
E não é de hoje que se busca um padrão crítico,
transistemático, que possa servir de norte ao legislador penal. Note-se que,
ao cunhar um conceito natural de crime, ao seu tempo, Rafael Garófalo
ostentava tal intenção
16
.
13
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 55.
14
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 31.
15
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito Penal, p. 287.
16
Dizia Garófalo “que o elemento de moralidade necessário para que a consciência publica qualifique de
criminosa uma acção, é a ofensa feita á parte do senso moral formado pelos sentimentos altruístas de
piedade e de probidade não, bem entendido, á parte mais commum, á que se considera patrimonio
moral indispensável de todos os individuos em sociedade. Essa ofensa é precisamente o que nós
chamaremos de delicto natural” (Criminologia, p. 59). A definição de Garófalo, apesar de ter dado seu
contributo a política e a dogmática criminal, recebeu severas críticas da doutrina, que apontavam a
impossibilidade de forjar um conceito universal de crime, sem que se considerasse o aspecto histórico, ou
seja, sem que fossem observadas as condições sociais, econômicas e culturais de cada sociedade. Sob este
aspecto, Maria da Conceição Ferreira da Cunha ensina que “apesar das tentativas feitas para se encontrar
um conceito natural de crime, apesar de eventuais “constantes” (ou “constantes evolutivas”, se assim
pudermos designar), a definição dos bens jurídicos penais depende sempre das condições sociais,
10
Jorge de Figueiredo Dias recorda “que na mesma
linha se poderá referir a construção posterior de Durkhein que, todavia,
começando por determinar os sentimentos cuja violação constituiria o
crime não em termos de comunidade civilizacional, mas nos parâmetros
mais circunscritos de uma formação social concreta, politicamente
organizada, acabava por abandonar a tentativa de determinação material
dos sentimentos violados e por optar por uma sua caracterização formal:
serem comuns à consciência coletiva, fortes e precisos
17
.
Mas não basta o estabelecimento de um conceito
vago de bem jurídico, de forma meramente abstrata, como até agora se fez,
para que a definição material de crime alcance sua finalidade de limitação e
fundamentação do poder punitivo estatal.
A questão maior, no entanto, é a fixação concreta
dos critérios pelos quais se deve proceder a seleção dos valores sociais
indispensáveis para a vida comunitária e que, portanto, merecerão tutela
penal.
Quais são esses valores fundamentais? Como se
deve proceder a seleção dos mesmos?
Maria da Conceição Ferreira da Cunha assevera
que “é inquestionável que criminalizar ou descriminalizar implica juízos de
valor. que, todo o labor em torno de um conceito de bem jurídico com
sentido crítico, teve sempre em vista reduzir o campo de arbítrio ou, talvez
melhor, de subjetivismo do legislador, limitando-o por um critério
simultaneamente legítimo e eficaz
18
”.
Este limite legítimo e eficaz ao legislador de que
nos fala a autora aparecerá mediante a concretização da referida noção
abstrata de bem jurídico, o que deve se dar através de um instrumento
mediatizador, que, na ótica da doutrina majoritária, à qual aderimos neste
trabalho, só pode ser a Constituição.
econômicas e culturais, do ambiente valorativo de cada sociedade, em cada época histórica. Os valores
essenciais para o Homem (e são estes de que o Direito Penal se ocupa), podendo embora apresentar algo
de comum, não dúvida de que variam com o tempo e o lugar; assim, o crime terá de ser,
necessariamente, histórico-espacialmente situado. O tipo de criminalidade modifica-se no espaço e no
tempo, em qualidade e em quantidade.Tal é condicionado pelo contínuo fluir, sobrevir e pela
configuração das modalidades e das formas sociais e estruturais” (“Constituição e Crime” Uma
perspectiva da criminalização e da descriminalização, p. 14/16).
17
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 108.
18
Cunha, Maria da Conceição Ferreira. “Constituição e Crime” – Uma perspectiva da criminalização e da
descriminalização, p. 110/111.
11
uma indissolúvel relação entre bem jurídico-
penal e Constituição, apresentando-se esta como única fonte daquele, em
uniformidade com as exigências de um Estado Democrático de Direito.
No entanto, para que a teoria do bem jurídico
alcançasse tal patamar de evolução foi necessário percorrer um sinuoso
caminho, marcado por progressos e retrocessos.
Com base em tal constatação e acentuando a
abstração do conceito de bem jurídico, Manuel da Costa Andrade nos alerta
que “a impressão que a história do bem jurídico deixa é a de um processo
em espiral ao longo do qual se sucederam fenômenos de revolução no
sentido etimológico (revolutio) de retorno ao que se julgava
irrepetivelmente abandonado. Não menos vincada é a impressão de
extrema liquidez e mimetismo do conceito, capaz de assumir os conteúdos
e desempenhar os papéis aparentemente mais irreconciliáveis e
antinômicos
19
”.
Deixando mais clara a sua constatação no sentido
de que as teorias formadas em torno do bem jurídico no curso de sua
história conferiram a ele os mais diversos significados, muitos deles
evidentemente contraditórios, Manuel da Costa Andrade diz que “ se
definiu o bem jurídico como de índole extra-jurídica e, a par disso, como
conceito puramente jurídico; como puramente espiritual e imaterial e, a par
disso, como meramente empírico-naturalista; como entidade
consistentemente substancial ou como essência puramente relacional; como
imanente ao sistema e acrítico e, simultaneamente como transistemático e
crítico; como de sentido liberal, garante da liberdade e da tolerância, e
como fundamento da criminalização e, mesmo, como instrumento de
legitimação do direito penal mais totalitário”
20
.
É o que restará delineado através da digressão
histórica que adiante se verá.
19
Andrade, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia, p. 391.
20
Idem, p. 391.
12
1.2. – Evolução histórica do conceito de bem jurídico
1.2.1. – O iluminismo penal e o conceito material de crime
Embora historicamente a criação do termo bem
jurídico seja atribuída a Johan Michael Franz Birnbaum, foi Paul Johann
Anselm Ritter von Feuerbach o primeiro penalista a limitar o âmbito de
intervenção do Direito Penal.
Ainda que, no período iluminista, não se veja
empregar o termo “bem jurídico”, que só aparece no século XIX, conforme
faz consignar Sina, “houve uma linha directa que conduziu das idéias
liberais do Iluminismo ao conceito de bem jurídico”
21
.
José Cerezo Mir esclarece que “os filósofos da
Ilustração ao criticarem as instituições políticas do Antigo Regime, da
Monarquia absoluta, haviam assentado as bases do Direito Penal
moderno”
22
.
Opondo-se às arbitrariedades praticadas durante o
período do absolutismo monárquico a pretexto de realização de justiça
penal, o Iluminismo Criminal, representado, dentre outros, por Paul Johann
Anselm Ritter von Feuerbach, lançou a semente do conceito de bem
jurídico, estabelecendo limites ao ius puniendi, mediante a formatação de
um conceito material de crime.
Sob o aspecto material, identificava-se o crime
como a lesão a um direito subjetivo do indivíduo ou do Estado, afastando-
se da proteção penal a moral e a religião
23
, quando a ofensa a estas não
21
Sina. P. Dogmengeschichte des strafrechtlichen Bergriffs, “Rechtsgut”, 1962, p. 89, apud Roxin, Claus,
Problemas Fundamentais de Direito Penal, p. 61.
22
Mir, José Cerezo. Curso de Derecho Penal Español, Parte General, Volume I, p. 82. “Los filósofos de la
Ilustración al criticar las instituciones políticas del Antiguo Régimen, de la Monarquia absoluta, habían
sentado las bases del Derecho penal moderno.
23
Ao assegurar que a noção de progresso racional da humanidade é característica marcante do
iluminismo, Danilo Marcondes escreve que este movimento de pensamento europeu, em contrapartida,
busca identificar os elementos que impedem este progresso, dentre eles a religião, que subordina o
homem a crenças irracionais e a uma autoridade, a Igreja, baseada na submissão e nas superstições.
13
provocasse, simultaneamente, a violação de um interesse da pessoa ou do
ente estatal.
Em caso de violação de um direito subjetivo do
Estado teríamos um delito público (delictum publicum). Ao contrário, se a
lesão atingisse um direito subjetivo individual, caracterizado estaria um
delito privado (delictum privatum).
Segundo Paul Johann Anselm Ritter von
Feuerbach, “quem ultrapassa as fronteiras da liberdade legal, comete a
violação de um direito, uma ofensa. Quem viola a liberdade garantida pelo
contrato social e garantida pelas leis penais comete um crime. Em sentido
amplo, crime é, assim, a ofensa sancionada por uma lei penal, uma ação
que contraria o direito de outro
24
”.
Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach deixa
claro através de seu pensamento que a única finalidade perseguida pelo
Estado com a imposição de uma pena é a tutela da liberdade e jamais a
defesa da moralidade.
Sinteticamente é possível concluir que seu
pensamento delineia os marcos que separam o Direito da moral, o Direito
da religião e o crime do pecado.
Afinal o Estado deve intervir para a tutela da
liberdade no exercício de direitos subjetivos e não para a proteção da moral
ou da religião.
Neste período, liberta-se o Direito Penal da
influência do Direito Canônico, garantindo-se a liberdade religiosa.
A este respeito, Luiz Regis Prado consigna que
“na filosofia penal iluminista, o problema punitivo estava completamente
desvinculado das preocupações éticas e religiosas; o delito encontrava sua
razão de ser no contrato social violada e a pena era concebida somente
como medida preventiva”
25
.
Prossegue o aludido autor mencionando que “o pensamento iluminista é assim fortemente laico e secular,
e até mesmo, em alguns casos, abertamente anticlerical” (Iniciação a História da Filosofia, p. 202).
24
Feuerbach, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal, p. 55. “Quien excede los limites
de la liberdade jurídica comete uma lesión jurídica o injuria. El que lesiona la liberdad garantizada
por el contrato social y assegurada mediante leyes penales, comete um crimen. Por ende, crimen es, em
el más amplio sentido, uma injuria contenida em uma ley penal, o uma acción contraria al derecho del
outro, conminada em uma ley penal”.
25
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 28.
14
Inclusive, ao elaborar o Código Penal da Baviera
(1813) Feuerbach externa de forma clara tal ponto de vista, deixando de
criminalizar condutas imorais como a heresia, a blasfêmia, a bigamia e o
incesto
26
.
Na mesma esteira, com o idêntico propósito de
distanciar da intervenção penal legítima aquelas condutas que se limitam a
afrontar a moralidade ou a religião, Hommel, outro representante do
período do Iluminismo Penal, assegurava que “o jurista e o político que
pensa por si mesmo não deve deixar-se influenciar, através de práticas
morais e palavras sonantes, pelo erro de procurar a magnitude do crime em
algo que não seja única e exclusivamente o dano que do mesmo resulta
para a sociedade
27
”.
Cesare Beccaria, outro expoente do século das
luzes, também não se afasta desta linha de pensamento quando apregoa que
“as penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito de
salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão
quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o
soberano conserva aos súditos
28
”.
As idéias penais iluministas, inspiradas na
filosofia de Hegel
29
, concebem a pena como o mal que anula aquele
malefício causado pela violação de um direito subjetivo individual ou do
Estado, ou seja, pela prática do crime.
26
Muito embora Feuerbach tenha deslocado tais infrações para o campo das contravenções de polícia.
Aliás, no artigo 2 daquele Estatudo Feuerbach deixa expressa a diferença entre crimes, delitos e
contravenções de polícia. “Art. 2 [B. Distinción entre crímenes, delitos y contravenciones de polícia]
Las acciones punibles pueden ser crímenes, delitos o contravenciones de policía. Todas las lesiones
jurídicas dolosas que, por calidad y cantidad del mal del hecho, se conminen com pena de muerte, pena de
cadena, pena de presídio, pena de casa de trabajo, pena de fortaleza, com pérdida de función o declaración
de incapacidad para todas las dignidades funcionales estatales y honoríficas, se llaman crímenes. Por
delitos se entenderán todas las lesiones jurídicas no dolosas, como también las dolosas que, por su escasa
punibilidad, sean castigados com prisión, castigo corporal, multa y otros males menores. Las acciones u
omissiones que, pesa a no lesionar em si ni por si mismas, derechos del Estado o de um súbidito, pero que
se prohíban o penen por su peligro para el orden y la seguridad jurídica, como también las pequeñas
esiones jurídicas cuya investigación y punición se transfiera por leyes especiales a las autoridades de
policía, se llamarán contravenciones de polícia” (Tratado de Derecho Penal, p. 335/336).
27
Notas de Hommel ao texto de Beccaria, p. 49 da reedição, apud Roxin, Claus. Problemas Fundamentais
de Direito Penal, p. 60.
28
Beccaria, Cesare. Dos Delitos e das Penas, p. 18.
29
“A tese de Hegel resume-se em sua conhecida frase: ‘a pena é a negação da negação do Direito’. A
fundamentação hegeliana da pena é ao contrário da kantiana mais jurídica, na medida em que para
Hegel a pena encontra sua justificação na necessidade de estabelecer a vigência da ‘vontade geral’,
simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinqüente”. Bitencourt, Cezar Roberto.
Tratado de Direito Penal, p. 86.
15
O cometimento do crime gera um dano social, eis
que viola um direito subjetivo individual ou estatal, o que exige e justifica a
aplicação da pena.
Tudo gira em torno da violação de um direito
subjetivo, da danosidade social e da necessidade de pena.
Porém, como bem colocado por Manuel da Costa
Andrade, “levando ao extremo o ideário do individualismo liberal,
FEUERBACH afasta-se de outros individualistas que, à semelhança de
HOMMEL ou BECCARIA, sublinhando igualmente a vertente objetiva,
reconheciam um significado autônomo à danosidade social, qua tale
30
”.
É fácil notar, principalmente pela posição
assumida por Feuerbach, que as tendências penais reveladas no período das
luzes
sofreram forte influência do contratualismo, na vertente delineada por
Locke
31
.
Através de um pacto social, o homem abdica da
liberdade total que o estado de natureza lhe conferia, cedendo parte dela ao
Estado para que este lhe garanta a liberdade possível em sociedade.
Com isso torna possível ao Estado a proteção da
liberdade de seus cidadãos.
Daí deriva o direito de punir. A pena aparece
como instrumento do Estado para proteger os direitos subjetivos
individuais ou do próprio Estado de ataques, que, sob o aspecto material,
configuram crimes.
30
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito penal, p. 50.
31
Muitos foram os adeptos do contratualismo (Hobbes, Locke, Rousseau). No entanto, cada um deles
atribui contornos distintos ao chamado pacto social. Locke, diversamente de Hobbes e Rousseau,
salvaguarda a autonomia individual. Porém, tanto Locke quanto Rousseau concebem o homem livre
enquanto ser social, ou seja, conferindo-lhe liberdade limitada pelo direitos dos outros. Por isso, Manuel
da Costa Andrade não hesita em afirmar que “também Feuerbach parte do dogma de que ao Estado cabe
exclusivamente a tarefa de assegurar o exercício da liberdade de cada um, no respeito da Liberdade dos
outros (Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 44/45). A este propósito, salienta Maria da
Conceição Ferreira da Cunha que “para certas concepções do contrato social, este deixa de ter um cunho
iindividualista, na medida em que os indivíduos abdicam de sua vontade individual em favor da Vontade
Geral. Estamos a pensar na formulação da renúncia total de Hobbes, que legitimou o absolutismo, mas
também (na opinião de alguns autores) na de Rousseau. Já assim não terá sido na de Locke que perfilhou
a tese da renúncia parcial, e que se preocupou com a defesa da autonomia privada” (Constituição e Crime,
p. 36). Daí porque, citando posição de Pietro Nuvolone (exposta em I limiti taciti della norma penale,.
Palermo: Priulla, 1947, p. 24), Janaína Conceição Paschoal taxa a concepção de Feuerbach de privatista
(Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 26).
16
O Estado estará autorizado a intervir
legitimamente no âmbito da liberdade individual mediante a imposição de
pena quando se constatar a violação de um direito subjetivo e apenas na
medida do indispensável para a sua tutela.
A concepção material de crime, vista sob esta
ótica, demonstra estreito alinhamento não com o contratualismo, como
também com o individualismo, com o racionalismo e até com o
utilitarismo.
Maria da Conceição Ferreira da Cunha assinala
que “de individualismo e racionalismo se pode falar, pois pretende elevar a
posição do Homem, de cada Homem, e da Razão humana, da sua dignidade
e autonomia. Afirma-se a prioridade do indivíduo face ao Direito e ao
Estado – o Homem é a medida de todas as coisas
32
”.
Ademais, não poderia ser de outra forma, pois
como nos lembra Danilo Marcondes, “o grande instrumento do Iluminismo
é a consciência individual, autônoma em sua capacidade de conhecer o
real; suas armas são, portanto, o conhecimento, a ciência, a educação”
33
.
Prossegue o mesmo autor, assegurando que o
pressuposto básico do Iluminismo afirma, portanto, que todos os homens
são dotados de uma espécie de luz natural, de uma racionalidade, uma
capacidade natural de apreender, capaz de permitir que conheçam o real e
ajam livre e adequadamente para a realização de seus fins
34
”.
No mesmo diapasão declara Luiz Regis Prado
sobre o iluminismo que “mais que uma corrente de idéias, vem a ser uma
atitude cultural e espiritual de grande parte da sociedade da época, cujo
objetivo é a difusão do uso da razão para dirigir o progresso da vida em
todos os aspectos”
35
.
Resta claro, portanto, do conceito material de
crime forjado no período iluminista seu caráter individualista e pré-
jurídico, pois fundado na violação de direitos subjetivos do indivíduo ou do
Estado, preexistentes ao direito positivo e reconhecidos posteriormente por
ele, de modo a servir de padrão crítico ao legislador.
32
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime” – Uma perspectiva da criminalização e
da descriminalização, p. 33.
33
Marcondes, Danilo. Iniciação à História da Filosofia, p. 202.
34
Idem.
35
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 28.
17
Sob tal aspecto, o bem jurídico se estabelece
objetivamente e, nas palavras de Knut Amelung, “tudo se reconduz a um
problema de verdade e nunca de decisão de valor”
36
.
Aliás, tal constatação torna-se clara quando Paul
Johann Anselm Ritter von Feuerbach diz que há direitos que independem
do exercício de qualquer ato de governo e do reconhecimento do Estado
(ou seja, direitos dos súditos do Estado ou do Estado mesmo). Estes
direitos, assegurados pelas leis penais, dão base ao conceito de crime em
sentido estrito
37
”.
De tudo isso se extrai que o conceito material de
crime elaborado no período iluminista exerce nítido papel limitador do
legislador penal.
No entanto, ainda que paradoxalmente, as idéias
iluministas sobre o conceito material de crime podem assumir feições
extremamente utilitaristas, caso não se estabeleça limites para o alcance dos
fins a que o Direito Penal se propõe.
Estabelece-se a prevenção geral, a defesa social,
como fim do Direito Penal e, em conseqüência, a punição penal legitimar-
se-á quando destinada ao alcance de tal desiderato.
Mas, de nada adianta tentar conceber um conceito
material de crime como limite do ius puniendi, se, de outra banda, admite-
se a ilimitada intervenção penal para garantir os direitos subjetivos
daquelas violações que constituiriam infração penal.
A concepção de um Direito Penal nestes moldes
pode levar a instrumentalização do homem, uma vez que, em franca afronta
a dignidade da pessoa humana, cada indivíduo pode ser utilizado como
exemplo, como fator de intimidação dos demais membros da sociedade,
desde que isso se faça para a obtenção da defesa social (prevenção geral
negativa).
A dignidade da pessoa humana jamais pode ser
aniquilada a pretexto de garantir a defesa social.
36
Amelung, K. Rechtsgüterschutz, p. 50, apud Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em
Direito Penal, p. 36.
37
Feuerbach, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal, p. 55/56. “Hay derechos que
son independientes del ejercicio de cualquier acto de gobierno y del reconocimiento del Estado (o sea,
derechos de los súbditos del Estado o del Estado mismo). Estos derechos, asegurados por las leyes
penales, dan base al concepto de crimen em sentido estricto.
18
Daí a necessidade do estabelecimento de um
limite ético, consubstanciado na exigência de em um juízo de
reprovabilidade (o que hoje se faz através da culpabilidade), destinado à
graduação da responsabilidade penal, capaz de evitar a superposição do
interesse de defesa social àquele relacionado à verdadeira justiça.
Sob este aspecto temos a arguta observação de
Guilherme Gouvêa de Figueiredo, no sentido de que, “noutros termos,
apesar do pensamento penal iluminista procurar impor limites materiais ao
direito penal, elegendo a proteção do indivíduo e da sociedade como fim
único e legítimo, a busca em atingir esta finalidade acaba por ser perversa
quando desmedida e carente de limites mais precisos”
38
.
É bom consignar também que, para os fins a que
se destina a concepção material de crime cunhada no movimento
iluminista, ou seja, a limitação do ius puniendi, não basta afirmar a
existência de direitos inatos, pré-jurídicos, que legitimamente poderiam
receber a tutela penal do Estado e que são reconhecidos e não criados por
ele. Caso não se estabeleça claros critérios objetivos de concretização de
tais direitos, a declaração dos mesmos pelo Estado poderá ocultar
verdadeira constituição daquilo que será objeto de tutela penal, que é
exatamente o que se pretende evitar. Sem contar que tal vício acabaria por
afastar função crítica do Direito vigente e daquele a constituir que se
pretende obter com um conceito material de crime.
Percebe-se assim que não foi pequena a
contribuição prestada pelo iluminismo penal para a confecção de um
conceito material de crime, dotado de conteúdo transistemático, que
servisse de padrão crítico ao legislador penal, ainda que se reconheça que
não alcançasse o nível de concretização ideal para que fosse atingida de
forma adequada a finalidade a que se propôs (a limitação do ius puniendi
estatal) e que uma aplicação deturpada desta linha de pensamento poderia
levar a um utilitarismo exacerbado, de conseqüências negativas.
Mesmo assim, garante Janaina Conceição
Paschoal que “o recurso ao direito subjetivo, enquanto objeto de tutela
penal, impede que sua aplicação ocorra de forma arbitrária,
independentemente de qualquer lesão, tendo constituído, à época, uma
reação do Iluminismo ao arbítrio anterior”
39
.
38
Figueiredo, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal, p.
42/63.
39
Paschoal. Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 28.
19
No curso do trabalho veremos que a evolução
histórica do conceito de bem jurídico tendeu a aparar as aludidas arestas.
1.2.2. – O bem jurídico na concepção de Johan Michael Franz Birnbaum
Vimos no item 1.2.1. que o iluminismo criminal
lança a semente do conceito de bem jurídico, o que muito contribuiu para a
conformação de um conceito material de crime apto a servir de padrão
crítico a orientar o legislador penal em suas atividades de criminalização e
descriminalização.
Questiona-se, portanto, se a evolução do aludido
conceito com base nas idéias que sucederam as de Paul Johann Anselm
Ritter von Feuerbach se deu de forma linear, contínua e ininterrupta.
Referimo-nos no item anterior, inclusive citando
expressamente o pensamento de Manuel da Costa Andrade a este respeito,
que o processo de definição do conceito de bem jurídico foi marcado por
progressos e retrocessos.
40
.
O mesmo autor português afirma que a
publicação em 1834 do artigo de BIRNBAUM, Über das Erfordernis einer
Rechtsverletzung zum Begriff des Verbrechens, assinala o início da história
doutrinal e político-criminal do conceito de bem jurídico”
41
Johan Michael Franz Birnbaum “foi o responsável
por uma primeira materialização do objeto de proteção do Direito Penal,
40
Com base em tal constatação e acentuando a abstração do conceito de bem jurídico, Manuel da Costa
Andrade nos alerta que “a impressão que a história do bem jurídico deixa é a de um processo em espiral
ao longo do qual se sucederam fenômenos de revolução no sentido etimológico (revolutio) de retorno ao
que se julgava irrepetivelmente abandonado. Não menos vincada é a impressão de extrema liquidez e
mimetismo do conceito, capaz de assumir os conteúdos e desempenhar os papéis aparentemente mais
irreconciliáveis e antinômicos” (Andrade, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia, p.
391).
41
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 51.
20
sendo, por essa razão, muitas vezes, considerado o precursor do conceito de
bem jurídico penal”
42
.
Mas, de início, é importante ressaltar que não
um consenso na doutrina quanto ao fato do pensamento de Johan Michael
Franz Birnbaum sobre o conceito de bem jurídico constituir uma linha de
continuidade daquele que revelou o conceito material de crime durante o
século das luzes.
Se é certo que a doutrina tradicional e majoritária
apresenta o primeiro conceito de bem jurídico, de autoria de Johan Michael
Franz Birnbaum, como “emanação directa ou pelo menos uma continuação
da doutrina iluminista”
43
, não é menos verdadeiro que outra parte da
doutrina assegura que existira uma evidente e irreconciliável ruptura entre
as duas correntes de pensamento.
Manuel da Costa Andrade argumenta que “não
faltam autores v.g., FRANK, SCHAFFSTEIN ou SINA segundo os
quais as correcções formais introduzidas por BIRNBAUM não chegam
para por em causa a continuidade doutrinal e político-criminal (máxime no
ethos liberal) entre a sua concepção e a tese iluminista da lesão do direito
subjetivo”
44
.
P. Sina, por exemplo, nos garante que “o conceito
de bem jurídico era real e inequivocamente uma continuação da vertente
sistemática e liberal do movimento filosófico-iluminístico no sentido da
determinação de um conceito material de crime”
45
.
Ainda no sentido de uma continuidade do
pensamento de Johan Michael Franz Birnbaum em relação às idéias
iluministas se projeta o ensinamento de Winfried Hassemer.
Winfried Hassemer escreve que “o conceito de
bem jurídico deve-se à idéia de bem do iluminismo. Ele foi formulado e
fundamentado por Paul Johann Anselm Feuerbach por volta do século XIX,
como uma arma contra uma concepção moralista do Direito Penal. A
infração contra uma norma (moral ou ética) não podia ser suficiente para
explicar uma conduta como criminosa, senão, primeiramente, a prova de
42
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 28/29.
43
Angione, Francesco. Contenuto e Funzion de Concetto di Bene Giurídico, p. 18, nota 26 apud Cunha,
Maria da Conceição Ferreira, Constituição e Crime, nota 69, p. 42.
44
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 54.
45
Sina, Die Dogmengeschichte des Strafrechtlichen Begriffs “Rechtsgut”, p. 31, apud Andrade, Manuel
da Costa, A nova lei dos crimes contra a economia, p. 392.
21
que esta conduta lesiona interesses reais de outros homens, precisamente
‘bens jurídicos’”
46
.
Em outra passagem, o consagrado penalista
alemão adverte que “o pensamento da violação do direito e o pensamento
de bem jurídico não implicam do ponto de vista político-criminal,
resultados alternativos, constituindo antes diferentes formulações da
mesma realidade político-criminal”
47
.
Não é outra a linha de raciocínio de Frederico
Stela, que fazendo referência à teoria do bem jurídico, menciona ser ela
“nascida no século passado com uma clara inspiração liberal e com o
declarado intento de estabelecer um limite à tarefa do legislador penal,
circunscrevendo o elenco de factos merecedores de pena somente aos
(factos) socialmente danosos, ofensivos de entidades ‘reais’ (‘empírico-
naturais’) do mundo externo”
48
.
No entanto, perfilhando entendimento situado em
campo diametralmente oposto aparece Knut Amelung, para quem “com a
doutrina do bem jurídico BIRNBAUM antecipa e consuma já a ruptura
com as representações jusracionalistas e iluministas e, sobretudo, com as
concepções filosóficas e sociológicas subjacentes e relativas à polaridade
entre o indivíduo e o sistema social”
49
.
Haveria para os adeptos desta segunda corrente a
assunção de um novo paradigma.
De violação de um direito subjetivo, o crime
passaria a ser visto como a ofensa a um bem jurídico, que ostentaria
espectro conceitual mais amplo, de modo a permitir a criminalização de
atentados contra a moral e a religião.
Note-se que esta ótica da questão confronta
realmente o conceito que, segundo ela, se dá ao bem jurídico com aquele
emprestado ao conteúdo material do crime pelo iluminismo, que tinha por
base estabelecer a distinção entre o Direito e a moral, o Direito e a religião.
46
Hassemer, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, p. 56.
47
Hassemer, Winfried. Theorie und Sociologie des Verbrechens. p. 41 e ss. e 51, apud Cunha, Maria da
Conceição Ferreira, Constituição e Crime, nota 69, p. 43.
48
Stela, Frederico. La Teoria del Bene Giuridico e I.C.D. Fatti Inoffensivi Conformi al Tipo, p 4., apud
Cunha, Maria da Conceição Ferreira, Constituição e Crime, p. 43.
49
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 54.
22
A este propósito, inclusive, Johan Michael Franz
Birnbaum chegou a afirmar que “na história do Direito Penal alemão, a
punição do incesto e dos crimes contra a religião ter tido sempre lugar ao
lado da punição do furto e do homicídio”
50
.
Os opositores da idéia de continuísmo ainda
ressaltam que o pensamento de Johan Michael Franz Birnbaum substitui a
visão individualista, típica do movimento iluminista, por uma ótica
sistêmico-social.
Afasta-se, segundo eles, um paradigma espiritual,
consubstanciado na idéia do direito subjetivo, por uma referência empírico-
naturalista, concretizada na noção de bem jurídico.
As filosofias jusnaturalista e jusracionalista são
trocadas pelo positivismo e no lugar de um padrão crítico da legislação
vigente busca-se a legitimação das leis.
“O bem jurídico seria não mais uma noção crítica,
trans-sistemática, apta a impor limites à intervenção penal como fora a
conceituação do crime como lesão de direitos subjetivos - ; mas sim um
conceito cujo surgimento teria servido, opostamente, para fundamentar a
elevação dos valores relacionados à religião e à moral a objetos do
crime”
51
.
Na leitura de Knut Amelung, a concepção de
Johan Michael Franz Birnbaum pouco se alinharia com o conceito material
de crime talhado no período da ilustração, pois ela apareceria como produto
do positivismo.
Daí porque Manuel da Costa Andrade assevera
que, segundo Knut Amelung, em BIRNBAUM estaria claramente
assumido o novo paradigma; caracterizado pelo positivismo e pela
prevalência, senão mesmo a exclusividade, da referência sistémico-social
que com Binding viria a conhecer a sua mais acabada expressão”
52
.
Consignando adesão às posições de Manuel da
Costa Andrade
53
e Francesco Angioni
54
, Maria da Conceição Ferreira da
50
Cunha, Maria da Conceição Ferreira, Constituição e Crime, p. 44.
51
Figueiredo, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal, p.
46/47.
52
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 54.
53
“A obra de Birnbaum revela aquela equivocidade que constitui a marca de todo o pensamento situado
em períodos de viragem: do mesmo passo que antecipam e anunciam o advento das realidades novas,
23
Cunha explica a razão da existência do conflito doutrinário acima apontado
mediante assertiva de que tudo se deve ao fato do pensamento de Johan
Michael Franz Birnbaum aparecer em um período de transição
55
.
Ainda na esteira dos ensinamentos de Manuel da
Costa Andrade
56
, salienta a aludida Professora lusitana que, na verdade,
Johan Michael Franz Birnbaum jamais empregou o termo bem jurídico,
mas uma série de outros que poderiam ser identificados à este conceito,
motivo pelo qual a doutrina atribui a ele sua paternidade
57
.
O certo é que, por constituir doutrina formulada
em período de transição, o pensamento de Johan Michael Franz Birnbaum
foi edificado sob influência de variadas tendências e para além das
inovações, por vezes, buscou a conciliação de raciocínios opostos, até então
inconciliáveis.
Acentuando as inovações, Maria da Conceição
Ferreira da Cunha assevera que “ao conceito de ‘direito subjetivo’, ao
Direito Penal centrado nos ‘homens e suas relações’, num ‘momento
espiritual’, sucede-se uma concepção que coloca os ‘bens materiais’ em
lugar de primazia”
58
.
uma verdadeira transição da referência
intersubjetiva para um paradigma objetivo, relacionado à objetos concretos,
situados no mundo exterior. Da lesão de um direito subjetivo, de cunho
pessoal, individual, volta-se à violação de coisas, que, em razão da
importância que representam não para o indivíduo como também para a
coletividade, ganham a estatura de bens jurídicos, merecedores, portanto,
da tutela estatal.
Ocorre que tal postura de Johan Michael Franz
Birnbaum não deixa de ser contraditória com outros aspectos de sua teoria,
demonstrando a veracidade da assertiva acima consignada de que seu
apresentam ainda os estigmas do ambiente em que vêm à luz do dia”. Andrade, Manuel da Costa.
Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 52.
54
Angioni, Francesco. Contenuto e Funzion del Concetto di Bene Giuridico, Milano, Ed. Giuffrè, 1983,
p. 79, nota 19, apud Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime, p. 46.
55
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime, p. 45.
56
“Significativo, desde logo, que BIRNBAUM não tenha chegado a utilizar a expressão bem jurídico
(Rechtsgut) cuja paternidade lhe é consensualmente atribuída pela historiografia. Isto apesar de ter
utilizado um conjunto diversificado de expressões v.g., Gut, welches uns rechtlich zusteht ou ‘conceito
de um bem a ser definido pela lei’ de conteúdo mais ou menos descritivo e cuja compreensão se
identifica substancialmente com a de bem jurídico”. Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo
em Direito Penal, p. 52.
57
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime, p. 45.
58
Idem, p. 46.
24
pensamento buscou a conciliação de tendências opostas. Se por um lado,
cedendo a uma visão naturalista dos bens, ele pretende centrar aquilo que
merece tutela penal no mundo exterior, estabelecendo a natureza objetiva
dos bens jurídicos, de outra banda, o referido autor refere-se a bens
jurídicos imateriais, como a honra, os costumes e aos valores religiosos
59
.
A teoria de Johan Michael Franz Birnbaum, ainda
sob o aspecto da novidade em relação ao iluminismo criminal, confere
extremada importância ao sistema social ao sustentar que a lei não visa
apenas assegurar a livre coexistência dos cidadãos, vistos em sua
individualidade, mas busca primordialmente fins sociais.
Mas é inolvidável também que, embora conferisse
nítida primazia ao sistema social, Johan Michael Franz Birnbaum não
deixou de lado o aspecto individual da proteção penal, não o abandonando
por completo.
Aliás, neste sentido, estabelecendo uma
classificação bipartida dos crimes (crimes naturais e crimes sociais), Johan
Michael Franz Birnbaum chega a afirmar expressamente que “a
consideração do elemento perigosidade comum, como dimensão essencial
de todo o crime, poderia levar facilmente a acreditar que o dever de
punição do homicídio que impende sobre o poder estadual, radicaria menos
no dever de proteger a vida de cada homem individual do que no dever de
preservar o estado como um todo. Por esta via, poderia ser-se levado a crer
que os homens apenas existem para assegurar a subsistência do Estado, em
vez de se considerar o Estado necessário por causa dos interesses do
Homem”
60
.
E ainda demonstrando este característico de
transição, assumindo compromisso conciliatório, Johan Michael Franz
Birnbaum não hesita em aglutinar em seu pensamento traços do
jusnaturalismo com outros de positivismo-historicismo, como também uma
postura crítica e transistemática com outra de legitimação do direito
positivo.
Pois, se é verdade que ele define o bem jurídico
como objeto material tutelado pelo Estado em razão de sua importância,
externando uma visão positivista que nada tem de transistemática. E se é
59
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 47.
60
Birnbaum, Johan Michael Franz.
“Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens mit besonderer Rücksicht auf den Begriff der Ehrenskränkung”, Archiv des Criminalrechts
1834, p. 177, apud Andrade, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 53.
25
inegável que, ao admitir a mutabilidade dos bens que merecem proteção do
Estado segundo o desenvolvimento cultural, econômico e político do grupo
social, ele homenageia o historicismo. Não é difícil verificar que em sua
obra ele faz concessões ao jusnaturalismo quando reconhece serem os bens
em parte dados ao homem pela sua natureza e, noutra parte, o resultado
do seu desenvolvimento social
61
. Da mesma forma é inocultável que
confere ao seu raciocínio caráter transistemático quando “não deixa de
ensaiar uma perspectiva do direito a partir do ‘fundamento jurídico e do
fim do próprio Estado’”
62
.
Daí porque falar que Johan Michael Franz Birnbaum
assume uma posição intermediária, de transição entre Paul Johann Anselm
Ritter von Feuerbach e Karl Binding, uma vez que aquele autor impregna o
conceito material de crime de matiz puramente individual, enquanto este
confere a teoria do bem jurídico um aspecto exclusivamente sistêmico-
social.
Por isso, Guilherme Gouvêa de Figueiredo
menciona que “fácil é constatar que com Birnbaum ainda não existe uma
expressão acabada do que se viria a entender, com contornos minimamente
delineados, por bem jurídico”
63
.
Teríamos sim, como lembrou Maria da Conceição
Ferreira da Cunha, “uma concepção compromissória, própria dos períodos
de transição, influenciada ainda pelo iluminismo, mas também pelo
hegelianismo, pela escola histórica e pelo positivismo moderado de
Mittermaier”
64
.
Na verdade, como lembra a aludida Professora
portuguesa, sem abandonar o jusnaturalismo e uma análise transistemática
do tema, Johan Michael Franz Birnbaum se posta em direção ao
objetivismo, à referência sistemático-social e ao positivismo,
desembocando em uma visão intra-sistêmica
65
.
61
Birnbaum, Johan Michael Franz.
“Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens mit besonderer Rücksicht auf den Begriff der Ehrenskränkung”, Archiv des Criminalrechts
1834, p. 177, apud Andrade, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Nota 35, p. 53.
62
Birnbaum, Johan Michael Franz.
“Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens mit besonderer Rücksicht auf den Begriff der Ehrenskränkung”, Archiv des Criminalrechts
1834, p. 177, apud Andrade, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Nota 37, p.
53.
63
Figueiredo, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal, p.
45.
64
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 50.
65
Idem.
26
1.2.3 – O bem jurídico no pensamento de Karl Binding e Franz Von Liszt
Manoel da Costa Andrade recorda que “na
segunda metade do culo XIX a história do bem jurídico confunde-se
praticamente com os nomes de LISZT e BINDING a cujos contributos
aquele conceito ficou definitivamente a dever o lugar que hoje ocupa no
centro da teoria da infracção penal”
66
.
No entanto, Karl Binding e Franz Von Liszt
optaram por linhas metodológicas distintas.
Seguindo a trilha aberta por Johan Michael Franz
Birnbaum, Karl Binding rompe definitivamente os vínculos com o
pensamento iluminista e, em uma perspectiva de estrito positivismo
legalista, estabelece um novo conceito de bem jurídico.
Abandonando a idéia de direitos inatos, cuja
existência independia de qualquer ato do Estado e que eram apenas
reconhecidos e posteriormente protegidos pelo legislador, Karl Binding
apresenta absoluta oposição ao conceito material de crime forjado no
período da ilustração.
Com Karl Binding, o legislador terá absoluta
liberdade para eleger os objetos de tutela do Direito Penal, o que representa
maior intervenção do Estado, agora autorizado a criminalizar tudo o que
lhe pareça adequado colocar sob as barras do sistema punitivo
67
.
não se busca mais evitar condutas que
coloquem em risco as condições de vida em sociedade, mas sim a proteção
de bens jurídicos, cuja materialização fica ao livre arbítrio do legislador.
66
Andrade, Manuel da Costa. A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia, p. 392.
67
“Era o tempo do Estado de Direito formal. Um Estado que, por ser legítimo ‘em si mesmo’, não
obedece senão a legalidade formal, aos processos estabelecidos pela lei, quedando-se alheio a quaisquer
outras limitações de índole material, o que, para além disso e sobretudo, não poderia deixar de trazer
implicações também (e precisamente) no plano jurídico-penal. Assim as coisas, a intervenção punitiva do
Estado passa a carecer de qualquer limite material. Abandonado o compromisso com as teorizações
iluministas, passa a ser digno de punição qualquer comportamento que o legislador assim entenda”.
Figueiredo, Guilherme Gouvêa. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal, p. 52.
27
Karl Binding “comete exclusivamente à lei a
competência para definir e hoc sensu criar o bem jurídico e identificar
as formas de agressão que reclamam a intervenção do direito penal”
68
.
O bem jurídico passa a ser visto como tudo o
que, aos olhos do legislador, tem valor para uma vida saudável dos
cidadãos”
69
.
“É bem jurídico tudo o que não constitui em si um
direito, mas, apesar disso, tem, aos olhos do legislador, valor como
condição de uma vida sã da comunidade jurídica, em cuja manutenção
íntegra e sem perturbações ela (a comunidade jurídica) tem, segundo o seu
juízo, interesse e em cuja salvaguarda perante toda a lesão ou perigo
indesejado, o legislador se emprenha através das normas”
70
.
Comentando o posicionamento de Karl Binding,
Armin Kaufmann sustenta que “toda agressão aos direitos subjetivos se
produz mediante uma agressão aos bens jurídicos e é inconcebível sem
estes”
71
.
Haveria uma perfeita e integral correspondência
entre a norma e o bem jurídico, pois aquela aparece como única fonte deste.
Assim, obrigatoriamente, o jurista deve se
conformar com a opção do legislador.
“Para Binding, a norma é fundamento e a medida
da existência do bem jurídico”
72
.
Torna-se clara, portanto, a concepção intra-
sistemática que Karl Binding passa a conferir ao conceito de bem jurídico.
Karl Binding se afasta de qualquer ideário de
legitimação material do Direito Penal ou de imposição de limites á
liberdade de criminalização do legislador. Suas idéias não pretendem o
68
Andrade, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 65.
69
Andrade, Manuel da Costa. A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia, p. 392.
70
Binding, Karl. Die Normen und ihre Übertretungen (I. Band, ed., Leipzig, 1922, apud Andrade,
Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 65.
71
Kauffman, Armin. Teoria de las normas. Trad. Enrique Bacigalupo e Ernesto Garzón Valdés, Buenos
Aires: Depalma, 1977, p. 14, apud Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 33.
72
Motta, Ivan Martins. Erro de Proibição e Bem jurídico-penal, p. 111.
28
estabelecimento de um padrão crítico a orientar o legislador na formação
ou reformulação do ordenamento jurídico-penal.
Maria da Conceição Ferreira da Cunha, em
oportuna observação, consigna que tal postura de Karl Binding se deve
menos à confiança que o aludido jurista deposita no legislador do que em
seu conformismo com a impossibilidade de se encontrar uma fonte segura
de legitimação e limitação ao poder legiferante
73
.
Mas é inegável que as idéias de Karl Binding
encontram respaldo no pensamento filosófico que exala de sua época. O
positivismo acomete todos os segmentos do conhecimento e da disciplina
da vida social, inclusive o Direito.
Existe apenas aquilo que pode ser observado no
mundo dos fatos. Afasta-se do Direito qualquer consideração filosófica,
jusnaturalista e metafísica e, neste contexto, impossível se mostra a
sustentação de paradigmas de legitimação do Direito Penal.
O Direito legitima a si mesmo, assim como o
próprio Estado, o que repudia qualquer limite a atividade legiferante no
âmbito penal.
“Consolida-se o conceito (puramente formal) de
bem jurídico, justamente porque torna-se proeminente a forma positivista
(e evidentemente acrítica, livre de todo juízo de valor e de toda a
especulação metajurídica ou filosófica) de Estado de Direito, que passam a
assumir outra posição histórica: não são instrumento de tutela da pessoa
e da liberdade (segundo a tradição do Iluminismo), senão que se
transformam em um fim ‘em si mesmos’. O Estado (e o Direito) não
existem em função do indivíduo, senão o contrário”
74
.
Na percepção de Luiz Flávio Gomes, é uma
concepção abstracionista, pois adotada por Estados que abstraem a pessoa
humana do centro do desenvolvimento do Direito Penal, e tendencialmente
autoritária
75
.
“Era completamente outra a impostação filosófica
e o ethos político de LISZT, consabidamente empenhado no ideário do
73
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 51/52.
74
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem jurídico no Direito Penal, p. 76.
75
Idem, p. 77.
29
Estado de Direito de modelo liberal e, por isso, na procura de um conceito
material de crime”
76
.
“Como reação contrária ao tratamento científico
formal da norma, origina-se a dimensão material do conceito de injusto
penal e o bem jurídico desenvolve toda a sua capacidade de limite a ação
legiferante”
77
.
Muito embora, na historiografia do bem jurídico,
Franz Von Liszt acompanhe Karl Binding como adepto do positivismo,
como acima mencionado, adota metodologia diversa, de característica
naturalística-sociológica, que em muito se afasta do positivismo
normativista de seu companheiro.
Franz Von Liszt retira da norma a exclusividade
de proteção do bem jurídico para colocá-lo como uma realidade, baseada
na própria vida, que fornece os critérios e os limites para a intervenção do
Direito”
78
.
Enquanto Karl Binding sustenta uma absoluta
congruência entre a norma e o bem jurídico, Franz Von Liszt garante que
tal pode não ocorrer, uma vez que, muitas das vezes, o que se apresenta é
uma relação de incongruência e tensão
79
.
Franz Von Liszt assevera que “todo o direito
existe por amor dos homens e tem por fim proteger interesses da vida
humana
8081
. A proteção de interesses é a essência do direito, a idéia
finalística, a força que o produz”
82
.
Franz Von Liszt define o bem jurídico como o
“interesse juridicamente protegido”.
76
Andrade, Manuel da Costa. A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia, p. 392.
77
Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 35.
78
Liberati, Wilson Donizeti. Bem Jurídico-Penal e Constituição, in: Direito Penal e Constituição, p. 168.
79
Cunha, Maria da Conceição Ferreira. “Crime e Constituição”, p. 55.
80
Aqui é importante considerar que, para Binding, os bens jurídicos necessariamente constituirão bens da
coletividade como um todo. Binding, ao contrário de Liszt, não faz a distinção entre bens jurídicos
individuais e coletivos (da coletividade ou do Estado), pois ele considera o indivíduo enquanto parte
integrante do Estado. Por outro lado, como Liszt considera que todo o direito existe em função do
homem, os bens jurídicos se apresentam sob a dicotomia de individuais e supraindividuais. Andrade,
Manuel da Costa. Consentimento do Ofendido e Acordo em Direito Penal, p. 69.
81
Por outro lado, nítida se apresenta a preocupação de Liszt em extrair do significado de bem jurídico um
conceito material de crime que legitime e oriente a intervenção do legislador penal.
82
Liszt, Franz Von. Tratado de Direito Penal, p. 139.
30
O aludido professor austríaco faz consignar ainda
que “todos os bens jurídicos são interesses humanos, ou do indivíduo ou da
coletividade”
83
.
Prossegue afirmando que “é a vida, e não o
Direito, que produz o interesse; mas só a proteção jurídica converte o
interesse em bem jurídico”
84
.
Exemplificando, Franz Von Liszt assegura que “a
liberdade individual, a inviolabilidade de domicílio, o segredo epistolar
eram interesses muito antes que as cartas constitucionais os garantissem
contra a intervenção arbitrária do Poder Público. A necessidade origina a
proteção e, variando os interesses, variam também os bens jurídicos quanto
ao número e quanto ao gênero”
85
.
Acrescenta que, ao contrário do sustentado por
Karl Binding
86
, “bem jurídico não é bem do direito ou ordem jurídica, mas
um bem do homem que o direito reconhece e protege. A idéia do bem
jurídico é, a nosso ver, mais ampla do que a do Direito Subjetivo. Mas, em
todo o caso, não se compadece com o usar da língua falar em direito à vida,
à liberdade, à honra, etc...”
87
.
Nestes termos, acaba por conferir função
transistemática ao conceito de bem jurídico.
83
Liszt, Franz Von. Tratado de Direito Penal, p. 139.
84
Idem.
85
Idem.
86
Comentando a linha de raciocínio de Binding, baseada em um positivismo normativista, Costa Andrade
assegura que “a expressão bem, ou acompanhada de significativos como rechtliche Gut ou bem
protegido, vinha sendo utilizada por autores como BIRNBAUM OU HÄLSHNER. A expressão
Rechtsgut terá sido, porém, cunhada e pela primeira vez utilizada por BINDING, no primeiro volume de
Die Normen (1.ª ed., 1872), onde pode ler-se: ‘As proibições da produção causal de um resultado
(Verursachungsverbote) podem explicar-se pelo fato de o estado produzido pela ação proibida
contrariar os interesses do direito, enquanto o estado preexistente à acção correspondia àqueles interesses.
Todos os estados que não podem sofrer alterações assumem um valor para o direito: podem, por isso,
designar-se Rechtsgüter’. Como facilmente se intui, a expressão que se adequa à obra de BINDING em
que o bem jurídico figura, em rigor, como um bem-do-direito – representa um certo retrocesso a conceitos
anteriormente utilizados, esses sim precisamente traduzíveis por bem jurídico ou bem juridicamente
protegido. A expressão Rechtsgut viria, contudo, a sofrer, ao longo da experiência doutrinal germânica,
uma evolução semântica e político-criminal que a emanciparia dos limetes que lhe foram consignados
pelos primeiros textos de BINDING. E que a poria em consonância com as expressões e conceitos
anteriores. Graduações conceituais e semânticas a que a expressão portuguesa de bem jurídico por que
igualmente se traduzem Rechtsgut e rechtliche Gut não é diretamente sensível. Andrade, Manuel da
Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, nota 73, p. 64/65.
87
Idem, Nota 175, p. 139.
31
Luiz Régis Prado assinala que para Franz Von
Liszt “no limite entre Política Criminal e Direito Penal está o lugar onde se
situa o bem jurídico – como ponto de união”
88
.
Franz Von Liszt defende que “os interesses
surgem das relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos para com o
Estado e a sociedade ou vice-versa”
89
.
Na sua ótica o Direito se submete às necessidades
da vida em sociedade e somente esta se apresenta com aptidão para lhe
apresentar as hipóteses e impor os limites de sua intervenção.
Também não passa despercebido de Franz Von
Liszt a diversidade de formas com que os interesses e bens jurídicos se
apresentam na vida social
90
, pois, conforme arguta ponderação de Manuel
da Costa Andrade, “enquanto BINDING parecia acreditar na ‘plasticidade
das coisas’ do mundo e da vida nas mãos do direito, LISZT confiava mais
na plasticidade reflexiva do direito para responder às exigências de uma
realidade múltipla e diferente”
91
.
O Direito deverá imiscuir-se na vida daqueles
que compõe o corpo social quando estiver em jogo um interesse digno de
tutela, que não se fará satisfatoriamente sem a cominação de pena à
conduta que o coloque em risco.
Com tais argumentos, observa Maria da
Conceição Ferreira da Cunha
92
, Franz Von Liszt introduz na discussão o
conceito de necessidade e dignidade penal, elementos que serão analisados
no curso do presente trabalho.
As questões relacionadas à necessidade e
idoneidade da pena, de fundamental importância para o Direito Penal
moderno, foram introduzidas na discussão através da teoria de Franz Von
Liszt sobre os fins da pena.
O aspecto “necessidade” mencionado por Franz
Von Liszt acabou por constituir a gênese do atualmente denominado
88
Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 36.
89
Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 140.
90
Neste ponto, Manuel da Costa Andrade recorda que “a par de bens jurídicos individuais,
correspondentes a interesses pessoais, haverá bens jurídicos supra-individuais, correspondentes a
interesses desta índole”. Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 69.
91
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 69.
92
Cunha, Maria da Conceição Ferreira, “Constituição e Crime”, p. 54.
32
princípio da subsidiariedade do Direito Penal, segundo o qual o Estado
deve lançar mão da pena quando não tiver ao seu alcance sanção de menor
gravidade, resguardada por outro ramo do Direito, que se mostre apta à
salvaguarda do interesse em discussão.
O aspecto idoneidade da pena traduz a idéia de
que, ainda que não haja forma diversa da pena para tutela suficiente do bem
jurídico, só se deve utilizá-la quando ela se mostre realmente eficaz.
É importante consignar ainda que ao conferir ao
Direito Penal a função de proteção de interesses humanos vitais e a
salvaguarda das condições historicamente necessárias ao funcionamento e a
sobrevivência de uma dada ordem nacional, Franz Von Liszt atribui à pena
uma função estadual-social, refutando a tese de Karl Binding da
autolegitimação do Direito e do Estado
93
.
Sob tal fundamento também fica descartada a
possibilidade da tutela da moral através do Direito Penal, salvo quando,
além de afrontá-la, o comportamento criminalizado coloque em risco
aquelas condições vitais para o convívio social
94
.
Por tudo o que foi dito, resta claro que, embora
Karl Binding e Franz Von Liszt sejam apresentados como adeptos do
positivismo no estudo da evolução histórica do bem jurídico, as teorias
sustentadas pelos aludidos juristas, nos pontos essenciais, tomam rumos
diversos.
“Podemos então afirmar de um jeito um tanto
simplista, mas particularmente impressivo que, se é com Binding que o
bem jurídico assume ‘cidadania’ dogmática, é, por seu turno, com Liszt que
o conceito passa a fazer parte, como um momento privilegiado, de um novo
discurso (crítico) político criminal”
95
.
Em Karl Binding o conceito de bem jurídico é
estritamente jurídico, intra-sistemático, subordinado à liberdade absoluta do
legislador. Em Franz Von Liszt não há que se falar nesta irrestrita liberdade
93
Andrade, Manuel da Costa. A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia, p. 392.
94
Neste sentido, ao tratar dos crimes contra a moral, Listz ensina que “a moral sexual não é um bem
jurídico da coletividade protegido em atenção a ela (a moral) própria”, mas, que, pelo contrário, ao Estado
interessa a vida sexual extramatrimonial “enquanto interferir de modo lesivo na esfera jurídica dos
particulares” . Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, 21ª e 22ª eds., 1919, p. 374, apud Roxin, Claus. Franz
von Liszt e a Concepção Político-Criminal do Projecto Alternantivo, in: Problemas Fundamentais de
Direito Penal, p. 62.
95
Figueiredo, Guilherme Gouvêa. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal, p. 54.
33
do legislador, pois o bem é extraído das relações sociais, é um interesse
vital do indivíduo ou da sociedade, que o Estado se limita a tutelá-lo, para
erigi-lo a condição de bem jurídico.
No entanto, também não é correto dizer que entre
as duas linhas de raciocínio não existam pontos de contato, ao menos no
que concerne a representação do bem jurídico.
“As consideráveis diferenças que separam entre si
os dois autores máxime a nível da impostação político-criminal e da
relevância acordada ao direito positivo não prejudicam a convergência a
propósito da representação do bem jurídico: uma realidade do mundo
exterior que conta com a proteção do direito penal”
96
.
Aliás, a referida aproximação com Karl Binding,
acaba ofuscando o empenho de Franz Von Liszt na busca de um conceito
material de crime, uma vez que sua abordagem formal de bem jurídico,
própria do positivismo, termina por conferir ao próprio legislador a palavra
final sobre o que verdadeiramente se reveste de dignidade penal.
Ora, se aquele interesse humano, individual e
coletivo, só alcança contornos de juridicidade após a tutela estatal conferida
pelo legislador penal, caberá a este a decisão sobre o que ingressará no
universo dos bens jurídicos.
Em outras palavras, Hernán Hormazábal Malarée
chega a mesma conclusão ao dizer que a tese de Franz Von Liszt “conduz,
ainda que por uma via oblíqua, objetivamente, à mesma situação que a de
Binding quanto ao objeto de proteção do Direito Penal (...) O Estado,
conforme a tais teses, constitui-se no árbitro absoluto regulador da conduta
dos indivíduos e no conformador e defensor de um modelo social”
97
.
96
Andrade, Manuel da Costa. Consentimento do Ofendido e Acordo em Direito Penal, p. 80.
97
Malarée, Hermán Hormazábal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el objeto
protegido por la norma penal. 2.ed. Santiago de Chile: Conosur, 1992, p. 57, apud Gomes, Luiz Flávio.
Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 78.
34
1.2.4. – O conceito metodológico na visão de Honig
É fácil verificar que, no curso da história, não
foram raras as vezes em que se tentou menoscabar do conceito de bem
jurídico, enquanto limite e fundamento da atividade legiferante no âmbito
penal.
“Em geral, esses eclipses da teoria do bem
jurídico coincidem com momentos autoritários da História”.
98
.
À exemplo disso, logo no início do século XX,
ganha força e adesão de muitos um novo método de se enfocar o estudo do
bem jurídico, em franca afronta ao antigo ideal iluminista de conferir a ele
um conteúdo material.
Foi em 1919, com a obra “O consentimento do
Ofendido” (Die Einwilligung des Verletzten), que R. Honig marca a virada
na direção que até então vinha sendo tomada na conceituação do bem
jurídico.
Afastando-se de qualquer tendência empírico-
naturalista, que conferia ao bem jurídico natureza material, bem como
daquela intenção de se estabelecer um padrão crítico a ser observado pelo
legislador, é tomado o rumo da espiritualização, volatilização e
normatização do bem jurídico.
“Sob a influência direta da filosofia neo-kantiana
vai assistir-se ao triunfo duma concepção metodológico-teleológica do bem
jurídico, doravante identificado com o telos ou a ratio legis das normas
incriminatórias”
99
.
98
Gomes, Luiz Flávio; Molina, Antonio García-Pablos de; Bianchini, Alice. Direito Penal, Volume 1, p.
413.
99
Andrade, Manuel da Costa. A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia, p. 392.
35
“O bem jurídico já não revela a essência do delito,
seu substractum, senão exclusivamente a ratio da lei”
100
Na concepção de R. Honig, “o bem jurídico
consiste na síntese categorial, através da qual o pensamento jurídico se
esforça por compreender em rmulas mais curtas o sentido e o fim dos
diversos preceitos penais”
101
. Éo fim reconhecido pelo legislador nas
prescrições penais na sua formulação mais breve”
102
.
“Mas, precisamente porque síntese, o objeto da
tutela é apenas um produto da reflexão especificamente jurídica. Isto é: os
objectos da tutela não existem como tais, só ganham vida no momento em
que nós consideramos os valores da comunidade como objecto do escopo
das disposições penais”
103
.
Daí se extrai a conclusão de que o bem jurídico
ostenta natureza exclusivamente normativa. Fulmina-se a idéia de
preexistência do bem jurídico à prescrição penal.
Em razão de tal circunstância Luigi Ferrajoli não
hesita em afirmar que “se para Jhering, Liszt ou Binding o conceito de bem
jurídico encerra ainda uma entidade que é tal ‘aos olhos do legislador’, mas
sempre externa ao direito e independente dele, após as sucessivas
orientações autoritárias de tipo teleológico, formalista ou tecnicista, esse
conceito acaba por plasmar-se sobre o da norma jurídica, passando a
designar ‘o fim’ ou a ratio da lei penal, ou, inclusive, ‘o direito do Estado à
ações ou omissões impostas sob ameaça de pena’, dilatando-se,
indefinidamente, até compreender as situações mais vagas de ‘perigo
abstrato’ ‘ou presumido’”
104
.
A aludida teorização inova ao estabelecer a
distinção entre objeto da tutela penal e objeto da ação, o que não havia sido
feito até então.
No entanto, enquanto produto da irrestrita
discricionariedade do legislador, desprendido de qualquer capacidade
crítica, tal concepção do bem jurídico serviu de instrumento de sustentação
100
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico Penal, p. 79/80.
101
Honig, R.. Die Einwilligung des Verletzten, Berlim, 1919, apud Cunha, Maria da Conceição Ferreira.
“Constituição e Crime”, p. 65.
102
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 65.
103
Honig, R.. Die Einwilligung des Verletzten, Berlim, 1919, apud A Nova Lei dos Crimes Contra a
Economia, p. 393.
104
Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, p. 375.
36
dos ideais de Estados totalitários, como, por exemplo, a Alemanha nazista e
a Itália fascista.
Neste sentido, Luigi Ferrajoli assegura que esta
concepção idealista de bem jurídico fornece a base da classificação dos
delitos no Código fascista de 1930, até o ponto de, ao comentar sua parte
especial, o mais prestigioso dos penalistas italianos de nosso século
identificar o objeto dos delitos de homicídio, lesões, coações, furtos e
semelhantes não com a vida humana, a integridade pessoal, a liberdade
individual ou a propriedade privada, senão que, dando um giro de cento e
oitenta graus, identifica-o com o ‘interesse do Estado na segurança das
pessoas físicas, especialmente na vida humana’ ou ‘na integridade física’,
com o ‘interesse do Estado em garantir a liberdade individual na sua forma
concreta de liberdade psíquica’, ou com o ‘interesse público na
inviolabilidade dos bens patrimoniais’, etc.”
105
.
Perde, porém, o conceito de bem jurídico a sua
função de garantia, de imposição de limites ao legislador penal, eis que se
vê esvaziado o seu conteúdo material, reduzindo-se a mero corpo sem
alma.
O próprio conceito de delito se amesquinhado
a mera violação da norma ou de um dever, pois o que importa para tal
concepção não é aquilo que reside no âmago da norma, mas sim a própria
vigência desta.
“Para esta concepção, o bem jurídico não exprime
pura e simplesmente um determinado interesse ou valor que se visou tutelar
através da norma penal, pois não foi este o único elemento que presidiu a
elaboração da norma
106
.
O bem jurídico perde toda autonomia em relação
à norma.
O bem jurídico, sob esta ótica, não passaria de um
meio de interpretação das normas penais, identificado com a ratio desta, o
que permitiria a adaptação de seu conceito a qualquer ideologia.
Aliás, Maria da Conceição Ferreira da Cunha
adverte que a referida linha de raciocínio teve por base uma fundamentação
política.
105
Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, p. 375.
106
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 69.
37
Visava conter os ataques engendrados por juristas
nacional-socialistas
107
, contra a idéia de tutela objetiva que se extraia do
conceito de bem jurídico, tendo em mira uma subjetivação do conceito de
bem jurídico.
No entanto, ao identificar o bem jurídico com o
conteúdo da norma penal, como já dito antes, a aludida teorização serviu de
instrumento utilizado por Estados autoritários para a sustentação de seus
ideais
108
.
Somente após a Segunda Guerra Mundial são
retomadas as discussões a respeito de um conceito de bem jurídico, de
natureza crítica e garantista, em oposição a uma visão moralizante do
Direito Penal, até que na década de setenta do século XX o aludido debate
atinge o seu ponto maior através da construção das teorias
constitucionalistas do bem jurídico-penal.
Antes de analisá-las, no entanto, é conveniente
fazer uma breve incursão nas teorias de cunho sociológico.
1.2.5. – Teorias sociológicas sobre o bem jurídico
Durante o desenvolver da história do bem
jurídico, outras contribuições aportaram na tentativa de precisar o seu
significado e extensão.
Dentre as concepções mais modernas aparecem as
de fundo sociológico, defendidas, dentre outros, por Knut Amelung, Jürgen
Habermas, Günther Jakobs e Winfried Hassemer.
107
“Especialmente a Escola de Kiel (Kieler Schule), que refutou, num primeiro momento, o dogma do
bem jurídico por ser incompatível com as diretrizes do Estado totalitário, para admiti-lo posteriormente,
quando perdeu sua identidade e não passava de instrumento inócuo. Essa Escola representada,
principalmente, por Schaffstein e G. Dahnm sustentou o chamado Direito Penal da vontade
(Willensstrafrecht) ou Direito Penal do Autor (Taterstrafrecht)”. Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e
Constituição, nota 39, p. 39.
108
Cunha, Maria da Conceição Ferreira. “Crime e Constituição”, p. 69/70.
38
É traço comum entre as diversas vertentes das
teorias sociológicas a pretensão de uma aproximação do Direito ao
sociológico, em uma visão daquele enquanto redutor da complexidade e
garante da funcionalidade e eficácia dos sistemas sociais
109
.
Embasado pelas idéias do sistema social de T.
Parsons e Niklas Luhmann
110
, Knut Amelung aparece como defensor de
uma teoria funcionalista da danosidade social, dentro da qual a sociedade
aparece como um complexo de interações, que deve ser estabilizado pelo
Estado através do Direito, com o escopo de alcançar-se a funcionalidade do
sistema.
Note-se que as teorias sistêmicas defendem que,
para conferir estabilidade e funcionalidade ao sistema social, a sociedade,
através da criação de estruturas, distribui funções a cada um dos integrantes
do corpo social, de modo a gerar expectativas de cumprimento nos demais
membros da coletividade, expectativas estas que se vêem frustradas quando
da violação da norma.
Daí a utilização da sanção como instrumento de
reafirmação da vigência da norma, através do qual se restabelece a
funcionalidade do sistema.
De início, Knut Amelung propugna pela
substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade social,
enquanto manifestação de disfuncionalidade, pois segundo ele, “o delito
não é tanto um fato que lesiona ou põe em perigo um bem, senão um
comportamento danoso”
111
.
“Socialmente danoso é, neste sentido, uma
manifestação de disfuncionalidade, um fenômeno social que impede ou
109
Carvalho, Américo A. Taipa de. Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, Separata do
Número Especial do “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em Homenagem aos Profs.
Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz”, Coimbra, 1985, p. 80 e ss, apud Cunha, Maria da
Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime, p. 91..
110
Eduardo Montealegre Lynett ensina que “o direito, na concepção de Niklas Luhmann, é uma estrutura
através da qual se facilita a orientação social, e a norma, uma generalização de expectativas. A
configuração fundamental da sociedade se produz através do direito, e a missão do Direito Penal é
garantir essa configuração. As expectativas sociais se estabilizam através das sanções. Na teoria dos
sistemas, as sociedades modernas se caracterizam por sua complexidade, porque se trata de um mundo
onde tudo é possível, onde tudo pode ocorrer. Precisamente, para facilitar a orientação do homem no
mundo devem-se criar maecanismos que permitam a redução da complexidade, e um deles é a criação de
sistemas sociais, dentro dos quais o direito marca os limites da configuração que se a sim mesma a
sociedade e que a caracteriza de uma determinada maneira” . Introdução à obra de Günther Jakobs, p. 13.
111
Gomes, Luiz Flávio; Molina, Antonio García-Pablos de; Bianchini, Alice. Direito Penal, Volume 1, p.
415.
39
dificulta a superação pelo sistema social dos problemas da sua
sobrevivência e manutenção. Tais fenômenos sociais podem revestir as
formas mais diversificadas (...). O crime é apenas uma forma especial dos
fenómenos disfuncionais e, em geral, raramente o mais perigoso. O crime é
disfuncional enquanto violação de uma norma institucionalizada
(deviance), indispensável para a solução dos problemas de subsistência da
sociedade (...). O seu perigo reside fundamentalmente no facto de impedir a
solução dos problemas do sistema, que põe em questão a vigência de
normas que podem contribuir de alguma forma para esta tarefa. A função
do direito penal, como mecanismo de controlo social é, assim, a de
contrariar o crime”
112
.
Busca-se um conceito de danosidade social pré-
jurídico, que sirva de padrão crítico ao legislador, como servia o conceito
material de crime cunhado no iluminismo, o que, na concepção de Knut
Amelung, não se via na teoria do bem jurídico.
113
Porém, diversamente do caráter individualista que
assumiram as posições forjadas durante o período das luzes, as idéias de
Knut Amelung conferem proeminência ao sistema social, como não
poderia deixar de ser, eis que fundamentada na teoria do sistema social
114
.
Sob a ótica de Knut Amelung, a teoria sistêmica
não se opõe a funcionalização da pessoa, desde que isso se mostre
indispensável para a estabilização do sistema
115
.
Aliás, a instrumentalização da pessoa humana é
uma das principais deficiências da teoria de Knut Amelung. Nela, a pessoa
112
Amelung, K. Rechtsgüterschutz und Schutz de Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 361, apud Andrade,
Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 97.
113
Conforme mencionamos no item 1.2.2. Amelung defendia a tese de que, ao teorizar a doutrina do bem
jurídico, Birnbaum rompia com os ideais iluministas, tomando o rumo do positivismo.
114
Neste sentido, Manuel da Costa Andrade adverte que, no que concerne as relações entre o indivíduo e
a comunidade, “o autor considera serem ostensivas as vantagens da teoria sistêmica, de modelo
cibernético, face às tradicionais e conservadoras teorias do organismo (social), de modelo biológico. Para
estas últimas, o indivíduo só tem sentido enquanto membro da coletividade, estatuto que de alguma forma
implica a dissolução da sua individualidade. Diferentemente, a teoria sistêmica não encara a pessoa ao
contrário do que sucede, por exemplo, com as normas, instituições, papéis, sub-sistemas, estes sim,
membros da sociedade como membro do sistema social. É precisamente aqui que radica a diferença
fundamental entre os dois modelos teóricos: a teoria do sistema social é um produto da alienação entre o
indivíduo e a coletividade, enquanto as doutrinas do organismo procuram superar esta alienação, se bem
que de forma meramente ideal. Em qualquer caso, a teoria do sistema social investiga em primeira linha
‘não as necessidades da pessoa individual, mas antes as exigências da interação entre uma maioria de
pessoas’ (sendo o último trecho extraído da obra de Amelung “Rechtsgüterschutz und Schutz de
Gesellschaft, Frankfurt, 1972, p. 363)”. Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 97/98.
115
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 93.
40
humana é vista apenas como um dos elementos que contribuem para a
funcionalização do sistema
116
.
O indivíduo passa a ter valor não como pessoa em
si, mas apenas como componente do sistema, que coopera para a sua
estabilização.
Outra deficiência desta linha de pensamento
reside em sua neutralidade política.
A aludida teoria muito se preocupa com a
funcionalidade do sistema social, com a preservação de suas estruturas e
das funções que estas cometem aos componentes da coletividade.
Porém, nada diz a respeito dos valores em que
devem se assentar a organização social, cuja funcionalidade se pretende
manter, o que a torna desprovida de conteúdo.
Enfim, acaba por não dizer o que, sob o aspecto
material, deve ser considerado socialmente danoso.
Tal característica que impregna a construção
teórica de Knut Amelung traz perigo, na medida em que também pode ser
aproveitada por qualquer ideologia e, portanto, como instrumento de
sustentação tanto de um Estado democrático, que preza pelos direitos
fundamentais de seus cidadãos, quanto de um Estado totalitário, em que os
referidos valores não são tão caros.
Assim, é fácil constatar que cai por terra a
pretensão inicial que movia Knut Amelung no sentido de formatar uma
base material na qual seria sedimentado o conceito de crime.
Na tentativa de sanar os vícios que acometem sua
teoria, contrariando outra vez o propósito inicial de construir um conceito
de danosidade social desvinculado daquele que atribui ao bem jurídico,
Knut Amelung se socorre deste último, em sua concepção positivista,
concluindo que apenas os problemas fundamentais relacionados à
organização social antecedem o Direito posto, pois a sua solução pode
ser determinada por este.
116
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 93.
41
Nestes termos, o conceito de danosidade social
não ganha autonomia em relação ao de bem jurídico. Ao contrário, se torna
seu complemento.
Como na sua concepção, o conceito de bem
jurídico tem caráter positivista, quem acaba definindo aquilo que pode ser
objeto de tutela do Direito Penal é o próprio legislador penal.
Assim, a mencionada linha de pensamento peca
pelos mesmos vícios apresentados pelas teorias defendidas por Karl Bindig
e R. Honig, apresentando enorme capacidade de adequação as mais
diversas ideologias, podendo ser utilizada como sustentação de regimes
autoritários.
No campo do Direito Penal, adotando uma
concepção funcionalista sistêmica extremada Günther Jakobs conclui que
“a contribuição que o Direito Penal presta à manutenção da configuração
social e estatal reside em garantir as normas. A garantia consiste em que as
expectativas imprescindíveis para o funcionamento da vida social, na forma
dada e na exigida legalmente, não se dêem por perdidas caso resultem
defraudadas. Por isso - ainda contradizendo a linguagem usual se deve
definir como o bem a proteger a firmeza das expectativas normativas
essenciais frente à decepção, firmeza frente às decepções que tem o mesmo
âmbito que a vigência da norma posta em prática; este bem se denominará
a partir de agora bem jurídico-penal
117
.
“O centro de proteção do Direito Penal, no
pensamento de Günther Jakobs, deixa de ser os bens jurídicos em si, mas o
reconhecimento da validade das normas e a confiança que deve inspirar nos
cidadãos que a elas aderiram
118
.
Neste contexto, a infração penal aparece como
fator de confronto à prescrição normativa, que é contrariado pela pena,
como medida destinada ao restabelecimento da obediência à norma
119
.
117
Jakobs, Günther. Derecho Penal, p. 45. “La contribución que el Derecho penal presta al
mantenimiento de la configuración social y estatal reside em garantizar las norma. La garantia consiste
em que las expectativas imprescindíbles para el funcionamiento de la vida social,, en la forma dada y em
la exigida legalmente,, no se den por perdidas em caso de que resulten defraudadas. Por eso aun
contradiciendo el lenguaje usual se debe definir como el bien a proteger la firmeza de las expectativas
normativas essenciales frente a la decepción, firmeza frente a las decepciones que tiene el mismo ámbito
que la vigencia de la norma puesta en práctica; este bien se denominará a partir de ahora bien jurídico-
penal”.
118
Camargo, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal, p.
56.
119
Sobre a pena, Jakobs afirma que su misión és mas bien reafirmar la vigencia de la norma, debiendo
equiparar-se, a tal efecto, vigencia y reconocimiento” . Derecho Penal, p. 13/14.
42
Por tudo isso, Antonio Luís Chaves Camargo
escreve que “Jakobs, a partir de uma teoria sistêmica, de cunho normativo,
atribui à pena, não uma função retributiva, negativa, mas, de modo
positivo, se apresenta como uma demonstração da vigência da norma por
conta de um responsável, e tem por finalidade estabilizar a norma
lesionada”
120
.
Note-se que a sanção penal não terá por fim a
prevenção de um dano a um bem jurídico ou a reparação a este dano, mas
pura e simplesmente a reafirmação da vigência da norma.
Günther Jakobs sustenta que “a pena, como
resposta à violação da norma, situa-se no mesmo contexto de significado
que esta, e simboliza, por sua vez, a contradição desta violação ou, dito em
termos positivos, que a norma infringida continua sendo, apesar de sua
violação, a regra de comportamento em que se pode continuar
confiando
121
”.
No que toca a concepção de Günther Jakobs,
Gustavo Octaviano Diniz Junqueira pontua que “é possível verificar grande
influência da teoria hegeliana, uma vez que ao aplicar a pena a negação
da negação do ordenamento, que funciona como sua afirmação, na toada do
que afirmava o filósofo, embora a nova leitura traga como foco os efeitos
externos da imposição da sanção”
122
.
Segundo Eduardo Montealegre Lynett “se trata de
uma nova leitura de Hegel através da concepção do direito de Niklas
Luhmann”
123
No entanto, as mesmas críticas tecidas contra a
teoria de Knut Amelung podem ser dirigidas à visão de Günther Jakobs do
Direito Penal, de nítido caráter funcionalista.
Impulsionar o Direito Penal neste sentido é
extremamente perigoso, em razão da evidente instrumentalização da pessoa
humana.
120
Camargo, Antonio Luis. Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal, p. 55.
121
Ramos, Enrique Peñaranda; González, Carlos Suárez; Meliá, Manuel Cancio. Um Novo Sistema do
Direito Penal, p. 08.
122
Junqueira, Gustavo Octaviano Diniz. Finalidades da Pena, p. 70/71.
123
Lynett, Eduardo Montealegre. Introdução à obra de Günther Jakobs, p. 12.
43
Aliás, ao dissertar sobre os inconvenientes da
adoção de uma teoria nestes moldes, Antonio Luís Chaves Camargo
menciona que outra crítica que se faz a ela “refere-se à manipulação do
homem, referida por Kant, quando negava qualquer possibilidade de o
homem ser um meio para atingir-se um fim
124
”.
Segue a mesma trilha Luigi Ferrajoli ao assegurar
que “claro está que esta doutrina, ao reduzir o indivíduo à condição de
‘subsistema físico-psíquico’, funcionalmente subordinado às exigências do
sistema social geral, é inevitavelmente solidária com modelos de direito
penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à tutela dos
direitos da pessoa”
125
.
O mesmo que foi dito em relação à Knut Amelung
cabe à Günther Jakobs, no que toca a neutralidade política de seu
pensamento e a perigosa possibilidade de utilizá-lo como instrumento de
sustentação de regimes autoritários.
Winfried Hassemer, por sua vez, estabelece como
exigência fundamental para a intervenção do legislador penal a verificação
de um dano social, mas deixa clara a sua preocupação em impregnar o bem
jurídico penal de conteúdo político-criminal.
“O que importa não é a posição objetiva do bem e
da conduta lesiva, mas a valoração subjetiva, com as variantes dos
contextos social e cultural”
126
.
Winfried Hassemer ressalta a importância de
assinalar no Direito Penal sua natureza de ciência social, de modo que dele
se extraia uma feição humanista
127
.
Para Winfried Hassemer “a humanização do
Direito Penal é atingida quando seus instrumentos cumprem seu objetivo,
ajudando a garantir a proteção formalizada dos interesses fundamentais”
128
.
“O princípio da humanidade é o retor do Direito
Penal e da política criminal, pois uma teoria personalista do bem jurídico e
124
Camargo, Antonio Luis. Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal, p. 57.
125
Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão, p. 222.
126
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 40.
127
Camargo, Antonio Luís Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro, p. 34.
128
Idem, p. 34.
44
o controle formalizado da desviação o os caminhos para atingir-se as
metas exclusivas de proteção dos interesses humanos”
129
.
“O pensamento de Hassemer é no sentido de que a
pena, como instrumento mais violento de controle social, pela ausência de
outros, não tem apenas um fim intimidatório, mas para assegurar as
normas, influindo em outros processos de controle social. a presença
sociológica nestas propostas, pois o Direito Penal, depois de adotar as
orientações das ciências naturais, volta-se para um momento empírico de
seu pensamento com orientação para as ciências sociais. A esta mudança de
conceito justifica a afirmativa de que as normas, ao convencer as pessoas,
atuam no sentido de demonstrar a idoneidade para uma melhor
convivência. Por estas razões, não podem ser excessivamente gravosas,
mas como meios de garantia dos bens jurídicos e para possibilitar a
liberdade humana”
130
.
Jürgen Habermas condensa seu pensamento no
que denomina de teoria do consenso, segundo a qual seria o consenso
social que legitimaria as decisões, defendendo que para a verificação de tal
consenso seria indispensável o estabelecimento de uma situação ideal de
diálogo, consubstanciada na possibilidade de todos os destinatários das
normas participarem de sua elaboração, com o único propósito de alcançar
uma decisão racional
131
.
Ao Direito caberia proporcionar a situação ideal
de diálogo.
Através do consenso social Jürgen Habermas
busca possibilitar a exteriorização da identidade racional de cada
sociedade, o que, no seu entender, seria um critério válido para a criação do
bem jurídico.
Jürgen Habermas conclui que nas sociedades
atuais o consenso deve ser atingido através de um processo de comunicação
fundado na argumentação racional, que, segundo ele, constitui o filtro da
tradição, e, portanto, de preconceitos, motivo pelo qual é capaz da
confecção de estruturas valorativas e normativas novas
132
.
129
Camargo, Antonio Luís Chaves. Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro, p. 35.
130
Camargo, Antonio Luís Chaves. Sistema de Penas, Dogmática Jurídico-Penal e Política Criminal, p.
52/53.
131
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 97/98.
132
Idem, p. 98.
45
Nestes termos, seria possível falar em
criminalização legítima quando houvesse um racional consenso
intersubjetivo ou, ao menos, a possibilidade de suscitá-lo, tudo porque o
consenso constituiria um critério de verdade, depurado de emoções e
motivações particulares
133
.
Ocorre que é difícil senão impossível concretizar
o ideal de rgen Habermas, uma vez que se mostra inviável visualizar no
plano concreto a criação da situação ideal de diálogo, bem como a
participação dos destinatários da norma isentos de seus interesses pessoais.
Na verdade, conforme pondera Luiz Regis Prado,
“nenhuma teoria sociológica conseguiu formular um conceito material de
bem jurídico capaz de expressar não o que é que lesiona uma conduta
delitiva, como também responder, de modo convincente, porque uma certa
sociedade criminaliza exatamente determinados comportamentos e não
outros”
134
.
Assim, nenhuma delas atingiu o desiderato que se
deseja alcançar através das idéias que compõe o objeto deste trabalho, ou
seja, a concretização de um padrão crítico, transistemático, apto a orientar o
legislador penal no exercício de sua atividade precípua, através de um
conceito material de bem jurídico.
1.2.6. – O Estudo do Bem jurídico no Brasil
Embora no Brasil o estudo do bem jurídico não
tenha alcançado a profundidade que a importância do tema impõe não se
pode negar que, com preciosas contribuições, juristas pátrios também
enriqueceram o debate sobre tema.
Os penalistas brasileiros não fizeram “vistas
grossas” à necessidade da fixação de um limite material para as normas
penais incriminadoras, consistente na exigência de que as mesmas
133
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 99.
134
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 44.
46
destinem-se apenas a proteção de valores fundamentais à convivência
social.
Longe da intenção de reproduzir o pensamento de
todos os aqueles que no Brasil se dedicaram ao estudo da questão, é bom
lembrar que, ao tecer comentários sob a faceta material do delito, Basileu
Garcia afirmava que “as definições substanciais de crime põem, em relevo,
sem uniformidade, aspectos particulares da noção de crime: o seu caráter
danoso ou, pelo menos, perigoso, a perturbação que acarreta às condições
vitais da sociedade (...)”
135
.
Deste modo, Basileu Garcia deixa claro que não é
tudo que pode ser objeto de tutela penal, mas, segundo uma definição
substancial do crime, somente aquilo que implique em lesão, ou ao menos,
exposição a perigo dos pressupostos indispensáveis à convivência em
sociedade.
Nelson Hungria, por outro lado, salientava a
importância do aspecto material do crime quando aduzia que “o direito
penal não protege interesses jurídicos do indivíduo (ainda quando constitui
direitos subjetivos) porque sejam tais, mas sòmente per accidens, isto é,
somente quando e enquanto coincide sua proteção com interesses
socialmente relevantes”
136
.
A mesma trilha seguiu José Frederico Marques ao
lembrar que, além da definição estritamente formal, o crime apresenta um
conteúdo revestido de aspectos éticos e que revela o que há de finalístico na
ordem normativa do Direito Penal
137
.
Aníbal Bruno, por sua vez, proclamava que o “fim
do Direito Penal é, portanto, a defesa da sociedade, pela proteção de bens
jurídicos fundamentais”
138
.
Dando continuidade à sua linha de raciocínio, e
adotando a concepção de Franz Von Liszt, o mencionado autor ressaltava
que se entende por bem jurídico “tudo o que pode satisfazer uma
necessidade humana e, nesse sentido, é tutelado pelo Direito. São interesses
fundamentais do indivíduo ou da sociedade, que, pelo seu valor social, a
consciência comum do grupo ou das camadas sociais nele dominantes
135
Garcia, Basileu. Instituições de Direito Penal, p. 193.
136
Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. V, p. 9.
137
Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal, Vol. 2, p. 2.
138
Bruno, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, p. 28.
47
elevam à categoria de bens jurídicos, julgando-os merecedores da tutela do
Direito, ou, em particular, da tutela mais severa do Direito Penal”
139
.
Sintetizando, Aníbal Bruno assevera que “o bem
jurídico é o elemento central do preceito punível que se encontra e na
qual está implícito o preceito”
140
.
Heleno Cláudio Fragoso também conferiu
relevância ao estudo da objetividade jurídica do delito, assegurando que se
trata de tema fundamental para a determinação do conceito e essência do
crime
141
.
Meticulosamente, depois de tecer longo e
detalhado comentário sobre a evolução histórica do conceito de bem
jurídico, Heleno Cláudio Fragoso estabelece a distinção entre objeto
material do crime e seu objeto formal, mencionado que aquele “constitui o
objeto corpóreo (coisa ou pessoa), incluído na definição do delito sobre o
qual recai a ação punível”
142
, enquanto este constituiria um direito público
subjetivo do Estado à observância do preceito penal, violado pela ação
delituosa
143
.
Menciona que se a norma penal impõe um dever,
o crime constitui a violação do mesmo. Continua, dizendo que
“evidentemente, o estabelecimento ou a imposição de um dever jurídico,
que surge com a norma penal, não significa que tal dever seja um fim em
si: a violação de um dever é, por assim dizer, o modo de ser da infração
penal, que somente adquire sentido como meio para a obtenção de uma
conduta socialmente útil, vale dizer, como meio de tutela de um valor
social”
144
.
Edgard Magalhães Noronha não fugiu do debate e
dissertando sobre o conceito de crime garantiu que “a definição formal não
esgota o assunto. nele sempre uma petição de princípio. Por que essa
conduta transgride a lei? Qual a razão que levou o legislador a puni-la?
Qual o critério que adotou para distingui-la de outras ações também
lesivas?”
145
.
139
Bruno, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, p. 28/30.
140
Idem, p. 30/31.
141
Fragoso, Heleno Cláudio. Direito Penal e Direitos Humanos, p. 34.
142
Idem.
143
Idem, p. 53.
144
Idem, p. 58.
145
Noronha, Edgard Magalhães. Direito Penal, p. 93.
48
Mais adiante, Edgard Magalhães Noronha
assevera que a finalidade das normas legais é tutelar bens-interesses
necessários a coexistência social, sendo que bem seria tudo o que satisfaz
as necessidades da existência do indivíduo na vida em sociedade e interesse
a representação psicológica desse bem, a sua estima.
146
Acrescenta que, em razão da fundamental
relevância de alguns deles, o Estado os protege com a sanção mais severa,
que é a pena.
Conclui, finalmente, que “crime é a conduta
humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei
penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda norma penal tem
por finalidade sua tutela”
147
.
Note-se que a doutrina mais recente não passou a
distância da questão.
Francisco de Assis Toledo, por exemplo, foi claro
ao subordinar a intervenção penal à lesão de um bem jurídico,
esclarecendo, no entanto, que não será qualquer ofensa que legitimará a
incidência da norma penal e, muito menos, qualquer bem jurídico que
poderá contar com a tutela do Direito Penal
148
.
Juarez Tavares, a seu turno, estabelece o
significado de tipo de injusto como “a descrição legal da conduta
criminosa”
149
. Prossegue, afirmando que “tipicidade vem a ser a
configuração concreta desse tipo de injusto através da realização de
determinada conduta ou, dito de outro modo, a conformidade entre a
descrição legal da conduta criminosa e a prática de um fato concreto, que
ofenda um bem jurídico alheio”
150
.
Discorrendo sobre a missão do Direito Penal, Nilo
Batista menciona que cabe a ele “a proteção de bens jurídicos, através da
cominação, aplicação e execução da pena”
151
.
Miguel Reale Júnior também se ocupou com o
tema da concepção material do crime, deixando clara sua percepção de que
146
Noronha, Edgard Magalhães. Direito Penal, p. 94.
147
Idem, p. 93.
148
Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, p. 13/14.
149
Tavares Juarez. Teoria do Injusto Penal, p. 126.
150
Idem, p. 126.
151
Batista, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 116.
49
os bens jurídicos são extraídos da própria sociedade e que antecedem a
elaboração da norma, conferindo a ele um caráter transistemático
152
.
Adverte, ainda, que “a idéia de Estado de Direito
é inseparável, contudo, da idéia de limites”
153
.
A este propósito, Miguel Reale Júnior acrescenta
ainda que o primeiro deles a ser examinado “é o limite material da norma
incriminadora, que deve visar a proteção de valores fundamentais à
convivência social”
154
.
Prossegue, aduzindo que “a intervenção penal
deve ser aquela necessária, como único meio, forte, para a afirmação do
valor violado, e para a sua proteção, visando à manutenção da paz
social”
155
Seguindo a mencionada ordem de idéias, Miguel
Reale Júnior arremata seu pensamento dizendo que “o bem jurídico exerce,
na esfera da Política Criminal, importante função ao orientar o legislador
na decisão de qual conduta deva ser reprimida por meio de ameaça
penal”
156
.
Há autores ainda, dentre os quais se destacam,
Luiz Luisi
157
, Luiz Régis Prado
158
, Luiz Flávio Gomes
159
, Maurício
Antonio Ribeiro Lopes
160
, Luciano Feldens
161
, Márcia Dometila Lima de
Carvalho
162
, Railda Saraiva, Janaína Conceição Paschoal
163
e Guilherme
Gouvêa de Figueiredo
164
, que procuram conferir ao tema uma ancoragem
constitucional, debatendo questões como a exigência ou não da
consagração constitucional dos valores para que eles possam ostentar
152
“O direito institucionaliza, via comandos normativos, o proibido e o permitido, que inconscientemente
e em latência já atuavam de certo modo no meio social. O Estado (legislador) como centro de poder, ao
estabelecer as normas, sofre o impulso das influências sociais e históricas, mas instaurando os seus
comandos, nestes as absorve e supera, definindo-as em função de situações concretas (...)”. Reale Júnior,
Miguel. Teoria do Delito, p. 17.
153
Rale Júnior, Miguel. Instituições de Direito Penal, Volume I, p. 20.
154
Rale Júnior, Miguel. Instituições de Direito Penal, Volume I, p. 21.
155
Idem, p. 21/22.
156
Idem, p. 29
157
Luisi, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais.
158
Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição
159
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal.
160
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito Penal.
161
Feldens, Luciano. A Constituição Penal.
162
Carvalho, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal.
163
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo.
164
Figueiredo, Guilherme Gouvêa de. Crimes Ambientais à Luz do Conceito de Bem Jurídico-Penal.
50
dignidade penal, bem como temas relacionados às imposições
constitucionais de criminalização, tópicos estes que serão devidamente
analisados no curso do presente trabalho.
1.3. – Conceito e funções do bem jurídico.
A síntese evolutiva elaborada até o momento nos
parece suficiente, ao menos para demonstrar a polêmica e as incertezas que
cercaram as tentativas de elaboração de um conceito de bem jurídico, bem
como o seu potencial para fundamentar e limitar o direito de punir do
Estado.
Se é indiscutível que a grande maioria dos
doutrinadores, de forma pacífica, acolhem o postulado de que, sob o
aspecto substancial, o crime consiste na violação, ou ao menos exposição a
perigo, de um bem jurídico, observa-se que não existe a mesma
concordância no que toca a elaboração do conceito de bem jurídico.
Mas, qualquer que seja a configuração que se
ao bem jurídico, é inevitável consignar que o objeto jurídico do crime não
se confunde com seu objeto material (que em alguns casos sequer existe -
crimes de mera conduta), embora ambos os conceitos se relacionem entre
si.
O objeto material do crime é aquele elemento do
tipo penal, de natureza corpórea ou incorpórea, sobre o qual incide a
conduta que constitui o seu núcleo.
Portanto, o objeto material, por consistir elemento
da própria estrutura típica, não é comum a todo e qualquer crime,
apresentando-se somente quando a sua consumação exigir uma
modificação do mundo exterior, provocada pela conduta estampada na
definição abstrata da infração penal, contida na lei.
51
O objeto jurídico por sua vez se reveste de caráter
axiológico, representando aquilo sobre o que recai a tutela penal. Assim,
não que se falar em crime sem objeto jurídico, eis que, se é possível a
existência de crime sem resultado naturalístico (de mera conduta), é
inconcebível crime sem resultado jurídico, ou seja, sem lesão ou exposição
à perigo do bem jurídico penalmente tutelado.
“A lesão ao bem jurídico diz respeito à relação
entre a ação típica e o valor protegido pela norma penal, que pode
encarnar-se ou não no objeto da ação”
165
.
Também são inconfundíveis as noções de bens
jurídicos e funções (motivos ou razões da tutela), pois a tutela penal deve
restringir-se àqueles e jamais estender-se a estas.
A função é axiologicamente neutra e, por isso,
diversamente do que ocorre com o bem jurídico, que é puro juízo de valor,
não pode ser objeto de proteção penal.
Contudo, no que diz respeito a conceituação do
bem jurídico, deve ser ressaltado que, de início, sob influência do
neokantismo, em um enfoque meramente espiritualista, o mesmo foi
concebido como valor cultural, baseado em necessidades individuais, que,
quando socialmente dominantes, transformam-se em valor de cultura, que,
por sua vez, torna-se bem jurídico quando se verifica que a confiança na
sua existência exigiria a proteção jurídica
166
.
De outra banda, num aspecto objetivo, Hans
Welzel conceitua o bem jurídico como “um bem vital da comunidade ou do
indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente”
167
.
Segundo ele, bem jurídico é todo o estado social
desejado que o Direito quer resguardar de lesões”
168
.
Em sua concepção, o significado de bem jurídico
não deve ser analisado de forma isolada, mas em conexão com toda a
ordem social, mesmo porque a missão do Direito Penal se circunscreve a
165
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 56.
166
Idem, p. 44.
167
Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, p. 5. “Bien jurídico es um bien vital de la comunidad o del
individuo, que por su significación social es protegido jurídicamente”.
168
Idem. “(...) bien jurídico es todo estado social deseable que el Derecho quiere resguardar de
lesiones”.
52
tutela de bens jurídicos, mediante a protão de elementares valores ético-
sociais da ação
169
.
Estabelecendo a importância tanto do desvalor da
ação quanto o do resultado, Welzel explica que o Direito Penal busca evitar
este mediante a proibição daquela, de forma a assegurar a vigência dos
valores de ação ético-sociais, em que se assentariam os bens jurídicos
170
.
Sem descurar do desvalor do resultado, Hans
Welzel eleva a importância da valoração ético-social da ação.
Observe-se que a estabilização dos valores ético-
sociais da ação através da intervenção penal somente é admissível quando
se verifique a ofensa ou a potencialidade de lesão à um bem jurídico.
Por isso que Luiz Regis Prado, embasado no
pensamento de Winfried Hassemer e de Francisco Muñoz Conde, deixa
claro que, segundo a posição de Hans Welzel, a intervenção penal está
subordinada a obediência não do princípio da legalidade, como também
do da exclusiva proteção de bens jurídicos
171
.
Firmando a distinção entre objeto jurídico e objeto
material do crime e adotando uma vertente ético-valorativa, Giuseppe
Bettiol acaba por externar o seu conceito de bem jurídico, assinalando que
o objeto jurídico do crime “é a posse ou a vida, isto é, o valor” que a
norma jurídica tutela, valor que nunca pode considerar-se como qualquer
coisa de material, embora tenha a ligação com a matéria”
172
.
Hans-Heinrich Jescheck assevera que os bens
jurídicos constituem “bens vitais imprescindíveis para a convivência das
pessoas na comunidade e que, por isso, devem ser protegidos através da
coação estatal mediante o recurso da pena pública”
173
.
Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán
sustentam que “bens jurídicos são aqueles pressupostos que a pessoa
169
Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, p. 5
170
Idem, p. 2.
171
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 45/46.
172
Bettiol, Giuseppe. Direito Penal, p. 323.
173
Jescheck, Hans-Heinrich e mWeigend, Thomas. Tratado de Derecho Penal, p. 07/08. “(...) bienes
vitales que son imprescindibles para la convivencia de las personas em la comunidad y que, por ello,
deben ser protegidos a través de la coacción estatal mediante el recurso a la pena pública”.,
53
necessita para sua auto-realização e o desenvolvimento de sua
personalidade na vida social”
174
.
Hans-Joachim Rudolphi assegura que os bens
jurídicos constituem “interesses funcionais valiosos constitutivos da nossa
vida em sociedade, na sua forma concreta de organização”
175
.
Para Miguel Polaino Navarrete bens jurídicos são
“os bens e valores mais sólidos da ordem de convivência humana em
condições de dignidade e desenvolvimento da pessoa em sociedade”
176
.
Claus Roxin, por sua vez, em sua última
manifestação sobre o tema, ensina que “os bens jurídicos são circunstâncias
dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre
desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a
base dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio
sistema”.
177
.
Jorge de Figueiredo Dias define bem jurídico
como “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na
manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si
mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como
valioso”
178
.
Note-se que a doutrina pátria não se mostrou
imune às divergências conceituais acima apontadas.
Aníbal Bruno deixa claro que os bens jurídicos
“são valores, valores de vida individual ou coletiva, valores da cultura, que,
na maioria dos casos, fazem objeto de preceitos tanto jurídicos quanto
morais”.
179
.
174
Conde, Francisco Muñoz e Arán, Mercedes Garcia. Derecho Penal – Parte General, p. 59.
175
Rudolphi, Hans-Joachim. Die verschiedenen Aspekte des Rechtsgutsbegriffs. In: Festschrift für
Richard M. Honig. Göttingen: Verlag, 1970, p. 166, apud Prado, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e
Constituição, p. 46.
176
Navarrete, Miguel Polaino. El Bien Jurídico em el Derecho Penal, Universidad de Sevilha, 1974, p.
356, apud Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 83.
177
Roxin, Claus. Derecho Penal, p. 56. “los bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que
son útiles para el individuo y su libre desarrollo em el marco de um sistema social global estructurado
sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del próprio sistema”.
178
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 114.
179
Bruno, Aníbal. Direito Penal, p. 31.
54
Edgard Magalhães Noronha ao tecer comentários
sobre o objeto jurídico do crime revela o seu conceito de bem jurídico
como sendo o “bem-interesse protegido pela norma penal”
180
.
Heleno Cláudio Fragoso consigna que o bem
jurídico “é o bem humano ou da vida social que se procura preservar, cuja
natureza e qualidade depende, sem dúvida, do sentido que a norma tem ou
que a ela é atribuído, constituindo, em qualquer caso, uma realidade
contemplada pelo direito”
181
.
Evidenciando o aspecto objetivo que confere ao
seu conceito, Heleno Cláudio Fragoso salienta que “bem não é o interesse
protegido. Objeto da tutela é o bem, não o interesse, mas nada impede que
a este se refira o intérprete, pois se trata, tão-somente, de um aspecto
subjetivo ou de um juízo de valor sobre o bem como tal. Inaceitável é o
conceito objetivo de interesse, pois este denota sempre uma atitude mental.
Não é possível afirmar que existe um interesse, sem um juízo ou uma
opinião sobre a capacidade ou idoneidade do bem para satisfazer uma
necessidade”
182
.
Endossando a perspectiva lançada por Hans
Welzel, Francisco de Assis Toledo acaba por redigir o conceito de bem
jurídico nos seguintes termos: bens jurídicos são valores ético-sociais que
o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob
sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões
efetivas”
183
.
Em linha similar, Cezar Roberto Bitencourt
escreve que “o bem jurídico pode ser definido como todo valor da vida
humana protegido pelo Direito”
184
.
Luiz Régis Prado conceitua o bem jurídico como
“um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto
social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como
essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso,
jurídico-penalmente protegido”
185
.
180
Noronha, Edgard Magalhães. Direito Penal, p. 112.
181
Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 266.
182
Idem.
183
Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, p. 16.
184
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, volume 1, p. 7.
185
Prado, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, p. 257.
55
Luiz Flávio Gomes, por sua vez, concebe o bem
jurídico como “bens existenciais (pessoais) valorados positivamente e
protegidos dentro e nos limites de uma determinada ‘relação social
conflitiva’ por uma norma penal”
186
.
A menção a vários conceitos, confeccionados por
doutrinadores estrangeiros e pátrios sob óticas diversas do tema, que no
presente trabalho sucedem a uma síntese da evolução histórica dos
mesmos, demonstra a exatidão do pensamento de Manuel da Costa
Andrade, anteriormente mencionado, no sentido de que se definiu o
bem jurídico como de índole extra-jurídica e, a par disso, como conceito
puramente jurídico; como puramente espiritual e imaterial e, a par disso,
como meramente empírico-naturalista; como entidade consistentemente
substancial ou como essência puramente relacional; como imanente ao
sistema e acrítico e, simultaneamente como transistemático e crítico; como
de sentido liberal, garante da liberdade e da tolerância, e como fundamento
da criminalização, mesmo, como instrumento de legitimação do direito
penal mais totalitário
187
.
Mas, o certo é que, concebendo o bem jurídico
como bem material ou imaterial, valor ou interesse, a quase unanimidade
da doutrina não discute mais a imprescindibilidade de uma idéia
substancial de crime, a limitar e fundamentar a intervenção estatal no
âmbito penal.
“O essencial reside no caráter de
fundamentalidade de que os bens se devem revestir para a realização
humana em comunidade e não na sua natureza material ou imaterial.
Assim, essencial é que as valorações feitas pelo legislador tenham em conta
a vida do Homem em sociedade, naquela sociedade em concreto, de uma
forma realista e global, ou seja, atentando aos pressupostos (condições)
vitais para a sua realização, pressupostos estes que incluem,
necessariamente, bens materiais e valores ideais (bens imateriais), pois nem
os bens com substracto material, apreensível pelos sentidos, são postos
em perigo ou lesionados, os susceptíveis de causarem danos sociais....”
188
.
“A noção de bem jurídico decorre das
necessidades do homem surgidas na experiência concreta da vida que,
‘enquanto dados sociais e historicamente vinculados à experiência humana,
têm uma objetividade e uma universalidade que possibilitam sua
186
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 133.
187
Andrade, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia, p. 391.
188
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 88.
56
generalização, através da discussão racional e o consenso, e sua concreção
em postulados axiológicos materiais’”
189
.
Daí resulta a função de garantia ou limitadora que
o bem jurídico exerce sobre o direito de punir do Estado.
Sob esta ótica, de nítido matiz político-criminal,
que é a que nos interessa no presente trabalho, o bem jurídico se apresenta
como a dimensão material da norma penal incriminadora, limitando e
legitimando a atividade legiferante no que diz respeito à criminalização e
descriminalização de condutas.
Sem prejuízo da função garantista acima
alinhavada, é interessante lembrar que o bem jurídico desempenha outros
papéis no Direito penal, seja como critério de interpretação dos tipos
penais, seja como parâmetro de individualização da pena, seja como
elemento de sistematização da matéria.
No entanto, não nos debruçaremos sob estes
outros aspectos, pois os mesmos se afastam do objetivo a que nos
propusemos de início, ou seja, o estudo do bem jurídico, enquanto essência
de um conceito material de crime, apto a fundamentar e limitar a atuação
legislativa no âmbito penal.
189
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 49/50.
57
2. – Bem Jurídico-penal e Constituição
2.1. – Considerações preliminares
Conforme restou evidenciado no capitulo anterior,
num Direito Penal assentado nas bases de um Estado Democrático de
Direito, quase não se discute mais sobre a imprescindibilidade de um
conceito material de crime, que ostente o bem jurídico como essência, para
fundamentar e limitar o poder punitivo estatal
190
.
Vimos também que inúmeros foram os esforços
empreendidos na tentativa de se estabelecer um conceito unívoco de bem
jurídico, não se obtendo êxito em tal intento, eis que a questão foi posta
pelos juristas sob diversas óticas e o seu significado acabou assumindo
contornos diversos.
No entanto, todos consentem que, no fundo,
qualquer que seja o conceito que se estabeleça para o objeto do nosso
estudo, ele deverá traduzir aqueles bens, valores ou interesses
fundamentais, que representam os pressupostos indispensáveis para a
manutenção da vida em sociedade.
190
Aliás, de encontro com o tal posicionamento, Alberto Silva Franco ensina que “o ius puniendi do
Estado Democrático (e Social) de Direito não é, nem poderia ser, um direito estatal, de caráter arbitrário,
sem freios nem limites”
.
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 50.
58
Porém, neste estágio, ainda tudo é muito abstrato
e se não nos preocuparmos em transportar essas idéias para um nível de
maior concretude, de nada valerá o esforço até então empreendido
191
.
Em poucas palavras, é dizer que, qualquer que
seja o conceito talhado para o bem jurídico, é indispensável concretizá-lo, o
que somente será possível através de um instrumento mediatizador, que,
através do estabelecimento de parâmetros, vincule o legislador penal na
escolha do objeto de tutela.
A este propósito, também é certo que a doutrina
majoritária, à qual aderimos no presente trabalho, vem apontando a
Constituição de cada Estado, como o único instrumento legítimo para
concretizar a aludida mediatização.
Mas, por qual razão seria a Constituição a eleita
como o instrumento adequado para delinear as fronteiras dentro das quais o
Direito Penal poderá incidir legitimamente?
Por que seria a Constituição a responsável pela
mediatização de um conceito crítico de bem jurídico?
É de indagar-se também sobre a forma como a
Constituição procederia a aludida mediatização.
Ora, se é a Constituição de um Estado que alberga
os valores mais caros da sociedade organizada por ele, é exatamente nela,
seja de forma explícita ou implícita, que o legislador encontrará aqueles
fundamentais e indispensáveis para a manutenção da vida em comunidade.
Conforme precisa constatação de Luiz Flávio
Gomes, “o ponto de partida da tese de que a Constituição exerce direta
influência no conteúdo das normas penais consiste em considerar que os
valores básicos constitucionalizados constituem os elementos axiológicos,
de natureza ético-jurídica, que conferem unidade, fundamento e
191
Por isso, ao referir-se aos diversos enfoques que foram dados ao conceito de bem jurídico, Luiz Luisi
menciona que “seja os que encaram o bem jurídico enquanto preexistente à próprio ordem jurídica, como
os que acentuam a sua natureza funcional ou sistêmica, primam pela carência de concretude, posto que
não definem conteúdos, ou seja, não dizem , por exemplo: quais as unidades sociais de função ou quais
das disfunções afetam a conservação do sistema, e o quantum de nocividade social das mesmas. Em
verdade, como acentuou Fernando Mantovani, o bem jurídico tem sido reduzido à categoria formal que os
diferentes Estados usam para tutelar os bens que entendem, na ótica ideológica de cada um, mais
relevantes e necessários de preservação. Não exerce, por essa razão, a função limitadora da
criminalização para tornar-se tudo o que o legislador pretende tutelar”. Luisi, Luiz. Os Princípios
Constitucionais Penais, p. 171/172.
59
legitimidade ao conjunto da ordem jurídico-política da comunidade, são
valores que estão em permanente inter-relação e que acabam conformando
um autêntico sistema axiológico constitucional, vertebrado ao redor do
valor-síntese que é o da dignidade da pessoa humana
192
.
Prossegue o aludido autor asseverando que “o
sistema axiológico subscrito pela norma fundamental do Estado supõe uma
verdadeira ‘referência material’ para qualquer norma integrante do
ordenamento jurídico”
193
.
Maria Conceição Ferreira da Cunha nos lembra de
que “quando falamos em Constituição, convirá precisar, referimo-nos à
Constituição material
194
, enquanto conjunto de princípios, direitos e valores
fundamentais de uma ordem jurídica, atendendo ainda à própria realidade
constitucional, mesmo que não estejam expressamente positivados no texto
Constitucional (...)”
195
.
É importante deixar claro também que fazemos
referência a uma Constituição rígida
196
, pois, caso contrário, inviável seria
pensar em vinculação do legislador infraconstitucional a ela.
192
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 87.
193
Idem, p. 88.
194
Jorge Miranda nos ensina que “há duas perspectivas por que pode ser considerada a Constituição: uma
perspectiva material – em que se atende ao seu objeto, ao seu conteúdo ou a sua função; e uma
perspectiva formal em que se atende à posição das normas constitucionais em face das demais normas
jurídicas e ao modo como se articulam e se recortam no plano sistemático do ordenamento jurídico. A
estas perspectivas vão corresponder diferentes sentidos, não isolados, mas interdependentes. De uma
perspectiva material, a Constituição consiste no estatuto jurídico do Estado ou, doutro prisma, no estatuto
jurídico do político, estrutura o Estado e o Direito do Estado (...). A perspectiva formal vem a ser a de
disposição das normas constitucionais ou do seu sistema diante das demais normas ou do ordenamento
jurídico em geral. Através dela, chega-se à Constituição em sentido formal como complexo de normas
formalmente qualificadas de constitucionais e revestidas de força jurídica superior à de quaisquer outras
normas”. Miranda, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, p. 321/322. Embora discordando da
aludida distinção, eis que, no seu entender, não se coaduna com a compreensão das dimensões do Direito
Constitucional contemporâneo, Jo Afonso da Silva explica que “a ampliação do conteúdo da
constituição gerou a distinção, vista, entre constituição em sentido material e constituição em sentido
formal. Segundo a doutrina tradicional, as prescrições das constituições, que não se refiram à estrutura do
Estado, à organização dos poderes, seu exercício e aos direitos do homem e respectivas garantias, são
constitucionais em virtude da natureza do documento a que aderem; por isso, diz-se que são
constitucionais apenas do ponto de vista formal”. Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional
Positivo, p. 43. No mesmo sentido se projetam os ensinamentos de Alexandre de Mores quando diz que a
“Constituição material consiste no conjunto de regras materialmente constitucionais, estejam ou não
codificadas em um único documento; enquanto a Constituição formal é aquela consubstanciada de forma
escrita, por meio de um documento solene estabelecido pelo poder constituinte originário”. Moraes,
Alexandre de. Direito Constitucional, p. 3.
195
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 116.
196
Ao classificar as Constituições quanto a sua estabilidade, José Afonso da Silva menciona que “rígida é
a constituição somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais,
diferentes e mais difíceis que os de formatação das leis ordinárias ou complementares. Ao contrário, a
constituição é flexível quando pode ser livremente modificada pelo legislador segundo o mesmo processo
de elaboração das leis ordinárias. Na verdade, a própria lei ordinária contrastante muda o texto
60
Fala-se em Constituição enquanto “a norma das
normas, a lei fundamental do Estado, o estalão normativo superior do
ordenamento jurídico. Daí resulta uma pretensão de validade e observância
como norma superior directamente vinculante em relação a todos os
poderes públicos”
197
.
Mas este não é o único argumento que
fundamenta a idéia de que os bens jurídico-penais devem ser extraídos do
texto constitucional.
É importante ponderar também, como fizemos
no capítulo anterior, que o Direito Penal constitui a arma mais poderosa de
que dispõe o Estado para promoção do controle social.
Vimos que a aplicação da sanção penal,
instrumento através do qual atua o Direito Penal, necessariamente implica
na restrição da liberdade ou do patrimônio do sujeito ativo do crime,
quando não de ambos.
Se a liberdade e o patrimônio constituem direitos
fundamentais do cidadão, cuja tutela encontra-se plasmada no texto
constitucional, nada mais justo, até por uma questão de proporcionalidade,
que o bem jurídico em relação ao qual se pretende conferir a tutela penal,
também goze de relevância constitucional
198
.
Daí os motivos que levaram Janaína Conceição
Paschoal a escrever que “tal assertiva leva a dizer que, se a liberdade é um
bem constitucionalmente relevante, o bem cujo ferimento pode ensejar a
privação da liberdade, necessariamente, há de ter relevância constitucional,
ou, como se vem asseverando pela doutrina, o bem de merecer tutela
penal ou ser digno dela”
199
.
E Manuel da Costa Andrade define a dignidade
penal como a expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade
constitucional. Semi-rígida é a constituição que contém uma parte rígida e a outra flexível (...)”. Silva,
José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 42.
197
Canotillho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 888.
198
Neste sentido, tomando por base o artigo 13 da Constituição da República Italiana, Franco Bricola,
menciona que “a sanção penal pode ser adotada somente em presença da violação de um bem, o qual,
senão de igual grau relativamente ao valor (liberdade pessoal) sacrificado, seja ao menos dotado de
relevância constitucional”. Bricola, Franco. Teoria generale del reato. Novíssimo digesto italiano, 1973,
p.08 (da separata), apud Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de
política criminal, p.415.
199
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 50.
61
social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva de
sua criminalização e punibilidade”
200
.
Anote-se, desde logo, que a dignidade penal do
bem jurídico não é suficiente para a deflagração de sua tutela através da
intervenção do legislador penal.
A proteção através do Direito Penal deve se
mostrar necessária e, salvo nos casos de imposições constitucionais de
criminalizaão, a verificação da aludida necessidade se insere no âmbito da
discricionariedade do legislador, que encetará a avaliação em cada caso
concreto.
De tal circunstância decorre a assertiva de Luiz
Regis Prado no sentido de que “os bens dignos ou merecedores de tutela
penal são, em princípio, os de indicação constitucional específica e aqueles
que se encontrem em harmonia com a noção de Estado de Direito
democrático, ressalvada a liberdade seletiva do legislador quanto a
necessidade”
201
.
Explicitadas as razões pelas quais a Constituição
se apresenta como o instrumento mais legítimo para atender a finalidade a
que buscamos, ou seja, fundamentar e limitar ao poder punitivo estatal,
resta ainda verificar de qual forma e em que sentido a Constituição incidirá
sobre o Direito Penal.
Se o que se busca é legitimar e limitar o Direito
Penal, tal desiderato deverá ser alcançado através de princípios ou valores
constitucionais que delimitem a matéria que pode e aquela que não pode
ser objeto de criminalização.
Aliás, ao criticar a tentativa de extrair-se de um
único preceito constitucional a conclusão de que a matéria passível de
criminalização deve ser deduzida da Carta Maior, Giovanni Fiandaca
assevera que este tipo de abordagem não pode deixar de olhar para o
conjunto dos princípios constitucionais que delineiam os traços típicos do
nosso ordenamento: dos princípios clássicos com fundo ‘garantistíco’,
àqueles inspirados numa perspectiva ‘solidarística’, cujo concurso serve
para caracterizar o nosso Estado
202
como Estado Social de Direito”
203
.
200
Andrade, Manuel da Costa. A “dignidade penal” e a “carência de tuela penal” como referências de
uma doutrina teleológico-racional do crime, p. 184.
201
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 95.
202
É evidente que suas considerações tomam por base a República Italiana.
62
É o que Francesco Palazzo chama de princípios
influentes em material penal
204
, que, segundo o magistério de Maria da
Conceição Ferreira da Cunha, vão desde a consagração do tipo de Estado
e seus fins até o catálogo de direitos fundamentais, quer os que exprimem a
dimensão do Estado de Direito (Rechtsstaatprinzip) os tradicionais
direitos, liberdades e garantias pessoais -, quer os que exprimem a
inovadora face do Estado, a sua dimensão social (Sozialstaatprinzip) os
direitos sociais, econômicos e culturais -, não se limitando, de acordo com
a perspectivação da Constituição em sentido material, ao texto escrito, mas
atendendo a realidade constitucional e aos valores ínsitos na consciência
comunitária”
205
.
Assim, torna-se evidente que os mencionados
direitos e liberdades individuais, bem como as suas garantias exercem
influência sobre a matéria a criminalizar, como também os direitos sociais,
eis que estes, como aqueles, externam valores fundamentais da
comunidade, que o Estado se obriga não a respeitá-los como também a
protegê-los da ofensa de terceiros.
Sinteticamente, estas são as bases em que se
assentam as teorias constitucionais do bem jurídico-penal, que serão
dissecadas em tópicos próprios.
No entanto, antes de passarmos às minúcias das
teorias constitucionais, não podemos prescindir de uma análise a respeito
203
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
421.
204
Francesco Palazzo observa que “para uma melhor avaliação da influência dos valores constitucionais
no direito penal, deve-se levar em conta uma primeira distinção entre ‘princípios de direito penal
constitucional’ e ‘princípios (ou valores) constitucionais pertinente à matéria penal. Os primeiros
apresentam um conteúdo típico e propriamente penalístico (legalidade do crime da pena, individualização
da responsabilidade etc.) e, sem dúvida, delineiam a ‘feição constitucionalde um determinado sistema
penal, a prescindir, eventualmente, do reconhecimento formal num texto constitucional. Tais princípios,
que fazem parte, diretamente, do sistema penal, em razão do próprio conteúdo, têm, ademais,
características substancialmente constitucionais, enquanto se circunscrevam dentro dos limites do poder
punitivo que situam a posição da pessoa humana no âmago do sistema penal; em seguida, vincam os
termos essenciais da relação entre indivíduo e Estado no setor delicado do direito penal. Os outros, vale
dizer, ‘os princípios (ou valores) pertinentes à matéria penal’, se atêm à específica matéria
constitucionalmente relevante (economia, administração pública, matrimônio e família), da qual traçam,
frequentemente, os grande rumos disciplinadores. Embora sejam princípios de condição obviamente
constitucional, seu conteúdo se revela heterogêneo e, por isso, não exatamente característico do direito
penal; impõe-se tanto ao legislador civil, ou administrativo, como ao penal que intervir não raro de
forma necessária – na respectiva matéria. O fenômeno de sua influência no direito penal moderno
pressupõe o caráter ‘sancionatório’, em certo sentido, do direito penal em si, enquanto diferentemente
dos princípios de direito penal constitucional condicionam, com prevalência, o conteúdo, a matéria
penalmente disciplinada, e não a forma penal de tutela, o modo de disciplina penalística”. Palazzo,
Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 22/23.
205
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 123/124.
63
da influência do modelo de Estado sobre a estruturação do sistema penal,
bem como dos princípios constitucionais que mais de perto se relacionam
com aquelas teorias.
Em razão de tais circunstâncias, no próximo
tópico, veremos como o modelo de Estado adotado pela Constituição que
servirá de paradigma terá decisiva influência sobre a intensidade da
intervenção penal na tutela de cada um daqueles valores, individuais ou
sociais
206
.
2.2. - Concepção Constitucional de Estado, função do Direito Penal e
determinação dos bens jurídicos penais.
É inquestionável que o modelo de Estado
consagrado na Lei Fundamental reflete sobre a formatação de seu sistema
jurídico-penal.
Obviamente, o Direito Penal cunhado sob a
ideologia de um Estado totalitário ostentará características distintas daquele
forjado num Estado que preza pelos valores democráticos.
O primeiro certamente admitirá a imposição ou
proibição de condutas, com escopo diverso da tutela de bens jurídicos,
enquanto valores indispensáveis para a manutenção da vida em sociedade,
o que será inadmissível no segundo, que, invariavelmente, dentro dos
limites da compatibilidade da liberdade individual com a preservação dos
206
Aliás, neste ponto, ao lembrar a distinção entre o princípio do Estado de Direito (Rechtsstaatsprinzip)
e o princípio do Estado Social (Sozialstaatsprinzip), Francesco Palazzo esclarece que “a influência desses
princípios generalíssimos sobre o direito penal se, em certo sentido, se pode dizer mediata, enquanto
tendem a incidir sobre a fisionomia do sistema, revelam os princípios de direito penal constitucional ou os
valores constitucionais influentes em matéria penal, os quais, com efeito, são os primeiros a ressentirem
de uma acepção, ora em sentido rechtsstaatlich, ora em sentido sozialstaatlich. Ademais, deve-se recordar
que não existe como poderia parecer a primeira vista uma conincidência perfeita entre o superior
Rechtsstaatsprinzip e os princípios de direito penal constitucional, de um lado, e o Sozialstaatsprinzip e
os valores constitucionais influentes, de outro. Existe, tão só, uma prevalência de influência,
respectivamente, do primeiro sobre os princípios de direito penal constitucional , e do segundo sobre os
demais. E, inequivocamente, faz-se cristalina a prevalente matriz liberal-garantidora de princípios como
os da legalidade ou da culpabilidade, tanto quanto é evidente que o Sozialstaatsprinzip faz sentir os seus
efeitos sobretudo quanto ao conteúdo do direito penal”. Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e
Direito Penal, p. 25.
64
pressupostos mínimos de sobrevivência social, zelará por maior tolerância
na atuação do cidadão.
O aludido traço distintivo poderá ser notado com
nitidez naquilo que concerne à criminalização de ofensas exclusivas à
ideologia política dominante, à moral e a preceitos religiosos e que não
importem em nenhuma danosidade social, revelada pela lesão ou perigo de
lesão a um bem jurídico, o que não compraz com regimes democráticos.
O mesmo se diga em relação à punição, a titulo de
crime, de meras intenções não materializadas através de condutas encetadas
no mundo dos fatos, em franca censura indevida a liberdade de consciência
individual.
Portanto, seguindo a aludida linha de raciocínio, é
fácil concluir que, num Estado de Direito que se diga democrático, os
referidos valores poderão auferir tutela penal quando a lesão dos
mesmos implicarem em simultânea ofensa a outros, indispensáveis a
manutenção da vida em comum.
De outra banda, é indiscutível também que não
será o mesmo o Direito Penal que assenta suas bases sobre um modelo de
Estado de Direito, meramente formal, e aquele que adere as características
de um Estado de Direito de cunho material, pois o primeiro se contentará
com a busca da liberdade e igualdade meramente formais, enquanto o
segundo perseguirá a concretização da liberdade e igualdade
substanciais
207
.
E ainda dentro de uma concepção material de
Estado de Direito, a visão da dignidade penal do bem jurídico submetido à
tutela assumirá contornos distintos.
207
Ao estabelecer as bases da formação do Estado Moderno, com fundamento na idéia contratualista,
Fábio Roque Sbardelotto apresenta as características essenciais do Estado de Direito. Ensina o referido
autor que se caracteriza o Estado de Direito “pela existência de uma ordem jurídica definindo os limites
de atuação dos cidadãos e delimitando o poder político do Estado, bem como pela existência de um
controle judicial, indispensável para a realização do Estado de Direito e para a aplicação das regras
estabelecidas”. O Estado de Direito significaria então uma limitação do poder do Estado pelo Direito. No
entanto, prossegue o mencionado professor gaúcho advertindo que o Estado de Direito pode apresentar
duas dimensões, uma de caráter formal – Estado formal de Direito –, que se preocupa apenas com a forma
de atuação do Estado, ou seja, com a redução de seus atos à lei ou à Constituição, sem atenção ao
conteúdo daquelas espécies normativas, e outra de cunho material, que confere maior atenção aos
conteúdos valorativos da disciplina normativa da relação Estado-cidadão, com fundamento em certos
critérios materiais de justiça. Finaliza dizendo que “é sob esta ótica do Estado material de Direito que se
pode dividi-lo em três ambientes históricos, identificando-o em razão de seu aspecto qualitativo como
Estado Liberal de Direito, Estado Social de Direito e Estado Democrático de Direito”. Sbardelotto, Fábio
Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito, p. 30/32.
65
É claro que um Estado Liberal, fundado numa
ética individualista de uma sociedade patrimonialista, conferirá
preponderância àqueles valores individuais, como a liberdade e o
patrimônio privado, sobre aqueles de natureza coletiva ou difusa,
implementados mediante intervenção estatal, para que se torne viável a
plena fruição dos direitos fundamentais por todos os componentes da
sociedade.
Ao inverso, um Estado material, de matiz social,
inevitavelmente direcionará as baterias de seu Direito Penal a estes últimos
valores
208
.
Conciliando ambas as tendências, um Estado
Democrático de Direito procurará um equilíbrio na defesa de bens
individuais e transindividuais
209
.
Em face de tais circunstâncias, Maria Conceição
Ferreira da Cunha ensina que fazem pleno sentido as concepções daqueles
autores que, no intuito de fundamentar e limitar o poder punitivo estadual,
fazem derivar a função do Direito Penal (e, assim, os fins das penas e a
finalidade última, a razão de ser da pena), dos fins estaduais, os quais estão
dependentes da concepção de Estado constitucionalmente consagrada e,
208
Sob a questão da relevância do modelo de Estado sobre formatação do ordenamento jurídico que
disciplinará a sociedade por ele organizada, Luiz Luisi ensina que “as Constituições promulgadas nos
últimos decênios se caracterizam pela presença no elenco de suas normas de instâncias de garantia de
prerrogativas individuais, e concomitantemente de instâncias que traduzem imperativos de tutela de bens
transindividuais ou coletivos. Ou seja: os princípios do Rechtsstaats e, ao mesmo tempo do Sozialstaats.
Os primeiros configuram-se em preceitos asseguradores dos direitos humanos e da cidadania. Os
segundos se fazem presentes na tutela dos valores sociais”. Prossegue dizendo que a tônica dos primeiros
“é a afirmação dos direitos do homem e do cidadão e a limitação do papel do Estado à garantir a
efetivação e eficácia dos mencionados direitos, principalmente no que concerne a inviolabilidade da
liberdade individual e da propriedade”. Aduz que “o Sozialstaats traduz normativamente as ideologias
que preconizam a presença do Estado para, superando as distorções desigualitárias geradas pelo Estado
liberal, garantir a todos o indispensável ao atendimento das necessidades materiais sicas”. Menciona
finalmente que, “ao incorporar os princípios do Estado liberal e do Estado social, e ao conciliá-los, as
Constituições modernas, renovam de um lado as garantias individuais, mas introduzem uma séria de
normas destinadas a tornar concretas, ou seja, ‘reais’, a liberdade e a igualdade dos cidadãos, tutelando
valores de interesse geral como os pertinentes ao trabalho, a saúde, a assistência social, a atividade
econômica, o meio ambiente, a educação, a cultura, etc...”. Luisi, Luiz. Os Princípios Constitucionais
Penais, p. 11/12.
209
Fazendo menção à obra de Santiago Mir Puig (El Derecho Penal em el Estado social y democrártico de
derecho, Barcelona: Ariel, 1994, p. 31) Silva Franco pondera que dentre os modelos de Estado, ocupa
especial destaque, no mundo atual, o Estado Social e Democrático de Direito, que representa uma
‘concepção sintética de Estado, produto da união dos princípios próprios do Estado liberal e do Estado
social. Como toda síntese, a imagem resultante do Estado pressupõe uma superação de seus componentes
básicos isoladamente considerados, o que permite acrescentar a terceira característica da fórmula
constitucional: a democracia”. Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 46.
66
assim, acentuam a íntima relação entre mudança Constitucional
necessidade de reforma penal”
210
.
Confirmando tal afirmativa, Jorge de Figueiredo
Dias deixa claro que “a correta determinação da função do Direito Penal só
é possível no horizonte da concepção de Estado e do modelo valorativo
jurídico-Constitucional em que ela se traduz”
211
.
Por isso, Marco Antonio Marques da Silva deixa
claro que “cada uma das formas de Estado concebe de modo particular uma
função para a pena, o que confirma a assertiva de que esta depende da
função que se atribui ao Estado”
212
.
Afinal, o Direito Penal sempre se volta a
determinadas finalidades, sujeitas a limitações formais e materiais, sendo
que tanto os escopos quanto os limites estão plasmados na Lei Maior, em
congruência com o modelo de Estado adotado.
Ora, se a Constituição se altera, certamente estes
objetivos buscados pelo Direito Penal e consequentemente a sua função,
bem como as limitações formais e materiais impostas à consecução dos
primeiros também se modificam, o que impõe a reforma do sistema
punitivo estatal.
De tudo o que foi dito até agora se extrai a segura
conclusão de que as matérias passíveis de criminalização podem ser
deduzidas de um conceito de bem jurídico concretamente mediatizado pela
Constituição de determinado Estado, cuja sociedade se pretende organizar.
2.3. Princípios constitucionais fundamentais relacionados à teoria do
bem jurídico-penal
Conforme salientado anteriormente, um Estado
Democrático de Direito não se satisfaz com um conceito puramente formal
210
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 132/133.
211
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal e Estado-de-Direito Material, p. 43.
212
Silva, Marco Antonio Marques. Juizados Especiais Criminais, p. 17.
67
de crime, exigindo que as condutas passíveis de criminalização tenham
determinado conteúdo, que revele a lesão, efetiva ou potencial, a bens
jurídicos fundamentais para a manutenção da vida em sociedade e que, por
isso, as diferenciem daquelas que não poderão constituir objeto de tutela
penal.
Dissemos também que os princípios
213
informadores do modelo de Estado exercem influência direta sobre o
sistema jurídico-penal vigente na sociedade organizada por ele.
Assim, é inevitável a conclusão de que, num
Estado Democrático de Direito
214
, como aquele em que a República
Federativa do Brasil
215
se constitui
216
, determinados princípios decorrentes
do aludido modelo de Estado mantêm direta e estreita relação como o
objeto de nosso estudo, ou seja, o bem jurídico-penal, enquanto essência do
conceito material de crime a que nos referimos.
Aliás, falando a este respeito, Marco Antonio
Marques da Silva diz que “os princípios que norteiam o direito penal e o
213
Adotamos aqui o conceito trazido por Celso Antonio Bandeira de Mello quando diz que “princípio é,
pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental
que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata
compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a gica que lhe sentido harmônico”.
Prossegue o referido Professor asseverando que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir
uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo
o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra”. Curso de Direito Administrativo, p. 53.
214
No mesmo diapasão se manifesta Luiz Luisi quando diz que “as Constituições que são expressão do
Rechtsstaats as normas concernentes ao direito penal se traduzem em postulados que, em defesa das
garantias individuais, condicionam restritivamente a intervenção penal do Estado. Nas Constituições de
nossos dias estas instâncias de resguardo dos direitos individuais em matéria penal persistem vigorosas,
mas nelas se encontram uma série de preceitos que implicam no alargamento da atuação do direito penal
de moldes a ampliar a área de bens objeto de sua proteção. Ou seja: de um lado nas Constituições
contemporâneas se fixam os limites do poder punitivo do Estado, resguardando as prerrogativas
individuais; e de outro lado se inserem do direito penal para novas matérias, de modo a faze-lo um
instrumento de tutela de bens cujo resguardo se faz indispensável para a consecução dos fins sociais do
Estado”. Luisi, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais, p. 12.
215
Artigo 1°, “caput”, da Constituição Federal.
216
Alberto Silva Franco leciona que “A Constituição Federal de 1988 deu forma, na República Federativa
do Brasil, a um tipo de Estado que recebeu a denominação de ‘Estado Democrático de Direito’. A
conjugação dos três vocábulos Estado, Democracia e Direito poderá, à primeira vista, parecer que o
Poder Constituinte levou em conta, na formulação do modelo jurídico, o Estado liberal, não dando
nenhuma relevância ao Estado social. Essa impressão inicial, decorrente da denominação dada ao modelo
de Estado brasileiro, não é, contudo, correta. A simples leitura do Capítulo II, Titulo II da Constituição
Federal é suficiente para demonstrar que o legislador constituinte, ao lado dos direitos e deveres
individuais e coletivos, explicitou os direitos sociais, como direitos e garantias fundamentais. Destarte, a
denominação ‘Estado Democrático de Direito’ diz menos do que a própria Constituição Federal enuncia
em suas regras, pois o Poder Constituinte escolheu, na realidade, para o Brasil, um modelo de Estado que
se acomoda, por inteiro, ao conceito de Estado Social e Democrático de Direito”. Franco, Alberto Silva.
Crimes Hediondos, p. 48.
68
direito processual penal são as linhas mestras que estabelecem os limites da
atuação do Estado na sociedade contemporânea”
217
.
Prossegue o Professor assegurando que “o poder
punitivo do Estado decorre do conjunto de poderes que lhe atribui a
Constituição Federal para criar e aplicar o direito penal, sendo a criação das
normas competência exclusiva do poder legislativo, enquanto a aplicação é
do poder judiciário. Entretanto, este conjunto de poderes não é ilimitado,
mas seus limites e extensão são definidos através dos princípios que
decorrem dos fundamentos apontados no artigo da Constituição Federal
de 1998”
218
.
Ensina ainda que “o Estado Democrático de
Direito, tem como fundamentos
219
a soberania, a cidadania, a dignidade da
pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo político. Embora todos reflitam na interpretação e aplicação das
leis penais e processuais, destacam-se a dignidade da pessoa humana e o
pluralismo político como os principais para modificar a forma de análise
dos fatos de interesse jurídico penal”
220
.
É importante considerar ainda que a dignidade da
pessoa humana, enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito,
na expressão de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, constitui a “viga-mestra
de todo o ordenamento jurídico”
221
, o que nos autoriza dizer que dele
decorrem todos os demais princípios constitucionais relevantes em matéria
penal.
No entanto, em que pese a importância da matéria
relacionada à influência dos princípios constitucionais em matéria penal,
nos limitaremos a examinar aqueles que mantêm direta relação como o
objeto do estudo que encetamos, ou seja, o bem jurídico como essência de
um conceito material de crime, apto a fundamentar e limitar o poder de
punir do Estado.
217
Silva, Marco Antonio Marques da. Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito, p. 5.
218
Silva, Marco Antonio Marques da. Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito, p. 06.
219
Artigo 1°, “caput”, da Constituição Federal.
220
Idem, p. 05.
221
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal, p. 242.
69
2.3.1. Princípio da intervenção mínima: fragmentariedade e
subsidiariedade
Desde o início defendemos que o Direito Penal
deve limitar-se à tutela dos pressupostos indispensáveis para a manutenção
da vida em sociedade, consubstanciados em bens ou valores
imprescindíveis para o adequado desenvolvimento da personalidade de
todos que a compõem, o que se convencionou chamar de bem jurídico.
Considerando, porém, o caráter extremamente
invasivo que ostenta o instrumento de que se vale o Direito Penal (pena ou
medida de segurança) para a persecução de suas finalidades, a sua
incidência deve ser reservada para a proteção dos bens jurídicos mais
relevantes, quando submetidos à severa ofensa, e desde que a tutela dos
mesmos não puder ser feita adequadamente por outro ramo do Direito
menos agressivo (Direito Civil ou Administrativo), mesmo para que se
resguarde a dignidade da pessoa humana e se obedeça razoável critério de
proporcionalidade.
Inclusive, a este propósito, Reinhart Maurach
assinalava que “o ordenamento jurídico dispõe dos mais diversos recursos
para conseguir autoridade e garantir sua prevalência. Porém desde o ponto
de vista de política jurídica, a seleção e acumulação destas medidas se
encontram submetidas ao postulado de que não está justificado aplicar um
recurso mais grave quando se pode esperar o mesmo resultado de um mais
suave: tanto reprovável e absurdo é aplicar penas criminais à infração de
obrigações privadas contratuais, como querer impedir um assassinato
ameaçando o autor com a simples imposição das custas do enterro ou com
a privação da legítima que lhe corresponderia sobre a vítima. Jure est
civiliter utendum: na seleção dos recursos próprios do Estado, o direito
penal deve representar a ultima ratio legis, encontrar-se em último lugar e
entrar em luta só quando resulta indispensável para a manutenção da ordem
70
pública. A natureza secundária do direito penal não é mais que uma
exigência ética dirigida ao legislador”
222
.
É exatamente nisso em que consiste o princípio da
intervenção mínima do Direito Penal, que, ao contrário do princípio da
legalidade, destinado limitar o arbítrio judicial, impede a criação
desnecessária de tipos penais, voltando-se diretamente ao legislador
223
.
Aliás, neste sentido projeta-se o ensinamento de
Maurício Antonio Ribeiro Lopes, para quem “o princípio da intervenção
mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder
incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma
conduta se legitima se constituir meio necessário para a proteção de
determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de
controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua
criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o
restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis
ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais”
224
.
Salienta ainda que o princípio da intervenção
mínima do Direito Penal “aparece como uma orientação político-criminal
restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da
concepção material de Estado de Direito Democrático”
225
.
Com base no pensamento de Everardo da Cunha
Luna
226
, Luiz Luisi escreve que “nas legislações constitucionais e penais
contemporâneas o princípio em causa, em geral não se vê explicitado. Mas
222
Maurach, Reinhart. Tratado de Derecho Penal, p. 31. El ordenamiento jurídico dispone de los más
diversos recursos para procurarse autoridad y garantizar su prevalencia. Pero desde el punto de vista
de política jurídica, la selección y la acumulación de estas medidas se encuentran sometidas al
postulado de que no está justificado aplicar um recurso más grave cuando cabe esperar el mismo
resultado de uno más suave: tan reprobable y absurdo es aplicar penas criminales a la infracción de
obligaciones privadas contractuales, como querer impedir um asesinato amenazando al autor com la
simples imposición de las costas del entierro o com la privación de la legítima que corresponderia
sobre la victima. Jure est civiliter utendum: em la selección de los recursos propios del Estado, el
derecho penal debe representar la ultima ratio legis, encontrarse em último lugar y entrar solo em liza
cuando resulta indispensable para el mantenimiento del orden público. La naturaleza secundaria del
derecho penal no es más que uma exigência ética dirigida al legislador”.
223
Falando sobre a finalidade do princípio da intervenção mínimo, Luiz Luisi leciona que “através do
princípio da legalidade se impõem limites ao arbítrio judicial, mas como bem observou Gian Domenico
Romagnosi, - escrevendo em 1791 o Estado, respeitada a prévia legalidade dos delitos e das pena, pode
criar figuras delitivas iníquas e instituir penas vexatórias à dignidade humana. Impõe-se, para evitar uma
legislação inadequada e injusta restringir, e mesmo, se possível, eliminar o arbítrio do legislador”. Luisi,
Luiz. Os princípios Constitucionais Penais, p. 38.
224
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal, p. 92.
225
Idem.
226
Luna, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal, p. 30, apud Luisi, Luiz. Os princípios
Constitucionais Penais, p. 39.
71
(...), é um princípio imanente que por seus vínculos com outros postulados
explícitos, e com os fundamentos do Estado de Direito se impõe ao
legislador, e mesmo ao hermeneuta”
227
.
Exemplificando com o Estado brasileiro, o
festejado autor diz que “a Constituição vigente no Brasil diz serem
invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e a
propriedade (artigo caput), e põe como fundamento do nosso Estado
democrático de direito, no artigo do inciso III, a dignidade da pessoa
humana. Decorrem, sem dúvidas, desses princípios constitucionais, como
enfatizado pela doutrina italiana e alemã, que a restrição ou privação desses
direitos invioláveis somente se legitima se estritamente necessária a sanção
penal para a tutela de bens fundamentais do homem, e mesmo de bens
instrumentais indispensáveis a sua realização social. Destarte, embora não
explícito no texto constitucional, o princípio da intervenção mínima se
deduz de normas expressas da nossa Grundnorm, tratando-se, de um
postulado nela inequivocamente implícito”
228
.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes acentua
que “o princípio da intervenção mínima aponta para um direito penal que
intervenha nos casos de real necessidade, com a missão de proteger os
bens jurídicos fundamentais em face dos ataques mais graves, e apenas
quando os outros ramos do direito se mostrarem ineficientes para tal
proteção. Com base, ainda, na idéia de que o Estado não se vale apenas do
direito penal para proteger os interesses da sociedade, mas, ao contrário,
conta com uma enorme gama de outros ramos do direito que também se
prestam a tutelar os interesses sociais, extraem-se duas características
atreladas a este ramo do direito e que, pode-se dizer, representam duas
faces da mesma moeda: são a subsidiariedade e a fragmentariedade da
intervenção penal”
229
.
Portanto, como decorrência lógica da intervenção
mínima do Direito Penal, aparece dois outros princípios, que também se
relacionam com a fundamentação e limitação do poder punitivo estatal: o
princípio da fragmentariedade e o princípio da subsidiariedade.
227
Luisi, Luiz. Os princípios Constitucionais Penais, p. 39.
228
Luisi, Luiz. Os princípios Constitucionais Penais, p. 40.
229
Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal, p. 85.
72
O Direito Penal ostenta caráter fragmentário
230
, ou
seja, não se presta ou, ao menos, não deveria servir de instrumento de tutela
de todo e qualquer bem jurídico.
A tutela penal, como dito, deve ser reservada
para os bens jurídicos mais relevantes para a manutenção da vida em
sociedade.
Além disso, é inolvidável que não basta a
relevância do bem jurídico para que se autorize a intervenção penal na sua
proteção.
Os bens jurídicos mais relevantes devem ser
defendidos mediante cominação de pena diante de ofensas revestidas de
considerável gravidade, de ataques que, em razão da intensidade, se
mostrem intoleráveis.
Nesse sentido, Alice Bianchini assegura que “(...)
o direito penal não outorga proteção à totalidade dos bens jurídicos. Ele
constitui um sistema descontínuo, protegendo apenas aqueles mais
fundamentais, e somente em face de violação intolerável”
231
.
Na mesma linha está o magistério de Paulo
Queiroz quando observa que com o Direito Penal “não se protegem,
portanto, todos os bens jurídicos, e sim os mais importantes, nem sequer se
os protege em face de qualquer classe de atentados, mas tão em face dos
ataques mais intoleráveis”
232
.
230
Alberto Silva Franco deixa claro que o princípio da fragmentariedade decorre do próprio princípio da
legalidade, enquanto subordinação da criação de crimes e cominação de penas à lei. Explica que “o
princípio da legalidade não se exaure, contudo, do ponto de vista formal, apenas nessas duas
conseqüências. algo mais: é mister também que a lei defina o crime e também a pena. E a idéia de
definição tanto pode significar a de demarcar ou de estabelecer limites, de sorte que uma coisa não se
confunda com outra, como também a de expor ou explicar, de maneira exata, uma idéia, uma situação,
uma conduta. Sob o primeiro enfoque, a definição do crime e da pena enfatiza o caráter fragmentário da
disciplina penal. A lei penal delimita uma conduta lesiva ou idônea a pôr em perigo um bem jurídico
relevante e prescreve uma conseqüência punitiva para quem a realiza. Ao fazê-lo, circunscreve a ilicitude
penal ao comportamento descrito e não permite que o tratamento punitivo cominado possa ser estendido a
uma conduta que se mostre aproximada ou assemelhada. Cada figura típica constitui, em verdade, uma
ilha no mar geral do ilícito e todo o sistema punitivo se traduz num arquipélago de ilicitudes. Daí a
impossibilidade de o Direito Penal atingir a ilicitude na sua totalidade e de preencher, através do processo
integrativo da analogia, eventuais lacunas”. Franco. Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 52.
231
Bianchini, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, p. 53.
232
Queiroz, Paulo. Direito Penal, p. 31.
73
“Este princípio impõe que o Direito Penal
continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do
penalmente indiferente”
233
.
“Isso significa que o mecanismo penal não dá
uma cobertura de proteção total e homogênea a todos os bens jurídicos,
mas sim, uma proteção parcial e fragmentada”
234
.
De outro lado, é importante consignar que o
recurso à pena não deve ser o primeiro a ser lembrado pelo legislador
quando instado a promover a proteção do bem jurídico, pois o Direito Penal
é a ultima ratio.
Daí a conclusão de Jorge de Figueiredo Dias, no
sentido de que a violação de um bem jurídico-penal não basta por si para
desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente
indispensável à livre realização da personalidade de cada um na
comunidade”
235
.
Sintetizando, o consagrado autor lusitano assevera
que “pode-se e deve-se afirmar, em definitivo, que a função precípua do
direito penal e conseqüentemente também o conceito material de crime
reside na tutela subsidiária (de “ultima ratio”) de bens jurídicos penais”
236
.
Nestes moldes, é fácil verificar que o Direito
Penal assume caráter meramente subsidiário e será convidado a entrar em
cena somente quando fracassarem na proteção do bem jurídico os demais
ramos do direito, que apostem em instrumentos de controle social de menor
agressividade que o penal.
Visa-se com o princípio da subsidiariedade evitar
ao máximo a imposição desnecessária de pena, uma vez que ela marca de
forma indelével a vida do cidadão.
No mesmo diapasão aparecem os ensinamentos de
Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, quando garantem que,
segundo as atuais tendências do direito penal nos países centrais, não se
quer associar a sanção penal que caracteriza a lei penal a qualquer conduta
que viola normas jurídicas, e sim quando aparece como inevitável que a
233
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal, p. 93.
234
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 66.
235
Dias, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, p. 78.
236
Idem, p. 79.
74
paz social não poderá ser alcançada salvo prevendo para estas hipóteses
uma forma de sanção particularmente preventiva ou particularmente
reparadora, que se distinga da prevenção e reparação ordinárias, comuns a
todas as sanções jurídicas”
237
.
Neste sentido, também temos a segura constatação
de Alberto Silva Franco no sentido de que “a intervenção penal tem limites
materiais, isto é, não guarda pertinência quando os bens jurídicos podem
ser garantidos por outros controles sociais formais menos gravosos. Neste
caso, a atividade criminalizadora contraria o princípio da
proporcionalidade, de inquestionável feição constitucional, traduzindo-se
numa violação do princípio da proibição de excesso”
238
.
Extrai-se dos mencionados princípios a conclusão
de que não basta que o bem jurídico se revista de dignidade penal para que
possa ser protegido através do Direito Penal. Além disso, é imprescindível
que o bem jurídico penalmente tutelável careça de tutela penal.
2.3.2. – Princípio da ofensividade
A partir do momento em que se conclui que a
função ou missão do Direito Penal se restringe à proteção do bem jurídico,
o que, salvo raríssimas exceções derivadas de algumas vertentes das teorias
sociológicas, nos parece que é ponto pacífico, se torna indiscutível que a
conduta descrita como crime pelo tipo penal deve corresponder a uma lesão
ou, ao menos, a exposição à perigo concreto de um bem jurídico, que
ostente dignidade penal e cuja proteção através daquele ramo do direito se
mostre necessária
239
.
237
Zaffaroni, Eugênio Raúl e Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal, p. 92.
238
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 55.
239
Nesse sentido, aliás, projetam-se os ensinamentos de Luiz Regis Prado, segundo o qual “o pensamento
jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de
bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade (...)”. Prossegue o referido professor alegando
que “reveste-se tal orientação de capital importância, pois não delito sem que haja lesão ou perigo de
lesão a um bem jurídico determinado” Explica que, “por influência sobretudo da doutrina italiana, esse
aspecto (ofensa ou lesão) costuma ser autonomamente denominado princípio da ofensividade ou da
lesividade”. Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 140/141.
75
Nisso consiste o princípio da ofensividade,
também conhecido por princípio da lesividade (nulla necessitas sine
iniuria, nullum crimem sine iniuria)
240
.
Da aludida constatação decorrem sérias
conseqüências no âmbito da pesquisa que empreendemos, ou seja, da
delimitação da matéria passível de criminalização.
Ora, se o Direito Penal se destina a exclusiva
proteção de bens jurídicos e, em conseqüência, se não há crime sem a lesão
ou exposição a perigo concreto de um bem jurídico, indispensável se
mostra a determinação do bem jurídico protegido pela norma penal que
proíbe ou impõe a conduta sob cominação de pena.
Não se admite a utilização do Direito Penal para a
proteção de bens jurídicos indetermináveis, o que Luiz Flávio Gomes
denomina de bens jurídicos de “amplo espctro”
241
.
Além disso, a forma de ofensa ao bem jurídico
deve ser definida pelo tipo.
O pouco que foi dito é o suficiente para
demonstrar que o princípio da ofensividade ostenta dupla função
242
.
De matiz político-criminal e, portanto,
intimamente relacionada com o objeto de nosso trabalho, a primeira função
visa limitar o campo de atuação do legislador, eis que, no exercício de sua
atividade típica, não poderá criminalizar condutas que não representem
efetiva lesão ou perigo concreto de ofensa a um bem jurídico.
240
Luiz Flávio Gomes ensina que o princípio da ofensividade decorre da própria dignidade humana,
fundamento do Estado Democrático de Direito, em que se Constitui a República Federativa do Brasil, nos
termos do artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal. Consigna o mencionado autor que “sendo a
dignidade humana o fundamento máximo do modelo de Estado de Direito, parece não haver dúvida de
que a sanção penal só deve incidir quandouma concreta lesão ou perigo para o bem jurídico protegido
pela norma. O princípio da ofensividade, destarte, dimana naturalmente dos fundamentos do Estado
Constitucional e Democrático de Direito”. Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal,
p. 87, nota 3.
241
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 123.
242
É certo que Nilo Batista confere quatro funções ao princípio da lesividade: a) proibir a incriminação de
uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor;
c) proibir incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a incriminação de
condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. Batista, Nilo. Introdução Crítica ao Direito
Penal Brasileiro, p. 92/96. No entanto, todas elas se concentram na primeira (político-criminal), das duas
funções atribuídas por nós neste trabalho ao princípio da ofensividade.
76
Por isso, Luiz Flávio Gomes deixa claro que a
opção por um Direito Penal informado pelo princípio da ofensividade
representa a eleição de um modelo punitivo marcadamente “objetivista”,
fundado em “dois pilares reciprocamente implicados a proteção de bens
jurídicos e a correspondente e necessária ofensividade”
243
.
O aludido princípio, segundo o referido autor,
afasta qualquer possibilidade da adoção de um Direito Penal “subjetivista”,
“seja ele de cunho repressivo ou voluntarístico (Direito Penal da vontade),
seja ele de índole claramente preventiva ou da periculosidade”
244
.
Sob o primeiro aspecto, é inaceitável a
criminalização da vontade de infringir a lei, por si mesma, ou a
demonstração de hostilidade a ela, mediante a prática de meros atos
preparatórios, que não representem sequer a concretização de perigo a um
bem jurídico digno de tutela penal
245
.
Por isso Alberto Silva Franco afirma que “há, no
princípio da lesividade, uma dimensão substancial, que não pode ser
desprezada nem mantida num plano secundário. Uma pessoa pode
responder, penalmente, pelo que fez, não pelo que é. O mecanismo
controlador, em nível penal, interessa-se tão somente pelas condutas que se
exteriorizem em fatos, perceptíveis sensorialmente; nunca, pelas atitudes
internas, pelos pensamentos ou pelos desejos que habitam o universo
íntimo de cada um
246
.
Além disso, não será admissível a incriminação de
condutas indiferentes sob o ponto de vista da lesividade social ou, pura e
simplesmente, para a salvaguarda de valores éticos e morais.
Sob o segundo aspecto, o princípio da
ofensividade veda a antecipação da tutela penal.
Não se admite a incriminação de condutas que se
encontrem distantes do momento em que se verifica o perigo concreto ou a
243
Gomes, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal, p. 12.
244
Idem.
245
Bem por isso, ao discorrer sobre o princípio da lesividade, Nilo Batista diz que “este princípio
transporta para o terreno penal a questão geral da exterioridade e alteridade (ou bilateralidade) do
direito: ao contrário da moral e sem embargo da relevância jurídica que possam ter atitudes interiores,
associadas, como motivo ou fim de agir, a um sucesso externo -, o direito ‘coloca face-a-face pelo menos,
dois sujeitos’. No direito penal, à conduta do sujeito autor do crime deve relacionar-se, como signo do
outro sujeito, o bem jurídico (que era objeto da proteção penal e foi ofendido pelo crime por isso
chamado de objeto jurídico do crime)”. Batista, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileito, p. 91.
246
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 64.
77
própria lesão do bem jurídico, o que tem se tornado freqüente no
enfrentamento de questões relacionadas aos novos desafios decorrentes do
processo de globalização, do avanço tecnológico, da sociedade de risco, da
criminalidade organizada, etc.
A segunda função do princípio da ofensividade,
de caráter dogmático-interpretativo, se volta ao magistrado, que deverá
verificar não se o tipo penal que serve de molde a conduta imputada ao
sujeito ativo do crime exprime a descrição de uma lesão ou de uma
exposição a perigo concreto de um bem jurídico, como também se, no caso
concreto, ao menos, a conduta que se apura gerou perigo real para aquele
bem penalmente tutelado.
Francesco Palazzo também faz menção a dúplice
missão do princípio da ofensividade.
Menciona o jurista italiano que “o princípio da
lesividade do delito, pelo qual o fato não pode constituir ilícito se não for
ofensivo (lesivo ou simplesmente perigoso) do bem jurídico tutelado,
responde a uma clara exigência de delimitação do direito Penal. E isso a
dois níveis. A nível legislativo, o princípio da lesividade (ou ofensividade),
enquanto dotado de natureza constitucional, deve impedir o legislador de
configurar tipos penais que hajam sido construídos, in abstrato, como
fatos indiferentes e preexistentes à norma. Do ponto de vista, pois, do valor
e do interesse sociais, foram consagrados como inofensivos. A nível
jurisdicional-aplicativo, a integral atuação do princípio da lesividade deve
comportar, para o juiz, o dever de excluir a subsistência do crime quando o
fato, no mais, em tudo se apresenta na conformidade do tipo, mas, ainda
assim, concretamente é inofensivo ao bem jurídico específico tutelado pela
norma”
247
.
Como se nota, é intima a relação do princípio da
ofensividade com o da intervenção mínima do Direito Penal.
Maurício Antonio Ribeiro Lopes chega a dizer
que “a lesividade, como princípio, aproxima-se de uma justificativa
doutrinária para o princípio da intervenção mínima – porquanto relacionada
com o processo de seleção prévio de condutas, oferecendo um critério
semântico e ontológico para ele”
248
.
247
Palazzo, Francesco. Valores Constitucinais e Direito Penal, p.79/80.
248
Lopes, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito Penal, p. 315.
78
Aliás, Luigi Ferrajoli atribui a ele “o valor de
critério polivalente de minimização das proibições penais”
249
.
Prossegue o Professor dizendo que ele “equivale a
um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a
intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, para reforçar sua
legitimidade e credibilidade. Se o direito penal é um remédio extremo,
devem ficar privados de toda a relevância jurídica os delitos de mera
desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis
e à de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas,
os fatos que lesionam bens não essenciais ou os que são, em abstrato,
presumidamente perigosos, evitando, assim, a ‘fraude de etiquetas’,
consistente em qualificar como ‘administrativas’ sanções restritivas de
liberdade pessoal que são substancialmente penais”
250
.
A este respeito Luiz Flávio Gomes manifesta-se
no sentido de que “a ofensividade, como se vê, no plano político criminal, é
uma exigência prévia à fragmentariedade e à subsidiariedade. Precisamente
porque a intervenção mínima esvoltada para a análise tanto do caráter
intolerável do ataque como da existência de outros meios mais idôneos para
a proteção do bem jurídico”
251
.
Inconteste, portanto, que de um Estado material
de Direito decorre a exigência de um conceito material de crime, que
apresente o bem jurídico como essência, apto a limitar e fundamentar a
atuação legislativa no campo penal, bem como afastada de qualquer dúvida
a constatação de que nem todos os bens jurídicos devem ser tutelados pela
cominação de pena, mas aqueles fundamentais para a manutenção da
vida em sociedade, quando lesionados de forma significativa, e quando os
instrumentos de que se valem os demais ramos do Direito não se
mostrarem eficazes na defesa daqueles valores, resta a nós estabelecer um
critério de definição dos bens jurídicos com dignidade penal.
Assim, Luiz Regis Prado assinala que “para
defini-lo, o legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes
contidas na Constituição e os valores nela consagrados, em razão do caráter
limitativo da tutela penal. Portanto, encontram-se na norma constitucional
as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas.
O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas raízes no texto
249
Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão, p. 383.
250
Idem, p. 383/384.
251
Gomes, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal, p. 45.
79
magno. assim a noção de bem jurídico pode desempenhar uma função
verdadeiramente restritiva”
252
.
É o que observaremos através do estudo das
teorias constitucionais do bem jurídico-penal.
2.4. – Teorias constitucionais do bem jurídico-penal
Conforme assinalado no tópico 2.1., a
finalidade da elaboração de um conceito material de crime é fundamentar e,
ao mesmo tempo, delimitar as fronteiras dentro das quais o legislador penal
poderá atuar na criminalização de condutas.
Vimos também no item 2.3.2 que o bem jurídico
constitui a essência deste conceito, eis que, sob o aspecto material, o crime
nada mais é do que a violação ou a exposição à perigo concreto de um bem
jurídico revestido de dignidade penal e que necessita ser tutelado através da
cominação de pena.
Restou claro ainda no item 1.1. que o desiderato
de orientar e limitar a atuação do legislador através de um conceito material
de crime, baseado na noção de bem jurídico, somente será possível se
admiti-lo em uma concepção transistemática, que se posiciona fora e acima
do direito positivado.
Daí a conclusão majoritária da doutrina de que o
bem jurídico deve ser identificado pelo legislador nas relações sociais e,
somente após o reconhecimento de sua dignidade penal e da carência de
tutela pelo Direito Penal, protegido pela lei.
Conforme bem lembrado por Luciano Feldens “a
atividade de identificação (reconhecimento) social dos bens (valores ou
interesses) a serem juridicamente protegidos é lógica e temporalmente
anterior a sua recepção normativa. Afinal, antes de serem bens ou valores
recolhidos pelo Direito (bens jurídicos), eles se fazem constituídos como
252
Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 139.
80
tais na consciência social, extraídos que são dos costumes vigentes em uma
determinada sociedade e, por conseqüência, de suas necessidades”
253
.
Ora, mas, conforme antecipado, de tudo o que
foi dito surge o questionamento sobre qual seria o instrumento adequado
para revelar estes valores fundamentais e indispensáveis para a manutenção
da vida em sociedade e assim viabilizar a concretização do conceito de bem
jurídico, essência do conceito material de crime, que aparece como norte do
legislador penal.
Respondendo a aludida indagação consignamos o
aparecimento das teorias constitucionalistas do Direito Penal que apontam
a Carta Magna de cada Estado como o repositório dos valores mais caros
para determinada sociedade organizada por ele.
É a Constituição que servirá de paradigma para o
legislador na eleição dos bens que legitimamente merecem a proteção do
Direito Penal.
É em razão disso que Alice Bianchini ressalta que
“o bem jurídico protegido pelo direito penal deve ter, ao menos
indiretamente, respaldo constitucional, sob pena de não possuir dignidade.
É inconcebível que o direito penal outorgue proteção a bens que não são
amparados constitucionalmente, ou que colidam com os valores albergados
pela Carta, que é nela que são inscritos os valores da sociedade que a
produz”
254
.
O constituinte identifica os valores fundamentais
de determinado grupo social organizado por ela e o legislador ordinário,
verificada a necessidade de tutela penal, os protege mediante a
criminalização de condutas que impliquem em sua violação ou, ao menos,
na exposição dos mesmos a um perigo concreto.
Referimo-nos também a outro fundamento das
teorias constitucionais, consubstanciado na consideração da elevada valia
dos bens jurídicos atingidos pela imposição de pena (liberdade ou
patrimônio), ou seja, valores consagrados constitucionalmente como
direitos individuais fundamentais, circunstância esta que, até por uma
questão de proporcionalidade, exigiria que o bem jurídico tutelado
penalmente também ostentasse relevância constitucional.
253
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 50.
254
Bianchini, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, p. 43.
81
No entanto, feitas essas considerações
preliminares referentes às bases em que se assentam as teses que buscam na
Constituição a referência inafastável da delimitação da matéria passível de
criminalização, é preciso deixar claro que não consenso doutrinário no
que toca ao papel efetivamente desempenhado pela Lei Fundamental
enquanto norte do legislador penal.
A Constituição expressará apenas um limite
negativo ao legislador penal, sendo legitima toda incriminação de conduta
que não afronte a Carta Maior direta ou indiretamente?
Ou será que, em linha diametralmente oposta, a
Constituição aparecerá como fonte exclusiva daqueles bens jurídicos que
merecerão a tutela penal, expressando um limite positivo a atividade
legiferante no âmbito do Direito Penal?
As respostas às aludidas indagações, bem como os
seus fundamentos, aparecem nas mais variadas vertentes das teorias
constitucionalistas do bem jurídico, que serão alinhavadas com maiores
detalhes nos tópicos que seguem.
2.5. – A constituição como limite negativo do Direito Penal
Uma das vertentes teóricas que busca legitimar e
limitar a atuação do legislador penal através da Constituição
255
apresenta a
Lei Fundamental como mero limite negativo.
255
Maria da Conceição Ferreira da Cunha revela que “as várias posições que fazem derivar da
Constituição o parâmetro de legitimidade da intervenção penal, se podem enquadrar em dois grandes
grupos. O primeiro, na Constituição um quadro de referência a partir de princípios muito gerais,
englobantes da unidade de sentido constitucional, como é o princípio do Estado de direito material,
democrático e social. Ora, embora a partir daqui se possam fazer derivar conseqüências concretas muito
importantes, limitadoras da criminalização, estes conceitos são vagos, sendo assim algo incerta a área em
que o legislador está proibido de intervir. Ele está proibido de trair o espírito de um Estado de direito e
está impedido de, com a criminalização, violar valores Constitucionais, mas fora desta área, fica-lhe uma
ampla liberdade de decisão. Esta é a posição assumida pela maioria da actual doutrina aleque, no
entanto, apesar de se basear nos referidos peincípios de fundo, tem conseguido influenciar decisivamente
as reformas penais. O segundo, embora tenha também como ponto de partida estes princípios gerais, em
especial a concepção de Estado constitucionalmente consagrada, vai mais longe, concretiza mais as
potencialidades limitadoras da Constituição, exigindo uma harmonização entre os valores peinais e
valores Constitucionais, ao proibir a penalização de condutas que não lesem (ou, pelo menos, coloquem
82
Sob esse aspecto, que confere maior amplitude à
discricionariedade do legislador na seleção da matéria que possa constituir
objeto de tutela penal, é legitima a criminalização de qualquer conduta,
ativa ou passiva, quando a confecção do tipo penal não consubstancie
ofensa direta ou indireta ao texto constitucional, ainda que o objeto, valor
ou interesse tutelado não esteja albergado na Constituição.
Nessa linha teórica, “costuma-se fazer referência
ao texto maior de modo genérico, amplo, com remissão à forma de Estado
constitucionalmente estabelecida, aos princípios que inspiram a norma
fundamental e com base nos quais se constrói o sistema punitivo”
256
.
“Para os seguidores da teoria constitucionalista
genérica (ampla ou elástica), a norma constitucional não constitui o
fundamento obrigatório de dedução lógica dos bens jurídicos (obrigação de
criminalização) senão unicamente um marco de referência”
257
.
“A Constituição seria utilizada como parâmetro
de legitimação da lei penal, porém, sem exaurir-se na proteção única e
exclusiva dos bens nela albergados. Nessa perspectiva, outros, mesmo que
não mencionados diretamente pela Constituição, poderiam ser
criminalizados. Para tanto, exige-se, como condição, a inexistência de
antagonismo entre o bem protegido e a ordem constitucional”
258
.
Sinteticamente dizendo, significa que não é
imprescindível o reconhecimento constitucional da dignidade penal do bem
a que se outorga a tutela penal, bastando que a criminalização da conduta
não afronte os valores constitucionais.
Encarando o problema de forma inversa, seria
correto afirmar que da Constituição resultariam apenas proibições de
incriminação, onde ela apareceria como limite material ao Direito Penal.
Seria o caso de citar como exemplo de
inconstitucionalidade a incriminação do exercício de um direito
reconhecido expressa ou implicitamente pela Constituição, como, por
exemplo, a liberdade de expressão.
em perigo) valores Constitucionais. Assim, o legislador ficaria limitado pelas opções Constitucionais em
sede de definição de bens jurídico-penais. Esta é a posição defendida por parte da doutrina Italiana e
Portuguesa”. Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 129/130.
256
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 63.
257
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 92.
258
Bianchini, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, p. 44.
83
Não é admissível, portanto, a transformação em
crime do puro e simples exercício de um direito constitucionalmente
consagrado.
Aderindo a esta linha de raciocínio, Giovanni
Fiandaca menciona que “não podem legitimamente ser elevados a delitos
fatos que correspondam ao exercício de liberdades fundamentais postas sob
o manto da Constituição; a menos que não se trate de incriminações
dirigidas à tutela de explícitos interesses-limite ou de outros interesses de
qualquer modo dotados de relevância constitucional”
259
.
Por isso, Maria da Conceição Ferreira da Cunha,
referindo-se a aludida teoria, alerta que “a Constituição deixaria ampla
margem de operatividade ao legislador penal, apenas lhe opondo limites
formais e o limite material da não incompatibilidade com os seus princípios
e valores, o qual determinaria a inconstitucionalidade da incriminação de
condutas no exercício de um direito constitucional”
260
.
Por outro lado, também não seria possível a tutela
penal de bens ofendidos no exercício de um direito, salvo se tratarem
também de bens de relevância constitucional.
Giovanni Fiandaca escreve que, sob essa ótica, “o
conjunto dos valores constitucionais funcionaria como limite intransponível
para o legislador ordinário, no sentido de que jamais deveria haver
contraste entre sistema constitucional de valores e sistema penal”.
261
.
“Para usar uma forma recorrente em doutrina, o
legislador não pode custodiar com pena bens ‘incompatíveis com a
Constituição’
262
.
Ferrando Mantovani, adotando tal
posicionamento, assegura que “podem ser criminalizadas condutas que não
atentem diretamente contra os valores pela Constituição adotados”
263
.
259
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
428.
260
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 190.
261
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
412.
262
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p.164.
263
Mantovani, Ferrando. Il principio di offensivitá del reato nella costituzione. Aspetti e tendenze del
diritto costituzionale: Scritti in onore di Costantino Mortati. Milano: Giuffrè, p. 457, apud Paschoal,
Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p.57.
84
Na mesma linha de raciocínio, concluem Emílio
Dolcini e Giorgio Marinucci que “a Constituição não impõe um limite geral
ao legislador ordinário na escolha discricionária dos bens a tutelar
penalmente: o legislador não está vinculado nesta escolha ao âmbito dos
bens constitucionalmente relevantes
264
.
E, ratificando tudo o que foi dito, Pietro Nuvolone
salienta que “se é indubitável que os bens expressamente tutelados pela
Constituição (p. ex.: liberdade de manifestação do pensamento, liberdade
artística, liberdade religiosa, liberdade de associação, direitos invioláveis,
da personalidade, direito ao trabalho, direito de greve, direito à saúde,
liberdade da iniciativa privada que não contraste com a utilidade social, os
bons costumes, etc.) caracterizam interesses primários, também é verdade
que não exaurem, por sua natureza, os interesses suscetíveis de tutela penal.
É claro que a incriminação da lesão de tais interesses será
constitucionalmente legítima, mas não será ilegítima a incriminação da
lesão de outros interesses, desde que não esteja contrariando os garantidos
pela Constituição”
265
.
Na doutrina pátria tal posicionamento é assumido
por vários juristas.
Nilo Batista que declara expressamente que “o
bem jurídico não pode formalmente opor-se à disciplina que o texto
constitucional, explícita ou implicitamente, defere ao aspecto da relação
social questionada, funcionando a Constituição particularmente como um
controle negativo (um aspecto valorado negativamente pela Constituição
não pode ser erigido bem jurídico pelo legislador)”
266
.
Na mesma fileira se apresenta Luiz Luisi que
presta adesão expressa a aludida linha de pensamento, mencionando que “a
criminalização de fazer-se tendo por fonte principal os bens
constitucionais, ou seja, aqueles que, passados pela filtragem valorativa do
legislador constitucional, são postos como base e estrutura jurídica da
comunidade. E, embora o legislador criminal possa tutelar com suas
sanções bens não previstos constitucionalmente, o pode fazer desde que
não violente os princípios básicos das constituições”
267
.
264
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 170.
265
Nuvolone, Pietro. O Sistema do Direito Penal. Trad. Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: RT, 1981, v.
1, p. 40.
266
Batista, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 96.
267
Luisi, Luiz. Os princípios constitucionais penais, p. 174.
85
Mostrando sua simpatia por uma teoria
constitucionalista do bem jurídico nos moldes acima vazados, Luiz Regis
Prado assevera que “a caracterização do injusto material advém da
proeminência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na
Carta Magna, o que importa que sua privação pode ocorrer quando se
tratar de ataques a bens de análoga dignidade; dotados de relevância ou
compatíveis com o dizer constitucional ou, ainda, que se encontrem em
sintonia com a concepção de Estado de Direito democrático”
268
.
Compartilhando do mesmo ponto de vista, Luiz
Flávio Gomes faz consignar que, “de qualquer modo, hic et nunc, o que se
depreende do debate constitucional em seu momento atual é que outros
bens jurídicos, ainda que não contemplados expressamente na Constituição,
podem ser objeto da tutela penal desde que não incompatíveis com seu
quadro axiológico”
269
.
Para os adeptos de tal teoria não seria necessário
que o bem jurídico penal encontrasse expressa ou implícita referência
constitucional.
Tudo porque “hipóteses existem, e não podemos
simplesmente ignorá-las, em que a tutela penal, conquanto voltada à
proteção de um bem jurídico de inequívoca relevância social, não oferece,
pelo menos de imediato, uma correlação constitucional”
270
.
Aliás, a este propósito, Emílio Dolcini e Giorgio
Marinucci afirmam que “a verdade é que a não menção de alguns bens na
Carta Constitucional não reflete necessariamente uma sua desclassificação
na escala de valores”
271
.
Advertem-nos os consagrados autores italianos
que toda Constituição encontra-se historicamente condicionada e olhando
para o passado, dá expresso relevo e mune de sólidas garantias bens,
individuais e coletivos, que foram limitados ou violados pela legislação
precedente; projetando-se para o futuro, menciona expressamente os bens
ou princípios que deverão estar, mais do que no passado, no centro da ação
futura dos poderes do Estado, como objectos a tutelar ou como objectivos a
realizar. Aquilo que, portanto, no passado, não foi nem violado, nem
privado de adequada tutela, não necessita de ser expressamente munido de
268
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 93.
269
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 98.
270
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 52.
271
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 169.
86
garantia constitucional: assim se explica como, não a fé pública, mas até
a vida bens incontestavelmente primordiais e merecedores da mais ampla
proteção não tenham sido expressamente mencionados na Constituição
italiana”
272
.
E realmente é uma hipótese séria a ser analisada,
principalmente em consideração aos novos riscos que surgem com o
avanço tecnológico e a globalização, de modo a colocar em perigo bens que
muitas vezes não foram valorados pela Constituição em razão das
circunstâncias históricas e temporais que circundaram a sua formação.
Neste sentido, Luciano Feldens observa que “nem
todas as Constituições são jovens a ponto de fazerem-se temporalmente
consentâneas ao nascimento dos ‘novos direitos’, fruto das sempre
crescentes necessidades sociais, circunstância que lhes impediu, pelo
menos em um primeiro momento, de realizar um expresso reconhecimento
dessas novas objetividades jurídicas.”
273
.
Sob esta ótica do problema, Alice Bianchini
menciona que “estas teorias buscam acolher as rápidas transformações
sociais que, face ao ineditismo, não foram contempladas na Constituição,
evitando que se estabeleça um déficit na relação do direito penal com a
realidade e sua mutabilidade”
274
.
Portanto, apresenta-se como a vantagem de
encarar a Constituição como mero limite negativo ao legislador penal, a
possibilidade de tutela penal de novos bens que surjam após a entrada em
vigor do texto constitucional.
Afinal o legislador não estaria submetido a um
catálogo fechado, que conferiria ao bem jurídico caráter estático.
Mas a inafastável necessidade de preservar a
liberdade individual de restrições que não se apresentem com o signo da
imprescindibilidade levanta sérios óbices a aceitação da Constituição como
mero limite negativo da criminalização de condutas.
Se é certo que a adoção de tal concepção
constitucionalista do bem jurídico traz os benefícios acima apontados, não
272
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 168.
273
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 60.
274
Bianchini, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, p. 45.
87
é menos verdadeiro que, em termos de garantia de direitos fundamentais,
de limitação da atuação legiferante no âmbito penal, ela deixa a desejar.
Sob este aspecto indesejado Janaína Conceição
Paschoal acentua que “considerar a Constituição como limite negativo do
Direito Penal não o diferencia em nada dos demais ramos do Direito; pois
também em sede de Direito Civil, Comercial, Tributário, etc. o legislador
não pode elaborar leis que contrariem o texto constitucional, sob pena de
inconstitucionalidade
275
.
Em outras palavras seria dizer que a aludida teoria
em nada contribuiria para o traçado de limites mais severos ao legislador
penal, tendo em conta, inclusive, a gravidade do instrumento de que se vale
o Direito Penal para a persecução de seus fins.
Além disso, Janaína Conceição Paschoal observa
que os adeptos da aludida teoria, “apesar de enfocarem o Direito Penal à
luz do texto constitucional, não podem ser partidários de uma teoria
constitucionalista do bem jurídico penal, pois não admitem que a
Constituição esgote (ou deva esgotar) os bens jurídicos passíveis de serem
tutelados pela norma penal”
276
.
Ademais, a adoção de uma teoria constitucional
mais restritiva, que estabeleça uma vinculação mais intima entre os valores
constitucionais e a seleção dos bens jurídicos revestidos de dignidade
penal, além de mais garantista de valores de extrema relevância para o
cidadão, não implica em “renúncia a satisfazer novas exigências de tutela
surgidas do contínuo envolver-se da realidade social e, como tais, não
subsumidas nem subsumíveis, no originário quadro da Constituição”
277
.
Observa Giovanni Fiandaca que “quando parece
despontar na ribalta um novo bem merecedor de proteção, trata-se,
freqüentemente, da exigência de proteger um bem já existente de uma nova
forma de agressão, circunstância que parece caracterizar tipicamente as
novas exigências de tutela emergentes do moderno desenvolvimento
tecnológico. Enfim, mesmo a proposta de extensão da tutela a bens de
relevância constitucional, ainda que implícita, poderia, em conseqüência do
caráter não suficientemente definido da fórmula, fazer com que se
275
Paschoal, Janaína. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 57.
276
Idem, p. 59.
277
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
420.
88
considere admissível a eventual tutela de bens ainda não emersos no
período no qual a Constituição veio à luz”
278
.
De tais argumentos, surge a idéia da Constituição
como limite positivo do Direito Penal.
2.6. – A constituição como limite positivo do Direito Penal
De outro lado se apresentam as teorias
constitucionalistas que apontam a Carta Magna como limite positivo do
Direito Penal.
De acordo com elas, o legislador penal só poderia
tutelar através da cominação de pena aqueles bens jurídicos efetivamente
reconhecidos pela Constituição.
Não basta que a descrição típica do
comportamento criminoso não afronte o texto constitucional. É
imprescindível para a legitimidade da atuação legiferante no âmbito penal
que a tutela recaia sobre valores de relevância constitucional.
Luiz Regis Prado nos recorda que estas teorias
constitucionalistas em sentido estrito “orientam-se firmemente e em
primeiro lugar pelo texto constitucional, em nível de prescrições
específicas (explícitas ou não), a partir das quais se encontram os objetos
de tutela e a forma pela qual deve se revestir, circunscrevendo dentro de
margens mais precisas as atividades do legislador infraconstitucional”
279
.
278
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
420.
279
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 65.
89
Essa linha de raciocínio se desenvolve no seguinte
sentido.
Ora, se o Direito Penal deve prestar-se a tutela dos
bens, valores ou interesses fundamentais, indispensáveis para a manutenção
da vida em sociedade, e se estes são exatamente aqueles reconhecidos pela
Lei Fundamental, somente eles poderão ser protegidos através do Direito
Penal.
Aliás, tal concatenação de idéias é decorrência
lógica dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade do
Direito Penal.
Ademais, a imposição de pena ao sujeito ativo do
crime implicará, necessariamente, na restrição de sua liberdade ou de seu
patrimônio, direitos que a Constituição reconhece como fundamentais, de
modo que, até por uma questão de proporcionalidade, o bem jurídico que se
pretende proteger mediante a cominação de pena também deve gozar de
relevância constitucional.
“Todas as situações de criminalização contêm,
assim, um problema de conflito de direitos os direitos do agressor que
vão ser restringidos (geralmente a liberdade ou a propriedade, mas, em
qualquer dos casos, também a própria dignidade) de um lado; os direitos da
vítima e da sociedade, de outro”
280
.
A aludida concepção constitucionalista surge na
doutrina italiana a partir da interpretação, principalmente
281
, do artigo 13 da
280
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição, p. 168/169.
281
Em uma análise mais ampla da questão em face da ordem jurídica italiana, Maria da Conceição
Ferreira da Cunha assegura que a tese de Bricola não teve por base apenas o artigo 13 da Constituição da
República Italiana. Acentua que, além do aludido dispositivo constitucional, sua teoria se embasou no
artigo 25° (reserva de lei), no artigo 27°, 1 (princípio da responsabilidade pessoal-subjetiva), no artigo
27°, 3 (finalidade reeducativa da pena), no artigo (não discriminação) e no artigo (princípio da
dignidade), todos da Carta Maior. Assevera que, através do princípio da reserva de lei em matéria penal,
do qual decorre o princípio da taxatividade, Bricola extrai uma restrição da matéria criminalizável, pois
ao restringir a intervenção penal incriminadora à lei, ressalta a importância dos valores restringidos
através dela (principalmente a liberdade), de modo a limitar a lei penal ao mínimo indispensável. Por
outro lado, da consagração do caráter pessoal da responsabilidade penal, Bricola deduz que a utilização da
sanção penal deverá ser descartada quando outros meios, cuja utilização prescinda de requisitos mais
rigorosos, forem satisfatórios para a proteção almejada, como p. ex. a responsabilidade civil. Da função
reeducativa da pena, Bricola retira outra restrição a matéria criminalizável, pois num Estado pluralista,
fundado na liberdade individual e na dignidade humana, não será admissível tentar-se conformar o
comportamento dos cidadãos em determinado sentido, “reeducando-o”, salvo com o escopo de proteção
dos valores mais caros à vida em sociedade. Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e
Constituição”, p. 169/173.
90
Constituição da República
282
daquele país, ao acentuar a importância da
liberdade pessoal, que, enquanto valor constitucionalmente reconhecido,
poderia ser afetada pelo Estado, mediante supressão ou restrição, na tutela
de bem de valor similar, ou seja, que também goze de relevância
constitucional.
Daí os motivos que ensejaram a assertiva de
Franco Bricola no sentido de que “a sanção penal pode ser adotada somente
em presença da violação de um bem, o qual, senão de igual grau
relativamente ao valor (liberdade pessoal) sacrificado, seja ao menos
dotado de relevância constitucional”
283
.
Dando continuidade à sua linha de raciocínio
Franco Bricola explica que a relevância constitucional deve ser
compreendida não simplesmente como “não antiteticità do bem com
respeito à Constituição, mas sim como assunção dele dentre os valores
explícita ou implicitamente garantidos pela Carta constitucional”
284
.
Nestes termos, sob o aspecto substancial, Franco
Bricola conceitua o crime como “fato lesivo de um valor constitucional
cuja significatività se reflete na medida da pena”
285
.
No mesmo sentido trilha o pensamento de Juan
Carlos Carbonell Mateu, que assevera que porque o poder punitivo nasce
precisamente do pacto constituinte não é ousado afirmar que os direitos
fundamentais podem ver-se limitados para salvaguardar outros que, ao
menos, tenham relevância constitucional”
286
.
Maria da Conceição Ferreira da Cunha deixa claro
que “não se trata para todos os defensores da necessária relevância
282
Artigo 13 da República Italiana: “A liberdade pessoal é inviolável. Não é permitida forma alguma de
detenção, inspeção ou perquirição pessoal, nem qualquer outra restrição à liberdade pessoal, senão por ato
motivado pela autoridade judiciária e somente nos casos e modos previstos em lei. Em casos excepcionais
de necessidade e urgência, indicados taxativamente pela lei, a autoridade de segurança pública pode
adotar medidas provisórias que devem ser comunicadas, dentro de quarenta e oito horas, à autoridade
judiciária e, se esta não os convalida nas sucessivas quarenta e oito horas, entendem-se revogadas e
privadas de todo efeito. Será punida toda violência física e moral sobre as pessoas de qualquer maneira
submetidas a restrições da liberdade. A lei estabelece os limites máximos das encarcerações preventivas.
283
Bricola, Franco. “Teoria generale del reato”, Novíssimo Digesto italiano, 1973, p. 15, apud Fiandaca,
Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p. 415.
284
Idem, p. 16, apud, p. 415.
285
Idem, p. 17, apud, p. 416.
286
Mateu, Juan Carlos Carbonell. Derecho Penal: Concepto y Princípios Constitucionales, 3. ed.,
Valencia: Tirant lo Blanch Alternativa, 1999, cit., p. 36. “(...) porque el poder punitivo nace
precisamente del pacto constituyente no es aventurado afirmar que los derechos fundamentales sólo
pueden verse limitados para salvaguardar otros que, al menos, tengan relevância constitucional”, apud
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 51.
91
constitucional do valor penalmente protegível, da exigência de uma
equiparação ‘total’ entre valor ofendido pelo agressor valor restringido
pela sanção penal, mas pelo menos, de uma não profunda desproporção; da
garantia de que se restringirão valores fundamentais do agressor face a
uma ofensa de valores também muito importantes para a vida em
comum”
287
.
No entanto, evidentemente, seguindo as pegadas
de Franco Bricola, como decorrência lógica do próprio princípio da
proporcionalidade, “o grau de significatividade Constitucional do valor
deveria condicionar a medida da pena, o que pressuporia a existência de
uma ‘hierarquia de valores dedutível da Constituição”
288
.
É tido que a perspectiva adotada por esta
vertente da teoria constitucionalista do bem jurídico concretiza limites mais
rigorosos à discricionariedade legislativa na eleição da matéria passível de
tutela penal.
“A tarefa do legislador, portanto, não seria outra
senão a de incorporar ao ordenamento jurídico-penal os valores mais
importantes plasmados de modo vinculante na Grundnorm
289
.
De acordo com a observação de Alice Bianchini,
“dois são os valores colocados em causa: liberdade de opção legislativa e
concreção constitucional. A opção é pela restrição daquela em favor desta
(...)”
290
.
“Deste modo, o legislador penal passa a estar mais
estritamente limitado pelas opções valorativas constitucionais, não podendo
recorrer às sanções penais, sem que tal vise a protecção destes valores.
Aqui reside a garantia de que apenas se tutelem penalmente bens de
fundamental relevo para a comunidade”
291
.
Para a concepção constitucionalista estudada o
Direito Penal representaria um potencial espelho da Constituição, de modo
que “todo e qualquer bem ou valor alçado ao nível constitucional pode ser
objeto de proteção penal, independentemente de sua natureza ou do lugar
que ocupe na escala de valores constitucionais”
292
.
287
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 169.
288
Idem, p. 175.
289
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 90.
290
Bianchini, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos de Tutela Penal, p. 48.
291
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 167.
292
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 60.
92
Esta vertente da teoria constitucionalista do bem
jurídico penal recebeu adoção expressa da Constituição da República
Portuguesa em seu artigo 18, n° 2
293
.
É bom consignar que aqui também vale aquela
noção de que não basta a dignidade penal do bem jurídico, ou seja, a sua
relevância constitucional, consagrada explicita ou implicitamente pela
Carta Maior, para que se deflagre a sua tutela pela via do Direito Penal.
Para tanto, imprescindível se mostrará a carência de tutela, verificação esta
que, salvo no que toca as imposições constitucionais de criminalização, fica
a cargo da discricionariedade do legislador infraconstitucional. Daí porque
falar-se que o Direito Penal é potencial espelho da Constituição.
No entanto, dentro da teoria que encara a
Constituição como um limite positivo do Direito Penal, existe uma
subdivisão que restringe ainda mais o campo de liberdade de atuação do
legislador no que concerne a criminalização de condutas.
Existem autores que sustentam que nem todos
aqueles interesses, valores ou bens consagrados constitucionalmente estão
revestidos de dignidade penal.
Os adeptos da aludida concepção entendem
imprescindível que o bem objeto de tutela penal ostente a natureza de
direito fundamental, tudo porque o bem que será sacrificado mediante a
imposição de pena reveste-se de tal característica.
Partidário desta vertente mais rigorosa Jorge de
Figueiredo Dias revela que entre a ordem axiológica jurídico-
constituicional e a ordem legal jurídico-penal dos bens jurídicos tem
por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência.
Relação que não será de ‘identidade’ ou mesmo de ‘recíproca
cobertura’, mas de analogia material, fundada numa essencial
correspondência de sentido e – do ponto de vista de sua tutela – de fins”
294
.
293
Artigo 18, n. 2, da Constituição da República Portuguesa: “A lei só pode restringir os direitos,
liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, devendo as restrições limitar-se
ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
294
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 120. Analisando o pensamento de Jorge de Figueiredo
Dias, Maria da Conceição Ferreira da Cunha retrata a nítida preocupação daquele autor em deixar patente
a absoluta distinção entre a relação de “analogia substancial” ou de “mútua referência” que sempre deverá
existir entre os bens jurídico-penais e a ordem axiológica constitucional e uma relação de “identidade” ou
de “recíproca cobertura” entre estes dois campos, que de forma alguma consubstancia exigência
constitucional. Tudo porque, além do Direito Penal dever ser a ultima ratio, enquanto estatuto
fundamental, a Constituição sempre trapreceitos genéricos e indeterminados, ao contrário do Estatuto
93
Conclui o consagrado autor português que “os
bens jurídicos protegidos pela direito penal devem considerar-se
concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente
ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e
econômica”
295
.
Em linha de pensamento semelhante, Francesco
Angioni
296
e Sérgio Moccia
297
, mediante consideração inflexível do critério
da proporcionalidade, “defendem que seria constitucionalmente legítimo
prever restrição da liberdade, pela aplicação de uma pena detentiva, quando
se tivessem posto em causa valores do mesmo nível da liberdade e o
mesmo raciocínio valeria também para os outros tipos de penas seria
possível restringir penalmente um valor Constitucional, quando estivesse
em causa a proteção de um bem de grau semelhante ao que seria afectado
pela intervenção penal”
298
.
Enzo Musco também se opõe a amplitude da tese
de Franco Bricola, defendendo que nem todos os valores constitucionais
podem se objeto de tutela penal, mas somente aqueles que representarem
Repressivo que, para garantir a segurança jurídica, deverá ser preciso e concreto. Cunha, Maria da
Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 204.
295
Idem.
296
Aprofundando na análise da tese de Francesco Angioni no que concerne a concretização do princípio
da proporcionalidade, Maria da Conceição Ferreira da Cunha ensina que, segundo o aludido autor,
seria possível recorrer a pena detentiva para tutelar bens de valor superior ou equivalentes (bens
primários) e à pena pecuniária para a tutela de bens primários e secundários. Salienta que tal conclusão o
jurista italiano extrai da função reeducativa da pena, consagrada constitucionalmente, pois “só uma pena
proporcionada ao facto cometido conteria virtualidades reeducativas”. Acentua que o referencial para a
identificação de bens primários e secundários seria o valor liberdade pessoal, nitidamente apontado pela
Constituição como primário. Acrescenta que “os bens primários poderiam ser de carácter individual
aqueles sem os quais o indivíduo não pode realizar-se, nas mínimas formas existenciais, ou cuja falta
seria atentatória da dignidade do homem, ou colectivo – aqueles que são necessários para que o indivíduo
se possa realizar nas ‘mínimas expressões sociaise ‘os bens institucionais....que configuram o tipo de
Estado delineado na Constituição’”. Segundo ele, seriam bens primários, a vida, a liberdade moral, a
honra, o trabalho, o domicílio, etc. Maria da Conceição Ferreira da Cunha enfatiza a fragilidade da
aludida teoria ao tentar separar os bens em primários e secundários, uma vez que, salvo raras exceções
relacionadas a bens que invariavelmente ocupariam o primeiro grupo, tal critério permaneceria
condicionado historicamente, ou seja, determinados bens que, em dado momento histórico,
valorativamente poderiam ser equiparados à liberdade individual, não alcançariam tal patamar de
importância alteradas as circunstâncias histórico-temporais. Daí a posição da autora na defesa de uma
proporcionalidade mais flexível, nos termos da tese de Franco Bricola. Cunha, Maria da Conceição
Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 178/183.
297
Moccia, Sérgio. Aspetti Problematici del Rapporto tra Funzione della Pena e Estruttura dell’Illicito, in
Benie Tecniche della Tutela Penale. Materiali per la Riforma del Códice a cura del CRS, Milano,
Franco Angeli, p. 102/103, apud Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 174.
298
Cunha, Maria Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 174.
94
“as condições mínimas de vida em comum, cuja violação se traduz em
termos de danosidade social”
299
.
No Brasil, defensora tenaz desta tese que restringe
aos direitos fundamentais o objeto de proteção penal é Janaína Conceição
Paschoal, que, depois de rebater as críticas que pesam sobre esta vertente
mais restrita da Constituição como limite positivo do Direito Penal, afirma
que não resta “prejudicada a idéia de que somente os direitos fundamentais
reconhecidos pela Constituição podem ser objeto de tutela penal, ou seja,
podem ser considerados bens jurídicos penais”
300
.
Menciona que se se pretende realizar um Direito
Penal mínimo, o mesmo rigor com que é tratado o princípio da legalidade,
com relação à legislação penal propriamente dita, deve ser dispensado ao
texto constitucional”
301
.
Portanto, para ela, adotados “os princípios da
mínima intervenção, da subsidiariedade, da fragmentariedade e da
lesividade, deve-se apontar ser mais coerente a concepção segundo a qual a
Constituição exerce uma limitação positiva sobre o Direito Penal, devendo-
se, ainda mais restritivamente, limitar a tutela penal àqueles bens de
natureza fundamental, já que, pelo menos formalmente, tudo pode ser
alçado ao nível constitucional”
302
.
É inegável que a tese da Constituição como limite
positivo do Direito penal, em sua vertente mais restrita, não deixa de ser
sedutora quando analisada apenas no campo teórico e sob a ótica da mais
efetiva proteção dos direitos fundamentais.
No entanto, conforme assevera Luiz Flávio
Gomes, “a verdade é que a doutrina constitucionalista inflexível não
assegurou grande ressonância na práxis
303
.
Adotá-la sem reservas significaria desconsiderar o
condicionamento histórico de toda Constituição.
Seria fechar os olhos para o inexorável
aparecimento de outros bens, valores ou interesses, de extrema relevância,
299
Musco, Enzo. Bene Giuridico e Tutela dell’Onore, Milano, Editora Giuffrrè, 1974, p. 127, apud
Cunha, Maria Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 184.
300
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 65.
301
Idem, p. 67.
302
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 68.
303
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico em Direito Penal, p. 91.
95
decorrentes do progresso social, cultural, tecnológico, econômico, etc, que,
desconsiderados pela Constituição em razão de sua inexistência ou pouca
relevância à época de sua promulgação, posteriormente pudessem exigir a
proteção mais eficaz do Direito Penal.
Na exata constatação de Mariângela Gama de
Magalhães Gomes a respeito da vertente mais estrita desta concepção, “a
complexidade e a velocidade com que ocorrem as transformações nas
relações sociais impõem novas exigências e a necessidade de que se atente
aos valores emergentes, o que acarretaria a constante defasagem do rol de
bens jurídico-penais, ainda que este fosse absolutamente completo no
momento da promulgação do texto constitucional”
304
.
Exemplificando, a autora declara que, a propósito,
“podem ser lembradas algumas novas formas de criminalidade que têm se
tornado bastante numerosas e que representam fenômenos de elevada
gravidade para o desenvolvimento das relações sociais”
305
.
Continua, dizendo que, “como conseqüência da
globalização econômica, são freqüentes as condutas desviadas no mundo
dos negócios, em que se verifica, por exemplo, falsificação nos balanços de
empresas, informações inverídicas sobre a situação econômica da
sociedade, e a criação de ‘fundos negros’ à disposição de administradores
gananciosos ou mesmo desonestos, que constituem verdadeiros atentados à
confiança dos investidores”
306
.
Sem contar os desafios opostos às ciências
criminais surgidos com a criminalidade moderna, mais especificamente o
crime organizado, principalmente na sua versão do terrorismo político.
A vertente mais restritiva da teoria que vê na
Constituição um limite positivo ao Direito Penal também recebe as críticas
de Maria da Conceição Ferreira Cunha.
“Que se procure limitar a liberdade do legislador,
numa área tão delicada como a penal, tentando garantir que não se
criminalizem comportamentos que não afectem valores importantes,
fundamentais, parece-nos de louvar. Mas, contendo a Constituição, por
essência, valores fundamentais para a comunidade, nos parece excessivo
querer comprimir ainda mais o âmbito de decisão do legislador,
304
Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal, p. 96.
305
Idem.
306
Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal, p. 96.
96
delimitando de entre o conjunto destes valores um núcleo mais restrito,
único onde este se poderia mover, até pela relativa mutabilidade de
importância dos valores, em cada momento histórico”.
307
Por tudo isso, na tentativa de amenizar tais
aspectos negativos da teoria que na Constituição um limite positivo do
Direito Penal, principalmente no que se refere a derivação acima delineada,
seus adeptos a redimensionam mediante a inserção de critérios de
temperança.
Primeiramente, asseguram então que “a tutela
penal pode-se legitimamente estender-se a bens que encontram na
Constituição um reconhecimento somente implícito (...)”
308
.
É o caso do bem vida, que na Constituição da
República Italiana não conta com previsão expressa, sem, contudo, deixar
de ser reconhecido como constitucional, em razão do status proeminente
que se confere ao ser humano na Lei Maior daquele país.
Por outro lado, “o ilícito penal pode lesar um
valor privado de relevo constitucional, mas ligado a um valor
constitucional por uma relação de pressuposição necessária; de forma que a
lesão do primeiro seja necessária e inequivocamente idônea a colocar em
perigo o segundo (e se oferece o exemplo da segurança do tráfego
relativamente à proteção do bem vida e da incolumidade dos cidadãos)”
309
.
“Serão valores numa relação de pressuposição
necessária aqueles que, não estando previstos na Constituição, têm um
valor instrumental em relação à defesa de um valor constitucional explícito,
de tal modo que a sua lesão colocaria em perigo este valor explícito”
310
.
A proteção penal do bem jurídico exige dele
relevância constitucional, o que não se confunde com previsão
constitucional expressa, ou seja, a relevância constitucional do bem jurídico
digno de tutela penal ainda poderá derivar de sua consagração implícita
pela Carta Maior ou de uma relação de pressuposição necessária, nos
termos acima expostos.
307
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição, p. 188.
308
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico”, como problema teórico e como critério de política criminal, p.
418.
309
Bricola, Franco. Bricola, Franco. “Teoria generale del reato”, Novíssimo Digesto italiano, 1973, p. 16,
apud Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal,
p. 418/419.
310
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 194.
97
Note-se que, na hipótese da relação de
pressuposição necessária, na verdade, ainda que de forma mediata, o que se
protege pela via do Direito Penal é um bem jurídico consagrado
constitucionalmente, expressa ou implicitamente.
Aliás, Luiz Flávio Gomes deixa expresso em sua
obra que “os autores que seguem essa orientação constitucionalista também
admitem a possibilidade de configurar como bens jurídico-penais não os
consagrados explicitamente na Constituição, senão também os implícitos
(teoria dos bens jurídicos implícitos)”
311
.
“Desta forma, são aceitos como objetos de tutela
penal não apenas os bens expressos na Constituição, mas ao legislador é
permitido conferir tal proteção também aos bens que estejam postos em
nível constitucional, ainda que apenas de maneira implícita. Isto não
significa, todavia, que a Carta Constitucional permita a contemplação de
qualquer interesse como sendo sujeito à tutela penal, mas impõe que todas
as possíveis incriminações sejam enquadráveis em suas diretrizes, o que
de ser valorado a partir de argumentação a fortiori ou analógica”
312
.
Mesmo assim, em que pese o esforço de seus
adeptos na tentativa de suavizar os entraves provocados pelas teorias
constitucionalistas mais estritas, os partidários das teorias
constitucionalistas genéricas ou amplas não se mostram satisfeitos.
São exemplos dessa irresignação as palavras de
Emílio Dolcini e Giorgio Marinucci.
Os referidos juristas italianos ponderam que “o
esquema de pressuposição necessária é de todo inidóneo para legitimar a
existência de normas incriminadoras unanimemente julgadas
indispensáveis que tutelam de forma autônoma bens não mencionados na
311
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 92.
312
Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal, p. 98.
Neste ponto esclarece a autora que, “com relação ao raciocínio analógico, de maneira especial, cabe
observar que ele também pode ser corretamente empregado para ampliar o rol de bens jurídicos aptos a
serem tutelados penalmente, uma vez que se considera a sinteticidade do texto constitucional e o dever de
seu intérprete de aferir seu inteiro sentido e alcance. Esse tipo de procedimento (...) não deve ser recusado
com base no princípio de proibição de analogia (in malam partem) em matéria penal. Embora seja
verdade que a utilização da analogia para a ampliação do rol dos bens jurídicos constitucionalmente aptos
a serem tutelados pelo direito penal consista numa analogia in malam partem, não se pode admitir que
seja este o sentido de sua proibição: tal proibição vale para o juiz que interpreta e aplica a norma, e não
para o legislador, já que aqui se trata da configuração de limites à sua tarefa”.
98
Constituição: normas que tutelam tais bens in se e per se, sem reclamar o
concreto pôr em perigo outros bens constitucionalmente relevantes”
313
.
Exemplificam através da menção à tutela penal da
fé pública e do meio ambiente, que não está subordinada ao “pôr-em-perigo
de um bem constitucional”
314
.
Concluem os autores mencionando que “por outro
lado, se (...) se defendesse que o esquema da pressuposição necessária (ou
outro esquema argumentativo) seria idóneo para dar consistência à
categoria de bens implicitamente garantidos pela Constituição, seguir-se-ia
a prática infecundidade da tese: ‘não crime sem ofensa a bens
constitucionalmente relevantes’. Como de fato tem sido francamente
reconhecido por um defensor da tese em exame, ‘a distinção entre bens de
relevância constitucional e bens simplesmente não incompatíveis com a
Constituição resultou por fim mais esbatida do que parece à primeira vista,
e o seu âmbito selectivo muito limitado, visto que poucos são os bens dos
quais se possa afirmar que não são reclamados pela Constituição, pelo
menos implicitamente’”
315
.
Na mesma dimensão vem a assertiva de Luiz
Flávio Gomes no sentido de que “outra crítica que é feita à teoria estrita da
configuração constitucional do bem jurídico-penal consiste na ‘incerteza e
polivalência da Constituição’, que não permitiria, muitas vezes, delinear
com segurança a natureza do bem jurídico e tampouco autorizaria concluir
que a realidade social, ainda que seja em seus aspectos mais relevantes,
esteja explícita ou integralmente contemplada na Carta Constitucional”
316
.
Com todo o respeito que merecem as críticas
lançadas por estes defensores da idéia da Constituição como limite
negativo do Direito Penal, parece-nos que não lhes cabe razão.
A flexibilização da teoria que defende a
Constituição como limite positivo do Direito Penal, nos termos em que
acima foi exposta, é suficiente para, adequadamente, atender os reclamos
de delimitar e fundamentar a atuação do legislador penal, conforme se
pretende com o presente trabalho.
313
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 166/167.
314
Idem, p. 167. É evidente que a análise dos autores toma por base a Constituição da República Italiana
que não consagra expressamente a tutela ao meio ambiente.
315
Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 167/169.
316
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Dirieito Penal, p. 92.
99
Note-se que a pública encontra-se na perfeita
relação de pressuposição necessária com valores constitucionais como o
patrimônio, a economia e a administração da justiça.
No que concerne ao meio ambiente, bem em
relação ao qual muitas Constituições
317
não externam consagração
expressa, também se pode vislumbrar relação de pressuposição necessária
com a vida e a integridade física não de todos que habitam o planeta
como também daqueles que integrarão as gerações futuras.
Portanto, não é correto dizer que, nestas hipóteses,
não haveria a tutela de um bem plasmado na Constituição, ainda que de
forma indireta.
É inegável, por outro lado, não obstante as críticas
destes consagrados juristas, que esta solução no sentido do bem jurídico
penalmente tutelado dever ostentar ao menos relevância constitucional, é a
única razoável, sob o prisma da proporcionalidade, para concretizar um
balanceamento adequado entre o bem, valor ou interesse protegido pela
norma penal e aquele sacrificado pela imposição da pena.
É a única a estabelecer um limite adequado e
razoável ao legislador penal no âmbito de matéria tão relevante como a
criminalização de condutas.
Ora, a restrição estabelecida pelas teorias
constitucionalistas mais amplas, ou seja, a satisfação com a inexistência de
antagonismo entre o bem protegido e os princípios constitucionais, externa
um poder seletivo muito limitado e extremamente vago.
Ademais, conforme ficou consignado, nenhum
ramo do Direito pode contrariar a Constituição, de modo que o legislador
penal não estaria submetido a controle diverso daquele que se impõe a
legislação que disciplina outros setores das relações sociais.
Correto, portanto, o raciocínio de Mariângela
Gama de Magalhães Gomes no sentido de que “pode-se dizer que, em
relação à Constituição, os bens jurídicos dividem-se, em termos gerais, em
bens incompatíveis e bens compatíveis, de modo que estes últimos podem
ser explicitamente mencionados em seu texto, implicitamente deduzíveis
ou nem mesmo implicitamente deduzíveis. Assim, enquanto os bens
317
A Constituição da República Federativa do Brasil, no Capítulo VI, do Título VIII (Da Ordem Social),
consagra expressamente o meio ambiente como bem constitucionalmente valorado (artigo 225).
100
incompatíveis (ou seja, inconstitucionais) não podem ser tutelados por
nenhuma norma jurídica, os compatíveis podem ser tutelados pelas normas
penais apenas se explicitamente mencionados ou implicitamente deduzidos
da Constituição, e os restantes bens compatíveis, embora nem sequer
deduzíveis do texto constitucional, podem ser protegidos apenas por
normas relativas a outros ramos do ordenamento jurídico, como o direito
administrativo ou o direito civil, por exemplo”
318
.
Somente assim se torna possível enfrentar a
questão relacionada ao condicionamento histórico da Constituição, que
impede a formatação de um catálogo fechado e explicito de bens jurídicos,
sem que se menoscabe do valor liberdade, direito fundamental
invariavelmente atingido pela imposição da pena.
É bem por isso que Maria da Conceição Ferreira
da Cunha assegura que, “de fato, sempre que se recorre a um conceito
material de Constituição – tal acontece também como problema dos valores
implícitos perde-se em certeza. que, parece-nos que tal se afigura
indispensável, para que a Constituição não se desligue da realidade; na
verdade, essa concepção material de Constituição corresponderá à sua
essência; poder-se-á dizer até não se tratar mais do que de uma sua correcta
interpretação; de uma interpretação dos seus preceitos que não perca a
adaptabilidade ao momento histórico, a visão de conjunto e o espírito da
Constituição”
319
.
Finalizando e aderindo a faceta mais ampla da
tese da Constituição como limite positivo ao legislador penal, a autora
portuguesa faz consignar que, no seu entender, esta tese é a que expressa
um “melhor equilíbrio entre vinculação constitucional/liberdade do
legislador, garantindo que se protejam penalmente valores dignos de tal
protecção, mas não asfixiando a capacidade de apreciação legislativa, nem
a adaptabilidade do Direito Penal à mutabilidade das condições sócio-
culturais”
320
.
É o que nos parece tamm.
318
Gomes, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal, p. 100.
319
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 211.
320
Idem, p. 195.
101
3. – Imposições constitucionais de criminalização
3.1. Considerações Preliminares
Outra questão tormentosa envolvendo as relações
entre a Constituição e o Direito Penal, que tem suscitado intensos debates
doutrinários, é a relacionada às imposições constitucionais de
criminalização.
Conforme a análise desenvolvida nos tópicos
anteriores, verificamos que, em regra, as Constituições se limitam a
conferir dignidade penal (ou merecimento de pena) aos bens jurídicos nela
plasmados, explicita ou implicitamente, em razão da importância atribuída
a eles.
Porém, também em regra, a mera dignidade penal
conferida pela Constituição a determinado bem jurídico é insuficiente para
que se legitime sua tutela através do Direito Penal.
“A configuração como ilícitos penais dos fatos
lesivos dos valores constitucionais é, para o legislador (...), ‘objeto de uma
situação subjetiva não obrigatória”
321
.
É necessário que a proteção por meio do
instrumento mais agressivo de que dispõe o Estado para o controle social se
mostre necessária, ou seja, o bem jurídico deverá apresentar-se carente de
tutela penal.
Aliás, neste sentido se posta a orientação de
Manuel da Costa Andrade, que assevera que hoje é pacífico o
entendimento de que a dignidade penal de uma conduta não decide, por
si e de forma definitiva, a questão da criminalização. À legitimação
negativa, mediatizada pela dignidade penal, tem de acrescer a legitimação
positiva, mediatizada pelas decisões em matéria de técnica de tutela
321
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
433.
102
(Schutztechnik). É a redução desta complexidade sobrante que se espera do
conceito e do princípio de carência de tutela penal”
322
.
A Constituição nestas hipóteses traria meras
indicações de criminalização, ou seja, apontaria aqueles bens jurídicos, que
diante de sua importância, mereceriam tutela penal, quando esta se
mostrasse necessária.
E a verificação desta indispensável necessidade
323
cabe, normalmente, ao legislador, caso a caso.
Maria da Conceição Ferreira da Cunha registra
que “a determinação da carência de tutela penal também engloba,
necessariamente, uma margem de avaliação e opção para o legislador,
bastante alargada até
324
.
Até então a Carta Magna aparece como um limite
ao legislador penal e toda a preocupação se volta à máxima preservação
dos direitos fundamentais do sujeito ativo da conduta incriminada,
principalmente a liberdade e o patrimônio, alvos atingidos pela imposição
de pena.
Aqui a Constituição aponta um quadro máximo,
dentro do qual o legislador poderá movimentar-se, para, em caso de
necessidade, criminalizar comportamentos que violem ou exponham à
perigo bens que se encontrem em seu interior. A Constituição traça a área
da criminalização legítima.
Porém, além de configurar um limite à atuação
legiferante na esfera penal, a Constituição, em relação a determinados bens
jurídicos por ela valorados positivamente, impõe a criminalização de
322
Andrade, Manuel da Costa. A “dignidade penal” e a “carência de tutela penal” como referências de
uma doutrina teleológico-racional do crime, p. 186.
323
Discorrendo sobre o assunto, Manuel da Costa Andrade menciona que “a carência de tutela penal
expressão ao princípio da subsidiariedade e de ultima ratio do direito penal. O direio penal deve
intervir quando a protecção dos bens jurídicos não possa alcançar-se por meios menos gravosos para a
liberdade. A afirmação da carência de tutela penal significa ‘que a tutela penal é também adequada e
necessária (geeignet und erforderlich) para a prevenção da danosidade social, e que a intervenção do
direito penal no caso concreto não desencadeia efeitos secundários, desproporcionadamente lesivos’. A
carência de tutela penal analisa-se, assim, num duplo e complementar juízo: em primeiro lugar, um juízo
de necessidade (Erforderlichkeit), por ausência de alternativa idónea e eficaz de tutela não penal; em
segundo lugar, um juízo de idoneidade (Geeignetheit) do direito penal para assegurar a tutela, e para o
fazer à margem de custos desmesurados no que toca ao sacrifício de outros bens jurídicos, máxime a
liberdade”. Andrade, Manuel da Costa. A “dignidade penal” e a “carência de tutela penal” como
referências de uma doutrina teleológico-racional do crime, p. 186.
324
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime, p. 290/291.
103
ofensas a eles dirigidas, de modo a fundamentar e exigir a atividade do
legislador na seara penal.
Aqui a Carta Maior não deixa qualquer margem
de liberdade para o legislador concretizar uma ponderação sobre a
necessidade deste tipo de proteção.
Neste caso, excepcionalmente, o constituiente
efetua a análise de ambos os pressupostos da criminalização, ou seja, não
só confere dignidade penal a determinado bem jurídico, como também
atesta a necessidade de sua proteção por intermédio da cominação de pena,
determinando a atuação legislativa neste sentido
325
.
Esta é a direção tomada por Maria da Conceição
Ferreira da Cunha quando assinala que “no caso de imposições expressas, a
Constituição como que implicitamente declara não a dignidade, mas
também a carência de tutela penal”
326
.
Na mesma trilha segue Jorge de Figueiredo Dias
ao deixar claro que “onde o legislador constitucional aponte expressamente
a necessidade de intervenção penal para a tutela de bens jurídicos
determinados, tem o legislador ordinário de seguir esta injunção e
criminalizar os comportamentos respectivos, sob pena de
inconstitucionalidade por omissão (...)”
327
.
325
Quais seriam os motivos que levariam o constituinte, em alguns casos, a antecipar a completa
valoração político-criminal, que, na maioria dos casos, fica a cargo do legislador ordinário? Emílio
Dolcini e Giorgio Marinucci explicam que a resposta a tal indagação “emerge, não da experiência
histórica, mas também dos projectos e dos objetivos que os vários países se propunham no momento em
que se outorgavam uma nova Constituição”
.
Os autores mencionam que “algumas dentre as normas
constitucionais que impõe obrigações expressas de incriminação estão voltadas para o passado, e, por
vezes, para trágicas experiências do passado, cujo retorno se quer impedir para sempre”. Exemplificam,
com a Constituição Alemã, que respondeu às situações vividas durante o período do nacional-socialismo,
com a determinação de criminalização das atividades preparatórias de uma guerra de agressão. Lembram
também da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que, ao determinar a punição de
atentados às liberdades e aos direitos fundamentais, da prática de tortura, da ação de grupos armados
contra a ordem constitucional e contra a democracia, demonstra o nítido receio do retorno a ditadura
militar que dominou o país entre 1964 e 1985. Garantem que outras normas constitucionais que impõem a
defesa , com uma pena, da integridade de específicos bens reflectem a nova ou acrescida importância dos
bens e a previsão de que no futuro poderão ser objeto de agressões sempre mais graves e freqüentes: e é
precisamente o possível intensificar destes fenómenos que torna o bem cada vez mais precioso aos olhos
da colectividade e do legislador constituinte, impondo o recurso à pena como instrumento irrenunciável
de prevenção e repressão. Dolcini, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens
jurídicos, p.173/174.
326
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Cosntituição e Crime”, nota 872, p. 316.
327
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 129.
104
No Brasil, Luciano Feldens menciona que
“situações existem em que esse merecimento e essa necessidade (do
recurso a pena) decorrem, explicita ou implicitamente da Constituição,
hipótese a traduzir, portanto, uma obrigação dirigida ao legislador no
sentido de que se construa os respectivos tipos penais, ou, se já o fez, que
deles não se desfaça sem mais”
328
.
Ao fazer referência às imposições constitucionais
de criminalização, Luiz Regis Prado também externa tal ponto de vista,
dizendo que “o motivo dessa constitucionalização é a relevância dada ao
bem que se quer proteger e a necessidade de se utilizar do instrumento
sancionatório criminal”
329
.
Nilo Batista comunga do mesmo entendimento e
consigna que, “além das funções de fundamento e controle, o texto
constitucional seleciona situações a serem necessariamente tratadas pelo
legislador penal, naqueles casos de bens essenciais à vida, à saúde e ao
bem-estar do povo: chama-se a isso imposição constitucional de tutela
penal”
330
.
Não é outra a postura adotada por Alberto Silva
Franco que marca sua adesão a tal posicionamento, quando diz que, nestas
hipóteses, levado por fatos sociais, políticos, econômicos e as valorações
político-criminais que cercaram a elaboração da Lei Fundamental, “o
legislador constituinte substituiu-se ao legislador infraconstitucional na
tarefa incriminadora e tomou para si tanto o critério do merecimento do
bem jurídico a ser protegido critério que lhe é próprio, na medida em que
a Constituição arrola os bens jurídicos dignos de proteção penal como o
da necessidade da pena, que é vinculado ao legislador ordinário, no
processo de criminalização”
331
.
Aqui estamos em face da área de criminalização
imposta pela Constituição, que, nos termos da lição de Maria da Conceição
Ferreira da Cunha, não se sobrepõe àquela da criminalização legítima.
Segundo observa a aludida professora lusitana,
“podemos dar por assente que área de criminalização legítima e área de
criminalização imposta terão de ser distintas, podendo esta última (a
existir), situar-se como que núcleo da outra. Se tentarmos visualizar dois
328
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 74.
329
Prado, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 97.
330
Batista, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 90.
331
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 73.
105
círculos concêntricos, o mais amplo (...) será o da legitimidade, um
hipotético círculo interior (...) seria o das imposições, sendo certo que,
quanto mais nos afastamos do centro, mais indefensável será a afirmação
de imposições de criminalização. O espaço que medeia entre o círculo
interior e o exterior seria o espaço de liberdade legislativa”
332
.
Com base em tudo o que foi dito é correto afirmar
que, “a idéia das obrigações constitucionais de penalização encerra uma
relação de complementaridade entre as funções delimitadora
tradicionalmente colocadas em primeiro plano – e fundante do Direito
Penal, as quais não podem, sob tais circunstâncias, ver-se dissociadas”
333
.
“É que o Direito Penal apresenta uma dupla
faceta. Por um lado, ele é a arma mais terrível nas mãos do Estado, não
por conter as sanções que, em princípio, mais interferem com valores
fundamentais da pessoa, como pelos efeitos sociais que inevitavelmente
desencadeia, e precisa, assim, de ser legitimado e limitado na sua actuação;
legitimado e limitado não quanto à forma de actuação, oferecendo
garantias de imparcialidade e certeza jurídica, mas também quanto ao
próprio conteúdo. Mas, por outro lado, ele é imprescindível para a própria
defesa dos valores essenciais à vida do homem em sociedade”
334
.
Tendo por objeto de análise o texto constitucional
brasileiro, Railda Saraiva também revela as duas faces da questão,
enfatizando que se por um lado privilegia a vigente Constituição o jus
libertatis definindo, em vários preceitos, regras tendentes a evitar abusos
contra a liberdade individual, por outra parte indica condutas que deverão
ser definidas pelo legislador ordinário como criminosas, recebendo a
necessária tipificação, e dispensando tratamento especialmente rigoroso a
certos crimes que reputa de maior gravidade, deixando transparecer,
nitidamente, a intenção de impedir sua impunidade”
335
.
Nestes termos, os valores constitucionais
aparecem “não como limite negativo da intervenção penal, mas como
pressuposto de uma concepção promocional e propulsiva do direito,
acrescentando à função tradicionalmente protetiva e repressiva do Direito
332
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 299.
333
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 74.
334
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 272.
335
Saraiva, Railda. A Constituição de 1988 e o ordenamento jurídico-penal brasileiro, p. 4.
106
Penal, o papel de instrumento que concorre à realização do modelo e dos
objetivos de promoção social prefigurados pela Constituição”
336
.
Na verdade, o que se vislumbra neste duplo
enfoque é um conflito de bens, valores ou interesses constitucionalmente
consagrados.
De um lado se apresentam os bens do sujeito ativo
do crime, que experimentarão restrição diante da imposição da pena. Do
outro, encontram-se os bens da vítima ou da própria sociedade que exigem
proteção do Estado, muitas vezes, como nos casos de imposições
constitucionais de criminalização, através da cominação de pena.
A solução do conflito inevitavelmente aparecerá
como restrição de um em favor do outro e, no caso das obrigações de
criminalização impostas pela Lei Fundamental, deverá prevalecer a tutela
do bem pertencente ao sujeito passivo do crime (imediato ou mediato)
337
.
É possível lembrar aqui do que José Joaquim
Gomes Canotilho chama de cláusula da comunidade, “nos termos da qual
os direitos, liberdades e garantias estariam sempre ‘limitados’ desde que
colocassem em perigo bens jurídicos necessários a existência da
comunidade”
338
.
Luciano Feldens assegura que a questão
relacionada as imposições de criminalização não se faz presente nas ordens
constitucionais de todos os Estados, mesmo porque se apresenta
intimamente relacionada com a fórmula política do Estado e o seu modelo
constitucional
339
.
E ao tratarmos da influência do modelo de Estado
na formatação do sistema penal, verificamos as conseqüências da assunção
336
Neppi Modona, “Tecnicismo e scelte politiche nella riforma del codice penale”, Dem. e dir., 1977, p.
682, apud Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política
criminal, p. 429.
337
Aqui é bom lembrar a lição de Alexandre de Moraes, no sentido de que “os direitos e garantias
fundamentais consagrados pela Constituição Federal (...) não são ilimitados, uma vez que encontram seus
limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou da
convivência das liberdades públicas). Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou
garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da
harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total
de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual
(contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do
texto constitucional com sua finalidade precípua. Moraes, Alexandre. Direito Constitucional, p. 28.
338
Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1280.
339
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 72.
107
dos contornos de um Estado Democrático de Direito, enquanto síntese das
características dos modelos de Estado liberal e social.
Ora, o próprio enfoque que se a proteção dos
direitos fundamentais assume outras dimensões num Estado Democrático
de Direito, absolutamente diversas daquelas que transparecem num Estado
Liberal.
Resta claro que, num Estado Democrático de
Direito, vocacionado a intervir para garantir a real efetivação e fruição dos
direitos fundamentais, estes não são vistos mais como instrumentos de
exclusiva proteção do indivíduo face à atuação estatal, principalmente no
que concerne ao âmbito penal, mas também como ferramenta apropriada
para a tutela do indivíduo em face de ataques de terceiros.
“Digamos que se deixa de encarar o Estado
sempre na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, para se passar
a vê-lo como auxiliar do seu desenvolvimento ou, numa outra expressão
desta mesma idéia, deixam de ser sempre e direitos contra o Estado para
serem também direitos através do Estado. Esta concepção pressupõe (...)
o abandono de uma visão liberal-pura de Estado e da contraposição total de
Estado/Sociedade”
340
.
Por isso, depois de discorrer sobre a dimensão dos
direitos fundamentais enquanto geradores de direitos subjetivos do cidadão
frente o Estado, Suzana de Toledo Barros acrescenta que “as normas de
direitos fundamentais influem também na relação cidadão x cidadão e,
assim, possuem efeitos sobre terceiros, ou, como denominado pela doutrina
alemã, um efeito horizontal”
341
.
Inclusive, Robert Alexy deixa claro que
“atualmente a idéia de que as normas de direitos fundamentais produzem
efeitos na relação cidadão/cidadão e, nesse sentido, tem um efeito perante
terceiros, ou efeito horizontal, é amplamente aceita”
342
.
Nestes termos, “assume relevo a assim
denominada (...) perspectiva (ou dimensão) jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais, de acordo com a qual estes exprimem determinados valores
que o Estado não apenas deve respeitar, mas também promover e zelar pelo
340
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 274.
341
Barros, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das
leis restritivas de direitos fundamentais, p. 171.
342
Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 528.
108
seu respeito, mediante uma postura ativa, sendo, portanto, devedor de uma
proteção global dos direitos fundamentais”
343
.
De tal assertiva é perfeitamente dedutível a
obrigatoriedade do Estado de proteger os particulares contra ataques a seus
direitos fundamentais provenientes de outros indivíduos ou entidades
privadas
344
.
“Se na época liberal a relação que se
estabelecia era entre particular/Estado (relação bilateral e vertical, de
omissão), agora, ao lado desta, estabelece-se a relação particular
(agressor)/particular (ofendido)/Estado (protector) relação triangular,
horizontal e de omissão (entre os particulares)/vertical e de acção (em
relação ao Estado) e a relação particular/Estado (bilateral, vertical, de
acção, em especial no domínio dos direitos econômico-sociais, mas
também nalguns direitos, liberdades e garantias)”
345
.
Impõe-se ao Estado, além da mera
proibição de interferência nos bens, valores ou interesses consagrados na
Constituição, uma verdadeira obrigação de proteção, de modo a tornar
eficazes aqueles, bens valores e interesses, para que os mesmos não
permaneçam como letras mortas na frieza do texto constitucional
346
.
“Uma perspectiva de expansão de tutela, ao
longo dessa nova direção indicada, é certamente desejável e, de resto,
343
Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 378.
344
Ao analisar a estrutura dos direitos fundamentais sob o aspecto do direito à algo, Roberto Alexy
exemplifica com o direito à vida, consagrado pelo artigo 2°, § 1°, 1, da Constituição Alemã, assegurando
que dele resulta não que o seu titular tem em face do Estado um direito de que este não o mate, mas,
principalmente, um direito a que o Estado proteja sua vida contra intervenções ilegais por parte de
terceiros. O autor assegura que a distinção entre aqueles direitos se faz exclusivamente através de seu
objeto. No primeiro deles, o objeto do direito se restringe a uma ação negativa de seu destinatário (o
Estado), enquanto no outro constitui uma ação positiva. Na primeira hipótese se fala, na lição do autor,
em ‘direitos de defesa’ e na última em ‘direitos à prestação Alexy, Robert. Teoria dos Direitos
Fundamentais, p. 193/196.
345
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 286.
346
Na Constituição da República Portuguesa, tal dever imposto ao Estado vem expresso em seu artigo 9°.
“São tarefas fundamentais do Estado: a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas,
econômicas, sociais e culturais que a promovam; b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o
respeito pelso princípios do Estado de direito democrático; c) Defender a democracia política, assegurar e
incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais; d) Promover o
bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação
dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das
estruturas econômicas e sociais; e) Proteger e valorizar o patrimônio cultural do povo português, defender
a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território;
f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da
língua portuguesa; g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em
conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira; h) Promover
a igualdade entre os homens e as mulheres”.
109
corresponde a uma mais moderna concepção das tarefas do Direito Penal,
já largamente aceita pela doutrina mais conscienciosa”
347
.
E, caso não atue desta forma, o Estado não
estará conferindo proteção suficiente àqueles bens, valores e interesses.
Do aludido raciocínio decorrem deveres de
proteção do Estado, imanentes da própria forma do Estado Democrático de
Direito, que consubstanciam a própria fundamentação da existência de
obrigações constitucionais de criminalização de condutas, para a tutela de
determinados bens jurídicos.
3.2. - Determinações constitucionais expressas de criminalização
Muitas Constituições que adotam como modelo o
Estado Democrático de Direito exprimem estas imposições de
criminalização através de cláusulas expressas, algumas mais
abundantemente que outras.
No Direito comparado, em seleção por amostragem,
podemos elencar as Cartas Constitucionais da Espanha, Itália, França e
Alemanha, que, ainda que parcimoniosamente, contemplam determinações
expressas de criminalização.
A Constituição espanhola, de 27 de dezembro de 1978, a
que mais se valeu de tal forma de intervenção no poder de conformação do
sistema penal conferido ao legislador dentre as Constituições estrangeiras
acima mencionadas, estabelece três hipóteses de mandados explícitos de
criminalização.
Em um primeiro momento, depois de consagrar o direito
fundamental a um meio ambiente adequado ao desenvolvimento pessoal e
impor aos poderes públicos o dever de velar pela utilização racional dos
recursos naturais para viabilizar melhor qualidade de vida, determina a
347
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
429.
110
criminalização de condutas que afrontem aquele bem jurídico, sem prejuízo
das sanções administrativas e da obrigação de reparar os danos
348
.
Logo em seguida, após determinar aos poderes públicos
a conservação e a promoção do enriquecimento do patrimônio histórico,
cultural e artístico dos espanhóis, determina que a lei penal sancionará os
atentados contra os aludidos bens jurídicos
349
.
Derradeiramente, em tutela da liberdade individual,
determina a criminalização do abuso das faculdades de restrição a direitos
na hipótese de investigação de grupos armados e terroristas, impõe a
tipificação penal de condutas caracterizadoras de tais excessos
350
.
Na Itália, no seu artigo 13, a Constituição, de 22
de dezembro de 1947, determina a criminalização de qualquer conduta que
implique em violência física e moral contra pessoas a quem tenham sido
impostas medidas restritivas de liberdade
351
.
A Constituição Francesa, de 04 de outubro de
1958, em seu artigo 68-1, de forma expressa, impõe a definição dos crimes
348
Artigo 45 da Constituição Espanhola: “1. Todos tienen el derecho a disfrutar de um medio ambiente
adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservarlo. 2. Los poderes públicos
velarán por la utilización racional de todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la
calidad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente, apóyandose em la indispensable solidaridad
colectiva. 3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, em los términos que la ley fije, se
estabelecerán sanciones penales o, em su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el dano
causado”.
349
Artigo 46 da Constituição Espanhola: “Los poderes públicos garantizarán la conservación y
promoverán el enriquecimiento del patrimonio histórico, cultural y artístico de los pueblos de España y de
los bienes que lo integran, cualquiera que sea su régimen jurídico y su titularidad. La ley penal sancionará
los atentados contra este patrimônio”.
350
Artigo 55 da Constituição Espanhola: “1. Los derechos reconocidos en los artículos 17, 18, apartados 2
y 3, artículos 19, 20, apartados 1, a) y d), y 5, artículos 21, 28, apartado 2, y artículo 37, apartado 2,
podrán ser suspendidos cuando se acuerde la declaración del estado de excepción o de sitio em los
términos previstos em la Constitución. Se exceptúa de lo establecido anteriormente el apartado 3 del
artículo 17 para el supuesto de declaración de estado de excepción. 2. Una ley orgânica podrá determinar
la forma y los casos en los que, de forma individual y com la necessaria intervención judicial y el
adecuado control parlamentario, los derechos reconocidos em los artículos 17, apartado 2, y 18 apartados
2 y 3, pueden ser suspendidos para personas determinadas, em relación com las investigaciones
correspondientes a la actuación de bandas armadas o elementos terroristas. La utilización injustificada o
abusiva de las facutades reconocidas em dicha ley orgânica producirá responsabilidad penal, como
violación de los derechos y libertades reconocidos por las leys”.
351
Artigo 13 da Constituição da República Italiana: La liberta personale è inviolabile. Non è ammessa
forma alcuna di detenzione, di ispezione e perquisizione personale, qualsiasi altra restrizione della
liberta personale, se non per atto motivato dell’autorità giudiziaria e nei soli casi e modi previsti dalla
legge. In casi eccezionali di necessita ed urgenza, indicati tassativamente dalla legge, l’autorità di
pubblica sicurezza può adottare provvedimenti provvisori, che devono essere comunicati entro
quarantotto ore all’autorità giudiziaria e, se questa non li convalida nelle successive quaranttoto ore, si
intendono revocati e restano privi di ogni effetto. È punita ogni violenza física e morale sulle persone
comunque sottoposte a restrizioni di libertà.La legge stabilisce i limiti massimi della carcerazione
preventiva”.
111
de responsabilidade cometidos pelos membros do governo, no exercício de
suas funções
352
.
E, finalmente, a Constituição da República
Federal Alemã, de 23 de maio de 1949, ainda sob o impacto das
atrocidades cometidas no período da Segunda Grande Guerra, determina a
criminalização de condutas que sejam suscetíveis de atentar contra a
convivência pacífica entre os povos e sejam realizadas com tal intenção,
em especial aquelas destinadas à guerra de agressão
353
.
A Constituição brasileira, de 05 de outubro de
1988, foi pródiga na adoção de cláusulas expressas que contêm imposições
de edificações de tipos penais descritivos de condutas que atentem contra
bens jurídicos especialmente valorados por ela.
O extenso rol de obrigações de penalização inicia
no artigo 5°, inciso XLI, da Lei Fundamental brasileira, que determina que
“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”.
Nesta primeira hipótese a Constituição, através de
cláusula extremamente genérica, determina a confecção de tipos penais
destinados a coibir condutas que expressem a indesejada discriminação
atentatória.
No entanto, a amplitude do aludido dispositivo,
que dificulta a sua recondução à concretude dos fatos à que pretendia
referir-se, recebeu severas críticas da doutrina.
Luciano Feldens deixa claro que a abertura
normativa de tal dispositivo constitucional dificulta especificar seus
domínios essenciais, obstando um controle mais criterioso sobre sua
normatividade
354
.
Tal circunstância não passou despercebida de
Alberto Silva Franco, que, justificando-a em razão das circunstâncias em
352
Artigo 68 da Constituição Francesa: “Le Président de la Republique n’est responsable des actes
accomplis dans l’exercice de sés fonctions qu’em cas de haute trahison. Il ne peut être mis em accusation
que par lês deux assemblées statuant par um vote identique au scrutin public et à la majorité absolue des
membres lês composant; il est jugé par la Haute Cour de justice”.
353
Artigo 26.1. da Constituição da República Federal Alemã: “São inconstitucionais os atos que sejam
susctíveis de atentar contra a convivência pacífica entre os povos e sejam realizados com essa intenção,
em especial aqueles que se destinem a uma guerra de agressão. Esses atos deverão ser penalizados”.
354
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 81.
112
que a Constituição foi promulgada, ou seja, ao rmino de uma ditadura
militar que não hesitou em comprimir, quando não suprimir, direitos
fundamentais, lançou-lhe a pecha de carente de técnica
355
.
Porém, ao que nos parece, a mencionada cláusula
de imposição de criminalização seria o gênero que abrangeria todas as
demais como suas espécies, eis que, logo depois dela, o legislador
constituinte passou a delimitar campos específicos e obrigatórios da
atuação legislativa na seara criminal, que não deixam de ser formas
singulares de atentados a direitos e liberdades fundamentais.
Assim, no inciso XLII do mesmo dispositivo
constitucional encontramos outra determinação de criminalização nos
seguintes termos: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei”.
Cumprindo um dos objetivos a que se propôs o
Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa
do Brasil, consubstanciado na promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (artigo 3°, inciso IV, da Constituição Federal),
coerentemente, o constituinte determinou ao legislador ordinário que
definisse como crime a conduta que atentasse contra aquele bem jurídico,
que apresentava como essência a igualdade entre todos os seres humanos,
independentemente das circunstâncias acima mencionadas.
Atendendo a aludida imposição constitucional, o
legislador brasileiro, através da Lei 7.716, de 05 de janeiro de 1989,
definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
No inciso XLIII, do mesmo artigo 5°, o
constituinte determinou a criminalização da tortura, do tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, do terrorismo e dos definidos por lei como
crimes hediondos, mediante a seguinte redação: “a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia a prática de tortura, o tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como
crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os
que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Nos termos da referida imposição o legislador
ordinário editou as Leis n° 8.072, de 25 de julho de 1990, que, além
355
Franco. Aberto Silva. Crimes Hediondos, p. 73.
113
estabelecer o rol dos crimes hediondos (avolumado pelas Leis 8.930, de
06 de setembro de 1994, 9677/98 e n°9.695/98) estatuiu as
conseqüências penais e processuais decorrentes da prática dos mesmos e
daqueles a eles equiparados, e n° 9.455, de 07 de abril de 1997, que
tipificou os crimes de tortura.
Quando do advento da ordem constitucional
vigorava a Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976, que continha os tipos
penais que descreviam os crimes de tráfico ilícito e o uso indevido de
substâncias entorpecentes ou que determinam dependência física ou
psíquica. O aludido diploma legal foi revogado pela Lei n° 11.343, de 23
de agosto de 2006, que passou a descrever aqueles comportamentos
delituosos e a eles cominar penas.
Em razão de tal circunstância, ou seja, a
preexistência de diplomas legislativos que já davam concretude aquele
mandamento constitucional, no que toca ao crime de tráfico ilícito de
entorpecentes, o texto da Carta Maior impôs ao legislador ordinário apenas
uma conduta omissiva, consubstanciada na não descriminalização de tais
comportamentos.
No que concerne ao crime de terrorismo, resta
divergência doutrinária quanto ao fato do legislador ordinário ter dado ou
não cumprimento a imposição constitucional de criminalização.
Para Luciano Feldens no que toca a tipificação
penal do crime de terrorismo resta um hiato no ordenamento jurídico
pátrio
356
.
Alberto Silva Franco comunga da mesma opinião,
mencionando que “ao contrário do que sucede no Código Penal de Portugal
(arts. 288 e 289) e no Código Penal espanhol (arts. 260 usque 264), o
legislador brasileiro não incluiu, na codificação penal comum o delito de
‘terrorismo’ e as figuras que lhe são afins”
357
.
O mencionado professor entende que a
tipificação do crime de terrorismo também não ocorreu em nenhuma lei
penal especial
358
.
356
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 82.
357
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 109.
358
Idem.
114
Antonio Scarance Fernandes diverge de tal
posicionamento, sustentando que, quando da entrada em vigor do texto
constitucional brasileiro a Lei n° 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de
Segurança Nacional), em seu artigo 20
359
, já descrevia como crime a prática
de tortura
360
.
Alberto Silva Franco critica tal ponto de vista,
asseverando que o legislador, no referido artigo 20 do mencionado diploma
legal, ao deixar de estabelecer o exato significado da expressão atos de
terrorismo”, abstraindo a definição exata do que consistiria tais atos,
afrontou o princípio da taxatividade, faceta do princípio da legalidade, de
modo a contaminar o aludido dispositivo legal, no que toca a descrição do
crime de terrorismo, com o estigma da inconstitucionalidade
361
.
Aderindo às críticas de Alberto Silva Franco,
Antonio Lopes Monteiro assevera que utiliza a lei um discutido nomen
iuris como definição legal do tipo. Ora, essa forma legislativa não é
possível pela ausência de tipo autônomo definido como crime”
362
.
No inciso XLIV, do artigo 5°, o constituinte
brasileiro impôs ao legislador ordinário a criminalização das ações de
grupos armados, civis ou militares, que atentem contra a ordem
constitucional e o Estado democrático, da seguinte forma: constitui crime
inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares,
contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.
Ao entrar em vigor, o texto constitucional, através
de tal mandamento, recepcionou os tipos penais insertos na Lei n° 7.170, de
14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional) que tutelam os bens
jurídicos valorados positivamente naquele dispositivo da Carta Magna.
No artigo 7°, inciso X, da Constituição Federal foi
imposto ao legislador ordinário a criminalização da retenção dolosa do
salário do trabalhador (Artigo 7°. “São direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social: X
359
Artigo 20. “Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar,
depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político
ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou
subversivas. Pena reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Parágrafo único. Se o fato resulta lesão corporal
grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo”.
360
Fernandes, Antonio Scarance. Considerações sobre a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 Crimes
Hediondos, p. 261.
361
Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 109.
362
Monteiro, Antonio Lopes. Crimes Hediondos, p. 94.
115
proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção
dolosa;”.
O artigo 225, § 3°, da Constituição Federal
obrigou o legislador ordinário a definir como crime as condutas lesivas ao
meio ambiente, prescrevendo que “as condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados”.
Neste caso, além de trazer imposição expressa de
criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente, o aludido
dispositivo constitucional deflagrou intenso debate no que concerne a
possibilidade da pessoa jurídica figurar como sujeito ativo do crime, tema
no qual não adentraremos, eis que o mesmo não se vincula ao objeto do
presente trabalho.
Aqui o constituinte determina a tutela penal de um
bem jurídico transindividual, imposição que foi atendida pelo legislador
ordinário através da edição da Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que
descreveu os crimes ambientais, concretizando, inclusive, a possibilidade
aberta pela Constituição da pessoa jurídica tornar-se sujeito ativo de
infração penal.
Finalmente, a Constituição Federal, no parágrafo
4°, do artigo 227, determina a penalização das condutas que constituam
abuso, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes,
mencionado que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a
exploração sexual da criança e do adolescente”.
Neste tópico, além de impor a tutela penal da
vida, da integridade física e da liberdade da criança e do adolescente, o
constituinte exige que a punição seja severa, o que afasta qualquer
questionamento sobre o fato da Constituição referir-se realmente a
utilização do Direito Penal para a consecução de tal objetivo.
O legislador desincumbiu-se de tal obrigação
mediante a edição da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990, que tipificou as
condutas ofensivas aos referidos bens jurídicos.
Anote-se que o digo Penal, através de diversos
tipos penais, encetava proteção aos aludidos bens jurídicos titularizados
por crianças e adolescentes, sendo que a referida tutela, no que concerne a
116
coibição da exploração sexual, ganhou reforço com a edição da Lei
12.015 de 07 de agosto de 2009, que alterou o Título VI da Parte Especial
do Estatuto Repressivo.
Em que pese a clareza das expressões utilizadas
pelos constituintes nas hipóteses acima mencionadas, indicando
nitidamente a existência de imposições que vinculam o legislador ordinário
a uma atuação positiva (criminalização) ou negativa (não
descriminalização), autores existem que contestam tal posicionamento para
sustentar que aqueles dispositivos trazem consigo nada mais do que meras
indicações de criminalização, que apenas revelam a dignidade penal de
determinado bem jurídico, conferindo ao legislador ordinário a liberdade de
verificação da necessidade de tutela penal através da criminalização de
comportamentos.
Adepta de tal posicionamento que afasta do
legislador ordinário a vinculação a uma atuação positiva ou negativa nos
casos de determinações expressas de criminalização, Janaína Conceição
Paschoal assevera que “assumir que o constituinte avalia o merecimento
e a necessidade da tutela penal, estando, portanto, o legislador obrigado a
criminalizar, significa voltar as costas ao necessário caráter material da lei
e da própria Constituição, importando ainda a desconsideração dos
princípios informadores do Direito Penal mínimo, que, em última instância,
pauta-se na necessidade efetiva e não meramente formal da tutela penal”
363
.
Sustenta a mencionada autora que a adoção de
posicionamento diverso resultaria em menoscabo do princípio da
intervenção mínima e, em conseqüência, do caráter fragmentário e
subsidiário do Direito Penal
364
.
Partidário das mesmas idéias, Luiz Flávio Gomes
consigna que “a sinalização da Constituição no sentido da criminalização
ou penalização de determinadas condutas, de qualquer modo, não significa,
sic et simpliciter, que a imposição de sanções penais seja uma operação
legisferante automática. Recorde-se que o legislador goza, dentro dos
limites estabelecidos na Constituição, de uma ampla margem de liberdade
que deriva de sua posição constitucional e, em última instância, de sua
específica legitimidade democrática”
365
.
363
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 84.
364
Idem, p. 85.
365
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 106.
117
Prossegue o ilustre penalista assegurando que
“não existe, portanto, uma obrigação de criminalização ou penalização
automática, senão uma indicação do valor do bem jurídico referido.
Elevado ‘merecimento de pena’ não significa ‘necessidade de pena’. Por
isso, o não cumprimento pelo legislador das obrigações de criminalização
não está sancionado com nenhuma conseqüência jurídica
366
.
Arremata seu ponto de vista lançando dúvidas
sobre a coerência da tese de vinculação do legislador diante das imposições
expressas de criminalização, sob o argumento de que “se, em virtude das
mudanças sociais, desaparece a necessidade de tutela penal, poderia ser
inconstitucional manter a criminalização”
367
.
Ratificando integralmente esta última
consideração de Luiz Flávio Gomes, Janaína Conceição Paschoal
acrescenta que “da constatação de que as determinações expressas de
criminalização estão relacionadas não à necessidade de tutela penal, mas a
fatores históricos e/ou reclamos sociais predominantes quando da
elaboração da carta” se extrai a conclusão de que “estes fatores ou reclamos
podem não ser suficientes para justificar uma criminalização em momento
posterior ao do advento da Constituição”
368
.
Sem a pretensão de questionar a respeitabilidade
dos autores que sustentam a inexistência de uma vinculação positiva ou
negativa do legislador ordinário às imposições constitucionais de
criminalização, cremos que o posicionamento adotado por eles não é o
melhor, motivo pelo qual refletem a expressão da minoria da doutrina.
É bom salientar que a recepção das determinações
constitucionais de criminalização como obrigações impostas ao legislador
ordinário de atuar positivamente, no sentido de criminalizar condutas que
violem ou coloquem em perigo aqueles bens jurídicos apontados pelo
constituinte como dignos e merecedores de tutela penal, ou negativamente,
no sentido de impedir a descriminalização daqueles ataques, em nada
contraria os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da
subsidiariedade do Direito Penal.
Como visto antes, o postulado da intervenção
mínima coloca o Direito Penal como instrumento hábil apenas para a tutela
366
Gomes, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, p. 106/107.
367
Idem, p. 107.
368
Paschoal, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 83.
118
de bens jurídicos fundamentais, que se mostrem imprescindíveis para a
manutenção da vida em sociedade.
Daí decorre que o Direito Penal é fragmentário,
ou seja, não se destina a tutela de todo e qualquer bem jurídico, mas
somente daqueles de fundamental importância e quando submetidos à
agressão de considerável monta.
Da intervenção mínima também deriva o caráter
subsidiário do Direito Penal, isto é, a tutela penal deve ser necessária e tal
necessidade aflora da circunstância dos demais ramos do Direito se
apresentarem como ineficazes para a proteção adequada de determinado
bem jurídico.
Tomando uma concepção estrita da
subsidiariedade do Direito Penal, pode-se dizer que “o recurso ao
instrumento penal é, sem dúvida, supérfluo todas as vezes nas quais o
escopo da disciplina (ou seja, o impedimento da lesão do bem) é
alcançável através de sanções de natureza extrapenal (...)”
369
.
Em uma acepção mais ampla do aludido
princípio, a sanção penal seria, de qualquer modo, preferível também nos
casos de não ‘estritíssima’ necessidade, quando sua função ‘estigmatizante’
resulte indispensável para uma mais enérgica reafirmação do valor
tutelado”
370
.
Volto a repetir: as imposições constitucionais de
criminalização em nada se contrapõem aos aludidos postulados.
Nestas hipóteses, o constituinte, que se encontra
em patamar hierárquico superior àquele em que se posta o legislador
ordinário, antecipou-se a este na análise de todos esses pressupostos da
intervenção penal, ou seja, constatou tratar-se de um bem jurídico digno
de tutela penal e, portanto, de fundamental importância, bem como da
necessidade de proteção de tal porte.
É evidente que se a análise relacionada à carência
de tutela penal pode ser feita pelo legislador ordinário, com muito maior
razão poderá ser feita pelo constituinte, responsável pela determinação do
quadro axiológico dentro do qual deve transitar o legislador penal.
369
Fiandaca, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal, p.
435.
370
Idem.
119
Pensar de forma diversa implicaria em admitir que
quem pode o mais não pode o menos.
Ora, se cabe ao constituinte dizer quais bens
jurídicos são passíveis de tutela penal, evidentemente, dentre estes, ele
poderá dizer quais, necessariamente, deverão receber esta espécie de
proteção.
Também não merece prosperar a crítica
relacionada ao indiscutível condicionamento histórico do texto
constitucional, uma vez que as imposições constitucionais de
criminalização se referem a um núcleo essencial e imutável do Direito
Penal.
Tais determinações exaradas na Constituição
visam tutelar bens jurídicos que mantêm sua fundamentalidade intacta,
independentemente da alteração das condições sociais, políticas,
econômicas e culturais que cercaram a elaboração da Lei Fundamental.
De tal circunstância decorre a viabilidade do
constituinte antecipar a análise da necessidade de tutela penal daqueles
bens que entendeu dignos de constituírem objeto de disciplina das normas
penais incriminadoras.
Nestes termos, posiciona-se Maria Conceição
Ferreira da Cunha ao asseverar que o âmbito de uma possível obrigação de
criminalização não poderá abranger a totalidade dos valores
constitucionais, nem se poderá confundir com o âmbito de uma legítima
tutela penal. Ela se poderá reconduzir à condutas de inequívoca e
elevada dignidade penal (onde se inclui uma elevada danosidade social) e
carecidas de intervenção penal, de tal modo que se possa considerar
controlável constitucionalmente uma não intervenção”
371
.
“Com este raciocínio, convirá reafirmar, não se
estaria a pôr em causa a característica do Direito Penal como a ‘ultima
ratio’ da política social, nem a necessidade de um espaço de liberdade para
o legislador, mas a verificar a existência de áreas de intensa
interpenetração das duas categorias fundamentais da criminalização, o que
tornaria evidente que a imposição constitucional de protecção iria ao ponto
371
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”, p. 307.
120
de exigir a tutela penal. Tal concepção criaria um núcleo (muito embora
restrito) de constitucionalmente obrigatória intervenção penal”
372
.
Ademais, “entender diferentemente seria ‘reduzir
a zero a normatividade exsurgente dessas disposições constitucionais.
Seria desprezá-las por inteiro, pois que seu único objeto é exatamente esse,
e que delas não se pode retirar, qual seja: uma imposição (...) dirigida ao
legislador penal para que construa os tipos penais em consonância ao
mandado constitucional e, ao mesmo tempo, uma vedação a que proceda
uma radical despenalização de condutas que culmine por retirar
integralmente a proteção ao bem jurídico objeto do mandado de
criminalização”
373
.
Aliás, no que toca ao tema, é irrefutável a
ponderação de Clémerson Merlin Clève no sentido de que a Constituição,
como norma jurídica de superior hierarquia, não é sede adequada para o
abrigo de “lembretes, avisos, conselhos ou regras morais
374
.
A este respeito, no mesmo sentido se pronuncia
José Joaquim Gomes Canotilho quando ensina que “não obstante se
apontar ainda hoje um ‘momento utópico’ a certas imposições
constitucionais, estamos longe dos ‘simples programas’, ‘proclamações’,
‘exortações morais’, ‘declamações’, sentenças políticas’, aforismos
políticos’, ‘promessas’, ‘determinações programáticas’, ‘programas
futuros’, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade”
375
.
É óbvio que as normas constitucionais através das
quais veiculam as imposições de criminalização “não são dotadas de uma
espécie de ‘eficácia criminalizadora de per se’”, mesmo porque a adoção
de posicionamento diverso chamuscaria o princípio da legalidade,
constitucionalmente consagrado
376
.
Portanto, da exigência da intervenção legislativa
para impedir a possibilidade de punição com base direta no texto
constitucional, confere-se ao legislador ordinário um grau de liberdade face
às imposições constitucionais de criminalização, ainda que limitado.
372
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Crime e Constituição”,p. 347.
373
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 78.
374
Clève, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2. ed.,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 33.
375
Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, p. 298/299.
376
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 77.
121
Através da edição de lei penal incriminadora,
caberá com exclusividade ao legislador ordinário descrever as condutas
aptas a lesionar ou colocar em risco aquele bem jurídico em relação ao qual
a Constituição exigiu a proteção penal, bem como individualizar,
qualitativa e quantitativamente, dentro de limites mínimo e máximo, a
sanção penal adequada à reprovação do crime e idônea à prevenção da
prática de outros.
Sinteticamente, é possível dizer que a imposição
de criminalização (...) não seria estabelecida em termos precisos o se
imporia a forma de protecção penal, molduras penais e tipo de pena (...)”
377
,
matéria esta que ficaria adstrita ao âmbito de liberdade do legislador
ordinário.
Esta é a correta interpretação que deve ser feita a
respeito da natureza jurídica das imposições constitucionais de
criminalização.
São verdadeiros mandados de penalização, que
vinculam o legislador ordinário a uma atuação positiva ou negativa, sob
pena de caracterização de atuação inconstitucional.
3.3. - Determinações constitucionais implícitas de criminalização.
Questão mais complexa, no entanto, diz respeito
ao fato das determinações de criminalização se resumirem ou não àquelas
expressas na Constituição.
O texto constitucional, além das determinações
expressas de criminalização, traria também mandados implícitos de
penalização?
Aprofundando no tema sob indagação seria de
perguntar: das imposições expressas de criminalização poderiam ser
377
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime”, p. 430.
122
extraídas obrigações implícitas de tipificação penal dirigidas ao legislador
ordinário?
Não existe consenso doutrinário a respeito do
tema, que ganha sustentação teórica a partir de decisões proferidas por
Tribunais Constitucionais de países europeus nas décadas de setenta e
oitenta do século passado
378
.
Parte dos juristas entende que, se em
determinados casos o constituinte impôs expressamente ao legislador
ordinário uma atuação no sentido de criminalizar condutas que, ao menos,
colocassem em risco bens jurídicos valorados positivamente, é porque nos
demais teria deixado inteira liberdade a ele.
Outros, no entanto, defendem que de um modelo
de Estado Democrático de Direito, da hierarquia dos valores
constitucionais e do princípio da proporcionalidade derivariam as
determinações implícitas de penalização
379
.
Na defesa da primeira corrente, depois de
sustentar a existência de normas constitucionais que expressamente
determinam a criminalização de certas condutas, Jorge de Figueiredo Dias
assevera que “onde inexistam tais injunções constitucionais expressas, da
existência de um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido como
integrante de um direito ou de um dever fundamental não é legítimo
deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos que o
violam”
380
.
378
A admissão de determinações implícitas de tutela penal de determinados bens jurídicos ganha luz a
partir da famosa decisão do BVerfG, de 25 de fevereiro de 1975, que declarou a inconstitucionalidade da
Lei de Reforma do Código Penal (5. StRG, de 18 de junho de 1974), que, no que toca ao aborto, se
adotava a chamada solução “a termo”, de modo a possibilitar a interrupção da gravidez nos primeiros três
meses de gestação. “À ocasião, operando uma indisfarçável relação entre proporcionalidade e o tema dos
direitos fundamentais, decidiu aquela Corte sobre a eventual obrigatoriedade, sob determinados
pressupostos, de conferir-se proteção jurídico-penal à vida intra-uterina (...)”. Entendeu a mencionada
Corte Constitucional que “o direito à vida incluída a vida intra-uterina como valor fundamental, se
encontra determinantemente protegido pela Lei Fundamental. De tal sorte, e segundo a dicção do
Tribunal Constitucional, não apenas direitos, mas também valores constitucionais fundamentais podem
converter-se em bens jurídicos a exigirem proteção por meio de normas penais”. Dez anos depois, a
Corte Constitucional espanhola decretou a inconstitucionalidade de lei orgânica que despenalizava o
aborto sob determinadas circunstâncias, entendendo que estas afrontariam exigências constitucionais
insertas no artigo 15 da Lei Fundamental daquele país. Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 95/96.
379
Sobre a indagação da existência de mandados implícitos de penalização, Francesco Palazzo ensina que
“a resposta parece ser positiva, não apenas porque a presença de clausula expressa não autorizam, por
certo, e fundadamente, o argumento do ubi lex voluit dixit... mas, de modo especial, pelo papel que podem
representar na observância do princípio generalíssimo da ragionevolezza”. Palazzo, Francesco. Valores
Constitucionais e Direito Penal, p. 105/106.
380
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, p. 129/130.
123
O autor português sustenta seu posicionamento na
premissa de que, salvo nos casos de imposições constitucionais explícitas,
onde o constituinte anteciparia o juízo de carência penal, indispensável se
mostra a constatação concreta da necessidade de tutela penal, o que cabe
com exclusividade ao legislador ordinário, caso a caso
381
.
No entanto, nos parece que o posicionamento
contrário é mais acertado e se revela mais condizente com uma adequada e
eficaz proteção dos direitos fundamentais.
vimos anteriormente que atualmente se mostra
indiscutível que a eficácia dos direitos fundamentais não se restringe à um
aspecto negativo, consubstanciado no direito de defesa do indivíduo frente
ao Estado, conforme propugnava a filosofia do liberalismo.
“Os direitos fundamentais não se fazem
violentados unicamente pelo Estado, senão que também o são, e em grande
escala, por entes privados”
382
, como cotidianamente vemos nos casos de
homicídio, lesões corporais, calúnia, difamação, injúria, furto, roubo,
estupro, etc.
Por isso, dentro de um modelo de um Estado
Democrático, enquanto síntese dos modelos liberal e social, expressando
vetores diretivos da ordem jurídica, os direitos fundamentais exigem
prestações estatais positivas no sentido de protegê-los, inclusive contra
ataques provindos de particulares.
Embasado em tais premissas, Luciano Feldens
defende que num Estado Social e Democrático de Direito as determinações
implícitas de criminalização decorrem da própria assunção deste modelo
político, que impõe ao Estado uma atividade de proteção ativa de
determinados direitos reconhecidos como fundamentais
383
.
Por outro lado, considerando-se que a aludida
proteção em muitos casos é possível através do Direito Penal, adverte o
autor que “não se pode dizer que a Constituição tenha exigido um Estatuto
Penal porque o fez, na medida em que previu a formatação de um regime
sancionatório penal, criando regras de competência e impondo a
381
Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal,p. 130.
382
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 105.
383
Idem p. 72/73.
124
penalização de algumas condutas cujo único conteúdo dissesse respeito
aos mandados expressos de criminalização”
384
.
“Uma análise contextual da Constituição
indubitavelmente nos oferecerá solução distinta, para afirmar a existência
de normas implícitas de penalização. Da plataforma penal estabelecida na
Constituição são racionalmente dedutíveis outras zonas de obrigatória
intervenção do legislador penal. Se constatarmos que em muitas vezes a
Constituição chegou ao ponto de determinar aquilo que para alguns
significa uma ‘antecipação do Direito Penal’ assim considerada a
utilização do Direito Penal para a proteção de bens jurídico-penais
coletivos (ou secundários) – é-nos razoável admitir que a Constituição
igualmente está a exigir a proteção não de todos, por certo, mas de
determinados bens jurídicos que se revelem inequivocamente primários no
âmbito de uma sociedade democrática submetida a um programa
constitucional básico assentado na defesa da vida, da liberdade e da
dignidade humana”
385
.
No contexto do que foi dito, torna-se claro,
portanto, que a proteção dos bens jurídicos secundários serve de
instrumento apto a evitar a lesão ou colocação em risco de alguns dos
primários, de modo que da exigência constitucionalmente expressa de
proteção daqueles, obviamente, se extrai uma determinação implícita de
proteção destes. assim o Estado estaria cumprindo integralmente o seu
dever de prestação ativa no sentido de tutela dos valores fundamentais.
De outra banda, sob um enfoque sustentado pelo
princípio da proporcionalidade, é inolvidável também que aqueles bens,
valores e interesses plasmados na Constituição e que se revestem, portanto,
de dignidade penal não se encontram, hierarquicamente falando, em um
mesmo patamar.
Evidentemente, a vida não pode ser equiparada a
qualquer outro bem jurídico, mesmo porque ela constitui a base, a fonte de
todos os demais, o que lhe confere posição de primazia.
Daí a inevitável conclusão de que os valores
constitucionalmente consagrados se postam em uma ordem hierarquizada,
onde aqueles que mais se aproximam da dignidade da pessoa humana,
fundamento do Estado Democrático de Direito, preponderam sobre os
dispostos mais distantes.
384
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p.93
385
Idem, p. 94.
125
“Aceitando ser a dignidade da pessoa humana o
princípio fundante e rector das actuais Constituições democráticas de
cultura ocidental, é evidente que os valores mais intimamente ligados a esta
dignidade são de primacial importância”
386
.
Assim, torna-se claro que bens como a vida, a
integridade física, a saúde, a liberdade, a honra, o patrimônio, etc.,
constituem interesses de extrema valia e que, em razão de tal circunstância,
integram o núcleo essencial dos valores constitucionalmente consagrados e
que, por isso, exigem uma prestação ativa estatal no sentido de garantir-
lhes a incolumidade, inclusive, através do Direito Penal, que, para os casos
de ofensas mais intensas, indiscutivelmente, se apresenta como único ramo
do Direito apto a consecução de tal finalidade.
Observe-se que o caráter essencial de tais valores
para o desenvolvimento da vida em sociedade subtrai os mesmos de um
condicionamento histórico ou de qualquer outra natureza (político,
econômico, social, cultural, etc), ou seja, sempre se mostrarão dignos e
carentes de tutela penal.
Ninguém, em tempo algum, quaisquer que fossem
as circunstâncias históricas, políticas, sociais ou culturais, ousaria defender
a descriminalização do homicídio, da lesão corporal, do tráfico de drogas,
do roubo, etc., sob o argumento da ausência de necessidade da tutela penal.
Repita-se: nestes casos, o indiscutível valor de tais
bens torna incontestável não a dignidade penal como também a
necessidade de proteção através da cominação de pena.
Devemos admitir que “há uma tendencial
convergência entre a elevada dignidade penal e carência de tutela penal,
assim como, ao invés, entre reduzida ou duvidosa dignidade penal e
inexistência de necessidade de tutela penal”
387
.
Ainda sob o enfoque da inevitável aceitação da
existência de uma ordem hierárquica entre os valores constitucionais e a
indispensável obediência ao princípio da proporcionalidade, é de se notar
que aqueles bens jurídicos que constituem o objeto de proteção das
determinações expressas de criminalização constantes dos dispositivos
386
Cunha, Maria da Conceição Ferreira da Cunha. “Constituição e Crime”, p. 318.
387
Idem, p. 346.
126
constitucionais mencionados no item anterior não se encontram no cume
desta escala valorativa.
E tal fato não passou despercebido de Luciano
Feldens que em relação a ele fez consignar que “ao prescrever
determinadas matérias sujeitas à necessidade de tutela penal, a Constituição
teve em mente a magnitude desses bens. Todavia, isso não significa que
esses bens ocupem, necessariamente, uma posição de primazia valorativa,
nem mesmo na consciência do constituinte. O provável, aliás, seja o
contrário. Quiçá por desconfiar do juízo de conveniência inerente ao
legislador penal, a Constituição impôs a criminalização de condutas
atentatórias a determinados bens jurídicos, os quais não se pode afirmar
pelo menos em tom de generalidade sejam os mais valiosos previstos na
própria constituição, sendo que não necessitava fazer o mesmo em relação
à proteção da vida, por exemplo, certamente porque a necessidade de sua
proteção se lhe afigurava, desde já, como uma evidência”
388
.
Em outras palavras é admissível dizer que os
objetos de proteção dos mandados constitucionais expressos de penalização
ocupam uma zona fronteiriça em termos de carência de tutela penal, o que
poderia levar o legislador ordinário a afastá-lo da proteção do Direito
Penal, caso o constituinte não lhe impusesse a criminalização das condutas
que os submetam a dano ou a risco.
Assim, com o escopo de afastar eventual ausência,
deficiência ou ineficácia de proteção estatal a bens de tal porte decorrentes
da discricionariedade do legislador ordinário, o constituinte, nestes casos,
expressamente impôs a ele a obrigação de criminalização, antecipando-se
na análise da necessidade de proteção penal.
Ora, se nestes casos em que um bem jurídico que
não ocupa posição de primazia na ordem constitucional necessita de tutela
penal, e esta carência vêm expressa nos mandados explícitos de
penalização, com maior razão estará o legislador ordinário obrigado a
conferir tutela penal aos bens mais valiosos, quando submetidos à ofensas
relevantes, até por uma questão de obediência ao princípio da
proporcionalidade.
É certo que costumeiramente o princípio da
proporcionalidade é relacionado à proibição de excesso, mas,
388
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 94.
127
inegavelmente, na atualidade, não se discute que ele apresenta uma outra
faceta, consubstanciada na proibição de proteção deficiente
389
.
Neste sentido, aliás, se projeta o raciocínio de
Ingo Wolfgang Sarlet quando diz que “o princípio da proporcionalidade,
para além de sua habitual compreensão como proibição de excesso,
abrange outras possibilidades, cuja ponderada aplicação, inclusive na esfera
jurídico-penal, revela um amplo leque de alternativas. Que tanto o princípio
da proibição de excesso quanto o da proibição de insuficiência (já por
decorrência da vinculação dos órgãos estatais aos deveres de proteção)
vinculam todos os órgãos estatais, de tal sorte que a problemática guarda
conexão direta com a intensidade da vinculação dos órgãos estatais aos
direitos fundamentais e com a liberdade de conformação do legislador
penal”
390
.
Se por um lado a tutela estatal de determinado
bem jurídico não deve implicar em intervenção excessiva nos direitos
fundamentais de seu agressor, por outro é inegável que a mencionada
interferência Estatal não pode se afastar daquele mínimo ordenado
constitucionalmente, de modo a expressar uma proteção deficiente.
Nesta linha de raciocínio, torna-se claro que a
ausência de proteção ou o estabelecimento de uma proteção ineficaz
àqueles bens jurídicos que compõe o núcleo essencial dos valores
constitucionalmente consagrados também consistiria afronta ao princípio
da proporcionalidade e, em conseqüência, inconstitucionalidade passível de
constatação jurisdicional.
“Em essência, mediante o recurso à proibição de
proteção deficiente pretende-se identificar um padrão mínimo das medidas
estatais com vistas a deveres existentes de tutela. Padrão este que (...)
também poderia ser exigido do legislador (penal), momento este que
caracteriza o limite inferior de seu espaço de configuração”
391
.
“O legislador, havendo de transitar entre um
limite máximo (Übermassverbot) e um limite mínimo (Untermassverbot)
na conferência de proteção normativa a um direito (ou valor) fundamental,
389
O termo “proibição de proteção deficiente foi talhado por Claus-Wilhelm Canaris e, posteriormente,
adotado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, expressão esta que “engendrando matizes
identificados ao mandado de proporcionalidade, se antagonizaria, com algumas adaptações, à tradicional
proibição de excesso”. Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 98.
390
Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcinalidade: o direito penal e os direitos fundamentais
entre proibição de excesso e de insuficiência, p. 100.
391
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 109.
128
encontra-se vinculado não apenas a disposições constitucionais expressas
nesse sentido, senão que também haveria de submeter-se limitações
implícitas, as quais, no limite, requereriam o recurso a normas penais”
392
.
Evidentemente, também aqui, como nos casos de
imposições expressas de criminalização, ficará ao critério do legislador a
verificação das formas de agressão àqueles bens jurídicos, que a
Constituição apresenta como dignos e carentes de tutela penal, que
merecerão descrição em preceitos primários de normas penais
incriminadoras.
Obviamente, os ataques mais intensos àqueles
bens, valores ou interesses deverão constituir o conteúdo dos tipos penais,
sob pena de violação do princípio da fragmentariedade.
Em poucas palavras, é dizer que o significado de
um mandado de penalização, seja ele explícito ou implícito, consiste na
afirmação constitucional da dignidade penal de um bem jurídico e,
simultaneamente, da necessidade de sua tutela através do Direito Penal, nos
casos de ataques revestidos de maior intensidade, cujas definições
permanecerão a cargo do legislador ordinário.
Embora obrigado a valer-se do Direito Penal para
a tutela daquele bem jurídico especificado pela Constituição, o legislador
ordinário “poderá fazê-lo em diferentes graus ou escalas, desde que o faça,
evidentemente, dentro dos limites ditados pela proibição da proteção
excessiva e da proibição da proteção deficiente”
393
.
392
Feldens, Luciano. A Constituição Penal,p. 97.
393
Idem, nota 179, p. 113.
129
4 A questão do controle de constitucionalidade nos casos de
descumprimento dos mandados de criminalização
4.1 Considerações preliminares sobre as formas de
inconstitucionalidade, os sistemas e critérios de controle, e os efeitos da
declaração da afronta à Constituição
A superioridade hierárquica da Constituição exige
que tudo no mundo jurídico se conforme a ela, mediante obediência de seus
princípios e preceitos, sob pena da mácula da inconstitucionalidade, que, na
consideração de Flávia Piovesan, “advém sempre uma relação de
contrariedade com a Constituição: de um lado a Constituição e de outro um
comportamento ameaçador e violador à ordem constitucional”
394
.
Daí a alegação de José Afonso da Silva no sentido
de que “o princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se
conformem com os princípios e preceitos da Constituição
395
”.
O vício da inconstitucionalidade pode advir de um
comportamento ativo, bem como de mera omissão de atuação determinada
pela Constituição e, por isso, a Lei Fundamental brasileira, como a de
tantos outros países, prevê duas formas de inconstitucionalidade: a
inconstitucionalidade por ação e a inconstitucionalidade por omissão.
396
A inconstitucionalidade por ação ou por atuação
aparece quando atos legislativos ou administrativos afrontam normas ou
princípios constitucionais.
“Corresponde a um comportamento ativo, a uma
ação, a um facere violador e contrário à Constituição. Resume-se na
conduta positiva incompatível com os princípios constitucionalmente
assegurados”
397
.
394
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra as omissões legislativas, p. 86.
395
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 46.
396
Artigo 102, inciso I, alínea “a”, e III, alíneas “a”, “b” e “c”, e artigo 103 e seus §§ a §°, da
Constituição Federal
397
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra as omissões legislativas, p. 87.
130
Exemplificando, podemos citar o artigo 5°, inciso
XLIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que, ao dispor
que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,
o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”,
impõe ao legislador ordinário a criminalização das referidas condutas.
Cumprindo a aludida determinação constitucional,
através da Lei 9.455, de 07 de abril de 1997, o legislador ordinário
edificou os tipos penais que descrevem as condutas que caracterizam
crimes de tortura.
Ora, se, posteriormente, o legislador viesse a
editar nova lei revogando àquela, sua atuação legislativa externaria
evidente afronta ao artigo 5°, inciso XLIII, da Constituição Federal,
caracterizando inconstitucionalidade por ação, passível de reconhecimento
jurisdicional.
“O fundamento dessa inconstitucionalidade está
no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da
compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no
sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem
compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição”
398
.
Assim, aqueles atos legislativos ou
administrativos que entrarem em rota de colisão com o preceituado na Lei
Maior serão inválidos, em razão da incompatibilidade vertical com ela,
verdadeiro fundamento de validade daqueles.
“A inconstitucionalidade por ação resulta na
norma jurídica inválida”, por isso se diz que ela “opera no plano da
validade jurídica”
399
.
Esta incompatibilidade das leis ou dos atos
administrativos com os preceitos constitucionais pode ocorrer tanto sob o
aspecto formal quanto material.
Na primeira hipótese o ato terá sido formado por
autoridade incompetente ou em desacordo com o procedimento de
formação estabelecido pela própria Lei Maior.
398
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 47.
399
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra as omissões legislativas, p. 89.
131
Na segunda, a incongruência se verificará entre os
conteúdos destas leis ou outros atos do Poder Público e os preceitos
constitucionais. É o caso do exemplo acima mencionado.
“Isto significa que a inconstitucionalidade por
ação pode resultar seja da afronta ao conteúdo consagrado pela
Constituição, seja da afronta ao processo de produção normativa por ela
previsto. Na primeira hipótese, a inconstitucionalidade por omissão é
material, tendo em vista que o ato normativo produzido é inconstitucional
na matéria, por ferir conteúdo constitucional. Na segunda hipótese, a
inconstitucionalidade por ação é formal, posto que o vício não mais se
encontra no conteúdo do ato normativo, mas no modo de produção
normativa”
400
.
“Essa incompatibilidade não pode perdurar,
porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do
ordenamento jurídico, entendido, por isso mesmo, como reunião das
normas vinculadas entre si por uma fundamentação unitária
401
, por isso,
em defesa da Constituição, utilizam-se os instrumentos de controle de
constitucionalidade, nela disciplinados.
A inconstitucionalidade por ação, abstratamente
considerada, é controlável através de ação direta de inconstitucionalidade,
prevista na Constituição brasileira, no artigo 102, inciso I, alínea “a”.
Essa espécie de vício de inconstitucionalidade
ainda pode ser debelada em casos concretos, quando alegada
incidentalmente por uma das partes de um processo ou reconhecida de
ofício pelo juiz.
A inconstitucionalidade por omissão, conforme
mencionado, ocorrerá na hipótese de desobediência a imperativo
constitucional de atuação dos Poderes Legislativo ou Executivo.
“Em tese, não deveria haver também obstáculo ao
reconhecimento da omissão judiciária, a ser corrigida pelo Supremo
Tribunal Federal ou pelos Tribunais de Justiça dos Estados, eis que isso
pode redundar, em última análise, na negação da Justiça”
402
.
400
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra as omissões legislativas, p. 88.
401
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 47.
402
Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, p. 288.
132
No entanto, “a interpretação literal do art. 103, §
2°, parece indicar que a Constituição preocupou-se exclusivamente com as
omissões legislativas e executivas, como pressuposto para a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, relevando as omissões judiciárias”
403
.
“Só há a omissão inconstitucional quando o
dever constitucional de ação. A inconstitucionalidade por omissão
pressupõe a exigência constitucional de ação”
404
.
“A omissão, em sentido jurídico-constitucional,
significa não fazer aquilo a que se estava constitucionalmente obrigado”
405
.
“A omissão é relevante não no sentido
naturalístico de não fazer, mas no sentido normativo de não fazer algo
devido e possível
406
.
Várias normas constitucionais exigem a edição de
atos legislativos ou administrativos para que os direitos ou situações nela
disciplinados tenham plena eficácia.
É o que José Afonso da Silva denominou de
normas constitucionais de eficácia limitada, que são aquelas que não
produzem todos os seus efeitos essenciais com a mera vigência do texto
constitucional que as contêm, uma vez que o constituinte, pelas mais
variadas razões, deixou de fixar sobre a matéria uma normatividade
suficiente a atribuir à elas plena eficácia, relegando tal tarefa ao legislador
ordinário
407
.
403
Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, p. 288.
404
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 90.
405
Idem, p. 91.
406
Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, p. 286.
407
Desenvolvendo a teoria forjada por Vezio Crisafulli sobre a aplicabilidade das normas constitucionais
e baseando-se na certeza de que todas as normas constitucionais, em maior ou menor grau, são dotadas de
aplicabilidade, o mencionado autor elaborou uma teoria tricotômica sobre a eficácia das mesmas. O
referido professor, no que toca ao grau de aplicabilidade, classifica as normas constitucionais em normas
de eficácia plena, normas de eficácia contida e, finalmente, normas de eficácia limitas. “Na primeira
categoria incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os
seus efeitos essenciais (ou m a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador
constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e
imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas
que incidem imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas prevêem
meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, dadas certas
circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples
entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo,
não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador
ordinário ou a outro órgão do Estado” . Silva, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p.
82/83.
133
É o que ocorre, por exemplo, com os casos de
mandados de penalização explícitos.
Ao dispor no artigo 225, § 3°, que as condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão seus infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independente da obrigação de reparar os danos causados”, a Constituição
da República Federativa do Brasil impôs ao legislador ordinário o dever de
editar lei contendo os tipos penais que descrevam as condutas lesivas ao
meio ambiente e cominem penas à prática das mesmas, tudo para que se
tornasse efetivo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
conferido a todos no “caput” do aludido dispositivo constitucional.
O legislador ordinário deu cumprimento ao
aludido mandado de penalização mediante a edição da Lei 9.605, de 12
de fevereiro de 1998, conhecida por Lei dos Crimes Ambientais, onde,
através de tipos penais, descreveu as condutas consideradas lesivas ao meio
ambiente.
Caso houvesse descumprido o aludido imperativo
constitucional, deixando de tipificar os comportamentos ofensivos ao meio
ambiente, o legislador ordinário incidiria em omissão inconstitucional,
passível de reconhecimento jurisdicional, via ação declaratória de
inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 103, § 2°, da
Constituição Federal.
É importante consignar ainda que, no Brasil, o
controle de constitucionalidade por omissão pode ser feito também através
do mandado de injunção, estatuído no artigo 5°, inciso LXXI, da
Constituição Federal, que dispõe que: “conceder-se-á mandado de injunção
sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Em relação ao mandado de injunção não
teceremos maiores comentários em razão inexistência de relação com o
objeto central do trabalho, mesmo porque o mesmo visa suprir a omissão
legislativa que impede o gozo de direitos e liberdades constitucionais, bem
como de prerrogativas ligadas à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
É evidente que para que se considere
caracterizada a omissão inconstitucional, a inércia do legislador deve
134
ultrapassar aquele prazo previsto pela Constituição ou, ante a inexistência
deste, do escoamento daquilo que Jorge Miranda chama de “tempo útil”
408
,
ou seja, o prazo razoável para a adoção da medida constitucionalmente
imposta.
Ressalte-se, no entanto, que, no tocante aos
direitos e garantias fundamentais, a tolerância de ser consideravelmente
reduzida, ante o princípio constitucional da aplicabilidade imediata das
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (...)”
409
, que no
texto constitucional brasileiro vem expresso no artigo 5°, § 1°, raciocínio
que se aplica, portanto, as imposições constitucionais de criminalização.
Vale lembrar, ainda, que a inconstitucionalidade
desta espécie pode derivar tanto da omissão total da medida
constitucionalmente determinada como também de sua omissão parcial,
uma vez que “inconstitucionalidade por omissão corresponde à falta de
ação ou a falta de ação nos termos exigidos”
410
.
“Existe uma omissão legislativa, jurídico-
constitucionalmente relevante, quando o legislador não concretizar ou não
concretizar completamente uma imposição constitucional concreta”
411
.
Jorge Miranda assinala que “é total a
inconstitucionalidade por omissão que consiste na falta absoluta de
medidas legislativas ou outras que dêem cumprimento a uma norma
constitucional ou a um dever prescrito por norma constitucional, e parcial
aquela que consiste na falta de cumprimento do comando constitucional
quanto a alguns dos seus aspectos ou dos seus destinatários”
412
.
Exemplo de omissão parcial geradora de
inconstitucionalidade é aquela reconhecida pela Corte constitucional
italiana, na decisão 14, de 1973, que tinha por objeto o artigo 724 do
Código Italiano, que descreveu o crime de blasfêmia, ao afirmar
textualmente que para a plena atuação do princípio constitucional de
liberdade de religião, o legislador deve estender a tutela penal contra o
408
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 313, 338 e 507, Coimbra: Editora
Coimbra, 1991, apud Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 94.
409
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 96.
410
Idem.
411
Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, p. 335.
412
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 339, Coimbra: Editora Coimbra, 1991,
apud Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 96.
135
ultraje ao sentimento religioso dos indivíduos pertencentes a confissões
religiosas diversas da católica”
413
.
Nas hipóteses de inconstitucionalidades como a
acima mencionada ou se declara a inconstitucionalidade das normas que
veiculem as aludidas omissões, considerando ter havido
inconstitucionalidade por ação, em decorrência de afronta ao princípio da
igualdade, ou então, vislumbrando-se mera inconstitucionalidade por
omissão, estende-se o âmbito de abrangência da norma objeto de exame.
No Brasil, os julgados do Supremo Tribunal
Federal se dividem entre uma e outra posição, sendo majoritária a última
delas, que privilegia a conferência de maior efetividade às normas
constitucionais
414
.
Traçadas as principais características da
inconstitucionalidade por ação e aquela derivada de omissão é possível
constatar que aquela atua no campo da validade normativa enquanto esta no
da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais.
Mas, voltando à questão da supremacia da Lei
Fundamental sobre os demais atos normativos, de índole legislativa ou
administrativa, observa-se que as constituições têm adotado três sistemas
de controle de constitucionalidade: o político, o jurisdicional e o misto.
No primeiro sistema o controle da
compatibilidade vertical entre as normas inferiores e a Lei Fundamental é
conferido à um órgão político, como o Poder Legislativo ou um órgão
específico.
“Entre os países que optaram pelo controle
político, entregando o controle da constitucionalidade ao Parlamento, pode-
se lembrar os casos da Inglaterra, à vista de sua Constituição flexível, e
aqueles que criaram órgão específico para tanto (de caráter político), caso
da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os países
marxistas”
415
.
No segundo sistema, o controle de
constitucionalidade é entregue ao Poder Judiciário comum (caso dos
EUA), quer criando órgãos específicos (Tribunais Constitucionais) para
413
Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 106.
414
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 99/101.
415
Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, p. 104.
136
exercer a função, mas inserindo-os também no Poder Judiciário
(Alemanha), ou criando órgãos específicos para o controle, mas deixando-o
fora dos poderes, caso da Itália”
416
.
“O Controle misto realiza-se quando a
constituição submete certas categorias de leis ao controle político e outras
ao controle jurisdicional, como ocorre na Suíça, onde as leis federais ficam
sob controle político da Assembléia Nacional, e as leis locais sob o controle
jurisdicional”
417
.
No Brasil, a Constituição de 05 de outubro de
1988, em seu artigo 102, inciso I, alínea “a”, e 103, § 2°, adotou o sistema
judicial.
O Direito Constitucional, em geral, em relação ao
sistema judicial, reconhece dois critérios de controle de
constitucionalidade: o difuso e o concentrado.
No primeiro, a competência para o controle de
constitucionalidade é atribuída a todo e qualquer órgão do Poder Judiciário,
enquanto no segundo a competência será do órgão de cúpula do Poder
Judiciário ou de uma corte especial (Tribunal Constitucional).
No Direito Constitucional comparado é possível
constatar, portanto, dentro do sistema judicial, a existência de três modos
de exercício do controle de constitucionalidade: “a) controle de
constitucionalidade por via de exceção, ou incidental, segundo o qual cabe
o demandado argüir a inconstitucionalidade, quando apresenta sua defesa
num caso concreto, isto é, num processo proposto contra ele; por isso é
também chamado controle concreto; b) por via de ação direta de
inconstitucionalidade, de iniciativa do interessado, de alguma autoridade,
ou instituição ou pessoa do povo (ação popular); c) por iniciativa do juiz
dentro de um processo de partes”
418
.
A Constituição Brasileira adotou, conforme
mencionado, o controle jurisdicional, mesclando os critérios difuso e
concentrado, o primeiro exercido por via de exceção ou por iniciativa do
juiz e o segundo por meio de ação direta de inconstitucionalidade, cujo
processo e julgamento cabe ao Supremo Tribunal Federal.
416
Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade, p. 104.
417
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 49
418
Idem, p. 50.
137
No que toca aos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade de leis ou outros atos do Poder Público, é importante
lembrar que eles divergem conforme seja a via eleita para a persecução da
decisão neste sentido.
Nos casos de controle difuso, via de exceção ou
de iniciativa do juiz, a questão deve ser resolvida por meio de princípios
processuais.
“Neste caso, a argüição da inconstitucionalidade é
questão prejudicial e gera um procedimento incidenter tantum que busca a
simples verificação da existência ou não do vício alegado. E a sentença é
declaratória. Faz coisa julgada no caso e entre as partes. Mas, no sistema
brasileiro, qualquer que seja o tribunal que a proferiu, não faz ela coisa
julgada em relação à lei declarada inconstitucional, porque qualquer
tribunal ou juiz, em princípio, poderá aplicá-la por entendê-la
constitucional, enquanto o Senado Federal, por resolução, não suspender
sua executoriedade”
419
, nos termos do que dispõe o artigo 52, inciso X, da
Constituição Federal.
Diversos serão os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade em ação direta, que tem por objeto a própria questão
da constitucionalidade. Neste caso, a decisão que declare a
inconstitucionalidade de lei ou outro ato do Poder Público produzirá efeitos
erga omnes.
Aliás, a Constituição brasileira, em seu artigo102,
§ 2°, é expressa neste sentido, dispondo que “as decisões definitivas de
mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de
inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade,
produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.
Até aqui tratamos dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade por ação, mas questão de extrema relevância para o
objeto do presente estudo e que mais adiante será analisada de forma mais
detida em relação a ele refere-se aos efeitos produzidos pela decisão
proferida em ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, em
face do ordenamento jurídico constitucional brasileiro.
419
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 54.
138
O artigo 103, § 2°, da aludida Lei Fundamental
dispõe que “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para
tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente
para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão
administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Observa-se que “a sentença que reconhece a
inconstitucionalidade por omissão é declaratória, porque dela decorre um
efeito ulterior de natureza mandamental no sentido de exigir do Poder
competente a adoção das providências necessárias ao suprimento da
omissão”
420
.
José Afonso da Silva assegura que não se trata de
efeito erga omnes, pois se tratando de hipótese de reconhecimento de
inconstitucionalidade em caso concreto e não in abstrato, haverá
determinação dirigida diretamente a um Poder
421
.
Flávia Piovesan diverge de tal posicionamento,
asseverando que “ajuizada a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão e em caso de procedência desta ação, caberia ao Supremo Tribunal
Federal declarar a inconstitucionalidade por omissão e dar ciência ao órgão
omisso para a adoção das providências necessárias. Como a declaração de
inconstitucionalidade é feita em tese, seus efeitos são erga omnes, isto é,
aproveitam a todos”
422
.
Ainda é importante consignar que a decisão que
reconhece a inconstitucionalidade por omissão, além de declaratória,
ostenta natureza mandamental, pois dela surte ulterior efeito
consubstanciado na exigência do Poder competente da adoção das medidas
cabíveis para o suprimento da omissão
423
.
No entanto, conforme observa José Afonso da
Silva esse sentido mandamental é mais acentuado em relação ao órgão
administrativo. Mas ele existe também no tocante à ciência do Poder
Legislativo”
424
.
Tal observação se deve ao fato de que, quando se
trata de omissão administrativa, nos termos do artigo 103, § 2°, da
Constituição brasileira, o órgão responsável pela omissão é compelido a
420
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 55.
421
Idem, p. 55.
422
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 120.
423
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 55.
424
Idem.
139
supri-la em trinta dias, diversamente do que ocorre quando se trata de
omissão legislativa, situação em que ao Poder Legislativo é dada mera
ciência de sua inércia inconstitucional.
4.2. As inconstitucionalidades por ofensas aos mandados de
criminalização e as consequências de sua declaração
Conforme mencionado no item anterior, as
normas que veiculam as imposições constitucionais de criminalização
explícitas gozam de eficácia limitada.
As aludidas normas constitucionais não
descrevem qualquer comportamento delituoso cuja prática importará em
imposição de pena, tarefa esta que, aliás, constitui o objeto da imposição ao
legislador.
Portanto, os mandados expressos de
criminalização não são auto-executáveis, dependendo de posterior atuação
legislativa.
Aliás, neste sentido, ao manifestar-se sobre
normas constitucionais desta espécie, José Joaquim Gomes Canotilho faz
consignar que “um ponto essencial se pode detectar na descrição das
imposições constitucionais: elas não constituem direito ‘sef executing’,
necessitando da ‘interpositio’ do legislador (ou de órgãos constitucionais)
no sentido de sua transformação em direito actual
425
.
As normas pelas quais veiculam os mandados
constitucionais de penalização são passíveis de violação tanto por ação
quanto por omissão.
Vimos no tópico anterior que uma lei que fosse
editada com a finalidade de revogar, pura e simplesmente, a Lei 9.455,
de 07 de abril de 1997, que, em cumprimento a imposição constitucional de
criminalização expressa pelo artigo 5°, inciso XLIII, da Constituição
425
Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, p. 298.
140
brasileira, tipificou as condutas que caracterizam crimes de tortura e
cominou à elas as respectivas penas, constituiria afronta ao aludido
dispositivo constitucional empreendida por ação do legislador.
Nestes casos, a extirpação do vício de
inconstitucionalidade do ordenamento jurídico não traria maiores
problemas.
Através de uma ação direta de
inconstitucionalidade, proposta por um dos legitimados elencados no artigo
103 da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal poderia afastar
do ordenamento jurídico a lei violadora do texto constitucional, impedindo
que qualquer outro órgão jurisdicional viesse a aplicá-la, em razão dos
efeitos erga omnes e vinculantes de tal decisão, estabelecidos no artigo
102, § 2°, da Constituição Federal.
O aludido controle jurisdicional também poderia
ser feito incidentalmente, em qualquer processo, deixando o juiz de aplicar
a lei inconstitucional, a pedido das partes ou de ofício.
O mesmo aconteceria caso a hipotética lei,
embora não descriminalizasse aquelas condutas caracterizadoras dos crimes
de tortura, reduzisse ou alterasse as penas à elas impostas, de modo a
conferir proteção insuficiente ao bem jurídico penalmente tutelado.
Aliás, no sentido do que foi dito posicionam-se
Emílio Dolcini e Giorgio Marinucci.
Assentando suas palavras sobre o ordenamento
jurídico italiano, estes autores italianos proclamam que “poderá (...)
acontecer que a legislação ordinária configure um ou mais crimes em
conformidade com a obrigação constitucional de incriminação e que
sucessivamente tais crimes venham a ser abolidos’ porque transformados
em ilícitos administrativos ou porque, verdadeiramente, expulsos de toda a
categoria de ilícito. Nesta eventualidade se, por exemplo, fosse
despenalizada a norma do código penal italiano que incrimina o abuso de
autoridade contra presos ou detidos (art. 608) – poderia ser denunciada, por
desconformidade com a expressa obrigação constitucional de incriminação,
a inconstitucionalidade da norma despenalizadora: a sua conseqüente
declaração de inconstitucionalidade arrastaria também o efeito abrogativo
141
da precedente norma incriminadora, fazendo ‘reviver’ a disposição
ilegitimamente abrogada”
426
.
No mesmo diapasão se pronuncia Francesco
Palazzo ao assegurar que “a declaração de inconstitucionalidade da norma
sucessiva, mais favorável, deverá conduzir a ‘revivescência’ de outra
precedente normativa, mais severa, abrogada por norma inconstitucional ou
que tinha por objeto a norma despenalizadora na parte em que
descriminaliza (e, pois, ‘não exclui da despenalização’) uma determinada
matéria (...).
427
Conclui-se, portanto, que neste caso, a lei
posterior, revogadora daquela que cumpre o mandado de criminalização, se
encontra maculada pelo vício da inconstitucionalidade e sua declaração terá
efeito repristinatório em relação à norma criminalizadora.
No entanto, problema de mais difícil solução
aparece quando se trata de debelar inconstitucionalidade consubstanciada
em recusa do legislador em atender a obrigação derivada do mandado
constitucional de penalização.
Evidentemente, em tais casos, com base no artigo
103, § 2ª, da Constituição Federal, os legitimados discriminados no “caput”
do mesmo dispositivo, poderiam intentar ação direta de
inconstitucionalidade por omissão.
Ocorre que a decisão que declarasse tal vício de
inconstitucionalidade não teria aptidão para suprir a inércia do legislador,
pois, nos termos do aludido dispositivo constitucional, o órgão jurisdicional
limitar-se-ia a dar ciência ao Poder competente para a adoção das
providências necessária.
Consignou-se no tópico anterior que, muito
embora em hipótese de omissão legislativa a decisão proferida em ação
direta de inconstitucionalidade por omissão mantenha o seu caráter
mandamental, tal efeito se apresenta enfraquecido, uma vez que o
Judiciário não pode impor ao Legislativo o exercício da atividade
legiferante, sob pena de interferência de um Poder no outro, em evidente
afronta ao princípio da separação dos poderes, explicitado no artigo da
Constituição brasileira.
426
Dolicni, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 176/177.
427
Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 110.
142
Obviamente, cientificado da inconstitucionalidade
por omissão, a insistência do Poder Legislativo em não atender a
determinação constitucional consistirá inconstitucionalidade ainda mais
grave
428
.
Mesmo porque, de acordo com a adequada
observação de José Joaquim Gomes Canotilho, “a mediação legislativa não
é um querer ou poder jurídico dos órgãos de legiferação, mas um
verdadeiro dever jurídico imposto pelas normas hierarquicamente
superiores da constituição”
429
.
Conforme preciosa ponderação de Luciano
Feldens, de uma eventual omissão legislativa resultaria, em primeira
análise, que o legislador incide em nítida situação de ilicitude
constitucional, porquanto sua passividade supõe, nesses casos, uma
infração ao ordenamento jurídico, situação essa que se distingue da mera
inércia legislativa. Na primeira hipótese (omissão), o legislador está
vinculado a um dever jurídico que decorre da própria normatividade
exsurgente da Constituição, sendo sua atuação informada, em casos que
tais, por um princípio da irrenunciabilidade
430
.
Márcia Dometila Lima de Carvalho adverte que,
nestas hipóteses, “há fraude à legalidade constitucional, expressa pela não
tipificação, ou tipificação deficiente ou insatisfatória, de fatos naturalmente
lesivos aos valores constitucionais, hierarquicamente protegidos pela Lei
Magna. Tal ocorrência, a par de fraudar o Estado Democrático de Direito,
solapa o princípio da legalidade, pela desmoralização, tornando-o
insuficiente, enquanto norma máxima de segurança jurídica. Daí a
inconstitucionalidade por omissão, tratada pela doutrina jurídica e
expressa nas Constituições modernas, inclusive a nossa”
431
.
No entanto, mesmo diante da gravidade da
aludida situação de inconstitucionalidade, praticamente nada poderá ser
feito.
É que o ordenamento jurídico pátrio, como o
português
432
, no qual encontrou inspiração para a inserção no sistema
428
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 55.
429
Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, p. 298.
430
Feldens, Lucino. A Constituição Penal, p. 79.
431
Carvalho, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p. 55.
432
O artigo 283, n. 2, da Constituição da República Portuguesa, impedindo a edição de sentenças com
força normativa, dispõe que “quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de
inconstitucionalidade por omissão, dará ciência ao órgão legislativo competente”.
143
constitucional brasileiro da ação de inconstitucionalidade por omissão, o
prevê aquilo que Francesco Palazzo chama de decisão “manipulativa”, da
espécie “aditiva”
433
.
Analisando tal deficiência do sistema de controle
de constitucionalidade adotado pelo ordenamento constitucional brasileiro,
José Afonso da Silva diz que “foi tímida também a Constituição nas
conseqüências da decretação da inconstitucionalidade por omissão. Não
avançou muito mais do que a Constituição portuguesa. Apenas dispôs no §
2° do art. 103 que, declarada a inconstitucionalidade por omissão de
medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao
Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se
tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. É sem dúvida
um grande passo. Contudo, a mera ciência ao Poder Legislativo pode ser
ineficaz, já que ele não está obrigado a legislar. Nos termos estabelecidos, o
princípio da discricionariedade do legislador continua intacto, e está bem
que assim seja. Mas isso não impediria que a sentença que reconhecesse a
omissão inconstitucional pudesse dispor normativamente sobre a matéria
até que a omissão legislativa fosse suprida. Com isso, conciliar-se-iam o
princípio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo
cumprimento das normas constitucionais”
434
.
Em que pese a preciosa contribuição prestada pelo
consagrado constitucionalista com a transcrita crítica e sugestão, é
inolvidável que, ainda que assim fosse, em termos de matéria penal, a
aludida solução de nada adiantaria, pois ato jurisdicional que suprisse
omissão legislativa relacionada à imposição constitucional de
criminalização feriria de morte o princípio da reserva legal em matéria
penal, também de estatura constitucional, eis que explicitado no artigo 5°,
inciso XXXIX, da Lei Fundamental brasileira.
Nos termos do artigo 5°, inciso XXXIX, da
Constituição Federal, confirmado pelo artigo do Código Penal, a
433
Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 33. Ao fazer menção as decisões
manipulativas, o autor subdivide-a em duas espécies: a) a redutiva, que é aquela “relativa à verdadeira e
própria inconstitucionalidade parcial, ainda que embora não necessariamente derrogatória de alguma
parte do material linguístico retirando do tipo complexo, resultante da fórmula textual, um subtipo
inconstitucional (...)”; e b) a aditiva, que é aquela que, ao afastar a inconstitucionalidade de uma omissão
legislativa, cria um tipo não contido em lei. Analisando a questão da inconstitucionalidade por omissão,
Jorge Miranda menciona que “na Alemanha, na Áustria, na Itália e na Espanha, apesar de não haver
norma constitucional expressa que institua a fiscalização, os respectivos Tribunais Constitucionais m
conseguido chegar a resultados muito semelhantes, através de técnicas apuradas de interpretação e
integração, que resultam em sentenças aditivas, criativas ou apelativas”. Miranda, Jorge. Manual de
Direito Constitucional, t. II, p. 511, Coimbra: Editora Coimbra, 1991, apud, Piovesam, Flávia. Proteção
judicial contra omissões legislativas, p. 129.
434
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 48/49.
144
descrição de condutas criminosas e a cominação das respectivas penas
podem advir de lei, em seu sentido mais estrito, de modo que, jamais, um
ato jurisdicional poderia suprir tal omissão legislativa, usurpando
competência que a Lei Maior atribui com exclusividade ao Poder
Legislativo.
Daí porque Francesco Palazzo pontua que “a
‘penetração’ dos valores constitucionais no corpo do sistema penal (como,
de resto, no de qualquer outro ramo do ordenamento) pode ocorrer
mediante a ‘via legislativa’, por intermédio de leis de atuação
constitucional, ou pela ‘via jurisdicional’, entendendo-se como tal não
apenas o trabalho de adequação do magistrado a quanto se contenha nas
malhas da lei, mas, principalmente, a decisiva atividade da Corte
constitucional. Ora, se a primeira via não apresenta problemas particulares
no campo penal, a segunda põe-se numa problemática relação a propósito
do princípio fundamental de estrita legalidade dos delitos e das penas”
435
.
O exercício da atividade hermenêutica pelos
órgãos do Judiciário sobre as normas postas deve ser norteado pelos
princípios e preceitos constitucionais, o que não se confunde com a criação
de normas abstratas e genéricas, nos casos de inatividade do Poder
Legislativo, principalmente no que se refere a norma penal incriminadora
que, por expressa disposição constitucional (artigo 5°, inciso XXXIX, da
Constituição Federal) está submetida ao princípio da legalidade.
É evidente que a impossibilidade de forçar o
Parlamento ao exercício de sua atividade fim enfraquece os mandados
constitucionais de criminalização, porém não implica em admitir a
inexistência dos mesmos ou considerá-los como mera indicação do
constituinte ao legislador ordinário.
Ademais, José Joaquim Gomes Canotilho nos
lembra que o que caracteriza a especifica vinculatividade das imposições
constitucionais (...) não é a existência de uma ‘ordem de legislar’ em prazos
estipulados; não é a possibilidade de ‘execução judicial’ das imposições;
não é a natureza de execução dos actos legislativos, concretizadores das
normas impositivas. É assim: (1) é a existência de uma ordem material
permanente e concreta dirigida essencialmente ao legislador, no sentido de
este emanar os actos legislativos concretizadores; (2) o dever do legislador
regular positivamente as matérias contidas nas imposições; (3) o dever de o
435
Palazzo, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 30.
145
legislador ‘actuar’ os preceitos impositivos, segundo as diretivas materiais
nele formuladas”
436
.
Além disso, ainda que se leve em conta apenas o
aspecto processual, consubstanciado na possibilidade impor judicialmente
ao legislador o cumprimento da imposição constitucional, verificar-se-á
que estas determinações terão enorme relevância quando se cuidar de
ordens constitucionais já cumpridas.
Quanto a tal constatação, Emílio Doncini e
Giorgio Marinucci extraem conclusão baseada no ordenamento
constitucional italiano, mas que se aplica integralmente ao brasileiro. Os
renomados juristas italianos asseveram que “as expressas obrigações
constitucionais de incriminação são irrelevantes, no sistema jurídico
italiano, nas hipóteses de omissão, total ou parcial, por parte do legislador
ordinário. São, ao invés, vinculantes, nas hipóteses em que uma pré-
existente norma incriminadora, conforme com a expressa obrigação
constitucional, venha a ser posteriormente despenalizada: a norma
despenalizadora poderá ser declarada inconstitucional por desconformidade
com a norma constitucional que impõe a obrigação de incriminação”.
437
E também deve se considerar que não é porque
não como compelir via jurisdicional o legislador ao cumprimento da
imposição constitucional de criminalização que, quando omisso, ele ficará
livre de responsabilidade, ao menos no campo político.
Sob este aspecto, observa Luciano Feldens que
“caso a omissão legislativa se prolongue no tempo, o único efeito que dela
resulta parece ser aquele que se faz inerente à responsabilidade política do
Parlamento pelas conseqüências de sua inação (...)”
438
.
Transcrevendo o pesnamento de Martín-
Retortillo, Luciano Feldens observa que “a inatividade dos poderes
constitui uma autêntica contradictio in terminis em um Estado Social de
Direito que, por definição, é um Estado prestacional, não sendo
desarrazoado sustentar-se que a ausência da norma aplicável pode gerar
lesões a direitos individuais”
439
.
436
Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, p. 316.
437
Dolicni, Emílio e Marinucci, Giorgio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, p. 178/179.
438
Feldens, Luciano. A Constituição Penal, p. 79.
439
Martín- Retortillo, em “Prólogo” à obra de mez-Puente, Marcos, La Inactividad del Legislador:
uma realidad susceptible de control, Madrid: McGraw-Hill, 1997, p. XXI, apud Feldens, Luciano. A
Constituição Penal, p. 79.
146
Atentos à brecha aberta ao descumprimento da
Constituição, os juristas não medem esforços para sugerir soluções para o
caso.
Adotando linha de raciocínio similar àquela
desenvolvida por José Afonso da Silva, Flávia Piovesan sustenta que “mais
conveniente e eficaz seria se o Supremo Tribunal Federal declarasse
inconstitucional a omissão e fixasse prazo para que o legislador omisso
suprisse a omissão inconstitucional, no sentido de conferir efetividade à
norma constitucional. O prazo poderia corresponder ao prazo da apreciação
em ‘regime de urgência’ que, nos termos do art. 64, § 2°, do texto
440
, é de
quarenta e cinco dias. Pois bem, finalizado o prazo, sem qualquer
providência adotada, poderia o próprio Supremo, a depender do caso,
dispor normativamente da matéria, a título provisório, até que o legislador
viesse a elaborar a norma faltante. Esta decisão normativa do Supremo
Tribunal Federal, de caráter temporário, viabilizaria desde logo, a
concretização de preceito constitucional. Estariam então conciliados o
princípio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo
cumprimento das normas constitucionais”
441
.
No entanto, conforme mencionado
anteriormente, a aludida solução não atende aos casos de omissão
relacionada à imposições constitucionais de criminalização, uma vez que
colide com o princípio constitucional da legalidade, inserto no artigo 5°,
inciso XXXIX, da Constituição Federal.
Por isso, logo depois de lançar a referida sugestão,
a própria autora excepciona os casos de indispensável atuação legislativa,
mencionando que, “nas hipóteses em que a atuação do legislador fosse
absolutamente insubstituível, não caberia ao Supremo dispor
normativamente”
442
.
Parece mais interessante a solução que era
adotada pela jurisdição constitucional iugoslava.
440
Artigo 64 da Constituição da República Federativa do Brasil tem a seguinte redação: “A discussão e
votação dos projetos de lei de inciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. § 1°: O Presidente da República poderá
solicitar urgência para a apreciação dos projetos de sua iniciativa. § 2°: Se, no caso do § 1°, a Câmara dos
Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até
quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com
exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. § 3°: A apreciação
das emendas do Senado Federal pela mara dos Deputados far-se-á no prazo de dez dias, observado
quanto ao mais o disposto no parágrafo anterior. § 4°: Os prazos do § não correm nos períodos de
recesso do Congresso Nacional, nem se aplicam aos projetos de Código”.
441
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 126/127.
442
Idem, p. 127.
147
“A jurisdição constitucional da então Iugoslávia
entendia que os próprios tribunais podiam instaurar ex officio o processo de
apreciação da constitucionalidade e, nos casos de omissão constitucional,
não só ‘informar a Assembléia desse fato’, como também intervir com
vistas ao suprimento de omissões legislativas, mediante a apresentação às
Assembléias de propostas de elaboração ou modificação de leis ou de
tomada de outras medidas que tenham por fim garantir a
constitucionalidade e a legalidade, bem como a proteção de direitos e de
outras liberdades dos cidadãos e das comunidades”
443
.
Obviamente, tal solução não garante totalmente o
cumprimento da imposição constitucional, uma vez que o Legislativo pode
não aprovar o projeto oriundo de iniciativa do Judiciário, mas, sem dúvida,
está um passo a frente da mera ciência da omissão ao Parlamento.
Em síntese conclusiva, é dizer que, muito embora
o sistema de controle de inconstitucionalidade dos atos do legislativo que
descumpram as imposições constitucionais de criminalização seja
deficiente, tal circunstância, de caráter nitidamente processual, não faz
desaparecer aqueles mandamentos externados da Lei Maior, de evidente
índole material.
443
Piovesan, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas, p. 130/131.
148
CONCLUSÕES
1. No atual estágio de desenvolvimento do Direito
Penal, não se admite mais um conceito puramente formal de crime, que o
define como tudo aquilo que o legislador descreve como tal.
2. Num Estado Democrático de Direito, como
aquele em que se constitui a República Federativa do Brasil, que, acima da
mera legalidade formal, busca a realização de justiça material, a decisão do
legislador penal de criminalizar determinada conduta deve estar orientada
pela finalidade legítima que o Direito Penal deve desempenhar na
sociedade.
3. Se a pena é a sanção mais severa contida no
ordenamento jurídico, uma vez que sua execução implica na restrição de
direitos fundamentais do sujeito ativo do crime, dentre os quais a liberdade
e o patrimônio, ela deve ser reservada àqueles fatos que ofendem de forma
mais intensa as condições de sobrevivência em sociedade.
4. Os bens, valores e interesses que constituem as
condições indispensáveis à coexistência e ao desenvolvimento adequado da
personalidade de cada cidadão são chamados de bens jurídico-penais e,
portanto, são passíveis de tutela pelo Direito Penal, que tem como função
exclusiva a proteção dos mesmos.
5. O bem jurídico então se apresenta como a
essência do conceito de crime, permitindo a sua definição material, que
servirá de limite e fundamentação da intervenção punitiva do Estado.
Portanto, neste enfoque material, o crime só pode ser visto como a violação
ou a exposição a perigo de um bem jurídico indispensável para a
manutenção da vida em sociedade.
6. Para que se alcance o objetivo de limitar e
fundamentar a atuação legislativa no âmbito penal, indispensável se mostra
a concretização desta noção de bem jurídico.
7. O instrumento mediatizador desta
concretização pode ser a Constituição, pois se é a Lei Maior que abriga
os valores fundamentais de uma sociedade, somente ela terá aptidão para
selecionar aqueles que ostentem dignidade penal, ou seja, que sejam
149
passíveis de tutela penal. Além disso, se a pena implica na restrição de
direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, somente aqueles
bens, valores ou interesses dotados de relevância constitucional poderão ser
protegidos mediante a cominação de pena.
8. Assim, por uma questão de proporcionalidade
entre o bem jurídico afetado pela imposição da pena e o que se visa tutelar
através do Direito Penal, este, como aquele, deve ser dotado de relevância
constitucional. Somente os bens dotados de relevância constitucional terão
dignidade penal.
9. A relevância constitucional do bem jurídico
decorrerá não somente da consagração expressa ou implícita do bem, valor
ou interesse pela Constituição, mas também da relação de pressuposição
necessária existente entre estes e outros não consagrados
constitucionalmente.
10. A dignidade penal do bem jurídico não é
suficiente para a deflagração de sua tutela através da intervenção do
legislador penal. A proteção através do Direito Penal deve se mostrar
necessária e, salvo nos casos de imposições constitucionais de
criminalizaão, a verificação da aludida necessidade se insere no âmbito da
discricionariedade do legislador, que encetará a avaliação em cada caso
concreto.
11. A concretização da noção de bem jurídico
mediatizada pela Constituição não se faz através de determinado
dispositivo constitucional, mas dos denominados princípios influentes em
matéria penal, que compreendem os delineadores do tipo de Estado e seus
fins, os que constituem o catálogo de direitos fundamentais e os que
exprimem a dimensão do Estado de Direito.
12. É inquestionável, portanto, que o modelo de
Estado consagrado na Lei Fundamental reflete sobre a formatação de seu
sistema jurídico-penal.
13. Num Estado Democrático de Direito, do
Direito Penal não se extrairá a imposição ou proibição de condutas que não
se destinam a proteção de bens jurídicos, enquanto valores indispensáveis à
manutenção da vida em sociedade. Será inadmissível, portanto, neste
modelo de Estado, a criminalização de ofensas exclusivas à ideologia
política dominante, à moral e a preceitos religiosos e que não importem em
nenhuma danosidade social, revelada pela lesão ou perigo de lesão a um
150
bem jurídico. O mesmo se diga em relação à punição, à titulo de crime, de
meras intenções não materializadas através de condutas exteriorizadas no
mundo dos fatos, em franca censura indevida a liberdade de consciência
individual.
14. O Direito Penal que assenta suas bases sobre
um modelo de Estado de Direito, meramente formal, difere daquele que
adere as características de um Estado de Direito, de cunho material, pois o
primeiro se contentará com a busca da liberdade e igualdade meramente
formais, enquanto o segundo perseguirá a concretização da liberdade e
igualdade substanciais, o que refletirá, inclusive, na atribuição de dignidade
penal aos bens jurídicos. Enquanto síntese do Estado Liberal e do Estado
Social, um Estado Democrático de Direito busca um equilíbrio na defesa de
bens individuais e transindividuais.
15. Da definição material de crime acima
alinhavada, consubstanciada na violação ou exposição a perigo de um bem
jurídico indispensável para a vida em sociedade, se extrai o princípio da
intervenção mínima do Direito Penal. Da intervenção mínima decorrem
duas características do Direito Penal, que também se relacionam com a
fundamentação e limitação do poder punitivo estatal: a fragmentariedade e
a subsidiariedade. O Direito Penal ostenta caráter fragmentário, ou seja,
não é instrumento de tutela de todo e qualquer bem jurídico, mas dos
mais relevantes e quando submetidos a ofensas revestidas de considerável
gravidade, de ataques que, em razão da intensidade, se mostrem
intoleráveis. O Direito Penal apresenta também tida feição subsidiária
dos demais ramos do Direito, ou seja, só deverá ser empregado quando a
tutela do bem jurídico feita por meio do Direito Civil ou Administrativo se
mostrar ineficaz.
16. Da aludida definição material de crime ainda
decorre o princípio da ofensividade ou lesividade (nulla necessitas sine
iniuria, nullum crimem sine iniuria), segundo o qual a conduta descrita
como crime pelo tipo penal deve corresponder a uma lesão ou, ao menos, a
exposição à perigo concreto de um bem jurídico, que ostente dignidade
penal e cuja proteção através daquele ramo do direito se mostre necessária.
17. O princípio da ofensividade apresenta dupla
função. A primeira, de cunho político-criminal, impede o legislador de
criminalizar condutas que não representem efetiva lesão ou perigo concreto
de ofensa a um bem jurídico. Sob este aspecto, inaceitável a criminalização
151
da vontade de infringir a lei ou a demonstração de hostilidade a ela,
mediante a prática de meros atos preparatórios, que não representem sequer
a concretização de perigo a um bem jurídico digno de tutela penal. Ainda
sob esta ótica, não será admissível a incriminação de condutas indiferentes
sob o ponto de vista da lesividade social ou, pura e simplesmente, para a
salvaguarda de valores éticos e morais. Também será inaceitável, sob este
enfoque a antecipação da tutela penal, mediante a incriminação de condutas
que se encontrem distantes do momento em que se verifica o perigo
concreto ou a própria lesão do bem jurídico. A segunda função do princípio
da ofensividade, de caráter dogmático-interpretativo, se volta ao
magistrado, que deverá verificar não se o tipo penal que serve de molde
a conduta imputada ao sujeito ativo do crime exprime a descrição de uma
lesão ou de uma exposição a perigo concreto de um bem jurídico, como
também se, no caso concreto, ao menos, a conduta que se apura gerou
perigo real para aquele bem penalmente tutelado.
18. Os princípios da intervenção mínima,
fragmentariedade, subsidiariedade e ofensividade o estão explicitados na
Constituição. São princípios imanentes que por seus vínculos com outros
postulados explícitos e com os fundamentos do Estado de Direito se
impõem ao legislador e mesmo ao hermeneuta.
19. Das relações reveladas entre a Constituição e
o Direito Penal, decorre que a primeira se apresenta como limite e
fundamento do segundo. Limita porque delineia um quadro máximo,
apontando os bens jurídicos que se revestem de dignidade penal, dos quais
o legislador ordinário não pode se afastar no exercício de sua atividade
típica no âmbito penal, ou seja, torna ilegítima a criminalização de
condutas que não se revelem ofensivas ou perigosas a bens jurídicos
desprovidos de relevância constitucional. Fundamenta porque, em
determinados casos, vai além de ressaltar a dignidade penal de determinado
bem jurídico, para externar a necessidade de sua proteção por meio do
Direito Penal, impondo ao legislador a criminalização das condutas que
demonstrem potencial lesivo a eles.
20. Para a concretização da tutela penal exige-se
que o bem jurídico seja dotado de relevância penal, o que não significa que
ele venha expressamente mencionado pela Lei Maior. A tutela penal pode
legitimamente estender-se a bens que encontram na Constituição um
reconhecimento somente implícito. Além disso, o bem jurídico que
diretamente aufere a tutela pode estar vinculado à Constituição apenas de
forma indireta, ou seja, através de uma relação de pressuposição necessária
com um valor constitucional.
152
21. Em regra, a Constituição se limita à análise da
dignidade do bem jurídico penal, deixando à discricionariedade do
legislador a verificação da necessidade de conferir a ele tutela penal,
constatação esta que se dará caso a caso. No entanto, excepcionalmente,
antecipando-se ao legislador ordinário, o constituinte chama para si o
encargo de atestar não só a dignidade penal do bem jurídico, como também
a necessidade de sua proteção através do Direito Penal. É o que ocorre nos
casos de imposições constitucionais de criminalização, que vinculam o
legislador ordinário a um comportamento ativo, consubstanciado na
penalização dos comportamentos que, ao menos ofereçam perigo concreto
aos mencionados bens jurídicos, e a uma conduta omissiva, consistente na
não descrinalização daqueles.
22. Estas obrigações constitucionais de
criminalização podem derivar de disposição expressa do Texto Maior ou,
implicitamente, do modelo de Estado constitucionalmente adotado, da
hierarquia dos valores constitucionais e do princípio da proporcionalidade.
23. A afronta do legislador as imposições
constitucionais de criminalização, por meio de ação ou de omissão, dará
ensejo à mácula da inconstitucionalidade. A atuação legislativa que revoga
lei anterior que dava cumprimento a um mandado de penalização, constitui
inconstitucionalidade por ação, que poderá ser coibida via ação direta de
inconstitucionalidade por ação. A lei nova será declarada inválida e a
decisão proferida na aludida ação direta de inconstitucionalidade produzirá
efeitos erga omnes, vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, e repristinatório em relação a lei
inconstitucionalmente revogada. A omissão do legislador em edificar os
tipos penais em obediência às imposições de criminalização também gera
vício de inconstitucionalidade, que poderá ser coibido por meio de ação
direta de inconstitucionalidade por omissão. No entanto, na hipótese de
omissão legislativa, o pronunciamento jurisdicional não se revestirá de
qualquer relevância prática, uma vez que o Poder Judiciário se limitará a
cientificar o Poder Legislativo da omissão inconstitucional. O Judiciário
estará impossibilitado de impor a ele a atividade legislativa
constitucionalmente exigida, sob pena de violação ao princípio de
separação dos poderes, ou mesmo de suprir a inércia legislativa, sob pena
de ofensa ao princípio da legalidade.
153
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